Tellus Universidade Católica Dom Bosco Instituição Salesiana de Educação Superior

Chanceler Pe. Gildásio Mendes dos Santos Reitor Pe. Ricardo Carlos Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Prof. Cristiano Marcelo Espinola Carvalho

Tellus / Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas – NEPPI, ano 19, n. 39, maio/ago. 2019. Campo Grande : UCDB, 2001 – Quadrimestral – 324 p. ISSN Impresso 1519-9452 ISSN Eletrônico 2359-1943 1. Populações indígenas – Periódicos I. UCDB – Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas – NEPPI. Clélia Takie Nakahata Bezerra Bibliotecária – CRB n. 1/757

Publicação do Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas (NEPPI) da ­Universidade ­Católica Dom Bosco. www.tellus.ucdb.br

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ano 19 n. 39 maio/ago. 2019 p. 1-324

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Dossiê 2: História indígena,­ etno-história e indígenas historiadoras(es): experiências ­descolonizantes, novas abordagens, sujeitos e objetos

Apresentação...... 9 Jane Felipe Beltrão Jorge Eremites de Oliveira Luiz Henrique Eloy Amado William César Lopes Domingues ɄTÃ WORI – um diálogo entre conhecimento Tuyuka e arqueologia rupestre no baixo Rio Negro, Amazonas, Brasil...... 17 ɄTÃ WORI – a dialogue between Tuyuka knowledge and rock art archaeology at the lower Rio Negro, Amazonas, ...... 17 Poani Higino Tenório Tuyuka Raoni Bernardo Maranhão Valle Capitão: a aplicação da Indirect Rule nos Povos Kaiowá e Guarani...... 39 Captain: the application of Indirect Rule in the Kaiowá and Guarani People...... 39 Marco Antonio Delfino de Almeida Thiago Leandro Vieira Cavalcante Povos indígenas, saúde e ditadura ...... 61 Indigenous peoples, health and dictatorship...... 61 Jane Felipe Beltrão Movimentos indígenas latino-americanos da segunda metade do século XX: reflexões ­comparativas sobre processos decoloniais no Brasil e na Colômbia ...... 71 Latin american indigenous movements of the second half of the twentieth century: comparative reflections on decolonial processes in Brazil and Colombia...... 71 Fernando Roque Fernandes Mauricio Alejandro Diaz Uribe Etnoarqueologia e processo de territorialização entre os indígenas Wasusu do vale do Rio ­Guaporé, estado de , Brasil...... 105 Ethnoarchaeology and territorialization process between the Wasusu indigenous of the valley of Rio Guaporé, state of Mato Grosso, Brazil...... 105 Rafael Lemos de Souza Jorge Eremites de Oliveira “Fronteiras e políticas que atravessam a identidade e a sociabilidade indígena”: uma análise ­acerca dos sentidos das migrações na fronteira Brasil-Guiana Francesa...... 139 “Frontiers and policies that cross indigenous identity and sociability”: an analysis of the meanings of Palikur migrations on the Brazil-French Guiana Border...... 139 Venâncio Guedes Pereira Carmentilla das Chagas Martins

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, maio/ago. 2019 5 Expedições de conquista ibérica e tentativas de submeter os povos indígenas do Pantanal ao domínio europeu no século XVI...... 159 Iberic expedictions of conquer and tentatives of subbmit the Pantanal indigenous people to the european dominium on the XVI century...... 159 João Filipe Domingues Brasil A reorganização e a fluidez do uso da mão de obra indígena no Grão-Pará: segunda metade do século XVIII (1750-1765)...... 179 The reorganization and fluidity of the use of indigenous labor in Grão-Pará: second half of the 18th century (1750-1765)...... 177 Décio de Alencar Guzmán Leonardo Raiol Junior Os últimos falantes da Língua Baré...... 207 The last speakers of the Baré language...... 207 Ademar dos Santos Lima Silvana Andrade Martins Jéssica Nayara Cruz Pedrosa Os Terena na História ...... 227 The Terena in History ...... 227 Luciano Araujo Monteiro9 “Jure”: a educação do corpo e a expressão da identidade na dança...... 243 “Jure”: body education and the expression of Bororo identity in dance...... 243 Félix Rondon Adugoenau Beleni Saléte Grando Neide da Silva Campos Sueli de Fátima Xavier Ribeiro Assimetrias entrelaçadas: sobre o “complexo hierárquico” Eyiguayegui-Guaná...... 263 Intertwined asymmetries: on the “hierarchical complex” Eyiguayegui-Guaná...... 263 Gabriela de Carvalho Freire

Escritos Indígenas

Memorial de uma liderança indígena: a construção política da trajetória... driblando as ­armadilhas da colonização...... 293 Luana da Silva Cardoso Sou professor Ejiwajegi/Kadiwéu...... 309 Gilberto Pires Trajetória de Ʉremirĩ Arapasso: movimento indígena e resistência na universidade...... 315 Virgínia Braga Fonseca

6 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, maio/ago. 2019 Dossiê 2: História indígena,­ Etno-história e Indígenas Historiadoras(es): experiências ­descolonizantes, novas abordagens, sujeitos e objetos

Apresentação

Dossiê 2: História Indígena,­ Etno-história e Indígenas Historiadoras(es): experiências descolonizantes,­ novas abordagens, sujeitos e objetos

As diversas e crescentes experiências descolonizantes registradas no Brasil e em outros países, especialmente a partir dos 1990 e 2000, motivaram a proposição, organização e realização deste dossiê, aqui apresentado em seu segundo volume. São práticas e vivências intra e extramuros da academia, as quais conduzem a novas abordagens, novos sujeitos e novos objetos no que se refere ao trabalho com história indígena ou etno-História e com indígenas historiadoras/es,1 etnólogas/os, educa- doras/es entre outras/os agentes sociais. As experiências gradualmente produzem mudanças de nuance neste campo interdisciplinar – e por vezes in-disciplinado – do conhecimento científico. As modificações registradas aqui, ali e acolá, sobretudo no Brasil profundo, permitem constatar a presença de diferentes versões da história, produzidas sob distintas perspectivas teórico-metodológicas, as quais se complemen- tam e até mesmo se contradizem em face de olhares contextualizados, situados a partir de lugares até recentemente desconsiderados como se não possuíssem valor. No tempo presente, com a renovação dos estudos ligados à história indígena lato sensu, não se trata mais de acadêmicos considerarem o “ponto de vista do nativo”, mas de percebê-los como protagonistas que se ocupam de diversas episte- mologias recorrentes dentro e fora da academia. Neste contexto, cumpre registrar as próprias formas nativas de compreender o mundo e explicar os fenômenos que nele ocorrem, apresentando perspectivas até então “invisibilizadas” pelas várias formas de colonialismo que, apenas hoje, começam a se dissipar.

1 Cumpre aqui, como dito no primeiro volume do Dossiê, fazer uma pequena digressão relativa à linguagem inclusiva de gênero adotada neste texto. Ocorre que o uso diferenciado da formulação dentro dos cânones formais da língua portuguesa segue a concordar como o masculino. Denota, pois, certa inversão de valores no campo da ciência, haja vista a necessidade da inclusão explicita de mulheres na ciência. Assim sendo, como gênero feminino é predominante e vem antes do mas- culino, quem sabe dessa maneira gradualmente se introduza modificações no fazer acadêmico e na divulgação de novos saberes científicos ao grande público.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, maio/ago. 2019 9 As/os indígenas intelectuais aos poucos chegam à academia e, aliadas/os ou não a pesquisadoras/es não indígenas, realizam o bom debate científico, necessário ao fortalecimento de histórias que antes – quando contadas – muitas vezes eram desconsideradas nas narrativas das/os próprias/os protagonistas que se ouvia ou, ainda, que se tomava conhecimento por meio de fontes escritas e outras conside- radas acadêmicas. No presente Dossiê, associada/os autora/es indígenas Uwira Xakriabá (William César Lopes Domingues) e Eloy Terena (Luiz Henrique Eloy Amado) e, não indíge- nas, Jorge Eremites de Oliveira e Jane Felipe Beltrão, como organizadora/es, e as/ os demais colegas indígenas e não indígenas que emprestaram seu conhecimento na condição de avaliadoras/es traz-se à lume mais um volume do Dossiê História Indígena, Etno-história e Indígenas Historiadoras/es: experiências descolonizantes, novas abordagens, sujeitos e objetos. A partir de um “diálogo que ensina” registrado no artigo ɄTÃ WORI – um diálogo entre conhecimento Tuyuka e arqueologia rupestre no baixo Rio Negro, Amazonas, Brasil, produzido por Poani Higino Tenório Tuyuka (FOIRN/SEMEC) e Raoni Bernardo Maranhão Valle (UFOPA), trazem as/aos leitoras/es o relato preliminar sobre experi- ência relativa a trocas de conhecimento entre um Kiti Masigu (historiador) Tuyuka e um arqueólogo não-Indígena que juntos, em 2016, prospectaram, na estação seca um conjunto de sítios rupestres no baixo Rio Negro, no Amazonas. Ʉtã Woritire, isto é, lugares sagrados com desenhos nas pedras, muitos dos quais também são Pamuri Wiseri (Casas de Transformação) são as denominações do conhecimento Tuyuka oferecida aos sítios referenciados anteriormente. O trabalho foi realizado em virtude de aproximação profícua de agenda relativa à pesquisa intercultural sobre o tema, a qual pode ser vista como exercício de descolonização da arqueologia rupestre na Amazônia. Referindo um “passado que incomoda”, o artigo Capitão: a aplicação da ndirecti­ rule nos povos Kaiowá e Guarani, de Marco Antonio Delfino de Almeida (MPF) e Thiago Leandro Vieira Cavalcante (UFGD), apresentam o conceito de “­indirect rule” ou governo indireto, aplicado às colônias forjadas pelos europeus que dominaram a África ao longo do século XIX. Os autores discutem a aplicação de regras semelhantes, pelo Estado brasileiro por intermédio do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), criado no Brasil em 1910 e extinto em 1967. O tal governo indireto é resultado da impo- sição de um novo modelo de liderança que se materializou na figura do “capitão” a

10 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, maio/ago. 2019 quem, na condição de indígena, cabia impor, aos demais membros da ­com­unidade, dir­etrizes emanadas pelo órgão tutelar. A autoridade do “capitão” imposto se sobrepôs às lideranças tradicionais e o fato produziu conflitos, pois desestrutura a organização social e política dos povos indígenas. A mudança só se opera aos poucos após a Constituição de 1988. Na sequência, no artigo Povos indígenas, saúde e ditadura, Jane Felipe Beltrão (UFPA) analisa a saúde como referência para a compreensão da história dos povos indígenas. A autora tem como fonte principal os documentos arrolados no Relatório Figueiredo, de 1967, apontando como as atrocidades cometidas por funcionários do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) permitem verificar a precária assistência prestada às pessoas indígenas no período ditatorial (1964-1985). No trabalho a autora destaca o genocídio praticado pela política indigenista que, pautada por uma “mentalidade empresarial”, liberou as terras indígenas para terceiros e produzindo o deslocamento e a dizimação de inúmeras etnias. Relativo à política indígena, o dossiê conta com o trabalho Movimentos indíge- nas latino-americanos da segunda metade do século XX: reflexões comparativas sobre processos decoloniais no Brasil e na Colômbia, de Fernando Roque Fernandes (UFAM) e Mauricio Alejandro Diaz Uribe (UFES). De acordo com os autores, no contexto de crise política e econômica que se materializou em diversos países da América Latina, na segunda metade do século XX, os povos indígenas articularam estratégias parti- culares na luta por direitos sociais frente aos Estados nacionais que compreende um amplo processo histórico de mobilizações e demandas étnicas de âmbito nacional e internacional. Os eixos centrais das articulações políticas estiveram/estão diretamente relacionados ao reconhecimento das diferenças frente a processos de assimilação e integração, empreendidos no contexto dos colonialismos internos em face dos encon- tros interétnicas. Nas últimas décadas, tais processos se tornaram mais evidentes, a partir das emergências políticas e sociais na América Latina que de alguma forma foram reconhecidas constitucionalmente nos dois países pela pressão dos povos indígenas e seus aliados, embora ocorrida no âmbito de reformas econômicas e neoliberais. Para “além das fronteiras ou barreiras impostas” pelo disciplinamento acadê- mico e limites territoriais entre Estados nacionais, constam alguns dos estudos mais provocativos do presente dossiê. O primeiro do conjunto pertence a lavra de Rafael Lemos de Souza (UFMS) e Jorge Eremites de Oliveira (UFPel) e discute a Etnoarqueologia e processo de

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, maio/ago. 2019 11 ­ter­ritorialização entre os Indígenas Wasusu do Vale do Rio Guaporé, estado de Mato Grosso, Brasil. Os autores analisam criticamente o processo de territoriali- zação vivenciado pelos indígenas Wasusu, um dos povos do vale do rio Guaporé, no estado brasileiro de Mato Grosso, a partir da segunda metade do século XX. Tomam como ponto de partida o fato de que até os anos 50 do século XX a maior parte da região era habitada, quase que exclusivamente, por coletivos Nambikwara, cuja população total foi estimada em aproximadamente 20.000 indiví- duos. Entre os anos 60 e 80 do século passado as terras tradicionalmente ocupadas por comunidades indígenas foram expropriadas no contexto de uma política oficial destinada ao suposto desenvolvimento econômico do estado e da região brasileira chamada Amazônia Legal. A política implicou na abertura de malha viária com o objetivo de beneficiar empresas colonizadoras e agentes das elites locais, empre- endimentos que atravessaram e se apropriaram ilegalmente do território de vários povos nativos, como é o caso dos Wasusu. Usando da etnoarqueologia – subcampo ou especialidade da arqueologia que mantém profícuas relações interdisciplinares com a etnologia e etno-história, dentre outras – os autores explicam a importância do estudo sobre o processo de territorização como condição para compreender a cultura material dos Wasusu. O texto Fronteiras e políticas que atravessam a identidade e a sociabilidade indígena”: uma análise acerca dos sentidos das migrações Palikur na fronteira Brasil- Guiana francesa, de Venâncio Guedes Pereira (UNIFAP) e Carmentilla das Chagas Martins (UNIFAP) que discute a sociabilidade do povo Palikur, habitante da fronteira franco-brasileira tomando as concepções de identidade e fronteira étnica, demons- tram como os indígenas sofreram ao lidar com as políticas dos estados brasileiro e francês após o Laudo Suíço de 1900, pois foram obrigados a conviver com fronteiras impostas por não indígenas, as quais reverberam sobre a sociabilidade, a qual man- tém a identidade étnica mas para adaptarem-se à fronteira geopolítica utilizam nos processos de deslocamento migratório das identidades francesa e brasileira. Expedições de conquista ibérica e tentativas de submeter os povos indígenas do Pantanal ao domínio europeu no século XVI, de João Filipe Domingues Brasil (Universidade Salgado de Oliveira), tem como proposta central analisar as expedi- ções de conquista ibérica e tentativas de submeter os povos indígenas do Pantanal ao domínio europeu no século XVI, contribuindo sobremaneira para a compreensão da história dos povos indígenas da região em contexto ampliado, correlacionado

12 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, maio/ago. 2019 à região platina frente às ações dos invasores europeus. O trabalho ancora-se em um levantamento bibliográfico e documental sobre o tema e em fontes primárias e secundárias, como os relatos feitos pelos expedicionários Ulrico Schmidl e Álvar Núñez Cabeza de Vaca, examinados à luz da etno-história. O último trabalho relacionado às fronteiras ou barreiras, intitula-se A reorgani- zação e a fluidez do uso da mão de obra indígena no Grão-Pará: segunda metade do século XVIII (1750-1765), de Décio Alencar Guzmán e Leonardo Raiol Junior, trata do contexto histórico amazônico e suas nuances fundamentados pela promulgação de leis que regulavam a liberdade indígena, caso Lei de Liberdade dos Índios, publicada em 1755, e a Lei do Diretório dos Índios, decretada em 1957. Os autores destacam estratégias, mobilidades (compreendendo a dinâmica do trabalho) e as articulações indígenas apontando o protagonismo dos mesmos em algumas vilas ou aldeias que constituíam a Capitania do Grão-Pará, no período compreendido entre 1750 a 1765. Em busca de “revelar a tradição” entre os povos indígenas, o dossiê conta com mais três trabalhos. Os últimos falantes da língua Baré, de Ademar dos Santos Lima (UEA), Silvana Andrade Martins (UEA) e Jéssica Nayara Cruz Pedrosa (UEA), tem como objetivo apresentar os resultados de pesquisa sobre os últimos falantes da língua Baré no estado do Amazonas. Trata-se de um estudo sobre a “língua em memória” dos Baré mais idosos que, nos anos 90 do século XX, ainda lembravam do vocabulário da língua materna. Utilizando de metodologia quali-quantitativa compreendendo pesquisa de campo (realizada em 2017) e de comparações léxico-estatísticas, com entrevista focalizada com interlocutores de mais de 70 anos, o estudo constatou que os Baré mais idosos ainda guardam na memória palavras de sua primeira língua, filiada à família linguística Aruawak, do ramo Maipure do Norte. Entretanto apesar de lem- brarem palavras que integram o vocabulário da língua, não conseguem formar frases ou sentenças, dominam apenas palavras soltas, pois ao incorporarem o Nheengatu o idioma baré deixou de ser fluente e foi “desaparecendo. Luciano Araújo Monteiro (UNIFESP) traz ao conjunto de textos, ora apresentada, Os Terena na História artigo no qual avalia o livro A História do Povo Terena que con- textualiza as lutas dos Terena para, exercitando sua autoderterminação, organizam o processo educacional assegurando livro didático que informa adequadamente, quem são, onde vivem e que percurso tomaram até os dias atuais, para que as gerações escolares tenham informações corretas sobre o cenário de luta pelos direitos, hoje,

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, maio/ago. 2019 13 assegurados constitucionalmente. Se por um lado a ação terena põe a público a ine- ficiência das políticas públicas, por outro demonstra que a resistência continua viva. Em “Jure”: a educação do corpo e a expressão da identidade Bororo na dança, de Félix Rondon Adugoenau (CEE/MT0), Beleni Saléte Grando (UFMS), Neide da Silva Campos (SEDUC-MT) e Sueli de Fátima Xavier Ribeiro (SME-Cuiabá-MT), há consi- derações sobre uma manifestação da cultura e identidade do povo Bororo que diz respeito à educação do corpo a qual se materializa na dança e no brincar, os quais possibilitam a compreensão de diferentes sentidos e significados, no que se refere à cosmologia, à língua nativa, aos rituais, à complexa estrutura social e às formas de constituir identidades individuais e coletivas. Trabalho realizado em diálogo com o contexto sociocultural e histórico de Meruri, em Mato Grosso. Por último, mas nem por isso menos importante, consta o artigo Assimetrias entrelaçadas: sobre o “complexo hierárquico” Eyiguayegui-Guaná, de Gabriela de Carvalho Freire (USP) que propõe, desafiando as/os leitores, que a compreensão das relações assimétricas, encontradas nas fontes históricas devem ser lidas, tanto em paralelo com a produção atual da etnologia americanista, quanto com o concur- so crítico de indígenas intelectuais ou não de origem Kadiwéu, Terena e Kinikinau, descendentes dos antigos Eyiguayegui e Guaná ou Chané. No artigo, a autora repensa as “relações hierárquicas” a partir de fontes his- tóricas produzidas, desde o século XVI, no Gran Chaco, analisa os relatos produzidos por missionários, viajantes e exploradores, além de literatura etnológica pertinente, procurando demonstrar as contradições presentes na utilização de termos como “servidão” e “hierarquia”, encontradas em grande parte da bibliografia sobre os povos Eyiguayegui e Guaná ou Chané. A autora traz a sua análise a origem dos etnônimos utilizados na literatura e sua interminável mutabilidade; as maneiras registradas nas fontes históricas e estudos antropológicos para delimitar os “grupos” chaquenhos; as relações entabuladas por essas populações; os conceito de simbiose e a noção de “servidão”, associados às descrições desse “complexo hierárquico”. O Dossiê se completa com as trajetórias de algumas das pessoas indígenas que alcançaram o ensino superior a partir de políticas afirmativas. Luana da Silva Cardoso, Kamaruara, mestranda em Antropologia Social, nos apresenta a luta das indígenas mulheres dos rios Tapajós e Arapiuns, apontando um cotidiano de exploração a ser superado com luta renida. Gilberto Pires, de pertença Ejiwajegi (Kadiwéu), encontra- -se no mestrado completando sua formação como antropólogo, narra em detalhe a

14 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, maio/ago. 2019 luta para formar-se e atuar como professor entre os estudantes de seu povo. Virgínia Braga Fonseca, Arapasso, desce do Rio Negro até a foz do Amazonas e conta sua saga em Belém, onde se encontra terminando a graduação em Administração, uma longa caminhada que passa pelo noviciado na Congregação Salesiana em São Paulo. Os Escritos Indígenas dão visibilidade ao combate sem trégua dos povos indígenas por direitos étnicos e, dentro das edições da Tellus, eles se constituem em depoimentos historicamente marcados pelo racismo e pela discriminação. Os guerreiros/as deste e dos demais números da Revista merecem nossos aplausos pela ousadia e coragem de escrever suas denúncias. Quiçá os não indígenas aprendam com os escritoras/es indígenas a lutar pela educação, pois a luta é de todas/os. Como organizadora/es estamos satisfeita/os com os resultados alcançados, mas temos a convicção que, os dois volumes do Dossiê, apenas alimentam a von- tade de interagir mais e melhor com os povos indígenas e trabalhar de forma mais profunda para a renovação da História Indígena, pois muito há por escrever e outro tanto por revisar o escrito, afinal precisamos de muitas versões para melhor discutir nos espaços acadêmicos e não acadêmicos.

Jane Felipe Beltrão Jorge Eremites de Oliveira Luiz Henrique Eloy Amado William César Lopes Domingues Organizadores do Dossiê

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, maio/ago. 2019 15

ɄTÃ WORI – um diálogo entre conhecimento Tuyuka e arqueologia rupestre no baixo Rio Negro, Amazonas, Brasil ɄTÃ WORI – a dialogue between Tuyuka knowledge and rock art archaeology at the lower Rio Negro, Amazonas, Brazil

Poani Higino Tenório Tuyuka1 Raoni Bernardo Maranhão Valle2

DOI: http://dx.doi.org/10.20435/tellus.v19i39.576

Resumo: Este artigo traz um relato preliminar sobre uma experiência de trocas de conhecimento entre um Kiti Masigu (historiador) Tuyuka e um arqueólogo não-Indígena que prospectaram juntos na estação seca de 2016 um conjunto de sítios rupestres no baixo Rio Negro, Amazonas, Brasil. No conhecimento Tuyuka tais sítios são denominadosɄtã Woritire, isto é, lugares sagrados com desenhos nas pedras, muitos dos quais também são Pamuri Wiseri (Casas de Transformação). Desta maneira, houve uma aproximação a uma agenda de pesquisa intercultural sobre o tema que está sendo problematizada como um exercício de descolonização da arqueologia rupestre na Amazônia. Palavras-chaves: Ʉtã Wori; petróglifos; baixo Rio Negro; arqueologia intercultural; descolonização. Abstract: This article brings a preliminary report about an experience of knowledge exchanging between a Kiti Masigu (historian) Tuyuka and a non- Indigenous rock art researcher that surveyed together during the 2016 dry season a sample of petroglyph sites at the lower Rio Negro, Amazonas, Brazil. Through Tuyuka perspective these sites are called Ʉtã Woritire, that is, sacred places with drawings on the rocks, many of them also constitutingPamuri Wiseri (houses of transformation) with profound myth-historical density. Following that pathway allowed us an approximation towards an Intercultural research agenda on the subject, which is being theorized as an interepistemological decolonizing exercise in the context of Amazonian rock art archaeology. Keywords: Ʉtã Wori; petroglyphs; baixo Rio Negro; intercultural archaeology; decolonization

1 Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, Brasil. 2 Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), Santarém, Pará, Brasil.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 17-37, maio/ago. 2019 Poani Higino Tenório TUYUKA., Raoni Bernardo Maranhão VALLE

1 INTRODUÇÃO Durante a estação da seca de 2016 no Baixo Rio Negro, estado do Amazonas, Brasil, os autores deste artigo, o historiador Tuyuka Kiti( Masigu) Poani Higino Tenório, e o arqueólogo não-indígena, Raoni Valle, fizeram uma jornada de re- descobrimento de sítios arqueológicos com petróglifos (Ʉtã Woritire). Estes sítios são considerados desde a perspectiva indígena Tuyuka como antigos contentores de conhecimentos ancestrais fundamentais para o manejo do mundo no passa- do, no presente e no futuro. Para os conhecedores Tuyuka, da família linguística Tukano Oriental do Noroeste Amazônico, de fato, alguns sítios com petróglifos são Casas de Transformação por onde a humanidade passou desde sua origem não-humana até adquirir suas características atuais viajando no bojo da canoa- -anaconda numa longa, antiga e viva migração mito-histórica (ANDRELLO, 2012; TENÓRIO TUYUKA; CABALZAR, 2012). Isso foi no tempo quando Wai Mahsã (gente-peixe, ou gente-animal não- -humana) e Pamuri Mahsã (a gente da transformação) eram os mesmos e viaja- vam juntos na barriga da anaconda ancestral. Em cada uma das Casas por onde passaram no caminho, uma parte da transformação se efetuava e um tipo espe- cífico de conhecimento ritual, bem como, objetos rituais eram adquiridos. Ʉtã Wori nestas casas são indicadores destes conhecimentos e objetos da época de Transformação. Porém, também são os conhecimentos e objetos em si mesmos, não apenas representações simbólicas deles. Durante o período ritual na estação da seca é quando Kapi Mahsã Wori, Kapi Wori, Wai Mahsã Wori, Posé Wori e outras categorias ontológicas de Ʉtã Wori, isto é, diferentes seres que se apresentam nos petróglifos, emergem do fundo do rio permitindo que os Pamuri Basuka (ancestrais), bem como, outros seres antigos e os especialistas rituais Tuyuka vivos no presente se reencontrem uns com os outros, conversem mentalmente uns com os outros, revivendo ritualisticamente o passado no presente, transmitindo conhecimento por meio de rituais de iniciação, nominação e benzimento ou “curação” (bahsere) nos jovens ou em pessoas necessitadas. Os especialistas rituais Tuyuka fazem tais atividades sem necessariamente um contato visual com os Ʉtã Wori, mas viajam em sua mente até os lugares com petróglifos (Ʉtã Woritire) nestes contextos rituais.

18 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 17-37, maio/ago. 2019 ɄTÃ WORI – Um Diálogo entre Conhecimento Tuyuka e Arqueologia Rupestre no Baixo Rio Negro, Amazonas, Brasil

Esta viagem para reencontrar os sítios sagrados comɄtã Wori no baixo Rio Negro não foi a primeira. Em 2013 um grande esforço coletivo da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), do Instituto Socioambiental (Isa), do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e do Ministério da Cultura Colombiano, refez a viagem ancestral da cobra-canoa ao longo de toda bacia do Rio Negro junto com conhecedores de mais de oito povos da família lin- guística Tukano Oriental com o objetivo de mapear os lugares sagrados na bacia. Os autores deste presente artigo tiveram a felicidade e o privilégio de participar deste primeiro processo de reencontro. Todavia, a segunda viagem em 2016 foi feita em uma época de maior seca do Rio Negro, e para se visualizar os Ʉtã Wori que se situam em afloramentos rochosos ribeirinhos, esta condição na Amazônia é crucial. Assim, os autores puderam encontrar mais petróglifos e se demorar mais tempo nesses lugares, o que repercutiu nas observações aqui redescritas, mesmo tendo sido uma viagem feita por um grupo menor e menos diversificado. Este processo todo, desde a primeira viagem e mais marcantemente na segunda, se converteu numa jornada de transformação do pensamento, onde a investigação arqueológica de arte rupestre (outro nome para petróglifos que também inclui pinturas feitas com tinta sobre as pedras [pictogramas] e grandes desenhos feitos no chão [geóglifos]) foi convertida em outro processo de cons- trução de conhecimento. Um processo onde a classificação dos tipos de formas e temas dos desenhos, bem como, a identificação de sua sequência cronológica, ou seja, a sequência de tempo dentro da qual eles foram feitos, em que pesem os mais antigos e os mais recentes, foram de fato convertidas numa experiência de conhecimento acerca da natureza ontológica dos grafismos (o que são os de- senhos) e sobre a agência das formas gráficas (como eles agem no mundo e em quais circunstâncias). Foi possível assim, começar a adentrar num processo de entendimento superficial e fragmentado sobre a complexidade do pensamento Tuyuka com relação à vida cognitiva da arte rupestre (MALAFOURIS; RENFREW 2010).

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Figura 1 – Prof. Poani Higino Tenório pensando junto a um petróglifo yiseriwa na Pamuri Wi Ponta do Iaçá

Fonte: R. Valle (2016).

2 CONCEITOS-CHAVE DO PENSAMENTO TUYUKA SOBRE ARTE RUPESTRE - ɄTÃ WORI / PADEO MASIRĔ / BɄTOA MASIRĔ

2.1 Ʉtã Wori Desenho ou forma gráfica, escrita, ou mesmo o pensamento/conhecimento feito na, ou passado para a pedra. São marcadores das viagens dos Pamuri Basuka no passado e constituem uma historiografia visual (um registro da história feito visualmente) da jornada de Transformação. São, portanto, os marcadores do grande território ancestral da família linguística Tukano Oriental. São estações de “etnogeorreferenciamento” do território sagrado que vai mais além do que o território demarcado como Terra Indígena pelo Estado Brasileiro; e que para os Kumuã, os Yaiwa, os Baya, ou para um Kiti Masigu (como se auto define o primeiro autor deste artigo), isto é, para os diversos tipos de conhecedores, constituem o Macro Espaço Social Tukano.

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2.2 Padeo Masirĕ É a cultura de respeito. Isto é, uma relação de reciprocidade entre a hu- manidade as outras formas de vida e o ambiente onde se encontram as Casas de Transformação (Pamuri Wiseri). Está constituído por conhecimentos enraiza- dos nos povos indígenas que garantem o respeito pelas culturas não-humanas, humanas e pelos lugares sagrados onde os encontros entre Wai Mahsã, Pamuri Basuka e a humanidade ocorrem. Estes são espaços específicos onde a aquisição de conhecimento ritual é possível e um dos principais conhecimentos é o de como abrandar, ou suavizar as hostilidades dosWai Mahsã (Nigare). Isto é, como se construir alianças diplomáticas entre eles e os humanos. Assim, a “Cultura de Respeito” pode ser entendida como todos os tipos de construção de alianças entre os muitos seres viventes habitando distintos e interconectados universos (o aquático, o terrestre, aéreo e subterrâneo). Para os conhecedores, os sítios de origem e de transformação continuam vivos. Estes sítios continuam a se comuni- car com os especialistas Tukano e vice-versa, por meio de sonhos e pensamentos rituais dentro dos quais os conhecedores viajam para os sítios sagrados e depois se recordam destas viagens e das aprendizagens adquiridas neles. A perpetuação destas reciprocidades comunicacionais e cognitivas (da ordem do pensamento) entre sítios e conhecedores, em conexão com a construção de alianças diplomáti- cas entre humanos e não-humanos constituem importantes elementos da noção Tuyuka/Tukano de Respeito.

2.3 Bʉtoa Masirĕ Conhecimento dos ancestrais que também pode ser traduzido pela ex- pressão arte-mitologia. Se refere à expressão material de conhecimentos por meio da confecção de objetos e de desenhos (representações gráficas), uma cultura material e imaterial entrelaçadas com origem “mitológica”. Constituem um repertório de símbolos de vida, de benzimentos ou curações (Bahsere), de nominação (Yeripona Bahsere – mais especificamente de cura do coração/es- pírito, alma, existência, vida que também pode se relacionar com Niã Bahsere – nominação), as transformações (Pamuri), o abrandamento das hostilidades (Nigare), entre outros. São muitos os tipos de conhecimentos que podem estar codificados emɄtã Wori.

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Assim, Ʉtã Wori fundamentalmente constituem-se em expressões mate- riais dos Bʉtoa Masirĕ. Quando estão materializados em um lugar (Ʉtã woritiro) eles funcionam como articuladores entreBʉtoa Masirĕ e Padeo Masirĕ (respeito ritualístico).Padeo Masirĕ aporta o necessário respeito para os sítios comBʉtoa Masirĕ, quer dizer, Ʉtã woritire (plural de lugar com petróglifos). O conhecimento dos ancestrais está nestes objetos e também nas representações (desenhos) deles (Posé Wori). Desta forma, Ʉtã Wori pode mudar de natureza desde uma represen- tação do objeto para o objeto em si mesmo. Eles também são como fotografias de entidades não-humanas espirituais e sagradas comoKapi Mahsã e Wai Mahsã, são os Wori deles, mas somente fora dos momentos rituais. Outrossim, durante as práticas e contextos rituais se convertem em Kapi Mahsã e Wai Mahsã pro- priamente ditos. Outro exemplo desta mesma lógica ambígua ou recíproca entre referente e referenciado, e portanto de subversão da lógica representacional, se dá quando as mulheres estão vestidas com suas tangas durante a dança das mu- lheres (Ñagenwasoro). Durante esta dança ritual, elas se transformam na mulher ancestral (Pamuri Basoko), mas fora do contexto ritual da dança, Ñagenwasoro é apenas uma peça de tecido decorado que representa a mulher ancestral. Portanto, constata-se que Padeo Masirĕ são como chaves que abrem os Bʉtoa Masirĕ contidos nos Ʉtã Wori. Hoje em dia, quando os homens estão te- cendo com as fibras de palha uma cesta, ou peneira (Yiseriwa), eles estão tecendo os padrões gráficos de Ʉtã Wori para recordar e viajar aos Ʉtã Woritire (sítios sagrados com petróglifos).

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Figura 2 – Prof. Poani Higino Tenório estende sua mente através de seu dedo para pensar mais sobre um petróglifo yiseriwa na Pamuri Wi Ponta do Iaçá

Fonte: R. Valle (2016).

3 RESULTADOS

3.1 Perfil Gráfico Jaú – formas antropomórficas e geométrico-abstratas – estilo ontológico-ritualístico vinculado ao Kapi Os sítios do estilo denominado Jaú originalmente definido como uma -con junção de antropomorfos e figuras geométricas estão caracterizados pela ocor- rência de Kapi Wori, formas geométricas vistas sob efeito de Kapi (uma infusão alucinógena de diversas plantas entre as quais, principalmente, Banisteriopsis kaapi e Psichotria viridis), com grande presença de Kapi Mahsã Wori (que são tanto representações da gente-Kapi quanto eles mesmos) e minoritariamente Posé Wori, ou seja, objetos sagrados de origem mitológica (neste caso um tipo de yiseriwa, peneira circular relacionada ao esfriamento climático causado peloAru , uma entidade espiritual específica associada a uma espécie de batráquio com o

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 17-37, maio/ago. 2019 23 Poani Higino Tenório TUYUKA., Raoni Bernardo Maranhão VALLE poder de controle climático, especificamente controlador de friagens). De maneira geral, o sítio Ponta São João onde se localiza a maior concentração destes tipos gráficos, é uma casa de transformação, ou umaPamuri Wiseri, ontologicamente vinculada à vida cognitiva doKapi.

Figura 3 – Prof. Poani Higino Tenório analisa um painel com Kapi Mahsã Wori e Kapi Wori em articulação ontológica noPamuri Wi Ponta São João

Fonte: R. Valle (2016).

24 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 17-37, maio/ago. 2019 ɄTÃ WORI – Um Diálogo entre Conhecimento Tuyuka e Arqueologia Rupestre no Baixo Rio Negro, Amazonas, Brasil

Figura 4 – Duas Yiseriwa de Aru para ­controle da friagem e resfriamento c­limático na Pamuri Wi Ponta São João

Fonte: R. Valle (2016).

3.2 Perfil Gráfico Iaçá – formas geométrico-abstratas – estilo ontológico- ritualístico vinculado aosPosé Wori ou Posé Wiseri Makañe O sítio denominado Ponta do Iaçá cuja iconografia serviu de base para a definição do perfil gráfico Iaçá, estruturalmente geométrico, foi quase que exclu- sivamente identificado como portador de uma ontologia dedicada a Posé Wori, isto é, as representações simbólicas dos objetos sagrados de origem mitológica, bem como, os próprios objetos, onde se destacam a Yiseriwa (uma peneira de formato quadrado associada ao processamento da mandioca [Manihot sp.]) e o Yuiró (o suporte da Cuia da Vida), ambos objetos relacionados à geração da vida

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(reprodução/fertilidade) bem como, à produção de alimentos para o corpo e espírito. Assim, Ponta do Iaçá é uma Pamuri Wiseri do conhecimento aportado pelos objetos mitológicos que foram recebidos ao longo da viajem de transfor- mação. Neste caso e no caso da Ponta São João, suas características ontológicas os vinculam ao gênero feminino a partir destas articulações simbólicas com a origem mitológica do Kapi e ao fato de que os itens de Posé Wori identificados também se relacionam a atividades do domínio (re) produtivo das mulheres, como o processamento da mandioca e a cuia da vida, ainda que não exclusivamente.

Figura 5 – Yuiró, o suporte da cuia de Vida, um tipo dePosé Wori Makãne na Pamuri Wi Ponta do Iaçá

Fonte: R. Valle (2010).

3.3 Perfil Gráfico Unini – formas antropomórficas e zoomórficas – estilo ontológico-ritualístico vinculado àMasakurawi , Yurupari e Wai Mahsã O terceiro perfil gráfico, específico dos sítios em litologia granítica (Ʉtãnire), denominado Unini, onde se destacam a aparição dos Masakura Baya (tocadores

26 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 17-37, maio/ago. 2019 ɄTÃ WORI – Um Diálogo entre Conhecimento Tuyuka e Arqueologia Rupestre no Baixo Rio Negro, Amazonas, Brasil de flauta), Wai Mahsã (associados às representações zoomórficas) e a fusão dos dois conceitos em Masakura Baya zoomórficos (com caudas), a partir de sua importante vinculação com a iconografia das flautas sagradas foram ontologi- camente classificados como relacionados ao complexo mito-ritual do Jurupari Alto Rionegrino de iniciação masculina neste sistema de conhecimentos secretos interditados às mulheres, crianças e homens não-iniciados (HUGH-JONES, 1979). Ainda que a ocorrência de um motivo identificado comoÑagenwasoro (na categoria Posé Wori) esteja intimamente vinculado a um ritual das mulheres e à natureza feminina, a expressiva ocorrência de flautistas, inclusive com um deles explicitamente apresentando um pênis, aporta uma carga simbólica marcada- mente masculina e ritualmente atrelada ao Jurupari e ao Masakurawi (o ritual de Dabukuri com flauta sagrada).

Figura 6 – Prof. Poani Higino Tenório junto a um Masakura Baya com rabo de macaco na Pamuri Wi Ilha das Andorinhas. Flauta de Wai Mahsã ou flauta do guariba? Na época da transformação Wai Mahsã e Pamuri Mahsã eram os mesmos

Fonte: R. Valle (2016).

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Figura 7 – Quadro com vários masakura baya encontrados nas Pamuri Wiseri entre a boca do Jauaperi e a boca do Branco

Fonte: Organização e decalque digital: R. Valle (2012).

4 DISCUSSÃO A classificação formal da arte rupestre, de carácter arqueológico, colocando de maneira muito resumida, é a identificação de diferenças e semelhanças entre as formas, os temas e as técnicas pelas quais os petróglifos e os pictogramas foram feitos. Cabe aqui, portanto uma rápida explicação sobre esses três parâmetros

28 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 17-37, maio/ago. 2019 ɄTÃ WORI – Um Diálogo entre Conhecimento Tuyuka e Arqueologia Rupestre no Baixo Rio Negro, Amazonas, Brasil básicos: a) a forma, ou morfologia (estudo das formas) trata de soluções e escolhas gráficas sobre a constituição, estruturação, ou apresentação visual dos motivos gráficos; b) os temas se configuram em categorias de representação dentro das quais as diversas formas podem ser agrupadas por semelhança formal, a exemplo de formas antropomórficas onde se agrupam grafismos que se assemelham à estrutura anatômica humana, ou zoomórficas que se assemelham às formas de outros animais não-humanos; c) as técnicas se referem às inter-relações entre diversos aspectos materiais envolvidos na produção das formas gráficas, o corpo humano, as ferramentas usadas, o suporte rochoso, os resíduos de produção, enfim, aludem aos processos de fabrico das pinturas e petróglifos. A observação cuidadosa, a medição, o registro e comparação desses e de outros parâmetros permitem o agrupamento de grafismos que se parecem en- tre si formando conjuntos de formas, temas e técnicas que poderão apresentar certa recorrência padronizada. Alguns arqueólogos irão definir estas repetições padronizadas como sendo estilos de se fazer arte rupestre, outros irão dizer que os estilos rupestres representam povos e culturas que viveram no passado, e ainda outros pesquisadores sustentarão que tais estilos são apenas construções da cabeça dos próprios pesquisadores. Tendo em mente o acima exposto, o autor não-Indígena deste artigo concluiu parcialmente um estudo de natureza formal em 24 sítios de petróglifos situados na fronteira geológica que marca o baixo curso do Rio Negro entre 300 e 250 km a NW de Manaus, Amazonas, Brasil. Se trata da área entre a localidade de Velho Airão e a foz do Rio Branco que se caracteriza geologicamente pelo contato entre rochas areníticas (diversos tipos deBʉtã – pedra piranha em tuyuka que se refere a diversos tipos de arenito) da formação sedimentar Prosperança, entre outras, e rochas ígneas do complexo Jauaperi (diversos tipos deɄtãnire – pedra preta em tuyuka que se refere a à granitos), o que quer dizer que são rochas geologicamente muito diferentes que se contatam aproximadamente na altura da foz do rio Unini, afluente da margem direita do Baixo Negro. A primeira diferença que o pesquisador percebeu foi que os Ʉtã wori feitos sobre Bʉtã eram muito diferentes em relação aos feitos sobre Ʉtãnire. Assim, ele concluiu que os tipos de rocha eram importantes também para definir as diferenças e semelhanças entre os tipos de Ʉtã Wori naquela área estudada. A

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 17-37, maio/ago. 2019 29 Poani Higino Tenório TUYUKA., Raoni Bernardo Maranhão VALLE partir dessa diferença inicial foi possível a identificação de outras diferenças nas formas, temáticas e técnicas dosɄtã Wori situados nos dois tipos de rochas, que levaram à definição de três conjuntos distintos, três perfis gráficos ou estilos que contrastavam entre si. Dois deles se separavam entre Bʉtã e Ʉtãnire, mas um outro ocorria em todas as rochas. Quer dizer, a dispersão geográfica dos estilos era diferente deixando evidente que ao menos para dois dos perfis a seleção dos tipos de rochas era culturalmente importante. O pesquisador então deu três nomes diferentes para esses estilos que ele considerou de forma separada, e na falta de criatividade para inventar esses nomes ele escolheu os nomes locais dos lugares onde primeiro foram percebidas tais diferenças, bem como, os nomes dos rios em que estavam os sítios. Surgiram assim: (a) o perfil estilístico Jaú que só ocorria em Bʉtã; (b) o perfil estilístico Iaçá que ocorria em todas as rochas; e (c) o perfil estilístico Unini que só ocorria Ʉtãnireem . Tal fato indicava que a geologia também foi um fator de escolha cultural. Esta última observação levou o autor mencionado a elaborar um modelo teórico (um conjunto de ideias para tentar explicar porque as coisas são do jeito que são) onde a geologia cultural, ou etnogeologia (VALLE, 2018), se constitui como um fator importante no fazer e no pensar os petróglifos, visto que a arqueologia ocidental considera que são causados pela retirada ou alteração de massa rochosa dos corpos geológicos. Contudo, não desde a perspectiva ocidental sobre a geo- logia (ou a etnogeologia dos ocidentais) uniformitarianista (que muda de maneira uniforme no passado e no presente), que pensa as rochas como abióticas (sem vida), ativas somente nas escolhas técnicas da fabricação da arte rupestre, ou ainda como recurso natural passivo para a mineração e indústria; se não que, desde uma perspectiva Ameríndia sobre a natureza ontológica das rochas enquanto dotadas de pontos de vista, consciência reflexiva, teoria da mente, linguagem e cognição, como seres que falam e pensam de maneira semelhante, mas diferente, dos humanos (VIVEIROS DE CASTRO, 1998). Desta forma, se chegou ao entendimento de que em algum momento de suas histórias de vida junto aos povos Ameríndios, as rochas poderiam ter sido consideradas como pessoas não-humanas. Em outras palavras, algumas tradições de conhecimentos Indígenas na Amazônia poderiam considerar as rochas como agentes socioculturais. Deste momento em diante, a pesquisa arqueológica soli- tária foi interrompida ao se constatar sua insuficiência para resolver o problema,

30 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 17-37, maio/ago. 2019 ɄTÃ WORI – Um Diálogo entre Conhecimento Tuyuka e Arqueologia Rupestre no Baixo Rio Negro, Amazonas, Brasil por se constituir em sua grande parte omoc um sistema de conhecimento oci- dental que tenta estudar com grandes dificuldades sociedades não-ocidentais que viveram no passado. Entre outros fatores, esta grande dificuldade resulta de dois principais as- pectos: (1) muito pouca coisa restou das materialidades dessas sociedades, pois foram destruídas pela ação da natureza no tempo, além de que as próprias cul- turas mudam com o tempo e no espaço, bem como, ao longo da história, línguas, conhecimentos e sociedades inteiras desapareceram sem deixar herdeiros de suas tradições de conhecimento; e (2) os arqueólogos ocidentais de hoje não sabem nem conseguem pensar como as pessoas e as rochas (pessoas e coisas-pessoas) que eles querem estudar, eles são como alienígenas de outro planeta quando comparados com os povos indígenas, por exemplo. Estes aspectos resultam em limites difíceis de serem renegociados para a construção do conhecimento arque- ológico sobre os povos do passado, fazendo com que a maior parte das ideias dos arqueólogos para explicar esses povos se apliquem de maneira mais adequada para explicar o próprio presente etnográfico e as sociedades destes pesquisadores, muitas vezes sem que os mesmos sequer se apercebam disso. Desta forma, e contando com muita sorte, se entendeu que o único caminho possível de continuar um tipo de estudo como esse teria que ser a partir de uma aproximação com os conhecedores Indígenas Amazônicos para que eles pudes- sem avançar o conhecimento onde a arqueologia ocidental não conseguia mais prosseguir. Partiu-se do pressuposto de que, comparando-se com o pensamento da ciência ocidental, as formas de pensar dos povos Indígenas que vivem naquela região hoje, no presente, em muitos aspectos são mais parecidas com as formas de pensar dos povos Indígenas que viveram no passado naquela mesma região e que fizeram os petróglifos. Assim, constatou-se que no Rio Negro para se entender de maneira mais profunda a arte rupestre teria que se entender, antes de mais nada, o pensamento Indígena sobre Ʉtã Wori. Neste ponto, um dos autores deste artigo, o professor e investigador Indígena Poani Higino Tuyuka, que se autodefine como umKiti Masigu(contador de histórias ou historiador), mas que não se considera um Kumu (especialista ri- tual em Bahsere, ou curação, e grande conhecedor das tradições mito-históricas), se converteu por força das circunstâncias e de suas curiosidades investigativas

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 17-37, maio/ago. 2019 31 Poani Higino Tenório TUYUKA., Raoni Bernardo Maranhão VALLE no primeiro arqueólogo Indígena do Rio Negro dedicado à investigação da arte rupestre desta região, estabelecendo assim, uma interface entre sua tradição de pensamento e conhecimento (tradição cognitivo-epistemológica Tuyuka) e a arqueologia rupestre ocidental a partir de uma reciprocidade investigativa com R. Valle. Nascia a proposta de investigação interepistemológica dos Ʉtã wori, que se coaduna ao que Walsh (2012) definiu como a dimensão epistêmica da interculturalidade crítica3. A reavaliação do corpus gráfico de petróglifos do Baixo Rio Negro sob esta nova, e ao mesmo tempo antiga, perspectiva sobre osɄtã wori resultou em uma modificação substancial na maneira de classificar, bem como, na significação mesma das classificações formais, porque o formal cedeu lugar a uma dimensão ontológica dos grafismos, ou seja, da ordem das naturezas dos seres gráficos. A percepção da natureza ontológica dos motivos gráficos implicou que as formas não eram mais representações de operações mentais de humanos, se não que seres vivos de distintas naturezas. Enquanto as formas seguiam sendo marca- dores importantes para o diagnóstico destas distinções ontológicas, o formalismo não era mais um fim em si mesmo, nem tampouco se esgotava em sua dimensão material/formal. O que eram perfis gráficos, ou estilos de formas, se converteram em perfis epistemo-ontológicos correspondentes às distintas naturezas dos seres “incorporados” nos grafismos e em seus distintos tipos de conhecimentos. Este cambio foi fundamental.

3 “[...] la interculturalidad crítica – como práctica política­ – dibuja un camino que no se limita a las esferas políticas, sociales, y culturales, sino también se cruce a las del saber, ser y de la vida misma. Es decir, se preocupe también por/con la exclusión, negación y subalternización ontológica y epistémico-cognitiva­ de los grupos y sujetos racializados; por las prácticas – de deshumani­zación y de subordinación de conocimientos – que privilegian algunos sobre otros, ‘naturalizando’ la diferencia y ocultando las desigualdades que se estructuran y se mantienen a su interior. Pero y adicionalmente, se preocupe con los seres y saberes de resistencia, insurgencia y oposición, los que persistan a pesar de la deshumanización­ y subordinación” (WALSH, 2012, p. 66).

32 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 17-37, maio/ago. 2019 ɄTÃ WORI – Um Diálogo entre Conhecimento Tuyuka e Arqueologia Rupestre no Baixo Rio Negro, Amazonas, Brasil

Figura 8 – Mão do prof. Poani Higino Tenório repousa sobre as pernas de um Kapi Mahsã Wori na Pamuri Wi Ponta São João

Foto: R. Valle (2016).

5 CONCLUSÃO Esta reclassificação de caráter onto-epistemológico e ritualístico ­apresenta-se de maneira superficial. Isto se deve ao fato de que, em verdade, se trata de um entendimento ocidental sobre o conhecimento Tuyuka, isto é, como um arqueólogo ocidental conseguiu interpretar as observações de um conhecedor Tuyuka. Portanto, se configura como uma tradução ocidental de uma tradução Indígena, ao fim, uma meta-tradução. No entanto, a mesma aponta para um novo horizonte reflexivo que expande as classificações arqueológicas tradicionais e transmite todo potencial para o desenvolvimento de diálogos interepistemológicos absolutamente necessários para a descolonização (ou de- colonização sem ‘S’ como sustenta Walsh4) da arqueologia rupestre Amazônica

4 “Suprimir la “s” y nombrar “decolonial” no es promover un anglicismo. Por el contrario, es marcar una distinción con el significado en castellano del “des”. No pretendemos simplemente desarmar,

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 17-37, maio/ago. 2019 33 Poani Higino Tenório TUYUKA., Raoni Bernardo Maranhão VALLE e, por conseguinte, para um entendimento mais aprofundado dos Ʉtã Wori na bacia do Rio Negro. Não se trata, contudo, de uma negação das classificações arqueológicas mas de uma reflexão crítica acerca de sua validade enquanto eticamente equipada para refletir realidades indígenas não somente no passado arqueológico mas sobretudo no presente etnográfico. Assim, constata-se um fenômeno no mínimo curioso. A reclassificação Tuyuka parece se superpor à classificação arqueológica na medida em que também separa a amostra em três classes de fenômenos. Os indicadores das diferenças estilísticas apontados como efetivos à leitura arqueológica também foram efetivos na leitura Tuyuka e levaram a agrupamentos semelhantes. As formas de interpretar e/ou traduzir as causas para esses agrupamentos e as implicações ou consequências de suas diferenças formais é que variaram. Portanto, as dife- renças se manifestaram nas teorias etiológicas que explicavam a causação das formas gráficas. Se por um lado, na leitura arqueológica reducionista, diferenças gráficas significavam diferenças nas sociedades que fizeram os grafismos e/ou em suas épocas históricas, por outro lado, na leitura Tuyuka o que tais características demonstravam eram diferenças na ontologia e na função ritual dos seres gráficos não representados, mas existentes naqueles lugares. A partir do exposto, os termos arte rupestre e petróglifo não mais fazem sentido nestas investigações, sendo epistemologicamente mais coerente substituí- -los por categorias conceituais Indígenas. Uma substituição terminológica apenas em princípio, para efeito de que se inicie um processo de descolonização dos estudos interculturais sobre o tema que deve ser amadurecido fenomenologi- camente (no entendimento acerca da aparência das formas) e ontologicamente (no entendimento acerca da natureza dos seres formais). Tal abordagem deve seguir cada vez mais no sentido de se abandonar perspectivas analíticas eurocên- tricas que sempre se apoiaram numa assimetria detrimental aos conhecimentos Indígenas, pensando-se, ainda que timidamente, numa aproximação coerente à

deshacer o revertir lo colonial; es decir, pasar de un momento colonial a un no colonial, como que fuera posible que sus patrones y huellas desistan de existir. La intención, más bien, esseñalar y provocar un posicionamiento –una postura y actitud continua– de transgredir, intervenir, -in -surgir e incidir. Lo decolonial denota, entonces, un camino de lucha continuo en el cual podemos identificar, visibilizar y alentar “lugares” de exterioridad y construcciones alternativas” (WALSH, 2009, p. 13-4).

34 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 17-37, maio/ago. 2019 ɄTÃ WORI – Um Diálogo entre Conhecimento Tuyuka e Arqueologia Rupestre no Baixo Rio Negro, Amazonas, Brasil complexidade do pensamento Ameríndio e no tensionamento e transformação dessas assimetrias entre teorias do conhecimento. Neste sentido, o próprio termo interepistemologia ventilado por um dos -au tores deste artigo, e pensado enquanto um entrelaçamento entre no mínimo duas teorias do conhecimento, uma Ameríndia e outra Ocidental, foi tensionado pelo outro autor que propôs como sua tradução e eventual substituição a expressão “Puaro Masirĕ Masirõ”. Assim, entende-se por “Puaro Masirĕ Masirõ, dois conhe- cimentos/aprendizagens unidos em status de igualdade e reciprocidade. Tanto os conhecimentos ocidentais quanto os conhecimentos Indígenas tem valores culturais importantes para as vidas das pessoas em ambas as sociedades, com perspectivas de “bem viver” no mundo. Os dois conhecimentos caminhando juntos no mundo em condição de reciprocidade e simetria epistemológica (Interepistemologia), levarão à construção de um paradigma social mais justo e promissor no futuro. A lógica dos termos aqui expostos objetiva, portanto, a construção de uma cultura de respeito entre os conhecimentos (Basoka Niretirere Padeore).”

Figura 9 – Imagem de satélite do Google Earth onde se encontram assinaladas experiências passadas e em curso de pesquisas interculturais entre conhecimentos Indígenas e Arqueologia Rupestre na Amazônia (etnônimos em vermelho). O qua- drado vermelho indica a área de pesquisa aqui abordada, amplificada na figura 10.

Fonte: Google Earth

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 17-37, maio/ago. 2019 35 Poani Higino Tenório TUYUKA., Raoni Bernardo Maranhão VALLE

Figura 10 – Mapa da distribuição de estilos de petróglifos no baixo Rio Negro, cada cor equivale a um dos três perfis gráficos identificados na pesquisa arqueológica

Fonte: Marcos Brito (publicado originalmente em Valle, 2012).

REFERÊNCIAS ANDRELLO, Geraldo (Org.). Rotas de criação e transformação – narrativas de origem dos Povos Indígenas do Rio Negro. São Paulo: Instituto Socioambiental; São Gabriel da Cachoeira, AM: FOIRN - Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, 2012.

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TÉNÓRIO TUYUKA, Poani Higino Pimentel; CABALZAR, Aloísio. No caminho da cobra de pedra. In: ANDRELLO, Geraldo (Org.). Rotas de criação e transformação – narrativas de origem dos Povos Indígenas do Rio Negro. São Paulo: Instituto Socioambiental; São Gabriel da Cachoeira, AM: FOIRN - Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, 2012.

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VALLE, Raoni B. M. Ethnogeology of rock art? Some considerations derived from amazonianist ethnographies. In: TRONCOSO, A.; ARMSTRONG, F.; NASH, G. (Ed.). Archaeologies of rock art – South American Perspectives.London/New York: Routledge, 2018.

VALLE, Raoni B. M. Mentes graníticas e mentes areníticas – fronteira geo-cognitiva nas gravuras rupestres do Baixo Rio Negro, Amazônia Setentrional. 2012. 546 p. Tese (Doutorado em Arqueologia) - Universidade de São Paulo, 2012.

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WALSH, Catherine. Interculturalidad, Estado, Sociedad: luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito, Equador: Universidad Andina Simón Bolivar/Ediciones Abya-Yala, 2009.

Sobre os autores: Poani Higino Tenório Tuyuka – Reconhecida liderança indígena do povo Tuyuka do Alto Rio Negro, atuante desde os anos 80. Professor Indígena e Historiador (Kiti Masigu) do povo Tuyuka; membro e um dos fundadores da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) (1987); membro e um dos funda- dores da Escola Utapinopona -Tuyuka (1998) no rio Tiquié; Investigador Tuyuka de ɄTÃ WORI (arte rupestre). E-mail: [email protected] Raoni Bernardo Maranhão Valle – Doutor em Arqueologia pela Universidade de São Paulo (USP); Mestre em História e graduado em História pela Universidade Federal de (UFPE). Professor Adjunto no Programa de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). E-mail: ­[email protected]

Recebido em: 15 de agosto de 2018 Aprovado para publicação em 22 de novembro de 2018

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Capitão: a aplicação da Indirect Rule nos povos Kaiowá e Guarani Captain: the application of Indirect Rule in the Kaiowá and Guarani people

Marco Antonio Delfino de Almeida1 Thiago Leandro Vieira Cavalcante1

DOI: http://dx.doi.org/10.20435/tellus.v19i39.572

Resumo: O artigo apresenta o conceito de indirect rule ou governo indireto formulado para aplicação nas colônias africanas durante o colonialismo do século XIX e discute sua aplicação pelo Estado colonial brasileiro por meio do Serviço de Proteção ao Índio no Brasil (SPI). Tal aplicação se deu por meio da imposição de um novo modelo de liderança nas reservas indígenas criadas pelo SPI. Esse modelo se materializou na figura do capitão a quem, na condição de indígena, cabia impor aos demais as diretrizes emanadas do SPI, configurando- se então uma forma de governo indireto, também característica do colonialismo interno. A autoridade do capitão se sobrepôs às lideranças tradicionais tornando foco perene de tensões e conflitos. Observa-se que mesmo após a Constituição Federal de 1988 esse modelo de liderança permanece, demonstrando que de alguma forma a capitania foi apropriada pelos indígenas. Palavras-chave: capitania; colonialismo interno; Serviço de Proteção ao Índio; governo indireto. Abstract: The article presents the concept of indirect rule formulated for application in the African colonies during nineteenth century colonialism and discusses its application by the Brazilian colonial state through the Serviço de Proteção ao Índio (SPI) (Indian Protection Service) in Brazil. This was done through the imposition of a new model of leadership in indigenous reserves created by the SPI. This model materialized in the figure of the captain, whom, as an indigenous person, it was necessary to impose guidelines emanated from the SPI to the others, an indirect form of government was constitute, also characteristic of internal colonialism. The captain’s authority overcame the traditional leadership by making a recurrent focus of tensions and conflicts. It is observed that even after the Federal Constitution of 1988 this model of leadership persist, demonstrating that in some way the captaincy was appropriated by the Indians.

1 Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados, , Brasil.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 39-60, maio./ago. 2019 Marco Antonio Delfino de ALMEIDA., Thiago Leandro Vieira CAVALCANTE

Keywords: captaincy; internal colonialism; Indian Protection Service; indirect government.

1 INTRODUÇÃO

Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com O outro.Cada um me contou a narrativa de por que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Não era que um via uma coisa e outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um outro lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta dupla existência da verdade. (PESSOA, 1986, p. 47).

Com referência aos índios estarem devassando o mandiocal, tendo como cabeça o índio Capitão da Aldeia, e que pretendia fazer uma mudança de capitão e polícia, esta Chefia aprova, visto que vem de muito se adotando essa medida, de ser o capitão dos índios escolhido pelos Encarregados dos Postos, que, depois deste escolhido, serão escolhidos, também, os auxiliares de Polícia Indígena, que deve compor de 1(sic) tenente, 1(sic) sargento, 2(sic) cabos, e os soldados quantos sejam necessários, de acordo com o numero de índios aldeados. Esta escolha será entre o Enc, do Posto e o Capitão, e en- viado a esta IR, para expedição das Portarias de Capitão, tenente e sargento. A ordem e a disciplina obedecerá os deveres hierárquicos, devendo, portanto ser executado o plano, se ainda não foi. (BRASIL, 1954).

O contraste entre a história oficial sintetizada no dístico “Morrer se preciso for... matar, nunca!” e as práticas colonialistas do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) representam excelente demonstração fática das palavras de Fernando Pessoa. “Serviço de Proteção ao Índio” ou efetivamente, “Serviço de Dominação do Índio”? A negação do jugo colonial sobre as populações indígenas pode representar mais uma faceta da nossa “aversão” ou “negação” da nossa imagem ao espelho. Como “Democracia Racial” e Racismo representam as duas faces de Janus na sociedade brasileira: a primeira propalada pelas elites, a segunda esculpida pelas ruas e pelos índices sociais que confirmam a exclusão. O tema é vasto, especialmente pela utilização da tutela ou do poder tutelar como sinônimos eufemísticos do processo de dominação colonial (LIMA, 1995; 1987; OLIVEIRA, 1986).

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O presente trabalho, de forma abreviada, abordará o tema sob a perspectiva da motivação histórica do processo de “proteção” e da consequente utilização de estruturas coloniais para a obtenção dos desideratos econômicos almejados, especificamente, a utilização do denominado indirect rule ou governo indireto, por meio do processo de seleção e da imposição de lideranças não tradicionais na forma de “capitães” nas comunidades Kaiowá e Guarani do atual Mato Grosso do Sul. O texto propõe uma relação entre as formas coloniais de dominação pre- sentes no colonialismo clássico, especialmente observado na África no século XIX, e aquelas que seguem presentes na sociedade brasileira, regida pela presença da colonialidade do poder que se estende para além do término da colonização clássica na América.

2 INDIRECT RULE A expressao “governo indireto” e uma traduço do conceito expresso em ingles, indirect rule, que foi utilizado originalmente para denominar o sistema politico-administrativo descentralizado praticado nas colonias africanas contro- ladas pelo Reino Unido (particularmente no Quenia e na Nigeria) entre o final do seculo XIX e as primeiras decadas do seculo XX. Esta baseado no estabelecimento de “intermediarios nativos” (uma especie de “administrador nativo”) situados entre a populaço local e os administradores britanicos. Politica semelhante foi utilizada, na relação com os povos indígenas, pelos Estados Unidos entre os anos 1930 e 1940 (BLANCHETTE, 2010). O indirect rule foi um momento geral que exprimiu a necessidade dos colonizadores redefinirem os seus postulados assi- milacionistas (LECLERC, 1973), e que, no caso da Africa britanica, tomou a forma do que Mahmood Mamdani (1996) chamou de “despotismo descentralizado”. A menção ao termo indirect rule é associada ao seu suposto criador. O militar e administrador colonial britânico, Frederick Lugard (1929, p. 199) com o consequente estabelecimento do governo colonial por intermédio dos represen- tantes das populações nativas e suas próprias instituições. Malinowski (1945, p. 138) aponta que o sistema teria como principais vantagens o fato de ser barato, prático, de fácil implementação devido ao mínimo de fricção e insatisfação, uma vez que contaria com o consentimento da maioria dos que seriam governados.

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Aspecto interessante, sobre o ponto de vista ético e histórico, é a utilização dos antropólogos como meio preferencial de identificação da forma de estruturação das sociedades a serem colonizadas com a associada identificação das lideranças “tradicionais”. Esta utilização, cuja abordagem mais detalhada demandaria um trabalho específico, é apresentada no trabalho de Malinowski (1945, p. 138-9) ao detalhar que seria um truísmo antropológico a afirmação de que a autoridade é melhor exercida pelas lideranças seculares, que possuem prestígio perante a comunida- de, que possuem funções religiosas e a quem são atribuídos poderes mágicos. Caberia ao antropólogo a correta identificação desta liderança e a consequente operacionalização da indirect rule. Malinowski (1945, p. 147) igualmente aponta as dificuldades na sua imple- mentação, caso não ocorra na aplicação descolada da realidade fática. É funda- mental que ocorra a compreensão, por parte dos nativos dos objetivos coloniais, e a recíproca compreensão das “limitações” das lideranças locais. Em sua visão, o objetivo fundamental seria a instituição de uma liderança local devotada, depen- dente, controlada, mas poderosa, rica e satisfeita. O processo de fortalecimento econômico da liderança deve ser provido pelas estruturas coloniais para que ocorra o custeio da “estrutura administrativa nativa”, recompensa de seguidores e fartura de recursos a serem divididos. Barnes (1960, p. 140) discorda da atribuição da paternidade do termo à Lugard. Sustenta que a instituição é milenar, remontaria aos romanos e que os princípios da técnica já teriam sido citados em um memorando do administrador colonial britânico em Uganda, o capitão Thruston, em 1897. Na antiguidade orien- tal também é possível encontrar formas de dominação imperialista com formas de governo indireto, caso do Império Persa em relação aos Hebreus, por exemplo. Ponto relevante trazido a debate por Barnes (1960, p. 143) refere-se à implementação do sistema do indirect rule em sociedades que não possuem um sistema de liderança centralizada, mas, sim de lideranças “grupais” como as existentes nas famílias extensas dos Kaiowá e Guarani ou os grupos classificados como vicinais (OLIVEIRA FILHO, 1986, p. 386-7). Nestes casos ocorreria a clara possibilidade de abandono dos mecanismos consensuais de resolução de conflitos com a consequente utilização intensiva de mecanismos coercitivos e da violência. A

42 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 39-60, maio/ago. 2019 Capitão: a aplicação da Indirect Rule nos Povos Kaiowá e Guarani ausência de vinculação a uma autoridade preexistente (seja pela não identificação da efetiva liderança em uma estrutura centralizada, seja pela imposição de uma estrutura descentralizada) acarreta a necessidade de demonstração ostensiva do dever de obediência e das consequências do descumprimento. Neste cenário, há clara possibilidade de estabelecimento de “tiranias” com emprego frequente de violência. Mamdani (1996, p. 18) pontua que os mecanismos de controle direto e indireto (direct e indirect rule) são mecanismos complementares do sistema co- lonial. O sistema de controle direto vige nas áreas urbanas e se caracteriza pela exclusão discriminatória dos povos originários do acesso à plenitude dos direitos civis. Eufemisticamente, o que se buscaria não é uma segregação racial, mas uma separação entre “civilizados” e “não civilizados”. As citações abaixo transcritas expressam a teoria formulada. Por outro lado, uma vez que este sentimento existe, deve-se, em minha opinião, tornar-se bastante claro que o que se pretende é uma segregação dos padrões sociais, e não uma segregação de raças. O cavalheiro indiano ou africano que adote o padrão mais elevado de civilização e deseje participar dessa imunidade à infecção proporcionada pela segregação, deve ser tão livre e bem-vindo a viver na área civilizada como o europeu, desde que, claro, ele não traga consigo um séquito de seguidores. O camponês nativo freqüente- mente compartilha sua cabana com sua cabra, ou ovelhas, ou aves. Ele gosta de usar tambores e dançar à noite, o que priva o europeu do sono. [...]. ‘Para essas pessoas, as regras sanitárias são necessárias, mas odiosas. Elas não têm o desejo de abolir a segregação’. (LUGARD, 1929, p. 150, tradução nossa)2. A fundação desse Posto nas terras reservadas para os índios Caiuás, junto ao Patrimônio de Dourados demonstrou bem cedo, que muito se pode obter, da disciplina e regeneração dos costumes do índio, com uma assistencia a elle feita, em a qual se procure conduzil-o ao trabalho e bom comportamento.

2 On the other hand, since this feeling exists, it should in my opinion be made abundantly clear that what is aimed at is a segregation of social standards, and not a segregation of races. The Indian or African gentleman who adopts the higher standard of civilisation and desires to partake in such immunity from infection as segregation may convey, should be as free and welcome to live in the civilised reservation as the European, provided, of course, that he does not bring with him a concourse of followers. The native peasant often shares his hut with his goat, or sheep, or fowls. He loves to drum and dance at night, which deprives the European of sleep. […]." For these people sanitaryrules are necessary but hateful. They have no desire to abolish segregation.

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Antes da fundação do “Posto Francisco Horta” era comum o ver-se indios embriagados perambulando pelas ruas do povoado, principalmente aos domingos. Pouco mais de anno faz que aquelle Posto foi installado e, entretanto, já se não vê a reprodução de facto tao lamentável. (BARBOSA, 1927 apud MONTEIRO, 2003). É notável a similaridade do pensamento colonial, o mesmo objetivo segre- gacionista é alcançado tanto pelo colonialismo clássico quanto pelo colonialismo interno vivenciado no Brasil, seja pela via “sanitária”, seja pela via da “assistência” ou “proteção”. Por fim, a exposição da figura do denominado chefe. O complexo de po- deres a ele associados é comum aos sistemas coloniais franceses, britânicos e, obviamente, à implementação colonial brasileira no indigenismo. Há, na prática, a fusão dos poderes administrativos, legislativos, judiciais em uma única entidade. Mamdani (1996, p. 23) compara o chefe colonial a um “punho cerrado locali- zado na intersecção entre a zona de mercado e a zona do não mercado”. Era o instrumento de implementação de uma série de coerções necessárias ao sistema colonial: trabalho forçado, colheitas forçadas, contribuições forçadas e remoções forçadas, tanto lá como aqui.

3 GÊNESE DA DOMINAÇÃO COLONIAL NO BRASIL A fundamentação teórica e econômica para o processo de dominação colo- nial dos povos originários, na fase Republicana, pode ser vislumbrada no trabalho do General Couto Magalhães. O trabalho de Couto Magalhães foi elaborado, a pedido do Imperador Pedro II, para figurar na biblioteca americana da Exposição Universal de Filadélfia em 1876, comemorativa do Centenário da Independência Americana. A Exposição, que ocorreu entre os dias dez de maio e dez de novembro de 1876, contou com a presença do Imperador Dom Pedro II em sua abertura. Os assuntos debatidos no livro apresentam um relevante tema à época. Em 25 de junho de 1876 aconteceu a Batalha de Little Big Horn, entre unidades do Exército Americano e indígenas do povo Lakota. Paralelamente, havia a intervenção militar chilena no território Mapuche, denominada “Pacificação da Araucania (1862-1883) e igualmente a intervenção militar argentina em face das comunidades indígenas

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Mapuche, Tehuelche e Ranquel, denominada de “Conquista do Deserto”. Neste contexto, o debate centrava-se no destino das comunidades indígenas: a) o exter- mínio ou b) o aproveitamento econômico. A solução gestada por Couto Magalhães (1876, p. 18-20) aponta para “O selvagem como elemento econômico”. O fato da existência desse milhão de braços, ocupando e dominando a maior parte do território do Brasil, podendo irromper para qualquer lado contra as populações cristãs, é um embaraço para os progressos do povoamento do interior e é um perigo que crescerá na proporção em que eles forem ficando mais apertados: a questão, pois, não versa só sobre a utilidade que podemos tirar do selvagem; versa também sobre os perigos e despesas que faremos, se não cuidarmos agora de amansá-los. Não estará longe o dia em que seremos forçados, como a República Argentina, o Chile, os Estados Unidos, a manter verdadeiros corpos de exército para conter nossos selvagens, se abandonarmos essa questão ao seu natural desenvolvimento. Em janeiro deste ano ainda os jornais deram notícia dos estragos que eles fizeram na República Argentina, estragos que montaram, alem da perda de vidas, a mais de mil e quatrocentos contos de nossa moeda! […] Estes prejuízos, as despesas que serão necessárias com movimento de forças, as perturbações sociais que provirão de conflitos sanguinolentos no interior, mostram que quaisquer despesas que fizermos agora para assimilar os selvagens na nossa sociedade serão incomparavelmente menores do que as que teremos de fazer se, por não prestarmos atenção ao assunto, formos forçados a exterminá-los. (MAGALHÃES, 1876, p. 18- 20, grifos nossos). Prossegue Couto Magalhães com sua visão claramente utilitarista, Portanto, nem pelo número nem pela posição, os perigos a que as popula- ções cristãs ficarão expostas, desde que os selvagens se virem mais aper- tados, não são inferiores, pelo contrário são maiores do que aqueles a que atualmente está exposta a República Argentina; e se ali ainda este ano os selvagens, que são dez vezes menos numerosos do que os nossos, pude- ram destruir, em uma só incursão, valores equivalentes a mil quatrocentos e muitos contos, que esforços não devemos nós empregar para fugirmos de idêntica situação, com selvagens mais numerosos e com um país de muito mais difícil comunicação, sobretudo quando este selvagem nos pode ser tão útil?(MAGALHÃES, 1876, p. 22, grifos nossos).

