Ponto Urbe Revista do núcleo de antropologia urbana da USP

5 | 2009 Ponto Urbe 5

Edição electrónica URL: http://journals.openedition.org/pontourbe/87 DOI: 10.4000/pontourbe.87 ISSN: 1981-3341

Editora Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo

Refêrencia eletrónica Ponto Urbe, 5 | 2009, «Ponto Urbe 5» [Online], posto online no dia 01 dezembro 2009, consultado o 23 março 2021. URL: http://journals.openedition.org/pontourbe/87; DOI: https://doi.org/10.4000/ pontourbe.87

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SUMÁRIO

Editorial

Artigos

Ayahuasca, dependência química e alcoolismo Marcelo S. Mercante

Nos “arredores” e na “capital”: as pesquisas da Sociedade de Etnografia e Folclore (1937-1939) Luísa Valentini

Os Estados da Arte Dissidente na Continuidade com a Tradição Oaskeira Wagner Lins Lira

Seguindo Sacolas Pretas em Busca de Igualdade e Pertencimento Mercado informal, ilegalidade e consumo dos negros pobres em New York City Márcio Macedo

“Meu professor é a bola”: a dinâmica multifacetada do aprendizado futebolístico Enrico Spaggiari

Entrevista

Entrevista : Alba Zaluar Alba Zaluar e Lilian de Lucca Torres

Graduação em Campo

VIII Graduação em Campo: espaço a jovens pesquisadores e incentivo à pesquisa de campo na área de Antropologia Urbana

Imagens e memória: a Campinas dos postais Samuel Leal

Mapeando práticas e discursos: Sobre a experiência de campo na Lapa (RJ) e da tentativa de compreender a noção de gentrification (2008) Natália Helou Fazzioni

A camisa do colégio: a reprodução de estigmas sociais pela escola e a construção de identidades para as juventudes cariocas (2008) Marcella Carvalho de Araujo Silva

As produções audiovisuais de jovens da periferia e a auto-representação (2008) Flávia Fernandes Belletati

Agentes penitenciários de Itirapina, SP: identidade e hierarquia Raphael T. Sabaini

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Agência das medicinas, agência dos sujeitos: produzindo corpos intensivos e alter-ações no Fogo Sagrado Aline Ferreira Oliveira

Os limites da tradução jurídica na inscrição da morte como experiência Maíra Vale

Flores e velas que falam no silêncio: perspectivas Maíra Cavalcanti Vale

Os bolivianos na periferia de Guarulhos Ana Lídia de Oliveira Aguiar

A etapa final: notas acerca do mito Balboa Fernanda Loureiro, Henrique Gonçalves e Juliana Jardim

Décroissance: entre política e meio ambiente Ana Flávia Pulsini Louzada Bádue

Conexão política em espaços urbanos: estudos etnográficos sobre atuações de parlamentares na cidade do Laís Salgueiro Garcez, Mayã Martins e Patrícia Soares Vieira

“Alfama não cheira a fado, mas não tem outra canção” ou “Tudo isso é a alma do Rio, é samba”: As Cidades Descobertas através do Samba, do Choro e do Fado Marina Bay Frydberg

“Samba das cabrochas”: Identidades de gêneros e expressão emotiva em uma roda de samba no Rio de Janeiro (2008) Caroline Peres Couto

Escarafunchando mundos e construindo espaços: uma etnografia do olhar Carlos Gomes de Castro e Laís Jabace Maia

Sobre crença e afeto: diálogos de um candomblé na cidade Amanda Horta, Juliana Soares Campos e Pedro Moutinho

Tradução

Paris, Cidade Invisível: O Plasma - Bruno Latour Bruno Latour

Etnotícias

Dia do Surdo na Avenida Paulista: Etnografando a Mobilização Política Pelas Escolas Especiais César Augusto de Assis Silva, Cibele Barbalho Assênsio, Leslie Lopes Sandes e Priscila Alves de Almeida

A Cidade de São Paulo e as Suas Dinâmicas Religiosas Pierina Soratto

Impressões etnográficas do Tribunal do Júri do assassinato de Aline Silveira Soares: o caso da morte do RPG Ana Letícia de Fiori

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Resenhas

O Carnaval Visto dos Bastidores Marina Mazze Cerchiaro

Potencialidades de Novas Formas de Fazer Etnografia: Imagem e Conhecimento Daniel Belik

Vozes Marginais na Literatura Alexandre Barbosa Pereira

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Editorial

1 A revista Ponto Urbe em seu quinto número apresenta algumas mudanças de fundo: a renovação da Comissão Editorial, um visual novo e uma alteração na proposta. A estrutura das seções, porém, continua a mesma: em Artigos contamos com a contribuição de Luiza Valentini sobre a Sociedade de Etnografia e Folclore – e que pode ser considerada uma homenagem, ainda que não deliberada, a Lévi-Strauss, pois nela se percebe a presença de ambos, Dina e Claude, quando de sua estada em São Paulo. Marcelo Mercante e Wagner Lira discutem o tema da ayahuasca, num caso como recurso terapêutico e no outro a partir das disputas em um campo religioso; Márcio Macedo descreve uma experiência que está vivendo em Nova York, em seu doutorado; e Enrico Spaggiari apresenta em primeira mão um aspecto da tese de mestrado, sobre escolinhas de futebol na periferia, recentemente defendida na USP.

2 A seção Tradução traz a seus leitores um artigo sobre a cidade de Paris, de Bruno Latour, que gentilmente respondeu à solicitação de Ponto Urbe, autorizando a publicação. A Entrevista foi realizada com a profª Alba Zaluar, conhecida antropóloga que foi convidada para proferir a conferência sobre os desafios de uma etnografia feita em situações de risco, com base em sua experiência no Rio de Janeiro, na abertura do VIII Seminário Graduação em Campo realizado pelo Núcleo de Antropologia Urbana (NAU) nas dependências da FFLCH da USP, em setembro deste ano. Aliás, é em relação a este evento que se refere a alteração de proposta, acima mencionada. Com o propósito de valorizar o trabalho de pesquisa de campo realizado por alunos de graduação, nos diferentes cursos de Ciências Sociais e Antropologia no Brasil, dando-lhes visibilidade, a Comissão Editorial decidiu abrir mais espaço e publicar os papers indicados pelos debatedores das várias mesas e open spaces do encontro de 2009.

3 Esta é a razão pela qual a seção Graduação em Campo apresenta mais artigos que o habitual e traz, ainda, os comentários dos debatedores que os indicaram. Temos, ainda, três resenhas sobre livros recém-lançados e, finalmente, como Etnotícias, experiências de campo de diferentes grupos de pesquisa do NAU: um evento com a Comunidade Canção Nova, de orientação carismática e a comemoração do Dia do Surdo – ambos na cidade de São Paulo – além do relato sobre o julgamento de um assassinato atribuído a participantes do RPG, em Ouro Preto (MG.)

4 Prof. Dr. José Guilherme Cantor Magnani

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Artigos

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Ayahuasca, dependência química e alcoolismo

Marcelo S. Mercante

Introdução

A bebida psicoativa conhecida, entre vários nomes, como ayahuasca, vem sendo consumida por povos indígenas em toda região amazônica por mais de 4000 anos (Naranjo, 1986). Os princípios ativos mais importantes nesta beberagem são as beta-carbolinas, oriundas do cipó Banisteriopsis caapi, e a dimetiltriptamina (DMT), oriunda das folhas de Psychotria viridis (Winkelman, 1996). Ambas as substâncias atuam sobre o nível de serotonina no cérebro (Mercante, 2006b).

1 A partir da década de 1930 a ayahuasca passou a ser utilizada como sacramento principal de três sistemas religiosos brasileiros, a Barquinha, o Santo Daime, e a União do Vegetal (ver Labate & Araújo, 2002). Labate (2004) aponta que a ayahuasca também vem sendo utilizada de diversas outras formas, dentre as quais, terapeuticamente.

2 O uso ritual da ayahuasca teria como resultado uma psicointegração do sistema nervoso (Winkelman, 2000). Uma das características mais marcantes do efeito do uso desta bebida dentro de um contexto ritual/ritualizado (considerando aqui que mesmo quando utilizada terapeuticamente, este uso mantêm uma certa ritualização – ver Labate, 2004) é a presença de “visões” ou imagens mentais espontâneas, mais comumente chamadas de mirações (ver Mercante, 2002, 2004, 2006a, 2006b, 2006c e Shanon, 2002).

3 Acompanhei durante o ano de 2007 o grupo Ablusa (Associação Beneficente Luz de Salomão), liderada pelo psiquiatra Wilson Gonzaga. Desde 1999 este grupo vem utilizando a ayahuasca (denominada por eles “Vegetal”, pois este grupo é uma

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dissidência da União do Vegetal) em rituais especificamente voltados para moradores de rua na cidade de São Paulo, visando assim auxiliar na melhora da qualidade de vida destas pessoas (Labate, 2004). Busquei analisar as relações entre as “mirações” experienciadas por participantes dos rituais com ayahuasca promovidos pela Ablusa que se identificaram como tendo problemas no uso de álcool e/ou outras substâncias e possíveis modificações nos hábitos no consumo de álcool e/ou outras substâncias.

4 Estamos presenciando a abertura de uma nova via de tratamento de alcoolismo e dependência química. Vários fatores influenciam tanto no surgimento do dependente químico e do alcoólatra quanto na recuperação dos mesmos. A proposta de um tratamento como este, seguindo as idéias que norteiam o trabalho da Ablusa, é “cuidar do ser humano como um todo, de forma holística”, não se tratando apenas o alcoolismo ou a dependência química, mas buscando “no mais profundo do ser as causas do surgimento destes processos”. Ou seja, mais do que cuidar de um problema específico, o trabalho da Ablusa visa transformar a vida de seus “assistidos” como um todo. Existem, mais uma vez até onde tenho conhecimento, centros que utilizam psicoativos como base de tratamento no Peru (Takiwasi), na Argentina (Ayllu Tinkuy) e no Brasil (ver Adendo).

5 Um fator importante, que deve ser levado em consideração, é que esta instituição está utilizando a ayahuasca ritualisticamente como ferramenta terapêutica no tratamento de dependência química e alcoolismo, estando então vivendo uma situação legal ambígua. Tal situação é um fator limitante para o crescimento, expansão, e até de melhoria na qualidade dos serviços oferecidos.

6 A ayahuasca foi em 2006 legalizada para o uso religioso (GMT, 2006). Este grupo multidisciplinar de trabalho nomeado pelo Conad desvincula a prática de cura e terapêutica dos efeitos do chá, baseando eventuais curas em “fenômenos da fé”: “Com fundamento nos relatos dos representantes das entidades usuárias, verificou-se que as curas e soluções de problemas pessoais devem ser compreendidas no mesmo contexto religioso das demais religiões: enquanto atos de fé, sem relação necessária de causa e efeito entre uso da Ayahuasca e cura ou soluções de problemas” (GMT, 2006, p. 10). Assim, o GMT finalizou seus trabalhos com a liberação legal do uso da ayahuasca para uso religioso apenas, e recomendou que o uso terapêutico do chá ficasse em suspenso até que experimentações humanas possam ser realizadas para avaliar a segurança de tal prática (GMT, 2006).

Uma breve revisão sobre o uso de psicoativos no tratamento de dependência e alcoolismo

7 Deve-se notar que a literatura sobre o uso de psicoativos de uma forma geral para o tratamento de dependência química e alcoolismo vem aumentando consideravelmente. Mas este não é um processo novo. Os editores da extinta Psychedelic Review (Editors, 1963) fizeram uma revisão de alguns trabalhos sobre o uso de psicoativos para o tratamento de alcoolismo (Chwelos et al., 1959; Jensen, 1962; Ross MacLean et al., 1961; Smith, 1958). Eles chegam a conclusão de que “os resultados indicam que drogas psiquedélicas parecem ser agentes efetivos para a mudança de comportamento no tratamento de alcoólatras crônicos que têm sido recalcitrantes em relação a qualquer outra forma de tratamento” (p. 207). Um total de 72% (114 em 159) pacientes que receberam LSD como forma de tratamento apresentaram uma diferença significativa no

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consumo de álcool (sendo que destes 50,3% – 80 pacientes em 159– após um ano de acompanhamento haviam parado completamente de beber), em contraste com os 22,5% (18 em 80) dos que estavam no grupo de controle (dos quais 13,75% – 11 paciente em 80 haviam parado completamente de beber após um ano de acompanhamento).

8 Uma breve revisão da literatura indicou que diferentes psicoativos vêm sendo utilizados como ferramenta para a superação de dependência química e alcoolismo: a ayahuasca (Cemin, et al., 2000; Labigalini Jr., 1998; McKenna, 2004; Moir, 1998; Santos et at., 2006); Cannabis sativa (ver Labigalini Jr. & Rodrigues, 1997); o peiote, Lophophora williansii, um cactus rico em mescalina (ver Halpern et al., 1995); iboga, Tabernanthe iboga, arbusto africano cuja raiz contém ibogaina (Alper et al., 2007), LSD (Yensen & Dryer, 1999). Ver também Dobkin de Rios et. al (2002), Fernandez (2003), Halpern (1996), Winkelman, (2001) para uma revisão sobre o uso da iboga, do peiote, da ayahuasca e do LSD. Vale mencionar que Wilkelman & Roberts (2007) lançaram recentemente um livro com dois volumes intitulado Psychelic Medicine, que cobre de forma ampla o uso de psicoativos como elementos centrais para o tratamento de diversos problemas, incluindo dependência química e alcoolismo.

9 Tais estudos ainda são incipientes no Brasil, e os trabalhos anteriores (Cemin, 2000, Labigalini Jr., 1998, Labigalini Jr. & Rodrigues, 1997, Santos et. al., 2006) foram realizados dentro das instituições religiosas e trouxeram narrativas de pessoas que já estavam recuperadas de seus problemas com álcool e outras substâncias psicoativas.

A Ablusa

10 Como disse acima, acompanhei por 10 meses o grupo ayahuasqueiro urbano denominado ABLUSA (Associação Beneficiente Luz de Salomão), liderado pelo Dr. Wilson Gonzaga, médico psiquiátra, antigo Mestre da União do Vegetal (ver também Labate, 2004; sobre a União do Vegetal, ver Brissac, 1999).

11 Wilson foi membro do Grupo Multidisciplinar de Trabalho instituído pelo Conad (Conselho Nacional Anti-Drogas) para definir as regras para o consumo da ayahuasca no Brasil, tanto religiosamente quanto terapeuticamente. Segundo Labate (2004), o Ablusa tem por objetivo “auxiliar moradores de rua na recuperação de suas dependências químicas e na reintegração à vida social” (p. 410). Wilson iniciou seu trabalho nas ruas no final da década de 80, através da distribuição de sopa no centro de São Paulo, para estes mesmos moradores de rua. Em 1999 ele dá início aos trabalhos com ayahuasca. Para Wilson, a ayahuasca ajudaria como sendo um “tratamento de choque” (Labate, 2004, p. 413), responsável por uma intensa transformação interna no morador de rua, levando então à trocas de hábitos e finalmente ao abandono da rua. Na época da pesquisa, a Ablusa alugava uma casa no bairro da Barrafunda, em São Paulo, onde há um brechó, o serviço das sopas, consultório médico e dentário e um local onde o morador de rua pode fazer a barba e banhar-se. Labate (2004) cita que, até 2003, quatro pessoas haviam abandonado a rua completamente, se re-inserindo no mercado de trabalho. Eu pude acompanhar a re-inserção completa de mais três pessoas, além do trabalho intenso com mais sete pessoas.

12 Segundo Wilson, o objetivo deste trabalho era o resgate da dignidade e da condição humana das pessoas em “condições de rua” – os “assistidos”. Em sua página na internet, a Ablusa coloca que seu trabalho visa à integração destes assistidos com os demais

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segmentos sociais, através da melhoria da condição de vida destas pessoas, além de criar possibilidades de expressão artística e profissional, o “desenvolvimento da cidadania com projetos de longo prazo de cunho terapêutico, educacional e social. Humanização da cidade, transformando o espaço público numa oportunidade de convívio, expressão coletiva e solidariedade.” (Instituto Hermes, 2006).

13 Esse “resgate da dignidade” se dava através de quatro tipos de encontros: a sessão com Vegetal, as orações, as reuniões de segunda-feira, e o projeto Fazendo Renda. As orações eram realizadas toda quarta feira à noite, e duravam em torno de uma hora. Eram feitas rezas de origens variadas, desde o catolicismo até a gnose e a cabala. Há uma forte influência do espiritismo kardecista nestas orações, e o objetivo principal, segundo meus informantes, é “fortalecer espiritualmente todos os que estão envolvidos no trabalho da Ablusa, presentes ou não às orações”.

14 O Projeto Fazendo Renda era um grupo de artesanato onde as pessoas se reuniam toda quarta feira de manhã para fazer diversos tipos de trabalhos manuais, que posteriormente eram vendidos. A renda desta venda era dividida pelos que estavam envolvidos na produção.

15 As sessões com Vegetal eram realizadas todo primeiro sábado do mês, impreterivelmente. Neste dia também eram realizadas as “abordagens”, ou seja, uma reunião na Praça Marechal Deodoro, na região central de São Paulo, das 10:00h às 12:00h. Nas abordagens as pessoas da Ablusa conversavam com os vários moradores da praça, e os convidavam para o almoço de segunda-feira, na sede da Ablusa. A praça também é o local onde as pessoas que iam à sessão se reuniam. Às 12:00h o grupo se dirigia ao metrô, e de lá, baldeando para o trem, ia até a estação Mogi da Cruzes, onde uma van os aguardava para irem até o sítio onde ocorreria a sessão.

16 As sessões com os assistidos tinham uma dinâmica um tanto diferente das ditas “sessões de escala” (ver Brissac, 1999). As sessões de escala, realizadas apenas com os “sócios” da Ablusa, duravam cinco horas, e havia um tempo relativamente longo para que perguntas fossem feitas ao dirigente da sessão. As sessões com os assistidos duravam quatro horas apenas, sendo o tempo para perguntas restrito ao final da sessão, quando se abria um espaço para saber se os assistidos tinham algo a dizer sobre a sessão. A tônica do ritual eram as “chamadas”, canções entoadas pelo “mestre” (modo como era denominada a pessoa que estava comandando a cerimônia), mas não apenas por ela, onde a “força” é contatada. Tais “chamadas” visavam principalmente trazer “luz” para a sessão, assim como promover uma “limpeza espiritual” dos presentes, e pedir a “guarnição” de espíritos protetores.

17 As sessões eram momentos de intensa catarse para os assistidos. Muitos deles experimentam repetidas crises de vômito, e algumas vezes de diarréia. Este processo era visto como um momento de limpeza, quando o assistido se livrava das drogas e do álcool que vinham consumindo. Esta explicação era dada muitas vezes pelos próprios assistidos. Contudo, não somente os assistidos passavam por estes processos de limpeza, mas também o pessoal da Ablusa, assim como o próprio Wilson. Mas, nestes casos, o vômito era visto como uma limpeza para os assistidos, como se o Wilson ou alguém da Ablusa vomitasse por um assistido que não tivesse condição para tal.

18 O momento de conversa com os assistidos acontecia em reuniões realizadas todas as segundas-feiras. Neste dia era servido um almoço, e várias pessoas apareciam na sede da Ablusa para a refeição. Algumas dessas pessoas eram convidadas à participar das reuniões, iniciadas às 13:30h, durando duas horas. Além dos convidados – em geral

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pessoas que ainda não tinham bebido o Vegetal – participavam aqueles que já comungaram do chá.

19 Tais reuniões tinham o formato de uma sessão de dinâmica de grupo, e eram abordados diversos temas. Este era o momento em que os assistidos contavam suas experiências durante a sessão com Vegetal, e trocavam idéias e impressões sobre as mesmas. Tais reuniões eram dirigidas por Nísia, esposa de Wilson, e contava com a presença de uma assistente social. Tanto Nísia quanto a assistente social ouviam os assistidos e faziam comentários sobre o que escutavam.

20 O tempo todo, nas sessões ou nas reuniões, era enfatizado que a Ablusa não oferecia nem dinheiro, nem comida, nem roupas (ainda que efetivamente fornecesse cestas- básicas e roupas), mas sim amizade. Amizade se traduzia por ajuda para tirar documentos, apoio emocional, busca de locais de internação quando o assistido demonstra que precisa ser internado para se livrar da dependência ou do alcoolismo, entre outras coisas.

Os Assistidos

21 Pude acompanhar de perto alguns desses processos de recuperação. Em um deles, William (39 anos) estava na rua há 9 anos. Começou usando cocaína, passando em seguida para o crack, que o levou às ruas. Antes, havia trabalhado como ajudante geral em obras.

22 Durante sua primeira sessão com Vegetal disse-me ter sentido coisas muito semelhantes às que sentia quando fumava crack. Eu tive uma reação assim como se eu tivesse numa nóia, como se eu tivesse dado uma cachimbada de crack, eu fiquei numa nóia tão grande que eu nem conseguia parar na sala, andando de um lado pro outro, tiraram eu pra fora até. Ficava espantado, olhando pra todo mundo. Parecia que eles queriam me pegar. Aquelas coisas que eu fazia assim na rua, de maldade, de briga, eu pensava que os caras estavam entrando na sala pra bater em mim. Tudo isso aconteceu. As coisas do passado vinham tudo ali, falando que ia me matar, eu tive uma reação tão grande que eu não conseguia ficar ali dentro da sala. Eu vi o desprezo que a minha família tinha de mim, ali eu senti o desprezo da minha família. Essas coisas vieram todas pra cima de mim. Tudo que aconteceu quando eu caí na rua, veio tudo naquele momento ali pra mim. A reação das drogas na rua, nego querendo me matar, quando minha família me desprezou, tudo, tudo. Foi como se Deus colocasse tudo para eu ver de porque que eu tava na rua. Essa coisa ruim toda, foi passando o efeito e eu fui ficando normal, quando a reunião acabou eu tava normal já. E aí foi quando eu falei que queria ser internado. Foi uma permissão de Deus que eu visse tudo aquilo lá que não tava dando legal pra mim, e depois Deus aliviou minha mente, mas no momento da reação eu só via maldade ali comigo. Foi a mesma coisa que quando eu tava usando droga, no crack ali, que a gente vê muitas coisas, depois que passa o efeito a gente... Na minha nóia do crack eu ficava muito espantado, tinha medo de qualquer coisa, andava só olhando pra trás. Quando acabava o efeito eu tinha um arrependimento, falava que ia parar, mas depois começava tudo de novo. Eu nunca tinha pedido pra sair. E nessa reunião eu tive a força. Mas no efeito do chá eu só vi maldade, coisa ruim. Mas ali, eu tava com pessoas que não usavam drogas, eu usava drogas com gente que tava usando drogas, a gente sabia que o efeito era assim, um espantado com o outro. O pessoal que tomou o chá comigo nunca usou. O pessoal que usa crack era igual a mim, um pedia, outro roubava, tava tudo ali que tava usando droga, mas no efeito do chá eu sabia que o pessoal que usou comigo era um pessoal do bem.

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23 Ao término da sessão com Vegetal, teve forças para pedir para ser internado, o que nunca havia ocorrido após a ingestão de crack. O crack, disse-me ele, o retirava do mundo. O Vegetal havia despertado nele a consciência de que precisava de ajuda. Assim, William foi internado. Durante o tempo que esteve internado William foi trazido para uma segunda sessão com Vegetal. Ele me contou que A reação foi mais aliviada, porque na primeira vez eu não parava dentro do salão, eu via coisa. Acho que aquela coisa ruim eu tava limpando, hoje eu já tava mais ciente, foi uma experiência melhor ainda. Eu começava a ver aquelas imagens da primeira vez, mas me firmava. Eu pensava que os outros estavam olhando pra mim, estavam trazendo a culpa do passado pra cima de mim. Mas deu um pensamento na minha cabeça, que aquilo era um processo que eu tava passando. Parecia que as pessoas estavam querendo me culpar de alguma coisa, igual um réu, então eu baixava a cabeça, e todo mundo olhando pra mim assim, mas coloquei na minha cabeça que aquilo não tinha nada a haver. Agora a primeira vez eu não tive esse conhecimento, eu não ficava ali dentro na primeira vez. A primeira vez foi difícil, eu não ficava na cadeira, e hoje tentou voltar àquela mesma coisa do passado, mas eu me firmei mesmo, me entreguei, Deus é maior.

24 Depois de algum tempo em internação, William fugiu da instituição onde estava. Alegou estar muito sozinho lá. Novamente nas ruas, voltou a usar crack. Se recusou a beber Vegetal, mas foi em busca de auxílio na sede da Ablusa. Conseguiram mandar William para sua cidade natal, onde fora internado em um abrigo da Prefeitura Municipal.

25 Outro caso foi o de Ellen. Ellen tinha 22 anos, paulista. Sua mãe morrera quando ela tinha 11 anos, mas o pai ainda estava vivo, contudo, mandou ela e a irmã pra fora de casa. Já havia sido presa por tráfico. Não sabe escrever. Tem uma filha que na época da pesquisa tinha quase dois anos, nascida na rua. Ellen se envolveu em vários relacionamentos durante meu trabalho de campo. Esteve a ponto de ser internada, mas acabou não comparecendo no dia de ir para o abrigo. Ellen tem um personalidade forte, e vem demonstrando estar cada dia mais estabilizada emocionalmente, apesar de não ter ainda deixado a rua. Na última vez que a vi estava para se mudar para uma favela, junto com mais duas mulheres que havia conhecido na Praça Marechal Deodoro. Ellen me contou que sua primeira experiência com o Vegetal havia sido um horror! Eu xinguei todo mundo lá dentro. Eu queria minha filha de qualquer jeito [a filha não estava com ela durante a sessão], não pode sair. Chorava, começava a olhar pra um, pra outro, com cara feia. Dizia que não ia mais voltar ali. Foi horrível. Eu só sentia falta da Tereza. Nunca tinha deixado ela sozinha. A hora não passava. As duas primeiras vezes foi difícil. Depois que passava o efeito eu via de outro jeito. Assim foi. Hoje eu gosto muito. A terceira vez foi muito bom. Eu consegui pensar em outras coisas. Na primeira vez que eu fui eu via demônios, no rosto da Lucia, o rosto dela se transformava. Eu via o demônio nela. O rosto deles se transformava. Hoje eu não vejo nada. Tudo vem mudando. Era 24 horas fumando pedra [de crack] no cachimbo, não ligava pra minha filha. Ficava jogada no chão, morta. A polícia tava na praça, e eu tava morta. Muita cachaça. Pedra e pinga. Depois que eu comecei no chá [o Vegetal] eu fui parando, eu fui vendo que aquilo não era tudo. Por que pra mim a minha solução era droga, eu me enfiava na droga pra esquecer dos problemas, esquecer da vida que eu tava levando. Depois que eu comecei a beber o chá, não, eu via que eu tenho minha filha. Isso veio por dentro de mim, eu vi minha filha sendo roubada, começou a bater na minha cabeça, eu ouvia voz na minha cabeça dizendo que se eu não parasse eu ia perder ela. Mas isso eu já sabia, que se eu não desse um tempo eu ia perder ela de qualquer jeito. Aí eu fui parando. Hoje eu uso [crack e cachaça], mas é menos. A primeira paulada da pedra [o crack] é boa. Depois você não fala com ninguém, você até mata. A pedra é totalmente diferente do chá, o chá eu fico de boa, vejo coisa legal, a pedra não. Só

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vejo maldade. Não falo com ninguém, relaxo da minha filha. Essas coisas que eu vou pensando. Desde a última sessão eu não usei nada.

26 Adolfo era um dos assistidos mais antigos da Ablusa. Nascido em Lorena, em maio de 1962. Soube da ayahuasca através de revistas e matérias em livro, que lia quando estava nas ruas. Havia lido uma reportagem na revista Planeta sobre o Alex Polari, dirigente do Santo Daime. Conheci Adolfo em minha primeira visita à Ablusa, em agosto de 2006. Cabeludo, muito falante, aliás, extremamente falante. Nesta época Adolfo ainda bebia, e estava desempregado. Em outubro de 2007 Adolfo era outra pessoa. Cabelos curtos, camisa social, mais introvertido. Acabara de arrumar um emprego, e morava em um albergue. Não bebia mais. Ele me contou sobre sua primeira experiência: Foi uma experiência assim com luzes, com imagens, muita coisa subconsciente, sentimento de perda, pânico, sentimento de ausência temporal, mas num primeiro momento não tive aquele mal-estar que acontece. Depois de algum tempo eu tive algumas vezes aquela limpeza orgânica e espiritual. Depois eu me senti bem melhor. Tive uma oportunidade de fazer um mergulho interior, de fazer uma superação. Acredito muito que se possa, com mais um tempo, a pessoa adquirir melhor capacidade de entender a si mesmo e ao semelhante, e ter uma certa relação com o mundo espiritual. Tive alguns momentos que me senti mal, que tinha a haver com alimento ou mesmo com algo espiritual que a gente adquire, algumas coisas que nos deprime, mas são efeitos passageiros. Acho que é o próprio subconsciente da pessoa que atua nesses sentimentos, angústia, insegurança, de deslocamento, mas com o tempo isso vai desaparecendo. Eu pude sentir mais alguns momentos de luzes, de contato com o astral superior.

27 Por último vou citar o casal César e Alda. César nasceu em Limeira, e tinha 32 anos. Era o mais novo de cinco irmãos. Possuía formação como técnico de enfermagem. Havia começado a se drogar na ambulância que trabalhava, junto com os médicos. Dos psicotrópicos chegou no crack. Perdeu a casa que morava, e foi parar na praça, onde conheceu Alda e tiveram um filho. Hoje César está empregado e mora em um apartamento na periferia de São Paulo. Perguntei a César se algo havia mudado desde que ele havia começado a beber o Vegetal. A sua resposta foi: “mudou! Mudou da praça para debaixo do viaduto. De debaixo do viaduto para a favela. Da favela para o apartamento!”. Vale dizer que Alda estava grávida do segundo filho deles.

28 César me contou que sua primeira sessão com ayahuasca havia sido terrível: “eu estava desesperado, eu pensei que ia morrer. Eu queria sair [do local da sessão], ir embora. Foi como receber um choque. Eu confrontei a mim mesmo: ‘cara, alguns anos atrás eu tava trabalhando, com minha família em volta de uma mesa nos almoços de domingo’. Eu pensei: ‘eu plantei estas sementes, agora estou colhendo...’ Agora é o tempo de cultivar outra coisa”.

29 Sobre suas “mirações”, ele me contou que a que mais o impressionou foi quando encontrou alguém que nunca havia visto antes, ainda que ele houvesse identificado esta pessoa como um amigo. Este “amigo” apontou para ele seus muitos erros, o que o fez se sentir muito desconfortável, e, ao mesmo tempo, trouxe-lhe à memória muitas coisas que seu falecido pai havia dito pra ele. Ao final, ele reconheceu que seu estilo de vida não era apropriado, e que já era tempo de recomeçar.

30 Alda teve um desentendimento com César, seu marido, e ao invés de voltar para casa, decidiu passar a noite na praça Marechal Deodoro, onde fumou crack. O dia seguinte era quarta feira, e Alda foi à oração, à noite. Na oração Wilson lhe serviu um copo de Vegetal. Alda disse que mirou com muitas coisas ruins, demônios, e entendeu que

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aquilo estava vindo do crack que ela havia usado no dia anterior. Me contou que nunca mais iria usar crack novamente.

31 É curioso notar que estes processos são muito similares aos que membros da Ablusa haviam vivido. Tive a chance de entrevistar vários dos seus sócios que haviam chegado no limite de ir morar na rua, pois enfrentavam problemas sérios em relação ao consumo de álcool e/ou drogas, e encontraram nos rituais com Vegetal a força necessária para superar estes problemas.

32 Um deles foi Jonas, que tinha problemas sérios com bebida, e esteve a ponto de se separar da esposa. Mineiro, com 53 anos, trabalhava como vendedor. Dizia ser, quando bebia, muito grosseiro com seus filhos. O Vegetal havia transformado sua vida, estando hoje com seus relacionamento familiar estabilizado, e sóbrio há sete anos. Havia começado a beber com 14 anos: Por rebeldia. Eu fui criado em São Paulo dos nove aos quatorze. Com quatorze meu pai me levou pra morar com ele, porque já tava no ponto de trabalhar [ele morava anteriormente com os tios]. Eu estudava a noite, trabalhava o dia todo, acordava de madrugada, trabalhava pra caramba, então, a hora que me via livre dele, bebia pra sentir liberdade. Isso, na minha ignorância. Foi indo, virei alcoólatra. Comecei a consumir outros tipos de drogas. Pó, maconha, e assim por diante. Foi até depois dos 40. Minha vida, passei uma época bem legal, bem próspera, e fui decaindo, decaindo, por conta de aumentar as drogas, o álcool. E fui até perdendo a família. É essa que tenho hoje, mas graças a ayahuasca eu recuperei ela. Tive pra me separar, mas parei, me equilibrei, e estou aqui. Eu conhecia a ayahuasca com 44 anos, e parei, parei imediatamente.

33 Seu primeiro encontro com o chá foi interessante: Eu fui em outro grupo. Na realidade nem me falaram da ayahausca. Eu fui lá tomar o kambô. Era uma pessoa que tinha vindo de Manaus. Tava lá, e fui pra tomar vacina do sapo, e eu cheguei não era a vacina. Foi a sessão. Quando eu bebi o Vegetal, e passou um tempinho, eu quis bater na pessoa que nos levou, porque fui eu e minha mulher. Porque a sensação que eu tive foi que eu tava bêbado. E eu tinha prometido pra minha filha, porque bêbado quando promete que vai parar de beber ele tá falando a verdade. Só que no dia seguinte, não agüenta, vai lá e bebe. Mas na hora que tá falando que vai parar, tá dizendo a verdade. Mas não agüenta. Eu tinha prometido pra minha filha que eu não ia beber mais. Ela me deu um sorriso, tão lindo, eu vejo a cena até hoje como se fosse agora, e eu falei: ‘preciso conseguir, preciso parar de beber pra fazer minha filha feliz’. Quando eu bebi o Vegetal e a efeito veio chegando, a sensação que eu tive foi que tinham me dado aquele chá misturado com álcool. Rapaz, eu passei mal. Não mirei nada. Só físico. Aquela sensação de bêbado. E bêbado bravo, porque eu lembrava da minha filha, e eu tinha ido ali e tinham me dado álcool pra eu beber. Não falaram nada, não é como aqui, que o Wilson dá uma palestra. Lá eles bebem pouquinho. Mas mesmo esse pouquinho me pegou. Depois me acalmaram, me explicaram que não tinha álcool. Eu achava que minha mulher é que precisava melhorar. Então eu voltei pra acompanhar ela, porque ela gostou. Ela não bebe, não fuma, foi uma maravilha. Eu fui oito vezes, e oito vezes eu levei peia! Na nona vez abriu. Abriu de uma maneira que eu fiquei feliz. Pude compreender porque que quando eu bebi na primeira vez eu tive aquela sensação, porque foi uma despedida, porque depois daquela primeira vez eu nunca mais bebi [álcool] mesmo. Até hoje, se eu tô meio nervoso, eu me acalmo, e não como nem salada temperada com vinagre, vinagre de vinho. E é sem esforço, porque não quero mesmo.

34 De todas as suas mirações, Jonas disse que “a mais importante foi a explicação que o Mestre me deu, porque eu tinha ficado daquele jeito, porque tive aquelas sensações [da

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primeira vez que ele havia bebido, a sensação de estar bêbado], foi assim um trabalho do Mestre para que eu me curasse, e despedisse o bêbado. E despedi mesmo”. Para Jonas As mirações, elas são boas pra qualquer pessoa, mesmo que a pessoa não tenha um uso de droga. Depois que eu me senti curado eu tive uma recordação de quem é a minha filha. Eu tive uma recordação de quem era minha mulher. Eu era muito bravo! Quando eu tive essa recordação da minha filha, eu mudei totalmente a educação dos meus filhos, porque antes era uma educação ríspida, no chicote mesmo. Então, hoje os meus filhos me tem como pai. Os dois já recordaram que eu estou pai agora, agora. Mas cada um sabe quem é. Mas depois que mudei minha maneira de educá-los, de me colocar como pai deles. Graças a essas recordações. Então, não pra falar pra você que uma miração foi específica para a recuperação. Eu posso te falar que a gente mira, e recorda, na hora que a gente tá podendo carregar o fardo. O Mestre é carinhoso, porque pra gente poder recordar, a gente precisa ter suporte, precisa suportar, no sentido de dar suporte. Se você recorda algo, é porque você tá podendo. Se você não puder recordar algo, você não recorda. O Mestre não deixa, ele é carinhoso. Você só recorda se agüentar. E depende de cada um, se recordou, ver o que que é, e fazer. Porque beber a ayahuasca, todo mundo bebe, mas pra mudar, precisa trabalhar. Precisa ver o resultado que você teve, e fazer o que precisa ser feito. Não adianta você só beber ayahuasca, ficar mirando, e não fazer nada, não resolve. O importante é você receber os ensinamentos, e fazer o que tem que ser feito, não deixar pra depois. Deixa pra depois, se perde, e não anda.

35 Outro sócio que chegou na Ablusa com problemas foi Sérgio. Tinha 58 anos. Esteve internado por três meses em uma clínica. Alcoólatra, perdera tudo que tinha, menos a casa onde morava. Seus problemas com álcool começaram depois da morte da esposa. Sérgio saiu da clínica de desintoxicação, e seguiu se tratando com o Wilson. Está sóbrio há seis meses. Voltou a trabalhar e a estudar, se dedicando ao estudo de plantas medicinais. Na sua primeira experiência eu tinha idéia mais ou menos do que era, por ter usado outras drogas. Eu ia sentir uma sensação e que ia ter que controlar. Então eu fiquei meio que controlando essa sensação, eu não sabia como era, é a mesma coisa que o cara falar: ‘isso aqui é LSD’. Todo mundo conta aquele monte de história, que você vai ver um monte de luz, você vai ficar muito louco, que vai ser muito legal, que tudo vai ficar muito colorido. Então você fica com aquela expectativa. O chá também me deu uma expectativa, mas eu falei: ‘não, deixa eu dar uma certa relaxada’. Então a primeira burracheira, as duas primeiras não foram muito legais. Eu ficava meio que controlando, quando você quer conduzir, você não se solta, você não consegue um efeito legal, sua burracheira é um negócio meio travado, meio medroso. Agora não, agora graças a Deus eu estou solto totalmente, e cada uma é uma, não tem duas burracheiras iguais.

36 Perguntei para ele qual era a importância do ritual, da burracheira, para mantê-lo longe do álcool. Ele me disse que eu não sei porque, eu não consegui entender isso, mas eu não tenho sentido a compulsividade [para beber]. Eu tô lá fora, eu vejo os caras bebendo uma cerveja, não dá nem mais aquela boca cheia d’água. Eu acho que aqui encontrei o caminho, porque aqui encontrei muitos amigos, as pessoas me aceitam como eu sou, me dão importância, você não se sente rejeitado. As pessoas sabem que eu tive problema com alcoolismo mas me respeitam, me tratam como um ser humano, e não como um ex-alcoólatra, não vejo ninguém falar: ‘putz, esse cara, eu preciso tomar cuidado com ele, porque ele era um alcoólatra’. Não tem essa. Isso é muito importante, o apoio, que eu sinto aqui. A amizade, eu sinto que eu tenho utilidade aqui dentro. Uma das coisas que eu quero é ser útil, sempre foi assim. E lá fora é difícil, quando as pessoas sabem que você bebe, elas passam a ter um descrédito com você, ninguém quer te dar um apoio porque acham que você não vai ser capaz de agir

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sério, de fazer as coisas sério. As pessoas não entendem o alcoolismo. Eles bebem, e ficam bêbados, mas como eles não bebem compulsivamente, eles acham que são os bons porque bebem socialmente. Mas você não, você é o cara que não tem controle, não serve pra gente, você é persona non grata no grupo. Como todo mundo que bebe muito fica incoveniente, bebe e dá trabalho, fica falando mais do que deve. Aqui não, o trabalho é legal, eu tô envolvido, eu vejo espaço pra mim aqui dentro, o que eu tava procurando eu encontrei aqui. Fora os amigos, que eu faço muita questão dessa amizade.

37 Perguntei a ela qual havia sido a sua miração mais importante: Sim, a última foi muito interessante. Eu ouvi de um índio, eu vi um índio e ele falava, ele estava assim a uns 15 metros de mim, e ele falava de lá, e ouvia do lado do meu ouvido, como se ele estivesse falando bem pertinho do meu ouvido. Ele falava a distância, eu via os lábios dele balbuciando, e ele me falou que eu estava no lugar certo, que eu tinha um trabalho importante aqui dentro, que eu devia continuar aqui, e que eu ia poder ajudar muita gente aqui dentro. E que eu passasse a me soltar, porque nesse dia eu, no começo eu passei pro lado de me sentir mal, comecei, no começo da burracheira eu comecei a me sentir mal. E foi aí que eu saí fora da casa. Lá no salão eu tava muito mal, começou uma dor, uma vontade de vomitar, uma dor no intestino assim, uma cólica ferrada no intestino. Aí eu comecei a fazer Reiki, e percebi que se eu andasse eu poderia me acalmar um pouco, descer um pouco a burracheira, dar uma caída na energia que tava muito alta, e aí eu fui lá pra fora e eu vi esse índio. Ele me falou que eu tava no caminho certo e que eu não ia beber mais, e que tudo isso era importante pra que entendesse pra poder ajudar as outras pessoas que viriam, que precisariam do meu trabalho. Então isso foi muito legal.

38 O último caso dentre os associados é o de Bruno. Empresário e trabalhando com propaganda e marketing, Bruno me contou que passou dois anos cheirando cocaína sem parar, todos os dias. Disse que passava uma semana sem dormir, até que caia desmaiado de exaustão. Conta que se alimentava basicamente de biscoitos recheados. Foi visitar a Ablusa por curiosidade, e teve um insight, durante sua primeira sessão, de que estava destruindo sua vida. Passou então a beber Vegetal regularmente, e se manteve longe da cocaína por seis meses. Teve uma recaída, e ao participar da sessão seguinte, teve uma experiência catártica, que o manteve longe da cocaína até hoje, por mais um ano.

Imagens mentais espontâneas – as mirações

39 Existem muitas investigações envolvendo as atividades imaginativas, espontâneas ou não (ver por exemplo, Achterberg, 1985; Herdt & Stephen, 1989; Kosslyn, 1994, Noll, 1985; Siskind, 1973). Contudo, poucos estudos etnográficos foram conduzidos para investigar a importância da imaginação para processos de cura (ver Csordas, 1994, 2002; Gebhart-Sayer, 1986; Mercante, 2006b).

40 As mirações podem envolver outras modalidades perceptivas, como sons, sabores, cheiros (como, por exemplo, Jonas ter alegado sentir gosto de álcool no Vegetal que havia bebido). Contudo, o aspecto visual das mirações é sempre o mais impressionante. As mirações em geral experiências que envolvem uma boa dose de emotividade, assim como o momento em que se recebem os “ensinamentos”, fonte de conhecimento e de autotransformação. Cesar, Ellen, Alda, Jonas, e Lucas tiveram este tipo de experiência.

41 As imagens durante as mirações teriam o poder de tornar o self, através de um processo de reflexão, consciente das forças, sutis, mas muito efetivas que emanam de cada entidade (o corpo, sentimentos, emoções, a espiritualidade, o ritual, a mente), e da

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combinação de duas ou mais destas entidades. Ao mesmo tempo, as mirações são em si mesmas outra experiência – sendo assim uma fonte para a transformação das acima citadas entidades. Assim, as mirações não seriam apenas imagens da cura, mas também imagens para a cura (ver também Csordas, 1994 e 2002).

42 Um dos maiores sinais da espontaneidade das mirações é o profundo sentimento de espanto que elas podem causar: padrões inimagináveis de formas e cores, de seres e paisagens, de sentimentos e pensamentos, surgindo em arranjos únicos e inesperados. Depois de que as revelações são recebidas através das imagens que emergem na consciência, vem o momento da interpretação, do entendimento, de ligas as imagens ao mundo do dia-a-dia.

43 Deve-se ter um grande cuidado com a palavra “interpretação” utilizada aqui. Interpretação não está ligada somente a uma forma de atividade abstrata e intelectual apenas, mas também à percepção do(s) significado(s) intrínseco(s) que emerge da/na miração. Shannon (2002) coloca que durante o processo de miração a linha que divide conhecimento e percepção desaparece. De acordo com Shannon, este é o mecanismo revelatório por excelência, quando a pessoa experiencia um sentimento de “verdade”: “a recepção do conhecimento é o principal ato nas visões. Assim, a imagem em si mesma, como uma parábola, é o mecanismo através do qual a verdade é revelada” (Shannon, 2002, p. 110).

44 Huxley (1990) já falava disso há mais de 40 anos atrás. Durante suas experiências com mescalina ele vivenciou alguns momentos quando “as cores eram tão intensas, tão intrinsecamente cheias de significado” (p. 19). Aqui “cheias de significado” não está ligada à parte racionalizada da significação, mas ao sentimento de que as cores eram significados em si mesmas. A significação era um sentimento pertencendo às cores em si mesmas, vindo junto com elas. Não existiam pensamentos sobre o significado das cores, mas Huxley os estava sentindo, ele os conhecia a todos.

45 As imagens na miração viriam surgiriam a partir de processos pertencentes à imaginação. Bachelard (2001, p. 1) entende que a imaginação não é a capacidade de formar imagens, mas sim de deformá-las, ou seja, a capacidade humana de fundir imagens. Imaginação é para Bachelard (2001) uma ação imaginativa, e as imagens seriam a “realidade psíquica primordial” (p. 47). Bachelard coloca ainda que a imaginação impõe ao sujeito as imagens, assim seria o mesmo que colocar “o sonho antes da realidade, o pesadelo antes do drama, o terror antes do monstro, a náusea antes da queda ... as imagens não estão apenas antes dos pensamentos, mas também antes das narrativas e das emoções” (p. 102).

46 Casey (1991) coloca que a imaginação se move para o futuro, enquanto a memória, para o passado. Assim, a imaginação induziria à modificações de comportamento, assim como permitiria que os sentimentos fossem expressos “em categorias, conceitos e palavras” (p. xvi). Este processo expressivo, seguindo as idéias de Casey, não seria apenas uma questão de verbalização, ainda que isso efetivamente aconteça com freqüência. Este autor coloca que a expressão estaria muito mais ligada à uma “articulação progressiva, a qual é conseguida através de uma conjunção de ramificações e especificações de formas de sentimentos” (p. xvi).

47 Ao mesmo tempo, ainda de acordo com Casey (1991), a memória juntaria o que ele chama de “pensamentos voadores” com a história pessoal e interpessoal e a tradição”

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(p. xvii). Este é o reino da cultura: cultura está profundamente enraizada na memória, e é sempre um processo retrospectivo. Casey ainda coloca que Este [movimento da memória] para trás não é temporal apenas. Pode também se referir à sempre disponível fonte das experiências e significados. Da mesma forma, as lembranças não precisam acontecer em um formato explicitamente cênico. Elas podem ser apenas um sentimento de ‘eu já estive aqui antes’ (p. xvi). As lembranças também se conectam com os sentimentos (a alma) e com o corpo, colocando em evidência uma rede massiva de movimentos e respostas habituais (p. xvii).

48 Stephen & Herdt (1989) usam o conceito de “imaginação autônoma” (autonomous imagination) em seu livro. Basicamente, este processo ocorre principalmente remodelando as experiências subjetivas, podendo “filtrar e alterar simultaneamente a participação social, introduzindo significados e imagens novas e únicas, vindo de fora da consciência dentro do repertório cultural pessoal” (p. 4). A imaginação autônoma trabalharia no limite entre os desejos internos e as necessidades sociais, mediando entre a experiência individual e a cultura, constituindo o fundamento da experiência religiosa interna.

49 A principal contribuição de Stephen é que a imaginação autônoma acontece como uma elaborada “narrativa imaginativa fora da consciência” (p. 53). Contudo, esta autora faz uma distinção entre a imaginação autônoma, que é “o processo de construção do sonho ou visão, o qual permanecerá sempre fora da consciência e escondido do self” (p. 54) da “imaginação ativa” (autonomous or active imagining), o produto final da imaginação autônoma, “a qual pode emergir à consciência, mas que é experienciada como tendo uma origem fora do self” (p. 54): sonhos, visões, sonhos-acordados, e eu poderia adicionar, mirações.

50 A imaginação ativa difere da imaginação normal pela externalização vívida de suas imagens, e porque tais imagens têm “seu próprio momentum” (Stephen, 1989, p. 55). A imaginação ativa é mais rica (no que diz respeito à qualidade de suas imagens) e mais inovativas, tendo ainda a propriedade de receber uma influência especial (ainda que não sejam determinadas por) elementos externos e culturais. Da mesma forma, ela “exerce uma influência especial em processos mentais e somáticos involuntários” (p. 55). Assim, na imaginação ativa se encontram as forças internas da imaginação autônoma e o mundo externo da cultura.

51 Se as mirações fossem voluntárias, elas teriam como base apenas a memória. De acordo com Farthing (1992), as imagens mentais são construídas de informações armazenadas na memória de longo prazo. A memória tem sim um papel nas mirações. Contudo, as imagens e sentimentos experienciados durante o processo de lembrar fatos do passado obedecem a algumas regras: as imagens estão impregnadas de significados, gerando um entendimento profundo de alguns fatos, mas ainda assim um entendimento fortemente enraizado no presente. As memórias não são simplesmente lembradas: elas são conectadas ao presente. E, como colocou Durand (2001), não podemos confundir imaginação e o lembrar. A memória é parte do processo imaginativo, precisamente porque é a fonte que fornece os fragmentos de algo vivenciado, para que a imaginação possa construir uma imagem totalizante da vida: “a vocação do espírito é insubordinação à existência e à morte e a função fantástica manifesta-se como o padrão dessa revolta” (Durand, 2001, p. 403).

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Conclusão

52 Langdon (2004) propõe que o alcoolismo não seja definido como uma doença universal, adotando desta forma uma perspectiva distinta da biomedicina e da psicologia. O alcoolismo, assim como o abuso de drogas, seria parte de um problema muito mais complexo, resultado de vários fatores, inclusive do contexto sociocultural. Este teria um papel fundamental no estímulo ao uso e abuso de álcool e drogas, assim como no de solução destes problemas.

53 Acredito que podemos dividir o serviço prestado pela Ablusa em duas etapas então: o “choque” e a “amizade”. O choque seria realizado durante as sessões, quando os assistidos eram levados a refletir sobre suas experiências durante o próprio ritual, e a conexão destas com sua vida, assim como sobre a situação em que se encontravam, sobre o efeito das drogas e do álcool nas suas relações com o mundo.

54 A “amizade”, por outro lado, era o momento em que novos relacionamentos eram criados, durante as próprias sessões (quando tanto “assistidos” quanto alguns “sócios” da Ablusa participavam), nas reuniões nas segundas-feiras, ou seja, na rede que se formava entre assistidos e sócios. Tais relacionamentos não diziam mais respeito apenas às pessoas que também se encontravam em situação de rua, mas sim àquelas que pertencem a outras camadas sociais, a outro universo sócio-cultural (os sócios), levando invariavelmente à aprendizagem de uma nova linguagem, onde novos sentidos e motivações eram construídos e vivenciados.

55 “Amizade” e “choque” eram etapas que se complementavam e reforçavam. As novas amizades proporcionavam uma nova visão de mundo e uma intensa transformação envolvendo corpo, mente, emoções e espírito. Tais transformações levavam a conflitos com o estilo anterior de vida, o que causava, durante as sessões com Vegetal, o choque. O choque, por sua vez, fazia com que os assistidos procurassem cada vez mais a transformação pessoal.

56 Assim, não é o uso de uma substância que promoveria a mudança da visão de mundo de alguém, mas sim o contato humano. A dicotomia “mente X corpo” torna-se obsoleta para trabalhar a questão da ação de substâncias psicoativas, uma vez que as alterações fisiológicas operam dentro de uma dialética com tudo mais que acontece fora da dimensão material (ver um aprofundamento desta discussão em Mercante, 2006b e Labate et al., 2008).

57 O processo de psicointegração causado pelo uso ritual de substâncias psicoativas permitiria que processos cognitivos sem representações lingüísticas, baseados, contudo, em representações sociais primárias, se tornassem acessíveis à consciência (Winkelman, 2000). Isto ocorreria porque informações que normalmente são automatizadas pelas partes evolutivamente mais antigas do cérebro, denominadas paleomamália (relacionado às emoções e memória) e reptiliana (que mantém o estado de alerta), seriam enviadas para o córtex (Winkelman, 2000).

58 As mirações parecem ter um papel importante para as pessoas que receberam ajuda para seus problemas através da Ablusa, devido ao seu potencial transformativo. As mirações são momentos de revelação, tornando mais evidentes as dimensões internas (mente, emoções, espiritualidade) e externas (relações sociais) da pessoa. Isto é muito similar ao que encontrei em outras situações (Mercante, 2002, 2004, 2006a, 2006b, 2006c, no prelo). As transformações físicas, sociais e espirituais apareceram na forma de

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imagens mentais espontâneas na consciência das pessoas em tratamento, relacionadas com o passado (através da memória e das condições físicas e sociais anteriores à dependência e/ou alcoolismo), com o presente (condições físicas e sociais durante a dependência e/ou alcoolismo), e futuro (o objetivo a ser alcançado através do ritual, ou seja, um estado físico, mental, emocional e de relacionamentos diferente do atual).

59 Assim as mirações podem “forçar” os dependentes e alcoólatras a experienciar, conscientemente, seus problemas, assumindo também o papel de unificar os já citados diferentes níveis de existência na consciência, realizando a interconexão entre percepções, pensamentos e sentimentos. Seguir para a Entrevista com o Padre Christian Alexandria Agreda >>

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RESUMOS

Nesta apresentação pretendo fazer um relato da situação do uso da Ayahausca no Brasil como ferramenta auxiliar na superação da dependência química e o alcoolismo. Existem atualmente cinco instituições desenvolvendo este tipo de abordagem. Farei uma explanação mais detalhada do trabalho social realizado pela Ablusa (Associação Beneficente Luz de Salomão), organização liderada pelo psiquiatra Wilson Gonzaga, que promovia sessões de Ayahuasca (denominada “Vegetal”) para moradores de rua, em um processo de “recuperação da dignidade humana”, na cidade de São Paulo. Dentro desse processo um dos aspectos principais era o da superação da dependência química. De forma mais específica, pretendo falar sobre o papel das “mirações” (imagens mentais espontâneas experienciadas durante o uso ritual da Ayahausca) neste processo de recuperação da dependência química e do alcoolismo.

AUTOR

MARCELO S. MERCANTE

Pós-Doutorando em Antropologia Social – USP

Ponto Urbe, 5 | 2009 24

Nos “arredores” e na “capital”: as pesquisas da Sociedade de Etnografia e Folclore (1937-1939)

Luísa Valentini

NOTA DO AUTOR

Os resultados apresentados aqui são parte de uma pesquisa de mestrado em progresso, orientada pela professora Fernanda Arêas Peixoto, do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, e realizada com bolsa vinculada Projeto Temático da FAPESP intitulado “São Paulo: os estrangeiros e a construção da cidade”. O mestrado dá continuidade a uma pesquisa de iniciação científica realizada sob a supervisão da professora Marta Amoroso, do DA-USP, com bolsa PIBIC do CNPq em 2004-2006.

Agradeço os comentários de meu colega Rui Harayama e da minha orientadora, Fernanda Peixoto, a uma primeira versão deste trabalho. As recomendações das professoras Marta Amoroso e Beatriz Perrone-Moisés na minha banca de qualificação também foram fundamentais para a construção deste artigo. Temos também os bailados em que a dança se mistura à representação, tais como a congada, o moçambique, os caiapós e o bumba-meu-boi. Este último, ainda tão intensamente vivo no Nordeste brasileiro, já quase desapareceu aqui. Sei dele apenas em algumas cidadezinhas do litoral, e ultimamente tive a surpresa, por um programa das festas do Divino, de saber que o bumba-meu- boi ainda permanece entre os caipiras do Santo Amaro. Mas na realidade já me acostumei a reconhecer que justamente os arredores da Capital são verdadeiros mananciais de surpresas

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folclóricas. [...] a nossa lustrosa capital é toda orlada assim dum caipirismo tenaz, que em vinte minutos de automóvel nos transporta da autêntica atualidade universal do marco zero a um passado antiqüíssimo em que ainda revivem as danças indígenas e a conversão delas ao catolicismo pela mão adestrada dos Jesuítas. (Mário de Andrade, Revista do Arquivo Municipal nº XXXIV, p. 203-204)

1 A Sociedade de Etnografia e Folclore (SEF) (www.centrocultural.sp.gov.br/livros/pdfs/ sef.pdf), fundada em 1937 como um órgão vinculado ao Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo e cujas atividades duraram cerca de dois anos, é uma experiência pouco visitada na história das ciências sociais no Brasil. Com exceção dos trabalhos publicados por Lélia Gontijo Soares (1983), Silvana Rubino (1995) e Marta Amoroso (2004), que se debruçam mais exclusivamente sobre ela, as considerações existentes sobre a SEF vêm, em geral, associadas a análises das iniciativas do Departamento sob a direção de Mário de Andrade (1935-1938), da fundação da Universidade de São Paulo e da Escola Livre de Sociologia e Política e, mais particularmente, da passagem de Claude Lévi-Strauss e sua então esposa, Dina Dreyfus, pelo Brasil (1935-1939)1. Isso não é de se estranhar, pois são de fato esses intelectuais e essas instituições os principais envolvidos na criação da Sociedade. São breves e pouco sistemáticas, no entanto, as recensões dos objetos, das práticas de pesquisa e das referências mobilizadas pelos pesquisadores que integraram esse grupo, elementos que podem ser observados nos arquivos relativos a essa experiência e que permitem um acompanhamento bastante minucioso das atividades de pesquisa ligadas a esse que Rubino (1995, p. 485) lembrou ser “[...] um projeto político e cultural tão ambicioso quanto de curta duração [...]”.

2 Pretendo organizar aqui um primeiro mapeamento dos temas e problemas aos quais os sócios da SEF dedicaram sua atenção, e das formas pelas quais eles realizaram suas explorações, concentrando-me na constituição da cidade de São Paulo e de seus entornos como paisagens para as pesquisas em etnografia e folclore, tais como estas disciplinas foram definidas nesse grupo. Se a criação da Sociedade, por uma série de razões, não foi um esforço bem sucedido, ela interessa pelo conjunto de debates, referências e práticas que mobilizou em torno das idéias de nação e de ciência. Neste levantamento, considerarei especialmente os documentos depositados no Fundo Sociedade de Etnografia e Folclore do Centro Cultural São Paulo (São Paulo, Brasil) e a coleção da Revista do Arquivo Municipal, que funcionava no período em questão como publicação oficial do Município, mas também como revista de vulgarização de trabalhos cujas temáticas interessavam aos propósitos do Departamento de Cultura (Rubino, 1995)2.

3 O primeiro conjunto documental de interesse aqui é o conjunto das apostilas do “Curso de Etnografia” ministrado por Dina Dreyfus, a convite de Mário de Andrade, entre os meses de abril e outubro de 1936. Esse curso, que precedeu e originou a SEF, foi desenhado, segundo resumo da aula inaugural publicado no jornal O Estado de São Paulo, para atender a uma demanda do Departamento de Cultura de treinamento a “[...] funcionários municipais da capital e do interior, professores primários, instrutoras de parques infantis [...]”3. Estes alunos deveriam se tornar os produtores de um arquivo de

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consulta útil tanto para as ciências sociais, como para as políticas públicas e, segundo um projeto que Mário de Andrade vinha construindo e defendendo desde a publicação do Ensaio sobre a música brasileira [1926], para o desenvolvimento de uma arte nacional4. Nesse mesmo texto, Dreyfus definiu o conteúdo adequado a esses propósitos como “[...] um método geral imediatamente aplicável no campo de trabalho [...]” (Dreyfus, 1936a).

4 Esperava-se desse “método geral” que sua aplicação fosse fácil a pessoas sem formação nessas áreas, e que ele ordenasse a “colheita” de informações segundo uma “orientação científica”, conforme explicou Mário de Andrade na fala de abertura do curso (SEF, doc. 3). Para tanto, Dreyfus planejou as aulas conforme um modelo amplamente difundido na pesquisa antropológica do início do século XX, qual seja o das instruções a pesquisadores “leigos” que coletariam informações nas colônias para as grandes instituições metrop5olitanas de pesquisa, tendo como referências principais os cursos de Marcel Mauss no Instituto de Etnologia que deram origem ao Manuel d’Ethnographie6 [1947], e os Notes and Queries in Anthropology editados periodicamente pelo Royal Anthropological Institute, de Londres.

5 Embora aberto ao público mais amplo, o curso atingiu também estudantes universitários, especialmente alunos das recém-fundadas Escola Livre de Sociologia e Política e Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, que pareciam não contar naquele momento com um treinamento específico para o trabalho de campo7. Alguns desses estudantes, como Lavínia Costa Villela e Mário Wagner Vieira da Cunha, somados a funcionários do Departamento de Cultura que acompanharam o curso, como Oneyda Alvarenga, encarregada da Discoteca Pública Municipal, Nicanor Miranda, responsável pelos Parques Infantis do município e Antonio Rubbo Müller, da Sub- Divisão de Documentação Social, estiveram entre os participantes mais ativos da Sociedade, juntamente a professores universitários como Lévi-Strauss, Plínio Ayrosa e Samuel Lowrie, definidos em alguns documentos como “etnógrafos”.

6 O propósito de constituir um “arquivo etnográfico” ou “arquivo de etnografia e folclore” – expressões que serviram de nome à seção da Revista do Arquivo onde se publicavam os trabalhos de interesse da SEF – implicava uma delimitação disciplinar cara a Dina Dreyfus no seu esforço de enfatizar a separação entre os momentos de registro e de análise na produção do conhecimento. Nas Instruções Práticas para Pesquisas de Antropologia Física e Cultural escritas por Dreyfus e publicadas pelo Departamento em 1937, ela apontou, em uma outra versão do texto de sua aula inaugural, que: A Etnologia é teórica, como toda ciência constituída; e nesta qualidade apresenta caracteres incompatíveis com as pesquisas práticas: é sistemática, explicativa e generalizadora. Seu esforço é essencialmente sintético. Inteiramente diverso é o papel da Etnografia. Esta é mais um estudo descritivo e monográfico dos povos e de sua vida cultural, do que propriamente uma ciência (Dreyfus, 1936b, p. 8).

7 Quanto ao folclore, o outro campo de interesses da SEF, a sua definição era mais complicada: Folclore significa estudo das manifestações culturais populares. Podemos dizer que o folclore está para a etnografia como a etnografia para a etnologia. Isto é, há entre estes ramos de pesquisas uma diferença de generalidade. O folclore se faz sobre uma base mais limitada que a etnografia propriamente dita e por isso mesmo estuda seu objeto mais detalhadamente. Em relação à etnografia, o folclore se caracteriza: – Por pertencer mais ao domínio espiritual, levando em conta o fator psicológico, enquanto a etnografia se limita quase exclusivamente aos elementos materiais.

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– Por se ocupar principalmente das manifestações culturais dos povos chamados civilizados, enquanto a etnografia se consagra especialmente aos povos primitivos. Geralmente o etnógrafo especializado não se ocupa do folclore. Neste curso, entretanto, que se destina a satisfazer as condições particulares dos que o seguem, o folclore será um dos pontos do programa (SEF, doc. 8).

8 A conclusão desse trecho, bem como as diferenças entre o primeiro projeto de curso enviado por Dreyfus a Mário de Andrade e o curso efetivamente realizado, sugerem que a associação do folclore à etnografia atendia à pesquisa e à política cultural conduzidas por Mário nesse momento. Nas aulas de folclore foram ensinados os métodos de registro da arte decorativa, de “contos, lendas, mitos e provérbios”, de jogos, que interessavam no projeto pedagógico dos Parques Infantis do município (cf. Faria, 1999), e das temáticas a que Mário mais se dedicava: a música e “a dança e o drama”, sobre os quais escrevia naquele momento o que vieram a ser os três volumes das Danças Dramáticas do Brasil [1934-1944]. Mais afins à etnografia, segundo a definição adotada por Dina, eram as aulas de cultura material, quando se estudaram critérios de coleta, a classificação dos objetos para a constituição de fichas, e as classificações disponíveis para habitação, técnicas de obtenção do fogo, armas e instrumentos, arcos e flechas, tecelagem e cerâmica. Somavam-se à etnografia e ao folclore, no programa do Curso, uma seção de antropologia, referente a medições, marcadores raciais e análises fisiológicas, e ainda uma aula de lingüística, com a indicação das perguntas a serem feitas e o modo de sistematizar a gramática e a fonética.

9 A dupla distinção entre etnografia e folclore – fundada numa diferenciação tanto das populações estudadas como de questões de interesse – parece eficaz para organizar os diferentes tipos de pesquisas realizados pelos investigadores associados à SEF, embora a delimitação desses “ramos de pesquisas” estivesse sujeita a oscilações no material aqui considerado. Se a etnografia, num sentido mais restrito de estudo dos povos ameríndios e especialmente de sua cultura material, aparece em apenas três das conferências realizadas em reuniões da Sociedade – pelo catedrático de Etnologia e Tupi-Guarani da USP, Plinio Ayrosa (“Anhangá e Jurupari”) e por Claude Lévi-Strauss (“A civilização material dos índios Kadiueu” e “Algumas bonecas Karajá”) – as pesquisas efetivamente estimuladas pela Sociedade seriam facilmente organizadas sob a rubrica do folclore, mobilizando objetos como “danças”, “festas”, “cerimônias”, “superstições” e suas variantes, na maior parte das vezes acompanhadas pelo adjetivo “popular”8. Por outro lado, na fala de abertura do curso de etnografia feita por Mário, a compreensão da cultura brasileira na chave do primitivo e do “caráter nacional” em formação permitia atribuir à etnografia um recorte mais amplo que o das populações ameríndias estudadas por Ayrosa e Lévi-Strauss, visando o que ele definiu como “o conhecimento da formação cultural do nosso povo” (SEF, doc. 3). A primeira parte da definição de “folclore” por Dina Dreyfus insinuava, ademais, que este poderia ser considerado uma parte da etnografia, idéia que ela põe em prática no curso ao dar exemplo de danças e jogos observados entre os Bororo e os Kadiwéu (SEF, docs. 12 e 13)9.

10 O primeiro esforço de pesquisa da SEF consistiu na produção de dez “cartas folclóricas” como forma de participação do Departamento de Cultura de São Paulo no Congresso Internacional do Folclore que se realizaria junto à Exposição Universal de Paris em 1937. A “cartografia folclórica” seria o tema de debate metodológico no Congresso; além disso, um conjunto de trabalhos cujas leituras foram compartilhadas por Mário de Andrade e pelo casal Lévi-Strauss tinha na construção de mapas um momento fundamental da produção de conhecimento: os trabalhos do etnólogo alemão Leo

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Frobenius (1873-1938), do francês Georges Montandon (1879-1944), e dos norte- americanos de origem germânica Alfred Kroeber (1876-1960) e Robert Lowie (1883-1957)10.

11 Contribuíram no desenho da metodologia a ser adotada na produção dos mapas o especialista em estatística da Sub-Divisão de Documentação Social do Departamento de Cultura, Bruno Rudolfer, o catedrático de Geografia Humana da USP, Pierre Monbeig, além de Dina Dreyfus (SEF, doc. 68). O material disponível no acervo da SEF relata que a pesquisadora fez uma conferência intitulada “Que é o folclore?” e que Monbeig falou da “representação cartográfica dos fenômenos humanos” (Boletim da Sociedade de Etnografia e Folclore, nº1). Não encontramos registros da fala de Monbeig e da aula de Dreyfus; existe apenas um resumo na ata da quarta reunião da Sociedade, do qual parece faltar uma página, mas que de saída reapresenta a preocupação com a profissionalização da pesquisa e com a posição do folclore na classificação disciplinar: Em sua ligeira e brilhante palestra, a conferencista delineou o histórico dos estudos folclóricos: a princípio considerados apenas um agradável passatempo, sem valor cientifico, foram mais tarde considerados como ramo da etnografia. O arqueólogo inglês John Thoms foi o primeiro a empregar o termo folk-lore, querendo abranger com estas duas palavras - folk, povo, lore, saber – tudo quanto era designado por “antiguidades populares” e literatura popular. A partir dessa data – 1846 – a expressão folclore foi sendo empregada, encontrando resistência por toda a parte, até que Sebillet a consagrou. À medida que a etnografia fixava seu objeto e seu método científico, o folclore beneficiava desse desenvolvimento [...] pode considerar-se folclore o estudo da tradição popular. Isto é, estudo de quanto o povo sabe, pratica, diz, escreve – distinguindo-se dos conhecimentos científicos, das práticas racionais, da arte, ciência da “sabedoria popular”, da tradição, que merece ser estudada e conservada (SEF, doc. 66).

12 No Fundo SEF encontram-se também os projetos para o questionário que daria origem aos mapas, que, quando concluído, foi enviado “[...] a todos os inspetores escolares e diretores de grupos, a todos os médicos e juízes de paz [...]”, com a ajuda das casas comerciais de São Paulo que lhes cederam sua lista de clientes (SEF, doc. 290). Bruno Rudolfer, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo republicada na Revista do Arquivo, comentou os “aspectos folclóricos” a serem mapeados, entre os quais dois parecem se reportar diretamente às pesquisas de Mário de Andrade (cf. Amoroso, 2004) que dariam origem aos trabalhos Danças Dramáticas do Brasil [1934-1944]e Namoros com a Medicina [1937]: Os temas escolhidos visaram bem representar alguns aspectos folclóricos. As proibições alimentares participam do tema da alimentação quotidiana e, mais particularmente, das crenças e superstições relativas ao alimento. As danças, elemento essencial das festas, se classificam entre as manifestações principais da arte popular. Finalmente, a cura do terçol com anel representa um aspecto especial da “medicina” popular. (RAM nº XXXIX, p. 286).

13 Ao final do levantamento, os “mapas de folclore” enviados ao Congresso em Paris tinham os seguintes títulos: “Medicina Popular - Cura do terçol com anel”; “Proibições alimentares relativas à manga”; “Danças populares - Samba ou Batuque”; “Danças populares - Cateretê ou Catira”; “Danças populares - Caiapó e suas variantes fonéticas”; “Danças populares - Congada e suas variantes fonéticas”; “Danças populares - Cururu ou Caruru”; “Mapa das unidades territoriais”; “Proibições alimentares - Leite com Frutas”; “Zona estudada”. O último dos mapas é significativo por revelar a extensão da pesquisa: são relativamente poucas as áreas sem levantamentos (SEF, doc. 207)11.

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14 O contraste visual deste último mapa surpreende, pois a chamada para o envio de informações foi feita de modo precipitado: o convite de Mário aos inspetores de ensino data de 5 de abril e o Congresso se realizaria no final de junho. Isto explica, ao menos em parte, os esforços retóricos de Mário e Dina na divulgação do projeto. Ao Diário da Noite, Mário declarou no início dos trabalhos: “É uma tentativa audaciosa, mas não tentar seria uma covardia. O Congresso Internacional de Folclore que se reunirá em Paris a 25 de junho próximo mandou um convite especial para o Departamento de Cultura fazer-se nele representar com trabalhos seus” (SEF, doc. 290). A carta aos inspetores de ensino era concluída da seguinte forma: Nem cabe ao Departamento de Cultura enaltecer a colaboração de V. S., porque V. S. participa com a mesma intensidade e vigor do possante organismo do nosso Estado, a principal entidade que se beneficiará deste empreendimento. (RAM nº XXXIV, p. 202)

15 Nesse convite, o tema do pioneirismo paulista – vigoroso apenas cinco anos depois da Revolução Constitucionalista e recorrente na Revista do Arquivo (Rubino, 1995) – articula o sentido experimental da aplicação do método e o projeto de expansão geográfica da pesquisa a partir da base municipal: “Tratando-se de um empreendimento novo entre nós, bem como na América, a área abrangida por esta primeira tentativa de aplicação de um método científico de estudo dos fatos folclóricos é apenas a do Estado” (RAM nº XXXIV, p. 201). Essa flexibilização de fronteiras, da capital para o estado e do estado para o país, teve seu momento máximo com o envio da Missão de Pesquisas Folclóricas em 1938 ao Norte e Nordeste do Brasil12.

16 Em artigo publicado no O Estado de São Paulo, já em meio aos trabalhos com as respostas aos questionários, Dreyfus relatava: A 5 de abril partiam os primeiros questionários folclóricos redigidos pela Sociedade de Etnografia e Folclore [...] dia a dia as respostas afluíram em número tão considerável que os mais pessimistas se calaram, e os mais otimistas viram ultrapassadas as suas esperanças. Hoje, mais de 700 respostas estão em elaboração13. (SEF, doc. 296)

17 Nesse mesmo artigo, a etnóloga fala do questionário como “[...] instrumento de trabalho coletivo [...]”. Também na abertura do primeiro Boletim da Sociedade de Etnografia e Folclore era reforçado o sentido de esforço coletivo para a instauração de um “trabalho realmente científico”, com ênfase no folclore, mais que na etnografia: O nosso Boletim a essas pessoas se dirige especialmente, e a quantos interessados da realidade nacional, amantes de nossa gente e suas tradições, queiram se unir conosco para um trabalho realmente científico de folclore, cuja natureza ainda não foi aplicada no Brasil. Nossos trabalhos são de natureza coletiva. Nenhum de nós pessoalmente se exalta com pesquisas e estudos que a Sociedade faz e publica em seu nome. O mérito é de todos e o benefício é nacional. (Boletim da SEF nº 1)

18 Do ponto de vista do avanço da ciência – o objetivo principal do Congresso de Folclore em Paris fora justamente “[...] promover o acesso do Folclore ao campo das ciências antropológicas [...]” (Boletim da SEF, nº 3) – os mapas contribuíam por permitirem a separação entre o fenômeno folclórico e as fronteiras político-administrativas: Tais mapas transparentes apresentam vantagens incontestáveis, permitem, de uma só vez, a apresentação destacada do fenômeno independente das divisões e acidentes geográficos que, como dissemos, se vêem no mapa-base e o estabelecimento da correlação de certos fenômenos pela superposição das cartas respectivas que, no caso em apreço, possibilitaram pôr-se em evidência as relações de identidade folclórica em certas zonas (RAM nº XXIX, p. 286).

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19 Os modos de realizar essa separação eram um problema que ocupava a Sub-Divisão de Documentação Social do Departamento de Cultura. Seu encarregado, Sérgio Milliet, apresentou, no Congresso da População realizado no mesmo contexto da Exposição Universal de 1937, um trabalho intitulado “A representação dos fenômenos demográficos”. No texto da conferência, publicado pela Revista do Arquivo, explica-se que o procedimento adotado pela Documentação Social foi organizar os dados do recenseamento estadual de 1935 referentes à cidade de São Paulo por “[...] quarteirões e faces de quarteirão, unidades menores, naturais, quase imutáveis e de grande homogeneidade [...]” em substituição ao recorte nos distritos de paz, “[...] unidades políticas mal-definidas e heterogêneas [...]” (Milliet, 1938, p. 214).

20 Observando os trabalhos realizados na cidade de São Paulo e publicados na Revista do Arquivo Municipal durante o período de atividade da SEF, encontraremos diversos levantamentos estatísticos sobre a população da cidade de São Paulo, que visavam diagnósticos e previsões quanto ao seu “nível de vida”, à distribuição das diferentes “etnias” e às possibilidades de integração “racial” e “cultural” entre esses grupos. Os mapas produzidos para a apresentação no Congresso da População em Paris, que visavam a “[...] ilustração do método, tão somente [...]”, eram transparentes como os mapas folclóricos e representavam a “Densidade das crianças em idade escolar no quarteirão”, a “Distribuição por quarteirão de brasileiros filhos de brasileiros”, a “Distribuição por quarteirão de brasileiros” e a “Porcentagem de sírios na população geral, por quarteirão” nas regiões da Sé e de Santa Efigênia (RAM XLI, p. 308). Sérgio Milliet reforçava os resultados do recenseamento com uma evocação da paisagem da rua 25 de março: [...] verificamos que a concentração de orientais-próximos nas ruas 25 de março e adjacentes é enorme. Pois o fato de se compor a população de um bairro da cidade de 3/5 a ¾ de indivíduos pertencentes a determinado grupo cultural estrangeiro indica claramente que o ambiente não pode favorecer a rápida assimilação dos imigrantes. Para comprovar a afirmação bastará caminharmos por aquela rua, ouvirmos a língua falada e a música das lojas, observarmos a comida servida nos restaurantes. A zona quase inteira é essencialmente próximo-oriental (Milliet, 1938, p. 217).

21 As possibilidades de “assimilação” dos sírios já haviam sido tematizadas em trabalho publicado na Revista do Arquivo pelo Dr. Rafael Paula Souza, do Instituto de Higiene da Faculdade de Medicina. Esse trabalho, sugestivamente intitulado “Contribuição à etnologia paulista”, era definido como um “estudo biotipológico do universitário paulista” que envolveu “[...] 512 estudantes, dos quais somente 11 eram estrangeiros [...]”. O estudo de Paula Souza parece ter se concentrado especialmente na ascendência dos universitários estudados, de modo a aferir o “índice de fusibilidade” de cada “etnia” existente na amostra, usando metodologia e conceitos desenvolvidos pela socióloga americana de origem ucraniana, Bessie Bloom Wessel (1889-1969). Assim, Paula Souza procurava averiguar o quanto cada etnia contribuía com o “melting pot” da elite paulista – as “etnias brasileiras” eram classificadas segundo os Estados de proveniência dos estudantes e seus ascendentes. Os brasileiros de origem síria estudados – pelo que o trecho revela, na sua maioria homens – não pareciam ser muito predispostos à fusão, embora já “paulistanizados”: [...] nossos resultados mostram que, pelo menos até o presente, a fusão desse grupo na elite que examinamos é muito precária. Concordam eles com os obtidos em diferentes países e sabemos que, embora em vida social íntima com o restante da população, seus enlaces se processam quase sempre entre sua própria colônia. É

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digna de registro essa preferência, pois apesar de perfeitamente paulistanizados, nos acompanhando mesmo em momentos absolutamente críticos, no matrimônio escolhem as paulistas ou paulistanizadas, mas com ancestrais de sua própria origem, quer por motivos religiosos, princípios educacionais, tradicionais, ou outros (Paula Souza, 1937, p. 101-2).

22 Embora trate mais da ascendência dos estudantes que de medidas, traços fisionômicos e outros “marcadores raciais”, esse estudo estava em consonância com uma proposta feita por Lévi-Strauss, em 1935, na apresentação de um projeto para a criação de um “Instituto de Antropologia Física e Cultural” da Universidade de São Paulo. O jovem professor sugeriu nessa ocasião testar os resultados do trabalho de Boas com a medição dos corpos dos imigrantes e seus descendentes em Nova York, lembrando as vantagens de uma certeza científica com relação à plasticidade dos tipos físicos, tanto do ponto de vista da ciência, como da política de imigração: Se as conclusões de Boas devessem ser reconhecidas como erradas, importante contribuição ao estudo do homem teria sido fornecida pelo Brasil. Se, pelo contrário, elas fossem comprovadas, mesmo parcialmente, precioso elemento de informação viria servir a política brasileira da imigração (Lévi-Strauss, 1935, p. 251-252).

23 Dreyfus, na aula inaugural do curso de etnografia, havia somado à questão “física”, o problema da “síntese” cultural: [...] saber com precisão e graças a um inquérito completo, quais são as culturas estrangeiras que desaparecem, quais as que subsistem, quais, enfim, as que permanecem, formando com a cultura brasileira uma síntese harmoniosa. Assim poderia ser realizada uma seleção vantajosa para o Brasil nas diversas correntes migratórias, de molde a receber as etnias, cujos elementos utilizáveis se mantêm e progridem, tanto do ponto de vista físico, como do ponto de vista cultural e recusar as que são chamadas a se desagregarem (Dreyfus, 1936b, p. 17).

24 Nesse sentido, a perspectiva de Paula Souza para o futuro do estado de São Paulo era otimista: Essa grande capacidade de cruzamento do paulista (19,0% de homogêneos, quando a população universitária conta com 41,8% de ancestrais paulistas), não só com brasileiros por aqui transferidos como com estrangeiros, favorece a fixação definitiva do elemento estranho, já atraído pelas outras condições ambientes favoráveis, abrasileirando rapidamente o estrangeiro e paulistanizando o brasileiro de outras paragens (Paula Souza, 1937, p. 104).

25 “Homogêneo”, no vocabulário adotado por Paula Souza, queria dizer descendente de indivíduos de “mesma origem”. “Heterogêneo”, por conseguinte, descendente de indivíduos de “origens diversas”. Quando o autor afirma que apenas 19,0% dos paulistas são “homogêneos”, ele na verdade comemora que 81,0% sejam “heterogêneos”, sendo um dos pais de “origem paulista”. O reconhecimento de que o “índice de fusibilidade baixo” de “etnias” como os sírios e japoneses resultava provavelmente de sua imigração recente, e que tenderia a aumentar ao longo do tempo, também contribuía para o tom otimista da avaliação de Paula Souza (Paula Souza, 1937, p. 101). A Revolução Constitucionalista de 1932 somava-se, por fim, às provas da potencial “miscigenação paulista” – o que demandava a recusa de algum caráter separatista na comemoração dos resultados: É essa miscigenação paulista que permite a conservação de nossa nacionalidade, chegando mesmo até ao regionalismo do estrangeiro aqui radicado, como se observou na revolução de 1932, em que a bandeira, levantada por São Paulo, congregou todos os habitantes do Estado. [...] A formação do caráter nacional tem

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aqui forte reduto, e seu acusado regionalismo não implica idéias seccionistas enraizadas. Ser regionalista é ser patriota e esse grupo heterógeno, que compõe São Paulo, o é ascendramente. (Paula Souza, 1937, p. 104-105)

26 Um outro trabalho, “Pesquisa sobre a mancha pigmentária congênita na cidade de São Paulo”, realizado como conclusão do Curso de Etnografia pelas alunas da Faculdade de Filosofia, Cecília Castro e Silva e Maria Stella Guimarães, também contabilizava a ascendência dos habitantes de São Paulo, mas dessa vez, associada a um “marcador racial” em particular, a “mancha mongólica” ou “mancha pigmentária congênita”, objeto de uma das aulas de “antropologia física” do curso. Essa pesquisa era a continuação de levantamentos realizados por Dina Dreyfus em 1935, na Clínica Obstetrícia da Faculdade de Medicina de São Paulo, para, segundo Lévi-Strauss, “estabelecer no Brasil estatísticas da freqüência dessa importante característica racial que é a mancha mongólica, atualmente em vias de elaboração no Laboratório de Antropologia de Paris” (Lévi-Strauss, 1935, p. 252). O principal problema com o qual essas estatísticas contribuiriam era, conforme explicou Dina em uma das aulas de antropologia física, determinar “[...] a difusão da raça mongólica no mundo [...]” (SEF, doc. 6), contribuindo, provavelmente, com o problema do povoamento do continente americano – no qual trabalhava, especialmente, Paul Rivet, primeiro diretor do Museu do Homem de Paris, fundado em 1937.

27 Entre agosto de 1936 e março de 1937, Castro e Silva e Guimarães se dedicaram, a “examinar” um total de 600 recém-nascidos e a entrevistar suas mães. O levantamento foi, ao menos em parte, financiado pelo Departamento de Cultura, que imprimiu as fichas timbradas (“Departamento de Cultura – Divisão de Expansão Cultural”) utilizadas pelas duas estudantes (Castro e Silva; Guimarães, 1937, p. 48-49). O vereador Antonio Vicente de Azevedo, respondendo na Câmara Municipal às críticas feitas em fins de 1936 aos gastos do Departamento de Cultura pelo vereador Silvio Margarido, lembrou ser “[... ] a primeira vez que se faz no Brasil esta importantíssima pesquisa antropológica [...]” (RAM nº XXVIII, p. 292). Foi essa, no entanto, a única adesão, entre os alunos do Curso de Etnografia, ao programa de antropologia física.

28 Samuel Lowrie, professor da Escola Livre de Sociologia e Política, também analisou levantamentos da ascendência de crianças que freqüentavam os Parques Infantis da Prefeitura (Lowrie, 1937a, 1937b). O trabalho de Lowrie em torno da ascendência das crianças ainda se desdobraria, pela agregação dos dados recolhidos nas pesquisas de Paula Souza, Castro e Silva e Guimarães, no artigo “Origem da população da cidade de São Paulo e diferenciação das classes sociais” (Lowrie, 1938), na direção de outros levantamentos do “nível de vida” e de outros “problemas sociais” realizados no quadro do Departamento14.

29 Se os levantamentos estatísticos na cidade de São Paulo visavam especialmente o delineamento de políticas públicas, os folclóricos, por sua vez, tinham como tarefa anterior a promoção da pesquisa “científica”, em folclore fosse através da realização de pesquisa “coletiva” por “pesquisadores em arquivos e em bibliotecas”, como se especificou nos seus Estatutos (SEF, doc. 60), fosse pelos esforços de adequação da produção dos “pesquisadores não profissionais” dispersos em São Paulo e no Brasil. Através da produção de arquivos e mapas, a SEF articulou diversas formas de pesquisa que eram praticadas pelos pesquisadores nela envolvidos. O primeiro projeto da Sociedade nesse sentido referia-se à produção de um “vocabulário etnográfico nacional”, segundo proposta feita por Dina ainda em 193615. Esse vocabulário, também

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chamado “dicionário etnográfico e folclórico”, contemplaria, segundo projeto esboçado por Mário, “termos técnicos da ciência etnográfica e folclórica”, como “frátria” e “termos técnicos de natureza etnográfica e folclórica”, como nos explicam os exemplos listados, “puíta” e “dandão”,um léxico das manifestações folclóricas e da cultura material no Brasil16 (SEF, doc. 351).

30 Assumindo a tarefa de recolher as informações dispersas na literatura já existente sobre o folclore, a SEF começa, em dezembro de 1937, a organizar uma cronologia das festas populares brasileiras. Esse tipo de trabalho em arquivo tinha afinidades com as investigações não só de Plinio Ayrosa, membro do Instituto Histórico e Geográfico, mas também com as de Mário de Andrade e as de Lévi-Strauss, que complementavam suas observações de campo com informações de fontes diversas, de modo a rastrear a distribuição e o percurso histórico dos fenômenos estudados.

31 A reconstituição histórica das origens e desenvolvimento dos “aspectos culturais” associados à “formação cultural do nosso povo” era a finalidade última também da utilização da cartografia como forma de sistematizar as informações “etnográficas e folclóricas” recolhidas pelos pesquisadores. Do ponto de vista do estímulo a esse tipo de pesquisa e da constituição da “etnografia” e do “folclore” como disciplinas científicas, no entanto, a realização dos mapas foi interrompida numa etapa preliminar: a constituição de uma rede de pesquisadores leigos distribuídos pelo estado de São Paulo. Esses pesquisadores, que receberam o título de “delegados” da Sociedade de Etnografia e Folclore, foram selecionados segundo a qualidade das respostas aos questionários pelo “conselho técnico” da SEF – composto por Bruno Rudolfer, Dina Dreyfus, Lévi-Strauss, Rafael Paula Souza, Plínio Ayrosa e Oneyda Alvarenga.

32 A convocatória em torno dos mapas e a constituição dos delegados da SEF teve, ainda, o efeito de mobilizar os autores de trabalhos sobre folclore em torno do envio de informações manuscritas, artigos e fotografias para a SEF, anexos a diversas das cartas recebidas – obrigação, de resto, regulamentada em estatuto: Art. 32 – A Sociedade poderá designar entre seus membros residentes ou correspondentes, por indicação do conselho técnico, delegados aos quais se atribuirá a seguinte missão, relativa ao bairro, cidade ou região de que se incumbir: 1) – Trazer a Sociedade ao corrente de qualquer acontecimento de interesse etnográfico ou folclórico; 2) – Tomar a iniciativa de pesquisas etnográficas e folclóricas; 3) – Colaborar com os poderes públicos para assegurar a proteção, conservação e preservação de todos os documentos ou manifestações de caráter etnográfico e folclórico (SEF, doc. 60).

33 Encontramos no arquivo da SEF materiais diversos enviados pelos delegados no ano e meio em que a Sociedade esteve ativa. O jornalista Luiz Valio, delegado para os municípios de São Miguel Arcanjo, Pilar e Capão Bonito, por exemplo, encaminhou em novembro de 1937 fotografias de uma feira de palmitos, da fabricação do fumo de corda e da cidade de São Miguel: o largo da Matriz, estradas que ali chegavam, uma bomba a gás. Valio prometeu enviar informações sobre a “festa folclórica” no bairro do Taquaral, em São Miguel Arcanjo, assim como trabalhos de sua autoria publicados na imprensa local (SEF, docs. 75, 227). O professor Virgílio H. de Leme D’Ávila, delegado da SEF em Pinheiros, Vale do Paraíba, encaminhou o trabalho “O Rei Congo no Brasil” (SEF, doc. 90), que chegou a ser lido em reunião da SEF. De Gentil de Camargo, jornalista e delegado da SEF na região de Taubaté, Tremembé, Pindamonhangaba e no distrito de paz de Quiririm (e, eventualmente, S. Luís do Paraitinga e Ubatuba), foi publicado na

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Revista do Arquivo um “excerto do apêndice” de seu livro Sintaxe Caipira do Vale do Paraíba (então no prelo), onde tratou de temas afins aos dos mapas folclóricos – alimentação, receitas e tabus alimentares (com 21 tabus listados) – e apresentou desenhos de cozinhas “caipiras” e seus utensílios (Camargo, 1937). José Pedro Camões, organizador técnico do Museu Histórico Municipal de Taubaté e também delegado da SEF, remeteu uma notícia sobre a abolição da escravidão em Taubaté. A. de Faria, advogado e delegado em Guará, mandou um “estudo sobre o fiado”, intitulado “Pequena contribuição para o nosso folclore” (SEF, doc. 211).

34 Entre os sócios da SEF que se encontravam fora de São Paulo, Sebastião Almeida de Oliveira, tabelião em Tanabi, enviou no fim de 1937 o artigo “Anotações para o Folclore Negro” (SEF, doc. 238) e, pouco depois, “A cruz no folclore tanabiense” (SEF, doc. 249), escrito segundo as instruções preparadas por Dina Dreyfus que haviam sido publicadas no terceiro Boletim. Do interior de São Paulo foram também recebidos os trabalhos “Congadas”, de Mário Pinto da Luz (SEF, doc. 111), a monografia “Araraquara”, de Mota Coqueiro17 (SEF, doc. 82), além de notas, muitas vezes manuscritas, sobre “usos e costumes”, “crendices”, “superstições” e outros tipos de “aspectos folclóricos” enviados por correspondentes, vinculados formalmente ou não à SEF.

35 Aproximando-nos agora das pesquisas de campo realizadas pelos sócios da SEF, encontramos na correspondência convites de delegados para visitas a festas populares, provavelmente motivados pela decisão de “[...] organizar passeios-conferências cujas possibilidades de realização prática ela se propõe examinar [...]”, comunicada no segundo Boletim. Idas coletivas a festas já haviam sido organizadas por esse grupo desde a época do Curso de Etnografia. Uma delas foi bastante documentada: a viagem à festa do Divino Espírito Santo de 1936 em Mogi das Cruzes.

36 No artigo “A entrada dos palmitos”, Mário de Andrade relata sua ida à festa em Mogi, em 30 de maio de 1936, para a realização de pesquisa de campo. Um dos rituais da festa lhe sugeria uma interpretação baseada no Ramo de Ouro (1890) de James Frazer (1854-1941): Chegado a Mogi pelas doze horas do dia 30, para organizar as filmagens que o Departamento de Cultura realizaria no dia seguinte, cuidei de indagar o que era essa “Entrada dos Palmitos”. Infelizmente perdera a cerimônia que é tradicionalmente às primeiras horas da manhã. Como julgo ver nessa festa uma curiosa e ainda viva reminiscência do culto do vegetal da primavera no Brasil, venho comunicá-la para que os conhecedores mais completos dos costumes nacionais liguem a festa mogiana a outras do país e a estudem como tradição importada (Andrade, 1937a, p. 51).

37 Os filmes a que Mário se refere aqui são: “Festejos populares em Mogi das Cruzes – Cavalhada”, “Moçambique – Festa do Divino em Mogi das Cruzes”, “Festa do Divino Espírito Santo” e “Congada – Festa do Divino em Mogi das Cruzes”, os dois últimos assinados pelo casal Lévi-Strauss. Dina Dreyfus comentou em sua aula sobre “a dança e o drama” que “[...] A representação dramática é particularmente observável nas festas regionais. Nestas ocasiões – como por exemplo observou-se recentemente em Mogi das Cruzes – formam-se às vezes verdadeiras companhias temporárias de atores [...]” (SEF, doc. 12)18.

38 Uma viagem à festa do Bom Jesus de Pirapora em 1937 é mais parecida com o que se poderia esperar de um “passeio-conferência”. Nessa ocasião, Mário Wagner Vieira da Cunha – aluno da Escola Livre de Sociologia e Política que apresentara como monografia final ao Curso de Etnografia um texto intitulado “Descrição da festa do Bom

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Jesus de Pirapora” – retorna à festa acompanhado do secretário de Mário de Andrade, José Bento Faria Ferraz, e de Lévi-Strauss, supomos que acompanhado por Dreyfus, primeira secretária da SEF. Mário de Andrade afirma ter apenas “[parado] uma noite [...]” na cidade para ver o samba, numa “[...] viagem que não se destinara especialmente a isso [...]”, mas suas anotações, e as de José Bento, constituíram a base do artigo “O Samba Rural Paulista” (Andrade, 1937). Pode-se dizer com alguma certeza que Lévi- Strauss foi a Pirapora nessa ocasião porque suas fotos de Pirapora (1994, p. 38-43) mostram o samba realizado na rua – fato inusual, pois as danças costumavam acontecer num “barracão” onde se alojava a população negra que freqüentava a festa. Como explica Mário Wagner: Havíamos, no primeiro ano, observado uma forte reação da festa religiosa contra o desenvolvimento crescente da festa profana. Os pregadores religiosos censuravam, aqueles que vinham a Pirapora e se entregavam a toda sorte de pecados, esquecidos de seus deveres para com o Santo. Os seminaristas não saíam mais nas procissões porque se deseja proteger suas almas da contemplação de cenas e gestos indecorosos, tão comuns, nesses dias, pelas ruas de Pirapora. Em 1937, esta reação foi maior e mais direta: proibiu-se o samba no Barracão. Dada a conhecer com muita antecedência e tendo sido muito divulgada, esta proibição teve o efeito de fazer com que muitas pessoas deixassem, este ano, de vir para as festas. A acorrência era inferior à terça parte da do ano anterior. Por outro lado, essa proibição prejudicou extraordinariamente o samba. Foi preciso improvisar, de uma hora para outra, novo local para dançar. Sambaram no meio da rua. Uma poeira sufocante. Automóveis que, debaixo de um tinir enervante de buzina, se intrometiam no meio do grupo de dançadores. E muitas vezes o samba se dissolveu por causa da chuva. (Cunha, 1937, p. 30)

39 O quinto Boletim noticia outro tipo de trabalho conjunto: a partir das observações realizadas por Sara Ramos, aluna do Curso de Etnografia, nas cavalhadas de Franca em 1936, são realizadas três conferências em 26 de janeiro de 1938:Sara Ramos descreve as cavalhadas de Franca; Oneyda Alvarenga apresenta um levantamento de “notícias bibliográficas sobre cavalhadas” no Brasil e Mário de Andrade, um levantamento sobre a origem ibérica das cavalhadas. Consta também que Antonio Rubbo Müller realizou uma conferência sobre cavalhadas em Atibaia e Mogi das Cruzes no ano de 1937.

40 Em primeiro de agosto de 1938, Rubbo Müller enviou à imprensa uma nota sobre novas viagens de estudos a Pirapora e Bom Jesus dos Perdões, também na época da festa do Bom Jesus: Comitivas de estudos em Pirapora e Perdões Os encarregados da organização das comitivas de sócios da Sociedade de Etnografia e Folclore já organizaram o programa da excursão de estudos a Pirapora e a Perdões. Os que ainda desejarem tomar parte nessa viagem deverão comunicar-se hoje (2) ao sr. A. R. Müller pelos telefones 2-7374 ou 2-389 ou com o sr. Luiz Saia no prédio do Trocadero até às 18hs, a fim de serem facilitados os entendimentos necessários antes do dia designado para a partida de S. Paulo (SEF, doc. 96).

41 A viagem a Perdões foi organizada junto ao prefeito de Atibaia e delegado da SEF, João Batista Conti, que enviara em abril e em outubro de 1937 trabalhos sobre as congadas em Atibaia e convidara os membros da SEF para ver as danças nos festejos de Natal, no que foi atendido por Mário (cf. Rossetti Batista, 2004, p. 55). Em 29 de julho de 1938 – o que, pela data da nota acima, sugere enorme rapidez nos preparativos da viagem – Mário envia carta consultando-o sobre a possibilidade de colaboração com a excursão. Caro Conti, Escrevo-lhe hoje para fazer-lhe uma consulta, na qualidade de mestre da Sociedade

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de Etnografia e Folclore, da qual você é um atencioso delegado. Tendo eu transmitido a notícia da festa de Perdões na próxima semana, alguns sócios se mostraram interessados em que a Sociedade se fizesse representar, estudando in loco uma festa da qual parece não haver nada registrado. Na sessão de ontem foi feita a indicação do meu nome para dirigir uma comitiva a Perdões, aceitei a incumbência, porém, na condição de perguntar a você maiores detalhes que pudessem favorecer a organização da viagem. Desejaria saber: 1) se haveria possibilidade de conseguir-se estadia em Atibaia mais acessível aos sócios da Sociedade de Etnografia; 2) as eventuais despesas com automovéis para ir-se a Perdões; 3) quais os dias de festas e quais seriam os fatos a serem observados, isto é, se haveria, por exemplo, congada, caiapó, moçambique, cavalhada e etc. Espero que você nos preste esta fineza, respondendo as questões em tempo suficiente para que talvez possamos organizar embaixada. Quanto a mim, não poderei estar aí no próximo domingo, de forma que gostaria que o sr. Amaral não ficasse à minha espera. Infelizmente tambem não pude ir domingo passado como tinha previsto. Saudações cordiais, Mário (SEF, doc. 95).

42 A carta de Mário, embora sugira intimidade ou amizades comuns com o correspondente, não trai a precariedade de sua situação na diretoria do Departamento com o início da gestão Prestes Maia na Prefeitura em 1938, a não ser, talvez, pela contradição entre aceitar a liderança da excursão e revelar a impossibilidade de “estar aí no próximo domingo”. Em agosto ele pediria demissão do Departamento e se mudaria definitivamente para o Rio, onde a essa altura já passava a maior parte do tempo (cf. Alvarenga; Andrade, 1983, p. 143). A correspondência publicada de Mário e Oneyda Alvarenga relata a deterioração do ambiente no Departamento de Cultura com a mudança de gestão na prefeitura, e a redução das verbas para as iniciativas começadas em 1935. Com a saída simultânea de Dina Dreyfus por ocasião da expedição Serra do Norte, em maio, e pouco tempo depois para a França, a SEF perde sua vitalidade, mesmo que Dreyfus tenha deixado um plano de trabalho orientado para a criação do “vocabulário etnográfico nacional”. A SEF morria, segundo Oneyda Alvarenga, “de inanição” (Alvarenga e Andrade, 1983, p. 145).

43 A realização da viagem a Atibaia e Perdões não é confirmada, no arquivo, por nenhum documento. Marta Rossetti Batista (2004, p. 55) informa que uma apresentação das Congadas de Atibaia em São Paulo, prevista para 2 de maio de 1938 como parte das comemorações do cinqüentenário da abolição da escravatura, foi cancelada. O contato com Conti, no entanto, se mantém intenso e resulta em uma viagem realizada a seu convite ainda no final de 1938, para assistir a congadas e cavalhadas realizadas nos festejos de Natal em Atibaia. Dessa viagem temos somente uma notícia publicada no jornal O Estado de São Paulo na véspera de natal de 1938, que informa ter sido a comitiva formada por Antonio Rubbo Müller, Luís Saia e Mário Wagner Vieira da Cunha, “[...] acompanhados de técnicos em gravação e cinematografia que procederão ao trabalho de colheita para o arquivo da referida associação [...]” (SEF, doc. 273). Outro documento – uma prestação de contas feita em 1939 – sugere a realização de mais uma viagem, mas não menciona a ida de outros membros da SEF, nem gastos com a contratação de técnicos, somente com a compra e revelação de filmes. As despesas de condução foram pagas pelo próprio representante da Sociedade (Mário Wagner Vieira da Cunha) e as de estadia pelo Prefeito de Atibaia, sr. João Batista Conti. Correram por conta da Sociedade somente os gastos com a compra, revelação e cópias dos filmes fotográficos, conforme a descriminação abaixo.

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16 films Agfa, 9X12 [...] 30 films revelados [...] 9 ampliações 16X24 [...] 444 copias [...]. (SEF, doc. 44)

44 Na correpondência recebida pela SEF há também convites de delegados para visitas (não realizadas) a lugares como: São João da Boa Vista, para os festejos do centenário da cidade (SEF, doc. 256); Aparecida do Sul, para ver a congada (SEF, doc. 134); ou São Luís do Paraitinga, onde se realizaria uma festa de São João – na fazenda do Sr. Vitalino Campos Coelho –, boa ocasião para “[...] tirar uma fita cinematográfica [...]” com “[...] todas as danças antigas, tais como Jongada de pretos, Batuque de viola, cateretê, Moçambique, Cavalhadas e demais danças antigas [...]” (SEF, doc. 264).

45 Menções a “excursões” a localidades não muito distantes de São Paulo são abundantes no corpus reunido nos arquivos da SEF, ainda que menos passíveis de acompanhamento minucioso. Para além das viagens relatadas e fotografadas por Lévi-Strauss ([1955], 1994, 1996), que incluíram excursões ao litoral, ao Paraná, ou ao norte do Estado, alcançando Goiás, somos informados, pela Revista do Arquivo, de uma ida do casal Lévi- Strauss a Pirassununga, quando fizeram sondagens arqueológicas que renderam algumas peças ao Museu de Etnografia organizado por Plinio Ayrosa e Ruy Tibiriçá na Faculdade de Filosofia (RAM nºs XXVIII e XXIX)19. Marciano dos Santos, aluno do curso de etnografia, estudou a Dança de São Gonçalo em Guarulhos, e “informou-se” sobre as mesuras da dança em “Mogi das Cruzes, Jacareí, M’Boi, Santo Amaro” (Santos, 1937, p. 116). Oneyda Alvarenga, como trabalho de conclusão do Curso de Etnografia, estudou o cateretê realizado na sua cidade natal, Varginha (Alvarenga, 1937). Mário de Andrade e Paulo Duarte fizeram, em junho de 1937, uma excursão para mapeamento de monumentos históricos por M’Boi, São Miguel e Carapicuíba (RAM nº no XXXVII) – lugar onde Mário afirma também ter observado a Festa de Santa Cruz (Andrade, 1937a, p. 55). Luís Saia apresentou pesquisas feitas em Carapicuíba e em Bertioga (SEF, doc. 68, 116, 255, 331, 344). Rubbo Muller estudou “o corso das carroças de lenha em Jundiaí”, sua cidade natal, talvez inspirado pelas carroças que Mário estudou no texto sobre a “Entrada dos Palmitos” (Boletim nº 7). O secretário de Mário, José Bento Faria Ferraz, foi enviado a Nazaré Paulista, São José dos Campos e Jacareí em busca de festas e danças populares (SEF, doc. 284). Encontramos, além disso, registros de viagens a Itapecerica, Santo Amaro, Santa Isabel e Praia Grande.

46 A proximidade da capital e a conseqüente facilidade de conciliação da etnografia com outras tarefas cotidianas eram, como recordou Lévi-Strauss ([1955], p. 103), condicionantes dessa prática que ele chamou “etnografias de domingo”. Dina Dreyfus, na aula inaugural do Curso de Etnografia, salientara que, em um país onde praticamente tudo se encontrava à espera de descrição, não era preciso ir muito longe para encontrar assuntos de pesquisa: Evidentemente, no Brasil precisa-se, antes de tudo, de um trabalho perseverante de estudos etnográficos propriamente ditos. Tanto nas regiões longínquas do interior, como nos bairros das cidades, ou nas menores aldeias, toda uma série de pesquisas etnográficas pode e deve ser empreendida: estudo da cerâmica, da tecelagem local, do estilo das casas e das características de cada um de seus elementos: teto, janelas, etc.; estudo das profissões dos ofícios... Seria impossível enumerar todos os assuntos de monografias que estão à espera de pesquisador. (Dreyfus, 1936b, p. 8)

47 Nas nossas próprias “feiras” livres, que interessantes objetos de taquara e palha, como as peneiras, os chapéus! Estudar a técnica de sua fabricação será sem dúvida interessante (SEF, doc. 4)20.

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48 Nos textos resultantes das pesquisas, um motivo que se destaca é o do aprendizado das novas técnicas de registro. Como relata Oneyda Alvarenga, às voltas com as desventuras e subterfúgios envolvidos na filmagem de um cateretê especialmente para o registro: Acompanha esta monografia um filme Pathé-Baby de 20 metros, sem pretensões a documento sério, simplesmente a título de curiosidade. Foi tirado durante o cateretê nela descrito, apresentando alguns momentos da dança, e exclusivamente pra agradar os dançadores, entusiasmados com o fato de se verem cinematografados. Nossa intenção era tomar um filme direito, caso tudo se realizasse como desejávamos. Não se realizou. Faltaram as damas, o que desvirtuou o cateretê; e o terreiro muito pequeno em que teve lugar, apertado a um barranco e a um depósito de lixo, não permitia a movimentação necessária para se pegar bem os dançadores. Focalizamos apenas alguns momentos, e mesmo assim mal. Acrescente-se a tudo isso que a luz não era favorável e o fotógrafo que nos auxiliou nunca mexera com uma Pathé-Baby, nem nunca se encontrara em semelhantes arranjos etnográficos... O passeado que no filme se vê mais de uma vez, foi nas outras repetido por solicitação nossa, a fim de que o fotógrafo apanhasse o salto do violeiro ao voltar, o que afinal não conseguiu. No filme entra também um outro violeiro que não fez parte da dança que observamos. Estava na assistência meio desapontado por não se mostrar um pouco, e o fotógrafo tomou-o para agradá-lo. Certa de que o filme não daria resultado nenhum vista a nenhuma prática do nosso ajudante, permitimos esse enxerto. O que resultou afinal em erro, porque muito embora muito deficiente, o filme permite ver bem as características essenciais da dança: o sapateado, as palmas, a volta, e os violeiros cantando a moda (Alvarenga, 1937, p. 68-69).

