Revista Bioética ISSN: 1943-8042 [email protected] Conselho Federal de Medicina Brasil

Pessini, Léo Morte, solução de vida? Uma leitura bioética do filme Mar Adentro Revista Bioética, vol. 16, núm. 1, -, 2008, pp. 51-60 Conselho Federal de Medicina Brasília, Brasil

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Léo Pessini

Resumo: Este artigo analisa o tema da morte assistida a partir de questionamentos levantados na película espanhola Mar Adentro (2004), do cineasta Alejandro Almenabar, sobre o drama do jovem marinheiro espanhol Ramon Sampedro. Além de comover platéias no mundo inteiro, o filme trouxe a público uma série de questionamentos éticos sobre a vida e a morte, dentre as quais destacam-se: qual o valor da vida humana quando marcada por deficiências que tolhem a liberdade e a autonomia? O que fazer quando não se encontra mais motivos para viver? Continuar a viver tentando ressignificar a vida seria possível ou a opção pelo suicídio assistido seria desejável como o fez Ramon Sampedro? Longe de assumir uma postura de juízes, mesmo discordando da solução final, este artigo argumenta pelo direito ao respeito ao qual todo ser humano faz jus.

Palavras-chave: Morte. Eutanásia. Distanásia. Respeito. Autonomia. Liberdade.

No início de 2005, dois filmes fizeram grande sucesso de crítica e público: Menina de Ouro, produção estadu- nidense, e Mar Adentro, filme espanhol, produzido por Alejandro Amenábar. O último traz às telas a história verídica de Ramón Sampedro. Os dois filmes versam sobre o mesmo tema: a questão da eutanásia, do mor- Léo Pessini rer sem sofrimentos por opção. Professor doutor de teologia moral no mestrado stricto sensu em Bioética do Centro Enquanto esses filmes concorriam a prêmios, desenro- Universitário São Camilo (SP) lavam-se na vida real, com ampla cobertura da mídia, dois casos que acabaram sendo acompanhados em todo o mundo. Num deles, após longa batalha judicial que suspendeu a alimentação que a mantinha viva há 15 anos, a jovem norte-americana Terri Schiavo, em esta- do vegetativo persistente, viria a morrer por inanição. O outro foi a agonia pública do Papa João Paulo II, que após longo calvário causado por doença crônico- degenerativa em fase terminal, Mal de Parkinson, recusa retornar ao hospital, optando por permanecer

Revista Bioética 2008 16 (1): 51 - 60 51 em seus aposentos. Suas últimas palavras a determinação férrea de terminar sua vida, foram: deixem-me partir para o Senhor. lutando convictamente na Justiça pelo Consciente da proximidade do final de direito de morrer. Seu caso foi levado aos sua vida, o Papa recusa procedimento dis- tribunais em 1993, numa tentativa para tanásico, ou seja, o prolongamento do conseguir a legalidade da eutanásia na processo de morrer. Espanha, mas o pedido foi negado.

Esses filmes e fatos ajudaram a ampliar a Na carta que dirige aos juízes, em 13 de reflexão sobre questões éticas ligadas ao novembro de 1996, Sampedro apresenta processo de morrer, em tempos de cuida- um argumento muito trabalhado no dos sempre mais tecnologizados. Além filme: viver é um direito, não uma obriga- disso, criaram a oportunidade no contex- ção. Ao colocar em cheque a regulação da to acadêmico científico, de promover vida e da morte pelo Estado e pela Igreja, muitas discussões éticas sobre a questão aponta a hipocrisia do Estado laico diante da morte e do morrer, da eutanásia, do da moral religiosa. Em janeiro de 1998, direito de morrer com dignidade, questões em segredo, conseguiu realizar seu inten- jurídicas, religiosas e sociais envolvidas, to, assistido por pessoa amiga, Ramona corroborando, nesse sentido, para muitos Maneiro. Essa amiga, vivida nas telas esclarecimentos1,2,3,4,5. como a personagem Rosa, confessou no início de 2005 ter ajudado Sampedro a Mar Adentro tomar cianureto para morrer. A confissão foi feita sete anos após a morte de Ramón, Iniciemos uma aproximação reflexiva ao quando o delito já estava prescrito e o jul- filme Mar Adentro, obra de arte provocati- gamento inviabilizado. va, que pela dramaticidade incomoda e faz pensar. O título evoca o poema de amor A discussão pública sobre eutanásia Os Sonhos6, escrito por Ramon Sampe- dro, cuja vida é retratada no filme: a histó- O debate de Ramón com a Igreja sobre o ria verídica desse jovem marinheiro espa- direito à eutanásia é estabelecido com nhol que aos 25 anos ficou tetraplégico Padre Francisco, religioso também tetra- após trágico mergulho no mar da costa da plégico, que resolve visitar Sampedro – que Galícia. Ao pular na água projetando-se de está no segundo andar da residência, mas um rochedo, no momento em que a maré como a escada é muito estreita não permi- havia baixado, comprometeu irreversivel- te a passagem da cadeira de rodas do padre. mente a coluna vertebral devido ao choque Os dois então se comunicam com a ajuda da cabeça contra a areia. Após o acidente de um porta-voz, um seminarista, que Ramon viveu praticamente 29 anos (28 corre pateticamente de um lado para o anos, 4 meses e alguns dias), sempre com outro, levando os recados. A discussão