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Neste sentido caminha igualmente o pensamento rondoniano conforme po- demos constatar pela leitura dos Relatórios do Ministério de Agricultura Indústria e Comércio de 1913 e 1917: Não resta dúvida de que o governo, do mesmo passo que protege, ampara e salva o índio brasileiro, promove e assegura os meios indispensáveis à conquista de grande parte do interior do país, até então vedado tanto aos nacionais como aos estrangeiros. Era, aliás, esta, uma iniludível obrigação de nossa política administrativa,que precisava por termo à falta de segurança oferecida aos visitantes de nossas matas e sertões, que até agora viam nas populações selvagens do Brasil inimigos muito mais temerosos do que as suas feras. (BRASIL, 1913 apud LIMA, 1995). O Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (tendo- lhe sido acrescida esta última parte, ao momento da criação, em razão do engrenamento do problema indígena com o do trabalhador ser- tanejo, pela seriação do selvagem, do pacificado e do caboclo já fundido na população) nasceu, como V.Exa. sabe, do êxito dos processos praticados pelo então Tenente-Coronel Cândido Rondon, para pacificação das tribos selvícolas encontradas em seu caminho, ao fazer a travessia do Brasil central estendendo a linha telegráfica de Mato Grosso ao Amazonas, processos já empregados pelo saudoso naturalista Dr. João Barbosa Rodrigues na pacificação dos Crichanás, em 1874; e da demonstração de que se poderia conseguir com os mesmos efeitos ein todas as regiões do Brasil onde ainda se encontrassem, como infelizmente se encontram, indígenas selvagens, isto é - brasileiros reduzidos a condição de brutos, inúteis a si e à coleti- vidade e, o que é mais, entravando, em mais de um ponto, o aproveita- mento da terra e das forças naturais, ele inclusive, e sendo exterminados barbaramente,como feras por pseudocivilizados sem consciência e sem alma, a quem o índio involuntariamente prejudicava na tranqüilidade e na cobiça... .(BRASIL, 1917, p. 1, grifos nossos). É possível afirmar, à luz dos documentos apresentados, que a Proteção dos índios não representava um fim, mas um meio para obtenção do efeito econômico desejado: a utilização da mão-de-obra indígena no processo de colonização do interior do Brasil. Em um cenário de carência de recursos tecnológicos para ex- ploração das áreas (como, por exemplo, a extração da erva mate e derrubada de matas para implantação de pastagens). A localização topográfica do SPI na estru- tura burocrática federal (vinculada ao Ministério da Agricultura, durante a maior parte do período de sua existência) não permite uma conclusão em outra direção. Como exposto por Couto Magalhães.

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Povoar o Brasil quer dizer: 1º) Importar colonos da Europa para cultivar as terras já desbravadas nos centros, ou próximos aos centros povoados. 2º) Aproveitar para a população nacional as terras ainda virgens, onde o selvagem é um obstáculo; estas terras representam quase dois terços do território do Império. Tornar produtiva uma população, hoje improdutiva, é, pelo menos, tão importante como trazer novos braços. 3º) Utilizar cerca de um milhão de selvagens que possuímos, os quais são os que melhores serviços podem prestar nessas duas terças partes do nosso território, porque as indústrias extrativas, únicas possíveis nessas regiões (enquanto não houver estradas), só têm sido e só podem ser exploradas pelo selvagem. (MAGALHÃES, 1876, p. 12, grifos nossos). No Brasil, esta opção foi claramente exposta na legislação, conforme pode- mos verificar pela leitura do Decreto-Lei n. 1.736/1939 que subordinou o SPI ao Ministério da Agricultura. O decreto traz mais luzes ao efetivo objetivo do “Grande Cerco de Paz” rondoniano: tornar os índios “úteis”, produtivos mediante o auxílio às populações civilizadas destes “[...] homens aclimados ao solo e habituados à vida semi-bárbara [...]” (BARBOSA, 1927 apud MONTEIRO, 2003). [...] que o problema da proteção aos índios se acha intimamente ligado à questão de colonização, pois se trata, no ponto de vista material, de orientar e interessar os indígenas no cultivo do solo, para que se tornem úteis ao país e possam colaborar com as populações civilizadas que se dedicam às atividades agrícolas. (BRASIL, 1939, grifos nossos). É importante ressaltar que na formação da sociedade brasileira, especial- mente na relação entre o Estado e os povos indígenas, o colonialismo clássico teve termo em 1822, no entanto, a independência aqui realizada não teve caráter nacional. Principalmente os indígenas, continuaram sendo tratados como não participantes da nova nação que se pretendia construir. Aníbal Quijano postula que os Estados-nacionais constituídos nos processos de independência no continente americano só chegaram a essa condição porque democratizaram, ainda que minimamente, o poder ou eliminaram fisicamente os diferentes. Pois, só há condições de se pensar a nacionalidade se houver certo grau de homogeneização de interesses. Dentre outros casos, no Brasil essa homogenei- zação não foi alcança no século XIX, tampouco no Brasil contemporâneo. Temos, portanto, um Estado independente, mas uma sociedade colonial. (QUIJANO, 2005).

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Com isso apesar do término do colonialismo formal, persistem ideias e práticas colonialistas levadas a cabo pelas elites políticas e econômicas do país, muitas vezes atendendo a interesses do capitalismo global. Essa continuidade de atitudes colonialistas pode ser chamada de colonialidade, ela segue como padrão de poder no Brasil. A colonialidade proporciona ambiente perfeito para o colonialismo interno, que opera nos campos político, econômico, social e cultural. Consiste na domi- nação e colonização de minorias por elites do próprio Estado em que o processo ocorre (CASANOVA, 2006). Este padrão de dominação pode ser observado na política indigenista brasileira desde o século XIX e a aplicação do governo indireto é um de seus elementos característicos.

4 INDIRECT RULE: O CASO DOS KAIOWÁ E GUARANI O processo de interferência na escolha de lideranças para as comunidades Kaiowá e Guarani de forma incipiente pode ser reportado ao final do século XIX, conforme pode ser deduzido do seguinte trecho da obra de Nimuendaju. Antigamente os Guarani não reconheciam outro lider que o paje-principal. Mas, quando passaram a se relacionar com as autoridades brasileiras, estas – ‘que jamais haviam levado em consideração os costumes e necessidades destes bugres’ - nomearam principais todos aqueles que prometiam usar essa autoridade da melhor forma possível em favor dos que os nomearam. Qualquer delegadozinho das localidades vizinhas julgava-se no direito de influir de maneira civilizada sobre os ‘bugres’, nomeando ou destituindo chefes. As coisas pioravam, no entanto, quando alguns do bando conseguiam fazer uma viagem ate o presidente do estado ou mesmo da federação.(...). Àqueles pretendentes, contudo, o Governo conferia uniforme e patente de capitão, presenteando-os generosamente; tampouco faltavam recomenda- cões de manter a autoridade conferida perante os companheiros de tribo. Pode-se imaginar as conseqüências: uma parte do bando se mantem fiel a seu lider tradicional e declara hostilidade aberta ao pretendente; uma outra submete-se a ele por medo ao Governo[...]. (NIMUENDAJU, [1914] 1987, p. 75) No início do século XX, após a criação do SPI, o processo de implantação da Indirect Rule nas comunidades Kaiowá e Guarani passou a ocorrer de forma burocratizada com a criação das reservas indígenas e consequente designação

48 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 39-60, maio/ago. 2019 Capitão: a aplicação da Indirect Rule nos Povos Kaiowá e Guarani do capitão pelos chefes de Postos Indígenas3. Ressalte-se que a instituição do capitão subverteu a lógica sociopolítica tradicional desses grupos, uma vez que a imposição da força e a escolha externa substituíram um poder tradicionalmente descentralizado. O poder das lideranças tradicionais se fundamentava em três elementos complementares: “[...] sua capacidade de falar, convencer e construir consensos internos (sua fala só tinha força enquanto manifestação deste consenso constru- ído), tamanho de sua família extensa (parentes) e sua generosidade” (BRAND, 2001, p. 71). Referindo-se ao período colonial, Susnik (1979-1980) aponta para a existência de lideranças tradicionais tanto no âmbito das famílias extensas as te’ýi, cujos líderes eram os tuvicha, quanto no tekoha4, em que os líderes tinham maior prestígio e influência, sendo chamados detuvicha ruvicha – equivalente a líder do tekoha. Percebe-se que as lideranças tradicionais eram reconhecidas fundamen- talmente por seus laços de parentesco e pela capacidade de construir consensos de forma pacífica, por isso a boa desenvoltura fala era e é tão importante. Pensando na configuração contemporânea, Alexandra Barbosa da Silva afirma que: [...] é importante se ressaltar que a unidade sociológica fundamental entre esses grupos é a família extensa (isto é, de pelo menos três gerações, enca- beçadas pelo tamõi e a jari, incluindo os filhos casados e seus cônjuges), cujo chefe é soberano nas decisões que concernem a este grupo. As decisões em escala comunitária (isto é, envolvendo mais de uma família) são definidas através de um consenso, alcançado em reuniões amplas (as aty guasu). Nestes termos, a bibliografia pertinente informa que tradicionalmente os líderes -po líticos mburuvicha( ) eram definidos em face da necessidade de se enfrentar uma situação específica – caso das incursões guerreiras, por exemplo; pas- sado este momento, desfazia-se a precisão de uma liderança. A autoridade a suscitar respeito perene concretizava-se (e se concretiza) na figura dos/das xamãs (respectivamente, ñanderu e ñandesy). (SILVA, 2007, p. 54).

3 Unidade descentralizada na estrutura organizacional do SPI, responsável pela relação direta com os indígenas residentes em Reservas Indígenas. 4 A definição do conceito detekoha é tema de caloroso debate no campo da etnologia e da história indígena (ver: CAVALCANTE, 2013. p. 75-84). Em síntese, consideramo-la como uma categoria que expressa um dos níveis da organização social kaiowá e guarani que engloba algumas famílias extensas unidas por forte aliança política e religiosa. Além disso, o termo é utilizado para se referir ao espaço territorial onde tais relações sociais se desenvolvem no plano histórico.

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Atualmente, a liderança tradicional também é denominada como “cacique”, conforme expõe o indígena Gonçalves, citado por Brand (2001, p. 71): “o cacique mesmo que mandava ali [...]. Naquela época não existia também esse chefe de posto, não existia o lugar, o lugar do capitão, era o cacique mesmo”. A criaço da figura do capitao nas reservas indigenas do atual Mato Grosso do Sul remonta aos primeiros anos de atividade do Servico de Proteço Indigena (SPI), orgao indigenista oficial na epoca, criado em 1910. No caso da Reserva de Caarapo, por exemplo, o primeiro capitao foi nomeado em 1920 (BRAND, 2001). O papel desse personagem esta potencialmente carregado de conflitos e ambivalencias, pois para se manter no poder ele tem de atender a pressoes e a demandas vindas simultaneamente de duas direções: dos seus parentes e da comunidade indigena de abrangencia da “sua administraço” e da administraço estatal, que exerce por meio dele o que vem a ser chamado na antropologia da politica de “governo indireto”. A substituição da liderança tradicional pela estrutura colonial era efetivada a partir da discricionariedade de escolha por parte do representante do SPI, sem qualquer respeito aos processos próprios de organização. Ponto interessante é que o processo de seleção não obedecia aos critérios antropológicos relatados por Malinowski com a consequente exacerbação dos conflitos internos e a se- guida erupção da violência, semelhante ao exposto por Barnes (1960). É o que podemos observar da seguinte transcrição ao responder a crítica apresentada pelo jornal “O Democrata”, periódico que circulava na cidade de Campo Grande sobre o processo de seleção do capitão: Em 22 de novembro de 1955. Ao Sr. Encarregado do P.I. Francisco Horta (…) Com referência ao artigo publicado no Jornal “O Democrata” esta chefia não tomou conhecimento por ser sem fundamento e descabido, por isso nada vos mandou dizer. A eleição entre os indios para escolherem seus chefes, é um caso rotineiro e da competência dos Agentes Encarregados dos Postos. Todavia observa- -se que tal medida, bem intencionada como é, traz alguns inconvenientes, que é de ensinar política entre os índios, e nesse Posto com o agravante da infiltração comunista, que só trará encomodo (sic) e aborrecimentos, no

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entanto, a autoridade do Posto é o Encarregado do mesmo, que agirá como julgar para resolver os problemas da sua administração, e só as autoridades do Serviço compete intervir e não correspondente de Jornal fazer censura, de atos relacionados com indios. Referente a chefia dos indios, si (sic) bem que os nossos Regimentos e Regulamentos não tratem dessa parte, porem, o que melhor resultado tem dado é o Encarregado do Posto que deverá observar qual o indio mais respeitado ou respeitável dentre os demais, e designar para chefe dos mesmos, e manda ele escolher seus auxiliares: um para substituto e mais uns 2 ou 3 que feito assim comunica a Chefia e esta expedirá Portarias dessas designações, ficando, assim organizada a Policia Indigena do Posto, a quem fica a cargo resolver os casos entre os indios. (BRASIL, 1955, grifos nossos). É importante destacar que desde muito cedo, período em que as reservas indígenas ainda não enfrentavam a superpopulação observada no século XXI, os processos de escolha e aceitação de capitães já eram conflituosos. O antropólogo Eduardo Galvão (1996) relata em seu caderno de campo uma situação ocorrida em novembro de 1943, na Reserva Indígena Taqueperi, que então tinha uma população de 175 pessoas. Galvão trouxe a lume o caso ocorrido em um sábado no qual os indígenas e o chefe do Posto foram até a cidade para comprar alguns gêneros, dentre eles aguardente. Na divisão dos itens comprados surgiu uma grande confusão, pois, segundo o relato, o capitão “[...] encarregado de fazer a distribuição, tanto do sal e sabão, como da pinga, guardou a maior parte para si. Disto, ao que parece, resultou a briga [...]” (GALVÃO, 1996, p. 210). A briga foi violenta, resultando inclusive em feridos. Parte dos indígenas não aceitava mais Cândido como capitão e diante da crise e até mesmo para se preservar este se retirou da reserva. Quando os fatos ocorreram o chefe do Posto não estava na reserva, coube aos antropólogos presentes, dentre eles Galvão, in- dicar um substituto temporário para o capitão. Porém, com a chegada de Dayen, o chefe do Posto, o nome indicado por rejeitado. Dayen chegou hoje. Sua chegada deveria resolver a questão da indicação do capitão. Dayen não aceitou Venâncio, por nós indicado, provisoriamente, no cargo. Dayen o considera demasiado “safado” e “turbulento” para o cargo. Acredita que Aparício, Justino, Risquim e Venâncio estão no mesmo nível. Para ele, Cândido seria melhor, porém fizemos por impor a nossa vontade. Cândido é realmente mal querido, partindo na preferência para capitão,

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por parte de Alberto, por alguma razão que ainda não descobrimos qual. A razão alegada tem sido sempre a de que “ele fez esse povo produzir – com Venâncio ou qualquer outro, ficariam eternamente a vagabundear e a passar os dias cantando à Ñandejara”. Cândido acabou com esse estado de coisas. Sua função não era, ao que nos parece, a de capitão, mas, sim, a de capataz. (GALVÃO, 1996, p. 211, grifos nossos). As considerações de Galvão apontam para o perfil esperado do capitão. Para o agente do SPI, o capitão deveria impor os padrões de organização do trabalho capitalista rural. Era alguém que devia estar disposto a obedecer às determina- ções do órgão indigenista, não ser “turbulento” diante das ordens do chefe de Posto. Esperava-se que os indígenas abandonassem suas práticas tradicionais e se dedicassem à produção agrícola de forma intensiva, deixando de lado aquilo que não era do mundo “civilizado” ou do mundo do “mercado”. O capitão devia exercer seu poder com base na coerção para impor o pro- jeto civilizatório do Estado. Todavia, existia um ponto limite nessa organização, pois para que tivesse êxito o capitão precisava manter um bom nível de aceita- ção dentro da comunidade. Cândido não conseguiu isso. Não conseguiu porque não dividiu os recursos a contento nem mesmo com seus parentes. Já em 1943, Galvão via problemas nessa forma de governo. “Nossa impressão tem sido a de que o capitão tem realmente alguma autoridade, principalmente no que se refere ao trabalho conjunto. É, no entanto, uma autoridade dada pelo SPI, parecendo que já se encontra mais estratificada aqui, que no norte” (GALVÃO, 1996, p. 210-1, grifos nossos). Mesmo na contemporaneidade, após a Constituição de 1988 que formal- mente derrubou o poder tutelar, as questões relacionadas à capitania seguem gerando contendas. Citamos, por exemplo, as disputas violentas ocorridas em nas Terras Indígenas Limão Verde (2005) e Porto Lindo (2006), casos analisados por Tonico Benites (2009). Este autor também tece considerações sobre dois temas relevantes associados à violência. O primeiro se refere à prática de atos de vio- lência pelo Capitão. (Corolário da necessária utilização da força para promoção da obediência) (BARNES, 1960). O segundo, corolário, deste é a utilização de “fofocas” para mediante agressões fictícias (ou mesmo reais) reclamar perante os órgãos estatais para a troca do capitão (com a provável assunção de grupo ligado ao denunciante).

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Ele pode também estabelecer uma aliança com políticos municipais, es- taduais e federais. Além disso, o capitão atualmente tem acesso direto ao organismo civil, militar e federal, contando com a força policial para manter a “ordem” nas aldeias. Assim ele se sobrepõe aos seus adversários políticos. Diante disto. as famílias não representadas pelo capitão, às vezes fazem manifestações e fofocas contra ele, pedem com freqüência por meio de documentos escritos a sua exoneração e reivindicam aos agentes indige- nistas novas eleições. As famílias adversárias fazem também manifestações em grupo contra os atos de violência e prisões comandadas pelos capitães. (BENITES, 2009, p. 90). Na linha traçada por Malinowski (1945, p. 147), a imposição da indirect rule visava promover uma “[...] uma liderança local devotada, dependente, controlada, mas poderosa, rica e satisfeita”. Ferreira (2007) analisando o caso da Terra Indígena Cachoeirinha, ocupada pelos Terena, aponta para as estruturas socioeconômicas de poder associadas à figura do capitão na contemporaneidade. Embora a pesquisa citada se refira aos Terena, é possível associar ao caso que estamos analisando, pois o padrão de atuação do SPI e de sua sucessora a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) se estendia por todo o país, em especial pelo sul do antigo Mato Grosso. A autoridade formal do Cacique pode ser classificada em três áreas de inci- dência: 1) as relações pessoais e familiares dentro da aldeia. Quer dizer, o poder do cacique é uma forma de controle sobre as atividades dos indi- víduos com relação especialmente ao uso de bebidas alcoólicas, fixação de residência (quando indígenas vêem de fora, de outra aldeia) e conduta “criminal” dos indivíduos, se eles cumprem ou não a lei; 2) as relações interétnicas, é uma forma de controle das relações entre os membros do grupo com indivíduos e grupos não indígenas ou outros grupos étnicos, implicando controle do acesso (entrada/saída) da área indígena e ao poder de representação formal do grupo perante as instituições e grupos sociais; 3) é uma forma de controle das relações econômicas e bens “coletivos” do grupo, que dizem respeito ao controle exercido pelo Cacique sobre os contratos de trabalho assinados pelos índios com empresas, atualmente, com as Usinas de Cana de Açúcar, sobre os veículos (trator, caminhonetes, caminhões) que porventura existam, e também os armazéns e recursos e implementos agrícolas que o grupo receba, seja do Governo Federal, seja do Governo Estadual ou Municipal, ou ainda, por meio de projetos de organizações não governamentais. (FERREIRA, 2007, p. 268, grifos nossos). Tonico Benites (2009) apresenta elementos da mesma natureza ao expor a importância do controle de recursos associados ao exercício da capitania. O

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 39-60, maio/ago. 2019 53 Marco Antonio Delfino de ALMEIDA., Thiago Leandro Vieira CAVALCANTE capitão não tem apenas poder político e de coerção, mas também poder econô- mico associado, pois em grande parte dos momentos gerencia recursos externos destinados à comunidade. Cabe salientar que o reconhecimento do capitão pelos órgãos públicos é, no entendimento das famílias Kaiowá, um cargo que oferece muitas vantagens advindas de diversas fontes. Como o recebimento de taxa comunitária da usina de álcool (ao liberar os homens para trabalho). O capitão igualmente tem mais poder para indicar integrantes de sua família para cargos assala- riados – professor, agente de saúde. (BENITES, 2009, p. 93-4). Há pouco tempo a FUNAI deixou, ao menos oficialmente, de interferir na escolha de capitães. O telex n. 94, de 9 outubro de 1990 orientou os ser- vidores da fundação a pararem de interferir na não mais interferir na escolha de capitães (BRAND, 2004, p. 233). Ainda mais recente, data de 15 de maio de 2008 a Portaria n. 491 do presidente da FUNAI, ela versa principalmente so- bre segurança pública em terras indígenas. Tal portaria pode ser considerada como a proibição definitiva da interferência da FUNAI na escolha dos capitães (CAVALCANTE, 2013, p. 149). Segundo ela: Art. 1º A AER Cone Sul deve dar publicidade ao fato de que a liderança indígena denominada “Capitão” goza da mesma autoridade que outras lide- ranças, sendo que todas as lideranças gozam da mesma legitimidade junto às comunidades. Esse relevante detalhe deve ser enfatizado, não apenas aos agentes de segurança, mas também a todo e qualquer agente público e privado que atue em terras indígenas.

Parágrafo único. Deve-se dar publicidade ao fato de que a FUNAI não emite qualquer documento reconhecendo lideranças ou capitães. As antigas carteirinhas plastificadas denominadas de “Portaria de Capitão” não gozam de efeito legal. (BRASIL, 2008, grifos nossos). O acesso aos recursos e a consequente deslocação dos interesses na nomea- ção dos capitães dos chefes de Posto para as lideranças políticas locais (municipais e estaduais, em face do número de eleitores) acarreta a perpetuação da presença colonial e da consequente intervenção do órgão indigenista. Isso se confirma quando se observa o chamamento, ou a quase imposição pelos indígenas, de mediação pela FUNAI no processo de escolha do capitão.

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Os resquícios do papel que o órgão indigenista oficial exerceu como defini- dor de lideranças têm sido constantemente observados em minha prática indigenista. Desde que ingressei no órgão indigenista, frequentemente participo de mediações de conflitos entre lideranças indígenas. Nessas oca- siões, percebo que as lideranças esperam que atuemos como uma espécie de juiz, que digamos quem está certo e, portanto, quem tem legitimidade para exercer a liderança em determinada aldeia. Quando lhes digo que a FUNAI não exerce mais o papel de definidor de lideranças e que estamos ali apenas para acompanhar o processo interno de negociações, são notáveis as reações de descontentamento. São frequentes, inclusive, as exclamações do tipo “hoje o doutor tem que resolver isso, se não ninguém sai daqui”. (CAVALCANTE, 2013, p. 150). Percebe-se que o modelo de governo indireto imposto pelo SPI, apesar da superação formal do poder tutelar, permanece vigente na visão de muitos agen- tes públicos e, em boa medida, dos próprios indígenas. A Constituição de 1988 formalmente eliminou o paradigma assimilacionista como condutor da política indígenas nacional, mas a mudança constitucional não implicou em imediatas mu- danças práticas. As transformações nas relações entre o Estado e povos indígenas se darão lentamente por meio de um processo de reconstrução de autonomias que nem sempre é bem acolhido por todos os agentes envolvidos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O órgão indigenista estatal, com a visão homogeneizadora do “índio gené- rico” estabeleceu uma estrutura hierarquizada com critérios externos de escolha de lideranças a povos que se organizavam de forma diversa, como no caso dos Ava-Guarani e Ava-Kaiowá. Como exposto por Brand, os Ava-Guarani e Ava-Kaiowá foram duplamente prejudicados “[...] Na transferência para dentro das reservas, não se trata apenas de aceitar lideranças mais jovens, eleitas a partir de novos parâmetros de legitimidade, mas de aceitar a liderança de alguém que, em mui- tos casos, nem sequer integrava a sua aldeia. [...]” (BRAND, 1993, p. 72). Oliveira (1986, p. 376) agrega que “[...] a administração ignora as concepções nativas sobre o poder e autoridade, imaginando o cargo de capitão com um último patamar da hierarquia colonial, desempenhando assim um papel determinante na escolha [...]”. O processo externo de escolha, fundamentada no índio genérico, não resis- tiu às diferenças entre os povos indígenas. O documento do SPI, citado a seguir,

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 39-60, maio/ago. 2019 55 Marco Antonio Delfino de ALMEIDA., Thiago Leandro Vieira CAVALCANTE relata a utilização da Polícia Indígena do Posto Indígena, composta por indígenas Kaiowá para efetuação da prisão de um Terena. O chefe de posto relata que “[...] estes são Caiuás, e eles Terena, existindo uma certa rivalidade entre as raças […] mandei uma escolta composta de três homens [...] este levava uma cara- bina”. Houve resistência e agressões verbais denotativas da tensão inter-étnica “[...] este já sabia de facão em punho dizendo que não se entregava para esses índios sujos e que ele iria mostrar como ele era homem [...]”. Como resultado a polícia disparou na perna do “infrator” “[...] um segundo tiro, que atingiu na perna direita, quebrando na altura da cocha (sic)” (BRASIL, 1949, grifos nossos). O indirect rule imposto pelo SPI aos indígenas modificou as formas de orga- nização social vivenciadas em um novo ambiente de territorialização, a reserva. Antes do reservamento, os Kaiowá e os Guarani se organizavam em grupos fami- liares ou estavam unidos por laços políticos sólidos. Eram liderados pelos chefes de famílias extensas (tuvicha ou tamõi) e de tekoha (tuvicha ruvicha). Tal liderança era em geral um avô respeitado pela parentela. Ele era, sobretudo, um construtor de consensos, um aconselhador e um distribuidor de dons. A capitania impõe a figura do líder coercitivo, figura associada ao Estado para a imposição do projeto “civilizacional”, cria-se uma forte concorrência com relação aos líderes tradicio- nais, especialmente devido ao poder econômico e coercitivo atribuído ao capitão. Malgrado a intervenção tutelar no processo de seleção do capitão, de certa forma houve a apropriação, especialmente na Reserva Indígena de Dourados, da sua figura enquanto modelo de liderança. Desconsiderar que houve a sua ressig- nificação pela comunidade indígena é tornar a replicar argumentos eurocêntricos que negam esta capacidade a culturas consideradas “inferiores”. Obviamente, o histórico de acesso a recursos econômicos (privados e públicos) e humanos desempenha relevante peso nesta equação. O desfazimento dos efeitos da ins- tituição da liderança local devotada, dependente, controlada mas poderosa, rica e satisfeita não é tão simples, especialmente porque novos atores rivalizam pelo acesso privilegiado aos capitães: missionários, ONG´s, prefeitos, vereadores, deputados, lideranças rurais, empresários, especialmente de ramos de utilização intensiva de mão de obra como, por exemplo, frigoríficos. Não é possível esta- belecer acriticamente a clivagem entre “tradicional” e “colonizado”. A negação da possibilidade da mudança e, especialmente, da legitimidade expõe mais uma assunção eurocêntrica, na direção errada. Ou como exposto por Fabian, negamos

56 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 39-60, maio/ago. 2019 Capitão: a aplicação da Indirect Rule nos Povos Kaiowá e Guarani a pertença ao mesmo tempo ao “nativo”, ao “selvagem”.Temos a “[...] persistent and systematic tendency to place the referent(s) of anthropology in a Time other than the present of the producer of anthropological discourse[...]”5 (FABIAN, 2002, p. 31). Como corolário desta afirmação, eventuais novas intervenções destinadas a empoderar as lideranças das famílias extensas em desapreço ao capitão, escolhido pela comunidade, correm o risco de reproduzir os mesmos resultados nefastos das interferências coloniais que tentam, supostamente, corrigir.

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5 “[…] uma persistente e sistemática tendência de colocar os integrantes da cultura estudada em um tempo diferente que o presente do responsável pelo discurso antropológico[…]” Tradução nossa.

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Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 39-60, maio/ago. 2019 59 Marco Antonio Delfino de ALMEIDA., Thiago Leandro Vieira CAVALCANTE

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Sobre os autores: Marco Antonio Delfino de Almeida – Doutorando em História e mestre em Antropologia pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Graduado em Direito pelo Centro Universitário Anhanguera de Campo Grande (UNAES). Procurador da República do Ministério Público Federal (MPF) de Dourados, MS. E-mail: [email protected] Thiago Leandro Vieira Cavalcante – Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP/Assis). Mestre em História pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Graduado em História pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados. Atualmente desenvolve estágio de pós-doutorado na Universidade Estadual de Maringá. E-mail: [email protected]

Recebido em 13 de agosto de 2018 Aprovado para publicação em 22 de novembro de 2018

60 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 39-60, maio/ago. 2019 Povos indígenas, saúde e ditadura Indigenous peoples, health and dictatorship

Jane Felipe Beltrão1

DOI:http://dx.doi.org/10.20435/tellus.v19i39.564

Resumo: Tomar a saúde como referência e analisar a História dos Povos Indígenas tendo por fonte os registros do Relatório Figueiredo é objetivo do artigo. Sabe-se que Jader de Figueiredo Correia não se preocupou com o tema saúde, entretanto os registros sobre as atrocidades cometidas, pelos funcionários do SPI, permitem verificar a precária assistência prestada, pela agência tutelar, às pessoas indígenas no período ditatorial, vivido no Brasil, na segunda metade do século XX. Mostrar a prática do genocídio praticado pela política indigenista que imbuída de “mentalidade empresarial” liberou às terras indígenas e produziu a dizimação de inúmeras etnias. Palavras-chave: povos indígenas; saúde; ditadura; política indigenista. Abstract: Taking health as a reference and analyzing the History of Indigenous Peoples from the records of the Figueiredo Report is the objective of the article. It is known that Jader de Figueiredo Correia did not care about the health issue, however the records on the atrocities committed by the SPI officials, allow to verify the precarious assistance provided by the tutelary agency to the indigenous people in the dictatorial period, lived in Brazil, in the second half of the 20th century. Show the practice of genocide practiced by the indigenist policy that imbued with “business mentality” liberated indigenous lands and produced the decimation of countless ethnic groups. Keywords: indigenous peoples; health; dictatorship; indigenist policy.

1 DO ANÚNCIO Durante quase meio século as atrocidades ocorridas em tempos ditatoriais ficaram “desaparecidas” entre as linhas doRelatório Figueiredo (RF) “­abandonado”, entre muitos outros documentos no Museu do Índio, no Rio de Janeiro. Os/as estudiosos/as sabiam da existência do documento, mas não conheciam o teor das investigações levadas a efeito, pela Comissão de Inquérito, presidida pelo

1 Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, Pará, Brasil.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 61-69, maio/ago. 2019 Jane Felipe BELTRÃO procurador Jáder de Figueiredo Correia, porque supostamente o documento teria ardido em incêndio ocorrido no Ministério da Agricultura. O Relatório Figueiredo é um conjunto documental, constituído por 30 vo- lumes, que é, talvez, o registro mais importante para pensar a relação do Estado brasileiro com os povos indígenas, especialmente, quando se toma etnicidade como política, a qual permite ver o genocídio, inscrito nas amareladas folhas do processo, apontando a opção do Estado brasileiro. Foi encontrado, em 2012, pelo pesquisador Marcelo Zelic, vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, que colocou ao alcance de estudiosos/as a partir doArmazém da Memória. Hoje, a documentação encontra-se no site do Museu do Índio e em outros locais da web interessados em conhecer a História. O documento revela para os brasileiros as faces do indigenismo ou da política indigenismo, e altera radicalmente a História Indígena, pois se antes da “descoberta”, os crimes cometidos contra os povos indígenas, não passavam de suspeita, agora, não faltam argumentos para indicar a crueldade das ocorrências, as quais abalam pessoas indígenas de diversas etnias, apenas pela leitura. Vi choro Palikur, Kadiuweu, Xakriabá e Tembé. Como informa Adonias Guiome Ioiô: [...] quando li esse material pela primeira vez, em casa, como discente indí- gena do mestrado, para discutir em sala de aula foi completamente difícil e doloroso. Na verdade, já ouvia esse tipo de relato, “mas, não desse jeito”. Então, durante a aula para a discussão e debate sobre esse texto, fiquei totalmente mudo, sem jeito, em silêncio, com raiva de sentir aquela dor enorme e profunda. (Depoimento em sala de aula, 2017). O foco do artigo são as relações que indicam os atentados à saúde, os quais comprometeram a saúde e a vida de pessoas e coletivos indígenas que, deslocados forçosamente, sucumbiram ou amargaram a distância do território original em função da prática estatal.

2 DOS REGISTROS Entre os registros encontrados no Relatório Figueiredo que, de alguma forma afetam a saúde dos povos indígenas, no período ditatorial, temos no Relatório Síntese (RS), produzido pelo procurador Jader de Figueiredo Correa, notas sobre o que ele qualifica como atrocidades de “[...] verdadeiros celerados, que lhes impu-

62 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 61-69, maio/ago. 2019 Povos indígenas, saúde e ditadura seram um regime de escravidão [aos/as indígenas] e lhes negaram um mínimo de vida compatível com a dignidade da pessoa humana” (Fls. 4912). O que permite ao procurador afirmar que, mesmo não tendo a veleidade de conhecer o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), “[o] pouco que me foi dado a ver é suficiente para causar espanto e horror” (Fls. 4911). São denunciados/as funcionários/as do SPI que, nos diversos postos de serviço da Instituição, costumeiramente praticavam os seguintes delitos:espanca - mentos de homens, mulheres e crianças indígenas; envenenamento de coletivos indígenas colocando estricnina – substância tóxica usada como pesticida contra roedores – ao açúcar; inoculação de vírus da varíola em indígenas em Itabuna na ; encarceramentos arbitrários, em prisões improvisadas, lembrando “[...] presídios de Luis XI, da França: uma escura caixa de madeira de cerca de 1,30 X 1,00, construída dentro de um imundo pavilhão de pocilga e estrebaria” (RF – Síntese: Fls. 4918); atendimento insatisfatório em enfermarias “[...] antro abjeto e sórdido, ocupado conjuntamente por cães, porcos e uma doente, no mesmo quarto infecto” (RF – Síntese: fls. 4918); incentivo à embriagues de indígenas, favorecendo o consumo de bebidas alcoólicas especialmente após maus tratos; escravidão de pessoas indígenas nos postos do SPI ou por intermédio de aluguel a terceiros; sonegação de medicamentos, mesmo quando estes existiam no posto; suplícios e torturas de diversas ordens, especialmente o “tronco”, descrito como: [...] o mais encontradiço de todos os castigos, imperando na 7a. Inspetoria. Consistia na trituração do tornozelo da vítima, colocando-o entre duas estacas enterradas juntas em ângulo agudo. As extremidades, ligadas por roldanas, eram aproximadas lenta e continuamente. (RF – Síntese: fls. 4913). Há, ainda, registros referentes a: agressões físicas que resultam em quebra de ossos das pessoas indígenas; tentativas de assassinatos por enforcamento e mesmo registros de execução de pessoas que não obedeciam “cegamente” os funcionários do SPI, crimes que podiam ser executados pelos/as próprios/ as servidores/as ou via contratação de matadores; chacinas desferidas contra coletivos indígenas; não tratamento de tuberculosos/as, além do banimento dos mesmos, colocando-se “[...] um chocalho e andar com uma lata [para não contaminar os demais indígenas, especialmente da sua família], proibindo que se prestasse qualquer assistência [a ele], inclusive alimentação [...]” (RF – Síntese: fls. 4957), o fato levou o cidadão a morrer em completa inanição. Acredita-se que a

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 61-69, maio/ago. 2019 63 Jane Felipe BELTRÃO lata referida no depoimento, tinha outra função: esmolar, entretanto pergunta- -se: onde ele perambularia para recolher óbolos? O documento diz apenas que o referido doente era Bororo e morava na aldeia. Muitas pessoas foram desterradas das terras de origem para territórios estranhos, em geral fazendas a título de castigo. Era a diáspora interna dos po- vos indígenas no Brasil, transplantados de um lugar a outro, pelo simples fato de serem indígenas. Fala-se de genocídio, não admitido, mas presente no território nacional, via a pesada mão do Estado. A diáspora indígena, como a africana era um verdadeiro tráfico humano e feito sob a batuta do Estado. No caso, das indígenas mulheres os servidores e, mesmo as servidoras, “[...] [m]andavam as parturientes para os roçados um dia após o parto, deixando as criancinhas em uma Mansarda imunda sem terem direito de alimentaram os próprios filhos [...]” (RF – Síntese: fls. 4937). Afora os crimes listados anteriormente, há no RF insistentes registros narran- do: maus tratos de diferentes ordens; pessoas com fome; subnutridas e passado por situações que podem ser caracterizadas como omissão de atendimento; e evasão de divisas produzidas pelos/as próprios/as indígenas e desviadas para outros fins.

3 DO CASO RELATIVO AO SERVIDOR FLÁVIO DE ABREU Fundamenta-se o caso em destaque, a partir do termo de inquirição de Juracy Cavalcante Ferreira, qualificada como brasileira, de prendas domésticas, esposa de José Baptista Ferreira Filho, ex-chefe da a6 Inspetoria localizada no Mato Grosso; e do depoimento de Adalgiza de Tal que, sem sobrenome, é qualificada como índia Bororo, nascida e criada na aldeia. Ambos os termos referem-se às denúncias recebidas pela Comissão a respeito do servidor Flávio de Abreu, do Posto Indígena “Couto de Magalhães”. O destaque conferido deve-se às atroci- dades relatadas. João Baptista Ferreira Filho, em face do inquérito, entregou ao procurador Jader de Figueiredo diversos relatórios referentes ao período em que esteve à frente da 6a Inspetoria, os documentos apontavam “[...] quadro chocante entre os Bororo de Mato Grosso.” Cerca de 30 índios/as foram “[...] entregues por

64 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 61-69, maio/ago. 2019 Povos indígenas, saúde e ditadura funcionários do SPI, não só a famílias de ‘civilizados’, mas também a prostíbulos” (VALENTE, 2017, p. 39). É Ferreira Filho que, em 1964, informa que estava “arrecadando” [tentando recolher] pessoas indígenas que se encontravam em casa de particulares. Disse o servidor que encontrou uma índia Kajaby na casa de um desembargador do Tribunal de Justiça2. A continuidade da leitura da massa documental, permite afir- mar que os casos se avolumavam, não se restringem ao Mato Grosso, avolumam-se por outros estados da Federação. Diz o denunciante que as pessoas – crianças, jovens e adultos – eram levadas (doadas, sequestradas, desterradas) – sem que se considerasse “os sentimentos humanos dessas criaturas”, algumas delas “a título de castigo” (VALENTE, 2017, p. 39). Muitas das pessoas eram retidas nas fazendas da região, alugadas que eram pelos/as servidores/as do SPI ou mesmo mantidas como propriedade de funcionários que se dedicaram a “roubar as terras indígenas” e apropriar-se das pessoas como se escravos fossem. Aquelas pessoas ou coletivos indígenas que ousavam rebelar-se, por conta das atrocidades, eram punidas com severos espancamentos, muitas vezes aplica- dos pelos parentes próximos, práticas que se incluíam no rol das atrocidades de Flávio de Abreu. Caso o parente se recusasse, era também castigado, espancado ou supliciado (torturado). É o caso de Salú que se negou a espancar a própria mãe (RF vol. VIII: fls. 1682). Entretanto o teatro de horrores não se encerra com as atrocidades citadas anteriormente. O que mais causa espécie nas práticas de Flávio de Abreu são as práticas de misoginia e abuso sexual de indígenas crianças, jovens e/ou adultas. “[...] as índias Adalgiza e Alice, de seis e sete anos de idade eram tidas como es- cravas de Flávio de Abreu, trabalhando para o mesmo no campo e em casa; que a índia Adalgisa era proibida de ver sua mãe, sendo espancadas toda vez que a guria fugia para visitar a mãe” (RF vol. VIII: fls. 1680-1681).

2 A prática parece corroborar as suspeitas relativas à entrega de crianças pelas autoridades judiciarias no estado do Pará. Nos anos sessenta era comum ouvir que a menina ou o menino tinham sido “deixados pelo juiz com tal ou qual família, para estudar, saídas ou aprisionadas em bordeis”. Muitas crianças trabalhavam como empregadas/os domésticas/os, sem que ninguém se importasse procurar-lhes os pais.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 61-69, maio/ago. 2019 65 Jane Felipe BELTRÃO

O caso da índia Rosa (etnia Bororo) é narrado no termo de inquirição de Juracy Ferreira informando que a menina (11 anos) foi recebida por Seabra, como pagamento pela confecção de um fogão de barro na fazenda Santa Terezinha de propriedade de Flávio de Abreu. A menina foi escolhida entre as estudantes que frequentavam a escola de Dona Violeta . Flávio e Seabra entraram na escola e mandaram que as meninas ficassem de pé e imediatamente Seabra es- colheu Rosa que lhe foi entregue imediatamente. Quando o pai de Rosa reclamou do acontecido, Abreu “[...] mandou surrar o reclamante [...] a surra foi aplicada pelos índios Otaviano Aiepa e Cojiba. Rosa só foi devolvida quando os trabalhos de Seabra foram concluídos (RF vol. VIII: fls. 1681). Mais adiante, a inquirida revela que Flávio de Abreu criou um Serviço Médico que facilitava sua vida de “abusador”, o serviço “[...] era destinado ao exame das índias de idade jovem”, exames que eram realizados à noite. Quando interroga- do sobre o serviço Abreu esclarecia que os exames constatavam a existência de moléstias venéreas (RF vol. VIII: fls. 1680). Não bastassem as denúncias examinadas acima, as informações referentes ao abastecimento do “Couto de Magalhães” era precário, pois o administrador, rompeu a cadeia da organização social bororo no que diz respeito as redes de parentesco e obtenção alimentos tradicional entre os indígenas. As consequências foram imediatas, o que se produzia não permanecia no posto, assim sendo aos indígenas restava alimentar-se com “[...] grãos de milho seco e mamão verde cor- tado em pedaços [...]” e mesmo assim a precária comida era distribuída ao talante do administrador, pois tudo que era produzido pelos indígenas, inclusive grandes quantidades de farinha de mandioca, era vendido e, os produtores não auferiam renda alguma, tudo era embolsado pelo administrador (RF vol. VIII: fls. 1681). É, também, Juracy Ferreira que nos informa com espanto que ao chegar em “Couto de Magalhães” constatou a inexistência de crianças indígenas, poste- riormente tomou conhecimento que Abreu “[m]andava as parturientes para os roçados um dia após o parto, deixando as criancinhas em uma Mansarda imunda sem terem direito de alimentaram os próprios filhos” (RF vol. VIII: fls. 4937). O administrador obrigava as mulheres indígenas ao “[...] cumprimento de tarefas rurais impossibilitando as mesmas de cuidarem de seus filhos [...]” caso alguma das “[...] índias concluía a tarefa mais rapidamente para dêste modo prestar

66 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 61-69, maio/ago. 2019 Povos indígenas, saúde e ditadura

­assistencia ao seu filho, no dia seguinte o Sr. Flávio de Abreu aumentava suas ta- refas [...], enquanto duravam as tarefas das mães, os recém nascidos ficavam na casa da índia Maria Rosa, amázia de Flávio de Abreu [...] [sic]” (RF v. VIII: fls. 1680). Sabe-se que nenhum dos 130 postos indígenas, distribuídos em 18 unidades da Federação, jamais tive em suas equipes enfermeiras/os ou médicos/as, portanto o clima de terror imposto no período ditatorial era suficiente para negar apoio àqueles que como tutelados/as deveriam ter os direitos preservados.

4 DO CONTINUIDADE DAS AÇÕES POLÍTICAS Apesar de todas as atrocidades citadas, elas não ficaram encerradas, no passado próximo, como desejavam os homens de Estado. Convém lembrar as observações do Coronel Jarbas Gonçalves Passarinho, ao ser interrogado por jornalistas, sobre a prática de genocídio, respondeu “[é] verdade que existe esse problema, criado pela nossa própria imprensa, mas são coisas já ultrapassadas no tempo” (VALENTE, 2017, p. 46). Se à época da declaração, em 1968, do líder arenista, que serviu aos go- vernos militares, tentava encobrir a verdade, hoje temos a comprovação de que a mão pesada do Estado, ainda, responde presente e as atrocidades continuam a ser praticadas. Trago à superfície o “tronco” tortura que “[...] era, todavia, o mais encon- tradiço de todos os castigos, imperando na 7a Inspetoria. Consistia na trituração do tornozelo da vítima, colocado entre duas estacas enterradas juntas em ângulo agudo. As extremidades, ligadas por roldanas, eram aproximadas lenta e conti- nuamente” (RF Síntese fls. 4913). A prática aparece no RF como prática persecutória contra os povos indí- genas, com registros nos postos de Ivaí, Nonoai e Guarita (RF Síntese, fls. 4911, 4926, 4937, 4943, 4952, 4965, 4965 e 4970). Em alguns postos, como Nonoai, além do suplício no “tronco” que triturava os tornozelos, quebravam o fêmur das vítimas caso de João Crespo. O suplício podia ser acompanhado pela aplicação da palmatória e também pela raspagem da cabeleira dos/as indígenas, afetando nesse caso a identidade étnica, pois os/as vitimados/as podiam ter, no corte de cabelo, um dos sinais da marca étnica.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 61-69, maio/ago. 2019 67 Jane Felipe BELTRÃO

Ao falar sobre o assunto, em sala de aula, no Mato Grosso do Sul, analisan- do os casos acima, provoquei lágrimas em lideranças e Terena. E ouvi o depoimento de discente que trabalha em área Guarani: “[...] não precisa ir longe, acontece aqui professora. Os policiais quando promovem a invasão de terras indí- genas, por qualquer motivo, quebram os joelhos dos indígenas com coronhadas de revolver” (Depoimento em sala de aula, 2016). Continuando, a inoculação hoje não é feita com o vírus da varíola. Nas re- tomadas Guarani, em Mato Grosso do Sul, se asperge em grandes quantidades pesticidas sobre os acampamentos, tal como se faz na lavoura, o avião passa muitas vezes sobre a cabeça das pessoas do coletivo indígena instalado no local, talvez, para ter certeza que atingiu o alvo humano de forma intensa. O esbulho da terra, no momento, pode ser tomado como a implementação de grandes empreendimentos, que voltam a “desterrar” em deslocamentos força- dos povos inteiros, na medida em que, sem consulta prévia e ignorando os efeitos sociais da proposta, se instala devastando os espaços de convivência cotidiana. Manifesta-se também de forma pronunciada, quando o Estado procrastina as demarcações dos territórios indígenas, quando se nega a implantar escolas indígenas, ou a atender os povos indígenas que morando na cidade procuram atendimento em saúde. Em tempos de golpe, no passado e no presente, o SPI ou a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), como “braços” do Estado, teve seus dirigentes escolhidos, pelo agrado que faziam e fazem aos chefes políticos, sem que a pergunta essencial se faça ouvir: o que se sabe sobre povos indígenas, o que se faz para tratá-los com equidade? Em última análise a política indigenista, no passado e no presente, foi/é racista; discriminava/discrimina; e, matava e continua a matar, além de atender os interesses da burguesia que se inspira em parâmetros brancos. É urgente, ouvir e agir, segundo a Política Indígena, determinada pelos movimentos indígenas, eles sabem o que os atormenta e a nós resta ser aliados/as solidários/as, pois nada parece ter mudado.

68 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 61-69, maio/ago. 2019 Povos indígenas, saúde e ditadura

REFERÊNCIAS RELATÓRIO FIGUEIREDO: documento na íntegra. Boletim Combate Racismo Ambiental, 2013. “Síntese”. Disponível em: http://racismoambiental.net.br/2013/06/02/relatorio- figueiredo-documento-naintegra-7-mil-paginas-pdf-pode-agora-ser-baixado/. Acesso em: 1º jul. 2017.

VALENTE, Rubens. Os fuzis e as flechas. A história de sangue e resistência indígenas na ditadura. São Paulo: Companhia de Letras, 2017.

Sobre a autora: Jane Felipe Beltrão – Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB). Docente titular exercendo atividades junto a Universidade Federal do Pará (UFPA) e lotada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas com atuação no Programas de Pós-Graduação em Antropologia e no Programa de Pós-Graduação em Direito. Bolsista Pq 1C/CNPq. E-mail: [email protected]

Recebido em 30 de julho de 2018 Aprovado para publicação em 14 de novembro de 2018

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Movimentos indígenas latino-americanos da segunda metade do século XX: reflexões comparativas sobre processos decoloniais no Brasil e na Colômbia1 Latin american indigenous movements of the second half of the twentieth century: comparative reflections on decolonial processes in Brazil and Colombia

Fernando Roque Fernandes2 Mauricio Alejandro Diaz Uribe3

DOI:http://dx.doi.org/10.20435/tellus.v19i39.539

Resumo: No contexto de crise política e econômica que se materializou em vários países da América Latina na segunda metade do século XX, os povos indígenas articularam estratégias particulares na luta por direitos sociais frente aos Estados Nacionalistas, a partir de um processo histórico de mobilizações e demandas étnicas de âmbito nacional e internacional. Os eixos centrais dessas articulações políticas estiveram (e ainda hoje estão) diretamente relacionados ao reconhecimento de suas diferenças frente aos processos de assimilação e integração empreendidos por esses Estados ao longo das relações de contato. Nas últimas décadas, tais processos se tornaram mais evidentes, passando a ser questionados por sujeitos e coletivos indígenas em um processo que denominamos de emergências políticas e sociais de sujeitos e coletivos indígenas na América Latina, os quais, informam os processos decoloniais. Nesse sentido, propomos uma análise histórica e política que se debruça sobre os movimentos indígenas ocorridos no Brasil e na Colômbia de

1 O presente artigo é fruto de duas comunicações apresentadas no XXIX Simpósio Nacional de História da ANPUH, ocorrido entre os dias 24 e 28 de julho de 2017, na Universidade de Brasília (UNB), no Distrito Federal, Brasil. Os autores consideraram oportuno desenvolvê-lo por percebe- rem a relevância das especificidades e correlações que informam articulações entre movimentos sociais indígenas ocorridos numa perspectiva geopolítica mais ampla que comporta a América Latina. Neste caso, apontam elementos para se pensar processos históricos característicos ocorridos no Brasil e na Colômbia a partir da segunda metade do século XX, os quais informam o protagonismo indígena decolonial de sujeitos e coletivos até então submetidos a relações de dominação social, política e econômica estatais. 2 Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Porto Velho, Rondônia, Brasil. 3 Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Goiabeiras, Vitória, Espírito Santo, Brasil.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio./ago. 2019 Fernando Roque FERNANDES, Mauricio Alejandro Diaz URIBE

modo a identificar, conhecer e debater sobre algumas de suas características singulares e correlacionais. A ênfase nos processos sócio-políticos que possibilitaram o reconhecimento constitucional dadiversidade e da diferença de povos nesses dois países se torna elemento importante, no âmbito das reformas econômicas e neoliberais, para refletirmos sobre a ampliação da participação política de grupos sociais considerados incapazes de protagonizar a luta pela reivindicação das demandas mais elementares de seus modos de vida. Nesse sentido, o objetivo do texto é apresentar elementos históricos que permitam a reflexão sobre fenômenos de emergências políticas e sociais de povos indígenas, desencadeadas no Brasil e na Colômbia a partir da segunda metade do século XX. Palavras-chave: movimentos indígenas contemporâneos; território; América Latina. Abstract: In the context of a political and economic crisis that has materialized in several Latin American countries in the second half of the twentieth century, indigenous peoples have articulated particular strategies in the struggle for social rights in the legislations and institutions of states considered as national in a historical process of mobilizations and ethnic demands in the national and international scope. The central axes of these political articulations were (and still are today) directly related to the recognition of their differences in the processes of assimilation and integration undertaken by these states. In the last decades, these processes have become more evident, being questioned by ethnic groups and individuals in a process that we call political and social emergencies of indigenous subjects and collectives in Latin America. In this sense, we propose a historical and political analysis that focuses on the indigenous movements in Colombia and Brazil in order to identify, know and debate about some of their singular and correlational characteristics. The emphasis on socio-political processes that made possible the constitutional recognition of the diversity and difference of peoples in these two countries becomes an important element in the scope of economic-neoliberal reforms by broadening the political participation of social groups considered incapable of carrying out their most elementary demands. Thus, the purpose of this text is to present historical elements that allow a reflection on phenomena of political and social emergencies of indigenous collectives which occurred in Colombia and Brazil from the second half of the twentieth century. Keywords: contemporary indigenous movements; territory; Latin America.

1 INTRODUÇÃO

Nelson Maldonado-Torres (2016, p. 88) observou que uma atitude decolo- nial “encontra suas raízes nos projetos insurgentes que resistem, questionam e

72 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 Movimentos indígenas latino-americanos da segunda metade do século XX: reflexões comparativas sobre processos decoloniais no Brasil e na Colômbia buscam mudar padrões coloniais do ser, do saber e do poder”4. Nesse sentido, a proposta deste texto é apresentar elementos que nos permitam refletir sobre como os movimentos indígenas ocorridos no Brasil e na Colômbia, a partir da segunda metade do século XX, além de apresentarem um paralelo, no que infor- ma os acontecimentos envolvendo as emergências políticas e sociais de povos indígenas latino-americanos, nos permitem verificar como atitudes de natureza decolonial, empreendidas pelos povos indígenas desses dois países, indicam o protagonismo característico dos movimentos indígenas contemporâneos. Iniciamos considerando que, dentre outros fenômenos de caráter político e social ocorridos na América no decorrer do século XX, os movimentos indí- genas podem ser caracterizados como estratégias de transformação social de grande complexidade para estes sujeitos e suas coletividades, assim como para as políticas sociais e econômicas desenvolvidas nos territórios geopolíticos mais amplos que os circunscrevem. No México, por exemplo, o Congresso Indigenista Interamericano, ocorrido nos anos 1940, concorreu para a evidenciação de um debate que parecia estar longe de se constituir como a chave para a assimilação definitiva dos índios americanos pela modernidade. No Brasil, o Decreto-Lei n. 5.540, de 2 de julho de 1943 que declarava a data de 19 de abril como o “Dia do Índio” (BRASIL, 1943), apesar de mascarar sutis interesses do Estado Novo varguista (1937-1945) frente às pressões internacionais, abria precedentes para a problematização da presença indígena na formação e defesa das fronteiras nacionais e, como consequência, para a ampliação dos investimentos em pro- jetos expansionistas como a “Marcha para o Oeste” (1937-1945)5 e a expedição

4 Uma excelente reflexão sobre a bibliografia que tem se desenvolvido sobre a questão decolonial na América Latina pode ser encontrada em Ballestrin (2013). Lacerda (2014) aponta questões importantes para se pensar as contribuições decoloniais dos movimentos indígenas na América Latina e a superação do mito “Estado-Nação”. 5 Conforme indicado por Garfield (2000, p. 16), nas palavras de Getúlio Vargas, idealizador da Marcha para o Oeste, “a Marcha incorporou o verdadeiro sentido da brasilidade, uma solução para os infortúnios da nação”. No entanto, para Thiago Leandro Vieira Cavalcante (2013, p. 158), empreendimentos como a criação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND – 1943), a qual investiu seus esforços no esbulho dos territórios habitados pelos Guarani e Kaiowá, especialmente na região sul do estado do Mato Grosso, hoje Mato Grosso do Sul, resultaram em tentativas de desterritorialização que, ainda hoje, se refletem nos problemas enfrentados por esses grupos étnicos. Ainda conforme Cavalcante (2013, p. 163) “a colonialidade do poder do Estado brasileiro excluía os indígenas da nacionalidade brasileira, a qual eles integrariam somente quando deixassem de ser indígenas”. Para Walter Guedes Silva (2016, p. 34) “para facilitar o controle e a exploração

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“Roncador-Xingu” (1943-1948)6, as quais, conforme indicado por Seth Garfield (2000, p. 15-16), constituíram partes de um projeto dirigido pelo governo para “ocupar e desenvolver” o interior do Brasil como objetivo de um projeto civili- zatório voltado, naquele período, para a região Centro-Oeste do país. Como resultado, polêmicas concernentes ao recrudescimento das políticas de integração compulsória das populações indígenas no Brasil, desencadeadas a partir dos anos 1970, no contexto do Regime Civil-Militar (1964-1985), concorre- ram para emergências políticas e sociais de povos indígenas até então submetidos a relações de tutela do Estado Nacional. Conforme indicado por Eduardo Viveiros de Castro (2006), mas não somente,7 a tentativa de integração compulsória de sujeitos e coletivos indígenas, diante de um processo de homogeneização defi- nitiva da sociedade brasileira concorreu para a evidenciação e reconhecimento jurídico da diversidade cultural existente no país. Dito de outro modo, a atrapalhada política empreendida, no contexto do Regime Civil-Militar, em direção à emancipação compulsória dos povos i­ndígenas,

do Sul do território Mato-Grossense, era necessário expropriar os índios de suas terras, o que se daria por meio da criação de Reservas Indígenas”, as quais se constituíram, sutilmente, em alternativas legais de expropriação dos índios de seus territórios. Para Eva Maria Luiz Ferreira e Mariana Silva Falcão (2013, p. 99) “o Estado objetivava prestar assistência e proteção aos índios, promovendo, ao mesmo tempo, a sua passagem de categoria de índios para agricultores não índios. Para isso, na visão do SPI, era fundamental a criação de reservas indígenas que permitis- sem liberar o restante da terra tradicionalmente ocupada pelos índios para as frentes agrícolas”. Por fim, conforme indicado pelo Pareceristas B deste artigo “Além disso, deve-se observar que o governo Vargas foi, para o bem e para o mal, um divisor de águas na história nacional, inclusive no que diz respeito à legislação indigenista, como verificado na Constituição de 1934, que trata das terras ocupadas por populações originárias e ainda hoje é usada no Judiciário para assegurar direitos territoriais de populações expulsas de seus territórios a partir de então”. Assim, conforme se pode observar, e mesmo aprofundar, a partir da bibliografia indicada, diante das investidas do Estado Novo varguista, os Guarani e Kaiowá, mas não somente, protagonizaram lutas que ainda hoje informar que, apesar dos desafios e ameaças a seus territórios, a luta pela terra se constitui como elemento central dos movimentos indígenas contemporâneos não apenas no Brasil, mas na América Latina, como se verá no caso da Colômbia. 6 Conforme aponta Maria Eduarda Capanema Guerra Galvão (2011), um dos principais objetivos da Expedição Roncador-Xingu era o de estabelecer vias de comunicação pelo interior do Brasil até o Estado do Amazonas, além de “povoar” e explorar as regiões do centro-oeste brasileiro. 7 Desde, pelo menos, os anos 1950, conhecidos antropólogos brasileiros, tais como: Roberto Cardoso de Oliveira, Roberto DaMatta, João Pacheco de Oliveira, Antônio Carlos de Souza Lima e outros nomes do Museu Nacional da UFRJ, têm se debruçado sobre a discussão, podendo se constituir como importantes referências nacionais sobre a questão indígena e a luta pela emancipação política e sociocultural em território brasileiro.

74 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 Movimentos indígenas latino-americanos da segunda metade do século XX: reflexões comparativas sobre processos decoloniais no Brasil e na Colômbia resultou na evidenciação desses sujeitos no cenário nacional brasileiro. Se a in- tenção era retirar da tutela do Estado a responsabilidade pela defesa dos direitos indígenas, o resultado das agitações jurídicas e sociais malogradas foi, justamente, uma reação de caráter social, epistemológico e político em direção ao Estado contradizendo suas ações no que dizia respeito ao lugar dos sujeitos indígenas na comunidade brasileira (FERNANDES; COELHO, 2018). Se considerarmos tais relações como parte de um processo histórico confli- tuoso e mesmo de um recente projeto social de caráter plurinacional, o qual infor- ma a luta política de diferentes grupos étnicos na busca pelo reconhecimento da diversidade e da diferença, tendo em vista questões que movem relações sociais, redes de solidariedade e conexões entre direitos humanos, jurídicos e políticos observaremos que, na relação entre Estado e políticas sociais voltadas para os povos indígenas, o contexto atual não é de ganho significativo ou de comemoração geral, mesmo apesar de alguns ganhos e aparentes vitórias alcançadas desde o texto constitucional de 1988, no Brasil8, e de 1991, na Colômbia.

8 Tais ganhos podem ser mais evidentes quando se analisa o caso brasileiro. Gersem José dos Santos Luciano - (2006, p. 145), nos informa que o Brasil entrou na era da escolarização indígena e que iniciamos o século XXI com uma legislação forte se considerarmos as diretrizes educacionais voltadas para a questão da diversidade e da diferença. O autor, também observa que há, hoje em dia, leis bastante favoráveis a essas iniciativas indígenas, mas, na prática, “apre- sentam enormes distâncias, conflitos e contradições a serem superados”. Lucia Fernanda Jófej Kaingáng (2006, p. 8) observou que “a consagração de princípios como o multiculturalismo e o pluralismo jurídico, pela Constituição de 1988, inaugura a era de interação horizontal entre os povos indígenas e a sociedade brasileira, agora norteada pelo reconhecimento dos indígenas como cidadãos brasileiros, em conformidade com o princípio da igualdade, mas sem prejuízo do reconhecimento à diversidade cultural dos povos autóctones estabelecidos pela Carta Magna”. Marcos Terena (1982, p, 12) ao refletir sobre a importância da presença de sujeitos indígenas no Ensino Superior observou que “uma das tendências do paternalismo ocidental na formação do Índio de ontem era determinar até mesmo sua formação e seus compromissos com a insti- tuição e com as comunidades. [...] o que era invisível por preconceito ou discriminação ao Índio Brasileiro, inclusive na formação educacional, faz nascer uma luz, um novo caminho que quer se somar na busca de novos ganhos como a ciência acadêmica ocidental, os recursos tecnológicos e os conceitos de formação acadêmica e científica”. Para Daniel (2012a, p. 116) os anos 1990, foram de ganhos significativos, inclusive no próprio movimento indígena brasileiro, pois, as lutas em defesa dos direitos indígenas possibilitaram um novo tipo de articulação que concorreu para uma nova conduta dentro do movimento, passando a aumentar a disposição para fazer acontecer as promessas que a constituição recém-aprovada fizera, “principalmente aquela que garantia que o governo iria demarcar todas as áreas indígenas num período de cinco anos, o que não aconteceria posteriormente”. Joênia Batista de Carvalho – Wapixana (apud Araújo, 2006, p. 86-92), ao refletir sobre a questão das terras indígenas, observou que “não restam dúvidas de que a Constituição de 1988 trouxe significativos avanços em termos de

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O caso da Colômbia, reconhecida como Estado social de direito pluriétnico e pluricultural, nos anos 1990, também pode ser tomado como elucidativo de processos de emergência política e social ocorridos na América Latina. Edwin Cruz (2010) observou que o caso da Colômbia se demarca dentro dos discursos do multiculturalismo, diferente de países como Bolívia e Equador, onde se disse- minou o conceito da plurinacionalidade ou Estado plurinacional. Para o autor, a diferença pode ter resultado do fato de a presença indígena ser muito maior no caso colombiano, resultando na possibilidade de criação de várias nacionalida- des indígenas. Por esta razão, o presente texto se debruça sobre as análises dos movimentos indígenas ocorridos no Brasil e na Colômbia por considerar, além da similaridade nas discussões sobre o multiculturalismo, outras relações sócio- -históricas comparativas, conforme se poderá perceber mais adiante. Na América, mas não somente, os países em formação implementaram diferentes projetos no trato com as populações indígenas e seus territórios tradi- cionais. Foi assim que, desde o início da colonização europeia na América, foram desenvolvidos modelos assimilacionista que buscavam integrar os indígenas à civilização, destituindo-os dos direitos de viverem suas diferenças. A partir de meados do século XIX, os objetivos que fundamentavam tais projetos passaram a se relacionar diretamente às tentativas de dissolução de identidades diferenciadas e a constituição de nações homogêneas. Estas ideologias não toleravam a exis- tência de modelos distintos de vida coletiva. Além de impor aooutro que vivesse em condições periféricas na estratificação social do modelo cultural dominante, tais projetos investiram na ideia de inserção através da integração de sujeitos e coletivos indígenas de forma subordinada no tecido das relações sociais regidas pelas leis do Estado9.

conquista de garantias e direitos fundamentais [...] Apesar de a Constituição Brasileira reconhe- cer expressamente os direitos territoriais imprescindíveis à sobrevivência física e cultural dos povos indígenas, o exercício desses direitos é bloqueado por diversos fatores que demonstram a ausência e ineficiência de políticas públicas na proteção e na promoção daqueles que são fundamentais”. 9 Alguns trabalhos podem auxiliar na análise dos projetos assimilacionistas, integracionistas e mesmo genocidas e etnocidas empreendidos pelo Estado desde os primeiros contatos com as populações indígenas no atual Estado brasileiro, podendo projetar reflexões que auxiliam na compreensão comparativa sobre como tais projetos foram desenvolvidos em regiões geopolíti- cas mais amplas que comportam o território brasileiro. Dentre eles, é possível mencionar: Luiz Felipe Baêta Neves (1976); Nádia Farage (1986); Stephen Grant Baines (1990); John Manuel

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Na contrapartida dos projetos nacionalistas, o fundamento da necessidade de um Estado e uma cultura nacional e homogênea foi questionado por outras perspectivas e projetos sociais que nem sempre estiveram próximos dos centros de tomadas de decisões políticas. A partir da segunda metade do século XX, em vários países da América Latina. A diversidade étnica existente no seio dosEstados Nacionais em formação passou a questionar as estruturas políticas e sociais que fundamentavam os projetos integracionistas impetrados pelo Estado. A partir disso, foram formuladas, pelo menos, duas propostas que adquiriram especial importância nos discursos políticos e institucionais: o multiculturalismo10 e a in- terculturalidade11. No entanto, mesmo com articulações de caráter político que informam o protagonismo indígena contemporâneo, poucas coisas mudaram no que diz respeito a materialização dos direitos sociais reconhecidos constitucio- nalmente no Brasil e na Colômbia.

Monteiro (1994); Victor Leonard (1996); Sérgio Buarque de Holanda (1997); Francisco Jorge dos Santos (2002); João Pacheco de Oliveira e Carlos Augusto da Rocha Freire (2006); John Hemming (2007; 2009); Auxiliomar Silva Ugarte (2009); Rafael Chambouleyron (2010); Marcelo Piedrafita Iglesias (2010); Patrícia Melo Sampaio (2012); Maria Regina Celestino de Almeida (2003; 2013); Almir Diniz de Carvalho Júnior (2005; 2017) e Mauro Cezar Coelho (2005; 2017). Estes e muitos outros trabalhos podem nos informar sobre legislações e projetos indigenistas desenvolvidos com o propósito de subverter as práticas indígenas, assim como nos possibilitam reflexões sobre o protagonismo indígena desenvolvido historicamente nas relações de contato, estabelecidas com grupos não indígenas desde o período colonial. Por questões metodológicas, as pesquisas mencionadas nesta nota não constam nas referências finais deste texto. 10 Quanto ao modelo multicultural, Cruz (2013) expõe que este teve seu início nos anos setenta, principalmente no Canadá, diante da coexistência de várias nações no interior do Estado. Foi o produto de uma posição contestadora dos movimentos sociais a respeito do projeto de integração nacional. Assim surge o modelo multicultural, pretendendo conciliar o modelo democrático e liberal com as exigências próprias da diversidade cultural. 11 Para Walsh (2007, p. 57), a interculturalidade significa “o contato e intercâmbio entre culturas em termos equitativos; em condições de igualdade”, ou, da mesma maneira, “um interpensamento e inter-relacionamento que não tem a pretensão de assumir a perspectiva do outros e sim de permitir que a diferença intervenha, abrindo assim novas perspectivas interculturais de viver ‘com’ ou ‘con-viver’”. As experiências do Equador e da Bolívia, por exemplo, são catalogadas como mostrar de um modelo intercultural que dá lugar a um Estado Plurinacional que tem, no conceito da autora, um marcado sentido político de refundação do Estado a partir de um constitucionalismo de baixo e formulado desde o Sul. A crítica intercultural concebe o multicul- turalismo como mais uma estratégia de assimilação cultural que pretende colocar num mesmo nível as relações de poder entre culturas dominantes e subalternas. Desse modo, “por trás dos direitos étnicos assim reconhecidos se esconderia um propósito homogeneizador por parte do liberalismo, que os outorga como uma forma de fazer mais extensivos os seus princípios e formas de ver a vida” (WALSH, 2007, p. 55).

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Um dos dilemas mais evidentes no caso do Estado colombiano e que afeta as comunidades indígenas diretamente é o que tem a ver com os conflitos político- -militares em seus territórios, os quais aumentaram exponencialmente no final do século XX e início do XXI. As exigências de um movimento indígena sobre sua propriedade coletiva e autonomia política e jurídica sobre este, estabelecem -an tagonismos com o governo neoliberal que privilegia os interesses do indivíduo e indicam uma abertura econômica em direção ao mercado. Conforme Houghton (2008), apesar do reconhecimento jurídico da condição de “resguardo”, os ter- ritórios indígenas sofrem diferentes ameaças e não possuem a “proteção” que deveriam receber do Estado. É esta autonomia parcial o dilema que enfrentam os líderes das organizações indígenas, para os quais, o direito de território inalienável, imprescritível e não rentável não é respeitado. Esta violência também influiu nas estratégias dos movimentos indígenas para proteger seus direitos. Houghton (2008) aponta que muitos líderes indíge- nas foram ameaçados, desaparecidos e assassinados nos últimos anos nas mãos de paramilitares, das guerrilhas e nas mãos do Estado. As invasões e ocupações armadas em territórios indígenas, resultando em cooptação e recrutamento de jovens indígenas e perturbando suas formas de vida, assim como a penetração de interesses econômicos, como a construção de hidrelétricas em grande escala; a exploração de hidrocarboníferos; extração de recursos madeireiros; instalação das monoculturas de plantação, como a palma africana ou a coca para o narco- tráfico afetam, gravemente, os modos de vida e particularidades socioculturais de coletivos inteiros. Muitos territórios indígenas vêm se tornando espaços de confinamento e desarraigo. Isso tem causado, dentre outras coisas, o deslocamento forçado de milhares de indígena aos centros urbanos. O marco de direitos formais que a Constituição Colombiana de 1991 supôs materializar, através da ampliação de políticas sociais relacionadas aos povos indígenas, está muito distante da reali- dade vivenciada pelos coletivos étnicos colombianos, especialmente no que se refere ao atendimento das necessidades básicas necessárias a manutenção de seus modos de vida. A persistência de graves problemas como a usurpação de seus territó- rios por parte de colonos, proprietários de terra e narcotraficantes, soma-se à

78 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 Movimentos indígenas latino-americanos da segunda metade do século XX: reflexões comparativas sobre processos decoloniais no Brasil e na Colômbia i­mplementação de projetos desenvolvimentistas por empresas extratoras de re- cursos naturais, as quais afetam significativamente o cotidiano desses coletivos e diminuem, cada vez, mais a qualidade dos nichos ecológicos que permitem suas sobrevivências, fazendo com que não se cubram as necessidades básicas como saúde, educação, alimentação e moradia. Tais questões, somados às agressões físicas e culturais permanentes, exercidas pelas instituições do Estado, da igreja e das missões religiosas internacionais, assim como dos colonos, proprietários de terra, narcotraficantes, guerrilha e exército ameaçam a sobrevivência, conver- tendo seus territórios em zonas de guerra e de conflito no marco de um Estado colombiano bipolar que orgulhosamente se nomeia multiétnico e pluricultural. Foi contra todas essas práticas ainda existentes em solo colombiano que a década de 1990 foi testemunha do nascimento de um Estado multicultural, que surgiu no espírito otimista e esperançoso que marcou a Assembleia Nacional Constituinte. Mas, conforme observou, em 2001, Lorenzo Muelas, importante liderança indígena presente naquela Constituinte, esse otimismo do Movimento Indígena Colombiano se diluiu entre as leis de papel e a realidade da violência na Colômbia. No entanto, apesar das mazelas, o dilema da violência e das leis estruturou um movimento indígena que emergiu localmente e se fez visível a nível nacional, mesmo que, ao final do século XX, este mesmo movimento social pareça subordinado e desaparecido na cooptação e violência por parte dos atores armados, incluindo o próprio Estado colombiano. No caso brasileiro, conforme apontou Eduardo Viveiros de Castro (2006), pelo menos dois fenômenos resultaram dos processos de emergências políticas e sociais desencadeados a partir da segunda metade do século XX. O primeiro deles foi o surgimento de diversos projetos pró-indígena em forma de associações e organizações não estatais como, por exemplo, as Comissões Pró-Índio (CPI), a Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAÍ), o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e o Projeto Povos Indígenas no Brasil (PIB), o qual esteve na origem do Instituto Socioambiental (ISA). O segundo foi que, em reação às propostas emanci- pacionistas compulsórias que tomaram forma nos anos 1970 e 1980, surgiram as chamadas “etnias emergentes” como resposta contrária às expectativas do Estado. Ao tratar do advento dos movimentos indígenas no Brasil, Poliene Soares dos Santos Bicalho (2010a) observou que as organizações e associações pró-indígenas,

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 79 Fernando Roque FERNANDES, Mauricio Alejandro Diaz URIBE não devem ser ignoradas no processo de articulação desses movimentos, assim como não devem ser supervalorizadas. Estas foram condicionantes importantes naquela conjuntura e auxiliaram significativamente na organização dos movimen- tos indígenas. Assim, esta importância não deve ser negada. Ainda para a autora, a partir da década de 1970, vários encontros denominados deAssembleias Indígenas passaram a acontecer em todo o país. A cada assembleia, os povos indígenas fortaleciam articulações, conformando um longo processo que condicionaria de modo significativo os rumos que seriam tomados a partir dali. Nesse sentido, não se pode perder de vista o lugar que as organizações pró-indígenas ocupava e dos jogos de interesses maiores, nos quais estavam inseridas. Portanto, o lugar dessas organizações deve ser constantemente reavaliado à medida que os povos indí- genas vão adquirindo a predominância nos processos de luta pelos seus direitos. Nesse sentido, as organizações e associações pró-indígenas se constituíram como possibilidade de ampliação das redes de conexões entre grupos indígenas estabelecidos em diferentes regiões do país. A luta pelo reconhecimento da diver- sidade e da diferença foi importante para evidenciar um agente social que exercia sua atuação política, através de suas agências sem o direito ao reconhecimento de sua cidadania diferenciada. O exercício da cidadania parece ter se constituído como uma constante nos movimentos indígenas antes mesmo do reconhecimento constitucional de suasdiferenças . Apesar de, na atualidade, presenciarmos a ins- talação de crises políticas que evidenciam os limites e possibilidades de sistemas políticos presidencialistas, como no caso do Brasil, os processos de emergência política e social que tomaram forma na América Latina, nos anos 1970 e 1980, concorreram para a criação das bases democráticas que sustentam as concepções de democracia existentes nesses países, nos quais, as agências indígenas foram exemplares e educativas da sociedade mais ampla de seus territórios geopolíticos. Na sociedade latino-americana atual, onde sujeitos e coletivos indígenas lutam pelo reconhecimento da diversidade, da diferença, assim como políticas sociais que atendam suas especificidades socioculturais, as conquistas resultantes das históricas lutas dos movimentos sociais, especialmente indígenas, parecem carecer de uma nova investida contundente contra o Estado para que este seja pressionado a implementar políticas sociais relacionadas aos direitos conquista- dos por esses grupos em condições periféricas. As injustiças estão por todos os

80 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 Movimentos indígenas latino-americanos da segunda metade do século XX: reflexões comparativas sobre processos decoloniais no Brasil e na Colômbia lados e constituem processos de longa duração. Guerras de conquista, expulsão de comunidades inteiras de seus territórios, genocídios e etnocídios resultantes de políticas assimilacionistas constituem a base histórica dessas relações12. Poderíamos dizer que mesmo após longos anos de articulações políticas, empreendidas por plurais movimentos indígenas na América Latina, especialmente a partir dos anos 1970, uma tempestuosa nuvem de preconceito e negligência ainda paira no ar. Desconhecimento, omissão e desrespeito às causas indígenas são características de parcelas significativas da sociedade, especialmente de alguns grupos que direcionam o país com suas decisões nos Congressos Nacionais. Apesar disso, processos de emergência política e social, desencadeados por diferentes povos indígenas nas últimas décadas, parecem evidenciar a continuidade de uma luta iniciada ainda nos primeiros contatos e que tem adquirindo novas roupagens a partir deestratégias contextuais de sobrevivência. Com base nas questões apontadas até o momento, consideramos que este texto pode auxiliar em uma reflexão comparativa entre as emergências políticas e sociais de povos indígenas, estabelecendo relação entre os casos do Brasil e da Colômbia com base na constatação de um panorama internacional que aponta para as lutas e articulações dos movimentos indígenas ocorridos na América Latina. Para tanto, apresentaremos algumas reflexões que informam como determinados sujeitos e coletivos indígenas desenvolveram e articularam estratégias em âmbitos locais, regionais, nacionais e internacionais de modo a empreender uma série de lutas pelo reconhecimento da diversidade e da diferença de povos a partir de fenômenos de etnicidade. Esta proposta, no entanto, se limita a evidenciar os as- pectos históricos mais gerais que informam a articulação política de determinados coletivos étnicos na relação que passaram a estabelecer com o Estado a partir de

12 Além da bibliografia já citada na nota de rodapé número 6, podemos incluir o recente dossiê intitulado:Remoções forçadas de grupos indígenas no Brasil Republicano, publicado pela Revista Mediações, em 2017, e organizado pela professora Edilene Coffaci de Lima e pelo professor Jorge Eremites de Oliveira. O Dossiê contém uma série de artigos que tratam das políticas indigenis- tas pensadas para os povos indígenas, nas quais se incluem processos de remoções forçadas, empreendidas contra povos indígenas de diferentes regiões do Brasil, tratando, também, das denúncias feitas através do documento denominado Relatório Figueiredo, o qual foi resultado de uma CPI criado nos anos 1960 para investigar denúncias de atrocidades cometidas pelo então Serviço de Proteção aos Índios (SPI) (1910-1967). O Dossiê está disponível no site da Revista Mediações, podendo ser acessado através do endereço: http://www.uel.br/revistas/uel/index. php/mediacoes/issue/view/1419.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 81 Fernando Roque FERNANDES, Mauricio Alejandro Diaz URIBE características particulares que indicam o protagonismo indígena contemporâneo tornado manifesto nos textos constitucionais dos dois países aqui analisados.