49 Mário de Andrade, em “O Samba Rural Paulista” (1937), reflete por sua vez sobre a dificuldade de gravação do folclore musical brasileiro, quando o excesso de sensibilidade do microfone pode se transformar numa insensibilidade do ponto de vista do critério folclórico: o pesquisador deve mediar as relações entre homens e máquinas, impedindo que a câmera e o microfone inibam o cantor, ou que a voz humana desapareça sob o som dos tambores no registro mecânico. Há que recorrer à gravação por meios mecânicos, disco e filme. Convém todavia não esquecer as deficiências das insensíveis máquinas registradoras. Pelas experiências já feitas na Discoteca Pública, para casos mais ou menos idênticos, os cantadores, os solistas, as figuras vocalmente principais do samba, como da Congada ou do cateretê, perdem totalmente ou quase, a perfeição rítmica e a facilidade de entoar, quando parados e postos à parte da dança. Não é pois possível, ou será dificílimo, pô-los junto a um microfone, pra que cantem fora da dança ou sem ela. É o microfone que terá de ir a eles e não eles virem aos microfones. Mas, pressuposto um microfone móvel, que pelo ar fosse conduzido junto à boca dos cantadores principais, e se movesse com estes, como estes estão misturados na dança aos instrumentos de percussão e dominados pelo ruído, o insensível microfone registraria tudo, um estrondo ritmado em que não se poderia distinguir bem a melodia e muito menos o texto. A deficiência continuaria bem grande (Andrade, 1937, p. 45).

50 Segue-se uma longa consideração técnica sobre as desvantagens de cada uma das soluções testadas, que não implicam uma recusa dos meios mecânicos, antes uma complementação entre os registros feitos por máquinas, e aqueles feitos por observadores humanos. Por agora, pelo menos, julgo que o melhor processo é colocar o microfone como se fosse um observador humano qualquer, isto é, a distância pequena do samba, e registrar assim, com microfone imóvel. E completar o registro obtido pela colheita e observações de pesquisadores especializados. O registro não será no caso o mais importante. Será um complemento das colheitas por meios manuais, destinado

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apenas a fixar o infixável por meios não mecânicos: timbre, sonoridade geral, possivelmente algumas variantes e (filme) o aspecto geral e particularidades individualistas da coreografia (idem, p. 45).

51 Essas dificuldades haviam sido discutidas por Dreyfus no curso de etnografia: O FONÓGRAFO – é ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito. Imperfeito, porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do aparelho e executar ou cantar. Exige, principalmente entre populações indígenas, um constrangimento tão grande, que às vezes é absolutamente impossível consegui-lo. Se, pois, tem a grande vantagem de ser extremamente fácil de manejar, apresenta o inconveniente de encontrar resistência da parte do observado. O FILME SONORO – apresenta o grande inconveniente de custar muito caro, o que o torna proibitivo a não ser em grandes e poderosas expedições. [...] Em compensação, obtêm-se anotações perfeitas. Em primeiro lugar, não é necessário recorrer á boa vontade do sujeito: o operador pode esconder na mão o microfone, ligado à máquina por correias longas, e colocar-se junto ao executante sem que este perceba o truque. Depois, registra ao mesmo tempo o canto, a música, danças, instrumentos, personagens, enfim, um conjunto completo. (SEF, doc. 10)

52 O próprio Lévi-Strauss, lembrou em 2005 de seu incômodo com o aparelho fotográfico em campo: Quando de minha primeira expedição entre os Bororo, havia levado uma câmera portátil muito pequena. E ocorreu-me de tempos em tempos de apertar o botão e tirar algumas imagens, mas perdi o gosto muito rapidamente, porque quando se tem os olhos por trás de uma objetiva de câmera, compreende-se ainda menos (Lévi-Strauss, 2005, p. 21-22 – tradução minha.21

53 No “Prólogo” a Saudades do Brasil (1994, p. 9), a mudança no sentido das imagens para o fotógrafo após seis décadas do registro é entendida como uma “incapacidade da objetiva”:

54 Examinadas de novo, essas fotografias me dão a impressão de um vazio, de uma falta daquilo que a objetiva é intrinsecamente incapaz de captar. Percebo o paradoxo que há, de minha parte, em publicá-las em maior número, mais bem reproduzidas e muitas vezes enquadradas de um modo que não o permitia o formato de Tristes Trópicos, como se, ao contrário do que acontece comigo, elas pudessem oferecer substância a um público, não apenas porque ele não esteve lá e deve contentar-se com esse mudo comércio de imagens, mas sobretudo porque tudo isso, revisto no local, se mostraria irreconhecível e até mesmo, sob muitos aspectos, simplesmente não existe mais.

55 A dimensão do tempo recuperada retrospectivamente por Lévi-Strauss com relação ao registro fotográfico parece reverberar um outro grande motivo que perpassava os trabalhos realizados e apresentados no quadro da Sociedade de Etnografia e Folclore: o da perda ou desaparição das formas culturais, especialmente por conta do contato com “o progresso e o internacionalismo”, na definição de Mário. Esse tema percorre praticamente todos os trabalhos e, na medida em que é organizado por uma temporalização da diferença cultural, está também muito disseminado na produção antropológica na longa duração (Fabian, [1983]). No caso da pesquisa social realizada no quadro do Departamento de Cultura, ele articula os problemas de pesquisa da SEF aos da Divisão de Documentação Histórica e Social, articulando-os às pesquisas realizadas no quadro da Divisão de Documentação Histórica e Social do mesmo Departamento de Cultura na cidade de São Paulo. “O problema recorrente da procura das origens ou

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raízes [...]”, identificado por Rubino (1995, p. 495), tem como seu espelho o do destino da cidade em expansão.

56 A diferença cultural entendida como distância no tempo construía como “outro” não só o “folclore” visitado fora de São Paulo, mas ainda o passado anterior ao crescimento econômico e demográfico da capital: patrimônio arquitetônico, personagens, práticas e costumes, genealogias e reconstruções da paisagem do “[...] nosso pobrezinho passado colonial [...]”, nas palavras de um vereador (RAM nº XXXVII, p. 241-2), que aos poucos desaparecia na paisagem da metrópole. Essa São Paulo era recuperada em outro conjunto de estudos publicados na Revista do Arquivo, cujo sentido mais amplo pode ser recuperado em Rubino (1995). Esses trabalhos, realizados em geral por membros do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo como Afonso d’Escragnole Taunay e o próprio Plinio Ayrosa, lastrearam a “Campanha Contra o Vandalismo e o Extermínio” encetada por Paulo Duarte, então deputado estadual, pela defesa dos “monumentos históricos” paulistas. A campanha foi amplamente noticiada na Revista, a começar por um relato de Paulo Duarte no Estado de São Paulo, onde ele narra uma “excursão” junto a Mário de Andrade pelos arrabaldes de São Paulo, em meados de 1937, quando o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional funcionava em caráter experimental. Aqui, a associação entre imigração e perda cultural se manifesta de forma explícita. Mário de Andrade, nomeado pelo Ministério da Educação, seu delegado em São Paulo para o tombamento dos monumentos históricos sobre os quais, de acordo com legislação recente, a União tem de velar, convidou-me a ancompanhá-lo nas excursões que, para esse fim, principiou. O trabalho teve começo sábado último. Dia de desânimo para os dois e para todos aqueles que amam um pouco as coisas do nosso passado. Fomos a Mboy e a São Miguel e, nesses velhos lugares, não fizemos outra coisa senão engrossar nossa desilusão. Íamos mais ou menos magoados, desde Carapicuíba velha, onde, para chegar, nem jeito existe, tal o mau estado do caminho estreito que liga o antigo aldeamento à estrada de Cotia. O quadrado do casario, sempre o mesmo das antigas aldeias que necessitavam defender-se contra o índio, a maior parte em ruína ou devastado... Um telhado novo mostrava, pelas pobres relíquias da velha Piratininga, a indiferença do japonês, que aproveitou as paredes de pau a pique, rasgando nelas a porta larga de uma garagem adventícia coberta de telha francesa... (RAM nº XXXVII, p. 235-236)

57 No arquivo da Sociedade de Etnografia e Folclore, a questão dos “monumentos históricos” não é tão freqüente, surgindo em torno da “habitação” nas aulas de Dina Dreyfus e se aproximando, portanto, de uma perspectiva “etnográfica”; na conferência de Luis Saia sobre arquitetura popular referida acima e numa pequena nota de Mário de Andrade intitulada “Roteiro de pesquisas a fazer” (SEF, doc. 357).

58 A própria citação de Mário de Andrade que serve de epígrafe a este artigo permite uma associação entre os monumentos jesuíticos que interessavam do ponto de vista do patrimônio e o folclore de “origem jesuítica”. Isso não deve, contudo, levar a crer que a espacialização do tempo que percorria o projeto de recuperação do patrimônio folclórico fosse muito rígida. No artigo sobre o “samba rural paulista”, Mário ironiza a quebra de suas expectativas na chegada a Pirapora: O mais humorístico do caso é que o grupo de samba que estudei em Pirapora, tinha ido de São Paulo. É verdade que a minha viagem não se destinara especialmente a isso, mas não tem dúvida que parei uma noite em Pirapora, fatigadíssimo e poento, pra colher coisas paulistanas que se realizam às minhas próprias barbas desatentas. O chefe deste samba paulistano – o “dono-do-samba” como é chamado – era um preto já velhusco, de seus 60 anos ou mais, se chamando Gustavo Leite, pedreiro.

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Disse morar na rua Santana do Paraíso, 26, distrito da Liberdade. [...] E embora dançassem com muito barulho e entusiasmo, às 23 horas o samba estava praticamente acabado. Pinga, sexo, falta de emulação, decadência talvez. Pude partir sem remorso (Andrade, 1937, p. 39).

59 A “decadência”, que Mário sutilmente põe em questão nesse trecho, articula o duplo sentido da proximidade desses “arrabaldes”: facilidade de pesquisa e desaparição iminente. Mário Wagner Vieira da Cunha, trabalhando nesses termos, creditava a decadência da festa de Pirapora, para ele certa, ao “desenvolvimento das comunicações”. Agora, se podia viajar [...] cômoda e economicamente de ônibus [...] decaiu extraordinariamente o espírito de grupo. Não há mais romarias. É fácil a cada um vir sozinho por sua conta e risco. [...] Perdeu o caráter de provação. Deixou de fazer parte da promessa (Cunha, 1937, p. 31-32).

60 A sua descrição do processo de “decadência” merece uma transcrição, pelo resumo das participações dos diversos atores na transformação da festa. [...] cresceu o número de pessoas que aí vieram somente atraídas pela festa profana. Tais indivíduos influem de dois modos principais na festa. Primeiramente, contribuem para a decadência da festa. São elementos estranhos a se introduzirem no samba. Formam-se entre os moços e moças de cor negra grupos de sambadores que não se filiam a nenhum batalhão e que estão em todas as festas realizadas nas cidades próximas de São Paulo. Cantam e dançam mal o samba. Não guardam tradições. Também essa massa de indivíduos alheios ao culto do Santo, tende a exagerar os aspectos de licenciosidade da festa. São os meneios imorais do samba o que mais aplaudem. É a oportunidade de gestos livres que procuram nesses dias. Um negro velho nos observava que não se dança mais um “samba limpo” em Pirapora. Queria referir-se ao fato de que se esfregam muito ao dançar. Finalmente, é a introdução desses indivíduos que se deve atribuir, conjuntamente com a quebra do espírito de grupo, o aparecimento de indivíduos ‘valentões’, promotores de desordem. [...] esses elementos estranhos ao dever piedoso vão imprimindo à festa um cunho cosmopolita. São jogadores e vendedores a introduzir tipos de barraca, artigos e diversões que há por toda parte. São os bailes com músicas modernas. São as próprias meretrizes de nacionalidade estrangeira a passearem seus vestidos de seda e suas pernas desnudas muito brancas nas ruas da pequenina cidade. Vão-se apagando os traços peculiares da festa. (Cunha, 1937, p. 33).

61 Marciano dos Santos abria seu trabalho sobre a Dança de São Gonçalo em Guarulhos no mesmo tom, embora com menos detalhes: São Paulo, apesar de sua crescente prosperidade cultural não dedicou, até agora, senão superficialmente, o cuidado e estudo que merecem as manifestações religiosas e tradicionais dos humildes e tão mal conhecidos habitantes das nossas zonas rurais. Este trabalho, – se é que assim pode se chamar a esta simples mas honesta descrição – é o registro de um costume tradicional prestes a desaparecer tragado pela miscelânia dos hábitos novos que vêm das metrópoles (Santos, 1937, p. 85).

62 Tudo isso não quer dizer que não se tenha feito pesquisas de cunho “etnográfico” ou “folclórico” na cidade de São Paulo. O problema reconhecido pelos pesquisadores que nisso se empenhavam era apenas que a “decadência” reconhecida no folclore das proximidades seria, segundo a lógica que eles reconheciam no processo da perda cultural, ainda mais grave na cidade “lustrosa” – centro irradiador do “progresso” e do “internacionalismo”. As primeiras investigações sobre o “samba rural”, Mário de Andrade as havia feito no carnaval em São Paulo: após anotações feitas em 1931 e 1933 “por desfastio de amador”, ele diz ter procurado fazer anotações mais sérias no

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carnaval de 1934, mas o ambiente da cidade já teria iniciado o seu processo de corrosão cultural, com resultados parecidos aos registrados por Mário Wagner em Pirapora. Pelo Carnaval de 1934, voltei ao mesmo lugar, animado de melhores intenções folclóricas. Infelizmente o grupo se desagregara, ou deixara de vir lá da sua terra. São Paulo era inóspito para a folia deles. Em todo caso uns três ou quatro remanescentes, e mais negros chamados pela tradição do lugar, tentavam o samba. Tentaram no domingo por umas duas horas, no máximo. Depois tentaram na terça- feira com um bocado mais de sucesso. Mas a coisa não ia mesmo, e no Carnaval seguinte ninguém estava mais lá [...] Embora o samba estivesse bastante animado, soube que já decaía dos anos anteriores. Não só o grupo era menor, como a liberdosa irreverência com que gente estranha, brancos da Capital, se intrometiam na dança, atrapalhava e desolava os dançadores verdadeiros (Andrade, 1937, p. 38).

63 Da cidade de São Paulo e de seus arredores trata também a primeira conferência na SEF concernente às religiões afro-brasileiras, feita pelo professor da Faculdade de Direito, Dalmo Belfort de Mattos. O prognóstico para a população de origem africana não era dos melhores: “Afirma ser extremamente recente a afluência negra em São Paulo, só tendo se tornado importante no período 1850-1880. E tendendo a diminuir rapidamente, devido ao alto coeficiente de mortalidade afro-planaltina”. A religião praticada na cidade de São Paulo também não seria das mais “legítimas”: Afirma, depois, estarmos em presença quase exclusiva de embusteiros. E que os feiticeiros, crentes na eficácia do ritual que praticam, só se encontram em raras localidades, pelas zonas velhas do Estado. [...] E a inexistência de um culto devidamente organizado (Boletim nº 5).

64 Não é de surpreender, portanto, que não conste nos questionários enviados para o Estado a localidade “São Paulo”, nem os nomes de bairros da cidade. Na linha de estudo dos questionários, encontramos apenas uma referência de Nicanor Miranda – que logo se tornaria presidente da SEF – a um inquérito de “superstições” realizado nos Parques Infantis administrados pelo Departamento de Cultura em junho de 1938: As superstições recolhidas de acordo com a técnica aconselhável e que serão objeto de uma comunicação nossa à Sociedade de Etnografia e Folclore de São Paulo, já sobem a 200 e são da mais variada espécie, como podeis ver: “Quando for jogar futebol amarre a ponta da camisa e dê uma dentada no nó, para não perder o jogo”. “Não faça exercícios de mãos à nuca e nem aproxime os cotovelos, porque a mão morre”. “Enterrando um Santo Antonio no ‘goal’ não há perigo de varar uma bola sequer”. "Quando entrar no mato para não ser picado por cobra, levar três dentes de alho”. “Pentear o cabelo à noite, morre a mãe.” “Quando uma pessoa vai espirrar e olha para outra pessoa, se esta for mesquinha, avarenta, não espirrará; se for boa, espirrará”. (RAM XLVIII, p. 83-84)

65 A interrupção precoce dos projetos do Departamento de Cultura obriga a nos contentarmos com as projeções feitas para um futuro que não aconteceu, sem que se possa falar na consolidação de uma direção ou de um resultado final para as suas pesquisas. O campo das ciências sociais em São Paulo, além disso, se reconfiguraria rapidamente com a entrada de novos personagens em cena, como Donald Pierson, Roger Bastide e Herbert Baldus, que trouxeram consigo novas questões e objetos de interesse. A progressiva profissionalização da pesquisa social a partir da década de 40 e a marginalização dos estudos de folclore nas universidades brasileiras (cf. Vilhena, 1997) também podem condicionar uma leitura dessas pesquisas, especialmente as de folclore, como incipientes ou amadoras. Devemos nos lembrar, no entanto, que esses

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mesmos rótulos foram utilizados por membros da Sociedade de Etnografia e Folclore para qualificar uma parte da pesquisa existente nessas áreas: Mário de Andrade falou, na conferência de abertura do curso de etnografia, que “[...] estamos num país onde qualquer cantora de canções populares, deformada pelas necessidades de palco, se intitula de ‘folclorista’!...” (SEF, doc. 3). Isso não impediu que a Sociedade pusesse as acusações de parte, na tentativa de agregar e orientar apoiadores e participantes “não especializados” no seu projeto de cientifização e profissionalização da pesquisa “etnográfica” e “folclórica” no Brasil.

66 Embora sujeita às discussões e tensões recuperadas há pouco, é nítida a resistência relativa a pesquisas “etnográficas” e “folclóricas” na cidade de São Paulo, lida preferencialmente sob as lentes dos levantamentos estatísticos e dos parâmetros da “antropologia física”. No que se refere às “tradições”, a cidade era vista como local de passado saudoso e de futuro incerto e, portanto, como centro irradiador da ameaça aos “arrabaldes” estudados pelos folcloristas no tempo livre. Nos subterrâneos das divisões geográficas e disciplinares, contudo, os processos de “imigração” e de “assimilação” mapeados pelos levantamentos na cidade estavam ligados ao projeto de recompor percursos históricos de “reminiscências”, “sincretismos” e “traços” de origens diversas, exumados nas fontes escritas ou registrados nas festas, danças e ritos visitados nos “arredores” e no “interior”.

67 Na conjunção de uma profissionalização em processo, de uma cidade vista como “inóspita” para o “folclore” e de uma série de acontecimentos que veio a inviabilizar o prosseguimento de seus trabalhos, a experiência da Sociedade de Etnografia e Folclore parece ser melhor compreendida como um primeiro encontro desses pesquisadores em formação com as pessoas, práticas e objetos que procuraram estudar, e com as noções, estratégias e instrumentos que os apoiariam nas suas explorações um momento de aprendizagem.

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NOTAS

1. Refiro-me aqui especialmente aos trabalhos de Lopez (1972, 1995), Mello e Souza (1980), Toni (1985), Sandroni (1988, 2002), Carlini (1994), Vilhena (1997), Travassos (1997, 2002), Grupioni (1998), Peixoto (1998), Raffaini (2001), Corrêa (2003), Rossetti Batista (2004) e Nogueira (2005). 2. Para um acompanhamento mais detalhado dos objetivos e das iniciativas do Departamento de Cultura na gestão Mário de Andrade, ver Toni (1985), Raffaini (2001) e Nogueira (2005). 3. Embora Dina Dreyfus utilizasse nesse momento o nome de seu então marido, Lévi-Strauss, tenho optado por chamá-la pelo seu nome de solteira, retomado após o divórcio. Isso contribui para separarmos as atividades dela das de Lévi-Strauss, e restringe o uso da expressão “casal Lévi-Strauss”, recorrente em relatos e mesmo em bibliografia, às suas atividades e projetos comuns. 4. Para mais referências sobre o projeto estético e político – e, poderíamos dizer, também científico – de Mário de Andrade, ver especialmente Lopez (1972), Lafetá (?), Peixoto (2000), Travassos (1997, 2002), Amoroso (2004), Sandroni (1988). 5. As referências a documentos depositados nos arquivos da Sociedade de Etnografia e Folclore serão identificadas segundo o modelo (SEF, doc. 000). Artigos publicados na Revista do Arquivo Municipal serão citados individualmente, mas as notícias reproduzidas nessa publicação, por nem sempre informarem a fonte de maneira precisa, serão identificadas segundo o modelo (RAM, nº XXX, p. 0), constando uma referência à publicação e data originais quando possível. 6. O Manuel d’Ethnographie foi organizado em 1947 por Denise Paulme a partir das transcrições, feitas por alunos, de cursos ministrados por Mauss no Instituto de Etnologia e no Museu do Homem a “etnógrafos leigos” entre 1935 e 1939. 7. Em depoimento ao Projeto História da Antropologia no Brasil, Antonio Rubbo Müller identifica o Curso de Etnografia de Dina Lévi-Strauss como o primeiro curso que tratava desse tema. 8. Uma cronologia das atividades da Sociedade de Etnografia e Folclore pode ser encontrada no catálogo do fundo Sociedade Etnografia e Folclore, no seguinte endereço: http:// www.centrocultural.sp.gov.br/livros/pdfs/sef.pdf. 9. Também Lévi-Strauss incluiria, em apêndice da sua primeira “Contribuição para o estudo da organização social entre os Bororo” (1936) uma discussão sobre o “folclore indígena” e sua relação com a nominação nessa população, e uma breve descrição da “dança do marid’do” em nota. 10. Este último é relembrado periodicamente por Lévi-Strauss como primeira referência na sua aproximação à etnologia (Lévi-Strauss, [1955] 2004; Éribon e Lévi-Strauss, 1988; Perrone-Moisés, 1999). 11. Lévi-Strauss mencionou muito en passant esses levantamentos, em Tristes Trópicos ([1955] 2004): “Havia também as crendices e superstições cujo mapa era interessante fazer: cura do terçol pela fricção de um anel de ouro; repartição de todos os alimentos em dois grupos incompatíveis: ‘comida quente, comida fria’. E outras associações maléficas: peixe e carne, manga com bebida alcoólica ou banana com leite. (Lévi-Strauss, [1955] 2004, p. 105). 12. Em fevereiro de 1938, sai de São Paulo a Missão de Pesquisas Folclóricas, rumo ao Nordeste, seguindo as orientações de Mário de Andrade a partir de suas viagens de 1927 e 1928, e tendo o objetivo de coletar material fonográfico e filmográfico do maior número possível de manifestações populares. Os resultados da Missão são, hoje, o maior material concreto relacionado às atividades da Sociedade e que até hoje é consultado e periodicamente recuperado. Para saber mais sobre a missão, ver Toni (1985) e Carlini (1994). 13. Encontramos hoje, nos arquivos da Sociedade, 850 questionários recebidos, dois quais 842 foram tabulados, e somente 8 recusados. Pode-se ver, no catálogo já citado, os municípios de onde vieram as respostas.

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14. Trabalhos como: “Padrão de vida dos operários da limpeza pública de São Paulo”, de Lowrie, “Padrão de vida em Minas Gerais”, de Júlio Paternostro; “Inquérito sobre alimentação popular em um bairro de São Paulo”, G. H. de Paula Souza, A. de Ulhôa Cintra e Pedro Egydio de Carvalho; “Um aspecto da mortalidade infatil em São Paulo”; “Ensaio de um método de estudo de investigação do nível social de S. Paulo pela distribuição da profissão dos pais dos alunos das escolas primárias públicas”; “Assistência filantrópica na cidade de S. Paulo”, também de Lowrie. 15. Cf. carta de Dina Dreyfus a Jean Marx, responsável pelo Service des Oeuvres do Ministério das Relações Estrangeiras na França, transcrita em Sandroni, 2002, p. 242. 16. Puíta é um dos nomes da cuíca, instrumento musical. Dandão é o nome de uma série de coreografias executadas durante os fandangos dançados no sul do Brasil. 17. Pseudônimo de Pio Lourenço Corrêa (1875-1957), marido de uma prima de Mário de Andrade, era fazendeiro e estudioso de lingüística e ciências naturais. Manteve uma longa correspondência com Mário de Andrade, organizada por Denise Guaragna e publicada recentemente (SESC/Ouro sobre Azul, 2008). Mário costumava ir à sua fazenda para descansar; numa dessas férias iniciou a redação de Macunaíma (1927). 18. Embora este seja um tema muito pontual entre as reflexões que as observações do Brasil suscitariam no autor de Tristes Trópicos, Lévi-Strauss chegaria a viagens aos “arredores” de São Paulo com o grupo do Departamento, evocando, aliás, o interesse de Mário nas “reminiscências das festas de maio” frazerianas, e as batalhas entre mouros e cristãos nas cavalhadas filmadas: “Finalmente, nos arredores de São Paulo, podia-se observar e registrar um folclore rústico: festas de maio, quando as aldeias enfeitavam-se de palmas verdes, combates comemorativos fiéis à tradição portuguesa, entre ‘mouros’ e ‘cristãos’, procissão da ‘nau catarineta’, navio de papelão armado com velas de papel, romaria a distantes paróquias protetoras dos leprosos onde, entre os eflúvios devassos da ‘pinga’ – aguardente de cana-de-açúcar muito diferente do rum e que se toma pura ou em ‘batida’, quer dizer, misturada com suco de limão – bardos mestiços, de botas, vestidos de ouropéis e fantasticamente embriagados, provocavam-se ao som do tambor para duelos de cantigas satíricas” (Lévi-Strauss, [1955] 2004, p. 105). 19. Encontramos em Saudades de São Paulo fotos de Dina Dreyfus manipulando uma sonda arqueológica numa plantação de café, e também de Mário de Andrade indagando sobre folclore em uma das viagens realizadas junto com o casal Lévi-Strauss (Lévi-Strauss, 1996, p. 11 e 19). 20. Em Tristes Trópicos, Lévi-Strauss ([1955] 2004, p. 104) desenvolveria as observações desses objetos nos mercados: “Os produtos à venda conservavam um estilo mais puro: ‘peneiras’ para farinha de mandioca de feitura tipicamente indígena, formadas por um trançado largo de fios de taquara e cercadas por ripas; ‘abanicos’, abanos para o fogo, também herdados da tradição indígena, e cujo estudo é divertido, pois cada tipo representa uma solução engenhosa para transformar, pelo trançado, a estrutura permeável e emaranhada de uma folha de palmeira numa superfície rígida e contínua, adequada para deslocar o ar ao ser agitada com violência. Como há diversos modos de resolver o problema e diversos tipos de folhas de palmeira, é possível combiná-los para determinar todas as formas concebíveis e em seguida colecionar os modelos que ilustram esses pequenos teoremas tecnológicos”. 21. “Lors de ma première expédition chez les Bororo, j’avais emporté une très petite caméra portative. Et il m’est arrive de temps em temps de presser le bouton et de tirer quelques images, mais je m’en suis très vite dégoûté, parce que, quand on a l’oeil derrière um objectif de caméra, on ne comprend encore moins”.

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AUTOR

LUÍSA VALENTINI

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/USP

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Os Estados da Arte Dissidente na Continuidade com a Tradição Oaskeira

Wagner Lins Lira

“O mundo da dinâmica é o mundo do divino” (Prigogine & Stengers, 1986, p. 204).

1 Localizada no Município de Riacho das Almas, pertencente ao estado de Pernambuco, essa irmandade vem desenvolvendo seus trabalhos com ayahuasca desde o ano de 1998, quando inicialmente foi um dos núcleos representantes do Centro Espiritualista União do Vegetal (CEUDV), uma dissidência udevista surgida em Manaus por volta do ano de 1995. A SEUDV é representada atualmente pelo mestre Sebastião Patrício de Barros e recebe em média vinte pessoas por sessão. Como em toda esfera udevista, este grupo tem como lema a luz, a paz e o amor. O trabalho espiritual desenvolvido nessa sociedade é conduzido e norteado a partir dos ensinamentos do mestre José Gabriel da Costa, o fundador da União do Vegetal. Os rituais com ayahuasca na SEUDV giram em torno da profunda reflexão pessoal dos adeptos que os leva às mudanças de atitudes individuais e coletivas. Seus participantes encaram o Vegetal como um caminho possível no encontro com o divino. Preocupam-se com o entendimento da natureza e do universo, em seus múltiplos sentidos. Como em toda esfera ayahuasqueira, o chá é considerado um “grande professor”, que com sua “pedagogia peculiar”, ensina o ser humano a viver na contemporaneidade.

2 Antes de abordarmos as atuais mobilizações desses oaskeiros1 , se faz necessário um curto levantamento histórico para que o leitor possa ficar a par das diversas fases percorridas pelos fundadores desse “sistema udevista”. Ao longo dessa comunicação, iremos considerar como sistema udevista todo grupo derivado da linha doutrinária estabelecida pelo mestre José Gabriel da Costa, o fundador do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal. Veremos que a SEUDV apresenta-se como um novo sistema, originário de uma dissipação e que procura não se distanciar de sua matriz fundadora2. A dissidência, nesse caso, se dá no âmbito institucional e não no campo

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espiritual, visto que, toda a irmandade procura seguir à risca as doutrinas e ensinamentos estabelecidos pelo mestre Gabriel.

1.1 O começo

3 Em meados do mês de abril do ano de 1991, o atual representante da SEUDV mestre Patrício e sua esposa, Yonny Barros, tiveram o primeiro contato com o chá ayahuasca por meio da União do Vegetal no núcleo Pau D´arco em Terra Vermelha (PE). Depois desse encontro com a beberagem o casal passou a freqüentar as sessões desse núcleo udevista durante quatro anos seguidos, nos quais, chegaram a se filiar no quadro do Corpo Instrutivo da mesma instituição. Algumas divergências pessoais e institucionais permitiram o futuro distanciamento do mestre Patrício e de sua esposa Dona Yonny. Os relatos indicam que o suposto “rigor”, exercido por alguns membros da instituição, teria sido um dos fatores primordiais para tal afastamento. Isso, porque tudo era do modo deles, como eles queriam. Só eles tinham a razão e a certeza da verdade. Eram muito radicais nesse sentido. Muito autoritários e isso desgostou muita gente. Os primeiros que saíram formos nós, que saímos e ficamos dois anos afastados. Saímos em 1995 e um ano depois que nós saímos (1996), também saíram outros. (Mestre Patrício)

4 Goulart (2004, p. 20) afirma que o campo ayahuasqueiro brasileiro manifesta-se de acordo com o conceito de campo formulado por Pierre Bourdieu (1990, p. 119), para quem os campos sociais, sejam eles médicos, estéticos, políticos ou religiosos são espaços onde ocorrem inúmeros jogos que envolvem disputas de poder, na definição das regras desses mesmos jogos. As entidades ayahuasqueiras, segundo Goulart (2004, p. 20), constituem partes distintas de um mesmo campo religioso, que disputam entre si para definir as práticas ideais referentes à legitimidade social desse campo específico. Bourdieu (1990), segundo Goulart (2004, p. 20), analisa minuciosamente a relação existente entre sistemas religiosos e estrutura social. Todavia, a análise desse campo torna-se possível mediante a demarcação de fatores externos, que nos remete à estrutura social, e das interações individuais, como relações de poder e força, que podem interferir nos grupos inseridos nesse campo.

5 As regras do jogo já foram lançadas, então cabe às entidades “dançar conforme a música”, procurando reforçar suas regras, tornando-se cada vez mais rígidas, institucionalizadas, reservadas e de acesso restrito. As práticas simbólicas deixadas pelos mestres fundadores são tidas como referenciais por serem consideradas verdades únicas e incontestáveis. A legitimidade passa a ser alegada de acordo com essa proximidade tradicional. Logicamente, dentro desse jogo são comuns as acusações entre os grupos e a disputa pelas legitimidades das irmandades que, na maioria das vezes, concorrem entre si jogando esse jogo do campo, pensado por Bourdieu (1990). Obviamente existem àqueles que discordam dessas regras e interpretam as atitudes dos líderes representantes das irmandades, como autoritárias, surgindo então acusações internas ao grupo como, por exemplo, a de monopólio das verdades, rigor e intolerância para com os demais adeptos “subordinados”. Cria-se então um pequeno foco de tensão, devido à insatisfação de alguns, mediante as relações de força e de poder dos líderes representantes, que nada mais fazem do que cumprir com as regras do jogo. O sistema religioso pode ser bruscamente afetado devido a tais fatores internos, geradores de dissipações.

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6 Em nosso caso particular, no ano de 1997, as pessoas que se afastaram dos quadros que preenchiam no núcleo udevista Pau D´arco, cerca de doze adeptos, decidiram unir forças para adquirir o Vegetal. Alguns destes eram mestres antigos da União que também pediram afastamento devido a determinadas insatisfações pessoais e ideológicas com os líderes da instituição. Entre eles, encontrava-se o mestre Raimundo Neto, um dos que trouxeram o Vegetal para o estado de Pernambuco na década de 19803. Esses oaskeiros recém desvinculados tentaram conseguir a bebida através de alguns contatos com grupos ayahuasqueiros alternativos na Paraíba, mas não foram bem sucedidos. Ainda em 1997 eles estabeleceram contato, em Recife, com o médico Régis Alain Barbier, o fundador da Sociedade Panteísta Ayahuasca4. Barbier é um ex- udevista que também se afastou da UDV para fundar um grupo próprio e auto- suficiente na produção da bebida. Então surgiu a orientação desse médico, Barbier, para procurarmos Asplinger, o mestre geral do Centro Espiritualista União do Vegetal (CEUDV) localizado em Manaus. Asplinger também tinha tido problemas com a UDV, por sinal foi ele quem criou um dos núcleos da UDV em Manaus do zero até a construção final. Ele nos forneceu o Vegetal, pois já trabalhava por conta própria há uns dois anos com o CEUDV, um grupo dissidente. Foi assim que começamos. (Mestre Patrício)

7 Então em 1998 foi inaugurada, em Riacho das Almas (PE) mais uma filial do Centro Espiritualista União do Vegetal que na época tinha representações em Fernando de Noronha, Salvador, São Paulo e Belo Horizonte. A sede, em Manaus, liderada pelo mestre Asplinger, era a grande responsável pela distribuição do Vegetal para os demais núcleos espalhados pelo país. Labate (2004) ao analisar as novas modalidades de consumo da ayahuasca nos centros urbanos, elabora o conceito de rede ayahuasqueira na tentativa de acompanhar os fenômenos emergentes nesse campo religioso. Essa rede, segundo a autora, seria um espaço construído pelas entidades ayahuasqueiras em geral, que regulam o uso e a distribuição do enteógeno, por meio de suas práticas tradicionais elaboradas pelos principais líderes fundadores5. É comum à rede ayahuasqueira o transito constante de idéias, músicas, pessoas e substâncias envolvidas nas práticas do campo ayahuasqueiro. A relação entre os componentes desse campo é marcada pela sacralidade da bebida assim como por disputas de poder direcionadas à legitimidade de cada grupo, como vistos em Bourdier (1990) e Goulart (2004).

8 Podemos observar, no caso dos dissidentes em questão, a construção de algumas ramificações emergentes nessa rede de relações e que permitem a manutenção de um tecido cultural vivo, no qual também notamos um constante fluxo de pessoas, idéias e substâncias. Veremos mais adiante, que os pontos que ampliam essa rede são formados a partir do surgimento de novos grupos, quase sempre oriundos de dissipações das matrizes comuns ayahuasqueiras, principalmente daimistas e udevistas. No caso específico dos núcleos representantes da dissidência denominada CEUDV, a administração e o consumo desse chá sempre foram mantidos e reservados aos padrões doutrinários estabelecidos pelo mestre José Gabriel da Costa, líder espiritual e fundador da União do Vegetal, mesmo as irmandades estando fora da instituição oficial CEBUDV.

9 O núcleo pernambucano do CEUDV continuou com os trabalhos, inicialmente, com poucas pessoas, depois outros foram tomando conhecimento até que passaram a receber cerca de trinta pessoas por sessão. As reuniões sempre aconteceram na propriedade do Patrício, em Riacho das Almas (PE). Inclusive o templo, o refeitório, os banheiros, a fornalha onde é cozido o Vegetal, foram por ele construídos com recursos

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próprios. Patrício não chegou a ser mestre na UDV. O CEUDV em Riacho das Almas, inicialmente, foi representado pelos mestres Asplinger e Raimundo Neto. Patrício não era mestre, mas um discípulo empenhado e conhecedor de muitos segredos do Vegetal, devido às suas vivências nas doutrinas do mestre Gabriel. Isso fez com que esses mestres mais antigos dessem a permissão para que Patrício orientasse os trabalhos como mestre representante6 por volta do mês de agosto de 2001. O acordo foi feito até pela necessidade de preencher os quadros e as funções do núcleo em formação, na época uma filial do CEUDV.

10 A representação do CEUDV, em Riacho das Almas, durou quase nove anos. No mês de novembro de 2007 outras insatisfações e acusações pessoais decorrentes de algumas discordâncias com a sede geral, permitiram o afastamento do mestre Patrício e da irmandade, que decidiram romper as relações estabelecidas com o mestre Asplinger e seguir um caminho próprio nos trabalhos com ayahuasca, mas sem esquecer os preceitos doutrinários da União do Vegetal. Quando nos desligamos do CEUDV, nós dissemos para todos que não queríamos apoio. Iríamos continuar com o mestre Gabriel só que com outro nome. Eu pedi, inclusive, para que a irmandade analisasse, falei que estavam livres para procurar a UDV ou formar um novo grupo para dar prosseguimento ao CEUDV. Quem quisesse continuar conosco, na próxima sessão de escala, depois do dia primeiro de dezembro (2007), era só aparecer aqui, mas não estávamos querendo apoio de ninguém. Nessa sessão vieram umas vinte e poucas pessoas e todos eles nos apoiaram, mesmo a gente agindo dessa forma. (Mestre Patrício)

11 Então foi fundada em fevereiro de 2008 a Sociedade Espiritualista União do Vegetal (SEUDV) mais um novo grupo firmado nos ensinamentos do mestre Gabriel. Mestre Patrício foi quem recebeu a idéia do nome (SEUDV). Segundo ele, a denominação simplesmente surgiu enquanto meditava sob o efeito do Vegetal. Então eu pensei em continuar dando o Vegetal a mim, à minha companheira e mais alguém que quisesse continuar conosco. Então a primeira coisa que veio na cabeça foi um nome para o centro. Eu passei uns três dias analisando e de repente eu estava ali numa sessão, de burracheira7 e esse pensamento veio; Sociedade Espiritualista. Aí logo depois que terminou a sessão, eu falei para alguns daqui e todos gostaram do nome. Alguém até perguntou porque eu não coloquei Sociedade Espírita, mas eu falei que esse nome foi recebido desse jeito, além do que do jeito que está, espiritualista, tem uma maior abrangência e não fica limitado a uma só vertente do espiritismo e sim tudo àquilo que abranja o espírito. (Mestre Patrício)

12 O grupo recebeu algumas visitas dos antigos mestres do CEUDV, nas quais o afastamento foi formalizado. Aqui foi interessante notar a dissidência dentro da dissidência e, logicamente, essa dinâmica mostra-se complexa e conturbada. Diante de tal situação conflituosa, o antropólogo deve registrar e saber que o conflito existiu, levando em consideração, que tais confrontos são inerentes ao comportamento humano e, principalmente ao campo religioso como pensados por Bourdieu (1990) e Goulart (2004). Seja em que âmbito for o conflito existirá, e deve-se estar muito atento não só às causas, como também, às conseqüências desse conflito. Até então, a conseqüência maior, na SEUDV, tem sido a redução nos quadros institucionais dessa sociedade oaskeira, pois alguns mestres e adeptos se desligaram da irmandade, após o rompimento com o CEUDV. Muitos saíram depois disso, mas é natural. Divergências de ponto de vista existem, existiram e sempre vão existir enquanto os humanos viverem em sociedade. Por

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isso não vai haver nunca um só pensamento. O importante é saber superar as divergências. E isso é o que estamos tentando fazer aqui e estamos buscando. Não vamos parar. (Mestre Patrício)

13 Antes, eles recebiam em média trinta pessoas por sessão, agora o sítio é freqüentado por aproximadamente vinte pessoas. O quadro de mestres e conselheiros foi consideravelmente reduzido. Atualmente o grupo conta apenas com quatro mestres e seis conselheiros. A maioria dos adeptos é composta por iniciantes e freqüentadores ocasionais. Dessa forma, os trabalhos rituais com ayahuasca continuam, sendo o conflito nada mais do que uma situação histórica na qual a irmandade esteve inserida, portanto interessa-nos saber, além de tudo, o porquê da continuidade com a tradição udevista, apesar da série de conflitos emergentes no histórico dessa sociedade oaskeira.

1.1.2 O velho novo

14 A trajetória histórica da SEUDV nos dá uma noção de alguns processos emergentes no campo ayahuasqueiro brasileiro. Os acordos, conflitos e fragmentações detêm uma lógica que não pode ser descartada dessa análise. As disputas de poder são inerentes ao uso religioso e ritual desta bebida enteógena, cuja distribuição e produção encontram- se “controladas” pelos procedimentos rituais oriundos, principalmente, das matrizes ou linhas daimistas e udevistas (Labate, 2004). Nesse caso, o uso ritual do chá passa a ser legitimado pela antiguidade e proximidade com a tradição. Mesmo longe dos “grupos tradicionais” (daimistas e udevistas) os novos grupos não deixam de adquirir a bebida nos circuitos rituais que englobam rígidos trabalhos físicos e mentais por parte de toda a irmandade, que unida elabora a infusão a partir dos rituais de preparo da beberagem. O “controle social” deste enteógeno também está ligado, principalmente, aos meios de sua obtenção. Quando algo foge desses padrões “oficiais” tende a gerar certa desconfiança diante daqueles mais antigos, que não encaram como legítimos os trabalhos dos dissidentes.

15 A dinâmica desta tensão pode ser entendida ao pensarmos que o campo ayahuasqueiro manifesta-se de acordo com as redes sociais. Uma rede social pode ser compreendida como uma das inúmeras formas de representação das relações sociais entre humanos, que compartilham de interesses e objetivos comuns. Dentro dessa lógica existem múltiplas redes sociais que são construídas e se interconectam cotidianamente (Barnes, 1972; Both, 1976 e Capra, 2002). Levando em consideração o conceito de rede como epistemologicamente viável à nossa análise, podemos afirmar que os pontos de uma rede social se formam, principalmente, pela comunicação e organização de processos simbólicos semelhantes. Para Fritjof Capra (2002, p. 91), a existência dessas redes gera as múltiplas identidades sociais observáveis. O sistema de valores e crenças comuns cria uma identidade entre os membros da rede social. Identidade essa baseada na sensação de fazer parte de um grupo maior (...) A rede social intercambia suas comunicações dentro de um determinado limite cultural, o qual é continuamente recriado e renegociado por seus membros.

16 A relação entre os nós destas redes pode ser harmônica ou tensional, pois como vimos, todas as redes parecem ser formadas a partir de interesses comuns aos indivíduos que as constituem. “Numa rede social, os diferentes nós podem ter tamanhos diversos, de modo que são comuns nessas redes as desigualdades políticas e as relações de poder assimétricas” (Capra, 2002, p. 149). O conflito surge quando divergem os interesses dos nós dessas teias de relações. Considerando o nosso caso específico e pensando no conceito de rede

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formulado por Labate (2004), podemos afirmar que o campo ayahuasqueiro brasileiro manifesta-se de acordo com a rede ayahuasqueira, que se conecta entre os nós emergentes a partir do surgimento dos grupos. Os primeiros e principais nós inseridos nessa teia específica de relações culturais são constituídos pelas três principais religiões da ayahuasca.

17 É plausível a afirmação de que outros nós são construídos decorrentes do surgimento de novos grupos ayahuasqueiros. Outros nós tendem a surgir, mas costumam manter proximidade dos nós principais, entendidos como tradicionais. Cada ponto dessa rede, cada nó pontuado dessa extensa malha social está interconectado, de modo que a ação de um único nó pode interferir nos demais8. Para conseguir ou garantir um lugar nesse campo, constituído por essa rede que já possui os seus “nós principais” (daimistas, UDV e Barquinha), os novos grupos costumam mudar de posição, até se estabelecerem dentro dessa teia de relações. Mudar de posição, no campo ayahuasqueiro, significa romper relações institucionais com as matizes originais (nós principais) e seguir um caminho próprio na comunhão da bebida, continuando ou não fiel às tradições. Lembrando que tal rompimento é conflituoso, pois esta é a principal característica dos processos de passagem nos quais desvios e turbulências são inerentes. Quando se afastam dos “nós principais”, os novos grupos assumem uma delicada posição social, pois teoricamente, seus trabalhos com ayahuasca são tidos como ilegítimos.

18 Os neo-ayahuasqueiros estudados por Labate (2004) encontram-se numa posição ambígua em relação ao campo ayahuasqueiro brasileiro e à sociedade como um todo, visto que, seus trabalhos com ayahuasca podem ser interpretados como ilegítimos a partir do momento em que tais grupos não se mantêm ligados diretamente às instituições oficiais, possuidoras de um conjunto de saberes adquiridos a partir da tradição simbólica, compartilhada pelas principais religiões ayahuasqueiras. Todavia os oaskeiros da SEUDV, mesmo diante dos conflitos e dissipações subseqüentes ao surgimento desse núcleo, mantêm-se fortemente ligados à doutrina udevista, não abrindo mão dos ensinamentos do mestre Gabriel. Isso os faz alegar a posição de legítimos, por estarem ligados espiritualmente ao líder fundador dessa tradição. Um reforço no processo dessa legitimidade surge com a independência em relação à produção do chá, a partir do momento em que se mostram merecedores de administrá- lo, quando conseguem produzi-lo.

19 Antes disso, foi necessário um forte convívio, dos mestres fundadores, na instituição oficial udevista, onde muitos passaram décadas nesse sistema de crenças, aprendendo e convivendo com a espiritualidade conectada, por intermédio da comunhão dessa bebida. Motivos diversos fizeram com que alguns conflitos existissem e pontos turbulentos ocasionaram desmembramentos e dissipações ao longo da trajetória histórica dessa irmandade dissidente. A mudança de posições foi amplamente recorrente, pois acordos e desacordos institucionais lançaram esse sistema religioso a alguns estados de turbulência.

20 Pensando nas noções de rito de passagem, a partir dos estudos de Van Gennep, Victor Turner (1974) indicou a existência de três fases percorridas diante da mudança de uma posição para outra. Durante a passagem existe a separação, a liminaridade e a reintegração, quando a pessoa retorna dessa trajetória conflituosa inerente às mudanças de posições. A separação pode surgir a partir de um estímulo capaz de promover a mudança, que lança o indivíduo ao estado de liminaridade. Essa zona de transição:

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(...) freqüentemente é comparada à morte, ao estar no útero, à invisibilidade, à escuridão, à bissexualidade, às regiões selvagens e a um eclipse do sol ou da lua. As entidades liminares podem ser representadas como se nada possuíssem (Turner, 1974, p. 117).

21 Os ritos de passagem, de acordo com Turner (1974), promovem constantes mudanças de posições individuais em relação à estrutura social. Os conceitos de separação, liminaridade e reintegração, pensados pelo autor, definem os processos de passagem como um renascimento. Ao mudar de status durante tal processo turbulento, o indivíduo é primeiro, distanciado da estrutura social (separação), como se deixasse de existir na posição anterior que ocupava na sociedade ou simplesmente morresse. Esse é o processo liminar no qual o sujeito encontra-se desprovido de status, fora da sociedade, num espaço anômico e de difícil classificação, onde emergem os sentimentos de medo, preocupação, estranhamento, igualdade e humildade. Em seguida, o indivíduo retorna dessa zona liminar, sendo reintegrado à estrutura social ocupando, dessa forma, um novo status, uma nova posição como se o sujeito renascesse.

22 Essa breve leitura de Turner (1974), de certa forma, nos permite traçar um paralelo metafórico e comparativo em relação às situações de passagem presentes no histórico da SEUDV. Mesmo em não se tratando da imersão de indivíduos específicos em ritos de passagem pertencentes à cultura Ndembu, podemos considerar a SEUDV como uma entidade social, que constantemente mudou de status e posição numa complexa dança criativa de separação, liminaridade e reintegração, comum aos jogos de poder do campo ayahuasqueiro.

23 Ilya Prigogine e Isabelle Stengers (1986, p. 214) ao analisarem os sistemas, a partir dos estudos físico-químicos, consideram duas fases primordiais da dinâmica das trajetórias. O sistema, mantido longe do equilíbrio, apresenta fases de instabilidade e estabilidade. Tal dinâmica, para estes autores, possui caráter irreversível e compartilha do desvio do equilíbrio, auxiliado pelas estruturas dissipativas9. Longe do equilíbrio o sistema tende a se readaptar e se ajustar tanto às perturbações do ambiente, quanto às do próprio sistema. Caso o sistema não consiga se adaptar, normalmente originam-se novas estruturas com outros níveis de complexidade.

24 As estruturas dissipativas favorecem o desequilíbrio. São perturbadoras, radicais, indesejáveis e são sempre combatidas, pois um sistema em repouso e estabilizado tende a não se mover. A perda do equilíbrio promove o surgimento de pontos de instabilidade. É quando emergem certas zonas de perturbação no sistema que para Prigogine & Stengers (1986) são as flutuações. Essas flutuações podem ser automaticamente combatidas ou podem ganhar espaço e se transformarem num ponto crítico capaz de promover uma bifurcação. Justamente a bifurcação é a mudança estrutural formada pela junção das forças flutuantes que permitiram a bifurcação. Essas forças flutuantes podem ser abortadas pelo sistema, ou podem conduzi-lo a uma nova configuração estrutural.

25 Resumindo, de acordo com a lógica de Prigogine e Stengers (1986), o sistema longe do equilíbrio apresenta a fase de instabilidade, caracterizada pelo agito das partículas diante de um estímulo capaz de confrontá-las, em seguida vemos o surgimento das estruturas dissipativas, que podem lançar o sistema às zonas de perturbação desencadeando toda uma dinâmica que pode ou não interferir em sua estrutura anterior. A fase de estabilidade se caracteriza quando o sistema adquire uma nova configuração estrutural ou permanece com parte de suas características anteriores.

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A ciência social herdada, estabelecida, não foi sequer chamada a considerar os fenômenos que ela trata em estados de longe equilíbrio; sua prática a leva a preferir a estabilidade (o conflito sendo matéria da sociologia crítica, mais periférica), o funcional, o estrutural, o organizado. Nessas condições, o tempo se torna a dimensão esquecida, e o acontecimento o intruso que deve ser expulso (BALANDIER, 1997, p. 169).

26 Porém, Turner (1974), Prigogine e Stengers (1986) compartilham da idéia de que todos os sistemas, sejam eles sociais ou não, encontram-se numa eterna dança de posições que os mantêm longe do equilíbrio. Os três autores ajudam a reforçar nossas concepções sobre a mobilidade cultural e a fluidez dos sistemas sociais como um todo. A fase de separação, pensada por Turner, pode ser comparada à fase de instabilidade, defendida por Prigogine e Stengers. Referem-se à mudança do sistema diante da passagem de posições decorrente da fuga do equilíbrio. Da mesma forma, a fase de liminaridade, para Turner, pode ser encarada como aquela relativa às zonas de perturbação, para Prigogine e Stengers, que desencadeiam flutuações, pontos críticos e bifurcações. Em ambos os casos, o sistema em atual transição, fica a mercê das influências externas. Sem lugar ou posição, ele fica “à deriva” das forças do seu meio. O próprio sistema se encarrega de seguir o seu caminho rumo ao novo equilíbrio. Uns tentam reduzir as bifurcações e voltam-se para suas características originais, enquanto outros deixam-se levar por essas perturbações e acoplam novas características ao sistema em formação.

27 Reintegração para Turner (1974) e estabilidade para Prigogine e Stengers (1986) também podem ser entendidas de modo similar. É quando o sistema retorna, dessa dinâmica turbulenta, com as mesmas características anteriores ou reformulado pelas mudanças relativas e decorrentes das bifurcações, que foram promovidas pelas zonas de perturbação. É quando o sistema atinge um novo equilíbrio. Tal dinâmica pode ser visualizada na prática, mediante a análise histórica da SEUDV que passou pelas mesmas fases em questão (Figura 1). Num primeiro momento, observamos os afastamentos em massa do sistema matriz udevista, no qual certas insatisfações pessoais geraram um quadro de conflitos que permitiram o distanciamento de alguns oaskeiros. Aqui se deu a separação para Turner (1974) e a instabilidade para Prigogine e Stengers (1986). Então os recém-desvinculados foram automaticamente lançados ao estado de liminaridade, após o surgimento de uma zona de perturbação, que promoveu o afastamento da matriz udevista.

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Figura 1. Trajetória histórica da SEUDV a partir das perspectivas de Turner (1974), Prigogine e Stengers (1992).

28 Num segundo momento, verificamos o sistema caminhando rumo a um novo equilíbrio, quando retornou às matrizes antigas, a partir do contato com o CEUDV, liderado pelo mestre Asplinger. Nesse caso, o sistema atingiu a fase de reintegração, para Turner (1974), e estabilidade, para Prigogine e Stengers (1986), aderindo os pré-supostos da tradição udevista, ou seja, do sistema anterior de onde surgiu. Num terceiro momento, verificamos que outra situação de conflito emerge dentro do sistema, lançando-o novamente à fase de separação e instabilidade, quando surgiram novas zonas de perturbação que promoveram o rompimento com o CEUDV.

29 O sistema foi lançado, mais uma vez, à fase de liminaridade. Num quarto momento, o sistema passa à fase de reintegração e estabilidade retomando as configurações da matriz original de onde emergiu. Apesar dos conflitos subseqüentes dessa tênue trajetória, a SEUDV não abriu mão dos ensinamentos do mestre Gabriel, mesmo quando o sistema foi por duas vezes lançado à liminaridade e ficou à mercê das zonas de perturbação e flutuações, esses oaskeiros não permitiram que o conflito dissolvesse os preceitos do mestre, dando continuidade à tradição oaskeira, mesmo longe da instituição oficial udevista.

1.1.3 Espaço

30 No sítio do mestre Patrício, todos estão em casa. Muito arborizado e florido, o terreno abrange cerca de cinco hectares de terra que se perdem entre as cercas do horizonte. A paisagem é típica dos ecossistemas de transição comuns ao agreste pernambucano. O clima predominantemente seco e acompanhado por vários meses de estiagem dificulta o cultivo de algumas plantas, porém o jardim de Dona Yonny é cuidadosamente mantido. O Vegetal tem que ser rural. Ele tem que ser bebido junto à natureza, com silêncio ou sons assim como estes que a gente está ouvindo: de galinha, de pássaro, de cachorro... Por isso, aqui a gente faz no sítio. O Vegetal é um chá precioso e na cidade fica complicado administrar. (Mestre Jú)

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31 Os adeptos do Vegetal preferem comungar o chá longe do tumulto das grandes metrópoles. É bastante comum a construção de igrejas ayahuasqueiras nas proximidades de áreas naturais. Seja na mata, num sítio ou numa praia, a tranqüilidade inerente a tais espaços parece colaborar para a construção de uma atmosfera favorável ao uso ritual dessa bebida enteógena. Sendo esta uma das doutrinas da floresta, é compreensível que seus adeptos sintam-se mais a vontade e protegidos próximos da natureza. Para o psiquiatra norte-americano Norman Zinberg (1984, p. 237), os psicoativos costumam ser ministrados numa atmosfera ritual de onde emergem padrões de comportamento direcionados ao uso controlado das substâncias. Esses padrões estilizados e prescritos estão intimamente ligados à obtenção e administração das substâncias, assim como a seleção do settingfísico e setting social para que a experiência aconteça sem maiores danos ou transtornos. Este autor afirma que toda essa precaução tem a ver com as formas de prevenir os efeitos adversos provocados pelo consumo de determinados psicoativos. A seleção das pessoas (setting social) e do lugar (setting físico) onde acontecem os rituais minimiza certas tensões, pois o objetivo dessa dinâmica ritual é o de que todos se sintam familiarizados, relaxados e despreocupados no desenrolar da experiência.

32 No sítio, além da casa do mestre Patrício, foram construídos o templo, a fornalha e o chacronal. O templo (Foto 1) é uma verdadeira casa, bem maior do que aquela onde o casal mora. Grande o suficiente para abrigar em seu interior dois banheiros coletivos (masculinos e femininos), um refeitório e o salão ritual, o chamado “Salão do Vegetal”, com capacidade para aproximadamente quarenta pessoas (Foto 2). Em cada banheiro estão disponíveis dois chuveiros, dois vasos, uma pia e um espelho. No Salão do Vegetal, uma mesa central e, ao redor, várias cadeiras acolchoadas, inclinadas em estilo semi- leito, ideais para os momentos de concentração durante as sessões. As cadeiras ficam todas voltadas para essa mesa retangular aonde os mestres dirigentes10 conduzem os trabalhos com o Vegetal. “A posição da mesa no Salão do Vegetal é colocada de forma que o dirigente dos trabalhos fique em frente à porta principal de entrada” (Ricciardi, 2008, p. 55).

Foto 1. O templo da SEUDV. Direito de imagem cedido pela SEUDV. Foto: Wagner Lira.

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Foto 2. O Salão do Vegetal na SEUDV. Direito de imagem cedido pela SEUDV. Foto: Wagner Lira.

33 Na parede, por trás da mesa, a foto do fundador da doutrina, o mestre Gabriel11, algumas lamparinas e duas caixas de som Alguns casacos e colchas repousam pendurados em cabides numa das paredes próxima aos banheiros. Na área externa, ao lado do templo, foi construída uma praça central onde existe uma grande estrela de cinco pontas cimentada ao chão e pintada de branco. As estrelas são símbolos recorrentes na mística udevista. Segundo Andrade (1995, p. 107): A invocação de determinadas estrelas (estrela do norte, estrela do oriente, por exemplo) são, mais propriamente falando, figuras lingüísticas empregadas no sentido de orientar os adeptos, como o marinheiro orienta seu barco pelos astros, isto é, guiando-se por alguns pontos de referência, e não necessariamente adorando tais pontos.

34 Eles também construíram um chacronal, uma grande área cercada com madeiras e telas de nylon, que protegem do sol vários arbustos de chacrona (Foto 3). O cenário lembra uma estufa e até mesmo uma casa de vegetação artesanal. Foi necessário um enorme esforço para erguer essa estrutura, até porque as telas tiveram de ser costuradas à mão, e por fim unidas às madeiras fincadas no chão. Um empreendimento valoroso diante da necessidade de plantar a própria chacrona, pois as folhas necessitam dessa proteção, visto que, não suportam altas temperaturas nem fortes luminosidades.

35 O plantio exige um cuidado especial. Saber plantar marirí e chacrona12 e saber produzir o próprio Vegetal vêm sendo apresentados como os primeiros passos para a condução dos trabalhos espirituais dos novos ayahuasqueiros. A ecologia e a fisiologia desses vegetais já impõem limitações naturais ao consumo da infusão. É necessário que o grupo saiba produzir o próprio Vegetal, pois assim ele se mostra merecedor de administrá-lo. Daí surge a independência em relação aos outros grupos, porque o chá e as plantas são de acesso restrito. Possuir a arte do plantio e manuseio da folha chacrona e do cipó marirí; (...) é um pré-requisito fundamental para as aspirações de autonomia de qualquer grupo. O fato da bebida ser de difícil acesso é por si só um dos grandes mecanismos de controle do seu uso (Labate, 2004, p. 123).

36 Na SEUDV, os cipós são cultivados em alguns cajueiros (Foto 4). Por ser uma trepadeira, o marirí necessita de outra planta de grande porte para se desenvolver. Este cipó é de difícil adaptação. Normalmente não resiste ao clima e ao solo, quando é transplantado para fora do seu lugar de origem, a floresta Amazônica. Os cajueiros são muito comuns

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aos ecossistemas nordestinos. O porte lenhoso e a resistência dessas árvores garantem uma sobrevida ao marirí, que muitas vezes chega a crescer sufocando o cajueiro.

Foto 3. Chacronal feito com madeiras e telas de nylon. Direito de imagem cedido pela SEUDV. Foto: Wagner Lira.

Foto 4. O marirí cultivado no cajueiro. Direito de imagem cedido pela SEUDV. Foto: Wagner Lira.

37 Um grande problema do sítio, assim como em todo o agreste pernambucano é a falta d’água. Durante os longos períodos de estiagem o solo, os rios, barreiros e açudes evaporam, levando consigo o verde da vegetação. As plantas nativas não sofrem tanto, pois já estão adaptadas às imposições do clima. Já aquelas que não pertencem à região em questão, dificilmente são capazes de sobreviver. Não é difícil calcular o esforço necessário que deve ser empreendido na manutenção do plantio de marirí e chacrona nessas condições. O problema da falta d’água é resolvido em parte, diante da existência de um poço artesiano capaz de abastecer a propriedade do mestre Patrício. Além disso, é necessário um investimento muito grande em adubação e correção do solo para fornecer as mínimas condições exigidas por tais vegetais, mas mesmo assim ainda existe uma enorme dificuldade em manter os seus plantios.

38 As folhas e os cipós plantados no sítio já são capazes de satisfazer às demandas dos preparos na SEUDV, porém o mestre Patrício até o momento, não se permitiu usar esse material cultivado, preferindo deixá-lo em desenvolvimento e sob seus cuidados, para que se desenvolvam, naturalmente, as propriedades místicas desejadas. O devido cuidado com essas plantas que exigem respeito e carinho de seus fieis, segundo os

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oaskeiros, transmite boas vibrações que serão transferidas ao chá, que será feito a partir da união das mesmas. Quanto maior o tempo de cultivo, maior o cuidado com os vegetais, que faz aumentar o carinho e o afeto que certamente transmitem, ao longo do tempo, vibrações positivas às plantas cultivadas. Maior também a concentração dos princípios ativos13, que são produzidos em grandes quantidades quando as plantas adquirem consistência lenhosa e massa vegetal.

39 Por enquanto, as folhas e os cipós usados na elaboração do chá na SEUDV são adquiridos por intermédio das relações de amizade entre o mestre Patrício e o doutor Régis Alain Barbier, fundador da Sociedade Panteísta Ayahuasca. Barbier possui, em sua propriedade na cidade de Camaragibe (PE), uma vasta plantação de marirí e chacrona, e sempre que é preciso auxilia os amigos em Riacho das Almas nos seus preparos, fornecendo-lhes, momentaneamente, o material necessário que compõe esse chá sagrado, utilizado em suas atividades ritualísticas. Aqui nós temos o apoio de Barbier! Desde o primeiro dia em que começamos com esse trabalho ele me disse; ‘no dia que você precisar de Vegetal e faltar, você pode vir aqui’. Nós podemos contar com o irmão Barbier, porque é uma pessoa que eu tenho uma amizade consolidada de quase dez anos. Desde o primeiro preparo dele lá em Aldeia (bairro de Camaragibe-PE), nós sempre estivemos presentes participando. Sempre ele nos dava o Vegetal (10-12 litros), sempre perguntava se nós estávamos precisando do Vegetal... Então acredito que nós temos esse suporte, até termos auto-suficiência aqui no nosso grupo. (Mestre Patrício)

40 Inicialmente, quando a irmandade do mestre Patrício ainda representava o CEUDV em Pernambuco, o chá era adquirido diretamente com a sede geral em Manaus, encarregada de produzir e distribuir a bebida entre as filiais. O contato com Barbier facilitou a obtenção do Vegetal que passou a ser produzido no próprio sítio do Patrício, após a construção artesanal de uma fornalha à lenha. Nesse sentido, os custos diante da obtenção do chá reduziram, visto que, os vegetais passaram a ser obtidos in natura a partir das afinidades entre o mestre Patrício e o doutor Barbier. Recentemente o grupo decidiu desmanchar a antiga fornalha à lenha substituindo-a por uma a gás natural que conta com queimadores industriais. Segundo o mestre Patrício essa atitude se dá, primeiramente, em relação à condição ambiental atual do planeta que não permite ao ser humano desmatar as florestas e queimar madeira para produzir um chá, que se apresenta como a manifestação das forças da natureza. Para o mestre Patrício, isso seria um contra-senso que caminha na contramão dos ensinamentos do mestre Gabriel. Olhe, a gente decidiu fazer assim porque antes nós estávamos na contramão. A desmatação está existindo e você ficar burlando a legislação em benefício próprio, você está indo de encontro aos princípios espirituais do mestre Gabriel! Muitos usam mesmo quase quatro metros de lenha. Tudo bem quando muitos moram em áreas abundantes de lenha, mas aqui não! Fazer isso aqui é entrar na contramão dos ensinamentos. (mestre Patrício)

41 Durante os preparos, eles também contam com o auxílio de uma forrageira para macerar o marirí, que aliada ao sistema de gás para o cozimento da infusão diminui consideravelmente a mão de obra necessária à elaboração do Vegetal, assim como o tempo e os gastos financeiros quanto à preparação da infusão. Durante nossa pesquisa14, a SEUDV realizou dois pequenos preparos nos meses de fevereiro e novembro do ano de 2008, nos quais participaram cerca de seis pessoas e foram produzidos em média quarenta litros de Vegetal por preparo. Os preparos costumam

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acontecer nos finais de semana e de acordo com a disponibilidade dos participantes. No final desses trabalhos, o Vegetal recém produzido costuma ser armazenado em garrafas pet, que são estocadas e congeladas no freezer do refeitório.

1.1.4 Tipos de sessões e a irmandade

42 Uma sessão de escala é uma sessão que pode ser freqüentada por todos, sejam eles discípulos, visitantes ou mestres. Elas acontecem nos primeiros e nos terceiros sábados de cada mês. Inicia-se às vinte horas e termina meia noite e quinze minutos, no máximo. Existem também as sessões de escala anual ou comemorativas, as sessões extras e as instrutivas, nas quais os adeptos se aprofundam ainda mais nos estudos dos ensinamentos do mestre Gabriel. As sessões comemorativas acontecem durante todo o ano e seguem as datas previstas no calendário doutrinário udevista. Nós temos no dia 6 de janeiro a sessão anual de reis, depois vem o dia 10 de fevereiro no aniversário do mestre Gabriel. 27 de março, o dia da ressurreição, temos o dia da fogueira de São João em 23 de junho, no dia 22 de julho comemoramos o dia da recriação da UDV pelo mestre Gabriel, dia primeiro de novembro é a confirmação da UDV no Astral Superior e dia 24 de dezembro Natal, além disso, também comemoramos o dia das mães, dia dos pais... Também temos casamentos e batizados. (Dona Yonny)

43 O grupo também realiza algumas sessões extras no caso de uma necessidade maior da irmandade ou quando recebem visitas de outros amigos ayahuasqueiros que sempre freqüentam o sítio do mestre Patrício. Elas podem acontecer em qualquer dia da semana. O comparecimento nessas sessões e naquelas de escala anual é opcional. As sessões instrutivas são direcionadas ao aprendizado dos adeptos. Os discípulos mais empenhados são convocados a participar desses encontros, onde podem se aprofundar ainda mais nos estudos da doutrina. As sessões instrutivas: são realizadas ao meio dia, normalmente aos domingos, embora o dia da semana e do mês seja predeterminado pelo mestre Representante. A estas sessões só podem freqüentar as pessoas do corpo instrutivo usando o uniforme15. O conteúdo dessas sessões não pode ser revelado (Ricciardi, 2008, p. 60).

44 A irmandade da SEUDV, assim como na UDV, apresenta-se subdividida em três principais categorias hierárquicas; discípulos do corpo instrutivo, do corpo do conselho e mestres. Aqueles do corpo instrutivo; São os que, entre os discípulos se destacam mais, têm um maior interesse e que fazem mais perguntas nas sessões. Depois de certo período ele vai sendo avaliado e convocado para o quadro do corpo instrutivo. Aí ele já participa de outras sessões onde são dados mais conhecimentos (Dona Yonny).

45 Os conselheiros podem ser homens ou mulheres. O grau máximo atingido pelas mulheres é o título de conselheira na doutrina do Vegetal16. As conselheiras são as companheiras dos mestres. Um sempre vem acompanhado do outro, pois o casal é o grande exemplo da união, sendo a personificação do milagre da família que precisa ser seguido por todos do grupo. Para Andrade (2005, p. 138) a crença udevista sustenta-se no tripé “trabalho-família-religião”. O trabalho é o meio pelo qual o ser humano demonstra seu desejo de mudança. A família é importante, por ser o principal pilar da

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sociedade renovada. A religião torna-se a razão de ser do homem, pois permite o contato através do qual o oaskeiro retorna à casa do pai criador.

46 O corpo do conselho é composto por discípulos que possuem um tempo maior na doutrina do Vegetal. Seus conhecimentos foram adquiridos a partir das vivências com a irmandade. A conduta do discípulo é analisada tanto dentro quanto fora do Salão do Vegetal e cabe ao mestre representante elevar ou rebaixar o respectivo “corpo institucional” no qual o adepto se enquadra. A autoridade delegada aos mestres udevistas condiz com as afirmações de Helman (1994), que chama a atenção para o importante papel social exercido pelos líderes carismáticos. Estes indivíduos possuem poder de integração e coesão, mas ao mesmo tempo podem perfeitamente punir os comportamentos que fujam dos padrões estabelecidos pelo grupo. O líder deve ser “o espelho” da irmandade, servindo de exemplo em tudo, de modo que sua conduta possa nortear e orientar as ações do seu grupo específico. Dessa forma, para Helman (1994) os valores podem ser revisitados e reafirmados diante dos demais atores sociais, que compartilham de um mesmo sistema de crenças específico. Quando nós entendemos que o discípulo realmente está modificado fluindo num grau mais elevado, aí ele é convocado para o corpo do conselho e do corpo do conselho então ele poderá ser mestre. (Mestre Patrício).

47 Para a doutrina oaskeira, o grau de mestre não é só posição. Mestre também é função, é responsabilidade para consigo e para com os outros. Os mestres da SEUDV afirmam que todo mestre é exemplo de referência a ser seguido. Aquele que representa um grupo ou dirige uma sessão representa a presença simbólica do mestre Gabriel entre os demais. Daí vem a responsabilidade e o perigo dessa posição. Ser mestre é ser eternamente testado diante da grande vilã, a vaidade que, aliás, é muito combatida na SEUDV. Mestre quem chama é os outros, não é a própria pessoa que pode se chamar de mestre não. Porque a verdade no Reino do Vegetal é muito grande na fala e de quem pratica aquela fala, porque a pessoa que está dirigindo uma sessão, ou o representante de um grupo, ele tem que dar exemplo em tudo. Ele é um espelho. Ele tem que falar os ensinamentos do mestre Gabriel e tem que praticar aquilo dali. Ou então, se não está podendo praticar, não fale. Quando um mestre anda errado, a reclamação não vai pra ele não! Eu ouvi17 o mestre Gabriel falar que ‘o coice vem em mim’, então qualquer coisa que faça de errado, o coice e a repercussão vêm praquele que começou, vem para o mestre Gabriel. E isso dói, porque a gente sabe que o chá e a tradição não podem ser desmerecidos por causa da ação de terceiros. (Mestre Jú)

48 O discípulo doutrinado age com simplicidade e não se deixa engrandecer pela vaidade. Essa é uma das grandes lições. O “bom aluno” oaskeiro sabe que com simplicidade ele alcança sua posição no poder do conhecimento, diante da união de luz, paz e amor. Os informantes procuram respeitar tais princípios e aprendem respeitando para se engrandecer, sendo a vaidade uma das fases18 que precisa ser superada para o alcance da iluminação espiritual. Diante da vaidade, eles afirmam que a pessoa esquece certos preceitos básicos das doutrinas do mestre Gabriel e passa a se engrandecer ilusoriamente dando voz às suas criações, que são relegadas às mais puras verdades. Ser mestre, conselheiro e discípulo na SEUDV, na verdade, apresenta-se como um grande teste.

49 Os novatos são chamados de adventícios e só podem freqüentar as sessões de escala, passando antes por uma pré-seleção e uma breve entrevista, na qual discorrem a respeito das suas intenções diante da busca pelos ensinamentos do Vegetal. Os

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visitantes também preenchem um formulário, com alguns dados básicos, como por exemplo, nome, telefone, endereço, idade, histórico de doenças, uso de remédios e outras substâncias que possam interferir nos efeitos do chá. Esses dados servem de controle para que o grupo saiba o perfil dos freqüentadores do sítio. Na União do Vegetal normalmente; (...) existe uma sessão denominada sessão de adventícios onde os interessados, após a entrevista, bebem o Vegetal. Eles usam roupas comuns e podem, depois de participar de uma sessão, freqüentar as sessões da UDV, a depender do grau da sessão. (Ricciardi, 2008, p. 38)

50 Na SEUDV, verificamos a ausência das sessões exclusivas para adventícios, porém o critério seletivo continua, sendo necessário o convite de um dos membros da irmandade para que o neófito possa participar das sessões de escala. Depois da quarta sessão com o Vegetal, o visitante normalmente é convidado a se associar como discípulo e a depender de sua conduta e interesse nos trabalhos, pode ser convocado ao quadro do corpo instrutivo. Além das contribuições financeiras de trinta reais que são pagos mensalmente pelos mestres, conselheiros e discípulos do corpo instrutivo, o grupo estabeleceu uma taxa simbólica aos novatos no valor de dez reais (taxa de adventício). Obviamente a arrecadação desses fundos é voltada à manutenção e ao fortalecimento das práticas materiais do centro, como por exemplo, gastos com o plantio e preparo do Vegetal. Eles costumam afirmar que a bebida não tem preço, mas tem um custo.

51 Grande parte dos freqüentadores do sítio reside na cidade de Caruaru (PE), que fica próxima ao município de Riacho das Almas no agreste do estado. Advogados, comerciantes, médicos, donas de casa, músicos, estudantes... A faixa etária e as profissões dos adeptos da SEUDV são variadas. A maioria é composta por homens. O fardamento adotado pela irmandade é muito simples. Durante as sessões, os homens usam apenas uma bata e uma calça feitas com tecido de estopa e as mulheres usam calças compridas e camisas brancas. Justamente para evitar uma diferenciação entre os adeptos, foi aceito um uniforme único, simples e comum a todos que freqüentam o sítio do mestre Patrício. Mesmo que exista hierarquia, ela não é reforçada com símbolos diferenciados dos demais como, por exemplo, estrelas e brilhos nos uniformes. O mestre Patrício afirma que na SEUDV todos devem ser iguais na vida e no Salão do Vegetal.

1.2 A legalidade da dissipação

52 Durante esse artigo pudemos ver claramente que na Sociedade Espiritualista União do Vegetal, em Riacho das Almas (PE), apesar da série de conflitos e acordos inerentes à fragmentação do campo ayahuasqueiro brasileiro, a bebida enteógena permanece sendo administrada segundo os padrões doutrinários estabelecidos pelo mestre José Gabriel da Costa, mesmo quando tal irmandade se mantém afastada da matriz original udevista. Essa retomada dos valores tradicionais, segundo Mary Douglas (1976, pp. 51-52) pode acontecer porque:

53 (...) à medida que o tempo passa e as experiências se empilham, fazemos um investimento cada vez maior em nosso sistema de rótulos. Assim uma tendência conservadora é incorporada. Isto nos dá confiança. A qualquer hora, pode ser que tenhamos de modificar nossa estrutura de pressupostos para acomodar uma

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experiência nova, mas quanto maior for a coerência da experiência com o passado, mais confiança podemos ter em nossos pressupostos. Fatos desconfortáveis, que se recusam a ser ajustados, nós os ignoramos ou os distorcemos a fim de que não perturbem aqueles pressupostos estabelecidos.

54 O Sociólogo das religiões, Max Weber (1994), investigou as relações de poder (dominação) existentes no relacionamento entre a ação individual e ação dos sujeitos ou grupos inseridos no âmbito dessa dominação. A dominação ocorre por motivos e meios diversos, mas sempre é guiada por um quadro administrativo. Aqui nos interessa especialmente o fenômeno da legitimação, ou "crença na legitimidade", que garante as chances de sobrevivência de um grupo específico. Existem, então, para Weber, três tipos de dominação: a racional (legal ou burocrática), a tradicional e a carismática. Cada tipo de dominação sempre alega sua legitimidade. Para compreender como se deu o processo de legitimidade na SEUDV a partir dessa leitura weberiana, se faz necessário destacar, além de tudo, a legitimidade tradicional e a carismática como fundamentais, diante da busca pela legalidade de suas ações rituais. Essa interpretação também nos ajuda a compreender o porquê da continuidade com a tradição udevista

55 Segundo este autor, os grupos religiosos reivindicam o poder e a legitimidade de suas ações sócio-culturais seguindo, principalmente, dois princípios complexos; a legitimação tradicional e a legitimação carismática. Essas duas formas de legitimação não são excludentes, chegando muitas vezes a interagir em conjunto quando um grupo decide recorrer a tal processo. A legitimidade tradicional de um grupo, em especial religioso, estaria então ligada às formas de fazer como sempre se fez. Para tal, é necessária a manutenção dos símbolos, assim como a continuidade com as bases doutrinárias estabelecidas pelos fundadores. Às vezes pode acontecer a alegação da legitimidade devido ao grau de parentesco (sanguíneo ou por afinidade) com o fundador, sendo tal alegação também pertencente ao processo de legitimação pela tradição.

56 Weber (1994) detém-se longamente na análise do tipo de legitimidade carismática que está ligada ao contato direto com o sagrado. Segundo este autor, a dominação carismática pode ocorrer: Em virtude de devoção afetiva à pessoa do senhor e a seus dotes sobrenaturais (carisma) e, particularmente: a faculdades mágicas, revelações ou heroísmo, poder intelectual ou de oratória. O sempre novo, o extra-cotidiano, o inaudito e o arrebatamento emotivo que provocam constituem aqui a fonte de devoção pessoal (Weber, 1994, p. 153).

57 É quando o mito de origem explica toda a trajetória dos fundadores e o surgimento da instituição, que são tidos como verdadeiros e incontestáveis. Para Weber, é quando ocorre a rotinização do carisma e o grupo conquista sua legitimidade social. Dentro de um grupo, podem ainda emergir pequenos ou grandes pontos de conflito que fazem surgir novas possibilidades de uma liderança carismática, é quando vemos a recarismatização da rotina. De acordo com o histórico da SEUDV, podemos ver, no primeiro momento, uma ruptura com a União do Vegetal que acarretou no afastamento de doze adeptos dessa instituição religiosa. Acontece que a UDV já é um grupo institucionalizado, legitimado tanto nos âmbitos “tradicionais” quanto nos âmbitos “carismáticos”. A partir da teoria de Weber (1994), o que aconteceu nesse primeiro momento foi uma recarismatização da rotina que permitiu a emergência de certos

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pontos turbulentos e tornou possível o surgimento de uma nova liderança carismática, dissidente da instituição de origem (UDV).

58 Num segundo momento, essa nova liderança carismática uniu-se a outra liderança já estabelecida e legitimada, o CEUDV de Manaus, fundado pelo mestre Asplinger, um ex udevista, que permaneceu ligado à tradição19, ou seja, legitimado a partir da continuidade com os ensinos e práticas rituais estabelecidos pelo mestre Gabriel. Depois de algum tempo, esta filial do CEUDV representada pelo mestre Patrício, em Pernambuco, passou por mais um período de recarismatização da rotina que fez emergir novos pontos turbulentos entre filial e matriz. O grupo foi deslegitimado pela sede geral do CEUDV, o que fez com que o mestre Patrício recorresse à legitimação tradicional, pois continuou seguindo com os padrões doutrinários da UDV e à legitimação carismática, pelo fato de ter estabelecido uma relação direta com o astral, a ponto de receber o nome do novo grupo num momento de burracheira. Assim, eles deram continuidade aos trabalhos normalmente, fazendo do conflito nada mais do que um fato histórico no qual a irmandade esteve inserida. Dessa forma, é possível compreender porque o repertório mítico udevista foi preservado mesmo diante dos conflitos emergentes. Até mesmo as insígnias “UDV” foram reivindicadas pela irmandade. Ao que parece, segundo a antropóloga Labate (2004, p. 96), no campo ayahuasqueiro, rejeitar a tradição pode gerar grandes problemas legais.

59 Os grupos já institucionalizados e legitimados (Alto Santo, CEFLURIS, Barquinha e UDV) possuem, por assim dizer, a legalidade do uso da bebida devido à elaboração da “carta de princípios das entidades religiosas usuárias do chá oaska20”. Existe uma grande preocupação dessas entidades em relação ao surgimento de novos grupos, até porque, teoricamente, eles não estariam preparados para administrar a bebida e isso poderia novamente pôr em dúvida a legalidade da ayahuasca. Então, não é difícil concluir que quanto mais próxima está da tradição, supostamente mais legítima se torna uma irmandade dentro dessa extensa malha social, ao mesmo tempo em que adquire posição e respeito de toda a sociedade em relação à administração deste enteógeno. Por isso, no caso da SEUDV, o novo não abriu mão do velho, de forma que a dissidência existe apenas a nível institucional.

60 Também é importante afirmar que a legitimidade sempre é relativa. O que é legítimo para um, pode não ser para outros. Sem contar que algumas teorias científicas parecem descartar o princípio universal da fé que as pessoas têm nas suas crenças, assim como a liberdade de escolher aquilo que as completam. Nesse caso, não importa o fato de ser legítimo por estar mais perto da tradição e sim o fato de estar satisfeito com a mesma, pois caso contrário, ninguém é obrigado a seguir com aquilo que não concorda.

61 Lembrando que os acordos, desacordos, trajetórias e conflitos entre os ayahuasqueiros dissidentes nos fazem refletir para nunca esquecermos de que nenhum evento cultural, principalmente religioso, encontra-se engessado. Os sistemas simbólicos coexistem e interagem mutuamente numa eterna fluidez complexa de significados, normas, valores e identidades. Isso é o que garante a mobilidade das culturas humanas vivas, sempre em movimento, à mercê das reinterpretações, ressignificações e independentes das lentes redutoras da ciência atual. As coisas do espírito são sagradas, mantidas e devem permanecer ativas para que o oaskeiro sempre renove ações e pensamentos purificando suas energias para enfrentar a luta pela sobrevivência. Para enfrentar seu dia-a-dia.

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NOTAS

1. Os oaskeiros são todos os udevistas guiados pela sabedoria de Oaska, importante personagem mítico desse sistema de crenças. Maiores detalhes sobre a História da Oaska, mito fundante udevista consultar; Andrade (1995), Goulart (2004), Ricciardi (2008) e Lira (2009). 2. Estudos relativos à matriz fundadora consultar; Andrade (1995), Brissac (1999), Goulart (2004) e Ricciardi (2008). 3. Os relatos obtidos durante a pesquisa de campo na SEUDV indicam que nessa época, Raimundo Neto e Laércio do Egito conheceram o Vegetal em Porto Velho (Rondônia). Depois de algum tempo conseguiram a permissão dos mestres udevistas para ministrar o chá em Pernambuco em nome da União do Vegetal. 4. Sociedade civil de direito privado, de duração ilimitada, tendo como finalidade, experimentar, estudar e orientar os estados ampliados de consciência induzidos pela ayahuasca no sentido de promover a evolução geral, cognitiva e espiritual. Sua sede situa-se no município de Camaragibe (PE). Praticam também o panteísmo, nos seus aspectos filosóficos, científicos e místicos. Informações disponíveis no site: www.panhuasca.org.br/portugues/missao.htm.Último acesso em fevereiro de 2008. 5. Mestre Irineu, para os daimistas; frei Daniel, para os da linha da Barquinha e mestre Gabriel para os udevistas. 6. O mestre representante é aquele que representa um núcleo oaskeiro. 7. O êxtase místico proporcionado pela ingestão do Vegetal é conhecido por burracheira nos sistemas udevistas. 8. Durante o capítulo introdutório da minha dissertação, apresentei um exemplo da delicada inter-relação entre os grupos inseridos nessa rede de relação, ao analisar alguns eventos que desencadearam a suspensão temporária do uso ritual da ayahuasca. Maiores detalhes consultar Lira (2009, pp. 26-35). 9. Trata-se de um modelo da Teoria Geral dos Sistemas Vivos, proposto pelo físico-químico Ilya Prigogine, com o objetivo de observar padrões de estabilidade longe do equilíbrio. A teoria das estruturas dissipativas serve para sublinhar a íntima interação que existe entre a estrutura, de um lado, e o fluxo e a mudança ou dissipação, de outro. 10. Os mestres dirigentes são àqueles que conduzem as sessões e distribuem o Vegetal durante os trabalhos espirituais. Em cada sessão só pode haver um mestre dirigente. É comum o revezamento entre os mestres de forma que o mesmo mestre não possa dirigir duas sessões seguidas. 11. Normalmente, nos núcleos udevistas, existe um arco verde acima da cadeira do mestre dirigente, que contém algumas figuras desenhadas em amarelo (estrelas de cinco pontas e dois cometas). Dentro do arco fica escrita a frase: “Estrela Divina Universal UDV”. Na SEUDV, portanto, verificamos a ausência desse arco. 12. A bebida xamânica ayahuasca é produzida a partir da decocção de duas plantas amazônicas; o cipó marirí (Banisteriopsis caapi) e as folhas da chacrona (Psychotria viridis). 13. O cipó possui os derivados beta-carbolínicos da harmina, tetrahidroarmina e harmalina como alcalóides principais. A folha da outra planta que incrementa a mistura, a chacrona, possui a N,N- dimetiltriptamina, conhecida por “DMT, a molécula espiritual” (Schultes, 1986; Ott, 1994 e Strassman, 2001). Essas substâncias, quando combinadas e ingeridas, produzem efeitos diversos, interpretados como vôos e jornadas xamânicas. 14. Durante a pesquisa de campo foram dedicados à SEUDV os meses de novembro do ano de 2007, janeiro, fevereiro e março de 2008.

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15. Na SEUDV verificamos a ausência do uniforme. 16. A conselheira tem permissão para dirigir uma sessão. A única mulher na União do Vegetal a obter o título de “mestre” na doutrina foi a esposa do mestre Gabriel a mestre Pequenina. 17. Ouvir o mestre Gabriel falar, quer dizer que o informante teve acesso a algumas gravações em áudio com a voz do mestre e que normalmente circulam entre os udevistas. Durante as sessões na SEUDV é comum ouvir essas gravações que reforçam os princípios doutrinários ditos pelo próprio mestre Gabriel. 18. No terceiro capítulo da minha dissertação de mestrado abordei a forma peculiar com a qual o Vegetal ensina seus adeptos. Algumas fases precisam ser superadas pelo oaskeiro iniciante, para que ele atinja o grau maior dos ensinamentos do Vegetal encarado como burracheira. As fases foram demarcadas no intuito analítico de acompanharmos a preparação dos “alunos” para receber e captar mais precisamente as “informações” do Astral Superior. Maiores detalhes consultar Lira (2009, pp. 97-137). 19. De fato não foi possível entrevistar o líder dessa dissidência udevista durante a pesquisa, por isso não posso afirmar se o CEUDV, liderado pelo mestre Asplinger, recorreu também à legitimidade carismática durante o surgimento do núcleo, porém a proximidade com a tradição é evidente, pois mesmo as insígnias UDV foram reivindicadas e mantidas diante da denominação deste novo centro oaskeiro. 20. Refere-se ao documento elaborado no ano de 1992 pelas principais linhas religiosas que comungam esse chá, na tentativa de regulamentar seu uso a partir da estruturação de normas, valores e formas restritas de consumo. Maiores detalhes consultar; Goulart (2004, pp. 269-270), Labate (2004, pp. 135-136), MacRae (2005, p. 480) e Lira (2009, p.32).

RESUMOS

Este artigo representa o segundo capítulo da dissertação intitulada; Os trajetos do êxtase dissidente no fluxo cognitivo entre homens, folhas, encantos e cipós: uma etnografia ayahuasqueira nordestina, onde tive a oportunidade de investigar dois grupos ayahuasqueiros dissidentes; a Sociedade Espiritualista União do Vegetal (SEUDV) localizada no município de Riacho das Almas (PE) e o Centro de Harmonização Interior Essência Divina (CHIED) situado no distrito de Riacho Doce (AL). O direcionamento dessa comunicação está relacionado às mobilizações institucionais da SEUDV pernambucana, a partir da análise do histórico dessa irmandade oaskeira específica, que tem como referencial doutrinário os princípios do mestre José Gabriel da Costa. Para tal, acompanharemos parte dos acordos, conflitos e dissipações inerentes ao surgimento de novos grupos imersos no campo religioso da ayahuasca, na tentativa de compreender os processos de alegação da legitimidade, diante da relativa legalidade institucional e espiritual dos ayahuasqueiros dissidentes.

ÍNDICE

Palavras-chave: ayahuasca, dissidência, legitimidade

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AUTOR

WAGNER LINS LIRA

UFPE - Universidade Federal de Pernambuco. Programa de Pós Graduação em Antropologia.

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Seguindo Sacolas Pretas em Busca de Igualdade e Pertencimento Mercado informal, ilegalidade e consumo dos negros pobres em New York City

Márcio Macedo

Introdução

1 Para alguém que não é norte-americano ou nunca visitou Nova York, a simples menção ao termo Broadway imediatamente remete à área de casas de espetáculos que apresentam shows dos mais variados tipos, preços, gostos e tamanhos. Basta uma visita ou simples conversa com algum morador da Big Apple para desfazer o equívoco. A Broadway é uma avenida enorme que corta a ilha de Manhattan1 de ponta a ponta. A área sobre a qual se sobrepõe o imaginário de musicais e peças de teatro é na verdade aquela conhecida como Midtown Manhattan e situada ao redor da Times Square (rua 42) onde a Broadway corta a Sétima Avenida. Há, portanto, várias Broadways extremamente contrastantes entre si na cidade norte-americana.

2 Durante alguns dias do mês de março de 2009, pouco antes da primavera chegar e ainda enfrentando um frio intenso, visitei uma região da Broadway situada entre as ruas 26 e 32 com o intuito de realizar um pequeno exercício etnográfico para uma disciplina de sociologia urbana que cursava na New School for Social Research2. O trabalho aqui apresentado pode ser associado a outros textos meus (ver Macedo, 2004 e 2007) majoritariamente focados em práticas culturais negras contemporâneas no contexto urbano, consumo e seus aspectos políticos. Meu artigo é nada mais do que uma sistematização de notas inseridas num “work in progress” visando a elaboração de meu research proposal para a redação de minha tese que foca o surgimento do mercado hip- hop nos EUA e sua expansão global enquadrando a pesquisa no arcabouço teórico da nova sociologia econômica e sociologia urbana. Meu intuito nesse pequeno artigo é de entender minimamente, do ponto de vista sociológico, as práticas econômicas realizadas nessa região da Broadway conhecida por sua associação ao comércio informal e/ou ilegal da cidade.

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Seguindo Sacolas Pretas

3 Na área da Broadway visitada é possível ver uma quantidade considerável de pessoas caminhando nos dois sentidos da avenida – downtown e uptown – e carregando sacolas plásticas pretas dos mais vários tamanhos. Essa foi a primeira coisa que chamou minha atenção ao chegar ao local: sacolas plásticas pretas. Uma black plastic bag no imaginário norte-americano está, de certa forma, sempre associada a algo negativo e/ ou restritivo, regulado ou não por lei. Nos EUA não é permitido o consumo de bebida alcoólica em via pública e, assim sendo, quando se compra cerveja em alguma delicatessen (pequenos mercados) ou algum tipo de destilado numa liquor store recebe- se uma sacola plástica preta (antigamente as sacolas eram de papel e de cor marrom – brown paper bags -, mas recentemente, em prejuízo do meio-ambiente, se tornou muito mais comum o uso de sacolas plásticas pretas). A mesma sacola serve para o transporte de revistas pornográficas, produtos comprados em sex-shops e, finalmente, mercadorias de procedência duvidosa.

4 Subindo pela rua 26 até a 32 há um fluxo grande de sacolas plásticas pretas que começam a desaparecer na altura da rua 33 e Greenly Square onde já se percebe a predominância de sacolas de lojas conhecidas como GAP, Banana Republic, J. Crew, Zara, Victoria’s Secret e até da rede de farmácias como Duane Reade (a concepção de farmácia nos EUA está mais para supermercado do que propriamente “farmácia” aos moldes brasileiros) e coffeehouses como Dunkin Donuts e Starbucks Coffee. A paisagem também muda seja pela composição do público que entra e sai das lojas, seja pela arquitetura e tipo destas.

5 O apelido dado pela polícia de Nova York a essa região é Counterfeit Alley (Beco da Falsificação). Uma reportagem do jornal New York Times de 9 de outubro de 2006 lança luz sobre os aspectos contraventores da área. De acordo com o artigo, entre 2004 e 2006 a polícia confiscou em torno de US$ 50 milhões de material falsificado nessa área e fechou mais de 15 prédios que serviam de depósito para mercadorias ilegais/ falsificadas. Ao mesmo tempo, um relatório de 2004 produzido pela prefeitura estimou que a cidade perde em torno de US$ 1 bilhão em impostos anualmente pelo comércio feito no Counterfeit Alley. Entretanto, especialistas dizem que esse número estaria supra-estimado (ver New York Times 9/10/2006). A área também é associada à violência. A reportagem do Times cita dois incidentes ocorridos entre 2005 e 2006. No primeiro, um camelô foi morto a tiros e outro saiu ferido numa discussão com

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compradores num prédio da rua 27. No outro incidente, um turista de Baltimore, Maryland, morreu atingido por uma bala perdida numa troca de tiros durante um roubo a um depósito na rua 29.

6 A região é visivelmente deteriorada. As lojas situadas na Broadway na altura das ruas 26 e 32 não possuem vitrines elegantes onde os produtos a serem vendidos são cuidadosamente expostos como é o caso da parte superior a rua 33. Em vez disso, as mesmas seguem a lógica de acomodar o máximo de mercadorias possível. A maioria das lojas comercializa produtos de beleza como perfumes, óleos, loções hidratantes além de xampus e condicionadores para os cabelos. Há um segundo grupo de lojas de roupas e acessórios: relógios, bolsas e bijuterias cuja maior parte está relacionada a “cultura” hip-hop e é conhecida como bling-bling – onomatopéia de duas jóias ou bijuterias batendo uma contra a outra. Por fim, há ainda mais duas categorias de lojas, uma relacionada a produtos eletrônicos de baixo custo – aparelhos para telefonia celular e acessórios, laptops, máquinas fotográficas digitais, aparelhos de MP3 e relógios – e outra relacionada a malas. É comum encontrar lojas que comercializam todos os produtos juntos.

7 Provavelmente, a justificativa para a existência de um grande número de lojas de perfumes é o fato da impossibilidade de grandes corporações e marcas de registrar legalmente uma fragrância. Devido a esse fato, há uma série de companhias especializadas em produzir versões similares de perfumes famosos com embalagens idênticas às originais, mudando apenas uma ou duas letras no nome para não serem processadas e vendendo seus produtos por preços bem mais em conta do que os originais (ver Motta, 1997:158). Uma pista para essa hipótese pode ser captada pelo uso do termo “similar” incluída nos anúncios das fachadas das lojas. Joseph Carlos, 50 anos, camelô que trabalha com perfumes e foi entrevistado pela reportagem do Times, faz uma interessante distinção entre perfumes originais, imitações e perfumes falsificados. De acordo com o vendedor, ele só trabalha com os dois primeiros. Um frasco de um “suposto” original Jean-Paul Galtier é vendido a US$ 15 por ele e, de acordo com a sua estimativa, custa quatro vezes mais numa loja de departamentos.

8 Pode-se afirmar, de certa forma, que as atividades que ocorrem nessa parte da Broadway são um misto de “grey” e “black markets”3. O primeiro corresponde à comercialização de mercadorias originais, mas negociadas de forma fora do controle dos produtores: são retalhos, pontas e sobras de estoque vendidos por um preço bem abaixo do mercado. Já o segundo diz respeito ao comércio de mercadorias falsificadas e sua produção e circulação estão associadas a atividades ilícitas. Outra área de Nova York bastante famosa por esse tipo de atividade é a Rua do Canal (Canal Street), em Chinatown, onde é possível adquirir várias espécies de acessórios falsos (ou não!) como bolsas, roupas, carteiras e calçados.

9 Entre as lojas de roupas há a predominância das especializadas em moda hip-hop. Este fato confirma um aspecto já apontado por Sharon Zukin sobre o consumo baseado em “estilos alternativos” originários das experiências de “imigrantes, minorias raciais e étnicas, gays e lésbicas” vivendo na cidade (1998:825). Entretanto, a Broadway não pode ser totalmente enquadrada dentro desta concepção uma vez que produtos vinculados a “cultura” hip-hop são apenas uma parcela dos vários outros tipos de mercadorias comercializadas ali.

10 Em Nova York, o espaço por excelência onde o consumo está baseado em elementos associados não somente ao hip-hop, mas a um conjunto maior de bens, de uma forma

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ou de outra vinculados às “culturas” negras afro-americana e diaspóricas, é a rua 125, no Harlem. Nesse local e em outras ruas próximas a maioria das lojas estabelecidas vende mercadorias legais e mesmo a economia informal das calçadas é de outro tipo, constituída em sua maioria por vendedores de artesanato ou bens produzidos em pequena escala como camisetas, CDs de música negra, DVDs, livros - relacionadas a figuras do ativismo e mundo político afro-americano e também do que vem sendo conhecido como “ghetto fiction” (ver Early, 2009) -, óleos, incensos e outros produtos rotulados como oriundos de países africanos. Em síntese, nessa parte da cidade se experiencia o que alguns autores vêm denominando de “ghetto consumption” (Zukin, 1998).

11 Entretanto, o comércio da parte Broadway que visitei, trabalha - como demonstrado um pouco mais acima - com um grande variedade de produtos cujo denominador comum é o baixo custo. Esse fato, mais a existência de lojas que vendem malas e o fluxo de pessoas que em boa parte demonstravam não ser originárias de Nova York, sugere que a maioria dos consumidores são indivíduos que compram os produtos para revendê-los em outros locais dentro e/ou fora dos EUA (a reportagem do Times afirma serem, em boa parte, originários da Carolina do Norte e Pensilvânia). Essa hipótese ganha um reforço considerável se levarmos em conta os anúncios nas fachadas de várias lojas: “wholesale” (venda por atacado) e “export/import”.

Procurando Por Hustlers Que Vendam Tênis

12 Em uma ocasião de minhas idas a Broadway, visitei uma loja especializada na grife Coogi onde havia camisas, camisetas, calças jeans e jaquetas expostas para venda. Todas as peças de roupas ficam distribuídas e amontoadas pela loja protegidas contra a sujeira do chão apenas por sacos plásticos. É até mesmo difícil caminhar entre as mercadorias. Os preços variavam entre US$ 30 e 150. Obviamente que havia espaço para negociação considerando esses valores, já que, na mesma ocasião, perguntei ao vendedor pelo preço de uma jaqueta. Ele respondeu US$ 70, mas, após algum tempo, ao perceber que eu estava deixando a loja, ofereceu-a por US$ 50.

13 Há na Broadway lojas que vendem tênis, entretanto, esse tipo de mercadoria não possui o monopólio dos negócios de nenhuma loja uma vez que todas tendem a comercializar vários outros produtos como perfumes e produtos eletrônicos (os menos comuns e sempre de pequeno porte como MP3 players e imitações de iPods). Todavia, nas esquinas das ruas que cruzam essa parte da Broadway ou em frente das lojas ali estabelecidas há grupos de rapazes negros conversando entre si, falando em telefones celulares e observando a movimentação das pessoas. As atividades desse pessoal pode ser entendida como uma espécie de prática social originária dos guetos negros norte- americanos e conhecido como “hustling”. The verb to hustle denotes a field of activities that have in common the fact that they require mastery of a particular type of symbolic capital, namely, the ability to manipulate others, to inveigle and deceive them, if need be by joining violence to chicanery and charm, in the pursuit of immediate pecuniary gain. The world of hustling stands in structural opposition to that wage labor in which, at least in theory, everything is legal, recognized, regular and regulated, recorded and approved by the law, as attested by employment forms and wage slips (Wacquant, 1998: 3-4)4.

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14 A maioria dos rapazes parece não ser composta por afro-americanos uma vez que falam inglês com um sotaque bastante carregado. Entretanto, em minhas outras visitas a Broadway encontrei uma porção de outros jovens que definitivamente eram afro- americanos já que não tinham nenhum sotaque além do característico Black English. A abordagem realizada por todos era bastante interessante. Uma vez que alguém parava em frente a alguma das lojas para olhar as vitrines, eles trocaram discretos olhares com os clientes. Caso os olhares eram correspondidos iniciava-se uma conversa que tinha início com a pergunta “what are you looking for, man?”. Minha resposta era sempre, “what do you have, bro?” ao que eles continuavam, “jeans, t-shirts, perfumes, and sneakers”. Após o cliente dizer no que estava interessado começava a negociação. Sempre me apresentei como alguém em busca de pares de tênis e a primeira resposta dos vendedores era de que eles tinham o Air Force 1, modelo de tênis produzido pela Nike e bastante popular, por US$ 40. Em determinada ocasião um dos vendedores apontou o tênis que um outro rapaz parado na esquina estava usando e disse que o modelo que ele possuía ela igual aquele mas todo branco. Respondi que iria dar mais uma volta pelo quarteirão e olhar outras coisas, mas que provavelmente voltaria ali mais tarde. Depois de dar cerca de dez passos outro rapaz abordou-me perguntando se eu estava interessado em pares de tênis. Eu respondi que sim, mas continuei andando e ele me acompanhou. A conversa continuou e dentro de alguns minutos eu estava no meio da rua 29, no quarteirão entre a Broadway e a Sexta Avenida, observando vários tênis distribuídos na calçada. Modelos Air Force 1 eram vendidos por US$ 40 e Air Jordans por US$ 60. Estes mesmos modelos custam em torno de, respectivamente, US$ 100 e 150 em qualquer loja da cidade.

15 Os modelos ali negociados são uma espécie de ícones dos pés dentro da “cultura” hip- hop como pode ser notado no documentário de Lisa Leone e Thibaut Longeville intitulado Just For Kicks (2005), película que explora a importância e o lugar dos tênis no hip-hop. Zukin, por sua vez, explica que “in the late 1980s and early 1990s, certain brands of athletic shoes (Nike) and trekking gear (Timberland shoes), became identified with ‘urban’ – i.e. “ghetto” – cultural styles” (1998:834). Entretanto, pode-se dizer que a primeira aparição dos tênis como elemento essencial da vestimenta hip-hop se deu em 1986 quando o grupo novaiorquino Run DMC lançou a canção “My Adidas” trazendo para o mainstream do estilo de vida pop o uso de um tênis que estava associado a criminosos, traficantes e a juventude pobre negra e latina que ouvia rap à época (para uma discussão detalhada ver Rose, 1991).

16 Os modelos de tênis comercializados nessa região da Broadway foram lançados pela Nike nos anos 1990 e são extremamente populares entre os adeptos desse estilo até os dias atuais. O tênis é, assim como o boné, talvez o mais importante acessório da indumentária hip-hop e há uma certa obsessão por parte dos hip-hoppers no que diz respeito ao culto a certos modelos e mesmo a limpeza de seus tênis. Wacquant notou esse detalhe entrevistando um hustler para sua pesquisa sobre a prática do boxe nos guetos de Chicago. O autor destaca no seu entrevistado como “his impeccably white, brand-name sneakers accentuate his relaxed and feline demeanor” (Wacquant, 1998: 4). O cineasta Spike Lee também capturou a importância dos tênis e da necessidade de mantê-los sempre limpos quando inseriu em seu filme Do The Right Thing (Faça a Coisa Certa), 1989, um personagem que mantinha uma escova de dentes acima da orelha e usava a mesma para constantemente limpar o seu par de tênis imaculadamente branco.

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17 Algo bastante interessante é a composição étnica-racial dos consumidores, camelôs e donos de lojas nesta parte da Broadway: sua quase totalidade é composta por não- brancos. É possível ver negros, latinos, indianos, asiáticos, mas pouquíssimos brancos. O contraste pode ser percebido andando da Sexta em direção a Quinta Avenida: a primeira é majoritariamente ocupada por minorias ao ponto que quanto mais se aproxima da segunda avenida a proporção de brancos tende a aumentar consideravelmente. Minha identidade racial (negra) facilitou o contato com os hustlers. De todo modo, muitas vezes foi possível perceber que havia alguma tensão e dúvida em relação às minhas reais intenções, já que fazia muitas perguntas. Os rapazes sempre evitavam dar seus nomes e faziam o máximo possível para que o comprador em potencial não descobrisse onde as mercadorias estavam guardadas (provavelmente em algum prédio ou carro estacionado num quarteirão próximo).

Tentando Entender a Lógica do Counterfeit Alley

18 Minha primeira premissa ao tentar entender minimamente a lógica presente nas negociações envolvidas nessa área do comércio informal de Nova York se dá a partir de uma categoria fundante da moderna sociologia econômica, a saber, a noção de “embeddedness”, cunhada pelo economista húngaro Karl Pollanyi em seu livro The Great Transformation (2001 [1944]). Utilizando material de etnografias clássicas da antropologia, o economista húngaro estabeleceu uma crítica a economia uma vez que a categoria “embeddedness” expressa a idéia de que o campo econômico não é autônomo - um dos pressupostos da teoria econômica contemporânea -, mas sim subordinado a política, religião e relações sociais5. Assim sendo, se faz necessário entender as relações econômicas que se dão no Counterfeit Alley a partir de seus aspectos sociais.

19 Dois fatos chamaram-me a atenção em minha rápida imersão etnográfica: o preço dos produtos e o pertencimento racial/étnico tanto de vendedores como compradores. O preço baixo dos produtos ali comercializados é, sem dúvida, o grande atrativo para os compradores. Ao mesmo tempo, chama a atenção a quase inexistência de brancos no local. Proprietários das lojas de perfumes são indianos, hustlers são negros – africanos e/ou afro-americanos – e a maioria absoluta dos compradores são negros com uma minoria de hispânicos. Tendo em mente esses aspectos, os artigos de Geertz (2001) e Lamont e Molnár (2001) talvez lancem pistas interessantes a serem seguidas em nossa tentativa de entendimento da lógica econômica presente nessa parte do Counterfeit Alley.

20 Geertz, analisando a economia de um bazar no Marrocos, busca explicar quais são as lógicas que regem a negociação entre vendedores e compradores. Todo o esforço dos indivíduos no mercado é canalizado no sentido de diminuir a ausência de informação. Esse é o aspecto central do bazar uma vez que não existem parâmetros estabelecidos relacionados ao valor, procedência e qualidade das mercadorias negociadas. Assim, usam-se técnicas como a tentativa de “clientelization” (formação de clientela), distribuição espacial e étnica dos comerciantes de acordo com o tipo de mercadoria negociada e, por fim, barganha entre os dois agentes no sentido de diminuir a falta de informação, estabelecer confiança (equilíbrio e igualdade necessário a qualquer mercado) e possibilitar a efetivação das operações de compra e venda.