52 Morte, solução de vida? Uma leitura bioética do filme Mar Adentro esquenta e o padre e Ramón passam a se caricatura. Nesse aspecto o filme é par- comunicar aos berros e sem mediação. O cial e tendencioso, intervém a voz da fé sacerdote católico argumenta pela impor- cristã na figura um pouco ridicularizada tância de manter a vida: uma liberdade que do padre paraplégico. Antes de visitar elimina uma vida não é liberdade. Contra- Ramón, o padre pronuncia-se na televi- pondo-se, Ramón proclama a falta de são sobre o caso, sem conhecer a realida- moral da Igreja para falar de respeito à vida de. Diz que se ele estivesse bem cuidado frente ao que ocorreu na Inquisição: uma pela família, certamente não desejaria vida que elimina uma liberdade não é vida. morrer – acusando, assim, os familiares de desleixo. Na visita, recebe o troco de Ramón deixa um testamento onde argu- Manuela, a devotada cuidadora de menta contra a tese da vida como obriga- Ramón, que questiona o dito pelo sacer- ção, sinalizando as tensões e questões de dote na TV: amo-o como a um filho. Não poder que permeiam a vida e a morte: sei se a vida pertence a Deus e não perten- Senhores juízes, negar a propriedade priva- ce a gente, mas sei de uma coisa, você tem da de nosso próprio ser é a maior das men- uma boca muito grande... Bela indicação tiras culturais. Para uma cultura que sacra- de que a relação de ajuda simplesmente liza a propriedade privada das coisas – entre não aconteceu. elas a terra e a água – é uma aberração negar a propriedade mais privada de todas, Se por um lado temos o sacerdote, que nossa Pátria e reino pessoal: nosso corpo, tanto por sua condição física quanto por vida e consciência, nosso Universo. ser representante da doutrina católica tenta dissuadir Ramón da idéia de mor- Há um questionamento da sociedade civil rer, lembrando-lhe dos valores da fé cris- e política como invenções que aprisionam tã, por outro uma personagem se opõe corpos e mentes. Manejar corpos é uma diretamente ao padre, a advogada Júlia, forma de controlar mentes. Fala-se em que quer cuidar do caso de Sampedro. liberdade e direito, mesmo quando para- Portadora de doença degenerativa heredi- doxalmente nega-se a opção de escolher tária (Cadasil), caracterizada por aciden- entre a vida e a morte. Esse direito é tes vasculares freqüentes que conduzem à negado em nome da civilidade e da reli- invalidez e demência, a advogada procura gião. É o que o filme mostra. levar a discussão e legitimação do caso para o plano racional e legal. Ao mesmo No universo das relações entre as tempo, Júlia é o canal entre o espectador pessoas e as poesias, as viagens e toda a vida de Sampedro antes do acidente. Júlia ajuda A relação de ajuda pastoral apresentada Ramón a escrever um livro, publicado no filme pelo padre é uma verdadeira com o título Cartas del inferno6, obra que