2 MOVIMENTOS INDÍGENAS NA COLÔMBIA

A la constituyente llegamos después de un largo proceso de lucha en el que debimos enfrentar tanto al Estado como a los sectores de derecha e izquierda del país que se negaban a reconocer nuestra existencia y los de- rechos que tenemos. Por eso, es importante aclarar que nuestros logros en la constituyente no fueron un regalo del gobierno, allí solo recogimos lo que veníamos sembrando a costa de gran dolor, lagrimas, cárcel y muerte de muchos de nuestros mejores dirigentes. (Lorenzo Muelas Hurtado, liderança indígena, 2014, p. 44). Historicamente, o Movimento Indígena Colombiano (MIC) e suas princi- pais organizações indígenas, em perspectiva político-institucional, surgiram num contexto de defesa e luta pela terra, tendo como epicentro de suas articulações a região do Cauca, ao sul oriental colombiano, nos Andes, durante o período de formação da Frente Nacional (1958-1974) e por meio da disposição da Lei n. 135, de 1961, a qual buscou uma saída às problemáticas rurais através de uma reforma agrária da qual resultaram diversos conflitos locais e regionais pela propriedade e usufruto da terra (COLÔMBIA, 1991). Conforme indicado por Alfredo Vazquez Carrizosa (1992), A Frente Nacional foi uma coalizão política estabelecida em 1958 entre o Partido Liberal e o Partido Conservador da República da Colômbia. Ela surgia, então, como uma resposta diante da chegada da ditadura militar, em 1953. A luta pelo poder, desencadeada entre os anos de 1954 e 1956 resultou em uma década de grandes índices de violência e enfrentamentos políticos radicais entre os partidos políticos colom- bianos. Foi então que Alberto Lleras Camargo, representante do Partido Liberal e Laureano Gómez Castro, do Partido Conservador, chegaram a um acordo ao reco- nhecerem a necessidade de um pacto entre os partidos com o objetivo restaurar o bipartidarismo no Estado. No dia 24 de julho de 1956, em terras espanholas, os líderes partidários assinaram o chamado Pacto de Benidorm, com base no qual, se estabeleceu um sistema de governo que, durante os 16 anos seguintes, funda- mentou a manutenção do poder presidencial, o qual se alternaria a cada quatro anos entre um representante liberal e outro conservador. O Período denominado

82 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 Movimentos indígenas latino-americanos da segunda metade do século XX: reflexões comparativas sobre processos decoloniais no Brasil e na Colômbia

Frente Nacionalista, o qual durou até 1974, significou uma espécie de “ditadura” feita pelos partidos mais tradicionais da Colômbia, perpetuando o clientelismo e a exclusão política naquele Estado (VAZQUEZ CARRIZOSA, 1992). Apesar disso, conforme indicado por Archila e González Piñeros (2010), este contexto permitiu que em 1968 se constituísse Asociacióna Nacional de Usuarios Campesinos (ANUC), a qual possibilitou que várias organizações, tanto camponesas como de sindicatos agrários, se estabelecessem num mesmo espaço de representa- ção e atuação política. As articulações, ocorridas entre os campesinos, possibilitou às suas organizações caminhar em direção ao fortalecimento da luta pelo acesso à terra e melhores condições de trabalho para o campesinato colombiano. Naquele contexto, a recuperação do direito ao usufruto da terra se conver- teu em tema central da luta indígena e camponesa. Ainda que no caso indígena esta luta remonte às ocupações e/ou retomadas de fazendas numa ação coletiva liderada por Manuel Quintín Lame e José Gonzalo Sánchez, importantes lideranças indígenas nas décadas de 1920 e 1930, na região chamada de O Grande Cauca. Além disso, na década de 1970, foi criado o Conselho Regional Indígena do Cauca (CRIC) como organização particularmente indígena, distanciando-se das organi- zações camponesas e operárias existentes até então. Ainda segundo Archila e González Piñeros (2010), a luta pela terra no Cauca, a qual ficou conhecida como “quintinadas”, possibilitou o surgimento do MIC. No começo dos anos 1970, com a emergência do CRIC e seu distanciamen- to das organizações camponesas, principalmente da ANUC, a luta pela terra foi impulsionada pela efervescência e ressurgimento de questões que relacionavam as territorialidades com as questões étnicas. Além disso, a identidade de classe, associada à luta camponesa e operária, fortaleceu os movimentos sociais na luta por direitos. Isso foi acompanhado pela denúncia de várias comunidades frente às constantes violências cometidas contra povos indígenas. As reivindicações e denúncias sobre a violação dos direitos humanos fez com que o movimento indígena alcançasse o contexto político internacional. Para Caviedes (2007), as denúncias de violações dos direitos políticos e civis dos povos indígenas aumentam em 1978. As denúncias registradas na épo- ca, por meio da imprensa nacional, regional e local demonstraram que o autor central destas violações foi o Estado colombiano. Ainda que este pico, ocorrido

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 83 Fernando Roque FERNANDES, Mauricio Alejandro Diaz URIBE em 1978, não tenha voltado a se repetir nos quatro anos seguintes, o número de denúncias feitas pelas organizações indígenas, entre os anos de 1979 e 1982, através do órgão que denunciava em nome das comunidades de todo o país, o Jornal Unidad Indígena, criado em 1974, a violência se manteve em quase o do- bro da média dos anos anteriores a 1978. Para Archila e González Piñeros (2010), quando se apresenta este “despertar da luta indígena” desde o reconhecimento, ressignificação e autonomia étnica13, ou seja, além da preocupação com a recu- peração da terra, se iniciou, então, uma mudança dentro do próprio movimento indígena colombiano. Este passou de uma posição de “classe” a uma posição de pertencimento desde o étnico. Ainda segundo Archila e González Piñeros (2010), tais processos possibili- taram, às organizações indígenas emergentes posteriormente, nos anos de 1980, pensar na definição de identidades mais ligadas ao étnico e às suas próprias manifestações culturais. Na década de 1980 o MIC logrou se consolidar em um contexto histórico de repressão generalizada à mobilização social, baseado em um projeto político de unidade, interculturalidade e relações interétnicas pela defesa dos avanços feitos na década anterior (1970) em matéria de recuperação de terras e autonomia. Andrade (2007), observou que, em outubro de 1980, na comunidade Lomas de Llarco do município de Coyaima, no estado de Tolima, se realizou o “Primeiro Encontro Nacional Indígena da Colômbia”. Na assembleia geral daquele encontro, ficou definida a criação da “Coordenação Nacional Indígena da Colômbia”, que teria como função a organização e convocação dos próximos congressos. Assim, em fevereiro de 1982, aconteceria o “Segundo Congresso Nacional Indígena”, realizado em Bosa, no estado da Cundinamarca, onde foi fundada a Organização Nacional Indígena da Colômbia (ONIC), com a participação de 1.500 delegados de diversos grupos étnicos do país. A partir dali, a ONIC passou a se constituir como autoridade nacional de governo indígena na Colômbia. Aqui, aproveitamos a ocasião para observar que a fundação da ONIC foi resultado de processos de reorganização e ampliação da autonomia do MIC,

13 Aqui, autonomia, corresponde à ideia de exercer o governo próprio em seus territórios. A capa- cidade de administrar e organizar sua vida econômica e social de acordo com suas necessidades e padrões culturais, frente aos processos de integração da Nação colombiana (ANDRADE, 2007).

84 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 Movimentos indígenas latino-americanos da segunda metade do século XX: reflexões comparativas sobre processos decoloniais no Brasil e na Colômbia e iniciado pelo CRIC, modelo das organizações indígenas modernas na década de 1970. Assim se reuniram alguns líderes das organizações de diversos tipos e povos indígenas (Arhuaco, Kogui, Sikuani, Emberá, Cañamomo, Pijao, Pastos) e grupos étnicos amazônicos, com os indígenas caucanos (Nasa, Coconucos e Guambianos [Misak]). Estes líderes e vozeiros buscavam dar uma identidade mais sólida a diversas reivindicações, protegendo logros e demandas pela construção de territorialidades étnicas autônomas no Estado colombiano. No início da década de 1990, começou a se visibilizar a construção de um sujeito político e social étnico na América Latina, com formas de fazer política, discursos e reivindicações próprias. Esta mobilização social étnica particularmente indígena, na Colômbia, teve sua origem nos anos de 1970 e a efervescência e consolidação de suas principais organizações nos anos 1980. Nos anos 1990, o significado destas mobilizações e da constituição de um movimento social indígena colombiano, com base em ações de caráter coletivo, empreendidas por determina- dos grupos étnicos – os quais tinham como centro de estratégia política a luta pela terra e autonomia – transformou-se na luta pelo reconhecimento da identidade étnica, a qual se constitui como base da solidariedade grupal e cultural dessas coletividades pela sobrevivência e coexistência com a diversidade e a diferença. Conforme indicado por Bengoa (2000), este fenômeno de mobilização política indígena na Colômbia se expressou a partir de uma dinâmica da movi- mentação social na América Latina, mas, também, de estratégias de negociação, representação e pressão diante das mudanças econômicas e políticas dos Estados Latino-Americanos. Além disso, as relações com organismos ou organizações inter- nacionais, também chamados de instituições multilaterais, se tornaram constantes. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assinada em 1989, instituiu o reconhecimento dadiferença e da diversidade que caracteriza os sujeitos e coletivos indígenas diante da normativa internacional. Desse modo, os indígenas passaram a ser reconhecidos, no âmbito jurídico internacional, como sujeitos de direitos, membros de uma comunidade nacional, e como sujeitos protagonistas das políticas sociais a eles relacionadas. Além disso, o texto da OIT 169 apontou para a necessidade de reconhecimento dos modos particulares dos coletivos indígenas no que indica as relações que estabelecem com o meio am- biente. Foram reconhecidos o direito ao território como elemento importante na

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 85 Fernando Roque FERNANDES, Mauricio Alejandro Diaz URIBE manutenção de projetos de vida. Assim, a Convenção 169 da OIT possibilitou às organizações indígenas colombianas a ampliação de suas atuações políticas em espaços transnacionais, se constituindo como um dos principais atores político da segunda metade do século XX na América Latina.14 No início dos anos 1990, em um contexto internacional caracterizado pela ascensão da etnicidade e pelo surgimento de marcos teóricos que defendiam o direito à diferença, a democracia e os direitos das minorias sociais, além de um contexto político nacional em permanente crise de legitimidade que lutava pela participação política de outros setores sociais antes excluídos, como possibilidade para a “refundação” de um Estado social de direitos, o cenário político se tornou favorável às demandas de caráter étnico de sujeitos e coletivos indígenas. A parti- cipação na Assembleia Nacional Constituinte (ANC) de 1990, na qual foi expedida a Constituição Política de 1991 foi, talvez, o feito mais evidente, em âmbito nacional, do protagonismo político na história do Movimento Indígena Colombiano (MIC). Pela primeira vez na história da Colômbia, os dirigentes indígenas participaram da criação de uma constituinte ao liderar não só as demandas das comunidades e organizações indígenas, mas, também, a de outros setores étnicos, sociais e populares na Colômbia. Os constituintes indígenas eleitos naquela ocasião foram: Lorenzo Muelas Hortado, da comunidade indígena caucana Misak; Francisco Rojas Birry, perten- cente à comunidade Emberá, no pacífico colombiano e Alonzo Guzmán, represen- tante do Movimento Armado Quintín Lame, recentemente desmobilizado. Desse modo, num contexto particular de abertura democrática e econômica do Estado,

14 Cabe aqui uma observação: Há países, como o Brasil, que ratificaram a Convenção 169 da OIT, de modo que a referida Lei, de âmbito Internacional, passou a valer como lei interna de caráter infra ou supraconstituicional. Por outro lado, há países, como o Uruguai e a Guiana, para tomar- mos como exemplo apenas a América Latina, que, até o momento, não ratificaram a Convenção 169 da OIT e, por consequência, não estão submetidos às deliberações a ela concernentes. Em matéria intitulada “300 anos depois, índios querem retomar o espaço perdido no Uruguai”, pu- blicada no dia 24 de outubro de 2017, pelo jornal El País, o jornalista Pablo Albarenga observou que de acordo com Martim Delgado Cultelli, diretor do Conselho da Nação Charrua (CONACHA), em uma entrevista transmitida pela Rádio Pedal, “o Governo Uruguaio não ratifica o acordo por duas razões: Pela tradição do Estado, construído com base em um genocídio caracterizado pela invisibilidade e negação dos povos indígenas e pela pressão dos sindicatos rurais em relação à devolução e demarcação territorial”. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/13/ internacional/1507902270_613238.html. Acesso em: 5 set. 2018.

86 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 Movimentos indígenas latino-americanos da segunda metade do século XX: reflexões comparativas sobre processos decoloniais no Brasil e na Colômbia o MIC conseguiu dar continuidade à luta indígena. Mas, desta vez, no marco de uma constituinte considerada, por muitos, como carta de “salvação” para a crise de legitimidade do Estado colombiano. Diante dessas considerações, podemos observar que a Constituição de 1991 resultou numa reconfiguração do Estado Nacional Colombiano, procedendo com, pelo menos, cinco mudanças significativas, a saber: 1. De um Estado de direito ao Estado social de direito; 2. Reconhecimento dos Povos Indígenas, enquanto sujeitos coletivos de direito; 3. Reconhecimento constitucional de um Estado multicultural e pluriétnico, a qual concorreu para a valorização de outras culturas e de caracterizações distintas acerca da propriedade, da família, da religião, da saúde e da natureza, entre outros; 4. Obrigação estatal de oferecer aos indíge- nas um tratamento diferenciado que potencialize suas diferenças, etnicidades e culturas e 5. Ação de tutela que, na perspectiva constitucional colombiana, atua como nova ferramenta jurídica no intuito de proteger os direitos fundamentais dos indígenas, enquanto indivíduos e povos (COLÔMBIA, 1991). Tais processos, a nosso ver, abrem precedentes para estabelecermos uma análise comparativa com os processos de emergências políticas e sociais de povos indígenas, ocorridas no Brasil, a partir da segunda metade do século XX.

3 MOVIMENTOS INDÍGENAS NO BRASIL

No Brasil, de fato existe desde a década de 1970, o que podemos chamar de movimento indígena brasileiro, ou seja, um esforço conjunto e articulado de lideranças, povos e organizações indígenas em volta de uma agenda comum de luta, como é a agenda pela terra, saúde, educação e outros direitos. Foi esse movimento indígena articulado, apoiado por seus aliados, que conse- guiu convencer a sociedade brasileira e o Congresso Nacional Constituinte a aprovar, em 1988, os avançados direitos indígenas na atual Constituição Federal. (Gersem Baniwa, liderança indígena, 2007).

Quando pudermos considerar o passado dos povos indígenas com seus mé- todos de sobrevivência e suas experiências como orientação para melhorar o futuro do índio, saberemos então que os caminhos traçados de acordo com o pensamento do índio também estão voltados para o sentimento de brasilidade e expressam preocupação com as coisas do Brasil. (Marcos Terena – União das Nações Indígenas, 1981).

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 87 Fernando Roque FERNANDES, Mauricio Alejandro Diaz URIBE

A Constituição Brasileira de 1988 foi escrita e promulgada sob a sombra nefasta de um regime civil-militar que sistematicamente violou direitos elemen- tares da população nacional, incluindo os povos indígenas. Apesar disso reflete, em parte, a luta política dos diferentes grupos sociais existentes no país, nos quais se incluem os coletivos étnicos. Também atua como marco importante na luta pela ampliação de políticas sociais que atendam as demandas das rotuladas “minorias”, as quais, ao contrário, constituem, inquestionavelmente, a maior parcela da sociedade brasileira. Havia, no entanto, um contexto político favorável ao surgimento do que se convencionou chamar de a Constituição da Cidadania. Dentre as principais mudanças trazidas por sua promulgação, podemos indicar, pelo menos sete, a saber: 1. Ampliação das liberdades civis e individuais; 2. Retomada das Eleições Diretas; 3. Fim jurídico da censura à imprensa; 4. Direito de voto aos analfabetos; 5. Ampliação dos direitos trabalhistas; 6. Reforma do sistema tributário e 7. O respeito à diversidade e diferença de povos indígenas, reconhecendo, pelo menos em caráter jurídico, o multiculturalismo no Brasil (BRASIL, 1988)15. No entanto, tais ganhos constitucionais não resultaram apenas daquilo que poderíamos deno- minar de “boa vontade” dos constituintes, mas, especialmente das lutas políticas travadas por uma série de articulações indígenas que tomaram maiores projeções a partir dos anos 1970. No Brasil, os povos indígenas passaram a se articular politicamente na defesa de direitos sociais (relacionados à questão da terra, saúde, saneamento básico e educação), bem como desenvolveram processos de emergências étnicas16, a

15 Conforme consta no Artigo 132 da Constituição Brasileira, “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as ter- ras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (BRASIL, 1988). 16 Aqui, tomamos como base de análise os processos denominados por Fernandes (2018) de ci- dadanização. Para o autor, conforme se verá mais adiante, este conceito histórico implica uma análise que informa processos de emergências primeiramente políticas, por determinados grupos étnicos, ao desenvolverem organizações de caráter reivindicativo perante o Estado a partir dos anos 1970, através da criação de associações e organizações indígenas auxiliadas por setores pró-indígenas da sociedade civil, nos quais podemos citar o Conselho Indigenista Missionário CIMI, como um dos principais articuladores, auxiliando naquilo que se passou a denominar de Assembleias Indígenas. O segundo momento, o qual denominamos de emergências sociais, está relacionado com o reconhecimento constitucional da diferença e diversidade de povos existentes no Brasil, concorrendo para a criação de políticas sociais que considerem as diferen-

88 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 Movimentos indígenas latino-americanos da segunda metade do século XX: reflexões comparativas sobre processos decoloniais no Brasil e na Colômbia partir das emergências políticas, mas, também, do fortalecimento de propostas educacionais diferenciadas. Assim, as lutas dos movimentos indígenas resultaram no reconhecimento jurídico de suas diferenças, através do texto constitucional de 1988 e na ampliação das lutas por uma formação educacional específica e diferenciada, as quais se tornaram mais evidentes a partir de 1990. Juntamente aos processos de autodeterminação, iniciados a partir da dé- cada de 1970, os diferentes grupos étnicos passaram a fortalecer movimentos relacionados à criação de políticas educacionais específicas. Após a promulgação do Decreto n. 26/91, que passou a responsabilidade sobre a educação escolar indígena do órgão da FUNAI para o Ministério da Educação e Desporto (BRASIL, 1991), os mecanismos e políticas educacionais relacionados aos indígenas se fortaleceram institucionalmente, em especial, por conta das articulações políticas empreendidas pelos Movimentos de Professores Indígenas. Mais recentemente, os Movimentos Indígenas passaram a se posicionar estrategicamente na luta pelo acesso ao Ensino Superior diferenciado sem, no entanto, desarticular a luta política pelo direito ao reconhecimento e manutenção de seus territórios tradicionais. Os processos que concorreram para as emergências de caráter político e social dos povos indígenas na Região Norte do país, por exemplo, resultaram de

ças e diversidades de povos existentes no país. Além disso, a escolha do termo “emergências étnicas” não se resume ao modo como este processo é entendido por sujeitos e coletivos indígenas, mas se amplia para uma dimensão analítica que procura também considerar como tais processos são parte daquilo que Frederik Barth (apud POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011 [1969]) convencionou chamar de sociedade englobante. Assim, consideramos que o conceito de resistência, muito utilizado por pesquisadores da temática, também não é suficiente para dar conta de determinadas ações empreendidas por sujeitos e coletivos indígenas, especialmente no que diz respeito às relações políticas que passam a estabelecer com o Estado a partir dos anos 1970. Consideramos que existe uma dimensão do protagonismo indígena que está para além da concepção de resistência, o qual, estabelecendo uma relação com a Terceira Lei de Newton, com base nos princípios de ação e reação, é entendida, por muitos, apenas como uma resposta aos estímulos resultantes das políticas indigenistas desenvolvidas pelo Estado ao longo dos processos de contato. Entendemos que o que ocorre a partir da segunda metade do século XX são um conjunto de ações indígenas que informam estratégias até então não utilizadas por sujeitos e coletivos indígenas, as quais, indicam processos de emergências políticas e sociais que caracterizam aquilo que se tem denominado, não somente no Brasil, mas, na América Latina, de “decolonialidade” ou “descolonização” do ser do agir e do saber, conforme indicado por Luciana Ballestrin (2013) e Nelson Maldonado-Torres (2016). Nesse sentido, consideramos a utilização do termoagências indígenas para dar conta de um protagonismo que não se resume às ações empreendidas por estímulos exógenos, mas, informa novas atitudes protagonizadas por sujeitos e coletivos indígenas a partir da segunda metade do século XX e que procura dar conta das especificidades dessas ações, em caráter mais amplo, ocorridas no Brasil.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 89 Fernando Roque FERNANDES, Mauricio Alejandro Diaz URIBE demandas específicas que dizem respeito à processos históricos característicos dos povos indígenas da Amazônia Brasileira. Tais processos se iniciaram conjun- tamente ao processo de autodeterminação e cidadanização17 dos sujeitos indí- genas (FERNANDES, 2018). Assim, no caso brasileiro, consideramos que o acesso de sujeitos indígenas ao Ensino Superior tem relação com a questão da terra e a necessidade de se apropriar de mecanismos políticos e científicos na tentativa de acessar ferramentas estratégicas para auxiliar na luta em defesa de direitos constitucionais e nos processos de manutenção e fortalecimento étnicos. Tais processos constituem parte de um fenômeno de emergência política e social ini- ciado nos anos 1970 e aponta para características particulares do caso brasileiro. Entre os anos 1970 e 1980, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), criada em 1967, e o Governo Civil-Militar (1964-1985) sofreram duras críticas de diferentes setores sociais. Este período foi marcado por intensas transformações políticas que resultaram da articulação de grupos de interesse que nem sempre se posi- cionaram nas estratificações hegemônicas da sociedade brasileira. Associações e organizações indígenas e pró-indígenas se articularam de forma estratégica diante de propostas que defendiam a assimilação dos povos indígenas com base em projetos estatais de homogeneização da sociedade brasileira18. Conforme apontaram Fernandes e Coelho (2018), as discussões relacio- nadas aos binômios tutelado/emancipado e integrado/não integrado se mostra- ram incompatíveis com as práticas empreendidas historicamente pelos sujeitos indígenas. Diante do regime de exceção característico daquele período, dentre as finalidades dos discursos em jogo se incluía a modificação do Estatuto do Índio (1973), legislação indigenista de caráter profundamente tutelar. Apesar disso, esta iniciativa, por parte do Estado, estava diretamente conectada com

17 Conforme apontou Fernandes (2018), a ideia de cidadanização pode ser pensada como um processo a partir do qual as relações entre Estado, políticas sociais cidadaniae passaram a ope- rar sob novos significados à medida que os movimentos sociais passaram a indicar que tanto o Estado, quanto as políticas sociais implementadas pelos governos deveriam ser pensadas como elementos a serviço da democracia, instaurando uma compreensão de que o cidadão seria, então, o agente central de todo o processo estatal. 18 Também neste caso, o recente dossiê intitulado: Remoções forçadas de grupos indígenas no Brasil Republicano, publicado pela Revista Mediações, em 2017, e organizado pela professora Edilene Coffaci de Lima e pelo professor Jorge Eremites de Oliveira, podem se constituir como importante material para uma compreensão sobre o impacto do Relatório Figueiredo para a extinção do SPI e a criação da FUNAI, em 1967.

90 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 Movimentos indígenas latino-americanos da segunda metade do século XX: reflexões comparativas sobre processos decoloniais no Brasil e na Colômbia interesses liberal-capitalistas baseados em projetos desenvolvimentistas que descaradamente agravavam a situação de coletivos indígenas estabelecidos em território nacional. O pretexto utilizado pelos representantes do Estado era de que tal legislação não atendia os interesses dos grupos indígenas. Más na visão de antropólogos, professores universitários, missionários, juristas, algumas lideran- ças indígenas, como Mário Juruna e Macus Terena, dentre outros o Estatuto do Índio (1973) não dava conta, na verdade, era do atendimento das demandas de grandes grupos empresariais interessados nas terras e na mão de obra indígena para o fortalecimento do capitalismo internacional19. Naquele contexto, a desapropriação sutil das terras indígenas foi mascarada por propostas de emancipações compulsórias coletivas. Para os indígenas era necessário haver uma transformação no sentido atribuído à FUNAI. Esta deveria passar a atuar como um mecanismo de representação indígena perante o Estado e não como instrumento de assimilação dos povos indígenas, objetivo para o qual havia sido criada. Por conta de suas contradições, o Estatuto do Índio (1973) acabou sendo utilizado como justificativa para a criação de propostas assimilacionistas que propunham a derrocada derradeira das culturas indígenas. Más, houveram resistências e agências diante do indigenismo do Estado. Mário Juruna, por exemplo, destacada liderança indígena (grupo étnico estabelecido na região Centro-Oeste do país), conhecido através da im- prensa dos anos 1970 e 1980, conforme destacado por Graham (2011), atuou de modo particular em defesa das terras indígenas. Reconhecido como o único deputado federal indígena até a legislatura que termina no ano de 2018, Juruna já afirmava, em 1981, que a FUNAI não via os índios como pessoas, como adultos. Aliás, na sua concepção, ninguém via os índios como adultos. A própria FUNAI, responsável pela defesa dos direitos indígenas era, conforme Juruna, uma das principais responsáveis pelos desvios da Lei. Isto ocorria não somente por ser condescendente com práticas ilícitas cometidas contra os povos indígenas, mas, principalmente por se omitir do auxílio político que deveria fortalecer as lutas indígenas na defesa de suas demandas. Nas palavras de Juruna, “a Funai pode cumprir sua obrigação aplicando melhor o Estatuto do Índio e não passar por cima e fazer ameaças ao índio com o Estatuto” (COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO, 1982, p. 23).

19 Para um aprofundamento da discussão, conferir: Becker, Souza e Oliveira (2013).

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 91 Fernando Roque FERNANDES, Mauricio Alejandro Diaz URIBE

Juruna, que entre 1983 e 1987 atuou como um dos Deputados Federais mais conhecidos do país, questionava as práticas empreendidas pela FUNAI de modo a forçar seus funcionários a refletir sobre os fundamentos daquela instituição. Assim, protestava: Porque a Funai chama de agitador quem defende o índio? Então nós po- demos chamar a Funai de traidora. O próprio Estado tem que reconhecer o índio como brasileiro porque ninguém tem mais direito do que nós. (COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO, 1982, p. 23). Para muitos líderes indígenas, como Mário Juruna, que iniciaram na década de 1970 o processo de articulação entre povos indígenas de diferentes regiões do país, o direito à cidadania brasileira não deveria se conformar pelas políticas emancipacionistas ou civilizatórias empreendidas pelo Estado, mas, a partir da lógica dos próprios indígenas. Para estes, a integração junto à comunidade nacional deveria ocorrer em seus próprios termos. Aqui, para uma melhor compreensão das discussões desenvolvidas naquele período, consideramos importante observar que a ideia de integração deve ser pensada a partir de uma disposição criada pela comunidade envolvente como uma categoria que permitiu classificar, dentro de certos padrões, num jogo de escalas, o grau de assimilação dos sujeitos indígenas. O antropólogo Darcy Ribeiro, ex-Chefe da Casa Civil do Governo João Goulart e ex-Reitor da Universidade de Brasília (UnB), parece ter sido o primeiro a estabelecer categorias classificatórias sobre a condição dos indígenas nas suas relações com a comunidade envolvente. Ribeiro (1982 [1970]) criou uma classificação para os grupos indígenas, cunhando os termos: grupos isolados, grupos em contato intermitente ou permanente e grupos integrados. Estes últimos, para Ribeiro seriam grupos articulados com a esfera econômica e institucional da nova sociedade brasileira. Manuela Carneiro da Cunha (1985) observou que a noção de integrado, defendida por Ribeiro (1982 [1970]), foi apropriada de forma equivocada pelos redatores do Estatuto do Índio (1973) e pelos defensores dos projetos emanci- pacionistas. Para Cunha (1985), as classificações feitas por Ribeiro (1982 [1970]) se referem à coletivos indígenas, ou seja, a grupos étnicos e não aos sujeitos que os compõem individualmente. Outra questão é que a noção de integração defen- dida por Ribeiro se conformaria na articulação econômica e institucional com a

92 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 Movimentos indígenas latino-americanos da segunda metade do século XX: reflexões comparativas sobre processos decoloniais no Brasil e na Colômbia sociedade envolvente, não se constituindo, portanto, como uma descaracterização étnica por consequência do contato e interação com a comunidade não indígena. Conforme apontou João Pacheco de Oliveira (1985, p. 25), a condição de índio era vista, pelo Estado, como transitória, “um estágio na caminhada civiliza- tória do estado de ‘isolados’ até aquele de integrado, (quando então cessariam os efeitos da tutela, ainda que persistissem alguns costumes e valores da tradição tribal)”. Conforme o Estatuto do Índio (1973), ao atingir certo nível de integra- ção, os indígenas poderiam ser emancipados do órgão tutelar (FUNAI), desde que solicitassem esse procedimento oficialmente do próprio órgão, através de requerimento específico para pedido deemancipação (BRASIL, 1973). As considerações feitas pelos indígenas e o contexto de discussão sobre a questão da emancipação evidenciavam, no Brasil, um ponto importante: os povos indígenas precisavam articular novasagências que lhes permitissem dialogar com o Estado se apropriando da lógica desenvolvida por ele. A emergência política, nestes termos, apresentou-se como uma estratégia particular naquela conjuntura de crise política, decorrente da instauração de um regime autoritário e de exce- ção. Os povos indígenas pareciam ter a seu favor uma série de mecanismos que poderiam utilizar para potencializar suas ações. Dentre eles, podemos destacar as associações e organizações pró-indígenas, mídias impressas e televisivas, como a novela Aritana (1978) que, apesar das fantasias literárias, indicava uma proble- mática contextual da sociedade brasileira e, especialmente, problematizava em seus roteiros um processo de articulação de luta pela terra que se desenvolvia em caráter regional e nacional, conectando diferentes povos indígenas de modo a lhes permitir certo alinhamento na reivindicação de suas demandas, especial- mente na luta pela terra. O contexto era de crítica geral ao Regime Civil-Militar no Brasil. Diferentes grupos sociais reivindicavam liberdade política, direitos sociais e trabalhista, li- berdade de gênero, dentre outros. Obviamente que, para defender seus direitos, as lideranças indígenas precisavam dialogar com a comunidade envolvente. No entanto, abrir mão de suas diferenças para serem assimilados não parecer ter sido a intenção dos povos indígenas que passaram a ascender politicamente na- quele contexto. A ideia de integração à comunidade nacional foi entendida pelos sujeitos e coletivos indígenas em seus próprios termos. A experiência de algumas

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 93 Fernando Roque FERNANDES, Mauricio Alejandro Diaz URIBE lideranças indígenas junto à comunidade envolvente lhes permitiu a apropriação de conhecimentos que lhes possibilitaram iniciar determinadas emergências políticas e sociais. Em perspectiva nacional, o Brasil passava por intensas agitações políticas e sociais. Democracia, Cidadania e Direitos Humanos eram temas que estavam na pauta de primeira ordem nas agendas dos movimentos sociais. Nos anos 1980, a luta pela abertura política acompanhava manifestações pela criação de uma Constituição de caráter profundamente democrático para o novo governo. Os movimentos indígenas não estavam alheios a essas mudanças. A promulgação da Constituição Brasileira de 1988 reconhecia os esforços de uma série de lutas, manifestações, articulações políticas e sociais que levaram, pelo menos, duas décadas para se consolidar como pauta política. Poliene Soares dos Santos Bicalho (2010), ao analisar os movimentos in- dígenas ocorridos no Brasil, entre os anos de 1970 e 2009, observou que a luta pelo reconhecimento e a garantia dos direitos indígenas tornou-se mais evidente durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, em 1987. As articu- lações desenvolvidas pelos movimentos indígenas dimensionaram suas partici- pações no texto constitucional20. Para além dos movimentos sociais de caráter urbano, “minorias étnicas”, como os povos indígenas residentes nos sertões do Brasil, declaravam suas insatisfações pelo não reconhecimento de seus direitos políticos e sociais relacionados à questão da terra, saúde, saneamento básico e educação. O Brasil passava por momentos de intensas agitações políticas e so- ciais. A Constituinte de 1988 parece resultar de ambos processos, indicando um aspecto elementar daquele momento de efervescência política. Os indícios nos levam a crer que muitas lideranças indígenas estavam se articulando com associações e organizações indígenas e pró-indígenas que lhes possibilitassem a ascensão política necessária à reivindicação, manutenção e conquista de direitos para suas comunidades. Os resultados dessas emergências

20 Bicalho (2010, p. 11) também observou que “o desfecho positivo desses trabalhos, quanto aos direitos indígenas, contribuiu para que a atuação destes povos como protagonistas de sua própria história se apresente na atualidade como especificidade do Movimento, experienciada em diferentes aspectos: organizações indígenas; representatividade das lideranças; elaboração de projetos e políticas públicas; diálogo mais direto com diferentes instâncias do Estado e da sociedade civil, entre outros”.

94 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 Movimentos indígenas latino-americanos da segunda metade do século XX: reflexões comparativas sobre processos decoloniais no Brasil e na Colômbia políticas se refletiram em outras demandas que passarão a tomar forma na- dé cada de 1980. A caminhada não foi, nem de longe fácil, assim como não passaria a ser a partir de 1988. As lutas permaneceriam, agregando demandas mais es- pecíficas, como o direito à educação escolar diferenciada, a qual se tornou mais evidente a partir dos anos 1990, e o acesso diferenciado de sujeitos indígenas ao Ensino Superior, tornado mais evidente a partir dos anos 2000. No entanto, tais demandas jamais se desviaram da luta pela terra, nem do direito de viverem suas diferenças e especificidades. Assim, à luz da Constituição Federal de 1988, a integração, ou melhor, a interação dos povos indígenas, passou a ser reconhecida a estes como a capaci- dade de exercício da cidadania no “mundo dos brancos”. Na atualidade, sujeitos e coletivos indígenas caminham em direção a materialização de políticas sociais que considerem suas diversidades e diferenças, assim como mantém a luta pela terra, saúde e educação, não necessariamente nessa ordem. Desse modo, no Brasil, as articulações do que Gersem Baniwa (2018)21 denominou de um Movimento Pan- Indígena Brasileiro, teve suas bases conformadas através de longos processos que evidenciam as agências do protagonismo indígena contemporâneo.

4 EMERGÊNCIAS POLÍTICAS E SOCIAIS DE GRUPOS ÉTNICOS NA AMÉRICA LATINA Como assinalou Aníbal Quijano (2000), a crise do desenvolvimentismo, com a desintegração da estrutura produtiva e, consequentemente, das identidades camponesas e de classe que este promovia, significou uma revalorização de iden- tidades étnicas que nunca se dissolveram completamente. A globalização, com seu novo universo de comunicação e virtualidade, possibilitou que as comunida- des indígenas rurais antes isoladas, em meio à crise das identidades de classe, pudessem se conectar com outros sujeitos e coletivos indígenas estabelecidos em diferentes partes do continente. Tais conexões possibilitaram a estes sujeitos e coletivos se reconhecerem como parte de um processo histórico comum que os enquadrou em estruturas sociais de subordinação e dominação à lógica colo- nialista e imperialista.

21 Entrevista concedida por Gersem José dos Santos Luciano – Baniwa, na Universidade Federal do Amazonas, em Manaus, no 29 de agosto de 2018.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 95 Fernando Roque FERNANDES, Mauricio Alejandro Diaz URIBE

No caso colombiano, a correspondente crise da esquerda favoreceu ainda mais a destruição desta memória e desta identidade como percussores da ação política (QUIJANO, 2001). Por conta disso, não se pode desconsiderar a influência da dupla transição na região: tanto de regimes autoritários como de uma economia desenvolvimentistas limitada ao modelo neoliberal capitalista. Assim, a América Latina passou a se constituir como espaço de emergência das “novas etnicidades” que se caracterizaram pelo uso estratégico e mesmo reinvenção de etnicidades, base dos processos decoloniais aqui evidenciados. Como indicado por Eduardo Restrepo (2004), em sua cartografia sobre as teorias e definições teóricas do conceito deetnicidade , os projetos que se funda- mentam em tais perspectivas caminham numa direção relacional e não ontoló- gica da categoria etnicidade, a qual foi construída no e pelo movimento indígena colombiano, especificamente expresso em suas organizações. Nas palavras de Restrepo (2004, p. 17), a etnicidade estaria […] asociada a un ejercicio de definición de categorías étnicas desde una posición relacional. […] la etnicidad implica un encuadre relacional de identidad y diferencia más que la manifestación de un inmanente ser biológico o cultural… Esta tendencia aborda la etnicidad como un fenó- meno intersubjetivo con efectos en las relaciones y prácticas sociales; es entendida, además, como un hecho objetivo que existe en el mundo exterior, independientemente de las categorías analíticas de quien la estudia. En general esta tendencia se asocia al formalismo y, en algunos casos, al estructuralismo. No contexto dos movimentos indígenas da Colômbia e, especificamente no período que abarca o processo de formação e consolidação do Estado, poderíamos representar a etnicidade pelas ações desenvolvidas por distintos povos indígenas através de estratégias políticas que fundamentaram a luta diante da questão da territorialidade com base na evidenciação da diversidade e diferença que carac- teriza e legitima as necessidades básicas de manutenção diferenciada de suas sobrevivências. Além disso, a territorialidade se tornou o espaço de produção e reprodução da vida e da luta pela sobrevivência diante do Estado. Assim, histori- camente, mesmo apesar da materialização de complexos projetos de integração e assimilação dos coletivos indígenas diante de um processo de homogeneização social, a diferença e diversidade que dá forma a toda sociedade e suas relações

96 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 Movimentos indígenas latino-americanos da segunda metade do século XX: reflexões comparativas sobre processos decoloniais no Brasil e na Colômbia sociais, se tornou parte das relações, muitas vezes conflituosas, desenvolvidas entre indígenas e não indígenas no contexto latino-americano. Considerando que a ação dos povos indígenas tem por consequência pro- cessos que dizem respeito ao âmbito interno e externo de suas comunidades, é salutar observar que, além de fortalecer a luta pelo reconhecimento de suas diferenças, a etnicidade fomentou a manutenção dos componentes que confor- mam as características identitárias de diferentes povos indígenas. Por conta disso, entendemos que o movimento interno (decorrente do impacto consequente da interação com outros grupos), bem como a seleção e apropriação de mecanismos externos que influenciam na manutenção da organização interna dos grupos in- dígenas, foram e ainda podem ser consideradas como operações condicionadas pelas etnicidades. Ou seja, a relação estabelecida entre grupos indígenas e não indígenas tende a modificar modos de vida e de organização dessas sociedades em contanto sem, no entanto, incorrer em processos de assimilação, aculturação ou extinção. Considerando o que aponta Frederick Barth (2011), a relação entre diferen- tes grupos étnicos acaba mesmo é por evidenciar as diferenças e possibilitar uma relação de associação, seleção e diferenciação num imbricado jogo de interações culturais. Tais processos concorrem para a manutenção da consciência dos sujeitos que operam a partir de cosmologias distintas na manutenção de suas tradições, e na fundamentação dos argumentos necessários à luta pelo reconhecimento de suas diferenças frente à comunidade englobante. Desta forma, a etnicidade é, também, resultado da própria interação de grupos com características culturais diferentes. Tais relações criam um ambiente favorável à evidenciação de distinções étnicas. Para Barth (2011), “as distinções de categorias étnicas não dependem de uma ausência de mobilidade, contato e informação”, pois, é na interação que se evidenciam as distinções e se desenvolvem as múltiplas estratégias de interação, associação ou rejeição das práticas culturais do outro. Assim, a interação entre os povos indígenas e a comunidade envolvente é exemplo elucidativo dos proce- dimentos de etnicidade ocorridos ao longo da história latino-americana. No caso que informa as emergências políticas e sociais dos povos indígenas no contexto histórico da América Latina, na segunda metade do século XX, e a luta pelo acesso ao ensino superior como estratégia de fortalecimento da luta pela

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 97 Fernando Roque FERNANDES, Mauricio Alejandro Diaz URIBE conquista de direitos relacionados à territorialidade, no caso do Brasil, o fator pri- mordial que conecta os diferentes sujeitos é a agência indígena a partir da atuação política dos múltiplos protagonistas que, representados pelos movimentos étnicos, constituem a base das emergências políticas e sociais iniciada nos anos 1970, aliada à manutenção das tradições e reconhecimento de suas territorialidades e, nos últimos anos, ao acesso cada vez maior no âmbito do ensino superior de modo a fortalecer a luta pela defesa, manutenção e conquista de direitos, instaurando um processo de descolonização do pensamento nos termos apresentados por Maldonado-Torres (2016), Luciana Ballestrin (2013) e Lacerda (2014).

5 CONSIDERAÇÕES PONTUAIS Os processos de emergência política e social de povos indígenas ocorridos no Brasil e na Colômbia a partir da segunda metade do século XX e expressos nos textos constitucionais de ambos países, informam processos particulares de articulação política de sujeitos e coletivos indígenas na América Latina. Apesar das relações históricas colonialistas que conectam tais processos, cada fenômeno deve ser analisado de modo relacional e específico, já que apresentam elementos particulares em suas estruturais, sociais, políticas e econômicas. Os apontamen- tos desenvolvidos neste texto fazem parte de duas pesquisas ainda em curso e apontam para reflexões iniciais que discutem a natureza das emergências políticas e sociais de coletivos indígenas. De todo modo, atualmente, a análise destes pro- cessos ocorridos na Colômbia e no Brasil nos permitem refletir sobre evidencias que nos informam um paralelo. As estratégias políticas indígenas e indigenistas mencionadas neste texto fazem parte do longo processo histórico do contato entre grupos indígenas e não indígenas. Por esta razão, cabe aqui a observação de que, durante toda a história da América Latina, os coletivos indígenas resistiram como puderam ao genocídio, etnocídio e assimilação de suas tradições. A cada resistência, novas formas de opressão foram sendo criadas para extinguir povos indígenas. Considerando as especificidades de cada tempo e lugar histórico, parece-nos que, pelo menos, duas características estiveram presentes na relação entre índios e não índios: A primeira delas seria a relação desigual que se estabeleceu entre povos indígenas e comunidade envolvente. A segunda é, fundamentalmente, o caráter conflituoso dessas relações.

98 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 Movimentos indígenas latino-americanos da segunda metade do século XX: reflexões comparativas sobre processos decoloniais no Brasil e na Colômbia

Tais características e os procedimentos que conformaram essas relações foram durante muito tempo, e ainda hoje o são, mascaradas por representa- ções que sutilmente naturalizam a condição marginalizada na qual os índios se encontram na estrutura da sociedade contemporânea. É por conta disso que consideramos insuficiente qualquer representação que se proponha a justificar o lugar periférico dos povos indígenas na sociedade ou que intencione mascarar as injustiças cometidas contra esses povos. Pois, apesar da opressão, os grupos indígenas sempre resistiram e agiram diante das forças que lhes impunham o apagamento e a descaracterização cultural. As emergências políticas e sociais de grupos indígenas latino-americanos a partir da segunda metade do século XX, informadas aqui entre um comparativo dos casos ocorridos no Brasil e na Colômbia, são demonstrações elucidativas do protagonismo dos povos indígenas na contemporaneidade.

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Sobre os autores: Fernando Roque Fernandes – Doutorando em História Social da Amazônia pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPHIST) da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Professor de História Regional do Brasil pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR). E-mail: [email protected] Mauricio Alejandro Diaz Uribe – Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Mestrado em Estudios Latinoamericanos pela Universidad Nacional de General San Martín. Graduação em Antropologia pela Universidad Nacional de Colombia - Bogotá. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em políticas sociais. E-mail:[email protected]

Recebido em 28 de junho de 2018 Aprovado para publicação em 01 de outubro de 2018

104 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 71-104, maio/ago. 2019 Etnoarqueologia e processo de territorialização entre os indígenas Wasusu do vale do Rio Guaporé, estado de Mato Grosso, Brasil Ethnoarchaeology and territorialization process between the Wasusu indigenous of the valley of Rio Guaporé, state of Mato Grosso, Brazil

Rafael Lemos de Souza1 Jorge Eremites de Oliveira2

DOI: http://dx.doi.org/ 10.20435/tellus.v19i39.582

Resumo: Neste artigo os autores analisam criticamente o processo de territorialização vivenciado pelos indígenas Wasusu, um dos povos Nambikwara do vale do Rio Guaporé, no estado brasileiro de Mato Grosso, a partir da segunda metade do século XX. Até os anos 1950, a maior parte da região era quase que exclusivamente habitada por coletivos Nambikwara, cuja população total foi estimada em aproximadamente 20.000 indivíduos. Da década de 1950 à de 1980, terras indígenas foram expropriadas no contexto de uma política oficial destinada ao desenvolvimento econômico do estado e da região brasileira da Amazônia Legal. Esta política teve o objetivo de beneficiar empresas colonizadoras e agentes das elites locais, e foi implementada por meio da apropriação ilegal do território de vários povos nativos, como é o caso dos Wasusu. Palavras-chave: Etnoarqueologia; História Indígena; indígenas Wasusu; processo de territorialização; Vale do Rio Guaporé. Abstract: In this article the authors critically analyze the process of territorialization experienced by the Wasusu Indians, one of the Nambikwara peoples of the Guaporé River Valley, in the Brazilian state of Mato Grosso, from the second half of the 20th century. Until the 1950s, most of the region was almost exclusively inhabited by Nambikwara collectives, whose total population was estimated at approximately 20,000 individuals. From the 1950s to the 1980s, indigenous lands were expropriated in the context of an official policy aimed at the economic development of the state and the Brazilian region of

1 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. 2 Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil.

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the Amazônia Legal (Legal Amazon). This policy had the purpose of benefiting colonizing companies and agents from the local elites and was implemented through the illegal appropriation of the territory of several native peoples, as is the case of Wasusu. Keywords: Ethnoarchaeology; Indigenous History; Wasusu indians; process of territorialization; Valley of the Guaporé River.

1 INTRODUÇÃO O presente artigo resulta, em grande parte, de pesquisas realizadas para fins de conclusão de uma dissertação de mestrado em antropologia, cujos estudos são de natureza etnológica, arqueológica e histórica sobre parte de um território indígena localizado no estado de Mato Grosso, área tradicionalmente ocupada pelos Wasusu (SOUZA, 2014)3. Acrescenta-se ainda experiências e dados de outra pesquisa, realizada para fins de avaliação dos impactos socioambientais de um empreendimento minerador sobre a comunidade Katitaurlu, também conhecida como Nambikwara do Sararé (EREMITES DE OLIVEIRA e PEREIRA, 2009). Para a realização do trabalho de mestrado, buscou-se compreender ele- mentos da cultura material, sistema de assentamentos, subsistência e processo de territorialização do povo indígena Wasusu (Nambikwara) no alto curso do rio Guaporé. Não obstante ao assunto, registra-se que a análise aqui apresentada tem o propósito de analisar criticamente a expropriação das terras indígenas re- gularizadas ou em processo de regularização no vale do rio Guaporé. Esta situação histórica é verificada ao longo do século XX, no contexto de uma política oficial voltada ao desenvolvimento econômico da região compreendida pelo sudoeste de Mato Grosso e o sul de Rondônia, na Amazônia Legal, sobretudo no âmbito da expansão de frentes econômicas ligadas a atividades agropecuárias. A maior parte da pesquisa de campo que embasa empiricamente este traba- lho foi realizada durante três etapas de campo, perfazendo 34 dias de etnografia, nas aldeias Anunsu, Bacurizal, Central, Pedreira e Rio Novo. Para a coleta in loco de dados, a metodologia aplicada é a tributária do arcabouço teórico-metodológico­ da

3 Ao longo deste trabalho, o termo antropologia é empregado no sentido de antropologia social ou cultural ou sociocultural, conforme utilizado no Brasil, e não, necessariamente, no sentido dos quatro campos clássicos da antropologia geral de matriz boasiana, assim institucionalizada nos Estados Unidos e outros países das Américas.

106 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 105-138, maio/ago. 2019 Etnoarqueologia e processo de territorialização entre os indígenas Wasusu do vale do Rio Guaporé, estado de Mato Grosso, Brasil antropologia, notadamente o método etnográfico – neste trabalho mais percebido como processo e menos como produto –, o qual também é recorrido na prática etnoarqueológica (EREMITES DE OLIVEIRA, 2011, 2015a, 2015b). Este procedi- mento de registro de dados etnográficos se caracteriza pela realização de trabalho de campo, no qual se faz necessário, dentre outras estratégias, “[...] entrevistar informantes; observar rituais; deduzir os termos de parentesco; traçar as linhas de propriedade; fazer o censo doméstico [...] escrever seu diário” (GEERTZ, 1989, p. 7). Outra característica do método é a observação participante. Trata-se de estar no lugar que se está a investigar, na perspectiva de buscar fazer parte da vida -co tidiana dos indivíduos com os quais se interage. O propósito é participar de suas atividades, tanto às de caráter simbólico (rituais religiosos, por exemplo) como às de cunho material (caçadas, pescarias, produção de artefatos etc.), observando-as atentamente a partir do que se quer compreender a respeito de seu modo de vida e da materialidade a ela subjacente. Esta é uma forma pela qual pode ser levado a cabo, com maior competência, o trabalho etnográfico a que se dedica o pesquisa- dor, como explica Malinowski (1978, 1984), seja ele etnólogo, seja etnoarqueólogo. A observação participante, caracterizada pela observação direta dos acon- tecimentos e da vida cotidiana, não se confunde, como observado por Eremites de Oliveira e Pereira (2010), com o conceito de descrição densa a que Geertz faz menção em A interpretação das culturas (GEERTZ, 1989). Portanto, a observação realizada sobre os Wasusu não se confunde com descrição densa pelo fato de que tal abordagem metodológica exigiria maior tempo de pesquisa em campo, inclusive o domínio da língua nativa. Entretanto, importa esclarecer que o traba- lho ora apresentado tampouco se trata de uma etnografia a jato, como explica Ribeiro (2010) para casos de estudos em curtíssimo tempo. Acredita-se que as diretrizes apontadas por Geertz (1989) e Malinowski (1978, 1984) não se realizam sem o que Cardoso de Oliveira (2006) assevera ser o trabalho do antropólogo: olhar, ouvir e escrever. Desse modo, o estudo realizado junto aos Wasusu somente foi possível graças ao emprego desses procedimentos de pesquisa, sem os quais não se saberia como proceder ou se orientar em campo. Os dois primeiros atributos foram os mais utilizadosin loco, onde o papel do pesqui- sador é o de olhar e ouvir, sentidos que para Cardoso de Oliveira são os primeiros a serem acionados pelo pesquisador. Isso ocorre porque o objeto que se olha já foi previamente modificado pelo nosso próprio modo de enxergar: “No ato de ouvir

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 105-138, maio/ago. 2019 107 Rafael Lemos de SOUZA; Jorge Eremites de OLIVEIRA o ‘informante’ [interlocutor], o etnólogo exerce um poder extraordinário sobre o mesmo, ainda que pretenda posicionar-se como observador o mais neutro possível, como pretende o objetivismo mais radical” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2006, p. 23). A segunda etapa é marcada pelo ato de escrever, isto é, de interpretar teoricamente os dados obtidos em campo. Seria, por assim dizer, o trabalho de gabinete. Desse modo, a dificuldade que se impõe ao etnólogo e ao etnoarque- ólogo nessa etapa dos estudos, dentre tantas outras impingidas ao pesquisador, situa-se entre o “estar lá” e o “estar aqui” (GEERTZ, 2005). Este duplo movimento, onde o interstício é marcado pela liminaridade, em que não se está nem “lá” e nem “cá”, é o que faculta à antropologia, enquanto ciência do social, a sua própria existência ontológica no tocante a ser um campo do conhecimento científico. O mesmo entendimento é válido para a etnoarqueologia, especialidade da arqueolo- gia voltada à observação e compreensão da materialidade das relações sociais no tempo e espaço, especialmente dedicada a povos e comunidades não ocidentais. Geertz (2005), em Obras e vidas: o antropólogo como autor, problematiza as questões referentes à prática etnográfica como um trabalho que ocorre mediado pelos dois momentos relacionados à sua produção: o “estar lá” e o “estar aqui”, ou seja, a inter-relação entre o espaço e o tempo da pesquisa de campo e o espaço e o tempo das esferas acadêmicas. Examinados o olhar, o ouvir e o escrever, a que conclusões podemos chegar? – indaga Cardoso de Oliveira (2006). Como procura-se demonstrar aqui, essas “faculdades” do espírito têm características bem precisas quando exercitadas na órbita das ciências sociais e, de um modo todo especial, na da antropologia. Se o olhar e o ouvir constituem a percepção sobre a realidade focalizada na pesquisa empírica, o escrever passa a ser parte quase indissociável do pensamento, uma vez que o ato de escrever é simultâneo ao ato de pensar. Chama-se à atenção sobre o assunto de modo a tornar claro que é no processo de redação de um texto que o pensamento caminha. Isso é feito para se encontrar soluções a problemas que dificilmente apareceriam antes da textualização dos dados provenientes da observação sistemática (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2006, p.31-32). Ressalta-se ainda que as entrevistas feitas em campo não foram realizadas tendo um fim em si mesmas, isto é, não foram aplicadas sem a devida cautela que o referido método exige, posto que é consenso entre muitos cientistas so- ciais – das mais diversas formações e orientações teóricas e metodológicas – que tal procedimento científico não é infalível. Muitas entrevistas foram feitas com

108 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 105-138, maio/ago. 2019 Etnoarqueologia e processo de territorialização entre os indígenas Wasusu do vale do Rio Guaporé, estado de Mato Grosso, Brasil apoio de interlocutores bilíngues, os quais contribuíram decisivamente para a compreensão e tradução das falas de pessoas idosas, registradas na língua nativa, o idioma Nambikwara. Os estudos também foram inspirados no que alguns autores chamam de antropologia e arqueologia do colonialismo. Para a prática de descolonização da pesquisa, valeu-se das experiências descolonizantes publicadas por Eremites de Oliveira (2011, 2015a, 2015b, 2016), Eremites de Oliveira e Pereira (2010), Silva (2000, 2009a, 2009b), Silva et al. (2011), González Ruibal (2006) e Stuchi (2010), dentre outros estudos etnoarqueólogos realizados especialmente no Brasil. Ao menos três pontos são fundamentais nessa prática de pesquisa socialmente en- gajada: primeiro, realizar estudos a partir de entendimentos prévios com a comu- nidade e de modo que o trabalho a ser feito atenda a seus interesses; segundo, dar visibilidade e voz ao coletivo que venha a ser estudado; terceiro, proceder de modo a relativizar a autoridade do etnoarqueólogo frente a outros conhecimentos, especialmente aos saberes nativos. Segundo Silvaet al. (2011), dessa maneira as práticas arqueológicas se tornam mais inclusivas, menos colonizadoras e fazem com que o pesquisador melhor relativize o controle do conhecimento sobre o passado e diminua sua autoridade na interpretação e divulgação dos dados sobre o coletivo estudado. Essas ideias vão ao encontro do pensamento de Silva et al. (2011, p.37) com relação à arqueologia colaborativa, no qual os autores a definem da seguinte maneira: “[...] prática arqueológica que visa estabelecer a colaboração e o en- volvimento de diferentes coletivos nas questões relativas à pesquisa e gestão do patrimônio cultural”. Seguindo este ponto de vista, a pesquisa colaborativa busca trazer um balanceamento nos interesses entre pesquisadores e as comunidades que possam vir a ser estudadas. Em estudos etnoarqueológicos mais recentes, realizados no Brasil e em outros países, as pesquisas tendem a ser colaborativas, haja vista o emprego da observação direta ou participante como procedimento metodológico. Por isso, conforme ainda pontuam os autores, os termos estra- tégicos e metodológicos podem ser definidos como: interação entre equipe de pesquisa e comunidade; presença da equipe durante todo o trabalho; busca de recursos para a comunidade; manter a comunidade ciente de como o trabalho está a ser feito; e acesso fácil da comunidade sobre os vestígios arqueológicos e outros dados da pesquisa.

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Informa-se que na pesquisa realizada junto aos Wasusu não houve nenhum tipo de escavação e coleta de material arqueológico. Ressalta-se a importância desta explicação, haja vista que populações tradicionais costumam ter uma relação muito intensa com a materialidade existente em seus territórios, como explica- do por Eremites de Oliveira (2016) em relação aos cemitérios Kaiowá em Mato Grosso do Sul. Com relação à metodologia etnográfica recorrida em trabalhos etnoarqueológicos, alguns dos autores supracitados explicam que a comunica- ção e a colaboração com o coletivo estudado devem existir em todo processo da pesquisa (SILVA et al., 2011). Cumpre ainda esclarecer que na área de estudo foram feitas entrevistas registradas em gravador digital e por meio de filmagens em vídeo. Foi utilizado aparelho GPS (Sistema de Posicionamento Global) para o georreferenciamento das aldeias, a fim de visualizar de maneira mais ampla as continuidades e as -mu danças no que se refere aos padrões de uso do ambiente onde a comunidade está estabelecida: localização da aldeia na TI (Terra Indígena); dispersão das casas uma das outras; roças e cursos d’água; áreas de descarte de elementos materiais; etc. Para este trabalho também se vale dos registros etnográficos feitos nos diários de campo de Maria Aurora da Silva (2010), antropóloga e mãe de um dos autores que assinam este artigo, produzidos na época em que esteve com os Wasusu a trabalho ou apenas para visitar as comunidades. Todos esses procedimentos técnicos, metodológicos e teóricos foram de grande relevância para a conclusão do estudo ora apresentado.

2 OS NAMBIKWARA DO VALE DO GUAPORÉ E O PROCESSO DE TERRITORIALIZAÇÃO WASUSU Autores como Roquette-Pinto (1975 [1917]), Price (1972, 1976, 1989) e Miller (2007) explicam que o termo Nambikwara (nambi = orelha; kuara = furada), de origem Tupi, é um apelativo que surgiu durante o encontro colonial e passou a ser designado para categorizar um grande número de povos indígenas que habitam a porção oeste do estado de Mato Grosso até as adjacências no estado de Rondônia. Este grande território indígena, situado numa região de transição ou ecótono entre os biomas Amazônia e Cerrado, está dividido em três áreas ge- ograficamente distintas: Serra do Norte, Chapada dos Parecis e Vale do Guaporé.

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De acordo com J. Miller, o vale do rio Guaporé: [...] corresponde ao oeste do território Nambikwara, entre o limite do planalto acima mencionado e o rio Guaporé. Conforme a descrição de Price, 85% desta região é coberta por floresta. Na parte abaixo do planalto a floresta é mais densa e o solo mais fértil. A floresta diminui a oeste, na direção do rio Guaporé a área que é composta por várzeas e planícies inundáveis. Em direção ao rio Guaporé correm rios Cabixi, Piolho, Galera e Sararé (MILLER, 2007, p. 17). Até os anos 1950, grande parte do Vale do Guaporé era quase que exclu- sivamente povoada pelos Nambikwara. Esta região, contudo, tem sido ocupada por populações indígenas desde há mais de 12.000 anos, segundo atestam os estudos de Miller (1983). Àquela época, os indígenas somavam cerca de 20.000 indivíduos, concentrados em um território que grosso modo distava do rio Guaporé aos rios Papagaio, Comemoração, Roosevelt e Tenente Marques4. Dispunham de um território de uns 5.500.000 hectares, situado entre os municípios de Vila Bela da Santíssima Trindade e Pontes e Lacerda, em Mato Grosso, e o de Vilhena, no estado de Rondônia (PRICE, 1972). Do ponto de vista linguístico, Price (1972) classifica os Nambikwara como falantes de línguas pertencentes à família homônima de um tronco linguístico comum. Define-os como falantes de três línguas, cada uma com suas particulari- dades, mas reciprocamente inteligíveis. Quanto à localização geográfica, assevera que se encontram concentrados em três extensões distintas, pelo menos no que diz respeito às questões referentes ao habitat ou território: Vale do Guaporé, Campos do Vale do Guaporé e Norte do Vale do Guaporé. No tempo presente, o território tradicionalmente ocupado por aproximada- mente trinta povos Nambikwara encontram-se separado em nove terras indígenas descontínuas, quais sejam: Vale do Guaporé, Pirineus de Souza, Nambikwara, Lagoa dos Brincos, Taihãntesu, Pequizal, Sararé, Tirecatinga e Tubarão-Latundê. Esta última área está situada no estado de Rondônia e é habitada por um povo Nambikwara denominado Latundê e por outros coletivos indígenas denominados de Aikanã. Há ainda outras áreas em processo de regularização, como a Terra Indígena Paukalirajausu, contínua à Sararé.

4 De acordo com informações obtidas através do sítio online da FUNASA, atualmente os Nambikwara somam 1.950 indivíduos (FUNASA, 2010 [http://pib.socioambiental.org/pt/povo/ nambikwara]).

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Figura 1 – Localização da área de estudo, Terra Indígena Vale do Guaporé.

Fonte: Souza (2014, p. 22).

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Segundo Martins (2009), após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) o governo de Mato Grosso intensificou o processo de venda de terras indígenas não regularizadas no vale do rio Guaporé e em outras tantas partes do estado. Isso foi feito de modo a beneficiar pessoas e empresas colonizadoras que aspi- ravam se apoderar das terras indígenas localizadas nesta parte do Centro-Oeste do país. O território dos Wasusu, assim como o dos demais povos originários da região, foi ilegalmente disponibilizado pelo governo estadual para projetos de colonização e desenvolvimento. Ocorre que para as autoridades governamentais – representantes das elites locais e nacionais, as quais também estavam dentro das próprias instituições do Estado nacional –, aquela área era considerada um vazio demográfico improdutivo e abandonado. Neste contexto, deve-se entender que o órgão indigenista oficial, incialmente o SPI (Serviço de Proteção aos Índios), extinto em 1967, e posteriormente a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), criada no ano seguinte, em 1968, durante o regime militar (1964-1985), teve a pretensão de tutelar os povos indígenas e inseri-los a uma ordem contrária a seus interesses (FERNANDES DA SILVA, 1987). Para a autora: “[...] a política indigenista sempre navegou ao sabor dos interesses da política econômica nacional e sempre se traduziu em pressões integracionistas as populações tribais” (FERNANDES DA SILVA, 1987, p.23). Diante da política de desenvolvimento oficial, adotada pelo estado de Mato Grosso, entende-se que a partir desse momento teve início um processo de territorialização, de acordo com o conceito formulado por Pacheco de Oliveira (1998): [...] a noção de territorialização é definida como um processo de reorga- nização social que implica: 1) criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; 2) a constituição de mecanismos políticos especializados; 3) a redefinição do controle social sobre os recursos ambientais; 4) a reelaboração da cultura com o passado. O que estou chamando de processo de territorialização é justamente, o movimento pelo qual um objeto político-administrativo – nas colônias francesas seria a “etnia”, na América espanhola as “reducciones” e “resguardos”, no Brasil as “comunidades indígenas” – vem a se transfor- mar em uma coletividade organizada, formulando uma identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão cultural e de representação, e reestruturando as suas formas culturais (inclusive as que o relacionariam como ambiente e com o universo religioso) (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998, p.55-6).

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A ideia de processo de territorialização está associada à noção de situação histórica, quer dizer, de momentos ou períodos marcados por contatos interétni- cos assimétricos, como aconteceu, por exemplo, com os Wasusu e outros povos Nambikwara em relação às frentes econômicas da sociedade nacional que se instalaram em seus territórios. Disso resultam tentativas de dominação e explora- ção, inclusive com mudanças no sistema de assentamento dos indígenas: se antes estavam estabelecidos numa determinada área, com nichos ecológicos favoráveis a atividades de caça, pesca, coleta, manejo agroflorestal e agricultura, a depender dos episódios de conflitos vivenciados, tiveram que mudar seus estabelecimentos para outros lugares. Esta mudança poder ser estudada a partir do que Eremites de Oliveira e Pereira (2010) chamam de etnoarqueologia do território. Ainda de acordo com Martins (2009), milhões de hectares foram ofereci- dos a empresas colonizadoras para que elas mesmas efetuassem a compra das terras. De 1951 a 1955, vinte empresas receberam áreas com concessões para a colonização, sendo que todas tinham muitas afinidades com o governo do esta- do. Isso fazia com que o desempenho de suas empreitas tivesse bom resultado. Conforme informações apresentadas pelo referido autor, das vinte empresas que adquiriram posses nas áreas vendidas, apenas cinco cumpriram com as exigências mínimas estabelecidas em lei. No governo de Pedro Pedrossian (1966-1971), o Departamento de Terras e Colonização do estado de Mato Grosso foi extinto. Esta decisão foi tomada para, dentre outras coisas, evitar a venda ou a concessão de terras para colonização por meio da iniciativa privada. Ocorre que em 1953, o loteamento de terras em Mato Grosso foi definido pela Lei n. 1.806; e em 1966, houve a criação da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), órgão que tinha os seguintes objetivos: Estabelecer uma política demográfica que compreende a regeneração física e social das populações da região, pela alimentação, assistência à saúde, o saneamento, a educação e o ensino, a imigração de correntes de população que mais convenham ao interesse da região e do país. Interessar o capital privado na exploração das riquezas regionais, inclusive em empreendimentos de capital misto (MARTINS, 2009, p. 2). O referido autor complementa que em 1966, o objetivo do plano sofreu uma redefinição, porém os pontos básicos foram mantidos. Após dez anos, 5.400.000

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etnias dominantes e das classes que as integram; 3) sua administração e responsabilidade jurídico-política concernem às etnias dominantes, às bur- guesias e oligarquias do governo central ou aos aliados e subordinados do mesmo; 4) seus habitantes não participam dos mais altos cargos políticos e militares do governo central, salvo em condição de “assimilados”; 5) os direitos de seus habitantes, sua situação econômica, política social e cultural são regulados e impostos pelo governo central; 6) em geral os colonizados no interior de um Estado-nação pertencem a uma “raça” distinta da que domina o governo nacional e que é considerada “inferior”, ou ao cabo con- vertida em um símbolo “libertador” que forma parte da demagogia estatal; 7) a maioria dos colonizados pertence a uma cultura distinta e não fala a língua “nacional” (GONZÁLEZ CASANOVA, 2007, p. 432). Nota-se, portanto, que a partir da segunda metade do século XX, os Wasusu e outros povos Nambikwara estabelecidos no vale do rio Guaporé passaram a intensificar os contatos interétnicos com representantes as frentes econômicas da sociedade nacional. Tiveram seu território titulado a favor de terceiros, o que se deu por parte do governo de Mato Grosso, e os desdobramentos desse processo estão ligados ao que se considera como um colonialismo interno. Disso resulta uma situação histórica particular e um processo de territorialização em áreas a eles destinadas pelo Estado brasileiro, onde comunidades inteiras foram confinadas e tiveram que se adaptar a outro tipo de vida.

3 PROCESSO DE REGULARIZAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS NO VALE DO GUAPORÉ O processo de regularização de terras indígenas no Vale do Guaporé, in- cluindo a terra homônima, teve início nas décadas de 1960 e 1970. Price (1989), em seu livro Before the Buldozer, relata como se deu o processo de identificação e delimitação de reservas indígenas para os Nambikwara no período. O autor informa que em 1968, o general Artur da Costa e Silva, presidente do Brasil nos tempos do regime militar (1964-1985), deferiu a criação da Reserva Nambikwara, área dividida pelos rios Juína e Camararé. De acordo com relatório da FUNAI: A exploração do território Nambikwara, por empresas agropecuárias e ma- deireiras, trouxe aos índios a desestruturação de seu ecossistema, redução de seus recursos de fauna e flora, poluição de fontes de água, destruição de

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roças por rebanhos, contagio de doenças, subnutrição, redução populacio- nal, e comprometimento de sua própria sobrevivência (FUNAI, 1981, p. 18). Price (1989) informa que a área demarcada, cerca de 1/6 do território e originalmente ocupada por uma pequena parte da população Nambikwara, era, quase que totalmente, formada por terra improdutiva onde a pobreza e a aridez do solo eram patentes. Pretendia-se, por parte do governo federal, assentar na área todos os povos Nambikwara que habitavam a região e circunvizinhanças. A pretensão do Estado brasileiro era liberar as demais áreas, geralmente com solo mais produtivo, a empreendimentos privados de natureza agropastoril. No relatório citado anteriormente (FUNAI, 1981, p.19), é colocado que no dia 8 de outubro de 1968, através do Decreto n. 6.368, foi criada a Reserva Indígena Nambikwara. Havia nessa área 15% da população Nambikwara que vivia em duas aldeias: Camararé e Serra Azul. O órgão indigenista oficial tinha como objetivo transferir para o lugar os demais coletivos estabelecidos nas terras férteis do Vale do Guaporé. Ainda segundo o relatório supracitado, após ter sido demarcada a Reserva Nambikwara, a recém-instituída FUNAI deu início ao processo de concessão e emissão de certidões negativas, que tinham como objetivo principal legitimar,- frau dulentamente, a não existência de indígenas no Vale do Guaporé. A esse respeito, Costa (2002) explica que em relatório produzido em 1955 pelo Departamento de Terras, Minas e Colonização, consta que as terras circunscritas ao estado de Mato Grosso se encontravam divididas em lotes e entregues a 22 companhias, sendo que cada uma delas tinha direito de ocupar, no mínimo, 200.000 hectares. Fernandes da Silva (1987), por sua vez, comenta que no ano de 1979, o então padre jesuíta Iasi denunciou que a reserva indígena criada no Vale do Guaporé estava a ser totalmente invadida por empreendimentos agropecuários; a maioria contava com financiamento da SUDAM. A autora ressalta que a libera- ção de incentivos por parte do órgão governamental somente era feita mediante apresentação de certidões negativas, emitidas pela FUNAI.

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Figura 2 – Foto de certidão negativa emitida pela FUNAI em 1973.

Fonte: Carelli e Severiano (1980).