21 Minha sugestão é que podemos entender a área do Counterfeit Alley, e mais especificamente as negociações para compra e venda de pares de tênis, numa lógica de

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vetores contrários ao mercado analisado por Geertz, mas mantendo a necessidade de confiança, ou seja, trazer nível de equilíbrio/igualdade para que a troca se efetive6. Todos os agentes envolvidos são dotados de informação (preço das mercadorias nas lojas, consciência que a mercadoria tem procedência duvidosa e que a qualidade pode estar comprometida) e o grande atrativo é o preço. Entretanto, a negociação entre hustlers e compradores tem contra si a desconfiança de cada um em relação ao outro. Os primeiros desconfiam (principalmente de novos clientes) que compradores possam ser da polícia e para isso fazem de tudo para esconder/proteger sua mercadoria. Já compradores temem ser ludibriados por hustlers, já que esses são conhecidos como negociadores malandros cuja grande habilidade se encontra em tomar vantagem em negócios ilícitos nas ruas (o hustler, de acordo com Wacquant, 1998, é uma categoria histórica/social que surgiu justamente como resultado da situação de precariedade vivida pela população negra e urbana dos EUA). Sendo assim, há vários fatores que mediam a troca – dificultando ou facilitando-a. Cito apenas uma: pertencimento racial. Percebi como o fato de ser negro facilitou minha interação com os hustlers uma vez que ser branco no local é quase sinônimo de ser da polícia.

22 O pertencimento racial nos ajudará a lançar outro aspecto explicativo da economia do Counterfeit Alley já que preço por si só não explica as transações ali realizadas. Basta refletir que o preço só existe dentro de um quadro mais amplo de referencial simbólico onde a mercadoria carrega/agrega, além de valor monetário, valor social. É nessa perspectiva que podemos tentar questionar a lógica do consumo e do consumo de afro- americanos em específico. Zelizer (1999) já havia apontado os padrões e lógicas diferenciadas no consumo de afro-americanos ao analisar os processos de heterogeneização/homogeneização cultural de minorias étnico/raciais nos EUA.

23 Lamont e Molnár (2001), a partir de material coletado em entrevistas com especialistas de agências negras focadas em marketing e consumo para a população afro-americana, mostram como o consumo é entendido por esses profissionais – tanto a partir de experiências pessoais como profissionais – como uma forma de efetivar seu pertencimento a sociedade americana e moldar sua identidade coletiva. Em outros termos, o consumo é utilizado pelos afro-americanos como forma de comprar poder e criar uma imagem do grupo racial. As autoras mostram como esse é o discurso presente na fala desses especialistas, mas também como é possível notar através de pesquisas quantitativas como negros, apesar terem renda per capita menor do que brancos, gastam mais em produtos de beleza, roupas e tendem a comprar carros mais caros (ver Lamont e Molnár, 2001: 37).

24 Além disso, as autoras explicam como o consumo é utilizado pelos negros para criar um estilo próprio e, conseqüentemente, criar uma identidade coletiva. Consumir é, de acordo com os especialistas entrevistados, o meio mais adequado de se conseguir expressiva distinção cultural e ganhar aceitação na sociedade dominante expondo poder de compra e recebendo, em troca, um status mais igualitário. No mercado de consumo, como também nos mostra Zelizer (1999), igualdade e distinção são faces diferentes da mesma moeda. A positive group identity is closely linked with consumption, social membership and the demonstration of purchasing Power. In this context, the expression of cultural distinctiveness and racial identity is often framed primarily in terms of tastes slightly different from those of White or in the use of different brands but of equal status within a product category (Cadillac vs Mercedes, Hilfiger vs Calvin

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Klein, Kool Aid vs Coke, etc.). Or else, it simply means using the same goods differently (Lamont e Molnár, 2001:41).

25 Atenção deve ser dada ao fato de nossas autoras referirem-se mais especificamente ao consumo da classe média negra. Esse detalhe não afeta o uso do argumento que faço em minha análise, se considerarmos que esse padrão de consumo, apesar de ser mais evidente entre negros de classe alta e média, também informa a ação de negros pobres. Além disso, é necessário levar em conta argumento apontado por Zukin (1998) e citado anteriormente aqui, ou seja, o fato de que o “estilo alternativo” de negros e outras minorias étnico/raciais ter se tornado uma estética aceita e desejada de ser compartilhada é produtor/produto da ação ativa do mundo corporativo através de agências de publicidade que associam tênis de grifes como Nike e Reebok, botas da Timberland com o estilo de vida dos negros urbanos.

26 Sendo assim, o Counterfeit Alley pode ser visto como a alternativa para aqueles que também desejam consumir determinados produtos que os associem a este estilo de vida ou pertencimento étnico/racial, mas não possuem dinheiro suficiente para comprar suas mercadorias em lojas que forneçam produtos originais. Como afirmou um entrevistado pela reportagem do Times, o Counterfeit Alley seria o “shopping dos pobres”. Ou seja, essa área da Broadway fornece igualdade e identidade a seus clientes a preços mais baixos do que a Quinta Avenida. A fala de um hustler, por sua vez, enfatiza o aspecto da sobrevivência que tanto vendedores como compradores ali buscam: “For me, they find a living, I find a living; you know what I mean? You don’t know if it’s real or not” (“Para mim, eles [compradores] encontram uma forma de se manter, eu encontro uma forma de me manter: entende o que eu quero dizer? Você não sabe se é verdadeiro ou não.”)

Quando as Sacolas Pretas Somem

27 Subindo a Broadway em direção a rua 32 o número de rapazes negros parados nas esquinas vai pouco a pouco diminuindo. Na altura da Greely Square é possível notar pessoas andando de um lado para outro carregando diferente sacolas de lojas de departamentos, farmácias e outros estabelecimentos. Ali já não se vê mais negros nem sacolas plásticas pretas, uma vez que as mesmas estão misturadas à multidão que entra e sai do metrô na Herald Square Subway Station. Mesmo assim, a qualquer dia da semana é possível ir a Broadway, entre as ruas 26 e 32, e comprar de hustlers - tão negros quanto seus “clientes” - igualdade e identidade racial que serão levadas para casa em sacolas plásticas da mesma cor da pele de seus possuidores.

BIBLIOGRAFIA

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FILMOGRAFIA

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Just for Kicks. Thibaut Longeville and Lisa Leone. 2005. USA.

Discografia

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I’m a Hustla. Cassidy. 2005. Gravadora: Full Surface/J-Record.

NOTAS

1. A ilha de Manhattan, que é locus central de New York City, está dividida entre uptown (cidade alta) e downtown (cidade baixa). A maior parte das ruas é cortada por 15 grandes avenidas e suas numerações são distribuídas entre west (oeste) e east (leste). Ao redor de Manhattan estão localizadas suas grandes áreas externas conhecidas como boroughs, a saber, Brooklyn, Queens, Bronx e Staten Island. A população novaiorquina é estimada em 8.4 milhões de pessoas. 2. Esse pequeno relato foi apresentado como um exercício etnográfico na disciplina Fundamentals of Urban Sociology ministrada pela professora Virag Molnár na primavera de 2009 no programa de pós-graduação em sociologia da New School for Social Research. Agradeço os comentários e sugestões da professora Molnár na primeira versão do artigo; desnecessário dizer que os equívocos e imprecisões são de minha inteira responsabilidade. 3. Não é minha intenção nesse artigo aprofundar/explorar a discussão focada na economia informal, crime, ilegalidade, tráfico etc. Há uma vasta bibliografia focada nesses temas. Alguns poucos exemplos são os trabalhos de Sassen (1998), Wacquant (1998) e Venkatesh (2000). Para um bom e rápido balanço da literatura de origem francesa sobre o tema ver o artigo recente de Telles (2009). 4. Parte da letra do rap “I’m a Hustla” (2005) do rapper Cassidy, dá uma idéia do que é a prática do hustling: “Cause I could sell raid to a bug, I’m a hustla I could sell salt to a slug” (“Porque eu sou capaz de vender inseticida para uma mosca, porque eu sou um hustler eu sou capaz de vender sal para uma lesma do mar”). 5. Posteriormente o termo embeddedness foi utilizado e, de certa forma, popularizado por Mark Granovetter em seu estudo sobre o mercado de trabalho nos EUA realizado nos anos 1970. Entretanto, para esse autor o uso do conceito é restrito ao aspecto de network (rede) das relações sociais (ver Granovetter, 1985). 6. Telles (2009) mostra em seu artigo como uma série de autores tem aplicado o conceito de “economia de bazar” retirado de Clifford Geertz para qualificar a economia informal presente nos grandes centros urbanos principalmente a partir dos anos 1980.

AUTOR

MÁRCIO MACEDO

Bacharel em Ciências Sociais (2002) e Mestre em Sociologia (2006) pela Universidade de São Paulo. Desde 2008 é doutorando no Departamento de Sociologia da New School for Social Research e bolsista do International Fellowship Program (IFP) financiado com recursos da Ford Foundation. [email protected] http://newyorkibe.blogspot.com/

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“Meu professor é a bola”: a dinâmica multifacetada do aprendizado futebolístico

Enrico Spaggiari

Introdução

1 A proposta deste artigo é retomar algumas questões que trabalhei no mestrado, quando procurei analisar distintas propostas de ensino do futebol. O processo da pesquisa iniciou-se em fevereiro de 2007, marcado pela observação participante no CDM Cidade Líder1, o que inclui a escolinha de futebol, os times de futebol de várzea, diferentes atividades esportivas ali praticadas, dentre outras experiências e eventos, com intensas e constantes negociações visando ao acompanhamento das diferentes atividades.

2 A escolinha de futebol que acompanhei no CDM Cidade Líder era mantida em parceria com o Programa Mais Esporte2, criado pela Secretaria Municipal de Esportes de São Paulo e conveniado ao projeto Segundo Tempo do Ministério do Esporte. Coordenador do CDM Cidade Líder e ligado ao futebol varzeano do bairro desde a década de 1960 (como jogador, técnico e dirigente do clube Botafogo da Cidade Líder), Jaílson cuidava das tarefas burocráticas da escolinha, bem como do atendimento aos pais dos alunos. Antônio Silva, ex-jogador de futebol profissional que atuou em diversos clubes, com passagem pela Sociedade Esportiva Palmeiras ao final da década de 1970, comandava diariamente, nos períodos matutino e vespertino, as atividades da escolinha no campo de terra do CDM. As relações entre Jaílson e Silva, bem como as destes com as crianças e jovens do bairro, visto que os dois eram os responsáveis pelo ensino de futebol na escolinha.

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Foto 1 - Garoto observa centenas de fotos 3x4 de alguns dos muitos jovens que treinaram na escolinha de futebol do CDM Cidade Líder (foto de E. Spaggiari)

3 O processo de ensino na escolinha de futebol do CDM Cidade Líder foi, portanto, um dos pontos-chaves da pesquisa. Mas não somente o ensino, pois a proposta de estudar o ensino de um saber futebolístico não pode vir desacompanhada da idéia de aprendizado da parte das crianças e jovens, sujeitos ativos na construção das dinâmicas das atividades locais. Portanto, para apreender as práticas sociais e representações daquele plano, decidi enfocar o ensino e o aprendizado da prática futebolística, incorporando as crianças e jovens como sujeitos atuantes na edificação da vida social e dos processos educativos. Tal qual uma antropologia da criança vem, há tempos, justificando e defendendo (Cohn, 2005).

4 Posicionamento adotado logo após as primeiras idas a campo, quando pude observar, nas imediações da escolinha e em todo o bairro, um recorte etnográfico repleto de ambientes dos mais diversos para a aprendizagem do futebol: além do campo de várzea e da quadra poliesportiva do CDM, havia uma escola pública ao lado, ruas usadas para brincadeiras e jogos, terrenos baldios, “lan houses”; ou seja, procurei observar os diferentes espaços que faziam parte do dia a dia dos jovens e de suas redes de sociabilidade, onde o saber futebolístico era construído.

5 O impacto do fenômeno futebolístico no bairro podia ser visualizado nas vestimentas usadas no cotidiano pelos homens, principalmente, jovens: camisas dos clubes de futebol (em sua maioria, os paulistas, como Corinthians, São Paulo, Santos e Palmeiras) e agasalhos de torcidas organizadas paulistanas. Destacavam-se, também, embora sem a mesma regularidade das camisas dos clubes citados, o uso de vestimentas de equipes de futebol de várzea do bairro, presentes em diferentes momentos e espaços observados. Por fim, era comum avistar adolescentes e jovens vestindo camisas de equipes de futebol de salão, modalidade muito praticada na Cidade Líder e em outros bairros da Zona Leste.

6 Portanto, tendo em vista que se trata de um processo de ensino-aprendizagem futebolístico, pois existiriam diferenças entre o modo de aprender e o modo de ensinar, procurarei evidenciar como o ensino de um saber futebolístico deve ser compreendido a partir da complementaridade entre as diferentes práticas na escolinha, na rua, e em outros espaços. Trata-se, enfim, de uma discussão crítica das propostas de processo de ensino-aprendizagem a crianças e jovens.

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O aprendizado fora da escolinha

7 O advento das escolinhas de futebol, principalmente a partir da década de 1980, trouxe novas formas de se pensar o futebol brasileiro, com a valorização das demandas do universo espetacularizado, alicerçadas na nova ordem de formação de jogadores. Este advento faz parte de um grande do processo de modernização que teria se iniciado na década de 1960, com o surgimento de novos elementos (métodos de treinamento, tecnologias, marketing etc.) e atores sociais (preparadores físicos, fisiologistas, nutricionistas etc.) no quadro organizacional futebolístico (Florenzano, 1998)3. Nesse sentido, a racionalização dos métodos e técnicas de treinamento das escolinhas de futebol, decorrente de um possível cientificismo inspirado no universo esportivo espetacularizado, acabaria por preterir os modelos espontâneos de formação.

Foto 2 – O professor Silva orienta o posicionamento correto para os exercícios físicos (foto de E. Spaggiari)

8 Contudo, é possível observar uma pluralidade de sistemas de ensino, pautados por preocupações e objetivos dos mais diversos (ver Guedes, 1998; Pimenta, 2001; Santos, 2007). No caso do CDM Cidade Líder, o conhecimento científico e racionalização dos métodos eram temas muito mais presentes no discurso dos coordenadores e formuladores do projeto do que propriamente nas atividades diárias da escolinha. Desse modo, mostra-se mais interessante averiguar os processos de ensino e aprendizagem – sabendo que os modos de se ensinar e de se aprender variam de acordo com o recorte social e temporal –, do que investigar em que medida a escolinhas de futebol podem ser pensadas, numa retomada histórica, como instituições de ensino substitutas da rua, terrenos baldios e campinhos, que incorporam uma postura pedagógica na sua práxis.

9 Um aspecto, porém, veio a ganhar destaque ao longo da etnografia e suscitava opiniões destoantes dos diversos atores: a transmissão do saber futebolístico em outros espaços para além da escolinha. Nas minhas observações, três espaços rivalizavam, cada um a seu modo, com o campo de futebol da escolinha: a quadra poliesportiva, a pequena área do bar do CDM e as ruas do bairro. Alguns defendiam que jogar futebol na rua e nas quadras era essencial para a formação futebolística dos jovens; outros destacavam a importância dos treinos e atividades aplicados na escolinha para contemplar o sistema de formação de jogadores exigido, atualmente, pelo universo espetacularizado. Portanto, embora fossem espaços valorizados, havia uma tentativa dos coordenadores das atividades de assear os resquícios oriundos das práticas externas.

10 Existia, portanto, um diálogo tenso entre as práticas mais espontâneas e as práticas institucionais oferecidas nas escolinhas de futebol. Jaílson não permitia que as crianças usassem o campo para outros fins que não a prática do futebol ou a realização de

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exercícios físicos. Ao lado do campo, era comum outras crianças, não matriculadas na escolinha, utilizarem o espaço do bar do CDM para jogar bola, o que também não era tolerado por Silva, mas que não podia fazer nada, visto que não eram alunos da escolinha. Num certo dia, argumentei com Silva que seria interessante a presença das crianças jogando naquele espaço, pois em certos momentos eles paravam o jogo para acompanhar alguma atividade comandada por Silva dentro do campo. Silva desconsiderou a idéia, pois eles estariam “atrapalhando mais que ajudando”.

11 Deste modo, era possível perceber como Silva procurava separar as atividades que ministrava na escolinha de outras práticas ditas espontâneas, chegando, em certos momentos, a negar outros espaços como locais de aprendizagem. Num sentido contrário, o ex-jogador Raí enfatiza diversas vezes, ao longo de seu manual4, que o principal fator para se tornar um jogador de futebol é a prática, independente de onde for e com que for jogar. “A melhor tática é jogar, seja lá onde for” (2005, p.47)5. Se este livro tivesse de escolher apenas uma dica para dar a você, ela seria essa: o importante é entrar em campo, seja onde for. Mesmo que você já esteja apenas treinando em uma escolinha, é fundamental continuar competindo – na várzea, no society, no futsal... Qualquer lugar que você possa “ralar” pra valer (2005, 54).

12 O futsal disputado na quadra poliesportiva era o espaço que mais disputava a atenção das crianças e jovens com o campo de várzea. Silva, em diversos momentos, teve de proibir a entrada de garotos no treino por chegaram atrasados após partidas e jogos de futsal na quadra do CDM. Dodô (91), um dos preferidos de Silva, chegou a ser barrado do treinamento por mais de duas semanas, o que enfurecia Silva, que não apreciava os jogos de futsal, e afirmou não ter prazer nenhum em jogar na quadra. Para Silva, eram dois espaços distintos: “São diferentes em algumas coisas. No futsal, a bola é conduzida próxima aos pés, colada ao corpo. No campo, a bola pode ficar mais afastada do corpo, tem mais espaço para conduzir”. Opinião essa compartilhada por Jaílson: “Ah, rapaz, eu não gosto de futebol de salão. Já me chamaram para o futebol de salão, eu pensei bem, mas eu não vou, porque eu não gosto. Já dei treino de futebol de salão, já fui assistir, mas eu não gosto, meu negócio é futebol de campo”.

13 Porém, trata-se hoje, talvez, da principal modalidade disputada pelos jovens da Cidade Líder e de outros bairros da Zona Leste, dividindo a preferência dos praticantes com o futebol varzeano: E: Você chegou a jogar futebol de salão em algum time daqui? Denis (82): Futsal nunca foi uma coisa que eu gostei, foi uma coisa muito rara. Foi uma vez ou outra que eu cheguei a jogar. Tinha um time da rua aqui que era o Império. Cheguei a jogar uma vez e futsal mesmo era na escola. No bairro, nunca fui chegado. Sempre gostei de campo, gosto de jogar campo que tem dimensões maiores, tem mais espaço para correr. No futsal, fui mais assim como torcedor e para acompanhar meu irmão, meus primos e tal. E: E qual você mais gosta de jogar? Futebol de campo, society, de salão... David (90): Eu gosto de jogar quadra. Campo eu só vim jogar quando mudei para cá, para a zona leste, aí comecei a jogar campo. Agora, estou melhorando, porque eu estava acostumado a jogar quadra. E a chuteira tem bastante diferença... E: Quadra cansa mais ou campo cansa mais? D: O espaço é menor [...] mas você vai usar uma força mais bruta para poder parar, e fazer a jogada em velocidade, na mesma hora... E: E o que é melhor jogar, campo ou salão? Anderson (91): Campo. Salão é pior, eu acho. Mas eu gosto de salão, cara, porque você tem que ser rápido, mano, tem que pensar rápido. E: Você joga em algum time de salão?

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A: Eu jogo no time da favela: Sangue Bom. E: Você lembra os nomes dos times de futebol de salão do bairro? A: Firula, Agora é Nóis, Sangue Bom, 100% Favela, Irmãos Metralha, Veneno. [...] Têm uns que eu nem conheço. De cada área do bairro. Só joga quem é conhecido mesmo do bagulho. Só joga quem é conhecido mesmo da favela.

14 Optei por não acompanhar a prática desta modalidade na Cidade Líder ao perceber a amplitude e alcance da prática no bairro, impossível de etnografar durante o mestrado. Mas se trata um objeto a ser estudado de forma mais detida em pesquisas futuras sobre a formação de jovens jogadores de futebol. Portanto, o futsal faz parte da rotina de muitos dos jovens aspirantes a jogador, tal como Leandro (91), aluno do CDM Cidade Líder e frequentador das quadras de salão: E: Mas tem treino também ou é só jogo no salão? Leandro (91): Não, tem treino também. Eu treino de segunda e terça no salão. E: Mas no horário da manhã ou horário da tarde? L: Manhã, treino das nove às onze. [...] Tem jogo quase todo domingo, e de sábado também, pela Copa Prisma. E: Então, segunda de manhã e terça de manhã no futebol de salão; quarta de manhã e sexta de manhã aqui no CDM. L: Só quinta que eu fico de boa em casa. E: Dia de acordar mais tarde? L: É, ainda faço curso também à tarde. Terça e quinta-feira eu faço curso de tarde. E: Escola à noite? L: É, aí eu estudo de noite. E: Já jogou nos times de várzea aqui da região? L: Não, time de várzea aqui, não. E: Você acha que você aprende mais jogando aqui no CDM ou no futsal? L: Salão você pega mais um ritmo de toque de bola, de passe. Não é de catar a bola e já correr assim para cima, que nem no campo. Lá você olha, você toca, você corre, você volta. Aqui não, aqui você pode catar a bola e sair correndo. No salão são vários piques que você dá, você vai e volta, tem que voltar rápido. E: Cansa mais no salão? L: Cansa mais, bem mais, porque no campo você pára também. Na quadra, você não pode parar, porque você vai ter que ir e vai ter que voltar. Aqui você lança a bola, você pode parar, voltar um pouco para trás.

15 Observei um exemplo interessante em outro espaço do próprio CDM. Durante as atividades, em uma quarta-feira de manhã, Erick (94) participava do treino com bola no campo do CDM e, ao mesmo tempo, acompanhava o jogo disputado no espaço do bar, naquele momento por quatro garotos. Silva repreendeu duas vezes Erick; na segunda vez, excluiu-o das atividades: “Se prefere ficar brincando, vai lá jogar com eles, então. Não vem encher o meu saco aqui. Aqui você não joga mais, não te ensino mais nada”, reclamou Silva. E foi o que Erick fez: saiu do campo e foi direto ao bar para jogar com os demais garotos. Mas antes, disparou: “Não preciso que me ensine, meu professor é a bola”.

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Foto 3 - Crianças jogam bola no espaço do bar do CDM Cidade Líder (foto de E. Spaggiari)

16 Esta suposta autonomia, indicada por Erick ao sugerir que não aprendia a jogar na escolinha, levanta algumas questões. O mesmo garoto, quando lhe perguntei, respondeu que aprendera a jogar futebol em casa: “Fico jogando em casa, chutando bola na parede do quintal... faço também alguns truques, dou umas pedaladas... tento treinar essas coisas”. Em seguida, reforçou o argumento com outro exemplo: segundo Erick, quando era mais novo percebeu sozinho a importância de aprender a chutar de bico para o chute sair mais forte, pois não tinha a mesma força no arremate que os garotos mais velhos. “Eu já treinava na escolinha e ninguém me ensinou isso”, completou.

17 O fundamento do drible é um exemplo interessante para pensar as questões assinaladas por Erick (94). Tal como Damo (2007), que fez sua observações nos centros de formação e produção de jogadores no Internacional de Porto Alegre e no Olympique de Marseille da França, não observei qualquer atividade direcionada ao aprendizado do fundamento “drible”. Embora o treino de carregar a bola por 15 metros, cruzando cones pela direita e esquerda alternadamente possa aludir aos fundamentos básicos do drible, Silva frisou que o principal objetivo deste traçado era aperfeiçoar o domínio de bola do jogador. Para Silva, o drible e a ginga não são ensinados na escolinha, embora façam parte do conjunto de técnicas a serem incorporadas e instrumentalizadas pelo corpo.

18 O drible, segundo Silva, vem de forma natural para a criança, “o moleque já nasce com isso”; por natural, Silva se referia ao surgimento deste fundamento na rua, nos campinhos e em outros espaços dos mais variados. “Garrincha ficou bom driblando árvores”, afirmou Seu Geraldo, morador de uma das ruas que circundam o CDM. Para Jaílson, “isso eles aprendem nas ruas, nas peladas. Eu mesmo já tive muita agilidade. Quando moleque, subia muito em árvore, pulando muro, o que me ajudou muito na hora de jogar”. Isso foi reafirmado por Josias (93), aluno da escolinha: “no futsal lá da escola, a gente joga para ganhar. Mas o mais legal é driblar os outros meninos, humilhar mesmo... acho até mais legal que fazer um gol”. Opinião compartilhada por Denis (82), ex-aluno da escolinha: Acho que isso aí [o drible] é uma coisa que você pode aprimorar, mas ensinar não, pois isso você já sabe, é uma coisa que se aprende nas brincadeiras. Tem aquelas coisas de você ver aquele garoto que tem o potencial, já tem um dom para aquilo. Tem uma facilidade. Como eu te falei, na escolinha você vai ter uma parte de saber mais usar, vamos dizer assim, é doutrinar [...] mas essa coisa do drible acho que está presente desde quando nasce e você vai desenvolvendo. [...] O cara que não tem habilidade, ele não vai aprender a driblar, vai aprender a tocar, chutar, cruzar, se posicionar e marcar. Agora, aquele diferencial que a gente reconhece no brasileiro e no argentino, isso você não aprende não.

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Foto 4 - Garoto treina sozinho alguns movimentos e dribles (foto de E. Spaggiari)

19 Deste modo, o drible está presente nos modos de jogar destes garotos, assim como em seus movimentos, enquanto elemento basilar das representações de um “jogar à brasileira” e de um “futebol-arte”, o que contribui significativamente para a definição de um modo de aprendizado da prática futebolística no Brasil. “O futebol brasileiro é o que é hoje devido ao nosso jeito de jogar brincando, como se estivesse sempre numa pelada”, afirmou Seu Geraldo, numa reprodução discursiva do estilo “à brasileira” e do “futebol-arte”. Uma forma de aprender que, para Guilherme (94), é diferente do estilo europeu de jogar futebol, para ele, conhecido pela força, chutão e cruzamento na área. Porém, não tão diferente para o professor Rafael (85), pois nas mesmas brincadeiras que praticavam dribles, aprendiam a desarmar.

20 Tal comparação pode ser vista nos extremos habilidade/força, intuitivo/racional, futebol-arte/futebol-força – imprescindíveis para a compreensão dos estilos brasileiro e europeu. São estilos que não se definem por sua unidade opositiva, mas sim pelo fato de apresentarem elementos em comum e sobrepostos. Tais estilos podem ser entendidos enquanto formas-representações (Toledo, 2002), construídas na interação dos grupos de atores – torcedores, profissionais e especialistas - que compõem o universo futebolístico dito profissional, e de suas leituras dos padrões de jogo empregados pelas equipes6.

21 Portanto, como é possível perceber, no caso do drible, a valorização e a negação dos aprendizados nas práticas espontâneas eram frequentemente articuladas ao mesmo tempo. Em uma só conversa, por exemplo, Jaílson afirmou que a habilidade e criatividade das crianças e jovens decorriam, em parte, das adaptações aos diferentes materiais e equipamentos que utilizavam no futebol jogado na escola, na rua e em outros espaços; mas condenou os “vícios” que os jovens traziam destas práticas realizadas fora da escolinha, o que dificultava o seu trabalho, pois exigia mais dedicação e tempo para reeducar o modo de jogar dos garotos: Jogar bola ele aprende em qualquer lugar, no meio da rua. Agora, você precisa saber conhecer a posição do lateral direito, do lateral esquerdo, do volante, do meia- esquerda, do meia-direita, a função do meia de campo, do central, do quarto zagueiro, está entendendo? Do ponta-direita, do ponta- esquerda, que hoje em dia não se joga mais com ponta-direita e com ponta- esquerda, entendeu? Primeiro, tinha o ponta-esquerda, o ponta-direita e o centroavante, o meia-direita, o meia- esquerda, o volante e meio de campo. Hoje em dia são quatro no meio de campo e dois atacantes. Antes eram três atacantes. [...] Para você ver como é que as coisas mudaram.

22 Tais afirmações são corroboradas por alguns alunos e ex-alunos:

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Denis (82): Porque na rua você joga mais na brincadeira. Lógico, você leva a sério e tudo. A gente queria ganhar, mas é muito amador. Já na escolinha, foi mais ter contato com essa coisa da parte física, essa questão da tática, aprender a se posicionar, essas coisas todas que estão mais envolvidas com futebol profissional. [...] Foi na escolinha que eu fui ter mais esse conhecimento, mais técnico mesmo, mas com certeza já tinha noção de bola. Acho que na escolinha foram mais essas coisas de conhecimento mais técnico e tático. E: O que você acha que você aprendeu antes de ir para a escolinha? D: Antes da escolinha, já na rua, você aprende as noções básicas. Chutar, cabecear, marcar e tal, mas é muito por sensibilidade sua. Não era porque alguém está orientando. É uma coisa mais de você olhar os outros e ir aprendendo. Às vezes, um toque de um amigo seu ou outro, mas ali no meio do futebol aquela coisa está envolvendo a emoção: “Pega, marca lá e tal.”

23 Na escolinha, portanto, havia um processo de ensino concebido como uma geração mais velha ensinando gerações mais novas, próximo do modelo durkheimiano. Durkheim (1967, p.41) parte da idéia de inserção social, pois postula que a sociedade não existe sem uma homogeneidade e a educação tem como uma de suas funções reforçá-la, inserindo as crianças no corpo social. A educação consiste, portanto, numa socialização metódica das novas gerações.

24 Porém, a etnografia permitiu perceber que não se tratava de uma simples incorporação de saberes, pois o envolvimento das crianças e jovens é consciente e com um fim. Aquele que ensina e os que aprendem são sujeitos atuantes no ensino-aprendizagem, pois na transmissão destes saberes, a pedagogia envolve a todos e a criança e o jovem são sujeitos ativos no processo.

25 Sendo partícipes efetivas da produção social, as crianças não devem ser encaradas como receptores passivos dos ensinamentos transmitidos pelos adultos nos processos de socialização, como bem adiantou uma bibliografia antropológica sobre a criança e o aprendizado (Lopes da Silva; Nunes, 2002; Cohn, 2005). Mesmo o aprendizado mimético, como vimos, não é uma imitação mecânica da experiência adulta, mas sim uma recriação construída de forma dialógica, a partir de suas experiências e de suas relações com o mundo que as rodeiam. Isso leva a uma revisão, aqui esboçada, das abordagens socializadoras unilaterais, que pressupõem apenas as ações dos adultos.

26 Isso era visível na atuação destes em diferentes locais – como, por exemplo, no domínio da rua –, horas vividas nos espaços públicos e privados decisivas para o desenvolvimento das habilidades. Trata-se de uma característica que permeia o imaginário do futebol brasileiro, presente nas observações do jornalista Mario Filho sobre a formação do jogador de futebol no Brasil: Os moleques passando o dia inteiro com a bola de meia. Brincando com ela. Apostando quem demorava mais com ela nos pés. Sem deixar que ela caísse no chão. Havia moleque que ficava toda a vida assim. Suspendendo a bola, passando a bola de um pé para outro, cinqüenta, cem, duzentas vezes. Amanheciam com a bola de meia, a rua era o campo, formavam times de par ou ímpar, jogavam até não poder mais. A manhã, a tarde, a noite, eram deles. Não iam para o colégio, ficavam na rua. Fazendo inveja aos garotos de boa família... (Rodrigues Filho, 2003, p.76-77)

27 Mas uma concepção que não deixa de ser recriminada, visto a reação de muitos brasileiros à declaração do atacante francês Thierry Henry antes do jogo Brasil e França, pelas quartas de final da Copa do Mundo de Futebol Masculino de 2006:

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Quando eu era criança, ia à escola das 7 horas da manhã às 5 da tarde e, quando queria jogar bola, minha mãe não deixava. Dizia que estudar era mais importante. No Brasil, as crianças jogam das 8 às 18 horas. Em algum momento a técnica aparece. [...] [no Brasil as crianças] nascem com a bola nos pés. Na praia, na rua, na escola. Onde quer que você olhe, eles estão jogando”. (O Estado de S. Paulo, 30 de junho de 2006, p. E9.)

28 Trata-se, portanto, de um processo de aprendizagem vinculado a uma diversidade de usos do futebol e de experiências no espaço urbano, que dotam estas dimensões de novos significados, e de um modo que o futebol atravessa a vida dos jovens nos mais diversos sentidos: festa, trabalho, consumo, lazer. A internalização deste conhecimento ocorre, portanto, de diferentes formas: nos treinos ministrados por Silva, na interação com os demais alunos durante os treinos e em outros lugares para além do CDM.

29 Isso é possível devido ao processo de realimentação mútua entre as diferentes práticas e modalidades: futebol profissional, futebol de praia, futebol de rua, pelada, futebol de várzea etc. Os jogos mais espontâneos influenciam e interferem na dinâmica do futebol profissional, ao mesmo tempo em que o futebol espetacularizado, por seu lado, é a principal inspiração e o esporte mais popular entre os praticantes destas outras modalidades futebolísticas. Entre o futebol profissional e as demais práticas bricoladas, a maioria das características se repetem, embora apresentem especificidades, autonomia e irredutibilidade (Scaglia, 2003), e o que é aprimorado em um, pode ser utilizado em outro. O que Scaglia propôs como o conjunto da família dos jogos de bola com os pés, ou seja, a reunião de “todas as unidades complexas que se valem de uma bola que deve ser manejada com os pés à medida que o jogo acontece” (2003, p.153).

30 Pude observar o “três dentro três fora”, a “rebatida”, o “gol a gol”, o “cada um por si”, disputas de embaixadinhas e a “roda de bobinho”7. Ao jogar na rua o “Gol a Gol”, por exemplo, repete-se, constantemente, o fundamento de chute ao gol, muito utilizado nos mais variados futebóis, inclusive nos que compõem a dimensão espetacularizada. Portanto, aprender a jogar futebol “pressupõe aprender os jogos/brincadeiras de bola com os pés (pequenos jogos), ao mesmo tempo em que jogar essas brincadeiras, concomitantemente, se estaria jogando futebol” (Scaglia, 2003, p.20). Além disso, aprender a chutar diferentes tipos de bola (papel, couro, borracha, meia etc.), bem como por meio de diferentes calçados (descalço, chuteira, tênis, chinelo etc.) prepara o jovem e pode ampliar seu quadro de experiências para diversas situações dentro de um jogo.

31 O campo de futebol, por exemplo, pode apresentar inúmeras variações, mas dentro de certos limites e medidas mínimas e máximas8, mantendo seu formato retangular, ou seja, com o comprimento sempre superior à largura. Dependendo de suas medidas e condições do piso, as dimensões do campo podem influenciar, sensivelmente, a dinâmica da prática do esporte em questão, como frisou Silva: Por exemplo: jogar em campo ruim. Não é legal, mas ajuda a aprender a dominar uma bola, a correr, chutar ao gol. Quantos mais lugares diferentes jogar, melhor. Assim como o calçado para jogar: tem que saber jogar dos diferentes modos. De chuteira ou descalço. É bom, eu aprendi assim.

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Foto 5 - Campo encharcado abriga jogo entre jovens da escolinha e veteranos da várzea (foto de E. Spaggiari)

32 O depoimento de Silva traz uma questão interessante. Como foi possível perceber até agora, o ex-jogador Silva privilegiava, em seu método de treinamento, a aplicação de atividades inspiradas no universo espetacularizado. Reforçou, em diversos momentos, que o espaço da escolinha era o mais apropriado para o ensino da prática futebolística. Contudo, revelou que aprendera a jogar na rua e campos de várzea.

33 Nesse sentido, Scaglia (1999) pesquisou a história de vida de ex-jogadores profissionais, e que hoje atuam como professores de escolinhas, em busca de duas questões que foram depois comparadas: como eles aprenderam a jogar futebol e como eles ensinam, hoje, as crianças em suas aulas. Para Scaglia, os ex-jogadores, hoje professores, aprenderam a jogar de um modo distinto do que ensinam. Teriam aprendido na rua e campinhos, e hoje ensinam pautados pelos treinos oferecidos no plano do futebol profissional, onde predominaria o tecnicismo, algo que Silva confirmava em seus treinos: E: Você tenta fazer treino parecido com o profissional? S: É mais o treinamento que a gente fazia. Mas tem algum que não dá, porque às vezes a turma que é meio difícil de assimilar, mas o “arroz com feijão”, como se diz, mais alguma coisa, um pouquinho de “filé mignon” também, depende do grupo. Às vezes tem moleque que quer treinar, tem uns que não querem, vou dar minha aula hoje e aquele ali não quer fazer nada, aí a gente acaba não fazendo.

34 Embora tenha aprendido a jogar na rua e nos campos de várzea, Silva defende que os jovens têm de aprender desde cedo a jogar como os profissionais, por isso, opta por privilegiar os treinos técnicos e táticos que aprendeu e vivenciou durante sua carreira profissional, o que, para Scaglia, se afasta do que seria o ideal no plano pedagógico. A adoção do tecnicismo estaria, na verdade, segundo o autor, alterando a função da escolinha, pois seu papel não seria o de transformar crianças e jovens em jogadores profissionais, mas o de ensinar a jogar futebol em diferentes planos: tanto no da competição, como no educativo, com a transmissão de valores sociais e morais em busca da cidadania do aluno. Assim, segundo Scaglia, precisar-se-ia mais de professores do que de técnicos.

35 Além deste enfoque no plano educacional, Scaglia defende a inserção de brincadeiras de rua nas atividades das escolinhas, resgatando, assim, uma pedagogia de rua (Freire, 2006) que sempre teria formado ótimos jogadores. A pedagogia da rua, concebida por Freire, propõe que as escolinhas ensinem futebol por meio de brincadeiras, mas não só reproduzindo o esporte jogado na rua e em campinhos, mas principalmente ,“pedagogizando” o que é praticado na rua, visto que diversos elementos presentes no futebol de rua seriam contraditórios à proposta pedagógica ideal. De forma geral, ao

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propor essa incorporação da pedagogia da rua nas escolinhas, Freire (2006) procura valorizar os aspectos lúdicos da prática no processo de ensino e aprendizagem do futebol. Assim, para o autor, a pedagogia da rua poderia ser compreendida como um rico processo de aprendizagem9.

36 Na contramão das preocupações de Freire e Scaglia, destaco aqui uma concomitância pedagógica dos diversos espaços de aprendizagem. Além de me opor a uma possível incoerência entre o modo como se aprendeu e o modo como se ensina, visto que se trata de um processo de ensino-aprendizagem marcado por uma complexa heterogeneidade, assinalo a importância de analisar de forma contextual os treinos e métodos de ensino adotados hoje em várias escolinhas de futebol. Afinal, se tais métodos são tecnicistas, deve-se levar em conta a demanda por este tipo de trabalho, bem como o contexto atual de formação e seleção de garotos nos clubes.

Considerações finais

37 A aprendizagem, portanto, não pode ser dissociada das experiências cotidianas das crianças e jovens da Cidade Líder. Por isso, ampliei a análise para outros espaços do bairro, lugares de encontro e sociabilidade, bem como de vizinhança e pertencimento.

38 No caso desta pesquisa, enfatizei a convivência pedagógica entre as brincadeiras de rua, aulas de escolinha de futebol, partidas de futsal, atividades nas aulas de Educação Física, games virtuais de futebol etc. Ao longo da dissertação, analisei, para além do campo de futebol e da quadra poliesportiva, certos locais específicos de internalização do saber futebolístico vinculados ao CDM Cidade Líder: espaço do futebol e brincadeiras de rua; espaço (masculino e adulto) do bar do CDM, utilizado para disputas futebolísticas e várias brincadeiras nos horários de não funcionamento; as pontuais observações que fiz em duas lan houses próximas ao CDM, após notar como certas atitudes e ações adotadas pelas crianças e jovens nos treinamentos comandados por Silva faziam referência ao futebol jogado no videogame.

39 Procurei traçar, deste modo, uma comparação entre diferentes modos de ensino- aprendizagem para assim mostrar como a aprendizagem do futebol envolve mais do que técnicas, táticas e regras, visto que vários temas e categorias – como trabalho, violência, família, periferia, masculinidade – que apareceram durante a etnografia e que permeiam o universo simbólico futebolístico, são fundamentais para compreendermos as práticas e representações dos atores observados. Como observou Guedes (1998, p.124): o processo de transmissão que está em jogo é mais amplo e implica na(sic) exposição dos socializandos a significados naturalizados e objetivados em comportamentos, relações sociais e obras culturais. Inclui, portanto, uma série de atos não planejados e não conscientes, que se transmitem e são internalizados através da interação cotidiana, do estar lá e partilhar o mesmo espaço cultural [...] Trata-se, portanto, de apreender significados “praticados”, confirme já observei, que se realizam em situações sociais concretas na qual emergem relações e recortes sociais variados...

40 Para compreender esse processo, é preciso investigar os diversos significados que o futebol ocupa nas periferias paulistanas – lazer, exercício corporal, interação entre homens e carreira profissional (Guedes, 1982) –, pois é possível perceber a existência,

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neste recorte específico, de formas de sociabilidade que ultrapassam as propostas de prática futebolística voltada à profissionalização.

41 Assim, penso que o desafio para aqueles que pretendem investigar a construção do saber futebolístico é compreender as relações entre o que é vivenciado nos diferentes espaços da prática do futebol, observando o que é ensinado nas escolinhas, no futebol de rua e em outros espaços. Heterogeneidade que deve ser enfrentada por novos trabalhos voltados à antropologia das práticas esportivas (Toledo, 2001) e, mais especificamente, ao estudo do futebol, “uma atividade dotada de uma notável multivocalidade – uma vocação complexa que permite entendê-lo e vivê-lo, simultaneamente, de muitos pontos de vista” (DaMatta, 1994, p.12).

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NOTAS

1. O CDM Cidade Líder, criado em 1979, é um dos Clubes Desportivos Municipais (CDMs) da cidade, unidades descentralizadas do Município de São Paulo, de administração indireta, geridas por duas ou mais entidades civis sem fins lucrativos, regularmente constituídas, com objetivo primordial de desenvolver atividade desportiva em imóvel público, especialmente cedido a título precário para esse fim. Área pública gerenciada por um conselho local, o CDM Cidade Líder foi criado para oferecer atividades, equipamentos e estrutura esportiva; uma resposta, assim, à crescente diminuição de áreas públicas destinadas ao esporte e lazer. Em várias regiões da cidade, tal como ocorre na Cidade Líder, parte dos jogos e torneios de futebol de várzea, disputados majoritariamente aos finais de semana, ocorre nos campos de futebol (gramados ou de terra) dos CDMs. 2. Este Programa tem como objetivo oferecer, às crianças e jovens, na faixa etária de 7 a 17 anos, matriculados na rede de ensino da cidade de São Paulo, um conjunto de atividades esportivas e recreativas em horário complementar ao de suas aulas normais. As atividades ocorreriam em escolinhas de futebol organizadas nos CDMs, Clubes da Cidade, parques municipais e outros equipamentos esportivos, localizados principalmente em bairros periféricos de São Paulo, com a atuação de ex-atletas de diferentes modalidades como difusores. 3. Período no qual houve, segundo o autor (Florenzano, 1998), uma maior incorporação dos elementos táticos e disciplinares, voltados ao aspecto coletivo, bem como uma valorização da preparação física. Vocação essa inspirada no fracasso da Seleção Brasileira na Copa de 1966 e no ótimo desempenho das equipes européias, e que teve seu auge no sucesso da seleção na Copa do Mundo de 1970, com a utilização dos elementos acima citados. 4. Manual voltado ao ensino da prática futebolística, o livro Para ser jogador de futebol, centrado na carreira do ex-jogador Raí. A escolha desta obra não foi arbitrária. João Carlos, pai de um aluno do CDM Cidade Líder, comentou que comprara o livro do Raí para o filho, pois “se é para aprender, já aprende com um são-paulino”, afirmou. 5. Este aprendizado multifacetado é o principal aspecto que aparece no livro do ex-jogador Raí, que percorre a formação da criança até o profissional, elencando dicas para lidar com as pressões, com os agentes e assinatura de contratos, o papel dos pais, assédio sexual etc. 6. As diferentes interpretações e usos das regras implicaram distintos estilos e formas de jogar, conhecidos como padrões de jogo (Toledo, 2002) e expressos em combinações numéricas das mais diversificadas, que apresentam as posições e funções dos onze jogadores durante as partidas. Portanto, a partir das regras do jogo e destas formas e padrões de jogar, consolidam-se as representações coletivas das maneiras de jogar, expressas em estilos (jogar à brasileira) e escolas (escola carioca ou gaúcha). 7. Os nomes destes jogos podem variar de uma região do Brasil para outra, embora as regras sejam muito semelhantes. Utilizo aqui os nomes articulados pelas próprias crianças e jovens.

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8. Segundo a Regra 1, o campo deverá ter entre 90 e 120 metros de comprimento, e 45 a 90 metros de largura. Nos jogos internacionais, as medidas se ampliam: comprimento máximo de 110m e mínimo de 100m; largura máxima de 75m e mínima de 64m (Duarte, 2005). 9. Embora saliente o valor da pedagogia da rua para o aprendizado da prática futebolística, Freire (2006, 7) pondera também que “rua e escola são instituições bastante diferentes. Há, na pedagogia da rua, diversas coisas que não gostaria de ver repetidas na escola. [...] A pedagogia da rua é muito suscetível tanto às boas como às coisas ruins”.

RESUMOS

Pretendo, neste artigo, analisar o processo de ensino-aprendizagem futebolístico a partir do que foi observado na escolinha de futebol do CDM (Clube Desportivo Municipal) Cidade Líder, gerenciada por agentes vinculados ao futebol varzeano de um bairro periférico paulistano. Tendo em vista que se trata de um processo de ensino-aprendizagem futebolístico, pois existiriam diferenças entre o modo de aprender e o modo de ensinar, procurarei evidenciar como o ensino do saber futebolístico deve ser compreendido a partir da complementaridade entre as diferentes práticas na escolinha, na rua, e em outros espaços.

AUTOR

ENRICO SPAGGIARI

Mestre em Antropologia Social USP - Universidade de São Paulo [email protected]

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Entrevista

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Entrevista : Alba Zaluar

Alba Zaluar e Lilian de Lucca Torres

NOTA DO AUTOR

Entrevista realizada em 8/09/2009

Apresentação

1 Depois de um temporal que paralisou o trânsito e os aeroportos nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, Alba Zaluar, que ficou mais de 4 horas retida no Rio, concedeu gentilmente esta entrevista à Revista Ponto.Urbe ao chegar a São Paulo. Nosso encontro, que durou cerca de 50 minutos, ocorreu entre a chegada de Alba ao hotel e sua saída para a palestra de abertura do evento “VIII Graduação em Campo”. Por conta destas circunstâncias, muitas das questões previamente elaboradas não puderam ser aplicadas. Por exemplo, sobre as especificidades das relações de sociabilidade na escola de samba, no baile funk e no hip hop, principalmente em termos da dimensão

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intergeracional; sobre as ligações destas práticas com o crime organizado; sobre o papel assumido pela religião em um contexto dominado pelo tráfico; sobre as relações históricas entre sambistas e capoeiras, bicheiros e traficantes. Todas reflexões muito importantes no seu trabalho.

2 Assim, a entrevista transcorreu mais ao sabor de uma conversa sobre sua trajetória acadêmica e de algumas reflexões sobre seu extenso trabalho de pesquisa. Lilian de Lucca Torres (NAU): Poderíamos começar esta entrevista pela sua formação acadêmica. Alba Zaluar: Fui, na década de 60, para a Inglaterra com meu ex-marido e lá cursei Sociologia Urbana e Sociologia Industrial. Nossa situação era praticamente a de exilados. Fomos para Manchester, onde há uma Escola muito importante de Antropologia Social. Lá estavam Max Gluckman, Clyde Mitchell e Peter Worley, E. P. Thompson e Eric Hobsbawm que sempre ministravam palestras. Era um departamento conjunto de Antropologia Social e Sociologia, onde os sociólogos também faziam etnografia urbana. Eram antigos antropólogos africanistas, ou que estudaram a Melanésia, que foram para a Sociologia com a perspectiva do trabalho de campo etnográfico. Passaram a estudar vilas, pequenas cidades operárias inglesas, fábricas – o shop floor, as linhas de montagem. Foi entre eles que se começou a discutir e usar o conceito de redes sociais. Fizeram trabalhos muito interessantes, um pouco diferentes dos chamados estudos de comunidade, tão importantes no Brasil nas décadas de 40 e 50, feitos na perspectiva funcionalista. A partir das abordagens teórico-metodológicas da Escola de Manchester, estudaram a dinâmica política e a dinâmica das transformações culturais. Foi neste ambiente de estímulo intelectual que comecei minha formação profissional.

Lilian de L. Torres (NAU): Em que época isto ocorreu? Alba Zaluar: De 1966 a 1971. Em 1968 tive um filho e parei de estudar. Ganhávamos 40 libras mensais, éramos exilados e eu tinha um bebê para cuidar. Vim para o Brasil quando meu pai morreu. Foi depois do AI-5. Meu pai faleceu em 1969 e voltei na segunda metade deste ano. Mas não dava para ficar porque havia um Inquérito Policial Militar inconcluso, muita dificuldade para conseguir um emprego e porque meu marido estava na Inglaterra. Então, voltei para lá.

Lilian de L. Torres (NAU): Seu pai era médico e tinha estudado na Escola Militar. Você afirmou, certa vez, que sua opção pelo tema da violência teve uma relação com as audiências do IPM às quais seu pai a acompanhava. Alba Zaluar: Meu pai teve formação militar. Deixou a Escola Militar para estudar Medicina. Tinha muitos amigos da Escola Militar e cuidava de seus ex-colegas, capitães, coronéis. Apoiou o golpe, mas quando viu as consequências ficou muito decepcionado. Na verdade, era um udenista que acreditava nas instituições democráticas. Era contra Getúlio, contra a ditadura. Sua formação liberal era muito sólida. Meu pai nunca falou muito sobre o assunto, mas estou certa de que teria sido presa se não fosse a intervenção dele. Em 1970 voltei à Inglaterra e retomei os estudos. Meu filho já estava maior e minha mãe, que nos acompanhou, tomava conta dele e me ajudava. Mas engravidei outra vez. Resolvi voltar ao Brasil. Tive meu segundo filho aqui, uma menina. Essa formação na Inglaterra foi fundamental. Primeiramente, por ter sido multidisciplinar. Tive professores da Sociologia, da Antropologia Social e ouvia os

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historiadores sociais ingleses e sociólogos que eram sempre convidados para dar palestras. Goffman, por exemplo. Assisti aos autores da nossa bibliografia em Manchester. Essa preocupação com a empiria, com a pesquisa, era marcante. No mestrado não pude fazer pesquisa empírica por causa dos meus dois filhos. Fiz um trabalho de retomada dos estudos de comunidade para discutir o catolicismo popular. Fui orientada por Roberto DaMatta, no Museu Nacional. No doutorado, meus filhos já eram mais independentes, iam para a escola e, então, fui fazer o que sempre tive vontade: ir a campo. Fui para Cidade de Deus. Aqui na USP, embora tivesse aulas com duas antropólogas, Ruth Cardoso e Eunice Ribeiro Durham, que foi minha orientadora do doutorado, de fato aprendi muita ciência política. Era um momento de efervescência intelectual no Brasil, com a crise do modelo marxista, do comunismo. Uma crise da esquerda. Absorvíamos os ecos dos cursos que Francisco Weffort ministrava, muito importantes para desmantelar as idéias arraigadas na esquerda a respeito do que seria um governo justo. O problema que se colocava era como unir democracia, liberdade individual e direitos de cidadania à perspectiva de uma menor desigualdade social, entenda-se justiça social com maior distribuição de renda. Os cursos da Eunice e da Ruth eram muito interessantes. Li muita coisa a respeito destas questões e da crítica ao althusserianismo, que, no início da década de 70, dominava o pensamento da esquerda no Brasil, principalmente na universidade. Como minha formação foi na Inglaterra, não dava para pensar em termos de estruturas, determinação em última instância do econômico, modo de produção. Mas as pessoas já não contestavam mais. Portanto, a experiência na USP ofereceu-me a possibilidade de unir aquele cabedal de conhecimentos que tinha adquirido em Manchester - os estudos de dinâmica cultural e política - com a discussão sobre o futuro do Brasil como nação, sobre o processo de democratização do país. Foi um momento muito importante. Nas reuniões da SBPC, por exemplo, havia um debate entre os marxistas e os que defendiam Foucault, que viam o Brasil como uma sociedade disciplinar. O Brasil não é disciplinar nem na prisão!

Lilian de Lucca Torres (NAU): Quem eram seus colegas de pós-graduação? Alba Zaluar: José Guilherme Cantor Magnani e Teresa Caldeira, que foram orientandos de Ruth Cardoso, Maria Lúcia Montes, Elizabete Dória Bilac. Todos participavam dos seminários das segundas-feiras. Começamos estes seminários no final da década de 70. Fui, então, realizar meu sonho de fazer pesquisa de campo. Escolhi Cidade de Deus porque queria entender se as organizações vicinais, das quais todos falávamos como sendo características das favelas cariocas, teriam sido transportadas para os conjuntos habitacionais que receberam aqueles que foram removidos, principalmente da zona sul. Tinha ocorrido o primeiro conflito armado na cidade do Rio de Janeiro, envolvendo traficantes de Cidade de Deus, no início da guerra às drogas. Meu propósito, entretanto, era o de estudar o significado da pobreza e as organizações vicinais. Na Inglaterra entrara em contato com pesquisas sobre as vizinhanças, as redes de relações dos operários dentro da fábrica, que possuíam semelhanças com as relações de vizinhança. Quando fui para lá, Mané Galinha já tinha morrido e Zé Pequeno estava preso. Meu propósito, como disse, era estudar as organizações vicinais, mas chegando lá me

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deparei com os traficantes. Certo dia, cheguei à Praça Matusalém e os moradores estavam organizando um bloco de carnaval, para sair em 1980, porque o pessoal da vizinhança estava muito triste com a morte do Mané Galinha. Fiquei impressionada com aquilo e decidi que era o que iria estudar. Ao mesmo tempo, com a abertura, teríamos, em 1982, a primeira eleição para governador, deputados e vereadores. Deste modo, acompanhei de perto o processo de organização das associações e de formação do bloco de Carnaval. Tive os primeiros contatos, que eu saiba, de um pesquisador acadêmico da área de ciências sociais com jovens que estavam traficando. Também pude acompanhar o primeiro processo de eleição direta para governador. Escrevi minha tese de doutorado, “A máquina e a revolta”, e a defendi em 1984. O capítulo de que mais gostava na minha tese, sobre o clientelismo político, não foi o que fez mais sucesso, ao contrário daquele sobre os bandidos. Não entrevistei traficantes. Obtive mais dados da visão dos trabalhadores sobre os bandidos do que da visão dos bandidos sobre os trabalhadores. Fui chamada algumas vezes para falar sobre clientelismo político, porém, como era assunto novo, a maior parte dos convites foi para falar sobre os bandidos e o tráfico de drogas ilegais.

Lilian de Lucca Torres (NAU): De certa forma, era uma novidade o trabalho de pesquisa com uma população heterogênea. O recorte feito já não é mais o da “classe”. Alba Zaluar: Sim, fizemos este deslocamento. Fomos pesquisar a vizinhança, o bairro, o local de moradia. O local de moradia é muito mais heterogêneo. Assim, não podíamos falar de “classe operária”. No máximo, falávamos de “classes populares”.

Lilian de Lucca Torres (NAU): Os trabalhadores, os pobres. Alba Zaluar: Os trabalhadores pobres constituíam uma categoria bem mais ampla que a de operário. Uma população heterogênea de todos os pontos de vista, da inserção no mercado de trabalho, da formação étnica, racial, tudo.

Lilian de Lucca Torres (NAU): Mas com um nível de renda semelhante. Alba Zaluar: A experiência de vida no local de moradia os unificava. Havia um associativismo impressionante. Encontrei em Cidade de Deus uns 100 times de futebol, com carteirinha, diretoria e tudo. O bloco que pesquisei existe até hoje: Luar de Prata. Queria entender, apesar daquela heterogeneidade, o que fazia com que houvesse essa experiência de associação e se isto poderia se transformar em ação política. Estávamos cansados daquela visão pessimista do brasileiro amorfo, da sociedade brasileira gelatinosa, sendo somente os sindicatos o lugar da ação política. Com esse deslocamento para a vizinhança conseguimos uma riqueza enorme. Nos anos 80, vimos uma explosão de estudos que acabaram por se tornar muito próximos dos estudos de comunidade, só que tomando “comunidade” como vizinhança, favela, bairro. Ao mesmo tempo, a esquerda mais romântica tendia a idealizar a vizinhança como “comunidade de pessoas que se uniam para trabalhar pelo bem comum”. Esta perspectiva aparecia muito na pesquisa participante: as “comunidades” levariam adiante um projeto político do povo, idealizado na sua solidariedade, de oferecer saídas para a situação de desigualdade. Nenhum dos alunos da Eunice Durham adotou esta visão. Teresa Caldeira e José Guilherme Cantor Magnani mostraram todos os conflitos internos destas vizinhanças, destes bairros

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que estudávamos. Segundo nosso ponto de vista, era preciso estar atento e não ficar imaginando um povo que, na realidade, não existia. Outra questão dizia respeito às Comunidades Eclesiais de Base, uma igreja católica muito presente. Porém, as CEB’s acabam repentinamente com as mudanças na direção da igreja e a expulsão dos ideólogos da Teologia da Libertação. Este vácuo só ajuda a organização do tráfico a tomar conta da situação. Antes ela era bastante limitada. As associações de moradores mantinham atividades políticas e ligações com as Comunidades Eclesiais de Base, instituindo limites claros. Os adultos chegavam para os jovens que atuavam no tráfico e diziam: “Não venha para cá barbarizar; esconda esta arma”. No processo de redemocratização, os partidos políticos, principalmente PT, PDT e PMDB, começam a disputar as associações de moradores, que anteriormente mantinham a proposta de ser apartidárias. Com as eleições, houve um afastamento de alguns moradores, que começaram a desconfiar daqueles que se candidatavam e viravam vereadores, deputados. Estes entravam na mesma classificação dos políticos interesseiros, que chegavam em busca de votos e depois se esqueciam do que haviam prometido. Até meados da década de 80, as associações de moradores ainda eram muito fortes. Existiam, inclusive, federações.

Lilian de Lucca Torres (NAU): E as ONGs? Alba Zaluar: Começam a surgir no final dos anos 80.

Lilian de Lucca Torres (NAU): Como são as relações entre as associações de moradores e estas novas instâncias? Alba Zaluar: Muito tensas. Nas favelas onde havia projetos de ONGs, as associações se ressentiam, pois achavam que perderiam seu lugar. As associações viram diminuir seu poder político e sua capacidade de serem mediadoras entre o governo, os políticos e os moradores. As ONGs chegaram com outro modelo: o do trabalho remunerado. Conseguiam verbas de empresas, de fundações internacionais. Nas associações sempre existiu o trabalho voluntário. Houve, então, uma mudança nos interesses de quem ia para a associação: passaram a querer, também, ter projetos, verbas, remuneração. Isto facilita a entrada de traficantes e, posteriormente, da milícia, no final da década de 90, para tomar conta destas associações.

Lilian de Lucca Torres (NAU): Há trabalhos orientados por Ruth Cardoso, em que se observa um processo de institucionalização dos movimentos de reivindicação urbana, tais como movimentos de saúde, loteamentos clandestinos, defesa do favelado, luta contra o desemprego etc. Se, quando surgem, estes movimentos proclamam sua independência dos partidos políticos, no final da década de 80 isto mudará. A pergunta que se colocava era: com a institucionalização, haverá um afastamento em relação à população? Como se dará esta relação dos representantes dos movimentos, agora dentro dos partidos políticos, e suas bases? Isto ocorreu com as associações de moradores no Rio de Janeiro? Alba Zaluar: Quanto às associações de moradores, o problema é que esta institucionalização quase que se reduziu à obtenção de verbas para pagamentos do pessoal que nelas trabalhava. As associações faziam, inclusive, negócios imobiliários: expulsavam gente, alugavam ou vendiam as casas. É claro que não se pode generalizar e dizer que todas as associações passaram por este processo.

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Houve uma CPI, no Rio, nos anos 90, e naquela ocasião me disseram que 50% das associações de moradores estavam nas mãos do crime organizado e 50% não. Nunca mais ouvi falar de um levantamento semelhante. Fiz um levantamento dos domínios nas favelas do Rio de Janeiro. A Milícia em maio de 2009 dominava um número maior de favelas do que o Comando Vermelho. Em termos de área ainda é o Comando Vermelho. Se juntarmos o Comando Vermelho, o Terceiro Comando e o ADA (Amigos dos Amigos), os comandos do tráfico continuam dominando o maior território da cidade. Há na cidade, então, a Milícia, ligada à polícia, o Comando Vermelho, aliado do PCC de São Paulo, o Terceiro Comando e a ADA, uma dissidência do Comando Vermelho.

Lilian de Lucca Torres (NAU): Como você vê os ataques do PCC, em São Paulo, a agências bancárias, lojas comerciais, abrangendo vários bairros da cidade? Alba Zaluar: Isso acontece por conta da capacidade do PCC de coordenar várias ações simultaneamente em diferentes áreas da cidade. No Rio de Janeiro o que acontecia, mas é cada vez mais raro, era o tráfico descer para as adjacências da favela, fechando ruas, queimando ônibus. Como as favelas estão espalhadas pela cidade toda, isto é visível. Todos escutam barulhos de tiros, mas de certa forma continua sendo algo distante porque está lá na favela. Nunca houve um impacto na cidade toda porque são vários comandos no Rio. É uma desvantagem para quem mora na favela, pois os conflitos armados entre os comandos são constantes. Agora mudaram a política de segurança. Tudo indica que estão conseguindo conter mais os traficantes. Ocuparam algumas favelas pacificamente. No entanto, há muito que melhorar na abordagem policial, na relação com os moradores.

Lilian de Lucca Torres (NAU): E a estrutura das instituições policiais? Estamos caminhando para uma polícia mais democrática? Alba Zaluar: Enquanto permanecer uma estrutura institucional baseada em um distanciamento enorme entre os oficiais e a tropa haverá poucas chances de termos uma polícia mais civilizada. Não há comunicação. Quem vai conversar com o soldado é o cabo e o sargento. Não é um ambiente de profissionalismo, que exige mais conhecimento técnico e mais troca de informações.

Lilian de Lucca Torres (NAU): Precisamos investir na polícia investigativa? Alba Zaluar: Quem deveria cuidar do tráfico é a polícia investigativa. Isto abriria a possibilidade da ocupação se dar sem o confronto armado.

Lilian de Lucca Torres (NAU): E sobre o envolvimento da população com políticas de segurança pública? Alba Zaluar: Isso se dá pela vizinhança. Acabei de escrever um artigo, que está na revista Novos Estudos CEBRAP, sobre a eficácia coletiva, discutindo a importância de se entender as organizações vicinais nas suas ligações com o institucional, ou seja, a articulação entre o privado, o paroquial e o público. Lilian de Lucca Torres (NAU): Quais as diferenças entre os desafios para a abordagem etnográfica quando você começou suas pesquisas e agora?

Alba Zaluar: São enormes. Agora a negociação para entrar é dificílima e é preciso pedir licença. Eu não tive que pedir licença em Cidade de Deus. Claro que vieram sondar, queriam saber o que estava fazendo ali, não diretamente, mas através de moradores. Hoje não: “Não queremos alcaguete aqui”. Ou, então, já começam atirando. Para fazer a pesquisa sobre vitimização, chegamos a pagar um “guia” para fazer a intermediação. Fizemos duas

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pesquisas: uma na cidade toda e outra só nas favelas: 660 questionários em favelas e 3340 na cidade toda. Ao final 4000 questionários. O questionário é muito completo. Começa com informações pessoais, idade, sexo, ocupação profissional, renda, vai para a família, relações entre vizinhos, deterioração urbana e os crimes que o indivíduo vivenciou. Os principais são furto, roubo, homicídio, agressão física e sexual. E há perguntas do gênero “você ou alguém da sua casa foram agredidos por um policial militar?”. Há uma bateria só sobre a polícia: polícia militar, civil e guarda municipal. No Rio, a polícia civil melhorou muito: fizeram muitas contratações, pessoal profissional, biólogos, químicos, engenheiros, psicólogos. A polícia tem que trabalhar de modo interdisciplinar, precisa de profissionais de todas as áreas. A polícia militar não fez isso. Lilian de Lucca Torres (NAU): As favelas hoje, no Rio, podem ainda ser consideradas como parte integrante do tecido urbano ou, ao contrário, constituem um espaço com regras, dinâmicas e problemas à parte e, desta forma, sujeitas a políticas públicas diferenciadas? Alba Zaluar: Fazem parte do tecido urbano principalmente nas áreas mais pobres da cidade. Com as intervenções realizadas na favela-bairro não há mais diferenças entre o asfalto e a favela. Em alguns subúrbios, as favelas são até melhores que o asfalto, porque o subúrbio está muito deteriorado. A favela continua sendo o espaço onde as pessoas não são proprietárias. Portanto, ali podem ser expulsas e perder os imóveis onde moram. São lugares onde não houve ainda efetivação do título de propriedade. É um processo extremamente lento, com muitas complicações legais. Da última vez que tomei conhecimento eram 5% de habitações legalizadas. Por isso a milícia e o tráfico podem participar dos negócios imobiliários. Certas associações de moradores levam uma parte de todos os negócios imobiliários. Há também loteamentos, em geral irregulares, mas que não são considerados favelas pelo IBGE. Mas, esta ausência de infra-estrutura urbana não é o maior problema da favela. O problema é a falta de título, que fragiliza o poder do morador sobre sua habitação, podendo ser muito facilmente expulso. Então, só se consegue entrar pela rede de poder que se estabeleceu. Temos que parar de falar que favela é solução. A favela só está aumentando os problemas dos pobres na cidade. O favelado é muito prejudicado por estas estruturas de poder. Está pagando cada vez mais caro pela moradia, tendo que se submeter a estes poderes.

AUTORES

LILIAN DE LUCCA TORRES

Antropóloga, docente da FAAP e Pesquisadora Associada do NAU - Núcleo de Antropologia Urbana da USP pt

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Graduação em Campo

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VIII Graduação em Campo: espaço a jovens pesquisadores e incentivo à pesquisa de campo na área de Antropologia Urbana

1 Em setembro, ocorreu a oitava edição do Seminário Graduação em Campo, evento realizado pelo NAU – Núcleo de Antropologia Urbana da USP. O evento foi criado para que os alunos de graduação dos cursos de Ciências Sociais e Antropologia no Brasil pudessem apresentar seus trabalhos de pesquisa, valorizando assim a pesquisa de campo nas diversas instituições de ensino do país. Durante o congresso, os alunos puderam assistir a filmes etnográficos e também participar de minicursos ministrados pelos professores do Departamento de Antropologia da USP.

2 Além disso, o evento possibilitou que os alunos de graduação pudessem interagir com os alunos (mestrandos e doutorandos) do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, que atuaram como debatedores em diversas mesas e Open Spaces (novidade que substituiu o formato estático dos pôsteres pela interação entre alunos e debatedores). Saiba mais sobre cada apresentação clicando nos links:

3 Mesa – Entre Quatro Paredes

4 Mesa – O Sagrado em Movimentos

5 Mesa – Passagens

6 Mesa – Sou o que Sou: Corpo e Identidade

7 Mesa – Terapias Alter-Ativas

8 Mesa – Sexualizando

9 Open Space – “Periferias” e Relações Urbanas

10 Open Space – Antropologia Visual e Memória

11 Open Space – Gênero

12 Open Space – Identidade

13 Open Space – Meio Ambiente e Políticas Públicas

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14 Open Space – Sociabilidade e Lazer

15 Por conta da importância do VIII Graduação em Campo, a quinta edição da revista Ponto Urbe deu atenção especial aos trabalhos dos expositores, com a inclusão de maior número de artigos na seção dedicada ao evento. O leitor pode saber mais sobre as novidades e conteúdo da revista em nosso Editorial.

16 Comissão Editorial da Revista Ponto Urbe

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Imagens e memória: a Campinas dos postais

Samuel Leal

NOTA DO AUTOR

Este artigo é resultado de um projeto de Iniciação Científica, financiado pelo PIBIC/ CNPq e realizado entre agosto de 2008 e julho de 2009. Foi desenvolvido no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob orientação da Profª Drª Silvana Rubino, e resultou em uma monografia, defendida no final de 2009.

1 O objeto da pesquisa é constituído por seis cartões-postais da cidade de Campinas, datados das três primeiras décadas do século XX. O interesse pelo objeto surgiu do contato que tive com os cartões-postais que constituem o objeto em questão quando trabalhei no setor de Iconografia do Centro de Memória da Unicamp (CMU). Este contato me suscitou uma pergunta: por que necessariamente aqueles locais, e não outros, foram escolhidos para representarem a cidade? A partir dessa pergunta, a investigação procedeu pelo levantamento de material histórico em arquivo, e pela leitura sobre trabalhos históricos do período. Tendo em vista a reconstituição de um panorama da economia das trocas simbólicas relacionadas à identidade urbana na cidade de Campinas no início do século XX, adotou-se uma “postura etnográfica” (FREHSE, 2006) diante do material de modo a efetivar uma relação com o objeto estudado participando dos seus códigos e relações simbólicas, procurando suscitar aquilo que os discursos trazem para além de si mesmos. Considerando-se os postais como emblemas de totalidade urbana e registros significativos de cenários que dão suporte a imaginários urbanos (BARREIRA, 2008), propõe-se investigá-los como um elemento portador de valores simbólicos efetivados na sua troca e circulação. Aqui, a pesquisa em arquivo buscou reconstituir o contexto social em que eles foram produzidos e consumidos, reconstituindo as relações sociais de classe, a distribuição espacial da população, as políticas urbanas e teorias do urbanismo em voga naquele momento histórico. A partir desse esforço preliminar, os espaços retratados são

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localizados no panorama em questão e a partir disso constrói-se uma análise articulada com a teoria da imagem vinculada à história da fotografia.

2 A cidade de Campinas passava, no final do século XIX e início do século XX, por uma industrialização que acontecia em termos capitalistas, e que se dava com um século de atraso em relação às origens desse processo, a Inglaterra do século XVIII. Junto com as revoluções no processo produtivo vinha todo um novo estilo de vida proposto, a vida da burguesia industrial europeia. A velocidade das mudanças e a multiplicação dos contatos propiciados pela cidade grande começava a criar as condições psicológicas que irão caracterizar os habitantes das cidades grandes no século XX: intelectualismo, amortecimento de diferenças, postura defensiva nos contatos cotidianos. Esse tipo de insensibilização das relações diante da repentina massificação das mudanças, dos contatos, do consumo, das ideologias nas cidades em modernização foi tipificado po Simmel (2005) como o comportamento blasé. Todo esse conjunto de novos hábitos e costumes pode ser resumido em um conceito: modernidade. Embora o vocábulo não seja usado em Campinas até o início do século XX, aquilo que a população identificava por civilização ou progresso reúne todo esse conjunto de práticas e valores da vida moderna “e que se estende pelo econômico, pelo social, pelo político e pelo cultural” (LAPA 1996, p. 19).

3 Pensando o momento histórico por que a cidade passava segundo os termos propostos por Sahlins (2008), temos uma cultura aristocrática, marcada pela imobilidade social, profunda religiosidade, escravidão e vida rural, se confrontando com um modelo que vinha da Europa e que contradizia muitos dos seus aspectos. Observando o processo de modernização da sociedade paulista em termos culturais, é possível contrapor duas matrizes diversas em contato, onde uma assimila a outra nos seus termos próprios. Diferente da análise de Sahlins, que aborda dois grupos culturais colocados em contato em uma situação específica, o contexto em Campinas era de uma sociedade de valores europeus instalada em uma ex-colônia, que guardava ainda valores já ultrapassados na Europa. É um aprofundamento do processo de mudança cultural iniciado com as revoluções burguesas, e que chegava com atraso de décadas no Brasil.

4 Esse novo padrão cultural envolveu mudanças nos aspectos mais cotidianos da vida, como na relação entre o público e o privado, a rua e a casa. Na casa aristocrática, as várias salas e os jardins eram espaços semi-públicos, onde as visitas eram recebidas e os eventos sociais aconteciam (LAPA, 1996). Já a rua, nesse período, é considerado lugar desprestigiado. Apenas escravos e tipos sociais desqualificados a frequentavam. O contato social entre membros de diferentes classes era muito restrito, concentrado principalmente na relação das famílias com os escravos. O advento da modernidade alterou essa relação. Melhoramentos urbanos como transporte e iluminação pública tornaram as ruas lugares menos inóspitos, mais transitáveis. O crescimento populacional tornou inviável o padrão de moradia dos casarões aristocráticos, fazendo surgir casas menores e cidades mais densamente povoadas. Tudo isso confluiu para que as ruas fossem mais frequentadas. As famílias que estavam acostumadas a controlar seus encontros sociais agora era obrigada a ver, ouvir, cheirar e tocar pessoas, coisas, e atos, alheios ao seu circulo sócio-cultural. Isso por que as casas, menores, não eram mais apropriadas para grandes eventos sociais. Além disso, os valores de privacidade e individualidade burgueses começavam a ganhar força, e os equipamentos urbanos convidavam a ida à rua. Daí esta ter sido caracterizada como o espaço por excelência dos confrontos culturais entre a aristocracia e a modernidade, locais de sua maior

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expressão (FREHSE, 2005; LAPA, 1996). Ao mesmo tempo, com o fim da escravidão, os ex-senhores começaram a conviver com os ex-escravos em uma relação diferente das que estavam acostumados. E tais encontros aconteciam necessariamente nas ruas ou em espaços públicos como o bonde.

5 Por outro lado, o fortalecimento das cidades trouxeram o instrumento legal como ferramenta de controle para a elite. Se a coerção na sociedade aristocrática acontecia pela intimidação física, com o surgimento de estilo de vida burguês o direito irá assumir esse papel. Deste modo, os códigos de posturas formaram documentos que indicavam os bons-usos das ruas, coibindo atividades relacionadas à cidade aristocrática, como animais soltos, comércio ambulante, mendigos, lixo e esgoto aberto (FREHSE op. cit.). Assim, uma sociedade aristocrática adotava valores burgueses, incorporando as mudanças na sua estrutura social, de modo a evitar transformações profundas. Também nesse caso “é verdade que, quanto mais ele [o sistema] muda, mais permanece o mesmo” (SAHLINS 2008, p. 67). Aqui, o modelo de Sahlins para a reconfiguração estrutural a partir de um evento é utilizado com aproximações: no lugar de um evento, temos um novo paradigma social, que é assimilado pela estrutura agrária-aristocrática. Observa-se o “emburguesando” a aristocracia local que, no entanto, adota de maneira desigual as premissas de “igualdade, liberdade e fraternidade” em todas as suas consequências como pensadas na Revolução Francesa. Se contingências estruturais determinaram em que medida cada uma dos aspectos dessa universalização dos direitos foram implementados, a aristocracia atuaram como um agente importante na manutenção dos seus privilégios.

6 No caso de Campinas, o ser moderno estava associado ao ser republicano, ser abolicionista, ser imigrantista, ser progressista, ser higienista. No entanto, esse ser moderno não atingia a toda população igualmente, mas segmentos representativos, no caso, a aristocracia agrária, dando a impressão “de que afinal a cidade cresce e prospera a um ritmo diferente, mais acelerado do que aquilo que vai à sua volta” (idem). Acontece que tal processo, como demostrado anteriormente, não foi de modo algum tranquilo. O processo que naquele momento era almejado pela elite da cidade não podia ser copiado fielmente aqui, uma vez que as condições sociais e material eram completamente outras. A desejada modernização da cidade passaria necessariamente por grandes ajustes, e em grande parte seria simplesmente impossível. A nova cidade deveria limpar de sua face os resquícios do atraso da velha ordem, e para tal teve que impor sua racionalidade à vida urbana, disciplinando, categorizando, legislando, designando lugares e práticas. Formas de ocupar e viver a cidade, herdadas do período colonial, praticadas pelas classes subalternas que eram as que de fato transitavam pelo espaço público na época, entraram em conflito com os novos interesses da classe dominante. Nesse contexto “as inovações tecnológicas e científicas que chegam à cidade são demonstradas e posteriormente incorporadas ao seu dia-a-dia, tendo um papel decisivo, (...) na conscientização e viabilização desse processo [de remodelação urbana]” (idem, grifo meu).

7 Dentre estas, surge a fotografia como uma técnica que prometia algo milagroso: reproduzir com máxima fidelidade o mundo visível. E rapidamente passou a ser utilizada como forma de eternização de imagens, seja de pessoas, seja de lugares. Fato notável é que um dos primeiros usos da fotografia foi retratar membros das classes emergentes que buscavam uma “aura” de respeitabilidade para sua imagem eternizada (BENJAMIN 1988). As cidades também foram objetos de fotografias desse tipo. No Brasil,

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álbuns de fotografias de paisagens urbanas foram muito populares, e eram vendidos como lembranças para estudantes e turistas. Com a chegada de uma nova forma de comunicação ágil e barata, rapidamente os usos da fotografia convergiram para esta novidade: o cartão-postal. Primeira “forma de comunicação que envolve um processo industrial de produção da informação” (VASQUEZ, 2002, p. 19), os postais ganharam popularidade em uma velocidade impressionante, passando a constituir um hábito difundido em todo o país (LOBO, 2004). Foi neste suporte que a fotografia cumpriu seu papel de exaltar as belezas e os avanços das novas cidades modernas brasileiras, nascidas do enriquecimento das elites regionais de estados como Rio de Janeiro, São Paulo, Amazonas e Pará. Neste tipo de fotografia, as cidades são retratadas de uma maneira muito específica: elas registram os “bons usos” da cidade, excluindo do olhar os “contra-usos”, atividades e lugares marginais. “Os postais fazem parte do circuito de memórias que buscam indicar uma valorização da cidade pelo recorte de cenários considerados representativos” (BARREIRA, 2008, p.109). Refletem uma iniciativa por parte de agentes específicos (no caso de Campinas, a elite aristocrática-burguesa) em busca de legitimação da sua visão de mundo sobre o espaço urbano. As imagens em questão expressam a força de um poder simbólico sobre o imaginário urbano e, consequentemente, sobre o espaço físico da cidade, decorrente das disputas e tensões características do espaço social de uma sociedade que vivencia o embate entre duas ordens sócio-culturais conflitantes. Essa cidade imaginária, uma vez incorporada às práticas que permeiam a vida dos indivíduos, concretiza a dominação na forma do consenso, uma prática de violência simbólica (BOURDIEU, 1997).

8 Os cartões-postais indicam modos de representar a cidade que constituem verdadeiros paradigmas, tanto no sentido da representação quanto no uso da técnica. No caso dos postais, no que tange a técnica, o formato predominante é a fotografia de paisagem urbana. Este tema fotográfico se consolidou como o mais popular no mercado. Regras de composição para tal temática, como o céu não poder ocupar mais que um terço do quadro, ou a necessidade de haver um elemento em primeiro plano para reforçar a sensação de profundidade e emoldurar o olhar, foram consagradas de modo a constituir uma fórmula de grande sucesso comercial que foi explorada durante décadas e continua sendo uma referência. Para ilustrar isso, recorro à fala do editor francês Robert Girault (VASQUEZ 2002, pp. 50-51), da Editora Yvon, proferida em um colóquio em homenagem ao fotógrafo francês Joseph Nicéphore Niépce. O editor procura justificar em sua fala a predileção por parte dos editores de postais pela paisagem urbana. Para isso, ele define a produção de postais como sendo antes de tudo uma atividade econômica. Nesse sentido, ela estaria subordinada a interesses de mercadológicos, mais especificamente de seu maior mercado, o turístico. Isso porque o viajante desejaria enviar para sua terra natal um retrato fiel aos seus sentimentos em relação ao lugar que está visitando. Tais sentimentos seriam sempre exagerados face à realidade do lugar, uma vez que inseridos no tempo mítico resultante de um estado liminar que é o período da viagem, momento de suspensão das rotinas e regras da vida cotidiana. Daí, segundo esse editor, a predileção dos viajantes pelas imagens de paisagens urbanas e, portanto, também dos editores de postais, uma vez que elas ressaltam as belezas e o deslumbramento que uma terra estrangeira desperta no olhar do viajante. Pelo mesmo motivo, as séries de postais que exploram técnicas fotográficas ousadas seriam destinadas a um público restrito de estetas e colecionadores. Para ele, os turistas em férias não fariam um esforço intelectual na hora da maioria de suas escolhas, inclusive na compra de postais. Nesse momento de relaxamento, seguiriam o

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que o editor chama de “gostos primários formados ao longo de gerações sucessivas pela sociedade ou pelas tradições de cada povo”, gostos que estariam armazenados no “âmago do inconsciente” de cada indivíduo. Este gosto primário genérico seria o que constitui “a base da arte popular”, contraposta a uma idealizada arte superior que seria “fruto de um esforço intelectual e de uma busca daquilo que denominamos cultura”. Por isso, acabariam fazendo as escolhas óbvias das paisagens clássicas, “gosto primário” que os editores deveriam seguir para ter sucesso comercial. Diferente seria o comportamento do comprador em época de trabalho, tempo de rotina e atividade intelectual, quando compraria postais mais elaborados artisticamente.

9 Girault deixa transparecer uma concepção elitista de cultura, na medida em que acredita que a arte popular seria fruto da simples transmissão da tradição, do conhecimento passado de pai para filho, categorias gerais formadas pelos hábitos de um povo. Ao contrário, “as demais artes” seriam fruto do intelecto e da busca pela cultura. Ou seja, a cultura seria algo que para existir deveria passar pela mediação do intelecto, da razão, argumento típico do pensamento iluminista europeu que na virada do século era referência para a elite intelectual e artística brasileira. Concentrando-se no argumento de que a arte popular seria o gosto mais básico e geral, trazido pelo inconsciente, o autor atribui a isso a predileção pelos postais clássicos. Acredito que este gosto geral está muito mais próximo de um discurso legitimado por relações de poder. Em outras palavras, trata-se de uma hierarquia de visões de mundo estabelecida pelas relações de forças entre os agentes do campo da arte fotográfica (e da cultura em geral). Ainda, acrescento que tal preferência não se restringia aos viajantes, mas ao público consumidor de postais em geral, sendo as matrizes desse gosto médio dadas pela nova concepção de cidade que vigorava no início do século XX, sob a influência por um lado do urbanismo sanitarista, e por outro da ideia de modernidade na construção das casas, das ruas e das leis de controle social.

10 Deve-se ressaltar que não se trata de argumentar por uma simples determinação da atividade artística do fotógrafo pela ordem social, e sim pela mútua influência entre a orientação mercadológica dos editores e a produção artística. Conforme o modelo dos campos de Bourdieu (1996), procura-se entender as relações entre fotógrafos e editores como trocas entre agentes inseridos em um campo da estrutura social. Os editores procuravam estar sintonizados com os gostos e vontades dos consumidores, os quais eram influenciados por aqueles valores citados. E como eram estes editores que selecionavas as imagens a serem publicadas, os fotógrafos procuravam fugir de possíveis desvios daquele “gosto geral” desejado pelos editores, pelo menos na sua produção voltada para este tipo de público. Em outras palavras, os fotógrafos, ocupando uma posição subordinada, sofrem marcada influência do discurso legítimo deste campo, procurando ratificá-lo através de suas fotos, em troca de capital econômico. Por outro lado os editores, agentes em posição privilegiada, podem dispor desse capital econômico em troca do capital cultural e artístico dos fotógrafos. Assim, o capital destes contribui para reforçar e manter tanto a legitimidade do discurso quanto a posição estratégica no campo daqueles.

11 A fala de Girault ecoa os argumentos de Arlindo Machado sobre a natureza simbólica da fotografia: formação de imagens através da ação e da interpretação técnica sobre a natureza. Ainda que guarde algo de indicialidade, a fotografia é essencialmente simbólica, e por isso existe numa “relação triádica” entre o signo, seu objeto, e a interpretação deste pela técnica (MACHADO 2004). Ou seja, as fotografias de paisagens

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urbanas, predominantes nos cartões-postais, por mais que tivessem seu consumo guiado por um desejo de verossimilhança (indicialidade), está também determinado por desejos de outra ordem, que remetem aos imperativos de civilidade, modernidade e urbanidade, valores que chegavam aos centros urbanos desde fins do século XIX e que na década de 1920 ainda tinham forte influência. Segundo a matriz da semiótica pierceana que Marchado invoca, procura-se pensar o processo de significação das imagens urbanas, no que tange a técnica e a natureza da imagem fotográfica, como uma constante tensão entre esse duplo aspecto da fotografia, índice ou símbolo: há momentos, usos e/ou perspectivas em que a indicialidade predomina, no caso em estudo, principalmente sob o ponto de vista do consumo turístico da cidade, em que há um desejo de reprodução fiel daquilo que foi visto; por outro lado, do ponto de vista das políticas urbanas ou do mercado de cartões-postais (fotografia de paisagem), por exemplo, o aspecto simbólico da fotografia é predominante, articulado frequentemente de maneira consciente por parte dos atores em questão. A análise das imagens que constituem o objeto de pesquisa foi levada a cabo tendo levando em conta esta tensão, procurando fornecer os elementos da imagens que, apesar de sua natureza indicial, fornecem elementos para uma rendimento simbólico dessas fotografias.

12 Vamos à história da Casa Genoud, tipografia que imprimiu os postais em foco neste estudo. A loja foi fundada em 1876 pelo imigrante francês Alfredo Genoud, sob o nome de Au Monde Elegant. A casa iniciou suas atividades vendendo perfumes, pinturas a óleo e pianos, logo passando a funcionar também como armarinho e livraria. Posteriormente seriam oferecidos os serviços de tipografia e papelaria. Compunha, ao lado da Casa ao Livro Azul e da Casa Mascote, as principais tipografias da cidade, e serviram como iniciação para muitos jovens na imprensa campineira. Era um ponto de encontro da elite cultural e artística da época, espaço importante de sociabilidade e divulgação cultural, onde eram realizadas exposições artísticas, apresentações musicais, leituras de poemas, que propiciavam aos novos artistas campineiros grande visibilidade. Com a morte de Alfredo Genoud, a administração fica a cargo de seu filho, Pedro Genoud. Este falece em 1940, quando a Casa fecha suas portas. Pela história do estabelecimento nota-se sua capacidade de gerar acontecimentos sociais, mobilizando as redes de relações. Isso porque ali era um ponto de encontro dos formadores de opinião da cidade, além de lugar de comércio. Não por acaso a primeira exibição pública do funcionamento do telefone na cidade foi uma ligação de um aparelho no rinque de patinação para outro na Au Monde Elegant, em 23 de agosto de 1878. Enfim, um local que congrega e faz circular discursos, ideias, imaginários, seja na forma de exposições, saraus, concertos, livros, ou cartões-postais.

13 Não cabe no espaço de um artigo a análise detalhada das seis imagens em questão. Por isso atenho-me à mais expressiva delas, o cartão-postal que retrata a Rua Barão de Jaguara. Uma das três vias que nasceram com a cidade, a Barão de Jaguara seria, desde a fundação da vila até as reformas do plano Prestes Maia em meados do século XX, a principal rua do centro histórico. Junto com as ruas Lusitânia e Dr. Quirino, ela marca o primeiro mapa urbano da cidade, quando eram conhecidas, respectivamente, como rua de Baixo, rua do Meio e rua de Cima. Posteriormente seria denominada Rua Direita, em virtude de sua localização à direta da Matriz Velha (atual Igreja do Carmo). Seu atual nome é uma homenagem ao médico Antônio Pinheiro de Ulhôa Cintra, que ocupou diversos cargos políticos na província de São Paulo, tendo chegado em 1889 ao cargo de presidente provincial. No ano de 1934 o engenheiro Francisco Prestes Maia1 é contratado pela prefeitura e apresenta seu “Plano de Melhoramentos Urbanos”, que

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“estipulava mudanças a longo prazo (entre 25 e 50 anos) e tinha como meta preparar a cidade para a industrialização em curso, montando um aparato que supostamente seria tanto a causa como a consequência de um desenvolvimento previsto” (CARNIELLI, 2007, p. 110). O plano previa o alargamento de vias centrais para favorecer o fluxo dos carros na região. Com isso, a rua Francisco Glicério seria alargada, se transformando na principal via no centro a partir de então e tirando esse status da Barão de Jaguara, que o ostentara desde os primórdios da cidade.

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15 Este foi um dos locais mais retratados nos postais da primeira metade do século XX, sendo a via pública de que mais encontrei imagens durante a pesquisa. Tal fato não surpreende, uma vez que a rua reúne todos os elementos indicativos da modernidade desejada pela elite campineira. Vejamos o cartão-postal, datado da década de 1910. A rua sempre concentrou casas de comércio de todos os tipos, o que está explícito na imagem. Os toldos dos dois lados da rua denunciam o caráter comercial dos estabelecimentos. Este tipo de atividade, segundo Simmel (1983), está relacionada à figura do estrangeiro, sujeito que não tendo nascido no local, ou seja, não sendo possuidor de terras, tem laços móveis, fluidos com o lugar. Esta mobilidade realiza a síntese entre a presença e a distância, posições ambíguas e essenciais à posição social do estrangeiro. Ressalto tal figura social pois está relacionada intimamente com o fenômeno da modernidade. A ela está ligada também o surgimento de outra figura importante, o transeunte. São transformações que marcam o espaço urbano que é a rua. Se antes ela estava restrita às classes marginais, agora é passagem obrigatória de todos, e por isso é espaço de disputa e tensão. Deste modo, vemos na imagem pessoas de diferentes classes sociais caminhando nas calçadas, desde um jovem com roupas simples à esquerda, até um senhor de paletó, terno, gravata e chapéu, também à esquerda, um pouco mais ao fundo. Essa convivência entre tipos sociais diversos é algo novo para os habitantes dessas cidades que começam a se modernizar, e irá resultar em diversas medidas disciplinares por parte do poder púbilco, procurando controlar elementos indesejáveis com que agora a elite é obrigada a conviver. Em 1871 tem início o emplacamento das ruas e casas, para identificação e endereçamento. Mais um sinal da emergência da ordem burguesa moderna nas relações sociais, que propõe uma cidade racional, objetiva, civilizada. Segundo Lapa (1996), esse confronto é o marco do urbanismo moderno.

16 Curiosamente, é possível ver o alto de uma torre, mais ou menos no centro da imagem. Este prédio é o sobrado que abrigou a Casa Genoud a partir de 1911. Não é possível afirmar que o ângulo escolhido pelo fotógrafo se deva exclusivamente ao prédio da tipografia, uma vez que este é um enquadramento comum desta via da cidade. Isso porque o fotógrafo está posicionado no Largo do Rosário, praça que, por ser um espaço aberto, permite uma tomada ampla da rua. Ainda, sendo este Largo um dos centros da vida urbana do período, é natural que os habitantes estivessem acostumados a enxergar a rua a partir deste ponto. Assim, pode-se apenas cogitar sobre o fato de o fotógrafo ter escolhido retratar este lado da rua, e não o outro, em direção ao Largo do Carmo. O Carmo é considerado o berço da cidade, local que concentrou equipamentos urbanos importantes como a Matriz Velha (atual igreja do Carmo), a primeira sede dos Correios, a Cadeia, a Câmara dos Vereadores e o Pelourinho. Atualmente abriga o mausoléu do maestro Carlos Gomes. Seria natural que, seguindo uma noção espacial orientada por esses marcos importantes, o fotógrafo direcionasse sua câmera para este lado. No

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entanto, ele preferiu dar as costas para a Matriz Velha, fotografando o outro lado, onde se pode inclusive enxergar o final da cidade, denunciado pelas árvores no horizonte. É provável que tenha sido por orientação do editor, ou pela intenção de oferecer seu trabalho àquela casa.

17 Voltando à fotografia, nota-se a presença marcante de sinais de melhoramentos urbanos. Na parte superior da imagem enxergamos o céu cortado por postes e fios que levam os serviços de energia elétrica e telefonia. Se, como já foi mencionado, os telefones já funcionavam na cidade desde 1884, a eletricidade ainda era uma novidade que havia sido instalada pela Companhia Campineira de Tração, Luz e Força (CCTLF) em 1911. Além de iluminação, esta empresa também era responsável pelo sistema de transporte movido a energia elétrica. Pode-se ver no chão os trilhos do bonde elétrico, levando um vagão que já vai próximo ao horizonte. Este sistema de transporte coletivo era mais um dos espaços em que indivíduos de classes diversas eram obrigados a conviver. Tal interação trazia algo muito estranho para a elite campineira, que era o contato com os trabalhadores dos bondes. Muitos eram ex-escravos que agora se relacionavam, ainda que uma posição claramente inferior, como indivíduos livres. Aqueles negros não só deixaram de ser propriedade, como eram trabalhadores que estavam sujeitos à autoridade da empresa, e não de qualquer pessoa de classe superior que encontrasse na rua. O mesmo acontecia com os imigrantes que vieram trabalhar nas lavouras de café e agora procuravam novas oportunidades na cidade. Eis que os membros da antiga aristocracia se encontram, pelo menos durante as breves viagens do bonde, niveladas com qualquer pessoa com que divida aquele meio de transporte, no nascente processo de massificação trazido pela modernidade (FREHSE, 2005). A fotografia já traz também uma marca do individualismo que irá caracterizar a burguesia urbana moderna: o automóvel. Na calçada direita está um carro estacionado, e outro mais adiante. Ao mesmo tempo em que a massificação atinge todos os habitantes da cidade, impulsos de individualização já começam a colocar vetores contrários. Se em 1910 estes veículos de transporte individual eram poucos, no decorrer do século eles se tornarão a maior característica e ao mesmo tempo um dos maiores causadores de problemas das grandes cidades no século XX.

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19 Além dos elementos históricos e visuais, o estudo do desenvolvimento da malha urbana campineira forneceu dados que, cruzados com a localização dos prédios retratados, trouxeram pistas interessantes para o objetivo do presente estudo. Todos os prédios retratados nos postais aqui estudados estão compreendidos na área equivalente ao perímetro urbano da Campinas de 1879, o que é natural uma vez que todos eles foram construídos antes desta data. Acontece que o objeto de estudo em questão não são os prédios, mas as imagens deles, e estas foram todas geradas a partir de 1910, quando a cidade já havia se expandido para muito além dos limites de fins do século XIX (ver mapa ao lado). Mesmo assim, os locais escolhidos estão todos dentro do centro histórico, região percebida como o berço da cidade. Essa área ainda concentra a maior parte dos equipamentos urbanos, a maioria dos investimentos públicos e privados. Percebe-se então, a partir desses dados, o que seria considerado a cidade de fato na percepção de parte dos seus habitantes, e provavelmente também do poder público. Indica, ainda, a imagem desejada para representar a cidade para os forasteiros, materializada nos postais. Regiões urbanas de menos prestígio, como a Vila Industrial2, o largo de Santa Cruz e o bairro dos Cambuhys, regiões pobres na época, estão excluídos

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dessa imagem ideal campineira, talvez como representantes de práticas herdadas da velha ordem colonia.

20 Deste modo, os cartões-postais de paisagens urbanas como usados no contexto de modernização das grandes cidades brasileiras enfatizam o aspecto indicial da fotografia na medida em que cria uma continuidade aparente entre mundo e imagem, transformando a ação humana em um mero apêndice (FLUSSER, 1985). Mas, sendo a técnica fotográfica não “somente o resultado de uma impressão indicial de um objeto, mas também das propriedades particulares” de toda a tecnologia envolvida no processo (MACHADO, 2004, p. 7), coloca-se o estatuto ambíguo da imagem que ela produz, dando margem para reivindicar a predominância de seu aspecto simbólico em determinados contextos. Nesse sentido, a fotografia pode ser lida e decomposta como um texto, na medida em que é uma construída discursivamente (BARREIRA, 2008) através do favorecimento de uma certa interpretação do signo, produzindo um conhecimento específico acerca do objeto em questão. As fotografias impressas nos cartões-postais indicam imagens mentais da cidade que, no imaginário dos seus habitantes, formam uma imagem pública urbana. Foi a possibilidade de manipulação dessa imagem pública da cidade (LYNCH, 1997) que permitiu à aristocracia campineira levar a cabo seu projeto de modernização do espaço urbano. Nesse sentido, os postais podem ser entendidos como estruturas de reprodução e permanência de valores determinados. De ferramenta de guerra, os postais se tornaram meio de comunicação de massa que funcionou como dispositivo de manutenção do status quo, uma ferramenta de violência simbólica efetivada através da produção de um imaginário que legitimou o predomínio sócio- cultural da elite sobre o espaço urbano, deixando claro a quem pertence a cidade.

BIBLIOGRAFIA

WEBGRAFIA

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LIVROS

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NOTAS

1. Natural de Amparo, Maia se formou em 1917 na Escola Politécnica de São Paulo. Foi prefeito da cidade paulistana entre maio de 1938 e novembro de 1945. Elaborou planos de urbanismo para Campos do Jordão, Santos, Campinas e Recife, além de alguns bairros de São Paulo enquanto foi diretor de Obras Públicas do Estado. Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Prestes_Maia. 2. Esse bairro concentrava a população mais pobre da cidade, e também os equipamentos urbanos menos desejáveis, como o matadouro, o curtume, e os lazaretos dos variolosos e morféticos.

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Formado pelos trabalhadores que vieram trabalhar nos trens das Cias. Paulista e Mogiana, foi o primeiro bairro a existir para além da linha férrea que ainda divide a cidade. Até hoje é um bairro ocupado por uma classe média baixa, Nenhum dos postais cp, que tive contato para realizar esta pesquisa, nem mesmo mais recentes, retratam a Vila Industrial.

AUTOR

SAMUEL LEAL

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas E-mail : [email protected]

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Mapeando práticas e discursos: Sobre a experiência de campo na Lapa (RJ) e da tentativa de compreender a noção de gentrification (2008)

Natália Helou Fazzioni

Introdução

1 A reflexão aqui apresentada é fruto de um projeto de iniciação científica1 que buscou compreender alguns aspectos sobre a chamada revitalização da Lapa, região do Centro da cidade do Rio de Janeiro. Neste artigo, portanto, espero conseguir não somente transmitir os resultados da pesquisa e da discussão com a bibliografia, como também explorar a relação construída com o campo a partir da tentativa de relacionar um olhar distante e outro aproximado.

Breve histórico: Lapa e revitalização

2 Uma caminhada pela Lapa revela a predominância de certos tipos de estabelecimentos, tais como restaurantes, hotéis, pensões e imensa quantidade de bares e casas noturnas de todos os estilos. É nítido também o alto número de edifícios residenciais ali existentes. Há um hospital, uma universidade, brechós, oficinas mecânicas, lojas e casas destinadas a projetos sociais focados em questões diversas como cultura, saúde e habitação.

3 Hoje, são constantes as falas que evocam a Lapa como local recuperado face à anterior decadência; referência ao fato de por aproximadamente 30 anos o local ter sido majoritariamente freqüentado pelas camadas populares2 e também com o descaso das

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autoridades públicas durante esse mesmo período. Tendo em vista, contudo, sua importância como localidade fundamental de referências físicas e simbólicas da memória e história da cidade, e ao mesmo tempo seu potencial turístico, surgem a partir da década de 90 projetos que pretendem “revitalizá-la”. Tais projetos ganham maior destaque quando se inserem em uma grande proposta de reforma urbana do prefeito eleito em 1992, César Maia, em um conjunto amplo de políticas de reformas na área urbana da cidade, que incluía o projeto de reconquista do centro histórico e de negócios, valorização da orla marítima, além do conhecido Favela-Bairro (Machado, 2003).

Fundição Progresso, uma das casas de cultura e de shows, instalada em antiga fábrica de fogões3)

4 Nesse quadro, são destinados à Lapa projetos que buscavam, sobretudo, recuperar espaços degradados e restaurar o patrimônio edificado do local. Assim, foram criadas leis que facilitavam a compra ou aluguel de imóveis, em troca do comprometimento com sua conservação ou restauro. Nesse mesmo sentido, incentivou-se a instalação de centros culturais nos casarões ali existentes. Pode-se notar claramente que apesar das ações do poder público, a revitalização da Lapa foi levada adiante com auxílio de outras instituições que financiaram os projetos, tais como a Petrobrás. Porém, acima de tudo, foi a iniciativa privada quem ditou seus rumos; resignificando os imóveis, os atribuindo novos usos e sentidos, na maior parte das vezes, ligados a atividades comerciais de lazer e turismo.

Diferentes perspectivas

5 É importante notar que quando a oportunidade de estudar a Lapa surgiu, estando eu na cidade de Campinas (SP), a aproximação que pude construir com o objeto foi inevitavelmente distante: sites de relacionamento na internet, notícias na mídia, documentos que descreviam os projetos implementados; além de livros que tratassem de sua história, e a literatura que a tinha como cenário ou inspiração, formaram basicamente o alicerce que propiciou o recorte inicial do projeto. Um fator fundamental nesse primeiro momento foi, portanto, a aproximação com a bibliografia específica do tema, sobretudo aquela que tratava dos casos de revitalização ou requalificação urbana em grandes cidades brasileiras.

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6 Nitidamente, o processo em causa no Rio de Janeiro enquadrava-se em uma discussão mais geral presente nos estudos de caso de revitalização de centros históricos de outras grandes cidades como São Paulo, Recife e Salvador (Arantes, 2000; Leite, 2004). Tais estudos apontavam para um sentido próximo desses projetos, que possuíam na maior parte das vezes a proposta de resgatar uma suposta tradição desses locais, com políticas que visavam embelezar e restaurar edificações e equipamentos históricos, potencializando assim seu fator de valorização econômica. Buscavam com isso, um fortalecimento do potencial turístico e do circuito de bares e restaurantes (lazer de forma geral), criando assim uma idéia de “consumo do lugar”. Em diálogo com processos de tipo similar, ocorridos fora do Brasil, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa, a noção de gentrification ou o correspondente mais próximo no português, enobrecimento, passou a aparecer também no contexto nacional como central nessa discussão. Mais à frente, no entanto, tratar-se-á das diferenças dos casos brasileiros em relação aos estrangeiros.

7 Tal noção teve assim um papel determinante e ao mesmo tempo instável durante a pesquisa, pois de início pareceu ser necessário determinar se este seria de fato um caso de gentrification ou não. No entanto, proceder metodologicamente dessa forma limitaria as possibilidades de hipóteses com as quais seria possível trabalhar, pois reduziria o objetivo do trabalho à atribuição favorável ou não ao uso do conceito; escolha essa agravada pelo fato de não haver um consenso teórico acerca da aplicação do mesmo.

8 Foi necessário, portanto, amparar-me na percepção que o olhar mais amplo propiciava, ou seja, aquela facilmente apreendida de fora. Mais especificamente, apoiei-me naquilo que transparecia por meio da análise mais geral da situação, através do material divulgado pelos meios de comunicação e também pelos documentos que descreviam e avaliavam os projetos. Optou-se assim, a princípio, em afirmar que se tratava de um espaço enobrecido. Nesse cenário a tarefa da pesquisa de campo seria a de realizar uma etnografia “de perto e de dentro”, nos termos propostos pelo antropólogo José Guilherme C. Magnani, procurando estabelecer, através das pistas fornecidas pelo cotidiano dos atores sociais, um mapeamento da dinâmica do local. Esperava-se que este pudesse fornecer uma nova perspectiva sobre o caso, corroborando ou não com o primeiro sentido apontado pelo olhar distante. Acerca de tal método etnográfico, Magnani pontua: (...) a mudança de foco que a perspectiva antropológica possibilita, principalmente em função do método etnográfico, tem a vantagem de evitar a dicotomia que opõe, no cenário das grandes metrópoles contemporâneas, o indivíduo e as megaestruturas urbanas. (Magnani p.17, 2002).

9 A etnografia cumpriria assim o papel de desfazer a idéia do indivíduo na metrópole como algo atomizado, pois através das trajetórias individuais e cotidianas revelar-se-ia todo “um mapa de deslocamentos pontuados por contatos significativos” (Magnani p. 17, 2002). Tem-se, portanto, que os múltiplos, variados e heterogêneos conjuntos de atores sociais presentes na metrópole, em seus cotidianos, podem dizer mais sobre as representações “reflexivas”4 de espaço e uso do que uma análise distanciada e externa, “de longe e de fora” – ainda que Magnani pontue a necessidade da existência de tal análise, ela não deve estar dissociada da primeira.

10 Dessa forma, a tarefa principal da pesquisa de campo foi mapear práticas e discursos dos atores que vivenciaram as conseqüências de tais mudanças. Tal mapeamento seria fundamental, pois articularia uma noção de representação do lugar específica para cada

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um dos atores, facilitando a compreensão de qual significado a Lapa assume nos diferentes casos. Como afirma o mesmo autor citado acima em ensaio distinto: (...) discurso e prática não são realidades que se opõe, um operando por distorção com respeito à outra; são antes pistas diferentes e complementares para a compreensão do significado. (Magnani, p. 140, 1986)

11 A confecção de tal mapeamento, no qual diferentes representações e significados se interpelam, revelaria qual a relação que entre eles se estabelece e, por conseguinte, qual a configuração mais geral que o espaço assume, podendo refletir ao final sobre o sentido da gentrification nesse caso.

Discursos: Tradição e Pertencimento

“Na Lapa de hoje as meninas beijam pela primeira vez. Os meninos fumam de enevoar a rua e casais clandestinos inventam um plantão pra sapatear um samba que os isenta de culpa: Sem Compromisso. Um desavisado grita: Salve Chico Buarque! Mas o samba é de Geraldo Pereira.” Moacyr Luz (Damata, p.15,2007)

12 Ao me aproximar do campo e, sobretudo, das narrativas e histórias de vida que ali corriam, foi preciso entender como a palavra tradição se refez como termo êmico, que se desprende dos eixos de relação com a história formalizada, e passa a reatualizar seus nexos de sentido a partir das falas de cada ator social ali presente. É por essa razão que pouco importa aqui se o samba é de Chico Buarque ou de Geraldo Pereira, ou até, se de fato esse último morreu nas ruas da Lapa, da rasteira que lhe passou Madame Satã. É, contudo, esse último personagem citado quem nos conduzirá ao que realmente interessa; sua presença e influência no material de pesquisa recolhido foi surpreendente.

13 “Enquanto eu for vivo a Lapa não morrerá”, declarou a lendária figura o Pasquim em 1971. É comum na literatura e nos discursos produzidos acerca da Lapa falar em vida e morte do lugar. O que essas falas deixam claro é que a relação dialética entre o espaço da Lapa e as práticas que podem caracterizar sua representação, adensa-se a tal ponto que quase a personificam. Madame Satã, quando atrela sua própria imagem a existência ou não da Lapa, não fala apenas de si mesmo, mas de todo um ideal de e boemia que caracteriza as narrativas mais populares em torno do local. Ele é hoje uma das figuras “chave” nos discursos políticos e de marketing que buscam justificar a intervenção na Lapa através da idéia de recuperação dos “usos originais”.