Revista Bioética 2008 16 (1): 51 - 60 53 deu origem ao filme Mar Adentro. Com sença de uma motivação até certo ponto ele partilha cigarros, troca beijos, afetos, sartriana: ele sente a existência como impossibilidades, desejos, frustrações e a inútil. Júlia tem medo da degradação e morte como finalidade. perda da dignidade na altura em que a doença a transforme em vegetal. Frente a Como interpretar as relações de Ramón essa situação o filme silencia questão com as duas mulheres que com ele desen- muito importante: quem decide da digni- volvem uma relação afetiva, Rosa e Júlia? dade da vida, é o próprio que declara que Rosa, jovem simples e desajeitada, oriun- sua existência perdeu toda a dignidade ou da do contexto rural, entra na vida de não será a tarefa ética dos outros seres Ramón após vê-lo em uma entrevista na humanos, dos acompanhantes, ajudados televisão, na qual expressa o desejo de pela sociedade, de reivindicar e reclamar morrer. O encontro entre eles é confli- esta dignidade do doente, lutando, por tuoso. Ramón a chama de mulher frus- assim dizer, contra a impressão – eventual- trada, que busca conhecê-lo apenas por mente compreensível por parte do doente – piedade, impondo sua agenda racional: de perda de dignidade?7 ser minha amiga é me respeitar. Não me julgue. Dirige-se a ela com palavras duras Da janela, uma paisagem lindíssima se que podem ser a chave para interpretar o descortina, traz o vento a remexer as cor- mistério de sua personalidade: não me tinas e os desejos de liberdade e movimen- ponhas a responsabilidade de dar um senti- to. Daquela abertura da janela, o mundo do à tua vida. É justamente essa mulher, todo se apresenta a Ramón Sampedro. Já Rosa, que vai ser solidária a Ramón na na primeira cena do filme, o espectador é opção de dar um fim à vida. colocado no lugar do protagonista, diante da janela e dos desejos, sonhos e impossi- Júlia identifica-se com a situação de bilidades que se apresentam. Ao sobrevoar Ramón e o vê a partir do grave problema a terra e o mar, realiza a metáfora da de saúde que tem, o que acabará por dei- liberdade do espírito, que fala da possibi- xá-la em estado de demência completa. lidade de lutar pela liberdade mesmo em O amor impossível entre ambos cristali- condições extremas e cruéis. za-se na vontade comum de que a morte ocorra no mesmo dia da publicação do O sentido da liberdade em jogo livro. É um amor que cresce ao abrigo não do desejo de viver, mas do desejo de Penso que um dos núcleos do filme é a morrer. questão do sentido da liberdade. Ele tenta provar que é na morte que se reencontra a Os motivos de Ramón e Júlia são, contu- alegria, no caso de tetraplégico ou de pes- do, diferentes: em Ramón temos a pre- soas atingidas por doença incurável. Faria