Na obra Mão branca contra o povo cinza, Carelli e Severiano (1980) discor- rem sobre as certidões negativas e a transferência dos indígenas do vale para a reserva recém-criada na Chapada dos Parecis. Apenas 9 dias depois da criação da reserva, a FUNAI dá início a distribuição de certidões negativas atestando que não havia índios no Vale, documentos necessários para que empresas daqui e do mundo viessem engordar na terra Nambikwara, instaladas com dinheiro público, através dos chamados incentivos fiscais da SUDAM (Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia). Nas certidões, a FUNAI ainda se comprometia com os fazendei- ros a transferir o povo de Etreka para a chapada inóspita, do outro lado da BR-364 (CARELLI e SEVERIANO, 1980, p.11). Carelli e Severiano (1980) e Fernandes da Silva (1987) esclarecem que quan- do o coronel Costa Cavalcanti tomou posse e assumiu o Ministério do Interior,

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Quadro 1 – Fazendas criadas na região do Vale do Guaporé. FAZENDAS ANO 1- Colonizadora Guaporé 1968 2- Estrela do Guaporé Florêncio Bonito S/A 1968 3- Nomura Agropecuária 1968 4- Vale do Guaporé 1969 5- Sapé Agropecuária S/A 1969 6- Leo Maniero 1970 7- Kanaxuê 1970 8- Agrário Agropecuária do Rio S/A 1970 9- Banguá S/A 1970 10- Galera S/A 1970 11- Cabixi 1970 12- Companhia Guaporé-RO 1971 13- Cerro azul 1971 14- Agropecuária União S/A 1971 15- Guaporé Galera S/A 1971 16- Nambikwara Ltda. 1971 17- Itapicuro S/A 1971 18- Edmundo José Rodrigues 1971 19- Albino Villa 1974 20- Sorano S/A 1974 21- Coonfap – Cia Nova Fronteira 1976 22- Coonfap – Cia Nova Fronteira 1979 Fonte: Carelli e Severiano (1980).

5 À época, o Ministério do Interior detinha a pasta da FUNAI. Atualmente, o órgão indigenista está ligado ao Ministério da Justiça.

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A pista de pouso retratada mais adiante, na Figura 3, foi estabelecida nos anos 1970, época em que Eduardo, missionário evangélico do Summer Institute of Linguistics (SIL), residia numa aldeia Wasusu.

Figura 3 – Pista de pouso construída na década de 1970 na aldeia da Pedra, território dos Wasusu na região do Vale do Guaporé.

Fonte: Fotografia de Rafael Lemos de Souza, 2014.

Sobre o assunto, o ancião indígena Heru, antiga liderança Wasusu, relata que um homem desceu lá de avião e mandou que todos os índios que residiam ali se mudassem para a reserva criada na Chapada dos Parecis. Caso contrário, poderiam morrer.

Heru: Antes foi assim. O Hélio Buk [Hélio Bucker]6, chefe da FUNAI, veio na

6 O militar Hélio Jorge Bucker foi chefe da 6ª ININD, a Inspetoria Regional vinculada ao Serviço de Proteção aos Índios. Após a extinção do SPI e criação da FUNAI, a ININD passou a ser de- nominada de Delegacia Regional. Bucker dedicou-se ao indigenismo oficial e foi titular da 5ª.

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aldeia da Pedra, onde morávamos. Ele era bem grande, alto, feio, bravo e ruim; parece, não sei, que morava em Cuiabá. Ele veio aqui nos ameaçar; nos mandar embora de nossa terra. Ele era um homem ruim; ele falou, falou muito; ele era um mentiroso, falou que nós, os Wasusu, éramos preguiçosos, que não trabalhávamos, e que o lugar que estávamos era dos fazendeiros que iam trabalhar, derrubar as árvores e plantar muito, e que nós tínhamos que ir morar com os Nambikwara na Serra Azul, pois tínhamos que deixar as terras para os fazendeiros porque se isso não acontecesse, os fazendeiros iam nos matar; ele disse aos fazendeiros que podiam nos matar, mas aí ele falou que só era para os fazendeiros nos matar se nós mexêssemos com eles. Nesse tempo, os americanos estavam aqui. O Felipe e o Eduardo, mas o Hélio Buk mandou eles irem embora. O David Price ficou muito bravo, mas ele também era americano; ele [Hélio Bucker] mandou o David embora também; ele foi embora triste, porque não gostava do que estava acontecendo. O Hélio Buk disse: “Olha, se vocês não forem embora os fazendeiros vão pápápá, matar todo mundo”. Eles tinham mesmo muitas armas, espingardas, revólveres, mas o David disse: “Vocês não podem deixar matar os índios”. Hélio Buk falava muito: “Vocês índios não trabalham; são preguiçosos”. Ele era um mentiroso, era tudo mentira o que ele falava; ele mentia muito. Os americanos tinham medo, não falavam nada, ficavam calados com a boca fechada dura. Eram o Eduardo e o Fritz. Ele, o Hélio Buk, voltou a falar: “Vocês vão embora ou pápápá, os fazendeiros vão matar vocês”. Então, o Hélio Buk falou vocês vão embora para a Serra Azul, para a Gleba, porque aqui agora é dos fazendeiros. Hélio Buk morava em Cuiabá ou Brasília, não sei direito, mas ele era amigo desses fazendeiros, e os peões desses fazendeiros andavam muito armados. Assim ele mandou nos levar lá para o campo, para a terra dos Nambikwara, para deixar nossa floresta para os fazendeiros derrubarem, plantar roças e capim. Esse homem, o Hélio Buk, nos mandou embora de nossa terra, e mandou os americanos embora também, o Eduardo, o Fritz. Ele disse que os fazendeiros tinham muita gasolina para andar de carro e trabalhar. Mas a FUNAI era o David Price; ele disse: “Vocês não podem deixar matar os índios, não podem permitir que isso aconteça”. Então o Hélio Buk disse: “Olha, peãozada, vocês não matem os índios se eles estiverem quietos, mas se eles mexerem com vocês, podem matar. Nesse caso, como estávamos em perigo de morrer ma- tados pelos peões das fazendas, então nós fomos para a Serra Azul, conforme a FUNAI falou, e o Hélio Buk. Esse homem era bem grande, alto, barrigudo e feio. Ele, o Hélio Buk, não queria mandar só nós os Wasusu pra Serra Azul, mas todos os outros como Alantesu, Hahaitessu... Todo mundo, pra deixar

Delegacia Regional da FUNAI, no antigo estado do Mato Grosso, em 1968, conforme consta no Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil. Disponível em:http://www. conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.php?pag=ficha&cod=154. Acesso em: 12 ago. 2018.

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todas as terras para os fazendeiros. Ele, o Hélio Buk, disse que não adiantava o David Price ficar escrevendo, fazendo documento, porque ele ia mandar todos embora. Acho que ele era presidente da FUNAI, não sei. Mas ele falava, falava muito. Brigou com os americanos missionários, que disseram: “Não, nós estamos aqui por causa da Bíblia”. Bíblia, diziam, que só a bíblia era verdade; Jesus eles falavam muito isso, mas era mentira, tudo era mentira dizia o Hélio Buk. Assim todos mentiam pra nós; o Hélio Buk, ele era um homem bravo e perigoso. O americano Eduardo quis nos defender, ele era nosso amigo. Ele falou que não podiam fazer isso com nós, que iria avisar a Polícia Federal, que a policia podia ir ver o que estava acontecendo; nós e os americanos também ficamos bravos com ele, e ele acabou indo embora triste. O Hélio Buk. Nós fomos enganados, pois quando chegamos aos Nambikwara, lá não tinha comida, não tinha caça; a gente ia caçar no mato, andava até três dias e não encontrávamos nada. A gente procurava, procurava e não encontrava porco, anta; por isso ficávamos com fome lá nas terras dos Nambikwara. Às vezes a FUNAI levava a gente pra caçar em nossas terras; nós matávamos porco bastante, mas era muita gente pra comer aí; logo toda a carne acaba- va e ficávamos de novo com fome. Nesse tempo, o David era a FUNAI. Aí, o Hélio Buk foi embora, então nós voltamos pra nossa terra. Aí, Silbene chegou, estava aqui com nós. Eles, o David e Silbene, fizeram documento, contando que a terra era nossa; então a Polícia Federal veio, chegou mandando toda a peãozada embora; eles foram levados de caminhão e avião; foi assim que desocupou a aldeia da Pedra, mas não dava pra nós vivermos no campo com os Nambikwara, por isso nós voltamos; aí então a FUNAI começou a nos ajudar. Isso só aconteceu porque eles viram que o Hélio Buk não gostava dos índios; nós descobrimos que o David fez muito documento. Você viu né, Rafael [Rafael Lemos de Souza], os papéis que o David fez, escreveu, né? Rafael: Quando vocês voltaram os fazendeiros quiseram matar vocês? Heru: Não, porque o Hélio Buk já tinha ido embora, e entrou um chefe de FUNAI melhor, que não deixava que matassem os índios. Foi assim, trocaram o chefe, porque o Hélio Buk não gostava dos índios; foi por isso que ele foi tirado da FUNAI, porque ele era ruim, só fazia mal para os índios. Por isso ele foi mandado embora, acho que ele foi pra São Paulo, ou foi embora do Brasil, outro país, né... Portugal, Peru, não sei [Heru ri porque os Wasusu saíram vitoriosos em relação ao Hélio Bucker]. O outro chefe da FUNAI que entrou era bom, comprava gasolina pro Silbene andar de carro e pra comprar outras coisas que nós precisávamos, e Silbene trazia. Assim foi desse jeito que voltamos; aí fizemos outras roças porque os fazendeiros queimaram as nossas roças antigas. Aí, nós tínhamos muita roça de novo, e muita caça, peixe; aí nós não ficamos mais com fome, porque fizemos nossas roças. (SOUZA, 2014, p. 58-9).

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A narrativa de Heru é rica em detalhes sobre a história dos Wasusu nos anos 1970. Atesta, dentre outras coisas, que a FUNAI, sob domínio dos militares, tinha o propósito e retirá-los de seu território tradicional e reassentá-los em outra área, onde não havia os recursos ambientais necessários à sua sobrevivência física e cultural. A tentativa de esbulho ou remoção forçada implica, também, em mu- danças abruptas no sistema de assentamentos e na subsistência dos indígenas. Felizmente, pouco tempo depois os Wasusu conseguiram retornar à área de suas antigas aldeias, onde atividades de caça, pesca, coleta, manejo agroflorestal e agricultura poderiam ser mantidas à sua maneira. No final do ano de 1973, precisamente na época do natal, equipes da Força Aérea Brasileira (FAB) e FUNAI tiveram que socorrer os indígenas que estavam dispersos no Vale do Guaporé, principalmente no vale do rio Sararé. Os que tinham escapado da fome estavam a morrer devido à epidemia de sarampo, do- ença trazida pelos “brancos” e para a qual eles não tinham grandes defesas imu- nológicas (CARELLI; SEVERIANO, 1980). Outras populações tinham sido afetadas por epidemias de gripe e varíola e, ainda, por doenças ocasionadas por ataques aéreos, feitos por fazendeiros ou pessoas a seu serviço que pulverizavam Tordon 155, mais conhecido como agente laranja, sobre as aldeias. Este crime aconteceu, inclusive, nas aldeias dos Katitaurlu, também conhecidos como Nambikwara do Sararé. Sobre o assunto, assim explicam Eremites de Oliveira e Pereira: A despeito dos desfolhantes químicos lançados por avioes e a mando de fazendeiros locais, refere-se especificamente ao Tordon 155, mais conheci- do como agente laranja, usado inclusive como arma quimica pelos Estados Unidos na guerra contra o Vietna, cujos efeitos sao avassaladores para a saude humana e para o meio ambiente. Em seres humanos doses elevadas de dioxina, conhecida como TCDD, um de seus componentes, tem aço teratogenica e hepatotoxica que conduz a perda de peso, lesoes vasculares, ulceras gastricas, abortos espontaneos, canceres e outros prejuizos. No meio ambiente o agente laranja serve principalmente como desfolhante quimico e herbicida; destroi coberturas vegetais e com elas o habitat dos animais, acumula no solo e nos lençis freaticos, polui toda ecologia e passa a fazer parte da cadeia alimentar [...]. Entre os Katitaurlu muitas pessoas foram envenenadas por inalaço do Tordon 155 e em decorrencia disso ficaram subnutridas porque, ademais, estavam com a saude debilitada e suas rocas e matas foram destruidas. Faltaram-lhes saude e condiçes fisicas para trabalhar em sua economia

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de subsistencia, alem de alimentos para colher, coletar e cacar nas matas. (EREMITES DE OLIVEIRA e PEREIRA, 2009, p. 28). Carelli e Severiano (1980, p. 12) verificam que um médico, enviado pela Cruz Vermelha Internacional, assim teria dito em 1973: “A vida desses índios é uma vergonha não só para o Brasil, mas para a humanidade”, demostrando sua indignação com o que estava a acontecer.

Figura 4 – Helicóptero da FAB a socorrer mulheres Nambikwara, enfermas devido a doenças causadas na região do Sararé, Vale do Guaporé, Mato Grosso.

Fonte: Oliveira (1981).

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Figura 5 – Homem Nambikwara enfermo devido a doenças causadas na região do Sararé, Vale do Guaporé, Mato Grosso.

Fonte: Oliveira (1981).

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Figura 6 – Mae e filho Nambikwara em sua casa na região do Sararé, Vale do Guaporé, Mato Groso. Na frente da residencia consta uma embalagem metalica do desfolhante quimico Tordon 155.

Fonte: Oliveira (1981).

A situaço apontada foi assim criticada em Cuiabá, na data de 11/06/1980, pelo entao deputado estadual Dante de Oliveira, durante expediente na Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso: O Governo Federal no projeto de pavimentaço abandonou o tracado da BR-364 para atender os grandes grupos economicos, interessados que o trajeto da rodovia financiada pelo Banco Mundial seja efetivado cortando o vale do Guapore, sem se importar com a eliminaço dos indigenas, com sua cultura, tradiçes e locais sagrados. Convem salientar que essas empresas estao ilegalmente instaladas na regiao atuando de forma criminosa contra o povo indigena e a natureza, utilizando indiscriminadamente o agente la- ranja, gerando nos seus primeiros contatos, verdadeiros escandalos, pelas doencas provocadas, caso especifico da “Operaço Sarare”, que levou o Sr. Nelson Faria, Superintendente da SUDECO a comparar os indigenas afetados

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com os “exilados da Biafra”. Abandonando todas as saidas para atender aos interesses dos grandes gru- pos economicos, o Governo mais uma vez demonstra que e forte apenas para reprimir trabalhadores, punir liderancas sindicais, processar deputados, mas covarde, canalha e subserviente para defender os autenticos interes- ses de nossa Patria e de nosso povo. Demonstram tambem os homens do Governo Estadual que as “profissoes de fe humanitarias” sao insuficientes para mascarar a face dos verdadeiros inimigos dos indios, que a exemplo de alguns pequenos proprietarios, sao vitimas dos grandes latifundiarios estabelecidos na Amazonia, e financiados com os incentivos fiscais custeados com o dinheiro do povo (OLIVEIRA, 1981 [1980], p.10). Na denúncia apresentada pelo parlamentar, fica cristalina a conivência do governo federal e do governo estadual com a situação enfrentada pelos Katitaurlu e outros povos Nambikwara na região mato-grossense do Vale do Guaporé. Sem duvida alguma, um dos maiores saldos negativos desses contatos interetnicos, iniciados com o encontro colonial e que perduram ate os dias de hoje, foi a diminuiço da biodiversidade e da sociodiversidade indigena na regiao do alto curso do rio Guapore e adjacencias. Com todos esses problemas territoriais e epidemiológicos, também decor- rentes de uma verdadeira guerra bacteriológica e química, a FUNAI resolve colocar no mesmo ano de 1973 os Mamaindê, Negarotê, Alantesu e Wasusu para coha- bitarem uma reserva no bioma Cerrado. Muitos se negaram a ir e os que foram se arrependeram: “Plantamos tudo: cará, milho, mas não deu nada. A terra não presta!”, disse um indígena cujo nome não foi registrado na publicação de Carelli e Severiano (1980, p.14). Até fins de 1974, os Alantesu e Wasusu voltaram para o Vale do Guaporé. No entanto, os Mamaindê e os Negarotê continuaram a morar na reserva, mas seguidamente iam caçar, pescar e cultivar seus roçados nas terras do vale, as quais estavam entregues a fazendeiros em nome do interesse “nacional”.

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Figura 7 - Mapa com indicação da área de transferência de povos indígenas na região do Vale do Guaporé

Fonte: Adaptado de FUNAI (1981).

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Após quase um ano a tentar promover a remoção forçada dos indígenas, o órgão indigenista percebe que as iniciativas de mudança não obtinham êxito. Os fracassos levaram os dois grupos – que concordaram com a mudança – a retornarem ao seu território de origem, o que ocorreu, sobremaneira, devido à baixa produtividade do solo da reserva onde foram assentados. Todavia, à época praticamente toda área do Vale do Guaporé havia sido dominada por fazendeiros com a intenção de desmatar a floresta para ali construir pastagens para a criação de bovinos. Diante da situação, a FUNAI adotou outro expediente para alcançar seus ob- jetivos. Arregimentou funcionários e iniciou um processo de delimitação de terras, geralmente definidas por diminutas e ilhadas reservas indígenas, assentando nelas os diversos povos indígenas ocupantes da região do Vale do Guaporé. Em outu- bro de 1975, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) aprova duas resoluções sobre o assunto: criar reserva na área interditada; paralisar o desenvolvimento das fazendas em áreas onde existissem indígenas. Segundo consta em posterior relatório da FUNAI (1981, p.18-20), o órgão indigenista então contrata o antropólogo Pedro Agostinho da Silva, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), para avaliar o Projeto Nambikwara. Neste documento, faz referência a outro relatório oficial, de 04/12/1975, e apresenta as seguintes observações: a) não alterar a reserva velha; b) prosseguir na tentativa de levar para a reserva velha, os índios do Norte; c) criar reserva nova na área interditada; d) realizar programas antimalárica no Vale do Guaporé; e) criar reservar Haihaintesu na região. Entretanto, a FUNAI não adotou as medidas sugeridas pelo CIMI e pelo citado antropólogo. De acordo com o mesmo relatório, no ano de 1976 o antropólogo Noraldino Vieira Cruvinel é designado para trabalhar no Vale do Guaporé, assim determinado com o propósito de indicar alternativas para solução dos problemas vivenciado pelos indígenas. São propostas pelo servidor público federal seis opções que seriam mais adequadas à população. A FUNAI decidiu pela quinta sugestão, que previa pequenas áreas independentes para os Wasusu, Alantesu e Hahaintesu, e o abandono de grande parte da terra interditada. Esta opção, segundo conta no relatório da FUNAI (1976), consiste em: Meio lado direito da Serra São Vicente, mais parte da fazenda Sapê Sararé onde estão as aldeias do Capitão Américo e Capitão Tito, mais áreas inde-

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pendentes para Alantesu, Wasusu e Hahaintesu. Vantagens: a) Área suficiente para instalação de todas as aldeias, sendo que sete delas encontram-se já instaladas e uma instalação que é a dos Waysu que estão em Vila Bela; b) Território tradicional; c) Terras férteis, propícias à agricultura; d) Menor atrito com fazendeiros; e) Facilidade de acesso às aldeias; f) Caça e pesca abundante em algumas áreas. Desvantagens: a) Ter que mudar três aldeias; b) Dificuldade de assistência por parte da FUNAI, uma vez que serão neces- sários quatro postos de atendimento com infraestrutura e pessoal; c) Dificuldade de contato entre as aldeias, uma vez que ficarão ilhadas entre as fazendas; d) Dificuldade de controle do contato indiscriminado, pois que os limites são superficiais; e) Dificuldade e impossibilidade de controle da poluição das fontes de água. f) Dificuldade de controle da dependência das fazendas.

Durante dez anos, entre 1980 e 1990, foram demarcadas algumas áre- as – ainda que de proporções geográficas modestas – de valor expressivo para os Nambikwara. Por volta de 1980, o Banco Mundial financiou o Projeto Polo Noroeste, que tinha por objetivo dar início à construção de uma estrada que unisse a rodovia federal BR-364, que liga Porto Velho a Cuiabá, passando pelo município mato-grossense de Pontes e Lacerda. A partir da década de 1980, foi lançado o projeto Polo Noroeste, anunciado com forte entusiasmo na Revista do Interior, periódico criado na época do regime militar: “Um programa novo, bem apoiado financeiramente, se dispõe a modificar em menos de cinco anos, o panorama físico, humano e econômico do território federal de Rondônia e noroeste de Mato Grosso” (Revista do Interior, n.9, p.50). O projeto tinha como objetivo trazer o desenvolvimento econômico à moda oci- dental para a região, o que se daria através da pavimentação asfáltica da rodovia BR-364 e da construção de várias estradas vicinais, além de um grande projeto de colonização para o assentamento de 22.000 famílias em Rondônia e outras 8.000 em Mato Grosso (ABREU, 2001).

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Segundo a mencionada autora, a abrangência do projeto em Mato Grosso era de 410.000 Km² e envolvia 11 municípios, os quais tinham ligação com a BR- 364: Cuiabá, Várzea Grande, Nossa Senhora do Livramento, Poconé, Cáceres, Mirassol do Oeste, Barra dos Bugres, Tangará da Serra, Vila Bela de Santíssima Trindade e Aripuanã, que fica na parte leste do rio Roosevelt. Ela ainda analisa que com a abertura da estrada houve o incremento do afluxo de migrantes à região, vindos das mais longínquas partes do Brasil, os quais estabeleciam fazendas e exploravam a madeira existente no território Nambikwara.

Figura 8 – Localização das Aldeias antes da construção do “novo” traçado da BR-364

Fonte: Adaptado de Carelli e Severiano (1980).

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Figura 9 – Proposta de demarcação mínima e indispensável produ- zido por entidades dedicadas a defesa e proteção do índio no Brasil

Fonte: Adaptado de Carelli e Severiano (1980).

Após esta situação, verificada especialmente durante a segunda metade do século XX, os povos Nambikwara, dentre eles os Wasusu, têm procurado viver no Vale do Guaporé à sua maneira, cada qual a partir de suas expectativas e par- ticularidades históricas e socioculturais. Os conflitos interétnicos não cessaram totalmente naquela parte de Mato Grosso e Rondônia. Por vezes suas terras são invadidas por madeireiros, garimpeiros e outras pessoas e instituições contrárias a seus interesses, as quais tentam se apoderar das áreas tradicionalmente ocupadas e explorar os recursos ambientais ali existentes. Embora tenha sido verificada uma

132 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 105-138, maio/ago. 2019 Etnoarqueologia e processo de territorialização entre os indígenas Wasusu do vale do Rio Guaporé, estado de Mato Grosso, Brasil expressiva depopulação na década de 1970, posteriormente houve o crescimento populacional em várias aldeias, a exemplo daquelas onde foram realizados os estudos etnoarqueológicos que embasam o presente trabalho. Em síntese, nota-se que durante boa parte da segunda metade do século XX, o governo de Mato Grosso e o órgão indigenista oficial, sobretudo durante o regime militar (1964-1985), atuaram juntos no sentido de promover a remo- ção forçada de povos Nambikwara há muito estabelecidos no Vale do Guaporé. Neste período, o SPI e depois a FUNAI agiram no sentido de beneficiar empresas colonizadoras e pessoas ligadas ao establishment da época. Exemplo disso é a concessão de certidões negativas, elaboradas de modo a atestar que em certas áreas não existiriam indígenas ou que não seriam espaços tradicionalmente ocupados por povos originários. A política indigenista oficial em vigor no período estava, portanto, direcionada à criação de uma reserva em uma área de Cerrado para ali confinar diversos coletivos Nambikwara. Esta situação favoreceu ao acir- ramento de conflitos internos, inclusive disputas por nichos onde havia poucos animais para a caça. Esses contatos interétnicos provocaram, ainda, a morte de várias pessoas devido a ação de agentes patogênicos de além-mar e por conta de uma verdadeira guerra química registrada nos anos 1970. Percebe-se, assim, quão problemáticos podem ser os contatos assimétricos entre os povos indígenas e a sociedade envol- vente no Vale do Guaporé, podendo desencadear uma série de intrincadas inter- -relações, nem sempre pautadas pela cordialidade, tolerância e compreensão das diferenças socioculturais. Conflitos desse tipo acabaram por desencadear cisões internas entre os Wasusu: até o segundo quartel do século XX, as famílias viviam em uma grande unidade de ocupação, chamada Aldeia da Pedra; atualmente, porém, vivem distribuídas em outras três aldeias. Nos últimos anos, das décadas de 1980 e 1990 em diante, os Wasusu têm se mobilizado politicamente para exigir seus direitos junto ao Estado nacional. Exemplo disso são casas de madeiras construídas por um consórcio da linha de transmissão que passa na área da TI Vale do Guaporé, empreendimento que provocou uma série de impactos negativos de ordem socioambiental. Carros, motocicletas e caminhonetes também foram adquiridas para serem distribuídas entre as aldeias, o que foi feito como medida compensatória a impactos gerados

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 105-138, maio/ago. 2019 133 Rafael Lemos de SOUZA; Jorge Eremites de OLIVEIRA pela construção de uma PCH (Pequena Central Hidrelétrica), localizada próxima da área. Apesar de neste artigo não ter sido abordada especificamente a materiali- dade dos Wasusu, faz-se necessário enfatizar que o processo de territorialização que este povo indígena sofreu não significou aculturação ou assimilação. Eles se- guem com suas práticas tradicionais como parte de uma estratégia de resistência particular e, ainda, como forma de manutenção de um modo de vida singular e antiguíssimo. Arcos, flechas, balaios, colares e outros artefatos tradicionais são sistematicamente produzidos e utilizados na comunidade. No âmbito dos contatos e da dinâmica sociocultural, verificou-se a utilização de utensílios industrializados para uso cotidiano na comunidade, como panelas de alumínio, machados com lâminas de aço, recipientes plásticos para armazenar e beber água etc. Fez-se ainda a espacialização das antigas e novas aldeias e o registro e descrição de assenta- mentos, atividades econômicas de subsistência e cultura material em geral (ver SOUZA, 2014, p. 67-134). O mesmo tipo de continuidade e mudança da cultura material é observada em diversos estudos etnoarqueológicos, o que não implica em perda da indianidade, isto é, da distintividade étnica ou alteridade em relação à sociedade nacional envolvente. Por fim, o importa aqui registrar que não basta ao etnoarqueólogo ir à campo para saber como os indígenas vivem e lá querer apenas observar elementos de um passado arqueológico longínquo e imemorial. É preponderante conhecer o processo de territorialização que historicamente marca seu modo de vida para compreender a materialidade das relações sociais observadas no tempo presente.

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Sobre os autores: Rafael Lemos de Souza – Doutorando em Arqueologia pelo Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ). Mestrado em Antropologia Sócio-Cultural pela Universidade Federal de Grande Dourados (UFGD). Graduação em Arqueologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Técnico do Laboratório de Arqueologia do Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás (LabArq-MA/UFG). Sócio efetivo da Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB) e sócio pós-graduando da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Experiência na área de Arqueologia, com ênfase em Etnoarqueologia, Etnologia Indígena, Bioarqueologia, Zooarqueologia, Tecnologia Cerâmica, Arqueologia Histórica, Arqueologia Pré-Colonial, e Arqueologia do Pantanal. E-mail: [email protected] Jorge Eremites de Oliveira – Mestre e doutor em História/Arqueologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Licenciado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Docente na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no curso de graduação e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia, ambos articulados nos campos da Antropologia Social e Cultural e da Arqueologia. Atua, também, no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural. Bolsista de produtividade em pesquisa, nível 1D, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Tem experiências nos campos da Arqueologia, Antropologia Social e História, com ênfase em Etnoarqueologia, Etnologia Indígena e Etno-história, bem como na produção de laudos administrativos e judiciais sobre terras radicionalmentet­ ocupadas por comunidades indígenas. E-mail: [email protected]

Recebido em 16 de agosto de 2018 Aprovado para publicação em 22 de novembro de 2018

138 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 105-138, maio/ago. 2019 “Fronteiras e políticas que atravessam a identidade e a sociabilidade indígena”: uma análise acerca dos sentidos das migrações Palikur na fronteira Brasil-Guiana Francesa “Frontiers and policies that cross indigenous identity and sociability”: an analysis of the meanings of Palikur migrations on the Brazil-French Guiana Border

Venâncio Guedes Pereira1 Carmentilla das Chagas Martins1

DOI: http://dx.doi.org/10.20435/tellus.v19i39.579

Resumo: O presente artigo tem como objetivo discutir a sociabilidade do povo Palikur, habitante da fronteira franco-brasileira a partir da concepção de identidade e de fronteira étnica, de forma a perceber como esses indígenas sofreram e lidaram com as políticas dos Estados brasileiro e francês após o Laudo Suíço de 1900. No tocante ao contato com as políticas dos Estados, os Palikur são obrigados a conviver com fronteiras impostas por não indígenas, que reverberam historicamente em sua sociabilidade, mas que, apesar do fator “identidade nacional”, mantém a identidade étnica Palikur, utilizando as identidades francesa e brasileira justamente para se adaptarem à fronteira geopolítica, e usando os movimentos migratórios como artifício principal. Palavras-chave: Palikur; fronteira Brasil-Guiana Francesa; identidade; migrações. Abstract: This article has as objective to discuss the sociability of the Palikur people, inhabitant of the French-Brazilian Broder, from the conception of identity and ethnic border, in order to understand how the natives suffered and dealt with the policies of the Brazilian and French States after the Swiss Report of 1900. Concerning the contact with the policies of the States, the Palikur are obliged to live with boundaries imposed by non-Indians, that reverberate historically in their sociability, but which, despite the “national identity” factor, uphold the Palikur ethnic identity, using French and Brazilian identities precisely to adapt to the geopolitical frontier, and using migratory movements as the main artifice. Keywords: Palikur; Brazil-French Guiana border; identity; migrations.

1 Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), Macapá, Amapá, Brasil.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 139-158, maio/ago. 2019 Venâncio Guedes PEREIRA, Carmentilla das Chagas MARTINS

1 INTRODUÇÃO Os Palikur, etnia indígena do tronco linguístico Aruak, que habitam na fron- teira entre Brasil e Guiana Francesa, mais precisamente nas cidades de Oiapoque (às margens do rio Urukauá, afluente da bacia do rio Uaçá),Saint-Georges, Régina, Roura e Macouria, apresentam uma sociabilidade bastante específica, observável no campo historiográfico das diversas populações autóctones que vivem em espa- ços transnacionais e convivem com imposições do Estado a partir de mecanismos sociais de cooptação, dentre eles a “identidade nacional” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2005). Nesse contexto, os Palikur, “donos” do espaço habitado (historicamente falando), lidam com tais mecanismos de controle político e social de ambos os Estados, sendo empurrados a buscar políticas públicas em ambos os territórios, acionando ora a identidade indígena brasileira, ora a identidade cidadã francesa. Para observar as ações dos Estados nessa política de controle de indígenas na fronteira franco-brasileira, é importante destacar os movimentos migratórios dessas populações da região, seja para comércio, firmar moradia, fugir de guer- ras ou buscar auxílio do próprio Estado (MUSOLINO, 2006). Neste sentido, vale ressaltar que essa prática migratória faz parte das estratégias de sobrevivência dos Palikur, que, em diferentes recortes históricos, as utilizam para diversos fins, sempre ressaltando o movimento como tradicional e inerente à sua identidade como grupo étnico2. Para esta discussão, se poderia utilizar um recorte bastante longo (desde as investidas dos reis de Portugal e França nos séculos XVIII e XIX, por exemplo), mas nos limites deste artigo, se remeterá ao recorte temporal exatamente após o período do Contestado franco-brasileiro, ou seja, depois de 1900 – quando se teve um Estado com direito, de fato, sobre a terra contestada outrora – até o tempo presente. Aspectos como a história dos Palikur e sua relação com os Estados brasi- leiro e francês, as estratégias de sociabilidade através dos fluxos migratórios e a qualidade do Palikur como um agente transeunte da fronteira (física e identitária) serão discutidos neste texto, em diálogo com estudos sobre os Palikur e trabalhos

2 Para Barth (2000, p. 27), “grupos étnicos são categorias atributivas e identificadoras emprega- das pelos próprios atores”. O autor ressalta que os grupos étnicos se formam a partir de várias características compartilhadas que se aglomeram, girando em torno da identidade como grupo a partir da socialização com outros grupos étnicos/sociais, definindo-os (BARTH, 2000, p. 27).

140 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p.139-158, maio/ago. 2019 “Fronteiras e políticas que atravessam a identidade e a sociabilidade indígena”: uma análise acerca dos sentidos das migrações Palikur na fronteira Brasil-Guiana Francesa de teorias antropológicas, com o objetivo de analisar as problemáticas causadas pelas políticas públicas dos Estados e apresentar uma interpretação a partir do conceito de identidade híbrida.

2 O HISTÓRICO DOS PALIKUR NO BRASIL (POLÍTICAS DO ESTADO E A PRESENÇA DA IGREJA) O final do século XIX e o início do século XX, com o estabelecimento do direito à terra contestada em favor do governo brasileiro mediante o Laudo Suíço de 1º de dezembro de 1900, significou uma profunda mudança na vida dos Palikur e dos demais povos indígenas da região. A exemplo disso, documentos da época citam uma diminuição do deslocamento de povos Caribe e Aruak pela região, mostrando uma substancial mudança de vida, agora mais sedentária. Sobre o Laudo Suíço: Em 1897, após anos de conflitos com várias baixas dos dois lados, um termo de compromisso, assinado por delegados do Brasil e da França, confiou a resolução do Contestado à arbitragem do presidente da federação Suíça, Walter Hauser. Os dois países, de um lado Brasil e do outro a França, reuni- ram a maior quantidade de arquivos possíveis para provar suas proposições [...] Após inúmeros estudos e conferências, a sentença foi pronunciada pelo governo suíço três anos mais tarde (1900), concedendo ao Brasil a posse definitiva da região litigiosa através laudodo suíço ou laudo de Berna. (SILVA; RUCKERT, 2009, p. 5). Mesmo com a terra em mãos brasileiras, as tradicionais relações de comér- cio entre indígenas e franceses na fronteira transpassavam as questões do litígio entre as nações, e embora este caso já tivesse sido “resolvido” mediante a lei, os indígenas continuavam trocando mercadorias – fato que desagradava ao governo brasileiro –, principalmente os Palikur, que representavam um dos maiores con- tingentes populacionais indígenas da época, com 189 pessoas do lado brasileiro em 1926 (NIMUENDAJU, 1926, p. 48). O governo deu aval à proposta de Cândido Mariano Rondon, que era a de nacionalizar os indígenas da área e salvaguardar a fronteira, política esta que atravessou o século XX em muitas fronteiras nacionais com presença indígena no país. Nesse processo, tanto no Brasil quanto na Guiana Francesa, “ações protecionistas tomaram formas jurídicas e procuraram, através da cidadania, atrair as populações indígenas” (MUSOLINO, 2006, p. 13).

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 139-158, maio/ago. 2019 141 Venâncio Guedes PEREIRA, Carmentilla das Chagas MARTINS

Nesse período, era muito comum a escolha por políticas de nacionalização de populações em regiões fronteiriças, especialmente as indígenas, uma prática constante na recém-criada República brasileira. Na região do Alto rio Amazonas, na fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, a etnia indígena Ticuna também sofrera sanções e impactos por meio de políticas colonizadoras e nacionalizadoras dos Estados em fronteira, em processos muito similares aos vivenciados pelos Palikur. De acordo com López Garcés (2002), algumas instituições foram encarregadas deste trabalho: La brasileñidad, peruanidad y colombianidad de los ticuna, entre otros pue- blos indígenas asentados en esa región de fronteras, debieron ser construidas mediante los esfuerzos de diferentes instituciones que los diversos estados- -nación de signaron para tal propósito. Destacamos el papel importante de los ejércitos nacionales en los procesos de brasilerización y peruanización de los indígenas, y el de la iglesia católica en el de colombianización de los mismos. (LÓPEZ GARCÉS, 2002, p. 79). Sobre as relações sociais e comerciais dos Palikur com europeus, prin- cipalmente, com os franceses, remete-se ao que Barth (2000) escreve sobre fronteira étnica. Para ele, a manutenção da fronteira étnica se dá a partir de uma interação social (no caso dos Palikur, o uso da língua francesa para o comércio), em que, apesar do contato de culturas diferentes, tais grupos se mantêm como unidades. Em outros estágios, essas interações reduzem as diferenças, uma vez que “interação tanto requer como gera certa congruência de códigos e valores” (BARTH, 2000, p. 35). Em outras palavras, apesar de existirem diferenças culturais entre os Palikur e os europeus comerciantes, a concordância de códigos e valores (o próprio comércio e também a visão acerca dos portugueses e dos brasileiros como “inimigos”) permitiu a interação entre eles, causando modificações e res- significações entre os tratantes, ao modo particular de cada um. Para o Estado brasileiro, tais modificações eram nocivas à soberania da nação. Com essas mudanças políticas na virada do século, o papel dos indígenas da fronteira foi repensado. Se antes a importância do contato com estes habi- tantes por parte de portugueses e franceses se dava por conta de mão de obra, influência na terra e comércio, agora o papel a ser incorporado pelos indígenas tomou uma proporção muito mais estratégica. Nos moldes positivistas da épo- ca, os indígenas se transformariam nos inspetores da fronteira, e as guardariam

142 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p.139-158, maio/ago. 2019 “Fronteiras e políticas que atravessam a identidade e a sociabilidade indígena”: uma análise acerca dos sentidos das migrações Palikur na fronteira Brasil-Guiana Francesa para o Estado brasileiro. Para isso, eles passariam por um profundo processo de nacionalização, onde a educação escolar, o ensino da língua nacional, a fixação e produção em terras brasileiras e o direito à saúde seriam todos oferecidos pelo governo, ou seja, o Estado tomaria para si a tutela dos indígenas em fronteiras. Em 1930, após a indicação de Rondon sobre a necessidade da criação de um posto indígena e escola, foi criado o primeiro posto indígena do Serviço de Proteção aos Índios3 (SPI) na região do Uaçá, em um ponto geograficamente es- tratégico, chamado Encruzo (ponto de cruzamento entre os rios Curipi e Uaçá), local pensado por ser a porta de entrada das aldeias Galibi-Marworno e Palikur, e que serviu por anos como local de inspeção e revistas, principalmente à procura de bebidas alcoólicas transportadas por indígenas, aos quais o governo proibia o consumo. O SPI é, sem dúvida, o primeiro grande representante do Estado brasileiro entre os Palikur. Nacionalizar, educar e agrupar os indígenas da região era parte da política de soberania do Estado. Observa-se, neste momento, que os indígenas usaram de estratégias para subterfugiar tal controle, como o contrabando e as diásporas para a Guiana Francesa (para fugir das leis brasileiras). Como a grande marca da “modernidade” republicana, que há pouco adentrara no país, era o dis- curso de progresso em detrimento ao Palikur “primitivo”, toma-se a discussão de Martins (2014) sobre astemporalidades históricas, que, por serem tão díspares, ao se encontrarem ocasionam diferença, conflito. Com o objetivo de “progredir” com os indígenas, o SPI, representado pela figura de Eurico Fernandes, também fazia um trabalho de fiscalização no posto do Encruzo, não só para impedir o “contrabando” de mercadorias produzidas pelos indígenas no Brasil, mas também para diminuir cada vez mais o contato com os franceses. Fernandes (1953) relata que, em 1931, primeiro ano em que esteve entre os Palikur no posto do SPI, a população era de 202 pessoas, dentre elas: 59 homens, 65 mulheres, 32 menores do sexo masculino e 46 menores do sexo feminino. O mesmo autor argumenta que em 1943, doze anos após o início do

3 A presença do SPI no Uaçá mudou o panorama social dos indígenas da região, pois interferiu na produção econômica, principalmente na introdução de outras espécies de cultivos; fortaleceu a representação dos caciques; e junto ao regime nas escolas, estabeleceu a prática de castigos morais e físicos a quem era contra as normas instituídas pelo órgão (CAPIBERIBE, 2007).

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 139-158, maio/ago. 2019 143 Venâncio Guedes PEREIRA, Carmentilla das Chagas MARTINS trabalho do órgão na região, os números eram diferentes, 273 pessoas divididas em 67 homens, 66 mulheres, 88 menores do sexo masculino e 52 menores do sexo feminino. É interessante perceber o discurso político nacionalista na fronteira, muito presente nos relatórios do SPI, inclusive naquele escrito por Fernandes, uma vez que justifica o crescimento populacional dos Palikur graças ao trabalho realizado pelo órgão no Uaçá: É natural que perseguidos, espoliados, caçados, etc. [...] fatalmente desapa- recerão; porém protegidos, tratados, evitando-lhes os vícios, notadamente o álcool, dando-lhes as terras e os meios de que necessitam, curando-se-lhes as enfermidades e o organismo combalido pela verminose, o resultado será o aumento de sua população, resultado de primordial interesse e benefício para a Pátria e a Humanidade. (FERNANDES, 1953, p. 284). Nos anos de 1950 até o final dos anos de 1960, a ação do SPI no Oiapoque perdeu força, principalmente em decorrência da diminuição de sua verba de manutenção e de administrações corruptas; e aos poucos perdeu também credi- bilidade. Em 1967, o SPI foi extinto, e em seu lugar foi criada a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Além da forte presença do Estado, outro fator de contato que modificou a sociabilidade Palikur foi o cristianismo. Historicamente é difícil apontar um marco histórico específico para determinar o início das tentativas de evangelização dos Palikur, seja por franceses, portugueses e brasileiros ou de qualquer outra nação. Curt Nimuendaju, em sua pesquisa na região do Oiapoque em 1926, fez uma importante análise dos Palikur no início do século XX citando “trapos da religião cristã” como o batismo da população pelo então vigário de Saint-George, o uso das palavras “Ohogri e Wapetpiy4” e o enterro cristão, para explicar a presença do cristianismo “dos jesuítas” de décadas passadas pela região (NIMUENDAJU, 1926, p. 45). O autor indica que, apesar destas práticas, a cristandade Palikur acabava por aí, pois não havia capelas, nem imagens de santos e muito menos conhecimento da doutrina cristã entre a população (NIMUENDAJU, 1926, p. 45) . Em uma passagem específica, o autor nos aponta sob quais doutrinas religio- sas os Palikur viviam a época de sua pesquisa, o que nos ajuda a concluir que as

4 Ohogri, traduzido para o Creole como “bom dié” (meu Deus); Wapetpiy, traduzido para o Creole como “diab” (Diabo) (NIMUENDAJU, 1926, p. 45).

144 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p.139-158, maio/ago. 2019 “Fronteiras e políticas que atravessam a identidade e a sociabilidade indígena”: uma análise acerca dos sentidos das migrações Palikur na fronteira Brasil-Guiana Francesa mudanças mais significativas entre os Palikur, das quais se apresentam até hoje, tenham ocorrido a partir da segunda metade do século XX: Ao lado destes trapos da religião cristã ainda se conserva, como unidade perfeita, a antiga crença: a religião dos pajés. Esta não trata de Ohogri e Wapetpiy, mas se ocupa exclusivamente com os demônios da montanha e da água que povoam em bandos o país, e com os espíritos dos mortos, especialmente os dos finados pajés [...] Toda ação dos pajés se resume num manobrar constante dos demônios e espíritos defuntos, amigos uns, inimigos outros; todo engenho destes pajés consiste em saber trata-los com jeito e saber jogá-los manhosamente uns contra os outros. (NIMUENDAJU,1926, p. 46). O cristianismo se instalaria de fato no Urukauá em meados da década de 1960, com o casal de norte-americanos Harold e Diana Green, a serviço do Summer Institute of Linguistics (SIL). Os missionários foram à comunidade com o objetivo de conhecer os indígenas, estudá-los, traduzir o evangelho bíblico para a língua nativa dos Palikur, o Parikwaki, e evangelizá-los. De acordo com os próprios Palikur, na década de 1950 ocorreram as primeiras tentativas, com missionários e outras Igrejas evangélicas, de uma aproximação com os indígenas, mas foi com o casal Green que “começava então uma obra que teria longa duração e cujos resultados seriam profundos” (CAPIBERIBE, 2007, p. 167). O trabalho da SIL no Urukauá teve início nos anos 1950, com as primeiras tentativas do órgão de trabalhar com os indígenas da região, porém a autorização só foi concedida a eles pelo governo brasileiro mais de uma década depois, “através de um convênio com a divisão de educação, primeiro do SPI e posteriormente da FUNAI, sob a rubrica “sub-programa Palikur” e também sob o convênio firmado entre SIL e o Museu Nacional” (CAPIBERIBE, 2007, p. 168). O convênio autoriza- va os agentes a realizarem seu trabalho missionário, enquanto deveriam colher dados linguísticos dos indígenas e construir um material para o Museu Nacional, dentre eles um dicionário Palikur/Português. O início do trabalho do casal Green foi se ambientar ao modo de vida dos Palikur, fazendo sua ação evangelizadora da forma mais sutil possível, e da mesma estratégia ganhar confiança da comunidade. Mesmo com o trabalho dos Green entre os Palikur, foi outro evento que definitivamente transformou a percepção dos Palikur quanto à religião cristã. Em 1980, um pastor chamado Glen Johnson, membro da News Tribes Mission (NTM),

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 139-158, maio/ago. 2019 145 Venâncio Guedes PEREIRA, Carmentilla das Chagas MARTINS em uma viagem à Argentina, acabou tendo problemas em sua embarcação, e após ser avisado por um guarda de Clevelândia de que havia indígenas “ainda não alcançados” na região, resolveu desembarcar no Urukauá e realizar uma incursão. Neste momento, os Green estavam afastados do Urukauá, e então o pastor Jonhson, que não conhecia o português e tampouco o Parikwaki, precisou de um tradutor Palikur, e contou com a ajuda de Paulo Orlando, um dos líderes da comunidade Palikur e que, inclusive, foi um importante interlocutor indígena para o casal Green e se tornou um dos representantes da religião protestante no Uaçá. No final da década de 1970, na gestão de Paulo Orlando como cacique e chefe do posto da Funai, a primeira Igreja evangélica da Assembleia de Deus (IEAD) foi levada para o Urukauá, com a ajuda do pastor da IEAD do Oiapoque e da IEAD de Macapá. Os Palikur assimilaram a nova vida como cristãos ao longo do tempo, como um processo que, a princípio, subsistia com a religião pagã, própria dos indígenas. Neste contexto, o elo principal entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses entre os indígenas do Oiapoque era a figura do xamã (Pajé): O xamanismo é no baixo Oiapoque um conjunto de teorias e práticas que possibilitam a administração de relações entre domínios cosmológicos diversos onde estão pessoas igualmente diversas. Trata-se de interferir na entropia cósmica a favor da sociedade e dos homens, manipulando, nego- ciando, controlando ou agenciando as múltiplaspsyches (intencionalidades) com as quais o pajé lida. (ANDRADE, 2007, p. 109). O xamã é o provedor dos poderes da cura, do feitiço, salvação e respostas diversas para quaisquer dúvidas dos indígenas. A presença da Igreja no Urukauá transformou a forma com que os Palikur viam o xamã, e esse momento represen- tou um divisor de águas na vida dos Palikur. A partir dos anos de 1960, quando o trabalho missionário ainda não estava consolidado, até meados dos anos de 1980, muitos vestígios da mudança acabaram aparecendo: Uma desconfiança recíproca ocorre entre os Palikúr, no que diz respeito a prática de malefícios, envolvendo não raro até parentes próximos. Em vista disso, procuram evitar o mais possível comer em casas de terceiros receando estar a comida enfeitiçada, salvo nos mutirões onde as refeições ocorrem coletivamente. Invariavelmente, costumam lançar as sobras das refeições nos cursos d’agua, a fim de não serem colhidas para algum desafeto para utilizá-las nas práticas do mal. [...] os Palikúr conhecem numerosos remédios nativos e formas de tratamento próprio, mas consideram as enfermidades

146 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p.139-158, maio/ago. 2019 “Fronteiras e políticas que atravessam a identidade e a sociabilidade indígena”: uma análise acerca dos sentidos das migrações Palikur na fronteira Brasil-Guiana Francesa

como essencialmente causadas por forças demoníacas. (ARNAUD, 1984, p. 39). Este relato recolhido por Expedito Arnaud em 1984 demonstra alguns aspec- tos muito interessantes para se pensar o processo de mudança e ressignificação que os Palikur viviam perante suas práticas religiosas. Observa-se, no relato, um medo de comer na casa de outras pessoas, pelo fato de poder a comida estar enfeitiçada. Em primeiro lugar, o xamã sempre despertou entre os indígenas da região do Uaçá o sentimento de respeito, por ser detentor de tantos dons consi- derados “divinos”, e também o sentimento do medo, uma vez que este poderia ser o responsável pela cura ou pelo feitiço que uma determinada pessoa sofrera, o que poderia se desenvolver em uma sucessão de acusações, feitiço contra feitiço, e também em uma guerra movida a vinganças. Sendo assim, o choque com a religião evangélica teve seu alvo justamente nas ações do xamã, uma vez que, para a Igreja, só Deus pode curar, e este, por sua bondade e misericórdia, não amaldiçoa. Em 1984, quando o fato foi relatado por Arnaud, a época era de transição entre os Palikur, o que torna o “medo” dos feitiços e a citação de uma “causa demoníaca” nestas práticas uma clara alusão de interpretação do xamã como um agente “não cristão”, e esta interpretação, sem dúvida, demonstra que a religião evangélica ganhava adeptos no decorrer das décadas posteriores à chegada do casal Herold e Diana Green no Uaçá. A partir da conversão em massa dos Palikur (principalmente entre os anos de 1970 e 1980), naturalmente o xamã se tornou uma figura cada vez mais afastada desta nova realidade comunitária. Este processo se deu, pois, o pentecostalismo/cristianismo propôs aos Palikur uma configuração social diferente da vivida antes, e isto explica o afastamento do xamã do “centro” cultural do seu povo, ou seja, o agente que detinha os principais conhecimentos e era a referência das ações deste povo passou a ser visto como principal causador de uma vida marcada por agressões, revides, vinganças e discussões. Ao modo particular de vida dos Palikur podemos observar que a religião evangélica se torna central como detentora dos costumes, sendo também im- portante em suas representações, pois o crente fiel é quem melhor representa o ideal Palikur do tempo presente. Apesar desta realidade, a religião tradicional Palikur não pode ser dita como totalmente excluída, tampouco esquecida, mas

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 139-158, maio/ago. 2019 147 Venâncio Guedes PEREIRA, Carmentilla das Chagas MARTINS encontra-se num estado que pode ser descrito como de apaziguamento, no qual os crentes percebem um perigo de retorno iminente de um mundo que por meio da religião haviam se esforçado por esquecer (CAPIBERIBE, 2007). As transformações indicadas nas ações do Estado brasileiro e na evangeli- zação cristã levada a efeito por igrejas evangélicas modificaram desde a paisagem das aldeias até os aspectos culturais mais profundos, dos quais talvez ainda nem tenhamos percebido. O século XXI se apresenta com a mesma realidade vivida pelas comunidades indígenas nos quatro séculos que antecedem o atual: uma aproximação de indígenas e não indígenas cada vez mais forte, seja nas cidades ou nas terras indígenas, e também as exposições contemporâneas das mais varia- das culturas indígenas do Brasil. Por certo, os Palikur não seriam excluídos dessa realidade, e viveriam nos primeiros anos da década de dois mil, eventos que os levariam para além das fronteiras por eles já vividas em sua história.

3 A CIDADE DE OIAPOQUE E AS DINÂMICAS NA FRONTEIRA Os Palikur são do tronco linguístico Aruak e indicados por Vidal (2001) como habitantes originários de toda região, atualmente denominada de franco- -brasileira. Em sua organização social encontram-se clãs patrilineares exogâmicos. Eles vivem em aldeias tanto no Brasil, quanto na Guiana Francesa, sendo regular o contato entre as aldeias; portanto, os Palikur têm vivências caracterizadas pelo que denominamos de práticas de atravessamento da fronteira política. Como demonstrado anteriormente, estão conververtidos a religião Petencostal há mais de três décadas e mantêm poucos rituais indígenas, no entanto possuem um “acervo importante de mitos e ‘histórias dos antigos’, além de uma rica cultura material (VIDAL, 2001, p. 119). Como se depreende o uso do termo “sentidos das migrações” faz-se neces- sário como chave de interpretação devido à complexidade das relações sociais na fronteira Brasil-Guiana Francesa, sentida, em especial, pelas comunidades indíge- nas que residem na região. Essa complexidade se encontra em vários aspectos, sobretudo na dicotomia existente nos acordos de cooperação e nas constituições sociais e históricas de França e Brasil. O município brasileiro de Oiapoque, que fica no extremo norte do Amapá, é constantemente relatado por pesquisadores (PINTO, 2008; MARTINS, 2009;

148 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p.139-158, maio/ago. 2019 “Fronteiras e políticas que atravessam a identidade e a sociabilidade indígena”: uma análise acerca dos sentidos das migrações Palikur na fronteira Brasil-Guiana Francesa

OLIVEIRA; 2011) como um local de grande fluxo de pessoas, dos mais variados estados brasileiros, que chegam à cidade em busca de emprego. Outra recorrente característica é o fato de que a cidade se encontra em um lento desenvolvimento urbano e humano, com precariedade de bens públicos e forte presença da iniciativa privada, com lojas de roupas, hotéis, restaurantes etc. De acordo com Pinto (2008, p. 82), “a presença do Estado brasileiro nesta região está longe de ser qualificada, e ainda é extremamente frágil. Apesar das instituições estarem presentes na região, tem-se a impressão que elas existem apenas por uma exigência constitucional”. Esta observação permite pensar a realidade migratória na região. Em busca de oportunidades diversas, desde o trabalho formalizado (por meio de documen- tação e visto francês) até os trabalhos informais (como a prostituição e o garimpo), brasileiros atravessam a fronteira, sendo frequentemente remanejados ao Brasil pelo governo francês. Este movimento ocorre desde, pelo menos, a década de 1960, desde a construção do centro aeroespacial da cidade de Kourou (FR), quando o governo francês incentivou a ida de brasileiros para o país, com a finalidade de obter mão de obra barata para suas obras públicas (PINTO, 2008; OLIVEIRA, 2011). Desde o Laudo Suíço de 1900, as relações entre Brasil e Guiana Francesa são vivenciadas a partir da indiferença (CERVO, 2002apud MARTINS, 2016), o que só veio mudar a partir doA cordo Quadro de Cooperação, assinado pelos presidentes do Brasil e da França, respectivamente, Fernando Henrique Cardoso e Jacques Chirac, em 1996. Sobre tal acordo: A institucionalização da cooperação transfronteiriça franco-brasileira carrega em seu bojo propostas que pretendem estimular ações conjuntas para o desenvolvimento socioeconômico sustentável nas coletividades situadas de um lado e outro do rio Oiapoque, limite natural e divisor das soberanias. (MARTINS, 2016, p. 38). Apesar do acordo firmado, Martins (2016) aponta que é na problemática existente nas migrações brasileiras para a Guiana que se encontram os maiores constrangimentos no acordo. Na verdade, a cooperação foi pensada no campo da diplomacia das Relações Internacionais, deixando de lado as questões mais emergentes no trato da fronteira, a dizer, o movimento migratório de franceses ao Brasil, em busca de produtos e bens mais baratos, e, sobretudo as migrações brasileiras para a Guiana Francesa, que historicamente são criminalizadas pelo Estado francês. Na verdade, o exercício do acordo não contemplou a cotidia-

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 139-158, maio/ago. 2019 149 Venâncio Guedes PEREIRA, Carmentilla das Chagas MARTINS nidade, tampouco a realidade social na fronteira e o fluxo intenso de ambos os lados. Neste contexto de discrepância socioeconômica entre Oiapoque e Guiana Francesa, os Palikur se dividem em comunidades em ambos os países, constituindo uma população de significativo contingente populacional. Esse dado permite aos Palikur um trânsito constante, uma vez que os fluxos migratórios indígenas não sofrem as mesmas sanções burocráticas dos não indígenas. No município de Oiapoque, o território habitado pelas populações indíge- nas é constituído por espaços demarcados e homologados pelo governo federal na forma de Terras Indígenas. Os Palikur vivem juntos aos Karipuna e aos Galibi Marworno nas Terras Indígenas Uaçá I e II, homologadas em 1991 pelo Decreto Lei n. 298 de 29/10/91, publicado no DOU em 30/10/91, com 470.164ha5 (CAPIBERIBE, 2007, p. 121). Os Palikur dividem a terra indígena em treze aldeias, e dentre elas a mais populosa é a aldeia Kumenê, com novecentos e vinte habitantes. Tais aldeias são tradicionalmente construídas em torno de um centro administrativo, representado pelo Paytuempu Akivara (fundador da aldeia) que geralmente é o homem mais velho a ali residir e é pai do próximo Paytuempu ou sogro deste e necessariamente tem de viver próximo do genro, como uma relação de respeito, aprendizado e trabalho (CAPIBERIBE, 2007). Ao contrário do Brasil, na Guiana Francesa não há terras indígenas, e dessa forma os Palikur vivem em pequenas comunidades ao redor das cidades de Régina, Roura e Macouria. O maior contingente populacional Palikur vive na cidade de Saint-Georges de l’Oyapock e o local por eles ocupado nesta cidade é um espaço comum, chamado Village Esperánce6, onde se organizam em forma de pequenos bairros, divididos em Village I e Village II. O Village I é o mais antigo, e a Igreja pre- dominante é a Adventista do Sétimo Dia (IASD), enquanto no Village II predomina a Assembleia de Deus. Além disso, cada Village tem seu Paytuempu Akivara, nos

5 A terra indígena Uaçá I e II, somada às terras indígenas Galibi (homologada em 1982) e Juminã (homologada em 1992), formam as Terras Indígenas do Oiapoque (CAPIBERIBE, 2005). 6 Capiberibe relatou em 2009 o surgimento do que ela chamou de Village Experánce III, em um lugar desprovido de saneamento básico, com estrutura muito simples, contendo “quatro mo- radias e duas casas de farinha” (CAPIBERIBE, 2009, p. 253). Faz-se esta citação, pois no próprio escrito as informações se encontram em um estágio bastante superficial, mas que pelo fato de ter sido relatado há oito anos atrás, há boas possibilidades de este Village ter ganho dimensões espaciais e populacionais maiores.

150 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p.139-158, maio/ago. 2019 “Fronteiras e políticas que atravessam a identidade e a sociabilidade indígena”: uma análise acerca dos sentidos das migrações Palikur na fronteira Brasil-Guiana Francesa moldes da organização social dos Palikur do lado brasileiro: Esses espaços estão localizados de maneira contígua na periferia da pequena cidade de Saint-Georges de l’Oyapock. A configuração e a composição do bairro Palikur, com as casas dos genros localizadas próximas às casas dos sogros, em muito lembram as aldeias no Urukauá. (CAPIBERIBE, 2009, p. 6). O Village II foi formado em meados dos anos de 1980, por indígenas Palikur que saíram do Urukauá em um dos vários momentos de crise da religião cristã entre eles. Esta crise, que teria ocorrido entre os anos das décadas de 1970 e 1980, marcou o “desvio” de muitos fiéis da Igreja evangélica, motivando alguns indígenas a saírem do local, com o objetivo de se “manterem na fé”. Nas duas vilas, a Igreja é a construção central, além de uma praça, que serve de centro das ações coletivas, e a periferia da vila, onde se localiza a esfera social doméstica. Como se pode perceber, há diferenças entre ser um indígena no Brasil ou na Guiana Francesa, porém as mais significativas são percebidas quando se obser- vam os direitos que o indígena goza aqui ou lá. No Brasil, na “legislação ordinária destaca-se o chamado Estatuto do índio (Lei n. 6001 de 19/12/1973), que regula os detalhes dos direitos indígenas” (CUNHA, 2012, p. 128). Dentre tais direitos, destaca-se o direito às Terras Indígenas (Decreto n. 1.775, de 8 de janeiro de 1996), as quais, no caso dos povos indígenas do Amapá, são todas homologadas. No que diz respeito à identidade, os Palikur não precisam abdicar de sua indianidade7, tampouco de sua nacionalidade, e ambas são acionadas tão logo necessitam de direitos políticos eamparo s legais diversos, cuja responsabilidade advém do Estado (além das Terras indígenas, escolas, saneamento básico, saúde pública etc.). A dinâmica na Guiana Francesa é completamente diferente, pois não há direitos diferenciados a partir da identidade étnica dos povos, tanto na metró- pole quanto nesta coletividade territorial do ultramar francês. Sobre o indígena na Guiana Francesa:

7 Utiliza-se aqui o conceito de “indianidade” definido por Baines (2004), na relação dos indígenas da fronteira Brasil-Guiana, onde “surgem diversas formas de se identificar como índio, mestiço, Makuxi, Wapichana, brasileiro, ou guianense, que muitas vezes se sobrepõem, aparecendo, à primeira vista, contraditórias da perspectiva de um estranho, mas não da perspectiva dos povos indígenas que vivem nesta fronteira, pois não vêem nenhum problema em se identificar con- forme os contextos em que estão imersas e lhes parecem naturais” (BAINES, 2004, p. 11-12). Ressalta-se no referido termo, o caráter de ação dos próprios indígenas, que determina sua própria visão de quem é, não dependendo do “outro”.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 139-158, maio/ago. 2019 151 Venâncio Guedes PEREIRA, Carmentilla das Chagas MARTINS

[...] seguindo os preceitos constitucionais, cada Palikur imigrante é alvo de uma política de assunção de cidadania que o envolve e seduz através de benefícios sociais oferecidos pelo Estado francês, mas que o alija de sua matriz identitária ou forma-síntese identitária, tornando-o compatível de sua forma de sujeito de direito civil. Isto é: torna-se apenas cidadão francês que deixa legalmente de ser índio, porém não deixa de ser membro de uma comunidade étnica. (MUSOLINO, 2006, p. 15). Uma vez instituída a fronteira geopolítica, as mudanças na sociabilidade dos Palikur passaram a ser percebidas na forma como eles buscam os subsídios básicos para sua sobrevivência em ambos os lados, sempre na relação de con- tato com outros povos (indígenas e não indígenas), com o Estado e instituições, como o SPI8 e a FUNAI9, ou em programas de integração e religiosos10. A partir da análise de Shalins (1997) a respeito de sistemas translocais, os Palikur migram de um lado para outro, em um movimento que subsidia as famílias que ficam no lugar de origem, e que necessitam desse trânsito para conseguirem dinheiro e manterem fortificados os laços fraternais com os parentes étnicos. Sobre os sistemas translocais: Culturalmente focalizada na terra natal, e estrategicamente dependente dos lares periféricos no estrangeiro, a estrutura é assimétrica de duas maneiras opostas. Considerada como uma totalidade, a sociedade translocal está centrada em suas comunidades indígenas e orientada para elas. Os imi- grantes identificam-se com seus parentes na região de origem, e é a partir dessa identificação que se associam transitivamente entre si no estrangeiro. Esses habitantes da cidade e do mundo exterior permanecem ligados a seus parentes na terra natal, especialmente por entenderem que seu próprio futuro depende dos direitos que mantêm em seu lugar de origem. Assim,

8 O SPILTN, Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais, transforma- do em Serviço de Proteção ao Índio em 1918, foi criado pelo governo do Brasil para promover a integração racional das populações e territórios indígenas à sociedade brasileira; ou seja, transformar o índio em membro do corpo político nacional (BIGIO, 2007). 9 A Fundação Nacional do Índio foi criada em 1967, tendo como premissa o inevitável fim do índio no Brasil. Disso decorria a concepção da transitoriedade da condição de indígena, bem como de seu desamparo, o que os associava à tutela da FUNAI (BIGIO, 2007). 10 Faz-se uma observação a respeito da relação “Estado e agentes religiosos”. Interpreta-se dessa forma, pois, como foi explicado, o casal Green adentrou nas aldeias Palikur a partir de acordos entre eles e o governo, mediados pelo Museu Nacional. Pensa-se que, nesse sentido, mesmo que os resultados da religião não sejam de competência direta do Estado, este foi preponderante na “gênese” do protestantismo entre os Palikur.

152 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p.139-158, maio/ago. 2019 “Fronteiras e políticas que atravessam a identidade e a sociabilidade indígena”: uma análise acerca dos sentidos das migrações Palikur na fronteira Brasil-Guiana Francesa

o fluxo de bens materiais favorece em geral os que ficaram em casa: estes se beneficiam dos ganhos obtidos e das mercadorias adquiridas por seus parentes na economia comercial externa. (SAHLINS, 1997, p. 115-6). Observa-se os Palikur no sistema translocal, pois suas práticas são, antes de tudo, ligadas à tradição do deslocamento livre entre as duas margens do rio Oiapoque. Na conjuntura atual, em que lhes falta subsídios no Brasil, mas também na Guiana Francesa (principalmente na procura por terra), há membros do grupo que migram em busca de dinheiro e opções para sustento da sua família, que fica à espera do retorno. No local de destino, seus parentes étnicos os recebem, os auxiliam e os ajudam a formar suas estratégias de obtenção de bens e recursos. Essa aliança cooperativa é observada em ambos os lados, uma vez que, tanto no Brasil quanto na Guiana Francesa, as populações indígenas constituem “grupos diferenciados no âmbito das sociedades globais, vindo a ocupar, em regra, posi- ções subalternas” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2005, p. 9). No que diz respeito às funções exercidas pelos Palikur brasileiros na Guiana Francesa, é importante ressaltar que os Palikur franceses são alvo de uma política de financiamento agrícola pelo governo, o que lhes garante um espaço no mer- cado formal, dando-lhes condições de oferecer suporte para os parentes étnicos do Brasil. Além disso, boa parte da população indígena do país é beneficiada por empregos temporários, como os de limpeza pública, de obras públicas e de serviços agrícolas. Os brasileiros atravessam a fronteira e passam a substituir os franceses nos trabalhos informais, como na roça, venda de animais, plantação e venda de mandioca e farinha. Enquanto os franceses trabalham temporariamente para o governo, os brasileiros não deixam o trabalho informal cair. Os lucros das vendas informais são divididos. Esses acordos viabilizam a estadia dos Palikur do Brasil na Guiana Francesa, mas não garantem a sua permanência por muito tempo. Para terem direito às políticas públicas francesas, os indígenas têm de abdicar de sua identidade étni- ca e têm de se submeter às normas do Estado francês. Não há opção para eles, pois “as políticas de assunção de uma ou outra cidadania em ambos os países são taxativas: ou se é francês ou se é brasileiro, não existindo margem para dupla cidadania” (MUSOLINO, 2006, p. 64). Esta realidade os obriga a estarem em cons- tante movimento, ficando o tempo permitido para ganhar um pouco de dinheiro, levá-lo para casa e depois fazerem o mesmo trajeto em outra temporada.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 139-158, maio/ago. 2019 153 Venâncio Guedes PEREIRA, Carmentilla das Chagas MARTINS

Pensar os “sentidos das migrações” serve como parâmetro para se observar as motivações de indígenas, brasileiros, sul-americanos e franceses metropoli- tanos em migrar, em buscar do outro lado o que não têm do seu lado. Martins (2016) explica que os países que se propõem a cooperar encontram-se contíguos territorialmente, mas também se encontram afastados no tocante à história e ao desenvolvimento. Isso implica uma realidade de igualdade nunca ajustável entre os países, o que os leva a reforçarem as forças militares e de impedimento de fluxo nas fronteiras, aumentando cada vez mais as disparidades entre eles. É justamente o paradoxo entre as possibilidades de fluxo e as barreiras postas na fronteira que dão sentido à mobilidade (ODGERS; DELGADO, 2011).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao se analisar a sociabilidade peculiar que a fronteira Brasil-Guiana Francesa impõe às populações indígenas da região, observam-se diversos pontos os quais permitem pensar múltiplas fronteiras impostas e transpassadas por estes agentes. Os Estados historicamente planejaram transformar as populações indígenas em agentes fronteiriços, dando-lhes educação (principalmente o ensino da língua na- cional), saúde pública e víveres básicos, o que, de certa forma, pode-se interpretar como políticas de controle social, uma forma de impedir que essas populações procurem tais políticas do outro lado da fronteira. As políticas se modificaram ao longo dos anos, porém, os efeitos das políticas atuais forçam os Palikur a buscarem melhores condições de vida em lugares onde, em muitas situações, são vistos como estrangeiros, mão de obra desqualificada e população que não rende lucros ao Estado. Se antes era importante cooptá-los para a proteção e soberania da terra, o que implicava impedi-los de migrar, hoje as políticas permitem a sua migração, mas não são menos nocivas. Os Palikur, por não serem donos, por direito, de terras na Guiana Francesa (a não ser que as comprem) vêm às Assembleias indígenas do Oiapoque com o intuito de debater e absorver, das discussões com as lideranças indígenas brasileiras, orientações políticas que os situem por meio da identidade étnica. A fronteira geopolítica foi posta por outros. Coube aos Palikur vivê-la, negociando identidade e se adaptando a tais medidas. Mas afinal, na fronteira identitária entre ser brasileiro e ser francês, aonde se encontra a identidade Palikur? Estaria ela fadada ao desaparecimento por

154 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p.139-158, maio/ago. 2019 “Fronteiras e políticas que atravessam a identidade e a sociabilidade indígena”: uma análise acerca dos sentidos das migrações Palikur na fronteira Brasil-Guiana Francesa conta do contato incisivo e inerente com o aparelho “nacionalizador” do Estado? Na verdade, há que se considerar outros aspectos nesta relação que transpassa a fronteira geopolítica. De acordo com Barth, as dicotomias étnicas não se esta- bilizam no isolamento social, pelo contrário, elas se dão no contato com o outro, pois “as distinções étnicas não dependem da ausência de interação e aceitação sociais mas, ao contrário, são frequentemente a própria base sobre a qual sistemas sociais abrangentes são construídos” (BARTH, 2000, p. 26). O autor chama esse encontro de diferentes povos e modos de vida de fronteira étnica. A fronteira entre o Amapá e a Guiana Francesa, como outras do território brasileiro, tem significados diversos, constituídos em práticas sociais e/ou culturais históricas. Nessa fronteira prevalecem contextos de subsistência assinalados por precariedades e carências, os quais “empurram” o Palikur para o outro lado da fronteira sempre em busca do que lhe falta no seu local de moradia. A migração Palikur torna-se, portanto, estratégica no que se refere à assistência governamen- tal, não importando se do lado do Brasil ou do lado da Guiana Francesa. Essas escolhas, em favor de serem assistidos pelo governo, exprimem vivências para habitar em trânsito, nas quais o fluxo migratório qualifica a fronteira comocentro de hibridização. De acordo com Odgers e Delgado (2011), a fronteira como local de diferenças culturais, contrastes e diversos emblemas identitários, transforma o transeunte em um sujeito híbrido, ou seja, um sujeito em trânsito, que necessita do outro lado para a realização de suas atividades, mesmo que este lugar seja o estrangeiro. Tais fronteiras atravessam os Palikur, mas fazem parte de fronteiras percep- tíveis, e não são as únicas. A partir da fronteira étnica pode-se entender que a identidade Palikur, mesmo colocada em tantas situações históricas, mantém-se viva, ressignificando símbolos nacionais impostos por brasileiros e franceses, o que permite a sua persistência justamente por estar em contato com aspectos culturais diferentes. Por mais que historicamente os Estados tenham tentado na- cionalizar as etnias indígenas da região, a identidade étnica lhes permite estarem em trânsito na fronteira, nunca a abandonando totalmente, e acionando seus mecanismos legais de cidadania quando necessitam, mediante o contato com o outro, tornando-se o indígena um sujeito híbrido, com identidade de fronteira.

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Sobre os autores: Venâncio Guedes Pereira – Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Fronteiras pela Universidade Federal do Amapá (PPGEF/UNIFAP). Especialista em Antropologia pela Universidade Cândido Mendes. Graduado em História pela UNIFAP. Dedica-se a pesquisas sobre fronteiras e comunidades indígenas em situações fronteiriças. E-mail: [email protected] Carmentilla das Chagas Martins – Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Graduada em História pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Professora adjunta na Universidade Federal do Amapá, com atuação no curso de Licenciatura em História e no Mestrado Profissional em Estudos de Fronteiras (PPGEF/UNIFAP). Dedica-se a pesquisas sobre cidades, mobilidades e migração em território onde se localizam fronteiras internacionais na Amazônia. E-mail: [email protected]

Recebido em 15 de agosto de 2018 Aprovado para publicação em 22 de novembro de 2018

158 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p.139-158, maio/ago. 2019 Expedições de conquista ibérica e tentativas de submeter os povos indígenas do Pantanal ao domínio europeu no século XVI Iberic expedictions of conquer and tentatives of subbmit the Pantanal indigenous people to the european dominium on the XVI century

João Filipe Domingues Brasil1

DOI: http://dx.doi.org/10.20435/tellus.v19i39.528

Resumo: O presente artigo tem como proposta central abordar as expedições de conquista ibérica e tentativas de submeter os povos indígenas do Pantanal ao domínio europeu no século XVI. O objetivo do trabalho é contribuir para a melhor compreensão da história dos povos indígenas da região em um contexto mais amplo, ligado à história da região platina frente às ações dos invasores europeus. Para este propósito, foi realizado um levantamento bibliográfico e documental sobre o tema, contido, sobretudo, em fontes primárias, sendo elas os relatos feitos pelos expedicionários Ulrico Schmidl e Álvar Núñez Cabeza de Vaca, e secundárias, à luz da etno-história. Palavras-chave: conquista ibérica; etno-história; história indígena; povos indígenas do Pantanal. Abstract: This article’s main purpose to approach the expeditions of Iberian conquest and attempts to submit the indigenous peoples of the Pantanal to the European domain in the 16th century. The aim of this article is to contribute to the apprehension the indigenous people’s history of the region in wide context, linked to the platinum region’s history in the face of the actions of European invaders. For this purpose, a bibliographic research was realized on this subject, mainly focused on primary sources, being them the reports made by Ulrico Schmidl and Álvar Núñes Cabeza de Vaca, and secundary sources, under the prism of ethnohistory. Keywords: ethnohistory; iberian conquest; indigenous history; native-born from Pantanal

1 Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO), São Gonçalo, Rio de Janeiro, Brasil.