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14 Uma das escadas da Lapa, que estampa algum dos termos referentes à “essa” tradiçãoTais usos seriam aqueles correspondentes aos anos que deram fama global ao bairro; datando do início do século XX até meados do mesmo, quando a Lapa ficou conhecida devido ao grande número de cafés, bares e cabarés de luxo que congregava e, especialmente, pela grande circulação de artistas e intelectuais.

15 Duas coletâneas que reúnem textos de cronistas e freqüentadores da Lapa desse período indicam tais usos e elementos que caracterizam o momento, revelam também, a forte relação que a partir daí se constrói entre a Lapa e aquilo que representa. A primeira delas é da década de 70 (reeditada em 2007) intitulada: Antologia da Lapa (Da Mata); e outra dos anos 2000: Lapa do Desterro e do Desvario (Lustosa). Tem-se na primeira publicação um texto do próprio organizador, Gasparino Damata, intitulado “A Lapa ficou na Saudade”, que demonstra de forma clara a memória desse momento: Com a retirada dos bondes de circulação, o início da construção da Avenida Perimetral e, mais recentemente, da sua reurbanização, a Lapa desapareceu quase por completo. O que resta da Lapa movimentada, boêmia, de cabarés sempre cheios, dos grandes crimes passionais, dos bares e cafés abertos até de madrugada, é apenas recordação (ou um esforço de imaginação). (Damata, p.21, 2007)

16 Nota-se que a reurbanização de que fala Damata não é a dos anos 90, nem a do começo do século (Pereira Passos), mas uma tentativa que ocorreu nos anos 70 do prefeito Chagas Freitas, que basicamente demoliu e alargou alguns trechos da Avenida Mem de Sá. Aparece nesse texto e em vários outros, uma diversidade de datas para o “fim”, ou “morte” da Lapa, datando dos anos 40 para frente a idéia de decadência. Na segunda coletânea de textos mencionada, o escritor João Antonio em “A Lapa acordada pra morrer” explicita tal data e sua razão: (...) desde 1940, a partir dos primeiros sintomas de uma nova e esmagadora realidade no Rio de Janeiro – o aparecimento de Copacabana – a Lapa foi engolida pelo seu verdugo da Zona Sul (Lustosa, 2001, p.140).

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17 Tem-se assim, nesses discursos, a idéia de que a Lapa só existiria se estivesse ligada a uma efervescência da vida cultura de elite, evidentemente, transferida depois dos anos 40 para Copabana e mais tarde Ipanema. No entanto, sabe-se que a Lapa dos anos 20 tampouco é a Lapa do final do XIX; bairro burguês residencial, cujo símbolo mais conhecido é Machado de Assis. Também não é a dos anos 70; quando, como já dito, com a vida cultural da elite toda voltada para a zona sul, o bairro acaba basicamente funcionando para essa classe como local do consumo de prostituição. Igualmente, a Lapa dos 70, difere daquela dos anos 80 e começo dos 90, quando afora os usos mais comuns de um bairro central, começa a se formar durante a noite um circuito alternativo de Rock. Culminando com a transferência do Circo Voador, conhecida casas de show desse estilo, para um canto estratégico ao lado dos Arcos (antes esteve instalado na Praia do Arpoador).

18 Os discursos, que propagandeiam a revitalização do bairro, apóiam-se em vários elementos distintos. Uma rápida busca através da internet, ou uma breve análise dos folhetos de turismo, revelam claramente esse fato. Ao resgatarem o que se entende por patrimônio, principalmente cultural na Lapa, as práticas de gentrification fazem referência a elementos temporalmente e culturalmente desconexos, tratando-os, contudo, como se pertencessem a uma mesma tradição cultural: Machado de Assis, Manoel Bandeira, o Circo Voador e mesmo Madame Satã são sempre citados anacronicamente, apesar de evidentemente representarem épocas e movimentos distintos e até contraditórios. Mesmo esse último; antes dito malandro, prostituto, biscateiro e homossexual, é resignificado e romantizado, assim como as práticas que simboliza: a prostituição, as brigas de malandro, entre outras. É provável, no entanto, que ele mesmo tenha contribuído pra isso, no fim de sua vida, quando alcançou fama, isso não apaga, porém, o fato de que na época o que representava era indesejável e hoje é reinventado.

19 Tal forma de representação desconexa decorre de uma estratégia recorrente desses processos, que procuram atribuir ao local uma identidade comum que a sociedade como um todo compartilhe – e por isso então, fazem referências a elementos diversos, porém de amplitude nacional. No entanto, ao falar aqui de identidade, lugar e território no espaço urbano contemporâneo, é necessário repensar tais noções de suas definições clássicas. Como por exemplo, a Escola de Chicago, que concebe a cidade como um mosaico de territórios étnicos separados por fronteiras físicas e simbólicas. Em Paisagens Paulistanas, Antonio Augusto Arantes contesta a idéia de lugares identitários opostos uns aos outros, pois pensando nos deslocamentos dos habitantes da cidade a imagem do mosaico já se mostra insuficiente, tendo em vista que estes se deslocam constantemente e situam-se em diversos lugares simultaneamente. Assim, entrecruzam-se e se sobrepõem, de forma muito mais complexa do que uma simples justaposição. A cidade, por fim, pode ser definida como “uma complexa arquitetura de territórios, lugares e não-lugares, que resulta na formação de configurações espaço- temporais mais efêmeras e híbridas do que os territórios sociais de identidade” (Arantes, p.106, 2000). Deste modo, a noção de pertencimento de indivíduos/grupos em relação a lugares é reclamada de diferentes formas, entrecortando lugares, dando origem a “espaços fluidos e cambiantes”. (Leite, p.39, 2004).

20 A forma pela qual a sociedade moderna se organizou, fez com que se reduzisse o alcance dos núcleos da tradição. O que não significa dizer que mesmo reclamando formas distintas de pertencimento a um lugar, tais núcleos não afetem diretamente

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aqueles que estabelecem seus nexos relacionais próprios com o local. Um caso que representa tal idéia é a de Aori, um rapper natural da Lapa, cuja análise se deu através de dois documentários, “L.A.P.A” e “Minha Área”5. Em ambos ele aparece falando sobre o rap e a Lapa. Quando perguntado sobre o bairro, onde reside desde a infância, ele fala sobre o estereótipo padrão, a saber: música, cultura, boemia. Logo em seguida, quando o diretor o convida a caminhar pela Lapa para que lhe apresente os lugares, nota-se que além da casa onde nasceu, os outros lugares destacados por ele estão ligados ao circuito de rap: a roda de ‘break’ em baixo dos arcos, a festa “zoeira” na Rua Riachuelo 19, as disputas de rima no Circo Voador. É inegável que a história do samba e dos partideiros na Lapa seja referência também para os rappers, no entanto, não parece ser por esse motivo tão distante que a Lapa seja tão significativa para o movimento.

21 É possível observar, e o documentário também aponta nesse sentido, que essa convergência dos rappers na Lapa, se dá pela centralidade do bairro (ou seja, a possibilidade de reunir os rappers das mais distintas periferias) e apresentar sua música a um público novo que não o do bairro somente. Uma das músicas cantada por Aori (em parceria com Marcelo D2), explicita de forma curiosa e dúbia a relação com o bairro. Apesar de aludir aos elementos dos discursos predominantes; arcos, bonde, cabarés, como referência crucial, não deixa de mencionar o lado tido como decadente, cortiços, ratos e também o incômodo que sente ao ver aquilo que era significativo transformar- se em souvenirs. A música termina com uma pergunta de imenso poder simbólico: “Quem faz a Lapa viver?”, ao qual se responde: “É nóis”. Segue abaixo parte da letra da música6: Eu me sinto fraco, longe, saudade dos Arcos e do Bonde, LAPA, bem-vindo a onde os ratos se escondem, espaço da cidade que pra mim é um marco, ... esse é meu universo, cortiços, cabarés, vidas, sem compromisso, vivida do jeito que não se vive mais, ... sem esperança, minhas lembranças de infância, viraram souvenir de nada, olhe em volta, mas eu me sinto forte, perto dos amigos, no Rio antigo, esse é meu abrigo, onde eu me identifico, ... Quem faz a LAPA viver? É nóis Quem faz a LAPA viver? É nóis

22 O rap raramente é mencionado pela grande mídia e em políticas oficiais de preservação como elemento cultural significativo na Lapa. É provavelmente muito devido a isso que aos poucos perde força dentro daquele espaço. A casa onde ocorria a festa Zoeira desde os anos 90, na qual diversos músicos hoje de grande influência tiveram a oportunidade de começar a carreira, foi desapropriada e transformada em Igreja Evangélica. Atualmente, suas manifestações estão reduzidas às imediações dos Arcos e ao Circo Voador. Não se trata, obviamente, de dizer que o processo de enobrecimento os retira da Lapa, no entanto, requer que eles se reposicionem de forma menos prejudicial aos novos usos: “(...)que muitas vezes transforma esses centros históricos em “enclaves” (Caldeira, 1997) para o lazer, turismo e consumo cultural de uma nova classe média” (Leite, p.22, 2004) como notou Rogério Proença Leite, em Contra Usos da Cidade, tese que analisa o processo de revitalização do bairro do Recife.

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23 Nesse sentido também, é fundamental destacar o papel que o Cirvo Voador cumpre nesse cenário. O Circo, como é chamado no bairro, é uma casa de shows antes só de rock, mas hoje conhecida pelo seu ecletismo e atualmente administrada em parceria com a Prefeitura Municipal. Possui também diversos projetos voltados para atividades artísticas, culturais e educativas no bairro, em parceria também com o setor privado, como a Oi (telefonia). Acredito que seu papel é atualmente estratégico na mediação dos conflitos em conseqüência da revitalização, pois congrega todos aqueles que aos poucos perderam seu espaço nos outros trechos. O movimento rap foi um dos que cedeu a esse movimento, perdendo o simbólico imóvel da Rua Riachuelo 19, assim como os funkeiros, que também possuem hoje espaço garantido no Circo (pode-se dizer que a Fundição Progresso talvez desempenhe um papel próximo, tendo, contudo, uma formação distinta que não será aqui explorada). Cabe dizer ainda que outro local na Lapa ainda acessível a esses grupos é o trecho da Avenida Mem de Sá anterior aos arcos, e o trecho da Rua Joaquim Silva, e que ainda assim vêm sentindo os efeitos do processo no resto do bairro, pois com ou sem restauro a alta nos aluguéis foi geral7. Segue logo abaixo o mapa para situar-se em relação às ruas citadas (o traço em preto foi feito livremente por mim para demarcar aproximadamente os Arcos da Lapa).

24 Não por acaso, é também na Rua Joaquim Silva que o Circo Voador instalou um dos seus projetos sociais, o Movimento de Educação e Cultura (MEC). Ao entrevistar Juliana8, responsável pelo projeto, ela declara que a escolha não só teve a ver com o fato de a população carente estar mais presente nessa área, como também houve uma intenção de melhorar a “má fama” da rua, conhecida pelas confusões constantes que acontecem ali (de fato, a Rua Joaquim Silva possui um histórico recente repleto de casos de assaltos, tráfico de drogas e até assassinatos). Por fim, quero deixar claro que a questão do papel exercido pelo Circo Voador merece maior aprofundamento, no entanto, até agora pude apenas concluir que claramente suas atividades atuam mediando, e até atenuando alguns dos conflitos presentes na Lapa.

25 Justamente quando visitava o projeto social do Circo Voador na Rua Joaquim Silva entrevistei por acaso Lúcia, informante fundamental para delinear questões que trato aqui. Moradora da Lapa há mais de 50 anos, ela reafirma algumas das constatações já

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feitas através do caso dos rappers. Quando lhe pergunto como descreveria a Lapa, ela começa a narrar como era a Lapa antiga. Nota-se que a pergunta feita não diz respeitava de forma alguma a Lapa antiga, mas não apenas nessa entrevista, como em grande parte delas, os entrevistados se preocupavam em me indicar aos moradores antigos da Lapa, pois eles seriam mais bem capacitados a me conceder entrevistas, ainda que soubessem que meu interesse era pelo processo de revitalização. Outro aspecto curioso é que Lúcia ao recordar-se de Madame Satã faz referência a ele como “aquele que fez o filme” (referindo-se ao filme “Madame Satã” de 2001, do diretor Karim Ainouz), mesmo dizendo tê-lo conhecido pessoalmente. Indicando assim que a atualização de uma história/personagem no presente pode ser mais relevante que o fato histórico em si, pois a memória ativou-se primeiro através do filme, que é sua representação mais significativa e constante no presente.

26 Dona Lúcia possui, assim como Aori, seu nexo identitário particular com a Lapa. Há alguns anos foi uma pioneira no trabalho como ambulante na Lapa (que majoritariamente dedicam-se a venda de comidas e bebidas), ela também narra a organização de pagodes, peixadas e feijoadas que promovia debaixo dos arcos para a comunidade. Quando pergunto por que deixou de atuar nessas atividades, ela responde primeiro que foi se dedicar a outras atividades, como o trabalho no projeto social do Circo Voador, mas também coloca de forma sucinta a existência de brigas, e do crescimento e desorganização no número de ambulantes.

27 O sentimento de pertencimento de Dona Lúcia em relação à Lapa é nítido; para ela esse espaço assume a noção de bairro social em seu sentido mais clássico. A organização de atividades de cunho financeiro e também festivas demonstra que, ao mesmo tempo em que a dinâmica da Lapa muda, ela também se desloca na tentativa de continuar atuando da forma mais próxima possível à comunidade. As atividades que promove, chamadas de “brincadeiras”, antes eram na rua, agora estavam restritas ao espaço da Associação – no geral, bingos e quadrilhas – e seu trabalho, também antes na rua como ambulante, está agora restrito ao espaço do projeto educativo do Circo Voador.

Práticas marcadas no tempo e no espaço

28 A Lapa como local de lazer é nitidamente mais movimentada durante a noite. Se a boemia e a música são os temas citados com mais freqüência na tentativa de estabelecer os nexos entre o lugar e a tradição – consequentemente o eixo mais avançado do processo de enobrecimento se deu por esse caminho. Torna-se, portanto, possível falar aqui de um enobrecimento que é marcado no espaço, mas, especialmente no tempo. Esse não é, contudo, um modelo estático do formato, tampouco dicotômico, como se pretendesse dizer que a Lapa à noite é enobrecida e durante o dia não. Como indicam algumas das entrevistas, essas práticas tendem a se estender durante o dia, assim como influenciam, durante a noite, práticas que são contrárias, ou resistentes ao seu objetivo.

29 Entrevistas feitas com pessoas que freqüentavam a Lapa exclusivamente durante o dia indicam alguns aspectos importantes. Cláudio, que organiza um espaço de alimentação viva (vegetariana-crudivorista) na Rua Joaquim Silva, pontua sobre o seu trabalho: A Lapa hoje funciona ao dia através dos ateliês, dos restaurantes, outros ambientes de trabalho que existem. Na verdade, trabalhar aqui ao dia me soa como uma resistência à Lapa. Fazer um trabalho com alimentação viva, vegetariana em um

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local onde a tradição é a noite, o álcool, a bebida, a festa. (Entrevista concedida no dia 25/07/08)

30 O viés da resistência, apontado por Cláudio, lança uma luz interessante à idéia de enobrecimento. A socióloga norte-americana Sharon Zukin já chama atenção para o caráter de “consumismo primário” que possuem os processos de enobrecimento. Em geral, nos casos analisado pela autora, a revalorização de um local se dá primeiramente através do valor atribuído a este por intelectuais, artistas e pessoas com modos de vida “alternativos”. Pelo entrevistado esse processo é entendido como resistência, no entanto, claramente faz parte de um processo maior de revalorização econômica do local, que começa pela noite, através de investimento maciço em consumo menos especializado e se estende ao dia, nesse “circuito alternativo” que alonga a relação tempo-espaço do enobrecimento.

31 Em relação à segunda constatação sobre a qual a relação tempo-espaço aponta, tem se o fato de que, junto aos trechos que passaram por processo intenso de enobrecimento e mudança nos usos, passa a acontecer um movimento de transformação na dinâmica local que acompanha o primeiro, ou que o precedia e depois se intensifica. Quero dizer: fora do eixo mais enobrecido – a Rua do Lavradio, a Avenida Mem de Sá após a passagem pelos Arcos da Lapa, seguindo por mais ou menos quatro quarteirões, além da Rua Riachuelo nos mesmos trechos que acompanham a Mem de Sá e ruas adjacentes – o número de bares e casas noturnas também proliferam em outras locais, onde não houve recuperação de imóveis. Neste trecho, bares se alocam em espaços diversos, incluindo tendas armadas provisoriamente, carrinhos de supermercado reestruturados, por fim, ambulantes de todos os tipos.

32 A partir de uma conversa com membros da Associação de Moradores passei a refletir sobre outra dimensão da relação temporal que divide esse espaço. Para essas pessoas a Lapa mudou principalmente durante a noite, e, sobretudo, aos finais de semana. Sentem-se incomodados com os ambulantes gritando, pessoas fazendo sexo, urinando nas ruas e música alta. Dessa forma, em relação a todo processo relatado anteriormente, faz-se notar que os moradores de baixa renda são afetados duplamente: de um lado, dentro do próprio bairro não são bem-vindos ou muitas vezes não possuem poder aquisitivo para freqüentar certos lugares. Se nesses mesmos lugares mais enobrecidos não trabalham formalmente, tampouco serão aceitos exercendo alguma atividade informal, pois nessas áreas o policiamento é ao mesmo tempo discreto e agressivo. Por outro lado, os movimentos que acompanham esse processo e ocorrem de forma menos regulada pelo poder público também os afetam diretamente, primeiro porque, é exatamente desse lado que a maioria deles vive, convivendo diariamente com o aumento do movimento no local, porém, ainda com o mesmo antigo descaso das autoridades com essa área. Além disso, apesar de financeiramente poderem beneficiar- se trabalhando como ambulantes nesses espaços são obrigados a lidar com toda concorrência, já pontuada pela entrevista de Dona Lúcia, pois hoje em dia os ambulantes que ali trabalham são provenientes de todas as partes da cidade.

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33 A foto acima é de um local de coleta de lixos na mesma rua em que fica a Associação, nesse lado predominam atividades pouco vistas do outro, como cooperativas de catadores de papel e latinhas. Como já dito, a maior parte da população de baixa renda que vive na Lapa está localizada exatamente nesse trecho, mais caracterizado por casarões e cortiços, muitos deles funcionando em esquema de ocupação – nessa região existem menos edifícios residenciais de classe média. Essa distinção entre o lado enobrecido e o não-enobrecido é reforçada quando entrevisto “Seu” Pedrinho, presidente da Associação, ele atribui ao espaço da Lapa uma divisão entre “pra lá” e “pra cá” dos Arcos, sendo o lado de cá (em que a associação se situa) o menos beneficiado pelas políticas e mais prejudicado também. Em tom exaltado ele declara: “Lapa da boemia? Aqui é a Lapa da baderna, isso sim!”.

34 É notável a fronteira simbólica que os Arcos constroem, somam-se assim, ao lá e ao cá, as oposições: mercado e comunidade, global e local, enobrecimento e decadência. No entanto cabe notar que ambos os lados estão sempre sendo mutuamente afetados. Fato curioso que ilustra bem essa idéia são os painéis pintados nas paredes, só existentes do lado aqui entendido como menos enobrecido, com os símbolos que representam uma visão mais global da Lapa e do Rio de Janeiro, a saber, os arcos, os músicos, o bondinho e até o pão de açúcar; como se reafirmassem “para cá também é a Lapa”. Outra ressalva importante é que essas posições também não são tão dicotômicas e radicais, um bom exemplo disso é a ocupação politicamente organizada de um edifício na Rua Riachuelo, localizada entre um circuito de bares de elite, no qual residem indivíduos que se dedicam a catar papel nas ruas. Ou o fato do Teatro Cecília Meirelles, nacionalmente conhecido por sua excelente acústica no qual ocorrem concertos de música erudita, estar localizado bem em frente ao trecho em que se concentram o maior número de ambulantes e jovens de classe baixa.

35 Na mesma lógica dessas marcações no espaço e no tempo, evidenciam-se as negociações pelos mesmos – demonstrando o fator conflitivo que tais práticas geram. Um caso que mostra e reforça tal situação é o fato de não haver uma delimitação precisa do espaço físico da Lapa. Por não se tratar de um bairro perante a Prefeitura Municipal, o espaço em si acaba entrando no meandro das negociações. Como relata o presidente da associação de moradores: “A Lapa está encolhendo”; ou seja, não existindo uma

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definição precisa desse espaço, os discursos podem tentar delimitá-lo da forma que convém, nesse caso a diminuem deixando só o eixo mais gentrificado dentro. Do outro lado da mesma moeda, encontra-se a polêmica da Rua do Lavradio, pois parte dos comerciantes da rua não aceitam mais que a rua seja considerada parte da Lapa. Esse caso é particularmente interessante, pois se sabe que a Rua do Lavradio passou por um processo acelerado de revalorização econômica, destacando-se por alocar bares e casas noturnas de alto padrão, e também pelos conhecidos antiquários. Ou seja, nesse trecho o enobrecimento é ainda mais avançado. Portanto, se o lado ainda considerado decadente tenta ser descartado por uns, a Rua do Lavradio tenta apartar-se de todo o resto.

Possíveis Conclusões

36 Sharon Zukin, quando traça uma reflexão acerca das paisagens urbanas pós-modernas – que seriam os espaços gentrificados e também os espaços que chama de disneyficados, paisagens dos sonhos, destaca duas características fundamentais dessas políticas: “a centralidade” e as “paisagens do poder”. Para a autora a reapropriação de certos espaços da cidade, concentra núcleos de atividades que refazem os usos originais, dando origem a uma apropriação cultural, que consequentemente culminaria numa apropriação espacial, na qual subsistem os símbolos do consumo e do poder sobre o vernacular, que pode ser entendido como algo referente às tradições de um lugar ou uma cultura e que resiste, atrapalha a paisagem de poder. (Zukin, 2000). Ela acrescenta: Uma paisagem urbana pós-moderna não apenas mapeia cultura e poder: mapeia também a oposição entre mercado – as forças econômicas que desvinculam as pessoas de instituições sociais estabelecidas – e lugar – as formas espaciais que as ancoram no mundo social, proporcionando a base para uma identidade estável. (ZUKIN, p.83, 2000)

37 Da forma colocada por Zukin, a separação que se dá entre mercado e lugar coloca-se de certa forma um tanto quanto dicotômica e radical. No caso aqui analisado revela-se sim uma apropriação espacial e cultural do espaço pelo mercado, no entanto, porque os antigos usuários não perdem completamente seu espaço e nexos de identidade, mas também porque não se encontra nesse caso uma completa reabilitação residencial, que para os primeiros teóricos a pensar as práticas de gentrification seria necessária (Smith, 1960), não se vê tal contraposição como é pensada nos casos norte-americano e europeu.

38 Na Lapa, quando se trata da questão residencial é necessário primeiro levar em conta que, além dos antigos moradores, que vivem há muito tempo na região e em sua maioria não se mudaram dali (ao menos não se constatou ser um movimento significativo), considera-se também como população original, aqueles moradores característicos de bairros centrais das metrópoles, que possuem uma relação transitória e passageira com o lugar. Ou seja, o fato da Lapa ainda conservar pequenos apartamentos, hotéis e pensões de baixo custo que atendem recém-chegados a cidade em busca de trabalho, ou estudantes que ainda não se estabeleceram, demonstra novamente que essa reabilitação não aconteceu. No entanto, já existem empreendimentos residenciais que visam atrair um público de maior poder aquisitivo e é preciso esperar para saber qual será o impacto destes na dinâmica do bairro9.

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39 A questão colocada no início tratava-se, de forma geral, em “testar” a noção de gentrification no caso da Lapa, aplicando-a para depois avaliá-la. Por esse motivo, antes de chegar ao final, ouso fazer uma comparação que atravessa o tempo, mas ainda assim não me parece descabida. Nicoulau Sevcenko, quando analisa os impactos da reforma urbana de Pereira Passos no Rio de Janeiro no início do século XX, deixa claro sobre quais termos esta versava; resgato brevemente um deles para refletir: a idéia de higienização. Colocando-a lado a lado com os termos da revitalização atual, não me parece forçado dizer que apesar do estigma que carrega (resquícios da Revolta da Vacina, entre outras coisas), a higienização ainda é pano de fundo para os novos termos. Na análise de Sevcenko, fica claro que a reforma pensada para a cidade naquela época, pautada em todo um ideal de vida burguês representado pela implementação do “embelezamento estratégico” (termo cunhado por Walter Benjamin), colidiu perante as estruturas urbanas ainda muito ligadas ao colonialismo – ou seja, a tentativa de modernização no Rio de Janeiro atropelou o anacronismo da cidade. Como atenta o antropólogo Nestor Canclini (1997), preocupado em caracterizar os processos culturais de hibridação, falar em cultura moderna no contexto latino-americano significa quase sempre uma idéia de deficiência aliada à exuberância. O caso do Rio de Janeiro colonial ilustra perfeitamente essa idéia, no entanto, o quadro atual não foge desse mesmo reflexo, os processos pós-modernos, do qual fala Zukin, no caso brasileiro colocam-se sobre uma modernidade mal ou não concretizada.

40 Assim, o que se pode concluir é que, as particularidades desse contexto devem ser levadas em conta, quando da tentativa de implementação de um projeto emprestado pelo hemisfério norte. No caso brasileiro, Silvana Rubino – em coletânea que reúne textos diversos sobre gentrification em diferentes partes do globo – faz uma ressalva que delimita precisamente o entendimento que busco traçar no caso da Lapa: Gentrification processes in central and/or historical areas are not simply a matter of who lives in the housing, but also of tourism, leisure and cultural activities – all of wich are transitory processes but nevertheless inflect on the daily processes of the neighbourhood. (Rubino, p.237, 2005)

41 Portanto, tem-se que quando trazidas à realidade brasileira tais políticas adéquam-se ao tempo e ao espaço em que são inseridas, afetando de forma relativa, mas não menos significativa, o espaço e sua dinâmica. Não se constrói, portanto, no sentido colocado por Zukin “paisagens de poder” em tempo e espaço integrais, contudo, não deixam de ser paisagens marcadas por relações desiguais de poder, nas quais o espaço está em constante negociação entre os representantes dos diferentes interesses e das diversas formas de reclamar pertencimento ao lugar. Na forma em que os atores são afetados pelo discurso predominante, na relação de cada grupo estabelecida com o tempo e o espaço – e também em como esse último acaba sendo diretamente afetado por essa dimensão conflitiva do processo, fragmentando-se diariamente e recebendo novas demarcações de fronteiras simbólicas ou não – fica claro o sentido mais geral assumido pela gentrification no caso da Lapa.

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BIBLIOGRAFIA

WEBGRAFIA

Circo Voador : www.circovoador.com.br

Youtube (Vídeo L.A.P.A): www.yotube.com

Wikimapia: www.wikimapia.org

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FILMOGRAFIA

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Minha Área. Rio de Janeiro, 2006. Borges, Cavi; Domingos, Emílio..

L.A.PA. Rio de Janeiro, 2007. Borges, Cavi; Domingos, Emílio.

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NOTAS

1. Esse trabalho é fruto de um projeto de Iniciação Científica que realizei entre os anos de 2007 e 2008 na Unicamp. Agradeço à minha orientadora, Prof. Dra, Silvana Rubino, e demais professores que me auxiliariam antes e durante a pesquisa, sobretudo, Osmundo Pinho, Heloísa Pontes e Suely Kofes. 2. Por não se tratar de um bairro na classificação municipal não foi possível encontrar dados que dizem respeito aos moradores somente da Lapa, no entanto o Censo em relação aos moradores do Centro aponta nesse sentido. (IBGE – Censo Demográfico – Base de Informações por setor censitário) 3. Todas as fotos foram tiradas por mim. 4. Tomo aqui de empréstimo a reflexão de Rogério Proença Leite que entende por reflexiva as representações de usos e espaço, pois os usos do espaço tanto dependem das reais possibilidades físicas e simbólicas dadas para que se possa usufruí-lo, como tendem a configurar socialmente o espaço (Leite, 2004) 5. Agradeço à Cavídeo que me autorizou a utilizar esses documentários no projeto. 6. Segue dois links para o portal de vídeos youtube: o primeiro para a música de Aori, e o segundo para um teaser do documentário, no qual outro rapper Lapino, Marechal, retoma a pergunta: http://www.youtube.com/watch?v=6-fmozhTG94 ; http://www.youtube.com/watch? v=vHrGn0PY-P4&feature=related. 7. Augusto Boal e Amir Haddad, diretores do Teatro do Oprimido e Tá na Rua, respectivamente, ambos instalados em casarões nesse trecho da Avenida Mem de Sá, em 2006 foram a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, protestar por esse aumento do aluguel dizendo que seus projetos corriam o risco de perder o espaço que ocupam há muitos anos. Notícia no site da ALERJ: http:// www.alerj.rj.gov.br/common/noticia_corpo2.asp?num=17185 8. Os nomes dos entrevistados foram substituídos por outros fictícios. 9. O empreendimento residencial “Cores da Lapa”, construído em um antigo galpão da fábrica da Antarctica, foi o primeiro edifício residencial a ser construído na Lapa nos últimos 30 anos. São 5 blocos de apartamentos de alto padrão. A entrega está prometida para o ano de 2009.

RESUMOS

Articular uma experiência de campo com a utilização de um conceito é uma das principais propostas do artigo aqui apresentado. Através de uma incursão às ruas da Lapa, no centro antigo do Rio de Janeiro, e mais adiante buscando mapear práticas e discursos daquelas que a freqüentam, a intenção é demonstrar como o processo de revitalização do bairro afeta e é afetado pelos atores que vivenciam cotidianamente suas conseqüências. A partir disso, emerge a necessidade de debater o conceito de gentrification e suas possíveis implicações.

ÍNDICE

Palavras-chave: Lapa, gentrification, etnografia

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AUTOR

NATÁLIA HELOU FAZZIONI Graduação em Ciências Sociais/Unicamp

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A camisa do colégio: a reprodução de estigmas sociais pela escola e a construção de identidades para as juventudes cariocas (2008)

Marcella Carvalho de Araujo Silva

1. Introdução

1 Desde o primeiro governo Brizola (1983-87), na cidade do Rio de Janeiro, houve uma associação entre a escola pública e os pobres, em decorrência da implementação do Programa Especial de Educação pela Secretaria de Educação de Darcy Ribeiro. O programa buscava suprir as diferenças entre pobres e classe média, dentro da própria escola, a fim de que todos os alunos, independentemente da classe social a que pertencessem, pudessem desfrutar de um bom ensino público e tivessem as mesmas condições de construir seu futuro profissional. A partir dessa época, o PEE, sigla pela qual ficou conhecido o programa, foi seriamente criticado e reduzido a uma de suas propostas: os CIEPs (Centros Integrados de Educação Pública), os quais passaram a ser considerados “escolas de pobres”. A classe média, desde então, deixou as escolas públicas e passou a ocupar os bancos de colégios particulares. Os alunos pobres da rede pública passaram a sofrer com mais este estigma, agora reproduzido pelas escolas a que freqüentavam. Desse modo, o estigma geográfico-espacial da cidade foi incorporado pelo campo educacional e por ele reproduzido. Essa foi uma conseqüência que, claramente, os formuladores do Programa não previam – constituindo, assim, um “efeito perverso” dessa política social.

2 Desenvolvendo um trabalho sobre a experiência de ex-alunos da rede municipal de ensino que ganharam bolsas de estudos em colégios particulares, tomei conhecimento de brigas entre alunos de escolas privadas e públicas. Associei essa nova informação às falas dos alunos a que entrevistava. Era constante a tentativa de construção de uma imagem social da escola pública e outra da escola particular, como forma de

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justificativa para a relação que eles estabeleciam com o novo colégio (particular). Analisando as entrevistas, pude perceber que havia um certo padrão de caracterização das instituições de ensino e uma correlação entre a imagem social construída e a identidade dos alunos que formavam a sua clientela. Pude então observar que a identidade que o grupo de alunos da rede privada conferia aos seus pares da rede pública estava em consonância com a imagem social atribuída às escolas do governo. A partir de então, passei a atentar para as brigas de rua. Os xingamentos que os grupos proferiam uns contra os outros eram bastante elucidativos da existência de estigmas sociais e da reprodução institucional que a divisão entre escolas públicas e privadas vem promovendo. O que reparei é a existência de instituições de ensino para os pobres – caracterizados, nas falas, como “favelados” – e outras para os ricos – ou melhor, a classe média.

3 Percebi, pois, que as classificações “favelado” e “playboy” ganham bastante relevo no mundo da escola, não podendo ser menosprezados pelo campo educacional. O que percebemos é a imagem da escola a que freqüenta influenciar a construção de identidade do jovem e, ao mesmo tempo, pois não se estabelece uma relação de causalidade, a escola pública ter reiterada a sua imagem social de “escola de pobres”, em decorrência da evasão da classe média. Enquanto essa mútua associação não for estudada, os preconceitos e a segregação continuarão existindo.

4 Até o presente momento, pelo que pude perceber em meus trabalhos de campo, existem discursos compartilhados pelos jovens, tanto de escolas públicas quanto de particulares, que os distinguem uns dos outros em grupos sociais diferentes: “favelados” e “playboys”. Em casos extremos, as diferenças transcendem os limites do discurso e situações de violência física e verbal são presenciadas entre os grupos. Os alunos envolvidos nas brigas, na maioria das vezes, não se conhecem pessoalmente, mas criam suas próprias identidades sociais a partir da negação do outro, acionando um discurso socialmente compartilhado sobre si mesmos e sobre o grupo “oposto”1. Na prática, eles se reconhecem pelas camisas dos colégios que estão vestindo, as quais materializam o próprio discurso.

5 Não são apenas os alunos que ganham bolsas de estudos em colégios particulares que constroem, em discurso, uma imagem dos alunos dos colégios públicos. No dia-a-dia, os alunos de colégios particulares compartilham esse discurso sobre o grupo das escolas públicas. Além disso, durante algumas observações participantes em escolas públicas, pude constatar que o discurso estigmatizante que recai sobre os seus alunos é conscientemente percebido por alguns eles. Conversando de maneira informal com alguns alunos do 9º ano de uma escola pública, em Vila Isabel, pude perceber que, dentro da escola pública, o mesmo discurso é acionado por alguns alunos, de modo a poderem se diferenciar daqueles que, em sua visão, personificam o estigma. Durante uma conversa informal com um aluno, ele apontou para um colega de classe, enquanto dizia “esses pretinhos de cabelo amarelo”. O menino apontado era negro, mas não tinha o cabelo “amarelo”. Apesar disso, ele foi citado pelo colega que me explicava por quê os alunos e os pais haviam ficado com medo, quando a direção anunciou que a escola funcionaria por um período em outro prédio. Essas informações pareceram-me relevantes e comprobatórias da existência de um discurso estigmatizante, que toma o estigma da favela como sua matriz e que recai sobre todos os alunos da rede pública de ensino. E, do mesmo modo, os alunos da rede pública constroem uma imagem sobre

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seus pares da rede particular e tomam-na como justificativa para agressões verbais e físicas.

6 Uma vez que a imagem social de cada grupo e de suas escolas é construída por meio da distinção entre os alunos de escolas públicas e particulares, as suas representações enquanto estão vestindo seus respectivos uniformes são importantes para a análise da construção do discurso. Até que ponto os papéis dos alunos dentro dos muros de seus colégios são os mesmos papéis representados quando o grupo “oposto” é encontrado nas ruas? Em que medida, tais embates criam coesão para os grupos e constroem identidades sociais para esses jovens? Qual é o lugar que a violência ocupa em suas vidas?

2. Metodologia e perspectiva teórica

7 A escola não pode ser tomada como um ambiente socializador separado das demais esferas da vida dos alunos, uma vez que, em nosso atual contexto social, a escola perdeu seu antigo monopólio cultural2, compartilhando com as mídias, por exemplo, a transmissão do conhecimento. Atualmente, os jovens criam suas socializações e constroem suas identidades percorrendo os espaços sociais que escolhem (Dayrell, 2007).

8 Tomando a escola como mais um ambiente pelo qual transitam os jovens, o tipo de trabalho de campo que venho empreendendo dentro das escolas é feito nos moldes das etnografias do professor John Ogbu com jovens negros e pobres da Califórnia. Para ele, é possível que as linhas mestras da etnografia antropológica de Malinowski3 sejam aplicadas em estudos de campo em escolas, sem que se perca a interconexão da escola com diversas outras esferas sociais tão importantes na socialização dos jovens, como a família. Do mesmo modo que etnógrafos que lidam com temas “mais tradicionalmente antropológicos” participam de todas as atividades de seus “nativos” que sejam a eles acessíveis, o etnógrafo em escolas também deve interagir nas atividades de todos os seus nativos. Vale ressaltar que, mesmo que o olhar da pesquisa recaia sobre como os jovens constroem suas identidades sociais a partir de experiências estigmatizantes, professores, funcionários, diretores, coordenadores, assistentes sociais, pais, ONGs, pedagogos, dentre outros, também devem ser considerados como nativos. Os discursos que esses atores sociais constroem sobre a escola, bem como o entendimento do funcionamento interno e das relações entre a escola, o governo e as famílias são fundamentais para uma análise adequada da imagem estigmatizante que é atribuída aos alunos. O discurso, portanto, não será tomado em separado às práticas escolares, mas será analisado como uma construção que acontece, a todo momento, durante essas práticas e interações entre diferentes atores sociais. Seguindo a perspectiva do professor John Ogbu, acredito que a apreensão dos códigos comunicativos dos diferentes membros da escola, a flexibilidade e a imaginação etnográfica sejam imprescindíveis para uma boa observação participante.

9 Nossas etnografias em escolas preocupam-se fundamentalmente com as relações que são estabelecidas dentro das salas de aula entre alunos e professores, a fim de aprimorar as práticas pedagógicas empregadas tendo em vista a melhoria do ensino. Obviamente, tais pesquisas são de extrema importância. Entretanto, elas, muitas vezes, não levam em consideração quem são os alunos e quem são os professores, além de não atentarem para as conexões que o campo educacional tem com outros campos sociais,

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especialmente com o político. Por isso, a perspectiva teórica do Professor John U. Ogbu (1981) se mostra tão interessante. Ele alegava que para compreender a relação professor-aluno e o fracasso escolar de jovens negros e pobres era necessário saber quem eram os professores e quem eram os alunos, de modo a entender a dificuldade de comunicação que se estabelecia entre eles. O fracasso escolar de jovens negros de Stockton, Califórnia, foi por ele analisado a partir de uma perspectiva etnográfica, atentando para a importância da instrução escolar nas suas vidas. Para compreender os motivos pelos quais as práticas pedagógicas implementadas por professores brancos e de classe média não estavam sendo eficazes, Ogbu teve de empreender uma etnografia que transcendia os limites dos muros da escola e estabelecia as devidas relações entre a escola, a comunidade a que atendia, as estruturas econômicas e o papel social e político da educação para o grupo estudado.

10 Tomando como ponto de partida essa perspectiva lançada há mais de vinte anos, as relações que se estabelecem dentro das nossas escolas não podem ser separadas das demais vivências dos alunos. Compreender o papel social da escola para jovens pobres e de classe média, a importância do mercado de trabalho e os seus projetos de vida (Velho, 2008), auxiliam a entender o tipo de relações que eles estabelecem dentro da e com a escola, bem como ajudam a compreender as identidades sociais que eles criam para si mesmos enquanto estudantes de colégios públicos ou de colégios particulares. É também muito importante reconstruir os discursos dos jovens uns sobre os outros e sobre si mesmos, pois, assim, podemos compreender os seus sistemas de relevâncias (Schultz, 1979).

11 Para este artigo, uma vez que a pesquisa ainda está em andamento, procurei analisar as brigas entre os alunos como rituais de violência (Tambiah, 1996), a fim de demonstrar como eles utilizam determinados estigmas sociais, como os geográficos, para diferenciarem-se uns dos outros. Com essa terminologia, não pretendo reproduzir a idéia de que ocorre uma guerra entre a favela dominada pelo tráfico de drogas e a dita “cidade legal”, como ocorre em muitos veículos de comunicação. Visto que pretendo, neste trabalho, atentar para o problema de violência verbal e física que ocorre quando alunos de colégios particulares e públicos se encontram nas ruas, como um momento de construção das suas identidades, lanço mão de palavras que metaforicamente explicitem melhor os sentidos que pretendo transmitir. Elas estão sendo usadas para efeitos meramente didáticos e ilustrativos, além de constituírem uma perspectiva teórica já consolidada.

3. Ritual de violência

12 Stanley Tambiah, em Leveling Crowds, lança alguns pontos importantes para se estudar rituais de violência. Ainda que ele esteja tratando de casos de violência no Sul da Ásia entre grupos nacionalistas de diferentes etnias, alguns conceitos e determinadas características dos embates violentos podem nos ajudar a pensar as brigas entre alunos de escolas particulares e públicas.

13 Para ele, o conflito não deve ser visto como uma situação episódica e descontínua, mas como um tipo de relacionamento social. Nesse sentido, os conceitos de “rotinização” e “ritualização” auxiliam a pensar os confrontos como atos organizados e recorrentes. Sabendo-se destacar quais são as atitudes corriqueiras dos grupos envolvidos, poder-se- á compreender o que se repete e o que muda nas relações entre “agressores e vítimas”.

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Esses conceitos também ajudam a compreender como, após um episódio violento, os participantes aparentemente retornam às suas rotinas, continuando a viver lado a lado daqueles que, nos embates, são seus “inimigos”. Os aspectos salientados pelo autor que pautarão a nossa análise são:

14 Os grupos envolvidos não se restringem àqueles que participam dos confrontos;

15 O Estado não é neutro, por isso, é importante atentar para as ações dos agentes do Estado, como os policiais, por exemplo;

16 Deve-se buscar delinear as solidariedades e tensões cotidianas que existem nas famílias, nos grupos sociais e nos bairros;

17 Atos tidos como irracionais e absurdos são ações características de confrontos coletivos, pois estão ligados a tendências de nivelamento;

18 É reconfortante para a classe média e os burocratas classificar como criminosos e favelados pessoas envolvidas em violência coletiva. No entanto, essa estratégia obscurece as ligações existentes entre os confrontos e o contexto social mais amplo;

19 Deve-se atentar para os sustentáculos intelectuais e emocionais dos grupos: discursos religiosos, raciais, lingüísticos e territoriais; e, finalmente,

20 Tanto elites quanto massas, maiorias e minorias, classes médias e pobres sentem-se vítimas.

21 Passando agora para as características distintivas dos rituais de violência, Tambiah enumera as seguintes: passeatas com fotos e símbolos; presença de figuras públicas; multidões de espectadores; discursos públicos em amplos espaços abertos; formas padronizadas de intimidação; falas para desafiar, insultar, etc.; compartilhamento de rumores; e distribuição de “presentes”. Em se tratando de violência entre alunos, apenas algumas dessas características enunciadas acima podem ser identificadas: símbolos; formas de intimidação padronizadas; falas para desafiar e insultar; e compartilhamento de rumores.

22 Vejamos como esses aspectos e essas características se combinam de modo a podermos pensar as brigas entre os alunos como rituais de violência.

3.1. Rumores: o que dizem sobre os outros e sobre si mesmos

23 Tambiah nos diz que, em se tratando de rituais de violência, normalmente cada um dos grupos envolvidos aciona determinadas informações sobre os “rivais”. Às vezes, é virtualmente impossível descobrir onde, quando e por quem um rumor foi iniciado. Ao cabo, o pânico e a raiva provocados pelos rumores promovem uma perpetuação de atos horríveis atribuídos ao inimigo. Rumores, então, podem ser auto-suficientes. (tradução livre minha).

24 A partir dessa concepção do que sejam os rumores, resolvi separar meus interlocutores por grupos a fim de melhor analisar o que cada um dizia sobre as questões que me interessavam:

25 alunos que sempre foram de escolas particulares;

26 alunos que tiveram a dupla experiência;

27 alunos que sempre estudaram em colégios públicos;

28 professores.

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29 Por enquanto, esses são os atores com que tenho conversado, mas não são os únicos que merecem ser ouvidos no universo da escola.

3.1.1 Os alunos de colégios particulares4

30 Entrevistei duas alunas e dois alunos do colégio particular em que faço observações participantes. Os quatro davam muito valor à educação e disseram que esse valor “vinha de casa”. Os pais apresentam, para eles, um papel importante nas suas vidas, o que eles achavam que não acontecia com os alunos de colégios públicos.

31 Conversando de maneira informal com alguns alunos, eles expressaram ter medo de determinados alunos da rede pública de ensino, fator que se mostra, para eles, importante na hora de os pais escolherem mandar seus filhos para colégios particulares. Eles consideram a freqüência de jovens ligados ao tráfico de drogas muito amedrontadora, pois já ouviram falar de casos de alunos que levam armas para as escolas. Por isso, eles salientaram que pais com o mínimo de poder aquisitivo para colocar os filhos em um colégio particular fazem os sacrifícios que forem necessários para que eles não vão para um colégio público. É interessante notar como a imagem do pobre permanece muito ligada a do bandido, associação que se mantém desde o início do século XX5.

32 Em relação à escolha do colégio, os alunos ressaltaram a importância da imagem pública da escola. Comentários positivos acerca da qualidade do ensino são fundamentais no momento da escolha do colégio. A propaganda publicitária desempenha um importante papel para colégios particulares. Por isso, são colocados cartazes na fachada do colégio mostrando a relação de aprovados no vestibular, outros disponibilizando cursos preparatórios para provas vestibulares das principais universidades públicas (Projeto UFRJ, Projeto UFF, etc.), cartazes de ex-alunos do colégio que se tornaram figuras públicas, dentre outros. A concorrência entre colégios particulares também é considerada fundamental para a qualidade do ensino disponibilizado.

33 Além disso, era recorrente o uso de expressões como "a escola funciona como uma empresa" e "nós somos os clientes" para explicar como a relação aluno-escola se dá. Nesse sentido, os salários dos professores foram apontados como importantes, mas nem sempre decisivos, para o desempenho desses profissionais.

3.1.2. Os alunos que tiveram a dupla experiência6

34 Ao final da 8ª série, os alunos das escolas municipais sabem que irão para colégios estaduais. No entanto, alguns deles prestam concursos para diversos colégios públicos considerados de melhor qualidade e ainda para colégios particulares. Para prestar a prova para um colégio particular, eles devem ser alunos de colégios municipais, apresentar boas notas e bom comportamento. Segundo um aluno entrevistado: “Ela [a diretora] me selecionou pelo meu rendimento e comportamento. Alguns alunos também tinham notas boas, mas não tinham um comportamento adequado para vir para cá [colégio particular]”.(grifo meu)

35 Pelo que o coordenador da escola particular falou, qualquer aluno da rede municipal tem direito a uma vaga em um colégio particular que esteja participando do programa da prefeitura em parceria com o Sindicato de estabelecimentos particulares de ensino7. Contudo, eles ganham as bolsas via indicação direta da direção do colégio público ou de

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algum professor que dê aulas nas duas escolas, os quais agem com um intuito de salvar alguns alunos – palavra que foi repetida diversas vezes pelos professores, conforme veremos adiante. Alguns dos indicados recebem as bolsas automaticamente; outros prestam uma prova, na qual devem atingir, no mínimo, nota 5,0. Atualmente, pelas informações que me foram passadas, visto que o número de alunos interessados é maior do que o número de vagas disponíveis, após uma matrícula prévia de todos e de uma reunião com os responsáveis, os alunos são submetidos a uma prova de seleção que inclui questões gerais de língua portuguesa, matemática e redação. Contudo, alguns alunos entrevistados ingressaram no colégio por meio apenas de indicação. Não foi possível compreender de maneira clara quando ocorre indicação apenas e quando os alunos são submetidos a provas.

36 O perfil dos alunos é relativamente fácil de ser traçado. Eram, sem exceção, bons alunos nos seus antigos colégios, embora alguns fossem mais aplicados do que outros, conforme pude perceber pelas declarações que fizeram. Além disso, pessoas de famílias que não podiam arcar com o peso de uma mensalidade todo mês. A resposta de um dos alunos, quando perguntei sobre a reação de seus pais ao recebimento da notícia de que o filho havia passado na prova de seleção do colégio particular, explicita bem essa situação: Eles ficaram super felizes. Eles não têm condições de pagar um colégio tão caro.

37 Quando souberam que haviam ganhado uma bolsa e, conseqüentemente, passariam a estudar em um colégio particular, os alunos reagiram de diversas maneiras. Separei-as nos seguintes tipos ideais (Weber, 2006): medo, alívio, felicidade e rejeição. Cada uma dessas reações demonstra o tipo de imagem que os alunos tinham da escola particular.

38 Alguns alunos não pensavam em prestar vestibular antes de conseguirem as bolsas e ingressarem no colégio particular. Estes foram os mesmos alunos que sentiram medo frente à nova realidade. Eram alunos que não estavam acostumados a estudar rotineiramente e que, por isso, ao se depararem com uma série de regras – semana de provas, presença de todos os professores ou, ao menos, de um substituto, e regras com o horário –, sentiram uma diferença enorme em relação à sua realidade anterior. Eles não se achavam capazes de seguir a nova rotina. Como dois alunos desse perfil falaram, eles sentiram medo de repetir a série e de não corresponderem às expectativas das pessoas ao seu redor. É importante ressaltar que esses alunos, em momento algum das entrevistas, deixaram transparecer qualquer medo em relação ao ingresso em um colégio estadual, embora, com a mudança de escola, eles tenham tomado conhecimento das dificuldades que iriam enfrentar, via declarações de amigos que foram para esses colégios. Outro aspecto interessante que eles ressaltaram foi o conhecimento, desde o início, da inveja em algumas pessoas.

39 Alguns outros alunos sentiram alívio ao receberem a notícia da aprovação. Eles, ao contrário dos entrevistados que reagiram com medo, tinham uma imagem negativa prévia dos colégios estaduais e, mais do que isso, não se enxergavam em tal realidade. Eles, como diversos outros adolescentes que prestavam provas para terem uma chance de estudar em um colégio de melhor qualidade, não tinham certeza de quais seriam os seus destinos. Entretanto, definitivamente, eles precisavam encontrar uma outra saída que não o colégio estadual.

40 Mais do que alívio, alguns alunos sentiram, de fato, felicidade. Estes se diferenciavam dos demais, porque já estavam, ao longo do Ensino Fundamental – mais precisamente da 5ª à 8ª série – se preparando para concursos. A visão deles do colégio estadual era

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extremamente negativa, o que era impossível de conciliar com a vontade de passar no vestibular e de “crescer na vida”. Ressalva seja feita de que todos os entrevistados sabiam o quão mais difícil seria ingressar em alguma universidade estando em um colégio estadual. Nesse sentido, todos eles tinham a mesma imagem do colégio particular: máquina de fazer aprovar nos vestibulares.

41 Dois alunos particularmente deram depoimentos apontando para direções diversas, apesar de ambos sentirem muita felicidade por estarem em uma instituição que lhes oferecia ensino de qualidade. O menino negava totalmente seu passado. Sua vida é agora, no colégio particular. O que aconteceu antes foi uma dificuldade pela qual ele passou e que foi superada. As suas atitudes não eram as mesmas dos “alunos do colégio municipal”, como ele mesmo fez questão de diferenciar. E além delas, suas perspectivas e esperanças, seus desejos e suas vontades não eram iguais. Ele estava no todo, mas não fazia parte dele. A menina, em contrapartida, vivia no passado. Ela era aquilo que havia acabado. O “seu” colégio é o antigo, com todas as dificuldades que ele apresentava. Ele falava do passado empregando tempos verbais no passado; ela falava do passado, no presente. Ele falava dos “alunos do município”; ela, dos amigos e professores que formavam uma família. Ele apontava inúmeras críticas ao antigo colégio, sem conseguir citar uma sequer ao colégio novo; ela apontava críticas ao “seu” colégio com bastante dificuldade, sempre acrescentando alguma expressão que pudesse amenizar o peso da crítica. Era impossível apontar críticas tanto a um sonho realizado, quanto a um passado idealizado.

42 Por fim, o último sentimento em relação à mudança de colégio foi a rejeição. Nesse caso, a imagem negativa foi dada ao colégio particular, ao contrário do que ocorreu com todos os outros alunos. Um aluno, em especial, se destacou como defensor dessa idéia. Ele não queria estudar em um colégio particular, pois esse não era o “seu mundo”. Ele sabia que lá teria maiores chances de passar para uma boa faculdade, mas o seu pré- conceito do que seria o ambiente privado de ensino impossibilitou que ele criasse qualquer laço com o colégio particular. Ele chegou, até mesmo, a dizer que torcia para que aquele momento acabasse. O seu maior problema com o colégio eram os alunos. Para ele, a maioria era alienada e individualista. O colégio não era divertido, como o antigo. Ele também não tinha tantos amigos. O ambiente era racionalizado demais em função do dinheiro.

3.1.3. Os alunos que sempre estudaram em colégios públicos

43 Minhas últimas investidas em campo têm sido feitas com o intuito de delinear melhor o discurso de alunos de colégios públicos. Talvez porque minha entrada na escola tenha se dado via contato com uma professora – que me apresentou a alunos que participam de um projeto social –, tenho sentido muita dificuldade para fazer com que eles se sintam à vontade comigo. Três meninas se aproximaram mais, ainda que freqüentemente demarquem fronteiras entre nós (não gostam que eu vá ao colégio quando há brigas entre alunos que moram em favelas de facções rivais, perguntam se eu vejo problema em voltar para casa com elas de Kombi, etc.).

44 Os alunos que conheço da escola municipal participam de um projeto social de uma empresa privada. Eles dão monitorias para alunos de séries abaixo das suas e ganham R$ 3,00 por aula. São 25 alunos da 6ª ou da 7ª série, selecionados por critérios como: mau comportamento, dificuldades financeiras, etc. Eles permanecem por apenas um ano como monitores. Os professores que participam do projeto compartilham uma visão de

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que “estão salvando pelo menos alguns”, ainda que não tenham critérios formais para a seleção, utilizando a intuição para escolher.

45 Meu primeiro contato mais intenso com eles se deu logo na minha segunda ida ao colégio –na primeira, assisti a uma das aulas que eles têm com uma representante do projeto social. A professora ficou como mediadora e pediu que eles me dissessem do que gostavam e da melhora que eles haviam experimentado após o ingresso no projeto. Ela induziu claramente os alunos a verem melhoras em suas vidas pessoais, desde que passaram a freqüentar o projeto. Não foi dos melhores encontros e, por isso, achei importante me desvincular dessa professora e do projeto social. Conversei com eles em particular e eles gostaram do meu interesse em ouvi-los falar.

46 As meninas com quem tenho conversado mais são todas moradoras de favelas, a maioria das redondezas da escola8. Achei curioso que, se não forem todos, a maioria dos alunos do Projeto são de comunidades sob o domínio da mesma facção de traficantes, mas ainda não tive oportunidade para explorar o tema. Soube, por meio de uma declaração de uma das alunas, que normalmente os alunos que moram em favelas de facções rivais não se falam e, quando ocorrem tiroteios entre elas, eles brigam ao final das aulas, na praça em frente ao colégio.

47 A realidade deles, em alguns aspectos, diverge muito da de um garoto ou garota de classe média. Eles têm de cuidar dos irmãos e/ou dos primos, fazem comida em casa, ajudam no pagamento das despesas com o dinheiro que ganham dando monitorias, ficam até 15 minutos em um ponto de ônibus esperando que algum motorista pare e os deixe entrar. Em outros aspectos são até muito parecidos. Adoram computador (todos têm um em casa), dormir e dançar. Não gostam de ler e sonham em ser advogados e comissários de bordo. Quanto aos gostos musicais, são bastante variados, em ambas as escolas.

48 Perguntadas as suas opiniões sobre a escola, as meninas falaram que achavam o ensino muito bom. Seus pais também consideram o ensino de qualidade. Uma delas lembrou um tema que eu já havia ouvido outras vezes. Ela falou que os professores falam que a escola pública é melhor do que a particular, mas não colocam os filhos nessas escolas. Perguntei por que ela achava que isso acontecia e a resposta que recebi foi muito parecida com as falas dos alunos do colégio particular: existem alunos que não são educados, que xingam e que quebram o material da escola. Uma outra menina interferiu e falou que na escola delas os alunos se divertem muito na hora do recreio, que não ficam “sentados e quietos conversando e comendo os lanches que compram na cantina”, que, segundo ela, é o que fazem os alunos das escolas particulares. Nenhuma das duas mencionou o fato de existirem alunos envolvidos com o tráfico de drogas, como foi dito pelos alunos do colégio particular e pelos professores.

49 “E os colégios particulares, o que vocês sabem sobre eles?”. A prima da amiga de uma delas falou que era “muito chato” e, por isso, ela não deixou o pai matriculá-la em um colégio particular. Outra falou que tinha ouvido falar que os alunos dos colégios particulares fumam escondidos dentro dos banheiros.

50 “Imagina se isso ia acontecer aqui na escola?!”.

3.1.4. Os professores9

51 Conversei de maneira mais sistemática com professores de escolas públicas. Fiz apenas uma entrevista formal com uma professora, a mesma que fez a minha mediação com a

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escola municipal que freqüento. Com professores de colégios particulares tive apenas conversas informais entre as aulas.

52 Na maior parte do tempo, os professores da rede municipal empregavam palavras como “nós” e “eles”, como forma de separar “classe média” e “favelados”. Mais do que indicar que eles me consideravam parte da classe média carioca – isso demonstra os limites do raio de ação que o antropólogo tem no campo, conforme pude perceber também pelas perguntas que os alunos me faziam –, essa separação classificatória demonstra a permanência de uma distinção entre a dita “cidade legal” e a “favela”. Eles gostam da escola, porque é um espaço de socialização no asfalto, quando eles podem descer dos morros.

53 Uma outra frase da professora que entrevistei me chamou a atenção, por sintetizar bem o tipo de distinção que os professores faziam a todo momento: Eles não têm tanto apego aos filhos quanto nós temos.

54 Essa frase foi proferida após expor o caso de um de seus alunos da 5ª série que é desprezado pela mãe por ser filho de um casamento anterior, enquanto a irmã é adulada e estuda em um colégio particular. Apesar de esse caso ser muito específico, e não ser o melhor exemplo de uma “falta de apego” generalizada entre os “favelados”, a escolha por parte da professora em me contar esse caso é sintomática do tipo de distinção que ela estava tentando fazer. Para ela, uma mãe de classe média jamais faria isso com seus filhos.

55 Todos os professores com que conversei têm seus filhos estudando em colégios particulares, Não pela qualidade do ensino, mas pelas convivências.

56 Os professores repetiram muitas vezes a questão da “clientela das escolas” (expressão usada por eles). A professora entrevistada falou que trabalhava em duas escolas públicas, pois tinha duas matrículas no município. Em uma, os alunos eram de uma classe média baixa e tinham mais vontade de aprender, devido à valorização do estudo por parte das próprias famílias; em outra, os alunos são de “seis comunidades diferentes”, como ela mesma falou, não têm estrutura familiar, e apresentam “vivências” muito difíceis. Por isso, ela fez uma distinção entre as Coordenadorias da Secretaria Municipal de Educação: dependendo de qual seja a região em que a escola se encontra, determinada será a sua clientela e, conseqüentemente, a relação entre escola e alunos será tal que influenciará o desempenho tanto de alunos quanto de professores.

3.2. Símbolos: Uniformes

57 Os uniformes servem, nos momentos de encontro nas ruas da Tijuca, como símbolos que identificam e diferenciam os grupos. Dentro das escolas, os uniformes promovem uma homogeneização dos alunos. Nas escolas públicas, eles garantem que todos os alunos tenham uma roupa para ir ao colégio. Nas escolas particulares, conforme falou o coordenador, eles garantem que alguns alunos não se sintam inferiores aos colegas, por não ostentarem tantas roupas, sapatos e mochilas de marcas conhecidas.

58 Com o processo de saída da classe média das escolas públicas, os uniformes passaram a ser marcadores de diferenças, pois denunciam a classe social a que pertence o aluno. Por isso, nesta análise, tomei os uniformes como importantes símbolos que criam identidades para os grupos por materializarem as diferenças que estão implícitas entre os dois tipos de escola que estou estudando.

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59 Entrevistando um aluno que teve a dupla experiência de estudar tanto em um colégio público quanto em um particular, percebi claramente como o uniforme é um importante diferenciador entre os alunos. Ele, um menino negro, deu um exemplo muito simples e, ao mesmo tempo, elucidativo. Quando um garoto negro está vestindo um uniforme de escola pública, alunos de colégios particulares mudam de calçada, com medo de que o menino negro vá assaltá-los. Se o menino negro, em contrapartida, estiver com uma camisa de um colégio particular, vai ser visto pelos demais de maneira diferente. Para além do problema do estigma de cor, esse caso explicita o grande preconceito que existe com relação à classe social. O que percebemos é a manutenção de um velho estigma que era associado às populações de baixa renda: o pobre é um bandido em potencial.

60 Durante as brigas, os grupos da escola pública e da escola particular identificam-se uns aos outros pela camisa que estão vestindo. Após muitas observações de como ocorrem os confrontos entre os alunos, resolvi comprovar a importância do uniforme. Em um dia, vesti uma camisa de uma escola particular e peguei um ônibus da linha 415 – ônibus que os alunos da escola pública me falaram que pára para eles nos pontos e os deixa entrar “por trás”, isto é, sem ter que passar pela roleta e sem usar o RioCard. Ouvi diversos xingamentos, como “patricinha”, “filhinha de papai”, “piranha” e algumas brincadeiras por parte dos meninos, além de receber uma cuspida e uma pedra portuguesa em meu fichário. Em outro momento, peguei um mesmo 415, só que, dessa vez, sem uniforme, com uma roupa normal. Não ouvi nenhum xingamento ou brincadeira, nem sofri qualquer violência física. O comportamento dos alunos, na verdade, mudou drasticamente. Quando pedi licença a alguns deles que estavam obstruindo a porta de saída do ônibus, eles cederam passagem sem qualquer problema.

61 O uniforme traz ainda alguns outros problemas quanto ao trânsito de alunos de colégios públicos pelo bairro. Eles normalmente não têm acesso permitido, quando estão em grupo, às linhas expressas do metrô nem a alguns ônibus que eles chamam de “azuis” (ônibus da companhia Tijuquinha), ainda que, ao lado da porta de entrada, esteja escrito que alunos uniformizados da rede pública têm direito à gratuidade. Resolvi perguntar a uma aluna da escola pública em que faço trabalho de campo o porquê dessas proibições. Ela me disse que alguns alunos da rede pública “não têm educação” e quebram os ônibus. Por isso, os motoristas ficam com medo de que seus carros sofram danos e não deixam que os alunos entrem. Normalmente, eles ficam mais de dez minutos para conseguir pegar um ônibus que os leve para suas casas. Quando algum ônibus se aproxima do ponto, eles avaliam o motorista. Não sei ao certo quais são os critérios que eles levam em consideração para saber se o motorista vai ou não deixá-los entrar. Ouvi algumas vezes frases do tipo “Ah, esse é preto. Não vai deixar”, proferidas por alunos negros da rede pública. Não cabe aqui uma discussão acerca do preconceito de cor, visto que o enfoque deste trabalho é analisar a reprodução das desigualdades sociais pelas escolas do Rio de Janeiro, mas fica um bom ponto para ser estudado futuramente.

3.3. Performances e Falas

62 Ao terminarem as aulas do dia, muitos alunos, tanto da rede pública como da rede particular, permanecem durante longo período em frente aos portões de suas escolas. Eles formam grupos de amigos e ficam, por algum tempo, conversando sobre os casos

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mais diversos de suas vidas: namoros, festas, passeios, etc. Quando resolvem ir para suas casas, alguns alunos da escola pública a que vou dirigem-se para um ponto de ônibus que se localiza antes do ponto em que alguns dos alunos da escola particular pegam seus ônibus. Assim que algum motorista os deixa entrar, eles vão todos para o final do ônibus. Quando passam em frente ao colégio particular que tomei como exemplo neste estudo, alguns se posicionam nas janelas. Na calçada da escola particular, acumulam-se vários de seus alunos, conversando antes de ir para casa. No momento em que o ônibus com os alunos da escola pública passa, eles jogam pedras, bolinhas de papel, sementes, etc. nesses alunos que estão parados, bem como começam a se xingar mutuamente. Pelo que pude perceber, quem começa as brigas são os alunos da rede pública.

63 As falas proferidas pelos alunos uns contra os outros merecem uma análise mais minuciosa, pois elas deixam claras a qualquer espectador das brigas as diferenças sociais entre os alunos. Entrevistando os alunos do colégio particular, em momento algum, qualquer um deles demonstrou considerar um problema a questão das diferenças sociais como um dificultador das relações entre os jovens. Eles ressaltaram o tráfico de drogas, mas não a pobreza, como um problema que divide a juventude tijucana. No entanto, ouvindo, da calçada da principal rua da Tijuca, os xingamentos que eles dirigiam aos pares da rede pública, percebi uma contradição nas falas desses alunos. Quando ouviam algum xingamento contra si – como “playboy”, “filhinho(a) de papai”, “patricinha”, “piranha”, etc. –, os alunos das escolas particulares rebatiam com “favelados”, “macacos” e “bandidos”. Esses xingamentos, além de separarem os grupos por classes sociais, demonstram alguns outros problemas que subjazem as relações sociais entre eles, que dizem respeito à cor e à condição da mulher. Neste trabalho, pretendo analisar apenas as distinções de classe social, como já mencionei anteriormente.

64 O termo “playboy” utilizado pelos alunos apresenta diversos significados, dependendo da situação em que seja utilizado. Victor Turner, em Floresta de símbolos: aspectos do ritual Ndembu, ressaltou a importância de se atentar para os diversos significados que um mesmo símbolo – e aqui tomo as palavras como símbolos – pode apresentar dependendo do contexto e do ator social que o esteja utilizando. Tentarei demonstrar, neste trabalho, como isso acontece em contextos de violência entre grupos que representam diferentes classes sociais.

65 Se um jovem de classe média disser a outro que ele está igual a um playboy – “estar que nem um playboy”, como eles falam –, ele estará dizendo que o colega veste “roupas de marca” e, dependendo do seu gosto pessoal, que ele está “bem vestido” ou que é uma pessoa muito ligada a dinheiro. Se um garoto pobre disser a outro menino pobre que “ele está que nem um playboy”, ele estará elogiando o colega por meio de uma ironia. De uma maneira geral, os jovens, independentemente da classe social, valorizam as roupas de marcas conhecidas, mesmo que elas sejam cópias piratas.

66 No que diz respeito à situação que está sendo analisada aqui, quando um garoto pobre chama um menino de classe média de “playboy”, ele está demarcando fronteiras simbólicas entre eles. Ele está querendo dizer “riquinho”, numa alusão ao caráter pejorativo de se ser rico. Em um contexto de forte desigualdade social, o rico, aquele que é “privilegiado”, é visto de maneira negativa. De qualquer forma, o interessante de notar é que os alunos de escola pública xingam utilizando o termo “playboy”, em uma clara tentativa de atribuir uma conotação negativa a essa categoria por eles não fazerem

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parte dela, pois eles também gostam das roupas e dos acessórios de marca. Ao mesmo tempo em que negam o outro, eles também estão construindo suas próprias identidades sociais.

67 Em relação ao termo “favelado”, podemos também encontrar uma multiplicidade de significados. Conversando com alunos da escola pública que moram em favelas da Tijuca, pude perceber que eles utilizam constantemente, ao menos em minha presença, os termos “favela”, “morro” e “favelado”. Alguns deles afirmam, com freqüência, a sua condição de moradores de favelas – um significado que o termo “favelado” pode ter –, mas não atribuem um tom negativo a essa categoria. Eles tratam a favela apenas como um lugar para se morar na cidade do Rio de Janeiro, ainda que o “morar na favela” apresente as suas peculiaridades. Eles não podem, por exemplo, utilizar determinadas expressões nas favelas em que moram, pois elas são consideradas gírias de facções rivais e, por isso, eles correm risco de vida, como eles me disseram. Caso algum vizinho morra em um tiroteio, eles têm de ficar de luto. E têm de conviver com muita lama quando chove, como eles mesmos reclamaram. Entretanto, “favelado” também quer dizer “mal educado”, “barraqueiro”. Esse é um dos sentidos que os alunos das escolas particulares dão ao termo, quando o dizem contra os pares da rede pública. Muitas vezes, alunos da própria escola pública utilizam esse termo uns contra os outros. Conheci o caso de duas alunas, ambas moradoras de favelas, que se xingavam utilizando a palavra “favelada” com esse significado. Falta, contudo, explicitar um sentido bastante importante do termo: “bandido”. Apesar de todo o esforço que vem sendo feito por parte de atores envolvidos com a favela de maneira direta (moradores, CUFA, lideranças comunitárias, etc.) e indireta (intelectuais) em ressignificar o termo, ainda persiste um velho sentido. A pobreza ainda é considerada geradora de violência e, por isso, os “favelados” são, muitas vezes, considerados “bandidos”. Nos últimos anos, com o crescimento do problema de violência no Rio de Janeiro e, mais especificamente, na Tijuca, bairro de que estamos tratando, moradores de favelas continuam a ser considerados bandidos em potencial. Com isso, vemos diversas medidas por parte do poder público direcionadas para o afastamento de jovens favelados – considerados “em situação de risco” – da violência.

68 Expostos os sentidos dos principais termos utilizados nos xingamentos, podemos passar a uma análise do momento da brigas. Normalmente, o ônibus cria uma distância física entre os alunos, servindo como uma “trincheira”. Ele demarca o espaço físico onde se localizam os grupos, reproduzindo simbolicamente, no momento das brigas, o mito da divisão entre a “cidade legal” e a favela. É difícil que qualquer uma das partes transgrida esse limite, durante os conflitos. Ouvi pouquíssimos relatos de grupos de alunos de escolas públicas que passaram a pé pelos alunos da escola particular e, apenas uma vez, soube de um caso de um aluno da escola particular que entrou no ônibus e bateu em alguns meninos de escola pública que haviam jogado uma semente nele.

69 De fato, alguns alunos da escola particular pegam ônibus em que grupos de alunos da escola pública estão. No entanto, nessa situação, apresenta-se um desnível de força entre os grupos, uma vez que apenas um ou poucos alunos de escola particular entram nos ônibus, enquanto há em torno de dez alunos da escola pública. Nesse caso, aproveitando-se da diferença em quantidade e acionando o medo que eles provocam na classe média, os alunos da rede pública aumentam as brincadeiras e os xingamentos em relação a esses alunos que estão sozinhos. Muitas vezes, o que faz parte da performance que eles apresentam nesses contextos de “embate”, eles cantam funks bem alto e

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dançam perto desses alunos da escola particular. Acionam, assim, os diversos significados que a categoria que lhes confere identidade apresenta e agem a partir dela. Uma aluna da escola particular em que faço trabalho de campo me falou do pânico que ela estava sentindo quando pegou um ônibus e passou por essa situação descrita acima. Para amedrontá-la, alguns alunos falaram: “Vamos roubar a mochila da playboy” e, quando ela estava para saltar do ônibus, puxaram a mochila para que ela pensasse que iriam realmente assaltá-la. Por isso, hoje em dia, ela prefere voltar a pé para casa. Vale, contudo, fazer uma pequena ressalva quanto às atitudes dos alunos das escolas públicas. Uma professora da escola municipal me contou casos em que uma de suas monitoras apresentava comportamento agressivo, dizendo que iria bater em todo mundo, e utilizava palavrões e palavras de baixo calão, quando saia às ruas. Conversando com essa aluna, no meu segundo dia na escola pública, pude perceber um comportamento muito diferente, quando ela se encontra entre amigos e/ou em casa. Ela disse que gostava muito de dormir, que era passista em uma escola de samba da Tijuca e que dava parte do que recebia dando monitorias para a mãe, a fim de ajudar na renda de sua família.

4. Conclusão

70 Tomando como referência John Austin, resolvi analisar esses xingamentos como casos de violência verbal, pois, com eles, os alunos estão criando identidades para si mesmos e para os seus outros, além de estarem provocando atitudes violentas uns nos outros. Através do discurso, eles reiteram as divisões sociais que persistem no bairro da Tijuca e na cidade do Rio de Janeiro, de maneira mais ampla.

71 Essas brigas chamaram a minha atenção, pois elas enunciam, literal e metaforicamente, por meio de falas e atos, uma velha característica do campo educacional, estudada por Bourdieu nos idos dos anos 1960. A escola continua atuando como uma reprodutora de desigualdades sociais. No Rio de Janeiro, essa reprodução ganha alguns traços peculiares, que dizem respeito a uma reprodução institucional de estigmas urbanos, como podemos perceber analisando os adjetivos que são utilizados pelos alunos no momento das brigas.

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NOTAS

1. No nível do discurso, os alunos fazem uma distinção em pólos opostos entre si mesmos e os pares do outro colégio. Isso é bastante compreensível, em um momento de embate, pois não são admitidas e consideradas as características que podem aproximá-los. 2. Essa perspectiva é levantada por F. Dubet, em El declive de La instituición: profesiones, sujetos e indivíduos em La modernidad. Barcelona: Gedisa, 2006, e utilizada por Juarez Dayrell para a análise da escola como um espaço de construção de identidades de jovens estudantes de colégios estaduais. 3. “Nossas considerações finais indicam que os objetivos da pesquisa de campo etnográfica podem, pois, ser alcançados através de três diferentes caminhos: 1. A organização da tribo e a anatomia de sua cultura devem ser delineadas de modo claro e preciso. O método de documentação concreta e estatística fornece os meios com que podemos obtê-las. 2. Este quadro precisa ser completado pelos fatos imponderáveis da vida real, bom como pelos tipos de comportamento, coletados através de observações detalhadas e minuciosas que só são possíveis através do contato íntimo com a vida nativa e que devem ser registradas nalgum tipo de diário etnográfico.

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3. O corpus inscriptionum – uma coleção de asserções, narrativas típicas, palavras características, elementos folclóricos e fórmulas mágicas – deve ser apresentado como documento da mentalidade nativa. Essas três abordagens conduzem ao objetivo final da pesquisa, que o etnógrafo jamais deve perder de vista. Em breves palavras, esse objetivo é o de apreender o ponto de vista dos nativos, seu relacionamento com a vida, sua visão de seu mundo”. (Malinowski, 1978) 4. Os dados deste tópico foram conseguidos em 4 entrevistas formais e algumas conversas informais com alunos da escola particular em que faço trabalho de campo. 5. Para uma discussão mais aprofundada sobre o que significou ser pobre em diversos momentos da História do Brasil, ver VALLADARES. “Cem anos pensando a pobreza (urbana) no Brasil”. In: BOSCHI, Renato (org.). Corporativismo e desigualdade: a construção do Espaço público no Brasil. Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1991, v. 1, p. 81-112. 6. Os dados deste tópico foram coletados em 13 entrevistas formais feitas com ex-alunos de escolas municipais que cursavam o Ensino Médio no colégio particular em que venho empreendendo trabalhos de campo. 7. O Programa de bolsas é regulado pelas normas do Decreto nº 22663, de 20 de fevereiro de 2003 (Decreto Oficial do Município de 19 de março de 2003) e da Resolução Conjunta SME/SMF, nº 11, de 24 de fevereiro de 2003 (Decreto Oficial do Município de 25 de fevereiro de 2003). 8. A região da Grande Tijuca é formada pelos bairros do Alto da Boa Vista, Andaraí, Vila Isabel, Grajaú, Maracanã, Praça da Bandeira e Tijuca, totalizando aproximadamente 400 mil moradores, dos quais em torno de 13% moram nas 29 favelas da região. 9. Empreendi apenas uma entrevista formal com a professora que fez a minha mediação com a direção da escola municipal em que trabalha. Conversei com alguns outros professores de maneira informal na Sala dos professores ou entre aulas.

ÍNDICE

Palavras-chave: juventude, escola, estigma

AUTOR

MARCELLA CARVALHO DE ARAUJO SILVA

Aluna do 5º período de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas/RJ e bolsista de Iniciação Científica da FAPERJ, na pesquisa A Construção Social do Valor em Mercados Imobiliários ‘limiares’: moradia, memória e espaço urbano entre a ‘favela’ e a ‘rua’, coordenado pela Profª Mariana Cavalcanti, o qual integra a investigação temática “Dinâmicas Imobiliárias e o Valor da Moradia” do projeto Moradia, Trabalho, Lazer e Política: transformações nos usos, representações e apropriações do espaço urbano carioca.

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As produções audiovisuais de jovens da periferia e a auto-representação (2008)

Flávia Fernandes Belletati

1 Recentemente, como constatado por Hikiji (2008), alguns jovens da periferia de São Paulo têm se organizado nas periferias metropolitanas para produzir arte e estabelecer comunicação com os diversos segmentos da sociedade. Estes jovens reúnem-se em coletivos que utilizam diversas linguagens e formas de expressão, como a música, o teatro, o audiovisual, entre outros. O coletivo independente Núcleo de Comunicação Alternativa (NCA) é um desses grupos formados por jovens moradores da periferia, que decidiu produzir materiais audiovisuais e realizar projeções fílmicas em locais públicos, com o objetivo de aproximar as pessoas de suas comunidades à linguagem cinematográfica, além de garantir a circulação de suas próprias produções nos espaços em que isso faz mais sentido: Nossa idéia era essa, exibir para quem era foco, pra quem se reconhece vendo aquela produção. Não que isso seja um empecilho de exibir em diversos outros espaços, no centro, porque eu não tenho nada de regionalista. Eu quero mais que a produção escoe mesmo e que as pessoas conheçam o que a gente está fazendo1.

2 Proponho-me pensar os filmes do coletivo NCA como meios de veicular auto- representações, não somente de si mesmos, como também da comunidade com a qual estabeleceram um sentimento de pertença.

3 Entrei em contato com o coletivo Núcleo de Comunicação Alternativa (NCA) por meio da pesquisa de minha orientadora, a profª. Dra. Rose Satiko Gitirana Hikiji2. Ao longo de aproximadamente cinco anos, Rose acompanhou este e outros grupos de jovens artistas das periferias paulistas a fim de realizar o documentário “Cinema da Quebrada” (HIKIJI, 2008). Os dados contidos no presente artigo foram obtidos principalmente por meio da análise do material bruto dessas filmagens, além de partir do “blog” montado pelo coletivo e de algumas curtas experiências de observação participante, em que ocorreram conversas de caráter informal e momentos de sociabilidade no sentido de

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conversação simmeliana (1983)3 com os membros do coletivo e com outras pessoas participantes do cenário artístico periférico.

4 Durante a realização do documentário Cinema de Quebrada e em minhas tentativas de incursão em campo, o caráter crítico desses jovens permaneceu latente. Apesar de meu contato ter sido facilitado pelo relacionamento já estabelecido há anos pela minha orientadora, fui questionada quanto aos meus objetivos na pesquisa e minhas motivações, o que ressaltou a desconfiança por parte do NCA com relação à produção acadêmica e à maneira escolhida por nós para representá-los. Essa preocupação ganha sentido se considerarmos o contexto de constituição desses coletivos.

5 Em meados dos anos 1990, os segmentos populares conseguiram, em seus locais de moradia, acesso aos meios de captação de imagens que baratearam devido ao grande avanço tecnológico, estimulando a produção fílmica nessas regiões (LEITE, 2007). Além disso, acentuou-se a possibilidade de criação de material audiovisual com a presença de ONGs, como a Kinoforum e a ONG Ação Educativa, que começaram a realizar oficinas de vídeos destinadas a esses segmentos populares, contribuindo para a ocorrência de um “boom de documentários”4. Esse boom ocorreu num momento em que o estado brasileiro, sob o governo de Collor, assumia um discurso explicitamente mais liberal que objetivava o alívio das funções do antigo estado-nacional desenvolvimentista, expulsando os aparelhos de estado de conflito político e distribuição de riqueza, passando muitas funções de assistência e de atendimento sociais para ONGs5, fortalecendo-as (GUIMARÃES, 2005).

6 Esse “tipo de estado-mínimo” culmina no governo Lula, com a absorção por seu aparelho estatal de grande parte dos movimentos sociais “tornando mais fluida a comunicação entre estado e ONGs, ao tempo em que mantém a política econômica totalmente desvinculada do atendimento às demandas populares” (GUIMARÃES, 2005, p.5,6). Desse modo, as ONGs alcançaram certa autonomia e desvincularam o Estado das reivindicações dos movimentos sociais, assim propiciando uma descaracterização desses movimentos pela perda de parte de uma linguagem própria a fim de ajustar-se à ideologia nacional (ibid, p. 6).

7 Nessa conjuntura, podemos observar nos anos 2000 o surgimento de grupos independentes e, mais especificamente a partir de 2005, estendeu-se uma produção desses grupos formados em comunidades sem um apoio ou incentivo externo de ONGs (HIKIJI, 2008). Sabemos que muitos dos jovens que integram estes grupos participaram de oficinas de ONGs. No caso do coletivo Núcleo de Comunicação Alternativa (NCA), de cinco integrantes, três realizaram a oficina da Ação Educativa – sendo que um desses também participou da oficina Kinoforum –, e uma era funcionária de uma ONG da Zona Sul, a Fundação Julita. Apesar disso, os integrantes do NCA criticam as ONGs pela falta de estrutura para fornecer continuidade à formação das oficinas dentro das comunidades periféricas.

8 Embora busque apoio financeiro ou uma parceria na produção de eventos, esse coletivo funcionaria sob a égide de produção feita “na periferia, para a periferia e para o mundo”, buscando receber o crédito integral de suas próprias produções e utilizando a mídia “em suas diversas possibilidades”6. Assim, o NCA promoveria um conjunto de atividades de difusão cultural nas comunidades periféricas, mantendo um discurso de democratização do audiovisual – muito influenciado pelas próprias ONGs –, porém reivindicando a iniciativa dentre os próprios moradores de periferia.

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9 Daniel FagundeS7 discute a idéia de democratização do audiovisual e o defende como uma possibilidade de se expressar e de se auto-representar. De acordo com Daniel, as pessoas sentem necessidade de demonstrar os “seus olhares”, da maneira mais apropriada. Assim, o coletivo não só pretenderia se comunicar, como também permitir que comunidades e pessoas ditas sem voz em nossa sociedade compreendam e utilizem os meios de comunicação mais expressivos da atualidade, no caso, a linguagem fílmica, permitindo suas manifestações, além de contribuir para o desenvolvimento de uma atitude auto-reflexiva quanto a suas próprias opiniões. Este caráter torna-se explícito em algumas iniciativas do grupo, como a realização de oficinas de vídeo na comunidade e a montagem de um acervo chamado Videoteca Popular, que oferece empréstimos gratuitos de filmes. Desse modo, como me foi sugerido por outro integrante do grupo em uma conversa informal em julho de 2008, esses jovens buscariam mudar, se não a sociedade como um todo, ao menos o cotidiano imediato das pessoas, levando-as a questionar as representações dominantes e a forma como estas são comunicadas ao invés de simplesmente assimilá-las. Para poder se diferenciar os discursos do NCA e das ONGs é necessário relevar a posição relativa destes com relação à periferia, o que torna necessário retomar a discussão sobre a marginalidade dentro do contexto latino- americano.

10 De acordo com Maiolino e Mancebo (2005) Durante a década de 1970, o conceito de marginalidade foi inicialmente utilizado para referir-se aos problemas surgidos com a urbanização ocorrida na América Latina após a Segunda Guerra Mundial na América Latina, em que núcleos populacionais com baixo capital material e cultural estabeleceram-se precariamente na periferia do corpo urbano tradicional. Dentro deste contexto, uma perspectiva muito forte foi a estrutural-funcionalista que estabelece “uma visão dualista da sociedade que oporia ao setor desenvolvido da sociedade um outro, marginal e não funcional, mas metabolizável, mediante a adoção de políticas específicas” (MAIOLINO E MANCEBO, 2005, p. 15). Outra perspectiva hegemônica durante esse período corresponde à corrente estruturalista histórica, em que a pobreza é percebida como intrínseca ao modo de produção capitalista, ou seja, haveria uma integração, porém de esta ocorreria de modo conflituoso e descontínuo. Na década de 1980, com a transição democrática, a marginalidade passou a ser identificada com uma “cidadania limitada”, destacando-se o aspecto da localidade em que a “favela” é caracterizada como um “lugar identitário” (SANTOS, 1987, apud MAIOLINO E MANCEBO, 2005).

11 A partir do contexto de globalização, na década de 1990, as questões de marginalidade dão lugar às noções de segregação e de exclusão social. As de segregação, desigualdade e discriminação implicam que os grupos os quais sofreriam tais características seriam minoritários, porém participariam da mesma sociedade. As de exclusão, porém, supõem a não participação da existência marginal na sociedade e, além disso, contrariando a explicação estrutural-funcionalista, essas populações marginais consistiriam em fragmentações cada vez maiores que não podem ser assimiladas à sociedade, justificando um Estado Mínimo que “admite as desigualdades como responsabilidade do próprio cidadão e considera o diferente como inútil economicamente” (MAIOLINO E MANCEBO, p. 17), discurso esse que promove, como já afirmado, a desvinculação do Estado das reivindicações dos movimentos sociais.

12 Os integrantes do NCA pensam o ambiente da periferia como um “mundo” inteiramente constituído, cujas referências são a localidade, a etnia, a linguagem, a classe sócio-

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econômica etc. A periferia possuiria características bem específicas, apesar da fluidez, como habitantes negros e pardos, uma linguagem bem particular repleta de gírias etc, em que cada bairro periférico possuiria seu “centro” dentro de seus limites, como afirmou Daniel: “o centro da Piraporinha é a praça de Piraporinha”8. Essa perspectiva contrariaria a explicação estrutural-funcionalista da década de 1970, na qual a sociedade brasileira seria identificada com as classes médias e altas para as quais a existência marginal deveria ser absorvida. A circunstância de “ser margem” ou “ser periférico” é incorporada como parte do discurso e marca a escolha de uma identidade digna de se ter orgulho, desde que tomando o cuidado para não legitimar “injustiças sociais”. Aqui, ser “da” periferia difere de simplesmente morar nela, pois envolve um sentimento de pertencimento e de identidade.

13 As ONGs, por sua vez, seriam representantes da classe média e alta e partem da idéia de segregação, buscando adentrar e transformar a periferia. Dentro desse contexto, tanto a ONG Kinoforum, cujo discurso manifesta a importância da “democratização” do audiovisual, quanto a ONG Ação Educativa, cujos objetivos apontados são os de “promover os direitos educativos e da juventude, tendo em vista a justiça social, a democracia participativa e o desenvolvimento sustentável no Brasil”9, assumem uma posição de ampliar direitos, mas mantendo o status de uma classe média, que auxilia a periferia na ausência do Estado. Desse modo, apesar de estarem em constante contato com a periferia e dedicarem-se a ela, não podem jamais ser vistos como parte integrante dela e assim, na visão do NCA, apesar de muitas ONGs estimularem uma demanda social da periferia – o poder expressar-se –, elas não o fazem completamente, pois não permitem a total apropriação das pessoas da periferia de sua própria produção.

14 O que o coletivo reivindica é a possibilidade da própria “periferia” ter iniciativa quanto à sua representação, assim como receber o crédito total por ela. Assim, deduz-se que as pessoas da periferia, consideradas pelo senso comum como pacientes quanto à constituição da própria representação, passariam a ser agentes, comunicando o que entendessem ser necessário comunicar aos outros por meio do audiovisual. Nesse sentido, o coletivo NCA busca criar as bases de um novo imaginário10 da periferia, desenvolvido por ela própria e que se opõe à visão produzida pela “Grande Mídia”. Uma poesia feita por Daniel FagundeS e postada no blog do coletivo (www.ncanarede.blogspot.com) esclarece bem esta questão (grifos meus): Manifesto da Imagem Quebrada Sou um olho em processo de desintoxicação, um olhar angustiado, mesclado entre a revolta e a sensibilidade. Sou a negação ao poder privado da comunicação, sou a necessidade de independência da voz, do ver, narrador do quilombo moderno. sou quem toma de assalto a teoria e quem experimenta na prática a potencialidade do real e do imaginário. Exploro a linguagem, acadêmica, a gíria. Regurgito no espaço público minha pluralidade, minha mestiçagem, com mil caras, mil jeitos, mil anseios. Arquiteto da nova história, imagética e ainda oral, sigo observando de dentro a realidade que é minha e de meus irmãos. Sou viela, escadão, ciranda, morro, busão lotado, cachorro sarnento, gente sorrindo, boca de lobo, boca de fumo, esgoto à céu aberto, comunhão, palavrinha e palavrão, balaio de sensações. Sou o ser das quebradas que porta tal olhar

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e que transfere através de um suporte barato de registro sua percepção de mundo. Sou o individuo periférico no planetário coletivo esférico do lugar, com uma câmera na cabeça e uma idéia nas mãos...

15 Esse processo de desintoxicação afirmado no primeiro verso remete à idéia de formação do olhar, ou seja, de um olhar crítico, discurso promovido por ONGs que atuam com o audiovisual. Em 2002, esse discurso recebeu projeção com a ONG Kinoforum, que promove dentro do Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo a sessão Kinoforum Formação do Olhar. Nesta sessão, são exibidos curtas criados em oficinas de vídeo, como as promovidas pela Kinoforum, cujo público-alvo seria jovens membros de comunidades periféricas11.

16 Na poesia a idéia de desintoxicação ultrapassa a de “formação do olhar”, renegando um olhar acostumado a simplesmente aceitar a “Grande Mídia” e, portanto, “viciado”. Esse olhar romperia a passividade e questionaria seus próprios meios de existência, reclamaria a capacidade que o próprio Eu-lírico possuiria de manifestar sentimentos e idéias, de auto-refletir e de modificar-se, dentro do próprio cotidiano e ambiente desse sujeito pensante. Ou seja, o processo é auto-aplicado e tem o objetivo de fugir da perspectiva dominante que intoxicaria os olhares. O ponto de partida e o ponto de chegada é a periferia, distanciando-se das ONGs.

17 Nos versos 13 e 14 torna-se perceptível o fato do Eu-lírico ser o indivíduo que vive na periferia. Sua identidade se torna seu cotidiano, um dia-a-dia que não só reúne os pontos negativos de se viver na periferia, como igualmente inclui os positivos, cujo objetivo é criticar os filmes brasileiros de grande circulação que seguiriam uma “cosmética da fome” ao tratar dos aspectos da violência e da carência da periferia como forma de entretenimento e não de reflexão. Tal seria o caso, de acordo com Bentes (2001), do filme “Cidade de Deus” de Fernando Meirelles.

18 O olhar do Eu-lírico torna-se coletivo e é sugerido como específico de quem vive nesse ambiente, sugerindo existir na periferia uma concepção única de mundo, ou muito similar. Essa percepção uniria toda a comunidade ao redor de uma idéia de um “poder falar” e “poder ser ouvido”. Assim, a partir da poesia é possível refletir acerca dos objetivos do NCA. O poder de representação não estaria relegado somente ao centro. As comunidades de “antes da ponte”12 estariam lutando por um espaço.

19 Esta perspectiva do NCA permite uma aproximação com o conceito de kultur herderiano, tal como é defendido por Sahlins (1997) em O Pessimismo Sentimental, no qual esta se configuraria como “a antítese de um projeto colonialista de estabilização, uma vez que os povos a utilizam não apenas para marcar sua identidade, como para retomar o controle do próprio destino” (grifos meus). Nesse sentido, a periferia seria dotada de uma cultura própria e o projeto colonialista assume, aqui, uma perspectiva particular. Em 19 de julho de 2007, numa sessão de vídeo no Cedeca, promovida pelo NCA e filmada por Rose Satiko, Daniel falou acerca da comunidade periférica: “A gente tem muito acesso à Globo, SBT, esses canais de grande acesso. E o que eles passam é uma visão que está aí há muitos anos. Uma visão hegemônica de uma elite que na verdade quer que a gente continue cada vez mais pobre e no mesmo lugar”. Saliento que a identidade com a periferia ultrapassa o simplesmente morar nela (a localidade), há uma série de características econômicas, sociais, culturais e até mesmo étnicas.

20 O verso final da poesia “com uma câmera na cabeça e uma idéia nas mãos” nos remete a própria produção audiovisual do coletivo, além do diálogo com Glauber Rocha quando

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este diretor enunciou a máxima “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”. Tendo em vista o caráter contestatório e identitário (com relação ao caráter brasileiro) do Cinema Novo com relação ao cinema estrangeiro dominante, pode-se entender que a poesia alude à tentativa de se desprender de uma massificação promovida pela “Grande Mídia” brasileira, que é hegemônica e que induz à reprodução, implicando a iniciativa na criação de materiais audiovisuais alternativos.

21 De acordo com Castells (1999), o mundo vive uma revolução tecnológica de proporções globais, a qual é caracterizada pela facilidade de acesso à tecnologia e pela aplicação do conhecimento na inovação e uso de meios tecnológicos de comunicação. Para o autor, esses meios eram primeiramente inovados por intermédio de seu uso e, atualmente, ingressamos num estágio de apreender e contribuir para o progresso da inovação tecnológica pela própria confecção desta, como se percebe na Internet com a construção de blogs, etc. Seguindo esse raciocínio, podemos compreender essa apropriação dos meios de captação de audiovisual pela periferia como uma continuidade desta revolução tecnológica.

22 Torna-se clara a noção da sociedade como partes diferenciadas que se comunicam e criam associações e redes de relações tensas. Multiplicam-se os discursos, no caso o da “periferia” enquanto considerada um “todo” se disponibilizaria a partir destes jovens que se organizam e produzem material audiovisual que são usados como estratégias de disputa com os demais segmentos da sociedade.

23 Justamente por esta produção audiovisual do NCA se tornar uma marca de identidade, não buscando servir como um mero produto “vendável”, sua diferenciação com relação às demais produções fílmicas torna-se indispensável. Essa diferenciação estética, que de acordo com Daniel13, que se iniciara de forma muito intuitiva, transformou-se num padrão. Para conseguir se distanciar da Grande Mídia, o grupo afirma ser necessário inovar quanto às formas de interpretar, de registrar e de montar, como sugerido no texto intitulado “A auto-representação da personagem”, postado no dia 20 de maio de 2008 (blog: www.ncanarede.blogspot.com), ou seja, a criatividade é valorizada tanto na forma quanto no conteúdo. (…) como robôs de uma enorme e produtiva máquina seguimos reproduzindo os valores de quem pode contar a história, seguimos repetindo como papagaios uma ladainha que não sabemos ao certo o que quer dizer ou se sabemos empregamos numa realidade não compatível, é quando o oprimido assume o discurso do opressor e passa a viver na eterna esperança da ascensão que de tão abaixo dos pés mais lembra um precipício. Nessa lógica se constroem e se mantém os mais antigos preconceitos da humanidade, o da mulher dona de casa, o do negro sem alma, o do pobre trabalhador, o do jovem vagabundo, do homossexual pervertido, etc. (…) Mas a essência do homem persiste e como gramíneas que emergem do concreto, inovações teimosas surgem de tempos em tempos dos undergrounds da sociedade e mesmo sendo por muitas vezes usurpada e esgotada pela mídia constituem uma saída louvável para falta de criatividade. (A auto-representação da personagem no blog www.ncanarede.blogspot.com, 2008).

24 A crítica e a atividade destes jovens no ambiente periférico praticamente obrigam a indagação com relação à observação etnográfica – questionada quanto ao fazer ou não parte da perspectiva hegemônica de mundo, como a propagada pela Grande Mídia. Nessa relação, o sujeito e o etnógrafo são afetados pelo convívio e a produção audiovisual, tanto pela reflexão de seus respectivos discursos quanto na disputa pela conceituação na sociedade, como bem notou Hikiji (2008), ao afirmar a preocupação

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com relação à diferenciação na forma e linguagens utilizadas em suas produções audiovisuais.

25 A questão da forma evidencia-se já na escolha do vídeo como material para a manifestação que, como informa Daniel, é relacionada à multiplicidade de linguagens artísticas que o audiovisual permite: Eu sempre gostei muito de muita coisa relacionada à arte, nunca uma coisa muito específica – só o cinema, só a música, só a pintura – (...) é um pouco do que eu sou, do que eu procuro fazer. E o vídeo me dá essa possibilidade de poder trabalhar com todas essas coisas14.

26 Além disso, é notável a aceitação do vídeo enquanto meio de comunicação pelas mais diversas camadas sociais e pessoas, funcionando como ferramenta eficaz de transmissão e difusão de idéias.

27 O conteúdo de suas produções é muito discutido, tendo em vista parte do pensamento do coletivo que seria, nas palavras de um de seus integrantes, "produzir na comunidade, mas com um pensamento mais político, social". Em entrevista à Hikiji, Daniel completa: (…) hoje em dia os jovens que começam a iniciar com cinema, eles tem muita técnica, fazem fotografias maravilhosas porque vivem nessa sociedade imagética, mas ao mesmo tempo não conseguem contar uma história simples porque essa questão do conteúdo não foi aflorada. A gente se preocupa tanto com a imagem, com a estética, com a forma e esquece do que a gente está falando, do que a gente quer com aquele produto, pra que está sendo feito, qual o objetivo, o que aquilo acarreta.

28 De acordo com o NCA, justamente porque a produção intui “falar algo”, ou seja, como não é voltada para o sustento próprio, ela permite inovações que podem muito bem não ser aceitas por um público comercial, conectando o conteúdo dos filmes diretamente a sua forma. É comum nos vídeos do NCA, por exemplo, a linguagem experimental. Dentre muitos filmes, pode-se se citar o curta-metragem “Nhanhonhama Paulista”, feito num workshop oficina do Itaú Cultural. A trilha sonora é uma voz masculina, onomatopéica, a imagem, pés caminhando – um tênis da marca All Star – para depois mirar-se a Avenida Paulista sob uma voz que entoa repetidas vezes “andando, carros, placas, pessoas, ruas, fios, paulista…” enfim, uma descrição do espaço urbano, e do cotidiano15. Há um roteiro a ser seguido e ações previstas, porém mostra-se um mundo que não é encenado – a Avenida Paulista – e uma personagem que não foi construída a partir de uma ficção propriamente dita, não há interesse em inventar sensações e uma história de vida à personagem, portanto considero-o como um documentário. Pode-se inferir que o curta assemelha-se ao modo de documentário performático por possuir um “tom autobiográfico”, similar à forma de diário do modo participativo, porém enfatizando as características subjetivas da experiência e da memória, que se afastam do relato objetivo (NICHOLS, 2008). Além disso, sua linguagem descritiva e a forte ênfase às associações visuais aproximam-no do modo poético, tal como descrito por Nichols (2008) e, conseqüentemente, do cinema pessoal e experimental. De acordo com Hikiji (2008), esses resquícios do cinema em primeira pessoa demonstram um “movimento de extensão do eu-realizador em direção ao mundo”, ou seja, o movimento de se encontrar com outrem, ultrapassando a auto-representação (HIKIJI, 2008, p. 17).

29 Percebe-se que não é somente a etnografia que assume uma metáfora do corpo como estratégia narrativa, mas o próprio nativo, a partir do momento em que empunha uma câmera em seu ombro também reconfigura a maneira de se apresentar e representar,

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estabelecendo-se “na condição de um sujeito produtor de um discurso de si próprio” (GONÇALVES e HEAD, 2009), paralelamente a sua representação – enquanto margem – feita pela mídia. O coletivo busca o diálogo, mas apesar de discutir com a mídia, esta não responde. Não há somente uma interlocução, mas ainda não há o diálogo entre as múltiplas representações e as auto-representações. Em outras palavras, há o encontro e a troca dessas representações locais com relação às representações dominantes, mas na maior parte das vezes esta ocorre de modo unilateral. O segmento hegemônico que busca a troca e a auto-superação de suas representações é justamente o acadêmico.

30 As trocas podem ser unilaterais com relação à Grande Mídia, mas, além do diálogo com a antropologia, os integrantes do NCA interagem com jovens de outros coletivos independentes da periferia. Isto ocorre porque essas pessoas, freqüentam os mesmos espaços periféricos de promoção da cultura e inclui não somente aqueles produtores de audiovisual como também bandas musicais, grupos teatrais, enfim, pessoas em geral interessadas na criação e difusão do que eles chamam de “cultura da periferia, para a periferia”. Desse modo, a partir do encontro entre pessoas, há o encontro de múltiplas linguagens artísticas, que, por partilharem de uma mesma identidade, a identidade periférica, possibilita uma troca de formas de expressão. Permite também a troca de memórias, de formas de pensar e a troca de afetos, constituindo-se em verdadeiras redes de amigos. Os laços fortalecidos pela amizade entre as pessoas possibilitam a articulação em grupos, aumentando a expressão da atividade de cada um e facilitando a difusão de suas idéias em suas respectivas comunidades. Esses fatores contribuíram para uma identificação maior

31 Pode-se concluir, assim, que a questão não se limita à disputa da constituição da representação, mas é um ato de esperança e indignação, do encontro e troca de novas formas de olhar seu próprio cotidiano e se expressar, de mudar e criar perspectiva. O NCA procura transformar as infâncias e motivar os adultos, dar a voz aos silenciados e exterminar um monopólio de produção que segue um molde de consumismo e alienação, mesmo tendo consciência de suas limitações. Ademais, é a tentativa de fazer arte, ou melhor, de fazer as mais diversas artes pelo simples prazer de poder fazer, de se expressar, se compartilhar, refletir e assim mudar a visão da periferia sobre si mesma a fim de buscar melhorias sociais. Filmografia

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SIMMEL, G. Sociabilidade - um exemplo de sociologia pura ou formal. (: 165-181). In: George Simmel: Sociologia. Coleção grandes cientistas sociais. São Paulo: Ática, 1983.

NOTAS

1. Daniel Fagundes, membro do NCA, em entrevista concedida a Rose Satiko G. Hikiji, na Videoteca Popular do NCA, em 19 de julho de 2007. 2. Professora do Departamento de Antropologia da USP, membro do Grupo de Antropologia Visual da USP (GRAVI) e do Núcleo de Antropologia, Performance e Drama da USP (NAPEDRA). 3. Segundo Simmel, a sociabilidade “é a forma lúdica da interação social”. Para o autor, a conversação é um tipo de socialização que se caracteriza por um encontro sem programação

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prévia, sem propósitos definidos. Nesta ocasião é possível encontrarmos sociabilidade em sua mais pura forma, pois ocorre de maneira, de certo modo, desinteressada, com fins em si mesma. 4. Para os membros do coletivo NCA, este boom se caracterizaria como o segundo grande circuito de produção audiovisual popular, tendo o primeiro ocorrido na década de 1980 com a Associação Brasileira de Vídeos Populares (ABVP). 5. De acordo com Guimarães (2005), essa delegação de funções do aparelho estatal para as ONGs ocorreu principalmente na forma de parcerias e igualmente envolveu empresas privadas. 6. Conforme o grupo se apresenta no orkut: www.orkut.com.br/Main#Community.aspx? cmm=16477992. 7. Em entrevista à Hikiji em 19 de julho de 2007. 8. Debate ocorrido com o NCA em abril de 2009, após a exibição de seu filme Videolência em uma aula de Antropologia I na Universidade de São Paulo. 9. www.acaoeducativa.org.br/portal/index.php? option=com_content&task=section&id=2&Itemid=73 acessado em 2 de maio de 2009. 10. A palavra é utilizada pelo NCA, no sentido de ideário coletivo. 11. Como exposto no site www.kinoforum.org/, essas oficinas oferecidas pela ONG Kinoforum objetivariam a democratização do audiovisual, a compreensão da linguagem cinematográfica e a divulgação de produções brasileiras e latino-americanas. 12. Termo que designa o difícil acesso à cultura e à informação nas regiões periféricas onde moram, como muito mencionado no filme “Cinema de Quebrada” (HIKIJI, 2008). Pode ser entendido, também, como uma referência geográfica – no caso da zona sul paulistana – à ponte João Dias, que separa um centro mais enriquecido das zonas mais carentes da periferia de São Paulo. 13. Em debate no CINUSP no dia 5 de novembro de 2008, após a exibição do filme “Cinema de Quebrada”. 14. Em entrevista com Hikiji no dia 19 de julho de 2007. 15. O curta “Nhanhonhama Paulista” pode ser assistida, na internet, no site YouTube (endereço: br.youtube.com/watch?v=foJKmdJ4iH0).

RESUMOS

Nesse artigo, discuto a necessidade de grupos independentes de jovens das periferias paulistanas de diferenciar-se quanto à produção de materiais fílmicos, com relação às produções da “Grande Mídia”. A partir de um discurso que intui o distanciamento dos moldes dominantes de representação, esses grupos acabam por reforçar uma relação “eles/nós”, inclusive com os antropólogos que os pesquisam, que seriam provenientes do “centro” – conceito aqui entendido como as camadas sociais com disponibilidade financeira e acesso a uma cultura acadêmica e elitista.Para abordar o tema, acompanhei o coletivo Núcleo de Comunicação Alternativa (NCA), salientando o formato da apresentação e representação deste grupo de si próprio e de sua comunidade, assim como seu discurso, a sua articulação com outros grupos da periferia e a relação entre seus integrantes e os antropólogos envolvidos nesta pesquisa.

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Agentes penitenciários de Itirapina, SP: identidade e hierarquia

Raphael T. Sabaini

Introdução

1 Nos últimos anos, tem-se dado uma maior atenção ao cenário prisional, seja através da sociedade, órgãos de imprensa ou meio acadêmico. A formação de facções criminosas, que demonstram possuir grande poder, nos chama a atenção devido ao seu impacto nos mais variados setores da sociedade. A cobertura feita pela imprensa das inúmeras rebeliões ocorridas no país revela a preocupação do Estado com este problema. Aliada a isto, temos a discussão acerca da eficácia das prisões e suas constantes reformas discutidas pela sociedade e pelas autoridades. A partir de todos estes fatores e suas implicações, constituiu-se um conjunto de estudos, análises e experiências que acabaram por criar um fenômeno peculiar na atual – e violenta – sociedade brasileira.

2 A escolha deste objeto de pesquisa foi influenciada pela curiosidade despertada em torno da figura do agente penitenciário, muitas vezes visto como torturador ou mesmo corrupto, mas que, no município em análise, é reconhecido pelos habitantes como uma pessoa que desempenha um bom trabalho, sendo bem remunerado e possuindo, portanto, boa qualidade de vida para os padrões da pequena cidade. Talvez este particular fenômeno da dinâmica urbana acabe por passar despercebido da maioria das pessoas, inclusive daquelas que vivenciam o cotidiano de uma cidade que possui dois presídios.

3 Um dos atores mais importantes deste fenômeno é justamente o agente penitenciário: pouco se conhece sobre sua vida e profissão, resultado tanto da falta de estudos quanto da constante preocupação e desconfiança que caracterizam esta atividade e o próprio sistema. Este comportamento limita o conhecimento de suas práticas ao mesmo tempo em que nos desperta curiosidade.