54 Morte, solução de vida? Uma leitura bioética do filme Mar Adentro parte da dignidade da pessoa o fato de morte do corpo do outro. Como se nas- poder dar-se a morte, para realizar o dese- cimento involuntário (por parte de quem jo de se libertar do corpo, do corpo deficien- nasce) e morte voluntária (de quem opta te e doente. Isso não me angustia, tal pela eutanásia) tivessem a mesma digni- como se verifica na noite dramática em dade em relação à vida humana. Não que Ramón demonstra firmeza no sentido seria isso desfazer a reta compreensão de buscar a morte, grita, compulsivamen- entre dignidade da vida e liberdade, como te: por que morrer, por que morrer? A liber- se fosse digno nascer involuntariamente, dade é reclamada, mas uma liberdade para mas indigno morrer voluntariamente? quê? Para realizar qualquer coisa de vida? Ao que parece, Gene ilustra uma contra- Não, somente para morrer: uma liberdade dição inerente ao respeito pela vida do para a morte. Será que é esse o sentido corpo. É essa contradição que surge sutil- profundo da liberdade ou não se tem que mente nas suas últimas palavras de des- afirmar que existe a liberdade também pedida ao telefone com Ramón: é mesmo como liberdade para a vida, ou liberdade isto [morrer] que você quer? para um acréscimo de vida? Perguntamo-nos se não se esqueceu de É interessante lembrar as figuras de Gene um elemento principal: a liberdade em e de seu marido, defensores do movimen- face da dignidade da vida do corpo que to Morrer com Dignidade e da Luta pela está em causa. Para Ramón, o suicídio é Legalização da Eutanásia. É significativo visto como libertação do corpo de uma e até paradoxal que Gene, no final de sua existência indigna. O pedido para morrer gravidez mostre de perto essa gravidez a pode mesmo ser compreensível ante as Ramón ao colocar sua barriga perto do dificuldades da vida do corpo, da mente ouvido dele. Está-se frente a um contraste ou da alma. Mas não é por isso que nós, brutal, quase absurdo: alguém que defen- os outros, temos que considerar como de o direito à eutanásia e ao mesmo tempo aceitável uma solicitação de suicídio ou dá com alegria a vida ao nascituro. Talvez considerar como eticamente justificável o que o filme busque explicitar é a tese de o ato de eutanásia. Essa posição final que não é porque se é a favor da eutanásia depende de uma compreensão existencial que se é contra a vida em geral, e, princi- da liberdade: somos livres para exercer a palmente, contra novas vidas. liberdade em proveito da vida e não a serviço da morte. Mas como fazer enten- Pode-se interpretar esse contraste tam- der essa verdade existencial à pessoa por- bém de outra maneira. Estamos frente à tadora de tetraplegia, como no caso de contradição existencial com Gene. É a Ramón? Ficamos sem resposta. E o mesma pessoa que dá à vida com o nas- filme explora muito bem essa angústia cimento de seu bebê, e luta pelo direito à do expectador 8.

Revista Bioética 2008 16 (1): 51 - 60 55 O corpo como denúncia locomoção o leva ao encontro de seu obje- tivo maior: a morte. A sua vida passou a Nada é mais exposto no filme do que o ser uma imposição: a obrigação de sobre- corpo deficiente de Ramón, mostrado viver das migalhas do que foi e o dever, nos mínimos detalhes. Quando aparece garantido à sua revelia por seus familia- na TV para fazer seu pedido e ganhar res, de se manter vivo. empatia pública e a dos juízes, apela para a exposição de seu corpo disforme e imó- Cuidados sem ternura? vel. O objetivo certamente era impres- sionar, mas acaba na verdade chocando. O cuidado que Ramón recebe parece per- Por isso, busca convencer seus interlocu- feito do ponto de vista técnico: usufrui a tores morais a se transportarem de seus possibilidade de escrever, ainda que utili- corpos não deficientes para a sua exis- zando uma palheta na boca, de telefonar tência plena de limitações. etc. Os cuidados que lhe presta a cunhada são desinteressados e generosos. Mas não O silêncio do corpo de Ramón é contras- podemos esquecer de que estamos no tado com o excesso de falas do persona- campo da realidade rural, de uma família gem. Ramón não deixa dúvidas de ser de camponeses bastante unidos, que levam sarcástico, irônico e até cruel. A exibição vida muito simples e rústica, na qual as de seu corpo é acompanhada por afirma- expressões de afeto são muito diferentes ções como: passo toda a minha vida num do que acontece num contexto urbano. inferno. A vida não é isso! O inferno passa a ser o seu corpo imóvel, sua exis- O paradoxo do caso Ramón, tal como tência restrita ao quarto, totalmente vemos no filme, provém precisamente dependente dos cuidados de seus familia- dessa dupla vertente: tem vida ativa do res, em especial, sua cunhada, irmão e o ponto de vista mental, vida criativa do sobrinho Xavier 9. ponto de vista literário (escreve poesias e até um livro sobre sua experiência) e uma Ramón nega aceitar a cadeira de rodas ao imaginação que o situa para além da dizer que isto seria aceitar migalhas do que capacidade dos familiares. Mas mesmo foi minha vida. Dois metros e uma viagem assim quer morrer porque, segundo lhe impossível, uma quimera, por isso quero parece, esta vida não é viver. A junção morrer, reclama à Júlia, considerando que desses elementos é a razão para tornar a isto o deixa mais confinado ainda. Somen- eutanásia sedutora, justificável e com- te vai aceitar utilizar cadeira de rodas, preensível. O exemplo de Ramón demons- confeccionada sob medida com a colabo- tra que não se pode dizer que são apenas ração de todos os familiares, sob sua os abandonados e os que não recebem supervisão, quando esse instrumento de cuidados que desejam a eutanásia. Evi-