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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS No período colonial, a região atualmente denominada de Pantanal era mencionada na cartografia europeia comoLaguna de los Xarayes. Trata-se de um bioma conhecido por abranger uma grande planície de inundação, a maior área alagável contínua do globo, localizada na bacia hidrográfica do alto curso do rio Paraguai. Possui uma extensão de aproximadamente 250 mil km2, distribuída em parte dos atuais territórios nacionais do Brasil, Bolívia e Paraguai. Ao longo do século XVI, a região foi atingida por várias expedições ibéricas, sobretudo espanholas, as quais inicialmente tinham o propósito de conquistar territórios ricos em metais preciosos2. Para isso, buscavam submeter ao domí- nio europeu os povos indígenas ali estabelecidos desde tempos pré-coloniais (EREMITES DE OLIVEIRA, 2003). No presente estudo, tais expedições serão abordadas à luz da etno-história, buscando revelar o protagonismo indígena presente em tais processos. Acerca da utilização proposta para a etno-história no presente artigo, partilho da com- preensão de Jorge Eremites de Oliveira, entendendo que a Etno-história não deve ser reduzida à noção de uma história anacrônica, exótica, emic e essencialista dos povos indígenas, tampouco percebida como uma proposta restrita aos povos indígenas outrora estudados quase que exclusivamente por etnólogos. Deve ser compreendida para muito mais além, inclusive como uma perspectiva metodológica interdisciplinar – ou disciplina híbrida como alguns defendem - que tem por objetivo estudar a história e a cultura de povos e comunidades tradicionais, como indígenas, quilombolas, ribeirinhos, etc. (EREMITES DE OLIVEIRA, 2012, p. 191). Para se alcançar o objetivo aqui proposto, será realizada primeiramente uma caracterização da região do Pantanal no século XVI, através, sobretudo, de fontes bibliográficas secundárias, para em seguida, serem abordados os principais relatos acerca das expedições que cruzaram o Pantanal no século XVI, as fontes primárias do estudo.

2 O termo “conquista”, embora recorrente na historiografia, precisa ser relativizado porque os povos indígenas contemporâneos não se sentem conquistados pelos europeus ou pelos euro- americanos, pelo contrário. Percebem-se como protagonistas de uma longa história marcada por várias estratégias de resistência a todo tipo de situação de dominação e exploração a eles impostas pelos invasores de além-mar e seus sucessores.

160 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 159-175, maio/ago. 2019 Expedições de conquista ibérica e tentativas de submeter os povos indígenas do Pantanal ao domínio europeu no século XVI

Ao se realizar tal caracterização, é possível compreender melhor a descrição dos relatos que se segue, tomando por referência os Povos Indígenas nele pre- sentes. Pelo espaço disponível para a realização do trabalho, aborda-se as fontes primárias de maneira mais descritiva que analítica. Contudo, com a utilização da etno-história enquanto método de pesquisa, tal abordagem permite vislumbrar o protagonismo indígena frente aos processos de conquista e colonização espanhola na região do Pantanal a partir do século XVI. Sigamos agora para a caracterização espacial e temporal do tema estudado.

2 EXPEDIÇÕES E DINÂMICAS COLONIAIS NO PANTANAL DO SÉCULO XVI Denominado pelo português Juan Diaz de Solís como Mar Dulce, por isso também conhecido no começo do século XVI como rio de Solís, a confluência entre os rios Paraná e Paraguai receberá o nome de rio da Prata após o retorno com ouro e prata de parte da expedição do também português Aleixo Garcia, morto provavelmente por índios Payaguá no caminho de volta da primeira expedição que alcançou o Pantanal ou Alto Paraguai. A partir da década de 1530, toda uma rede de administração foi montada para exploração e colonização das novas terras a partir do rio da Prata. Neste con- texto, observa-se que as tentativas de conquista da bacia do Alto Paraguai estão ligadas ao processo de conquista ibérica da bacia platina, bem como a uma rede administrativa vinculada às coroas Portuguesa e Espanhola. A grande quantidade de metais preciosos que Francisco Pizarro e seus ho- mens encontravam no Peru fez com que Carlos V, à época rei da Espanha, entre- gasse a responsabilidade sobre a província do Rio da Prata a Pedro de Mendoza. Na condição de primeiro adelantado da região, ele recebeu patrocínio privado e montou sua expedição, que contava, entre outros nomes, com “o alferes geral da infantaria Alonso Cabrera, e os capitães Felipe de Cáceres e Domingo Martinez de Irala” (MARKUN, 2009, p. 134), além do lansquenete alemão Ulrico Schmidl. Chegando ao rio da Prata em 1536, Mendoza e seus homens fundam o forte de Nossa Senhora de Buenos Aires, vivendo entre relações amistosas e conflituo- sas com os Charrua e Carendí ou Querandí, assim chamados genericamente, que primeiramente lhes forneceram mantimentos, como forma de estabelecer relações de aliança e reciprocidade. Posteriormente, diante das ações dos conquistadores,

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 159-175, maio/ago. 2019 161 João Filipe Domingues BRASIL impuseram-se belicamente aos invasores espanhóis. Sentindo as dificuldades de se adaptar àquele ambiente e diante da dificuldade das relações com os povos indígenas estabelecidos na região, o adelantado despachou “seu braço direito, o alguazil Juan de Ayolas, à procura de uma região fértil e supostamente rica descrita por Caboto em seu mapa-múndi” (MARKUN, 2009, p. 136). A expedição realizada sob o comando de Juan de Ayolas, no ano de 1537, foi a primeira a alcançar o Alto Paraguai: “remontó el río Paraguay hasta un lugar que llamó La Candelaria, porque llegó ahí el 2 de febrero” (COMBÈS, 2010, p. 8). O local fundado por Ayolas e seus subordinados ficou conhecido como Porto da Candelária e se tornou importante local para a circulação fluvial dos espanhóis no Pantanal colonial. Sua localização é muito discutida e controversa, gerando diferentes interpretações (COMBÈS, 2010). Depois de fundar o Porto da Candelária, Ayolas fez uma entrada à região, deixando em seu posto o capitão Domingo Martinez de Irala. Pedro de Mendoza, que não recebia notícias de seu braço direito há muito tempo, “enviou o jovem capitão Juan Salazar de Espinosa em busca de Ayolas. Durante a viagem, Espinosa fundou o forte de Nossa Senhora de Santa María de la Asunción, futura capital da província” (MARKUN, 2009, p. 138). Assunção, como será nomeada mais tarde, desempenhará papel estratégico nas futuras expedições em busca de metais pre- ciosos e tentativas de conquista dos índios nas regiões do Chaco e do Pantanal, dentre outras, como a Província do Guairá (EREMITES DE OLIEIRA; ESSELIN, 2015, p. 281). Enquanto Assunção era fundada no médio curso do rio Paraguai por Espinosa e seus comandados, Buenos Aires passava por inúmeras dificuldades, as quais resultaram no retorno de Pedro de Mendoza à Espanha. O primeiro adelantado do Rio da Prata, contudo, não chegou ao seu destino final, pois pereceu em alto mar durante o caminho de volta. Com isso, os investidores de Mendoza conseguiram que a coroa espanhola enviasse dois navios de auxílio para Buenos Aires. Sobre o assunto, cumpre destacar o seguinte: Em mais um indício da esperança geral de que o Rio da Prata faria jus ao nome, num deles seguia Alonso Cabrera, agora com o posto de inspetor de minas. Além da autoridade para controlar a exploração de qualquer jazida, Cabrera levava ordens de confirmar no posto o homem que Mendoza -ti vesse deixado no comando da província. Em caso de dúvida, ou da vacância

162 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 159-175, maio/ago. 2019 Expedições de conquista ibérica e tentativas de submeter os povos indígenas do Pantanal ao domínio europeu no século XVI

do poder, conquistadores e colonos poderiam eleger um novo dirigente. (MARKUN, 2009, p. 138). A chegada de Cabrera a Buenos Aires, em 1538, causou uma disputa pelo poder da Província do Rio da Prata. Ocorre que Mendoza havia deixado Francisco Ruiz Galán no comando local e Espinosa continuava a procurar Ayolas, sucessor imediato de Mendoza. Irala, que aguardou Ayolas no Porto da Candelária por meses, sem notícias do oficial, desceu a Assunção. Galán resolvera subir de Buenos Aires até aquela localidade e, depois de chegar ao forte, tomou a seguinte providência: [...] prendeu Irala, sob acusação de abandono do posto. Mas logo recuou, diante dos argumentos do capitão e da pressão de outros oficiais. Como Ayolas não regressou, os colonos resolveram ir às urnas, digamos. Irala nem precisou disputar: foi aclamado governador. (MARKUN, 2009, p. 139). Por este motivo, Domingo Martinez de Irala é oficialmente considerado o primeiro governador de Assunção. Depois de procurar mais uma vez por Ayolas e a Serra de Prata, sem sucesso, Irala “decidiu concentrar em Assunção todos os espanhóis, mandando despovoar Buenos Aires” (MARKUN, 2009, p. 139). A imposição de sua decisão, contrariando a vontade de muitos colonos, pode dar alguma ideia sobre o modo de Irala governar, o que deve ter colaborado para ele ser denominado algumas vezes como autoritário e ter tido uma conhecida desa- vença com o segundo adelantado do Rio da Prata, Álvar Nuñez Cabeza de Vaca. Sobre Assunção, assim explica Markun (2009, p. 139): Nova capital do Rio da Prata, Irala distribuiu terras e casas, construiu uma paliçada, organizou um gabinete e nomeou autoridades – atos que ajudaram a transformar o forte precário numa cidade de verdade, cujo nascimento foi juridicamente formalizado em 16 de setembro de 1541. Irala ainda fez duas expedições pelo Alto Paraguai, a primeira entre 1542 e 1543, e a segunda entre 1547 e 1548, sendo que esta última pode ser considerada como “el primer viaje trans-Chaco exitoso de los españoles de Asunción” (COMBÈS, 2010, p. 9). Além dessas e das expedições apontadas anteriormente, em 1556, após a morte do adelantado, Ñuflo de Chávez comandou outra expedição à região. Ñuflo de Chaves hizo una última expedición de exploración desde Asunción, subiendo el río Paraguay hasta llegar en 1557-58 otra vez al Pantanal, esta

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vez en busca de “el Dorado”. No se sabe por qué decidió dirigir su compañía hacia el oeste del Pantanal en vez de al norte, donde habían tenido noticias de grupos con muchos objetos de oro, pero así lo hizo. Otra vez, la exploración les llevó a la región de la actual Santa Cruz, pero por una ruta que salía del Pantanal, posiblemente la ruta de García. A orillas del río Guapay, en agosto de 1559, Ñuflo de Chaves fundó un pueblo llamado “la nueva Asunción”, también conocido como “La Barranca”. Cuando estuvo en esta región con Irala en 1548, vivían allí grupos sujetos a una encomienda charqueña, pero la situación había cambiado. Para abrir el camino hacia Charcas, Chaves mandó llamar a Vitupué, el jefe de un grupo de chiriguanáes que tenía su pueblo en el lugar donde el río Grande (o Guapay, o Chungará) sale de la cordillera y entra en los llanos. (JULIEN, 2008, p. 8). Chávez veio para a América do Sul na expedição de Cabeza de Vaca. Acompanhou o adelantado em suas entradas e ficou na província do Prata quando o governador foi preso e enviado de volta à Espanha, passando, a partir de então, a servir a Irala. Julien (2008, p. 4-86) explica que há a publicação de um documento intitulado Relación de los casos en que el capitán Nufrio de Chaues ha servido a Su Majestad desde el año de 1540. Santa Cruz de la Sierra, 1.VI.1561, no qual o próprio Chávez discorre sobre seus serviços prestados à Coroa Espanhola. Além do caráter de prestação de contas, no documento aparece uma forma do oficial pleitear encomiendas na cidade que fundara em 1561, Santa Cruz de la Sierra, pertencente à jurisdição de Charcas. Caracterizado o estudo em relação aos recortes espacial e temporal pro- posto, seguiremos aos relatos de Ulrico Schmidl e Álvar Núñez Cabeza de Vaca, vislumbrando o protagonismo indígena frente aos processos que descrevem.

3 OS RELATOS DE ULRICO SCHMIDL Ulrico Schmidl3 partiu de Amberes, Espanha, em 1534, na expedição de Pedro Mendoza, primeiro adelantado do Rio da Prata. Chegou ao Rio de Janeiro no mesmo ano, relatando a existência de índios Tupi na região. Em todo seu rela- to, Schmidl utiliza o termo Guarani apenas uma vez (SCHMIDL, 1986, p. 154). No entanto, não acentua a existência de diferenças étnicas, culturais e geracionais entre os povos indígenas falantes do idioma guarani. Denomina apenas os Cario,

3 Para maiores informações sobre o nome Ulrico Schmidl, ver Mitre (1903, p. 13-20).

164 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 159-175, maio/ago. 2019 Expedições de conquista ibérica e tentativas de submeter os povos indígenas do Pantanal ao domínio europeu no século XVI seus acompanhantes durante todo o percurso, desde o atual litoral brasileiro até o Alto Paraguai. Tal fato pode ser explicado considerando que “su nombre se volvió rápidamente sinónimo de “guaraní-hablante”, al igual que poco después el término “chiriguanaes” (COMBÈS, 2010, p. 86). Navegando do litoral brasileiro até a primeira Buenos Aires, seguindo o Rio Paraná acima, após atingirem o rio Paraguai, Schmidl relata o encontro com os Kueremagbei, do qual também quase nada se sabe em termos historiográficos. Navegando rio acima encontram os Agace, povo linguisticamente filiado à família linguística Guaikuru, pertencentes ao povo Payaguá, dos quais o relato de Schmidl vai ao encontro. Depois dos Agace, chegaram aos Cario, dos quais Schmidl faz um denso relato, atestando a existência de antropofagia entre eles (SCHMIDL, 1986, p. 171-2). Além disso, indica que possuíam nucleações ao longo do rio, como a de Lambaré, nome que faz referência à presença de um cacique assim denominado, a qual os espanhóis conseguiram destruir, mas não sem resistência por parte dos indígenas (SCHMIDL, 1986, p. 173-6). Após a conquista de Lambaré, os espanhóis fundaram a cidade de Nossa Senhora de Assunção, a primeira Assunção, em 1537 (SCHMIDL, 1903). Celebraram um contrato com os Cario, com quem construíram relações de aliança política. A partir de então, os Cario teriam passado a servir os espanhóis e acompanhá-los em suas guerras, a primeira realizada contra os Agaces (SCHMIDL, 1986, p. 177), seus inimigos também. Nessa guerra, os espanhóis realizam uma entrada na qual encontram os Xaray, Caracará, Payaguá, Payzuno, Naperu e Mbayá-Guaikuru. O relato de Schmidl corrobora com o de Cabeza de Vaca, situando essas po- pulações entre Assunção e Porto de los Reyes. Nessa primeira entrada os espanhóis fundam o importante Porto da Candelária. Apesar da causa principal apontada por Schmidl para a entrada ser a guerra contra os Agace, e posteriormente contra os Payaguá e Guaikuru, podemos observar que a procura por metais preciosos norteia todo sentido da expedição, que não conseguiu chegar aos atuais territórios andinos da Bolívia e do Peru. Após a volta dos espanhóis para Assunção, Schmidl aponta que Irala foi escolhido para substituir Ayolas no comando espanhol, conforme visto ante- riormente, durante uma rusga ocorrida entre Irala e Francisco Ruiz Galán. Sob o comando de Irala, os espanhóis retornaram a Buenos Aires em 1541, fundando

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 159-175, maio/ago. 2019 165 João Filipe Domingues BRASIL o porto de Corpus Christi, destruído posteriormente durante a guerra contra os Timbu, deixando muitos mortos de ambos os lados. Schmidl retornou com Irala à Assunção, ocasião em que tomaram conheci- mento da vinda de Cabeza de Vaca como adelantado. Acompanhando-o em suas entradas pelo Pantanal, ratifica em seu texto a existência dos “Orejones”. Também cita os Yacaré, provavelmente os Artanese mencionados no relato de Cabeza de Vaca (COMBÈS, 2010, p. 331). Schmidl indica que acompanhando Hernando de Ribera, ordenado por Cabeza de Vaca, procurou alcançar por terra adentro, provavelmente a noroeste de Porto de los Reyes, a região amazonense, terra das lendárias amazonas4, guiados por informações recebidas dos Siberi e Urtuese (Ortuese), possivelmente populações Xaray (COMBÈS, 2010, p. 287). Após essa entrada, e as muitas mazelas provocadas por ela, realizada em época de cheia na planície pantaneira, Schmidl tomou partido de Irala na suble- vação contra Cabeza de Vaca. Após o então adelantado ser enviado de volta à Espanha como prisioneiro, Schmidl narra que houve muita instabilidade entre os espanhóis, e que entraram em guerra contra os Agace, com a ajuda dos Cario e dos Guatata, que seriam uma geração dos Guaikuru. A descrição das batalhas revela parte da cultura material das etnias envolvidas. Nessa parte do relato aparece pela primeira vez a menção de um escalpo realizado por um indígena Guaikuru. Após um longo período de batalhas, os espanhóis conseguiram submeter algumas populações ao domínio europeu, ao que tudo indica de diferentes ca- ciques, como Tabaré, Karaíba, Yeruquihaba e Xexuy. Algumas dessas populações provavelmente seriam falantes do guarani. Ademais, os Cario se transformaram em inimigos dos espanhóis em meio à batalha, revelando que os indígenas poderiam utilizar a aliança com os espanhóis a seu favor em antigas guerras interétnicas, surpreendendo eventuais povos inimigos. Schmidl assinala que essa guerra durou até 1546. Em 1548, Irala resolve realizar nova entrada pelo Pantanal, tentando alcançar a região andina, novamente em sentido noroeste. Entram desde o Porto de los Reyes pelos já mencionados

4 Os espanhóis, através de notícias que corriam entre os indígenas, assim como as sobre a Serra de Prata, imaginavam existir acima do Alto Paraguai uma sociedade indígena com mulheres que montavam a cavalo e detinham inúmeras provisões e riquezas. Daí o motivo da entrada ordenada por Cabeza de Vaca.

166 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 159-175, maio/ago. 2019 Expedições de conquista ibérica e tentativas de submeter os povos indígenas do Pantanal ao domínio europeu no século XVI

Naperú, passando pelos Payaguá e Guaikuru, agora nomeados Mbayá. Schmidl revela que os Mbayá, na época dessa entrada, não possuíam cavalos. Sendo as- sim, há possibilidade de que os cavalos tenham sido gradualmente incorporados à antigos Mbayá a partir desse contato. Os Mbayá também foram nomeados por Schmidl como Mayaeide e Maiaie, sendo os primeiros provavelmente os Kadiwéu que também ocupavam parte da Serra da Bodoquena. Em sentido noroeste, Schmidl narra, respectivamente, o encontro com as seguintes povos indígenas: Chané, e Chiquito, apelativos que pode- riam ser empregados pelos indígenas falantes do guarani a diferentes populações (COMBÈS, 2010); Payhono (Payono), localizados “entre os Toyana e Mayágono” (COMBÈS, 2010, p. 235); Toyana (Thohana), prováveis “vassalos” dos Mbayá; Moriono (Morrono), possíveis Moro (COMBÈS, 2010, p. 208); Perrono e Sunenno (Zatieno), dos quais quase não se tem referência, podendo ser gerações Chané; Guorcono (Borkene), que se localizavam entre os Simeno e os Layono (COMBÈS, 2010, p. 169); Carcono, vizinhos dos Guorcono; Mayágono (Maygenno), os quais mantiveram boas relações com os espanhóis, abastecendo-os de alimentos (COMBÈS, 2010, p. 198); Gorgotoqui, geração de indígenas que viviam no local de fundação da primeira Santa Cruz la Vieja, por Ñuflo de Chávez; e por último, os Macasi, que vivam às margens do rio Guapay ou Grande. Durante todo o caminho, Schmidl descreve o intenso ambiente, os animais, peixes e mantimentos existentes entre os indígenas, além dos costumes deles, que saltam muito aos olhos do alemão. Após essa entrada, feita de comunidade a comunidade, os espanhóis chegaram à região andina, ainda em 1548, e reco- nheceram que lá estava a terra de riquezas que tanto procuravam, conforme ele mesmo descreve: Esta tierra del Perú era a todas luces delante de Dios y del mundo, de él Consulo Piesiro, en razón de que él junto con sus hermanos Margose (el Marqués) y Ernando Piesieron (Hernando Pizarro), habían sido los primeros de todos que descubrieron y conquistaron la tierra del tal reino. Esta tierra con razón se llama tierra rica; porque todas las riquezas que posee la Cesárea Majestad salen del Perú y de Nove Hispaniam (Nueva España) y Terra firma (Tierra Firme). (SCHMIDL, 1903, p. 267). Irala, governador de outra jurisdição ou província, não poderia entrar com seu exército onde já havia encomiendas de espanhóis:

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 159-175, maio/ago. 2019 167 João Filipe Domingues BRASIL

Mandó a cuatro españoles a comunicarse con las diferentes autoridades, dos a Charcas y dos a Lima. Ñuflo de Chaves fue uno de los españoles enviados a Lima. Estos cuatro españoles fueron los primeros – que sepamos – en cruzar la frontera de lo que había sido el imperio incaico desde el oriente. (JULIEN, 2008, p. 7). Segundo o relato de Schmidl, ele teria sido um dos quatro escolhidos por Irala para ir até a região andina do Peru, e lá teria recebido uma carta de seu irmão, solicitando seu retorno à Europa, o que fez em seguida, retornando pelo Pantanal até o porto de São Vicente, na atual região de Santos, estado brasileiro de São Paulo. O relato de Schmidl permite realizar algum mapeamento étnico do rio Paraná, abaixo da influência com o Paraguai, e do caminho de Porto de los Reyes, até a primeira Santa Cruz, la Vieja, além de corroborar com os dados do relato de Cabeza de Vaca. Por isso, torna-se importante para o entendimento da história dos povos indígenas no Pantanal do século XVI.

4 OS RELATOS DE ÁLVAR NÚÑEZ CABEZA DE VACA O espanhol Alvar Nuñez Cabeza de Vaca, autor das obras Naufrágios e Comentários, […] es uno más de la larga lista de cronistas que por una u otra razón participa- ron en la enorme gesta ibérica de la evangelización, conquista y colonización de las Américas, el Pacífico, Asia y África, buena parte del Mediterráneo y Europa en el siglo XVI. (MAURA, 2011, p. 11). O fato de Cabeza de Vaca ter sido enviado à América do Sul como adelan- tado do Rio da Prata, motivo de conflitos com Irala, quem pensava em ocupar o cargo, demonstra que há algum tempo a coroa espanhola não recebia notícias daquela província. Devemos considerar a particularidade da expedição de Cabeza de Vaca e da política colonialista empregada por ele. Isso certamente não destoa esta das outras expedições realizadas à época das grandes navegações europeias, geralmente realizadas em servidão à Coroa Espanhola ou Portuguesa, em nome de Deus e da Igreja e em busca de ouro e prata. Desembarcando em Santa Catarina, Cabeza de Vaca assinala que navegou, entre outros rios, pelo Iguaçu e pelo Paraná, sempre acompanhado de indígenas

168 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 159-175, maio/ago. 2019 Expedições de conquista ibérica e tentativas de submeter os povos indígenas do Pantanal ao domínio europeu no século XVI falantes da língua guarani, de diversas gerações e diferentes etnias, contatando diversos caciques, os quais os abasteciam e efetuavam as sabidas trocas, refazendo assim em parte o caminho do Peabiru, até chegar em Assunção. O ambiente marcante mereceu atenção especial de Cabeza de Vaca duran- te seu caminho, pois destacava alguns barcos e pessoas de sua expedição para procurarem outras rotas e contatarem com diferentes comunidades indígenas. Destacou também que essa se tratava da “la mas fertil tierra del mundo muy aparejada para labrar y criar” (CABEZA DE VACA, 1555, p. 137). Cabeza de Vaca permaneceu de 1542 a 1543 em Assunção, realizando expedições rio Paraguai acima e terra adentro, até ser preso e mandado como prisioneiro para a Europa. Chegando em Assunção em 11 de março de 1542, tomou seu posto de adelantado perante todos os espanhóis. Em pouco tempo mandou socorro aos espanhóis que ainda permaneciam em Buenos Aires e que “a los índios que habitavan en el rio del Parana, por donde avian de navegar, les hiziessen buenos tratamientos, y los truxessen de paz a la obediencia de su ma- gestad” (CABEZA DE VACA, 1555, p. 147). Essa passagem é um dos exemplos da política que Cabeza de Vaca tentou implementar sem sucesso durante as tentativas de conquista ibérica da região do Pantanal. No capítulo XVI dos Comentários (CABEZA DE VACA, 1555, p. 149-50), o adelantado descreve o ritual antropofágico dos índios falantes do guarani que residiam próximos a Assunção, possivelmente os Cario. No capítulo que se segue, localiza os Agace, “a la ribera deste rio del Paraguay”, sendo essa “una gente muy temida de todas las nasciones de aquella tierra” (CABEZA DE VACA, 1555, p. 151). Cabeza de Vaca constantemente narra os conflitos existentes entre os Guarani e os Guaikuru. Devemos considerar que os primeiros souberam utilizar o fator de se aliarem aos espanhóis para alterarem a dinâmica de relações interét- nicas com os Guaikuru, que em vários momentos estiveram em guerra contra os Guarani que ali viviam. Além disso, os Agace ou Guaikuru amiúde estabeleciam e rompiam alianças com espanhóis, também aproveitando a presença dos europeus para alterarem a dinâmica de relações interétnicas na região. Após alguns meses em Assunção, administrando a instável relação entre indígenas e espanhóis, com revoltas e uma alteração na política indigenista por ele adotada, Cabeza de Vaca organizou em julho de 1542 uma expedição rio Paraguai

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 159-175, maio/ago. 2019 169 João Filipe Domingues BRASIL acima, contando mais uma vez com a ajuda de indígenas falantes do guarani. Eles o auxiliam no caminho, foram guias, carregadores de materiais e equipamentos diversos (inclusive os barcos, se necessário) e também tradutores. Com a presença ameaçadora dos Guaikuru, caminhavam de comunidade a comunidade buscando convertê-los e torná-los “amigos da coroa”, mas, acima de tudo, buscava encontrar a Serra da Prata e o tesouro roubado de Juan de Ayolas, quando da sua morte, o que nem sempre fica claro nos Comentários. Os primeiros indígenas relatados nessa expedição foram os Merchires e Guatata, ao que tudo indica populações falantes das línguas guarani e guaicuru, respectivamente, estabelecidas ao longo do rio Paraguai. Provavelmente, esta pri- meira expedição de Cabeza de Vaca foi motivada pela tentativa de “conquistar” os Guaikuru, pois a perseguição a eles está presente em várias partes de seus relatos. Outra população encontrada no rio Paraguai foi a dos Yapirúe ou Naperú, assim como a dos Aperú. Possivelmente são uma mesma população de falantes da língua guaikuru (COMBÈS, 2010, p. 167). Essa primeira entrada de Cabeza de Vaca durou cerca de quatro ou cinco meses, voltando os espanhóis para Assunção após a expedição. A ajuda aos es- panhóis e o repovoamento de Buenos Aires passaram a ser a preocupação maior de seu governo, haja vista que Assunção estava fortalecida no começo de 1543. No entanto, “na madrugada de 4 de fevereiro daquele ano, uma cabana de palha situada no meio do povoado pegou fogo. Em minutos, o vento espalhou a chama para todos os lados” provocando um incêndio que, segundo relatos da época, “durou quatro dias e quatro noites, e destruiu 80% das casas” (MARKUN, 2009, p. 176). Logo em seguida, ainda em fevereiro de 1543, Irala voltou de uma entrada que havia feito pelo rio Paraguai acima, chegando à região do Pantanal, com a notícia que houvera localizado próximo ao local denominado Porto de los Reyes os Çacoci-Chané, possivelmente uma das várias comunidades que compunham os chamados Orejones (COMBÈS, 2010, p. 220). Irala ainda informou a existência de ouro e prata entre os indígenas e que os mesmos poderiam ensinar o caminho para outras comunidades que também possuíam metais preciosos (CABEZA DE VACA, 1555, p. 189-90). Após consulta realizada junto a seus capitães e clérigos, resolveu realizar uma nova entrada em busca dessas “notícias” trazidas por Irala.

170 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 159-175, maio/ago. 2019 Expedições de conquista ibérica e tentativas de submeter os povos indígenas do Pantanal ao domínio europeu no século XVI

Dessa forma, reunindo grande número de espanhóis e indígenas falantes do guarani, Cabeza de Vaca seguiu a orientação dos Chané (Çacoci) e partiu com sua expedição do Puerto de los Reyes, acima de Assunção, rumo à porção seten- trional do rio Paraguai e terra adentro a oeste, ou seja, pela região do Pantanal. Segundo o relato, a expedição seguiu rio Paraguai acima pelos portos de Giguy, Guaviaño, Tapua, Itaqui, Guacani e Ipananie até chegarem aos Payaguá, povo canoeiro filiado linguisticamente à família Guaikuru. Todos esses portos, ao que parece, referiam-se a nomes de caciques indígenas que se estabeleciam ao longo do médio e do alto curso do rio Paraguai, a fim de prestar auxílio aos espanhóis. Atingiram em outubro de 1543 o Porto da Candelária, importante local de circulação espanhola durante a “conquista” ibérica do Pantanal, afirmando que se tratava de “la tierra de los indios Payaguaes” (CABEZA DE VACA, 1555, p. 202). Ali, souberam do tesouro “roubado” de Juan de Ayolas, quando este teria morrido, e decidiram tentar recuperá-lo dos Chané, assim o fazendo com a ajuda dos Payaguá. Adentraram-se, então, por terra até chegarem aos Matara, possivelmente mais um povo dos “Orejones”. Continuando a caminhada e navegação por rios menores, afluentes do rio Paraguai, chegaram posteriormente aos Guaxarapo (Guasarapo), os quais teriam se aliado com os “Orejones” contra os espanhóis (COMBÈS, 2010, p. 166). Ainda alcançaram na mesma região os Sococi e Xaquete, também povos “Orejones”, estabelecendo ralações traiçoeiras com ambos. No capítulo LII dos Comentários, Cabeza de Vaca (1555, p. 213-5) realiza uma descrição dos hábitos dos Guaxarapo, assinalando a existência de ouro entre eles. Cabeza de Vaca e seus comandados seguiram, não sem percalços, adentrando o Alto Paraguai e contatando os povos indígenas que encontraram pelo caminho. Caminharam um grande trecho junto aos “Orejones” até chegarem aos Maya, população linguisticamente guaikuru que recebeu esse apelido guarani, assim como os Mbayá, e que no século XVI “vivían más al norte de Asunción, y más “Chaco Adentro” (COMBÈS, 2010, p. 195). Os Maya, segundo o relato, mantinham guerra contra os Chimeneo, que possuíam muitos metais e são “asociados con los payzunos en las funtes, y bien pudieron constituir una “parcialidad” de estos útimos” (COMBÈS, 2010, p. 127); e também contra os Carcara (Caracará), também possuidores de metais. Os mesmos

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 159-175, maio/ago. 2019 171 João Filipe Domingues BRASIL

Maya indicaram a existência de outros grandes povos que habitavam perto deles, “que se llaman Gorgotoquies, Payçuñoes, Estarapecocies, y Candires” (CABEZA DE VACA, 1555, p. 223). Esses povos seriam os Gogotoqui, Payzuno, Estarapecoci e Candiré, e localizavam-se no caminho entre o Puerto de los Reyes e a antiga cidade de Santa Cruz la Vieja, entre as zonas I e IV do mapeamento realizado por Combès (COMBÈS, 2010, p. 57), que se refere à rota para se chegar à Sierra de la Prata, tão procurada pelos espanhóis. Há também no relato de Cabeza de Vaca a menção aos Xaray. O fato de o Pantanal ter sido conhecido durante muito tempo na cartografia como a Lagoa dos Xarayes reforça a ideia do quanto os espanhóis ficaram impressionados com esse povo. Após estarem com os Xaray, os espanhóis chegaram aos Artanes. Entre os Artanes, Cabeza de Vaca manteve contato com um guia falante do guarani provindo do Itatim, que havia sido tomado como prisioneiro. Os indíge- nas do Itatim, que também eram falantes do idioma guarani, ao que tudo indica, passaram a acompanhar as expedições espanholas depois desse contato. Torna-se difícil saber, contudo, se tal fato ocorreu antes ou depois do evento narrado por Cabeza de Vaca. No caminho de volta da expedição, próximo ao Porto de los Reys, Cabeza de Vaca identifica os Arrianicosi, índios agricultores que se negaram a ajudá-los (COMBÈS, 2010, p. 67). Essa passagem torna representativa pela forma como as cheias anuais do Pantanal afetaram diretamente os espanhóis. Eles já não tinham como se abastecerem e ainda viram os indígenas lhes negarem apoio, como os Guaxarapo e Guató, povos que se uniram em guerra contra os invasores espanhóis. Segue uma passagem dos Comentários que trata do assunto: Tres meses estuvo el gobernador en el Puerto de los Reyes con toda la gente enferma de calenturas, y él con ellos, esperando que Dios fuese servido de darles salud y que las aguas bajasen para poner en efecto la entrada y descubrimiento de la tierra, y de cada día crecía la enfermedad, y lo mismo hacían las aguas. (CABEZA DE VACA, 1922, p. 328). A segunda entrada de Cabeza de Vaca no Alto Paraguai durou cerca de nove meses. Quando voltou para Assunção, com muitas baixas e enfermos, foi preso junto com seus capitães sob denúncias de “traidor, autoritário e incompetente” (MARKUN, 2009, p. 177-8), e mandado de volta à Espanha em 1544.

172 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 159-175, maio/ago. 2019 Expedições de conquista ibérica e tentativas de submeter os povos indígenas do Pantanal ao domínio europeu no século XVI

O relato produzido por ele é fundamental para entender o contexto étnico do Alto Paraguai, Assunção, até o Puerto de la Candelária, Puerto de los Reyes, e ao oeste, rumo em direção à antiga Santa Cruz la Vieja.

5 CONCLUSÃO A partir da década de 1520, expedições ibéricas começaram a percorrer a região atualmente conhecida como Pantanal em busca da lendária Sierra de la Prata e da conquista de territórios e submissão dos povos indígenas ao domínio espanhol. A primeira expedição que atingiu o Alto Paraguai é a de Aleixo Garcia, sobrevivente do naufrágio da expedição de Juan Díaz de Solís na região que viria a ser a província do Rio da Prata, batizada por ele de Mar Dulce. O português teria sido morto por indígenas no trajeto de volta. A coroa espanhola, desejando a grande riqueza que pensava existir na região, destinou a expedição de Pedro de Mendoza para explorá-la. O primeiro adelantado do Rio da Prata, por sua vez, ordenou que Juan de Ayolas percorresse o norte da região em busca de riquezas, sobretudo metais preciosos. Ao alcançar o Alto Paraguai, Ayolas realizou entrada da qual não volta, dei- xando Domingo Martinez de Irala em seu lugar, acompanhado de Ulrico Schmidl, que ao retornar à Alemanha publicou importante relato sobre o assunto. Após anos sem informação da província do Rio da Prata, a coroa espanhola enviou à região a expedição do então adelantado Álvar Nuñez Cabeza de Vaca. Apesar das melhorias que Irala aparentemente realizou na província do Rio da Prata, suas firmes posições desagradaram muitos colonos, como no episódio da transferência da capital da província de Buenos Aires para Assunção, e culminou em uma rusga entre ele e Cabeza de Vaca. Cabeza de Vaca realizou duas entradas na região do alto curso do rio Paraguai, onde está situado o Pantanal, antes de ser preso e mandado de volta para a Espanha e depois publicou seus Comentários, outro importante relato da época. Ñuflo de Chávez ainda realizou uma entrada no Alto Paraguai, dali partindo para fundar Santa Cruz de la Sierra, em 1561. Os relatos das expedições abordados nesse artigo permitem apresentar um panorama da constituição étnica do Alto Paraguai no séculoXVI, além da relação

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 159-175, maio/ago. 2019 173 João Filipe Domingues BRASIL entre espanhóis e indígenas, a tentativa de conquista dos últimos e o protagonis- mo indígena frente as expedições dos invasores espanhóis. A busca pela Sierra de la Prata e das riquezas que acreditavam existir no Pantanal parece dominar o imaginário europeu na região platina de grande parte do século XVI. Após o início do processo de conquista, as encomiendas e, posteriormen- te, as reduciones foram duas formas usadas pelos espanhóis para a dominação europeia da região platina, mas isso não aconteceu de maneira monolítica, sem diversas formas de relações e protagonismo por parte dos povos indígenas. No final do século XVI, os espanhóis passam a navegar pelos rios menores e a fun- dar povoados em outras partes do Alto Paraguai, como o de Santiago de Xerez, inaugurando outro momento do processo de conquista ibérica.

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Sobre o autor: João Filipe Domingues Brasil – Doutorando em História pela Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO). Mestre em História pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Graduado em História pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). E-mail: [email protected]

Recebido em 19 de junho de 2018 Aprovado para publicação em 22 de novembro de 2018

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 159-175, maio/ago. 2019 175

A reorganização e a fluidez do uso da mão de obra indígena no Grão-Pará: segunda metade do século XVIII (1750-1765) The reorganization and fluidity of the use of indigenous labor in Grão-Pará: second half of the 18th century (1750-1765)

Décio de Alencar Guzmán1 Leonardo Raiol Junior1

DOI: http://dx.doi.org/ 10.20435/tellus.v19i39.595

Resumo: O presente trabalho visa discutir a respeito do contexto histórico amazônico ao qual abarca uma série de nuances, uma delas se refere a promulgação das leis que regulavam a liberdade indígena, das quais verificam a Lei de Liberdade dos Índios, publicada em 1755, e a Lei do Diretório dos Índios, decretada dois anos depois. Além disso, buscou-se acentuar de modo contundente a figura dos índios em algumas vilas ou aldeias que fizeram parte da Capitania do Grão-Pará, no período que compreende os anos de 1750 a 1765. Em suma, o objetivo foi refletir não somente a figura dos índios como sujeitos históricos nesse contexto colonial e de como eles estavam inseridos em uma dinâmica de trabalho que envolvia diferentes agentes coloniais, mas também, procurou-se analisar as estratégias, as mobilidades e as articulações indígenas. Palavras-chave: trabalho indígena; período pombalino; Amazônia Colonial; Capitania do Grão-Pará; século XVIII. Abstract: The present work aims at discussing the historical context of the Amazon, which includes a series of nuances, one of which refers to the enactment of the laws that regulate indigenous liberty, from which the Indian Freedom Law published in 1755 and the Law of the Directory of the Indians, decreed two years later. In addition, it was sought to emphasize in a striking manner the figure of the Indians in some towns or villages that were part of the Captaincy of the Grand-Pará, in the period that comprises the years of 1750 to 1765. In short, the objective was to reflect not only the figure of the Indians as historical subjects in this colonial context and of how they were inserted in a work dynamic that involved different colonial agents, but also, it was tried to analyze the strategies, the mobilities and the articulations Indians. Keywords: indigenous labor; period of Pombal; Amazônia Colonial; Captaincy of Grão-Pará; 18th century.

1 Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, Pará, Brasil.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 Décio de Alencar GUZMÁN, Leonardo Raiol JUNIOR

1 INTRODUÇÃO As inflexões que serão discutidas neste trabalho se referem ao contexto histórico no qual abarca uma série de nuances, entre as quais estão a promul- gação das leis que regulavam a liberdade indígena, tais como a Lei de Liberdade dos Índios, publicada em 1755, e a Lei do Diretório dos Índios, decretada dois anos depois. Além disso, buscou-se acentuar de modo contundente a figura dos índios em algumas vilas e aldeias que fizeram parte das delimitações territoriais da Província do Grão-Pará, no período em que envolve os anos de 1750 a 1765. Com a apropriação do aporte teórico e, principalmente, da inflexão feita mediante às diferentes fontes históricas, além de terem auxiliado na metodolo- gia e na construção do trabalho, esses instrumentos foram imprescindíveis na sustentação dos argumentos e na própria narrativa histórica. Análises estas que possibilitaram refletir mediante a um quadro amplo da sociedade colonial, onde as relações entre sujeitos, como colonos, missionários, autoridades coloniais e grupos indígenas estavam inseridos em uma rede complexa que envolve relações por meio de trocas, negociações ou sublevações. A reflexão está dividida em três pontos, entre os quais estão assinalados, a princípio, uma dimensão do contexto histórico da colônia, sobretudo, a respeito da política, da economia, do campo jurídico e de aspectos que abarcam o cená- rio da Província do Grão-Pará, no contexto de 1750 a 1765. No que se refere ao segundo ponto, buscou-se analisar o papel das leis indigenistas que, por sua vez foram promulgadas a partir da segunda metade do século XVIII, cujo principal objetivo era regular a mão de obra indígena. No âmbito dessa questão, situa-se o trabalho indígena que ironicamente passava pelo processo de regulação e de proibição do cativeiro dos índios, não obstante, as nações indígenas ainda eram subjugadas a escravidão nos sertões amazônicos. Por conseguinte, no último ponto, a reflexão envereda pelas ações indíge- nas, isto é, como os índios agiam, articulavam-se e mobilizavam-se para subver- ter qualquer forma de sujeição ao seu favor? O intuito foi compreender as mais diversas maneiras de estratégias indígenas, entre as mais proeminentes estavam as deserções para os sertões, uma das maneiras que os índios encontravam para burlar as dominações feitas por diferentes agentes coloniais.

178 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 A reorganização e a fluidez do uso da mão de obra indígena no Grão-Pará: segunda metade do século XVIII (1750-1765)

2 DISPUTAS, PODER E CONTRADIÇÕES: A POLÍTICA INDIGENISTA NO GRÃO-PARÁ (1750-1757) O contexto que precede a implantação do Diretório dos Índios, em 1757, revela-nos um quadro permeado de disputas, contradições e negociações. Os anos entre 1750 e 1757, é o momento ao qual estavam mais evidentes as políticas pombalinas e o quão as relações dos agentes coloniais estavam entrelaçadas num processo complexo, como destaca Coelho (2007, p. 31). É possível perceber, nas fontes documentais, uma série de evidências a respeito da implementação dessas políticas e da própria situação social que se encontravam colonos e os agentes lusitanos. Em meio a essa rede, houve tentativas profundas de incorporação dos indí- genas nas atividades da administração colonial, com o processo de “transformação dos ameríndios em vassalos” conforme ressalta Domingues (2000, p. 38). Essa transformação perpassa a ideia da igualdade social e jurídica que os grupos indíge- nas teriam em relação aos colonos portugueses. Além disso, a mão de obra desses ameríndios era de suma importância para a consolidação do Projeto Lusitano2. Outros aspectos que estão relacionados a essas transformações, correspondem aos processos civilizatórios que incidiam diretamente nos grupos indígenas da colônia. Para que isto se efetivasse, era necessário o aprendizado obrigatório da língua portuguesa. Também, eles teriam a autorização para se casar com os não índios. Por fim, o trabalho indígena, teria uma parcela fundamental na execução das expedições de demarcações de limites para a efetiva ocupação territorial, assinala Garcia (2007). As medidas encaminhadas a Mendonça Furtado, compreendem de certa maneira uma incongruência, pois as instruções que chegaram em suas mãos bus- cavam fomentar a liberdade dos índios, porém, como a mão de obra indígena era

2 Projeto este que visava não somente o fortalecimento da Coroa portuguesa, mas a sua expan- são na colônia, isto é, no século XVIII, Portugal tinha pretensões de fortalecer o poder Estado e reformar a política econômica e social do país, visto que ainda estava aquém das outras nações europeias. Na colônia, na segunda metade do século XVIII, o Estado do Grão-Pará e Maranhão, foi alvo dessas ditas transformações que, por sua vez ficaram mais conhecidas como reformas pombalinas. As reformas vieram na implantação de Companhias de Comércio, na educação pública que substituía a dos jesuítas e consolidava a autoridade do Estado português em detri- mento da autoridade eclesiástica das ordens religiosas. Ver: Maxwell (1996) e Villalta (1999).

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 179 Décio de Alencar GUZMÁN, Leonardo Raiol JUNIOR imprescindível para a economia da região, essas medidas não foram colocadas logo em prática, uma vez que elas esbarravam simplesmente numa questão ainda muito comum: o uso da mão de obra indígena nos mais diversos setores econô- micos da região: na agricultura, na busca das drogas do sertão, nos engenhos, nas construções de canoas e nas demarcações das fronteiras. Portanto, a regulação da liberdade indígena foi um processo que se consolidava paulatinamente. No tocante à liberdade dos índios, uma das diretrizes das políticas pom- balinas foi retratada por meio de cartas entre Mendonça Furtado e o seu irmão Sebastião José. Em uma delas, Furtado relata a situação do índio Manuel, da al- deia de Uricuru, onde requereu autorização para viver numa localidade longe de onde habitava, pois já tinha cerca de 60 anos de idade, com o intuito de viver a “seu gosto”. No entanto, quando Mendonça Furtado examinou a petição do índio Manuel junto ao Pe. Júlio Pereira, responsável pela aldeia, este ficou enfurecido e desqualificou o dito índio, dizendo-lhe que era um “magaço” e pertencia à aldeia Uricuru. Mendonça Furtado relatou que ficou confuso por não saber lidar com a liberdade indígena e ao mesmo tempo consternado com a situação em que tal índio estava, pois com tamanha idade não merecia continuar trabalhando3. No que se refere ao uso da mão de obra indígena, ela se desdobra em duas vertentes, certamente de modo genérico, mas que nos fazem refletir sobre a sua utilização. Sobretudo, na dinâmica colonial são evidentes duas categorias: a primeira, os índios que eram legitimamente escravizados, ora eles eram prisio- neiros a partir dasguerras justas, ora eram aprisionados e obtidos por meio dos resgates, assinala Farage (1991, p. 28). Além disso, teremos a figura dos índios livres que, por sua vez, estavam na condição de aldeados e aliados, como expõe Perrone Moisés (1992, p. 117-8). As guerras justas se caracterizaram na colônia, a partir de dois pontos de vista: a primeira se refere às incursões de grupos indígenas em algum acam- pamento de portugueses, os índios que fossem presos nesses tipos de ações eram legitimamente escravizados; a segunda maneira era o ataque iminente de

3 1ª Carta, datada em 21 de novembro de 1751, enviada por Mendonça Furtado ao seu irmão Sebastião José de Carvalho e Melo, entre os assuntos tratados na correspondência estão os limites fronteiriços do Estado do Grão-Pará e Maranhão e as relações entre os Regulares da Companhia de Jesus com os índios. Ver: Mendonça (2005, tomo I, p. 109-26).

180 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 A reorganização e a fluidez do uso da mão de obra indígena no Grão-Pará: segunda metade do século XVIII (1750-1765) indígenas, isto é, à medida em que esse ataque fosse surpreendido pelos colo- nos portugueses, os índios capturados eram levados à condição de escravos. No que diz respeito ao resgate, tal prática era legítima em algumas circunstâncias, sobretudo quando a captura dos prisioneiros ou escravos, geralmente grupos de índios inimigos, era realizada pelos índios aliados à coroa portuguesa, conforme salienta Farage (1991, p. 29). Os descimentos eram práticas comumente incentivadas por religiosos e governadores, com a finalidade de deslocar um considerável número de grupos indígenas para ocupar as povoações. Nos aldeamentos, os índios poderiam estar na condição de homens “livres”, de modo que em determinadas situações poderiam até receber salários pelos trabalhos efetuados nesses aldeamentos. Além disso, Perrone Moisés (1992, p. 117-8) acentua que conforme as relações de confiança fossem aumentando entre os índios e os religiosos, os indígenas poderiam ser tratados como aliados ao projeto colonial. No entanto, a configuração das relações sociais nesses aldeamentos é complexa, pois nem sempre os índios se habituavam aos tratamentos recebidos pelos padres, e quando os maus tratos prevaleciam, as fugas e as mais diversas formas de resistência ficavam mais evidentes. Nesses aldeamentos, a administração ficava a cargo dos missionários. Isso ficou estabelecido desde a Lei de 21 de dezembro de 1686, com a instalação do “Regimento das Missões do Estado do Maranhão e Grão-Pará”, como salienta Mello (2007, p. 209). Sobre essa questão, ficou definida a responsabilidade da administração dos índios aldeados, pelos missionários, porém, o controle dos religiosos foi muito além. Estes, por sua vez, ficaram também incumbidos de go- vernar tanto a dimensão espiritual, como a temporal desses aldeamentos. Ou seja, os missionários, neste momento, foram os responsáveis direto em descer grupos indígenas para os aldeamentos, proporcionando assim, um aumento significativo no número de índios nesses aldeamentos. O propósito disso foi, principalmente, a preocupação com a defesa do Estado e a utilização da mão de obra indígena, além da questão missionária, que era um dos objetivos fundantes das ordens religiosas. Os desdobramentos dessa questão ficaram mais evidentes com a imple- mentação das políticas pombalinas, cujas ações dos missionários ficaram mais restritas, o controle passaria para às mãos do próprio Estado. Sob a influência dos ideais iluministas, um dos objetivos das políticas lusitanas foi secularizar as ações

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 181 Décio de Alencar GUZMÁN, Leonardo Raiol JUNIOR governativas: distinguir de forma definitiva as funções do Estado e as funções da Igreja. Mendonça Furtado expôs sua preocupação numa carta encaminhada ao seu irmão, em que se refere ao “grande poder dos Regulares neste Estado”. Isso, segundo ele, “causaria ruína à administração”. Nessa carta, Furtado ressalta que a petição do Principal da Aldeia de Piraviri, no rio Xingu, remete a uma segunda queixa sobre o missionário daquela aldeia, o padre jesuíta João de Souza, pois os índios não confiavam nenhum pouco nas atitudes dele e, por isso, pediam que fosse feita a mudança do tal missionário. Entretanto, quando Mendonça Furtado foi então pedir que o Vice Provincial da Companhia tomasse providências, a respeito da situação, esta autoridade da Companhia nada realizou em prol do pedido. Logo, tal atitude demonstrou o quão os religiosos ainda tinham a autonomia chegando ao ponto de não cumprir uma solicitação do Governador do Estado4. Em outra carta, Mendonça Furtado alertou o seu irmão sobre a “dissimula- ção” e a “persuasão” que os padres da Companhia de Jesus praticavam em relação aos índios. Nessa carta, Furtado relatou que havia diversos serviços para se fazer, tais como descarregar as naus e o trabalho na construção das canoas, pois para estes serviços era indispensável certa quantidade de índios que, por sua vez foram direcionados para tais trabalhos. Assim se fez nos primeiros dias, todos os índios executaram os serviços. Todavia, com o passar dos dias, menos índios tinha no local, pouco a pouco foram fugindo. Vendo a situação, Furtado foi ao Colégio Santo Alexandre, disse ao padre Luís de Oliveira, Procurador Geral das Missões, que aquelas deserções não passa- vam de uma “má instrução” que os padres tinham feito com aqueles índios e que precisava da obediência deles. Contudo, o padre lhe respondeu que tinha feito “boas práticas”, mas que não havia solução para tanta desobediência5.

4 6ª Carta, datada em 29 de dezembro de 1751, cujo conteúdo enfatiza o poder dos Jesuítas na região e sobre a situação miserável no qual os povos indígenas se encontravam. Ver: Mendonça (2005, tomo I, p. 203-9). 5 43º Carta, de 18 de outubro de 1753, esta correspondência faz referência às deserções indígenas, principalmente, no tocante a Feitoria das Canoas, a fuga de carpinteiros índios e os mestres do estaleiro desertavam com assídua frequência, sendo que a grande maioria desses índios que fugiam eram provenientes de três grandes aldeias: Guaricuru, Arucará (Portel) e Araticu, aldeias estas que estavam sob a administração dos jesuítas. Ver: Mendonça (2005, tomo I, p. 520-3).

182 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 A reorganização e a fluidez do uso da mão de obra indígena no Grão-Pará: segunda metade do século XVIII (1750-1765)

No que se refere a essas duas cartas, é possível apreendermos mediante a dois pontos de vista. O primeiro, remetem as relações que já estavam deterioradas entre o Estado e os religiosos. Mendonça Furtado, como agente administrativo e na sua “insistência” em colocar em prática as instruções régias que lhes foram passadas. Os jesuítas e missionários em geral eram vistos como uma ameaça, posto que desfrutavam de significativos poderes de persuasão, causando sérios riscos ao projeto pombalino. O segundo aspecto está na própria resistência indígena. Embora a documentação nos revele que havia de certa maneira a “persuasão” por parte dos missionários, para além disso, podemos perceber a deserção e a fuga como ações conscientes: a partir do momento em que os índios não esta- vam satisfeitos com a carga dos serviços que lhes foram propostos, fugiram para outras localidades. No tocante a esse quadro, uma das dimensões diz respeito ao processo civi- lizatório que estava relacionado ao projeto pombalino. Nessa compreensão, três pontos são relevantes nesse processo, um deles é o ensino obrigatório da língua portuguesa, o segundo ponto é o casamento entre portugueses e índios, por fim o processo de consolidação do território, mediante a ocupação e da demarcação dos limites das fronteiras lusitanas e espanholas6. Em 1751, Mendonça Furtado encaminhou uma carta ao Vice Provincial da Companhia de Jesus ordenando que, nos trabalhos de catequização e civilização dos índios, os missionários iniciassem o quanto antes o ensino da língua portu- guesa com os índios7. Na instrução §168, a recomendação estava direcionada aos missionários. Quando os índios se dirigiam à administração dos aldeamentos, os religiosos aproveitavam para iniciar o processo de civilização daqueles, uma vez que os índios eram úteis à Coroa. Uma carta enviada pela Coroa lusitana em 1752, à Diogo de Mendonça, secretário de Estado da Marinha e Ultramar, ressalta a instrução §16 (conforme apresentada anteriormente). Bem como a resposta que

6 Sobre as Instruções Régias, Públicas e Secretas para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Capitão-General do Estado do Grão-Pará e Maranhão, de 31 de maio de 1751. Ver: Mendonça (2005, tomo I, p. 67-80). 7 Carta de Mendonça Furtado ao Superior vice provincial da Companhia de Jesus, ordenando que o ensino da língua portuguesa, escrita e falada, fosse relacionado a catequese e a civilização dos índios, isso era fundamental para o interesse das capitânias e da Coroa. Ver: AHU. Caixa. 32. Documento. 3063. 18 nov. 1751. p. 01-03. 8 No tocante as instruções. Ver: Mendonça (2005, tomo I, p. 72).

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 183 Décio de Alencar GUZMÁN, Leonardo Raiol JUNIOR a Coroa obteve de um dos missionários a respeito do ensino da língua portuguesa aos índios. Nesse caso, o Padre José de Morais, da aldeia Tabapará, próxima à Vila de Vigia, enviou uma carta, ressaltando o trabalho profícuo que estava executan- do. Embora tal trabalho tenha sido realizado em tão pouco tempo, cerca de um a dois meses, os resultados já estavam aparecendo9. Além dessa incorporação dos índios por meio do ensino da língua, outro fator que corrobora com essa integração ao projeto metropolitano é a união en- tre os índios e os colonos portugueses. Em outubro de 1753, uma leva de casais açorianos foi distribuída pelas vilas de Caeté e Bragança, da Capitânia do Estado, para fins de promover o casamento de portugueses com os índios10. Entretanto, essa medida desagradou o Bispo do Pará, D. Miguel de Bulhões, que remeteu uma carta ao rei D. José I, informando-o sobre a Lei de 4 de abril de 1755, que autorizava o casamento entre ameríndios e portugueses: era na realidade uma “infâmia” que estava acontecendo11. No tocante a essa questão, nota-se que há uma profunda envergadura das políticas metropolitas em formar casais. Em uma das correspondências, Mendonça Furtado informa ao seu irmão, Marquês de Pombal, que com a introdução de soldados na Vila de Borba é possível certificar-se uma grande possibilidade da formação de casais entre as índias e os soldados (não índios). Deve-se notar que nessa mesma correspondência estava registrado que os casais recebiam uma espécie de dote “presentes”, como: fardas, ferramentas e meio alqueire de sal12. A fomentação das políticas de casamentos inter-raciais já estava sendo

9 Sobre a civilização por meio da língua portuguesa e a catequese dos índios Sacacas, na Ilha de Joanes, a documentação ressalta a situação dos jovens indígenas na aldeia e de como estava estabelecido a relação entre eles e os missionários, vinculo este que prevalecia o poder e a submissão dos índios Sacacas. Outra questão que a documentação ressalta, diz respeito ao abandono da aldeia feita pelos missionários após o longo processo que se deu o ensino da língua. Ver: Mendonça (2005, tomo I, p. 227-8). 10 A possível união matrimonial entre colonos e índios da terra. Ver: AHU. Caixa. 35. Documento. 3251. 11 out. 1753, p. 2-3. 11 Carta do Bispo Miguel de Bulhões ao rei D. José I, no qual ressalta a publicação do alvará em forma de Lei de 4 de abril de 1755, autorizando o casamento entre portugueses e índias e portuguesas e índios, com a publicação dessa lei, a união entre portugueses e índios deixa de ser “infame”, como ressalta a fonte e, passa a ser fundamental por dois motivos, na fixação dos colonos e no povoamento da região. Ver: AHU. Caixa. 38, Documento. 3568. 04 ago. 1755, p. 2. 12 154ª Carta, de 13 de outubro de 1756, no qual Mendonça Furtado ressalta o casamento entre soldados e índias, na Vila de Borba, além disso, o dote que cada casal recebeu, na forma de

184 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 A reorganização e a fluidez do uso da mão de obra indígena no Grão-Pará: segunda metade do século XVIII (1750-1765) implementada desde 1750. Uma das principais razões dessa política foi a busca incessante de povoar locais estratégicos da Amazônia colonial, além disso, os casamentos serviam para ratificar a demarcação dos limites territoriais, como enfatiza Guzmán (2006). As demarcações dos limites territoriais na parte norte do vale amazônico eram imprescindíveis para a coroa lusitana. Mas requereu um esforço considerável para pôr em prática. Algumas instruções foram encaminhadas ao Governador do Estado do Grão Pará, Mendonça Furtado, para que tais medidas fossem seguidas13. Para esta finalidade, era importante percorrer os mais diversos locais e rios da região e fixá-los aos domínios da Coroa. No tocante ao gerenciamento das fun- ções, era importante nomear um chefe de confiança para comandar as tropas. Tais tropas teriam oficiais militares, astrônomos, geógrafos, capelães, cirurgiões, soldados e gente de serviço: um número considerável de pessoas. Portanto, é perceptível que as demarcações dos limites tinham um contingente expressivo de grupos indígenas a seu serviço, isto fica evidente num ofício encaminhado pelo Provincial do Carmo, padre José da Natividade, para o Diogo Mendonça, o conteúdo do ofício que ressalta a grande quantidade de índios cedidos para as demarcações nos rios Negro e Solimões14. Podemos perceber que as relações entre os agentes coloniais ligados à Coroa lusitana estavam inseridas num quadro múltiplo e que ao mesmo tempo mantinham uma relação dicotômica. Sobretudo o que fica evidente, é a disputa de poder, os conflitos e as negociações. Podemos averiguar também que as relações podem ser de embates, como observamos no caso do padre Júlio Pereira e do índio Manuel, na aldeia Uricuru. Ou entre os índios da Aldeia de Piraviri, no rio Xingu, que reclamavam do missionário e não confiavam no padre João de Souza.

“presentes” de Mendonça Furtado, que corresponde ao fardamento que já estava meio desgas- tado, mas também, camisas e saias de aniagem (tecido de juta), ferramentas (enxada, machado, foice, serrote, enxós e martelo) e terra. Ver: Mendonça (2005, tomo III, p. 162-3). 13 Para uma discussão mais incisiva sobre os assuntos referentes à “Instrução assinado pela real mão de sua majestade” que diz respeito as demarcações da parte da região norte da Colônia. Ver: Mendonça (2005, tomo I, p. 455-64). 14 Ofício do provincial do convento do Carmo do Pará, frei José da Natividade, para o secretário de Estado e Ultramar, Diogo Corte Real, sobre os serviços que abarcam a administração das missões, disponibilização de índios para as demarcações e a expedição das Tropas de resgate pelos rios Negro, Solimões e Japorás. Ver: AHU. Caixa. 35. Documento. 3309. 26 nov. 1753. p. 2.

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Além disso, podemos ver negociações, como é o caso do padre José da Natividade com Diogo Mendonça, e principalmente, da resistência indígena, quando contin- gentes de índios fugiam dos serviços prestados à Coroa ou às ordens religiosas.

3 A LEI DO DIRETÓRIO DOS ÍNDIOS E A INSTABILIDADE DA LIBERDADE INDÍGENA Dois anos após a Lei de Liberdade dos índios (1755), outra lei foi instituí- da, a Lei do Diretório dos Índios (1757), que tinha por objetivo central regular a liberdade indígena. Mas isso não queria dizer que esta lei não abarcasse outros pontos de vista do processo social da Colônia. O Diretório é composto por 95 pontos instrutivos ou parágrafos, dos quais diversos assuntos são tratados. E os conteúdos variam em certa medida, mas possuem pontos em comuns: processo civilizatório, economia, agricultura, comércio e o trabalho indígena (DIRETÓRIO..., 1758). Todos esses pontos culminam numa concordância com as reformas régias. A ideia não é refletir sobre cada parágrafo que a Lei ressalta, mas sobre pon- tos pertinentes que nos fazem compreender parte das atividades que giram em torno do trabalho indígena e de como essa mão de obra está inserida num cenário que envolve outros agentes coloniais. É possível vislumbrar na documentação que a mão de obra indígena em alguns casos era remunerada, mas submetida a trabalhos forçados, em outros casos era inexistente o pagamento sobre o traba- lho forçado que os índios executavam. É importante ressaltar também que nem sempre os índios se submetiam aos trabalhos forçados, pois uma das principais formas de reação ou agência indígena que encontramos na documentação foi a fuga, conforme salienta Almeida (2017). Óbvio que existem outras maneiras de se pensar, principalmente, a respeito das estratégias em que os índios se apropriavam para agir em prol de si ou de um grupo, no caso poderia ser o da sua própria etnia. Sem dúvida que essa política indigenista abrangia outras dimensões do am- biente colonial. Mas a princípio, o objetivo da Coroa portuguesa foi empreender algumas medidas que pudessem assegurar o processo de civilização dos índios e as reformas que estavam sendo implantadas. Uma das instruções que o Diretório ressaltava corresponde à nomeação do Diretor das povoações, que deveria ser feita pelo Governador e Capitão Geral do Estado. Uma das funções desse diretor, dizia respeito ao modo como ele deveria gerenciar e fazer com que as normas

186 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 A reorganização e a fluidez do uso da mão de obra indígena no Grão-Pará: segunda metade do século XVIII (1750-1765) régias fossem cumpridas em tais povoações (DIRETÓRIO..., 1758, p. 3). Além dos diretores, ainda podemos perceber a presença dos Principais15, que foram lideran- ças indígenas que de alguma maneira conseguiram ser reconhecidas e passaram a ter responsabilidades em cuidar e manter em ordem o funcionamento das vilas, como sublinha Sampaio (2010). As reformas pombalinas que foram implementadas, em meados do século XVIII, influenciaram relativamente na organização da administração das vilas e povoações da Colônia. Índios passaram a ter papéis importantes no gerenciamento de tais localidades. Esses índios foram designados como Principais, cuja função tinha por intuito de intermediar com as outras autoridades coloniais. Autoridades estas que o Diretório ressalta como os diretores, juízes ordinários, etc. Geralmente os principais eram os porta-vozes da sua vila ou da povoação onde viviam. Essa inserção dos índios na administração colonial, de certo modo fazia parte das reformulações que a metrópole estava executando, tendo em vista que os índios eram fundamentais para consolidar o poderio do império português na região Amazônica, conforme evidencia Melo (2016). No entendimento da Coroa e mediante a um viés eurocêntrico, a civiliza- ção deveria chegar às populações indígenas. Uma das razões estava relacionada ao estado de barbárie e de costumes pagãos que os índios ainda praticavam. Além disso, muitos povos ainda falavam as suas línguas nativas ou a língua geral (Nheengatu), prática que a Coroa portuguesa pretendia extinguir. Para que os -ín dios pudessem sair desse estágio, era importante civilizar, ensinar os mistérios da sagrada religião também ensinar língua portuguesa, assim, ao sair da ignorância e da rusticidade, os indígenas deveriam ser úteis a si, aos moradores e ao Estado. Torná-los súditos ou “cidadãos” portugueses, isso foi um dos objetivos traçados pelas reformas que até então estavam ocorrendo.

15 O termo Principal foi atribuído as lideranças indígenas pelos portugueses, no momento do contato, no século XVI. Ver: Cunha (1990); no século XVII, o viajante e ouvidor geral Maurício Heriarte, em 1662, na sua passagem pela região do Pará, Gurupá e Rio Amazonas, descreve o cotidiano de algumas nações indígenas, aos quais manteve relações. Ao navegar pelo rio Tapajó, deparou-se com as nações Marautus, Caguanas e Orucuzos, Heriarte salienta o cotidiano desses grupos indígenas, que comumente estava pautado na caça, pesca e no cultivo de milho, man- dioca e na colheita de inúmeras frutas que existiam no local onde estava situada a aldeia. No tocante a liderança desses índios, fazia-se presente a figura doPrincipal , que tinha autoridade e o respeito pelos demais indígenas, cuidava de cerca de trinta casais. Ver: Heriarte (1874).

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Com esse processo civilizatório, a Coroa portuguesa tinha a pretensão de transformar os índios em súditos através do ensino da língua. O Diretório enfatiza essa perspectiva, pois uma vez estabelecido o aprendizado da língua portuguesa isso permitia a possibilidade da Coroa portuguesa não apenas controlar as fron- teiras do território, mas também dominar a própria população local, por isso o ensino obrigatório da “língua do príncipe” efetivaria o projeto pombalino, como acentua Garcia (2007). Nesse sentido, Coelho (2006) sublinha que o ensino da língua foi um instrumento importante nesse contexto para que os planos metro- politanos se consolidassem no território amazônico. É importante refletir que embora essa política causasse um efeito danoso para as populações indígenas, os índios se utilizavam de estratégias para continuar falando o seu idioma. Isto é, os índios de certa maneira não foram submissos aos planos portugueses, mas sim compartilhavam informações entre si, nas suas línguas nativas. Um claro exemplo a respeito dessa compreensão podemos aferir numa carta de Manoel Francisco, diretor de povoação, encaminhada ao Secretário da Marinha e Ultramar, Manoel Bernardo de Mello e Castro, no qual Francisco ressalta que índios e índias fugiram para os sertões da Capitania16. Nesse caso, é possível identificar que esse grupo de índios que comumente eram solicitados nas vilas, acabavam indo trabalhar nas construções das canoas. Trabalho este que demandava de muita força física, que além de construir, deveriam cortar, plainar e conduzir as madeiras aos estaleiros, contudo, isso ocasionava inúmeras fugas para os sertões. Numa outra carta, o diretor da vila de Bragança, Luís Bentes Courat, ressaltava que muitos índios ao serem designados a fazerem as roças dos mora- dores da vila, acabam fugindo pelos matos17. Outro aspecto curioso diz respeito à repartição de índios nas vilas e o quanto é problemática essa questão de distribuir os índios entre as povoações, conforme situa Perrone Moisés (1992, p. 120-1).

16 Arquivo Público do Estado do Pará (APEP). Códice 95. (Acervo Digitalizado). Documento, 0217. 14 maio 1759, p. 133. 17 APEP. Códice 95. (Acervo Digitalizado). Documentos, 0221-0222. 16 maio 1759, p. 135-6.

188 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 A reorganização e a fluidez do uso da mão de obra indígena no Grão-Pará: segunda metade do século XVIII (1750-1765)

4 REORGANIZAÇÃO DA MÃO DE OBRA INDÍGENA: O OBJETIVO DE TORNÁ-LA MAIS PRODUTIVA PARA A METRÓPOLE A mão de obra indígena estava na pauta das políticas da Coroa portuguesa em meados do século XVIII, com a implantação do projeto pombalino, de reor- ganização da colônia. O trabalho indígena, talvez foi um dos pontos mais impor- tantes e significativos que se verificou no projeto metropolitano. Uma vez que a intenção de reordenação perpassava pela força de trabalho, nesse caso, exercido pela mão de obra indígena. Foi implantada uma série de medidas que reiteravam a proibição da es- cravidão indígena, isso se intensifica a partir de 1755. Verifica-se que de certo modo, a mão de obra indígena foi reordenada para fins de suprir as necessidades da Coroa portuguesa e não mais de servir às ordens religiosas. Isto é, a tentativa a todo custo de retirar o monopólio dos missionários sobre o trabalho indígena fez parte desse processo e isso fica evidente. Nota-se também que nesse perío- do a conjuntura política se altera paulatinamente, são perceptíveis as reformas políticas da Coroa portuguesa. Ainda, percebe-se que essa política metropolitana na realidade tinha a intenção de manter o controle dessa mão de obra indígena, para isto, implantou reformas que pudessem reorganizar a sociedade colonial, como evidencia Farage (1986). Com a implantação da Companhia Geral do Comércio do Grão-Pará e Maranhão, isso ocasionou uma série de alterações no âmbito social e econômico da região. A princípio, um dos motivos dessa implantação foi a possibilidade de retirar o Estado do Grão-Pará e Maranhão da estagnação econômica, mas isso corroborou com outros pontos que estavam interligados a essa questão. Isto é, pontos como na incorporação da mão de obra negra, que seria introduzida na agricultura, nos cortes das madeiras e nos diferentes trabalhos, isso fez com que houvesse a reorganizações tanto na economia da região, na política conforme acentua Dias (1966), como na abolição do poder temporal dos missionários sobre os índios aldeados, de acordo com Farage (1986, p. 21), estes foram aspectos que nortearam as reformas metropolitanas. No tocante à entrada da mão de obra negra, verifica-se que os africanos escravizados foram inseridos no contexto amazônico no final do século XVII. No entanto, com a intensificação do tráfico africano, houve um aumento considerável

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 189 Décio de Alencar GUZMÁN, Leonardo Raiol JUNIOR da mão de obra negra destinada à região amazônica. Isso passou a ocorrer com maior frequência em meados do século XVIII. Uma das razões, foi a implementação da própria Companhia de Comércio que fomentou o tráfico e consequentemente passou a monopolizar o comércio e a rede de distribuição de africanos escraviza- dos para a região, como sublinha Chambouleyron (2006) e Bezerra Neto (2012). No que diz respeito aos cativos africanos e as relações sociais na Amazônia colonial, observa-se uma relação próxima entre os negros e os índios, mas princi- palmente na busca das drogas do sertão18, no corte de madeiras e nas construções de canoas. É importante ressaltar que os africanos não substituíram de modo algum os índios, isto é, a mão de obra indígena foi tão utilizada quanto a dos africa- nos. Verificou-se num ofício de 1761, do Governador e Capitão do Estado do Grão- Pará e Maranhão, Manuel Castro, encaminhada ao Secretário Mendonça Furtado, a respeito do requerimento dos administradores da Companhia de Comércio, em que houve a solicitação de alguns índios para ensinarem os cativos africanos a cortar madeiras e conduzi-las aos estaleiros. Nessa mesma documentação, nota- -se que os índios iam receber certa quantia de réis pelos trabalhos efetuados19. Esta questão evidencia um dado curioso a respeito da mão de obra indígena, sobretudo, no que se refere ao pagamento de uma certa quantia aos índios. Em alguns casos, os índios recebiam em dinheiro pelos serviços prestados. A questão é que muitos índios ainda estavam na condição de escravos. Mesmo com a legis- lação vigente do Diretório, é possível perceber que a mão de obra indígena foi comumente utilizada nas mais diversas funções, que iam dos cortes de madeiras, extração das drogas até a confecção de tecidos20. Uma das práticas que podemos vislumbrar na documentação se refere a repartição dos índios que acontecia entre os colonos nas mais diversas vilas. Prática esta que foi recorrente na segunda metade do século XVII, de acordo

18 No que se refere a essa questão ver: Bezerra Neto (2012). 19 Ofício do Governador e capitão-general do Estado do Pará e Maranhão, Manuel Bernardo de Melo e Castro, para o secretário da Marinha e Ultramar, Mendonça Furtado, no qual Melo e Castro ressalta uma “mudança” de função dos índios, pois ao invés de ficarem retidos nos cor- tes da madeira, deveriam ensinar aos africanos o manuseio das ferramentas, a forma como se dava os cortes e as árvores que eram mais apropriadas para se fazer canoas, casas e os demais utensílios. Além disso, Melo e Castro reforça a ideia do pagamento diário a esses índios. Ver: AHU. Caixa. 50, Documento. 4607. 3 out. 1761. p. 1-3. 20 APEP. Códice 95. (Acervo Digitalizado). Documento, 0243. 20 maio 1759, p. 147.

190 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 A reorganização e a fluidez do uso da mão de obra indígena no Grão-Pará: segunda metade do século XVIII (1750-1765) com Mello (2007, p. 208) a predominância da distribuição dessa mão de obra foi feita com certa frequência pelos padres das aldeias. Mesmo com a proibição da escravidão da mão de obra indígena, entretanto, percebe-se que a distribuição de índios não ficava restrita aos colonos, mas essa prática foi algo recorrente entre as autoridades régias. No tocante a essa questão, o diretor de povoação Cosme Damião, enquanto diretor da Vila de Pombal, repartia os índios para trabalharem nas lavouras e no corte das madeiras, mas também, recebia índios de outras localidades para que pudessem ser distribuídos entre os moradores de Pombal21. Essa prática que trata a respeito de repartição dos índios, a priori, tinha como intenção remunerar os índios pelos serviços prestados, mediante as negociações com o empregador, mas ao final do trabalho executado, nem sempre tal empregador cumpria com suas obrigações, além disso, descumpria as normas preestabelecidas, como ressalta Perrone-Moisés (1992, p. 120-1). Outro caso semelhante ocorreu no remanejamento de alguns índios para os serviços reais. Em um ofício, de meados de 1761, encaminhado ao secretário Mendonça Furtado, do então governador e capitão general Manuel Castro, que ressalta sobre as providências tomadas a respeito dos serviços reais. Está previsto para acontecer de seis em seis meses, posto que esse tempo é necessário para que as povoações não se sintam prejudicadas com a ausência dos índios para os trabalhos. Por esse motivo, adotou-se esse período. Além disso, Castro ressalta que a mão de obra indígena é indispensável para os serviços que se distinguem entre os cortes das madeiras, assim como na sua condução e na construção de embarcações (nau e canoas) e também de charruas (carroças específicas do pe- ríodo) para o Arsenal da cidade22.