4 Assim como os detentos, os Agentes de Segurança Penitenciária (ASP) têm seu modo de vida ligado à rotina da prisão, criando seu vocabulário e modo de agir dentro do

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sistema prisional. Trata-se não só de convívio, mas de uma relação. A partir disso, tentaremos descrever e analisar a visão deste grupo. No cotidiano profissional da penitenciária, há o estabelecimento de relações hierárquicas entre os postos de serviço. Além da relação conflituosa ASP x presos, há as relações ASP x ASP. A primeira se dá entre diferentes estratos, a segunda envolve pessoas de um mesmo estrato. Há, dessa maneira, tanto uma relação vertical, no caso da primeira, quanto horizontal, no caso da segunda. Sendo assim, percebemos que os deveres e obrigações de cada agente são mediados pela posição que ocupam no sistema.

5 Para Louis Dumont, algumas sociedades são organizadas a partir de um sistema de valores hierárquicos, que produzem componentes ideológicos. Assim, essa hierarquia pode regular uma sociedade ou, como no caso em questão, um grupo. É interessante perceber o efeito da hierarquia neste caso, pois se compararmos o grupo dos detentos com o dos agentes, perceberemos uma diferenciação entre suas formas de organização e seus valores: o que é fundamental para um grupo, pode não ser para outro.

A hierarquia (no exército)

“é o princípio primeiro da divisão social de tarefas, papéis e status, determinando as condutas e estruturando as relações de comando- obediência, mapeando o modo como as relações de poder devem estruturar-se” (LEINER, 1997, p. 52).

6 Apesar do agente penitenciário não ser um militar, está numa posição de liminaridade entre o civil e o militar. Dessa forma, mesmo que a maioria dos agentes tenha um cargo perante o Estado com a mesma remuneração1, muitos acabam criando uma hierarquia e até mesmo uma disputa interna por postos, o que representa uma relação de conflito moldada e estruturada por relações de poder. Podemos dizer que símbolos e significados oriundos da sociedade são compartilhados por este grupo, muitas vezes considerado “marginal”. Em outras palavras, há uma apropriação dos valores “extramuros”, que, ao serem transferidos para o cotidiano da prisão, se transformam e se reconfiguram. É um ambiente de trabalho como qualquer outro, mas com uma particularidade: seu dia-a-dia se baseia numa rotina circundada por vários fatores agravantes, entre eles violência, desconfiança, criminalidade, corrupção etc. Além dos limites físicos, arquitetônicos e espaciais, existem os limites impostos simbolicamente, que são reapropriados e reinterpretados dentro deste universo particular.

7 Em se tratando da relação entre os agentes e os presos, os primeiros exercem uma “violência punitiva” sobre os segundos, a partir de novas regras e/ou norteamento do comportamento. Essa violência punitiva se dá através da constante vigilância praticada pelos agentes, responsáveis pela manutenção da ordem e da disciplina na instituição. A partir da aplicação desta disciplina, surge uma “fabricação” de indivíduos, como afirma Foucault: “A disciplina fabrica indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício” (FOUCAULT, 1986, p. 143).

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8 A disciplina e o constante estado de vigilância também perpassam o cotidiano do agente penitenciário, que acaba criando novos comportamentos a partir de um modo de vida mais cuidadoso, já que sua família também pode correr riscos caso pessoas ligadas ao crime e aos detentos saibam sobre sua profissão. Muitos afirmam ter medo de algum tipo de retaliação por parte de amigos ou parentes dos detentos que vivem na cidade, caso ocorra alguma desavença dentro da prisão.

9 Outro fator é a convivência extramuros, já que o agente é a principal ponte entre o lado de dentro e o lado de fora da prisão: precisa lidar com os acontecimentos de dentro da prisão e separá-los dos seus assuntos particulares como, por exemplo, o convívio com a família e os amigos. Da mesma forma, o agente penitenciário não deve levar seus problemas particulares para dentro da prisão, o que se torna uma tarefa difícil e delicada. O ASP circula entre o legal e o ilegal, já que perambula entre os detentos (classificados como pertencentes à esfera do ilegal) e as pessoas de fora da instituição prisional (amigos e parentes, classificados como pertencentes à esfera legal). Manuela Ivone Cunha aborda como o “dentro” e o “fora” da prisão estão interligados: “Ver de fora para dentro e de dentro para fora, balançando entre os dois ângulos, abre atalhos para aderir à conexão desses domínios ou categorias” (CUNHA, 2002, p. 24).

10 Isso quer dizer que a prisão não se encerra em si mesma, como afirmava Goffman ao tratar destas instituições como “Instituições Totais”: influencia desde as pessoas mais ligadas a ela, como seus funcionários, por exemplo, e se estende a pessoas que de um modo direto ou indireto acabam sofrendo as repercussões dos códigos presentes neste sistema. Estas pessoas podem ser, em sua maioria, familiares e amigos dos agentes penitenciários e dos detentos.

11 Vale lembrar, tanto em decorrência do escopo quanto da diversidade do assunto, que não podemos afirmar que esta pesquisa tem um caráter conclusivo, pois estamos numa

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etapa inicial do estudo. Além do mais, o tema proposto e todos os outros assuntos relacionados a ele permitem outros tantos estudos e análises. A ambição deste trabalho se limita a duas instituições de uma pequena cidade do interior paulista. Podemos dizer que há uma tentativa de contribuir com estudos relacionados à situação carcerária brasileira, mais particularmente, ainda, à situação carcerária do Estado de São Paulo.

12 Inicialmente, a pesquisa objetivou o levantamento bibliográfico sobre o tema. Além de fazer uma revisão bibliográfica do conteúdo chamado “clássico” da Antropologia e do assunto em questão, foram revisadas obras ditas recentes, que retratam a atual situação dos presídios, detentos e agentes. Contudo, existiu uma dificuldade inicial, pois ao tentar dar um enfoque diferente, mudando o escopo de análise para os funcionários, mais especificamente os ASPs, carecíamos de uma bibliografia mais específica. Vale lembrar que estamos nos baseando numa literatura feita principalmente a partir do modo de vida dos detentos; além do mais, na maioria dos estudos sobre o funcionamento das instituições prisionais, o funcionário é analisado como um coadjuvante, sendo, assim, tratado em segundo plano. Foram feitas, também, entrevistas de cunho informal com os agentes, pois há uma grande dificuldade de obter informações destes profissionais, já que eles parecem desconfiados durante a maior parte do tempo. Por isso a escolha da entrevista informal, como se fosse um bate papo. Isto acabou sendo uma exigência dos agentes justamente para preservar sua identidade, além de sua integridade pessoal e a de seus familiares. Por causa do sigilo das informações, o agente mantém-se no anonimato, pois o vazamento das mesmas pode comprometer sua profissão, assim como sua vida pessoal.

Breve panorama do município

13 Localizada no interior do Estado de São Paulo, Itirapina dista cerca de 220 km da capital paulista. Sua fundação se deu em meados do século XIX, permanecendo como distrito da cidade de Rio Claro até o começo do século XX. Conseguiu sua emancipação político- administrativa no dia 25 de março de 1935. Atualmente, o município possui 15.678 habitantes2; seus dois presídios abrigam aproximadamente 2.500 detentos3.

14 Itirapina conta com duas instituições prisionais: a penitenciária Dr. Antônio de Queiroz Filho, também chamada de P I, construída ainda na época da ditadura militar, inaugurada em 11 de outubro de 1978, e, também, a Penitenciária João Batista de Arruda Sampaio, ou P II, datada de 12 de dezembro de 1998. Ambas as penitenciárias encontram-se localizadas no perímetro urbano, mais precisamente nos arredores da cidade. A primeira localiza-se na principal entrada da cidade e a segunda está situada ao lado do pequeno distrito industrial. A penitenciária I possui aproximadamente 650 detentos distribuídos num pavilhão único e conta com cerca de 200 funcionários, entre eles, diretores, agentes penitenciários e auxiliares administrativos; a penitenciária II tem capacidade para 1200 vagas, mas atualmente comporta 1800 detentos aproximadamente. A PII tem cerca de 250 funcionários, entre os quais se encontram auxiliares administrativos, chefes, diretores e agentes penitenciários. A penitenciária II também funciona como Centro de Detenção Provisória (CDP), local onde ficam os presos que ainda aguardam julgamento4. Torna-se necessário ressaltar que estes números da população carcerária são flutuantes, devido a uma constante transferência de detentos que chegam ou saem para outras unidades prisionais. Ambos os presídios trabalham com dois tipos de regime: o fechado e o semi-aberto. No regime fechado, o detento fica

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integralmente recluso e no semi-aberto os presos com penas mais leves ou já em via de concluí-la trabalham durante o dia nas dependências das penitenciárias e só retornam aos presídios para dormir. Usando-se destes números da Secretaria da Administração Penitenciária, podemos fazer uma comparação com o total de habitantes da cidade, onde o número de pessoas presas é correspondente a cerca de 16% do número de habitantes do município. Por causa da transferência de vários detentos que chegam aos dois presídios, muitos de seus familiares mudam-se para a cidade e vão habitar os bairros da periferia. De acordo com os relatos dos ASPs – que em sua maioria também moradores da cidade – após a construção do segundo presídio, com o conseqüente aumento do número de presidiários e seus familiares, os índices de roubo, furto e violência aumentaram. Porém, não iremos nos ater a este assunto, já que não está ao alcance de nossa pesquisa, havendo a possibilidade de que este fenômeno venha a ser estudado em outra ocasião.

15 A partir deste cenário começamos nosso trabalho investigando o comportamento dos agentes penitenciários em questão. Estas pessoas praticamente vivem o cotidiano das instituições prisionais 24 horas por dia, em seu horário de trabalho ou quando estão no período de folga, já que o ASP trabalha 12 horas e folga 36. Esta preocupação acontece porque os ASPs necessitam manter um estado de constante vigilância para preservar sua integridade e a de seus familiares, como foi analisado anteriormente. Dessa forma, cria-se um modo de vida mais cuidadoso, já que o agente e sua família podem correr alguns riscos caso pessoas ligadas ao crime saibam algo sobre a profissão exercida. O agente e sua família podem sofrer ameaças ou mesmo retaliações de pessoas ligadas aos presidiários. Outro fator relevante é a remuneração: por não serem tão bem remunerados quanto se pensa e gozarem de uma folga de trinta e seis horas, trabalhando dia sim dia não, acabam exercendo outras ocupações no horário de folga. Isso abre espaço para que muitos agentes façam algum tipo de “bico”, como serviços de mecânico, pedreiro ou pintor. Isso agrava ainda mais o estado de estresse do agente, que além de manter um constante estado de vigilância acerca de sua segurança, ainda precisa complementar sua renda trabalhando no período de folga, o que exige um esforço físico e psicológico maior destes indivíduos. Este fato também foi notado nos estudos de Moraes, no estado do Paraná, e nos estudos de Castro e Silva, no Rio de Janeiro.

16 Porém, ao contrário do Rio de Janeiro e do Paraná, o agente penitenciário que trabalha em Itirapina é visto com bons olhos. A profissão tornou-se sinônimo de status na pequena cidade, já que o funcionalismo público oriundo dos presídios é a principal fonte de emprego e de renda. A maioria dos jovens da cidade que termina o ensino médio almeja ser agente penitenciário, já que as outras oportunidades de emprego do município estão no comércio ou na área rural e sua remuneração média é praticamente a metade dos vencimentos de um funcionário concursado pela Secretaria da Administração Penitenciária. Dentre os entrevistados, a maioria afirma não estar contente com o emprego, mas justifica sua permanência pelo salário e pelo horário de trabalho; alguns, após serem efetivados no emprego, cursam Direito em uma faculdade particular no município vizinho de São Carlos. O objetivo de se formar Bacharel em Direito é justamente conseguir galgar um cargo de chefia ou até mesmo de diretor, um dos requisitos para se efetivar no sistema. Há também a possibilidade de se formar em Pedagogia, mas em vista do contexto, em que o direito penal fornece a linguagem

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formal e a mediação de todo o trâmite jurídico-criminal, há a preferência pelo curso de Direito por parte dos agentes que almejam cargos hierárquicos mais altos.

17 Os funcionários que exercem funções especificamente disciplinares são mal vistos pelos detentos; já os lotados no setor burocrático são melhor aceitos. Isso está ligado ao exercício ou não de uma disciplina, sendo ela violenta ou não. Mas devemos atentar para o fato de que após as chamadas megarrebeliões ocorridas no Estado de São Paulo proveniente de ordens da maior facção criminosa do Estado, a situação que envolve punição através da violência mudou muito. De acordo com alguns entrevistados, “não se pode mais encostar a mão em preso”; isto é, parece que a facção conseguiu fazer o que o Estado não fazia: coibir a violência, seja a praticada pelos agentes seja pelos próprios presos. Em seu estudo, Biondi analisa a questão: “Como a vida social conduz o homem a atribuir significados, ordem e sentido às relações, para preencher esta lacuna surgiram organizações informais, constituídas por presos com o objetivo de ser uma forma de representação dos presos, entre os presos e perante o poder e a sociedade, procurando dar voz aos seus anseios por uma situação de dignidade, ao mesmo tempo em que criavam uma nova modalidade de organização social e uma regulamentação moral dentro das prisões” (BIONDI, 2006, p. 322)

Morfologia social

18 O presídio é composto hierarquicamente, segundo as atribuições dadas pelo Estado através da Secretaria de Administração Penitenciária, pelos cargos de diretoria, chefia, setor administrativo e setor de segurança, para citar os mais importantes. Os cargos designados pelo Estado são três: o de Diretor geral, que cuida de toda a penitenciária, tanto da parte de segurança quanto da parte administrativa; o de Diretor de segurança, que cuida dos pavilhões (chamados comumente de “raios”) e o de Diretor de núcleo, que é o chefe do plantão (sendo quatro chefes, um para cada plantão).

19 É interessante notar que todos os membros da diretoria possuem moradia dentro da penitenciária. São os únicos funcionários da prisão que possuem este tipo de benefício. Além do mais, nas palavras dos entrevistados, isso se torna de essencial importância, pois a cadeia, vista como um barril de pólvora prestes a explodir, necessita da presença da autoridade do diretor 24 horas por dia.

20 O tempo de trabalho é divido em quatro plantões, que se alternam a cada 12 horas; sendo assim, temos dois plantões diurnos e dois noturnos. Cada plantão possui um diretor de núcleo (o chefe do plantão), o diretor substituto (subchefe) e um suplente, na falta dos dois primeiros, sendo chamado de “terceiro” pelos próprios agentes.

21 Essas chefias criam certa autonomia e núcleos de poder em determinados setores do presídio, o que acaba gerando uma disputa entre os funcionários de diferentes plantões e até entre funcionários do mesmo plantão. Por exemplo, um turno pode chegar a culpar o outro no caso de ocorrer algum erro na rotina de trabalho, principalmente quando há mudança de turno. Se houver problemas durante a contagem dos presos, um plantão culpará o outro, sempre evitando admitir uma possível culpa.

22 Após a descrição dos cargos hierárquicos definidos pelo Estado, o restante dos cargos é composto pelos agentes de segurança penitenciária que se dividem em postos, como foi citado anteriormente, com maior ou menor status. Este conceito de status, também

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usado por Leirner em seu estudo sobre os militares, se encaixa na rotina dos agentes penitenciários:

23 “Por status, entendemos a posição geral de um indivíduo em relação aos outros membros da sociedade ou de algum setor dela” (Leirner apud Marshall, 1957, p. 151).

24 Assim sendo, o trabalho de cada agente em determinado posto é mediado pela posição que ocupa. Uma reivindicação feita pelos agentes - evidenciada nas entrevistas - foi a rotatividade nos postos de serviço, justamente para evitar conflitos. Mas há sempre um ou outro posto em que se é dado um “jeitinho” para o agente prolongar sua permanência por mais tempo do que o planejado. Vemos novamente aqui uma concepção hierárquica, em que há certos privilégios para determinados membros; a regra não é aplicada igualmente a todos os indivíduos. Porém, mesmo ocorrendo o rodízio, há uma disputa por postos de serviço classificados como melhores. Fica estabelecida, assim, uma hierarquia nem sempre condizente com as atribuições designadas pelos superiores ou até mesmo pelo Estado, a autoridade máxima. Essa classificação de postos se aproxima do que foi relatado por Moraes em seu trabalho sobre os presídios do Estado do Paraná: a prisão é composta de limites e portões, causando a sensação de se “entrar cada vez mais fundo”. Assim, ao cruzar cada portão, ultrapassa-se um limite, demarcando áreas que significam maior perigo. Para os agentes, há muita diferença entre trabalhar na portaria e trabalhar no “fundão” da cadeia, por exemplo. Quanto mais no “fundo”, maior o isolamento do preso e, portanto, maior o isolamento social. Segundo esta lógica, os piores detentos encontram-se no “fundão”, o lugar mais perigoso para se trabalhar e onde o contágio moral dá-se com maior intensidade por causa do contato do agente com o lugar e com os presos deste lugar (MORAES, 2005, p. 244).

25 Há também uma divisão entre funcionários plantonistas e diaristas. Os primeiros trabalham num turno de 12 horas e folgam 36, estando mais ligados à parte de segurança. Já os segundos trabalham em horário comercial, estão mais ligados à parte burocrática e administrativa (vale lembrar que os diaristas também são ASPs, porém foram deslocados para o setor administrativo), havendo os que trabalham como “reformadores”, como os pedagogos, psicólogos e assistentes sociais. Os agentes zelam pela segurança e manutenção da ordem. Instaura-se um conflito com os “reformadores”, que afirmam não ter liberdade para ressocializar os detentos. Estes últimos criticam os agentes de modo geral, pois afirmam que, além de zelar pela manutenção da segurança, os ASPs têm também o dever de reeducar os detentos. Com isso surge mais um problema: como lidar com a manutenção da ordem e da segurança e ainda trabalhar para a “reforma” ou “reeducação” dos detentos ao mesmo tempo? No meio deste conflito, os agentes afirmam que, por causa da questão da segurança e do pequeno número de funcionários, só lhes resta cuidar da ordem e da disciplina; o trabalho de “reeducar” torna-se atribuição apenas dos profissionais que não estão ligados à parte de segurança, ou seja, de quem não é agente penitenciário. Outro fato curioso em se tratando da relação dos agentes com outros tipos de funcionários é aquele que diz respeito ao guarda de muralha. Alguns anos atrás, a vigilância feita nas torres e muralhas das penitenciárias era exclusiva dos policiais militares. Devido a mudanças no governo estadual e na Secretaria de Administração Penitenciária, foi criado o cargo de Agente de escolta e muralha, em que civis teriam treinamento para manejar armas de fogo e substituir, assim, o trabalho da PM. Durante o estudo, não foi relatado nenhum conflito entre os agentes penitenciários e os guardas de muralha. O

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que consta no relato de um dos agentes é que os mesmos apelidaram os guardas de muralha de “genéricos”, em alusão aos medicamentos do mesmo tipo que substituem os remédios de marca conhecidas.

26 No trabalho cotidiano, como foi visto, surge uma hierarquia além da instituída pelos cargos atribuídos pelo Estado. No setor de segurança, onde os ASPs trabalham, os agentes que possuem o mesmo cargo e remuneração vivenciam uma disputa interna criada por situações de status ou de relações de poder entre agentes e chefes. Podemos perceber, dessa forma, como ocorre a construção dessas relações a partir de elementos recorrentes e rotineiros. Muitos ASPs, em suas próprias palavras, “ficam se achando”, isto é, sentem-se hierarquicamente superiores por ocuparem certos postos de trabalho, apesar do mesmo salário e mesmo cargo que outros perante o Estado. Dá para perceber, então, que existem postos (por exemplo, cuidar do canil ou ficar na portaria) que incorporam certo tipo de status apenas pela posição, já que o salário não muda. Outro dado importante relatado por alguns agentes é que, mesmo sendo designados pelo Estado, os cargos sofrem certa influência para serem ocupados. Alguns admitem que, para alcançar um cargo de chefia, que possibilita uma melhor remuneração, não basta apenas ser um bom guarda; torna-se necessário possuir alguma influência, tanto entre os próprios agentes, como principalmente entre a chefia e diretoria. Essas relações de influência se dão, também, fora dos muros e da rotina da prisão, já que a cidade, por ser de pequeno porte, propicia amizades e inimizades, geradas tanto por fatores intra quanto extramuros. Enquanto que em uma grande cidade um chefe pode morar em um bairro bem distante de seu subordinado, em Itirapina é grande a possibilidade de subordinado vizinhos e possuírem certa amizade desde a infância, por exemplo. Por outro lado, há agentes que evitam este tipo de relação, não assumindo postos por indicação, porque "aumentam as responsabilidades, mas o salário continua o mesmo, então, por que procurar dor de cabeça?”. Podemos perceber que nem todos buscam relações de amizade e influência para conseguir algum status; alguns preferem apenas seguir as regras sem dar tanta importância para a posição. Mantêm um bom relacionamento apenas pela relação profissional, sem o intuito de almejar um cargo superior.

27 Muitos, pelo status, participam do G.I.R. – Grupo de Intervenção Rápida - um “grupo especial” de ASPs. Os participantes deste Grupo se vestem de preto, com uniformes parecidos com os da polícia, usam capuzes, andam com cachorros adestrados etc. Pela pouca informação obtida até então, o G.I.R. substituirá, na maioria das ocorrências, a tarefa da Tropa de Choque da Polícia Militar em casos considerados graves, como risco de rebelião. Seus integrantes, segundo comentários dos colegas de trabalho, sentem-se a “elite” dos ASPs. Enquanto que a maioria dos agentes não se considera um militar, apesar de viverem nesta posição de liminaridade, há, neste caso, agentes que se consideram militares, que gostam de “se portar como polícia”, como dito por um dos entrevistados. As pessoas entrevistadas não participam deste grupo, havendo uma dificuldade ainda maior no que diz respeito ao acesso sobre informações destes agentes (que participam do G.I.R.). Há, mais uma vez, uma diferenciação hierárquica mais pautada pelo status do posto do que pela remuneração salarial ou cargo estabelecido pelas atribuições do Estado. Apesar de trabalhar como um agente penitenciário comum, nos momentos em que se julga necessário, este agente se diferencia dos demais pelas roupas, considerando-se superior aos guardas, já que é um interventor, parte de um

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grupo de elite, portanto treinado e preparado para lidar com situações de risco, apesar de muitos dizerem que não.

28 Em outras palavras, há uma diferenciação dos postos de trabalho, regida também pelo tipo de atividade exercida e pelo local específico onde se trabalha dentro do presídio. Além disso, há as relações ocorridas fora da instituição prisional que ajudam a regular muitas das que ocorrem dentro da prisão. Verificamos, assim, que certos postos de trabalho, por sua posição, estão investidos de status, já que cargo e salário, na maioria das vezes,são iguais. A partir disso, cria-se uma relação de conflito entre pessoas do mesmo “estrato”. Alguns agentes comentaram sobre o fato de ”puxar o tapete”, isto é, fazer de tudo para conseguir um posto de maior status, até prejudicando um colega de trabalho, lembrando que o posto, muitas vezes, não recebe gratificação salarial. Isto é uma característica do individualismo dos agentes, que mesmo num sistema hierarquizado de maneira institucionalizada ou não, se voltam mais para si próprios do que para o corpo de funcionários do sistema. Além da hierarquia oficial, a hierarquia atinge principalmente os funcionários com algum poder de mando. Assim sendo, há também distinções feitas a partir de uma escala que vai do desde o posto ocupado no corpo administrativo até o tipo e a proximidade do contato que os funcionários mantêm com os presos, como relatado anteriormente. Essa classificação hierárquica remete-se à função que o funcionário desempenha, como também às relações entre funcionários e detentos em decorrência dos fatos que ocorrem na cadeia.

29 Este ambiente de trabalho apresenta esta particularidade justamente por ser uma instituição prisional, responsável por assim, dizer, por rearranjos simbólicos das práticas tanto profissionais quanto sociais e jurídicas. O ambiente prisional parece propiciar este fato, do mesmo modo como acontece com as organizações criminosas estudadas por Biondi: “As organizações prisionais são um precioso exemplo de como são implantadas regras e leis próprias em um microterritório inserido na sociedade mais ampla, acionando suas autorregulações como resultado de situações e ambientes específicos”. (BIONDI, 2006, p. 321) (grifos meus)

30 A partir deste cotidiano tenso, em que a desconfiança paira sobre todos, podemos comparar e analisar os tipos de conflitos que ocorrem na instituição prisional. A relação conflituosa funcionário x preso dá-se de forma vertical, havendo uma oposição entre “trabalhador” (agente penitenciário) e “vagabundo” (detento). Nesta oposição trabalho/mundo do crime, já percebida por Ramalho (1983), parece que a única forma de suavizar o conflito é estar atento ao fato de que exercer uma atividade na cadeia proporciona melhores chances de “recuperação” dos presos. Assim, os detentos que querem trabalhar tentam se afastar do “lado do crime” e aproximar-se do “lado do trabalho”. Há também a possibilidade de proximidade com funcionários mais “graduados”, o que também propicia a “melhora”. Analisando este processo, Ramalho afirma que “a ideologia da recuperação é como a ideologia da mobilidade social – só ocorre para quem se esforça ou trabalha, embora as oportunidades sejam aparentemente iguais a todos” (RAMALHO, 1983, p. 91).

31 Pelo relato de um agente, não existe respeito mútuo, mas uma forma de convivência particular. Percebe-se que a vigilância exercida pelos agentes tem, como contrapartida, os planos de fuga dos detentos. Enquanto os primeiros procuram, a todo momento, indícios de fuga, mantendo uma atenção constante, os últimos procuram livrar-se desta vigilância, além de tentar praticar a fuga. Assim como ocorrem brigas entre detentos,

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ocorrem desentendimentos entre agentes, como, por exemplo, culpar o outro plantão, gerando desavenças entre funcionários de diferentes turnos, além de disputas por postos de trabalho.

32 A distinção e separação entre presos e agentes já são demarcadas pelos uniformes: enquanto os presidiários usam calças de cor bege e são assim identificados como “calças beges”, os agentes são chamados pelos presos de “calças azuis”, por causa da cor do uniforme de trabalho. Praticamente não há respeito entre agentes penitenciários e detentos;mas – segundo os relatos dos ASPs – uma forma de convivência pacífica, porém permeada de uma violência às vezes simbólica, às vezes real, e latente: é como se fosse "um barril de pólvora prestes a explodir". Apesar dos agentes relatarem que os presos se distanciam, o que parece acontecer é um distanciamento mútuo, em que o grupo dos agentes sempre verá o grupo dos detentos como o culpado por essa distância e vice-versa.

33 Sobre o convívio entre os agentes das duas penitenciárias, não há qualquer tipo de conflito, rusga ou competição. O que os agentes penitenciários comentaram é que muitos ASPs têm interesse em se transferir para a Penitenciária I, pois lá é mais "mamão", que significa mais fácil, pois se tratam de presos classificados como “indivíduos de menor periculosidade” e, portanto, de menor “contágio moral”. Este termo(mamão) veio da influência do convívio com os presos. Muitos agentes admitem ser influenciados pelos detentos, desde o jeito de se portar até o de falar, usando suas gírias e gestos. Os próprios agentes afirmam que também seus amigos e parentes acabam sendo influenciados e falando gírias oriundas do cotidiano da penitenciária, mesmo não participando do dia-a-dia do presídio. O funcionário é considerado pelos detentos como sendo metade preso: enquanto o preso cumpre seis anos de cadeia, o funcionário “cumpre” três, já que trabalha dia sim, dia não e vive quase da mesma maneira que um detento, na visão dos apenados e dos próprios funcionários. Diante disso, percebemos vários tipos de relações, entre elas a de oposição, identidade, reciprocidade e hierarquia. Como foi observado no trabalho de Castro Silva, em Itirapina parece não ser a instituição prisional que muda o comportamento do preso, mas é o preso quem altera o comportamento dos agentes, representantes da instituição incumbida de mudar e “reeducar” o detento. Ou seja, seria o preso quem deveria se adequar aos padrões impostos, mas acaba acontecendo justamente o contrário. Além desta inversão, o agente acaba sendo influenciado de tal maneira que “transmite” este tipo de comportamento para o convívio extramuros, alcançando seus parentes e amigos mais próximos.

34 No que diz respeito à troca, ou melhor, à reciprocidade, esta é entendida como fundamento da vida social (dar, receber, retribuir) e constituinte de relações de direitos e deveres, como afirma Marcel Mauss (1989). Percebemos que as trocas que se dão no interior da prisão são de diversos tipos, não se reduzindo às comerciais. Um exemplo interessante de como trocas não comerciais se dão é o “caguetar”, função do “proceder”. O “proceder” seria o conjunto de regras adotadas pelo grupo dos presos, conhecido na cadeia como a “massa”. Vale lembrar que quem pertence à “massa” não é qualquer detento, mas aqueles que se enquadram em determinadas características ou requisitos pré-estabelecidos. O “caguetar”, a regra principal do “proceder”, é o ato de delatar alguém. O “caguetar”, portanto, se torna peça fundamental na manutenção da ordem e da disciplina na cadeia. Podemos afirmar que essa regra ultrapassa o limite das relações entre os presos, chegando até a convivência dos presos com os funcionários e

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destes entre si. Essa regra tem caráter abrangente, ultrapassando os muros da cadeia. Exemplo: se o funcionário comete alguma falta, e se ele não for confiável ou não impuser respeito, o preso pode contar o acontecido para o superior deste funcionário. Há, dessa forma, uma “reciprocidade na caguetagem” – troca não-comercial, não- material.

35 A troca pode se dar também por meio de gestos e palavras. Todos admitem ser influenciados pelos detentos, desde o jeito de se portar como o de falar, usando gírias. Admitem também que amigos e filhos, que não participam do dia-a-dia do presídio, mas que sempre estão em contato com eles, acabam sendo influenciados e falando gírias. De acordo com o relato de um entrevistado: “Isso se torna vício de linguagem, os filhos reproduzem o que os pais falam. Se o cara que mora no sítio diz: “ponhá”, o filho dele, crescendo neste ambiente, falará assim também. O mesmo acontece com o agente que, ao chegar em casa, reproduz as gírias faladas dentro do presídio e que, com certeza, seu filho vai aprender também”. O que é apresentado aqui, é que a linguagem, por ser um dos meios usados para a educação dos filhos, está “contaminada” com a gíria do presídio, usada de maneira inconsciente. Percebemos que o agente adquire estes hábitos, pois seu convívio com os detentos é intenso, havendo grande dificuldade em separar o comportamento intramuros do comportamento extramuros. Isto nos remete ao estudo de Manuela da Cunha, quando afirma que a prisão é uma extensão da sociedade, ou melhor, do bairro. O comportamento das detentas dentro da cadeia está relacionado com o comportamento nos bairros de cidades portuguesas, e vice-versa. Há uma retroalimentação entre o comportamento na prisão e o comportamento exterior, assim como há a constante passagem da cadeia para o exterior e a volta à prisão, já que a maioria é reincidente5. Este estado liminar do agente produz esta intensa comunicação entre o interior e o exterior, do qual ele é o principal responsável pela constante troca de palavras, comportamento, valores e regras entre os detentos e as pessoas que fazem parte de seu círculo de convívio social na cidade. Vale lembrar que há casos de agentes que possuem certa ojeriza em se tratando do comportamento dos detentos, conseguindo, na maioria das vezes, não reproduzi-lo fora dos presídios. Mas concordam que se torna necessário usar este tipo de conduta dentro da prisão para um “melhor desenvolvimento do trabalho”. O uso de gírias, segundo os agentes, é praticamente uma “ferramenta de trabalho”, pois é necessário falar de uma maneira semelhante à empregada pelos presos. Este fator também foi encontrado nos estudos de Castro e Silva, que afirma haver uma necessidade por parte dos agentes de se “integrar” com os detentos para poder realizar suas atividades profissionais, mas tomando certos cuidados para não sofrerem represálias.

36 Resta-nos afirmar, após esta breve análise, que a instituição prisional funciona de maneira precária. Foucault mostra como, já no século XIX, se faziam críticas às prisões: não diminuem a criminalidade, provocam a reincidência, fabricam delinquentes e os organizam hierarquicamente. Após passarem pela cadeia, muitos se tornam criminosos habituais. Isto parece se repetir nas penitenciárias do município de Itirapina, apesar de termos apresentado algumas peculiaridades não observadas em outras situações até então analisadas, mas que ocorrem no caso estudado.

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BIBLIOGRAFIA

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NOTAS

1. O agente de segurança penitenciária é um funcionário público concursado, não existindo, até o presente momento, funcionários terceirizados ou contratados sem concurso público no Estado de São Paulo. 2. Dados populacionais obtidos através da Fundação Seade (http://www.seade.sp.gov.br). 3. Dados obtidos através da Secretaria da Administração Penitenciária (http:// www.sap.sp.gov.br). 4. Dados da Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo (http:// www.sap.sp.gov.br). 5. Foucault, M. Vigiar e Punir.

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RESUMOS

Este trabalho tem a intenção de descrever e analisar dois presídios de Itirapina, SP, a partir da visão dos Agentes de Segurança Penitenciária (ASP). Como os detentos, os ASP têm seu modo de vida ligado à rotina da prisão, criam seu vocabulário e seu modo de agir no sistema prisional. Trata-se não só de convívio, mas de uma relação. O trabalho pretende explorar temas como os hábitos dos agentes ligados a um estado de vigilância contínua dentro e fora da prisão. Há ainda o estabelecimento de relações hierárquicas entre os postos de serviço: mesmo tendo o mesmo cargo perante o Estado, a maioria dos ASP acaba criando uma hierarquia paralela e uma disputa interna por postos, o que representa mais uma relação de conflito. Percebemos, então, como essas relações conflituosas e hierárquicas criam uma nova dinâmica dentro de um ambiente como o acima mencionado.

ÍNDICE

Palavras-chave: agentes penitenciários, hierarquia

AUTOR

RAPHAEL T. SABAINI

Departamento de Ciências Sociais – UFSCar

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Agência das medicinas, agência dos sujeitos: produzindo corpos intensivos e alter-ações no Fogo Sagrado

Aline Ferreira Oliveira

Introdução

1 São crescentes os fenômenos em que aspectos de cosmologias e práticas ameríndias são apropriados e resignificados por segmentos da classe média urbana, criando novos modelos de espiritualidade - tratados na antropologia como neo-xamanismo (Fernandéz, 2007; Jakobsen, 1999; Kehoe, 2000; Langdon, 2008) ou xamanismo urbano (Magnani, 2000; 2005). Este artigo traz uma reflexão sobre um movimento espiritual internacional conhecido como Fogo Sagrado e tem por objetivo delinear alguns elementos desse fenômeno considerando suas práticas rituais (com o uso do tabaco, da ayahuasca1, de saunas, danças e retiros em jejum) em termos do que Vargas (1998) chama de “corpos intensivos”.

2 Segundo o autor, a busca por experiências de corporalidades intensivas contrapõe-se à tendência contemporânea analgésica dos corpos, que está baseada, sobretudo, em argumentos da medicina ocidental pautados na naturalização de um “critério extensivo para avaliar a vida”, considerando que “o ideal médico do ‘bem-estar’ também demanda, ao lado da luta contra a morte e pela cura das doenças, uma luta pela eliminação da dor e do sofrimento”. (Illich, s/d. apud Vargas, 1998: 128,129).

3 Para tal empreendimento, está o consumo massivo do que Vargas chama de “drogas de uso medicamentoso”: os anti-depressivos e ansiolíticos, produzindo corpos dóceis e tranqüilos, e os anabolizantes e analgésicos, produzindo, respectivamente, corpos esbeltos e sem dor. O que Vargas propõe, é pensar que o que determinadas práticas corporais colocam em jogo, “são outros modos de produção dos corpos, modos

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propriamente intensivos, onde o vigor do instante de vida se impõe sobre a duração da vida em extensão” (Vargas, 1998: 131).

4 Para complementar essa reflexão, aproveito as contribuições de Vargas (2006) que analisa o consumo urbano de substâncias psicoativas como “jogos profundos” (Geertz, 1973, apud Vargas, 2006), vistos como práticas e modos de engajamento que envolvem as substâncias como mediadoras para a produção da “alter-ação”- a “ação de outrem” (Viveiros de Castro, 2001: 16, apud, Vargas, 2006) - em que as “ondas” são eventos que produzem uma “intensificação da percepção” e que “carregam alta dose de surpresa” justamente pelos agenciamentos de “alter-ações” que ocorrem em modalidades de “in(ação)” (Comart & Hennion, 1999, apud Vargas, 2006), ou seja: nem o sujeito, nem a substância detêm o controle dessas experiências que “fazem emergir movimentos de transformação ou de deslocamento, os quais envolvem entrega e renúncia, ou, para falar como Foucault (1967), a ‘dissolução do eu’” (Vargas, 2006:6).

5 Para fundamentar essa reflexão, foram delineados alguns dos sentidos atribuídos às “medicinas” no Fogo Sagrado – tais como a ayahuasca e o tabaco - buscando elementos para expressar como, nesse universo simbólico, os sujeitos se relacionam com esses “espíritos” que são considerados como entes dotados de intencionalidade e ação. Em última instância, podemos também destacar agentes como a “montanha” – especialmente em contexto dos rituais de retiro em jejum - bem como o fogo, a água, e outros elementos que são investidos de sacralidade e do poder de “dar ensinamentos e instruções”.

6 Para compor os argumentos, recorro à pesquisa de campo que realizei durante a graduação, considerando principalmente: as práticas rituais, destacando rezas a fim de buscar significados atribuídos à(s) experiência(s); conversas informais entre os participantes; narrativas que coletei, produzidas fora do contexto ritual; conversas com o líder espiritual do Fogo Sagrado no Brasil, Ehekateotl2, considerando sua história pessoal e do movimento no exterior e no Brasil; e trechos de cantos que fornecem elementos para compreender esse universo simbólico. Durante a pesquisa estive participando em eventos rituais do Fogo Sagrado em Florianópolis, Curitiba e no interior de Santa Catarina, bem como naqueles que acontecem na sede de uma religião ayahuasqueira em Florianópolis, o Santo Daime, conforme mencionarei mais adiante.

7 Este objeto de estudo surge não somente da observação em campo das práticas rituais e dos modelos explicativos que circulam no Fogo Sagrado em torno da vida e da morte, mas de minha experimentação dos modos de produção desses “corpos intensivos” ao participar desses rituais como pesquisadora ao longo de um período de três anos. Associado à reflexão acadêmica, é na ordem do sentir que esse campo se faz intenso, vinculando contrastes através de distintos meios que produzem a experiência: extremo calor, suor, umidade, frio, sede, água, o do tocar do tambor, o som do chocalho, os aromas de distintas ervas e resinas, a luz do fogo, o escuro total, o cantar, rezar, escutar, o silêncio, eventuais calafrios, enjôos ou vômitos provocados pela ingestão da ayahuasca, o sentir do amargo do tabaco e nas primeiras experiências uma leve tontura, seguida de uma forte disposição, a salivação que a fumaça produz ao não ser tragada, etc.

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Contextualizando o movimento

8 O Fogo Sagrado de Itzachilatlan é uma organização internacional que referencia seus vínculos institucionais à NAC – Native American Church3- sendo mais comumente conhecida como Fogo Sagrado, Caminho Vermelho ou Caminho. É um movimento atualmente presente em diversos países -México, Chile, Argentina, Uruguai, Colômbia, Peru, Espanha, etc. - que foi oficializado no início da década de 80 nos Estados Unidos por um mexicano, Aurélio Tekpankalli, atual líder espiritual e “chefe” dessa rede neo- xamânica.

9 Tekpankalli viveu parte de sua juventude nos Estados Unidos com seus pais, pintando murais, dentre outros, relacionados a temas indígenas e políticos. Quando criança viveu no México com seu avô, que era de uma nação purepecha, sendo este uma inspiração para Tekpankalli na busca do “conhecimento” dos seus “ancestrais” – o que o leva, nos Estados Unidos, a viver em distintas reservas indígenas, participando de rituais com “anciões”, sendo iniciado e apadrinhado. Recombinando elementos que remetem a distintas tradições ameríndias do continente americano, Tekpankalli propõe expandir esse “conhecimento” para além das fronteiras das comunidades indígenas.

10 As Caminhadas de Paz e Dignidade ocorridas em 1992 – que consistiram em caminhadas com realização de “cerimônias” num trajeto que percorria o continente americano, saindo do Alaska e da Patagônia em direção a um ponto de encontro no México – impulsionaram a internacionalização do movimento do Fogo Sagrado, expressando um de seus fundamentos, baseada na profecia em que a Águia, simbolizando o Norte, e o Condor, o Sul, se encontram para a circulação de saberes, a “união dos povos” e o compartilhar das “medicinas”, como o tabaco, o peiote, a ayahuasca, o san pedro, etc.

11 Dentre os rituais do Fogo Sagrado podemos destacar o uso central do tabaco como um sacramento em suas práticas; a “chanupa” ou “pipa sagrada”, um ritual que se conduz com o tabaco e um cachimbo de mesmo nome, com o qual se fazem “rezos” ao Grande Espírito, enfatizando agradecimentos e pedidos; o “temazcal”, um ritual feito numa tenda circular, baixa e escura, em que são colocadas pedras quentes num buraco central e nas quais é jogada água, produzindo uma espécie de sauna; a prática de jejum e isolamento durantes vários dias na mata, conhecido como “busca da visão”, iniciação que se desdobra na preparação de condutores de rituais de temazcais e chanupas; o uso ritual das “medicinas”, como a ayahuasca – na chamada “cerimônia de medicina” ou “cerimônia de meia-lua” - em que se sacralizam como “medicina” também a palavra, a água e os alimentos; a prática de jejum completo com danças, durante quatro dias e noites com o fogo aceso, ritual chamado de “dança do sol”, em que se dança do nascer ao pôr do sol e os “dançantes” fazem “oferendas” de pele como forma de rezar e agradecer, honrando a vida e as futuras gerações. Destaca-se ainda o “temazcal com medicina”, também chamado de “temazcal dos quatro tabacos”, que segue a mesma seqüência ritual da “cerimônia de medicina”: são honradas as “medicinas” - o tabaco, a ayahuasca, a água, os alimentos – porém, num ambiente úmido, escuro e quente.

12 Em geral, esses rituais dão-se a partir da dinâmica de rezos e cantos e louvam elementos como o “pai Sol”, a “mãe Terra”, os “quatro ventos”, que correspondem às direções cardeais, a água, o fogo, as pedras (chamadas de “avozinhas”), as “7 direções” (Leste, Sul, Oeste, Norte, Terra, Céu, Coração), as

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13 “plantas sagradas”, chamadas de “medicinas”, como o tabaco, a ayahuasca, etc. – “espíritos” que passam a fazer parte do universo simbólico dos participantes do movimento, dando sentido às experiências. A expressão “Aho Metakuye Oyasin” é remetida às práticas dos indígenas norte-americanos, especialmente aos Lakota, e segundo os participantes do Fogo Sagrado significa “por todas as nossas relações”, considerando que há uma rede relacional que interliga os humanos, animais, plantas, minerais, astros, ventos,... bem como ações, valores, acontecimentos, etc. – o que indica uma das premissas centrais no Fogo Sagrado que é o “honrar e cultivar boas relações”.

14 Os participantes do Fogo Sagrado afirmam que esses rituais estariam presentes em diversas culturas da América, argumentando que apesar de serem realizados de “formas” diferentes, expressariam uma “essência” comum associada à “Tradição Indígena da América” (Oliveira, 2009 a, 2009b). Labate (2004:356) nos dá pistas para compreender este tipo de fenômeno como a “criação de uma espécie de religião pan- indígena essencialista” bastante inspirada em ideais dos movimentos da Nova Era – como a busca da “essência” e do “ser”, a natureza tida como fonte de ensinamento, a sacralização do self, relacionados a noções de “transformação” (Amaral, 2000). Como destaca Maluf, a emergência de uma nova cultura espiritual e terapêutica – convencionalmente tratado pelo termo “Nova Era” - é um fenômeno do mundo contemporâneo, e caracteriza-se pela interseção entre novas formas de espiritualidade, práticas terapêuticas alternativas e a vivência de experiências ecléticas pelas classes médias urbanas (Maluf, 2005).

15 No Brasil, o Fogo Sagrado chegou em 1997 através de Ehekateotl, um brasileiro que conheceu Tekpankalli no Chile, e, após alguns anos, o movimento consolida-se como uma extensão oficial da organização do Fogo Sagrado de Itzachilatlan.

16 Da trajetória de Ehekateotl vale destacar que aos sete anos passou a praticar meditação e oração, impulsionado pela sua avó, em decorrência de uma doença no quadril que o impossibilitou de andar pelo período de aproximadamente dois anos. Também outros eventos marcantes – como o fato de estar descontente com o curso de Medicina - foram determinantes para sua aproximação com práticas espirituais orientais, inicialmente a partir de um tio, que era discípulo de Osho - também conhecido como Bhagwan Shree Rajneesh - um guru indiano que gerou o movimento conhecido como neosanias.

17 Aos dezesseis anos, Ehekateotl viaja ao Chile e passa a participar de um grupo neo- xamânico internacional conduzindo encontros e vivências (ver, Oliveira 2009–a, 2009- b), onde conhece Coyoxauski, sua companheira, e Tlaloc, ambos considerados atualmente líderes espirituais no Fogo Sagrado do Brasil, sendo este o responsável por questões administrativas. Ehekateotl conhece Tekpankalli quando este realizou um evento de Busca da Visão com os terapeutas nesse grupo no Chile, do qual Ehekateotl veio a se desvincular. Foi então que ele passou a viajar por países da América do Sul, como Colômbia e Equador, participando de rituais do Fogo Sagrado.

18 Ehekateotl retorna ao Brasil, retomando seus estudos de Medicina e posteriormente graduando-se. É nesse contexto, como estagiário de um hospital em Florianópolis, que outro médico, sabendo que Ehekateotl conduzia rituais, sugere a ele ir conversar com um “parente” – referindo-se a um guarani – que não queria se tratar, nem no hospital, nem na aldeia (localizada em Biguaçu-SC). A relação foi aos poucos se estabelecendo, e o guarani aderiu ao tratamento e voltou a participar nos rituais na aldeia. Segundo Ehekateotl, por intermédio desse indígena, ele é convidado pelo líder espiritual da

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aldeia, quando este reconhece Ehekateotl como a pessoa que ele esperava há treze anos, que viria ajudá-lo a “levantar o povo Guarani”4.

19 Ehekateotl passou a freqüentar constantemente a aldeia, sendo convidado a ajudar nos benzimentos realizados durantes os rituais Guarani de canto e reza. Logo ele mudou-se para a aldeia, com Coyoxauski e seus filhos, onde viveu pelo período de um ano realizando rituais, principalmente temazcais, nomeados pelos Guarani de Opy-djere. Inicialmente, o uso da ayahuasca era pouco freqüente. A busca por uma forma de conseguir a bebida levou Ehekateotl ao encontro dirigente da comunidade do Santo Daime Céu do Patriarca São José, localizada em Florianópolis. Este contato resultou, em 2002, numa “aliança” oficial estabelecida entre o Fogo Sagrado e o Santo Daime de Florianópolis – relação essa que se desdobra para além da proposta desse encontro inicial, resultando num movimento que se manifesta em um intenso fluxo de simbologias.

20 Atualmente o Fogo Sagrado no Brasil tem como a sede principal uma fazenda, localizada a 1.700 metros do nível do mar no planalto serrano nas proximidades de Urubici-SC, onde são realizados os rituais anuais em janeiro – a Busca da Visão e a Dança do Sol - junto com membros do Santo Daime, da aldeia Guarani de Biguaçu, e participantes do Fogo Sagrado ou Santo Daime que vêm de distintos países do continente americano, europeu e africano. Nesses encontros de Busca da visão e Dança do Sol, evidencia-se o caráter dialógico desse movimento que tem fronteiras fluidas na medida em que sujeitos de outros grupos se iniciam e passam a praticar alguns desses rituais, resignificando-os.

21 Como exemplos nesse sentido, podemos mencionar o uso de ayahuasca nos rituais Guarani e a recente realização de busca da visão na aldeia, bem como na comunidade Céu do Patriarca São José, os temazcais realizados por daimistas, e as cerimônias de medicina conduzidas pelo dirigente do Santo Daime, principalmente nos eventos denominados de Encontro com as medicinas da Mãe Terra: e as variadas formas de relação com o sagrado, que vem sendo realizados na comunidade daimista desde 2007 e que são combinados aos feitios, ocasião ritual em que é produzida a ayahuasca.

22 Nesses encontros, o preparo da ayahuasca é combinado com uma rica programação de distintos rituais de “tradições espirituais” de várias partes do Brasil e do mundo, que têm em comum o uso de algum enteógeno5. Nesse sentido, podemos destacar os rituais do Fogo Sagrado, dos Guarani, do Santo Daime, bem como aqueles conduzidos por taitas Equatorianos, membros da tradição Sangoma da África do Sul, e a constante presença de jovens indígenas Kaxinawa do Jordão, que realizam rituais com ayahuasca e rapé (um pó que tem como base o tabaco). As atividades durante o dia são destinadas ao feitio - as mulheres colhem e limpam as folhas, chamadas nesse contexto de “rainha”, enquanto os homens batem o cipó, conhecido como “jagube” – bem como são feitas oficinas de canto ou de preparação de rapé, realizadas pelos kaxinawa. A ayahuasca é preparada no último dia num ritual realizado na “fornalha”, em que participam membros desses distintos grupos. Atualmente a ayahuasca usadas nos rituais do Fogo Sagrado e dos Guarani é preparada nessa colaboração mútua6.

23 Pude perceber como essas experiências rituais se desdobram para além desse encontro: como, por exemplo, na aplicação do rapé sendo feita atualmente por diversos daimistas. Percebe-se, portanto, que a apropriação de símbolos e aspectos rituais de determinado grupo dá-se mutuamente entre indígenas e não-indígenas. Podemos mencionar também as cerimônias de medicina conduzidas pelo dirigente do Santo Daime que

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mobilizam a participação de daimistas de outros países que vão a esses encontros, bem como esses rituais realizados por ele em outros países, como México e Argentina, em que participam daimistas, levando, informalmente, essa “aliança” entre o Santo Daime e o Fogo Sagrado para além das fronteiras nacionais.

24 Durante o ano acontecem diversos eventos rituais do Fogo Sagrado no Brasil, especialmente nas cidades no sul do país. Ehekateotl conduz cerimônias de medicina principalmente em Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba e Joinville – cidades essas em que são realizados também outros rituais, como a chanupa e o temazcal, que são conduzidos por iniciados na busca da visão. Percebemos assim o caráter expansivo e diversificado desse movimento que mobiliza sujeitos de distintos grupos que com a “caminhada” no Fogo Sagrado, passam eles mesmos a agenciar esses rituais – o que nos leva a mencionar uma característica central desse tipo de fenômeno, que é a consideração de que todos podem desenvolver habilidades xamânicas (Magnani, 2000, 2005). A aprendizagem de como conduzi-los não se dá de maneira formal e/ou didática, senão através da participação do iniciado nos rituais – o que destaca a ênfase dada no Fogo Sagrado sobre um conhecimento que emerge da experiência.

25 Em Florianópolis, onde o movimento se faz mais presente, e onde realizo boa parte das saídas a campo, podemos destacar o espaço Tempo do Vento, idealizado e coordenado por Urkupime, recentemente reconhecida ritualmente por Ehekateotl como “mulher medicina”, sendo, portanto, autorizada a conduzir cerimônias de medicina em nome do Fogo Sagrado (assim como Coyoxauski e Tlaloc, este também considerado um “homem medicina”). Assim, nota-se aí a realização de diversos rituais do Fogo Sagrado: cerimônias de medicina, temazcais com medicina conduzidos por Tlaloc, temazcais, chanupas, e os “Círculos de mulheres”, que são encontros realizados somente para mulheres, orientados por Urkupime e Coyoxauski. Nesses eventos rituais podemos perceber como alguns participantes que já fizeram alguma etapa da busca da visão vão assumindo papéis nessas práticas, como cuidar do fogo, depositar as ervas aromáticas nas brasas, etc.

26 Também no espaço Tempo do Vento, pude participar de rituais com ayahuasca e rapé conduzidas por um kaxinawa, bem como uma oficina de rapé realizadas pelo mesmo. Além de rituais, nesse local dispõe-se de distintos serviços como práticas e terapias alternativas: reiki, yoga, massagens, aromaterapia, iridologia, tarot, etc. realizados por diversos terapeutas, bem como “workshops xamânicos” realizados por Urkupime – sendo, portanto, um ponto articulador de novos participantes no Fogo Sagrado (o que se percebe pelo fluxo de distintas simbologias e pessoas que ali circulam na busca de terapias). É nesse espaço que se notam mais claramente os vínculos deste tipo de movimento neo-xamânico com as culturas espirituais da Nova Era – como ressaltou Magnani (2000, 2005) - uma vez que há um intenso fluxo de simbologias, como “terceiro olho”, “chacra”, o uso constante da palavra “cura”, “xamanismo”, etc. (pouco vinculadas na maioria dos eventos rituais do Fogo Sagrado). Portanto, nesse contexto manifesta-se claramente a diversidade de concepções que circulam no Fogo Sagrado.

Agência das medicinas, agência dos sujeitos

27 No Fogo Sagrado, “medicina” é como são designados os enteógenos, e no sentido mais amplo do termo, é uma noção compartilhada que pode ser pensada como uma expressão polissêmica – que remeteria a noções de “remédio”, “cura” e “bem-estar”.

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Não se referindo a um valor absoluto, senão considerada sob o contexto relacional, a noção de medicina estende-se para uma diversidade de situações, valores, ações, acontecimentos, emoções, pessoas, etc. bem como a alguns elementos centrais nesse universo simbólico: os “rezos”, os cantos, a “montanha”, o tabaco, os “quatro elementos” (água, ar, fogo, terra), as ervas aromáticas, os alimentos, etc (Oliveira; Gomes, 2008; Oliveira, 2009).

28 Podemos notar em certos cantos, a reverência que se faz à ayahuasca – também chamada de “avozinha” – e à “medicina do tabaco”: En el camino de mi aaaabuelita, aaaayahuasca, me encontré En el camino de mi aaaabuelita, aaaayahuasca, me encontré Y no regresaré y no regresaré Y no regresaré y no regresaré Iana heinei oue En el camino de mi aaaabuelito, taaaabaquito, me encontré (...)

29 Nota-se que a expressão “medicina” é usada referindo-se às plantas, consideradas como detentoras de uma “sabedoria ancestral” e capazes de dar “clareza”, “orientações” e “ensinamentos”. Nesse universo simbólico afirma-se que os rituais, assim como as “plantas sagradas”, são parte de um “legado” deixado pelos “antepassados”, também referenciados como os “antigos”, os “avôs”ou “avós”, os “ancestrais”, os “anciões”, etc. – postulando uma origem mítica comum.

30 Nesse sentido, o tabaco também é considerado um “avô”, podendo ser rezado de diversas maneiras – inalado, aspirado, fumado, mascado, queimado no fogo, etc. – com o “propósito” de “elevar o rezo” do “coração”. Esses rezos são pedidos e agradecimentos ao “Grande Espírito” - feitos em silêncio ou através de verbalizações – e podem ser “atendidos”, uma vez que a palavra é envolta de um poder capaz de realizar e materializar. Enfatiza-se que os rezos expressam a “intenção” e o “propósito” de cada um – assim manifestam-se também como ações, uma vez que se considera que o rezo é também a maneira como cada um “caminha” no “Caminho Vermelho”, sendo este interpretado, numa concepção ampla, como o caminho de vida na Terra. Neste artigo, enfocamo-nos nos rezos como atos verbais, que, em geral – com a exceção do uso da chanupa - dão-se através de um enrolado de tabaco numa palha de milho, envolvendo pedidos e agradecimentos também aos participantes do ritual – eventos esses em que se percebe constante o uso de narrativas para interpretar as experiências, sejam cotidianas ou iniciáticas (Oliveira, 2009-c).

31 Nota-se que, nesse universo simbólico, as “medicinas” podem ser consideradas como dotadas de agência - algo que poderia ser expresso também por uma “presença”, “vibração” e “força” de um “espírito” que teria intencionalidade e o poder de atuar (Oliveira; Gomes, 2008; Oliveira, 2009).

32 Mais do que pensar se é o sujeito ou a medicina que atua, podemos pensar sob os termos nativos, na “relação” do sujeito “com a medicina” – considerando o que Vitória7, diz sobre a ayahuasca: “A gente brinca né? Avozinha né... (...) ‘avozinha é aquela que chega e faaala até ooo....assim né... fala, fala, fala tudo o que você tem que ouvir...’ Você se revorca, né? Te vira do avesso”.Percebe-se, portanto, um sentido atribuído à ayahuasca – um ente que fala, guia, dá orientações, relacionado a uma figura familiar e feminina - a avó - que “transmite ensinamentos”, seja na “leveza” ou na “rigidez”. Como Vitória comenta, considera-se que: “a planta dá a medida certa para cada um”.

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33 Podemos perceber esses sentidos compartilhados também através de um comentário feito por uma buscadora, após a cerimônia de medicina de abertura do evento da Busca da visão em 2009. Durante o almoço, em uma conversa sobre a experiência na “cerimônia”, ela comentava que algumas “medicinas” são suaves, já a ayahuasca... “a bicha te pega e vai abrindo caminho: ‘não é isso que tu queria? Agora escuta! Isso, isso, isso, isso,...’” [fazia um gesto, apontando com o dedo]. Vemos nessas afirmações, como, nesse universo simbólico, dialogam o sujeito e a ayahuasca: esta lhe mostrando o que ele havia pedido, e, portanto, terá de escutar...

34 São diversos os comentários que enfatizam uma mudança nessa “relação”, em que o sujeito, após sua “caminhada com as medicinas”passa a lidar com essas agências de uma forma diferenciada, na qual é enfatizada a agência do sujeito sobre si, porém considerando que “elas” – as medicinas - atuam para além do domínio daqueles que as ingerem, o que implica em pensar nessas agências não apenas sob a noção de “substância”, mas sob a atribuição do seu estatuto de sujeito. Pode-se sugerir que, segundo essa concepção, estas “medicinas” estariam atuando nas relações em que estão envolvidos os participantes dos rituais: como através de uma idéia compartilhada de que ajudam a “ter clareza” – apesar de a ênfase recair sob a agência do sujeito em seu processo. Ou seja, o processo de atribuição de sentido partiria do sujeito nesta relação com a medicina.

35 Podemos perceber algo semelhante a essa agência, porém referida principalmente à substância, num rezo feito por um buscador: “então meu rezo, é... eu tenho vários medos. Medicina me dá um medo tremendo. A barriga começa a mexer, eu tenho medo dos efeitos que ela me dá. Mas eu sei que vai terminar bem, como a busca...”. Ehekateotl, em outro momento no mesmo evento ritual, negocia os sentidos atribuídos à ayahuasca, dialogando com esse rezo, ao afirmar que“a medicina não faz nada”– destacando assim, a agência do próprio corpo “medicinado”.

36 Podemos perceber que assim como alguns participantes do Fogo Sagrado atribuem certo tipo de agência às “medicinas”, Ehekateotl, através dos rezos nos rituais ou mesmo na conversa que tivemos sobre este artigo, questiona a existência de uma intencionalidade das plantas, dos animais, das pedras, etc. que ele menciona como sendo um “filtro” envolto de “mistificação”. O que ele enfatiza, é que as “medicinas” são “ferramentas para a compreensão” – o que, segundo ele, seria uma visão “objetiva”, livre de “interpretações” de uma “espiritualidade supersticiosa”, a qual atribuiria qualidades humanas a não-humanos, baseada em uma visão antropocêntrica. Assim, o vento não teria uma consciência dotada de intencionalidade, senão que seria uma “consciência ventificada”, na medida em que a “existência” se expressa como uma “consciência que se manifesta dentro de uma forma”. Também em relação a uma expressão comum no Fogo Sagrado – a “memória das pedras” – Ehekateotl afirma que haveria uma interpretação literal do que seria uma linguagem poética, que, portanto, não indicaria que as pedras seriam dotadas da capacidade de “recordar” ou mesmo de agir segundo vontades, mas que nas pedras também se expressa a “inteligência intrínseca” da existência.

37 Nesse sentido, vale uma menção de um comentário feito por Ehekateotl, numa cerimônia de medicina realizada na Igreja do Santo Daime em Florianópolis em 2007, no Encontro com as Medicinas da Mãe Terra. Rezando, ele conta que alguém que um dia chegou para ele dizendo que “iria experimentar a medicina”. Ele diz que respondeu que “mais bem ela que vai te experimentar primeiro” – provocando risadas dos demais

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participantes. No ano seguinte, no mesmo evento, no início de um temazcal com medicina, Ehekateotl menciona o feitio da ayahuasca, dizendo que assim como “cozinhamos a medicina na fornalha”, nesse momento, tomando ayahuasca no calor intenso do temazcal, iríamos “ser cozidos por ela”. Podemos perceber que é atribuída uma espécie de agência à ayahuasca, sendo esta remetida como produtora de uma ação. Porém, segundo Ehekateotl, a linguagem poética desses rezos não sugere uma intencionalidade, mas uma noção de unidade “ao transcender a separação sujeito e objeto”, onde existe “um só”: ao experimentar e ser experimentado, cozinhar e ser cozido...

38 O que venho a destacar nesse artigo são relatos que consideram agências intencionais e mediações de “espíritos” como a ayahuasca, o fogo, a montanha, etc. – tendo em consideração que as concepções em torno de possíveis ações e intencionalidades não- humanas estão em constante negociação na medida em que se encontram diversos universos simbólicos.

A montanha

39 Nesse contexto do Fogo Sagrado, circulam concepções que consideram que diversas pessoas vivem “adormecidas”: dispondo de muitos meios para se “distrair”, estariam sempre encontrando formas para não perceberem a si mesmas, inibindo a dor, ou algo que vincule a sensação de incômodo. Considera-se que em uma experiência de busca da visão, não existiriam esses meios: não há pessoas, objetos, acontecimentos, etc. – e que essa condição de distanciamento propicia que o sujeito perceba a si mesmo e ao mundo de forma diferenciada. Assim, enfatiza-se que momentos de dor e sofrimento podem ser experienciados como “medicinas”, trazendo bem-estar, pois na medida em que são vivenciados com intensidade abrem a possibilidade de trazer “entendimentos”.

40 Também chamada de “subir a montanha”, a experiência da busca da visão consiste em que cada “buscador”permanece em jejum em retiro na matanum espaço delimitado por um cordão com 365 rezos de tabaco, que são colocados em quadradinhos de pano e enlaçados um a um por um longo cordão, remetendo à vida do buscador e a cada dia do ano. Esses rezos com tabaco são, em geral, pedidos e agradecimentos ao Grande Espírito e expressam o “propósito” com o qual o buscador está “subindo a montanha”. Vincula- se a busca da visão a um momento em que o iniciado recolhe-se para rezar, agradecer a vida e pedir por uma “visão” que traga uma compreensão renovada sobre si mesmo e suas “relações”. Assim, é constantemente enfatizado a “atenção” e o saber “escutar”.

41 Na “montanha”, o buscador permanece fazendo jejum de água e alimentos, sem poder comunicar-se verbalmente. A quantidade de dias de isolamento varia segundo a etapa de um modelo crescente de dias a cada ano: no primeiro ano são quatro, no segundo sete, no terceiro nove, e no quarto ano, treze dias e noites. Em qualquer das etapas, os primeiros quatro dias são sempre de jejum completo, e a partir do quinto dia, para aqueles que já passaram a primeira etapa “dos quatro dias”, os buscadores passam a receber “visitas” de outros participantes do evento, que trazem uma garrafa de chá e algumas frutas (e, segundo a etapa, mais frutas, água, milho e carne). As etapas são sinalizadas pelas cores das bolsinhas de pano com tabaco – vermelho, amarelo, negro, branco - e remetem, respectivamente, às direções cardeais – leste, sul, oeste, norte - que o buscador está honrando, sendo relacionadas aos valores: humildade, vontade, sinceridade e integridade.

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42 A Busca da Visão compreende diversos ritos em que participam também aqueles que vão como “apoio” e que têm um papel fundamental no andamento do evento (por exemplo, fazendo as visitas para levar os alimentos), sendo composto por aqueles que estão no acampamento e não fazem o retiro em jejum: são amigos, familiares dos buscadores, e/ ou membros do “Conselho de Busca de Visão”, sendo este um grupo formado pelos que já completaram as quatro etapas de iniciação, e auxiliam na condução de momentos como o de “plantar” – isto é, deixar os buscadores no seu espaço na mata – e “colher” ao buscá-los quando completarem a quantidade de dias. Assim, relaciona-se o buscador a uma semente, que é plantada e deve ser colhida madura. Caso o buscador decide “sair do seu espaço”, no ano seguinte que for “fazer a busca”, volta à etapa não concluída.

43 Durante todo o evento, que dura por volta de quinze dias, o fogo permanece aceso no opy, uma casa de reza construída no estilo Guarani, de onde também vem este nome.

Dança do Sol, 2008. Ao fundo o opy. Em primeiro plano, posicionadas no círculo cerimonial da dança do Sol: o jaguar do lado direito, e a serpente, do lado esquerdo – estátuas feitas pelo artista plástico consagrado do Fogo Sagrado.

44 O evento Busca da Visão inicia com uma cerimônia de medicina por volta das vinte e uma horas neste espaço cerimonial. Nessas ocasiões, o fogo está mais alto do que outros momentos, e aos poucos os participantes vão chegando e distribuindo-se em semi- círculos em volta do “altar da meia-lua”, colocando almofadas e cobertores no chão para sentar no chão de terra.

45 O fogo é “cuidado” pelo homem-fogo, papel ritual geralmente atribuído a Tlaloc, que ajeita as toras de madeira que se dispõe em formato de V, formando uma flecha. Ao longo do ritual, distintos desenhos são feitos por ele com brasas, nas quais as ervas e resinas aromáticas, principalmente o cedro e o copal, são jogadas pela “mulher cedro”, neste caso Coyoxauski e/ou a “madrinha”, companheira do “padrinho”, o dirigente do Santo Daime. Quando o ritual vai ser iniciado, as portas são fechadas pelo “homem porta”, sendo este algum membro do Fogo Sagrado, algum daimista ou guarani, e designa o responsável por controlar a entrada e saída dos participantes durante o ritual, bem como é aquele que distribui sacos plásticos a todos os participantes, para que aí sejam recolhidos os vômitos - nesse contexto chamados de “alívios” - que são provocados pela ingestão da ayahuasca.

46 Esse ritual é também conhecido como “cerimônia dos quatro tabacos”: é rezado o “tabaco do propósito”, inicialmente por Ehekateotl, enfatizando as “orientações” para aqueles que irão estar de retiro em jejum. Em seguida, cada um dos participantes

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prepara um enrolado do tabaco, e uma vez aceso, todos podem “tomar a palavra”, um de cada vez, fazendo a saudação “Aho Metakuye Oyasin”. Os rezos daquele que “está com a palavra” são acompanhados pelos demais, e reforçados pela expressão “aho” e suas variações – nessa ocasião, enfatizam-se os propósitos relacionados à busca da visão e percebe-se constantes a negociação dos significados atribuídos à experiência (Oliveira 2009-a, Oliveira 2009-c).

47 Na etapa seguinte é servida a ayahuasca, e são iniciados os cantos por Ehekateotl, que são acompanhados pelo chocalho e o bastão - que sempre estão na mão daquele que canta - e pelo tambor, que é tocado por algum participante que está com esse papel no ritual. O chocalho e o bastão passam por todos na roda, para quem quiser cantar. A maioria são cantos do Fogo Sagrado, hinos do Santo Daime ou cantos Guarani. Posteriormente é rezado o “tabaco da água”, em que é ressaltada a “essência” desse “espírito”, relacionando-o à vida, à transparência e à fluidez. A água é servida a todos por Tlaloc, que dá um aperto de mão dizendo “Bom dia”. Posteriormente há o “tabaco do poder” em que Ehekateotl retoma o “propósito” da cerimônia, acionando diversas narrativas para passar as “orientações” de como vivenciar e enfocar a experiência de busca da visão (Oliveira, 2009-a; Oliveira, 2009 c), sendo constantes os rezos do dirigente do Santo Daime também conduzindo o ritual.

48 Já ao amanhecer, as mulheres preparam as bandejas de alimentos, enfeitando-as com flores, e combinam algum canto para a entrada dos alimentos. Os alimentos são dispostos ao chão, em cima de um pano, onde senta-se Coyoxauski (e/ou alguma outra mulher de referência no movimento, como a “madrinha” do Santo Daime, companheira do “padrinho”, o dirigente do Santo Daime). Nesse momento, é rezado o tabaco dos alimentos, em que são enfatizadas a Mãe Terra, a fertilidade e as futuras gerações. Terminado o tabaco, a água é novamente servida, e, em diferentes recipientes, o milho, a carne e as frutas, vão sendo arrastados de mão em mão até completar o círculo. É então encerrada a “cerimônia de medicina”, quando as ervas aromáticas são jogadas na brasa, levantando uma fumaça e perfumando o ambiente.

49 Os participantes do evento almoçam e, em seguida, os buscadores se preparam para “subir a montanha”: há um consenso de que eles podem levar dois cobertores, uma muda de roupa, e uma lona que não seja de plástico. Aos poucos todos se dirigem ao espaço cerimonial, onde o homem-fogo esquenta as pedras na fogueira - este é quem introduz as pedras quando o temazcal está em andamento, sendo, portanto, um mediador entre o lado interior e exterior do espaço cerimonial.

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50 O “temazcal de subida” é o ritual que vai demarcar o início do período de retiro em jejum. É formada uma fila ao lado do espaço cerimonial, e nesse momento muitos se cumprimentam, dando beijos e abraços, desejando “boa busca”, como uma espécie de despedida.

51 Cada um antes de entrar faz um movimento com as mãos, trazendo a fumaça de cedro junto à cabeça e ao coração como forma de “tomar uma benção”, e em seguida ajoelham-se diante da porta (alguns fazendo a saudação “Aho Metakuye Oyasin”, como forma de honrar o espaço cerimonial e as relações). O espaço cerimonial do temazcal é baixo, o que faz com que todos tenham que andar engatinhando, postura corporal esta que é associada à humildade e reverência a “todas as relações”.

52 O temazcal é relacionado com o “ventre da mãe terra”, sendo considerado um ritual de purificação e limpeza, associado a noções de morte, renascimento, ser criança, transformação, etc. Consiste numa dinâmica de rezos e cantos (que em geral podem ser “puxados” por quem queira), e são acompanhados com o tambor e o chocalho, enquanto a porta está fechada num ambiente totalmente escuro, alternando com momentos em que a porta é aberta, entrando vento fresco, e são introduzidas pedras incandescentes num buraco central, e sob estas, diversas ervas e resinas aromáticas são colocadas e produzem fuligens perfumando o ambiente. A porta é tapada com cobertores. A água é jogada nas pedras e levanta-se um vapor, elevando a temperatura.

53 Há temazcais em que participam muitas pessoas, o que implica que cada um não ocupa mais espaço do que necessite seu corpo encolhido, e alguns que são extremamente quentes, dando a impressão que se está respirando fogo, uma forte sensação de queimação na pele, moleza no corpo, e às vezes dificuldade de cantar. As pedras são também chamadas de “avozinhas” ou “abuelitas”, em referência a que se considera que são os “seres” mais antigos da Terra, por isso são mencionadas também como “anciãs pedras” - às quais também se percebe que alguns dos participantes atribuem agência, como ao referirem-se à capacidade de auxiliar nos processos de cura, quando aquecidas e esfriadas com água, ativando sua “memória ancestral”.

54 O período de retiro em jejum começa a partir do momento em que se anuncia que “está recolhida a palavra” – isso se expressa nos cantos, que daí em diante são de poucas vozes, somente daqueles participantes do apoio. Ao término do temazcal, a experiência de recolhimento já se expressa nos corpos: não há interações verbais, os olhares são desviados, os gestos contidos, os contatos corporais evitados, a água não pode ser tocada - produzindo maneiras de estar, se relacionar e comunicar desses corpos em

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condição liminal8 (Oliveira, 2009-a). Em seguida, os buscadores são levados aos seus respectivos espaços na mata.

55 Após o período de dias em silêncio, em isolamento e jejum, os buscadores são “colhidos” pelos membros do apoio e levados para o local cerimonial central, o Opy. Ali recebem água e frutas, porém não podem falar, nem serem tocados. A comunicação verbal e gestual, portanto, é ainda minimizada: os buscadores permanecem concentrados, imersos na experiência de retiro. Percebe-se em alguns buscadores certa fragilidade física: andam devagar, e apresentam sinais do período em retiro, como corpos emagrecidos, com odores diferenciados, olheiras, cabelos despenteados, e a barba começa a aparecer (considerando que usualmente predomina na estética masculina, rostos sem barba).

56 No “temazcal de descida” encerra-se o período de retiro em jejum, quando é “devolvida a palavra”. Enquanto um buscador reza, os outros tragam seu tabaco, olhando ao centro, onde estão as pedras, ou ao chão. Não há uma grande preocupação em olhar para quem está falando. Nesses momentos predomina a atenção no escutar. Também devido a uma relativa escuridão e ao vapor, e no caso de ter muitas pessoas, na maioria das vezes não se pode enxergar quem está falando, a menos que esteja próximo. Notam- se nos buscadores, posturas de prostração, como corpos curvados e/ou encolhidos que comunicam certa fragilidade física (que se nota nas mãos trêmulas) e introspecção, mas também alguns que procuram estar sentados com a coluna ereta, e demonstram vivacidade e brilho no olhar.

57 Nessa ocasião, predominam os rezos de agradecimentos que são acompanhados e reforçados pelos demais. Pude perceber como há também uma recorrência de narrar momentos de tensão - como foram vivenciados em sensações corporais ou em diálogos que o sujeito trava consigo mesmo ou com pássaros, cobras, espíritos, com o fogo, a chuva, o Grande Espírito, etc – e como eles são superados, momentos esses em que aparecem o relato das “visões” (Oliveira, 2009-a, Oliveira, 2009-c). Nessas narrativas são enfatizados eventos que indicam como o buscador passa a ter novas compreensões sobre o mundo e como a vivência de limites corporais e dificuldades em modalidades de “entrega” fazem emergir formas de conhecer que resultam de estar à intempérie, na chuva, com frio, sede, experienciando intensidades sensoriais e sujeitos às “ações de outrem”.

Corpos intensivos e alter-ações

58 É mencionando os agenciamentos de “alter-ações” que Vargas sintetiza “o paradoxo do êxtase (...): fazer de tudo (ou quase...) para que aconteça algo que nos escapa desde o início” (Vargas, 2006:6).

59 Podemos indicar essa modalidade de produção de corpos intensivos como um princípio comum às práticas rituais do Fogo Sagrado, a partir do próprio discurso em torno delas organizado, especialmente nos rezos, como em uma cerimônia de medicina na Dança do Sol em 2009, em que Ehekateotl salientava que experienciar “as privações” - de comida, água, e contato corporal,... - levam o sujeito a “sair da mecanicidade do ato”, que é “ter vontade, e ir tomar água”: (...) ao ir esticando este elástico, muitos valores que a gente considera, passam a ser desconsiderados (...) E assim, aceitando que esse corpo luta para sobreviver, mas o que o originou, o amor (...), que já tá antes mesmo de que este corpo se manifeste,

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não tem porque se confundir nessa luta pela sobrevivência. E a luta segue, num berço de paz. (...) Não rezo que a gente se abstenha de água, para ganhar um prêmio no futuro, mas sim pela possibilidade de reconhecer esse valor, esse amor desse coração que compreende qualquer situação.

60 Vemos como se expressam concepções que consideram que o passar por situações de sensações intensivas produz agenciamentos de mudanças de ponto de vista e revisão de valores, em que se enfatiza que nesses momentos de limite – “ao ir esticando o elástico” – o sujeito pode encontrar seu verdadeiro “eu”, a “essência”, o “ser”, quando vivenciados na “aceitação”.

61 Vargas menciona modalidades de entrega e renúncia em termos de “auto-abandono” como um “agenciamento paradoxal” que envolve a passividade não como indício de falta de ação, senão como potencializadora da ação e de “alter-ações”. Aqui proponho não utilizar esse termo “auto-abandono” - que se ancora em noções como “sair de si”, e das expressões variantes que o autor menciona segundos seus interlocutores, como “trocar o canal” ou “te tirar do centro” - reposicionando a discussão ao considerar a produção de corpos intensivos a partir do universo simbólico dessa pesquisa, ou seja, ressaltando expressões que emergem da prática ritual da busca da visão - tais como “encontro consigo” e “entrega”- envolvendo modalidades de “alter-ações” que se dão também em eventos sem a ingestão de substâncias psicoativas e expressam-se em termos nativos como “fluidez”, “leveza”, “não controle”.

62 As narrativas sobre a(s) experiência(s) de busca da visão ressaltam esse “encontro consigo”, refletindo as orientações dadas por Ehekateotl durante os rituais. Destaco um trecho de um rezo feito por ele em uma cerimônia de medicina durante o evento da Busca da Visão, em que fala de “sair da distorção dos sentidos” e “da limitação dos sentimentos e pensamentos”: Então, se a gente vai falar o nome desse ritual mais preciso que busca da visão é busca ou encontro melhor dito daquele que vê.

Do vidente que em outras palavras é o mesmo ser que a gente é agora mesmo.

Os anciões dessa tradição chamam isso, a segunda atenção.

Então se a gente diz colocar atenção no que a gente vai fazer essa atenção que se pode colocar ou não colocar ela não é permanente ainda é um esforço.

A segunda atenção que na verdade é antes da primeira é isso que de alguma maneira é o propósito de que a gente tá aqui.

63 Essa noção de “ser”, o “observador”, a “testemunha” que observa e “não se identifica” - com reações físicas, pensamentos, acontecimentos – sugere uma concepção de “eu” baseado na idéia de que não é necessário disciplinas, métodos e esforços para alcançar o ser – mas que existiriam “ferramentas para facilitar”, como a busca da visão e

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ayahuasca. Ehekateotl aciona diversas narrativas sobre os “mestres Zen”, muitas das quais se baseava Osho para passar ensinamentos. Pode-se perceber essa concepção a partir de trechos de um livro sobre o Zen e o “despertar repentino”: Descobrir a natureza profunda do ser é a norma exclusiva do Zen, a justificativa secreta de sua obra de demolição... (...) Trata-se de esperar, aqui e agora, o surgimento ou a descoberta de sua própria natureza, sem praticar uma via gradual (...) A atitude própria a ‘não-ação’ supõe uma tensão interior interrogativa, alheia aos pensamentos, às emoções, aos acontecimentos continuamente gerados pela experiência (...) Sua natureza é independente, autônoma (Varenne, 1984: 12-14).

64 Podemos perceber nas narrativas feitas pelos buscadores durante as “visitas”, como eles referenciam os rezos feitos por Ehekateotl em ocasiões rituais. Nesses eventos de visitas, os participantes do apoio formam geralmente dois grupos, orientados por Ehekateotl e Tlaloc. Os buscadores que encerraram seus dias em retiro são “colhidos”. Os que permanecerão, recebem alimentos e uma garrafa com água ou chá, dependendo da etapa. Cada buscador está no “seu espaço” delimitado por um cordão de rezos, e do lado de fora, se aglutinam os membros do apoio, que não podem falar e atentos escutam o que o buscador tem a dizer: (...) passei quatro dias e quatro noites de muito divertimento (...) de dificuldade física (...) a mente encontrava todos os argumentos para sair daqui (...) e que alegria poder me distanciar disso, não me identificar com isso: “ai tá ruim, ai tá frio” (...) aprendi isso contigo na cerimônia em Porto Alegre (...) e me divertia profundamente com isso (...).

65 Após visitar vários buscadores na mata, nos dirigimos para a “tenda da lua”, que é um espaço onde ficam as mulheres que estão fazendo busca da visão enquanto estão “na lua”, ou seja, menstruadas. Também chamada de Opy-djatchy, segundo a denominação guarani, esse espaço tem no seu centro um fogo aceso que é mantido por estas mulheres. Uma buscadora abre um sorriso ao receber as “medicinas dos alimentos”, direcionando-se para Ehekateotl, conta de sua experiência: (...) E eu perguntava para o fogo... até o fogo me dizer: “você consegue se ver através dessa fumaça? Porque a fumaça são teus pensamentos... tu pode se apegar nela (...) mas a questão é: você não consegue se ver através da fumaça!”. Daí eu fiquei olhando para o fogo e me dei conta que sim...(...) tuas palavras na medicina me tocaram muito, sou muito apegada ao mundo das formas... tô tentando sentir a presença além da forma, e acho que é por isso que tô aqui...(...)senti muita sede, que às vezes tenho vontade de sair daqui, tomar água... ai vem o questionamento “o que eu estou fazendo aqui? (...)

66 Nessa narrativa percebemos como aquilo que é sugerido por Ehekateotl durante os rituais – a “orientação” – é assimilada pelos sujeitos através de símbolos referentes nessa cosmologia, como o fogo e a fumaça, em que o “mundo das formas” (o físico, o mental, o sensorial...) contrasta com a “essência”, que pode ser mencionada como o “ser”, a “presença” – nesse caso, o próprio “espírito do fogo”: aparecendo como a verdade, ele é um agente revelador. Nesse sentido, o fogo aparece também como um mediador destas “visões”, um ente com o qual o sujeito pode se comunicar. Relatos nesse sentido também aparecem em diálogos com animais, plantas, pedras, e fenômenos como luzes, “forças”, espíritos, etc.

67 O fogo na cosmologia do Fogo Sagrado é um elemento masculino e pode estar associado a múltiplos significados. Geralmente o fogo é vinculado ao calor, e há a concepção de que é um “espírito” que testemunha - podemos pensar em algum acordo que é feito diante do fogo, seja ele estando em chamas, nas pedras, ou no tabaco, este selando a

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verdade e o compromisso - como também é visto como agente que dá respostas. Também pode ser um elemento simbólico com significados bastante amplos, como, por exemplo, nesse rezo: “(...) agradecer o fogo que caminha, caminha em nossos corações (...)” – em que a linguagem poética sugere um espírito que agencia.

68 Já escutei em algumas ocasiões rituais, o fogo ser chamado de “televisão índia” – referindo-se, suponho, ao fato de que a ele o olhar se direciona por um longo período, por exemplo, durante uma cerimônia de medicina, e de considerar-se que ele pode “transmitir” mensagens e “dar ensinamentos e instruções”. Em algumas ocasiões rituais, utiliza-se a expressão “alta tecnologia”, referindo-se às práticas rituais, geralmente num tom de humor, se remetendo, por exemplo, ao uso da chanupa como uma espécie de telefone para se comunicar com o Grande Espírito, bem como a expressão “tecnologia de acumular sede”, em alusão à busca da visão.

69 Ao final do encontro da Busca da Visão de 2009, conversei com Bela para que me contasse de sua experiência recente dos “sete dias”. Sentamos ao lado de fora do refeitório, aguardando o momento de sua partida para Curitiba... Aline: Como foi experienciar estar na tenda da lua? Bela: Na verdade, a tenda da lua, pra mim, essa relação com o fogo mexeu diretamente com o meu feminino. (...) eu também vinha dum processo assim, muito... de ter acabado de entender o que a rigidez faz, e o que que a fluidez faz,... Tive muita sede na montanha nos meus 4 dias, nossa... [silêncio prolongado] Nossa!! No meu terceiro dia eu vomitei bílis de tanta sede que eu tive. Eu lambia todas as folhas das árvores ficava contando assim [gestual demonstrando] fazendo goterinha com a lona assim, eu tava desesperada. [gestual demonstrando] eu ... “Meu deus, eu vou morrer de sede”... [gestual: passa mão na cabeça] E eu não sabia do que que era essa sede e a resposta veio exatamente um ano depois... E na lida com o fogo eu entendi que a sede é uma rigidez. Quando a gente enrigece, se enrigece dentro da gente, o líquido não flui dentro da gente, e daí a gente tem sede, entende? (...) E aí nessa lida, eu percebi que o fogo aquece o líquido, faz o líquido fluir, faz as coisas do corpo feminino girarem, e aquece o corpo feminino, no sentido de dar a libido. Entende? Essa coisa de fogo dentro da gente? (...) E daí me vinha essas imagens assim, que de muito fogo, eu via meu corpo incendiado... O incêndio não aquece a água.O fogo fica na superfície da água. Não consegue na verdade fluir. Agora, se você aquece a água com fogo, a água flui, e o fogo é brando. Ele cumpre a sua função, mas ele é brando. Então foi esse o entendimento que eu tive. E isso pra mim foi muito revelador.(...) Para manter a fluidez, você precisa abrir mão do controle, você não consegue ser fluido, querendo controlar...(...)

70 No relato a seguir, vemos como ao vivenciar modos de corpos intensivos, percebemos o que Vargas pontua sobre os “jogos profundos” que envolvem renúncia e “não controle”, abrindo campo para “alter-ações”: (...) Deixei os meus pensamentos os mais soltos possíveis, para deixar a montanha dizer (...) para receber estas flechadas. A montanha tem muito a dizer o que a gente quer. (...) eu ficava pensando “vou morar aqui, viver no meu ser, viver vegetando...” mas tem um mundo aí! Universo tão vasto,(...) eu jamais ficaria aqui com este mundo tão vasto, vegetando... mas... me sinto muito feliz.

71 Percebe-se como a “montanha” é investida de agência: aquele sujeito que “coloca atenção”, “escuta” o que a “montanha tem a dizer”. Nesse caso, o buscador se expressa

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através da metáfora da flecha - bastante usada nesse contexto - o que nos leva a mencionar a “montanha” como um ente que tem vontades e age por intencionalidade remetendo também a uma noção de predação, uma vez que o sujeito pode ser atingido por uma de suas “flechadas” – que em primeira instância podem causar dores, mas são interpretadas como benéficas.

72 Durante essas caminhadas que fizemos visitando aos “buscadores”, comentei a alguém ao meu lado, que eu tinha acabado de perder um cachecol na mata, e ele me diz: “ficou ... acho que a montanha queria ficar com alguma coisa tua (...) algum saci (...)”. Novamente vemos aqui a “montanha” como um agente de intencionalidade, nesse caso sendo mencionado também uma figura do imaginário popular brasileiro. Percebemos assim a noção de “montanha” não referente somente à mata, mas a um espaço sócio- cósmico povoado de seres com os quais os sujeitos se relacionam.

73 “Receber visitas” de animais e outros seres, como espíritos, também são narrados como eventos em que alguma presença inesperada cria uma situação em que o “buscador” é apenas mais um agente. Conversando com Bela, ela me comenta de um canto que “recebeu” em sua experiência no ano anterior, em seus “quatro dias”, mencionada no trecho de narrativa acima. Aline: E nos teus quatro dias, como foi que tu recebeu? Bela: Ah, não sei... não vou me lembrar (...) Eu recebi a visita de trezes entidades. Se isso aconteceu, se foi uma viagem, pouco me importa, sabe? (...) Sei que foi a imagem que eu tive: treze entidades vindo... me trazendo água... e daí elas formaram um círculo comigo. Um deles era o principal, ficava comigo na frente assim... e daí agente começou a cantar essa música9 (...)

74 Como ressalta Vargas, andam juntos, a agonia e o êxtase. Podemos perceber ao longo da exposição desses trechos de narrativas, como no contexto do Fogo Sagrado dispõe-se de distintas práticas corporais para produzir essas experiências de corpos intensivos - corpos rígidos, fluidos, gelados, doloridos, corpos vegetais, incendiados, sedentos - que se desencadeiam em alter-ações que envolvem “espíritos” como o fogo, a “montanha”, seres da mata, etc. considerados agentes determinantes nesses diálogos em que o sujeito constrói novas formas de perceber o mundo. As “visões” parecem referir-se, sobretudo, a uma mudança de perspectiva, que envolve, através dessas modalidades de experimentação intensiva de alter-ações, a reflexão sobre a vida e a morte, o prazer, a dor, com ou sem sofrimento.

No Riacho

75 Para encerrar essa reflexão, destaco mais um evento ocorrido em Segualquia em julho de 2009, que foi chamado de “Encontrão”. No total éramos trezes pessoas convivendo durante cinco dias, em pleno inverno na serra catarinense – com uma programação aparentemente indefinida, cada dia Ehekateotl anunciava o que iria ser feito: temazcais, caminhadas, cerimônia de medicina, conversas ao redor do fogo, etc.

76 Primeiro dia de atividade, saímos de manhã, para uma caminhada num dia de frio e sol. Dispusemos-nos em uma fila, cada um recebeu um bastão e um algodão para ser colocado nos ouvidos. Percebia-se na lataria dos carros os sinais da geada da noite anterior. Fazemos uma longa caminhada - a ponto de se perder as horas como referência qualquer, como comentavam depois alguns participantes. A instrução era

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não conversar, e durante períodos de silêncio, Ehekateotl fazia uma parada e fala algo, por exemplo, mencionando parábolas dos mestres Zen, ou dos “antigos”, bem como sugeria experiências que envolviam o sensorial, como sentar em silêncio e tentar identificar sete sons diferentes ou caminhar vale a cima com os olhos vendados para ver o mar.

77 Uma dessas experiências era tomar banho no rio. É pedido que homens e mulheres se separem em dois grupos e fiquem vestidos somente com roupa de banho. Nós, mulheres, ficamos no pasto aguardando o que aconteceria, enquanto apenas escutávamos algumas palavras, às vezes gritos, como “Solta, solta, solta!”. O evento consistia em que cada um deveria deitar-se completamente numa água rasa, num solo de pedras, deixando somente o rosto do lado de fora, e fazendo o mínimo de movimento, permanecendo com o corpo submerso até Ehekateotl indicar o momento de sair. Pelo que escutei de comentários, Ehekateotl deitou-se primeiro, permaneceu um tempo, e, em seguida, de forma bem pontual orientava a dinâmica da prática: “Sem demora, sem demora!”.

78 Presenciei a parte das mulheres, entrando em duplas, diferentes manifestações: gemidos, gritos, choros, respirações ofegantes, silêncio. Pude notar que essas expressões eram bastante similares entre as duas pessoas que experimentavam simultaneamente, e se diferiam das manifestações das outras duplas. Quando cada um estava dentro da água, Ehekateotl orientava segundo a situação: “Agora, relaaaxa... relaxa”, “Sooolta....”. A água gelada num primeiro momento é cortante. Quando me deitei nas pedras tomou-me uma respiração rápida e forte enquanto sentia uma extrema pressão e dor na cabeça que, à medida que eu relaxava, foi suavizando com um formigamento que se espalhava por todo o corpo.

79 Algumas pessoas ao saírem da água caminhavam com dificuldade, apoiando-se nos demais – momentos esses em que Tlaloc auxilia. Depois de vestirmos os agasalhos, posicionamo-nos lado a lado na ordem estabelecida, de frente para Ehekateotl, com o bastão em mãos: predominavam cabeças erguidas e olhares longínquos, enquanto Ehekateotl discorria sobre a vida e a morte. Essa experiência foi bastante comentada durante o encontro, gerando narrativas nos rezos com o tabaco, em que se enfatizava: sensação de vida pulsando, o calor dentro do corpo, dormência, desespero, agonia, dor, chegar ao limite, ultrapassá-lo, e depois, estando fora da água, disposição, luz, serenidade, energia.

80 Ao final do “Encontrão”, quando nos preparávamos para partir, converso com Vitória e Brisa, perguntando como havia sido a experiência no rio. Elas preparam cada uma um tabaco, ao acendê-lo, Brisa começa me contando: (...) E... na experiência do riacho, naquela água não sei bem qual seria a temperatura dela, ...mas que ela devia estar assim, perto do zero graus, assim, você... se deitar na água gelada e suportar a temperatura que o teu corpo já estava, e... receber a temperatura da água foi assim como um reavivamento de tuas próprias sensações, né? Porque... você... ter uma vivência assim faz com parece que você acorde até, com o teu próprio corpo. Porque a sensação é diferente, assim. Porque se fosse uma outra situação, a gente fica sempre se bloqueando. Quando você se depara com uma situação dessa, você consegue perceber que aquele momento ali, se você se entregar realmente àquela sensação que teu corpo tá sentindo as coisas se tornam mais suaves, mais tranquilas (...) Depois quando eu levantei ali do meu espaço no rio eu senti assim que eu... eu não sentia mais o corpo. Eu fiquei assim... com um tempo com aquela sensação de não estar mais com o meu corpo, de tão gelado...(...)

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81 Pode-se perceber como Brisa interpreta essa experiência de corporalidade intensiva como um “reavivamento”, uma sensação de “acordar”, envolvendo também modalidades de anestesia, com sensações de “não estar mais no corpo”. Experiência essa em que um aparente mal estar, vivenciado na disposição da “entrega”, dá-se de forma “suave”, “tranqüila”, “sem reter”, “sem bloqueio”– postulando, portanto, outros modos de “bem-estar” que vinculam a transformação da noção de “eu”, que se dá, sobretudo, no sentir (ou não) o corpo.

82 Como observa Vargas, a partir dos estudos de Clastres em sociedades indígenas: a dor é também vista como um mecanismo para lembrar da existência do corpo. (Clastres, 1979, apud Vargas, 1998:130). Vitória relata que durante a experiência percebeu “claramente algo (...) que quer sair daquela situação (...) que pulsa, que respira e que se agita” – referindo-se ao corpo, e esse “ser”, que “percebe a sensação (...) e que não se agita, não sente aquela dor, e que pode dialogar com esse desespero”: (...) É como você observar um filme de você mesmo um filme do teu corpo se debatendo naquela água fria, até uma dor. Mas ao mesmo tempo você não é a dor. Porque você consegue observar essa dor, e você consegue se manter nela. (...) Isso me faz ver como em cada situação da vida, como a gente se identifica com a situação, às vezes com o desespero, com a tristeza, ou se identifica com a alegria... mas na verdade é só uma identificação. (...)

83 Podemos perceber como essas práticas atuam como modos de produção de corpos “(...) povoados por ondas de euforia ou de contemplação, por ondas de frio ou de calor, por ondas de cores, sons, ritmos, velocidades (...)”-em que a experimentação dessas intensidades envolve modalidades de “alter-ações” num universo intencionado, mobilizando novas formas de perceber e agir no mundo, que prezariam “não mais a gestão da vida por medo da morte, mas a gestão da morte por afeto à vida; (...) que a transforma em necessidade para a produção da vida, (...)” (Vargas, 1998: 133 ).

84 Como ressalta Vargas a partir de Illich: uma sociedade analgésica, em que se reduz drasticamente a capacidade de suportar a dor e o sofrimento, paradoxalmente, produz, a busca de experiências intensivas que dispõe de modos para incitar o sentir-se. As práticas rituais nesse contexto acionam experiências queproduzem modos de ser e estar no mundo, ao considerar que a incitação sensorial – sendo uma dimensão do “mundo das formas”- pode “distrair”, “adormecer”, “limitar”, mas quando experimentada em modalidades de diálogo e entrega em situações de “esticar o elástico” dos supostos limites corporais, indicaria o ponto de vista do “ser”, o “observador”.

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NOTAS

1. Ayahuasca é uma bebida de origem amazônica - preparada através da cocção de duas plantas, uma folha, de nome científico, Psychotria viridis, e um cipó, Banisteriopis sp. - quando ingerida produz estados modificados de consciência. 2. Utilizo nesse trabalho Ehekateotl, o nome que ele recebeu no Fogo Sagrado, e que significa “deus do vento” na mitologia asteca e em outras culturas meso-americanas (retirado do site www.wikipedia.org). Quando me referir a outros atores do movimento, estarei utilizando os nomes recebidos no Fogo Sagrado. Agradeço aos participantes do Fogo Sagrado pela colaboração na pesquisa, especialmente a Ehekateotl pela leitura atenciosa do artigo e seus comentários. 3. A NAC, Native American Church, é uma instituição da qual fazem partes diversos grupos, conjunto de igrejas e nações indígenas norte-americanas, e que foi criada, dentre outros motivos, para respaldar que determinadas práticas indígenas sejam realizadas sem a criminalização e perseguição a partir da intervenção dos órgãos legais – como o caso da “dança do sol” e dos rituais com o uso do peiote, um cacto de propriedades psicoativas de nome científico Laphopora wiliamsii, base comum de diversos grupos. 4. Mais detalhes desse encontro inicial e seus desdobramentos mencionei em outros trabalhos, dando destaque às narrativas de Ehekateotl sobre esse processo (Oliveira 2009-a, Oliveira 2009-b). Tais eventos também foram documentados pelas pesquisadoras Langdon e Rose (no prelo), num artigo em que apresentam as reflexões preliminares da pesquisa de doutorado de Isabel Santana de Rose sobre o uso da ayahuasca entre os Guarani. A respeito do encontro entre Ehekateotl e o líder espiritual Guarani, as autoras mencionam de que havia sido revelado a este, através de um sonho, uma profecia de que alguém iria chegar e “ajudá-lo a reerguer o povo Guarani e sua tradição” (Langdon e Rose, no prelo: 10). 5. O termo enteógeno foi convencionado para se remeter ao contexto de uso sacramental, ou seja, dentro de concepções e práticas rituais que se considere um vínculo com o sagrado, e é definido a partir de sua derivação do grego antigo como “aquilo que leva a alguém a ter o divino dentro de si” (Carneiro; Goulart; Labate, 2006:33). O termo “enteógeno” é utilizado recorrentemente na literatura científica, com um dos intuitos de evitar as distorções do termo “alucinógeno”, ou de termos de julgamento moral que endossam um suposto estado dito “normal”, como a idéia de “alteração da” consciência. Em uma conversa realizada no espaço Tempo do Vento em 2007 – em que o tema central era a busca da visão - Ehekateotl afirmava que a expressão “estado alterado” é equívoca, pois justamente o “despertar da consciência” se trata do processo de tornar-se menos alterado - o que nos sugere uma idéia relacionada a certo estado considerado essencial. 6. Nesse sentido, pode-se mencionar que o Fogo Sagrado dispõe de algumas “bolsas” para a participação de daimistas na “busca da visão” – para a qual, convencionalmente, pede-se um aporte de mil reais (o que pode ser avaliado segundo cada caso, ou mesmo haver exceções estabelecidas, como com os Guarani, que não aportam dinheiro). Em geral, o aporte do temazcal, conduzido por membros do Fogo Sagrado, é de trinta reais, sendo a participação no ritual da chanupa sempre gratuita. 7. Os nomes pessoais usados nesse trabalho são fictícios. 8. Aqui me refiro à noção de liminaridade desenvolvida por Turner (1974), a partir dos estudos de Van Gennep sobre os ritos de passagem, que são rituais que transformam status, papéis e posições sociais. Segundo Turner, a liminaridade dá-se na fase de transição de um estado para outro, sendo uma condição marcada por invisibilidade, ambigüidade, perigo, não-propriedade,

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relação eu-tu (inclusive com não-humanos), etc. e expressa-se em símbolos relacionados à morte, útero, escuridão, etc. Segundo Crapanzano, a condição liminal evoca perigo, ansiedade, terror e sugere possibilidades imaginativas que não estão a dispor no cotidiano, “(...) e pela evocação de realidades transcendentes, do mistério e de poderes sobrenaturais, o liminar nos oferece uma visão de mundo, que normalmente não enxergamos, cegados pelas estruturas usuais da vida social e cultural” (Crapanzano, 2005: 380). (Para uma reflexão sobre a busca da visão como uma experiência de liminaridade, ver Oliveira, 2009-a). 9. “(...)Hey a he hoara, Hey a he hoara, Heya he hoara, heya heoara (...) Hey a hey a hey a hey a hey a hey a he nananananana (...)” – esse canto dá-se de forma cíclica e atualmente é “puxado” nos rituais por distintas pessoas. Aqui vale notar que são poucas as referências ao termo “entidade” no Fogo Sagrado, e, nesse caso de Bela, poderíamos sugerir que essa experiência esteja relacionada ao fato de que ela freqüentava a Umbanda, uma religião afro-brasileira.

RESUMOS

Este artigo traz uma reflexão sobre um movimento espiritual conhecido como Fogo Sagrado e tem por objetivo delinear alguns elementos desse fenômeno, considerando suas práticas rituais (com o uso do tabaco, da ayahuasca, de saunas, danças e retiros em jejum) em termos do que Vargas (1998) chama de “corpos intensivos”. Segundo Vargas, a busca por experiências de corporalidades intensivas contrapõe-se à tendência contemporânea analgésica dos corpos. A partir da experiência em campo, buscou-se base nas reflexões de Vargas (2006), que analisa o uso urbano de psicoativos como “jogos profundos”, vistos como práticas e modos de engajamento que envolvem as substâncias como mediadoras para produção de “alter-ações” como “ações de outrem”. Foram delineados alguns dos sentidos atribuídos às “medicinas” no Fogo Sagrado, tais como a ayahuasca e o tabaco, buscando elementos para expressar como os sujeitos se relacionam com esses “espíritos” que são considerados como seres dotados de ação e intencionalidade.

ÍNDICE

Palavras-chave: neo-xamanismo, corpo, agência

AUTOR

ALINE FERREIRA OLIVEIRA

Graduada em Ciências Sociais pela UFSC em 2009, é atualmente mestranda na mesma instituição. Agradeço a Jean Langdon, por me incentivar a participar no evento Graduação em Campo, pela orientação e comentários sobre o artigo. Agradecimentos ao CNPq no apoio à pesquisa. Agradeço também a Isabel Santana de Rose pelos comentários ao texto.

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Os limites da tradução jurídica na inscrição da morte como experiência

Maíra Vale

“I’ll be free if I am able to be buried on this farm. I must not be separated from my parents who lie buried here” Farm Dweller, 2005 “We have democracy, but we are still oppressed. We don’t want to negotiate about our needs – they must to be rights” Farm Dweller, 2005

Apresentação

1 As epígrafes deste texto foram retiradas de cartazes produzidos pela AFRA (Association for Rural Advancement). As frases vêm combinadas a fotografias que tentam ilustrar a situação vivida pelos chamados farm dwellers na África do Sul. Podem ser observadas duas questões que envolvem e mobilizam estes “ocupantes de fazendas”: o direito de serem enterrados no território da fazenda onde vivem e o direito à reparação das violências e perdas advindas do apartheid. Tais citações e o próprio nome farm dweller são traduções de termos falados em Isizulu. Apesar da facilidade aparente dos significados que encontramos nos cartazes, a distância entre a imagem e as citações nos remete ao problema da tradução e da imputação de sentido às experiências distantes e diversas, formuladas em outras línguas, orientadas por outros sentidos.

2 Neste ensaio pretendo discutir os problemas que se apresentam quando este conflito entre farm dwellers (negros) e proprietários de fazendas (normalmente brancos) se dá nos tribunais, nos quais a inscrição das experiências passa a ser em uma linguagem jurídica dominada por profissionais falantes do inglês. Tais experiências estão relacionadas a funerais vividos por trabalhadores rurais negros, na região de KwaZulu-

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Natal, na África do Sul. Estas reflexões são fruto de um ano e meio de pesquisa bibliográfica1 e de trabalho de campo na referida região. Apresento aqui um diálogo entre a minha experiência de campo, a literatura antropológica e a leitura de documentos recolhidos na AFRA2 concernentes ao projeto KZN Legal Land Cluster3.

3 O trabalho de campo que fornece a base para este artigo foi realizado em fevereiro e teve a duração de um mês4. Na cidade de Pietermartzburg, no distrito de KwaZulu- Natal, tive contato com pessoas e organizações envolvidas na luta pela terra, especialmente com os processos jurídicos que envolviam o grupo referente ao projeto KZN Legal Land Cluster. Antes de começar a reflexão que aqui proponho, certas coisas precisam ser esclarecidas.

4 A questão da terra na África do Sul tem estrito vínculo com as relações raciais travadas no país desde o período pré-apartheid até os dias atuais.

5 Com os processos de segregação e limpeza racial da área rural, parte considerável da população negra foi removida para as periferias da cidade e lhes foi usurpado o direito à propriedade da terra. Através de atos (medidas legais em forma de decretos), o regime instituído segregava e transformava negros em não sujeitos, sem, portanto, direitos (Mamdani, 1996).

6 Oficialmente o regime do apartheid perdurou de 1948 a 1994. Nessas décadas e nas anteriores, foram forjados mecanismos que perpetravam a segregação. A atos como o Native Land Act (de 1913), que regulamentava a aquisição de terras por negros lhes restringindo o máximo de 13% do total das terras, foram se somando o Native Urban Areas Act (de 1923), que segregava a população negra para fora dos centros urbanos destinados aos brancos, o Natives Trust and Land Act (de 1936), que transformava os ocupantes, meeiros e arrendatários em ocupantes ilegais, sem direito às terras em que moravam e o Population Registration Act (de 1950), que classificava a população do país em quatro categorias raciais hierarquicamente concebidas: brancos, negros, coloured e indianos. Por fim, o Group Areas Act (de 1966), que estabelecia legalmente os planos espaciais de segregação racial nas áreas rurais e urbanas, sendo as townships urbanas – periferias das cidades, distantes do centro branco – locais destinados à ocupação exclusiva pela população “não branca”. Para garantir o controle dos trabalhadores negros, vistos de permissão (Pass) foram instituídos como necessários para sua locomoção e atividades de trabalho.

7 Quando o regime democrático foi alcançado no país, várias medidas de reparação passaram a ser tomadas. Em 1996, foi promulgado o Programa de Reforma Agrária (Land and Agrarian Reform, LTA), que buscava oferecer segurança e estabilidade no acesso à terra e sua posse, num processo de distribuição que visava maior igualdade. Nessas novas leis, categorias de direito foram criadas, como as de Labour Tenant e Occupier.

8 Um labour tenant é definido como alguém que reside ou tem o direito de residir em uma fazenda, podendo plantar alimentos e criar gado, assim como os avós, pais e a esposa que também morem ou tenham o direito de lá morarem. Se indicar alguém para trabalhar em seu lugar, a pessoa também pode ser considerada pertencente a esta categoria.

9 O Extension of Security of Tenure Act (ESTA), promulgado em 1997, define o occupier como sujeito que trabalha na terra para si, não possuindo nenhuma outra pessoa que trabalhe para ele além da sua própria família. Esta categoria exclui quem possui renda bruta mensal superior a R5000, quem tenha a intenção de utilizar a terra para fins

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industriais ou comerciais, quem não tenha consentimento do proprietário para morar na terra, sendo, nesse caso, considerado invasor.

10 Em 2001, a este ato (ESTA) foi adicionada a emenda que incluía o direito de um occupier de enterrar um parente que morreu, membro da família, nas fazendas onde ele reside dentro de certas condições. No entanto, este direito dos occupiers está atrelado à vontade do dono da terra. Caso o fazendeiro recuse o pedido, pode-se recorrer à corte para discutir acerca das razões do fazendeiro para a não autorização.

11 É neste cenário, a partir de experiências de morte e diante da necessidade de realização de funerais num contexto pós apartheid, que foram construídas as reflexões aqui apresentadas. No título deste texto aponto para a questão da tradução, que se faz necessária devido ao choque entre duas perspectivas: a linguagem jurídica e a experiência dessas pessoas que estão buscando resoluções para seus conflitos. A reflexão que aqui faço busca discutir algumas possibilidades de diálogo que este problema da inscrição jurídica suscita para as experiências antropológicas. Com essas pessoas, suas lutas e dilemas podemos repensar a noção de referencialidade segundo a qual para cada significante há um único significado, bem como conceitos equivalentes aos “nossos” na vida dos “outros”.

