António Pedro: a Saga Islenha De Um Poeta De Caboverdianidade Bissexta Vista Por Dionísio De Deus Y Fonteana1
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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 /15 – Agosto - Novembro. 2011 - ISSN 1983-2354 www.africaeafricanidades.com António Pedro: A saga islenha de um poeta de caboverdianidade bissexta vista por Dionísio de Deus y Fonteana1 Em homenagem a António Pedro Costa, homem-teatro, pintor e artista plástico, poeta surrealista, e inventor do Diário fundador do modernismo poético nas nossas ilhas, para além de criador de muitos mal entendidos na historiografia das geneologias literárias caboverdianas Tempos inaugurais certificados em modo introdutório pelo olhar ensaístico de um alter ego do cronista, de seu nome literário Tuna Furtado, tido pelo próprio como aprendiz de ensaísta e diletante da história das ilhas e, por isso, assíduo excursionista à época da escravocracia caboverdiana Transfigurada, a memória esvai-se e queda-se nos longínquos anos de 1909. Eram tempos finisseculares de transição para um novo século. Eram tempos iniciais, balbuciantes de uma nova década. Eram tempos de muita controvérsia. Eram tempos localizados em plena situação colonial. Todavia sem indigenato, embora os mandarins de então tentassem eternizar- se suplantando os cínicos resquícios da sociedade colonial-escravocrata e da sua inevitável estratificação em senhores, homens livres e escravos, e sua correlativa estratificação das criaturas humanas em função da pigmentação da 1 Dionísio de Deus y Fonteana é o nome literário para a escrita da crónica literária e da prosa de ficção do escritor caboverdiano José Luís Hopffer C. Almada (é também jurista, ensaísta, poeta e comentador radiofónico da actualidade caboverdiana e africana, com cinco livros de poesia publicados e vasta colaboração em jornais, revistas, blogues, sites, colectâneas de ensaios e antologias de poesia. Utiliza ainda os nomes literários Alma Dofer Catarino, Erasmo Cabral de Almada e Nzé di Sant´y Águ (para a poesia em português), Zé di Sant´y Águ (para a poesia em língua caboverdiana), Tuna Furtado (para a escrita de artigos de opinião e ensaios). Praia, 21 de Julho de 1987 (versão original publicada na revista Fragmentos, de 1987). Revisto e refundido em Lisboa, aos 16, 17, 20 e 21 de Dezembro de 2010, aos 30 de Janeiro, e aos 1, 6 e 9 de Fevereiro de 2011. Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 /15 – Agosto - Novembro. 2011 - ISSN 1983-2354 www.africaeafricanidades.com Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 /15 – Agosto - Novembro. 2011 - ISSN 1983-2354 www.africaeafricanidades.com sua epiderme em brancos, mulatos e negros, e o resto que entre eles pudesse caber, e o demais que, por força de circunstancialismos inusitados, as pudesse subverter. E, como é sabido, Cabo Verde, a mais pobre das colónias portuguesas, foi sempre pródiga na produção de circunstancialismos inusitados. Inusitadamente pródigos. Por isso mesmo é que a estratificação social das ilhas nem sempre coincidia com a pirâmide racial que nela dominava e tendia a agregar os seus habitantes numa ordem desigual e profundamente injusta. Nem mesmo na sociedade colonial-escravocrata precedente daquela que agora ofegante respirava sobre as suas ruínas e intentava soerguer-se dos seus escombros. Singularizada pelas patentes fragilidades das bases económicas e ecológicas nas quais assentava, regularmente fustigada pelo suão, pelo cieiro e pela bruma seca, desde sempre marcada por profundas cogitações e reminiscências colonial-racistas devido à circunstância histórica de a mesma se ter fundado, desde os seus primórdios, em pressupostos socio-económicos irrefutavelmente assimétricos e segregacionistas, a sociedade colonial- escravocrata erigida nas ilhas ficou igualmente marcada pelos seguintes factores: 1.Um interiorizado instinto de sobrevivência colectiva em face de ameaças várias, das quais podem ser alinhadas as seguintes: a) A carestia endémica e as fomes provocadas pelas crises das estiagens (as famigeradas secas caboverdianas). b) As crises económicas, amiúde resultantes do cerco do poder colonial e dos grandes interesses económicos metropolitanos, os quais tinham na administração colonial o seu porta-voz e guardião mais seguro e de que, nos fins do século XVIII, a majestática e pombalina Companhia do Grão-Pará e Maranhão foi o exemplo quiçá mais sinistro e paradigmático, porque portador de mais longevas e trágicas consequências históricas. c) Os frequentes assaltos de piratas e corsários oriundos de várias potências marítimas europeias bem como as repetidas incursões militares de outras gentes estranhas ao arquipélago, inimigas da coroa portuguesa ou dela e do seu império transcontinental e dos seus súbditos ilhéus rivais no que respeitava ao alargamento da sua hegemonia marítima e ao controle do comércio transoceânico da altura. Os mais célebres de entre esses corsários foram seguramente Francis Drake e Jacques Cassard, tendo este último desferido, em princípios do século XVIII, o Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 /15 – Agosto - Novembro. 