21 APEP. Códice 95. (Acervo Digitalizado). Documento, 0289. 8 jun. 1759, p. 173. 22 Ofício do Governador e capitão-general do Estado do Pará e Maranhão, Manuel Bernardo de Melo e Castro, para o secretário da Marinha e Ultramar, Mendonça Furtado. Melo e Castro ressalta em tal documento a necessidade de mais índios para compor o quadro de demandas das embarcações. Ver: AHU. Caixa. 49, Documento. 4514. 22 jun. 1761. p. 1-2.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 191 Décio de Alencar GUZMÁN, Leonardo Raiol JUNIOR

5 MOBILIDADES E ARTICULAÇÕES: NUANCES SOBRE AS ESTRATÉGIAS INDÍGENAS A mão de obra indígena sempre foi alvo de cobiça entre religiosos, colonos portugueses e até entre as próprias autoridades da Coroa na região amazônica. Mesmo com a promulgação de leis que proibiam o uso do trabalho indígena, sem que houvesse o devido pagamento pelos serviços prestados, no entanto, o uso irrestrito dos índios em diferentes demandas no Estado do Grão-Pará e Maranhão foi algo corriqueiro, principalmente na segunda metade do século XVIII. A maior parte dos trabalhos desenvolvidos nos diferentes espaços, tais como roças, obras públicas, construções de embarcações, de casas, de igrejas e serviços como guia de viajantes pelos rios da região, era fruto de um considerável contingente de índios. Toda essa complexa rede se situava, em grande medida, nas inúmeras vilas e aldeias que compunham a Capitania do Grão-Pará. Ora, essa perspectiva não soa de forma tão inusitada, tendo em vista que os índios eram imprescindíveis para a formação e o desenvolvimento dessas localidades. Além disso, muitos grupos eram designados para executar os mais diferentes tipos de trabalhos, dos mais “simples” aos mais onerosos que demandavam um grandioso esforço físico. Em correspondência com o seu irmão, Mendonça Furtado evidencia uma série de fugas indígenas que ocorreram na Capitania, prejudicando assim a conti- nuidade dos serviços régios na região. Na segunda metade do século XVIII, cerca de 65 índios foram trazidos de diferentes aldeias para auxiliar na carpintaria das construções das canoas. Não obstante, os índios foram fugindo paulatinamente. Desses 65 indígenas, sessenta eram da Companhia de Jesus, apenas um índio seria da aldeia dos capuchos e os outros seriam alforriados. Com as fugas em massa, estava instalada a desordem, consequentemente o atraso nas construções das embarcações. Ao solicitar que fossem atrás desses desertores, só trouxeram quinze, os demais já tinham se evadido para outras áreas da região, que de certo modo, eram conhecidas dos próprios índios. Contudo, o caso se agravava ainda mais, quando se descobriu que os mesmos índios que fugiram dos estaleiros da Coroa foram logo empregados nas suas povoações, no serviço dos missionários, construindo-lhes canoas para serem vendidas às serrarias de madeiras23.

23 74ª Carta, datada de 14 de junho de 1754, em que Mendonça Furtado ressalta, de forma incisiva,

192 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 A reorganização e a fluidez do uso da mão de obra indígena no Grão-Pará: segunda metade do século XVIII (1750-1765)

Mendonça Furtado ressalta que uma das razões destes índios terem fugidos para essas povoações ou aldeias, muito provavelmente, foi porque dificilmente eles seriam castigados pelos moradores e missionários, na realidade esses índios eram protegidos por essas pessoas, tendo em vista que sem os índios, nada se poderia fazer nesses lugares (ver MENDONÇA, 2005, tomo II, p. 177). No tocante a essa questão, isso nos faz refletir a partir de dois fatores: o primeiro diz respei- to à dinâmica social em algumas vilas e aldeias; e o segundo, sobre as relações sociais que os moradores e os religiosos tinham com os grupos indígenas nesses espaços, mas é importante pensar que tais relações é algo relativo. Não eram em todos os espaços que os índios eram comumente subjugados à escravidão e tampouco eram sujeitos a maus tratos, nesse e em outros casos, a negociação ou as alianças se faziam presentes, tendo em vista que os índios eram imprescindíveis em tais localidades. Em alguns casos, os índios tinham a noção que por intermédio do diálogo com esses moradores, poderiam obter algum “ga- nho”. Às vezes, esse “ganho” vinha em forma ora de proteção (o amparo, como Mendonça Furtado ressalta na documentação), ora sem serem infortunados ou obrigados a trabalharem de modo excessivo. Ao analisar essa correspondência, verifica-se algumas nuances a respeito des- se âmbito social. A primeira se refere ao número excessivo de deserções indígenas na produção de canoas. Em segundo lugar, ao analisar o lugar para onde esses índios iam, percebe-se que nem sempre as matas era o principal lugar de refúgio, mas sim povoações ou aldeias que já eram conhecidas pelos próprios índios. Nessas povoa- ções eles eram “bem tratados”, pudera, pois, caso fossem submetidos a violências físicas, fugiam ou se rebelavam da mesma maneira que fizeram nos estaleiros. Mas é importante se atentar que supostamente eles só eram “amparados”, porque de- sempenhavam papéis importantes para os moradores locais e eram, sem sombra de dúvida, imprescindíveis para o desenvolvimento da vila ou da aldeia. Por fim, o terceiro ângulo diz respeito à iniciativa dos índios, os quais ao perceberem que em certos locais seriam submetidos a excessivos esforços físicos, violências e abusos, mas em outros espaços poderiam negociar com os religiosos ou moradores, o que achavam melhor para si ou para o grupo no qual estavam inseridos.

a grande quantidade de fugas de índios o que é prejudicial ao andamento dos serviços reais na região. Ver: Mendonça (2005, tomo II, p. 176-8).

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 193 Décio de Alencar GUZMÁN, Leonardo Raiol JUNIOR

No que diz respeito à evasão indígena, em outro contexto, no início de 1756, Miguel de Bulhões, bispo do Pará, em carta a Mendonça Furtado, vê-se preocupado com as deserções e fugas dos índios que passaram a ser constantes. Com isso, o bispo responsabiliza os moradores e os religiosos pelos atos contra os índios, alegando que aqueles não só não souberam educar estes últimos, como também não corrigiram a prática da deserção por parte dos índios. Sobre isso, encaminhou cartas de ofício ao Prelado da Companhia, da Província da Conceição e da Província da Piedade, solicitando que tomassem providências a respeito dessa desordem que estava acontecendo e pediu para fazer com que os índios evitassem a fuga24. Num outro momento da carta, o bispo é mais enfático ao culpabilizar os moradores pelas suas práticas que, em muitas vezes, eram audaciosas. Visto que na feitoria de cravo, próximo ao rio Moju, Bulhões ressalta que alguns moradores da redondeza e da ribeira do rio capturaram além dos índios que viajavam nas canoas e que iam para Macapá, levaram os índios da própria casa do bispo, da vizinhança e das obras públicas da região. Prática essa que causou sérios problemas ao serviço da Coroa. Um desses moradores foi o Desidério de Sarges que tinha pego esses índios e destinados a feitura de cravos. Ademais, Desidério dissuadiu o índio Mateus da etnia Maracanã, que estava pronto para deslocar-se junto com o Desembargador Ouvidor-Geral a Macapá, dizendo-o para não acompanhar. O teor da conversa entre o Desidério e o índio Mateus, não se sabe ao certo, mas no decorrer da viagem, quando o desembargador se deu conta, percebeu que o índio não estava na embarcação que seguia para Macapá (ver MENDONÇA, tomo III, p. 80). No que se refere ao conteúdo dessa carta, Bulhões está mais preocupado com a utilização da mão de obra dos índios para os serviços da Coroa, do que com os indígenas propriamente dito. Além disso, menciona as fugas e as deserções por causa dos constantes desvios desses índios para outros trabalhos, no caso, a feitura de cravo. Numa outra compreensão que essa mesma correspondência nos revela, refere-se ao entendimento dos índios, isto é, os índios percebendo que ao

24 Em 30 de janeiro de 1756, o bispo do Pará, Miguel de Bulhões encaminha uma carta ao Governador Mendonça Furtado, na carta o bispo tentar isentar de culpas as ordens religiosas pela frequente incidência de fugas indígenas. Ver: Mendonça (2005, tomo III, p. 78-80).

194 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 A reorganização e a fluidez do uso da mão de obra indígena no Grão-Pará: segunda metade do século XVIII (1750-1765) se deslocar de uma vila ou aldeia para outra, seria uma excelente oportunidade para fugir, isso era propício porque a fiscalização e o controle ao longo do percurso se mostravam ineficiente sobre eles. Algo semelhante aconteceu na vila de Beja, onde ficava situada a carvo- aria para o cozimento de lenhas. A dita carvoaria era uma das mais relevantes fornecedoras de carvão para as demais aldeias da região. Esse lugar foi um dos principais cenários que abrigava inúmeros grupos de índios que, por sua vez, eram forçados a trabalhar sem nenhum tipo de pagamento. Muitos desses índios eram subjugados a trabalhos excessivos, humilhados e além de tudo isso eram sujeitos a escravidão. Nesse contexto, além das constantes fugas para os sertões, a rebeldia se fez presente, principalmente, nas figuras do índio Antônio Joaquim, juntamente com o preto Zacharias Antônio e um morador da vila de Cametá, ambos acusados de fazerem bulha, isto é, confusão25. Nota-se nesse caso, que as fugas não foram as únicas maneiras encontradas pelos índios para se articularem e formularem estratégias para reagirem contra a situação nos quais eram submetidos. Antônio Joaquim, Zacharias Antônio e o outro morador de Cametá, articularam um plano para se rebelar contra os donos da carvoaria que forçavam os índios e as outras pessoas que estavam ali para trabalharem de forma excessiva26. Em outros locais, nota-se uma demanda expressiva do trabalho que era comumente executado pelos índios, ou seja, nas salinas da vila de Sintra a quan- tidade de índios que trabalhava nesse espaço era significativa27. Mas, além dessa vila, na vila de Melgaço, onde cerca de 12 índios foram utilizados em diferentes

25 Observa-se que as sucessivas humilhações na carvoaria na vila de Beja, fez com que o índio Joaquim e o negro Antônio se rebelassem por causa dos maus tratos, a fuga é uma das principais reações, mas quando se trata de fugir para outras regiões, um dos fatores que suscita de imediato na decisão é a possibilidade de se deparar com inúmeros trajetos a ser tomado, pelos rios ou pelas matas, as adversidades ao longo do percurso. Nesse sentido, em determinadas regiões os índios levavam vantagens sobre os negros, visto que eram hábeis e conheciam o território, já os negros ao aventura-se nas matas, não tinham grandes expectativas de ir tão longe por causa da falta dessa familiaridade com a região, isso era um fator que influenciava negativamente no seu deslocamento. Por conseguinte, neste caso, é possível perceber que as razões que levaram tanto Joaquim, como Antônio a fugir para outras localidades (não se sabe ao certo o paradeiro de ambos) se deram pelo fato deles estarem submetidos a sucessivos episódios de violência. Ver: Sampaio (2011). 26 APEP. Códice 17. Documento, s/n. 26 ago. 1766. s/p. 27 APEP. Códice 17. Documento, 114. 18 ago. 1766. s/p.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 195 Décio de Alencar GUZMÁN, Leonardo Raiol JUNIOR demandas, trabalhos estes que iam desde o corte de madeiras e sua condução, até no cuidado com as roças, para o sustento dos moradores de tal local28. Para tanto, na vila de Sintra, como na de Melgaço aparecem na documentação um número excessivo de fugas e deserções entre os índios. Isto é, muitos acabavam se evadindo para as matas, alguns eram recapturados, mas outros iam para os interiores dos sertões onde dificilmente eram novamente encontrados. Além dos trabalhos nas roças, carvoarias, estaleiros ou até mesmo nas sa- linas, o emprego da mão de obra indígena regularmente era utilizado nas obras públicas e privadas. Ou seja, ora os indígenas estavam trabalhando em construções de prédios administrativos (gabinetes, fortalezas, praças e órgãos do governo), ora em prédios religiosos, como igrejas ou conventos, ora nas construções de casas para os moradores das vilas e aldeias. Essa configuração denota uma ex- pressiva circulação da mão de obra indígena, no entanto, o caso se torna mais grave, quando o jornal (pagamento) não era devidamente efetuado aos índios, algo obrigatório pela legislação vigente. Além disso, os trabalhos na construção demandavam um esforço excessivo. Neste contexto, em uma das cartas ofício, datada de meados de 1759, o Diretor da vila de Soure, Cosme Damião da Silva, destaca que em algumas vezes o tenente José Pedro da Costa, comandante da fortaleza de Gurupá, vem a essa vila para buscar índios para a construção e manutenção dessa fortaleza e tam- bém para ir em busca pelas drogas no sertão. Não obstante, no ínterim de uma viagem a outra, o tenente se deparou com deserções em massa dos índios que ele buscava em Soure. Muitos se evadiram para as matas, deixando assim a vila de Gurupá no prejuízo29. Outro enfoque semelhante e que de certo modo nos faz pensar em como os índios estavam inseridos nesse ambiente colonial, diz respeito à vila de São João do Macapá. Onde o diretor da tal vila, Luís da Costa, encaminhou uma carta ao governador Mendonça Furtado. Nesta carta, o diretor faz menção sobre a cons- trução de uma igreja relativamente simples em taipa30 com cobertura em palha.

28 APEP. Códice 95. (Acervo Digitalizado). Documentos, 209-212. 13 mai. 1759. pp. 127-130. 29 APEP. Códice 95. (Acervo Digitalizado). Documentos, 0371-0373. 30 jun. 1759. p. 224-6. 30 Também conhecida como construções de pau a pique, é uma técnica de construção bastante antiga que consiste no entrelaçamento de madeiras tanto na vertical, quanto na horizontal,

196 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 A reorganização e a fluidez do uso da mão de obra indígena no Grão-Pará: segunda metade do século XVIII (1750-1765)

Para esta construção, o diretor fez uma lista do que seria preciso para efetuar tal empreitada, além disso, ressalta que seriam necessários cerca de 54 índios, os quais foram divididos em diferentes tarefas. As tarefas estavam divididas em serrar madeiras, alguns índios vieram da vila Santa Anna para executar tal função, no entanto, no caminho, muitos morreram em razão das doenças que eles foram acometidos, outros acabaram fugindo para as matas. Ademais, alguns índios foram encaminhados para realizarem a tiragem do barro que ia ser destinado a olaria, outros para retirada de pedras, uma certa quantidade para auxiliar na pescaria e na caça, outros no pastoreio dos bois31. É possível vislumbrar por meio desses documentos que os índios estavam diretamente incorporados na prática dos ofícios diários, de mando e desmando. Em certos momentos, a situação pendia para o lado mais danoso para a popula- ção indígena, mas era possível verificar que em várias situações nos deparamos com os índios se articulando e se mobilizando para contornar a submissão que lhes eram impostas. Uma das principais ações que as fontes históricas sugerem diz respeito às deserções e fugas em massas para os sertões. Mas além disso, muitos índios buscavam se rearticular com outros grupos indígenas para resistir a dominação colonial, outros acabavam buscando os seus direitos legais, pois sabiam que a escravidão e o contrabando de índios eram proibidos pela Lei do Diretório dos Índios. No que abarca essa questão, as cafuzas Rita e Sizília entra- ram com um requerimento junto ao órgão responsável do governo, solicitando o reconhecimento da liberdade de ambas32.

6 OS ÍNDIOS COMO SUJEITOS HISTÓRICOS NO CONTEXTO AMAZÔNICO Quase uma década após a promulgação das leis que abarcavam a regulação da liberdade indígena, foi possível apurar uma significativa diversidade da inserção desses índios em diferentes espaços. Onde havia a predominância da mobilidade e da ação indígena, mas também, das estratégias, negociações e alianças, entre- tanto, nota-se a sujeição ao cativeiro, de trabalhos forçados, de abusos e violências

cuja fixação é feita no solo. As madeiras são amarradas entre si por cipós e em seguida são preenchidas com solo argiloso, geralmente o barro. 31 Arquivo Público do Estado do Pará (APEP). Códice 98, Documentos, 040-046. 12 jan. 1759. p. 55-67. 32 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). Caixa 50, Documento, 4605. 22 set. 1761. p. 1-4.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 197 Décio de Alencar GUZMÁN, Leonardo Raiol JUNIOR constantes. Tudo isso estava relacionado mediante a uma situação social, na qual os grupos indígenas se faziam presentes como agentes históricos, isto é, eram sujeitos que desenvolviam papéis de suma relevância nesse cenário colonial. É importante ficar atento para não cair em certas armadilhas e não se deixar levar por algumas situações ou por certos contextos, porque em alguns casos, a tendência é pensar que os índios comungavam com as mais diversas formas de submissão de maneira pacífica e sem que houvesse qualquer tipo de ação contrá- ria. Como podemos perceber até aqui, cuja ênfase foi dada de modo contundente sobre as estratégias e ações indígenas, constatou-se que os índios realizavam práticas, ora de maneira individual, ora de forma coletiva, como destaca Monteiro (1999). Nesse sentindo, é importante refletir sobre essas nuances, isto é, de que forma os grupos indígenas atuavam nesse contexto colonial? Ao analisar as fontes históricas referentes ao assunto indígena, foi possível compreender as diferentes formas em que se davam as ações dos índios. As mais comuns foram as evasões para as matas, além das negociações e das as alianças que comumente os índios faziam. Outro aspecto que também refletia a atividade indígena foi o embate, por meio dos qual os índios lutavam em prol de si ou de grupos étnicos. Mas, não é de modo geral que essas ações se mostravam de ma- neira clara, muitas dessas atuações se apresentavam de forma “velada” ou “sutil”. A questão neste caso é que nem sempre a documentação nos revela esse tipo de ação sutil dos índios, um exemplo disso, foi a atitude do índio Mateus da etnia Maracanã que se evadiu da embarcação que ia de viagem a Macapá, um ato sem grande expressão, mas que denota o quão o dito índio poderia decidir a respeito de certas circunstâncias. Outro caso que já foi ilustrado no primeiro capítulo, refere-se ao índio Manuel, da aldeia de Uricuru, que solicitou à secretária de Estado a autorização para viver em uma outra aldeia em localidades próximas à Uricuru, pois tinha o intuito de viver a “seu gosto”. No entanto, o requerimento do índio Manuel causou uma certa fúria do Pe. Júlio Pereira, no qual era o religioso responsável da aldeia de Uricuru33.

33 1ª Carta, de 21 de novembro de 1751, de Mendonça Furtado ao seu irmão Marquês de Pombal, em que ele trata sobre os limites das fronteiras do Estado, das ordens religiosas e de como o trabalho dos religiosos tem influenciado as populações indígenas. Ver: Mendonça (2005, tomo I, p. 109-26).

198 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 A reorganização e a fluidez do uso da mão de obra indígena no Grão-Pará: segunda metade do século XVIII (1750-1765)

Nesse processo, outro exemplo que reforça a ideia de que os índios não se sujeitavam pacificamente a qualquer dominação, diz respeito às ações que foi vista do índio Antônio Joaquim que se rebelou na carvoaria na vila de Beja, onde ele não concordava com os maus tratos e as constantes violências que ali existiam. Ademais, um dos principais meios que os índios encontraram para tirar “proveito” de alguma situação foi a evasão para os sertões34 que, de certo modo, foi um dos meios encontrados para deixar aquela realidade de sujeição. Conforme Coelho (2008, p. 277) as guerras era um dos meios que os índios encontravam para agir, um exemplo disso foi o assassinato, em 1766, da autoridade colonial Francisco Rodrigues, durante a tentativa de descimento dos índios Mobiú. A legislação ou os recursos legais também serviram como “amparo” para que os índios se livrassem da condição de escravos. Nesse caso, os índios recorriam às autoridades responsáveis mediante aos instrumentos legais, que geralmente eram por meio de queixas, requerimentos e petições com a finalidade de alegar que eram livres e que por lei não poderiam ser submetidos à escravidão, como sublinha Domingues (2000, p. 269-70). Outra maneira que os índios encontraram para agir foi mediante ao uso da língua indígena. Muito embora fosse proibido o uso das línguas maternas em diversas vilas ou aldeias, muitos grupos ainda se comunicavam “discretamente” na sua língua mãe, de modo que os segredos ou expressões que tinham uma certa importância na conversa fossem ocultados dos brancos, como aponta Garcia, (2007). Na concepção de alguns colonizadores, o principal motivo que levava os índios a desertarem os trabalhos na vila era a falta de hábito em relação traba- lho intenso. Sobre essa questão, os colonos compreendiam que os índios eram indivíduos preguiçosos e desprovidos de um propósito maior, como ressalta o

34 Na prática, os estabelecimentos de mocambos em algumas regiões dos sertões amazônicos foram comuns e, principalmente, serviram como espaços de interação entre negros e índios fugidos, a localização desses núcleos geralmente variavam, mas a incidência desses espaços, naquele período, verifica-se em regiões como Cametá, Moju (vilas de São Miguel e Almas), vilas próximas ao rio Tapajós, vila do Conde e Piriá até áreas mais distantes como a fronteira das Guianas. Esses lugares serviram como rotas de fugas e pontos específicos de acolhimento de negros e índios que ao se sentirem seguros acabavam permanecendo e fundando outros núcleos próximos da região, entretanto, quando o perigo ainda estava à espreita, havia duas possibilidades, continuar fugindo até encontrar um local mais seguro, ou entregar-se e sofre severas punições, levando a morte, em alguns casos. Ver: Gomes (2011) e Gomes e Marin (2003).

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 199 Décio de Alencar GUZMÁN, Leonardo Raiol JUNIOR governador João Pereira Caldas, acentuando a falta de ambição dos grupos indí- genas35. Na realidade, antes deles serem trazidos, mediante as capturas ou dos descimentos às vilas ou aldeias, muitos desses povos indígenas já viviam a sua própria rotina no interior dos sertões amazônicos. A predominância da caça, da pesca, da coleta de frutas e de outras especiarias para a subsistência do grupo fazia parte dessa complexa conjuntura. Contudo, as demandas de serviços que exigiam um acentuado esforço eram bem menores do que, por exemplo, o trabalho em uma carvoaria ou num estaleiro. Ainda nesse raciocínio, o cronista e padre jesuíta João Daniel, ressalta algo semelhante, entretanto, do mesmo jeito que ele enfatiza a habilidade e a aptidão dos índios, posto que exerciam com afinco os diferentes tipos de ofícios, sobretudo, a carpintaria. O padre acentua o primor dos índios na execução de trabalhos que tinham como principal matéria prima, a madeira, isto é, eram hábeis na carpin- taria. No colégio dos padres jesuítas na cidade de Belém, os índios confecciona- ram além das imagens em madeira de dois anjos tocheiros (imagens estas que tinham a finalidade de comportar velas), também fizeram com certa maestria os púlpitos do altar mor da capela. Não obstante, apesar de toda essa competência que o padre ilustra sobre os índios, ele é bastante enfático ao mencionar que os índios eram comumente acometidos por uma profunda preguiça, um vício que os acompanhavam constantemente, conforme sublinham autores como o padre e cronista jesuíta Daniel (2004) e Guzmán (2015). No que se refere a essas concepções, é possível destacar algumas nuances a respeito do ponto de vista de alguns sujeitos históricos, como a do governado João Caldas e a do cronista e padre João Daniel. Ambos, estavam inseridos no exercício sistêmico de funções, nas quais a predominância da rigidez e da ­jo­rnada

35 Carta, de 25 de maio de 1757, endereçada ao Governador da Capitania do Maranhão, cujo teor da correspondência ressalta a aplicabilidade do Diretório, mas principalmente a respeito da preguiça e indisposição dos índios. Ver: Mendonça (2005, tomo III, p. 271-2); Carta a Tomé J. da C. Corte Real, cujo conteúdo se refere a situação da Capitania, da Lei de Liberdade dos Índios (1755), além disso, ressalta a aversão aos trabalhos por causa da preguiça. Ver: Mendonça (2005, tomo III, p. 292-96); Ofício do Governador e capitão general do Estado do Pará e Rio Negro, João Pereira Caldas, para o secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, a respeito dos intendentes do comércio em visitas às povoações dos índios no Pará e no Rio Negro, para fins de verificarem as atividades agrícolas e comerciais nessas povoações. As informações que Caldas recebeu dos intendentes e que ele enfatiza no ofício, referem-se a como os índios eram tomados pela fadiga e preguiça. Ver: AHU. Caixa 74, Documento. 6249. 06 nov. 1775.

200 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 A reorganização e a fluidez do uso da mão de obra indígena no Grão-Pará: segunda metade do século XVIII (1750-1765) diária dos ofícios eram exaustivas, mas ao se depararem com o modo ou o estilo de vida que os índios levavam, estranharam aquelas práticas, julgando-os como preguiçosos, desprovidos de qualquer ambição ou avessos aos trabalhos. Nesse sentido, de acordo com Henrique (2010), é importante ressaltar que os povos indígenas tinham à sua maneira de viver, a sua dinâmica de trabalhar, cuja predo- minância de horários rígidos nem sempre seguiam o padrão nos quais os brancos ou os europeus estavam habituados.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Durante o percurso deste trabalho, empreendeu-se de modo salutar, uma busca incessante para compreender as relações que abarcavam a dimensão social da Capitania do Grão-Pará, onde os agentes coloniais que pudemos averiguar se relacionavam na região amazônica. Desde o princípio, a pretensão foi situar o leitor no contexto histórico do período estudado, para que posteriormente a reflexão pudesse avançar no que diz respeito aos enfoques relacionados ao pro- tagonismo indígena. É perceptível que a inclinação feita, visou compreender não somente as noções relacionadas a política, a economia e a compreensão jurídica da sociedade, mas buscou-se analisar e evidenciar uma rede de relações sociais entre colonos portugueses, missionários das ordens religiosas, autoridades coloniais juntamente com os grupos indígenas. No entanto, quais eram as características que nortea- vam essas relações? Quais eram os tipos de sujeições que incidiam diretamente nos grupos indígenas? De que formas os índios se articulavam e passaram a criar mecanismos para contrariar as inúmeras formas de subordinação? Essas e outras questões serviram como arcabouço para elucidar certos me- andros, principalmente a respeito da implantação das leis que tinham por objetivo a promoção da liberdade dos índios, como ressalta a Lei do Diretório dos Índios, promulgada em 1757. Entretanto, nesse contexto verifica-se que a mão de obra indígena além dela está inserida num processo que visava a sua reorganização, em razão das políticas metropolitanas, os índios ainda eram comumente cobiçados pelos moradores, pelas autoridades coloniais e pelos missionários, ocasionando assim a escravidão indígena como algo frequente nos recônditos amazônicos.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 201 Décio de Alencar GUZMÁN, Leonardo Raiol JUNIOR

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204 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 177-205, maio/ago. 2019 A reorganização e a fluidez do uso da mão de obra indígena no Grão-Pará: segunda metade do século XVIII (1750-1765)

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Sobre os autores: Décio de Alencar Guzmán – Mestrado em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Especialização e graduação em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor Adjunto da UFPA. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil Colônia, História Indígena e do Indigenismo e História da Amazônia. Publicou livros, capítulos de livros e ar- tigos no Brasil, Bélgica, Estados Unidos, França, Itália, México e Peru. E-mail: [email protected] Leonardo Raiol Junior – Graduado em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Pará. Membro do Grupo de Pesquisa de História Indígena e do Indigenismo - GP HINDIA. Professor de História da América da Rede Emancipa: Movimento Social de Educação Popular. Foco de pesquisa, mão de obra indígena, com ênfase nos estudos a partir da segunda metade do século XVIII (1750 - 1780). E-mail: [email protected]

Recebido em 15 de setembro de 2018 Aprovado para publicação em 13 de março de 2018

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Os últimos falantes da Língua Baré The last speakers of the Baré language

Ademar dos Santos Lima1 Silvana Andrade Martins1 Jéssica Nayara Cruz Pedrosa1

DOI: http://dx.doi.org/10.20435/tellus.v19i39.584

Resumo: Este trabalho tem como objetivo apresentar os resultados de pesquisa sobre os últimos falantes da língua Baré no Amazonas, Brasil. Trata-se de um estudo sobre a língua do povo Baré e de seus falantes mais idosos que, nos anos 90 ainda lembravam de vocabulários da língua Baré. As metodologias utilizadas foram abordagem quali-quantitativa, levantamento surveys, de pesquisa de campo e do método das comparações léxico-estatísticas, de Morris Swadesh (1958) e as técnicas empregadas foram de entrevista focalizada. O estudo constatou que os Baré mais idosos ainda lembravam de palavras na língua Baré, da família Arawak do ramo Maipure do Norte. A pesquisa apontou também que somente alguns Barés acima dos 70 anos conseguiam lembrar de alguns vocabulários nesta língua, mas não conseguiam formar frases e/ou sentenças, apenas lembravam de palavras soltas. Este processo de desaparecimento da língua Baré começou no século XVII e se acentuou nos séculos XVIII e XIX, de forma que no final do século XIX já não havia mais falantes fluentes em língua Baré e os mesmos passaram a falar o Nheengatu como língua étnica. Deste modo, nossa pesquisa, realizada em 2017 com os Bare mais antigos, aponta que não há mais entre a população idosa deste povo alguém que conseguisse lembrar palavras em Língua Baré. Palavras-chave: povo Baré; língua; deslocamento linguístico. Abstract: This paper aims to present the results of research on the last speakers of the Baré language in Amazonas, Brazil. It is a study about language of the older Baré who in the 90s still remembered vocabularies of their language, the Baré. The methodologies used were qualitative-quantitative approach, survey surveys, field research and the lexical-statistical comparisons method, Morris Swadesh (1958), and the techniques used were focused interview. The study found that the older Baré still remembered words from their Baré language from the Arawak family of the Northern Maipure branch. The survey also pointed out that only a few Barés older than 70 could remember some vocabularies in

1 Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Manaus, Amazonas, Brasil.

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the Baré language, but could not form phrases or sentences. Just loose words. This process of disappearance of the Baré language began in the seventeenth century and intensified in the eighteenth and nineteenth centuries. So that at the end of the nineteenth century there were no more fluent speakers in Baré language and they came to speak Nheengatu language as an ethnic language. However, our research in 2017 with the oldest Baré indicates that there are not among the elderly population of this people someone who could speak words in this language. Keywords: Baré people; language; linguistic shift.1 Introducción

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Nestas considerações iniciais discutimos as hipóteses do termo “Baré” que, de acordo com Herrero e Fernandes (2015, p. 61), é de origem incerta, pois o próprio povo Baré afirma que não conhece a origem da palavra, que não sabe informar com precisão ou mesmo estabelecer uma relação do termo com um significado qualquer. De todo modo, “Baré” sempre foi o nome dado àqueles cujos antepassados viviam espalhados por quase toda a calha do rio Negro até a Venezuela, onde ainda hoje, encontra-se um número expressivo de descendentes desse povo. Antonio Pérez (1988, p. 446) sugere que o termo “Baré” talvez fosse derivado de “bári” (branco), vindo a significar “homens brancos”, em oposição a “homens negros” ou “táiñi (negro). Outra hipótese que também pode ser considerada plausível é que o termo “Baré” derivou da palavra “barú”, nome do peixe acará barú, Uaru amphiacan- thoides Heckel (SANTOS; FERREIRA; ZUANON 2009, p. 106).

208 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 207-226, maio/ago. 2019 Os últimos falantes da Língua Baré

Figura 1 – O acará barú

Fonte: Lima (2018).

Figura 2 – Região do habitat do acará barú

Fonte: Lima (2018).

Essa hipótese pode ser considerada plausível devido ao fato de esse peixe ser muito conhecido pelo povo Baré, e outrora existir em grande quantidade em toda a região do rio Negro, principalmente onde habita esse povo, no baixo, médio e alto rio Negro, que também é conhecido como “povo do rio” (HERRERO; FERNANDES, 2015).

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 207-226, maio/ago. 2019 209 Ademar dos Santos LIMA; Silvana Andrade MARTINS; Jéssica Nayara Cruz PEDROSA

Silvia Vidal (1993, p. 88-9) também lança a hipótese de que “Baré”, além de denotar a cor branca, a claridade e a luz do sol, foi o nome de um antigo gran- de chefe (Wákali Kumáleje) dos Baré. Este chefe era reconhecido pelo enorme prestígio e pela capacidade de liderança sobre um vasto espaço geográfico. Esse território protobaré no início do século XVIII, de acordo com Pérez (1988), cobria uma vasta região, compartilhada por outros povos, que ia desde a foz do rio Mié, no médio rio Negro, Estado do Amazonas, estabelecendo-se ao longo das duas margens do alto rio Negro até o Cassiquiare e o alto Orinoco (HERRERO e FERNANDES, 2015):

Figura 3 – Mapa de abrangência do povo Baré, região do rio Negro, AM

Fonte: Herrero e Fernandes (2015, p. 19).

Como se pode observar no mapa adaptado de Herrero e Fernandes (2015), a área habitada pelo povo Baré abrangia uma vasta região, incluindo dois mu- nicípios do Amazonas e estendendo-se até a Venezuela e Colômbia. Ao mesmo tempo deve-se levar em consideração o fato de que os Baré dos séculos XVII e XVIII não eram identificados como um único grupo com fronteiras bem definidas. O território de influência de subgrupos e grupos correlatos aos Baré (ou de línguas

210 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 207-226, maio/ago. 2019 Os últimos falantes da Língua Baré semelhantes, da mesma família) estendia-se até o baixo rio Negro, avançando sobre o território dos antigos Manáos e Passé, onde hoje se encontra a cidade de Manaus. O povo Baré, na atualidade vive espalhado por diversos municípios do Amazonas, no rio Negro, nos países vizinhos, Venezuela e Colômbia, regiões da Amazônia com maior número de povos indígenas da tríplice fronteira. Nessa perspectiva, buscou-se analisar a problemática da pesquisa em questão: Ainda há remanescentes do povo Baré que lembram de palavras e/ou sentenças na língua tradicional? A partir dessa análise, algumas questões norteadoras são enfrentadas no desenvolvimento do estudo: Quem são os últimos falantes do povo Baré que ainda lembram da língua tradicional? É possível mensurar o quanto esses falantes lembram dessa língua? Quais são as palavras e/ou sentenças que esses falantes conseguem falar/lembrar? O presente estudo se justifica por buscar registrar itens lexicais, sentenças ou expressões da língua Baré que ainda sejam lembrados por remanescentes do povo que falava essa língua indígena. A pesquisa em seu desenvolvimento metodológico seguiu os seguintes passos: Inicialmente, foram realizadas leituras correspondentes à revisão de litera- tura do assunto abordado, a partir do levantamento de dados bibliográficos sobre o povo Baré. A base teórica foram os estudos de Bessa Freire (2005), Cruz (2011), Herrero e Fernandes (2015), Cabalzar e Ricardo (1998), Curt Nimuendajú (1982), Koch-Grünberg (1995), Hymes (1972), Leite (1943), Farage (1991), Matos (2011), Papavero et al. (2000), Ramirez (2001), Tarallo (2003), Martins (1996) e outros. A natureza da pesquisa foi de caráter qualitativo, embora dados quantita- tivos tenham sido levantados e avaliados para a interpretação e construção das conclusões. Utilizamos o estudo de campo, de levantamentosurveys e o método das comparações léxico-estatísticas, de Morris Swadesh (1958), por meio da téc- nica de entrevista focalizada, considerando a definição constante em (GIL, 2006). Entendemos, conforme menciona o autor citado, que o estudo de campo e o levantamento surveys proporcionam “o conhecimento direto da realidade

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 207-226, maio/ago. 2019 211 Ademar dos Santos LIMA; Silvana Andrade MARTINS; Jéssica Nayara Cruz PEDROSA pesquisada, praticidade e quantificação dos dados”. A investigação teve um alcance de estudo de caso descritivo (GIL, 2006, p. 73), porque esse nível de pesquisa tem como objetivo a “descrição das caracte- rísticas de determinada população ou fenômeno ou estabelecimento de relações entre variáveis”. O universo da pesquisa correspondeu ao estudo de três (3) informantes, sendo dois pesquisados por Martins (1996) e um pesquisado por Lima (2018). Todos habitantes da região do rio Negro, estado do Amazonas. A amostragem deu-se por “tipicidade ou intencional” (GIL 2006, p. 104), que se constitui em selecionar determinados membros de uma comunidade potencial- mente representativa para o objeto de estudo. No caso deste estudo, envolveu três informantes indígenas acima dos 70 anos indicados pela população do povo Baré. Para à aplicação da entrevista na coleta de dados de pesquisa de campo seguiu-se a orientação de Tarallo (2003) o método da “sociolinguística”, de Hymes (1972, p. 65), o “paradigma speaking” e o método das comparações léxico- -estatísticas, de Morris Swadesh (1958). Os dados foram coletados por meio de 3 questionários de entrevista focalizada, com perguntas baseadas nos objetivos da pesquisa, aplicados individualmente a cada um dos informantes indígenas. A construção dos questionários foi pensada a partir dos objetivos que se pretendia alcançar com a pesquisa e com a finalidade de: a) analisar a língua Baré ainda lembrada pelos últimos falantes Baré; b) identificar as palavras e sentenças da língua Baré proferidas pelos falantes; c) registrar as palavras e sentenças em língua Baré. Por fim, fizemos uso de nossa experiência e de nosso conhecimento, -en quanto integrantes da realidade pesquisada para balizar os dados coletados.

2 O CONTATO COM O POVO BARÉ O descobrimento da foz do rio Amazonas por Vicente Yanez Pinzón (1500) é descrito por Papavero et al. (2000), assim como por Francisco Orellana (1542) citado por Herrero e Fernandes (2015) que desceu pela primeira vez o rio que viria a se chamar Amazonas, bem como seu afluente maior, o qual frei Gaspar de Carvajal, escrivão da expedição referiu-se ao rio “de água negra como tinta”,

212 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 207-226, maio/ago. 2019 Os últimos falantes da Língua Baré que é o Negro, segundo Cabalzar e Ricardo (1998, p. 73). Esses relatos do século XVI não fazem referência, ainda, à população indígena desse rio. Foi somente um século depois, em 1639, que a foz do rio Negro foi identificada e descrita com mais cuidado, por ocasião da expedição de Pedro Teixeira, que subiu o Amazonas até Quito. Deste modo, os povos indígenas do rio Negro (sobretudo os do baixo e médio curso do rio) mantiveram os primeiros contatos diretos com os ocidentais já no século XVII, principalmente com os portugueses que penetraram no rio Negro à caça de escravos. Esse período é marcado por tentativas de identificação e- in corporação de territórios brasileiros por exploradores estrangeiros, especialmente espanhóis, holandeses e portugueses. A partir do século supracitado, a presença portuguesa tornou-se mais evidente, com a fundação do forte de São José da Barra do Rio Negro por Francisco da Mota Falcão, em 1669 e estabelecimento de fortificações militares em áreas de interesses geopolíticos. Desde então teve início o processo de colonização do Vale do Rio Negro, até então ameaçado pela presença de estrangeiros na foz do grande Rio Amazonas (BARROS, 1995, p. 45). Em 22 de junho de 1657, os padres Francisco Veloso e Manuel Pires fizeram a primeira entrada histórica ao Rio Negro e efetivamente, o primeiro contato com o povo Baré (LEITE, 1943). Em 22 de março de 1688, o El-Rei recomendada ao governador que auxilie os padres da companhia de Jesus a estabelecerem missões fixas no rio Negro. Neste mesmo ano foi organizada uma tropa de resgate ao vale do rio Negro, tendo como missionário acompanhante o padre João Maria Gorzoni, famoso tocador de gaita. Serafim Leite (1943, p. 375), baseado em documentos históricos, ainda menciona que Gorzoni teria andado pelo rio Negro até meados de agosto de 1689. Voltando ao Pará, Pe. Gorzoni tratou de organizar a expedição que deveria subir o rio para fundar as aldeias requeridas pelo rei. Seriam a aldeia Matari e a outra sobre o rio Negro. Com Gorzoni foram os missionários Conrado Pfeil e Pe. João Justo Luca, que se fixaram nas duas aldeias acima referidas, respectivamen- te. Ambos os padres vieram a falecer, fato que desencorajou a continuidade das missões jesuítas no rio Negro, assumindo, então os Carmelitas, em 1675 (LEITE, 1943). O período seguinte nas atividades dos jesuítas no rio Negro é caracteriza- do pela participação deles em tropas de resgates. Nesse processo os indígenas eram retirados de suas aldeias de origem e levados para as aldeias de repartições.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 207-226, maio/ago. 2019 213 Ademar dos Santos LIMA; Silvana Andrade MARTINS; Jéssica Nayara Cruz PEDROSA

Serafim Leite sugere três direcionamentos para as missões no vale (LEITE, 1943): “Prioridade na doutrina e exploração ribeirinha, tentativa de pacificação dos indígenas levantados, resgates e descimentos pacíficos para as aldeias de cate- quese”. Pode-se considerar, também, que o conhecimento geográfico e etnológico do alto rio Negro pelos brancos chegou ao seu máximo no período colonial antes do final do século XVIII, principalmente através dos levantamentos militares já referidos, de estudos de cientistas e naturalistas como Antonio Landi, Alexandre Rodrigues Ferreira, Alexander von Humboldt, assim como da iconografia legada por Felipe Sturm ou José Cadina. Sob a autoridade de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, a Amazônia pas- sou por um momento novo de urbanização e fixação da cultura portuguesa na região. O instrumento político usado para este fim foi o “Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão” (Lei de 7 de junho de 1755), que substituiu o “Regimento das missões”. O objetivo foi elevar os aldeamentos indíge- nas à condição de vilas ou aldeias, administradas por um diretor e assim, assegurar a liberdade aos indígenas, instituir uma escola, com um mestre para os meninos e outro para as meninas, sendo proibido o uso de outra língua que não fosse o por- tuguês, bem como deveriam possuir sobrenome português. A nudez foi proibida, bem como as habitações coletivas, o uso da língua brasileira (conhecida como língua geral ou nheengatu) e a punição de morte a quem desacatasse. A partir de então, o português passou a ser oficialmente ensinado nas escolas, os jesuítas foram expulsos e os indígenas saíram de sua tutela, passando a ser súditos e vassalos do rei (BESSA FREIRE, 2005, p. 123). Durante esse período, muitas aldeias no Amazonas perderam seus nomes em língua geral e receberam nomes portugueses, principalmente no baixo, médio e alto rio Negro. Deste modo, enquanto unidade política autônoma teve condições de consolidar a política de aportuguesamento da região. Segundo Bessa Freire (2005, p. 129), a província do Amazonas constituía o último reduto onde havia uma população majoritariamente indígena, urgia a introdução do português como língua oficial, fato que se verificou a partir da obrigatoriedade do ensino da língua Portuguesa nas escolas situadas nas comunidades indígenas.

214 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 207-226, maio/ago. 2019 Os últimos falantes da Língua Baré

3 A SITUAÇÃO SOCIOLINGUÍSTICA DO POVO BARÉ De acordo com Bessa Freire (2005), a partir da retirada do povo Baré de suas aldeias de origens para as chamadas aldeias de repartições, os indígenas, aos poucos foram deixando de falar a língua materna (o Baré, língua da família Arawak do ramo Maipure do Norte), e passaram a falar o Nheengatu, variante do tupinambá, da família tupi-guarani do subconjunto III, a língua ensinada nessas aldeias de catequese. Assim, o povo Baré perdeu sua língua materna e adotou a língua Nheengatu como língua de comunicação interétnica. Mas, com a proi- bição do ensino de línguas indígenas e a obrigatoriedade somente do ensino do português por Marquês de Pombal em 1758, mais uma vez, a língua adotada e considerada pelo povo Baré como materna era ameaçada, pois segundo Bessa Freire (2005, p. 129), “a educação desses indígenas não passava mais pela língua Nheengatu, sendo feita, evidentemente, em português”. Na realidade, a menção à educação era apenas uma justificativa, empregada desde os tempos coloniais para enquadrar os chamados indígenas bravos num sistema de trabalho compulsório, uma prática que continuou sendo corrente no Amazonas, sem necessidade até então regulamentada por lei. Esse processo levou ao aportuguesamento dos povos indígenas da Amazônia brasileira, sobretudo, do povo Baré que deixou de falar sua língua materna, o Baré. Da mesma forma, os descendentes desse povo estão deixando de falar o Nheengatu. Exemplificou-se a situação sociolinguística do povo Baré desde o período colonial até nossos dias no Quadro 1:

Quadro 1 – Situação sociolinguística do povo Baré do período colonial aos nos- sos dias

Situação sociolinguística Ambiente Período colonial Dias atuais Português e Aldeia de origem Baré Comunidade Nheengatu Aldeia de repartição Nheengatu Cidade Português Nheengatu e Região Português Região Português Fonte: Bessa Freire (2005).

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 207-226, maio/ago. 2019 215 Ademar dos Santos LIMA; Silvana Andrade MARTINS; Jéssica Nayara Cruz PEDROSA

Observa-se que o duro período de colonização do povo Baré levou ao desa- parecimento da primeira língua desse povo. Com isso, o Baré, outrora falada pelo povo Baré do rio Negro deixou de existir. Fato este confirmado por Cruz (2011, p. 21). “A população indígena que vive em território brasileiro e que se autodenomina Baré não fala mais a língua dos seus antepassados e são poucos os que recordam algumas palavras dessa língua”. Fato também noticiado por V. Martins que, em 1996, percorreu toda a calha do rio Negro em busca de falantes da língua Baré e encontrou na divisa de São Gabriel da Cachoeira com a Venezuela apenas dois idosos que ainda lembravam de algumas palavras nessa língua. Assim, no início do século XX, era quase impossível encontrar falantes do Baré no médio e no alto rio Negro. Desde essa época, porém era notável o declí- nio substantivo do número de falantes, causado, em grande medida pelo avanço colonial e pela escravização do indígena e sua inserção numa política colonial integracionista e de economia extrativista, o que culminou com um processo de missionarização extremamente acentuado na Amazônia, que parece ter tido um papel decisivo para o abandono das línguas indígenas. O estudo de Henri Ramirez (2001) sobre as “Línguas Arawak da Amazônia Setentrional: comparação e descrição”, publicada pela editora UA, da Universidade Federal do Amazonas mostra listas de palavras que, segundo o autor ainda foram possíveis de ser coletadas entre os Baré. Vejamos no Quadro 2 algumas dessas palavras da língua Baré descritas por Ramirez (2001, p. 470-95), as quais traduzimos para as línguas Nheengatu e Portuguesa:

Quadro 2 – Lista de palavras da língua Baré, com tradução para o Nnheengatu e Português Língua Baré Língua Nheengatu Língua Portuguesa nuni ixé eu bini indé tu kuhu ae ele kuhũ aé ela wani yandé nós ini penhẽ vocês Kuhuni, meni aintá Eles/elas dúsia akanga cabeça ákhani piá coração

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Língua Baré Língua Nheengatu Língua Portuguesa khábi pu mão ísi pi pé dápa tukunaré tucunaré báumehe piranha piranha itíki tatá fogo witi sesá olho iwáku rakanga galho sewépi Mirá-para arco kudúbati supiá ovo kádi iwí terra dátini nambí orelha kuwáti yawara Cão (onça) Nenê-hei nheenga Língua (linguagem) téma tapíra anta kubáti pirá peixe tí tĩ nariz dábana kaá folha dumaka kiri dormir dinábu watawa caminho yála apigawa homem Fonte: Ramirez (2001).

Como se observa na lista de palavras do Quadro 1, há poucas palavras regis- tradas da língua Baré e, atualmente os Baré do baixo, médio e alto rio Negro são bilíngues e falam o português e o Nheengatu, a língua que foi introduzida pelos missionários jesuítas e carmelitas por ocasião da fundação das primeiras missões, ainda no século XVIII (FARAGE, 1991, p. 43). Entretanto, com a chegada dos missio- nários salesianos, que fundaram a primeira missão em São Gabriel da Cachoeira, em 1914 (ANDRELLO, 2006, p. 105) e com o sistema religioso-educacional insti- tuído por estes, o português tornou-se a língua mais falada pelo povo Baré, visto que os salesianos proibiram o uso das línguas indígenas nas missões, inclusive do Nheengatu, além de desestimularem o uso dessas línguas também fora das missões. Com isso, o povo Baré que já havia perdido a língua materna, também cor- rem sérios riscos de deixarem de falar o Nheengatu e tornarem-se monolíngues em português. Para Matos (2011, p. 58) “A língua é incubadora da identidade, reproduz significados que se deslocam afetados pela memória e é submetida ao movimento

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 207-226, maio/ago. 2019 217 Ademar dos Santos LIMA; Silvana Andrade MARTINS; Jéssica Nayara Cruz PEDROSA da ideologia imposto pela história, estando, portanto, atrelada a aspetos políticos, éticos e culturais”. Deste modo, a língua é constituída pela memória dos usos em cuja diversidade vigoram vozes que embutem, além dos locutores as condições de locução, constituindo palavras para se fazem ouvir em circunstâncias diversas e servem de esteio para a produção e interpretação da identidade étnica e cultural de um povo. Para Lisboa (1998, p. 128) “nossas lembranças somos nós”. Elas são a nos- sa carteira de identidade cerebral. A memória não deixa você se esquecer de como se faz o laço no sapato, do seu primeiro dia na escola ou da letra de sua música favorita. Assim também é a língua, os falantes lembram de palavras que aprenderam com seus antepassados e que ainda guardam na memória, mesmo não fazendo uso dessa língua. Vejamos no Quadro 3 algumas das palavras que os informantes ainda lembravam:

Quadro 3 – Palavras lembradas pelos informantes

Informante 1 Faixa etária Período da pesquisa Sexo Língua em memória Tradução Indígena Baré 83 1996 M Baré Português kádi terra itíki fogo kubáti peixe dábana folha Informante 2 Faixa etária Período da pesquisa Sexo Língua em memória Tradução Indígena Baré 80 1996 M Baré Português kubáti peixe kádi terra téma anta

Informante 3 Faixa etária Período da pesquisa Sexo Língua em memória Tradução Indígena Baré 78 anos 2017 F Língua geral Português Uaí farinha Kolomi Menino Fonte: Martins (1996); Lima (2018)

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Observa-se no Quadro 3 que, as palavras ainda lembradas pelos informan- tes 1 e 2 são vocabulários da língua Baré do cotidiano, principalmente palavras relacionadas à natureza que ainda mantinham-se vivas no repertório linguístico dos barés mais idosos da década de 90. O pesquisador Martins, em 1996, ainda encontrou dois idosos da etnia Baré que lembravam de alguns vocabulários como: “kádi, itíki, kubáti, dábana’ e tema”. Entretanto, nossa pesquisa realizada com a informante 3 mostrou que ela não lembrava mais de vocabulários do Baré, mas somente da Língua Geral como: Kolomi e “Uaí”. Esse “esquecimento da língua” pode estar relacionado ao tempo em que a língua foi deixada de ser falada dadas às terríveis imposições dos religiosos que subjugavam esse povo.

4 LINGUAGEM, MEMÓRIA E IDENTIDADE A aquisição da linguagem nos remete a uma série de perguntas acerca da própria existência humana e origem da vida. Por muito tempo a filosofia tem oferecido algumas respostas a esses questionamentos, dentre as quais, as teo- rias do inatismo e do empirismo. Conforme Marilena Chauí (2000), na teoria do inatismo, ao nascer trazemos em nossa inteligência algumas ideias inatas, isto é, ideias verdadeiras que vão além dos princípios racionais, enquanto no empirismo, a razão, seus princípios, métodos e ideias são todas adquiridas no decorrer da vida através das experiências. Para Lacan, somos frutos da linguagem; o sujeito é retratado por seu discur- so, que expressa muito mais do que a sua pretensão inicial. Além de comunicar, a linguagem identifica. Percebe-se que, para a Psicanálise, “a universalidade da linguagem é relacionada à universalidade do inconsciente, postulada por Freud, sendo linguagem e inconsciente consubstanciais e antecedentes em relação à cultura e ao sujeito” (PERÓN, 2012). Durante a pesquisa percebeu-se que os Baré que mais cultivaram pala- vras em sua língua-mãe foram aqueles que permaneceram em suas aldeias de origem, certamente tal fato ocorreu devido à proximidade de outros membros, em especial os mais idosos, que detinham em sua memória coletiva mais con- tato com a língua, enquanto os que foram levados para as chamadas aldeias de repartições e/ou de catequese, bem como aqueles que migraram para outras cidades na infância não o retiveram. No último caso, a construção da identida-

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 207-226, maio/ago. 2019 219 Ademar dos Santos LIMA; Silvana Andrade MARTINS; Jéssica Nayara Cruz PEDROSA de é ainda mais modificada, uma vez que ocorre a incorporação de hábitos e vivências de povo diferentes. Em sua obra A máquina do fantasma: aquisição de linguagem & constituição do sujeito, Goldgrub, F.W. (2008) mostra que a psicanálise freudiana pode fugir em partes de alguns pressupostos inatistas de aquisição da linguagem. É por meio da noção de Édipo estrutural que isso acontece, uma vez que esta dispensa soluções ambientalistas e organicistas, apoiando-se no conceito de fantasia (PERÓN, 2012). Não seria possível considerar a aquisição de linguagem do povo Baré sem entrar em méritos multilinguísticos e na forma que a incorporação de sua população a diferentes culturas influencia nesse processo. Para Chomsky (2006), conceituado linguista da corrente inatista, afirma que, “existe um sistema autônomo de gramática formal que se determina pela faculdade da linguagem e seus componentes universais”. Percebe-se que a semelhança entre essa gramática gerativa de Chomsky e as teorias freudianas se encontra tanto na sintaxe, já que ambas estão a serviço da significação, na qual o falante concede sentido aos objetos que deseja. Assim, a língua é “o inventário – infinito, e daí a criatividade – da relação sujeito/objeto” (PERÓN, 2012, p. 250). Logo, mais do que a língua-idioma, a língua-memória de- termina de que forma as experiências são assimiladas pelo sujeito e quais aspectos simbólicos delas são retidos para a formação de sua identidade. Por sua vez, o tema da memória esteve presente nos escritos de Freud e na construção da teoria psicanalítica desde o princípio. Sabendo-se que a psicanálise se formou a partir do estudo clínico de experiências e lembranças infantis, não é surpresa que Freud aborde a memória (e o esquecimento) em diversos momen- tos da formulação dos pressupostos da psicanálise, tampouco que modifique a sua concepção na medida em que avança em sua discussão acerca do aparelho psíquico e do inconsciente. Para Freud (apud LAPLANCHE, 2001), o aparelho psíquico tem como um dos pressupostos centrais a crença no papel organizador da memória, a qual é compreendida como uma série de sistemas, com propriedades, signos perceptu- ais e instâncias tópicas distintas. Mas é somente em 1925, em seu texto sobre o “Bloco Mágico”, no qual faz analogia deste com o aparelho que constitui a base

220 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 207-226, maio/ago. 2019 Os últimos falantes da Língua Baré das instâncias da primeira tópica, que Freud se ocupa em delinear o mecanismo da memória (FERRARINI; MAGALHÃES, 2014). Conforme Ferrarini e Magalhães (2014, p. 112), algumas ideias sobre a me- mória podem ser sintetizadas na concepção freudiana em algumas proposições de Casanave (2008): a) aquela capaz de registro, conservação e transformação de experiências em traços mnêmicos, entendidos como processos associativos; b) ela não está associada com a capacidade de percepção ou de consciência, mas sim, tendo sua função localizada nos sistemas pré-consciente e inconsciente; c) múltipla em diversos arquivos e sob signos variados; d) sofre reorganizações de tempos em tempos; e) possui sua eficácia causal, reconhecida no “a pos- teriori”; f) orientada por representações; e g) identificável com a imaginação e modificação introduzida no material registrado. Assim, diante de seu vasto aspecto simbólico e psíquico, memória e lin- guagem se correlacionam na formação da identidade do sujeito. É através das associações geradas pela memória, manifestadas através dos símbolos da lingua- gem, que os conteúdos identitários tomam forma, seja de maneira consciente ou inconsciente. Goldgrub (2008), em um exemplo da importância da linguagem para o imaginário coletivo, conclui que a singularização de uma população imigrante se dá graças à linguagem. Desse modo, “cabe à língua instituir a identidade própria de um grupo e posteriormente separá-lo de outros, por seu léxico e gramática, e também através do princípio estrutural da rede fonética fornecida pelos pais” (PERÓN, 2012, p. 252). Não se trata de aprendizagem, trata-se de identificação àquele que veicula o funcionamento da língua (o Outro). Este processo instaura a consciência de si e o discurso próprio, a partir daqueles que narcisicamente idealizam e projetam expectativas nos filhos. O ingresso no universo linguístico não é tomado como um procedimento de assimilação de informações, e sim como uma transformação radical que toma o adulto como modelo. A psicanálise, em toda a sua teoria e prática, é também uma ciência do arquivo e do nome próprio, de uma lógica da hipomnésia que tenta explicar as lacunas da memória, daquilo que arquiva a lembrança, que a transforma, ou que, por outro lado, a desarquiva, apagando, destruindo; uma ciência também de sua própria história (MAJOR, 2002 apud FERRARINI; MAGALHÃES, 2014).

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 207-226, maio/ago. 2019 221 Ademar dos Santos LIMA; Silvana Andrade MARTINS; Jéssica Nayara Cruz PEDROSA

Concede-se à memória em linguagem, sob essa perspectiva, um papel cen- tral no processo de identificação, que implica na autonomia do sujeito em relação ao ambiente e ao orgânico. Sabendo-se que para Freud, todo tema psicanalítico é um tema social, não teria como dissociar as demandas culturais e histórias de um povo de suas vivências, lembranças e símbolos, que vão muito além de um aspecto consciente, uma vez que se instauram num inconsciente e comum, re- servatório de vivências e significados únicos e compartilhados.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A presente pesquisa mostrou que até 1996 havia entre o povo Baré, princi- palmente entre a população acima dos 70 anos, aqueles que ainda guardavam na memória vocabulários de sua língua materna, o Baré. Entretanto, com o contato linguístico, a situação linguística desse povo foi mudando, de forma que em 2017 as pesquisas realizadas apontaram que, mesmo os mais idosos já não lembravam de nenhuma palavra em Baré, mas somente em língua geral. O estudo constatou que, dentro das comunidades linguísticas indígenas há um contexto de convivência bilíngue em que a língua indígena disputa sua fun- cionalidade comunicativa com o português, que é a língua veicular e dominante. Deste modo, a língua étnica vai perdendo seu espaço por meio do fenômeno de deslocamento sociolinguístico. Foi o que ocorreu com a língua Baré. Atualmente o povo Baré fala o português e o Nheengatu. O tipo de bilinguismo praticado pelo povo Baré é o social e o grau de bilin- guismo predominante entre a população baré é o passivo (os falantes mais jovens somente compreendem o que os mais idosos falam, mas não falam a língua étnica). As hipóteses levantadas na pesquisa são negativas, haja vista que não se encontrou nenhum Baré que falasse ou lembrasse de palavras de sua primeira língua materna, o Baré atualmente. O enfoque analítico da pesquisa mostrou que a língua étnica deixou de ter um papel importante no processo de construção da identidade coletiva do povo dessa etnia, pois observou-se que a mesma tem usado mais a língua Portuguesa como meio de comunicação entre seus membros. Não foram encontrados falantes da língua Baré entre aqueles que nomea- damente são remanescentes daquele povo. Entretanto a presente pesquisa tendo

222 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 207-226, maio/ago. 2019 Os últimos falantes da Língua Baré apresentado aspectos da situação sociolinguística dos Baré pode contribuir para que se possa estabelecer políticas linguísticas relevantes a fim de se assegurar a manutenção da língua Nheengatu aos Baré”. Como já se sabe, a perda da língua é o modo mais rápido de se extinguir uma cultura, pois mesmo que alguns rituais se mantenham, seu contexto e sua força não são os mesmos, já que a língua fornece suporte a eles e as peculiaridades da cultura local. A comunidade é a unidade de relação em uma língua. Para tanto, é preciso que os comunitários façam uso da língua étnica no ambiente familiar, nas relações com a vizinhança e nos ritos religiosos da comunidade. Tomar consciência de que tanto à língua étnica quanto à língua portuguesa têm os seus territórios, os seus domínios e que devem ser usadas em seus lugares específicos. Assim, a tendência é seus membros permanecerem bilíngues, mesmo não havendo mais falantes de línguas indígenas em (L1). O estudo apresentado não encerra as questões suscitadas, haja vista que pesquisas futuras poderão averiguar se o povo Baré continuará bilíngue em português e Nheengatu ou se a tendência será que o português tome o espaço social da língua indígena. Certamente estes dados de pesquisas são importantes para mostrar o estado linguístico dos Baré, contribuindo para futuras pesquisas sociolinguísticas com comunidades linguísticas indígenas no Brasil.

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Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 207-226, maio/ago. 2019 225 Ademar dos Santos LIMA; Silvana Andrade MARTINS; Jéssica Nayara Cruz PEDROSA

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Sobre os autores: Ademar dos Santos Lima – Mestre em Letras e Artes pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), bolsista POSGRAD-FAPEAM/QUALIFICA-SEMED. Graduado em Letras Línguas Portuguesa e Inglesa pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Manaus, Amazonas, Brasil. E-mail: [email protected] Silvana Andrade Martins – Doutora e Pós-doutora em Letras e Linguística pela Vrije Universiteit, Amsterdam, Holanda. Mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora e pesquisadora do Programa de Pós- Graduação em Letras e Artes do Curso de Mestrado da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). E-mail: [email protected] Jéssica Nayara Cruz Pedrosa – Mestre em Letras e Artes pela Universidade do Estado Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Especialista em Psicologia Hospitalar pela Faculdade Martha Falcão - Devry. Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). E-mail: [email protected]

Recebido em 25 de agosto de 2018 Aprovado para publicação em 20 de março de 2019

226 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 207-226, maio/ago. 2019 Os Terena na História The Terena in History

Luciano Araujo Monteiro1

DOI: http://dx.doi.org/10.20435/tellus.v19i39.561

Resumo: Nas últimas décadas temos assistido ao crescente protagonismo indígena nos movimentos políticos referentes à sua causa. O número de organizações indígenas tem aumentado, bem como os eventos que discutem essa temática, nos quais os próprios indígenas se constituem como lideranças, e também, intelectuais que problematizam tais questões nas universidades e nas publicações acadêmicas. A saber, o livro: “A História do Povo Terena” é um produto dessa realidade, em que, essa etnia busca, por meio da História Oral, resgatar suas origens. O objeto de estudo é a análise deste livro, como forma e conteúdo, visando compreender o discurso, seja iconográfico, seja textual, inserido nessa produção didática, criada pelos Terena e para eles. Palavras-chave: livro didático; educação diferenciada; Terena. Abstract: In the last decades we have witnessed the increasing indigenous protagonism in the political movements related to its cause. The number of indigenous organizations has increased, as well as the events that discuss this theme, in which indigenous people themselves constitute leaderships, as well as intellectuals who problematize such issues in universities and academic publications. Namely, the book “History of the Terena People” is a product of this reality, in which, this ethnicity seeks, through Oral History, to rescue its origins. The object of study is the analysis of this book, as form and content, aiming to understand the discourse, whether iconographic or textual, inserted in this didactic production, created by Terena and for them. Keywords: Textbook, Differentiated education; Terena.

1 INTRODUÇÃO Nas últimas décadas temos assistido ao crescente protagonismo indígena nos movimentos políticos referentes à sua causa. O número de organizações

1 Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, São Paulo, Brasil.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 227-241, maio/ago. 2019 Luciano Araujo MONTEIRO

­indígenas2 tem aumentado, bem como os eventos que discutem essa temática, nos quais os próprios indígenas se constituem como lideranças, e também, in- telectuais que problematizam tais questões nas universidades e nas publicações acadêmicas. Nesse sentido, ganham volume os debates que apontam novas perspectivas de se observar e encaminhar as questões indígenas, entre elas às relativas à educação. Desde a Constituição de 1988, está “assegurada às comu- nidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” (Artigo 210, § 2º), ou seja, lhes é assegurado uma educação diferenciada e bilíngue. Nesse contexto de novos rumos dados à educação (Terena) é que se insere nosso objeto de estudo, a saber, o livro didático: “A História do Povo Terena”3, sendo que, o título deste artigo é homônimo ao terceiro capítulo da monografia de conclusão de curso, que foi elaborada utilizando esta fonte histórica, defendi- da no âmbito da universidade (no estudo monográfico há um aprofundamento dessa temática). Trata-se de um livro pouco conhecido e bastante específico, destinado a ser utilizado na educação escolar dos Terena4 (povo que reside em São Paulo [município de Tupã], Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul)5, mais precisamente, essa obra didática é destinada aos jovens Terena que residem nos centros urbanos do Mato Grosso do Sul, se diferenciando por ser um material didático organizado pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI)6, em parceria com

2 Para ter acesso a informações sobre as organizações indígenas presentes nos vários estados da federação, acesse: http://pib.socioambiental.org/pt/c/iniciativas-indigenas/organizacoes- -indigenas/lista-de-organizacoes. Acesso em: jan. 2014. 3 Essa obra didática está disponível em: http://lemad.fflch.usp.br/sites/lemad.fflch.usp.br/ files/A%20Historia%20do%20Povo%20Terena.pdf. Acesso em: fev. 2017. 4 A língua Terena deriva da língua Aruak, que, por sua vez, congregou um conjunto de povos indígenas que viviam na região das Guianas e em algumas ilhas do Caribe. Ao ter o contato com o europeu, houve povos que se deslocaram mais ao sul do que hoje se conhece por Brasil. Foi graças à colonização europeia que os Terena se encontram concentrados no Centro-Oeste (BITTENCOURT; LADEIRA, 2000). 5 Segundo informação obtida ao entrevistar a antropóloga Maria Elisa Ladeira (2013), um con- tingente de indígenas Terena foi deslocado da região Centro-Oeste para o oeste paulista, a fim de pacificar pela lógica do trabalho os indígenas da etnia (na década de 1970), por conta do fato dos Terena serem vistos como pessoas ordeiras e bons trabalhadores. 6 “O Centro de Trabalho Indigenista – CTI é uma Organização como associação sem fins lucrativos, fundada em março de 1979 por antropólogos e indigenistas que já trabalhavam com alguns grupos indígenas do Brasil”.

228 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 227-241, maio/ago. 2019 Os Terena na História o Ministério da Educação (com financiamento público, no que diz respeito a sua impressão). Justificamos a importância de analisar esse livro pelo fato deste se inserir na problematização da educação escolar indígena diferenciada, que ocorre em nossos dias, além de contribuir para o debate sobre esse tipo de produção didática, abordando um livro que se constitui como especificidade e originalidade nesse campo. Este livro se constitui como desdobramento de um curso de forma- ção, organizado pela Universidade de São Paulo (USP) e pelo Centro de Trabalho Indigenista, voltado para professores indígenas7. Por outro lado, em se tratando de uma monografia inserida num curso de História, este trabalho se justifica porque amplia as possibilidades de discutir o ensino de História indígena no âmbito da lei n. 11.645/2008, que torna obrigatório o ensino dessa temática na Educação Básica. Este estudo tem por objetivos discutir o processo de elaboração dessa obra, realizar a análise dos conteúdos textual e iconográfico do livro didático, enten- dendo também, a forma como o conteúdo foi estruturado, a fim de perceber este objeto de monografia no contexto de autodeterminação dos povos indígenas, no que diz respeito a uma educação diferenciada e bilíngue, compreendendo o discur- so dessa obra pela perspectiva do povo Terena e pelo desejo destes de se inserir na história nacional, tendo como grande marco temporal a Guerra do Paraguai (momento em que estes pegam em armas para defender o território brasileiro).

2 A IMPORTÂNCIA DESSA PRODUÇÃO DIDÁTICA Podemos entender este livro didático como um material complexo, pelo fato deste livro agregar diversas informações de cunho histórico, seja por meio do conteúdo textual, seja por intermédio da iconografia, conferindo ao livro didático a função documental, pois: [...] acredita-se que o livro didático pode fornecer, sem que essa leitura seja dirigida, um conjunto de documentos, textuais ou icônicos, cuja confrontação pode vir a desenvolver o espírito crítico do aluno (CHOPPIN, 2004, p. 553).

Fonte: http://www.trabalhoindigenista.org.br/pagina.php?p=quem_somos.php. Acesso em: 23 ago. 2013. 7 Esta informação foi obtida ao entrevistar Circe Bittencourt e Maria Elisa Ladeira (2013).

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Em outras palavras, esse autor apresenta o papel desse material para inserir o aluno no universo da cidadania, isto é, torná-lo consciente de seus direitos e deveres. Assim como este escritor chama a atenção para a importância de se es- tudar a recepção desse segmento de obra entre professores e alunos (CHOPPIN, 2004), aspecto que, embora relevante, não contemplaremos nessa pesquisa, dado o escopo desse trabalho. Ao pensarmos nesse tipo de livro como um produto cultural complexo, podemos supor também, segundo Alain Choppin, que: “Conclui-se que a imagem da sociedade apresentada pelos livros didáticos corresponde a uma reconstrução que obedece à motivações diversas, segundo época e local [...]. O livro didático não é um simples espelho: ele modifica a realidade para educar as novas gerações [...]” (CHOPPIN, 2004, p. 557). Isto é, ao pensarmos no “A História do Povo Terena”, é possível supor que este livro cumpre uma função social, à medida que trabalha a história como pro- cesso, rompendo com uma visão estática de que a realidade sempre foi daquele jeito, ao pensarmos no tempo presente. Além disso, ao estabelecer uma relação entre passado e presente, esta fonte não deixa de possuir as marcas do tempo e espaço no qual foi concebida (CHOPPIN, 2004, p. 564). Pensamos que seja coerente acrescentar a este estudo algumas exigências presentes no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), de 2011, no que diz respeito aos requisitos para que uma obra didática de história seja considerada de qualidade satisfatória: Neste segmento de ensino fundamental, o livro didático deve contribuir para o desenvolvimento dos conceitos de História, fonte, historiografia, memória, acontecimento, sequência, encadeamento, períodos, fato, tempo, simul- taneidade, ritmos de tempo, medidas de tempo, sujeito histórico, espaço, historicidade, identidade, semelhança, diferença, contradição, continuidade, permanência, mudança, evidência, causa, ficção, narrativa, verdade, ruptura, explicação e interpretação. (BRASIL, 2011, p. 46-7). Essa fonte documental, especificamente, referente a um livro didático sobre a história do povo Terena, nos ajuda a compreender a história em suas particula- ridades, desmistificando assim, o ideal de uma identidade nacional única, homo- gênea e comum. Nesse sentido, Leite nos mostra a importância do livro didático regional, a fim de produzir uma identidade social ou mesmo individualidades:

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Dessa forma, uma geração produz configurações intelectuais múltiplas e simultâneas através das quais a realidade é construída, por isso é possível afirmar que diferentes grupos constroem diferentes realidades. (LEITE, 2007, 195). [...] não se pode deixar de considerar que o livro didático regional de História, enquanto objeto cultural que suporta uma prática cultural de escrita de si é instrumento formador de subjetividades e, portanto, merece ser apreciado em pesquisas que possibilitem a ampliação de sua compreensão. (LEITE, 2007, p. 196). Em minhas pesquisas, tornou-se notório o papel dos livros didáticos para criar identidades ou memórias, contudo, esse material didático não é o respon- sável exclusivo por essa função. Assim como, devemos lembrar que ele pode se articular a outros veículos de comunicação, tendo, por fim, forjar e/ou cristalizar representações, assim como a memória. Segundo Bittencourt: Sobre as relações entre conteúdos escolares e acadêmicos, o historiador Carlos Vesentini, no artigo ‘Escola e livro didático de História’, apontou para especificidades do livro didático no processo de criação e cristalização de uma memória, na consolidação de determinados fatos considerados fundamentais nas mudanças de nossa sociedade. O autor adverte-nos, no entanto, de que o livro didático não é responsável de forma isolada por essa sedimentação de uma memória histórica [...]. (BITTENCOURT, 2008, p. 304). Em outras palavras, esse material não é o exclusivo responsável por ditar uma “verdade” ou uma representação. Como exemplo, voltamos às diversas mí- dias que, em paralelo ao livro didático, moldam, por assim dizer, determinados modo de ser. Este livro de história Terena não se insere apenas no momento de autode- terminação dos povos indígenas, mas também, como uma alternativa temática, pois, apesar da existência da lei n. 11.645/2008, que torna obrigatório o ensino de história indígena, nota-se a ausência desses grupos nos materiais didáticos contemporâneos, segundo enfatiza Circe Bittencourt: Os discursos nos textos didáticos também têm sido analisados, sobretudo para identificar a manutenção de estereótipos sobre grupos étnicos. No caso das populações indígenas, os educadores e antropólogos têm-se preocupa- do com a permanência de visões deformadoras e incompletas sobre esses povos. Algumas de suas análises identificam a ausência de estudos sobre a história indígena, situação que dificulta igualmente mudanças na produção

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didática. As populações indígenas surgem nos livros didáticos nos capítulos iniciais, quando da chegada dos europeus e para justificar a importação de mão de obra escrava africana, embora em alguns mais recentes apareçam alguns dados sobre as condições atuais desses povos. Os índios, mesmo em obras mais críticas, são apresentados em seus aspectos gerais, com análises mais estruturais empenhadas em rebater as teorias raciais que buscavam culpá-los pela herança deixada ao povo brasileiro, a saber, ‘a índole avessa ao trabalho produtivo’. (BITTENCOURT, 2008, p. 305). O livro de temática indígena aqui apresentado busca não simplesmente “dar voz”, mas escutar a voz dos Terena, tornados sujeitos, pensando a História por sua perspectiva, e que se insere num momento histórico, no qual a educação deixa de ser pensada para o indígena, tornando-se uma educação dos indígenas, seja por meio de reprodução dos relatos orais, seja por intermédio de iconografia que representam sua cultura. Atualmente, os Terena veem na educação uma forma de superar essa situ- ação de exclusão, de acordo com a análise de Ladeira: “[...] a escola é encarada, por setores consideráveis das comunidades Terena, como um instrumento de ascensão individual, a possibilidade de seus filhos escaparem da vida ‘sem futuro’ na aldeia e nas usinas de álcool” (LADEIRA, 2001, p. 43). Mariano Marcos Terena também reforça o quanto é necessário à capacitação intelectual, para que os indígenas, de fato, sejam agentes de sua própria história: Mas aprendeu [o indígena] que, para continuar vivendo era necessário con- viver com os costumes da sociedade branca. Aprendeu que era necessário instruir-se, ler e escrever, conhecer métodos de agricultura, pecuária e se possível ter um índio ‘doutor’, afinal, a capacidade de aprendizado, o po- tencial existente dentro de si era o mesmo que qualquer outro ser humano. Durante toda minha vida aprendi que para ser respeitado era necessário respeitar, e que o índio precisava desenvolver-se, instruir-se para que pu- desse galgar em mesmo pé de igualdade os diversos setores da sociedade envolvente. (TERENA, 1981, p. 40). Nos dias atuais, os Terena são valorizados como bons agricultores, bons co- merciantes, pessoas ordeiras, de acordo com informações obtidas em entrevistas com as autoras dessa obra. Maria Elisa Ladeira chegou e expor que o modelo de vida deles já foi levado para outros povos, por iniciativa governamental, conforme informado em:

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Ao mesmo tempo em que o SPI8 e posteriormente a Funai consolidavam uma série de mecanismos que impediam a auto-sustentação da comunidade Terena dentro das reservas, voltando-as para o trabalho externo, ‘elegeram’ os Terena como um dos grupos mais adaptados à sua proposta de integração do índio à ‘comunhão nacional’, devido a seu longo e amistoso contato com a população regional. O rótulo de ‘semia- culturados’ fez com que o SPI deslocasse famílias Terena para outras áreas indígenas (Guarani, Kadiwéu, Kaingang) para que estes ‘aprendessem’ com os Terena. Essa posição ‘privilegiada’ ocupada pelos Terena foi também a responsável pela introdução da escola pelo SPI em algumas comunidades, inclusive a de Cachoeirinha, ainda na primeira metade do século XX. O objetivo declarado dessas escolas era ‘apressar’ o processo de aculturação dos Terena. Data deste período a elaboração de todo um discurso segundo o qual ‘não há futuro no interior da reserva’, fundamental para a compreensão do papel da escola no imaginário Terena. (LADEIRA, 2001, p. 42). Ladeira também informou em entrevista que um dos primeiros povos que o governo nacional quis emancipar foi os Terena. Todavia, devemos frisar que, se por um lado a emancipação era um documento legal que conferia o status de cidadão ao indígena, por outro, era um dispositivo de autonegação da própria origem, segundo nos informa Marcos Terena: “[...] emancipação esta que nada lhe acrescenta de útil ou benéfico, mas lhe tira o direito de existir como indígena e como tal de lutar pela justiça para com os seus” (TERENA, 1981, p. 39). O livro “A História do Povo Terena” foi fruto do desdobramento de um cur- so de formação destinado a professores indígenas, dentre eles, os Terena, que tinham por objetivo inicial o de estruturar o próprio currículo educacional de História. Foi um curso ministrado na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (na primeira metade da década de 1990), realizado em parceria com o Centro de Trabalho Indigenista. Segundo Bittencourt, em entrevista (2013), os Terena queriam organizar o currículo de História, pelo fato de se perceberem fora da História do Brasil, por não serem mencionados em sua participação num episódio o qual eles têm o maior orgulho, que é a Guerra do Paraguai. Com o intuito de reunir a documentação escrita para a confecção dessa obra, alguns alunos de Circe Bittencourt realizaram estágio dentro das reservas Terena, conforme esta historiadora relatou em entrevista concedida a mim:

8 Serviço de Proteção ao Índio – “Da data de sua criação [1910] até sua substituição, em 1967, pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o SPI funcionou vinculado a diferentes ministérios. De 1910 a 1930 esteve vinculado ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio [...]” (CHAMUSCA; GESTEIRA; GRILLO; HENRIQUES, 2007, p. 23).