Experiência

12 Quando visitávamos um grupo de mulheres numa terra da missão católica St. Joseph5, Virginia Ngege respondeu a nossa pergunta acerca das mudanças em relação à época do apartheid dizendo que, apesar das coisas ainda não estarem perfeitas, ao menos era possível, agora, ver brancos sendo punidos e presos. No entanto, ao ser perguntada acerca do conhecimento de algum juiz ou advogado negro, sua resposta foi negativa.

13 Na mesma semana fomos à corte. O caso era da família Masikane, que sofria ameaças e armadilhas diárias do fazendeiro branco para que saíssem da terra por “livre” e “espontânea” vontade (evictions). A situação era bem conhecida pelos membros da ONG Church Land Program (CLP). David e, principalmente, Thulani estavam muito envolvidos com o caso, que já se desenrolava há anos. Aquela sessão era para resolver a questão da terra, mas dali um mês também estava marcado um tribunal criminal, num processo do fazendeiro contra a família, o qual alegava que dois membros da família haviam cometido atos de violência contra ele. Thulani, em todos os processos que acompanhamos, tinha sempre o papel de mediar a falta de compreensão e esclarecer ao máximo a todos o que estava acontecendo. Nas suas traduções constantes do inglês para o IsiZulu tentava preencher as lacunas da conversão de línguas e formas de pensar tão distintas.

14 Na hora em que chegamos ao tribunal vimos apenas o advogado da família, Terence, que era branco e pago pela CLP. Ao chegar atrasada, a família logo fez uma roda em torno de Thulani e do advogado. Este último sugeriu que todos entrassem na sala para conversar, demonstrando seu incômodo com aquela posição em roda, ainda que estivesse muito quente dentro da sala. Lá dentro ficou afastado da família por uma pequena bancada (a família dirigiu-se à ‘platéia’ da sala da corte). Ele e o assistente (também branco) sentaram-se nas confortáveis cadeiras de advogados. O advogado não parecia ter qualquer relação pessoal com a família, encontrando-a só nos tribunais. O

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restante do tempo era preenchido pela mediação de Thulani. Era evidente a falta de comunicação e os sentidos diferentes para as partes.

15 No dia do tribunal, o advogado comunicou sua posição em relação àquele acontecimento: na sua opinião, o julgamento devia ser postergado. Justificava-se dizendo que havia a possibilidade de perder o interdito de fala (por lei, tanto o fazendeiro quanto a família estavam impedidos de entrar em contato um com o outro), o que abria caminho para o contato do fazendeiro com a família. Para quem isso fazia sentido já que, mesmo sob o interdito de fala, o fazendeiro havia colocado veneno em suas casas na mesma semana? As pessoas saíram dali confusas, sem entender muito bem o que estava acontecendo, inclusive nós mesmos. O advogado esperara o dia do julgamento, o deslocamento daquelas pessoas da área rural à cidade, Durban, para dizer que achava melhor não ter julgamento...

16 Acerca das pessoas que vivem nas áreas rurais e passam por estes processos, Nomusa comentou: “They don’t deal with writing words.”

17 No dia seguinte à nossa volta, houve na CLP uma reunião de final de mês com os moradores da área rural que estavam fazendo um curso na universidade de KwaZulu- Natal. Nesta reunião, foi usado um recurso muito comum das ONGs: um facilitador, Mark (branco), cujo poder advinha não só da cor, como também da caneta na mão. Seu papel era o de conduzir a reunião, ou seja, escrever em um flip board (dinâmica comum no meio das ONGs) como os presentes deveriam se organizar. A discussão na reunião inteira, despertada por aqueles que ali estavam, versava sobre comunicação e explicitava justamente a falta de comunicação dentro da própria reunião, entre Mark e os demais. Este episódio foi bom para pensar essa dinâmica e o quanto quem tem o poder da escrita tem também o poder da organização, o papel de coordenar e facilitar a comunicação onde supostamente esta não existe, ou pelo menos não é suficientemente organizada.

18 Ao contrário de Thulani, que tentava sempre (de fato) facilitar o diálogo, Mark parecia parafrasear as experiências contadas pelas pessoas presentes na reunião para sua própria linguagem sem se importar se o que estava escrevendo no seu flip board era realmente o que estava sendo dito. O que parecia estar acontecendo ali era uma falta de comunicação resultante da não correspondência das falas daquelas pessoas com o esquema simplificado de tópicos de reunião expressos na língua inglesa.

Os limites

19 Nestes movimentos em prol dos direitos de estar na terra, aparecem as múltiplas dimensões e dificuldades que esse “estar” adquire – morar, criar gado, cultivar, enterrar os parentes falecidos nos graveyard6. Os movimentos de criação de projetos para suprir ações que supostamente deveriam ser do Estado e as decisões constantemente postergadas nos tribunais apontam para o fato de as leis existirem, mas das pessoas não conseguirem usufruir delas. Surge, então, uma questão: o que impede esse acesso?

20 Nas cortes e nas leis a língua falada e escrita é o inglês. Os tradutores que trabalham nas cortes enfrentam a dificuldade de traduzir uma língua supostamente “objetiva” para outra entendida como “metafórica”. A dificuldade de se entender o que está acontecendo dentro de uma lógica e uma língua que não é a língua materna implica um

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obstáculo a mais na luta pelo acesso às leis. O difícil diálogo entre os que vivem a lei – farm dwellers falantes de IsiZulu – e aqueles que a fazem em tribunais – juízes ou advogados, normalmente brancos – parte do fato de que os últimos não consideram os negros capazes de se organizar ou construir argumentos verossímeis pela falta do domínio da escrita e do inglês.

21 Nos documentos aos quais tive acesso em fevereiro (nos arquivos do Projeto Cluster) estavam contidos diversos processos relacionados a funerais. Os materiais que digitalizamos7 durante a nossa estada em campo são processos fechados (closed cases)8. Os casos de funerais (burials cases) tratavam do direito negado ao enterro ou do direito negado de se visitar os túmulos dos ancestrais, assim como do, também negado, direito de se colocar lápides em tais túmulos.

22 Neste trabalho, ao selecionar quais seriam os casos a serem digitalizados e trazidos ao Brasil, buscávamos entender o que era apresentado como causa de conflito. Esses papéis apontavam para uma forma específica de se narrar esses eventos através de formulários. Para ilustrar esta outra forma de tradução, que é a linguagem de formulários, destaco o caso já resolvido do conflito referente ao funeral de Doris Dlamini (conteúdo do arquivo de referência 02/02/2007).

23 Este evento foi também descrito por Borges (2007). Neste texto, a autora descreve três funerais que, após a posição contrária do fazendeiro, ocorreram graças à mobilização e resistência por parte do Landless People Movement (LPM)9.

24 Os formulários a que me refiro eram preenchidos quando chegava um reclamante à sede da AFRA, em Pietermartzburg, à procura de resoluções para os seus conflitos. Neste momento era dado um número de referência e preenchido um Referral Form com cinco campos. O primeiro dizia respeito ao tipo do caso, em seguida vinha o nome do cliente, número da identidade, telefone para contato e endereço físico. Depois, algumas linhas para se falar acerca da “natureza do problema”, para as informações de possíveis medidas tomadas que devessem ser conhecidas pelo projeto ou para algum pedido urgente. Por fim, um possível anexo e os dados da pessoa responsável pelo caso. A esse formulário os processos jurídicos são anexados. Como este caso foi resolvido “por outros meios” e não pela corte, esse formulário era tudo que havia no arquivo.

25 O formulário em questão tinha como tipo de caso a “transgressão de direitos, burial”. O reclamante era o pai de Doris, Babayi Dlamini e sua família. O conflito foi descrito em apenas duas linhas: “um membro da família morreu; o dono da terra John Mckenzie está negando ao cliente enterrar seu parente na fazenda”. Quanto à urgência ou medidas tomadas, havia informações acerca da vontade da família de que o enterro acontecesse no dia 10 de fevereiro (o processo foi aberto no dia dois deste mês) e que alguém estava preparando um pedido à corte.

26 Após o fechamento do processo, com ou sem resolução do conflito, era preenchido outro formulário (File Closure Form) com nome do cliente, referência do caso e o responsável. Neste documento havia um quadro para se marcar as razões de fechamento do processo. A opção aqui marcada foi: resolvido por outros meios. Depois era respondida a pergunta se o projeto foi capaz de atender ao cliente no que ele/ela inicialmente queria: “Sim, o cliente enterrou na fazenda depois de muita resistência do fazendeiro. Estratégia usada: envolvimento da mídia, do Department of Land Affairs e do Departmant of Agriculture”.

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27 Estas informações, disponíveis apenas nos formulários do Projeto Cluster, não mencionavam as cores, os cantos, as pessoas presentes que foram camufladas pela mídia e pelos departamentos do governo, mas que ali estavam e lá lutaram pelos seus direitos. Por estes meios, não se tem uma noção apropriada das repercussões que este funeral teve para os movimentos sociais. Esta escrita não consegue abarcar todo o envolvimento político das pessoas para que este evento acontecesse como uma bandeira de luta (cf descrito por Borges, 2007).

28 Este embate, já referido acima, entre duas formas de ver e viver o mundo, mostra os limites dessa linguagem tão acreditada do direito e dos formulários. A questão aqui é que, na linguagem jurídica, um fato - o funeral - acontece e a ele são atribuídos diversos valores (Latour, 2004): o jurídico, o religioso e o da família. No entanto, para cada uma dessas linguagens, o “fato” assume aspectos e sentidos distintos, sem necessidades de oposições precisas e pareadas. Uma das linguagens pressupõe que os valores são função dos fatos acontecidos e que a relação entre os fatos estabelecidos não permite modificar as “evidências jurídicas”. Para a outra linguagem (a da experiência) o fato não é uma evidência dada. Essas concepções diferentes acarretam dificuldades de diálogo entre os mundos em contato.

De categorias e categorizações: classificando

29 A transformação de experiências, que muitas vezes envolvem sofrimento, em linguagem jurídica já foi vivenciada na história sul-africana com as comissões dos Tribunais de Verdade e Reconciliação. No início do período democrático na África do Sul, estas comissões começaram o trabalho de registrar as graves violações aos direitos humanos, oferecendo anistia por meio da reconciliação e tentando reconstruir uma memória nacional num país profundamente dividido. Nas sessões públicas, se o condenado de violência durante o período do apartheid se dispusesse a contar a verdade voluntariamente, publicamente e perante a família das vítimas, recebia a anistia política. Tais tribunais davam ênfase à construção da harmonia nacional evitando apostar na punição dos ditos culpados.

30 Fiona Ross (2006) analisa a construção de uma memória coletiva do país através dos discursos nesses tribunais. Na sua análise, mostra a dificuldade (da linguagem dos membros) para entender o silêncio das mulheres acerca dos conhecidos abusos sexuais. Elas preferiam falar do sofrimento dos homens, deixando o seu imerso em silêncio, o que muitas vezes era interpretado como negligência. A idéia de construção da memória nacional passava por cima de sentimentos, emoções e silêncios dessas mulheres.

31 A busca pela reparação homogênea de um passado de violações reduz essas experiências individuais a uma linguagem que deixa muitos aspectos de fora. Através de categorias precisas que identificam um sujeito de direitos, a linguagem da lei (escrita e em outra língua) pretende uma homogeneidade que contempla somente direitos particulares. A África do Sul possui um sistema judiciário costumário10: cada novo caso praticamente enseja uma nova lei.

32 A mudança nas leis, após o período do apartheid, implicou uma mudança de categorias de classificação, como falado acima. Estas categorias criam identidades de direito e de luta. As epígrafes do texto foram encontradas como legendas de fotos na AFRA, slogans

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das lutas dos farm dwellers11, que falam dos direitos e não de necessidades: o direito à terra e de ser enterrado junto aos ancestrais.

33 Fonseca e Cardarello, em seu texto acerca da categoria de menor infrator no discurso da lei brasileira (de meados do século vinte até a de elaboração da constituição de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente), discutem como se forjam “os mais e os menos humanos”. A categorização seria, portanto, como uma reviravolta semântica. As autoras remetem-se ao discurso dos Direitos Humanos. Aqui pretendo abordar o discurso das leis: um processo jurídico e um fato são também uma construção social; não existem como uma objetividade em si. As categorias na legislação da África do Sul, como occupiers e labour tenants, são criadas para tentar dar conta do “costume” e tocar o real, mas não podem deixar de ser analisadas como “processos discursivos”.

34 A partir desta perspectiva, surgem questões para além daquela posta acerca das razões da impossibilidade de acessos às leis. Leis são criadas por alguém: quem? Em que língua? Como esta linguagem tenta discutir experiências importantes para a vida de cada um? Como falar de funerais, ancestrais e expressar uma lógica diferente da linearidade jurídica, numa língua que não é o inglês das leis? Como essa construção feita por outros, em outra língua, é sentida na lida diária por pessoas que vivem esses direitos que a lei tenta alcançar pela legislação do costume? Quais as implicações desta construção para quem busca soluções para estes conflitos?

35 A questão de categorizar, e categorizar através de conceitos, não é só uma questão de linguagem jurídica, aliás, é tema caro à teoria antropológica, que busca, pela classificação, atribuir sentidos às experiências. A experiência é encarada aqui como o momento do sentir e não ter linguagem para expressar o sentir (portanto, não ter significado, resposta ou teoria), enfim, quando o corpo – vivo, violentado ou já morto – reage diante do não entendimento, da falta de conceito.

36 Estes eventos que não ofereciam respostas para os paradoxos – e que evocavam entendimentos poéticos ao invés de conceitos referenciais – eram difíceis de ser explicados a partir de uma teoria social da representação, da tradução através de analogias. Leach (1983) e Lévi-Strauss (1958), em suas análises clássicas de mitos, buscavam soluções através da redundância para fugir de uma (re)apresentação da realidade.

37 O que nossas experiências etnográficas felizmente nos mostram é que um conceito não tem só uma forma de expressão. As idéias são coisas vivas e a verdade é uma composição de significados. Para o entendimento dito “racional”, o que não tem significado não tem linguagem. Isto não significa dizer, entretanto, que não se refira à experiência. A experiência é muito maior que o significado: sente-se, acontece e não se sabe explicar. Para Douglas (1991), a desordem possuía significantes infinitos, abrindo a possibilidade para se pensar em duas coisas “contraditórias” ao mesmo tempo. Esta reflexão nos permite ainda prestar atenção na não-linearidade, já que a linguagem sobre o tempo também não é a mesma. Quando falamos da relação com os ancestrais, passado, presente e futuro não fazem sentido de uma forma linear (Borges, 2008).

38 Como foi falado acima, as leis representam o costume, portanto o costume aparece como fonte da lei. No campo jurídico, a lei representa um consenso do que é certo; mas a lei é também (em outros campos) um campo de lutas, resultado de conflitos. As noções de indivíduo e substância como universais foram por Dumont (1997) rebatidas. Em seu livro clássico (sobre o individualismo), a segmentaridade é uma relação e o conflito é base para toda classificação. A noção de indivíduo joga a diferença para a

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teoria – de ordem classificatória. Quando se tem a igualdade como essência, a diferença se dá no plano da classe social, numa disputa entre essência e aparência. No entanto, nem toda classificação se faz por uma oposição que separa, e igualdade não significa necessariamente identidade. Na identidade encontra-se uma saída para esse dilema da desigualdade.

39 No processo de codificação que o mundo do direito faz, através da normatização da forma de falar, a inscrição em palavras pode corroborar a não mudança. É importante não tomar os conceitos como mais importantes do que nossos interlocutores, eclipsando-os, e perceber que esses são criados para dar conta das relações e não abarcam tudo. A grande questão aqui é como escrever essa oposição perene, entre os conceitos que se querem universais, na escrita da lei, e as pessoas que vivem os conflitos a serem solucionados.

40 O fato de descreverem o mundo de formas diferentes não faz daquelas pessoas seres passivos submetidos a um direito com o qual não partilham o sentido. Pela vivência diária com essas esferas, com esse direito, que ao mesmo tempo traz para si essas lutas e considera os direitos comunais, mas também os regula, categorizando e inscrevendo a experiência numa linguagem jurídica necessária e limitadora, acontece um diálogo, mesmo que não se dê necessariamente nos mesmos termos, como demonstrado nas epígrafes do texto.

Conclusão

41 Esta inscrição do costume no contexto sul-africano nos fala de como a “tradição” e a lei parecem estar imbricadas. Dependendo do tipo de antropologia que se pretende fazer, através da oposição entre tradição e modernidade, nos deparamos igualmente com as implicações que o contato e a mudança podem trazer para aqueles que crêem, ainda, em coisas do passado...12

42 Outra forma de resolver esta questão seria tratar da ressignificação do simbólico por aqueles que vivem essas experiências e lutam pelo direito à terra através da luta pelo direito ao funeral, em contrapartida com o simbólico da lei, da linguagem jurídica.

43 Mas acho que nenhuma dessas mágicas resolve.

44 O problema seja talvez a necessidade de ter que se falar de fatos ao invés de encontros, isso tanto nos discursos jurídicos como antropológicos. De se tomar os problemas dos “outros” como apenas sociais. Como nos adverte Strathern: “A linguagem analítica parece criar-se a si própria como cada vez mais complexa e mais distante das “realidades” dos mundos que ela procura retratar, e não menos das linguagens na quais os próprios povos as descrevem.” (2006: 32, grifos da autora)

45 Seria necessária a percepção de que não há, por um lado, um fato ao qual são atribuídos diversos conceitos e, por outro, um significante ao qual é atribuído determinado significado de acordo com o ‘contexto cultural’, mas que se tratam de duas diferentes formas de se pensar o mundo. Devíamos atentar para a advertência de Lévi-Strauss, para quem “os sistemas conceituais, que estudamos aqui, não são (ou não são mais que subsidiariamente) meios de comunicação; são meios de pensar, atividades cujas condições são bem menos estritas.” (1962: 89). Vale a pena insistir: não se tratam de mundos iguais que são conceitualizados de formas diferentes.

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46 Se, por um lado, são dois mundos distintos que significam de formas diferentes, que estão em constante contato e em certa medida se comunicam entre si, existem aqueles, como Thulani, que estão no meio destes mundos, vivenciando estas duas experiências, falando e vivendo processos e lógicas em inglês, assim como vivendo e falando experiências em IsiZulu.

47 Com Thulani aprendemos que esses dois mundos distintos não são apenas uma oposição.

BIBLIOGRAFIA

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DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. Lisboa: Edições 70, 1991.

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LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciencia na democracia. Bauru, sp: EDUSC, 2004, cap. 3, pp. 163-215.

LEACH, Edmund. “Nascimento virgem” & “O gênesis enquanto um mito”. In: Da Matta, Roberto (org.) Leach. São Paulo: Ática, 1983. Pp 116-138; 57-69.

LÉVI-STRAUSS, Claude. “A gesta de Asdiwal”. In: Antropologia Estrutural 2. Pp 152-205 ______. “A ciencia do concreto” & “A lógica das classificações totémicas”. In: O pensamento selvagem. Pp 19-55; 57-97, 1962.

MAMDANI, Mahmood. Citizen and subject. Princeton Unversity Press, 1996.

ROSS, Fiona. “La elaboración de una Memoria Nacional: la Comissión de Verdad y Reconcilliación de Sudáfrica”. In: Cuadernos de Antropologia social, nº 24. 2006: 51-68.

STRATHERN, Marilyn. "Estratégias antropológicas". In: O gênero da dádiva. Problemas com as mulhres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas: Editora da Unicamp, 2006: 27-51.

NOTAS

1. No segundo semestre de 2007, com o projeto de pesquisa financiado pelo Programa de Iniciação Científica (Edital 2007 PIBIC/CNPq/ UnB), intitulado ”Burials Societies: economia das lutas políticas na África do Sul”, terminado em julho de 2008; no segundo semestre de 2008, quando teve início outro projeto de pesquisa também financiado pelo Programa de Iniciação Científica (Edital PIC/UnB 2008), intitulado "Etnografia das formas de construção dos lugares

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para o corpo após a morte: um estudo de caso sobre o Distrito Federal à luz de uma comparação com a África do Sul", que estará finalizado em julho de 2009. 2. A Association for Rural Advancement é uma OnG independente que trabalha com direitos ligados à terra e reforma agrária na região de KwaZulu-Natal, África do Sul. O foco de seu trabalho são os trabalhadores rurais negros aos quais os direitos à terra têm sido negados. As situações de emprego são inseguras e o acesso à terra não é suficiente para suprir as necessidades básicas. Informações retiradas do site: www.afra.co.za. 3. O KwaZulu Natal Land Legal Cluster Project foi criado em novembro de 2001 em resposta à falta de acesso aos serviços legais do Estado por trabalhadores negros rurais que estão enfrentando problemas quanto à situação de terra, pela falta de acesso aos seus direitos e pelas forçadas expulsões (evictions). Este trabalho visava suprir a lacuna deixada pelo órgão do governo responsável pela defensoria, Land Aid Board. (DLAMINI BURIAL - A BRIEFING DOCUMENT). O projeto tinha como objetivo articular o governo e as pessoas envolvidas nestes casos, que buscam a defesa dos seus direitos de acesso à terra. 4. O projeto de pesquisa Acesso à terra e proteção de direitos humanos e sociais de mulheres: perspectivas comparadas sobre África do Sul, Brasil e Índia foi coordenado por Antonádia Borges (Departamento de Antropologia - Universidade de Brasília). 5. No dia 16/02/2009, Nomusa Sokhela – responsável pelo trabalho com mulheres e referentes à temática de gênero na ONG em que trabalha (Church Lan Program- CLP) – nos levou para visitarmos três diferentes grupos de mulheres que se reuniam semanalmente para conseguir algum recurso, advindo do artesanato, para sustentar a família, praticamente composta por crianças. 6. Locais de enterro nestas terras, onde estão os túmulos dos ancestrais. 7. Meus companheiros de campo Joyce Gotlib, Paula Monteiro e Fabrício Mello estavam vinculados ao mesmo projeto e são estudantes da Universidade Federal Fluminense. 8. Com ou sem resolução, mas que foram declarados fechados por aqueles que os administravam, quem trabalhava dentro da AFRA, com o Projeto Cluster. 9. Movimento dos trabalhadores rurais sem terra na África do Sul. Este possui, porém, características muito diferentes do Movimento dos Sem Terra brasileiro, desde a sua relação com o Estado, até sua força e institucionalização enquanto movimento. 10. Baseado no costume ao invés de em uma juridiscrição fixa. As leis surgem à medida que o costume necessita da criação delas, em contraste com certos sistemas jurídicos onde a lei pauta a realidade, sem exceções. 11. Os farm dwellers não são inseridos nas categorias de labour tenants ou occupiers descritos pela lei, mas são igualmente moradores das fazendas e, alguns, lá trabalham. 12. Para este tipo de debate, ver Geertz (1960).

AUTOR

MAÍRA VALE

UnB - Universidade de Brasília

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Flores e velas que falam no silêncio: perspectivas

Maíra Cavalcanti Vale

Gostaria de agradecer aos componentes da mesa do Graduação em Campo, Bianca Alves Silveira, Felipe Bier Nogueira, Ludmila Raquel Tavares da Silva e Raquel Basilone Ribeiro de Ávila, e ao debatedor Adalton Marques, assim como aos amigos que compõem o GESTA pelos comentários e sugestões que muito me ajudaram nesta revisão do artigo. Em especial, quero agradecer aos amigos e companheiros de vida e academia, Eduardo Nunes, Frederico Viana, Luísa Molina e Sara Morais, que comentaram e discutiram o texto; ao Du e à Sara, pela ajuda e sugestões quanto ao título; e à Luísa pelas fotos que expressaram muito bem a forma como nos inserimos no campo neste último Dia Finados. Agradeço, por fim, à Antonádia Borges pelo apoio de sempre.

1 A presente pesquisa começou no mês de agosto de 2007, como um Projeto de Iniciação Científica (PIC) do CNPq vinculado à UnB, sob o título “Invasões e Remoções: uma perspectiva etnográfica comparada acerca dos movimentos urbanos de luta pela terra no Brasil e África do Sul (com especial atenção ao caso das Burial Societies)”, inserido no contexto maior da pesquisa da orientadora Dra. Antonádia Borges, que vem sendo desenvolvida há dois anos na África do Sul. O objetivo inicial era realizar uma análise bibliográfica concernente ao campo da professora: as lutas por terras na África do Sul e as novas dinâmicas que envolvem rituais funerários como bandeiras e documentos nas restituições de terras naquele país. No entanto, logo em seguida, iniciei a disciplina Métodos e Técnicas em Antropologia Social e precisei definir um local de observação. Escolhi, então, o cemitério Campo da Esperança1, onde iniciei a coleta de dados que resultou no trabalho final da matéria: um ensaio sobre o Dia de Finados. A escolha do tema de pesquisa (a morte e como as pessoas lidam com ela) foi anterior à de um locus de observação, o que acabou trazendo certas dificuldades para a escolha de um campo específico somadas à problemática de se ‘sentir’ em campo ao observar o cemitério.

2 Nestes quase três anos de curso2, desde a disciplina de Introdução à Antropologia aprendemos que é preciso estranhar para entender. Decidir estudar a morte trouxe-me várias dificuldades. O fato de estar no cemitério e me colocar como pesquisadora me assustava e incomodava: como observar os outros, diferentes a cada dia, num momento tão delicado? Como fazer pesquisa em antropologia sem ter, no entanto, um espaço

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para o trabalho de campo? Tais dúvidas e cobranças me fizeram refletir acerca da própria antropologia e desses ‘primeiros passos’ que nos são ensinados ao longo do curso de graduação. Textos que falam do estranhamento do familiar e da familiarização do exótico, de grupos fechados que possuem as mesmas categorias e características despertam para a reflexão acerca dos pressupostos deste distanciamento necessário para o entendimento do outro, já que familiarização tem a ver com o movimento de aceitar diferentes formas sociais, independentemente de um envolvimento. Qual o caráter desta disciplina científica e em que se ancoram seus métodos?

3 Aprendemos que para fazer pesquisa necessitamos de métodos legitimados pela academia, precisamos ler vários autores para ter autoridade ao escrever e que o trabalho escrito final deve estar o mais próximo possível do ‘real’. Em nome da cientificidade de nossos projetos, da necessidade de legitimar nossa pesquisa como realizada através de métodos empíricos instituídos, perdemo- nos em entrevistas e recortes que acabam, muitas vezes, desconsiderando o que os próprios ‘nativos’ têm a dizer . Deixamos de lado, excluindo da pesquisa etnográfica, o que outras esferas da vida, outras formas de interpretação e conhecimento nos mostraram e que, em nome da racionalidade, do estranhamento e do distanciamento, não vimos. Esta necessidade de distanciamento e de cientificidade faz com que tomemos aquilo que nossos ‘objetos’ têm de social.

4 Ao lidar com outros grupos e outras formas de comunicação, muitos foram os antropólogos que apontaram para as dificuldades do nosso sistema de explicação, que é incapaz de apanhar a ‘segunda lança’ tão conhecida entre os Azande (EVANS- PRITCHARD, 2005). Histórias de apreensões das causas ditas por ‘nós’ como naturais, mas que não são capazes de explicar tudo, como o porquê do celeiro cair em cima das pessoas que estavam naquele momento sentadas embaixo dele, se já estava desgastado pelos cupins e poderia ter caído em qualquer outro momento3. Em relação à oposição entre os ‘nossos’ fatos reais, apreendidos através da visão e da observação, e as explicações mitológicas, Norbert Elias escreveu: A conveniência da combinação de observação sistemática e reflexão enquanto método para adquirir conhecimentos vantajosos depende do tipo de conhecimento que se considere vantajoso. Onde os indivíduos vivenciam o mundo como uma sociedade de espíritos – e a maioria dos dados sobre o que vale a pena indagar enquanto atos intencionais de agentes vivos – o alvo essencial das descobertas é a aquisição de conhecimento sobre as intenções e propósitos velados nos acontecimentos, os sentidos ocultos que os signos têm para o grupo. Esses, entretanto, não podem ser descobertos com a ajuda dos métodos que chamamos científicos, mas apenas, direta e indiretamente, pela comunicação com o mundo dos espíritos, no qual suas intenções e seus planos, seu caráter e seus objetivos se revelam.”(ELIAS, 1998:191)

5 Assim, apontavam-se os limites da nossa explicação científica quando confrontados por outras formas de conhecimento que explicavam o que nossos métodos não eram capazes de explicar. Enquanto se fala de alteridade radical (PEIRANO, 1999) é permitida tal explicação a partir da ‘crença’ de outros e dos ‘símbolos ocultos’ de determinados grupos, no entanto quando se passa para a análise de ‘nossa sociedade’ sem, contudo, apontar para a incrível diversidade contida nela, não se permitem tais crenças e as análises são perpassadas por estereótipos de individualismo4. Pois se a antropologia se desenvolveu buscando estudar outras sociedades de um ponto de vista a elas imanente, uma das dificuldades da disciplina, quando se volta para o estudo da sociedade do observador, parece ser sua incapacidade de manter

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simultaneamente o descentramento de perspectiva que sempre a caracterizou e a capacidade de dar conta das variáveis sociais efetivamente estruturantes. Assim, para ser fiel ao primeiro imperativo, busca- se por vezes, na sociedade do analista, fenômenos que apresentem alguma distância ou alteridade em face das forças dominantes.(GOLDMAN, 2003:466)

6 Procuram-se os outros internos e mais uma vez evoca-se o distanciamento necessário para o entendimento das ‘variáveis sociais efetivamente estruturantes’, buscando o não envolvimento. Ao mesmo tempo em que muitos antropólogos se permitem mais liberdade ao escrever acerca da ‘sociedade ocidental’ - esta liberdade advém do fato de nos acharmos conhecedores dessa ‘sociedade ocidental’ tão comumente posta sob o mesmo rótulo, mas que abriga ‘sociedades’ incrivelmente distintas em seu interior - falta o “não envolvimento” tido como existente nos estudos dos nossos exóticos.

7 Perdida nestas prerrogativas e contradições antropológicas, resolvi centrar meu relatório final do PIC em uma pesquisa bibliográfica. Ao decidir escrever sobre as representações da morte e como as pessoas lidam com a perda, mantive- me atenta a cada momento em que este assunto era discutido à minha volta. Discutir tais temas na mesa do bar e prestar atenção nas peculiaridades e anedotas que muitas pessoas contam não era mais a mesma coisa e, muitas vezes, cheguei em casa e anotei o que havia sido dito. Os poucos enterros de conhecidos a que fui, depois, também mudaram de perspectiva para mim. O receio de usar tais dados e apontá-los como etnográficos surgiu quando duvidei sobre o limite do eu como pesquisadora e do eu enquanto Maíra (se é que há alguma diferença). Estas vivências se encaixam na legitimidade acadêmica? Outro receio diz respeito à própria crítica, que fiz acima, de me achar por demais livre para falar sobre representações da morte e não delimitar a quem atribuí tais representações.

8 Fiquei atenta, assim, aos trabalhos antropológicos sobre o tema da morte, de uma maneira geral. Muitos estudos foram realizados a partir da concepção da morte como evento social, “como fato social e fenômeno cultural onde os ritos e cerimônias fúnebres organizados pela coletividade podem revelar as mudanças, as permanências e as contradições da sociedade.” (MORAIS, 2008:1). A morte é vista, então, como desordem, sendo o sepultamento um reordenamento social. É também tratada como um reflexo da visão de mundo que representa a mentalidade de uma época, segundo o historiador Michel Vovelle (1987). A análise perpassa desde estudos clássicos, como os de Philippe Ariés e Norbert Elias, até autores mais contemporâneos, como Mauro Koury e Isabela Morais. Os dois primeiros realizaram trabalhos sobre esta temática nas décadas de 70 e 80. Também na década de 80, José Carlos Rodrigues defendeu sua tese de doutorado em Antropologia Social, reeditada em 2006 na coleção Antropologia e Saúde e intitulada “Tabu da Morte”. Alguns destes trabalhos analisam o processo histórico das formas de se relacionar com a morte, suas representações e rituais. A escolha desta seleção específica de textos se dá por todos possuírem características comuns e partirem dos mesmos pressupostos teóricos para explicar a chamada ‘ocultação da morte’.

9 Norbert Elias (2001) escreveu sobre a solidão dos moribundos e seu isolamento social pela proximidade da morte. Philippe Ariés (2003) analisa o processo da relação das sociedades diante da morte no ‘ocidente’. Mauro Koury (2001) fala sobre a fotografia mortuária e como, aos poucos, esta prática foi sumindo na sociedade brasileira. José Carlos Rodrigues (2006) escreve sobre a construção da morte como tabu e como isso se deu através da individualização e da supervalorização da vida. Isabela Morais (2007, 2008) estuda, como ela própria chamou, o processo de empresarialização da morte, o

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consumo de produtos (jazigos, flores, urnas etc.) e serviços fúnebres (capelas para celebração de velórios, assistência na hora do luto, planos assistenciais funerários, tanatopraxia5 etc.).

10 Esses trabalhos apontam para a exclusão da morte que representa, segundo os autores, a finitude e a desilusão acerca do mito da imortalidade. Pautados na idéia de estudar a morte para aprofundar a compreensão da própria vida, estes autores analisam a vida a partir das representações da morte e como esta expressa a forma da sociedade lidar com emoções fortes, com o próprio fim e com o banimento da própria idéia de morte. A estratégia agora é “neutralizar os ritos e ocultar tudo que diga respeito à morte” (RODRIGUES, 2006:165). A sociedade age com a finalidade de apagar, dissimular e eliminar a morte e os mortos da vida social (MORAIS, 2008). Tanto os moribundos como os enlutados seriam isolados por representarem a morte e, por conseguinte, a própria morte de seus próximos, adquirindo um caráter de contágio. Elias descreve a dificuldade que os parentes dos pacientes terminais têm em lidar com os doentes: “O crescente tabu da civilização em relação à expressão de sentimentos espontâneos e fortes trava suas línguas e mãos. E os viventes podem, de maneira semiconsciente, sentir que a morte é contagiosa e ameaçadora; afastam-se involuntariamente dos moribundos.” (ELIAS, 2001:36-37) Koury explica a ausência de fotos dos mortos no mundo contemporâneo: Com a crescente atomização das relações sociais no Brasil, e a conseqüente privatização da subjetividade, a morte e o culto dos mortos passam por um processo de ocultamento. A dor da perda e o luto caminham para uma desclassificação social. Quando vivenciados e publicizados parecem ter o poder de contaminar o outro, como uma epidemia (KOURY, 2001:88-89).

11 Os cemitérios deixam de ser percebidos como locais fúnebres, exercendo a função de dissimular uma realidade: a morte e os mortos. São criados cemitérios-parque que se diferenciam do tradicional modelo de cemitério: simplificados e sem grandes túmulos e sepulturas, caracterizam-se pela proximidade dos jazigos e pelo ideal de ‘otimização do espaço’6. Os rituais funerários, como explicam os autores, também parecem perder um certo sentido: “Os rituais seculares foram esvaziados de sentimento e significado; as formas seculares tradicionais de expressão são pouco convincentes. Os tabus proíbem a excessiva demonstração de sentimentos fortes, embora ela possa acontecer.” (ELIAS, 2001:36)

12 Tudo isso está relacionado ao processo de higienização e medicalização. No que diz respeito aos tratamentos de saúde, os cuidados são transferidos da esfera familiar para os hospitais, e os parentes, desprovidos da capacidade de cura, podem não sentir vontade de lidar em casa com seus doentes. O trato dos cadáveres e sepulturas também é passado para as mãos de empresas privadas. “Observa-se que numa sociedade de culto ao corpo e da busca pela eterna juventude, um corpo morto abala a representação simbólica que a sociedade estabelece com o corpo humano” (MORAIS, 2008). O fato é que o processo de medicalização da vida contribuiu para a repulsa em relação à manipulação dos cadáveres. O corpo morto tornou-se intocável e a família já não suporta mais lavar, banhar ou vestir um morto. Esses ritos domésticos tornaram-se dolorosos, pois o que se teme na morte é exatamente o que ela tem de morte (RODRIGUES, 2006: 61).

13 Para finalizar este breve panorama acerca dessas teorias, trago aqui um parágrafo da conclusão de Rodrigues, que embora faça uma análise particular mostra o caráter social da morte e a maneira característica dos viventes lidarem com ela a partir de uma representação de poder e controle social: Tão importante é para o poder o banimento da morte e dos mortos que, em uma sociedade em que tudo se transforma em mercadoria, é significativo que o ‘após

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morte’ escape a este destino. De fato, após os funerais, o esquecimento de que são vítimas os mortos fazem deles fracos consumidores: as visitas vão se tornando cada vez mais esparsas e o consumo de que os mortos são responsáveis vai diminuindo com o tempo. É que este próprio esquecimento é condição de funcionamento do sistema: há uma incompatibilidade absoluta entre os valores da economia industrial e a aceitação da morte.”(RODRIGUES, 2006: 246-247)

14 A necessidade do distanciamento e da cientificidade faz com que as teorias tomem o que seus ‘objetos’ têm de social, muitas vezes deixando para trás características encontradas na esfera das emoções ‘individuais’. Encarar a morte como uma dimensão do poder e da economia não permite a percepção dos meandros das transformações que o desaparecimento de um ente querido acarreta nas vidas de algumas pessoas. As dinâmicas atuais atribuem à morte diversos significados que antes não lhe eram característicos, como por exemplo a influência das esferas de lutas políticas e econômicas no local de enterro do corpo. Na África do Sul, além de lutar pelas terras, os movimentos políticos reivindicam o direito dos negros serem enterrados em fazendas de brancos. O ritual e os ossos dos ancestrais transformaram-se em documentos e bandeiras de lutas. Aqui no Distrito Federal, os seis cemitérios foram privatizados e estão sob a administração da empresa Campo da Esperança Ltda., que está envolvida em vários processos de investigação de corrupção, para os quais foi criada a CPI dos Ossos. Tais teorias dão conta, de certa forma, desta tendência de politização da morte. Mas essas outras significações não fazem com que ‘as lágrimas sequem’, para usar uma metáfora de Antonádia Borges (2007) em relação a uma das lideranças do LPM (Landless People’s Moviment), da África do Sul, que afirma sempre chorar em velórios, seja de parentes ou de outros em que participou em consequência da atividade da militância. Estes processos econômicos e políticos não destituem o processo de morrer e os rituais funerários das emoções e sentimentos vividos por aqueles que deles participam. Diminuir e ocultar o processo da morte em prol do ‘sistema’ é deixar de lado nuances que a etnografia e a proximidade com as pessoas nos trazem.

15 O trabalho de campo etnográfico, realizado no cemitério Campo da Esperança no Dia de Finados, 2 de novembro, nos anos de 2007 e 2008, mostra um pouco desta proximidade com as pessoas de que falei acima. Ao andar pelo cemitério, principalmente nestas áreas-parque (foto 1) - citadas como mais um fator que destituiria a morte de sentido: sem sepulturas, há apenas lápides e lamparinas – percebe- se que para aquelas pessoas a morte tem sentido. Muitas se preparam para este dia: levam várias flores e velas, material de limpeza, cadeiras para se sentar ao redor das lápides (foto 2), enfeites (anjos, vasos), terços, sombrinhas ou guarda-chuvas, fazem camisetas estampadas com fotos de quem já se foi, mandam fazer faixas com mensagens aos mortos. Aquilo que foi descrito como estratégia econômica de ‘otimização’ do espaço é (re)significado por estas pessoas: no lugar onde deveria estar a sepultura, agora há flores delimitando o espaço do corpo faltante (foto 3) ou corações desenhados com pétalas em frente à lápide (foto 4).

16 Tais peculiaridades demonstram dimensões que estão além de nossas teorias, carregadas de sentimentos, emoções e humores indizíveis, que Crapanzano colocou como as dimensões ensombreadas da existência social e cultural que nós, antropólogos, costumamos encontrar, de um jeito ou de outro, e que tendemos a afastar de nosso trabalho ‘sério’, como se embaraçados pelo mistério, pelo perigo e pela iminência, a proximidade do que presumimos ser o irracional ou, no mínimo, o efêmero. (2005: 357)

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17 A morte parece estar muito próxima desta esfera do mistério, do irracional e do efêmero: “é difícil encontrar o tom apropriado para recontar o indescritível, o inominável, o que não pode ser narrado. Somente alusões e metáforas permitem reviver a morte em seu processo, ao desvendar sua espera” (LEITE 2001: 41). Na linguagem moderna pretensamente racional, é difícil descrever cientificamente esses campos, principalmente quando ligados às expressões de sentimentos intensos, tornando-se mais fácil admitir sua inexistência na ‘sociedade ocidental’.

18 Os trabalhos analisados partem de um estudo diacrônico da morte, comparando as representações atuais às do passado, bem como do processo de ocultação da idéia de morte. No entanto, não percebem ou não legitimam as formas de expressão de sentimentos relacionados à morte que as pessoas vivenciam hoje, quando a morte ganha significados econômicos e políticos que ultrapassam o modo tradicional de se lidar com ela, mas não a destituem do sentir, expresso em ações como as descritas acima em relação ao Dia de Finados.

19 Ao escrever sobre os limites da linguagem através da análise de um conto, Valéria Martins descreve a nossa dificuldade em lidar com processos que despertam tensões indizíveis: Ao lidar com a morte, o amor, a violência extrema e outros inomináveis, alguns sentimentos e emoções ainda desconhecidos por estas pessoas passam a existir para elas. Assim, parecemos chegar a dois limites: 1) um, relativo à (não) possibilidade lingüística tanto da pessoa “etnografada” dizer sobre o que passa a existir para ela a partir dessas experiências quanto a do(a) etnógrafo(a) dizer - ou escrever - o que a pessoa “etnografada” (não) disse e, 2) outro, o do questionamento nas ciências sociais sobre o quão pertinente pode ser ouvir um indivíduo sobre seus sentimentos e emoções (além da disposição do cientista social em fazê-lo). O que parece estar acordado é que isso deve ocorrer considerando-se os sentimentos e emoções como aspectos sociais da pessoa, ou seja, tendo em vista que essa pessoa nos interessa na medida em que ela é também (ou somente, nessa perspectiva) social. (MARTINS, 2008: 10)

20 Lidar com temas e ‘objetos’ que perpassam essas esferas intangíveis é um desafio para a Antropologia e sua linguagem, pois mostra a importância de estar atento a esferas explicadas pelo ‘mundo dos espíritos’, segundo Elias, presentes nas ‘realidades’ analisadas por nós, mas que muitas vezes escolhemos não mencionar, tanto em estudos sobre as sociedades complexas quanto sobre os ‘outros’ que achamos capazes de compreender: “talvez fosse preciso (re)configurar uma linguagem antropológica que possa experimentar aproximar-se do que é insondável ou inapreensível no “real”, reconhecendo essa intangibilidade mas ao mesmo tempo tentando, de algum modo, tocá-la.” (MARTINS, 2008: 10)

21 Termino, assim, inspirada pelas palavras de Valéria Martins. Talvez fosse necessário tentarmos alcançar o intangível em nossas etnografias. Para tanto, a observação e a descrição da cena, como quer Crapanzano, ou dos silêncios, como sugere Martins, dizem muito mais do que a expressão através de palavras. Estar no ambiente e perceber (sentir) o que ele tem a nos dizer torna mais tangível o acesso às pessoas em situações em que as entrevistas não são possíveis. Como sugere o título deste artigo, as flores e as velas no Dia de Finados me disseram muito sobre quem as colocou lá: a maneira como foram colocadas, a quantidade, o cuidado, o preparo e a organização para ir ao cemitério neste dia, falam do sentido (faltante nas obras analisadas) da morte de pessoas próximas para aqueles anônimos.

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BIBLIOGRAFIA

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BORGES, Antonádia. “Mats, blankets, songs and flags: ethnography of the politics of funerals in contemporary South Africa”, no prelo.

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EVANS- PRITCHARD, E.E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

GOLDMAN, Márcio. Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos. Etnografia, antropologia e política em Ilhéus, Bahia. In: Revista de Antropologia, São Paulo,vol. 46, nº2., 2003:445-476

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LEITE, Miriam. Morte e Fotografia. In: KOURY, Mauro (org.). Imagem e Memória: Ensaios em Antropologia Visual. Rio de Janeiro: Garamond, 2001: 41-50.

MARTINS, Valéria. A nominação do mal: Antropologia, Literatura e os limites da linguagem. In: Reunião da Associação Brasileira de Antropologia, 26, 2008, Porto Seguro, Bahia.

MORAIS, Isabela. Quando o campo é um espaço privado: o cemitério. In: Reunião Equatorial de Antropologia, 2007, São Cristóvão, Sergipe- Brasil. ______.Significado do corpo e o sentido do consumo fúnebre. In: Reunião Brasileira de Antropologia, 26, 2008, Porto Seguro, Bahia. PEIRANO, Mariza. A Alteridade em Contexto: A Antropologia como Ciência Social no Brasil. In: Série Antropologia 255. Brasília, 1999.

RODRIGUES, José Carlos. Tabu da Morte. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.

VOVELLE, Michel. Sobre a Morte In: Ideologias e Mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987.

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ANEXOS

ANEXOS :

Foto 1: Áreas parque no cemitério Campo da Esperança. Note-se a proximidade das lápides, a ausência das sepulturas e o uso de lamparinas ao invés de cruzes. (por Luísa Molina)

Foto 2: Pessoas em volta de uma lápide no Dia de Finados, levaram cadeiras de plástico e guarda-chuvas para passar o dia. (por Luísa Molina)

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Foto 3: Delimitação do espaço faltante da sepultura com flores. (por Luísa Molina)

Foto 4: Desenho de coração em frente à lápide. (por Luísa Molina)

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NOTAS

1. O Campo da Esperança é localizado no final da Asa Sul, local nobre do Distrito Federal; além deste há mais cinco cemitérios no entorno do Plano Piloto. É um cemitério dividido em quadras e bem organizado em setores, possui sepulturas comuns e as recentes áreas parques (que serão explicadas mais adiante), difere, no entanto, dos cemitérios da capital paulista repletos de mausoléus, grandes construções e obras de arte. A estrutura do cemitério pode ser bem representada ao se pensar que ele está em Brasília, de acordo com o projeto arquitetônico modernista da cidade pode-se compreender como o cemitério é dividido em setores e quadras, tal qual a cidade. 2. A partir da minha entrada na universidade em 2006. 3. Aqui faço referência à obra clássica de Evans- Pritchard que trata da bruxaria entre os Azande. No caso, esta é uma das famosas passagens do livro que contrapõe a teoria da magia azande e a nossa explicação das causas naturais: quando um celeiro cai num dia de sol em cima de algumas pessoas. Um zande perguntaria por que caiu em cima daquelas pessoas específicas, enquanto ‘nós’ nos contentaríamos com a explicação do desgaste pelos cupins. 4. A referência ao individualismo aqui tem a ver com as obras que serão discutidas adiante que tratam do processo de negação da morte, imposto pela sociedade atual que gira em torno do indivíduo. 5. Conjunto de meios técnicos utilizados para a conservação de cadáveres. 6. As áreas parque faladas acima e que serão exploradas adiante também possuem essas características, como o cemitério Campo da Esperança apresenta essas duas formas de enterro, não é caracterizado como cemitério parque, mas possui tais áreas.

AUTOR

MAÍRA CAVALCANTI VALE

Graduanda em Antropologia - Universidade de Brasília (UNB)

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Os bolivianos na periferia de Guarulhos

Ana Lídia de Oliveira Aguiar

1 Meu interesse pela imigração boliviana no Brasil iniciou-se no primeiro semestre de 2007. Entre os motivos encontravam-se, principalmente, a variada composição étnica dos bolivianos e sua forte ligação com as raízes indígenas. A princípio, o trabalho tinha como espaço de pesquisa a cidade de São Paulo, mas ao circular pelas ruas próximas ao Campus da UNIFESP (localizado no bairro dos Pimentas, onde também fui viver depois de ter saído do interior paulista para cursar a universidade) percebi que a presença boliviana ali era muito expressiva.

2 A região do Pimentas, periferia da cidade de Guarulhos, faz fronteira com São Miguel Paulista, por sua vez bairro periférico de São Paulo. Caracteriza-se, em seu processo de formação, pela presença de migrantes que saíram de diferentes lugares do Brasil, principalmente da região Nordeste. Na última década, com o aumento dos fluxos de imigração de países vizinhos, tornaram-se perceptíveis mudanças de costumes, hábitos e linguajar no cotidiano dos moradores desse bairro. Diversos grupos de brasileiros, bolivianos, peruanos etc. começaram a mudar a já heterogênea paisagem cultural do bairro dos Pimentas e a construir novas fronteiras.

3 Como esta região é muito abrangente, foi importante fazer um recorte espacial. Assim, concentrei-me nas áreas próximas ao Parque Stella (onde vivo), Marcos Freire e “Pimentas”1, onde se localiza a Unifesp. Na transversal da rua onde moro, vive uma família de imigrantes bolivianos. Quando saio com destino à Universidade, deparo-me com três crianças que ficam brincando na garagem de sua casa. Se vou em direção à papelaria, encontro um casal de bolivianos indo buscar a filha na escola. Ao pegar carona com uma colega, vejo um casal falando uma língua diferente, com traços físicos tipicamente indígenas das montanhas bolivianas.encontro-me com o “outro”. Fazem parte do meu cotidiano e do de todos aqueles que moram na região, assim como “nós brasileiros” fazemos parte do cotidiano deles.

4 Com essas imagens em mente, após algumas leituras sobre o fenômeno da imigração recente em São Paulo, visitas à feira boliviana na Praça Kantuta2 e o constante contato

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com estes imigrantes nas ruas do bairro, comecei a pensar na importância de um trabalho sobre os bolivianos na periferia, tendo em vista o caráter específico que o local possui. Também poderia estar ocorrendo uma nova tendência: o deslocamento dos bolivianos do centro da cidade de São Paulo para aquela área da periferia de Guarulhos.

5 Antes de discorrer sobre minhas interpretações no que tange à imigração boliviana, é preciso ressaltar as dificuldades encontradas para iniciar o trabalho de campo e, principalmente, manter um contato regular com estes imigrantes. Eles se resguardavam e ficavam com receio de falar comigo quando lhes procurava para conversar. Mesmo depois de dizer que não se tratava de uma pesquisa sobre trabalho e documentação – assuntos temidos por imigrantes ilegais –, alguns ainda não se sentiam bem com minha presença. Quando aceitavam falar, raramente me deixavam gravar nossa conversa. Assim, para quebrar algumas barreiras, sempre carregava comigo a cópia de meu projeto e uma revista sobre os cinquenta anos da imigração boliviana em São Paulo publicada pela Pastoral do Migrante. O local onde mais encontrei abertura para conversar com meus interlocutores foi na feira dominical que acontece no Marcos Freire, talvez porque no momento da venda seja preciso estabelecer uma comunicação mais ampla para comercializar o produto.

6 A imigração boliviana em direção à região metropolitana de São Paulo vem de longa data – mais ou menos a partir da década de 50 –, mas foi na década de 80 que este fluxo migratório ganhou intensidade3. De lá para cá muitas mudanças ocorreram. O perfil do imigrante boliviano passou por uma diversificação ao longo dos anos. Se antes o maior contingente era proveniente de indivíduos com formação acadêmica e o objetivo era atuar nas respectivas áreas de formação, hoje o nível de instrução educacional decaiu e aqueles que para cá se dirigem vêm em busca, principalmente, das oficinas de costura.

7 Para melhor compreender as especificidades do modo de vida dos bolivianos na periferia de Guarulhos e a construção de identidades neste contexto particular passei a questionar alguns imigrantes que anteriormente viviam em São Paulo e agora vivem em Guarulhos sobre o porquê da escolha da região do Pimentas e as diferenças entre viver lá e aqui.

8 Para um dos imigrantes entrevistados, as diferenças não são muitas, pois a atividade de trabalho é a mesma. O que distingue os dois lugares é que no bairro dos Pimentas há mais oportunidades de lazer e o campo de trabalho é maior. Este fator me pareceu muito interessante, pois, ao longo das conversas com os imigrantes, percebi que, nesta região, as oficinas parecem obedecer a um regime familiar, diferentemente daquelas descritas pelos meios de comunicação e por alguns estudiosos deste grupo de imigrantes na metrópole paulista. Nos bairros centrais de São Paulo, os bolivianos vivem em um “regime de semi-escravidão”. As condições a que estão submetidos são questionáveis, além de serem proibidos, muitas vezes, de sair da própria oficina. Ao que parece, a constituição de oficinas em outros locais foi uma alternativa encontrada pelos imigrantes a fim de tornar o trabalho mais digno frente às condições em que vivem outros compatriotas.

9 Esta situação pode não expressar necessariamente um deslocamento do centro à periferia, mas um crescimento da presença boliviana no bairro, já que vários imigrantes entrevistados vieram da Bolívia direto para Guarulhos, demonstrando haver laços bem firmados nas redes de sociabilidade existentes entre eles. Embora não existam dados oficiais sobre o número de bolivianos que vivem no Pimentas, o relato de um senhor boliviano sobre a presença de seus compatriotas na região pode demonstrar sua

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expressividade. Para ele, muitos estão aqui desde a infância. Porém, segundo outro boliviano – dono de uma barraca na feira – a presença de seus compatriotas na região se tornou mais expressiva de uns oito anos para cá. É digna de nota a presença de várias barracas bolivianas numa feira dominical, como a localizada no Marcos Freire, bem como a circulação seja para fazer compras ou para passear.

10 Vários imigrantes são reconhecidos socialmente por meio de estigmas atribuídos pelos “estabelecidos”. Além disso, não existem enquanto cidadãos para o Estado brasileiro, pois são “indocumentados” ou clandestinos. A partir dessas situações, vividas por muitos imigrantes, estes constroem estratégias de sobrevivência, “organizam-se socialmente, recriando os seus valores culturais em vista de uma nova imagem social de si mesmos” (SILVA, 1995:14).

11 Quando há o deslocamento para outro contexto – neste caso da Bolívia ao Brasil – vários elementos da cultura de origem são acionados na tentativa de construção de uma auto- afirmação enquanto boliviano. Todavia não podemos falar de uma “importação” da cultura. Ocorre, mais propriamente, o que Ulf Hannerz (1997) chama de hibridismo, ou seja, uma aproximação, combinação e (re) significação dos símbolos destes imigrantes com os da cultura local, contribuindo para novas formas de identidades e de diferenciação social. Grande parte do cotidiano da Bolívia fica na memória. Os indivíduos incorporam valores, modos de viver e de vestir, mas que adquirem tonalidades expressivas no contraste com o “outro”. Não é muito difícil andar pelas ruas e encontrar um boliviano com uma camisa da Bolívia, um carro com bandeirinhas do país ou referências à libertação dos povos andinos4. Além disso, por mais que se assemelhem às maneiras de se vestir dos brasileiros com o objetivo de diminuir os estigmas, ainda há adornos característicos, como por exemplo, os chapéus de chollitas e lenços coloridos.

12 Como são imigrantes, não compartilham simbologias e hábitos brasileiros em sua totalidade, ou seja, suas diferenças acarretam olhares de condenação por parte de alguns nativos da região. Como uma forma de autodefesa em relação aos preconceitos e estigmas atribuídos aos imigrantes, penso que procuram se auto-afirmar como bolivianos, principalmente ao se encontrarem nas ruas com outros compatriotas. Na medida em que na Bolívia há diversos grupos étnicos, quando transpomos esse cenário para outro contexto nacional o que encontramos parece ser a identificação do “ser boliviano”. Acredito que haja uma tentativa de construção de uma singularidade nacional em oposição ao “outro” (seja o brasileiro ou outros latino-americanos), fruto do sentimento de pertencer a uma mesma cultura, uma mesma nação, ampliando as fronteiras étnicas originais. Algumas características que remontam ao contexto de pluralidade étnica nacional não se evidenciam de forma tão expressiva no Bairro dos Pimentas. Todos aqueles com quem conversei afirmaram não pertencer a nenhum grupo étnico, porém quase todos falam ou compreendem línguas indígenas que advêm desses grupos. Entretanto, o que se evidencia na Bolívia e se reflete neste contexto de imigração é a sobreposição de grupos com diferentes níveis de poder econômico, como foi possível observar nos plebiscitos ocorridos naquele país no ano de 20085.

13 Esta situação pode estar marcada por um tipo de “centralidade” do mundo do imigrante, que estaria vinculada à imagem estereotipada que os cidadãos do país receptor atribuem aos novos moradores.

14 O centro, ou melhor, a centralidade estaria ligada à construção de uma identificação neste novo cenário. Observando a imigração boliviana no Brasil, percebo que este “jogo

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da centralidade” (MACHADO: 2004) possa estar presente. Por mais que estes imigrantes tenham (re)construído suas identidades em outra nação, há um enorme cuidado com a cultura que trouxeram consigo do país de origem, por exemplo quanto à questão da vestimenta e da utilização das línguas indígenas. Entretanto, os elementos de diferenciação étnico-cultural podem ao mesmo tempo ser fatores de afirmação da identidade nacional em um contexto interétnico e também de discriminação por parte dos brasileiros e entre os próprios imigrantes.

15 Outra característica que pude observar, e que talvez esteja inserida nesta centralidade, é a questão do trabalho. Muitos imigrantes desempenhavam atividades de trabalho diferenciadas na Bolívia, alguns, inclusive, com formação acadêmica. Mas ao se deslocarem para outro contexto, neste caso a região do bairro dos Pimentas, parece ter ocorrido uma concentração nas funções relacionadas à costura. Mesmo aqueles que não trabalham diretamente com costura, vão às feiras a fim de venderem o que é produzido por seus parceiros.

16 Ademais, a presença de crianças e mulheres grávidas se faz muito expressiva. É provável que muitas crianças já tenham nascido no Brasil, mesmo que o português falado por elas não seja muito claro, já que parece muito mais um “portunhol” carregado. Talvez seja uma estratégia dos imigrantes para permanecer no país, já que uma forma de conseguir os documentos oficiais é se casando ou tendo um filho na nova “pátria”.

17 Outro elemento interessante é a língua. Muitos imigrantes que se encontram na região há muitos anos, ou aqueles que vieram ainda crianças, preservam a língua como elemento demarcador de diferenças e de identificação étnica. Quando estão entre eles, não hesitam em usar a língua materna, mas ao estabelecer relações comerciais esforçam-se para serem compreendidos, embora muitas vezes não obtenham grande êxito.

18 O que percebi foi o reconhecimento de um indivíduo como pertencente a determinado grupo, o qual é reconhecido pelos demais, na medida em que se utiliza de alguns elementos diacríticos. Durante minhas observações, noteiue estes imigrantes não necessariamente se conhecem, mas se reconhecem, uma vez que compartilham símbolos, valores, hábitos e gostos semelhantes como membros de uma nacionalidade, havendo também o reconhecimento da divisão de grupos internos. Segundo DaMatta (1985), as diferenças não são demarcadas somente “entre” grupos sociais, mas também internamente.

19 Ao cruzar fronteiras, várias mudanças ocorrem na vida do imigrante. Seu cotidiano não é mais o mesmo da Bolívia e o espaço no qual está inserido pode implicar numa ritualização das identidades que o acompanham aonde quer que ele vá, seja no seu local de trabalho, no lugar onde vive, ou simplesmente no caminho que percorre para fazer qualquer atividade rotineira. Neste mesmo sentido, o tempo e o espaço, como categorias culturais, também sofrem alterações.

20 O que se observa no caso da periferia de Guarulhos é uma temporalidade que segue a lógica do regime capitalista, a qual rege as relações econômicas no país, mas com algumas peculiaridades: se os imigrantes trabalham dezoito horas na metrópole paulista, no bairro dos Pimentas parece haver uma delimitação de horas de trabalho, além do estabelecimento de dias de folga. Segundo alguns imigrantes, eles trabalham, muitas vezes, de modo semelhante ao do país de origem, porém, diferentemente

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daquele outro contexto, há a possibilidade de conseguir adquirir bens materiais em menos tempo, bem como de desfrutar atividades de lazer.

21 Na medida em que o bairro dos Pimentas está afastado do centro da metrópole, é preciso utilizar o espaço de maneira criativa para que o lazer seja proveitoso economicamente e se obtenha melhor qualidade de vida. Esta situação se reflete na concepção do espaço, ou melhor, no uso que fazem do espaço urbano e na percepção que têm da construção de fronteiras, sejam elas geográficas ou simbólicas. Deste modo, como os espaços são socialmente construídos, as ações dos indivíduos são formadas pelas relações sociais. Considerando que os indivíduos participam de mais de um grupo social, ou seja, ao mesmo tempo é um imigrante boliviano e também um trabalhador, neste sentido podemos considerar que esses trajetos por ele percorridos acarretam trocas para além dos códigos específicos de um determinado grupo.

22 A circulação dos imigrantes bolivianos nas ruas raramente se dá de forma individual. Isto é, sempre estão em grupos, seja com a família ou com amigos, com os quais dividem a mesma casa e até o mesmo local de trabalho. “Los bolivianos son muy família, incluso en las oficinas”, disse-me um informante. Se os imigrantes ainda não constituíram uma família, tendem a criar grupos que circulam nos espaços em que se estabelecem as relações sociais mais amplas, para assim constituí-las. Mas, dificilmente há a circulação de imigrantes em grupos que não sejam aqueles anteriormente dados no espaço da casa. É possível vê-los cumprimentando uns aos outros, se respeitando, todavia não há uma evidência muito clara de que as redes de sociabilidades sejam muito amplas.

23 No caso das relações estabelecidas na feira do Marcos Freire é possível ver a apropriação do espaço urbano como uso qualificado daquela rua, pois é ali onde os imigrantes montam suas barracas para vender as roupas que eles mesmos produzem. Se para os brasileiros que vivem na região a feira é utilizada como um ponto de encontro e sociabilidade, para os bolivianos ela parece não ter o mesmo significado. Mesmo no ato público da venda de um produto, o qual faz com que vendedores ampliem suas relações mediante as estratégias de “sucesso econômico” – implicadas no projeto da imigração – e de sobrevivência do grupo no contexto social, não se constituem sociabilidades fora do âmbito da casa. A feira é vista como local de trabalho para os bolivianos e de lazer para aqueles que estão com suas respectivas famílias e grupos. Observou-se, também, que os imigrantes que se encontram mais sozinhos na região evitam sair de casa.

24 A sociabilidade entre os diversos grupos de bolivianos pode ser impossibilitada, dentre outros motivos, pelo fato de haver certa circularidade entre eles nos espaços comerciais, como também nos locais de moradia. Ou seja, muitos dos que hoje estão na feira, podem não estar amanhã. Os locais onde hoje residem podem não ser os mesmos daqui a alguns meses. Esta situação pode representar aquilo que Sayad (1998) indica como uma das características do imigrante: a mobilidade. Na medida em que constitui uma força de trabalho provisória e em movimento, modo que lhe condiciona, mesmo se passar a vida inteira no país para onde emigrou, sempre será um imigrante.

25 A relação com a rua na feira dominical parece se limitar aos aspectos econômicos. Contei ao todo três barracas de bolivianos na feira do Marcos Freire – número significativo para uma feira que não é tão grande e não cobre a rua inteira –, o que demonstra a forte presença desta população na região. Entretanto, esta não se evidencia somente nas barracas e aos domingos, mas também no enorme número de imigrantes que andam pelas ruas da região do Pimentas no dia-a-dia, seja pra comprar produtos variados em mercados ou na própria feira, seja no uso da rua como espaço de

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lazer, jogando futebol em quadras de escolas da região, ou somente caminhando por lá. Quando há o encontro de compatriotas no espaço público, percebe-se uma relação de respeito, ao passo que advêm de um mesmo país e se sensibilizam com a situação na qual se encontram.

26 A concepção de “fronteiras urbanas” como elemento geográfico delimitador de espaços foi algo que questionei durante o desenvolvimento desta pesquisa. Percebi que a noção de fronteira que os imigrantes bolivianos atribuem a Guarulhos é diferente daquela que o Estado atribui ou que pode ser concebida nos deslocamentos na vida cotidiana. Quando foram questionados sobre os lugares que costumam freqüentar, certa homogeneização do espaço urbano de São Paulo, como um espaço contínuo, foi acionada por eles. Durante a realização da pesquisa de campo, caí na história do boliviano, pois fui convidado para presenciar as partidas de futebol realizadas na quadra Dom Bosco, que segundo meu informante era “aqui perto”, “logo ali”, na medida em que lhe perguntei se a tal quadra ficava no bairro onde nos encontrávamos. Mas, ao questionar alguns moradores do Pimentas sobre a quadra, descobri que aquele “logo ali” era um “logo ali” de “mineiro” (expressão popular), ou melhor, de boliviano. Não existe a quadra referida no Pimentas: ela está no bairro de Itaquera, na cidade de São Paulo (a cerca de 20 km do bairro onde a pesquisa estava sendo realizada).

27 Penso na imigração boliviana como um constante deslocamento de identidades em contínuo processo de ritualização. Onde quer que circulem no espaço urbano, serão eles, não deixarão de ser imigrantes bolivianos, com as suas simbologias, reconhecendo seus compatriotas como igualmente bolivianos, por mais que haja uma disputa econômica em jogo. Assim, o oposto também é válido: nós brasileiros os reconhecemos como sendo o “outro”, pelas suas simbologias, características físicas marcantes etc. Ademais, os imigrantes, mesmo com algumas reconfigurações, são acompanhados pelos estigmas que lhes foram atribuídos, pela centralidade a que estão sujeitos nessa situação de liminaridade (TURNER,1974) que vivenciam na imigração. Qualquer evento pode colocar a estrutura em risco, podendo modificá-la. Não estão nem dentro nem fora da estrutura, não têm nacionalidade brasileira nem estão na sua nação de origem, podendo modificar a realidade na qual se encontram, bem como modificar o contexto anterior, o qual pode fazer falta, se alguma situação idiossincrática que os beneficie ou os prejudique venha a ocorrer.

BIBLIOGRAFIA

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NOTAS

1. A região do Bairro dos Pimentas, onde esta pesquisa foi realizada, localiza-se “do lado de cá” da Rodovia Presidente Dutra, segundo os moradores da região. Entretanto, há nesta região outros bairros, como por exemplo o Itaim, que para os moradores é considerado “Pimentas”. É a região mais populosa da cidade de Guarulhos, onde vivem cerca de 400 mil pessoas. Guarulhos é a segunda maior cidade do Estado, além de ser a maior cidade não-capital e a oitava economia do país, com uma população de 1.251.179. É também, em termos populacionais, a décima segunda cidade do Brasil. 2. A Praça Kantuta, localizada no bairro do Pari, desde 2005 é o ponto de encontro dos imigrantes bolivianos. Este espaço foi cedido pela Prefeitura de São Paulo para a realização das feiras dominicais após um incidente com moradores do bairro. Kantuta é o nome de uma flor do altiplano boliviano e a praça ganhou esse nome dos próprios imigrantes. 3. O cálculo do número de imigrantes bolivianos na região metropolitana de São Paulo não é preciso, havendo divergências entre os dados oficiais do governo brasileiro, que estima existirem cerca de 60 mil imigrantes, e os da Pastoral do Migrante, que diz que o número gira em torno de 80 mil. 4. A bandeira de libertação dos povos indígenas é conhecida com Wiphala, sendo composta pelas cores do arco-íris. Cada cor apresenta um significado e é utilizada como forma de demonstrar a existência e resistência dos povos andinos. 5. Durante o ano de 2008, ocorreram vários referendos por toda a Bolívia promovidos por grupos econômicos regionais para validar os estatutos que atribuem mais autonomia aos departamentos de Santa Cruz de la Sierra (região mais rica da Bolívia), Beni, Pando e Tarija. Juntos os quatro departamentos representam cerca de 80%do PIB do país. O Governo Nacional não reconhece estes referendos por serem “separatistas” e “ilegítimos”. Os referendos defendem mais autonomia econômica e administrativa, principalmente no que diz respeito à exploração de hidrocarbonetos. É importante notar que esses departamentos são governados por opositores de Morales. Os conflitos se iniciaram em 2006, quando o presidente Evo Morales assumiu o governo e na medida em que sua política se voltou para uma forte intervenção estatal na economia para garantir o acesso à terra para povos indígenas e camponeses.

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RESUMOS

O presente artigo aborda a percepção das identificações dos imigrantes bolivianos residentes no Bairro dos Pimentas, localizado na periferia da cidade de Guarulhos, região metropolitana de São Paulo. Estas identificações convergem em relações de poder e tentativas de construção de uma singularidade nacional constituída nos diversos movimentos de fronteiras culturais e simbólicas presentes no Bairro dos Pimentas. No deslocamento do centro em direção à periferia, traça-se um cenário de contatos e choques culturais com o outro: nas idas e vindas dos trajetos percorridos pelos bolivianos em meio aos seus afazeres cotidianos emerge a pluralidade étnica presente na cidade de São Paulo entre brasileiros, bolivianos e outros latino-americanos.

This article is about the perception of the identifications of Bolivian immigrants living in the neighborhood of Pimentas, located on the periphery of the city of Guarulhos, the metropolitan region of Sao Paulo. These identifications convergen to power relations and attempts to build a national singularity consisted in the various movements of cultural and symbolic boundaries present in the neighborhood of Pimentas. In the displacement of the São Paulo center towards the periphery, a picture of cultural contacts and clashes are drawned with the other in the paths traveled by Bolivians in the streets toward their daily chores. Scenario formed by the multi- ethnic, regional and national between Brazil, Bolivia and others Latin Americans.

ÍNDICE

Keywords: bolivian immigration, identity, periphery Palavras-chave: imigração boliviana, identidade, periferia

AUTOR

ANA LÍDIA DE OLIVEIRA AGUIAR

Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

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A etapa final: notas acerca do mito Balboa

Fernanda Loureiro, Henrique Gonçalves e Juliana Jardim

Introdução

1 Ao longo do século XX observou-se um crescimento incontestável das diferentes práticas esportivas no mundo. As competições, que podem ser analisadas como rituais modernos compostos por múltiplos signos e valores, tais como corporalidade, masculinidade, honra, tradição, regionalismos e nacionalidades, constituem terreno fértil para a prática antropológica. Este trabalho procura proporcionar uma ampliação do olhar, em termos empíricos, ao apresentar uma pesquisa que tematiza significados e valores de práticas esportivas utilizando para isso o campo – ou seria melhor dizer ringue – do boxe. Sobre essa prática feita por punhos e pernas, pretendemos abordar a construção do corpo e do sujeito que pratica este esporte. Nas feições do imaginário criado pela série Rocky Balboa, o boxe se revela como prática de construção do corpo – e subjetivação dele - na sociedade moderna.

2 Entramos no mundo dos ringues com a pretensão inicial de observar a relação entre esportes mais “combativos” e masculinidade. Percebíamos o boxe como um esporte privilegiado neste sentido, por ser um espaço de “violência legítima”, direta e aceita – muitos vão dizer que nunca se tratou de violência – presente no mundo ocidental seja em Olimpíadas, campeonatos mundiais, pequenas associações regionais ou mesmos grandes palcos como os cassinos de Las Vegas. Ao irmos a campo, no entanto, demos um passo atrás e decidimos nos aprofundar na elaboração intensa da corporalidade e da construção do sujeito – o lutador – para o boxe. Afinal, é a dimensão da corporalidade que instiga o criar e recriar do imaginário desse esporte, inclusive a elaboração do universo masculino contemporâneo. Decidimos, portanto, partir daí para posteriormente derivar possíveis obliqüidades de gênero. Este trabalho se refere a essas observações iniciais que não pretendem seguir um roteiro analítico teórico definido, mas apresentar reações e anotações de campo.

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Uma discussão metodológica

Por mais que os antropólogos busquem seus objetos de investigação além dos muros da academia (...), eles escrevem seus relatos tendo a seu redor o mundo dos atris, das bibliotecas, dos quadros-negros e dos seminários.(C.Geertz, 2002)

3 De acordo com Roberto Cardoso de Oliveira, podemos pensar o trabalho antropológico, grosso modo, como constituído por três etapas. A primeira corresponde à construção do objeto, à fundamentação da pesquisa. Ou seja, a escolha de um lugar ou grupo de pessoas, ou ainda de um grupo de pessoas que freqüentam determinado lugar como objeto de pesquisa. Às vezes esta escolha coincide com um interesse latente do pesquisador. Muitas vezes é um olhar, num dia qualquer, com mais clareza e atenção, para um objeto de estudo em potencial que passa por você todos os dias. Outras vezes, é a dica de um professor, é uma nota de pé de página de um livro que te deixou intrigado.

4 Mas, quando em campo, trata-se da busca incessante de se estabelecer condições de igualdade entre pesquisador e pesquisado, um refinamento de nuances, um encontro de pontos de vista distintos e contextos diferentes. Estamos determinados a propor uma fusão de horizontes entre aquele que fala e aquele que, carregado de bagagens teóricas, escuta. Este diálogo, mais ou menos bem resolvido, é a segunda etapa descrita por vários autores – dos clássicos, como Radcliffe-Brown e Malinowski, aos contemporâneos, como Geertz – e é, em última instância, o que caracteriza o trabalho de campo antropológico.

5 Segundo Bronislaw Malinowski, os fatos apreendidos em campo constroem a teoria ou são usados para refutar outras teorias. Nos anos 70, a preocupação com a interpretação impulsionou novas considerações sobre a relação pesquisado e pesquisador. Para além das técnicas, a etnografia é um esforço intelectual que constitui a terceira e última etapa do trabalho antropológico. Buscar o imponderável, conseguir respostas mesmo sem fazer perguntas, fazer a transposição de dados brutos para dados interpretados, “desempacotar” conceitos, enfim, caminhar do concreto para o abstrato.

6 Uma vez definido o objeto de estudo, o boxe, fomos a campo. Mais precisamente no Mineirinho, sala 420, conversar com os freqüentadores, participar das aulas, suar, estudar as regras, superar os limites da nossa própria corporalidade. Buscamos entender como o boxe, enquanto prática esportiva, está na cidade de Belo Horizonte e de que forma é apreendido por seus praticantes. Foram várias visitas, aulas, entrevistas e muita expectativa tanto da parte dos pesquisados quanto dos pesquisadores. Assistimos a dois torneios – um interno, entre os freqüentadores da Federação, e outro externo, com atletas de outras academias. Participamos também do curso de juiz oferecido a quem tivesse interesse na área, criado especialmente para ampliar a visibilidade da Federação e auxiliar na execução do torneio externo.

7 O que se segue é um mosaico de reflexões acerca do esporte, da federação, da experiência nos torneios, do aprendizado na academia e dos personagens que compõem o universo da federação. Certamente o tempo não foi suficiente para análises e descrições densas, para uma apreensão completa do que pretendíamos inicialmente observar. Fica aqui um primeiro exercício crítico como parte do projeto de algumas pessoas que adentraram o mundo do boxe sem conhecê-lo anteriormente. Somente após quatro meses de pesquisa conseguimos compreender minimamente este universo

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que tem demandas corporais e psicológicas tão intensas. Do nosso campo, estas são as primeiras linhas.

O esporte como nova prática social

8 Na primeira metade do século XIX, uma classe de atividades antes conhecidas como passatempos “aristocráticos” – ou “de sociedade” – tornaram-se cada vez mais comuns na Inglaterra e em países próximos sob o nome de sport. Um novo nome para uma nova prática, adotado sem modificações por países como França, Itália, Alemanha e Holanda, ou transformando-se, sem alterar a raiz, no termo esporte em Portugal.

9 A origem de alguns desses jogos, como o boxe, remonta à Antiguidade e aos Jogos Olímpicos da Grécia Antiga. Na Idade Média, alguns festivais religiosos eram acompanhados com freqüências por jogos, na maioria violentos, entre cidades rivais. Mas o que distingue as disputas da Grécia antiga e da Idade Média, de um lado, e as atividades praticadas na Inglaterra pós-Revolução Industrial, que depois se difundiram pelo mundo?

10 Em primeiro lugar, seja na Grécia Antiga ou na Europa da Idade Média, muitos jogos, como o boxe ou a luta livre, constituíam uma luta ritualizada, uma medida de força entre rivais. Valores como força física, paixão, resistência, honra e demonstração da coragem do lutador eram considerados mais importantes do que o sucesso em si da luta ou a sofisticação da técnica. Além do mais, essas “batalhas simuladas” eram regidas por regras consuetudinárias, não escritas, o que permitia, além de uma flexibilidade maior de seus limites, um grau maior de violência física, não sendo incomum ocorrerem mortes ao fim do jogo. Era mais honroso sair morto, tendo sido valente, do que vivo, tendo demonstrado covardia.

11 A partir do século XIX, esses jogos acompanham o processo modernizador: ganham regras mais detalhadas e diferenciadas, formam-se clubes e associações que regulam e organizam as competições. Desenvolveram-se, também, jogos populares e polimorfos, como foi o caso de vários jogos com bola. Se antes a idéia de honra imperava, com a transformação civilizadora o resultado e a técnica tornaram-se mais importantes. Na sociedade moderna, o atleta é antes de tudo um especialista. Contudo, um resquício de ética guerreira e busca pela glória ainda prevalecem, como podemos ver neste trecho da fala de um jovem atleta há um ano praticante de boxe no Centro de Treinamento do Mineirinho, em Belo Horizonte: “Bom... eh... o boxe, ele começou já há muito tempo atrás... eu acho que foi na Grécia e... eu li isso na internet...eh...os homens mais corajosos da Grécia lutavam entre si em... e o prêmio era uma...como é nome daquele negócio que você põe na cabeça?... louro, é... assim, nenhum prêmio, nenhum valor em dinheiro, mas só prestígio, entendeu? De você ser o mais forte... isso que me atrai, entendeu? Você ser o melhor...é sempre isso que eu busco...” [Homem, 19 anos, praticante de boxe há um ano]

12 Se a vitória é o resultado perseguido, devemos analisar qual o sentido de ser um lutador vitorioso. Mas, devemos estar atentos para a diferença entre um atleta e um simples praticante. Diferentemente do período em que se tratava de uma prática lúdica ou de um treinamento para o corpo com vistas à batalha real, hoje o esporte é uma atividade institucionalizada e especializada. O esporte prescreve todo um conjunto de modos de vida para um atleta profissional, com dietas, rotinas de exercícios e comportamentos a

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serem evitados. O treinamento não é mais para a guerra, ou antes, trata-se de uma guerra consigo próprio, o ideal de superação, típico da moral moderna: P: Quê tipo de pessoa faz boxe? Quem que é o lutador de boxe? R: Veja bem... tem o lutador e o praticante... aqui no Mineirinho tem poucos lutadores e muitos praticantes... praticante é aquele cara que tá aqui às vezes pra emagrecer, às vezes aprender uma defesa pessoal... agora o lutador ele busca alguma coisa a mais... e cada um é um objetivo diferente... não existem dois lutadores com o mesmo motivo, o mesmo objetivo, não... cada um tem seus motivos de tá lutando... P: Uma coisa um pouco pessoal, particular... R: Isso mesmo... sempre alguma coisa que você quer provar, pra si mesmo ou pra alguém... [idem]

Condicionando o corpo

13 Entre os aprendizes iniciantes, talvez o treinamento seja um processo mais inserido nas relações coletivas do que propriamente no contato entre praticante e treinador. Segundo Wacquant, “o boxe é um esporte individual, certamente um dos mais individuais de todos, de vez que põe fisicamente em jogo – e em perigo – apenas o corpo do lutador, cuja aprendizagem adequada, contudo, é acentuadamente coletiva (...)”.As primeiras lições de jab e direto, as artimanhas para pular corda ao estilo pugilista, a base, as esquivas, são técnicas do corpo internalizadas por um processo de aprendizagem não exclusivamente didático, mas sobretudo pela incorporação imitativa das técnicas.

14 Na tradição do boxe ensinado e praticado no Mineirinho, a transmissão das técnicas resulta da combinação entre a imitação e o adestramento não centralizado na figura do treinador, mas fixado nas relações entre os companheiros de treino. A academia, portanto, abriga uma polifonia gestual em que ação, observação e imitação são incisivas na constituição do sujeito pugilista e de toda uma estética própria do seu universo. Imitar gestos que antes se apresentavam como curiosos, tal como levar as mãos fechadas ao queixo e simular um combate, ou impossíveis, como pular cordas com os pés alternados, constitui um mecanismo de inserção no grupo dos pugilistas.

15 Mas a constituição do pugilista profissional não requer somente o aprimoramento técnico, a gestão austera do corpo, a disciplina ascética, mas, sobretudo, o condicionamento psicológico que lhe permita combater no ringue. Entre a obstinação em permanecer nos exercícios de simulação e preparação do combate (socar o saco de areia, a pêra, treinar o jab, o direto, a esquiva), típica da maioria dos freqüentadores da academia, e o combate real há o desafio da exposição do corpo aos riscos que fazem do boxe o esporte ocidental mais brutal. O pugilista deve estar preparado para agredir e ser agredido. A cabeça e as mãos são as partes do corpo mais susceptíveis às lesões: dentre as mais comuns encontram-se o deslocamento do nariz, da retina, fratura nas articulações, polegar e metacarpo ou até mesmo lesões cerebrais crônicas. (Wacquant. 2002:147) Deve-se enfaixar bem os pulsos para evitar a sua torção e utilizar os equipamentos básicos de proteção (protetor de cabeça e bucal). Mas, mais importante do que se proteger da lesão e da dor, pois o boxeador está familiarizado com estes infortúnios do esporte, é a condição imposta a si mesmo: uma condição moral.

16 O boxe comumente é apreendido como um esporte violento em razão destes riscos ao corpo, contudo, a aproximação do campo e a observação participante nos permitem

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supor que as regras formais e os padrões de conduta delimitam a fronteira entre o combate e a violência. A distinção reside no plano moral. O famoso combate em que Holyfield tem a orelha mutilada por Mike Tyson pode ser facilmente fundamentado como violento, pois há uma intenção, por parte de Tyson, de corromper as regras a fim de desconsiderar a identidade do outro. Em algumas fotos fixadas no mural da academia da FMB, a imagem do vencedor, saudado pelos companheiros, com o nariz deslocado, expõe não a figura do violentado, mas a imagem de um incidente próprio do ofício do boxe, ofuscado pela consagração da vitória.

Seu Pedrinho – entre lutadores e praticantes do “boxe empresarial”

17 Pedro Maciel, conhecido como “Seu Pedrinho”, é o responsável pela gestão e pela didática do boxe ensinado na academia mantida pela Federação. Apesar dos exercícios físicos serem coordenados por outros lutadores, que o tratam como “pai” – um tratamento praticamente análogo ao expresso no termo “mestre” – Pedrinho é quem regula a ordem e o tempo das atividades, pois detém a palavra e o cronômetro, usado quase unicamente pelo treinador “pai”. A ordem de pular corda ou de enfaixar as mãos, a observação da ginástica e do aquecimento dos aprendizes, os conselhos técnicos, a rigorosa cronometragem das atividades são alguns dos ofícios de responsabilidade de Pedrinho. Embora se constitua em um contexto diferente, o arquétipo do treinador de boxe se assemelha à figura do mestre nas lutas orientais, como se ambos sintetizassem toda a maturidade técnica e moral necessária ao combatente. O treinador, aposentado da função de lutador em razão da velhice, detém, mais do que o olhar apto a identificar um jab mal aplicado pelo aprendiz, a consciência das vicissitudes, das ilusões e dos riscos inerentes ao universo pugilístico.

18 Pedrinho diz que são necessários três requisitos para se tornar um grande boxeador: “Primeiramente, é gostar. Sem dúvida é a melhor coisa. Segundo, é treinar muito. Terceiro, ouvir o seu treinador. Aí você fica bom”.

19 Certamente, o treinador, o profissional e o amador gostam de boxe. Mas existe outra categoria de pessoas que praticam o “boxe empresarial”: aqueles que não vão para aprender o boxe propriamente, mas para fazer exercício e perder peso. O objetivo do “boxe empresarial” se limita ao corpo, não se estende ao aprendizado e à prática do esporte. Não são poucos os praticantes do “boxe empresarial” que freqüentam o Centro de Treinamento do Mineirinho – talvez porque, além de ser um espaço que oferece instrução e prática de atividades aeróbicas, cobre apenas dez reais de mensalidade.

20 É interessante notar que a noção de “boxe empresarial”, advinda da linguagem dos próprios boxeadores, contém uma carga pejorativa: consideram-na uma espécie de utilitarismo corporal, um interesse mesquinho pela forma física, que despreza o que é mais importante ali, o boxe, a “Nobre Arte”.

21 O treinamento é fundamental na formação do boxeador. Pedrinho critica o método praticado por outras academias de boxe em Belo Horizonte: “Você vê o treino que eu dou lá, né? Eles dão um treinamentinho mal, mais é luva, o treino deles é luva. Eu dou preparação física, depois eu dou o treinamento com saco de areia, que é pra aumentar a pancada, e dou o treino de luva lá dentro do ringue, pra pegar técnica e tática”. Às segundas, quartas e sextas, no Mineirinho, antes de pôr as luvas, todos têm que correr

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de 6 a 8 voltas no anel inferior, pular corda, e fazer exercícios aeróbicos: polichinelo, flexão, abdominal etc. Toda essa preparação física leva uma hora e meia. Depois, passa- se ao saco de areia. Só então é que Pedrinho escolhe quem vai subir no ringue para treinar. Alguns amadores se queixam de que há pouco treino com luva e que Pedrinho não lhes dá a devida atenção. De fato, ele não esconde certas preferências por quem considera estar se esforçando mais. O olhar clínico de Pedrinho está sempre buscando um novo campeão, como ele próprio fora outrora, e passa ao largo dos que não demonstram as características necessárias para tal: “Igual eu vejo na minha equipe lá, como que é... os caras chegam lá, vão treinar, sentam... vão beber água... pô! Não tem jeito. Não dá. Você sabe que o boxe você tem que encarar. Se você não encarar, não adianta”.

22 O treinador, porém, não se limita a advertir o boxeador sobre questões técnicas e táticas. Deve também inspirá-lo, levantar seu estado de ânimo. Pedrinho se lembra que Gilton dos Santos, na disputa do mundial realizado na Argentina, queria desistir no sexto round, mas ele não permitiu: “Xinguei, mexi com o sentimento dele, mexi mesmo”. Gilton voltou para o ringue e massacrou seu adversário argentino. No boxe, bem como em vários esportes, os treinadores formam grandes profissionais ao aliar o conhecimento especializado do esporte à capacidade de incentivo emocional. Daí a sua importância. Nas palavras de Pedrinho: “O treinador é meio atleta, meia luta ganha pra você”.

Boxe: reprodutor e modelo das práticas sociais

23 Por fim, um exemplo paradigmático de boxeador é o personagem Rocky Balboa, de Sylvester Stallone, cuja série narra a escalada heróica de um pobre imigrante italiano a boxeador profissional e campeão. Sujeito pobre, sem recursos, mas humilde e disciplinado nos seus treinos. No nosso campo era sempre citado como referência, mesmo que por brincadeira, do ideal que todos pretendiam alcançar. O último filme, o sexto da série, que mostra um Rocky na maturidade dos seus cinquenta anos, traz uma cena reveladora dessa moral a que aludimos. O boxeador resume em poucas linhas para seu filho o que a vida lhe ensinou, permitindo-lhe chegar onde chegou: ser campeão, ser admirado por onde passa e ser um exemplo para as pessoas. Segundo Rocky Balboa, "(...) O mundo não é um mar de rosas. É um lugar ruim e asqueroso... e não importa quão durão você é... ele te deixará de joelhos e te manterá assim, se permitir. Nem você, nem eu, nem ninguém baterá tão forte quanto a vida. Mas isso não se trata de quão forte pode bater. Se trata de quão forte pode ser atingido... e continuar seguindo em frente. Quanto você pode receber e continuar seguindo em frente. É assim que a vitória é conquistada."(Rocky Balboa, tradução da legenda em português, grifo nosso)

24 Rocky encarna o mito da “fronteira”. Homem viril, que rejeita os luxos, facilidades e prazeres da sociedade; homem que quer ir além, além da fronteira, expandi-la. Sabe que não pode esperar conforto no limite. Por isso aceita resignadamente a dureza da rotina. Sofre com uma espécie de prazer – prazer da glória – pois sabe que o golpe que não o matou permitirá que ele vá ainda mais longe. Trata-se da persistência, não para bater forte, mas para resistir aos duros golpes – do adversário e da vida.

25 O paradigma da superação, sobriedade e capacidade, a exigência de desempenho típica do capitalismo avançado, encontram no boxeador um exemplo fascinante. O homem típico da modernidade, o “homem conquistador” – tal qual o guerreiro, o burguês e o

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cientista – é aquele que sabe conjugar razão e utilidade. Deve-se buscar, como Rocky, a superação, pois fracassar não é perder, mas desistir. Dessa forma, a constante competição, ou antes, a constante repetição, marcam a experiência moderna construída a partir de um ideal de masculinidade: Eu acho que tem até um número considerável de mulheres aqui... mas como eu falei: praticantes, não atletas... porque... pra uma mulher começar no boxe, ela tem que ter um motivo, um motivo bem forte... porque é muita dor que ela vai passar, a aparência dela pode tá estragando... igual, eu já quebrei o nariz duas vezes, tive que operar... uma mulher não vai querer passar por isso... o ombro da mulher...toda atleta... eu cheguei a conhecer umas duas atletas... e o ombro é largo... ela pega uma aparência mais....mais masculina, entendeu?... mais agressiva... e eu não acho que uma mulher vai querer perder a feminilidade dela por causa de um esporte. [Homem, 19 anos, praticante de boxe há um ano]

26 O esporte configura-se dessa maneira com uma educação não apenas física, mas também moral. Educa o corpo e o espírito para os hábitos da ordem, da disciplina e da exatidão: hábitos essenciais para o bom funcionamento da sociedade industrial e burocrática. A “ética protestante”, como bem assinalou Weber, desempenhou um papel central na construção dessa sociedade. Outro fator importante é que o esporte, muitas vezes encarado como lazer, significou um modelo de atividade contínua, uma otimização do uso do tempo na sociedade moderna. Como salienta Courtine, “o exercício físico passa a ser um lazer às margens do tempo de trabalho e um trabalho instalado no coração do tempo de lazer”. O esporte propicia um bom uso do tempo livre, enquanto prática que impossibilita que indivíduo seja um agente subversor do sistema na posse desse tempo. eh... os benefícios, que me trouxeram... se tiver uma lista aqui, não tem como eu preencher ela... porque eu tive muito problema em casa... eu tive muito problema com meu pai, muita briga... em minha época de 16 pra 17 anos eu era praticamente um delinqüente... e eu tá inserido aqui no Mineirinho pôde me livrar de muita coisa aí... que eu podia ter passado, entendeu? [idem]

27 O Boxe, tal como outros esportes modernos, é uma atividade institucionalizada e especializada que prescreve todo um modo de vida (dietas, exercícios e comportamentos a serem evitados). A rotina de exercícios não pode ser interpretada como um meio para se obter boa forma ou aprender um conjunto de técnicas para um fim específico numa situação prática, a defesa pessoal, por exemplo. Há traços de uma moral puritana. O objetivo do atleta é transcender, conquistar, superar. “Malhar dói”, diriam alguns, e se submeter a essa dor é uma decisão. Adotar Rocky Balboa como exemplo paradigmático é afirmar que a frase “acredite em si mesmo que você se dará bem”, tema dos filmes, é um modo de vida.

BIBLIOGRAFIA

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WACQUANT, Loic J. D. Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

RESUMOS

Este trabalho é a reunião de anotações, dados e observações coletados no curto período de março a junho deste ano na Federação Mineira de Boxe, sediada no ginásio do Mineirinho, pequeno complexo ao lado do Estádio Governador Magalhães Pinto (o Mineirão), em Belo Horizonte. São os objetivos, em um primeiro instante, analisar como se dá a construção do corpo no boxe; qual a relação entre homem/corpo/prática do esporte; enfim, se o homem que pratica boxe, tanto amador quanto profissional, encarna um personagem. Seria o mito de Rocky Balboa uma representação suficientemente próxima do habitus dos lutadores do Mineirinho? Como observar a construção desses estereótipos? Nas palavras de Wacquant (2002), “o pugilismo ‘faz sentido’ quando se toma o cuidado de dele nos aproximarmos o suficiente para apanhá-lo com o seu corpo, em situação quase experimental”. Procurar esse sentido foi o que nos guiou nessa empreitada de quase três meses. Além desse verbo um tanto quanto abrangente – procurar – pretendemos praticar, descrever, fotografar, compartilhar, historiografar e suar.

ÍNDICE

Palavras-chave: boxe, corpo, Rocky Balboa

AUTORES

FERNANDA LOUREIRO [email protected] Estudante de Graduação - 7° período – Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

HENRIQUE GONÇALVES [email protected] Estudante de Graduação – 8° período – Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

JULIANA JARDIM [email protected] Estudante de Graduação – 8° período – Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

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Décroissance: entre política e meio ambiente

Ana Flávia Pulsini Louzada Bádue

NOTA DO AUTOR

Na Itália, existe uma discursividade semelhante, a Decrescita Felice, mas aqui somente o movimento francês será problematizado.

1 Discursividades dedicadas a questões ambientais vêm se configurando desde o século XIX. A partir da década de 70, natureza e política se associaram e começam a aparecer críticas ao sistema capitalista por um viés ambiental, sobretudo nos países de capitalismo avançado (Bramwell, 1989; Dalton, 1994). A França conheceu, nesse momento, uma série de discursividades críticas às noções de progresso e desenvolvimento, em função da devastação ambiental provocada pelo sistema capitalista, sendo uma dessas discursividades denominada décroissance (em português, decrescimento), que hoje se configura como movimento político ambiental.

2 Um panorama das vozes ligadas à décroissance é aqui traçado com base em produções impressas e virtuais, como notícias de jornal, divulgações de eventos, artigos acadêmicos, panfletos e imagens, favoráveis ou contrárias à décroissance. A pesquisa que vem sendo desenvolvida aponta questões que, apesar de específicas ao movimento, aparecem em outros lugares, de maneiras diversas. Isso não quer dizer que a décroissance apenas reproduz um discurso genérico ou é produto de alguma tendência abstrata e anterior a ela. Essa discursividade parece ser uma “combinatória local” (Morawska Vianna e Sklair, 2008) , significando que o conjunto de sua constituição (idéias, conceitos e práticas) “está também presente de distintas formas em outras dinâmicas, perpassando-as como linhas difusas, simultaneamente presentes em diferentes pontos do sistema mundial. Tais linhas difusas, apesar de comuns a diversas dinâmicas, operam de forma distintiva, de acordo com as configurações de poder específicas” (idem)1.

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3 Questões centrais para o movimento, como o desenvolvimento sustentável, a crise econômica e o consumo, expressam um modo específico de articulação entre política e meio ambiente. Uma genealogia (Foucault, 2008) desses conceitos revela relações de força capilares e denota os micropoderes que calam certas vozes na medida em que consolidam e estabilizam outras. Com inspirações foucaultianas, esse artigo pretende lançar luz sobre as lutas e conflitos que permeiam a constituição de conceitos aparentemente unívocos, consensualmente aceitos, como o de sustentabilidade, indicando uma possibilidade de articular a décroissance a um processo mais amplo.

4 O termo décroissance circulou primeiramente como teoria político-econômica nos anos 70, nos trabalhos do economista Nicolas Georgescu-Roegen. Hoje, ele é considerado pelos adeptos do movimento o primeiro a defender a necessidade de uma revisão do sistema econômico a partir de considerações ambientais (Grinevald, s.d.). A obra deste economista, no entanto, foi marginalizada durante vinte anos e, na década de 90, retomada, inclusive no Brasil (cf. Veiga 2004).

5 Nesse momento houve, também, um aumento da produção acadêmica francesa sobre a décroissance (IEESDS, 2006), paralelamente à sua constituição como movimento político. Um processo de institucionalização deu força ao movimento e foram criados um instituto de pesquisa, o Institut d'Études Économiques et Sociales pour la Décroissance Soutenable (IEESDS) e, alguns anos depois, um partido político, o Parti pour la Décroissance. Em algumas cidades francesas apareceram pequenos coletivos relativamente independentes, que promovem eventos ligados à décroissance, como cafés, debates, reuniões, sendo denominados pelos integrantes, de “grupos locais”.

6 Atualmente o movimento defende, em termos genéricos, uma revisão do sistema produtivo capitalista, sobretudo, nos países e regiões mais ricas, com a finalidade explícita de recusá-lo e de alterar a lógica que rege a produção e o consumo. Argumenta-se que produção e consumo no capitalismo são extremamente danosos à natureza, com base no princípio econômico de que a ampliação dos lucros não reconhece qualquer limite. Além disso, bem-estar é identificado com consumo. O indivíduo feliz é aquele que consome o máximo de bens e, quanto mais se consome, mais se produz; quanto maior a produção, mais intensa a exploração da natureza e mais lixo é gerado.

7 Apesar de considerar o sistema como uma totalidade, as críticas do movimento são direcionadas, especialmente, às dimensões do consumo e da publicidade. Nesse sentido, dois tipos de propostas acompanham as críticas. Por um lado, propostas políticas mais abstratas, como sair da economia (Latouche, 2003a, 2003b) ou indicações vagas sobre novas formas de relacionamento com a natureza. Por outro lado, há propostas concretas de ações individuais, que apesar de serem necessárias para a realização das anteriores, não são consideradas suficientes. Trata-se de adotar um estilo de vida simples, consumindo somente daquilo que é necessário e trabalhando menos.A esse modo de vida cotidiano dá-se o nome de simplicité volontaire. A simplicidade voluntária, no entanto, não é exclusiva da décroissance. Em outros lugares, como no Brasil e no Canadá2, ela aparece como preocupação estritamente individual e privada, sem menção ou associação a coletivos políticos de qualquer tipo.

8 O movimento se configurou, historicamente, a partir de críticas ao crescimento, ao capitalismo, ao consumo e, também, aos discursos, políticas e pessoas associados ao funcionamento do sistema capitalista. O “outro” principal da décroissance – contra o

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qual se coloca – é o desenvolvimento sustentável (em francês développement durable), ambos emergentes na década de 70 (Betti-Cusso, 2005).

9 Nos anos 2000, dois integrantes do movimento propuseram o termo "décroissance soutenable", para se opor a "développement durable" (IEESDS, 2006), e os textos produzidos desde então reforçam essa oposição. O jornal La Décroissancededica um espaço para Le Bêtisier du "Développement Durable", no qual são reproduzidas frases ou trechos de textos em defesa do desenvolvimento sustentável, como a fala de Nicolas Sarkoszy "La croissance, demain, sera durable ou ne sera pas" (La Décroissance, 2009: 15).

10 O desenvolvimento sustentável é criticado por ser considerado uma forma de garantir a manutenção do sistema capitalista, da produção em massa e do consumo desenfreado, pois usaria argumentos ecológicos para manter as prerrogativas do desenvolvimento (lucro e crescimento). O livro Le choc de La Décroissance, de Vincent Cheynet (s.d.), expressa essa crítica, como no trecho a seguir: La croissance «verte», «propre», «dématérialisée», ou le «développement durable», présents dans la bouche de toute notre représentation politique, ne sont-ils pas autant d’opérations cosmétiques qui nous empêchent de regarder la réalité en face et nous conduisent à accentuer une folle fuite en avant?

11 Já do ponto de vista do desenvolvimento sustentável3, a décroissance não é um inimigo. Entre ambos há antes uma continuidade do que uma oposição, e as fronteiras, quando mencionadas, são borradas. Philippe Defeyt (2008), presidente do Institut pour un Développement Durable,afirma que já existe um processo de decrescimento no que diz respeito aos automóveis: Récemment, les prix de l'essence et du diesel ont conduit des deux côtés de l’Atlantique à une forme de décroissance, celle du nombre de kilomètres en voiture. Et cela sans mouvements sociaux, sans catastrophe économique. C’est la démonstration que l’on peut vivre dans une société acceptable pour l’immense majorité d’entre nous tout en roulant moins en voiture.

12 Didier Jouve, organizador do "5es Assises nationales du développement durable", diz que não é contra a luta dos objetores do crescimento, mas sim contra a palavra, pois o prefixo de- exprime negação. Sugeriria, em vez disso, "Sobriété, simplicité volontaire, ou même décroissance de la prédation des ressources, croissance de l'accès à l'eau pour tous, de l'accès à l'éducation" (Jouve, 2009). Essa aproximação também aparece no verbete "Décroissance" do Petit Larouse, incorporado ao dicionário em 2009: "politique préconisant un ralentissement du taux de croissance dans une perspective de développement durable" (Bonal, 2009).

13 Novos acontecimentos trouxeram à tona questões que permitem entender melhor o que está envolvido no jogo entre desenvolvimento sustentável e décroissance. No cenário da crise econômica mundial que estourou em 2008, a quantidade de notícias, artigos e notas sobre o decrescimento da economia aumentou consideravelmente e apareceram mais publicações produzidas pelo movimento. O sentido de declínio, queda ou diminuição presente no termo jamais estivera ausente das discussões do movimento, mas passou a ocupar um novo lugar nos debates, tornando-se central, pois um movimento que nega o crescimento precisou marcar sua diferença com relação à décroissance da crise econômica. Diz-se, com frequência, que décroissance não é qualquer décroissance, e isto quer dizer que, mesmo que a economia e o sistema capitalista como um todo estejam em crise, o decrescimento em curso não necessariamente leva a uma negação do crescimento:

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Ne prenons pas les vessies pour des lanternes: la crise économique qui nous pend au nez ne constitue pas le quart du commencement d'une décroissance équitable et solidaire. Au pays de la croissance, la récession n'augure rien de bom. Remettons les mots à leur juste place. Ariès, 2008: 3

14 Com a crise, começaram a aparecer textos discutindo o sentido do termo, para esclarecer que decrescer não é entrar em recessão: ¿Qué se puede decir sobre la crisis económica desde el punto de vista de quienes somos "objetores al crecimiento"? Que nadie se equivoque, porque decrecimiento no es sinónimo de recesión. Tal como escribí hace más de dos años: "No hay que elegir entre crecimiento o decrecimiento, sino más bien entre decrecimiento y recesión. Si las condiciones ambientales, sociales y humanas impiden que siga el crecimiento, debemos anticiparnos y cambiar de dirección. Si no lo hacemos, lo que nos espera es la recesión y el caos". Ahora hemos entrado en recesión, pero que nadie se confunda, no en una sociedad de "decrecimiento". Para empezar, no hemos cambiado nuestra organización social, y en la actual organización todas las instituciones y mecanismos redistributivos se nutren de la idea del crecimiento. En una sociedad así, cuando el crecimiento falta, la situación es inevitablemente dramática. El decrecimiento es algo totalmente distinto. Significa crecer en humanidad, esto es, teniendo en cuenta todas las dimensiones que constituyen la riqueza de la vida humana. Ridoux, 2009

15 Um trecho de uma entrevista é também significativo dessa questão que se colocou para o movimento: Est-ce que l'Europe est en décroissance ? Non, on est en «récession». Le gouvernement parle de «croissance négative»: c'est de la manipulation. Mais il faut éviter la confusion avec la «décroissance», qui est maintenant un programme écologique. Et une réflexion sérieuse. Généreux, 2009

16 O debate posto pelo movimento sobre o significado da décroissance procura separar e marcar as diferenças entre os dois sentidos que o termo comporta. Na língua francesa, o prefixo dé- pode exprimir tanto negação quanto privação. No caso do vocábulo décroissance, o sentido corrente do prefixo é de privação, tal como em português: de acordo com o dicionário Le Robert de Poche, décroître é “diminuer progressivement; baisser”, enquanto o Houaiss, em português, sugere para decrescimento “ação ou efeito de decrescer; decréscimo, diminuição”. Na crise, a décroissance é a diminuição de bens e serviços circulando na economia. Não se trata de uma negação do crescimento econômico, e sim da privação de sua vitalidade.

17 Já o sentido que o movimento atribui a décroissance exprime negação e recusa à economia capitalista e ao seu primado de crescimento. Por essa razão, não basta reduzir a produção e o consumo se esse processo for exclusivamente econômico; é necessário que haja uma vontade política para negar os princípios que fazem com que a economia veja com olhos negativos essa redução – trata-se de inverter o sentido do trem e, não apenas, desacelerar.

18 Foi também com a crise que começaram a circular impressões sobre o crescimento do movimento. Muitos textos indicam que a décroissance vem se tornando mais conhecida e algumas de suas propostas e idéias estão se difundindo na França. Tal expansão da décroissance, por sua vez, também teve repercussões. Por um lado, recebeu algumas críticas: tanto por não questionar as estruturas, o que seria essencial em um momento

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de crise (Leroy, 2008), quanto por ter sido considerada uma “ecologia radical”, tão extremista como o comunismo ou fascismo: […] les théories de la décroissance connaissent en cette période de crise un inquiétant développement. L’écologie radicale est en train de devenir le nouvel extrémisme qui Elle risque fort d’être au XXIème siècle ce qu’auront été le communisme et le fascisme au XXème. Portée par de nouveaux fanatiques bon chic bon genre, ces théories pourraient bien, à la faveur de la crise, engendrer un nouveau totalitarisme fondé sur une haine de l’espèce humaine et une irrationnelle pulsion d’autodestruction. Malakine, 2009.

19 Por outro lado, a décroissance foi transformada em “tendência” e possibilidade de lidar com a crise (Cabanel, 2009). Também, aparece como tendência do comportamento dos consumidores franceses, mesmo antes da crise econômica: La prise de conscience récente de la crise bancaire est révélatrice de la fracture entre une élite, jusqu'à présent épargnée, et le consommateur moyen qui souffre depuis un an, fait valoir Dominique Lévy, directrice associée de l'institut d'études TNS Sofres. "La crise n'a pas commencé au mois d'août, elle a commencé bien avant. Cette crise financière qui éclate et affole les élites, c'est un abcès qui crève (...) pour le consommateur c'est la crise depuis longtemps", a-t-elle déclaré lors d'un colloque de l'Internet Advertising Bureau. L'état d'esprit du consommateur peut se résumer ainsi : "il y a un moment que l'on rame, maintenant c'est votre tour". Dans ce contexte, une réflexion sur la valeur du bien consommé émerge et de nouveaux comportements de "déconsommation", inspirés des tenants de la décroissance, se multiplient. "Les gens se posent des questions sur le sens de la consommation" avec le sentiment que "c'est l'accélération de la consommation qui a conduit à cet emballement de l'économie qui nous tombe sur la tête", a observé Dominique Lévy. "On ne va pas supprimer le chocolat pendant six semaines mais on va apprendre à moins consommer de chocolat durablement", prédit-elle. "On va se mettre en comportement de pénurie dans les mois qui viennent." Pour la directrice associée de TNS Sofres, le consommateur qui a pris l'habitude de faire ses achats dans les magasins de hard discount ne reprendra pas le chemin de la grande distribution classique une fois son portefeuille regarni, mais il arbitrera l'éventuel excédent avec d'autres dépenses. Meistermann, 2008.