2011 - ISSN 1983-2354 www.africaeafricanidades.com Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 /15 – Agosto - Novembro. 2011 - ISSN 1983-2354 www.africaeafricanidades.com golpe fatal e final que conduziu à irreversível decadência da Cidade da Ribeira Grande, doravante denominada Cidade Velha. 2. O pavor da desarticulação, percepcionada como sempre iminente, das periclitantes bases vitais da sociedade edificada no arquipélago, e do consequente desaparecimento da entidade cultural que emergiu da atribulada e já multissecular história do povo das ilhas, e, em conexão com isso, a premência sentida quase unanimemente no sentido da preservação daquilo que fazia com que os ilhéus caboverdianos fossem culturalmente eles próprios. Neste contexto específico, foram por demais relevantes, por um lado, o modo de produção nela dominante e baseado na apropriação não só da terra e de outros instrumentários e meios de produção, essenciais à vida económica, como também das próprias pessoas sujeitas ao cativeiro escravocrata, e, por outro lado, o modo de povoamento tanto das ilhas mais importantes como daquelas então consideradas periféricas. É esse modo de povoamento, aliás, conforme com a mentalidade dominante na época da expansão europeia trans-oceânica e da sua conjugação com o tráfico negreiro, que determinou que a mão-de-obra trazida para as ilhas fosse essencialmente de origem negro-africana e que o seu recrutamento se processasse mediante a utilização de meios compulsivos e o frequente recurso a métodos eivados da máxima crueldade. Deste modo, a sociedade implantada nas ilhas, de estirpe nitidamente colonial-escravocrata, como já referido, mesmo se dotada das peculiaridades ecológicas e psicossociais acima referenciadas, criou a sua ratio maior na anatemização do africano escravizado nas ilhas e dos seus descendentes negros e, em menor medida, dos seus descendentes mulatos e mestiços, a par de reiteradas tentativas da expropriação da sua alma (isto é, da sua identidade cultural). A expropriação da identidade cultural do negro trazido para as ilhas operou-se mediante o empreendimento de multifacéticas acções para a sua domesticação espiritual com vista ao seu desapossamento da cultura dos seus antepassados africanos, a ostracização das expressões mais típicas e as tentativas de extirpação dos seus sinais mais ostensivos e, por isso, tidos por mais ofensivos dos ditames da moral cristã e das normas de conduta da cultura europeia dominante, e, segundo a lógica então dominante, potencialmente mais perigosos para a subsistência da unidade espiritual do império colonial português no solo católico das ilhas. Debalde, pois que os cativos africanos lograram, em grande medida, adaptar a sua herança cultural à virgem ecologia da nova terra do seu desterro e às suas novas condições de vida e de trabalho e ao seu confronto com a coação colonial-escravocrata, ilustrada em especial na sua catequização e ladinização forçadas. Os seus descendentes negros e mulatos nascidos nas ilhas, por isso, delas plenamente nativos, seguiram-lhes os passos e consolidaram o processo da sua insularização e da sua crioulização, preservando sobretudo o que fosse Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 /15 – Agosto - Novembro. 2011 - ISSN 1983-2354 www.africaeafricanidades.com Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 /15 – Agosto - Novembro. 2011 - ISSN 1983-2354 www.africaeafricanidades.com estritamente necessário e/ou indispensável à sua sobrevivência física e espiritual e nela incorporando, por iniciativa própria e/ou por força da coacção colonial-escravocrata, o que da cultura do dominador se mostrasse indispensável e compatível com as suas necessidades de sobrevivência espiritual num novo mundo, até então deserto do ponto de vista antropológico. É o que terá ocorrido com a interiorização dos valores de solidariedade com o seu semelhante dominado e de amor ao próximo subjugado ou em estado de necessidade, da resignação, da compaixão e do reconhecimento da igual dignidade de todas as criaturas de Deus, incluindo dos escravos crucificados pelo destino que lhes foi imposto pelos homens tal como Jesus Cristo, adorado como o Deus encarnado dos cristãos, também o fora. Deste modo, o exemplo humano de Jesus Cristo e outros valores humanistas bebidos na Bíblia veiculada pelos padres e por outros protagonistas oficiais da expansão da fé e do império, tiveram consequências contrárias das esperadas, muito devido à acção dos profetas populares e de outros insubmissos intérpretes da palavras do Deus dos cristãos, tendo esta muitas vezes servido de força de alento e de resistência