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Para fazer esse livro, naquela ocasião, eu dava aulas de Prática de Ensino. Foi feito um acordo também com o CTI, os alunos de Prática de Ensino, meus alunos, que quisessem fazer estágio em escolas indígenas lá deles, [...] ficavam em geral um mês fazendo estagio nas escolas indígenas, em especifico dos Terena. Eles foram recolhendo junto comigo toda a documentação escrita sobre os Terena [...]. (BITTENCOURT, 2013). Contudo, ainda havia a escassez documental (escrita). Com o objetivo de resgatar a cultura Terena, optou-se pelo uso dos relatos orais, conforme apontado por Ladeira em entrevista concedida a mim:

Eu acho que eles não tinham essa concepção para eles, ou ao contrário, que a gente procurou demonstrar para eles é que, os relatos orais eram um documento, tinha um valor de documento e isso a Circe [Bitttencourt] enfatizava muito, porque no começo eles tinham uma certa resistência, por que eles diziam: ‘Bom, a gente não tem nada’. Eles não tinham nada escrito. Então toda coisa ela dizia: ‘Não, os relatos orais são uma fonte sim de documentação para que a gente possa constituir’. Então, vamos fazer pesquisa com os mais velhos, vão lembrar de histórias que vocês es- cutaram, vamos fazer reflexão e vamos disponibilizar dentro do material, as fontes escritas, históricas, escritas nossas, do Taunay, [...], ao Rondon [...]. (LADEIRA, 2013 ). Em outras palavras, por conta da escassez documental, optou-se por res- gatar as tradições e mitos desse grupo indígena por intermédio do relato oral, elevando-os ao status de fonte histórica, ao mesmo tempo em que eram esco- lhidas peças da cultura material que são fruto da produção artística deste povo (para serem retratadas) e iconografia que os apresentam como pessoas ordeiras, trabalhadoras e preocupadas com a educação. Sem esquecermos de que, tanto Taunay quanto Rondon são citados pelo viés histórico mais tradicional, enquanto este foi responsável pela demarcação das reservas Terena, aspecto que pôs fim ao Tempo de Servidão9, aquele retratou os Terena no século XIX, como na pintura Retirada da Laguna (BITTENCOURT; LADEIRA, 2000, p. 54), no contexto da Guerra do Paraguai. Estas escolhas, assim como a fé que os Terena depositam na educação e a atuação deste povo em obras públicas, como a expansão da linha telegráfica e da malha ferroviária (Estrada de Ferro Noroeste do Brasil) os tornam agentes históricos e não meros coadjuvantes.

9 Logo após a Guerra do Paraguai, o governo imperial premiou membros da Guarda Nacional, ofertando a estes oficiais territórios ocupados pelos Terena. Além da perda de territórios, o Tempo da Servidão é marcado pela escravização dessa etnia pelos fazendeiros que se estabe- leciam no que hoje chamamos de Região Centro-Oeste.

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O livro, escrito e organizado por Circe Bittencourt e Maria Elisa Ladeira (composto por textos que retratam os mitos Terena, assim como iconografia escolhida por essa etnia para compor a obra didática), contém 156 páginas e está escrito em português, conforme recomendado pelos Terena. Esse pedido pode ser entendido como um mecanismo de luta, ou seja, o uso do português, que é a língua do dominador, se torna um instrumento de embate com o não indígena, a fim de requerer melhorias sociais, segundo foi relatado em entrevista por Ladeira (2013). Nesta mesma entrevista, Ladeira mencionou que há muitos Terena formados em Pedagogia e que dão aulas nas aldeias, ou seja, isto é mais um sinal da crença que estes indígenas conferem à educação e na importância de gerir o próprio processo educacional, com o intuito de continuar promovendo sua própria autodeterminação. Além disso, nesta obra didática também é citada a Associação Indígena Terena de Cachoeirinha (AITECA), que reúne lideranças dessa aldeia e que trás, como uma pauta de interesse, a questão da educação, mostrando assim que essa etnia não é figurante da História, mas sim, compos- ta por agentes históricos, que visam uma transformação no âmbito social, por intermédio das práticas educacionais e pedagógicas. Ou seja, se na primeira metade do século XX houve iniciativas governamentais para que existissem escolas em território Terena (pensadas pelo não indígena para os indígenas), nos dias atuais, estas instituições de ensino contam com professores desse grupo étnico, que se dedicam a levar adiante o ensino, conforme é garantido pela Constituição Federal de 1988. Ademais, o estímulo ao ensino relacionado à temática indígena também é reforçado por intermédio da criação da lei n. 11.645/2008, por estabelecer a obrigatoriedade dessa modalidade de ensino, assim como a transmissão da historia africana e dos afrodescendentes, seja no ensino fundamental, seja no ensino médio (em escolas públicas e privadas), conforme evidenciamos a seguir:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino mé- dio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. § 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da his- tória da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no

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Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (BRASIL, 2008). A capa e contracapa do livro (aparecem em tons de cor amarelo e laranja), de valor histórico (por ser a primeira representação oficial dos Terena), lembran- do que, antes mesmo de serem retratados por Taunay, os Terena foram repre- sentados, por meio da Expedição Langsdorff, que visava fazer um mapeamento do território nacional, na década de 1820. Essa representação foi recuperada, tornando-se a capa e contracapa do livro, segundo informado por Bittencourt em entrevista: “Tem um relato que antecede que é a capa do livro, que é a viagem da Missão Langsdorff em que tem desenho, o primeiro desenho de branco sobre eles, que é exatamente a capa do livro. O desenho é a capa e a contracapa [...]” (BITTENCOURT, 2013). As fotografias utilizadas ao longo da obra aparecem, ora em preto e bran- co, ora em cores, lembrando que, pelo fato dos Terena se preocuparem com a aparência, foram selecionadas imagens nas quais estes aparecem bem vestidos. Ladeira reforça esse ponto: “[...] nenhuma foto eles poderiam estar aparecendo nus ou estarem aparecendo maltrapilhos, rasgados [...]. Você pega e corta o pé da pessoa, eles não gostam [...]” (LADEIRA, 2013). Por meio das imagens, podemos observar como os Terena gostam de estar representados, seja como indivíduos ordeiros, seja como pessoas de boa aparência: “Ou seja, eles participam ‘do nosso mundo’, e fazem questão de andar bem vestidos e limpos e de mandarem seus filhos estudar na cidade [...]” (LADEIRA, 2001, p. 37). Conforme informação obtida em entrevista com as autoras dessa obra di- dática, a maior parte das ilustrações foi disponibilizada pelo Museu Nacional do Índio, do Rio de Janeiro. A outra parcela das imagens foi produzida por pessoas da comunidade Terena. Dentre as ilustrações que compõem o discurso desse livro, podemos destacar as fotografias localizadas no Capítulo V, tendo por subtítulo: “A FUNAI e a situação atual”, por retratarem crianças em sala de aula (BITTENCOURT; LADEIRA, 2000, p. 100-1), aspecto que reflete a crença Terena na educação, como já mencionado anteriormente e que, também é reforçado por Ladeira: Neste contexto é que os Terena creditam à escola, e à língua portuguesa por consequência, um papel fundamental na construção de seu futuro. Nos últimos 15 anos, o empenho dos pais para que seus filhos frequentem a

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escola na aldeia e os esforços para que consigam fazer o ‘ginásio’ na cidade têm sido imensos. (LADEIRA, 2001, p. 41). Ao refletirmos sobre os aspectos metodológicos, como os exercícios apre- sentados no livro, notamos que estes permitem a participação ativa do aluno no processo de aprendizagem e na reflexão histórica. Os exercícios estimulam o trabalho comparativo entre as fontes, assim como, fixam a prática cognitiva, seja pela prática do desenho, seja por meio de uma atividade artesanal. Conforme aparece, por exemplo, em atividades como: “Escreva uma relação das fontes para se conhecer a história do povo Terena” (BITTENCOURT; LADEIRA, 2000); “Desenhe [...] como seria uma antiga aldeia Terena e compare com a que você mora. Procure construir, em miniatura, uma casa tradicional” (BITTENCOURT; LADEIRA, 2000). A partir dos exercícios, podemos notar a influência de Bittencourt, pois, na época do curso de formação, esta era professora de Prática de Ensino de História na Faculdade de Educação (USP). O conteúdo textual está dividido em seis capítulos, subdivididos entre três e seis subtítulos (por exemplo, o capítulo III, intitulado: “Os Terena e a Guerra do Paraguai”, está subdividido em: “A Guerra do Paraguai; Histórias da Guerra: relatos de Taunay; Histórias da guerra: relatos dos Terena”), sendo que, tanto a folha de rosto, quanto às páginas onde estão inseridos os títulos dos capítulos estão ornados com pinturas Terena, que vão do vermelho ao tom rosado. Esses desenhos, que remetem ao artesanato Terena, também estão presentes nas páginas dos textos, assim como nas propostas de atividades. O texto está inserido em coluna única, permitindo uma leitura dinâmica, existindo sempre a combinação, entre textos didáticos e relatos orais. Já as ima- gens ocupam uma página ou página dupla, sendo que, o conjunto iconográfico (composto por fotografias e pinturas) é de fácil visualização. Poderíamos incluir os Terena como participantes do desenvolvimento na- cional, pois segundo Ladeira: Após a guerra do Paraguai, dois fatos significativos marcariam a história Terena: a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, responsável dire- ta pelo significativo incremento populacional da região e a instalação da linha telegráfica que ligava o interior paulista à cidade de Cuiabá. A região se abria à instalação da atividade pecuária, e os dois empreendimentos reforçaram a ocupação dos territórios Terena pelos brasileiros. (LADEIRA, 2001, p. 21).

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No livro “A História do Povo Terena” (BITTENCOURT; LADEIRA, 2000, p. 79-80) há a menção destes como trabalhadores na implantação, tanto da linha telegráfica quanto da linha férrea, sendo que, na página 80 há uma representação fotográfica retratando os Terena erguendo os postes telegráficos. Há também a menção no subtítulo: “Estrada de Ferro Noroeste do Brasil” (p. 82-4), que explica esse episódio, algumas imagens ilustrativas que retratam, tanto a linha férrea como o caminho no qual a locomotiva passava. A partir desses episódios narrados no “A História do Povo Terena”, podemos refletir sobre o que esse livro didático tem ao mostrar como fatos locais, não mencionados pela historiografia oficial, têm relevância para entendermos, em escala abrangente, as mudanças ocorridas no Brasil entre a segunda metade do século XIX e início do XX e a participação ativa do povo Terena nesses processos históricos. Nota-se também, por meio do discur- so impresso, que, os Terena desejam aparecer, ou melhor, serem representados como os construtores da nação brasileira, por terem participado da Guerra do Paraguai (como fornecedores de alimentos e como combatentes), na implantação das linhas férrea e telegráfica. O livro “A História do Povo Terena” também faz menção à exploração dessa população indígena, sendo que, nos dias atuais, permanece havendo uma forte tensão entre essa etnia de um lado e, do outro, policiais e latifundiários, ocasio- nando, em 2013, a morte do indígena Oziél Terena, que, segundo informado por Ladeira, foi assassinado pela polícia em Buriti, numa ação de reintegração de posse. O livro faz menção aos bugreiros, assassinos de indígenas que eram contratados por fazendeiros, representados em fotografia (BITTENCOURT; LADEIRA, 2000, 94), na qual estes posam junto de mulheres e crianças. Por meio da observação dessa imagem, é possível supor que, estes indígenas aparecem como troféus em meio ao extermínio dos homens. Ademais, a obra didática analisada também faz menção ao termo: “changa”, isto é, ao período de trabalho temporário em que o indígena deixa a aldeia para trabalhar nas fazendas ou usinas de cana de açúcar. Segundo foi dito por Maria Elisa Ladeira (2013), em entrevista, isso ocorre pelo fato da própria aldeia não garantir a subsistência dessa etnia, dado o volume populacional que nelas reside e este é um ponto que contribui para a desagregação familiar. A partir deste fato, podemos pensar em outra demanda do indígena, que é o direito ao território e ao manejo dos recursos naturais, com a finalidade de garantir a própria subsistência,

238 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 227-241, maio/ago. 2019 Os Terena na História como também, para fortalecer o próprio movimento indígena, pois se ele não tiver necessidade de abandonar seu lar, o grupo continuará coeso e terá maior força para reivindicar direitos sociais perante o Poder Público.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS O livro “A História do Povo Terena” é fruto de um contexto de lutas pela autodeterminação dos povos indígenas que, dentre as reivindicações, chamam para si o direito de organizarem seu próprio processo educacional10. Trata-se de um contexto no qual vários povos, dentre eles, os Terena, passaram a agir, dada a ineficiência das políticas públicas que não colocam em prática direitos assegurados pela Constituição Federal de 1988. A partir desse objeto de monografia, buscamos analisar, pela perspectiva Terena, seu desejo de se firmar como povo, constituindo uma identidade que -per passa tanto pelo conteúdo textual quanto icônico. Uma identidade que justifica a existência desse povo, constituindo uma unidade entre os membros dessa etnia. Neste trabalho, também buscamos observar a forma desse livro didático, pois a forma também incide no entendimento do conteúdo: “[...] a transformação das formas através das quais um texto é proposto autoriza recepções inéditas, logo cria novos públicos e novos usos” (CHARTIER, 1991, p. 11 ). Esse é um livro que expressa a crença que os Terena depositam na educação como instrumento de transformação e afirmação de sua cultura, e também, a perspectiva de se inserirem na historiografia oficial, seja pela efetiva participação na Guerra do Paraguai, seja na construção das linhas telegráfica e férrea. Se em outros momentos a educação era vista como um mecanismo de doutrinação, hoje passa a ser um meio de libertação perante a realidade de exclusão (segundo a perspectiva Terena). Desse modo, são eleitos personagens e acontecimentos que não foram celebrados pela historiografia oficial. Não se trata apenas de um livro feito para um povo, mas também, feito por um povo, que, por meio dos relatos orais, se tornam coautores de uma obra didática concebida com o auxilio da Academia. Claro que esse livro não resolve-

10 Segundo Maria Elisa Ladeira me relatou em entrevista, no ano de 2013, este livro é considerado um best seller pelos Terena, sendo uma obra muito procurada por eles.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 227-241, maio/ago. 2019 239 Luciano Araujo MONTEIRO rá todos os problemas ligados à questão indígena. Contudo, fornece subsídios para um despertar, apresentando aos alunos o tempo histórico, permeado por mudanças e continuidades. Um tempo resgatado também nas propostas de atividades que, ao estimularem a reflexão dos estudantes, os tornam também em autores, quando estes passam a reescrever as representações que têm do ambiente cotidiano. Trata-se de um livro organizado, segundo as necessidades dos Terena. Demandas que se articulam com a chamada História do Tempo Presente, pois, nos dias atuais, essa comunidade enfrenta o problema da desagregação familiar, lembrando que o indígena precisa deixar a reserva para trabalhar nas áreas ur- banas ou nas fazendas, localizadas no entorno, como fim de obter a subsistência. Dessa maneira, podemos entender esse livro não só como consequência de um processo constitucional, mas também, como um mecanismo que visa resgatar um modo de vida que pode um dia vir a desaparecer, ou seja, a tradição desses indígenas como agricultores, característica observada tanto na iconografia quanto no recolhimento dos relatos dos indígenas mais antigos.

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Sobre o autor: Luciano Araújo Monteiro – Mestrando em História e Pós-graduando em Gestão Pública pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Assistente de Gestão e Políticas Públicas – Autarquia Hospitalar Municipal (AHM), Secretaria Municipal da Saúde da Prefeitura da Cidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

Recebido em 12 de junho de 2018 Aprovado para publicação em 16 de novembro de 2018

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“Jure”1: a educação do corpo e a expressão da identidade Bororo na dança “Jure”: body education and the expression of Bororo identity in dance

Félix Rondon Adugoenau2 Beleni Saléte Grando2 Neide da Silva Campos2 Sueli de Fátima Xavier Ribeiro2

DOI: http://dx.doi.org/10.20435/tellus.v19i39.575

Resumo: Neste artigo, tecemos considerações sobre uma manifestação da cultura e identidade do Povo Bororo a partir do diálogo com o contexto sociocultural e histórico de Meruri, em Mato Grosso. O Jure como uma prática social se expressa como educação do corpo que se materializa na dança e no brincar possibilitando a compreensão de diferentes sentidos e significados em diálogo com a cosmologia complexa deste Povo que há 300 anos se mantém com a língua e os rituais a sua complexa estrutura social e formas de constituir suas identidades individuais e coletivas. A dança se constitui numa prática polissêmica cuja expressão revela quem são os corpos que dela participam e conforme os contextos essa transcende sua especificidade ritualística ou lúdica para promover interações e processos de educações dos corpos numa perspectiva intercultural. Palavras-chave: “Jure”; povo Bororo; dança; Mato Grosso. Abstract: In this article, we make considerations about a manifestation of the culture and identity of the Bororo People from the dialogue with the sociocultural and historical context of Meruri, in Mato Grosso. The Jure as a social practice expresses itself as an education of the body that materializes in dance and play, making possible the understanding of different meanings and meanings in dialogue with the complex cosmology of this People who for 300 years have

1 Significa sucuri (mas também arco-íris), esta dança recebe esse nome porque a coreografia lem- bra o movimento circular da cobra, como é narrado no mito de origem dos rios Pobo Tawujodo, em que os movimentos da cobra criaram as curvas dos rios. No mito, o sucuri é responsável pelas curvas do rio Ele curvava, o rio se curvava, ele se endireitava e o rio se endireitava. No mito, a sucuri é responsável pelas curvas do rio Cuiabá (GRANDO, 2004, p. 262). 2 Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Cuiabá, Mato Grosso, Brasil.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 243-263, maio/ago. 2019 Félix Rondon ADUGOENAU, Beleni Saléte GRANDO, Neide da Silva CAMPOS, Sueli de Fátima Xavier RIBEIRO

maintained their language and rituals complex social structures and forms of constituting their individual and collective identities. Dance is a polysemic practice whose expression reveals who the bodies that participate and according to the contexts this transcends its ritualistic or playful specificity to promote interactions and processes of education of the bodies in an intercultural perspective. Keywords: “Jure”; Bororo people; dance; Mato Grosso.

1 APROXIMAÇÕES AO “JURE”: UMA PRÁTICA SOCIAL DO POVO BORORO Neste texto interdisciplinar, somos multiétnicos e buscamos tecer inter- culturalmente sentidos e significados possíveis para a compreensão de uma -ma nifestação da cultura e identidade do Povo Bororo, articulando-a aos saberes e práticas educativas produtoras de corpos que possam se constituir como únicos, porque o são coletivamente produzidos. Com o “Jure”, uma dança específica que trazemos como conhecimento do Povo Boe, tecemos diferentes possibilidades de conhecê-los por suas formas de dançar e viver coletivo. Um viver que em 300 anos de contato com o colonizador amplamente destrutivo, os mantêm como “Povo Verdadeiro” sustentado por uma cosmologia complexa de entendimento da rea- lidade que é multifacetada, pois possibilitada por mundos que se entrecruzam e produzem sentidos e significados materializados nos corpos que são reconhecidos e que se reconhecem, também quando dançam ou brincam o “Jure”. Conforme nos relataram alguns Bororo de Meruri, em Mato Grosso, o “Jure”, que se manifesta em forma de dança que envolve homens e mulheres de diferentes clãs e metades exogâmicas, pode ser uma prática social corporificada nos gestos, no canto e estéticas corporais quando se está triste, pois com a dança podem proporcionar um encontro com o outro e trazer novamente a alegria para seus pares. Quando nos referirmos às danças dos povos indígenas faz-se necessário considerar que é o corpo que dança quem emana no movimento suas formas próprias de ser e de identificar-se consigo e com o Outro com quem dança, para quem se dança, sendo que o Outro não é necessariamente uma pessoa, mas uma situação, uma memória, uma divindade ou mesmo um espírito3. O corpo

3 Cabe destacar que embora tenhamos recorrido a uma linguagem generalizante, estamos cientes da complexidade necessária para compreendermos uma dança indígena, pois não há possibi-

244 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 243-263, maio/ago. 2019 “Jure” : a educação do corpo e a expressão da identidade bororo na dança que dança, traz consigo técnicas adquiridas nos corpos próprias dos processos de produção de sua materialidade clânica, de idade, gênero e etnia, que possi- bilitou a “educação do corpo” (GRANDO, 2006) marcado por uma cosmologia e ancestralidade específica, cuja gama de significações e sentidos orienta a vida dos sujeitos em suas coletividades. As sociedades indígenas mantêm tradições e rituais que compõem seu patrimônio material e imaterial e sua organização e cosmovisão sociocultural milenar. Observamos que nos saberes e fazeres de povos tradicionais a dança é sempre um elemento constante nos processos ritualísticos, bem como pode ser uma manifestação espontânea dos momentos de divertimento ou demanda pelas necessidades da comunidade, quando esta é acometida por sentimentos de tristeza, de necessidade de fortalecimento de suas identidades e cosmovisões, de espaços e tempos em que o corpo coletivo é mobilizado para as lutas e processos de revitalização de identidades e territorialidade. Assim, o dançar possibilita a revitalização permanente da cultura e das identidades coletivas, que nos processos de contato com outros grupos étnicos, em tempos e espaços diversos, vai produzindo técnicas que no corpo buscam reconstruir sentidos e significados tanto do grupo que dança quanto do grupo que representa ao dançar. As técnicas corporais, como práticas sociais, são pro- duções marcadas pelos tempos e espaços nos quais os corpos que dançam são produzidos desde a mais tenra infância, ou seja, conforme nos subsidia Rodrigues (1980), o corpo é forjado e fabricado culturalmente por meio de uma pedagogia específica, portanto, uma educação que garante sua inclusão social a partir do corpo que é na estrutura familiar e clânica, identificada com sua marca de gênero, idade, por uma lógica específica, cosmológica e ambiental, entre outras possíveis referências de sua sociedade. Como evidenciam os estudos que realizamos sobre a “educação do corpo” em diferentes processos de formação humana, as pedagogias dos corpos são es- pecíficas em cada grupo social e sociedade, pois é uma forma de educar a pessoa para a sociedade, considerando sua complexidade corpórea, ou seja, em todas as

lidade de compararmos uma expressão identitária coletiva, como uma dança indígena, com os mesmos sentidos e significados, se quer quando a mesma dança é vivenciada pelo próprio grupo étnico, quanto mais entre diferentes etnias-povos.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 243-263, maio/ago. 2019 245 Félix Rondon ADUGOENAU, Beleni Saléte GRANDO, Neide da Silva CAMPOS, Sueli de Fátima Xavier RIBEIRO suas dimensões humanas (orgânica e de movimento, afetiva/social, intelectual/ cognitiva e espiritual/cosmológica). As pedagogias do corpo desde a mais tenra idade são produzidas de formas diferentes pelos grupos humanos e assumidas pelos adultos responsáveis pelas novas gerações como práticas sociais que são corporificadas para dar sentido à vida coletiva cotidianamente e sistematizadas nos momentos ritualizados. Ao considerarmos os processos dinâmicos da produção da vida coletiva que cotidianamente dão sentido e significa às práticas sociais, para compreensão da dança “Jure” para o Povo Bororo, há que se considerar seu processo histórico de contato com outros grupos humanos, entre os quais, os colonizadores que chegam à Cuiabá, trezentos anos atrás. De acordo com Grando (2004) o Povo Bororo foi o primeiro grupo indígena que os bandeirantes encontram ao chegar às terras mato-grossenses, às margens do Rio Cuiabá e encontro deste com o Rio Coxipó. Os nomes dados para essa geografia têm significados próprios do Povo que constituiu este território origina- riamente, por exemplo, Cuiabá é uma forma de falar e escrever que se originou do termo “Ikuia-pá” (local de pesca com arpão). [...] muitas cidades surgiram nos territórios à margem dos rios onde viviam os Bororo e foram batizadas com nomes na língua desses: Cuiabá/MT = Ikúia Pá (pesca com arpão), Corumbá/MS = Bakóro Ba (lugar de Bakoro), Coxim/MS = Kótcho Í (cajueiro), Jataí/GO = Jatúgo Í (cajazeiros), Coxipó = Kujibo Pó (Córrego do Mutum), Poxoréu = Pó Tcheréu (água preta), entre outras. Antropologicamente os Bororo são classificados como pertencentes ao tronco lingüístico Macro Jê, que abarca cerca de 40 línguas, agrupadas em mais ou menos 12 famílias. (GRANDO, 2004, p. 148). Em nossos estudos com autoridades e pesquisadores do Povo Bororo, ou melhor, com o Povo Boe (Povo Verdadeiro), tem nos possibilitado realizar formações-ações promotoras de reconhecimento de sua história e cultura e nos reconhecer em seus territórios tradicionais a partir de marcas que pela cultura cuiabana nos identifica. Como grupo de pesquisa, buscamos aprender para levar para os espaços da educação não indígena, a sabedoria do povo que nos ensina com suas práticas e conhecimentos milenares como vêm conseguindo superar as diversas dores e horrores que viveram e ainda vivem nos conflitos com os invasores de seu tempo, do seu espaço; como mantêm sua cosmologia e língua

246 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 243-263, maio/ago. 2019 “Jure” : a educação do corpo e a expressão da identidade bororo na dança viva e garantem às crianças e jovem, o orgulho de ser Boe, diante deste processo permanente de apropriação colonialista insaciável por terra, riqueza e poder. Tendo sido o maior povo desta região central da América do Sul, atualmen- te são menos de três mil indivíduos que, apartados em territórios cortados por diversos municípios no estado Mato Grosso, mantêm-se como Povo, ou seja: [...] no processo histórico estabelecido entre os povos indígenas e os não índios, no confronto entre formas diferentes de produzir a vida e de apropria- ção dos territórios, a duras penas [...] os Bororo vêm garantindo, para o seu reduzidíssimo grupo étnico, as formas tradicionais de fabricação da pessoa e a centralidade do corpo na constituição de sua identidade. A expressão das simbologias, mitos, ritos e rituais traduz múltiplos significados, mas visa, acima de tudo, manter coesa sua complexa sociedade, mesmo diante das limitações materiais e territoriais que dificultam ou inviabilizam estratégias tradicionais de circulação do conhecimento e da educação bororo. (GRANDO, 2004, p. 313). Como afirma a autora, a constituição da identidade e da educação da pessoa bororo perpassa fortemente pelo viés do corpo do nascimento até a morte. Essa afirmação nos leva a compreensão da dança como representação social que dá visibilidade a uma sociedade específica e a cada uma das identidades coletivas expressas nos corpos que dançam com suas insígnias e suas gestualidades espe- cíficas, conforme o lugar que ocupa na dança. Nos inúmeros registros do Povo Bororo, espalhados pelo mundo inicialmente pelos Salesianos Colbacchini e Albisetti (1942) e Levi-Strauss (1993), podemos observar que os diferenciamos de acordo com as marcas de sua cultura, circuns- critas nos corpos, por meio das pinturas corporais, adornos, colares, brincos, ritos, língua, modos de organização, etc. Ao se referir à educação do seu povo e como esta é marcada no corpo, Félix Rondon Adugoenau (2015) destaca que: É no corpo que a criança é educada pelos familiares desde antes do nasci- mento. Toda criança, assim como toda pessoa nas mais diferentes fases da vida, passa por um processo de educação que a marca em sua corporeidade, que varia de acordo com o gênero, o subclã, o clã e a metade exogâmica, e, a idade, mas para além dela, pois são nas experiências vivenciadas nos rituais que sua corporeidade vai se educando cosmologicamente, fazendo-se = Pawu pagiwoguwo (tornarmos corpo, tornar o corpo, o corpo que ainda não era). (ADUGOEUNAU, 2015, p. 109).

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 243-263, maio/ago. 2019 247 Félix Rondon ADUGOENAU, Beleni Saléte GRANDO, Neide da Silva CAMPOS, Sueli de Fátima Xavier RIBEIRO

Assim, podemos compreender que cada sociedade imprime no corpo as formas de ser, sentir e agir que são consideradas exitosas e referências de suas identidades coletivas produzidas pela cultura historicamente. Nesta perspectiva, a educação exerce a função de circunscrever no corpo as marcas de uma dada cultura, pois não sendo o gesto e as formas de expressão humana natural, o corpo é fabricado por pedagogias que nos educam, conforme cada contexto sociocultural (RODRIGUES, 1980), que muda com o tempo e no espaço no qual a sociedade se estabelece. Assim, as danças, como expressão desta educação, também assume sentidos e significados que expressam a sociedade em cada contexto, inclusive nos contextos interétnicos e interculturais. Para os povos indígenas a dança se constitui assim, de múltiplas significações, ora sagrada, ora profana, mas uma manifestação coletiva que revela quem são os sujeitos que dela participam. Nesta perspectiva, o dançar se configura como um elemento importante de educação do corpo indígena. A dança como prática social complexa deve ser observada como expressão de cultura em todas as suas dimensões que são sempre complexas, como acentua Mauss (1993, p. 115): No sentido e significado [...] os momentos que acontecem, a composição de seus elementos, [as] técnica do corpo, psicofísico, as relações com a acrobacia, analisar cada dança, os processos de inventários, sentimentos, as representações, história da dança, a maneira de ensinar para o autor demarca simbologia ou não, espetáculos, o drama, o esgotamento dos dançarinos, o esforço, o protagonista, o coro, os espectadores animados pelo ritmo delírio e lutas. A educação é um elemento forte de introjeção de saberes e fazeres de cada grupo social, e podemos afirmar que a dança do “Jure”, possui essas característi- cas de incorporar também nos membros de cada grupo clânico, as maneiras de ser, sentir e agir que são maneiras de ser próprias do Povo Bororo, mas também diferentes conforme a representação e o lugar da pessoa no dançar. As práticas corporais das sociedades tradicionais colaboram para que valores, costumes, normas sociais e comportamentos desejados sejam assimilados por meio dos corpos dos indivíduos, tendo como base suas tradições. No plano simbólico, constituem-se em vivências lúdicas, expressões e lingua- gens com sentidos e significados que emergem dos contextos nos quais são realizadas (ALMEIDA; ALMEIDA; GRANDO, 2010, p. 63).

248 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 243-263, maio/ago. 2019 “Jure” : a educação do corpo e a expressão da identidade bororo na dança

Ao analisarmos uma dança, compreendemos que esta é uma produção cultural histórica materializada nos corpos dançantes que no expressarem-se produzem referenciais de identificação e diferenciação; ao dançar lançam-se códigos e codificações, portanto, é preciso ler a dança, o que se dança, como se dança, com quem se dança, por que se dança, bem como, quem canta, quais instrumentos e ornamentos são utilizados. As canções indígenas traduzem a alma, os acalentos, as reivindicações e a vida da aldeia, por isso, como afirma Mauss (1993) para conhecer uma dança, há que se ter atenção aos diferentes elementos que a constitui: [...] os ritmos, as melodias, as variações, os instrumentos, o movimento na mão de uma sociedade pode ter um outro sentido que precisa ser observado. Os coros, a teoria da música, sons, os intervalos, as diferenças musicais, a demarcação, os intervalos, cada gesto, do mínimo esforço físico. O canto, a marcha, canto de trabalho, as variações individuais, as coletivas, drama musical, ação de uma multidão todos esses aspectos têm ponto a ser estu- dado. (MAUSS, 1993, p. 117). Assim, buscamos neste texto, trazer as tessituras que nos auxiliam a com- preender o “Jure” como uma dança específica, mas para, além disso, uma mani- festação das identidades coletivas que numa dança ou brincadeira o Povo Bororo expressa sua forma de ver e ser no mundo.

2 A DANÇA “JURE”: UMA PRÁTICA CORPORAL BORORO Para dançar o “Jure” há toda uma rede de relações entre os Boe que passam a constituir o tempo e o espaço do dançar. Conforme o contexto e as pessoas que participarão, ou os sentidos e significados de sua realização, as pessoas respon- sáveis para que o “Jure” aconteça, iniciam um processo complexo que ritualizará o tempo-espaços dos corpos que dançarão. Essa articulação ritualística evidencia a complexidade que a dança cir- cunscreve, por isso é preciso educar o olhar, porque o que se dança, é muito mais do que é anunciado, é necessário situar em seu contexto e território simbólico, para que possamos interpretar, para além de gestos e técnicas corporais (MAUSS, 1974), as produções sócio históricas intercambiadas nesses encontros.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 243-263, maio/ago. 2019 249 Félix Rondon ADUGOENAU, Beleni Saléte GRANDO, Neide da Silva CAMPOS, Sueli de Fátima Xavier RIBEIRO

Conhecendo a dança no próprio corpo, neste texto buscamos compreendê-la interculturalmente com Félix Adugoenau, que tem no corpo desde a infância os sentidos e significados a partir do seu lugar clânico e de nascimento em Meruri, com Beleni Grando (2004) que no corpo também em Meruri aprendeu em 2001 com a orientação do Ancião, junto com as crianças, buscamos expressar uma melhor compreensão de como se dão as educações nos corpos pelas práticas corporais-sociais bororo: [...] Segundo as narrativas, para o “Jure” reúnem-se todos no baito para se pintar e os homens, com suas saias de buriti – toro –, são acompanhados nas danças por suas irmãs mais novas e mais velhas, ou por sua mulher quando não possuem parentes. Essa “regra” da dança explicita outra regra social, quem dança representa e assume o seu lugar na sociedade, o jovem será sempre acompanhado das irmãs, mulheres de seu clã. Ao dançar, o rapaz assume seu lugar na sociedade. (GRANDO, 2005, p. 167). Em outro contexto, o “Jure” é narrado por uma jovem Bororo, também de Meruri, que participa do mesmo durante os Jogos dos Povos Indígenas. Segundo relata abaixo Érica Uturago, geralmente os Bororo dançam o “Jure” (dança do su- curi) para alguma apresentação ou evento fora do contexto ritualizado do Funeral. Segundo Érica, essa é uma dança com a qual os Boe iniciam a apresentação, por seu sentido comemorativo. “Jure” é dançada por “homens, mulheres e crianças sem restrições”. [...] Temos uma dança que se chama tchuri [“Jure”], esta é uma dança de alegria... Quando temos visitas ou então quando estamos mesmo um pouco tristes na comunidade, na aldeia, a gente se reúne e escolhe uma pessoa pra poder puxar a cantoria, o desfile e pronto, vem todo mundo, rapazes, moças, crianças, enfim, vira uma alegria! Muito bom! (PINTO; GRANDO, 2011, p. 72). Conforme nos relatam os Bororo de Meruri, essa é a dança que possui uma outra característica que não está presente nas demais, pois além de compor parte de um ritual sagrado, ela é a única que pode ser expressada fora dos ritos ao qual está instituída, sem perder o seu sentido. Almeida (2013), em sua pesquisa em Meruri sobre as práticas corporais dos Bororo que estavam presentes nos Jogos dos Povos Indígenas, confirma que ela: [...] é realizada em diferentes momentos festivos, tal como na celebração ao “Dia do Índio”, em rituais cristãos e rituais tradicionais na aldeia e, também

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em eventos interétnicos fora dela como uma estratégia de mediação política entre os Bororo de Meruri e destes com não-índios em outros contextos. (ALMEIDA, 2013, p. 194) Grando (2004) completa sua observação sobre a dança, afirmando que esta: “[...] faz parte de uma cerimônia ritualista da sociedade Bororo, pode ser dançado por homens, mulheres e crianças e no momento dessa manifestação corporal, os representantes marcam nos corpos suas identidades, expressa nas pinturas e ornamentos clânicos” (GRANDO, 2004, p. 260). Nessa perspectiva refletimos a respeito do “Jure” ou Ipare Ereru (Roda) como arte e ritual dotados de várias associações ou significados e alguns apontamentos em relação à natureza, classificação e dimensões sensíveis do pensamento sobre essa dança que poderá também estabelecer relações com o que é sagrado, sendo expressa em momento não ritualístico (profano).

3 A DIMENSÃO SAGRADA DO “JURE” Como nos desvela, Adugoenau (2015)4, o corpo sócio cósmico da aldeia do povo Bororo possui dois “Boe Aroe Ero” ou “Bororo” no pátio da aldeia, dentro do círculo das casas, todo o ritual que não faz parte do funeral deste povo pode ser executado no “Boe Aroe Ero” que fica ao lado leste, tomando o “baito” como divisor. O outro “Boe Aroe Ero” fica ao lado oeste, onde acontecem os rituais fu- nerários. Qualquer e todo ritual bororo não pode ser celebrado durante o tríduo funerário bororo. Apenas os rituais próprios do funeral específicos para estes três dias. O “Jure” (pronuncia-se djúre) é uma dança privativa do clã “Baado Jeba Cebegiwu” que significa “Construtor da Aldeia de Baixo” e proclamado por um

4 Neste texto as palavras na língua bororo, todas constituídas a partir da compreensão de Félix Rondon Adugoenau serão inseridas entre aspas assim como as suas traduções para a língua portuguesa, uma vez que a tradução é sempre uma aproximação de sentidos que não podem ser generalizados ou descontextualizados. Especialmente porque este subtítulo é apresentado por Félix em diálogo com o texto de sua dissertação de mestrado (ADUGOENAU, 2015) onde pode ser aprofundada a compreensão dos mesmos. Consideramos neste texto que como auto- ridade do Povo Bororo, traz consigo a compreensão cosmológica inscrita no corpo Boe que é e a partir disso nos possibilitará a ampliação dos sentidos e significados de forma mais complexa a fim de melhor reconhecermos os processos de educação do corpo pela dança.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 243-263, maio/ago. 2019 251 Félix Rondon ADUGOENAU, Beleni Saléte GRANDO, Neide da Silva CAMPOS, Sueli de Fátima Xavier RIBEIRO indivíduo deste mesmo clã. Alguns colocam o significado de “Baado Jeba” como “Os Chefes” o que é equivocado. A dança do “Jure” é dançada no sentido anti-horário por diversos fatores uma delas, devido todos os rituais que acontecem no “Boe Aroe Erro” saírem de dentro do “Baito”, que é a casa que fica no centro da aldeia bororo, da porta do lado das “mulheres” da metade exogâmica “Ecerae”. Porque “Os pais” cedem a seus “filhos” o que há de mais bonito, dada a relação das metades exogâmicas de filiação. A metade exogâmica “Tugo Arege” simbolicamente é a mãe e o pai da metade exogâmica “Ecerae”. Mesmo que a dança não aconteça em um “Boe Aroe Ero” de uma aldeia Boe, nunca se perde o sentido anti-horário. Também quando se elenca os clãs começa-se sempre pela metade exogâmica “Tugo Arege” que significa “Os mestres das flechas” e no sentido sóciocósmico, “Os fortes”, “Os genitores” no sentido amplo da palavra já que o termo “tugo arege” não tem gênero. O nome oficial deste ritual é “Jure” que inicia com cantos ao anoitecer no baito (baito é a casa que fica no centro da aldeia Boe), puxado por um Boe Eimejera (Chefe Boe) denominado de “Bapo rogu Epa” (“Apropriado ao Coração Pequeno” que é o conjunto dos maracás pequenos). Estes cantos são cantados por “Ipare” (Mestres dos Ofícios), simbolicamente “Os rapazes”, “Tugo Boe Eigare” (Mestres da Flecha e do Arco) “Boe Eiga Are” (Mestres do Arco), “Pao Pega Mage” (Pais de Todos) acompanhados pelo canto das “mulheres” que cantam o mesmo canto puxado pelo “Bapo rogu Epa” estas são acompanhadas por suas filhas e parentas clânicas. As “mulheres” tomam o seu devido lugar no interior do “baito”. Quem é da metade exogãmica “Tugo Arege” fica no lado sul. E quem é da metade exogâmi- ca “Ecerae”, ficam no lugar norte. Cantam sentadas de frente para o lado oeste, sempre olhando de frente para a morte, enquanto que os “homens” cantam em pé ao redor do “Bapo rogu Epa” no centro do “baito”. Colocamos os verbetes “mulheres” e “homens” entre aspas porque a tradu- ção de “aredu” não é mulher e “imedu” não é homem, conforme se pode melhor compreender com a pesquisa publicada por Adugoenau (2015). Tanto os “Homens” como as “mulheres” “competem” entre si em quem canta mais bonito, mais forte e com mais emoção.

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A dança do “Jure” pode acontecer sem os cantos no interior do “baito” na noite que precede o dia da dança. “Ipare Ereru” é um codinome que não é utilizado oficialmente. Por isso não é utilizado na proclamação oficial deste ritual que é feita por um indivíduo do clã “Baadojeba” (Construtor da Aldeia) em sua arenga na “cabeceira dos mortos” ao cair da noite no lugar ao lado do “baito” que se chama “Boe Aroe Ero ou Bororo”. O “Jure” é uma dança coletiva onde participam as metades exogâmicas “Tugo Arege” (Mestres das Flechas) e “Ecerae” (Os Fáceis de Morrer). Neste ritual acontecem ainda vários momentos que abrangem todas as situações preliminares e comuns em preparação para os rituais funerários coletivos e outros rituais que não são funerários, sem restrição de idade, os rituais individuais são ensinados por uma especialista ou por um especialista antes de se iniciar, no funeral. A dança descreve os movimentos feitos por uma anaconda caminhando na terra, para frente, para trás, para a esquerda e para a direita. “Jure” é o filho de dragão (Butoriko), nasceu sem pernas para se locomover que ao caminhar na terra precisa jogar o corpo para a direita e para a esquerda, mas que em compensação ganhou fortes músculos e uma força bruta enorme e corpo longo e arredondado. Segundo os mitos Boe, “Jure” nasceu da mulher bororo chamada Aturuarodo (pronuncia-se Aturuaródo com sílaba tônica na penúltima sílaba) que foi fecunda- da por gotejamento de sangue do dragão quando esta dançava com um pedaço do mesmo em um ritual. “Butoriku” foi morto e esquartejado pelo jovem “Pari Jura” (Costela de Ema) e entregue a cada homem que carregava um “aroe powa- ri” (clarinete mortuário) que representava cada morto pelo dragão. E “Jure” foi morto pelos bororo. Esta dança não está relacionada com a atividade da caça e da pesca. Não é precedida de máscara. Nesta dança apenas o “Bapo rogu Epa” canta e toca dois maracás, puxando a fila. A letra do canto retrata a beleza e a simplicidade das aves, dos animais e a beleza dos adornos utilizados pelos bororo no momento da dança. Atualmente já não se utiliza apenas o “Jure” nas apresentações internas e externas. Outros cantos e outras danças são também utilizados, principalmente com a chegada dos jogos indígenas, apesar do medo de algumas pessoas adultas.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 243-263, maio/ago. 2019 253 Félix Rondon ADUGOENAU, Beleni Saléte GRANDO, Neide da Silva CAMPOS, Sueli de Fátima Xavier RIBEIRO

Os jovens bororo ao começar a entender as letras de alguns cantos Boe, começaram a utilizá-los, mas sempre com o aval de algum ancião e anciã, e, com acompanhamento de deles. Principalmente pela motivação das letras das mesmas. Há cantos que animam a quem está cantando a partir para o perigo, para a morte ou para algum empreendimento arrojado com alto grau de perigo. Por isso alguns cantos são evitados, porque uma vez cantados, devem ir para a guer- ra, para a morte. “Cibae Etawadu” (Somente as Araras-pirangas) é um canto com letras muito fortes e com dança que lembram as guerras, os seus louvores, suas honras, suas glórias e mortes. O seu significado também é muito forte. Antes, o bororo dançava e cantava com o escalpo (pele da cabeça humana) daqueles que faziam guerras contra eles, os “brancos”, atualmente apenas com a pele de felino. Perto de Cuiabá, os bororo contam que houve uma aldeia muito grande chamada de “Tabae Bororo” em honra aos mortos negros. Nesta aldeia foi trazido um número tão grande de escalpos de pessoas negras, por isso este nome.

4 “JURE” UM MOMENTO COLETIVO PARA BRINCAR Entre os diferentes sentidos e significados, para o Povo Bororo, o “Jure” é ainda uma brincadeira que consiste em desenhar no chão um rastro de anacon- da, não muito largo para o grau de dificuldade ser maior. O brincar é uma forma de interação entre todos da comunidade, pode-se afirmar que é um encontro intercultural entre as diferenças clãnicas, geracional ou de gênero, ou mesmo de papeis sociais mais hierarquizados nos contextos formais. Observa-se que o brincar pode acontecer em espaços interétnicos também, sendo a ludicidade o princípio de interação festiva dos encontros com o Outro, pelo prazer de estar e ser nele presente. No “Jure” – como brincadeira, as crianças pulam acompanhando o rastro imaginário da grande serpente até o seu final. Quando o rastro vira à esquerda, pula-se somente com a perna esquerda. O rastro ao virar para a direita pula-se apenas com a perna direita. Nesta brincadeira utiliza-se apenas uma perna. Não se pode pisar fora do rastro. O cumprimento do rastro varia dependendo do tamanho das crianças e de quem se propõe a brincar. Sendo pessoas maiores, o rastro pode alcançar o

254 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 243-263, maio/ago. 2019 “Jure” : a educação do corpo e a expressão da identidade bororo na dança cumprimento de 15 metros. É uma brincadeira de habilidade, força, resistência e coordenação motora. O desafio do brincar é percorrer todo o percurso sem pisar fora do rastro. Há outra brincadeira que também se chama “Jure”. Esta consiste em várias pessoas segurarem uma nas mãos da outra formando uma fila. Quando todas estão prontas, segurando firmemente umas nas mãos das outras elas começam a caminhar lentamente e aos poucos aumentam a velocidade da caminhada até todos estarem correndo. A primeira curva feita enquanto correm segurando uma nas mãos da outra pessoa é bem aberta. Depois as curvas são feitas de forma mais acentuadas. As pessoas que ficam na cauda do “Jure” vão caindo uma a uma, dado a força que a ponta da cabeça impõe à ponta da cauda. O objetivo é permanecer mais tempo no corpo do “Jure” e pode ser brincada por crianças e adultos. Outros significados da palavra. “Jure” significa arco íris, meteoro luminoso e longo. O “Jure” é um espírito.

5 FABRICAÇÃO CORPÓREA BORORO NA DANÇA E RITUAL DO “JURE” A “mulher” Boe é a primeira pessoa que educa, começando em seu próprio ventre antes de conhecer a parte de si que é a sua filha ou seu filho. Por isso ela não se furta da participação em um ritual, seja ela funerária ou não, de dança ou não. E é nos rituais que a “fabricação corpórea” (GRANDO, 2004) de “aredu” (simbolicamente, mulher) e imedu (simbolicamente, homem) (ADUGOENAU, 2015) fica evidente para o bororo. E na dança de “Jure” este processo acontece para todas as idades das crianças. E o cultivo corpóreo para todos os membros da comunidade. Desde pequena, a criança Boe, mesmo que não participe da dança, o seu pequeno corpo é trabalhado com os saberes e fazeres deste povo. Do colo de sua “mãe” ela tem uma visão privilegiada de onde observa todas as atividades dela e também manipula, algumas vezes, alguns dos objetos utilizados por ela (sua mãe). A preparação do material de pintura que será utilizada na dança é feita bem antes com procura na mata, no cerrado ou na mata transição as plantas que serão utilizadas na queima para se ter o carvão. Não é qualquer planta que é utilizada, algumas são tóxicas variando em grau de toxidade, podendo tirar a vida de uma

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 243-263, maio/ago. 2019 255 Félix Rondon ADUGOENAU, Beleni Saléte GRANDO, Neide da Silva CAMPOS, Sueli de Fátima Xavier RIBEIRO pessoa. Por isso também, o povo Bororo não aderiu à pintura de jenipapo, sendo que a planta do jenipapo tem outro significado e uma utilidade sagrada para o bororo. Neste momento há ensinamentos fora da aldeia. Logo a seguir vem o momento da queima da planta que pode ser a raiz ou o caule e logo a mistura do carvão com a resina de árvore. Na maioria das pin- turas são utilizadas plantas para defesa do organismo contra doenças e contra malefícios de espíritos maus. Em relação às pinturas faciais, o que se vê nos rostos das pessoas não somen- te pinturas, mas sim códigos corpóreos carregados de simbolismo relacionados aos totens: animais, plantas e espíritos. Cada pintura tem um significado repleto de simbolismo. O mesmo acontece com os enfeites e adornos. Por isso um Boe não utiliza qualquer pintura e não coloca qualquer enfeite e adorno em seu corpo para rituais deste povo. No dia da dança acontecem os preparativos das pinturas somáticas e faciais quando acontece uma interação de fabricação e cultivo simultaneamente dos corpos Boe conforme as orientações clânicas e subclânicas. A “mulher” tem um momento especial nesse dia para fabricar os corpos de suas filhas e filhos e suas parentas e parentes clânicos. É o momento de preparar os corpos para estarem fazendo um coletivo na representação do movimento do “Jure” na terra. As pinturas faciais são feitas com grande esmero para identificar o corpo e seu pertencimento subclânico/clânico e principalmente a casa materna e a identificação da genitora. Neste momento acontece também a identificação e o reconhecimento dos totens do clã (espíritos, animais, aves, peixes e outros animais). Cada indivíduo identifica e reconhece os seus totens e cultiva estes saberes. Também os adornos identificam este pertencimento. Com a dança “Jure”, fabrica-se corpos Boe com os saberes e fazeres da organização social, a posição deste corpo no Povo Boe, a relação corpórea com: os enfeites e adornos, os totens, as pinturas somáticas e faciais, as plantas para confecção das pinturas faciais, a leitura das pinturas faciais e somáticas, a orga- nização na dança “Jure” e outras aprendizagens com maior ou menor grau de complexidade, conforme o grupo social etário a que pertence o corpo fabricando.

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Esta dança é um conjunto de corpos materiais formando um corpo ima- terial do “Jure” mítico materializando-o no “Boe Aroe Ero”. É um ritual onde os corpos trazem coletivamente a memória histórica e mítica de um fato e revivem um momento de seus antepassados, corpos que sofreram perseguição e morte por “Butoriko”, mesmo depois de morto e depois trazendo parte do seu corpo, seu filho, o “Jure”. No momento da dança a “mulher” leva as crianças meninas de sua casa clânica, de seu subclã e de seu clã para aprender fazendo junto com ela, os meninos podem dançar na frente do seu pai que o orientará durante a dança. As técnicas são aprendidas no momento em que acontece a dança e também pode acontecer fora dela. É ela quem orienta e ensina quem são os seus parentes consanguíneos, subclânicos, clânicos, e ainda quem são das metades exogâmicas na dança. É ela quem educa o corpo biológico para um corpo social, dada a situação matrilinear da organização social bororo. É nesta dança que a criança lida pela primeira vez e publicamente com ou- tras crianças enquanto indivíduo de seu próprio subclã, clã, metade exogâmica e povo Boe, utilizando pinturas e adornos próprios, assumindo o seu lugar social. A “mulher” bororo dança de forma graciosa e elegante, sem solavancos e sem barulhos, com curtos passos, com o pé esquerdo e o pé direito se alternan- do com um passo a frente. Um dos materiais que ela utiliza durante a dança é o “baku”. Ela acompanha um parente subclânico ou clânico “homem” na fila da dança. Muitas vezes ela dança segurando a mão de uma menina pequena ou de uma menina que ainda não teve a sua primeira menstruação para que não seja esbarrada por um corpo masculino, sendo protegida todo tempo da dança. Ela a protege de esbarramento e encostamento de corpos masculinos enquanto que ela pode encostar e esbarrar em corpos femininos seja ele o de sua tia materna ou de outra “mulher” que não seja sua parenta. “Baku” é um tipo de trançado côncavo que é utilizado nos seios não por conta de uma reinvenção dos bororo atuais como se fossem a peça de vestimenta que cobre os seios, mas segue uma orientação milenar de nascimento, manu- tenção da vida e morte da pessoa Boe. É nos seios que a pessoa ainda criança é alimentada. O “baku” recebe todo material para a nominação da criança Boe, durante a vida, é neste mesmo objeto que a comida é ofertada reciprocamente,

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 243-263, maio/ago. 2019 257 Félix Rondon ADUGOENAU, Beleni Saléte GRANDO, Neide da Silva CAMPOS, Sueli de Fátima Xavier RIBEIRO posteriormente recebe o crânio da pessoa falecida. O “baku” significa ainda, simbolicamente, o bem-estar. Na fila da dança “Jure” que se forma na beira do “Bororo” o “homem” fica na frente da dança. Mas se a “mulher” quiser, ela pode muito bem assumir a dianteira na dança. Nada impede que ela vá para a ponta da fila na dianteira e seja a cabeça de “Jure”, dirigindo-o também para um círculo bélico que os guerreiros costumavam fazer em suas guerras. O círculo feito pelo “Jure” no “Bororo” enquanto se dança é uma alusão às guerras travadas pelos Bororo. Eles veem no corpo do “Jure” a sua estratégia de cerco bélico onde nada poderá romper; tal qual ocorre com os círculos feitos por este réptil em sua presa ao enrolar o seu próprio corpo no corpo de sua presa. Dançar o “Jure” requer um preparo físico para suportar os esforços feitos pelas pernas, principalmente antes da dança, quando o “bapo rogu epa” começa a chamar os guerreiros. Há um rito anterior à dança, que é o chamamento dos guerreiros. O “bapo rogu epa” se posta na borda do “Boe Aroe Ero”, voltado para o oeste e começa a tocar os maracás e cantar. Ao ouvir os maracás e o canto, os guerreiros aparecem de todos os lados no “Bororo” com seus braços semiabertos, cabeça erguida ao máximo, com as pernas semiabertas como se fossem dois arcos, eles batem os pés no chão e rapidamente. Fazem vários círculos em torno do “bapo rogu epa”, quase o piso- teando para fechá-lo até ninguém mais vê-lo. Fazem isso enquanto acontece o canto e ao finalizar todos gritam forte e ao mesmo tempo. Com este grito forte termina este momento. Na verdade, os guerreiros são chamados pelos maracás que são considera- dos sagrados, ao ser movimentado com a mão direita num movimento anti-horário circular e horizontalmente enquanto a mão esquerda com o outro “bapo rogu” (maracá pequeno) marca o ritmo pelo “bapo rogu epa” que é um “boe eimejera” (chefe), provocando um barulho de chiado. Enquanto os maracás produzem um chiado, o “bapo rogu epa” canta. O chiado do maracá na mão direita representa um perigo eminente, a pressa, o cuidado e ainda algo solene e grande que está para acontecer.

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6 CONSIDERAÇÕES A dança constitui-se em uma prática corporal que por se socialmente pro- duzida, constitui-se de sentidos e significados produzidos historicamente em cada grupo ou sociedade que a produz. A dança é uma expressão de identidade e ao mesmo tempo, uma prática social na qual as diferentes identidades podem se expressar e serem reconhecidas ao mesmo tempo em que nela cada pessoa se reconhece como coletivo e como única. Neste texto, pudemos aprofundar a compreensão sobre o Povo Bororo a partir de uma das suas práticas corporais mais expressivas e conhecidas fora dos contextos ritualísticos. Com o “Jure”, aprendemos que a dança como uma prática social pode adquirir diferentes sentidos e significados, tendo inclusive formas diferentes de ser identificada e nominada, conforme os contextos socioculturais e os tempos e espaços nos quais os Bororo a ela se remetem para expressar suas identidades individuais e coletivas. Os Bororo – os Boe (os bororo que seguem as tradições clãnicas e se pro- duzem corporalmente a partir da sociedade cosmológica) historicamente se colocaram e se colocam em situações diversas nas quais buscam expressar cole- tivamente formas de se identificarem e serem reconhecidos entre si e por outros e para tal, recorrem ao “Jure” tanto como dança sagrada ou não, sendo ainda possível a ela recorrer como brincadeira que os fortalece em dimensões lúdicas e de aprendizagens que envolvem crianças, jovens, adultos e velhos. Com o “Jure”, evoca-se nas tradições culturais o passado, o vivido, as me- mórias do que foi e do que ainda é, assim, ao mesmo tempo em que se produz um presente projeta-se também para o futuro, portanto, a exemplo do “Jure” que é uma prática social específica do Povo Bororo, podemos compreender que nas sociedades indígenas, uma dança indica sempre temporalidades históricas, que no emaranhado de teias de significados que fortalecem culturas se intercruzam e imprimem em cada sujeito ou sociedade os recursos simbólicos necessários à compreensão da realidade coletiva e individual. O “Jure” é uma dança importante e significativa para a sociedade Bororo e por isso mesmo, se constitui num elemento da cultura com funções sociais distintas e que pode estar presente ao mesmo tempo em rituais sagrados, em

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 243-263, maio/ago. 2019 259 Félix Rondon ADUGOENAU, Beleni Saléte GRANDO, Neide da Silva CAMPOS, Sueli de Fátima Xavier RIBEIRO

encontros festivos e ainda em momentos nos quais a alegria é uma necessidade do encontrar-se a si no e com o Outro, mais que isso, a dança nos corpos dançantes legitimam suas presenças corpóreas que conectam tempos e espaços imemorá- veis, cosmológicos e com os quais os corpos se educam para o bem viver Boe.

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Sobre os autores: Félix Rondon Adugoenau – Bororo da “Metade Exogâmica Ecerae e Clã Baadojeba, Mestre em Educação pela UFMT e pesquisador vinculado ao Coeduc/UFMT e atua como Pesquisador Indígena do Projeto Ação Saberes Indígenas na Escola - Rede UFMT-MEC. E-mail: [email protected] Beleni Saléte Grando – Pós-Doutora em Antropologia Social pela UFSC. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), na linha de pesquisa “Movimentos Sociais, Política e Educação Popular”, e coordenadora do Grupo de Pesquisa Corpo, Educação e Cultura da UFMT. E-mail: [email protected] Neide da Silva Campos – Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso (PPGE/UFMT). Pesquisadora do Grupo Corpo, Educação e Cultura (Coeduc/UFMT) e professora da Rede Estadual de Ensino de Mato Grosso. E-mail: [email protected] Sueli de Fátima Xavier Ribeiro – Mestre em Educação pelo Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso (PPGE/UFMT). Pesquisadora do Grupo Corpo, Educação e Cultura (Coeduc/UFMT), e professora da Rede Municipal de Ensino de Cuiabá-MT. E-mail: [email protected]

Recebido em 15 de agosto de 2018 Aprovado para publicação em 20 de fevereiro de 2019

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Assimetrias entrelaçadas: sobre o “complexo hierárquico” Eyiguayegui-Guaná Intertwined asymmetries: on the “hierarchical complex” Eyiguayegui-Guaná

Gabriela de Carvalho Freire1

DOI: http://dx.doi.org/10.20435/tellus.v19i39.573

Resumo: O artigo pretende repensar aquilo que, desde o século XVI, vem sendo chamado “relações hierárquicas” no Gran Chaco. Por meio da análise de relatos de missionários, viajantes e exploradores, além de produções antropológicas, procuro demonstrar as contradições presentes na utilização de termos como “servidão” e “hierarquia”, encontradas em grande parte da literatura sobre os povos Eyiguayegui e Guaná. Para isso, discuto a origem dos etnônimos utilizados na literatura e sua interminável mutabilidade, as maneiras encontradas pelas fontes e antropólogos para delimitar os “grupos” chaquenhos, as relações entabuladas por essas populações, o conceito de simbiose e a noção mesma de “servidão”, muito atrelada às descrições desse “complexo hierárquico”. O argumento central é o de que, para que possamos compreender essas relações, os dados encontrados nas fontes históricas devem ser lidos em paralelo com as produções atuais da etnologia americanista, além, é claro, de passar pela crítica kadiwéu, terena e kinikinau, atuais descendentes dos Eyiguayegui e Guaná. Palavras-chave: Eyiguayegui-Kadiwéu; Guaná-Terena-Kinikinau; Gran Chaco; formas políticas ameríndias; hierarquia. Abstract: The article intends to rethink what, since the sixteenth century, has been called “hierarchical relations” in the Gran Chaco. Through the analysis of missionaries, travelers and explorers’ reports, as well as anthropological productions, I try to demonstrate the contradictions in the use of terms such as “servitude” and “hierarchy” found in much of the literature on the Eyiguayegui and Guaná peoples. To that end, I discuss the origin of the ethnonyms used in the literature and their endless mutability, the ways found by sources and anthropologists to delineate the Chacoan “groups”, the relationships embraced by these populations, the concept of symbiosis and the very notion of “servitude”, very much linked to the descriptions of this “hierarchical complex”. The central argument is that, in order to understand

1 Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, São Paulo, Brasil.

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these relationships, the data found in historical sources must be read in parallel with the current productions of Americanist ethnology, and of course pass through the Kadiweu, Terena, and Kinikinau critical, current descendants of Eyiguayegui and Guaná people. Keywords: Eyiguayegui-Kadiwéu; Guaná-Terena-Kinikinau; Gran Chaco; amerindian political forms; hierarchy.

1 INTRODUÇÃO “Nobres”, “escravos” e “servos” são termos que, se não nos remetem dire- tamente a modos feudais de organização social, nos fazem ao menos pensar em sistemas político-econômicos historicamente ocidentais. Porém, por mais estra- nho que pareça, eles são também utilizados, desde o século XVI, para se referir às relações entabuladas por algumas populações indígenas habitantes da região hoje denominada Gran Chaco2 . A “estratificação social” chaquenha – expressão muito encontrada nas fontes históricas referentes àquela área – é reconhecida na literatura americanista: o próprio Pierre Clastres (2003, p. 46) afirma que os povos Guaicuru e Guaná são exceções ao seu modelo do “contra o Estado”, apre- sentando “uma clara estratificação em castas”. Segundo Combès, Villar e Lowrey (2009), teriam existido dois grandes “complexos hierárquicos” na região: um formado pelas populações Chané e Chiriguano, que habitam atualmente o Chaco boliviano, e outro composto pelos historicamente conhecidos Mbayá-Guaicurú (aqui denominados Eyiguayegui3) e Guaná4, habitantes do Chaco paraguaio e brasileiro. Este artigo se debruça sobre o segundo grupo e pretende, por meio da análise de fontes históricas e produções antropológicas, discutir a utilização de termos tais como os apresentados, bem como a caracterização das relações chaquenhas como “hierárquicas” e “servis”.

2 O Chaco situa-se entre os atuais territórios do Brasil, Paraguai, Argentina e Bolívia, e tem como limites naturais os rios Paraná e Paraguai a leste, as cordilheiras andinas a oeste, o planalto mato-grossense a norte e a bacia do rio Salado a sul (TOLA, 2013, p. 12). Para mais informações sobre a região e as populações que a habitam, ver Tola (2013). 3 Segundo Sánchez-Labrador ([1770-1776], v. II, p. 5), Eyiguayegui é a autodenominação daqueles índios que eram então conhecidos como Mbayá ou Guaicurú. Atualmente, os Kadiwéu, habi- tantes da Reserva Indígena Kadiwéu no Mato Grosso do Sul, são aqueles que se definem como seus descendentes. 4 Os atuais descendentes dos Guaná são os povos Terena e Kinikinau.

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Para isso, parto do pressuposto de que os modos de se relacionar eyiguayegui e guaná eram marcados por relações desconhecidas pelos observadores e colocavam problemas às suas classificações. Na contramão do que pensavam os autores dos relatos históricos, proponho questionar a suposição de que essas relações são bem entendidas por meio de conceitos essencialmente ocidentais. Na maior parte das descrições históricas, afirma-se que os Eyiguayegui eram “estratificados” interna e externamente. Segundo os diários do missionário jesuíta José Sánchez-Labrador, dentro de suas tolderías5 eles se dividiam em três camadas endogâmicas: “capitães” (os “nobres”); “plebeus” (ou “gente comum”); e os “escravos” e “servos”. A primeira compunha-se de dois tipos de capitães: os niniotageleudi, capitães grandes, e os niniotagilionigi, capitães de segunda classe, que recebiam o título em situações especiais, como o nascimento no mesmo dia que um capitão grande. O título dos primeiros era hereditário, e o dos segundos, apenas vitalício. A segunda camada era formada pelos uneleiguá, os Eyiguayegui “comuns”, ditos “misturados” (SÁNCHEZ-LABRADOR, [1770-1776], v. I, p. 273)6. Havia, ainda, a camada daqueles que boa parte dos cronistas chama de “escravos”, os nibotagi. Índios, brancos ou negros, mas nunca pessoas nascidas de pai e mãe eyiguayegui, os estrangeiros capturados na guerra serviam aos “senhores” na lavoura, na construção de canoas e toldos, no abastecimento de água e lenha e, ainda, como bens de troca em negociações com outros grupos (SÁNCHEZ-LABRADOR, [1770-1776], v. I, p. 90). Além dos nibotagi, também faziam parte dessa terceira classe aqueles que a literatura colonial reconhece como “servos”, as populações servis ou tributárias chamadas pelos Eyiguayegui niyolola (SÁNCHEZ-LABRADOR, [1770-1776], v. I, p. 130), que tinham as mesmas ocupações que os nibotagi, além de serem encarregados de cuidar das roças de seus senhores. O primeiro elemento de diferenciação entre nibotagi e niyolola é o caráter da relação – individual ou coletivo – que esses tinham com seus “senhores”. Ao

5 Vocábulo castelhano que era correntemente utilizado pelos jesuítas e é usado até hoje na denominação do que, em outros contextos etnográficos, seria chamado de “aldeia” ou “grupo local”. 6 Considerando a data da primeira publicação das obras aqui analisadas de grande importância para o argumento, opto por informar, nas citações, apenas esta data, entre colchetes. A edição consultada e citada é informada nas Referências.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 263-292, maio/ago. 2019 265 Gabriela de Carvalho FREIRE contrário dos nibotagi¸ cuja relação com os capitães era individual – ou seja, entre um “capitão” e seu nibotagi –, a relação dos niyolola com os oquilidi – “senho- res” – é muitas vezes entendida como coletiva, ou seja, entre duas sociedades diferentes. O segundo fator de diferenciação entre “escravos” e “servos” estaria na diferença do grau de liberdade concedida aos niyolola. De acordo com as fon- tes, os grupos servis tinham uma margem de escolha muito maior que aqueles indivíduos raptados (ver SUSNIK, 1971; 1972; MÉTRAUX, 1946; BALDUS, 1975; SANTOS-GRANERO, 2009). Segundo Santo-Granero (2009, p. 81), ao contrário dos cativos, os servos não eram deslocados de suas terras, podendo manter suas famílias, laços de parentesco e liderança. O preço dessa autonomia concedida aos Guaná, segundo ele, seriam os “tributos” agrícolas pagos pelos “servos” a seus “senhores” nas visitas realizadas pelos últimos às aldeias guaná, descritas adiante. A premissa de que uma sociedade poderia subjugar a outra e a interpretação de que a diferença entre os nibotagi e os niyolola é o grau de liberdade a eles oferecido parecem se originar de concepções de poder ocidentais. É importante notar que na base dessa construção teórica da diferença entre “escravos” e “ser- vos” encontra-se a suposição de que “os Eyiguayegui”, em sua totalidade, teriam dominado “os Guaná”. Acompanho na sequência a elaboração dessa ideia de dois organismos diferentes relacionados por uma gradação hierárquica, investigando as trilhas percorridas pelos documentos e antropólogos na construção dessas fronteiras, a fim de demonstrar como esses caminhos estavam permeados por ideias essencialistas e mesmo evolucionistas. O esfacelamento dessa dicotomia, em conjunto com a problematização da ideia mesma de “nação” ou “sociedade” – fundamento da noção de servidão – faz emergir fatos que contradizem o con- ceito de hierarquia suposto em tais descrições e análises, improdutivo, portanto, quando se trata de pensar o Chaco.

2 DANÇA DOS ETNÔNIMOS: MBAYÁ, GUAICURU, MBAYÁ-GUAICURU, GUARANI E GUANÁ As primeiras menções aos índios denominados Mbayá, na primeira metade do século XVI, são as do explorador português Aleixo García e do comandante espanhol Juan de Ayolas. À época, ambos informaram que aqueles índios viviam às margens ocidentais do Rio Paraguai, não muito distantes do atual município de

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Corumbá. Conforme suas descrições, para chegar até aqueles índios era necessário atravessar o rio Paraguai e, já nas margens ocidentais, caminhar na direção oeste. Em 1547, Ulrich Schmidel, soldado alemão também enviado ao Forte Assunção pela Coroa Espanhola, descreveu os “Mbayá” em uma localização parecida com a informada por García e por Ayolas. Alguns dos grupos mbayá teriam se instalado também mais a noroeste, próxi- mos à primeira cidade de Santa Cruz, de acordo com descrições de certo “povo de mayaes” datadas de 1561 (RICHARD; COMBÈS 2015, p. 234). E essa não é a única fonte a apontar sua localização longe do local em que eles foram “originalmente” encontrados: os documentos estão repletos de descrições que os posicionam em locais diversos. Além de sua localização, as maneiras de denominá-los também são diversas: vimos que García, Ayolas e Schmidel chamam essas populações “Mbayá”, adotando o nome pelo qual eram conhecidos pelos Guarani, que os guiavam na maior parte das vezes. Em outras ocasiões, porém, populações que parecem ser as mesmas são denominadas “Guaicurú” (em língua guarani, “gente malvada e suja” [HERBERTS, 2011, p. 17] ou “sarnentos” [RICHARD, 2011, p. 214]). Essa variabilidade dos etnônimos se explica por seu caráter contextual: como os nomes têm origem em relações (como a Guarani-Mbayá), tendem a mudar de descrição para descrição, transformando-se conforme o ponto de vista de quem os vê. Os “Guaicurú” só eram um grupo homogêneo na visão “dos Guarani”, que uniam os “sarnentos” em uma só categoria. Incapazes de descrever o Chaco sem recorrer a identidades substanciais – inexistentes entre os chaquenhos e outras populações americanas –, as fontes acabam criando a impressão de uma “des- continuidade etnonímica”: em pouco tempo, nomes distintos são utilizados para descrever a mesma área, ou a mesma região é referida por meio de etnônimos totalmente diferentes, que não levam em consideração nem os diferentes níveis de relações ali implicados, muito menos as formas nativas de conceitualização da sociabilidade (ver VILLAR; CÓRDOBA, 2010). Note-se que todos esses relatos mostram a localização dos povos Guarani nessa época às margens ocidentais e orientais chaquenhas, justamente onde os espanhóis estabeleciam seus assentamentos até fins do século XVI. Com vistas a “pacificar” os povos indígenas do interior chaquenho, os espanhóis contaram por muito tempo com o sentimento – anterior à invasão europeia – de inimizade

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 263-292, maio/ago. 2019 267 Gabriela de Carvalho FREIRE entre seus anfitriões guarani e os grupos do Chaco central. Longe de serem alicia- dos inocentemente pelos colonizadores, como os documentos sugerem, porém, os Guarani se aproveitavam das trocas com os europeus e de seu aparato bélico para colocar em movimento o ciclo de guerras com os “sarnentos” do interior chaquenho. Jogando com as noções dicotômicas europeias, os Guarani partiam para expedições guerreiras contra os Guaicurú acompanhados de militares espa- nhóis, atualizando conflitos muito mais antigos que a chegada dos assucenhos (ver CARVALHO, 2002, p. 467). Essas disputas eram permeadas pelas generalizações europeias, que tendiam a colocar em uma mesma categoria povos de língua gua- rani, como os Carió e os Chiriguano, distintos entre si na maior parte do tempo, mas aliados quando se tratava de guerrear contra seus inimigos7. Como acontecia entre os Tupinambá da costa8, havia ali uma lógica antecedente à chegada dos colonizadores: os povos referidos como “Guarani” eram inimigos mortais dos povos denominados por eles “Guaicurú”. Além de informar os estrangeiros sobre a “selvageria” dos povos do interior, os Guarani informavam também sobre a localização desses grupos. Guaicurú e Mbayá – segundo as descrições europeias – são “termos guarani utilizados para designar as populações não falantes do guarani situadas depois da fronteira colonial paraguaiense” (RICHARD, 2011, p. 221, tradução minha). Sendo já em sua origem um vocativo genérico, o termo Guaicurú foi utilizado indistintamente pelos europeus, sendo estendido aos povos que habitavam as franjas chaquenhas e apresentavam um comportamento belicoso ou, nas pala- vras de Susnik (1971, p. 18), um “etos guerrero”9. Ao sul, os Guaicurú estariam nas proximidades do Forte Assunção, e, ao norte, os Mbayá – tidos como “os Guaicurú do norte” (SUSNIK, 1971, p. 45) – seriam encontrados às margens do Rio Paraguai.