20 Essa tendência é reiterada por estatísticas (Vittori, 2009): ao invés de uma redução no consumo (o que de fato estaria acontecendo, mas apenas em alguns setores da economia), estaria em curso um hiperconsumo, ou seja, com os consumidores refletindo melhor sobre o que compram, mas sem deixar de comprar e, se não podem consumir certos produtos, consumiriam outros. Os grandes números mostram que, apesar de algumas quedas, não se trata de uma catástrofe, pois, se por um lado, os gastos estão maiores, inibindo o consumo, por outro, o "bem-estar" ainda é o objetivo e novas formas de consumo aparecem para satisfazê-lo.

21 A crise econômica trouxe, portanto, novas questões para a décroissance. Em primeiro lugar, foi necessário um debate mais amplo sobre o sentido do termo. Foi, também, a ocasião em que o movimento se tornou mais conhecido, em face de algumas de suas propostas serem requalificadas em outros circuitos, como evidencia a pesquisa de mercado sobre a tendência dos consumidores franceses.

22 Essa transformação da décroissance em “tendência” implica novas tensões, uma vez que o movimento se constituiu tendo a sociedade do consumo como alvo de crítica. A voz

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oficial da décroissance, proferida pelo instituto de pesquisa, nasceu de um grupo de pessoas que participavam do coletivo anti-publicidade Casseurs de Pub, o qual publica, mensalmente, o jornal La Décroissance. Muitas vezes, esses jornais trazem na capa alguma crítica ao consumismo, como a manchete “Grève de la conso”, de 2005, com o desenho de um homem engravatado comendo carros, casas, televisores e computadores; ou a manchete “Merde au pouvoir d'achat”, em 2008, acompanhada por um desenho de um casal coberto de aparelhos eletrônicos em um carro, levando no porta-malas uma infinidade de produtos, como tênis, computador, moto, avião. Isso indica que, oficialmente, há um cruzamento entre publicidade, consumo e décroissance. As vozes não oficiais também adotam essas críticas, como o fazem o instituto e o jornal do movimento.

23 Como foi visto, a décroissance critica o desenvolvimento sustentável opondo-se a ele e recusando-o. Mas o desenvolvimento enfatiza a familiaridade e semelhança entre ambos, produzindo uma continuidade entre as propostas. Com a crise, uma relação análoga entrou em cena: a décroissance critica o consumo e propõe a recusa ao crescimento (em vez de redução) mas, ao mesmo tempo, é transformada em “tendência dos consumidores”, que diminuem seu consumo em resposta à crise, mas sem abdicar do “bem-estar”.

24 As relações de oposição que a décroissance estabelece são invertidas no momento mesmo em que são incorporadas por seus opostos e, do ponto de vista destes últimos, a oposição deixa de existir. O desenvolvimento sustentável transforma sua crítica em aliada e, para isso, nega a negação. A crise econômica busca sua solução em tendências décroissants e transforma a recusa em redução. A dimensão semântica pode ser entendida como uma estratégia para essa inversão da crítica, uma vez que a palavra décroissance comporta dois sentidos – negação do crescimento e redução do crescimento.

25 Mas a dimensão dos significados não esgota tal processo. A captura da crítica mediante sua inversão também passa pela questão do consumo: é por meio de uma apropriação das práticas das pessoas, transformadas em consumidoras, que o sistema vê como uma alternativa a sua manutenção. Uma vez que a décroissance enfatiza a dimensão do consumo, a crise econômica encontrou aí uma possibilidade de se superar. O consumo na crise é reduzido e a décroissance defende que se consuma pouco – tal proximidade permitiu que a recusa proposta pelo movimento fosse vista como nova modalidade de consumo. Algo semelhante ocorre com o desenvolvimento sustentável: a recusa do consumo é transformada em novo modo de desenvolvimento, pois se as pessoas consomem de forma consciente, isso não destrói a natureza, ao mesmo tempo, em que se mantém o desenvolvimento econômico.

26 Alguns antropólogos vêm se dedicando ao estudo do desenvolvimento sustentável e propõem que o conceito é plástico e abrangente (Ribeiro, 2000), pois a própria noção de desenvolvimento seria integrativa em seu princípio. Esse seria um caminho para compreender a relação entre desenvolvimento sustentável e décroissance. Redclift (2006) argumenta que a vaga noção de desenvolvimento sustentável foi formulada oficialmente no relatório Brundtland, em 1987, a serviço da falta de acordo sobre um processo que quase todos desejavam e acreditavam necessário. É como se, por meio de uma definição ampla, os interesses diversos, que procuravam articular desenvolvimento e preocupações ambientais, fossem contemplados.

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27 Essas teses sobre o desenvolvimento sustentável, apesar de trazerem ganhos para a discussão, apresentam alguns problemas. Por conferirem um papel fundante às instituições internacionais, acabam desconsiderando vozes não oficiais, e o desenvolvimento sustentável torna-se um bloco unívoco de discursividades. As tensões entre décroissance e desenvolvimento sustentável mostram, ao contrário, que essas vozes não oficiais estão presentes, mas sua presença é calada e suprimida por meio de sua inversão e incorporação ao discurso dominante.

28 Além disso, se esse mesmo processo se verifica com relação à crise econômica e ao consumo, a flexibilidade também caracteriza outros conceitos, inclusive aqueles associados à décroissance, pois estes também se transformam de acordo com as situações. Dessa forma, a maleabilidade das noções, ideias e propostas parece estar em todos os lados e não apenas nos conceitos dominantes.

29 Isso permite recolocar a questão: se décroissance, crise, desenvolvimento sustentável, consumo e outros conceitos são dinâmicos e se transformam, a relação entre eles não é sempre simétrica. Há relações de força que fazem com que alguns sejam calados por outros. Logo, pode-se pensar em como essas noções, conceitos e práticas se relacionam e não apenas colocá-los lado a lado. O debate sobre a inversão da décroissance, no momento de sua incorporação por aqueles contra os quais se opõe, indica o modo como isso ocorre e elucida as forças em jogo na consolidação desses conceitos e noções.

30 No início deste artigo, foi proposto que a décroissance era uma combinatória local, uma configuração específica de linhas de força que circulam por todo o sistema mundial. As tensões locais entre o movimento e o desenvolvimento sustentável, ou as relações microscópicas entre a décroissance e a crise econômica revelam relações de força e apontam para um processo mais amplo de incorporação por meio de sua inversão – que aqui será somente sugerido, uma vez que seria necessário maior desenvolvimento dessas questões.

31 O processo de inversão mediante a incorporação, tal como defendem diferentes autores a partir de perspectivas teóricas distintas, é a maneira pela qual o capitalismo contemporâneo funciona, incorporando em sua lógica aquilo que a princípio seria sua recusa. Safatle (2005) defende esse argumento ao se aproximar do universo punk dos anos 70. Segundo o autor, o movimento cultural de recusa ao capitalismo se tornou “a mola de sustentação do próprio capitalismo”. Apesar das divergências teóricas, Hardt e Negri (2006) convergiam para algo semelhante ao defender que as novas subjetividades produzidas nos anos 70, como as críticas à sociedade disciplinar e ao capitalismo industrial, converteram-se em uma nova forma de trabalho, o trabalho imaterial, que sustenta o novo capitalismo imperialista.

32 Este pequeno artigo não seria suficiente para fazer tal associação da décroissance com o capitalismo, mas algumas indicações parecem ter surgido. Assim como o movimento punk ou as novas subjetividades, a décroissance também conheceu um processo de inversão mediante sua incorporação pelas vozes que lhe eram opostas. A questão é que esse processo opera microscopicamente e, se o sistema é mundial, os jogos de força se dão em todos os lugares – a décroissance é um deles. Isso levaria diretamente à discussão sobre o capitalismo, pois o que se vê não é um processo unificado, mas um sistema mundial que opera localmente. A pesquisa sobre a décroissance joga luz sobre lutas locais travadas também por um capitalismo que incorpora discussões ambientais através da inversão das críticas que lhe são feitas. Apesar de local, portanto, o

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movimento pode levantar questões mais amplas, que podem trazer rendimentos e contribuições para as ciências sociais em geral e para a antropologia em particular.

BIBLIOGRAFIA

TEMATICA

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TEORICA

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WEBGRAFIA

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Journal La Décroissance: www.ladecroissance.net

Simplicidade Voluntária – Brasil : www.simplicidadevoluntaria.net

Simplicité Volontaire – Canadá : www.simplicitevolontaire.info

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NOTAS

1. Essas ideias ainda estão sendo trabalhadas pelas autoras e agradeço especialmente a Catarina Morawska Vianna pela inspiração e pelas conversas. 2. Cf. os sites simplicitevolontaire.info (Canadá ) e simplicidadevoluntaria.net (Brasil). 3. Não pretendemos dar conta de todas as perspectivas de desenvolvimento sustentável, já que, assim como a décroissance, explodiram diferentes usos da expressão, alguns dos quais mutuamente excludentes (Redclift, 2006). Referimos-nos, aqui, a alguns textos que dialogam explicitamente com a décroissance.

RESUMOS

Este breve artigo parte de um movimento político francês que recusa o crescimento econômico recorrendo a argumentos ambientais, chamado décroissance, para investigar como meio ambiente e política se articulam localmente. A partir de textos de diversas origens e opiniões sobre o movimento, a pesquisa aqui apresentada pretende explicitar as relações de força que cruzam conceitos como crise econômica, desenvolvimento sustentável e consumo. Os conflitos e tensões que permeiam tais conceitos levam a considerações mais amplas sobre o capitalismo, mas que neste artigo são apenas sugeridas.

AUTOR

ANA FLÁVIA PULSINI LOUZADA BÁDUE

Graduanda do curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo – USP

Ponto Urbe, 5 | 2009 240

Conexão política em espaços urbanos: estudos etnográficos sobre atuações de parlamentares na cidade do Rio de Janeiro

Laís Salgueiro Garcez, Mayã Martins e Patrícia Soares Vieira

1 Como estudantes de Ciências Sociais da cidade do Rio de Janeiro, percebemos em jornais e no nosso cotidiano a crescente atuação de Centros Sociais mantidos por parlamentares. Apesar dos dados mostrarem a proliferação dessas unidades de atendimento (Kuschnir, 2007a), existem poucos trabalhos sistemáticos sobre o tema (embora alguns estudos de caso tenham sido realizados, como por exemplo, o de Siqueira, 2006). Nosso interesse contempla esse fenômeno da região metropolitana do Rio de Janeiro que apresenta muitos desafios a serem superados pelos pesquisadores através da produção de novos dados a partir do trabalho etnográfico.

2 Antes do início da pesquisa, os dados disponíveis mostravam esses estabelecimentos como locais em que se institui um modo específico de relação entre políticos e população, caracterizado como assistencialista pela mídia e pelo discurso de alguns parlamentares. O presente trabalho buscou aprofundar o entendimento dessas relações levantando novas interpretações sobre o fenômeno e também evidenciando suas particularidades no caso da metrópole carioca.

3 A pesquisa possui como campo privilegiado a cidade do Rio de Janeiro que, por seu caráter metropolitano, está marcada pela heterogeneidade, fragmentação e diversidade das experiências sociais. Mapas subjetivos da metrópole seguem certa “organização moral”, ou seja, delimitam “regiões morais” nos termos de Robert Park (Velho, 2007), com base nos hábitos, costumes e estilos de vida de seus habitantes. Podemos perceber como áreas físicas delimitadas da cidade podem ser também caracterizadas por laços sociais específicos, estando repletas de significados morais que diferem e dialogam entre si, constituindo “pedaços” urbanos cujos frequentadores se reconhecem através de padrões e códigos de comunicação configurados perante as formas de sociabilidade, apropriação e significação do espaço (Magnani, 2002).

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4 Dentro dessa convivência de diferentes mapas e códigos de significação da realidade, vemos os parlamentares como mediadores fundamentais entre diferentes níveis de cultura, representando na esfera pública os dramas de seus eleitores. Através da análise dessas interações, podemos compreender as motivações e disposições de atores sociais cuja atuação está diretamente vinculada à atividade política em nossa sociedade (Carneiro e Kuschnir, 1999).

5 No vínculo dos políticos com as “regiões morais” onde atuam, os laços com a população estão sendo constantemente atualizados através dos atendimentos prestados nos Centros Sociais, revelando uma relação entre a organização do espaço social e um modo de fazer política (Kuschnir, 1999: 93). Como exemplo, há o trecho de uma música apresentada por freqüentadores de um dos Centros Sociais da vereadora Lucinha, que atrela sua imagem à área onde atua: “Viemos apresentar a candidata do lugar. Há dez anos ajudando a nossa vida melhorar. 45620 é candidata popular”.

6 Nesta pesquisa buscamos realizar estudos de caso envolvendo diversos Centros Sociais mantidos por vereadores e deputados estaduais do Rio de Janeiro. Como estratégia metodológica, na fase inicial da pesquisa foram sistematizados os resultados eleitorais por Zona, posteriormente georeferenciados de modo a gerar cartogramas individuais de cada parlamentar (municipal, estadual e federal) do Rio de Janeiro. Na segunda fase foram iniciados três procedimentos: a) levantamentos sistemáticos qualitativos dos modos de conexão entre parlamentar e população, com visitas aos gabinetes, escritórios políticos e Centros Sociais; b) levantamentos sistemáticos de fontes de imprensa e Internet sobre o assunto, bem como síntese dos mesmos; c) estudos de caso etnográficos com três grupos políticos (Kuschnir, 2007a).

7 Nos levantamentos qualitativos dos modos de conexão entre parlamentar e população efetuamos ligações e visitas aos gabinetes da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, com a intenção de descobrir quais vereadores possuíam algum Centro Social. Para isso alegávamos a necessidade de atendimento médico ou jurídico. Na maioria dos gabinetes recebíamos algum tipo de “encaminhamento médico”, evidenciando que muitos mantêm alguma ligação com hospitais ou casas de saúde públicos. Do total de 23 vereadores que possuem 64 Centros Sociais, ligamos para todos e visitamos onze instituições. Contatamos, igualmente, escritórios políticos e organizações não- governamentais de parlamentares.

Mapa da cidade do Rio de Janeiro e os Centros Sociais marcados por Zona

Fonte: Laboratório de Antropologia Urbana (LAU/IFCS/UFRJ), Kuschnir, 2008.

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8 Através dessas ligações e visitas a gabinetes, escritórios políticos e ONGs foi possível perceber que a fundação dos Centros Sociais datam dos anos 1983 a 2008, estando 20 localizados na Zona Oeste, 43 na Zona Norte e apenas 1 na Zona Sul do Rio de Janeiro, área de perfil mais urbanizado e com um nível sócio-econômico elevado. Dentre os serviços prestados, os mais comuns são os atendimentos médicos[2]. Entre os documentos necessários para o cadastro nos Centros Sociais predominam o Registro Geral e o comprovante de residência. Apenas três Centros exigem título de eleitor para o cadastro. Em relação às regras que regulam esses locais, é praticamente absoluta a gratuidade dos serviços. Dos parlamentares patronos de Centros Sociais, pelo menos 3 realizam alguma “ação social” itinerante e 7 prestam atendimentos pessoais à população nos Centros. Dos 27 parlamentares que não possuem um Centro Social, pelo menos 3 realizam “ações sociais” de rua, no mínimo 11 atendem à população no gabinete da Câmara Municipal, encaminhando ofícios, e 7 possuem “escritório político” fora da CM.

9 Nos estudos de caso etnográficos, cada uma das pesquisadoras estudou um vereador ou grupo parlamentar da cidade do Rio de Janeiro que possui Centro Social. São eles: Jorge Pereira (PT do B/vereador) e Graça Pereira (DEM/deputada estadual), estudados por Laís Salgueiro; Lucinha (PSDB/vereadora), por Mayã Martins; Renato Moura (PTB/ vereador), por Patrícia Soares. Devido ao espaço limitado apresentaremos uma amostra da análise de trajetórias individuais de parlamentares, associada ao mapeamento das redes sociais que os rodeiam e sustentam, o que permitiu observar a multiplicidade de percepções e valores associados à prática política.

10 O estudo de caso realizado pela pesquisadora Laís Salgueiro concentra-se na Ilha do Governador, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, que é formada por 15 bairros. Espalhados nesses bairros encontram-se 10 Centros Sociais do casal de políticos que “trabalha” na região há 25 anos, Jorge e Graça Pereira. Jorge Pereira é vereador pelo PT do B e foi eleito, em 2004, para seu quinto mandato consecutivo na Câmara Municipal do Rio de Janeiro com cerca de 45.000 votos. Nas últimas eleições foi reeleito com 33.280 votos. Graça Pereira é deputada estadual pelo DEM desde 1999 e, nas eleições de 2006, obteve 51.255 votos.

11 O casal Pereira começou seu trabalho doando alimentos e fazendo atendimento médico a creches da Ilha do Governador. Em 1983 fundaram seu primeiro Centro Social chamado de “Grupo Comunitário Equipe Jorge Pereira” (GCE) e atualmente patrocinam 8 creches dentro da Ilha e 2 postos de atendimento médico (1 na Ilha e outro no Complexo da Maré – comunidade carente vizinha da região). Todos os Centros Sociais encontram-se nos locais de maior baixa renda da região. As creches funcionam em horário integral e têm entre 100 e 150 crianças matriculadas por ano. O posto de atendimento médico localizado na Ilha fornece cardiologia, clínica médica, fisioterapia, ginecologia, laboratório de análises clínicas, odontologia, oftalmologia, pediatria e psicologia. Além disso, os parlamentares mantêm 2 “grupos de artes”, que levam o nome da deputada, sessão de massagem e yoga, principalmente para a terceira idade, convênio com um clube esportivo da região e outras formas de atendimento ao público, tanto nos gabinetes quanto nos Centros Sociais. Como explicou uma assessora: “todo o trabalho deles é de atendimento”.

12 O posto de atendimento localizado na estrada principal da Ilha do Governador é referência para os moradores locais. Os Pereira já tiveram outros postos dentro e fora da Ilha, que foram fechados ou tornaram-se creches. Portanto, atualmente,

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concentram-se neste prédio todos os serviços médicos, recebendo também pessoas de fora da Ilha. Conforme foi dito à pesquisadora, para fazer o cadastro dos usuários do Centro Social é pedido somente nome, data de nascimento e endereço. Com essas informações monta-se um banco de dados para mandar cartões de aniversário, por exemplo, assim como para fazer tabelas mensais de controle de atendimentos. Muitos freqüentadores que gostam dos Pereira dizem que “as pessoas [outros usuários] são muito ingratas”, pois devido à dimensão do trabalho realizado esses políticos deveriam ter “muito mais votos ainda”.

13 De acordo com as conversas que a pesquisadora Laís Salgueiro teve durante o trabalho de campo, os Grupos de Artes Graça Pereira foram fundados pela mãe da deputada. Um deles recebe somente pessoas da terceira idade e no outro não há critério de idade. Há aproximadamente 200 pessoas matriculadas em cada um. Durante o ano são feitas entregas de diplomas e festas em datas comemorativas, muitas vezes com a presença da deputada. Todas as professoras se apresentam como voluntárias e a maioria começou como aluna. Atuam de forma alternada, podendo ser alunas numa determinada aula e professoras em outra. Os funcionários tanto das creches quanto dos centros sociais recebem camisas com o nome do Grupo Comunitário e o dos Pereira. Em época de eleições eles explicam que se adequam à lei eleitoral, retirando seus nomes de placas, uniformes e cartões. Para os alunos das creches não pode ser pedida nenhuma ajuda de custo para a troca dos uniformes.

14 Numa entrevista com um dos assessores dos políticos foi dito que as creches de Jorge e Graça Pereira recebem 80% dos seus recursos de convênios com a Prefeitura do Rio, sendo cerca de R$130,00 por criança. Em troca devem reservar 20% de suas vagas para o 4ª Conselho Regional de Educação (CRE). Esse financiamento motiva diversas “acusações” nos meios políticos e jornalísticos, sob a alegação de obtenção de benefícios eleitorais por meio de verbas públicas. Neste caso não há uma separação clara entre o que é público e o que é privado. Os papéis de cada esfera se acomodam de acordo com as situações.

15 Com um trabalho bem estruturado já se pode fazer um recorte espacial da representação política dos Pereira na cidade do Rio de Janeiro. Os Centros Sociais são vistos por seus usuários e equipes como uma forma de fazer política conhecida por eles. Ou seja, regiões específicas da Ilha do Governador, junto com outras regiões que compartilham os mesmos valores sobre a prática política, formam um circuito que legitima esta cultura. Portanto, a organização do espaço urbano é feita de acordo com a visão de mundo dos atores sociais.

16 No estudo de caso realizado pela pesquisadora Mayã Martins focalizou-se o trabalho da vereadora Lucinha, pertencente ao PSDB, que está em seu terceiro mandato. Nas eleições de 2008, Lucinha foi a vereadora mais votada, com 68.799 votos. Nas eleições de 2004, foi a segunda mais votada, com cerca de 70.000 eleitores, ou seja mais de 85,7% dos votos da Zona Oeste. Nessa parte da cidade a vereadora possui 4 dos seus 5 Centros Sociais (Campo Grande, Inhoaíba e dois em Santa Cruz). O quinto Centro Social está localizado na Zona Norte, no bairro Anchieta.

17 A maioria dos dados de pesquisa foi obtida através da observação de faixas e cartazes, audição de conversas das quais Mayã não participava como interlocutora, além de conversas informais que manteve com não freqüentadores, funcionários, usuários e alunos do Centro Social da vereadora Lucinha localizado no bairro Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Todos os funcionários sabiam que Mayã estava no Centro Social

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Lucinha como pesquisadora, contrariamente à maioria dos alunos e usuários. Para estes últimos, a condição de pesquisadora gerava ora indiferença ora rejeição, o que acreditamos dar-se por dois motivos: incompreensão do objetivo da pesquisa (o que pode causar certo sentimento de inferioridade por parte do interlocutor) e percepção de que Mayã não fazia parte das redes de relações sociais usuais do Centro Social. Tanto as conversas como a observação de faixas e cartazes permitiram perceber muitas regras e fronteiras que regulam a administração do local.

18 A pesquisa focou o primeiro Centro Social Lucinha, no bairro Campo Grande, fundado há 11 anos e desde 2002 legalizado. Neste Centro trabalham, dentre professores, recepcionistas e equipe de serviços gerais, mais de 20 funcionários, os quais dizem ser pagos pelos serviços que executam, prestando 3 tipos de atendimento médico, oferecendo 15 cursos, dando orientação jurídica e atendimento direto com a vereadora nas manhãs de sexta-feira. Quanto aos cursos de cabeleireiro, manicure e entrelice (técnica utilizada para trançar cabelos), os alunos têm a obrigação de retribuir com os serviços que aprendem nas ações sociais dos Centros, denominadas “Pertinho de Você”, que ocorrem em regiões empobrecidas do bairro conhecidas como “comunidades”. Nelas há, além dos serviços mencionados, recreação infantil e aplicação de flúor em crianças, esta realizada pela própria vereadora. Quando as ações sociais estão próximas do fim, a vereadora Lucinha chega ao local e conversa com moradores. As fotos desses encontros, assim como as de outros eventos, são expostas nos murais do Centro Social.

19 O Centro Social estudado está localizado em uma área comercialmente privilegiada, próxima ao Calçadão de Campo Grande (área comercial com fluxo restrito para veículos), ao Mercado Popular de Campo Grande e aos serviços de saúde, educação profissionalizante e lazer do bairro. Assim, em meio a tantas alternativas aos serviços do Centro Social, podemos nos questionar sobre os motivos que levam as pessoas a freqüentar esse local. A ausência de recursos financeiros é uma das duas principais razões expostas por alunos, usuários e funcionários. A outra resposta é a de que os cursos e assistência são de boa qualidade, sendo que a qualidade aparece como desvinculada da estrutura do Centro ou da disponibilidade de outros aparatos materiais, sendo relacionada à afetividade e às idéias de amizade e respeito. Como se pode observar, por exemplo, nesta frase de uma freqüentadora do Centro Social: “Aqui é muito melhor que nos lugares pagos ou nos postos de saúde, porque todo mundo se conhece”. Assim como na fala de outra freqüentadora sobre uma médica que atende no local: “[Ela é] muito paciente. Muito melhor que essas outras do hospital público. Porque às vezes você chega estressada e ainda te tratam com ignorância. Aqui não, é de qualidade. Gosto muito daqui”.

20 Até o momento foi possível perceber como alunos e usuários do Centro Social se identificam e se apropriam do projeto político da vereadora Lucinha, sempre presente no Centro Social. Deste modo, o objetivo desse projeto não é apenas o ganho de votos, mas a eleição de uma ideologia que abrange todo um universo de valores, identidades e objetivos interligando múltiplas redes sociais.

21 O vereador Renato Moura, parlamentar estudado por Patrícia Soares, começa sua trajetória como comerciante no ramo de óticas na região de Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde nasceu e mora até o momento (2008). Sua rede de relações inclui políticos de renome na região, como André Luiz (deputado federal cassado) e Eliana Ribeiro (deputada estadual). A inauguração do seu Centro Social ocorre em 2006 e traz a marca do vereador frente a outros adversários da região, que também já possuíam

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serviços de atendimento à população. Atualmente, na região podem ser contabilizados quatro centros sociais e pelo menos dois escritórios de outros políticos que atuam de forma semelhante. O vereador está no seu primeiro mandato, foi eleito pelo PTB com 14.419 votos e migrou no ano passado para o PTC. Neste ano foi reeleito por este partido com 18.012 votos.

22 O Centro Social Renato Moura fica no bairro de Bangu, mais precisamente no sub-bairro Rio da Prata. Sua localização abrange os bairros do Rio da Prata e Senador Câmara, bem como as favelas que fazem parte destes bairros. O Centro do vereador Renato Moura fica na rua principal do bairro (Rua Rio da Prata), onde há também outros estabelecimentos, como lojas de ferragens, uma casa lotérica, um supermercado de grande porte, academia de ginástica, clínicas particulares, colégios particulares etc. O bairro é estritamente residencial, tendo a Rua Rio da Prata o papel de concentrar suas atividades comerciais. Nesta rua circulam cinco linhas de ônibus, como também kombis que fazem “lotada”. No site do vereador há a informação de que em um ano de existência seu Centro Social atendeu cerca de 30 mil pessoas.

23 O Centro conta hoje com atendimento médico, curso de informática, inglês e telemarketing, assistência jurídica, ginástica, ballet, jazz e outras atividades. Normalmente o serviço é gratuito, sendo necessário somente preencher um cadastro com dados pessoais e levar documentos para se marcar um atendimento. Em alguns casos é preciso pagar uma taxa de dez reais, como para fazer algum curso ou comprar material. Há uma equipe de cerca de vinte funcionários (entre profissionais e atendentes) e um coordenador que faz visitas periódicas.

24 Patrícia visitou o Centro Social e também o gabinete do vereador na Câmara Municipal para coletar os dados. Conversou com funcionários, assessores e observou a convenção do partido na região. Nesta, ficou claro que pelo menos três candidatos daquela área mantinham algum tipo de atendimento à população e incorporavam ao seu discurso a expressão “fazer o bem aos outros”, apresentada como um valor, juntamente com os princípios cristãos da solidariedade e ajuda, pelo presidente nacional do partido, Daniel Tourinho.

25 Durante as visitas ao Centro Social foi possível observar o vai-e-vem tanto das pessoas que utilizavam os serviços prestados como das que pediam informações sobre cursos, atendimentos etc. Ficou visível que o público atendido se concentra no entorno do local ou chega ao Centro de automóvel. Pôde ser observada uma intensa movimentação de idosos, que vinham para as sessões de fisioterapia trazidos por parentes (vários carros paravam e saíam conforme os atendimentos), de crianças da aula de ballet, esperando por seus responsáveis para ir embora (às vezes chegavam de carro ou bicicleta), e de alunos dos cursos que tinham em mãos o material necessário para a aula. Normalmente poucas pessoas ficavam na sala principal, o que a tornava um lugar de passagem e onde somente permaneciam mais tempo os funcionários do Centro Social.

26 Durante uma conversa com uma senhora foi possível notar o carinho com que se dirigia às funcionárias da recepção, “Elas são ótimas, muito carinhosas”, e à professora do curso de informática: “A professora é muito paciente”. O relacionamento entre os funcionários é permeado por demonstrações de afeto, como abraços ou cobranças afetuosas, como “A Neide?! Ela não liga mais pra mim”, no dizer de um funcionário. O próprio Renato Moura também expressa esta interação quando fala do projeto “Cinema em Movimento”, em que se leva gratuitamente ao “CineArte” Bangu (cinema

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inaugurado pelo vereador) crianças das redes pública e privada de ensino, grupos das chamadas comunidades e membros das associações de moradores.

27 Embora a pesquisa se encontre em estágio intermediário, concluímos a partir dos dados etnográficos obtidos que esses Centros Sociais mobilizam redes de relações sociais baseadas em trocas e afetividades fundamentadas em um projeto político que demarca espaços físicos e simbólicos, abrangendo valores e identidades de diversas procedências. Ao observarmos o “cotidiano das interações dos vereadores com suas equipes, os moradores e usuários do sistema, os bairros e o contexto urbano onde se desenvolvem os Centros Sociais” (Kuschnir, 2007a), foi possível perceber que a representação política está relacionada – pelo menos num certo plano – a valores morais que englobam redes de relações fundamentadas nos conceitos de honra, reconhecimento e gratidão. Assim, relações de troca baseadas em relações pessoais são fundamentais para a regulação do funcionamento das instituições e práticas políticas.

28 Fazendo uma conexão entre os estudos de caso apresentados podemos perceber algumas semelhanças e diferenças. Estas últimas caracterizam-se pelos modos específicos de organização do trabalho como, por exemplo, as regras referentes ao uso de uniformes, documentos necessários para cadastros, forma de acesso aos vereadores, entre outros. Percebemos, contudo, que o Centro Social não é apenas um local de prestação de serviços, mas também um meio propício para estabelecer vínculos afetivos e de convivência com pessoas que já faziam parte daquele cotidiano antes da matrícula no Centro Social, sendo esse contato prévio estabelecido, principalmente, através do pertencimento a determinados credos e relações de vizinhança ou parentesco. Por outro lado, a grande rotatividade de usuários não garante que todos se conheçam. Alguns passam a freqüentar o Centro Social sem possuir contatos anteriores, mas a partir desse momento começam a se formar novas relações sociais. É interessante observar como o próprio grupo se percebe. Por exemplo, nos estudos de caso com a vereadora Lucinha, as pessoas, em geral, se vêem como um grupo coeso, como se pode observar na fala de um freqüentador: “Aqui todo mundo é amigo, unido. Mesmo quem não conhece ninguém, chegando aqui logo faz amizades”. Já no estudo de caso com os Pereira, muitas usuárias referem-se entre si através da categoria “amiga”.

29 Após nos integrarmos aos grupos estudados e, de certa forma, passarmos a fazer parte dessa “família”, percebemos que muitos dos nossos preconceitos referentes ao funcionamento dos centros sociais foram desconstruídos. Por exemplo, que o local seria destinado somente a pessoas desfavorecidas financeiramente. Encontramos nos Centros Sociais alunos e usuários que os freqüentam porque sentem que o atendimento é mais amistoso ou porque um amigo já faz uso dos serviços. As razões são diversas e a ausência de recursos financeiros é uma delas, mas, certamente, não é a única. Essa questão pode até mesmo ser percebida através do caráter dos serviços prestados, pois muitos não são de primeira necessidade nem ao menos são encontrados nos serviços da rede pública. Por fim, sentimos que, mesmo inseridas no campo estudado, a dinâmica do cotidiano dos funcionários e freqüentadores dos Centros Sociais não propiciou nossa total inclusão naquele universo, que, apesar de nos ser familiar, continuou, ocasionalmente, a apresentar-se de modo distante (Velho, 1978).

30 Esperamos que a continuidade da pesquisa permita aprofundar essa reflexão, de modo a respondermos as questões mais gerais do projeto.

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BIBLIOGRAFIA

CARNEIRO, Leandro Piquet e KUSCHNIR, Karina. 1999. “As dimensões subjetivas da política: cultura política e antropologia da política”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 13, n. 24. Rio de Janeiro, p. 227-250.

KUSCHNIR, Karina. 1999. “Política, cultura e espaço urbano”, in: Gilberto Velho (org.),Antropologia Urbana: cultura e sociedade no Brasil e em Portugal. Rio de Janeiro, Zahar. _____. 2007a. Antropologia urbana: política, clientelismo e cotidiano. Projeto de pesquisa do Laboratório de Antropologia Urbana (LAU) do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA), IFCS/UFRJ. Rio de Janeiro, www.lau- ufrj.blogspot.com. _____. 2007b. Antropologia da política. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. 2002. “De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol 17, n. 49. São Paulo.

SIQUEIRA, RAÍZA ALVES. 2006. "Eu não dou o peixe pronto, dou a vara de pescar": um estudo sobre o cotidiano de um membro da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, Iuperj.

VELHO, Gilberto. 1978. “Observando o Familiar”, in: A Aventura Sociológica. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. _____. 2007. “Metrópole, cultura e conflito”, in: Rio de Janeiro: cultura, política e conflito, Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

RESUMOS

O presente trabalho é resultado de pesquisas realizadas nos períodos 2007/2 e 2008/1, com apoio de bolsas de iniciação científica (PIBIC/UFRJ e PIBIC/Faperj), como sub-projetos na linha de pesquisa Política e Cotidiano do Laboratório de Antropologia Urbana (LAU), coordenado pela professora Karina Kuschnir. O objetivo mais amplo desta linha é compreender práticas e representações acerca da política por parte de diferentes atores sociais em contextos urbanos. Como fim específico visa “investigar, mapear e analisar as formas de conexão entre políticos e população, especialmente na forma de Centros Sociais mantidos por parlamentares no Rio de Janeiro, focando suas relações com três redes sociais: políticos e suas equipes; moradores e usuários do sistema; bairros e contexto urbano onde se desenvolvem os Centros” (Kuschnir, 2007a). Deste modo, a pesquisa pretende contribuir para a compreensão das repercussões dos Centros Sociais para as representações e ações políticas na sociedade contemporânea. Estamos diante de novas formas de organizar as relações entre políticos, população, instituições e espaço urbano? Que formas são essas e qual a relação entre concepções sociais mais amplas e as categorias em jogo? (Kuschnir, 2007b).

AUTORES

LAÍS SALGUEIRO GARCEZ

Graduanda em Ciências Sociais (UFRJ)

Ponto Urbe, 5 | 2009 248

MAYÃ MARTINS

Graduanda em Ciências Sociais (UFRJ)

PATRÍCIA SOARES VIEIRA

Graduanda em Ciências Sociais (UFRJ)

Ponto Urbe, 5 | 2009 249

“Alfama não cheira a fado, mas não tem outra canção” ou “Tudo isso é a alma do Rio, é samba”: As Cidades Descobertas através do Samba, do Choro e do Fado “Alfama não cheira a fado, mas não tem outra canção” or “Tudo isso é a alma do Rio, é samba”: Cities Discoveries through Samba, Choro and Fado

Marina Bay Frydberg

1 Ítalo Calvino no seu livro As Cidades Invisíveis diz através do seu personagem Marco Pólo que “todas as vezes que descrevo uma cidade digo algo a respeito de Veneza” (1990, p. 82). Andando pela cidade observo suas esquinas, seus prédios, seu movimento, as pessoas que caminham por suas ruas. Mas que cidade é esta que eu estou vendo? Será realmente que a vejo? Ou que muito das suas nuances já foram por mim naturalizadas e já não são mais visíveis aos meus olhos descuidados. E a cidade que não vejo, nem faço questão de ver, que está escondida em morros de difícil acesso ou que só se encontra através de ruas estreitas. Enfim, como eu vejo a cidade?

2 A antropologia nasceu da busca por compreender sociedades distantes e estranhas ao pesquisador. Durante muito tempo o objeto da antropologia esteve localizado em um espaço, e muitas vezes em um tempo, diferente do que o antropólogo vivia. Aprendeu- se, assim a familiarizar-se com o exótico. Mas quando a antropologia voltou seus olhos para a cidade foi preciso fazer um outro exercício, estranhar o familiar. É na busca por compreender sua própria realidade que o antropólogo se voltou para a sua própria cidade, descobrindo que existem nela vários grupos sociais diferentes entre si e que convivem em um mesmo ambiente, o espaço urbano (Velho, 1980, Oliven, 1980, Magnani, 2000).

3 O samba, o choro e o fado são considerados gêneros musicais tradicionais, elementos formadores da identidade nacional e estão vinculados com todo um imaginário sobre o

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que é o Brasil e a música popular brasileira, no caso do samba e do choro, e o que é Portugal e a música portuguesa, no caso do fado. Nestes últimos dez anos, jovens músicos estão (re)criando gêneros musicais tradicionais como o samba, o choro e o fado e a partir dessas (re)criação inserindo-se nas suas tradições. Desta forma, esses jovens músicos alteram as suas trajetórias musicais e sociais e atualizam todo o imaginário e a identidade vinculada a esses gêneros musicais. Estas (re)criações fizeram com que estes gêneros musicais tradicionais ganhassem nova vitalidade e junto com eles territórios na cidade que são/estão diretamente vinculados as suas memórias.

4 Michel de Certeau (1990) defende que é através do imaginário que captamos o elemento do urbano no qual temos que pensar. O imaginário para Machado (2001), tendo como base a discussão de Castoriadis e Durand, é uma construção que cada sociedade e cada cultura faz em determinada época. O imaginário é constantemente formulado e reformulado, ele está em constante mutação. Machado entende o imaginário como “imaginação produtiva ou criadora, sistema de significações, significados, significantes criados por cada sociedade no fazer da história” (Machado, 2001, p.213). Este imaginário quando trata da cidade se constitui em um imaginário urbano. Pode-se entender, segundo Pesavento, que uma cidade só existe quando “é pensada e formulada no imaginário” (1996, p.378). A cidade não é formada só de pedra e cal, não é possível ter cidade sem que esta se constitua de um car áter simbólico. A cidade é assim, representação e imaginário da própria cidade. É a simbolização da materialidade, da sociabilidade e da sensibilidade. Para Pesavento (1995) o imaginário enquanto representação do real é sempre uma referência a algo que não está lá, que está ausente.

5 Neste sentido, a cidade aparece como uma construção simbólica dotada de uma identidade própria, ‘reapresentação’, no plano do imaginário, das ‘cidades reais’ do cotidiano. (Pesavento, 1996, p.380)

6 Quando este imaginário que é constantemente construído é cantado em música ele se consolida. Deixa de ter a característica da mudança recorrente e se transforma em algo com maior duração no tempo. As músicas que cantam lugares que fazem parte do imaginário da cidade consolidam ambientes e o transformam em ícones desta mesma cidade. A música tem esta capacidade de identificar elementos que fazem parte do imaginário da cidade, utilizá-los e reafirmá-los. Também de criar novos lugares representativos nesta mesma cidade. Não que esses lugares não existam, ou que só existam para o autor das músicas. Estes lugares não fazem parte, pelo menos oficialmente, do imaginário social sobre a cidade. Machado (2001) identifica que No Brasil, foi a literatura que, historicamente, apareceu como ponto de vista privilegiado na interpretação do mundo circundante e na reflexão sobre a vida citadina. Desde o século XIX, a partir da Independência, alguns escritores passaram a refletir sobre questões referentes à vida nas cidades brasileiras. (Machado, 2001, p.215)

7 Nem só a literatura tem a preocupação de refletir sobre a vida nas cidades. No Brasil com a invenção e consolidação do samba nas décadas de 20 e 30 do século XX, o tema da vida na cidade esteve sempre presente, afinal o samba é uma música tipicamente urbana (Oliven, 1989). Em Portugal o fado, gênero musical também tipicamente urbano, já canta a cidade e suas práticas sociais desde o seu surgimento na primeira metade do século XIX (Brito, 2001). Os novos gêneros musicais que foram surgindo como a bossa nova, o rock, o rap e o funk, continuaram preocupados com a temática da cidade e das práticas sociais vinculadas ao espaço urbano.

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8 O samba e o choro carioca reencontram a Lapa e fazem esta parte histórica da cidade do Rio de Janeiro reencontrar-se através deles. O fado de Lisboa renasce nos mesmos bairros da Lisboa histórica e fadista. A cidade que está sendo desvelada não é a cidade do cotidiano apressado da grande metrópole, é a cidade da noite e da boemia, com seu tempo e espaço particular. Esta descoberta de uma cidade vinculada a um gênero musical específico acontece a partir de práticas musicais cotidianas que exigem um trânsito por essas cidades e por seu tempo e espaço específico, a boemia sambista, chorona ou fadista. A revitalização de bairros tradicionais da cidade, seja ela o Rio de Janeiro ou Lisboa, faz com que estes jovens músicos (re)descubram outra(s) cidade(s) a partir de gêneros musicais que tão bem a cantaram.

9 A música pode construir um lugar de memória que represente a relação espaço e tempo. Esta pode se caracterizar pela relação dos habitantes da cidade com espaços que já não existem mais, uma saudade do passado. Mas para além da relação com o espaço ela também está relacionada com as práticas cotidianas realizadas ou associadas a esses espaços. Para compreender os lugares que as músicas cantam é necessário ter em vista que os espaços que elas estão cantando são dotados de sentido, por isso, são chamados de lugares. O espaço é algo concebido, pensado, formalizado, percebido, significado e experenciado através de diversas construções sociais e é nestes momentos que eles se transformam em lugar.

“Aos Bairros com Tradição, da Boemia e do Passado”: As Cidades Cantadas em Música

10 O choro, o samba e o fado são gêneros musicais urbanos, nasceram na cidade e desde o seu início cantaram esta mesma cidade. Mas não era qualquer cidade que estes gêneros musicais cantavam, era a cidade do povo, do cotidiano de trabalho e de sociabilidade das camadas populares. Esses gêneros musicais serviam como expressão do cotidiano popular e urbano, seja no século XIX – com o fado e o choro – seja no século XX – com o samba, o choro e o fado.

11 O choro passou a ser considerado gênero musical na década de setenta do século XIX, teve seu berço na cidade do Rio de Janeiro entre pequenos funcionários públicos. O choro desde o seu início foi a música que animava as festas populares e as comemorações de família, como batizados e casamentos. Por ser um gênero musical instrumental não cantava o cotidiano, mas servia para embalar os momentos de lazer e de sociabilidade das camadas populares, primeiro do Rio de Janeiro, mas depois se espalhando por todo o Brasil (Cazes, 1998).

12 O samba nasceu, pelo menos como gênero musical assim nomeado, em 1916, com a música Pelo Telefone de Donga e Mauro de Almeida. Fala o mito sobre a origem deste samba que ele foi composto nas festas, no centro do Rio de Janeiro, na casa de Dona Ciata, baiana que migrara para a cidade e organizava festas em sua residência com muita música e comida (Diniz, 2006). A música foi registrada com a seguinte letra: O chefe da folia Pelo telefone Manda avisar Que com alegria Não se questione Para se brincar

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13 O mito sobre a origem do samba conta que na época do registro da música havia sido publicada uma lei que obrigava que a polícia avisasse anteriormente por telefone que uma apreensão de jogos de azar seria realizada (Diniz, 2006). Dessa forma, a letra que caiu na boca do povo e ficou conhecida cantava os versos assim: O chefe da polícia Pelo telefone Mandou avisar Que na Carioca Tem uma roleta Para se jogar

14 Este primeiro samba que nasceu no centro da capital federal, em uma região de migração, que caracterizou a urbanização desta cidade brasileira, também cantou, na sua primeira música, esta mesma cidade, seus lugares e sociabilidades característicos. E foi a temática da vida cotidiana que povoou o imaginário desde gênero musical, das suas origens até os dias atuais.

15 O fado, enquanto gênero musical, também nasceu em um ambiente urbano. Foi nos bairros populares de Lisboa que o fado se tornou o que é, ganhou as suas características atuais. E foi o cotidiano destes mesmos bairros que ele se preocupou em cantar, das desgarradas nas tascas ou casas de prostituição e da guitarra portuguesa ainda tocada pelas prostitutas até as casas de fado com elenco fixo e repertório autorizado (Nery, 2004).

16 Todos estes gêneros musicais na medida em que nasceram na cidade e cantaram esta mesma cidade, ajudaram a construir um imaginário sobre o Rio de Janeiro e a Lisboa que estavam a cantar. Não que estes gêneros musicais não cantem outras cidades, mas por terem nascido nestas criaram através de suas músicas todo um imaginário sobre as mesmas. O samba é carioca assim como o fado é lisboeta. Mas o Rio de Janeiro e a Lisboa que estes gêneros musicais estão a cantar, não é a cidade como um todo, mas um recorte social e espacial destas cidades.

17 A Lisboa do fado canta a Alfama, a Mouraria, a Madragoa, o Bairro Alto. Mais que somente descrever estes espaços da cidade, os fados que se confundem com esses próprios bairros, construíram e ainda constroem juntos a identidade do bairro, de Lisboa e do fado.

18 Mas o fado também canta as suas origens como a Mouraria e também vai em busca dela, como em Saudade por Cantar, fado de Tiago Torres da Silva e Paulo Paz na voz de Joana Amendoeira. Quanta saudade Foi ficando por cantar Presa à vontade Que tenho de te encontrar E o que foi feito do dia Se quando a noite caía Sobre o meu xaile bordado Eu pressentia Que a saudade me pedia Para ir à Mouraria Aprender o que é o fado

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19 O fado também canta uma cidade que por mais que busque ter outra música jamais consegue fugir do seu fado, no duplo sentido do termo, como a música Alfama música de Alain Oulman e poesia de Ary dos Santos na voz de Mariza. Quando Lisboa anoitece como um veleiro sem velas Alfama toda parece Uma casa sem janelas Aonde o povo arrefece É numa água-furtada No espaço roubado à mágoa Que Alfama fica fechada Em quatro paredes de água Quatro paredes de pranto Quatro muros de ansiedade Que à noite fazem o canto Que se acende na cidade Fechada em seu desencanto Alfama cheira a saudade Alfama não cheira a fado Cheira a povo, a solidão, Cheira a silêncio magoado Sabe a tristeza com pão Alfama não cheira a fado Mas não tem outra canção

20 Enquanto o fado canta os seus bairros históricos o samba canta o Rio de Janeiro do centro da cidade e seus morros. Mas também canta seus bairros tradicionais onde o samba nasceu ou pelo menos onde cresceu, como em Vila Isabel, bairro que foi imortalizado na sua origem sambista na poesia de um dos seus maiores poetas, Noel Rosa aqui na voz de Francisco Egydio. Quem nasce lá na Vila Nem sequer vacila Ao abraçar o samba Que faz dançar os galhos do arvoredo E faz a lua nascer mais cedo Lá em Vila Isabel Quem é bacharel Não tem medo de bamba São Paulo dá café, Minas dá leite E a Vila Isabel dá samba

21 Mas o bairro carioca que ficou mais vinculado ao imaginário sobre o samba foi a Lapa. A Lapa do auge do samba imortalizou o tipo ideal sambista, o malandro com o seu jeitinho característico. Este personagem da Lapa tradicional e sambista foi cantado em música como em A Lapa de Benedito Lacerda e Herivelto Martins na voz de Francisco Alves. A Lapa Está voltando a ser A Lapa A Lapa, confirmando a tradição A Lapa, é o ponto maior do mapa Do Distrito Federal Salve a Lapa O Bairro das quatro letras Até um rei conheceu Onde tanto malandro viveu

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Onde tanto valente morreu Enquanto a cidade dorme A Lapa fica acordada Acalentando quem vive De madrugada

22 Assim como no fado o samba canta a cidade onde nasceu, os bairros que melhor o acolheram, os lugares na cidade onde melhor enraizaram as suas tradições. Mais que isso, o fado que canta a Alfama ou a Mouraria e o samba que canta a Lapa, cantam o ambiente boêmio em que estes gêneros musicais vivem. E é este ambiente boêmio e fadista/sambista que as novas gerações estão tentando reconstruir não só com a revitalização física dos seus espaços, como no Bairro Alto e na Lapa, mas também de seu imaginário agora revitalizado com novos bares e novos movimentos. Este novo imaginário está presente na música Eu vou pra Lapa, de Claudinho Guimarães e Serginho Meriti, que ficou internacionalmente conhecida juntamente com o bairro que canta através da voz de Alcione como tema de telenovela. É ela a dama da noite Com muitos Janeiros no Rio A plebe, a elite Um convite a quem ta de role Reduto de bambas, poetas, malandros Boêmios, vadios Tão considerada e na sua parada Não pára mané E toda vez que a noite cai A luz se acende e uma vontade me arrebata Eu vou pra lá Eu vou pra Lapa Aos pés de Santa Tereza A um passo da Glória Eu vou pra Lapa Porque Lapa tem história É a velha Lapa dos arcos, do Centro Do circo, do nobre Capela A Dama da Noite, Carioca da Gema Da Riachuelo e da Mem de Sá É a nova Lapa das tribos do raps Dos bits, dos hits e do tamborzão De um Bar Brasil Seu bonde é ruim de segurar

23 E são através das músicas que muitos jovens entram pela primeira vez em contato com estes lugares da cidade, com seu cotidiano, suas práticas, sua sociabilidade e, principalmente, seu imaginário. É através da música que canta a cidade que muitos jovens músicos descobrem ou redescobrem os espaços da cidade, transformando-os em lugares dotados de significados.

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“Cidade que ninguém resiste, na beleza triste, de um samba-canção”: As Cidades (re)Descobertas através da Música

24 A cidade vivida no cotidiano dos jovens músicos não passava, antes da descoberta dos gêneros tradicionais como o samba, o choro e o fado, necessariamente por estes bairros da cidade onde estes gêneros musicais nasceram e que cantaram. Muito dessa cidade cantada em samba e fado só é descoberta ou ainda redescoberta por outros olhos através da música. A Alfama, o Bairro Alto ou a Lapa são descobertos pelas mãos, ou melhor, pela audição de fados e sambas. Não que esses jovens nunca antes tenham transitado pelas ruas desses bairros tradicionais da cidade, embora isso até possa acontecer, mas a descoberta ou a redescoberta desses bairros se dá sob uma nova ótica, fadista, sambista, noturna e boemia.

25 Esses bairros tradicionais fazem parte da história da cidade e desses gêneros musicais, e são através deles que estes espaços urbanos são revitalizados. A Alfama, bairro tradicional de Lisboa, sempre teve a sua sociabilidade vinculada ao fado (Costa, 1984) e é este mesmo fado que revitaliza este espaço da cidade cada vez que é (re)descoberto por novos e jovens músicos. A revitalização através do fado não passa necessariamente por uma recuperação do espaço urbano, mas sim através da resignificação dos seus lugares de lazer e sociabilidade através da vivência desses jovens músicos, fadistas ou apreciadores do fado.

26 No Bairro Alto a revitalização deste bairro tradicional e fadista passa pela recuperação da sua vocação boêmia. Este bairro sempre teve um espaço dedicado ao fado, são muitas as casas de fado que se encontram nesta parte da cidade, mas a sua vocação boêmia não é exclusivamente fadista. O Bairro Alto de hoje se caracteriza por um “multiculturalismo” musical, onde fado, rock, pop, jazz, samba, ritmos latinos e muitos karaokês convivem em um mesmo território da cidade. Este “multiculturalismo” musical também acontece na Lapa no Rio de Janeiro.

27 A Lapa teve o seu apogeu como espaço boêmio e sambista nas décadas de 20 e 30 do século XX, foi nesta época que muitos dos seus famosos personagens transitavam por lá, do malandro Madame Satã ao sambista Wilson Batista. E é esta Lapa boêmia, sambista, noturna e datada que está sendo revitalizada através da promoção e divulgação da sua vocação notívaga. Este processo de revitalização da Lapa, que além de simbólico aconteceu também em termos urbanos e arquitetônicos, teve como marco a abertura do Bar Semente, dedicado exclusivamente ao choro e ao samba, que com o sucesso que obteve gerou a proliferações de bares dedicados a esses gêneros musicais específicos no território da Lapa (Jara Casco, 2007). A (re)descoberta do samba e do choro, fez com acontecesse a (re)descoberta da Lapa enquanto espaço urbano e lugar de tradição. Esta revitalização simbólica da Lapa gerou, de certa forma, uma revitalização espacial desta área da cidade. Movimento este que pode voltar a acontecer no Rio de Janeiro no centro da cidade através do Samba do Ouvidor, uma roda de samba que acontece todos os sábados à tarde na rua que lhe dá nome, ou na região portuária através do Trapiche Gamboa, bar renomado de samba que fica localizado nesta região da cidade.

28 Estes jovens músicos através de gêneros musicais específicos como o samba, o choro e o fado, descobrem e redescobrem lugares na cidade cheios de história e tradição, sejam destes bairros específicos ou dos gêneros musicais que ali nasceram, se consolidaram e

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tão bem cantaram. Com a (re)descoberta destes novos lugares na cidade estes jovens músicos estão se vinculando a toda uma tradição urbana, noturna e boemia, ou seja, a tradição fadista ou sambista. A cidade torna-se assim, o lugar de descoberta de um tempo e um espaço próprio, só possível de ser desvelado através das músicas que tão bem o cantaram.

“Era então uma cidade, onde à noite, a liberdade, tinha o fado por canção”: As Cidades Vividas pelos Jovens Músicos

29 A cidade que é descoberta através da música, não é a cidade apressada do dia a dia das grandes metrópoles, mas a cidade da noite e da boemia com seu tempo e espaço característicos. Seigel (1992) tenta delimitar os limites da boemia através da metáfora do que ele chama de terra da Boêmia. Seus limites eram a pobreza e a esperança, a arte e a ilusão, o amor e a vergonha, o trabalho, a alegria, a coragem, a difamação, a necessidade e o hospital. Para seus descobridores e exploradores do século dezenove, a Boêmia era um país identificável com habitantes visíveis, mas que não constava em qualquer mapa. Marcar suas fronteiras era cruzar constantemente de um lado para outro, entre a realidade e a fantasia(Seigel, 1992, p.11)

30 Ciscati (2000) nos fala em uma geografia da malandragem, geralmente vinculada ao samba, esta se divide em duas, na geografia da prostituição e no território da boêmia. Esta geografia da malandragem também pode ser pensada não só vinculada ao samba, mas também vinculada ao fado na figura do rufia (Pais, 2008). Sem dúvida o malandro sambista e o rufia fadista estão ligados à boêmia e a noite. À noite nos diz Ciscati (2000) é um tempo de relaxamento, de degeneração, de busca do prazer. A noite é o ambiente da boêmia onde se misturam poesia e música com transgressão de regras e leis. Não há uma boa noite na boêmia para um malandro sambista ou um rufia fadista sem uma boa bebida e uma boa música, cantadas em diversos versos musicais.

31 Há nas cidades um circuito da boemia muito freqüentado pelos malandros sambistas ou os rufias fadistas. Eles variam conforme a época, mas alguns permanecem no imaginário coletivo, assim como o nome de alguns dos seus personagens. No Rio de Janeiro foi a Lapa, em São Paulo a Boca do Lixo, em Porto Alegre a Ilhota, em Lisboa a Alfama, a Mouraria, o Bairro Alto. O malandro ou o rufia visto como herói tem na cidade o seu paraíso. É este espaço privilegiado que possui uma lei própria na noite que o malandro sambista e o rufia fadista circulam, dominam e demarcam o seu território. Eles criam, assim, fronteiras não só simbólicas, mas espaciais que determinam o seu domínio e, muitas vezes, separam tipos um pouco distintos de malandros ou rufias em espaços diferentes da cidade.

32 A permanência do malandro sambista ou do rufia fadista no tempo, por mais que ele mude de roupagem, está na permanência e importância da festa. Estou entendendo a festa como o momento em que “a cidade noturna vinga-se da cidade diurna do trabalho e da disciplina industrial” (Ciscati, 2000, p.222), ou seja, o lugar e o tempo da noite são outros e estão a estabelecer novos significados para esta mesma cidade. Estes jovens músicos que estão a (re)descobrir a cidade através da também descoberta de gêneros musicais tradicionais que tão bem o cantaram como o samba e o fado, estão de certa forma construindo em pleno século XXI uma releitura do malandro sambista ou do

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rufia fadista para a construção de um “novo boêmio”. Estes “novos boêmios” têm a sua identidade construída a partir da reinvenção de tradições musicais e urbanas do samba ou do fado. Mais que isso esses “novos boêmios” descobrem esta cidade boêmia através da valorização de um consumo cultural, o samba e o fado.

33 Mas a (re)descoberta da cidade através do samba ou do fado se dá através da vivência cotidiana noturna nos bairros de tradição musical. Estes jovens músicos que estão explorando estes bairros boêmios da cidade o fazem através do trânsito nestes mesmos bairros, onde elegem um determinado percurso para, a partir dele, irem explorando as vivências boemias, noturnas, fadistas, sambistas, enfim, urbanas.

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RESUMOS

Nestes últimos dez anos, jovens músicos estão recriando gêneros musicais tradicionais como o samba, o choro e o fado. Estas (re)criações fizeram com que estes gêneros musicais tradicionais ganhassem nova vitalidade e junto com eles territórios na cidade que são/estão diretamente vinculados as suas memórias. Esta descoberta de uma cidade vinculada a um gênero musical específico acontece a partir de práticas musicais cotidianas que exigem um trânsito por essas cidades e por seu tempo e espaço específico, a boemia sambista, chorona ou fadista. A revitalização de bairros tradicionais da cidade, seja ela o Rio de Janeiro ou Lisboa, faz com que estes jovens músicos (re)descubram outra(s) cidade(s) a partir de gêneros musicais que tão bem a cantaram.

Over the last ten years, young musicians are recreating traditional genres such as samba, choro and fado. These (re)creations made with these traditional songs have new vitality and revitalize areas in the city that are directly linked to their memories. This discovery of a city connected to a specific song happens from everyday musical practices that require a transit through time and space specific to this city, the bohemian sambista, chorona ou fadista. The revitalization of traditional neighborhoods of the city, either in Rio de Janeiro or Lisbon, makes these young musicians (re) discover other (s) town (s) through songs they sang so well the city.

ÍNDICE

Keywords: music, city, young people Palavras-chave: música, cidade, juventude

AUTOR

MARINA BAY FRYDBERG Doutoranda em Antropologia PPGAS/UFRGS [email protected]

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“Samba das cabrochas”: Identidades de gêneros e expressão emotiva em uma roda de samba no Rio de Janeiro (2008)

Caroline Peres Couto

Dedico esse artigo aos freqüentadores da roda de samba dos Escravos da Mauá e aos integrantes do "Fabuloso Grupo Eu Canto Samba" por contribuírem no transcurso dessa pesquisa, demonstrando-se atenciosos diante das minhas solicitações e gentis ao me acolherem.

A roda de samba Escravos da Mauá

1 A roda de samba Escravos da Mauá acontece mensalmente, desde 1997, no Largo São Francisco da Prainha, no bairro da Saúde, próximo ao centro do Rio de Janeiro. Situado nas cercanias dos Armazéns do Cais do Porto, o bairro da Saúde guarda uma importante parte da história do samba carioca.

2 A relevância histórica desse local é sustentada como bandeira representativa do grupo, seja na construção de seu próprio nome ou na referência ao site1 enquanto um espaço importante, porém pouco prestigiado: “A história dos bairros portuários cariocas é a história do próprio Rio de Janeiro, embora a maioria dos cariocas não a conheça. Além de toda a questão da cultura negra”.

Os músicos, o espaço e o público

3 No site, o grupo afirma que, quando se iniciou, desejava “...um bloco pequeno, formado por amigos, amigos dos amigos e o pessoal que trabalha, mora ou passa por ali”. Com o

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crescimento da divulgação do evento, entretanto, as rodas foram se tornando mais cheias e com um público variado.

4 Deixando de lado os três meses que antecedem o carnaval, quando acorre um público bastante heterogêneo, as rodas de samba são normalmente freqüentadas por um núcleo relativamente estável, que mantém uma ligação há mais tempo com o evento. Estas pessoas costumam ocupar lugares específicos mais próximos dos músicos e/ou que facilitam o encontro com grupos de amigos. Uma entrevistada, freqüentadora da roda há nove anos, explicou seus motivos para ficar sempre no mesmo local (perto da caixa de som). “Eu sempre fiquei ali”, disse ela. Em seguida completou que naquele espaço encontra seus amigos, “pessoas que restaram dessa caminhada dos Escravos da Mauá”, em contraposição com os que vêm de fora, de “várias procedências”. Pelo que pude perceber, variadas redes de sociabilidade estão dispostas nesse espaço, havendo alguns indivíduos que circulam entre todas elas. Magnani (1996) emprega a categoria nativa de “pedaço” para designar um espaço intermediário entre o privado e o público onde se reforçam os laços de sociabilidade entre pessoas que, em sua maioria, possuem a mesma procedência. Comparo o conceito de “pedaço” à maneira singular como o espaço dessa roda é ocupado. Aqui, no entanto, as redes de sociabilidade não cingem o núcleo familiar, mas são delineadas por aproximações muito “familiares” entre os freqüentadores, tornando esse espaço um “ponto de referência para distinguir determinado grupo de freqüentadores como pertencentes a uma rede de relações.” (Magnani, 1996 p. 32). Uma entrevistada tentou explicar essa relação de proximidade dos integrantes do grupo:

5 Há oito anos atrás todo mundo se conhecia. Você chegava, você conhecia absolutamente todo mundo. Se você não conhecia porque era amigo, era amigo do amigo, ou era amigo do amigo do amigo...Todas as pessoas tinham a mesma ligação, participavam ou freqüentavam o mesmo grupo.

Minha inserção no campo

6 Minha entrada no campo está relacionada com uma aproximação e interesse anteriores pelo samba, tendo tocado pandeiro durante três anos e participado de uma roda de samba e uma de choro. No mundo acadêmico, a semente desse trabalho foi plantada durante as aulas da disciplina Antropologia das Emoções, quando a questão da emoção começou a me instigar para pensar o motivo da alegria que se manifesta nas rodas de samba. Tentei então compreender como o samba concilia a “tristeza”, que aparece em um grande número de letras, com a “alegria”, que é uma referência para o ritmo e a animação das rodas. Decidi começar a investigar essa hipótese na roda Escravos da Mauá, que já conhecia, mas pouco freqüentava. Terminado o trabalho, cheguei à conclusão de que a emoção expressa nas rodas pouco tem a ver com as letras, mas se relaciona com o samba e o que ele representa. Além disso, observei que as mulheres tinham destaque diferenciado nas rodas, dançando muito mais que os homens e expressando mais “livremente” suas emoções. No período seguinte2, decidi prosseguir com o mesmo tema dando ênfase à questão das identidades de gêneros. Considerei como elementos principais de trabalho as categorias “cabrocha” e “rapaziada”, surgidas e constantemente acionadas nessa roda. Tentei compreender se realmente as mulheres são mais identificadas com a emoção e que conseqüências isso acarretaria. Tentei, também, dar conta de outra questão que está imbricada nesta e que, ao meu ver,

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lhe é indissociável: seriam as mulheres uma categoria única, que podia ser compreendida em uma identidade como “cabrocha”? Ou haveria uma multiplicidade de identidades de gêneros que a composição “rapaziada” e “cabrocha” não cingia?

7 Fui a campo quatro vezes, no intuito de observar participativamente a roda. Também me utilizei do Orkut para conhecer as comunidades sobre os Escravos da Mauá, observar o que os membros conversavam e fazer contato com eles. Entrevistei três freqüentadores – duas mulheres e um homem - e dois músicos do grupo - uma mulher e um homem. O site do grupo também foi extremamente útil por conter referências, de maneira sintetizada mas objetiva, sobre como o grupo se auto-representa.

“O Fabuloso Grupo Eu Canto Samba” e suas “cabrochas”

8 No site Circuitos do Rio3, encontrei uma “auto-entrevista” em que os próprios músicos dos Escravos da Mauá elaboravam a pergunta e a resposta. Uma das perguntas que o grupo faz é a seguinte:

9 Nós - E o ‘Fabuloso Grupo Eu Canto Samba’ e suas cabrochas? Nós mesmos - As cabrochas são todas ‘número 1’: animadíssimas, não perdem uma e estão sempre prontas a nos ajudar a segurar qualquer imprevisto. Volta e meia nos perguntam o que é preciso para sagrar-se cabrocha da Mauá. A resposta é simples: basta aceitar o cabrochismo em seu coração e freqüentar os eventos.

10 Na própria elaboração da pergunta, o grupo já reconhece as “cabrochas” como um elemento separado do grupo, mas indispensável na constituição deste como roda de samba.

11 As “cabrochas” são essenciais para que a roda aconteça, pois segundo os músicos são elas que ajudam a animar o grupo. Durante as apresentações é possível ouvir, por diversas vezes, os músicos evocando as “cabrochas” para cantarem um refrão mais animado através de frases como “Agora as cabrochas”, “Vamos lá cabrochas”. Muitas vezes quando os músicos fazem alguma referência a si mesmos mencionam também as “cabrochas”, deixando de lado a “rapaziada”. É interessante observar o que o grupo aconselha a quem quer ser uma “cabrocha”: uma quase introspecção, buscando “aceitar em seu coração” o “cabrochismo”. Segundo essa percepção, a parte referente à emoção de cada um precisa ser acionada para que a pessoa consiga finalmente se sentir membro do samba. O uso da palavra “aceitar” também põe de lado qualquer tentativa de criar intencionalmente uma ligação com o samba, deixando que uma condução natural aproxime a pessoa de sua “porção cabrocha”, que, segundo essa afirmação, já lhe é inerente. Essa aproximação com o natural está relacionada, nesse discurso, à figura feminina e nesse sentido me refiro a gênero e não a sexo, inclusive porque há uma indeterminação na frase dos músicos (“Volta e meia nos perguntam...” [grifo meu]), impossibilitando o conhecimento de quem, homem ou mulher (categorias compreendidas normalmente como referencial do sexo), busca sagrar-se como cabrocha da Mauá.

12 Catherine Lutz e Lila Abu-Lughod (1990) defendem uma abordagem da emoção enquanto prática discursiva que expressa e reforça as relações de poder. Prática discursiva entendida não apenas como fala, mas que também inclui formas não- verbais de expressão. Segundo elas, a emoção é concebida como associada a dois pólos

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valorativos. Levando-se em conta o contexto, a emoção pode incidir sobre características emocionais negativas como irracionalidade, dor, descontrole, ou sobre características positivas, como autenticidade, prazer, envolvimento. Enquanto a emoção é fortemente associada ao “feminino”, a racionalidade, entendida como fruto de um maior distanciamento do mundo, é associada ao “masculino,” o que reforça hierarquias de poder que favorecem, a meu ver, não os “homens” compreendidos como uma categoria generalizante, mas indivíduos a que são atribuídas estas qualidades.

13 A antropóloga americana Michele Rosaldo(1984) define as emoções como “pensamentos incorporados”, pois o “sentimento sempre recebe sua forma através do pensamento, e o pensamento é carregado de sentidos emocionais.” Esse entendimento da emoção como “pensamento incorporado” provoca uma cisão com a idéia de que razão e a emoção encontram-se compartimentadas. Além disso, para Rosaldo os “sentimentos são práticas sociais estruturadas pelas formas de compreensão e concepção do corpo, do afeto e da pessoa, estas por sua vez culturalmente definidas”, o que põe em cheque a concepção universalista das emoções.

A dança das “cabrochas”

14 Em um determinado momento da roda, as “cabrochas” são convidadas a subir na calçada para cantarem e dançarem o “samba das cabrochas”4.

15 A fim de delimitar as identidades de gênero formulei a categoria “cabrocha atuante”, para dar conta da multiplicidade de identidades de gêneros “femininos” que transitam nesse espaço. As “cabrochas atuantes” são aqui compreendidas como as mulheres que estão, na maior parte do tempo, dançando próximo dos músicos e que participam do momento “samba das cabrochas”. Elas se auto-identificam como “cabrochas” e o grupo em geral também as nomeia assim. Senti necessidade de formular essa categoria quando percebi que as “cabrochas” podem não estar necessariamente dançando o samba que as identifica, mas estar também na posição de público, assistindo a performance.

16 Conversando com uma freqüentadora que, num primeiro momento da conversa, não se considerava “cabrocha” (porque não achava que “samba com toda essa destreza”), comecei a me dar conta de quem seriam as “cabrochas não atuantes” e as “cabrochas atuantes”.

17 Eu conheço várias cabrochas que são exemplos de cabrochas. (O quê que é um exemplo de cabrocha?) Um exemplo de cabrocha é uma pessoa que representa, que incorpora o samba. E eu conheço algumas que realmente são a incorporação do samba ali naquele momento, naquele momento específico. Então no samba das cabrochas elas são as cabrochas. Você olha é fala “aquela é uma cabrocha”, “aquela não é uma cabrocha”.

18 Mais tarde, quando insisti para que falasse mais sobre essa distinção entre quem é “cabrocha” e quem não é, ela respondeu que “na verdade todo mundo que está ali durante o ano é uma cabrocha, todo mundo que está ali porque vive aquilo ali é uma cabrocha”. A explicação de uma “cabrocha” que considero como “cabrocha atuante” também indica essa situação. “Tem outras que não vão [dançar] por timidez. Tenho muita amiga que se considera cabrocha, mas não sobe pra dançar”. Essa “cabrocha atuante” entende o termo “cabrocha” da seguinte maneira:

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19 Segundo o Aurélio, [as cabrochas] são as mulatas freqüentadoras de roda de samba. Só que lá na Escravos toda mulherada que freqüenta a Escravos, toda mulherada que gosta de samba, toda mulherada que gosta dessa vida meio boêmia eu acho que eu considero como cabrocha.

20 Completou sua explicação dizendo que, se encontra uma mulher em várias rodas de samba e percebe que é freqüentadora assídua e verdadeiramente gosta de samba, pode ser considerada, então, uma “cabrocha”. As mulheres que “vêm de fora” e não freqüentam samba, “não vivem aquilo ali”, não são consideradas “cabrochas.” Para esse outro grupo utilizo a categoria “mulheres de fora”, mas mesmo sendo “de fora”, elas ocupam uma posição, tanto na roda como no discurso das “cabrochas”, apesar de nenhuma delas terem se referido a si mesmas dessa forma.

21 A partir dessas declarações é possível perceber que, quando são solicitadas a pensar sobre o termo “cabrocha”, as duas freqüentadoras, apesar de assumirem papéis diferentes na roda, só conseguem diferenciar as “cabrochas” das “mulheres de fora”, que não seriam classificadas como freqüentadoras de samba. A “cabrocha”, que em um primeiro momento da conversa não se considerava como tal, tentou explicar a indiferenciação das “cabrochas atuantes” das “não atuantes” afirmando que o que acontece na roda é uma grande brincadeira. Todas as “cabrochas”, atuantes ou não, considerariam umas às outras como “cabrochas”. A identidade de gênero “cabrocha” é (re)produzida e negociada, fazendo crer em uma distribuição igualitária dessa identidade, o que mantém um clima amistoso entre elas e as diferencia das “mulheres de fora”.

22 Visitando a comunidade da roda no Orkut descobri que os membros organizaram uma eleição da “cabrocha” do ano. Lá verifiquei que os votos eram relacionados à performance das “cabrochas” na roda de samba, ou seja, ao momento em que as “cabrochas atuantes” ganham destaque. A performance destas é dramatizada em frente ao grupo de músicos, em cima da calçada, o que facilita a observação. Os votos para eleger a “cabrocha” do ano podem ser tanto dos homens que as observam como das mulheres, que são consideradas também “cabrochas” pelas “cabrochas atuantes” mas que, no entanto, não participam desse momento.

23 Quanto à performance das “cabrochas atuantes”, penso ser relevante analisá-la levando em consideração a teoria de Bourdieu (1999) que reconhece o ser feminino como ser- percebido, ou seja, sendo a sua construção identitária fomentada através do olhar do outro.

24 Tudo, na gênese do habitus feminino e nas condições sociais de sua realização, concorre para fazer da experiência feminina do corpo o limite da experiência universal do corpo- para-o-outro, incessantemente exposto à objetivação operada pelo olhar e pelo discurso dos outros. (Bourdieu. 1999, p.79)

25 Essa construção do corpo feminino, segundo Bourdieu (1999), é dada em um plano ideal e por isso provocaria nas mulheres uma incessante necessidade de agradar e atrair a atenção para si. Ele compreende que o reforço dos estereótipos femininos promovido pelas mulheres é reflexo de uma sensação vivida por elas de “negação de existência”, e que o reforço dos “atributos femininos” informados e engendrados socialmente lhes concederia um espaço social. A sedução e a exaltação de atributos femininos sensuais seriam, para ele, uma das atribuições que as mulheres acionam para ganhar reconhecimento. A questão da paquera e da sedução apareceu no discurso de todos

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participantes que entrevistei, e é notável que um clima de sedução permeia o ambiente da roda, mesmo que de maneira discreta. Quando perguntei a uma “cabrocha atuante” se os homens poderiam participar da coreografia ela disse que não: “Só as mulheres, os homens ficam de espectadores. Eles vão lá pra frente e ficam babando, não babando, mas ficam olhando assim...”

26 A teoria do “ser feminino como ser-percebido” é válida se considerarmos, como já disse anteriormente, o contexto em que este é construído, pois nem todas as relações sociais travadas entre as identidades de gênero reafirmam a “dominação masculina”. Para a situação da roda dos Escravos, é cabível uma aproximação com esta teoria, tendo em vista que a evidência que as “cabrochas” ganham durante o “seu samba” é valorizada no discurso da “cabrocha atuante”, o que deixa claro que é naquele momento que os homens (mas não só eles) vão olhar e avaliar a performance. Há nesta cena o que Bourdieu chama de “hexis corporal”, uma atitude corporal específica que as “cabrochas atuantes” acionam durante o “samba das cabrochas” e que está relacionada ao fato de serem o foco naquele momento.

27 Enquanto a “cabrocha atuante” defendia o “samba das cabrochas” como sendo um momento só delas, do qual os homens não podiam participar, a cantora me relatou que:

28 De vez em quando tem um ou outro que sobe [no momento do “samba das cabrochas”] e as mulheres ficam: ‘Sai daqui, sai daqui que você não é “cabrocha” (...) Claro que são pessoas conhecidas que têm esse tipo de ousadia, conhecidas das cabrochas que estão ali.

29 O “samba das cabrochas” é, para alguns, o momento de observar a performance das “cabrochas atuantes”. No entanto, um freqüentador que entrevistei associa a própria música “Mas quem disse que eu te esqueço?” com algo muito particular de sua vida amorosa, afastando-se da posição que, nesse momento, como “rapaziada”, teoricamente ele ocuparia:

30 Eu gosto muito dessa música. (...) Me lembra situações que eu vivi inclusive ali, me lembra um relacionamento de dois anos. (...) Porque o samba muitas das vezes você se identifica, né? Hoje quando eu ouço essa música, eu lembro muito dela [namorada].

31 O que me chamou a atenção quando o entrevistei foi o fato de, em vários momentos, ele se identificar como estando distante de uma identidade de gênero específica, os “caras sem camisa”, que aparecem naquele espaço, principalmente durante o período do pré- carnaval, não para curtir o samba mas para ficar com alguma mulher. Eles se distinguem por abordar as mulheres de uma forma que é condenada pelo freqüentador:

32 Quando passa uma mulher bonita e o cara segura pelo braço ou o cara vai chegando numa mulher. Isso ai é pouco comum, mas acontece na época do verão quando está enchendo muito; você percebe os caras sem camisa e tal.

33 Os “caras sem camisa” estariam, comparando com a definição que as “cabrochas” dão para as “mulheres de fora”, em uma posição menos valorizada, associada diretamente a aspectos negativos. Enquanto as “mulheres de fora” só são definidas em oposição direta às “cabrochas”, “freqüentadoras de roda de samba”, os “caras sem camisa” possuem um espaço próprio no discurso dos freqüentadores. As “cabrochas” também reclamaram do assédio que elas passam a sofrer nesse período. Essas pessoas, como disse uma freqüentadora, “um dia vão se cansar do carnaval daqui e vão pra Bahia”, relacionando estes freqüentadores a carnavais em que predominam trios elétricos e axé music.

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34 Tanto as “cabrochas” como os integrantes da “rapaziada” opõem-se a essa identidade de gênero que é associada negativamente por eles com um “clima de pegação.” Com isso fica claro que a oposição “homem” versus “mulher”, derivada de uma leitura binária do sexo e que foi transposta para a questão do gênero, não se sustenta aqui. Possivelmente devido ao fato de os “caras sem camisa” alterarem negativamente a dinâmica do local, não são desejáveis por ambas as partes. Diferentemente das “mulheres de fora”, que são assimiladas pelo grupo, mesmo não ganhando o status de “cabrochas”.

35 O integrante da “rapaziada” definiu sua identidade de gênero de forma diferente da idéia que Bourdieu propõe para pensar o “homem”, que, segundo ele, é vítima da representação dominante e coagido a reafirmar a “dominação masculina”. Para Bourdieu, a posição de dominador “impõe a todo homem o dever de afirmar, em qualquer circunstância, sua virilidade”. Em vários momentos durante a entrevista o rapaz afirmou que não deixaria “de curtir Escravos pra ficar com uma mulher que eu mal conheço” e que abriria mão de ir ao motel com uma garota para ir aos Escravos. Relatou, também, que um amigo que estava com ele um dia no Escravos voltou arrependido, no final do evento, depois de ter saído com uma mulher que mal conhecia para transar. Chamou-me a atenção o fato de que, além de confessar isso para uma mulher que o estava entrevistando e que acabara de conhecer, ele e o amigo conversaram abertamente sobre isso, já que o senso comum faz crer que entre homens há um repertório de conversas sobre situações vantajosas sexualmente, sendo o contrário visto como perda de virilidade diante dos demais.

Expressão emotiva “do samba” na roda

36 Na roda de samba dos Escravos da Mauá observo que o caráter emocional do samba ganha “corpo” na figura das “cabrochas”. Entrevistei um dos músicos que afirmou que o “samba das cabrochas” “é um samba que tem uma cara feminina.” Explicando a identificação das “cabrochas” com o “samba das cabrochas”, afirmou que “é legal você estar em um lugar e se sentir homenageada, se sentir do lugar”. Em sua fala a frase “se sentir do lugar” foi realçada, reiterando uma idéia de familiaridade que tanto os músicos como os freqüentadores apreciam manter.

37 Sugeri que ele me contasse também sobre o caso dos rapazes que subiram na calçada durante o “samba das cabrochas” e ele disse: “Quando aparece um cara assim, fica todo mundo olhando, como quem diz a tua hora não é essa. É uma hora das cabrochas efetivamente”.

38 Para o músico tanto “cabrocha” como “rapaziada” são uma “marca” da roda de samba. Na roda de samba dos Escravos percebo que os “termos” são a identificação do próprio samba, é onde o samba ganha “corporificação”. O termo “cabrocha” promove uma identificação individualizada, ao mesmo passo em que, coletivamente, ganha expressão. A junção das “cabrochas” na frente da platéia, para dançarem o samba que lhes é uma “exaltação” (assim o músico o descreveu), também adquire a forma de reverência ao próprio samba, o que o caracteriza como um ritual. O samba passa pelo processo de reificação durante a roda, fazendo com que ele passe, então, a representar a coletividade. Nas palavras do músico:

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39 Toda a vibração de chegarem aquelas mulheres todas pra perto da gente e todo mundo fica super-feliz de ver as mulheres todas sambando. É um momento muito mágico, é um momento super-prezeroso que parece que todo mundo se abraça. É como se fosse um gol de um time.

40 A cantora do grupo utilizou o termo “uma família de coração” para descrever o que sentia em relação à roda. Utilizou-se também da palavra “ninho” quando quis explicar o que sente quando chega ali no espaço do samba, que lhe permite se desvencilhar do cansaço do trabalho, do que entendo como “mundo de fora”.

41 Entendo o “mundo de dentro” do samba nos termos de zonas “livres” de Eduardo Archetti (2003). Em sua definição ele entende as zonas “livres”:

42 (...) como las propriedades anti-estruturales de Turner (1967), permiten la articulación de lenguajes y prácticas que pueden desafiar un dominio público oficial y puritano. Las zonas “libres” son espacios para la mezcla, la aparición de híbridos, la sexualidad y la exaltación de desempeños físicos. (Archetti, 2003, p. 42)

43 Os integrantes da “rapaziada” ficam alheios à “homenagem”, apesar de inseridos no processo ritual. No entanto, alguns rapazes da “rapaziada” não se contentam com a categoria que lhes é designada e ficam de frente para as mulheres fazendo as mesmas coreografias, expressando abertamente suas emoções. O rapaz que entrevistei, por exemplo, disse que participa das coreografias. Recorro mais uma vez à contextualização para que se possa entender que, em uma situação específica, a expressão emocional na roda de samba pode relacionar-se a algo íntimo, o que não interfere na expressão emocional do samba. A roda de samba entendida como zona “livre” permite tanto a expressão de emoções derivadas de relações/sentimentos pessoais, como a expressão emocional que significa a “corporificação” do próprio samba. Arrisco-me a supor que só quem já possui uma relação “emocional” com a roda de samba expressa abertamente sentimentos que dizem respeito à vida íntima. Tanto os integrantes da “rapaziada”, que reivindicam um espaço, assim como as “cabrochas” encaixam-se na categoria de “bambas”5, termo criado pelos freqüentadores da roda.

44 Na roda de samba dos Escravos da Mauá as identidades de gêneros são formuladas de acordo com uma escala valorativa onde a expressão emotiva ganha mais destaque. Analisando o sistema que a roda organiza, as identidades de gêneros são criadas numa tentativa de aproximação de qualidades emocionais associadas às “cabrochas.” É claro que, por ser uma escala, existem identidades distantes dessa posição mais valorada. Há tanto “mulheres” como “homens” que optam por não participar de alguns momentos da roda, não só da dança, mas também do canto durante o evento.

45 Uma interferência eficaz nesta reprodução hierárquica onde a razão se sobrepõe à emoção seria uma mudança de paradigma para além da assimilação de alguns “homens” em identidades de gênero “emocionais/femininas”. Um questionamento sistemático da positivação da “racionalidade” poderia trazer algumas mudanças para esse cenário desigual e produziria mais efeitos do que apenas valorar a emoção. Afinal, a emoção já possui seus “pontos positivos” e simplesmente afirmá-los não significa mudanças. Contudo, isso não determina um abandono dessa valorização como um recurso, visto que acredito que essas duas perspectivas são complementares. Ao que tudo indica, uma assimilação de múltiplas identidades de gênero tende a colocar em questão a própria concepção binária do sexo.

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46 Judith Butler recorre à definição de Foucault, que compreende que a gramática substantiva do sexo,

47 (...) impõe uma relação binária artificial entre os sexos, bem como uma coerência interna artificial em cada termo desse sistema binário. A regulação binária da sexualidade suprime a multiplicidade subversiva de uma sexualidade que rompe as hegemonias heterossexual, reprodutiva e médico-jurídica. (Butler, 2003, p. 41)

48 Desnaturalizar os papéis binários heterossexuais pode solucionar em parte o problema. Todavia, a hierarquia envolvendo razão e emoção não será dissolvida apenas nesses termos. Como foi dito anteriormente, colocar em questão a positivação da racionalidade propiciaria uma mudança mais eficaz, tendo em vista que as sociedades ocidentais historicamente preconizam a razão em detrimento da emoção.

Conclusão

49 Apesar de ter tido poucas oportunidades de estar em campo, pude obter algumas informações preciosas que contribuíram para o trabalho. Observei, por exemplo, que há uma multiplicidade de gêneros que transitam nesse espaço e que as categorias “cabrocha” e “rapaziada” não abarcam completamente essa diversidade. Notei também a freqüência de um grupo de homossexuais do qual, infelizmente, tive dificuldades de me aproximar, mas que, em uma futura continuação desse trabalho, pretendo abordar para recolher igualmente as suas impressões sobre a roda.

50 Por mais que todos ali justifiquem que o uso dessas categorias é apenas uma “brincadeira”, elas devem ser entendidas como um reflexo de uma ordem binária do gênero, resultado de uma compreensão do sexo como determinante para identidades de gênero. No entanto, se seguirmos a sugestão de Butler e questionarmos o “pré- discurso” que produz o sexo como construtor indispensável do gênero, poderemos começar a problematizar essa questão. Para tanto, é preciso vencer alguns obstáculos. Inicialmente estes se definem na dificuldade de aceitar que as identidades não são e não necessitam ser coerentes nem únicas e também na questão do sexo, que suscita uma série de complicações semelhantes à própria definição inerte que é imposta à identidade. A expressão emotiva tem se apresentado como elemento essencial na roda de samba e consequentemente é extremamente valorizada. As identidades de gênero nesta roda de samba estão dispostas em uma escala valorativa em que a emoção aparece como característica mais positivada. Apesar da emoção ser normalmente associada ao “feminino” é preciso entender o contexto. Tanto a emoção como a razão podem ser acionadas ou abandonadas dependendo do interesse que cada indivíduo possui socialmente. Da mesma forma, “masculino” e “razão” podem não se apresentar associados, apesar de serem categorias utilizadas quando se pretende ganhar distinção e prestígio social. Aproximar-se de uma identidade de gênero mais “emotiva” não promove consequentemente uma modificação nas relações de poder que “homens” e “mulheres” exercem sobre outros “homens” e “mulheres”. Nessa problemática o que vem se apresentando como mais favorável é levantar questões sobre a construção social da emoção e da razão nas sociedades ocidentais e como isso pode auxiliar num exame mais detalhado sobre as relações de poder instauradas pelo gênero. O primeiro passo para tal análise é a decomposição do próprio gênero.

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BIBLIOGRAFIA

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ROSALDO, Michelle Z. Toward an anthropology of self and feeling. In: Culture Theory: essays on mind, self, and emotion. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.

NOTAS

1. http://www.circuitos-do-rio.com.br data da visita: 26/05/08 2. Na disciplina Antropologia de Identidades de Gêneros 3. http://www.circuitos-do-rio.com.br data da visita: 26/05/08 4. Esse samba na verdade, tem como nome “Mas quem disse que eu te esqueço?” e é de autoria de Hermínio Bello de Carvalho, mas se fez conhecido na voz de Dona Ivone Lara. 5. A categoria “rapaziada”, como foi dito no início, compreende apenas o coletivo, incluindo uma série de indivíduos que perdem sua identidade, confundida na categoria que os generaliza. No entanto, muitos freqüentadores da roda não se contentam com essa nomeação, se auto- denominando “bambas”. Alguns membros da comunidade chegaram a promover uma eleição do “bamba” do ano assim como há uma eleição para as “cabrochas”.

RESUMOS

Este artigo resulta do trabalho etnográfico desenvolvido em uma roda de samba, no Rio de Janeiro, que tem setores das “camadas médias” como principais freqüentadores. O objetivo é

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pensar a existência de uma multiplicidade de identidades de gêneros a partir de duas identidades básicas – “cabrochas” e “rapaziada” – surgidas nesse evento. Contrapondo-as à oposição binária de gênero, percebo uma complexidade de identidades dentro e fora dessas categorias. A oposição binária de gênero (Butler, 2003) deriva da dualidade do sexo e é entendida como algo pré- existente ao discurso de gênero. No entanto, essa dualidade também é construída na conjuntura cultural, necessitando de questionamentos. Nesse espaço, as expressões emotivas, assim como a performance e as relações na roda, são relevantes para a própria construção das identidades de gênero. O desenvolvimento desse trabalho incide sobre o contexto em que essas identidades são (re)produzidas e reafirmadas pela dinâmica envolvida nesse processo.

ÍNDICE

Palavras-chave: gênero, emoção, samba

AUTOR

CAROLINE PERES COUTO [email protected] Universidade Federal Fluminense (UFF)

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Escarafunchando mundos e construindo espaços: uma etnografia do olhar

Carlos Gomes de Castro e Laís Jabace Maia

NOTA DO AUTOR

O presente trabalho foi apresentado no VII Graduação em Campo, evento promovido pelo Núcleo de Antropologia Urbana da USP.

Gostaríamos muito de agradecer à debatedora da mesa “Sou o que sou: corpo e identidade”, Janaína Damasceno Gomes, doutoranda na referida universidade. Seus comentários provocaram muitas reflexões e possivelmente serão retomados em trabalhos posteriores.

Introdução

1 Este artigo foi construído a partir de uma mistura de momentos, citações, interpretações ainda em processo de reflexão, discussões, risadas e cansaço. Queríamos colocar todas as frases que escutávamos e, assim, compor uma narrativa de vocábulos soltos, vozes soltas, tudo desconexo... Não conseguimos. O próprio texto nos deu uma rasteira e se escreveu ordenadamente, bem comportado. O campo foi sem rumo, a escritura não. Forjamos uma linearidade. As palavras que se seguem são, portanto, uma tentativa de conectar as frases vividas na experiência-correnteza do campo. “Eu conto pra vocês minhas histórias. E vocês fazem um resumo pra colocar no trabalho... Cê compreendeu?” Talvez tenhamos compreendido, Seu Tito.

2 Esta cartografia1 conta histórias e memórias sobre o olhar, objeto de nossa pesquisa. Para compreender a configuração das percepções de mundo dos cegos em grandes centros urbanos e a maneira como suas interações ocorrem, fizemos uso dos seguintes

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métodos qualitativos: observação participante, conversas informais, trajetórias de vida e entrevistas temáticas.

3 Utilizamos textos que se debruçam sobre questões relacionadas ao olhar, ao espaço e ao corpo. Na primeira parte, problematizamos tais questões por meio das teorias sobre a prática discursiva, de Foucault (1987; 1993), e a identidade, de Edward Said (2007). Para uma maior aproximação do modo de vida dos cegos, entramos em contato com a literatura de Helen Keller e Evgen Bavcar. A maior fonte para nossas reflexões adveio da convivência com três colaboradores cegos, personagens principais de nossa trajetória de campo, que nos chamaram a atenção para o lugar precípuo do olhar. Na segunda parte, intercalando leituras teóricas e dados etnográficos, discorremos sobre como o olhar, ao mergulhar nas contradições e lacunas do estar-no-mundo, é capaz de revelar, através de um processo ativo de interação entre objetos e sujeitos, fronteiras e descontinuidades, construindo, assim, um espaço de existência fluido e sempre novo. O olhar dos cegos ultrapassa a ótica hegemônica da percepção vidente: libertado do olho, o olhar ocupa o corpo inteiro ou, invertendo, o corpo ocupa o olhar inteiro. Seu Tito, Oscar e Dona Lúcia, personagens principais de nossa trajetória de campo, mostraram- nos como é possível apreender o mundo por vias não visuais: cheirar sonhos, ouvir prédios, tocar beleza e comer palavras é também uma maneira de criar representações mentais e de se apropriar de diversos espaços.

4 Os relatos aqui analisados apontam para a importância das sensibilidades individuais para a apreensão criativa dos mundos. Compreender como esses três deficientes visuais, através do olhar, percebem e dotam de significado a si mesmos, a cidade, as pessoas, as relações intersubjetivas, em suma, como desvendam os espaços invisíveis e em devir é a pretensão deste trabalho.

5 Durante as conversas, Dona Lúcia nos perguntava: “Atingi o que vocês querem?”. Agora nós, após escrevermos uma incipiente reflexão, perguntamos: atingimos o que a senhora nos disse, Dona Lúcia? Será que conseguimos escrever/ler por cima de seus ombros, tal como nos propõe Clifford Geertz? “Tô sendo assim meio crua para bater no ponto que será válido”, ainda nos dizia. Será que conseguimos perceber o ponto que é válido? Fizemos uma interpretação densa? Talvez Lúcia, Oscar e Tito possam nos responder tais questões ou quem sabe algum leitor atento. Mesmo que não tenhamos chegado às tramas do ato de experimentar o mundo por meios não visuais – tramas de um “jogo profundo” –, valeu o ato de tornar visível algumas lascas das leituras invisíveis dos três personagens com os quais conversamos.

Estigmatização dos cegos

6 Discursos de saber, atrelados a formações e práticas discursivas, formatam e propagam certos repertórios de conduta, valorizam modelos específicos de pensamento, criam ideais, difundem metáforas e estabelecem jogos de linguagem (SAID, 2007; FOUCAULT, 1987). Pensando nisso, é possível afirmar que a concepção de deficiência visual consiste em uma invenção dos não-cegos que funciona como um discurso, uma instituição organizada. É em uma negociação, em um jogo de poder assimétrico, em suma, em uma prática discursiva – conjunto de regras que definem as condições da ação enunciativa –, que o mundo dos videntes se constrói e, concomitantemente, constrói a cegueira.

7 Os não-cegos engendram centenas de “verdades” sobre a alteridade, produzindo estereótipos de subjetividades fundamentais para invenções estigmatizadoras dos cegos

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– criações que deles se afastam, pois, para terem sentido, dependem mais de quem as constrói do que de quem é inventado (SAID, 2007). É comum encontrarmos representações que associam à cegueira adjetivações negativas, como inferioridade, demonização e inutilidade. Constitui-se, a partir dessas representações, um imaginário social no qual os cegos são uma deturpação do adulto normal, o vidente, que tem sua identidade construída no inevitável encontro com o outro que não vê. Assim, o conceito de deficiência visual por muito tempo difundido consiste em um contraponto à normalidade, sendo uma retórica histórico-social pautada em representações ou metáforas daquilo que falta ou é disfuncional nos corpos de determinadas pessoas. Essas representações culturais operam “uma lógica sóciocultural dominante, como uma meta-narrativa que se introduz nas vidas das pessoas com deficiência como um regime de verdade” (CORREIA, 2007, p. 25).

8 A hegemonia da perspectiva vidente é perceptível na configuração das interações. Nestas, quase sempre, ocorre o abafamento da diferença em prol do fortalecimento do padrão identitário estabelecido. No encontro, com o intuito de manter uma espécie de conforto geral na sociedade, são utilizadas basicamente duas maneiras de tratar os que desobedecem à ordenação habitual: a estratégia da assimilação, que planifica a diferença e abafa as distinções culturais, físicas e/ou linguísticas por meio do princípio da semelhança, e a da exclusão, que expulsa os estranhos do mundo ordeiro e os impede de estabelecer comunicações de maneira ativa (DOUGLAS, 1976; BAUMAN, 1998). Ignorar ou confrontar os cegos são, portanto, atitudes que conduzem para um mesmo ponto: o domínio da visão. Ignora-se, a fim de afastar o diferente do mundo padronizado; e confronta-se, a fim de torná-lo igual, incluindo-o no esquema hegemônico. Ou seja, um cego, para se inserir e ser aceito no mundo vidente, necessita aprender e apreender as categorias dos que veem, passando a ser quase um deles. Percebe-se, pois, uma supervalorização de um “eu normalizado e domesticado” em detrimento do “outro como diferença”.

9 É importante salientar que há também o medo na relação entre cegos e não-cegos. Segundo Bauman (1997), os estranhos “obscurecem e tornam tênues as linhas de fronteira que devem ser claramente vistas” (p. 27), causando, aos olhos dos ‘comuns’, uma incerteza diante do mundo e um mal-estar gerado pela perda do referencial social e moral. A humanidade, de acordo com esse autor, nunca tolerou o contato com o estranho, que seria responsável pelo rompimento de barreiras e pelo questionamento de padrões, tornando explícito aquilo que frequentemente é escondido. Do anômalo emerge a confirmação de nossas classificações principais e a certeza de que a vida não se ajusta às categorias, o que para seres que necessitam de um mundo rigidamente ordenado pode ser desagradável (DOUGLAS, 1976).

10 Uma fala de Oscar exemplifica bem os pontos acima mencionados: O ser humano resiste muito ao estranho. As pessoas têm muita dificuldade de se relacionar com os outros, com os cegos, com os surdos, com os mendigos. É um medo muito grande. Um despreparo. O ser humano é muito resistente a algo que (...) pode acontecer com ele mesmo. Sofremos um preconceito muito mesquinho e inútil. Outro dia, estava andando na rua e um cara trombou em mim. Minha bengala voou longe. Ele disse: “não sei por que cego sai de casa!” E eu disse: “não sei por que cavalo sai do curral!”.

11 Dona Lúcia também afirma:

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Os que têm deficiência incomodam os outros. Todos são inseguros e não sabem lidar com aquilo. Assim, se sentem ameaçados e apelam para ou fingir que todo mundo é igual ou para deixar os deficientes no gueto deles.

12 Para amenizar os efeitos de visões estigmatizadoras que os encapsulam em um grupo indistinto de pessoas desacreditadas e deficientes (EUGENIO, 2003), os cegos, no meio urbano contemporâneo, desenvolvem estratégias de sobrevivência e convivência modeladas pelos padrões dominantes de comportamento, chegando mesmo a adotar estruturas de linguagem já pré-concebidas que para eles são esvaziadas de significado. Acreditam muitas vezes que, se forem capazes de absorver os conhecimentos e as condutas específicas do mundo vidente, participarão plenamente das relações sociais e, por conseguinte, poderão ser aceitos como adultos normais, autônomos e independentes. Fernanda Eugenio (2003) aponta para essa questão ao analisar homepages de pessoas cegas. Segundo ela, como há no mundo ocidental uma valorização exacerbada da cultura letrada, o computador tornou-se uma ferramenta fundamental para os cegos, pois, por meio dele, puderam se inserir mais efetivamente no espaço vidente da escrita e também se tornaram independentes dos “ledores”4. Nas palavras dela: Fechados em seu mundo de pontinhos em relevo sobre papel, os cegos não podem nem querem ignorar que este não é o padrão social que os encompassa. (...) Através de softwares de leitura de tela e de sintetização de voz, não mais se depende da visão para ler ou escrever na mesma linguagem dos videntes” (p. 58).

13 E ainda acrescenta: O computador, como o braile, viabiliza a leitura e a escrita independentes, mas teria a vantagem adicional – e preciosa – de permitir que isto seja feito utilizando os mesmos recursos dos videntes e não ferramentas específicas para cegos. Poder usar o computador, afirma mais um deles, permitiria ‘a aproximação das pessoas com deficiência dos patamares de competitividade e produtividade exigidos pelas sociedades modernas’(p. 58).

14 Nossos colaboradores enfatizaram várias vezes a importância do estímulo à independência, estipulando à família e à escola especializada o dever de preparar o deficiente visual para a labuta cotidiana em um mundo hostil a eles, criado por e para videntes. À independência, atrela-se a fala da igualdade, configurando, assim, um discurso que se coaduna com a ótica vidente da normalidade e da autonomia dos indivíduos. Muitos retalhos de conversas com o seu Tito vão ao encontro dessa ideia: “A pessoa tem que ficar empenhada para ser igual a todos”; “Você tem que fazer o que os outros fazem”; “Tem que haver um sacrifício, uma disponibilidade, para a pessoa ser tratada como normal”; “A gente procurava ter uma vida bem próxima das pessoas normais”; “Eu trabalhava já, pagava as contas. Tinha uma parcela nas despesas. A pessoa tem que ser integrada. Se a pessoa não for independente, ela passa por exclusão”; “O deficiente quanto mais a locomoção é independente, ele anda por conta dele, não tem vínculo especialmente com a família, ele terá sucesso.

15 O que pulsa nesses trechos é o quanto a necessidade de inclusão é forçada, isto porque os cegos têm a obrigação de caminhar em direção ao mundo dos videntes, tido como puro e limpo se comparado ao mundo viscoso da falta de cores e imagens.

16 Apesar de interagirem em um espaço de poder assimétrico, no qual os videntes possuem uma força discursiva legitimada e institucionalizada, os cegos podem se destacar dos videntes e assim o fazem ao articular, com maestria, tato, olfato, paladar e audição, sendo capazes de sentir profundamente a cidade e adotar posturas específicas

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nela. Não precisam se adequar, portanto, às configurações de ação diferentes (e adversas) das suas, sendo capazes de criar seus próprios padrões. O som é essencial na nossa vivência cotidiana. A bengala faz um barulho específico em cada lugar: sons de lugares ásperos, lisos, molhados; um som para o degrau, outro para o passeio. Texturas distintas, sons distintos... lugares outros. É imprescindível ter uma noção básica do lugar, mas muitos detalhes ajudam. Cheiro de farmácia, sacolão, loja de tecidos. Prédio dá eco, loja não. Lugares a que vamos sempre, a gente identifica fácil, rapidinho. Caminhos rotineiros de ônibus? Conheço pelas viradas, trepidar do chão, descidas. Não sei se vocês entenderam essa coisa à qual chamo de sensação. A visão é mais fácil, então vocês se esquecem do resto(fala de Dona Lúcia).

As sensações, o olhar e o espaço

“O olhar é muito expressivo, muito significativo... e isso a gente não tem. (...) Eu não via nada, mas eu sentia. (...) A visão é mais fácil, então vocês se esquecem do resto”. Dona Lúcia

17 De acordo com Merleau-Ponty, há uma distinção analítica entre ver e olhar. Ver é um ato de natureza passiva, que beira a ingenuidade e mantém uma relação discreta e reservada com o observado, seja ele pessoa ou coisa. A visão apresenta um mundo maciço, pleno, marcado por uma continuidade de sentido e de objeto, o que garante uma realidade pranchada e lisa, para a qual a incoerência e as lacunas são ignoradas e insuportáveis. As significações estão exteriormente estabelecidas em relação ao sujeito. É inexistente a inter-relação daquele que vê com o que é visto. Sérgio Cardoso (1988) aponta para o caráter deslizante do ver, em que o espectador forma imagens através do enquadramento da paisagem que desfila ligeiramente diante de seus olhos. A partir da intensa velocidade do processamento de informações e da vida cotidiana contemporânea, as imagens patinam em nossa mente, retirando, por isso, o prolongamento da duração, tão necessário à experiência da diferença com os objetos e as pessoas.

18 No ver a integridade e suficiência do mundo, bem como sua sólida e rija consistência, rejeitam o vidente para o domínio de uma total exterioridade com relação a si, fazem o visível dublar-se de um outro absolutamente separado (CARDOSO, 1988, p. 349).

19 A análise do ver está estreitamente ligada às considerações de Epicuro. Para este, o mundo é o princípio de visão por oferecer imagens ao corpo do homem, bastando que este, para conhecer, fique de olhos bem abertos e registre o turbilhão de simulacros jogados pelo cosmos. Em um contexto no qual o olho é por excelência o fundamento do processo de intelecção, os deficientes visuais seriam excluídos ou idiotizados. Mas o filósofo não se atém apenas à visão como veículo exclusivo de apreensão da realidade: “os sentidos são mensageiros do conhecimento”, porquanto é no encontro do corpo e da alma, da memória e do corpo, dos átomos e do corpo que o sensualismo se realiza e, em suma, “todos os nossos pensamentos têm a sua origem nas sensações” (EPICURO, apud NOVAES, 1988, p. 15).

20 A percepção da fragmentação, da descontinuidade, das fronteiras e das lacunas é uma característica do olhar, possuidor de natureza distinta daquela do ver. O sujeito que olha adota uma atitude ativa no espaço e no tempo, como um pintor que inverte a lógica da observação ao se sentir olhado e trespassado pela corporeidade dos objetos que ele tenta pintar. O ato de investigação e exploração não é solitário, pois há uma interação entre observador e observado, os quais, antes tidos como plenamente puros,

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tornam-se híbridos. O olhar refuta mundos lacrados e se propõe a mergulhar nas contradições da existência. Nesse sentido, é possível conceber um mundo constantemente redescoberto e vivenciado em um processo de estranhamento que provoca tensão no sujeito-objeto, em que o invisível é palpável e, principalmente, apropriável.

21 Pelo que explicitamos, é-nos permitido afirmar que a inexistência de visão não acarreta necessariamente a impossibilidade de olhar. Sendo assim, Dona Lúcia, Seu Tito e Oscar experienciam o espaço pelo olhar corporal e essa experiência os constitui enquanto um corpo-sujeito que dá sentido ao mundo. Este se move e reage mutuamente com os indivíduos. Assim como o olhar, a espacialidade se sustenta no movimento. Somos sujeitos pelo corpo que construímos no tempo e no espaço. Na medida em que a dimensão do próprio ser realiza-se no e pelo corpo, nele são efetivadas e inscritas as experiências e os projetos de vida de cada um (MAUSS, 2003; ELIAS, 1993). Podemos pensar, então, em modalidades particulares de ser-no-mundo, cujo corpo é o fundamento da inserção e o provedor das perspectivas pelas quais os posicionamentos no espaço e a manipulação de objetos adquirem sentido.

22 Le Breton evidencia de modo claro o que defendemos: matriz da identidade, o corpo é o filtro mediante o qual o homem se apropria da substância do mundo e a faz sua por meio dos sistemas simbólicos que compartilha com os membros de sua comunidade. (...) A condição humana é corporal. O mundo só se dá na forma sensível. As percepções sensoriais arremessam fisicamente o homem ao mundo e, desse modo, ao seio de um mundo de significados; não o limita, o suscita (LE BRETON, apud CORREIA, 2007 , p. 15-21; tradução livre).

23 Os colaboradores apresentaram-nos diversas formas de apreensão do mundo pelo olhar, as quais, por sua vez, ratificam certas posições defendidas pelos teóricos aqui abordados.

24 Dona Lúcia, sempre muito ativa e “pra frente”, disse-nos que desde a infância lidava com a interação espacial tranqüilamente: com a segurança que o pai estimulou, movimentava-se em Machado, sua cidade natal, praticamente igual às crianças não- cegas. Se estas utilizavam o olho como instrumento de localização e apreensão do espaço e da realidade, Lúcia lançava mão de sua percepção aguçada para desvendar o invisível. Explicitou-nos um modo de existência baseado na concretude, isto é, no toque e no som que emanam das corporeidades dos objetos. Ambos, objetos e ela, mantêm uma relação de reciprocidade: Aprendi o Braille desde sempre. Sentir com a mão. O furar na espuma contornando um desenho. A gente contornava um retângulo, uma estrela. Coloria depois com giz de cera. (...) Quando você pensa ela [imagem] na sua cabeça, você imagina você olhando... eu imagino tocando. Eu vou imaginar pegando, não vou imaginar olhando. (...) No interior, a gente tinha muita liberdade. Eu sabia andar de bicicleta. E não era devagar não! Era na rua. Meu pai me levava para lugares com poucos buracos. Pelo golpe de vento na esquina eu sabia onde virar. Brincava de casinha, boneca, corda, nadava. O que eu mais gostava era de andar de bicicleta: não existia nada melhor do que sentir o vento tocando o rosto.

25 Seu Tito, viajando por diversas cidades de Minas Gerais e Espírito Santo, escarafunchou os espaços. Sentiu as diferenças das calçadas de Valadares, Bom Despacho, Pará de Minas, Cachoeira do Itapemirim... Diferenças que passam despercebidas por nós -

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pessoas que veem mas que, na maioria das vezes, não se posicionam atentamente perante a realidade. A cada nova cidade, Tito mantinha uma postura corajosa e independente: ia para a rua e descobria o mundo. Segundo ele, os lugares podem ser reconhecidos pela distância, pela topografia, pelo olfato e pela ventilação. É importante ressaltar que a bengala é um instrumento, senão um prolongamento do corpo, imprescindível para ele. Ao relatar sobre sua profissão, representante de calçados, disse-nos: Eu sou um homem de coragem. Não sei se qualquer um encararia o que eu encarei. Um representante que viajava tanto, assim que nem eu, era difícil.