56 Morte, solução de vida? Uma leitura bioética do filme Mar Adentro dencia um caso de alguém super bem conseguindo pelas vias oficiais, descobre cuidado, de tal maneira que não se pode criativamente uma forma oficiosa de rea- criticar a família, mas mesmo assim lizar o que queria. deseja simplesmente morrer. A paralisia física nem sempre significa o Podemos até dizer que faltou algo de fim de tudo. Pelo contrário, pode ser o iní- essencial nos cuidados: conseguir fazer cio de uma vida de novas descobertas e com que Ramón descobrisse e sentisse criatividade. Podemos nos perguntar por- que sua presença não é a mais, mas que que para Ramón Sampedro todas as pro- tem sentido. Temos o cuidado, sim, mas postas de ressignificação de vida foram talvez falte ternura nesse cuidar. Nesse descartadas e em determinados momentos sentido, nunca vemos por parte dos fami- até ridicularizadas? Há exemplos notáveis liares um gesto de ternura, um tocar das de superação, como os de Christopher mãos, um abraço. O único abraço resulta Reeve (ator estadunidense que interpretou de um pedido de Ramón ao sobrinho, no o Super Homem) e Stephen Hawking momento em que esse vai embora. E a (cientista britânico), que podem transmi- expressão mais dramática destsa falta em tir muito mais que motivação aos porta- cuidá-lo, que muitas vezes não transmite dores de necessidades especiais. ternura, manifesta-se na explosão do irmão mais velho, que em momento de A cena do acidente, repetida inúmeras muita angústia desabafa: há 28 anos todos vezes em momentos-chave do filme, suge- se tornaram escravos dele. re uma tentativa de suicídio, ainda que inconsciente. Parece pouco ingênuo acre- O filme mostra que o cuidado vital bási- ditar que alguém que tenha sido mari- co do corpo, com todas as suas exigên- nheiro, conhecido tantos países e singra- cias, ainda não é suficiente para ajudar a do oceanos tão diferentes, não conhecesse pessoa tetraplégica a perceber que sua o que estava acontecendo com o mar, vida pode continuar a ter um sentido abaixo do penhasco, no momento em que para além de todas as limitações ineren- se lançou. tes à condição física limitante. Simbolicamente, Ramón Sampedro mor- Apontamentos finais reu nesse momento. No prólogo de seu livro fala do momento crucial: no dia 23 Ramón Sampedro ferido em seu corpo, de agosto de 1968 fraturei o pescoço ao mer- mas dolorido ainda em sua inferioridade, gulhar em uma praia e bater com a cabeça acabou por travar intensa batalha judicial na areia, desde esse dia sou uma cabeça para que pudesse se dar o direito de mor- viva e um corpo morto. Poderia dizer que sou rer. Irredutível na sua determinação, não o espírito falante de um morto... Considero