26 Mas não é apenas nas viagens que percebemos em Seu Tito um olhar que deseja abarcar o mundo, um olhar que deseja, acima de tudo, interagir com o invisível. Na vida familiar, ele também se imiscuía nos espaços e realizava tarefas que pessoas não-cegas, como o pai dele, tinham muitas dificuldades. Eu não enxergava, mas mexia no moinho elétrico. Eu era o único que sabia ligar e desligar ele direitinho. Tinha um macete. No meio da noite, eu ia lá desligar ele. Meu pai acreditava em mim. (...) A gente quando tem o dom de Deus tanto faz. Mesmo com a visão baixa eu saía, fazia as coisas. Não tinha problema, não.

27 A expressão corporal de Oscar, ator de teatro, baseia-se na sua relação com os objetos, público e personagens dentro do palco. Sua relação com o mundo foi fortemente influenciada por essa experiência profissional: aprendeu a direcionar a sua expressão facial no diálogo interpessoal e a enfrentar sozinho os desafios em busca da autonomia. Nunca se importou com as concepções preconceituosas e negativas de outras pessoas. Sempre teve ímpeto de realizar as mais diversas atividades, como andar de perna de pau e praticar malabares. Em ambas é preciso ter uma boa percepção do espaço em que se movimenta e do deslocamento dos sujeitos-objetos, além de um profundo conhecimento do próprio corpo.

28 De acordo com Oscar e alguns colegas seus, no Teatro Universitário, em uma das atividades de treinamento da percepção corporal, faz-se uma roda com diversos integrantes os quais trocam bastões entre si rapidamente, com o objetivo de não os deixar cair. Quando perguntado sobre seu admirável desempenho, ele justifica que o código sonoro “ooh”, emitido assim que alguém arremessa o bastão, serve de sinal de alerta. O interessante é que o “ooh” é utilizado por todos os jogadores, mas apenas Oscar, que não vê, nunca perde um bastão. Como seus ouvidos e sua percepção dos “golpes de vento” são bastante aguçados, olha as descontinuidades do jogo de maneira mais atenta: percebe as diferenças de velocidade e a direção dos objetos que são jogados; se for necessário, ele afasta o corpo para pegá-los.

29 Oscar tem consciência de que seu corpo é um locus de apreensão das experiências e, por estar inserido na sociedade, precisa interagir e não se esquivar das relações externas ao Instituto São Rafael7.

30 Para ele, a postura corporal é um importante sinal dos vários posicionamentos que podem ser tomados no mundo social, além de refletir a auto-percepção dos cegos: Será mesmo que a pupila do cego é seu corpo inteiro? A maioria dos cegos são debilitados, têm dificuldades para andar... uma insegurança.... Vocês tiveram a sorte de encontrar cegos bem resolvidos,... muitas vezes a pupila do cego não é seu corpo inteiro. Para mim isso pode funcionar, eu uso meu corpo inteiro mesmo, preocupo com minha postura. Tem cego que anda na rua de cabeça baixa. Isso reflete, com certeza, a auto-estima, a convivência, a estrutura e a maneira de se auto-perceber, a maneira de se perceber no espaço. No restaurante você se comporta de um jeito, em

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casa de outro, no ônibus de outro... o movimento corporal representa muita coisa e às vezes o cego não está atento para isso.

31 Questiona a afirmação genérica segundo a qual todos os indivíduos cegos captam as experiências do mundo corporalmente e ainda diz: “Eu conheço cegos que não se desenvolveram”. E não ter uma postura corporal ativa, isto é, não desenvolver o olhar, é um problema para a vivência cotidiana dos cegos, porque sem o treinamento das sensações é impossível apreender os espaços.

32 A interação espaço-corpo é também tema de Evgen Bavcar, filósofo e fotógrafo esloveno cego. Ele afirma que seu verdadeiro desafio é, através da fotografia, conjugar as realidades visível e invisível, apreendendo o que lhe é obscuro. A arte da fotografia de Bavcar é uma subversão de um método hegemônico que retira as imagens do “real” sem perscrutá-las, um método fotográfico passivo: uma coleção de imagens não lamacenta, isto é, esteticamente agradável, não baseada nas sensibilidades concretas da realidade. Para o fotógrafo, imagens são representações do inatingível, o seu prazer em senti-las advém de “roubar e fixar em um filme algo que não lhe pertence; secretamente, descobre que possuiria algo que nunca poderia ver”8 (tradução livre). Após tocar manualmente os objetos, ele segura a câmera com a boca e os enlaça, compondo uma imagem em que sua fala se relaciona com os objetos e o espectador. Através do tato, Evgen Bavcar põe em comunicação as corporeidades do mundo e do corpo-objeto- sujeito; “a mão que amassa” (expressão de Bachelard) decompõe o invisível e o torna visível ao filósofo esloveno e aos não-cegos.

33 Baseados na experiência de campo e nas teorias expostas anteriormente, colocamos em questão algumas concepções de Oliver Sacks contidas no texto Ver e não ver, do livro Um antropólogo em Marte (1995). Em sua releitura de Von Senden, o autor afirma que os deficientes visuais não conseguem abstrair uma noção de espaço, porque não são capazes de vivenciar imagens simultâneas e instantâneas. Tempo e memória, para ele, são fortes referenciais na construção de mundo dos cegos, um mundo que não possui a idéia de espaço por não existir a formação de imagens visuais. O espaço dos cegos, por ser inconstante e volátil, dado na temporalidade do olhar, é um espaço não valorizado por Sacks9.

34 Os relatos de Dona Lúcia apontam para a impossibilidade de formação de imagens orgânicas, fechadas; o que percebe são pedaços do corpo, trechos que muitas vezes não se ligam. Porém, ela consegue abstrair conceitos e formas gerais de algumas coisas, principalmente se forem pequenas, como, por exemplo, um copo. Não rechaçamos as conclusões de Sacks, todavia, pensamos ser importante valorizar as outras sensações para a construção do espaço, que, a nosso ver, não é hermética, lisa e sem lacunas como uma fotografia. Não podemos resumi-las a impressões incapazes de constituir um todo espacial. Ao lermos o mundo com Oscar, Dona Lúcia e Seu Tito, percebemos o olfato, o tato, o paladar e a audição como fundamentais para a apreensão e captação do espaço por outras formas que não a visual, por formas que estão intimamente ligadas à noção de olhar. Sites

www.zonezero.com/exposiciones/fotografos/bavcar, acessado em 11 de abril de 2009.

www.almg.gov.br/not/bancodenoticias/Not_666592.asp, acessado em 27 de outubro de 2009.

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NOTAS

1. O trabalho de campo foi realizado na cidade de Belo Horizonte, entre os meses de agosto e novembro de 2008. 2. Nasceu em 1983. Reside em Vespasiano, mas trabalha e estuda em Belo Horizonte. É um jovem ator que estudou no Instituto São Rafael dos 11 aos 17 anos, onde se formou no ensino fundamental e teve sua iniciação ao teatro. Desde sempre a cegueira lhe foi inevitável: capricho da genética. Todos na família têm problemas de visão e, com um ano e dois meses, ele já usava óculos. Foi justamente o alto grau de miopia que provocou o descolamento de retina. Passou por três cirurgias sem sucesso. Ficou cego do olho esquerdo aos 5 anos e do direito aos 9. Sua mãe, segundo ele, deu-lhe a estrutura familiar necessária para que se sentisse capaz de enfrentar os desafios, sentir-se feliz e levar uma vida comum. Formou-se no ano passado no Teatro

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Universitário, projeto da UFMG, onde estudou à noite e nos fins de semana. Durante o dia trabalha na TIM, no setor de controle de qualidade, e no Sesi em Cena com teatro empresarial. 3. Nasceu em Machado, sul de Minas, em 1948. Seus pais tiveram cinco filhos, três dos quais eram cegos de nascença. Mudou-se para São Paulo ainda criança com o objetivo de continuar os estudos primários. Nesta cidade estudou em um internato especializado no trabalho com alunos cegos e parcialmente cegos. Começou o antigo 2º grau e aprendeu inglês em Brasília, onde frequentou uma escola Salesiana. Veio para Belo Horizonte, cidade em que seus pais moravam, com 16 anos e terminou o segundo grau em uma escola não especializada. Tornou-se funcionária pública concursada do Instituto São Rafael. Dona Lúcia foi professora de todas as matérias para alunos de 1ª a 4ª séries durante 25 anos e também dava aulas particulares de inglês e português para crianças não-cegas. Hoje ela é aposentada. 4. Ledores são indivíduos que leem para os cegos. 5. Filho de fazendeiro e de dona de casa nasceu em Pedro Leopoldo, em 1944. Foi o único dos 8 filhos a nascer com certa deficiência visual. Quando criança, enxergava parcialmente, porém, aos 19 anos, por ter glaucoma, perdeu completamente a visão. Tendo o apoio do pai e da tia, Marta, conseguiu ultrapassar o que poderíamos chamar de período dolorido da perda da visão. Após essa fase, foi para Belo Horizonte e terminou a 6ª e 7ª séries no Instituto São Rafael. Fez curso de massagista e, com 27 anos, começou a trabalhar no Hospital São Paulo e em uma sauna. Aos 36 anos, Tito iniciou a carreira de representante em uma empresa de calçados – emprego no qual já está há 25 anos. 6. Ver também Correia (2007). 7. A Escola Estadual São Rafael (Instituto São Rafael) foi fundada em 1926 com o objetivo de educar, reabilitar e integrar o deficiente visual. O grupo de alunos é constituído, essencialmente, por portadores de deficiência visual sem limite de idade, que são atendidos sob os regimes de internato, semi-internato e externato. A escola oferece Ensino Fundamental e Médio, itinerante (atendimento ao portador de deficiência visual que estuda em escola regular), orientação, mobilidade e oficinas pedagógicas. A equipe de apoio, constituída de psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, supervisores pedagógicos e odontólogos, oferece suporte ao atendimento integral do educando. Além deste corpo técnico, a escola conta com o apoio de um grupo de voluntários, que desempenha as funções de leitores e gravadores de livros literários e digitadores, entre outras. (FONTE: www.almg.gov.br/not/bancodenoticias/Not_666592.asp; Acesso em 27/10/2009) 8. www.zonezero.com/exposiciones/fotografos/bavcar 9. Correia (2007) também questiona as concepções de Sacks, chegando a conclusões semelhantes às nossas. A leitura da tese de doutorado de Correia foi fundamental para apreciarmos analiticamente algumas das experiências vividas no campo.

AUTORES

CARLOS GOMES DE CASTRO

Graduando do 8º período de Ciências Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais.

LAÍS JABACE MAIA

Graduanda do 8º período de Ciências Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais.

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Sobre crença e afeto: diálogos de um candomblé na cidade

Amanda Horta, Juliana Soares Campos e Pedro Moutinho

Introdução

1 Da experiência da cidade à experiência do terreiro, o número de ruas cruzadas é pequeno se nos restringirmos ao discurso recorrente na mídia e a certas análises acadêmicas que atestam o afastamento da religiosidade, a diminuição dos contatos interpessoais e um diagnóstico de individualização no contexto urbano que não contempla as diferenças: as equaliza. De perto e de dentro , operando com ambiguidades e contrastes que expõem a lógica nativa e redescobrindo a semelhança , a etnografia que precede e acompanha a realização deste trabalho nos permite descrever e refletir sobre a casa de Mãe Efigênia, o candomblé Manzo Ngunzo Kaiango, cujos integrantes e práticas são parte constitutiva do universo urbano. A casa de Mãe Efigênia localiza-se no alto do bairro Santa Efigênia, na região central de Belo Horizonte. Um portão estreito e uma escada conduzem morro abaixo a uma espécie de vila onde habitam onze famílias, num total de 52 pessoas unidas por laços consanguíneos. É no centro desta vila que se encontra o terreiro de candomblé angola Manzo Ngunzo Kaiango , que fora antes Senzala de Pai Benedito, um terreiro de umbanda, que ainda influencia os rituais hoje candomblecistas da Casa de Santo. Mãe Efigênia, matriarca da família, ocupa ali, desde os tempos de Senzala de Pai Benedito, a mais alta posição da hierarquia religiosa.

2 Os terreiros de candomblé se estruturam a partir de uma complexa rede de relações sociais orientadas por uma hierarquia religiosa que permeia os laços familiares e de amizade existentes entre os adeptos da religião. Neste sistema de participações e obrigações que une os iniciados através de relações de parentesco mítico, o pai ou a mãe de santo ocupam o topo da hierarquia, inscrita no contexto particular de cada terreiro como unidade autônoma. Assim, o líder religioso do terreiro de candomblé acaba por se constituir como referência simbólica para todos aqueles que se encontram

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sob sua dependência, destacando-se como guia espiritual e figura de máximo respeito e autoridade inquestionável.

3 Em torno da figura de Mãe Efigênia se erige e se mantém a família - cuja maioria é “do santo” - e o terreiro de candomblé, com filhos de santo que ultrapassam as centenas e vão além dos portões do terreiro, dos limites do bairro, da cidade e até do país . As facilidades da vida urbana, o encurtamento das distâncias, a agilidade dos meios de comunicação permitem que o terreiro também se expanda por sobre a cidade e amplie suas redes, transpondo a distância entre os membros da família de santo como um obstáculo facilmente superável.

4 Perfeitamente incorporado à vida na cidade, terreiro e espaço urbano dialogam e estabelecem entre si uma relação de continuidade, em que marcas e valores urbanos se manifestam na estrutura do candomblé (SILVA, 2001) e, de forma complementar, o simbolismo mágico também se estende por sobre as referências do universo urbano.

5 No terreiro de Mãe Efigênia, um importante símbolo deste diálogo, enquanto relação mútua entre o mágico e o urbano, refere-se às práticas estabelecidas no jogo de búzios . O jogo de búzios constitui-se ali como um dos principais canais de aproximação entre a Mãe-de-Santo e o público, na medida em que a consulta, enquanto prática divinatória, vincula-se diretamente ao desejo, estado da alma humana tantas vezes dito universal , sob a forma de epistemofilia: o querer saber. Pelos búzios abre-se a possibilidade de uma interpretação mística da vida pessoal do consulente, que encontra ali uma linha de interferências não-convencionais capaz de guiá-lo frente ao mistério inexorável das escolhas da existência.

6 Mãe Efigênia, após mais de quarenta anos trabalhando como empregada doméstica, dedica-se, atualmente, com exclusividade às atividades do terreiro. A conciliação entre a atividade profissional e a função religiosa é quase unânime entre os membros da casa e, ainda que Mãe Efigênia, no alto de seus 63 anos, tenha deixado seus empregos, os atendimentos e o jogo de búzios costumam lhe tomar a maior parte do dia. Consultar os búzios no terreiro de Mãe Efigênia inclui a cobrança de um determinado valor, algumas vezes estipulado pelo próprio consulente – a quem ela chama cliente -, o que não anula ou reduz a dimensão mágica. Esta atividade monetária, não orientada pela lógica da obtenção de lucro, opera a inserção possível da prática mágica em um contexto de ações racionalizadas voltadas para a garantia do próprio sustento. Assim, pelo fato de demandar um retorno material em agradecimento às divindades, o jogo de búzios consegue se inserir na lógica moderna das relações capitalistas de troca.

7 Se, por um lado, percebemos uma espécie de profissionalização da prática sagrada dos búzios, no terreiro de Mãe Efigênia, observamos, em contraste, a sacralização da prática capitalista. Este processo dinâmico pôde ser evidenciado nas ocasiões em que Mãe Efigênia, logo após receber com relutância a quantia em dinheiro de uma sessão de búzios, abençoou a nota e pediu para o consulente repetir algumas palavras em dialeto banto , como em uma espécie de ritual que expandisse o significado daquele momento para além do caráter mercantil da troca.

I. Essa relação dialógica...

8 Essa relação dialógica entre o terreiro de candomblé e a cidade pode ser analisada por diversos ângulos. Uma possibilidade é indicada por Vagner Gonçalves da Silva, em seu

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artigo As Esquinas Sagradas: o candomblé e o uso religioso da cidade, ao buscar as distintas estratégias de adaptação das estruturas rituais do candomblé, religião de aldeia em sua origem remota, às forças sociais em constante atuação pelas quais se define a cidade: “Uma importante dimensão que permite observar o desenvolvimento desse diálogo refere-se à forma como o terreiro se constitui como espaço sagrado e as representações do espaço urbano patrocinadas pela religião” (Ibid.). Traçados o programa e o foco da análise – o candomblé na cidade de São Paulo - a investigação do autor nos fornece uma rica imagem da situação atual dos terreiros de candomblé paulistanos: a manutenção e reprodução no contexto urbano, que muitas vezes impõem restrições no que concerne ao espaço físico e acesso aos recursos naturais; uma “interpretação particularizada” das instalações do terreiro e das práticas ali realizadas, bem como da identidade do grupo, o que revela o gosto e estilo de vida pautados pela relação dinâmica entre estes dois padrões culturais distintos.

9 Se o candomblé Manzo Ngunzo Kaiango mostrou-se inserido em uma relação de continuidade com a cultura moderna urbana, não foi somente pelas suas adaptações espaciais ou rituais, mas também pela relação entre o povo-de-santo e os indivíduos não candomblecistas que freqüentam o terreiro, embora não sejam iniciados na religião nem compartilhem, necessariamente, o sistema de valores religiosos ali verificados.

10 Esta relação evidenciou-se, inicialmente, nos “toques”, rituais públicos de louvor e manifestação de Inkisis e Catiços , que ocorrem no salão de dança, cuja estrutura separa por um par de degraus os participantes do público, que se senta no nível mais alto, em cadeiras enfileiradas, e assiste ao ritual. No local destinado ao público, nos deparávamos sempre com novas feições, pessoas que não reconhecíamos de nossas visitas diárias, entrevistas e genealogias.

11 Nos dias em que o silêncio reina no terreiro, quando não há toque, festa ou tambor, é comum encontrar pelos corredores, esperando por Mãe Efigênia, indivíduos não candomblecistas, vindos das mais distintas regiões da cidade e pertencentes a diversas classes sociais. A diferenciação religiosa, que poderia separar os “de dentro” dos “de fora” do terreiro, repetindo a oposição entre terreiro e espaço urbano, pensamento mágico e moderno, tradição candomblecista e moderna cultura urbana, faliu antes mesmo de se construir: o terreiro, longe de ser exclusivo ao povo de santo, estava constantemente ocupado por indivíduos não adeptos da religião a chamar Dona Efigênia de “Mãe”.

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II. “Uma casa de portas abertas”...

12 “Uma casa de portas abertas”. Foi assim que, em uma de nossas primeiras conversas, Mãe Efigênia definiu o terreiro, numa afirmação que se faria cada vez mais recorrente e significativa ao longo do campo. O candomblé é uma religão que não se caracteriza por uma busca ativa pela captação de fiéis, mas, sempre abertas, as portas da Casa de Santo de Mãe Efigênia permitem o livre trânsito de não-candomblecistas sem que para tal lhes sejam impostas condições de conversão, compromisso ou regularidade. Desta maneira, em Manzo Ngunzo Kaiango, o leque e o grau de participação em atividades de caráter espiritual são extremamente variáveis, incluindo adeptos e simpatizantes da religião.

13 Dos filhos de santo do terreiro, porém, ao contrário do que se passa com os não candomblecistas que freqüentam a casa, é esperada grande responsabilidade para com a religião. A iniciação no candomblé pressupõe uma drástica mudança na vida pessoal, uma vez que o indivíduo deve renunciar a determinados aspectos da vida anterior – a exemplo dos “tabus” alimentares (kizilas), indumentários e sexuais - para então prestar obrigações ao terreiro, à Mãe de Santo e ao Inkisi “dono de sua cabeça” , recebendo uma função dentro do grupo.

14 Tais obrigações para com a religião não são exigidas aos não iniciados, que podem, ainda assim, ter acesso aos toques e outros rituais públicos, fazer consultas aos Inkisis através do jogo de búzios conduzido por Mãe Efigênia e realizar trabalhos, ebós ou despachos receitados por Catiços incorporados ou pelos Inkisis manifestos nos búzios. A facilidade de aproximação do grupo aliada ao fato do candomblé não pressupor a conversão para que dele se possa fazer parte são aspectos que possibilitam a abertura de canais participativos dentro do terreiro, que é capaz de incorporar, à suas práticas rituais, o indivíduo não candomblecista.

15 A inserção do indivíduo não candomblecista no terreiro levanta a questão sobre a necessidade ou não de um compartilhamento das crenças religiosas, como a existência metafísica dos Inkisis e Caboclos e a interferência destes nos desígnios humanos. Alguns simpatizantes aderem a essas cosmovisões, realizam as práticas do candomblé de forma a agradar o seu Santo e possuem simpatia e devoção por algum Caboclo do grupo - entidade esta, bastante recorrente, que representa uma das figuras mais cultuadas no terreiro. Pai Benedito, nome do Preto Velho de Mãe Efigênia, é também muitas vezes louvado por alguns simpatizantes. É possível, entretanto, participar do terreiro sem partilhar por completo deste sistema de crenças e, neste sentido, “acreditar” nas entidades e divindades não se constitui como a única maneira de vivenciar o terreiro. Caracterizando um momento de enfraquecimento da organicidade religiosa, a modernidade propicia uma interpretação ampla de religiosidade, a qual, muitas vezes, é entendida como busca pela espiritualidade. A reformulação de recursos sócio- simbólicos por meio de práticas distintas faz-se, então, cada vez mais comum e legitimada na cultura moderna, o que facilita a existência do terreiro enquanto ambiente permeável pelo ir-e-vir dos que não desejam se definir como adeptos e que reinterpretam práticas candomblecistas pela ótica da busca da espiritualidade, ao mesmo tempo em que, vistos por tal ótica, demonstram comungar com diversos preceitos do candomblé referentes à harmonia da dimensão espiritual. Ainda que incorporados ao ambiente do terreiro, uma considerável parte destes indivíduos afirma não compartilhar das crenças que constituem a matriz da religião, como os Inkisis e

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seus mitos. A reinterpretação dos recursos simbólicos do candomblé como um “sistema de energias”, que no discurso do simpatizante chega a evocar a Física como explicação científica deste sistema, distanciando-se da perspectiva transcendental que fundamenta o candomblé, é recorrente. Mas, se pela justificação explícita e declarada da busca pela espiritualidade o indivíduo não candomblecista é capaz de ressignificar toda a simbologia do candomblé, os filhos de santo – incluindo Mãe Efigênia – também ressignificam a presença dos “de fora” no terreiro, entendendo-a em termos de uma crença velada. Ainda extremamente marcados pelo passado de resistência e preconceito em relação ao candomblé, muitas vezes associado a práticas de magia negra e à exclusão social, a não conversão é entendida pelos adeptos do candomblé como consequência de pressões sociais, que impedem a declaração de crença na religião.

16 A figura central de Mãe Efigênia, como afirmamos anteriormente, é um dos principais elos entre o terreiro e os indivíduos não candomblecistas. Chamá-la “Mãe”, nesse caso, refere-se antes à íntima relação familiar que ao parentesco mítico, uma vez que os simpatizantes não necessariamente crêem nas entidades e divindades da mitologia criadora. A Mãe de Santo, Dona Efigênia, é reconhecida como portadora de grande força espiritual e, assim, ultrapassa os limites de seu candomblé e afeta as pessoas independentemente de sua vinculação religiosa.

17 Estes importantes fatores presentes no candomblé Manzo Ngunzo Kaingo, a saber, a inexistência de um pressuposto de total conversão que censure a participação de não adeptos da religião, associada a uma cultura religiosa de busca pela espiritualidade cada vez mais difundida e aceita na sociedade moderna, constituem, em conjunto, um importante eixo explicativo da inclusão no universo diário de atividades do terreiro. Entrelaçando-se a tal eixo, numa comunhão que preserva suas qualidades distintas e, portanto, paralelas, destacamos um segundo argumento explicativo para a mesma questão, que se fundamenta na matriz religiosa do candomblé.

III. O que percebemos no candomblé...

18 O que percebemos no candomblé, e que inferimos se estender por outros cultos de possessão ou religiões afro-brasileiras, é que a relação estabelecida com o sobrenatural se dá não pela via da representação, mas pela da experiência. Dessa maneira, aquilo que Lévy-Bruhl denomina experiência mística, comum a toda humanidade porém mais facilmente visível nas sociedades denominadas por ele “primitivas” , é análogo à religião do candomblé no que concerne às dimensões afetivas envolvidas nesta experiência (GOLDMAN, 1994). Explicamos.

19 A religião normalmente liga o transcendente à realidade sensível do indivíduo, efetuando esta ponte entre natural e sobrenatural. O candomblé abole as pontes, trazendo para o mundo físico suas entidades e divindades, que podem ser observadas pelos indivíduos presentes no ritual, possibilitando uma interação. Assim, a religião presentifica o sobrenatural e, ao trazer para o espaço mundano figuras de um tempo mítico, torna inadequado o emprego do termo “representação” uma vez que, do ponto de vista dos candomblecistas, a incorporação de um mito não só representa o ser invisível que não está ali presente, mas este ser invisível está diante dele. “Só representa aquele que deixou de sentir” (Ibid.)

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20 Lévy-Bruhl em “Experiência Mística e Símbolos entre os primitivos” considera que a mentalidade primitiva se interessa por um tipo de experiência que se concentra nas forças e seres invisíveis, experiência que o pensamento moderno e ocidental tende a recusar : “A nossos olhos [ocidentais] o que não é possível não poderia ser real. Aos seus [primitivos], aquilo que sua experiência apresenta como real é aceito como tal, incondicionalmente.” (Ibid.). Ou seja, a denominada “experiência mística” da mentalidade primitiva postula a existência de um mundo mítico, diferentemente da preocupação ocidental com a questão de se este mundo é ou não possível num ordenamento lógico e coerente. “Para nós basta que o mundo (objetivo) seja inteligível; para os primitivos basta que o mundo (mítico) seja, simplesmente.” (Ibid.).

21 O sistema de pensamento que rege o candomblé, segundo a lógica de Lévy-Bruhl, opera através desta experiência mística, onde mundo real e místico são parte de uma unidade indissociável, fazendo daquilo que se pode sentir e experimentar, do sensível, a possibilidade única de realidade.

22 Seguindo o programa levybruhliano referente aos “povos primitivos”, coloca-se, então, a necessidade de se reavaliar a questão do simbolismo no candomblé. Atravessando as barreiras da representação, o símbolo seria uma dimensão constitutiva da realidade mística, que se diferenciaria apenas por estar disponível no plano sensível. Neste sentido, “agir sobre o símbolo é agir sobre o ser” (GOLDMAN, 1994). No candomblé, o símbolo não seria, portanto, uma obra do entendimento, existindo para além da participação que por ele se objetiva. A existência física e metafísica, no candomblé, são ambas modulações do Ngunzo , e se encontram fundidas na realidade e na experiência mística, unidade que garante a participação indissociada destas duas dimensões. Esta reflexão nos parece fundamental às análises sobre o candomblé, podendo ser percebida em distintos níveis etnográficos. Assim, percebemos o vitalismo generalizado que Goldman, em conferência realizada em 2009 na UFMG, afirma ser o coração do candomblé, como expressão deste simbolismo de continuidade que constitui a realidade mística.

23 O vitalismo generalizado e a comunhão entre representante e representado caracterizam o candomblé, unindo em num só corpo as duas faces deste simbolismo de participação. A força da manifestação do sobrenatural no universo sensível, transformando o transcendente em uma realidade palpável, muitas vezes mobiliza e atrai as pessoas. Mas a lição levybruhliana não se resume à presentificação do sobrenatural, à experiência mística, nem mesmo a esta releitura do simbólico enquanto continuidade superposta do místico e do sensível. Lévy Bruhl nos inspira também a pensar no afeto desvinculado do “acreditar em”, da apreensão cognitiva e da concordância com o enunciado proposto. Em consonância com Favret-Saada, entendemos o afeto não como uma emoção oposta à razão, mas como o resultado do processo de afetar, aquém ou além da representação (GOLDMAN, 2005). Deixar-se afetar exigiria não tomar a comunicação ordinária como única via para compreensão, entendendo que aos enunciados escapa uma miríade complexa de informações, sendo a comunicação não-verbal uma das mais ricas variedades de comunicação humana.

24 Entre os não-candomblecistas presentes no terreiro é unânime a idéia de que o candomblé ou as práticas ali realizadas possuem muita “força”, sendo incontáveis os relatos em que, com a ajuda mística de Mãe Efigênia, são superados os mais distintos obstáculos e problemas pessoais. Para além da impressão de força causada pelo contato

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direto com o sobrenatural, sem mediações ou representações, é inegável que o candomblé afeta também os não adeptos. Talvez seja este, enfim, nosso maior argumento, apesar de sozinho não explicar a incorporação dos não candomblecistas ao terreiro: o candomblé arregimenta seus fiéis pelo afeto de Favret-Saada, pela pele.

25 A busca pela espiritualidade e o enfraquecimento da organicidade religiosa, milenarmente sustentada por doutrinas e palavras, parecem criar um ambiente propício para a reinvindicação de espaço na religiosidade. A comunicação não verbal - este sentir a força do terreiro, este inenarrável que não é empatia e que comunica por quantum de afeto - recusa a subordinação à palavra. Com suas manifestações alocadas no físico e no presente, o candomblé é uma religião em que o afeto – a afetação – está enraizado no princípio de suas práticas simbólicas. Com essa dimensão do sentir, da comunicação não verbal, tendo um papel tão importante na religião, Manzo Ngunzo Kaingo é capaz de incorporar o não adepto que sente, com uma naturalidade que supera os discursos verbais e o enunciado de crenças.

26 Em Manzo Ngunzo Kaiango, pouco importa se o indivíduo não candomblecista alega não crer, se esta alegação é entendida como crença velada ou se a consciência mística afeta discursivamente o que ali participa. Unindo a lógica da experiência e da sensação, o terreiro de candomblé, espaço de afetação constante e presentificada, inclui todos aqueles que por ele se permitem afetar, fazendo desta categoria sensível a única chave de distinção entre aqueles que são do terreiro e aqueles que não o são.

Considerações Finais

27 No diálogo que se estabelece entre o povo de santo e os indivíduos não candomblecistas, a experiência e o afeto reivindicam seu estatuto epistemológico, igualmente legítimo em relação à coerência discursiva. Estando ambas presentes no terreiro, na cidade e naqueles que circulam nestes espaços, essas duas categorias de comunicação com o sobrenatural, uma verbal, baseada nos preceitos e na doutrina mítica, outra não verbal, involuntária e não intencional, podendo atuar juntas ou separadamente, criam um elo entre os que encontramos em Manzo Ngunzo Kaiango, candomblecistas ou não. Assim, ao partilhar do discurso candomblecista ou da experiência mística do terreiro, ou quem sabe até de ambos, aquele que anteriormente fora considerado “de fora” pode então ser incluído no terreiro não mais como um elemento estranho, mas como parte integrante. A consulta aos búzios, a realização de trabalhos e a presença nos toques podem ou não ter relação com as crenças nas entidades e divindades do candomblé, mas são representativas do anseio humano de encontro com aquilo que transcende o mundo físico. Neste sentido, o candomblé consegue incorporar indivíduos em diferentes graus de relação com o sobrenatural: desde aquele que é devoto ao Santo e compartilha a verdade de Inkisis e Catiços, até o indivíduo que é afetado pelo candomblé e que, frente a essa comunicação em termos de intensidade não enunciável ou apreensível pela lógica e coerência das palavras, a traduz enquanto “forças”. É este sentir, este afeto, que permite a abertura de canais mais conscientes de relacionamento entre os não candomblecistas e o candomblé. Abertos esses canais de afetação, o diálogo pode se dar independentemente da definição das verdades quanto à religião: aquilo que é sentido como “força” é suficiente para nomear essa comunicação não verbal, que pode se dar tanto pelo contato direto com as entidades e divindades incorporadas nos iniciados durante os toques, quanto pela

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relação com Mãe Efigênia, em quem esta “força” é melhor traduzida como conforto espiritual.

28 Conseqüência das teorias de Lévy-Bruhl e de Favret-Saada, a problematização do conceito de crença, utilizado no decorrer deste trabalho no sentido de convicção ou ato que define algo como verdadeiro, faz-se fundamental. Tomada no sentido filosófico tradicional, a crença é tratada como o oposto da certeza advinda da experiência ordinária (GOLDMAN,1994), considerada, por sua vez, a única forma de experiência legítima pelo pensamento ocidental cartesiano. Para este, o que não é visível é irreal, representação. Mas ao considerarmos a experiência mística como uma alternativa igualmente válida dentro de um sistema de pensamento, dizer que os indivíduos “crêem” nos Inkisis passa a representar uma atitude reducionista frente à categoria nativa que define o pensamento do grupo. O que se denomina crença, neste sentido, é na verdade um saber sobre o mundo: “Em vez de falarmos de crenças, devíamos falar de verdades” (PAUL VEYNE apud GOLDMAN, 2005). Uma verdade, portanto, etnográfica, que ultrapassa a percepção dicotômica que constrói uma alteridade artificial entre aquilo que significaria o “nós” e os “outros”.

29 É assim que, ao ampliar a noção de crença, conduzindo-a às vias da experiência, a incorporação ativa de indivíduos não candomblecistas no terreiro torna irrelevante o fato de se acreditar ou não naquele sistema de representações. As atenções voltam-se, então, para o caráter absoluto da verdade nativa, para todos aqueles que se deixam afetar por ela e que, por viverem aquela realidade, filiam-se, de alguma forma, ao “sagrado social” presente no terreiro.

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______. Orixás da metrópole. Petrópolis: Editora Vozes, 1995.

AUTORES

AMANDA HORTA

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

JULIANA SOARES CAMPOS

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

PEDRO MOUTINHO

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

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Tradução

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Paris, Cidade Invisível: O Plasma - Bruno Latour Paris, ville invisible : le plasma

Bruno Latour Tradução : Marcus Vinícius de Abreu Baccega

NOTA DO EDITOR

Revisão: Ana Flávia Badue

1 Tudo em uma cidade permanece invisível, tudo, e acima de tudo, a cidade tomada como totalidade.

2 Dir-se-á que hoje dispomos de mapas via satélite que nos permitem utilizar o zoom em todos os níveis, tão comodamente que é possível, em alguns cliques, passar da Ile-de- France [região que circunda a capital francesa] ao teto do imóvel onde habitamos. Então tem-se direito, por uma vez,com relação ao Google Earth ou ao site do Instituto

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Geográfico Nacional, de falar de um panóptico, pois se “apreende toda a cidade, ao mesmo tempo em que se pode descer, sem interrupção, até seu menor detalhe.

Bruno Latour

3 Mas não, você não “apreende” nada, você não vê nada, você não “desce sem interrupção”! A ilusão é poderosa, eu reconheço; é delicioso brincar nas montanhas russas subindo e descendo do todo às partes, até passar mal do coração, mas se você se toma por aquele que vê tudo, você coloca o dedo no próprio olho. É como confundir um jogo eletrônico com a prática de uma partida de rugby. Ademais, as fotos por satélite são datadas, não são em “tempo real”. O que você vê é a cidade, seu bairro, seu imóvel como estavam há alguns meses, alguns anos, de qualquer maneira, em outra época, sob outra iluminação, e de acordo com o mais improvável dos pontos de vista – e também o menos informativo: por que é importante ver o telhado de seu imóvel, você é antenista ou limpador de chaminés? A atualização das imagens se dá em espaços de tempo bem grosseiros para que você esteja diante de outra coisa que não a ilusão de ver tudo diretamente, sem falar dos pixels que se tornam rapidamente grandes quadrados amarronzados assim que você sai dos caminhos conhecidos.

4 O que seria uma visão de Paris na qual a atualização fosse tão rápida que se poderia sentir-la em tempo real e, sobretudo, em espaço real?

5 Para atualizar o espaço e torná-lo um pouco mais realista, não é para um mapa que se deve voltar, qualquer que seja o número de seus pixels, mas para os oligópticos. Por este neologismo designo as estreitas janelas que permitem relacionar, por certo número de canais estreitos, alguns aspectos somente dos seres (humanos e não humanos) cujo conjunto compõe a cidade... Um funcionário do departamento de polícia assiste os vídeos localizados nos cruzamentos importantes de Paris. O que ele vê? Muito e muito pouco – donde a palavra “oligo-ptico”: os vídeos ressaltam apenas certos aspectos daquilo que se passa nos cruzamentos, e somente aquilo que lhe permite alertar seus colegas sobre o local – isso se ele conseguir contatá-los pelo rádio e se eles estiverem dispostos a obedecê-lo. Outro exemplo: você abre as páginas amarelas da lista telefônica de Paris para procurar um encanador. Você encontra um, mas você não viu quase nada,

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a não ser páginas e anúncios, porém você tem bem às mãos “todos” os artesãos e profissões de Paris. O mapa não é diferente da lista telefônica: o primeiro se satisfaz ao repartir, em longitudes e latitudes, séries de lugares, enquanto a lista faz o mesmo ao ordenar, alfabeticamente, profissões e nomes. Ninguém tomaria os extensos tomos das Páginas Amarelas por Paris, por que você tomaria o mapa de Paris por território?

6 O que é tão enganador na ilusão do zoom é a impressão de continuidade. A máquina informática, uma vez que consegue tão facilmente transformar os pixels em qualquer escala e nelas articular as informações (no fim, nunca são mais que “zeros” e “uns” conservados como potencial elétrico sobre um composto de lâminas de silicone), faz crer que existe, entre todos estes registros, uma passagem sem interrupção. Entretanto, não há qualquer relação imediata estabelecida, nenhuma passarela entre aquilo que o funcionário de polícia vê diante das telas de controle do departamento de polícia de Paris e aquilo que você vê nas páginas da lista telefônica ao apontar o dedo para o nome de seu encanador favorito. Quanto a esses dois oligópticos, deve-se, sobretudo, evitar juntá-los no mesmo espaço, como se fossem dois pontos de vista sobre a mesma totalidade. Eles não têm conexão. São incomensuráveis. E isso se passa mesmo que o Google, utilizando com astúcia a nova propriedade de todas as informações, qual seja, a de se encontrarem agora organizadas em fichários numéricos, consiga sobrepor o endereço de seu encanador ao pequeno amontoado de pixels que marca a localização de seu ateliê – visto a partir do céu. Sim, é verdade, a numeração permite estabelecer algumas pontes entre os oligópticos até então separados, mas isso nem sempre compõe um panóptico. Encontrar, superpostos em uma tela, o nome de seu encanador e a foto de sua rua nem sempre te coloca na posição de Olho divino – haja visto que você nada mais fez senão prestar atenção e colocar seu porta-níquel à disposição da extensão de uma nova rede, aquela da empresa Google, a qual paga os pequenos cliques de mouse da empresa de encanamento em dinheiro vivo. O mais completo dos panópticos, o mais integrados dos softwares, não é mais que um peep show.

7 Dir-se-á que seria absurdo procurar o espaço real em um mapa, em uma tela, em uma lista telefônica, e que Paris se deixa ver pelo único canal realista e vivido, aquele da flânerie, da caminhada, da errância. Apenas há o pedestre que, admirando as vitrines, bebendo café no alpendre de uma cervejaria, bisbilhotando no “mercado das pulgas” [concentração de estabelecimentos simples para venda de artigos usados], distribuindo panfletos na saída de um metrô, paquerando nos Grandes Boulevards, apreende verdadeiramente o espaço da Cidade Luz. Apenas a visão subjetiva, personalizada, individualizada seria, no fim das contas, objetiva, e aquela dos mapas, das salas de controle, das listas e dos anuários não pode oferecer mais que uma abstração do espaço e da vida na cidade. Não faltam escritores, sociólogos, psicólogos, e mesmo urbanistas para afirmar, com efeito, que a cidade só pode ser apreendida in concreto por um indivíduo que se desloca dentro da moldura que ela oferece.

8 Nada mais abstrato, todavia, que tal ponto de vista, nada menos realista – exceto o zoom ilusório que conduz, sem o menor tremor, do continente europeu à Praça Beaubourg por meio de uma mudança contínua de escala. Pois, enfim, uma cidade não pode ser a moldura na qual um indivíduo se deslocaria, pela boa razão de que essa moldura é, ela própria, constituída por traços deixados por outros indivíduos, que se deslocaram ou que ainda estão no local. Privilegiar o ponto de vista daquele que caminha, do flâneur, do pedestre é impedir-se de compreender o que é tão particular ao viver na cidade, é aniquilar os canais que permitem justamente não diferenciar a

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moldura e aquele que nela se desloca. O espaço pode ganhar em realismo apenas se for possível seguir esses canais.

9 Poder-se-ia dizer que um turista, por exemplo, nada mais faz senão passar por Paris, e que há de fato a separação entre o indivíduo visitante e a moldura que ele visita: ele passa, Paris permanece. O flâneur destaca-se sobre um fundo. No entanto, trata-se lá aqui apenas de um ponto de vista bem superficial – tão superficial quanto o zoom. Em primeiro lugar, porque o turista geralmente vem em grupo, portanto ele é a fração de uma infra-estrutura turística da qual fazem parte a sociedade dos Bateaux-Mouches, o departamento de turismo de Paris, o escritório dos tradutores credenciados, os motoristas dos carros de passeio e o quebra-cabeça que representa o estacionamento de suas grandes bestas de metal. Não nos esqueçamos, ademais, da quantidade de infraestrutura que é necessário aplicar para andar a pé em Paris. Deste ponto de vista, todos temos uma “mobilidade reduzida”.

10 Ora, essa infra-estrutura turística moldou a cidade de tantas maneiras que o visitante já não é mais exterior a um quadro fixo que ele em nada influencia. “Moldura” e “visitante”, eis duas formas de falar perfeitamente intercambiáveis. Nosso turista pode contar somente com alguns dólares no balanço final, mas, sem essa infraestrutura não haveria nenhum turista e Paris seria uma província adormecida, algum lugar “fora dos circuitos turísticos”. E não considerei o conjunto de renovações de imóveis, que não tiveram outro objetivo senão agradar os transeuntes, as campanhas de sensibilização (sempre sem efeito) para tentar tornar os táxis “amáveis aos visitantes estrangeiros”, os inumeráveis clichês espalhados pelos filmes e que tornam tão inevitáveis quanto acessíveis os registros desses mesmos turistas da Praça de Tertre ou de Notre-Dame.

11 Vê-se que quem afirmasse fazer justiça ao ponto de vista subjetivo e individual do visitante sem considerar a infra-estrutura dentro da qual ele circula daria uma versão da cidade ainda mais ilusória que aquele que tomasse o mapa de Paris por território. Entre o visitante e a moldura visitada, apenas há a diferença entre o participante n + 1 da elaboração contínua de Paris, e todos aqueles que o precederam sobre as trajetórias que ele percorreu sem esforço. Existe, por conseguinte, um caminho tênue, eu reconheço, que permite tornar equivalentes a “moldura” e aquele que se situa “no interior” deste quadro. Essa moldura é ele, pois a sobrevivência da infra-estrutura depende em parte do dinheiro que esse visitante terá deixado atrás de si e a boa impressão que ele terá conservado de sua visita; mas o visitante, ao contrário, é, em parte, esse quadro, uma vez que a partir de agora sua biografia incluirá em sua trajetória o fato de que ele “fez Paris”, enquanto Paris “é feita” (em uma parte bem pequena, é certo) deste visitante, que apertou o botão deste portão automático de Beaubourg, adicionou seu café com creme à listagem do Flore, etc. Não se precisa de mais que um pouco de astúcia para metamorfosear um no outro.

12 Mas essa infra-estrutura é a sociedade, dirão alguns, aquilo em que “obviamente” se deve “situar” o turista para não acreditar que ele é “realmente” um indivíduo destacável. Seguindo seu desejo de visitar Paris, ele apenas responde a campanhas de publicidade dos tour operators e, remetendo a um nível mais alto (a menos que se desça ainda mais ao fundo), aos interesses das empresas responsáveis pela globalização dos deslocamentos turísticos. Do mesmo modo que há, em geografia, um zoom que nos permite passar sem interrupção do planeta à Praça Beaubourg, haveria em sociologia um zoom por meio do qual se iria do Capitalismo a este pobre turista chinês que se deixa retratar por um artista na esquina da Praça de Tertre. Paris se situaria, portanto,

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“na” Europa e “no” Capitalismo, cada lugar podendo se reconhecer/se localizar de acordo com longitude e latitude, e cada indivíduo, com uma certa interpenetração de interesses e de paixões.

13 No entanto, se o zoom geográfico tem a aparência da verossimilhança, o mesmo não se dá com o zoom sociológico. O primeiro, notemos, não passa de um procedimento de fixação do mesmo arquivo numérico que reparte os pixels em função do tamanho requerido pela imagem, uma simples questão de DPI. O segundo sequer dispõe deste recurso. A partir do momento em que abandono o turista individual para ir em direção “àquilo em que” ele se situa, começo a não mais saber de que falo, e me contento com um gesto vago da mão, dizendo: “Tudo isto não é por acaso, há por trás grandes interesses”. No balcão do bar onde pronuncio esta frase definitiva, meus comparsas abanam a cabeça com um ar de compreensão, e então creio ter dito o suficiente... As imagens do social parecem-se muito com os mapas em T da geografia medieval: o que as circunda é um Oceano do qual nada se sabe, a não ser que é muito vasto e muito perigoso devido aos monstros que o povoam. Da “sociedade em seu conjunto”, nada se sabe dizer, a não ser que ela tem a forma de um círculo que abarca tudo, o qual permite terminar a discussão de forma peremptória.

14 Se realmente fosse necessário seguir o que há de “social” em Paris, seria preciso deixar- se levar pela cidade de modo completamente diferente: seria necessário conseguir fazer com as empreitadas de totalização aquilo que acabamos de fazer com os mapas: passá- los da ilusão do panóptico ao percurso dos oligópticos.

15 “Paris tornou-se inabitável”, “a Prefeitura faz qualquer coisa”, “é preciso estender a municipalidade às comunas periféricas “a polícia deveria dirigir-se sobretudo aos subúrbios”, “é necessário que as multas sejam mais severas contra os proprietários de cachorros”, “não há salas para a música amadora”: tantas frases que circulam das bocas às mídias, das mídias aos zeladores, dos zeladores aos inquilinos, dos inquilinos às petições, das petições aos escritórios, dos escritórios aos detentos, dos detentos aos tribunais administrativos...Podemos seguir estas massas de enunciados? Um pouco: pelos blogs, jornais, cafés, restaurantes, as praças, os SMS. Suponho que o prefeito tenha seus informantes, como o departamento de polícia tem seus vídeos e os Registros Gerais [instituição do Ministério do Interior] suas grandes orelhas. Toda uma massa de rumores e de propósitos destacados cuja circulação, ponto a ponto, compõe Paris tanto quanto o deslocamento dos carros pelo Peripherique ou os usuários que o metrô transporta cada dia aos milhões. Frequentemente, há greves de transportes coletivos, mas esses transportes de enunciado (aquilo que eu chamo “anúncios collectantes” nunca estão em greve... Felizmente... Paris desapareceria certamente).

16 Alguns destes propósitos “totalizam” Paris, tornada sujeito de fórmulas como “Paris quer respirar”, “Paris os acolhe”, “Paris recusa”, mas essas expressões totalizantes não circulam de modo distinto das expressões individualizantes, como aquela da menininha que sussurra sobre seu tanque de areia: “Mamãe, eu estou entediada...”. Recolher a circulação de um enunciado é, portanto, algo diferente de decidir se esse enunciado totaliza ou individualiza. A estátua alegórica de Paris, se ela representa bem “Paris inteira”, situa-se simplesmente em um cruzamento e não ocupa “mais espaço” que a de Balzac no Boulevard Raspail ou a da República na praça de mesmo nome. Assim como o mapa não é o território, mas se situa no território, no qual ela acelera ou facilita certos deslocamentos; assim como a lista telefônica não é “Paris toda”, mas dela faz parte ao assinalar os endereços; da mesma maneira as fórmulas totalizantes que tomam Paris

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“como um todo” circulam, também elas, por Paris, à qual acrescentam, por assim dizer, seus fragmentos de totalização . Até os panoramas mais globais têm um endereço, e mesmo que apresentem uma versão erudita e quantificada, que vejam “tudo”, isso se passa sempre “dentro” de uma sala obscura.

17 Por que é importante “localizar” tão obstinadamente as visões totalizantes sobre Paris? Por uma questão de atmosfera e de respiração e, assim, diria Peter Slorerdijk, por uma grave questão de política. A ilusão do zoom, em geografia como em sociologia, tem como efeito deletério tornar a vida na cidade perfeitamente irrespirável. Não há mais lugar, pois tudo está ocupado pela transição sem conexão e sem interrupção entre as diferentes escalas que vão do todo às partes ou das partes ao todo. Fez-se uma dobradura. Sufoca-se. Trata-se aqui, para utilizar um termo erudito, de uma questão de mereologia: a relação das partes com o todo é um privilégio da política. Não compete à geografia ou à sociologia simplificá-la rápido demais, supondo o problema resolvido e a totalidade já conhecida, como se Paris não passasse de uma imagem, simplesmente recortada, e que só se precisasse reagrupar. Essa relação das partes com o todo, do tipo quebra-cabeça, é a negação mesma da política.

18 Para que a política renasça, para que Paris seja novamente respirável, é necessário que Paris permaneça invisível, no sentido em que nem as partes nem as diferentes totalidades nas quais estas se inserem não sejam estabelecidas de antemão.

19 Deste ponto de vista, nada mais sufocante que o Google Earth com sua pretensão ao zoom sem interrupção; nada mais reacionário que os discursos convencionados sobre a passagem contínua do Capitalismo mundial às bancas do mercado Maubert, passando pela cesta de lixo (recentemente informatizada) do Palácio Brongniart. Para retomar uma expressão de Sloterdijk, a política não é a revolução, mas a explicitação, ou seja, o desdobramento dos elementos artificiais que precisávamos para viver, mas até então não sabíamos. A política, dito de outra forma, é uma questão de ar condicionado, é a percepção progressiva de que coabitamos dentro de muralhas tão pouco naturais quanto as serras, e cujos mecanismos delicados nos aparecem pouco a pouco. Aquele que crê que a política caminha por si própria porque esta se ocupa de um Bem público cuja forma e bondade ele conheceria de antemão, comete mais que um crime, comete um erro político.

20 De minha parte, chamo de plasma este espaço – mas não é um espaço – no qual repousam – mas não há repouso – as circulações diversas de totalizações e de participações, aguardando a explicitação e composição. A expressão parece abstrata, mas é porque todas as metáforas usuais são definidas pelo zoom, o que obriga a crer que se sabe do que se fala quando se diz que existe um caminho contínuo entre as partes e o todo. Suspenda o zoom, multiplique as conexões entre as diferentes vistas de Paris, sem torná-las comensuráveis rápido demais, meça a invisibilidade constitutiva/ fundante de todos os oligópticos (cada qual vê bem, mas muito pouco), relocalize os locais em que se fala de Paris “como um todo” (o gabinete do prefeito, o quartel-general da administração municipal de Paris, a sala de controle do Serviço de água, o imóvel do Boulevard Morland, etc.) e pergunte em que você pode situar bem estes membra disjecta, impedindo-se de reportá-las tão logo a um “quadro natural”, a uma “sociedade” ou, claro, a “discursos”. Muito bem, este pano de fundo é o plasma. É ele que permite mensurar a extensão de nossas ignorâncias a respeito de Paris. É ele, sobretudo, que permite voltar a dar oportunidade à questão política, reservando-lhe a tarefa de

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composição, evitando naturalizá-la ou que socializá-la, ou que dela se faça um simples jogo de palavras.

21 Há algumas dezenas de anos, cede-se à tentação de substituir a política pela gestão, e o exercício da democracia pela horrível palavra “governança”. Compreende-se melhor por que: a boa gestão, como a boa governança, aplicam-se à normatização da relação entre as partes com o todo, de modo tão harmonioso e eficaz quanto possível. Elas amam o zoom. Elas vêem as coisas, a princípio, do alto, depois do meio, depois se voltam para baixo. Tudo isto se encadeia, se concatena, se encaixa perfeitamente. Cada boneca russa se aloja sem discussão em uma maior e abrange outras menores, sempre sem forçar. É a Paris visível. É a Paris gerida. Abra agora todas as bonecas: mergulhe-as no plasma, deixando cada uma delas definir o que é maior e o que é menor que elas, sem ordená-las de antemão e abrindo todas as controvérsias sobre as relações disputadas entre as partes e o todo. É a Paris invisível. É a Paris política. É a Paris a compor.

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Etnotícias

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Dia do Surdo na Avenida Paulista: Etnografando a Mobilização Política Pelas Escolas Especiais

César Augusto de Assis Silva, Cibele Barbalho Assênsio, Leslie Lopes Sandes e Priscila Alves de Almeida

1 A Avenida Paulista é conhecida por ser um dos mais importantes centros financeiros do país e também constitui um importante espaço para lazer, festividades e manifestações políticas. Na manhã do dia 26 de setembro de 2009, como de costume, contava com uma grande circulação de veículo e transeuntes. Além disso, paulatinamente, na calçada do Parque Trianon, situado em frente ao Museu de Arte de São Paulo (MASP), algumas pessoas começavam a se reunir, sobretudo jovens, munidas de faixas e cartazes, que eram estendidos momentaneamente no chão.

2 Mais uma vez, uma manifestação política teria por palco esse famoso cartão postal da cidade de São Paulo. O número de participantes era relativamente tímido, se comparado a outras manifestações que costumam ocorrer no local, contudo, suficiente para tomar toda a calçada do Parque Trianon. Quem observava mais atentamente, percebia algumas particularidades na forma de comunicação das pessoas que se aglomeravam. Os manifestantes se comunicavam por meio de língua de sinais e, apesar

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de haver um carro de som no local, o foco de atenção estava voltado sobretudo para as pessoas que discursavam em língua de sinais, em pé, sobre as lixeiras de concreto da avenida, que serviam como palanques improvisados, a fim de tornar visíveis os seus sinais para as demais. Aquela concentração, aos poucos, demonstrava o seu objetivo em tomar parte da avenida: tratava-se de uma manifestação pelos diretos do que as pessoas denominam comunidade surda. Quando alguns surdos, representantes de associações, discursavam, o carro de som propagava a interpretação para o português realizada por um intérprete. Inversamente, quando alguns ouvintes discursavam, o intérprete presente ocupava o palanque improvisado interpretando o dito para libras.

3 A data escolhida para o evento, 26 de setembro, não foi aleatória, pois nela comemora- se o Dia Nacional do Surdo, reconhecido oficialmente pela Lei Federal 11.796. Como já havia ocorrido em anos anteriores, a manifestação contou com a presença de membros de associações de surdos – Associação de Surdos de São Paulo (ASSP) e Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos (FENEIS) –, alunos, professores e funcionários de escolas especiais para surdos – Instituto Santa Teresinha, Escola para Crianças Surdas Rio Branco, Escola Neusa Basseto, Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação (DERDIC), entre outras – bem como intérpretes e familiares de surdos. Nas semanas que antecederam o evento, circularam pela internet convocações para essa mobilização, assim como o anúncio de seu tema: surdo na luta por uma inclusão mais justa.

4 A surdez e a língua brasileira de sinais (libras) têm ganhado cada vez mais visibilidade no cenário atual. O movimento social surdo – conformado pela atuação de associações representativas, intérpretes de libras, instituições religiosas e intelectuais –, fortaleceu- se desde as últimas décadas do século XX, culminando no reconhecimento da libras como meio legal de expressão e comunicação, de acordo com a Lei Federal 10.436 de 24 de abril de 2002.

5 Paralelamente ao reconhecimento dessa particularidade lingüística relativa à surdez, consolidou-se desde a constituição de 1988 uma legislação integradora da pessoa com deficiência. No que tange à educação especial, isto é, a educação voltada para as pessoas com deficiência, configurou-se a inclusão escolar. A prioridade de garantir a educação especial nas escolas regulares é algo amplamente ratificado pela legislação nacional e por declarações internacionais1. Esse processo é legitimado no contexto da universalização e democratização da educação, o que tem exigido modificações estruturais nas escolas para garantir acessibilidade às pessoas com deficiência. O ideal que essa legislação desenha é que todas as escolas regulares estejam preparadas para incluir alunos com quaisquer deficiências.

6 Esse sólido enquadramento jurídico gera a controvérsia que motivou a mobilização na avenida Paulista no Dia Nacional do Surdo. Na medida em que a legislação referente à

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educação especial ratifica a prioridade do Estado pela educação de pessoas com deficiência nas escolas regulares, as escolas especiais correm o risco de serem extintas. Assim, o principal objetivo da manifestação era performatizar uma crítica a essa legislação, explicitando a defesa do direito dos surdos de estudar em escolas especiais.

7 As faixas que os manifestantes carregavam faziam referência a esse objetivo, como exemplo, “Inclusão social sim Inclusão na educação não”, “Inclusão na escola regular: opção do surdo e da família”, “Sim inclusão social, não inclusão escolar”, “Chega de ilusão com a inclusão, sim a realidade!!!!”. De acordo com os discursos proferidos pelos representantes das associações de surdos, a legislação que ratifica a inclusão escolar não garante a igualdade ou a inclusão social dos surdos. O surdo, entendido como falante de uma outra língua, a libras, não encontra condições igualitárias de educação em uma escola regular. O fato de estar em uma sala de maioria ouvinte e com professores ouvintes, somente reforçaria a sua condição minoritária e de exclusão.

8 De outro modo, a escola especial é afirmada como aquela que garante a inclusão social plena dos surdos. A educação por meio de libras (como primeira língua), a sociabilidade com os pares e a presença de professores surdos e ouvintes fluentes nessa língua garantiriam uma educação de qualidade aos surdos, algo que somente as escolas especiais para surdos poderiam prover. Essas escolas geralmente são vistas como espaços fundamentais para a consolidação das línguas de sinais, além de constituírem pontos de encontro e referência importantes para a chamada comunidade surda.

9 Muitas outras faixas compunham o cenário político. Algumas faziam referência ao Dia do Surdo, outras apresentavam reivindicações explícitas, todas vinculadas à educação e à libras. Dentre elas, podemos destacar: “LIBRAS A segunda língua do Brasil Lei Federal 10.436”; “CONAE Atenção aos surdos”; “Nos postos de saúde, hospitais, bibliotecas, é preciso

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LIBRAS”; “O surdo tem direito a ser educado na língua de sinais”; “Comunicação Direito de todos”; “Cadê nossa educação de surdos!!!!!”. Outras faixas traziam palavras sem conectivos, como exemplo: “Intérpretes Comunicação Educação Dignidade LIBRAS Respeito Cidadania Telefone de Surdo”.

10 Muitos discursos frisavam a necessidade de ação por parte de todos os sujeitos surdos. Em diversos momentos, foi feita a comparação com a Parada do Orgulho Gay, certamente a maior performance política e festiva que anualmente toma essa avenida. Segundo a fala de um dos líderes do movimento, assim como aquele evento começou sem o apoio ou aprovação de muitas pessoas, mas, aos poucos, conquistou seu espaço e reuniu milhões de participantes, o mesmo deveria acontecer com a passeata dos surdos.

11 Uma particularidade digna de nota do evento foi o recolhimento de dinheiro por parte de membros da associação organizadora. Para fazer a coleta, passou-se uma sacolinha de plástico entre os participantes, o que de certo modo lembrou uma performance religiosa. De acordo com os representantes, o dinheiro recolhido seria utilizado para pagamento do aluguel do carro de som.

12 Diferentemente de outras passeatas, os manifestantes foram impedidos pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) de caminhar pelas vias da avenida. Questionado sobre isso, um funcionário de tal órgão nos respondeu que não poderia permitir essa ocupação, uma vez que ela não havia sido comunicada previamente, e que, portanto, não poderia se responsabilizar caso acidentes acontecessem. A alternativa encontrada pelos organizadores foi seguir pela calçada. Se os manifestantes desobedecessem a CET e tomassem a rua, a Associação de Surdos de São Paulo, organizadora do evento, seria multada.

13 Com faixas e cartazes erguidos, os manifestantes caminharam do Parque Trianon até a Rua da Consolação e, após isso, retornaram para as proximidades do metrô Brigadeiro. Ao longo desse trajeto, quando os semáforos ficavam vermelhos, alguns manifestantes tomavam a faixa de pedestres e exibiam seus cartazes aos motoristas, retirando-se quando os semáforos abriam. Por fim, uma das últimas atividades da manifestação foi um registro fotográfico com os participantes do evento. Depois disso, os manifestantes começaram a dispersar.

14 Assim, os membros do Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo (NAU-USP) etnografaram essa manifestação política relativa à surdez na avenida Paulista. No evento, identificou-se o fortalecimento de algumas lideranças surdas, a performatização de objetivos políticos desses que se afirmam como sujeitos de direitos,

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a reiteração de laços entre pessoas de igual condição e o posicionamento de associações representativas frente a questões que estão em pauta nas atuais políticas de educação.

NOTAS

1. Cf. Constituição Federal 1988, artigo 208, III; Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Federal 8.069/90, Art. 54, III; LDB, Lei Federal 9394/96, capítulo V; Plano Nacional de Educação, Lei Feral 10.172/01, cap. 8; Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, resolução nº2/2001; Declaração de Salamanca (1994).

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A Cidade de São Paulo e as Suas Dinâmicas Religiosas

Pierina Soratto

1 Sabemos que as religiões conservam e ampliam a sua força nos tempos atuais e em grandes metrópoles como a cidade de São Paulo. O fato de que as religiões inventam novas e criativas formas de sobreviver em meio a um contexto social cada vez mais dominado por novas tecnologias, avanços científicos e globalização não representa nenhuma novidade nos estudos sobre os fenômenos religiosos.

2 Contudo, ainda é interessante perceber como a organização e as características de grandes cidades podem suscitar formas características de evangelização, como, por exemplo, a organização de eventos de massa destinados especificamente para tais constituições urbanas. Podemos dizer que as grandes cidades amedrontam e atraem os líderes religiosos, pois representam, simultaneamente, uma ameaça para o seu poderio e uma possibilidade de novas conversões ou de “salvar almas”, para usar os termos nativos.

3 Neste sentido, poderíamos classificar o evento realizado pela Comunidade Canção Nova no dia 16 de agosto de 2009 como uma tentativa moldada, fundamentalmente, para a cidade de São Paulo, pensando em seus habitantes, em suas formas de organização e em suas dinâmicas. O nome do evento era “São Paulo em missão: Deus habita esta cidade”,

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em alusão não só ao nome da cidade, igualmente ao nome do santo católico – São Paulo- que se tornou o novo padroeiro dessa arquidiocese. Como o próprio nome sugere, o evento visava a mostrar que, mesmo em uma cidade do porte de São Paulo, as pessoas religiosas estão presentes e não desistem de sua atuação, por isso a necessidade de afirmar que “Deus habita esta cidade”.

4 Tendo em vista a relevância de eventos como este para ilustrar os modos de atuação das religiosidades urbanas contemporâneas, o presente relato tem como objetivo expor uma imersão etnográfica que realizamos no “São Paulo em missão”, o qual uniu tecnologia, alianças políticas, diversidade de movimentos católicos, uso de espaços públicos para fins proselitistas e de marketing religioso.

5 O “São Paulo em missão” aconteceu na Praça do Campo de Bagatelli, no bairro de Santana, zona norte da cidade de São Paulo. Sua realização mobilizou várias autoridades laicas e religiosas, abarcando desde a Arquidiocese de São Paulo, diversos “novos movimentos eclesiais” e “comunidades de vida e aliança no Espírito Santo”1, até a prefeitura da cidade de São Paulo, representada pelo seu prefeito Gilberto Kassab, que participou de boa parte da programação e foi lembrado pelo discurso de agradecimento feito pelo administrador da Fundação João Paulo II, mantenedora da Comunidade Canção Nova:

6 Quero agradecer ao Cardeal Arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Pedro Scherer, e ao prefeito da cidade, Gilberto Kassab, pois em momento algum eles tiveram dúvidas de dizer 'sim' à Canção Nova. Se não fosse a colaboração deles, este evento não aconteceria, pois a Canção Nova não teria condições de organizar isso sozinha (parte do discurso de Wellington Silva Jardim, durante o evento “São Paulo em Missão”, que pode ser encontrado em www.cancaonova.com).

7 Percebemos que a realização de eventos de massa em cidades como São Paulo exige a mobilização de diversas formas de poder. Desse modo, não podem ser vistos como eventos puramente religiosos, pois envolvem várias outras alianças e contatos que precisam ser feitos para que a sua execução seja possível. O evento contou com missa, com momentos de louvor e adoração, e, ainda, com o discurso político de autoridades como o prefeito de São Paulo e o vereador mais votado dessa cidade, Gabriel Chalita, católico e colaborador da Canção Nova.

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8 Atividades como o “São Paulo em missão” são planejadas para atingir um número relativamente grande de pessoas já participantes da igreja, até mesmo pessoas que possam se converter a partir desses momentos. Por isso, tais atividades proselitistas geralmente são realizadas em locais públicos e espaçosos, com grande visibilidade e fácil acesso. Apenas as organizações religiosas não poderiam dar conta da estrutura necessária para sua realização, não só por causa do elevado custo dos palcos e equipamentos de som usados, e inclusive porque, muitas vezes, elas requerem ruas e vias de circulação pública fechadas e comandos policiais acionados para fazer a segurança.

9 Para ter acesso ao local do evento era necessário passar primeiramente por missionários e voluntários que, de jalecos alaranjados, foram incumbidos de recepcionar todos os participantes com sorrisos, abraços e informações sobre o evento. Após passarmos pelos missionários responsáveis pela acolhida, devíamos transpor uma barreira de policiais civis fardados. Esses policiais revistavam todos os participantes do local e regulavam todas as entradas, pois havia pontos específicos para entrar e para sair, não sendo permitido entrar com objetos pontiagudos, guarda-chuvas muito grandes e nenhum tipo de instrumento cortante.

10 A dinâmica do local em que se realizou o evento permitia que qualquer um pudesse entrar e assistir às atividades. Como algumas autoridades públicas estavam participando, a segurança foi reforçada. O interessante é que nossa etnografia permitiu perceber que apenas no período da manhã, quando alguns políticos estavam presentes, a segurança foi bastante reforçada; posteriormente, era possível entrar sem sequer ser revistado.

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11 O evento ocorreu no domingo em que os católicos celebram a Assunção de Nossa Senhora. Por isso, entre a diversidade de congregações e comunidades que participaram, destacou-se a presença dos Arautos do Evangelho fazendo a entrada de uma procissão com a imagem da Virgem Maria.

12 Além dos Arautos do Evangelho, o evento contou com a presença de membros de ordens religiosas tradicionais, membros da comunidade Aliança de Misericórdia, da Fraternidade O Caminho, entre outros.

13 A possibilidade de ampliar o escopo de sua atividade de evangelização não é desconhecida pelos organizadores do evento. Ao contrário, não há uma preocupação em esconder esse objetivo e a importância de um local como o Campo de Bagatelli para essas atividades. O próprio administrador e missionário da Canção Nova fez questão de ressaltar esse aspecto em seu discurso:

14 Wellington Jardim, administrador da Canção Nova, também reconheceu que o evento é uma ótima oportunidade para evangelizar a cidade de São Paulo. Afirmou que era uma porta aberta e que os católicos tomariam posse do lugar todos os anos e estariam sempre ali, no Campo de Bagatelli, no dia da Assunção de Maria (trecho do diário de campo, Pierina, 16/08/2009).

15 Além disso, a etnografia nos sinalizou, não apenas para o que acontecia no interior do evento, no palco, nas pregações dos padres e nos discursos das autoridades presentes, como, possibilitou que observássemos o contexto e os locais próximos. Desse modo, assim, à nossa chegada, o primeiro fato que nos chamou a atenção foi que ao redor do local onde se realizou o “São Paulo em missão”, havia várias lojas que vendem automóveis e que, naquele dia, estava acontecendo uma feira de carros usados, que atraiu pessoas, vendedores ambulantes e uma grande agitação, com pessoas bebendo, namorando e comprando carros ao lado de onde ocorria o evento de evangelização.

16 No evento as pessoas eram incentivadas a se alimentar apenas nas barracas montadas para a comercialização de alimentos pelos próprios organizadores da atividade. Porém, percebemos que muitas pessoas vindas para o evento preferiram não fazer as suas refeições nas barraquinhas montadas no local, e sim nos bares e restaurantes vizinhos.

17 Portanto, a realização da etnografia possibilitou ao nosso olhar apreender as regras de certas dinâmicas religiosas suscitadas pela cidade de São Paulo. Além disso, o olhar etnográfico possibilitou a percepção, também, de como essas regras podem ser reinventadas e apropriadas pelos atores sociais. Constatamos não apenas as características do público e organizadores, como, igualmente, foi possível observar de que forma a evangelização de grandes cidades, muitas vezes, exige que os movimentos

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religiosos façam contatos, mobilizem outras organizações e entrem em espaços que não são estritamente religiosos.

NOTAS

1. Os novos movimentos eclesiais, entre os quais se encontram as “comunidades de vida e aliança no Espírito Santo”, são organizações católicas formadas a partir da iniciativa de um líder carismático, que mobiliza os fiéis em torno de uma missão especifica e atribuída a uma inspiração divina. Tais pessoas passam a viver em casas comunitárias, dividindo recursos, bens e um cotidiano comum. O diferencial dessas comunidades com relação às antigas ordens e congregações católicas é o fato de aparecerem como iniciativas de leigos católicos.

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Impressões etnográficas do Tribunal do Júri do assassinato de Aline Silveira Soares: o caso da morte do RPG

Ana Letícia de Fiori

1 Após sucessivos adiamentos, nos primeiros dias de julho de 2009 foi realizado o julgamento do “caso Aline”, atraindo novamente olhares de todo o país para a histórica cidade de Ouro Preto, cenário do terrível assassinato ocorrido oito anos antes. A capixaba Aline Silveira Soares foi assassinada em 14 de outubro de 2001 durante a tradicional Festa do 12, promovida pelas repúblicas estudantis da cidade. As circunstâncias em que a vítima foi encontrada, nua e esfaqueada, abandonada em um cemitério da cidade supostamente em posição de crucificação, foram ao longo das investigações unidas a uma série de elementos, construindo diferentes especulações e narrativas caleidoscópicas, veiculadas pelos operadores do direito e pela imprensa, alimentando o mistério em que o caso foi envolvido. Tais narrativas convergiram e foram performatizadas e avaliadas após oito anos, durante o julgamento dos quatro acusados, três rapazes então estudantes da cidade e a prima da vítima. Este julgamento foi eleito como objeto de pesquisa de mestrado em antropologia social, em uma intersecção da antropologia urbana, da antropologia da performance e da antropologia do direito. Intersecção que proporciona levantar, a partir de um estudo de caso, questões pertinentes a diferentes linhas temáticas e a temas caros à disciplina, como família, gênero, as relações entre mídia e o Estado, dimensões estéticas e simbólicas de práticas institucionais. Ao longo da pesquisa, pretende-se discutir como as diferentes narrativas produzidas em função do “caso Aline”, em suas diferentes montagens, promovem o encontro de experiências sociais e imaginários diversos em um esforço coletivo de produzir sentidos e reparação, mas que deixa um rastro de ruídos e tensões, de questões abertas. Busca-se analisar como um julgamento extraordinário, até para os atores para quem o Tribunal do Júri é parte de um cotidiano, cria em suas tensões e obscuridade epistemológica um locus para uma muldimensionalidade de narrativas que

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alinham elementos dispersos em uma narração capaz de preservar o inacabamento do passado e a imprevisibilidade do presente.

2 Para uma aprendiz de antropóloga como eu, estranha à cidade, nas visitas a Ouro Preto sentia ainda as incertezas da atitude apropriada ao novo campo, a de flâneur que se deixa perder ou a de caminhante atenta, buscando sentido em cada passo sobre os paralelepípedos rotos. Um longo caminho ladeira abaixo conduz da rodoviária ao Fórum, passando pela Praça Tiradentes e a Rua Direita, sistema nervoso central da cidade, de onde partem impulsos para os circuitos e trajetos de Ouro Preto. Antes porém encontra-se o largo da Igreja Nossa Senhora das Merçês e Misericórdia - ou Mercês de Cima - e seu pequeno cemitério, ponto em que alguns turistas paravam para se recuperar do calor atípico de julho, das caminhadas íngremes e para bater fotos panorâmicas da cidade, em sua maioria sem saber que foi aí que se desenrolou o crime. O olhar informado reconhece que o muro que esconde o cemitério não faz parte do cenário original, também ele parece uma pequena anomalia em uma história maior e mais antiga. No começo do dia, percorre-se a cidade mais depressa que a luz do sol, que gasta boa parte da manhã para alcançar as casas e ruas mais estreitas. O serviço no Fórum começa cedo, mas em seus quatro dias o julgamento só iniciou seus trabalhos sob o augúrio da luz vespertina.

3 Policiais isolaram a rua, contendo o círculo mágico do julgamento no quarteirão entre a esquina do Fórum e o prédio cor de rosa da Promotoria Pública. Era preciso evitar o que ocorreu no último adiamento de 25 de maio, quando um grupo revoltado vaiou e acossou os réus e um parente da vítima foi preso, o que levou os advogados a pedir – sem sucesso – o desforo do caso e sua transferência para Belo Horizonte. Dentro do círculo estavam também estudantes de direito e curiosos. E salientando a proporção dos eventos para os transeuntes e turistas, os jornalistas, com os carros e vãs de suas respectivas agências, uma amostra dos principais veículos de comunicação do estado e do país. A expectativa pela chegada dos réus era grande; seus advogados observavam, concediam entrevistas; os populares tentavam transportar seus olhares para a lente das câmeras da imprensa, que pareciam ter mais certeza de onde apontar. As câmeras mobilizam diversos discursos e práticas, são parte importante na construção dos sentidos que o evento do julgamento proporcionou. Os advogados de defesa buscavam proteger a imagem de seus clientes, reforçando que os réus se mostrariam apenas quando as câmeras fossem desligadas.

4 Subindo as escadas e passando pelos balaústres pintados com cores primárias e pela sala de audiência, convertida em quartel da imprensa, chega-se ao salão do julgamento. Antes da sessão começar a assistência conversava animada ou espiava a rua nos balcões. Alguns liam o jornal do dia enquanto esperavam para testemunhar a manchete do dia seguinte. Outros comentavam as roupas chamativas da promotora, que diziam ser brava como a juíza, uma figura vistosa de cabelos negros como a toga e olhar severo. No maior Júri da história recente de Ouro Preto, mesas extras foram necessárias para acomodar os quatro co-réus e seus advogados. Os familiares e conhecidos de Aline chegaram ao salão portando suas camisetas brancas, com a foto de Aline e dizeres pedindo justiça. Seus corpos encarnavam a indignação, a injustiça e o cansaço pela longa espera, ainda que entre o grupo estivessem crianças que provavelmente não eram nascidas na época do crime. A alegada morosidade parecia mais um motivo para a condenação, pois acessava o imaginário da impunidade presente nas representações sobre o judiciário brasileiro. Na fileira oposta de bancos, um outro grupo

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experimentava um drama intenso, a ser decidido naquele julgamento. As mães dos réus rezavam de cabeça baixa, chorando contidas, atraindo olhares de comiseração suspeita.

5 O começo do julgamento foi a encenação de um grande embate jurídico, no qual os advogados de defesa esgrimavam com a Justiça, entregando requerimentos e questionando procedimentos tomados. Executavam o playtest das regras do jogo antes que sua parte principal se iniciasse propriamente. Os estudantes de direito acompanhavam atentos, comentando as mudanças no Código do Processo Penal, que constitui as principais regras formais do jogo. O resto da assistência, com pouco entendimento dos lances, trocava versões que correm pela cidade sobre o caso. Dizia-se que havia “muito desse negócio de RPG na cidade e o delegado, que era meio maluquete, queria dar um jeito no RPG”. Outros narram o encontro de Aline com um traficante. Um dos advogados de defesa argumentou fazendo ironias e chacotas com os autos do processo, “isso é um samba do crioulo doido!”, atraindo de volta a atenção de todos. A juíza advertiu a assistência que ria avisando que “isso aqui não é teatro!”. Na entrada dos réus os pescoços se esticam e se comenta “parece um casamento”. A aparência comum dos réus decepcionou alguns, indignou outros, despertou outras metáforas cênicas, como “isto aqui é uma palhaçada”.

6 As narrativas no julgamento floresciam das peças, dos testemunhos, das evidências e dos argumentos que reúnem em status de presente elementos dispersos pela ótica linear do tempo, interrompendo com um “choque” o fluxo contínuo da história para aproxima-los numa imagem de constelação. Os corpos dos réus eram a materialização deste choque, sendo submetidos a uma economia de poder que as câmeras da imprensa tentavam apreender. Surgiram dispositivos de construção do criminoso, da personalidade voltada para o crime. As testemunhas de acusação descreveram hábitos estranhos de ré, roupas pretas, gostos duvidosos. À testemunha que afirmava a agressividade da ré por seus cabelos tingidos de vermelho foi chamada a atenção por sua própria coloração, digna de uma tintura tonalidade 6.66. Morte em família e a espetacularização do crime promoviam a conexão da ré com a figura também loira de Suzane Richtoffen, condenada pelo assassinato de seus pais. No corpo de outro réu, buscavam-se evidências de oito anos atrás, se trocou de roupa, se as marcas de seu corpo são fruto de um encontro heterossexual legítimo com uma das testemunhas de acusação, um encontro homossexual inconfessável, insinuado por pessoas da assistência, ou marcas da brutalidade praticada, como defendia a promotoria. Os “chupões” são um dos pontos altos de polêmica do primeiro dia de acusações e uma das ambiguidades em torno dos quais se configuraria a disputa.

7 Enquanto as vidas cotidianas de vítima, co-réus e testemunhas eram recriadas e postas em exame para dar sentido àquela morte extraordinária, até o que é dado como certo cobria-se de ambiguidades. O tempo é colocado em disputa. O tempo dos procedimentos e diligências da justiça; o tempo em que os réus permaneceram presos durante as investigações; O Tempo, um dos jornais mineiros responsáveis pela cobertura do caso; e principalmente o tempo que deveria situar as ações e deslocamentos dos réus. Na noite do crime, a mudança do horário de verão teve o efeito de criar narrativas paralelas sobrepostas, como um borrão na reconstituição dos fatos, confundido versões já incertas dada a margem de várias horas delimitada pelos peritos para a hora mortis de Aline. Nesse fluxo, os advogados de defesa argumentavam que também era impossível se produzir um álibi se não havia acusações claras, ou segundo o jargão imputação genérica, falta de individualização da conduta. Descompassos entre um sistema penal

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voltado para culpas individuais e um mundo empírico no qual pessoas e ações diversas podem concorrer para uma prática legalmente sancionada. A disputa era também pelo tempo de jogo, dos operadores do direito conseguirem ou não apartes, de todos resistirem às horas arrastadas do julgamento, à fome e ao cansaço. A fronteira entre a assistência e o resto do julgamento era burlada por pacotes de bolacha, garrafas de refrigerante e comprimidos para dor de cabeça.

8 A quantidade de testemunhas e informantes (desobrigados de dizer a verdade) de acusação excediam as testemunhas de defesa. A oitiva mais aguardada no segundo dia era a da mãe de Aline, a quem foi dispendido um cuidado maior por parte de todos. No julgamento efetivava-se a metonímia de mãe e filha enquanto vítimas e as narrativas produziam sobreposições de imagens. Os jornalistas avidamente buscavam registrar Maria José, que tivera a filha imolada tal qual os personagens de quem recebera seu nome. Acima da cadeira da juíza, Jesus Cristo representado em sua cruz criava uma montagem das narrativas de morte. Enquanto Maria José expunha sua dor renovada por ter a vida já interrompida da filha também em julgamento, a juíza chorava discretamente desvelando a venda da Justiça em seu rosto de mulher.

9 Nos intervalos e final das sessões, aqueles que já haviam sido ouvidos podiam falar à imprensa. A defesa reuniu antigos colegas dos réus falando de sua convivência em Ouro Preto e uma professora da UFOP, que além das condutas dos réus defendeu também os jogos de RPG, sendo posteriormente chamada pelo assistente de promotoria de “doutora em artes cênicas e pós-doutora em artes cínicas”. Este depoimento também revelou a mobilização, em defesa dos réus, de alguns cursos da “federal”, que designou o então professor Marinho para defendê-los. O segundo dia foi o único em que a sessão não se aproximou da meia-noite, de modo que os jurados foram atendidos em sua solicitação de romper a incomunicabilidade para assistir ao jogo Cruzeiro X Grêmio, cujo empate alçou o time mineiro à final da Copa Libertadores da América.

10 No terceiro dia um a um foram ouvidos os co-réus, enquanto os outros aguardavam fora da sala. Seus corpos e vozes oscilavam entre o desespero, a tentativa de objetividade e a indignação. Um a um alegaram não saber de que estavam sendo acusados, fazendo com que a juíza ou o escrivão lessem a peça acusatória. Os três rapazes relataram a seqüência dos dias de outubro de 2001, entre a greve da universidade, as atividades artísticas e a vida em república. Contaram do encontro com a vítima e sua prima e dos dias posteriores à morte de Aline, descrevendo as ameaças recebidas. Todos enfatizavam o absurdo das acusações e da maneira como a investigação foi conduzida. Falavam também sobre o sofrimento de suas famílias e das dificuldades em construir uma vida sob o peso das acusações. O assistente da promotora perguntava sobre elementos do RPG que pudessem fazê-los falar sobre coisas semelhantes às imagens do crime.

11 A última a ser ouvida foi a prima de Aline, que fora fotografada rindo pelos jornais. De todos os acusados, ela foi quem mais recebeu atenção da mídia, quem passou mais tempo presa e de quem a assistência mais fala com convicção da culpa, amparados talvez pela violação dos vínculos familiares. Apenas a ela os jurados dirigiram perguntas, por escrito. Sua oitiva foi conduzida pelas brigas de família, pela relação com a vítima, pelos dias da visita a Ouro Preto que culminaram no assassinato não presenciado e pela falta de emoção demonstrada no enterro e as pressões da investigação.

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12 No quarto e último dia de julgamento foram dispostas caixas arquivos amarelas, contendo as evidências recolhidas na república dos réus, no cemitério e nas ruas de Ouro Preto. A chamada gravada pelo repórter do Jornal Hoje avisa que seria exibida uma reportagem sobre os jogos de RPG, a pedido dos telespectadores pelo Twitter, ambiente de microblogagem na internet. É o twitter de uma ex-moradora da cidade que primeiro noticia o resultado do julgamento, na manhã do dia seguinte. Foi estabelecido que haveria nove horas de debate no total, mas entre réplicas e tréplicas o julgamento se estendeu madrugada adentro.

13 A promotora iniciou entregando aos jurados um volume encadernado com fotos de Aline e trechos dos autos do processo, que tem dez volumes e cerca de quatro mil laudas. As fotos da cena do crime foram exibidas em powerpoint na tela de um laptop, exibindo em luzes vermelhas o corpo de Aline, o que causa grande impacto e faz com que parte da assistência se aglomere do lado direito do salão para ver. Depois de sublinhar sua dedicação ao caso e competência, e apelar à comunidade católica de Ouro Preto, a promotora passou a questionar a defesa que se fez do RPG, enquanto havia “uma mãe chorando, família partida, e uma cidade patrimônio da humanidade e cheia de estudantes, que às vezes incomodam, mas são jovens. O jogo se tornou mais importante que uma morte”. Seus argumentos buscavam construir a inteligibilidade da morte a partir da extrapolação do jogo, realizando montagens entre o RPG, a Bíblia Satânica e o crime. Seu assistente, por sua vez, conclamava os jurados “Senhores jurados, após quase oito anos, chegou o dia de limpar a mancha de sangue que ficou em Ouro Preto com o manto da Justiça”. Um segundo assistente, indicado pela maçonaria a qual pertencera o avô de Aline, trouxe um tom melodramático e pitoresco ao debate, chamando os réus e o primeiro promotor que rejeitara o caso de “nerds”, e afirmando que “o jogo continua, mas não é o Vampiro, é um jogo construído pelo nerd Cassiano”. Em sua fala o RPG foi explicitamente caracterizado como uma ferramenta de arregimentação do demônio e de destruição de lares.

14 As falas da defesa usaram um tom de enunciação marcadamente racionalizante e didático, começando por conclamar a todos para “voltar à sanidade neste ambiente e trazer fatos concretos”. Em uma lousa, elaborou-se uma cronologia desde a chegada das primas a Ouro Preto até as investigações e depoimentos na delegacia em 2001 e 2002. As evidências, livros de RPG e gibis, foram menosprezadas em seu valor de prova, pois até mesmo os advogados tinham ítens semelhantes em suas casas. A estratégia passou a ser desqualificar o trabalho do Ministério Público falando sobre Direito Penal e acusando- os de retórica vazia e de delegar o trabalho de investigação à imprensa. O delegado foi acusado de usar o caso para autopromoção e para desviar a atenção dos processos aos quais ele mesmo respondia na época. A mãe de Aline foi descrita como alguém que foi terrivalmente enganada e a alguém que se deu falsas esperanças de justiça. Um dos advogados de defesa, um homem negro imponente, falou sobre a injustiça que se cometeu contra Tiradentes em Ouro Preto, e sobre crimes de preconceito como o que estava ocorrendo. O advogado da prima da vítima mencionou o caso do jornalista José Cleves da Silva, que sofreu linchamento moral por um crime do qual foi inocentado.

15 As quatro horas da manhã de domingo foram lidos os quesitos da acusação de homicídio triplamente qualificado. O salão foi esvaziado, e cerca de sessenta pessoas esperou diante do prédio do fórum pela sentença. No retorno, familiares subiam nos bancos para poder ver para além da muralha de filmadoras a leitura do primeiro quesito, que apontava a participação na prática do crime. Na ordem em que foram

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acusados e ouvidos, os co-réus foram absolvidos. Entre flashs, choros, preces, abraços, cumprimentos cordiais e entrevistas, o julgamento era encerrado e pouco aos poucos finalmente o Fórum foi esvaziando, enquanto surgia por entre os morros uma aurora morna para iluminar o dia.

16 Após testemunhar o longo julgamento que se iniciou em uma quarta-feira ao meio-dia e se encerrou ao nascer do sol de domingo, os grandes veículos da imprensa encerraram sua cobertura repetindo as acusações do Ministério Público e atribuindo à absolvição por falta de provas. Diferente é minha proposta, do qual este relato é apenas um primeiro ensaio, de contemplar o ritual do Tribunal do Júri do “caso Aline” como um esforço coletivo e fragmentado de rememoração, de retomar e salvar pela palavra um passado que, de outra forma, desapareceria no silêncio e no esquecimento.

AUTOR

ANA LETÍCIA DE FIORI

Graduanda em Ciências Sociais/USP [email protected]

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Resenhas

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O Carnaval Visto dos Bastidores

Marina Mazze Cerchiaro

REFERÊNCIA

Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. 3.ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: EdUFRJ., 2006. 268 pp “Sonhar não custa nada e o meu sonho é tão real mergulhei nessa magia era tudo o que eu queria para esse Carnaval.

Deixe a sua mente vagar não custa nada sonhar viajar nos braços do infinito onde tudo é mais bonito nesse mundo de ilusão transformar o sonho em realidade e sonhar com a Mocidade é sonhar com o pé no chão.

Estrela de luz que me conduz estrela que me faz sonhar. ( bis) (...)” (trecho do samba-enredo da escola Mocidade Independente de Padre Miguel, 1992, de Paulinho Mocidade, Dico da Viola e Moleque Silveira. Apêndice, pg. 261)

1 O livro é uma versão revista de sua tese de doutorado defendida em 1993 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ (PPGAS/UFRJ).

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Trata-se do exame em profundidade da confecção de um Carnaval, o de 1992, por uma escola de samba -- no caso a Mocidade Independente de Padre Miguel – durante um ano. Entende-se aqui por Carnaval não apenas o desfile mas toda a preparação que se inicia com a escolha do enredo, logo que finda a apresentação anterior.

2 O Carnaval do Rio de Janeiro é entendido como uma arena na qual se confrontam visões políticas e culturais diferenciadas. Assim, essa típica festa brasileira se torna interessante do ponto de vista da antropologia urbana, pois o desfile pode ser pensado como uma absorção dos conflitos da cidade, “um imenso dispositivo ritual de articulação das mais diversas ordens de diferenças” (pg. 25). A autora afirma que se trata de um tipo de processo cultural que cruza fronteiras incorporando tensões e conflitos.

3 O propósito de seu livro é, portanto, entender a interação social de diversos segmentos sociais para, assim, compreender a cidade que o realiza e suas tensões. Para isso, analisa os bastidores do desfile, mostrando como se dá sua confecção, não ocultando os conflitos existentes e idéias paradoxais.

4 No primeiro capítulo A competição festiva, Cavalcanti faz uma rápida crítica da literatura sobre Carnaval e aponta a importância da idéia de competição no desfile. Parte do conceito de reciprocidade de Mauss e Simmel concluindo que para ambos os autores relacionar-se é também confrontar-se. Assim, o desfile propicia a comunicação, troca e proximidade entre as escolas de samba e no interior delas, bem como hostilidade, conflito e confronto de valores. A autora segue fazendo um breve histórico do surgimento das escolas de samba no Rio de Janeiro, que data de 1920. Também trata do espaço do Sambódromo e seu caráter especial, no qual apresentar-se é sempre local de prestígio. Cavalcanti corajosamente aborda a ligação entre jogo do bicho e o Carnaval revelando a relação de mecenato entre bicheiro e escola de samba e a combinação de idéias aparentemente opostas de “empresariamento” e “ patronagem”. Se a primeira traz a noção do contrato, a segunda consiste na troca de favores, na palavra dada. Aponta ainda, que nessa festa “a moeda prestígio tem tanta circulação e relevância quanto o dinheiro”. ( pg. 51).

5 Por fim, define duas categorias que se misturam no desfile e que permearão toda a sua análise: Samba e Visual. A primeira se relaciona com o caráter festivo – o canto, a música e a dança. A segunda liga-se à noção de espetáculo – a admiração e o êxtase diante das alegorias, fantasias e coreografias. Seriam, assim, duas formas de participação que estão no cerne do Carnaval e organizam sua confecção.

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6 No capítulo “O carnavalesco e a primazia do visual” a autora trata do aspecto visual e do artista por excelência na confecção do desfile – o carnavalesco. Aqui mais paradoxos são revelados: ao mesmo tempo que a escola tem personalidade própria, o carnavalesco pode dar personalidade à escola; chocam-se também os valores de patronagem e profissionalização.

7 Coloca-se então a dualidade espacial entre “quadra” e “barracão”: a primeira espaço da diretoria da escola e a segunda da comissão de Carnaval que decidia com plenos poderes tudo sobre a confecção do desfile. Aqui entram também as categorias de Samba e Visualidade; a primeira estaria ligada à quadra, lugar dos ensaios, e a segunda ao barracão onde são produzidas as alegorias, fantasias e adereços.

8 No terceiro capítulo, “Como tudo acaba em samba” procura-se entender o processo de produção e escolha do samba-enredo, deixando claro o confronto entre duas visões de mundo: a do carnavalesco e a dos compositores. Há uma competição interna a escola, o carnavalesco propõe o enredo e muitos compositores entram na disputa pelo melhor samba-enredo, o que muitas vezes gera rancores e rompimentos de sociabilidades entre eles, esquecidos após a escolha do samba. Afinal, a escola deve se unir, há a necessidade de coesão. Mostra-se ainda a idéia de parceria entre compositores na qual um faz a letra e outro a melodia. Por fim, Cavalcanti analisa as letras de samba apresentadas.

9 Se nesse capítulo a autora foca no que se enquadraria a categoria Samba e no espaço da quadra, no seguinte As alegorias carnavalescas ela se volta para o barracão e trata da Visualidade. Cavalcanti procura entender como se transforma o enredo em algo plástico e analisa o processo de confecção das alegorias começando pela ferragem, carpintaria e mecânica, passando pela escultura e modelagem até chegar à fase final de pintura, vidraçaria e movimento. A autora discute as noções de arte que estão contidas nesse processo. Mais uma vez surgem paradoxos. Se, por um lado, a confecção dá ênfase ao corpo e à materialidade, a um fazer constante, uma execução coletiva, por outro lado, há uma concepção idealista de arte, criando um lugar mais individualizado do desfile: o do carnavalesco. Essa oposição de execução versus concepção gera outra, a de obediência e autoridade, na qual o carnavalesco é a autoridade máxima do barracão.

10 Analisando a confecção das alegorias, a autora descobre inesperadamente que há uma primazia do Visual sobre o Samba. São confeccionadas inclusive várias alegorias que não são mencionadas no enredo. A autora, então, baseando-se na idéia de Walter Benjamin de que alegoria é uma expressão por excelência do barroco, conclui que a crescente força das alegorias pode ser atribuída ao fato de que possibilitam a expressão

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da experiência fragmentada dos próprios habitantes da cidade, assim como inúmeras leituras.

11 O último capítulo, O caminho da fantasia , aborda o processo de confecção das fantasias e adereços, além do significado das diferentes alas, incluindo a das baianas, os destaques, o mestre-sala e a porta-bandeira. Cavalcanti explica como as fantasias expandem ao máximo as redes de relações do Carnaval, renovando-as ano a ano. Como diz a autora:

12 “Ao longo dos anos, a fantasia tece trajetórias pessoais ou de grupos muitas vezes carinhosa e orgulhosamente guardadas em álbuns de fotografia que falam da justaposição entre a vida de cada um e a história dos Carnavais”. ( pg. 229)

13 A autora conclui o livro pensando a temporalidade e o desfile. O último representa o ponto máximo de expansão das redes de relações construídas ao longo do processo. A escola então aspira comunicar-se com toda a cidade. Poderíamos até ampliar e dizer que durante o desfile, a escola se comunica também com o país e com o mundo. Assim, o Carnaval revela uma necessidade de preencher o fluxo do tempo com um sentido coletivo compartilhado.

14 Portanto, o trabalho de Cavalcanti aborda, por meio de uma linguagem fluida e prazerosa as relações, permeadas por conflitos e tensões, existentes nos bastidores do Carnaval carioca. Acompanhar a confecção do desfile, por uma escola durante um ano é o que faz dele original e uma referência no assunto.

15 Buscando sempre o que essa festa tem a dizer sobre as interações na cidade, torna-se uma importante obra na área de antropologia urbana. Um livro recomendado não apenas para especialistas no assunto, mas também ao público em geral que se interesse em saber mais sobre essa grande festa brasileira.

AUTOR

MARINA MAZZE CERCHIARO

NAU - Nucleo de Antropologia Urbana da USP

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Potencialidades de Novas Formas de Fazer Etnografia: Imagem e Conhecimento

Daniel Belik

REFERÊNCIA

Imagem-Conhecimento: Antropologia, cinema e outros diálogos, organizado por Andréa Barbosa, Edgar Teodoro da Cunha e Rose Satiko Gitirana Hikiji. – Campinas, SP: Papirus, 2009.

1 O título da coletânea de artigos organizada pelos professores do Grupo de Antropologia Visual da Universidade de São Paulo (Gravi/USP) já emerge como um desafio da leitura que está por vir. Fruto do Simpósio Internacional intitulado “Tradução e Percepção – Ciências Sociais em Diálogo” realizado em maio de 2006, na própria Universidade de São Paulo, o livro que sai três anos depois vem com a qualidade de revisão das apresentações feitas até então oralmente e a tentativa de incorporação dos diálogos que se deram posteriormente. Sem saber se referência implícita à dobradinha dos livros de Gilles Deleuze sobre o cinema intitulados respectivamente “Imagem-Movimento” e “Imagem-Tempo”; a coletânea de ensaios aqui resenhada parece partilhar de muitas de suas reflexões, na medida que tenta esticar o campo de agenciamentos que os filmes etnográficos podem oferecer ao público. Neste sentido, a contraposição aqui colocada não se fixa apenas no instrumento “filme etnográfico” em oposição ao “texto etnográfico”, mas trata de alargar a própria noção do que significa usar uma câmera filmadora ou fotográfica quando se faz trabalho de campo e quais as reações suscitadas entre os “nativos” e, posteriormente, perante o grupo acadêmico-intelectual que fará uso de tal relação.

2 Este duplo objetivo do livro, se assim pode-se dizer, gera, portanto, duas vertentes de artigos que aparentemente desconexas, dialogam o tempo todo ao longo da leitura da obra. Se por um lado George Marcus, Sylvia Caiuby e Andrea Barbosa tentam repensar o

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próprio fazer etnográfico oferecendo outros pontos de inflexão para se repensar o Outro como as artes plásticas, a valorização dos múltiplos sentidos humanos e a importância do silêncio para captar o indizível resgatando-se a memória; de outro modo, Paul Henley, David McDougall, Renato Sztutman e Paulo Menezes tratam especificamente da história e técnicas das filmagens etnográficas apontando suas dificuldades e trunfos que não se diferenciam muito das deficiências existentes na produção de qualquer filme, seja ele ficcional ou documentário.

3 Um fundo comum de inspiração de todos os autores, destarte, foram as teorizações e realizações fílmicas dos pioneiros deste tipo de método. É claro que se alguns antropólogos norte americanos como Margaret Mead e Gregory Bateson, foram os primeiros a ir a campo com câmeras e filmes em mãos, eles ainda viam tal atividade como um complemento ilustrativo ao trabalho de campo tradicional, servindo à propósitos quase que exclusivamente tipológicos (:47); os primeiros antropólogos que passaram a pensar de modo mais dialógico o uso da câmera foram Jean Rouch e o próprio David MacDougall. Esta, portanto, é a linha que seguem os artigos aqui expostos. Como retratar a realidade vivida pelos variados objetos de estudos dos antropólogos através de um filme que tenha iconicidade com a realidade; despertando uma pluralidade de vozes, sendo ao mesmo tempo uma produção de um autor que fala de um lugar determinado para um público leitor-espectador que tem expectativas formadas quanto à interação com esta(s) narrativa(s)?

4 Aqui, mais do que no trato etnográfico tradicional, o diálogo com a arte é inevitável. Mesmo que tentemos semioticamente tratar o filme como um texto, passível de ser desmembrado e analisado em partes, separadamente, ainda nos deparamos com algo inexplicável que invade nossa percepção da obra por formas e fluxos diversos. Estes relances de existência, como diz McDougall, são “mais inesperados e poderosos do que qualquer coisa que pudéssemos criar”.(:65). Estamos falando de estética, mas também estamos nos referindo ao aparato técnico ou condições físicas da gravação capazes de misturar realidade e imaginação. É neste sentido que a forma de recepção do contexto mostrado pode ser muito mais sensorial ou perceptiva do que cognitiva, como num texto escrito.

5 O objetivo da pesquisa também não pode ser deixado de lado. Se Jean Rouch esperava exercer uma espécie de “contaminação mútua entre a câmera e o ritual” (:235) é porque, nas tribos que retratou da África Ocidental, ele tinha em mente afetar o público de maneira que pudesse penetrar sinestesicamente num momento excepcional da vida destes grupos. A representação simbólica filmada, portanto, materializaria outro plano de contato entre o espectador e o remetente, confundindo estas categorias e encurtando distancias- tanto temporais como espaciais-. No entanto, nem sempre a relação imagem-transe é proveitosa. Pode gerar confusões dos dois lados (como gerou) e preconceitos fundados em enquadramentos de inteira responsabilidade do diretor. Neste sentido é importante ressaltar a dimensão política do fazer etnográfico fílmico, e assumir a responsabilidade à medida que escolhemos um lugar para retratar este objeto.

6 Deve-se ter sempre em mente, portanto a técnica que foi acionada para apreender a alteridade existente, visto que um filme sempre “fecha o sentidos possíveis das imagens” (:265) tendo por referencia o contexto histórico-cultural ao qual o autor pertence e os objetivos que tem em mente.

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7 Seja então através de uma experiência auditiva, como a etnografia de Rose Satiko, numa orquestra junto à um projeto social de baixa renda, ou através de uma ‘etnografia virtual’ feita por exemplo por Paula Morgado e Denise Dias Barros, parece que a questão principal que se coloca é o processo de transição ao qual os sujeitos estão submetidos: “Se movendo em direção a um futuro que o filme não pode conter” (:150) . Esta espécie de ‘Devir’, se assim podemos chamar, é o que nos revela o extraordinário cotidiano. Imagens capazes de captar um gesto, um silêncio, um contato significativo.

8 Etnografias atentas a estas idiossincrasias humanas acumulam uma potência fundamental, tornando difícil perceber até onde vão os limites das imagens, e até que ponto o texto ou a fala pode explicar o que vem ocorrendo naquele instante. De fato, as imagens parecem se mesclar ao som que por sua vez já se confundem com os próprios planos apresentados em uma etnografia, que sem pretender suplantar o modelo tradicional, nos coloca diante de um impressionismo bem realista.

9 O esforço coletivo do Gravi, portanto, vem preencher um papel fundamental na academia, tentando aliar a percepção artística à uma veia etnográfica incrustadas ambos em um contexto cheio de vilosidades, onde cada irregularidade preenchida afeta um novo órgão e um novo sentido de corpos em mutação.

AUTOR

DANIEL BELIK

Graduando em Ciências Sociais – FFLCH-USP

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Vozes Marginais na Literatura

Alexandre Barbosa Pereira

REFERÊNCIA

Érica Peçanha do Nascimento. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2009. 347 pp.

1 Desde pelo menos os anos 1970, as periferias urbanas do Brasil estão em pauta nas discussões acadêmicas, particularmente nas Ciências Sociais. Entre os anos 1970 e 1980, estes estudos ressaltavam principalmente a precariedade de infraestrutura urbana e de serviços públicos e a situação de marginalização social da população que habitava estas

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áreas de expansão das grandes cidades brasileiras. Houve neste momento um grande interesse das Ciências Sociais pela realidade destes moradores da periferia das grandes cidades.

2 Em artigo sobre o tema, a antropóloga Eunice Durham (2004 [1986]) destaca a riqueza do material que se acumulou neste período, que tinha como objeto principal de análise a classe trabalhadora e a população pobre das grandes cidades e tratavam de temas como a migração, a família, o papel da mulher, os movimentos sociais e os modos de vida de uma maneira geral. Desde os anos 1990, no entanto, aponta-se para uma maior heterogeneidade para isto que se tem denominado como periferia. Da mesma forma, afirma-se uma relação menos dicotômica entre centro e periferia.

3 O livro Vozes marginais na literatura, de certa maneira, insere-se nesta tradição de estudos sobre a periferia. Trata-se da pesquisa de mestrado de Érica Peçanha do Nascimento, realizada junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP, cujo tema é a literatura marginal produzida na periferia de São Paulo. Embora em diálogo com esta produção acadêmica, o trabalho de Nascimento vem destacar um novo movimento que surge nas periferias urbanas de São Paulo.

4 Se nos anos 1970 e 1980 os movimentos sociais caracterizavam-se pelas reivindicações junto ao poder público por melhores condições de infraestrutura urbana e serviços públicos nas periferias, hoje, sem perder de vista esta mobilização reivindicativa, despontam e crescem cada vez mais os movimentos de articulação em torno de práticas artístico-culturais. A literatura, estudada por Nascimento, é uma destas práticas, mas poderíamos destacar outras como a produção audiovisual1, os grupos de dança afro, os grupos de teatro, as rodas de samba e o movimento que em muito contribuiu para este processo recente de valorização da produção cultural da periferia: o Hip Hop. Além disso, o livro apresenta o modo como os escritores têm concebido a idéia de periferia a partir de sua literatura. A autora busca, assim, “os pontos de vista e as vivências dos próprios protagonistas”.

5 Neste sentido, Vozes marginais na literatura proporciona uma importante contribuição para o entendimento das periferias urbanas hoje e, principalmente, para uma maior compreensão desta tomada da ideia de periferia como categoria de afirmação positiva e como marca de pertencimento por parte dos moradores dos bairros pobres nos arredores da cidade de São Paulo. Nascimento denomina esta autovalorização da periferia como um processo no qual a periferia tornar-se-ia “autora de sua própria imagem”. Ela nos conduz por este processo a partir da literatura produzida por escritores moradores das periferias de São Paulo, denominada literatura marginal ou periférica. Para isto, a autora apresenta-nos sua pesquisa realizada por meio de uma análise da própria produção escrita dos autores da periferia, além de entrevistas com protagonistas da literatura marginal e observação de campo em eventos sobre o tema.

6 A autora, no entanto, situa também esta literatura marginal em meio a uma rede de relações da chamada cultura de periferia. Nestas “redes extra-literárias”, além dos interlocutores da periferia já apontados acima - Hip Hop e outros grupos culturais – aparecem outros atores, com os quais a literatura marginal dialoga de forma mais ou menos amistosa: as ONGs, os movimentos sociais e políticos, a academia e o próprio mercado editorial.

7 A pesquisa traça ainda o percurso de três importantes protagonistas da cena da literatura marginal : os escritores Ferréz, Sérgio Vaz e Sacolinha - cada um deles, articulador de três movimentos e/ou eventos que aglutinam outros atores sociais

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ligados à literatura marginal e à denominada cultura de periferia. Trata-se da Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia), sarau literário realizado todas as quartas-feiras à noite no bar do Zé Batidão, no distrito do Jardim São Luiz, cujo principal mestre de cerimônias é o poeta Sérgio Vaz. Já o escritor Ferréz é o criador da instituição 1daSul, sigla para “Somos Todos Um pela Dignidade da Zona Sul”, designando um movimento cultural que é ao mesmo tempo grife, selo fonográfico, loja e produtora. O Projeto Literatura no Brasil, criado pelo escritor Sacolinha, consiste na realização de eventos e na construção de uma rede de articulações para contatos, trocas e divulgação da literatura marginal e seus autores.

8 O livro conta ainda com um posfácio de Heitor Frúgoli Jr. e um instigante prefácio de Ferréz, consistindo de uma breve descrição poética do percurso da antropóloga junto aos autores da periferia. O trabalho de Nascimento revela que, se a escrita é, como afirma Lévi-Strauss em Tristes Trópicos, um elemento fundamental para a instituição do poder político, sendo “indispensável para fortalecer as dominações” (LÉVI-STRAUSS, 1996 [1955]: 283), por meio de sua literatura, os escritores da periferia tentam de alguma maneira desestabilizar ou subverter relações de poder e dominação estabelecidas, escrevendo sua própria história.

BIBLIOGRAFIA

DURHAM, E. “A sociedade vista da periferia”. In: A dinâmica da cultura: ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2004 [1986].

LÉVI-STRAUS, C. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996 [1955].

NOTAS

1. Registrados por Rose Satiko Hikiji em vídeo etnográfico: Cinema de quebrada NTSC, cor, 45 min, LISA/FAPESP, 2008.

AUTOR

ALEXANDRE BARBOSA PEREIRA

Doutorando em Antropologia Social (USP)

Ponto Urbe, 5 | 2009