Revista Bioética 2008 16 (1): 51 - 60 57 o tetraplégico como um morto crônico que herói. O acusam de ser suicida em poten- reside no inferno. Ali – para evitar a loucura cial, antes mesmo do acidente, vendo já – há os que se entretém pintando, rezando, no salto do penhasco a busca da própria lendo, respirando ou fazendo algo pelos morte. Enfim, essa foi a opção de Ramón. demais: há gostos para tudo! Eu me dedi- Não nos cabe medir responsabilidades ou quei a escrever cartas. Cartas do Inferno. julgar. Mesmo sem compreender ou até Difícil encontrar realismo mais cruel para discordando da solução final, por questão descrever sua própria interpretação de de valores culturais, morais, éticos e reli- condição de vida. giosos, cabe questionar se é possível assu- mir uma atitude de respeito frente à opção Se o Ramón histórico for parecido com o inconcebível do outro? de Mar Adentro, guardaremos a imagem de um ser humano que, com inteligência Ao analisar o filme e ler as Cartas do infer- e determinação férrea de não mais viver no me veio à mente, inúmeras vezes, a após o acidente, não conseguiu descobrir história de Victor Frankl, notável psiquia- um sentido para continuar a viver. A tra suíço que sobreviveu no campo de morte é a solução. Nas cenas finais, este- concentração por ocasião da II Guerra ticamente apresenta-se, no contexto de Mundial. Em sua obra clássica, O homem um crepúsculo (simbolicamente o fim) em busca de um sentido, sublinha: o homem maravilhoso, o último diálogo entre Rosa não é destruído pelo sofrimento, mas pelo e Ramón. Diz Rosa: se é verdade que exis- sofrimento sem sentido. Em outra passa- te vida após a morte, mande-me um sinal? gem cita Nietzsche, advertindo: quem tem Ao que Ramón responde rapidamente: um porquê viver, suporta quase todo e qual- claro que sim!, emendando, porém, de quer como11. Frankl testemunha nos cam- forma mais reflexiva: mas, depois que pos de concentração que aqueles que morremos não existe mais nada, é como tinham um propósito, uma missão a cum- quando antes de nascer. Vou estar nos seus prir, se encontravam em melhores condi- sonhos. Obrigado do fundo do coração10. ções para sobreviver.

Sem dúvida, essa fala revela que para ele a Enfim, cada pessoa humana não deixa de transcendência da vida não existe e sua ser um grande mistério e pobre razão morte é o fim de tudo; não existe a pers- aquela que orgulhosamente busca explicar pectiva de um futuro promissor com mais e entender tudo. Ao assistirmos e anali- vida no além, como apresentam a sabedo- sarmos este filme, é difícil não nos sentir- ria das religiões. Com certeza, para mui- mos questionados nas emoções, certezas e tos, esse não é um happy end. Vários defi- valores de vida. Sem dúvida, trata-se de cientes físicos que assistiram ao filme me provocação que nos leva a aprofundarmos disseram considerar Ramón um contra- as razões de nossa esperança, do sentido

58 Morte, solução de vida? Uma leitura bioética do filme Mar Adentro de viver, bem como de partir, sabedores vida, bem como pode existir muita vida na que somos de que existe muita morte na morte.

Resumen

¿Muerte, solución de vida? Una lectura bioética de la película Mar Adentro Este artículo analiza el tema de la muerte asistida desde cuestionamientos levantados en la película española Mar Adentro (2004) del cineasta Alejandro Almenabar, sobre el drama del joven marinero español Ramón Sampedro. Además de conmover plateas en el mundo entero, la película trajo a público una serie de cuestionamientos éticos sobre vida y muerte, entre las cuales se destacan: ¿cuál el valor de la vida humana cuándo ésta es marcada por deficiencias qué impiden la libertad y autonomía? ¿Lo qué hacer cuándo no se encuentran más motivos para vivir? ¿Continuar a vivir intentando traer nuevo significado a la vida sería posible o la opción por el suicidio asistido sería deseable cómo lo hizo Ramón Sampedro? Lejos de asumir una postura de jueces, mismo discordando de la solución final, este artículo argumenta por el derecho a lo respeto a lo cual merece todo ser humano. Palabras-clave: Muerte. Eutanasia. Distanásia. Respeto. Autonomía. Libertad.

Abstract

Death, solution for life? 's bioethics reading

This article examines the issue of assisted death from then questions raised in the Spanish movie The Sea Inside (2004) from the filmmaker Alejandro Almenabar. The movie is about the tragedy of the young Spanish sailor Ramon Sampedro. Besides thrilling audiences worldwide, the film has brought the public a series of ethical questions about life and death, among them: what's the value of human life when it is marked by deficiencies that hinder freedom and autonomy? What to do when there is no reason to live anymore? Keep on living, trying to find another meaning for life or could be a desirable option as it was for Ramon Sampedro? Far from assuming a posture of judges, even disagreeing of the final solution, this article argues for the right of respect that each and every human being is entitled to.

Key words: Death. . Dysthanasia. Respect. Autonomy. Freedom.

Referências

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Recebido: 19.2.2008 Aprovado: 27.3.2008

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