7 Ciente dessa pulverização dos grupos denominados nas fontes como “Guarani”, mantenho o uso do etnônimo, mobilizado aqui como parte do argumento de que estes nomes são sempre contextuais. 8 A respeito dos blocos compostos por europeus e índios, ver Perrone-Moisés (2003; 2008) e Perrone-Moisés e Sztutman (2010). 9 Os espanhóis faziam uma contraposição ingênua e simplista em que os “povos Guaicurú” apa- reciam como guerreiros impiedosos e os Guarani como agricultores amistosos. Veremos que essa antítese construída pelos documentos coloniais encontra diversos paralelos em toda a literatura chaquenha.

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Os Mbayá-Guaicurú só são apresentados na literatura como “Eyiguayegui” a partir dos escritos do missionário jesuíta José Sánchez-Labrador. Segundo o espanhol, “eyiguayegui” significa “o povo oriundo da terra em que abunda a pal- ma eyiguá”, e era a partir deste vocativo que os indígenas com os quais ele teve contato se autodenominavam10. Os relatos do período entre o século XVI até o XVIII descrevem, além das relações dos Guarani com os Eyiguayegui, também aquelas entre estes últimos e os índios guaná. As mesmas complicações em determinar os grupos Guarani, Guaicurú, Mbayá ou Eyiguayegui são encontradas quando tentamos definir seus contornos. O termo “Guaná” surgiu no século XVIII para designar os Chané11, si- tuados na franja oriental do Chaco, próximos ao Rio Paraguai (RICHARD; COMBÈS, 2015, p. 232). Segundo Sánchez-Labrador ([1770-1776], v. II, p. 267), o etnônimo é, na verdade, fruto de uma confusão: Guaná en idioma de los Chanás es pronombre relativo de tercera persona, esto es, aquél. Preguntaría algún Español, viendo á estos indios: ¿quién és aquél? Y le responderían: Guaná; y de aquí o de cosa semejante vendrá atribuir á toda la nación Chaná el nombre de Guaná. Ao sistematizar os dados chaquenhos, Alfred Métraux propôs chamar de Chané os Arawak do piemonte andino, e de Guaná os das margens do Rio Paraguai, classificação que persiste até os dias de hoje (RICHARD; COMBÈS, 2015, p. 232) e que adoto neste trabalho. Note-se que a “confusão” descrita por Sánchez-Labrador parece se multiplicar no Chaco: os etnônimos nunca designam “nações” bem de- finidas, e sim qualificam relações. Atento a esse desencontro de conceitos, Félix de Azara (1809, p. 225), comissário e comandante das fronteiras espanholas no Paraguai, se queixa: Se pergunta a eles se são de diferentes nações dirão que sim, mas porque não sabem o que é uma nação e creem que cada horda forma uma diferente. Consequentemente, indicam o lugar de cada horda e daí procede que de uma única nação dos Guaná se tenham feito todas as que figuram nos mapas.

10 Note-se que os nomes “Guaicurú”, “Mbayá”, “Mbayá-Guaicurú” e “Eyiguayegui” aqui utiliza- dos não devem ser medidos por uma régua de veracidade. Devem, sim, ser entendidos como resultantes das relações em jogo entre os grupos envolvidos, e daquelas entre os grupos e os autores dos relatos em que são nomeados. 11 Também designados Chaná. Grupos arawak que habitavam o Chaco boliviano, aos pés dos Andes, e o Alto Paraguai.

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O desencontro das maneiras indígenas e europeias de pensar a socialidade, demonstrado na citação de Azara, permeia muitas narrativas sobre as relações entre aquilo que convencionamos chamar “grupos” do Chaco. A categoria “na- ção”, referida no excerto acima e utilizada por muitos autores do século XVIII, parece remeter a um projeto ideal de organização social: no ideário europeu da época, uma nação era constituída por uma língua, uma cultura e um território. Visualizando no Chaco organizações que pareciam se encaixar nessa definição, os autores das fontes interpretavam relações como aquelas existentes entre os Eyiguayegui e Guaná como a subjugação de uma “nação” por outra. Onde estaria o limite entre essas populações? Como vimos acima, a dificuldade de delimitar os “grupos sociais” chaquenhos é enorme. De saída, portanto, podemos considerar no mínimo complicada a afirmação de que uma “nação” domina a outra.

3 O “COMPLEXO HIERÁRQUICO” EYIGUAYEGUI-GUANÁ

3.1 Ideários nacionalistas, sociedades e poder: a definição dos contornos Eyiguayegui e Guaná Fundamentadas na ideia de que as populações chaquenhas podiam ser divi- didas em nações, muitas fontes utilizam um componente intrínseco a essa forma de organização social para diferenciá-las: aquilo que elas chamam de “índole”. De acor- do com os documentos, os Eyiguayegui, de um lado, seriam povos essencialmente guerreiros, e a adoção dos cavalos teria aumentado seu aparato bélico e mesmo sua “vocação” para a guerra. De outro, os Guaná seriam fundamentalmente pacíficos, tendo como principal preocupação a manutenção de suas roças, e teriam um pen- dor pela servidão12. Essas diferentes “índoles”, por sua vez, acabariam por reforçar as “fronteiras nacionais”, demarcando as diferenças entre uma população e outra. Já alguns antropólogos, como Alfred Métraux (1946), Branislava Susnik (1971; 1972) e Paul Radin (1946), delimitam os grupos indígenas chaquenhos

12 Segundo Aguirre (1898, p. 472), militar espanhol responsável pela delimitação das fronteiras entre o Brasil e o Paraguai, em contraposição aos Eyiguayegui, índios guerreiros e cavaleiros, os Guaná eram “[...] índios labradores, de a pie, dóciles [...]”, que tinham em si um desejo de servir”. É interessante notar que esse rótulo de “pacíficos” e “parceiros” ecoa até hoje e foi base de políticas indigenistas que tentaram transferir famílias Terena e Kinikinau para o oeste paulista, a fim de “civilizar” e “servirem de exemplo” para os Guarani-Kaiowá e os Kaingang (FRANCO, 2011, p. 16).

270 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 263-292, maio/ago. 2019 Assimetrias entrelaçadas: sobre o “complexo hierárquico” Eyiguayegui-Guaná por meio dos tipos de “economia” e de “organização social”. Esses critérios de classificação parecem ecoar a tipologia basilar da série Handbook of South American Indians (1936-1948), idealizada e organizada por Julian Steward. Em linhas gerais, os tipos culturais em que foram classificadas as sociedades estu- dadas eram alinhavados por uma lógica na qual “algumas instituições seriam necessariamente anteriores a outras” (DRAGO, 2012, p. 16). Grupos pequenos de caçadores-coletores, vistos como reminiscências de um período pré-agrícola politicamente rudimentar, estariam em desvantagem diante de grupos horticul- tores demograficamente mais expressivos, possíveis geradores de excedentes e, portanto, de classes sociais diferenciadas e centralização do poder – indicativos de um bom desenvolvimento13. Em sua contribuição ao volume dedicado às “tribos marginais” do Handbook (1946), Métraux dividiu os povos chaquenhos seguindo um raciocínio parecido: primeiramente, haveria os índios pedestres (“bandos” de caçadores e coletores seminômades); depois os índios cavaleiros e canoeiros (categoria constituída por aqueles “bandos” seminômades que teriam passado por um desenvolvimento econômico trazido por cavalos e canoas) e, por fim, a família linguística arawak (populações maiores, agricultoras e sedentárias). A família linguística é distinguida nesse último caso porque Métraux levanta a hipótese de que essas populações teriam influências culturais andinas, distinguindo-se dos outros tipos culturais chaquenhos, considerados mais simples tanto econômica quanto politicamente. Nesse sentido, a demarcação antropológica da fronteira entre “os Eyiguayegui” e “os Guaná”, de maneira bem parecida com a das fontes, seria aquela entre povos (caçadores-coletores) cavaleiros e povos Arawak agricultores. Os Eyiguayegui eram tidos como uma “nação” subdividida em parcialidades14 unidas contextualmente e formadas por tolderias que eram demograficamente pouco densas, visto que precisavam se deslocar, ao longo das estações, em busca de provimentos. Os aldeamentos Guaná, ao contrário, foram sempre descritos como os mais densos da região, com uma população entre 20.000 e 45.000

13 No Handbook, a América foi dividida entre os povos de tipo “Marginal” – categoria à qual pertenciam os grupos chaquenhos –, os grupos horticultores da “Floresta Tropical”, o “Circum- Caribe e o Sub-Andes” e, por fim, os “Andes”. Sobre a classificação dos povos nos 7 volumes do Handbook, ver Faron e Steward (1959) e Drago (2012). 14 Conjuntos de tolderías. Outro vocábulo muito utilizado pela literatura sobre o Chaco.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 263-292, maio/ago. 2019 271 Gabriela de Carvalho FREIRE pessoas (RICHARD; COMBÉS, 2015, p. 236). Também de forma antagônica aos Eyiguayegui, os Guaná não se deslocavam periodicamente pelo território chaque- nho: eles eram um povo considerado essencialmente agricultor e permaneciam longos períodos em um mesmo lugar. Partindo dessa diferenciação, a hipótese clássica – denominada por Richard e Combès (2015) o “argumento de peso” dos estudos chaquenhos –, afirma que os “dóceis agricultores arawak [...] teriam sido submetidos e dominados por grupos guerreiros [...] que os subordinaram à força até fundi-los em uma sociedade duramente hierarquizada” (RICHARD; COMBÈS, 2015, p. 232). Essa visão dicotômica e fixa das duas “populações”, porém, encontra diversos obstáculos na literatura colonial que, mesmo permeada por essa perspectiva, traz diversos relatos que a questionam. A própria etnologia americanista criticou esse tipo de interpretação dos dados presentes nas fontes históricas, apoiando-se em exemplos de sociedades ameríndias consideradas até então materialmente po- bres, mas socialmente complexas, que desafiavam esse tipo de leitura15. Mesmo os Eyiguayegui desafiam esse modelo: seu refinamento político, multiplicador de categorias sociais, é uma afronta à sua classificação como “povos marginais” e não combina com a imagem de “caçadores-coletores”, tal como definida pelo Handbook. A presença, em uma área “marginal”, de populações agricultoras com “influências andinas”, consideradas mais desenvolvidas por Métraux (1946, p. 211), também questiona esse modelo. Mais desafiador ainda é o fato de pequenos “bandos” de caçadores-coletores “subjugarem” grandes povos agricultores tidos por mais “desenvolvidos” nessa classificação. Essa linha evolutiva de interpretação dos dados chaquenhos é abandonada pelo antropólogo Fernando Santos-Granero (2009, p. 42), que não considera a prática da agricultura e a produção de excedentes como evidências de um maior desenvolvimento. De acordo com o autor, Eyiguayegui e Guaná estavam imersos em um complexo regional formado por sociedades com tamanhos, complexidades e habilidades militares diferentes (SANTOS-GRANERO, 2009, p. 18), que tinham como principal característica a (tentativa de) dominação de um grupo por outro. Mesmo rejeitando certos padrões socioeconômicos (como o “desenvolvi- mento da agricultura”) como evidências da superioridade de uma população sobre

15 Ver, por exemplo, “A noção de arcaísmo em etnologia”, de Lévi-Strauss (2012).

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16 Santos-Granero (2009) compara os Eyiguayegui a outras sociedades classificadas como guer- reiras: os Chiriguano, no Chaco boliviano; os Kalinago, nas pequenas Antilhas das Bahamas; os Conibo, no leste do Peru; os Tukano no Alto Rio Negro e os Calusa no golfo do México.

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3.2 Colonialismo Guaná Em uma análise cuidadosa dos diários de Sánchez-Labrador, Richard e Combès (2015) percebem um padrão nos modos de habitação guaná e eyiguaye- gui. Segundo o jesuíta, os aldeamentos por ele identificados como guaná e que seguiam o curso do rio Paraguai estavam sempre em pares. Ao visitar uma vila Terena, ele se deparou com uma aldeia vizinha, a “dos Echoaladi”, que ora apa- recem na literatura como outra “parcialidade” guaná, ora como “escravos” dos Terena. Em outro momento, Sánchez-Labrador se depara com pares de aldea- mentos Terena e Layana, cujo etnônimo dá margem ao mesmo questionamento. A leitura dos diários do jesuíta revelam ainda mais: “[s]e é verdade que sobre a margem ocidental do rio, as aldeias chaná distribuem-se de duas em duas, para cada um desses pares corresponde, sobre a outra margem do rio, um acampa- mento mbayá” (RICHARD; COMBÈS, 2015, p. 238). Observa-se uma cadeia de relações apresentada de acordo com o po- sicionamento dos autores das fontes. Quando em contato mais próximo com os Guarani, tendem a chamar os Eyiguayegui de Guaicurú (“sarnentos”). Esses Guaicurú, habitantes das zonas “intermediárias” entre o espaço recém-ocupado pelos europeus e o centro do Chaco, têm suas tolderias erguidas próximas aos aldeamentos denominados pelos documentos Guaná, cujos habitantes são cha- mados por eles (em língua Guaicurú) niyolola. Como já notado, as fontes muitas vezes traduzem niyolola por “servos” ou “escravos”, tradução em si duvidosa, que parece ter mais a ver com a interpretação europeia das relações chaquenhas do que uma similaridade entre a relação de “servos”/”escravos” e “senhores” e aquela entre niyolola e oquilidi. Seguindo sempre a oeste, em direção ao interior do Chaco, encontramos os vizinhos dos niyololas, os Echoaladi, termo também traduzido para “escravos”, mas dessa vez em língua arawak, a língua dos Guaná. Em outros casos, perto dos Guaná encontravam-se os Chamacoco, também en- tendidos como “escravos”, segundo os autores das fontes. Além de demonstrar a profusão de etnônimos que podem ser encontrados nos documentos históricos, essa “cadeia de nominação”17 aponta que não eram apenas os Eyiguayegui que estavam a fazer “servos” na época da invasão, mas também seus “vassalos” Guaná.

17 A expressão é de Richard (2008, p. 221).

274 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 263-292, maio/ago. 2019 Assimetrias entrelaçadas: sobre o “complexo hierárquico” Eyiguayegui-Guaná

Ainda fundamentados nos diários de Sánchez-Labrador, Richard e Combès (2015, p. 234) mostram como as grandes populações chané e guaná foram con- sideradas uma totalidade pelas fontes, mas pareciam ser formadas por diferentes coletivos. De acordo com os autores, “Chané” é um termo arawak que pode ser traduzido como “gentio” ou “multidão”. Gentes diferentes eram chamadas de “chané” por índios denominados “guaná” não porque formavam uma mesma “nação”, mas porque constituíam uma multidão habitante de um mesmo lugar. Nessa direção, Sánchez-Labrador ([1770-1776], v. II, p. 255) afirma que Chané é “un nombre que compreende todas las parcialidades, aunque estas para distin- guirse entre si, se aproprian otros nombres”. Portanto, afirmam os antropólogos, é necessário fazer uma distinção entre aquilo que chamam de “colônias” chané e suas “matrizes” – que seriam os “verdadeiros” aldeamentos guaná (RICHARD; COMBÈS, 2015, p. 244). A formação dessas “multidões”, por sua vez, estaria ligada ao processo de colonização do interior chaquenho efetuado pelos Guaná. Segundo Susnik (1972, p. 179), sendo reconhecidos por seus “etos” agricultor, os Guaná tinham uma “tendência à maximização do aproveitamento agrícola”, procurando em outras populações “braços” que pudessem trabalhar em suas roças. Mas, segue a auto- ra, sua intenção ao aproximar-se de outras populações não seria aumentar seu poderio militar, como fariam os Eyiguayegui, mas maximizar a produção de suas roças. A formação das colônias Guaná seria, portanto, bem diferente do modo eyiguayegui de relação com outros grupos: não haveria uma imposição bélica às aldeias diferentes ou rivais, e sim uma atração e organização em aldeias e popu- lações de diversas origens (RICHARD; COMBÈS, 2015, p. 244). Enquanto a relação entre os Eyiguayegui e os Guaná seria “tributária”, a dos Guaná com suas colônias seria de “dependência socioperiférica”18, em que certas populações não estariam inteiramente subjugadas, mas dependeriam de outras (RICHARD, 2011, p. 223). Assim, os grandes núcleos chaná/guaná do Alto Paraguai estariam exercendo uma ação colonizadora no interior do Chaco, atraindo e reagrupando populações he- terogêneas em torno de ‘colônias’ que dependiam de suas ‘matrizes’” (RICHARD; COMBÈS, 2015, p. 244).

18 A expressão é de Susnik (1978) e foi adotada por Richard (2011) e Richard e Combès (2015).

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Atrelado ao ímpeto expansionista guaná estaria sua estratificação social, semelhante, em alguns aspectos, à eyiguayegui19. Segundo Susnik (1972, p. 149- 50), sua linhagem nobre era constituída pelosunati , ou capitães. Os wahere-txane, ou “comuns”, eram os trabalhadores agrícolas e “gente de serviço”, e era nessa camada que se “recrutavam” pessoas para trabalhar nas tolderias eyiguayegui. Os shuna-ashetieram os guerreiros, uma classe que podia unir tanto nobres quanto comuns e “escravos”. Por último, vinha a classe doskauti, cativos de guerra. Essas evidências etnográficas – o expansionismo e a “estratificação social” guaná – são contra-argumentos indubitáveis àquele “argumento de peso”: evi- denciam complexidades antes apagadas da história da relação Eyiguayegui-Guaná. Richard e Combès (2015) vão além, entendendo esses dados como prova de que, na realidade, a hierarquia subjacente à relação entre os Eyiguayegui e os Guaná não seria resultado da superioridade militar dos primeiros, mas de uma estrutura pré- -existente a essa relação: segundo os autores, a estratificação era, primeiramente, um traço da organização social arawak que teria se estendido aos Eyiguayegui. Essa “hipótese inversa” (RICHARD & COMBÈS,, p. 232) não é novidade na literatura especializada: Herbert Baldus (1975, p. 24) já havia afirmado que a “for- ça da personalidade cultural” dos Guaná – população que tinha, segundo certas especulações (ver BALDUS, 1975, p. 24; RADIN, 1948, p. 211), influências andinas – teria feito os Eyiguayegui adotarem sua estratificação social. Já Métraux (1946, p. 239) escreve que o fato de cada “vila” guaná ser submetida por um “bando” eyiguayegui fez com que as duas culturas, inicialmente diversas, se tornassem idênticas. Enquanto os Eyiguayegui teriam apreendido de seus “servos” a sua estratificação, os Guaná teriam modificado sua estrutura social, adotando cavalos e tornando-se guerreiros. O pressuposto de que a “estratificação social” é na verdade um “traço cul- tural” roubado pelos Eyiguayegui dos Guaná fundamenta-se em uma premissa fundamentalmente evolucionista. E a ênfase no “etos expansionista” guaná – hi- pótese aventada por Susnik – vai no mesmo sentido. Tudo se passa como se os

19 A principal diferença das duas formas de organização política era o fato de que os Guaná con- tavam também com um sistema de metades, Sukirikionó e Xumonó, que teriam surgido das narrativas sobre os gêmeosYurikoiuvakai. Segundo Cardoso de Oliveira (1983, p. 35), as metades operavam apenas entre os Guaná, não incluindo a classe dos kauti.

276 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 263-292, maio/ago. 2019 Assimetrias entrelaçadas: sobre o “complexo hierárquico” Eyiguayegui-Guaná povos guaicurú – rústicos caçadores-coletores – se contentassem com relações mais imediatas, tecendo-as apenas com seus vizinhos, enquanto os arawak – agricultores de maior visão, mais “evoluídos” – tivessem um plano de unificação pan-chaquenha. Simplesmente “inverter” a hipótese da dominação baseando-se no “expan- sionismo” e na “estratificação” guaná, portanto, é insuficiente. Primeiramente, porque colocar os Eyiguayegui no polo de guerreiros e os Guaná no de agricultores pacíficos não se sustenta. Em ambos havia uma categoria de pessoas guerreiras que gozava de grande prestígio (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1983, p. 41-4) e, mesmo que não se pudesse visualizar, entre os Guaná, “guerras empíricas visíveis”20, isso não seria suficiente para defini-los como pacíficos por natureza. Em segundo lugar, é impossível saber se os Guaná planejavam colonizar o interior chaquenho. Mas o fato de, ao longo do tempo, os documentos descre- verem diferentes povos unindo-se e separando-se faz pensar que eles estavam mesmo relatando blocos constituídos por mecanismos de fusão e fissão, ou “blocos espaço-temporais” (PERRONE-MOISÉS; SZTUTMAN, 2010, p. 417). Ou seja, em alguns momentos os Guaná se aliavam aos “Echoaladi” e em outros aos “Zamuco”. Da mesma maneira podia acontecer com os Eyiguayegui: quando os espanhóis chegaram ao Chaco, eles estavam unidos por “relações de vassalagem” (SCHMIDEL [1602], p. 45) com os Guaná mas, com o passar do tempo, começaram a construir uma relação bem parecida com os Chamacoco. Além de não caberem nas categorias de sociedades guerreiras e pacíficas, portanto, as relações entre Eyiguayegui e Guaná, bem como entre os Guaná e suas “colônias” pareciam ser contextuais, sendo cristalizadas apenas pelas fontes que as descreviam e pela antropologia posterior. Além de contextuais, essas relações pareciam ter outra característica: elas não se construíam em blocos, ou seja, entre “os Eyiguayegui” e “os Guaná”. Para

20 A expressão é de Sztutman (2012, p. 246). Patrick Menget (1985, p.135) refletiu há algum tem- po, em relação ao Alto Xingu, acerca do erro que cometemos quando aplicamos às sociedades ameríndias certos critérios do que consideramos ser a guerra (constituída por expedições bélicas, uma categoria de pessoas que só se dedica aos ataques, enfim, a parte mais evidente da guerra). Segundo o autor, a guerra nas Américas está em muitos outros níveis e se expressa de tantas maneiras diversas às nossas (como na feitiçaria ou nas festas) que não podemos classificar seus povos como guerreiros ou pacíficos a priori.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 263-292, maio/ago. 2019 277 Gabriela de Carvalho FREIRE seguir na tentativa de entender esse “complexo hierárquico”, portanto, é preciso questionar, antes, a própria existência dos tais blocos, um dos principais pressu- postos da noção de “servidão”.

4 ASSIMETRIAS ENTRELAÇADAS Os maiores indícios da submissão dos Guaná pelos Eyiguayegui apontados nas fontes são as visitas que os oquilidi faziam aos niyolola21 e os mutirões de “trabalhadores” guaná que se deslocavam até as tolderias eyiguayegui periodica- mente para cultivar suas terras22. Essas duas evidências caem por terra quando consideramos os casamentos entre os capitães eyiguayegui e as capitãs guaná. Aliás, esse complexo de relações – visitas, mutirões e casamentos – não é bem compreendido quando interpretado como um relacionamento entre “mônadas”. Se o tomamos partindo de relações mais localizadas, podemos visualizá-las em uma rede muito mais ampla que o Alto Paraguai, em que os ditos “blocos” eyiguayegui e guaná tampouco aparecem. Sánchez-Labrador ([1770-1776], v. I, p. 267) afirma que os Guaná foram conquistados pelos Eyiguayegui não pela coerção, mas pela “unión de sus ca- samientos”. O jesuíta explica: “[a]lgunos caciques o capitanes Eyiguayeguis se casaron a su modo con cacicas o capitanas Guanás. Los vasallos de estas, muertas ellas, quedaron en un perpetuo feudo a los descendientes de los maridos de sus señoras”. De acordo com o missionário, portanto, a relação de dominação que parecia acontecer entre os Eyiguayegui e os niyolola era na verdade um sistema de “vassalagem” complexo, em que era absolutamente normal que servos – ou melhor, servas – se casassem com seus “senhores”, os capitães eyiguayegui, e trouxessem consigo seus próprios “escravos”, aqueles da classe dos kauti(cativos) . Foi a partir desse relato do missionário que alguns antropólogos defen- deram a hipótese de que os Guaná teriam “transmitido” sua estratificação para os Eyiguayegui. Essa tentativa de encontrar a origem da hierarquia, porém, não

21 As melhores descrições dessas visitas são feitas por Sánchez-Labrador. Ver, por exemplo, Sánchez Labrador ([1770-1776], v. II, p. 23). 22 Segundo Azara (1809, p. 26), “[e]n la época de la primera llegada de los españoles los guanás acudían […] a reunirse en tropas con los mbayás para obedecerlos y servirlos y cultivar sus tierras sin ningún salario. De aquí procede que los mbayás los llamen siempre sus esclavos”.

278 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 263-292, maio/ago. 2019 Assimetrias entrelaçadas: sobre o “complexo hierárquico” Eyiguayegui-Guaná parece produtiva – precisamos saber, antes, se ela realmente existe. O fato a ser considerado é que, assim que os europeus aportaram no Chaco, eles observaram duas “nações” que compartilhavam uma mesma matriz relacional operante em todos os níveis, do que chamaríamos “intra-aldeão” ao regional; em cada um desses níveis havia diferenciações que constituíam grupos diferentes. No primeiro, havia distinções entre niniotagi e nibotagi (no caso eyiguayegui) e entre unati e kauti (no caso guaná). No segundo, havia diferenças entre “os Eyiguayegui” e os “os Guaná”. Porém, em nenhum desses níveis essas diferenças eram cristaliza- das: assim como os etnônimos, elas existiam apenas em relação ao outro, que era definido contextualmente. Todas as descrições sobre as relações entre índios eyiguayegui e guaná parecem se fundamentar nessa projeção: dos nomes dos grupos à sua existência como grandes blocos, todos esses elementos são resultado de uma leitura do Chaco feita por meio de um “ideário nacionalista”. Aliado a esse compartilhamento da “matriz relacional” havia o fato de que os niniotagi (os “nobres” eyiguayegui) se casavam com as unati(as “nobres” guaná). Quando as capitãs guaná se casavam, elas se mudavam para as tolderias de seus maridos, trazendo consigo alguns kauti. Aí se explica a quantidade relativamente grande de “guanás” nas tolderias eyiguayegui: eles se mudavam junto com suas “senhoras”. Justifica-se também os “mutirões” wahere-txanéde – a parte dos “tra- balhadores” guaná – que vinham cultivar as roças eyiguayegui: tudo indica que os Guaná tinham uma divisão de atribuições muito parecida com a dos Eyiguayegui, em que a parte dos capitães não devia cultivar a terra23. Esses mutirões vinham, portanto, realizar serviços que não deveriam ser feitos pelos “senhores”. Por último, explica-se também as visitas realizadas pelos “senhores” eyi- guayegui às vilas guaná: eles iam visitar as famílias de suas esposas. Nessas ocasi- ões, de acordo com Sánchez-Labrador, os “senhores” se hospedavam nas aldeias de seus “servos” e recebiam homenagens, produtos agrícolas como arroz, mel, frutos e raízes, milho e abóboras, grãos e urucum, além de mantas de algodão tecidas pelas capitãs guaná. Em troca, os nobres eyiguayegui davam “aos Guaná” tudo que lhes era solicitado, em especial bens obtidos no contato com não-índios, como facas, lâminas de ferro, agulhas, pinças e anzóis24.

23 As atribuições eyiguayegui são tema da minha dissertação de mestrado (FREIRE, 2018). 24 Sánchez-Labrador ([1770-1776], v. II, p. 23); Richard e Combès (2015, p. 240).

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Ao descrever esses eventos por meio desse vocabulário – “servos” e “senho- res”, além dos etnônimos de “nações” inteiras – o missionário muda totalmente o cenário dessas visitas, que aparecem como um indício da sujeição de um grupo pelo outro. Somos levados a enxergar essa relação como resultado de um contra- to de vassalagem em que os poderosos nobres ao mesmo tempo ameaçavam e ofereciam proteção aos agricultores, recebendo em troca os frutos da terra por eles cultivada. A interpretação de Santos-Granero (2009, p. 83) sobre as relações constituintes do “complexo hierárquico” é bem parecida com essa: o autor afirma que “os Guaná” podiam ser entendidos como populações tributárias porque, ainda que os capitães eyiguayegui se casassem com as donas guaná, essa relação estava sempre permeada pela guerra. A “hostilidade crônica” seria a maneira encontrada pelos Eyiguayegui para trazer os Guaná, que eram mais numerosos porém “mais fracos”, para uma relação tributária. A comparação com as relações de vassalagem se complica quando per- corremos a extensa lista dos bens manufaturados que os Eyiguayegui davam a seus “servos” em troca dos produtos agrícolas. Aliado a isso está o fato de que os nobres pareciam ser espoliados quando voltavam das vilas arawak, ficando sem praticamente nada. Segundo Sánchez-Labrador ([1770-1776], v. II, p. 23), os capitães eyiguayegui saíam das vilas guaná “ricos y contentos com sus bollos de nibadena [urucum]” mas, ao voltar para suas esteiras, repartiam o que haviam ganhado entre todos. Assim, escreve o missionário, “sus viajes a las tierras de los Niyololas les acarrean gran molestia y utilidad casi ninguna”. Nesse sentido, a relação em questão não pode ser reduzida à “economia”, como acontece com a vassalagem na Europa feudal. O próprio “esbanjamento” dos chefes parece ser próprio dos encontros festivos entre os índios, que extrapolam em muito o plano “econômico” (PERRONE-MOISÉS, 2015). Na realidade, as visitas eram eventos que envolviam famílias, tolderias ou até vilas – nunca “os Eyiguayegui” e “os Guaná”. Segundo Robert Lowie (1948, p. 348), um fato “curioso” sobre a relação “Eyiguayegui-Guaná” era o de que “os Guaná nunca se viram como inferiores aos Mbayá comuns, mas apenas aos chefes”. Essa afirmação parece ser mais uma evidência de que não havia, no Alto Paraguai, uma hierarquia entre duas “mônadas”. Sugiro que os dados trazidos pelas fontes acerca dos casamentos eyiguayegui-guaná sejam lidos como indício de que as “partes” dos “nobres” (niniotagi e unati) e dos “comuns” de cada grupo, contextualmente definidos,

280 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 263-292, maio/ago. 2019 Assimetrias entrelaçadas: sobre o “complexo hierárquico” Eyiguayegui-Guaná formavam algo como “metades exogâmicas” que precisavam casar fora, mas com pessoas “do mesmo nível”. Mesmo Susnik (1972, p. 86) parece trazer essa ideia, quando afirma que os “comuns” eyiguayegui tinham o “costume de casar com as mulheres de origem chané, ainda que mantivessem certa distância dosnibotagi ” – eles preferiam contrair matrimônio com pessoas de fora (os “comuns” guaná) a se casar com “membros” de outra “camada”. Essa hipótese já foi levantada por Roberto Cardoso de Oliveira (1983, p. 48) sobre os Terena. Segundo o antropólogo, por conta da restrição do mercado matrimonial causada por sua nobreza, os unatiterena precisavam procurar espo- sas em outros aldeamentos e se casar com capitãs de outras localidades. Assim, a existência da “sociedade terena” só se fazia possível com esse movimento ao exterior realizado pelos capitães, uma vez que os nobres não podiam se restringir a seus aldeamentos se quisessem casar. O mesmo parecia acontecer entre os “ín- dios cavaleiros”: os “senhores” eyiguayegui, para não se casarem com pessoas de outros “níveis”, acabavam procurando nobres de outras tolderias ou vilas, como as dos índios guaná25. Note-se que essa hipótese dialoga com a reflexão feita por Lévi-Strauss (1996, p. 208), que se perguntava se era possível a sobrevivência da sociedade kadiwéu mesmo que seus nobres se preocupassem em “não perder a dignidade e, sobretudo, não contrair um casamento com gente inferior”. Ao que parece, a “assimetria desvairada”26 eyiguayegui, que foi entendida pelo francês como uma ameaça, se entrelaçava às assimetrias guaná e tornava a existência desses grupos possível exatamente porque os colocava em relação. Em suma, “os Guaná” e “os Eyiguayegui” não devem ser entendidos como duas totalidades em relação. As assimetrias encontradas pelos autores das fontes pareciam ser mais localizadas, entre famílias ou entre pessoas que tinham um trânsito entre tolderias guaicurú e vilas arawak. Longe de restringir essas relações a pequenos espaços, como se poderia objetar, essa constatação permite pensar

25 Sabe-se que na América o status de “nobre” ou “comum” sempre tem de ser feito e refeito em corpo e comportamento; nunca é dado por uma mera questão de genealogia. Essa discussão é apresentada em Freire (2018).. 26 Lévi-Strauss (2012, p. 347-87) utiliza a expressão em seu artigo sobre as artes da Ásia e da América, onde desenvolve uma reflexão já presente no capítulo sobre os Kadiwéu em Tristes Trópicos. Na ocasião, o francês comparava o sistema político kadiwéu àqueles constituídos por metades, como o dos Terena e Bororo.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 263-292, maio/ago. 2019 281 Gabriela de Carvalho FREIRE essa matriz relacional funcionando em diversos contextos. O que as fontes obser- varam fazia parte de uma rede muito maior de relações, ainda que seu pequeno alcance devido à sua colocação às margens do Chaco lhes permitisse ter apenas uma visão muito limitada, além de claramente enviesada. Não eram apenas grupos “guaná” que os capitães eyiguayegui visitavam: eles também iam rotineiramente ao encontro de outras tolderias e parcialidades, bem como outras populações, como grupos guarani e chiquito. Elas pareciam, enfim, ser uma etiqueta presente em todo o Chaco. Nem mesmo os europeus escaparam a essa lógica. As visitas a seus fortes eram muito similares: Cabeza de Vaca ([1555], p. 163), comandante espanhol, descreve algumas visitas em que índios denominados por ele “guaicurús” levavam “carne de veado, de porco montanhês assada e grelhada, pescado, couros de “tigre”, anta e veado e mantas, e os trocavam por “milho, mandioca, arco, flechas” dos índios aldeados ao redor dos Forte Assunção, definidos como “os Guarani” pelo explorador. Nessas visitas aos fortes europeus, grupos de eyiguayegui também conseguiam objetos como facas, garfos, contas de vidro e agulhas, que eles trocavam com guanás e outras populações chaquenhas pelos objetos descritos acima (SÁNCHEZ-LABRADOR [1770-1776], v. I, p. 64). Não por acaso o Gran Chaco foi qualificado como um local em que diversos povos se encontravam e se “misturavam” (CARVALHO, 2002; PIMENTEL, 2012, p. 62), na mesma direção, chama atenção para a existência de um intenso comércio de metais entre os povos andinos, a oeste, e os povos guarani, a leste. Esse comér- cio movimentava todo o Chaco e o Alto Paraguai, intensificando a mobilidade de suas populações, imersas em um contexto de intercâmbio em que os índios que se autodenominavam Eyiguayegui tinham um papel ativo. O fato de esses índios participarem da “grande cadeia de troca de metal andino” (RICHARD; COMBÈS, 2015, p. 233), estendendo relações comerciais até a Bolívia deixa também em aberto a possibilidade de que suas visitas e relações matrimoniais não estivessem restritas ao Alto Paraguai. Falar na subjugação de uma totalidade social por outra é desconsiderar aqui- lo que Richard (2011, p. 219) entende como a especificidade da região chaquenha, ou seja, a “[...] maleabilidade de suas formações sociais, a extrema rapidez dos processos de recomposição e rearranjo étnico” e a grande facilidade “com a qual

282 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 263-292, maio/ago. 2019 Assimetrias entrelaçadas: sobre o “complexo hierárquico” Eyiguayegui-Guaná os povos de línguas e de horizontes diferentes se misturam, se decompõem e se recompõem” em períodos relativamente breves27. Em cada local e momento dado, é certamente possível encontrar no Chaco grupos que se autodenominam Eyiguayegui ou Terena, Layana e Kinikinau, por exemplo, e sempre relacionados uns aos outros por suas diferenças. Mas nem os grupos nem as relações entre eles são fixos. Aplica-se ao Chaco, como ao resto da América (a julgar pelas evi- dências e contando com as análises de Lévi-Strauss) o retrato feito por Viveiros de Castro (2002, p. 220), de sociedades que pareciam não existir fora “de uma relação imanente com a alteridade”.

4.1 Simbiose Utilizada por muitos antropólogos para suavizar as descrições da “domina- ção” de uns pelos outros, que – desde os tempos coloniais – nunca foi irrevogável, a noção de simbiose tem origem nos estudos de botânica. Trazido à baila em 1878 pelo botânico alemão Heinrich Anton de Bary, o conceito se refere à “vida conjunta de organismos diferentes” (OULHEN; SCHULZ; CARRIER, 2016, p. 135; LOPES, 199, p. 552). Em seu estudo sobre a associação entre fungos e algas, de Bary percebeu que este convívio interespecífico acabava constituindo uma terceira espécie: a dos líquens. Uma terceira unidade, portanto, seria formada a partir da agregação de dois organismos inicialmente separados. Obviamente, o uso antropológico do conceito não está plasmado a seu significado na botânica, mas parece levar consigo três de suas características. Primeiramente, a noção de interdependência entre “espécies” diferentes. Segundo, a ideia de que dois “organismos” se beneficiam da relação de comple- mentaridade que define a simbiose. Por fim, a unidade resultante da simbiose entre dois organismos. A primeira característica emprestada do conceito botânico pela antropologia já foi discutida: sabemos que essa diferenciação das populações em “espécies” diferentes não se aplica, pelo menos nos termos até agora apresentados. A comple- mentaridade entre duas “nações” por sua vez, merece uma reflexão pormenorizada.

27 Note-se que essa parece ser uma característica ameríndia mais do que chaquenha (ver, por exemplo, Perrone-Moisés, 2006, e Perrone-Moisés e Sztutman, 2010).

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A noção de simbiose aparece na literatura muitas vezes de modo a abrandar a de hierarquia, afirmando que Eyiguayegui e Guaná estavam ligados por uma relação de hierarquia, porém estavam também conectados por uma simbiose que os fazia viver de forma praticamente harmônica. A “hierarquia” parece ser, aos poucos, colocada em um plano subjetivo e formal: as diferenciações entre niniotageleudi, niniotagilionigi, uneleiguá, nibotagi e niyolola, bem como aquelas entre unati, wahere-txané, shuna-asheti e kauti operariam apenas no nível do discurso, enquanto a simbiose estaria no plano do vivido. Esse “estatuto ontológico” dos dois conceitos é também alvo de críticas de Viveiros de Castro (1983, p. 255) em sua resenha dedicada ao livro Hierarquia e simbiose (RAMOS, 1980)28. Segundo o autor, o modo como esses dois conceitos são articulados (de maneira muito parecida com o que acontece na literatura chaquenha) faz com que a hierarquia seja tomada como “fenômeno no ‘plano ideológico’ (i.e. das representações), e a simbiose como seu equivalente que o nega parcialmente no ‘plano do comportamento’” (VIVEIROS DE CASTRO, 1983, p. 255-6, grifos do autor). Para Métraux e Baldus, a assimetria entre “senhores” eyiguayegui e os “escravos” de suas esposas, de forma parecida com a inter- pretação de Ramos, parecem ser apenas subjetivas. Essa forma de explicar os movimentos contra-hierárquicos chaquenhos, posicionando a suposta hierarquia desses sistemas em um plano subjetivo, não resolve, porém, as contradições desse modelo analítico: a hierarquia continua a parecer furada, mas agora com menos importância. No mais, segundo Viveiros de Castro (1983., p. 254), a noção de simbiose presente no livro de Ramos surge em meio a uma problemática contraposição com a “sociedade nacional” e tendo como principal objetivo focar na “complemen- taridade” e na facilidade da resolução dos conflitos dessas relações interlocais. Aliado a ela estaria o conceito de hierarquia, que se referiria mais aos status, distintivos de pessoas que, no plano material, não seriam tão diferentes assim. Simbiose desponta, enfim, como uma maneira de suavizar o complexo conceito de hierarquia. Complexo porque ele tem que comportar em si o seu contrário: o casamento entre “nobres” e “servos”, o comércio e a festa entre eles.

28 O livro discute alguns casos: Sanumá/Maiongong (Roraima), Makú/Tukano (noroeste amazônico) e Guarani/Kaingang (Paraná).

284 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 263-292, maio/ago. 2019 Assimetrias entrelaçadas: sobre o “complexo hierárquico” Eyiguayegui-Guaná

Nesse sentido, tanto Métraux quanto Baldus e Ramos dão a entender que duas sociedades – essencialmente diferentes entre si – se juntaram em relações harmônicas permeadas, porém, por status hierárquicos. Longe de resolver as con- tradições colocadas pela utilização do conceito dehierarquia para descrever essas relações, entretanto, a adição da noção de simbiose parece apenas multiplicá- -las, separando indevidamente alguns aspectos dessas relações em subjetivos e materiais. A partir da leitura de Baldus, Lowie (1948, p. 349) chega a solapar a ideia de hierarquia nesse caso, considerando a ideia de simbiose – entendida como fundamentada principalmente na troca – muito mais aplicável à relação Eyiguayegui-Guaná. A troca, como vimos, estava mesmo presente nesse caso, mas as assimetrias ali presentes não podem ser deixadas de lado, nem colocadas em um nível apenas subjetivo. Permitindo que esses movimentos aconteçam, a simbiose acabou por adicionar mais uma dose de contradição a essas relações. Além disso, a noção de simbiose atrelada à ideia de troca acaba por trazer a discussão para um campo “econômico”: acredita-se que ambos os “organismos” envolvidos na relação têm “vantagens mútuas”. “Os Guaná” se beneficiariam com a proteção dos guerreiros e “os Eyiguayegui” com a comida ofertada por seus parceiros. Porém, essas assimetrias entrelaçadas não pareciam ter em vista nenhuma vantagem visando algum acúmulo: o que estava em jogo era o relacionar-se com o outro. No mais, partindo da ideia da relação entre diferentes, a noção desimbiose acaba por criar a ideia de que esses diferentes, no fim, se tornarão um, engloba- dos por uma mesma relação: a de hierarquia. Essa unidade final, porém, nunca foi alcançada. Aliás, vimos que não havia nem uma unidade inicial: os grupos que se relacionavam formando o que hoje se chama “complexo hierárquico” existiam apenas contextualmente, não formando “nações” em nenhum nível. Não podemos sequer afirmar que as relações denominadas “hierárqui- cas” englobavam todas as relações entre pessoas eyiguayegui e guaná: quando olhamos esse complexo a partir de diferentes ângulos, o enxergamos de modos muito diversos. Os “servos” Guaná se aproveitavam muito bem da relação com os Eyiguayegui, espoliando-os em suas visitas e “usando-os” como intermediários nas negociações com os europeus. Essa posição de “intermediários” dos Eyiguayegui é uma das evidências que faz Richard e Combès (2015, p. 241) “inverterem” a

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 263-292, maio/ago. 2019 285 Gabriela de Carvalho FREIRE hipótese de dominação dos Guaná pelos índios de língua Guaicurú. Essa mesma posição de intermediários, porém, é vista, em outros contextos etnográficos, como uma evidência do privilégio dessas populações habitantes de regiões de confluên- cia, que tinham fácil acesso a diferentes populações indígenas e não-indígenas29. Dependendo da perspectiva, a posição de intermediários dos Eyiguayegui pode ser vista tanto positiva quanto negativamente, assim como o lugar dos Guaná, que pode ser lido como sinal de sujeição ou dominação. A própria definição das relações inter-regionais dos Guaná feita por Susnik (1972, p. 201) já traz consigo elementos contra-hierárquicos. De acordo com a antropóloga, quando se tratava da interação com populações belicosas e agres- sivas, os Guaná decidiam não oferecer resistência guerreira, e sim se “sujeitar”, criando uma situação de reciprocidade sociopolítica. Note-se que a autora acaba por sugerir que a “sujeição” guaná fazia parte de uma estratégia prévia à relação com os Eyiguayegui. Levando a sério a voluntariedade dessa “servidão”, torna- -se possível enxergar o “serviçalismo” característico dessa relação como fruto da vontade dos Guaná e não de submissão forçada. Sugiro que essa relação seja lida de maneira parecida com aquela dos Paumari, descrita por Oiara Bonilla (2005). Assim, a proteção oferecida pelos cavaleiros eyiguayegui em troca dos produtos agrícolas pode ser um modo de “cuidado” buscado pelos Guaná. Aliás, talvez não tenham sido os Eyiguayegui os primeiros a se interessarem por essa relação: mesmo os cronistas, que definiam esse complexo de relações como “vassalagem”, não podiam negar os benefícios que alguns aldeamentos Guaná tinham na manutenção do relacionamento com certos capitães Eyiguayegui, tanto que, quando o cerco colonial começou a efeti- vamente enclausurar os Eyiguayegui a uma só área, os Guaná afastaram-se de seus “senhores”, entabulando relações diretas com os não-índios. Sem precisar mais da proteção dos “índios cavaleiros” e nem mesmo de seu papel de intermediários, eles teriam começado a criar relações diretas com os lusitanos, deixando cada vez mais de lado sua relação de “servidão” com os Eyiguayegui. Essa hipótese é corroborada por alguns dados das fontes, que narram a gradual aproximação de alguns chefes guaná dos fortes portugueses. Aos poucos, os relatos começam a narrar aquilo que antes seria (em sua concepção) inimaginável: o desmantela-

29 Sobre esse privilégio dos grandes anfitriões regionais, ver Perrone-Moisés (2015, p. 85-6).

286 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 263-292, maio/ago. 2019 Assimetrias entrelaçadas: sobre o “complexo hierárquico” Eyiguayegui-Guaná mento da “vassalagem” por iniciativa dos próprios “vassalos” e sua opção de lutar ao lado dos portugueses e contra os Eyiguayegui – seus antigos “senhores” – em algumas batalhas (RODRIGUES, 2009, p. 46). Azara (1809, p. 230), por exemplo, afirmava ser comum ver-se “cotidiana- mente grupos de cinquenta a cem Guaná descerem para o Paraguai para oferece- rem aos espanhóis seu trabalho como agricultores e, inclusive, como marinheiros [...]”. Segundo o militar, depois de um ou dois anos trabalhando para os europeus, “as tropas guaná” voltavam às suas vilas, “levando consigo o que ganharam, ou seja, roupas e utensílios de ferro”. Alguns Guaná trocaram, portanto, as visitas às tolderias pelas visitas aos fortes portugueses. Mais do que terem deixado de ver utilidade nos capitães eyiguayegui por conta de sua então reduzida capacidade de proteção e intermediação, os Guaná podem ter passado a enxergar os portu- gueses como “predadores” muito mais perigosos que os Eyiguayegui e “patrões” que podiam despender cuidados maiores que os dos índios cavaleiros30. No mais, não podemos deixar de reconhecer que o interesse no cuidado dos europeus, que lhes rendia uma sorte de produtos manufaturados, estava imerso numa rede de relações mais ampla, “onde o ser como os brancos – e o ser dos brancos – era um valor disputado no mercado simbólico indígena” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 224), por conta do perigo sedutor que eles representavam. Uma parte do privilégio que os Eyiguayegui gozavam enquanto intermediários parecia provir de sua capacidade de fazer circular o que vinha de fora. Essa afirmação, ainda que não explique profundamente o caráter dessas relações, é suficiente para que nos afastemos de interpretações fundamentadas na ideia de hierar- quia: pensar esse “complexo” como sujeito a uma única “regra” é extremamente delicado, porque no Chaco – assim como nos outros “mundos ameríndios” – é “impossível que uma só perspectiva englobe as outras” (GUERREIRO JR., 2012, p. 119). Tornar-se um, como sabemos, não é o destino ideal nas Américas (CLASTRES, 2003; LÉVI-STRAUSS, 1993).

30 O vocabulário aqui presente, “patrões” “predadores”, é aquele utilizado na análise de Bonilla (2005).

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 263-292, maio/ago. 2019 287 Gabriela de Carvalho FREIRE

5 CONCLUSÕES Duas premissas basilares de grande parte das análises acerca das relações Eyiguayegui-Guaná – a de que existiriam dois grupos impermeáveis e de que ha- veria, entre eles, uma relação hierárquica – são abaladas quando nos propomos a analisar criticamente as descrições das fontes históricas. Ainda que afirmem uma situação de “subjugação”, elas geralmente questionam a si mesmas quando precisam apresentar os casamentos firmados entreniyolola e oquilidi e o caráter das visitas realizadas entre eles, por exemplo. Situações como essas fizeram com que Azara (1809, p. 56) chegasse a qualificar a relação Eyiguayegui-Guaná como “una esclavitud muy dulce”. Nesse sentido, para entender o que as fontes históricas descrevem, é preciso questionar, primeiramente, os termos por meio dos quais elas o fazem. Mesmo quando qualificadas como “doces”, as noções de “escravidão”, “servidão” e “hierarquia” trazem consigo pressupostos quanto ao que sejam estratificações sociais. A utilização dessas noções pode transportar (ainda que involuntariamente) sistemas de exploração econômica e de poder coercitivo para as terras chaque- nhas, o que, segundo as fontes históricas, pareciam não ter lugar nas formas de organização da região. Assim, é necessário que essas fontes sejam submetidas à crítica indígena, sendo indispensável que as interpretações kadiwéu, terena e kinikinau acerca desses dados sejam conhecidas. No mais, é necessário também realizar uma crítica etnográfica das fontes, lendo-as por meio das atuais etnogra- fias sobre essas populações.

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Sobre a autora: Gabriela de Carvalho Freire – Mestre em Antropologia Social pelo Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (PPGAS-USP). Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). Antropóloga responsável pela unidade de Etnologia Indígena do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal do Paraná (MAE-UFPR). Pesquisadora do Centro de Estudos Ameríndios (CEstA/ USP). Desenvolve pesquisa sobre formas políticas ameríndias e relações de gênero entre os povos indígenas. E-mail: [email protected]

Recebido em 14 de agosto de 2018 Aprovado para publicação em 20 de fevereiro de 2019

292 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 263-292, maio/ago. 2019 escritos indígenas Memorial de uma liderança indígena: a construção política da trajetória... driblando as armadilhas da colonização

Luana da Silva Cardoso1

DOI: http://dx.doi.org/10.20435/tellus.v19i39.634

Pertenço ao povo Kumaruara e venho de uma linhagem matriarcal, na qual as mulheres se constituem como o esteio da família. Nasci em Belém do Pará, no dia 16 de março de 1986. Minha mãe, Hélia Maria Gama da Silva, é nativa da aldeia de Solimões nas margens do rio Tapajós, Santarém, Pará. Aos 14 anos, minha mãe foi entregue a uma família de advogados de Belém (PA) para ser cria- da, devido à ocorrência de uma epidemia de tuberculose na aldeia, que chegou a dizimar muitas crianças. Quando ainda jovem, em Belém, conheceu meu pai, Walkyrio Mattos Cardoso, natural da Bahia. Não tenho conhecimento da história da família do meu pai, nem mesmo o nome da cidade em que ele nasceu. Minha mãe e meu pai tiveram três filhas: Elen da Silva Cardoso, a mais velha; eu sou a segunda filha; e Tainan da Silva Cardoso, a caçula. Por volta de 1990, com a separação dos meus pais, minha mãe retornou com suas três filhas para seu lugar de origem, a aldeia Solimões. Meu pai parecia não estar de acordo que nós vivêssemos lá. Então, ele resolveu se mudar para a cidade de Santarém, comprou uma casinha simples de madeira e nos tirou da aldeia para morar com ele na cidade. Ele queria ficar mais próximo das filhas porque ele sabia que estava doente. Eu e minhas irmãs moramos com ele por aproximadamente um ano até ele vir a óbito. Minha mãe já tinha outro companheiro com quem teve também três filhos/as: Suelen da Silva Sousa, Hélida Maria da Silva Sousa e Wemerson da Silva Sousa. A partir de então minha mãe passou ter nossa guarda, em meio a muitas dificuldades de nos manter na cidade. Vivíamos com um pé na cidade e outro na aldeia. Como na aldeia não tinha escola, permanecíamos mais tempo na cidade,

1 Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, Pará, Brasil.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 293-307, maio/ago. 2019 Luana da Silva CARDOSO mas no período de férias escolares minha família e eu íamos para Solimões, com o intuito de visitar os parentes, minhas tias, minha avó, que lá residiam. Vivíamos assim, “um pé lá outro cá”, entre a aldeia e a cidade. Solimões, naquela época, era um aldeamento com poucas famílias. Todas tinham suas co- lônias onde faziam o plantio do roçado, onde desenvolviam a agricultura familiar. Eu tinha entre quatro e cinco anos de idade. Íamos para um lugarzinho no meio do mato, chamado Canta Galo, que ficava a uma hora de caminhada da aldeia de Solimões. Lugar batizado pela minha bisavó Sofia Gama, filha de uma Kumaruara e um português. Ela, conforme minha mãe conta, falava língua de índio, acredito que seja o nheengatu . À noite sentávamos à frente da casa para ouvir as histórias de assombração contadas por nossos/as avós/as e tios/as. Sempre falaram muito em visagens e em pessoas que ficavam assombradas por terem sido judiada por bicho. Essas pessoas precisavam procurar um/a rezador/a para se curarem. Após a chegada do motor de energia , as rodas de contações de histórias deixaram de ser frequentes e isso teve consequências para sociabilidade das crianças, pois naquela época as rodas de contação de histórias eram o passatempo no período da noite. Eram contadas histórias da mulher de branco, chupa-chupa, curupira, jurupari,boto . A partir dos dois anos de idade, comecei a ter contato e vivência junto com meus parentes na aldeia. Cultivávamos café, cana-de-açúcar, cacau. Tinha de tudo: abacateiro, tamarineiro, laranjeira, tucumãzeiro, açaízeiro, bacababeira, cupua- çuzeiro, araçázeiro, urucuzeiro, limoeiro, mangueira, limoeiro-galego, vinagrirae, pimenteira dentre outras frutíferas. Também, se cultivava ervas medicinais como: anador, melhoral, vicki, cumaruzinho, folha grossa, crajuri, manjericão, vindicá, “açaizinho”, capim santo. E ainda existia um lindo jardim com flores. No Canta Galo tudo plantávamos, tudo comíamos. No roçado, além de mandioca e macaxeira, havia uma diversidade de raízes: babata, batata-doce, cara roxo, cara espinho, maniquera. Como morávamos mais dentro do mato do que na beira do rio, comíamos mais alimentos derivados de raízes e caça: cutia, jacaré, veado, guariba, tatu, entre muitos outros. Eram momentos em que aproveitávamos aquela liberdade para brincar muito durante o dia, ficando boa parte dele à beira do rio situado no terreno de

294 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 293-307, maio/ago. 2019 Memorial de uma liderança indígena: a construção política da trajetória... driblando as armadilhas da colonização minha avó. Trabalhávamos na roça, fazíamos farinha, beiju, tapioca para garan- tirmos por um bom tempo nossa alimentação na cidade. Minha infância lembra coisas como o sabor do leite de súcuba que tomáva- mos, o café (o café que nós mesmas plantávamos, colhíamos e moíamos) tirado do cafezal que meu avô plantou no caminho que descia para o igarapé. O café era torrado na vasilha de barro que minha bisavó fazia e socado no pilão, o gosto daquele café, nunca mais provei igual, ainda era adoçado com cana-de-açucar que minha bisavó também plantava próximo da casa.

Da aldeia até a universidade Das idas e vindas da aldeia para cidade, trabalhei durante 7 anos da minha vida como babá, enquanto minha mãe trabalhava em cozinha de restaurante, de hotel e ainda executava trabalhos domésticos em diversas casas. Eu a acompa- nhava nas suas rotinas de trabalho e acabava cuidando dos filhos dos/as patrões/ as. E nos fins de semana íamos para feira vender “bugigangas”, como minha mãe falava. Vendíamos objetos que meu tio, Raimundo José Gama, trazia de Belém e Manaus nas viagens que fazia como cozinheiro em embarcações de linha . Aos 16 anos ganhei minha independência financeira ao começar a trabalhar por conta própria. Fui trabalhar como babá na casa de Nicolette Burford de Oliveira, uma inglesa que fazia a sua pesquisa de doutorado na região do Rio Arapiuns. Dentre muitas outras pessoas mais velhas que eu, fui escolhida para cuidar do pequeno Ravi, que na época tinha nove anos de idade. Depois de um tempo fui morar com eles e tivemos dois anos de convivência juntos. De uma relação de trabalho, com carteira assinada, construímos laços de respeito e amizade. Como tinha que retornar para a Inglaterra, Nicolette me indicou para tra- balhar com outra família. Era a família de Mark Harris, um antropólogo inglês que fazia pesquisa sobre a Guerra da Cabanagem, que ocorreu no período de 1835 a 1840 (HARRIS, 2010). Acompanhei o pesquisador e sua família em suas viagens de campo. Passamos quase trinta dias viajando pelo Baixo Amazonas, percorrendo lugares por onde passaram os cabanos, como eram conhecidos os protagonistas da Cabanagem. Em várias situações, Mark Harris me fazia muitas perguntas, na maioria das vezes relacionadas às minhas origens. Algumas eu tinha respostas outras não. Foi esta conjuntura que me despertou a curiosidade de saber o que era

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 293-307, maio/ago. 2019 295 Luana da Silva CARDOSO a Antropologia. No retorno da nossa viagem pelo Baixo Amazonas para Santarém, Mark Harris me apresentou para Florêncio Vaz, e disse o seguinte: “ele é indígena e antropólogo”. Enchi-me de esperança em ser também uma antropóloga, mas não foi tão fácil como imaginei. Depois da nossa expedição pelo Baixo Amazonas, recebi o convite de Mark e Anna, sua esposa, para viajar junto com sua família. Aceitei e passei seis meses na Escócia. Antes do meu retorno para o Brasil, ainda passei uns dias em Londres com Nicolete e Ravi. Uma experiência sem igual para quem nunca nem sequer tinha feito uma viagem de avião. Tudo era novidade: o jeito das pessoas, outra língua, outra comida, outro clima. Chorei, sofri muito de saudade da família, nunca tinha passado tanto tempo longe. A comunicação era difícil, raramente consegui fazer uma ligação telefônica. O jeito que mais me comunicava era por e-mail e cartão postal. Mas quando voltei tinha outra mentalidade, uma sede de estudar. Ao retornar para o Brasil, completei 19 anos, procurei modos de ingressar no ensino superior. Deparei-me com dificuldades que já conhecia por acompanhar a luta da minha mãe para se formar em uma faculdade particular. Cheguei a ajudá-la pagar com as economias da minha viagem. Em Santarém, há duas universidades públicas: Universidade Estadual do Pará (UEPA) e Universidade Federal do Pará (UFPA). Porém a concorrência era muito grande, mas com a posterior criação da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), em 2010, o acesso ao ensino superior cresceu e se popularizou, pois ofertam mais de 30 cursos, se ampliando para os municípios vizinhos. Há, também, faculdades particulares, mas eu não tinha condições financeiras para me manter num curso das particulares. Como eu tinha feito alguns cursos profissionalizantes (informática, assistente adminis- trativo, recepção), comecei a trabalhar como secretária em escritórios, deixando de trabalhar como doméstica ou babá. A partir de então, comecei estudar em cursinho pré-vestibular com o intuito de realizar as provas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) para concorrer a uma vaga em universidade em outras cidades, porque até então não havia curso de Ciências Sociais ou Antropologia em Santarém. Tentei, mas naquele e em outros momentos não consegui. Em 2011, foi criada a UFOPA e com isso foi ofertado o curso de Antropologia em Santarém. Em 2012, prestei o Processo Seletivo Especial Indígena e consegui realizar meu sonho de estudar Antropologia.

296 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 293-307, maio/ago. 2019 Memorial de uma liderança indígena: a construção política da trajetória... driblando as armadilhas da colonização

Indígena, mulher, estudante de antropologia e liderança: os diversos papeis sociais no percurso acadêmico Sou estudante indígena: entrei na UFOPA como Luana e saí Luana Kumaruara. Mãe de Yara Kumaruara da Silva Neves (4 anos) e Kauê Borari Kumaruara (2 anos). Fizemos questão de registrar os nomes dos meus filhos em cartório com referência à etnia.

Figura 1 - Eu e meus filhos

Foto: Vanessa Barros (2017).

No primeiro ano de curso conheci muitos/as parentes, passei a frequentar o turno da noite, pois ainda mantinha um vínculo empregatício. Era difícil estudar algumas disciplinas no período integral. Durante um ano não fui contemplada com bolsa estudantil. Passei um ano sem bolsa, com o desafio de conciliar os estudos, o trabalho, os afazeres domésticos e familiares. Em meio a tantas dificuldades, fui começando a me integrar junto ao movi- mento indígena. Sempre falo que a “universidade me descobriu para o movimento

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 293-307, maio/ago. 2019 297 Luana da Silva CARDOSO indígena”. Assim que ingressei na universidade percebi que há reserva de vagas para indígenas, mas não havia garantias de permanência desses estudantes na cidade. Eu não era única que não recebia bolsa. Além disso, o pagamento dos/ as bolsistas sempre atrasava. Assim, eu presenciava as dificuldades de muitos/as parentes, uns chegaram a morar comigo e outros/as desistiram. É muito triste ver os/as parentes desistindo de realizar o sonho de ter direito a estudar. Em 2013, estudantes indígenas do Baixo Tapajós participaram do I Encontro Nacional de Estudantes Indígenas (ENEI), realizado na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Ao retornarem, João Tapajós e Poró Borari, nos contaram sobre iniciativas de organização de parentes em outras universidades pelo país. Então, tivemos a ideia de criar o Diretório Acadêmico Indígena (DAIN). Depois que começamos nos organizar enquanto estudantes, saíamos pelas ruas protes- tando contra o descaso com os indígenas e reivindicando assistência da UFOPA. Foi quando comecei a “pegar gosto” pelo movimento indígena, a me espelhar em jovens lideranças que independentemente da idade lutavam com bravura e sabiam bem porque estavam ali. Dentre esses líderes destaco: Poró Borari, João Tapajós, Karo Munduruku e Iannuzy Tapajós, até então única mulher indígena a frente das mobilizações estudantis. Eu já possuía uma experiência anterior de militância no Movimento Tapajós Vivo (MTV). O Padre Edilberto Sena sempre me convidava para participar das forma- ções de organizações de base. Fui batizada de “ovelha” dele, e ele de “meu pastor”. E foi com base na experiência junto às Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) e acompanhando a garra dos/as parentes que fui me lapidando enquanto liderança. Em 2013, fiz o meu primeiro manifesto dentro da universidade durante o Seminário de discussão do Processo Seletivo Especial Indígena (PSEI), pelo qual aden- trei na instituição. Na ocasião, apresentei uma carta de repúdio contra as violações dos direitos indígenas garantidos em programas do Ministério da Educação. Depois disso, as bolsas passaram a ser pagas no dia certo, o número de bolsas foi ampliando e eu passei a receber uma bolsa que me garantiu a possibilidade de estudar. Desde então fui me destacando dentro do movimento indígena, sempre sendo convidada para espaços de debates e palestras. Em 2014, perante assem- bleia do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA) , fui indicada para fazer parte da executiva como secretária. Assumi o posto de jovem liderança indígena e ao mesmo tempo o posto de mãe, pois estava grávida da minha filha, Yara.

298 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 293-307, maio/ago. 2019 Memorial de uma liderança indígena: a construção política da trajetória... driblando as armadilhas da colonização

Depois que estive na coordenação do CITA, não parei mais. Após mandato de dois anos, passei a compor o conselho de lideranças do CITA como represen- tante titular do Território Kumaruara. Em 2016, assumi posição de destaque na organização de mulheres indígenas do Baixo Tapajós para reativar o Departamento de Mulheres Indígenas do CITA. Em 2017, captamos recursos através de projeto para iniciar as mobilizações de base nos territórios. Também firmamos parceria para fortalecer a organização das mulheres indígenas do território Kumaruara por intermédio do Projeto Mãe D’Água – Mulheres Guerreiras Fortalecidas na Vigilância de seus Territórios e em Defesa de seus Direitos Humanos e Sócio Ambientais na Amazônia, executado pelo Fórum da Amazônia Oriental (FAOR) em parceria com CITA. Neste projeto tenho me dedicado ao projeto audiovisual junto as mulheres Kumaruara.

Figura 2 - Eu, Luana Kumaruara, com minha filha Yara e Fabiana Borari em manifestação no centro de Santarém contra cortes no orçamento da saúde e educação (2016)

Foto: Acervo da autora.

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Figura 3 - Eu no Acampamento Terra Livre (ATL) em Brasília (2016)

Foto: Juli Tupinambá (2016).

Além de atuar na elaboração e execução de projetos junto ao movimento indígena, desde o meu ingresso na UFOPA, sempre procurei participar de projetos de pesquisas, mesmo de forma voluntária. Durante quase dois anos, estive num projeto de extensão, sob orientação da professora Sandra Silva e do professor Itamar Paulino, chamado “Cultura Identidade e Memorial na Amazônia”. O projeto era desenvolvido em quilombos do município de Óbidos. Em 2015, tive a oportunidade de apresentar uma proposta para desenvol- ver um projeto de pesquisa direcionado à minha aldeia Solimões. Foi no âmbito do projeto de pesquisa “A Hora do Xibé”, vinculado ao Programa de Extensão Patrimônio Cultural na Amazônia (PEPCA). O projeto “A Hora do Xibé” era coorde- nado pelo então meu orientador Florêncio Vaz. Foi nessa oportunidade que nos aproximamos. O primeiro plano de trabalho que submeti foi “O resgate cultural do cordão de pássaros do povo Kumaruara”, e o segundo foi “O sabor e a arte do povo Kumaruara”.

300 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 293-307, maio/ago. 2019 Memorial de uma liderança indígena: a construção política da trajetória... driblando as armadilhas da colonização

O projeto “A hora do Xibé” é um guarda-chuva para vários outros trabalhos a respeito da cultura amazônica. A proposta do projeto é difundir histórias, recei- tas, memórias, principalmente, pelo programa semanal mantido na Rádio Rural. A partir dos relatos registrados pela equipe do projeto “A hora do Xibé”, tivemos o desafio de elaborar um livro com os depoimentos de curandeiros, pajés, ben- zedores, puxadores, parteiras (VAZ FILHO, 2016). Essa experiência me despertou a vontade de conhecer mais de perto os trabalhos de cura dos Kumaruara. No curso de Antropologia tive oportunidade de fazer disciplinas como “Antropologia da Natureza” e “Antropologia da Saúde e da Doença” que contribuíram na minha reflexão. Senti necessidade de me aprofundar e me matriculei na disciplina “Saúde Indígena” ofertada no Instituto de Saúde Coletiva (ISCO), da UFOPA. Nessa ocasião, a partir de muita luta do movimento, iniciamos processo de inclusão dos povos indígenas do Baixo Tapajós como usu- ários da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI). Em 2017, submeti outro projeto de pesquisa específico sobre saúde indíge- na “Os mestres dos saberes tradicionais: prevenção, tratamento e cura do povo Kumaruara” sob orientação do professor Hernane Guimarães. Ao mesmo tempo que essas experiências na universidade me proporcionaram acesso a uma visão diferente, fui provocada a escrever sobre como se dá o tratamento e cura dos indígenas entre meu povo. Resolvi, assim, centrar minha pesquisa nas práticas de cura do meu povo que são repassadas de geração para geração. O fato de ter transitado em diversos espaços me proporcionou enxergar os modos de funcionamento do Estado que me possibilitou intervir na realidade. Hoje, percebo que o/a aluno/a contemplado/a com a reserva de vaga não deve apenas ocupar uma cadeira na sala de aula. O ingresso do indígena na universi- dade tem outras dimensões, uma delas é a demarcação territorial, pois este ou esta estudante tem um compromisso ainda maior dentro e fora dos muros da universidade. Pelo fato de eu ser jovem e mulher, encontrei muitas barreiras e vi o quanto é difícil transitar e se legitimar como liderança em espaços institucionais. A partir de 2017 comecei a focar minha atuação no movimento indígena nas questões de mulheres, saúde e organização política do Território Kumaruara. Quando comecei a refletir sobre meu trabalho final de curso, tive a intenção de pesquisar o tema “Mulheres Indígenas”. Em 2016, fui uma das facilitadoras de

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 293-307, maio/ago. 2019 301 Luana da Silva CARDOSO um diagnóstico da Organização das Nações Unidas (ONU) chamado “Voz das Mulheres Indígenas”, durante o período das etapas local e regional, em Santarém, da Conferência Nacional de Políticas Indigenistas, e, assim, me despertou o inte- resse de atuar na pesquisa e na extensão com as mulheres. Essa oportunidade também apurou minha sensibilidade ao escutar suas experiências, ao escutar sobre diversas formas de violência que enfrentaram, dificuldades financeiras e de acesso à assistência médica, e os obstáculos em relação a participação política. Tive contato com várias mulheres que ocupam cargos de prestígio dentro das aldeias, como São Pedro, Curucurui, Cabeceira do Amorim, Aningualzinho e outras, onde exercem papeis de cacicas, tuxaua, pajés, dentre outras funções como catequista e professoras. Infelizmente, não tive condições psicológicas para me debruçar e me aprofundar sobre esta temática. A professora Carla Ramos, da UFOPA, sempre me estimulou a pensar esta temática, mas tirou licença da universi- dade para cursar o doutorado e não me senti tão à vontade para dar continuidade. De fato, se trata de um tema muito delicado, pois essas discussões ainda estão sendo amadurecidas e envolvem relações familiares e relações entre li- deranças. Quando comecei a discutir publicamente sobre a violência contra as mulheres, machismo, e empoderamento das mulheres indígenas sofri retaliações. Sofri e sofro ainda consequências de ter impulsionado as discussões de gênero dentro do movimento indígena no Baixo Tapajós. São violências silenciosas que as pessoas não enxergam. Somente pessoas próximas a mim sabem o que enfrentei e estou enfrentando. Sofri ataques até mesmo em processo jurídico com o intuito de me criminalizar e deslegitimar minha atuação frente o movimento indígena. Não sucumbi. Em 2018, reativamos o Departamento de Mulheres do CITA e hoje há um grupo de mulheres indígenas que conduz esse debate e já se apropriou de informações e estratégias para ajudar as parentas. Seguimos em busca de nosso fortalecimento. Minha militância na saúde indígena foi impulsionada, em 2015, quando houve um surto de hepatite na aldeia Solimões. Nós passamos muitas dificulda- des pelo fato da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), do Ministério da Saúde, se negar a nos assistir e nos reconhecer como sujeitos de direitos dessa política. Gestores federais alegavam que como não tínhamos terra demarcada, não tínhamos direito de ser atendidos. Então, fui estudar as políticas de saúde indígena. Fizemos denuncia no Ministério Público Federal, organizamos várias

302 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 293-307, maio/ago. 2019 Memorial de uma liderança indígena: a construção política da trajetória... driblando as armadilhas da colonização mobilizações, chamamos a imprensa e denunciamos a falta de assistência aos indígenas do Baixo Tapajós. Com muita luta, conseguimos acessar nossos direitos. Até hoje atuo voluntariamente na saúde indígena indicada pelos/as parentes, desde 2017, para ser Presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (CONDISI), representando os municípios de Santarém e Belterra no DSEI Guamá Tocantins. Participei em fórum do CONDISI em Belém e Conferências de Saúde Municipal e Conferência de Saúde Indígena, estive inclusive em Brasília pressionando com outros/as parentes três dos últimos ministros da Saúde. E assim vamos tentan- do manter o diálogo e efetivar as demandas. Uma delas, colocada nas últimas conferências de saúde indígena local e regional, é o reconhecimento de quem desenvolve a prática de cura e cuidado dentro das nossas aldeias, como pajés e parteiras, como profissionais de saúde. Em meio a todo esse envolvimento, é que resolvi dedicar meus estudos às questões da organização política das mulheres indígenas do Baixo Tapajós. Em dezembro de 2018, na reta final do trabalho de conclusão do curso, fui apresentar trabalho na 31ª RBA – Reunião Brasileira de Antropologia na Universidade de Brasília (UnB). Por várias situações que ocorreram e em meio aquele espaço do mundo intelectual, eu com uma visão critica do que acontecia ao meu redor, e que me incomodavam, senti a necessidade de dar mais um passo. É quando em conversa com antropólogas e também com minha atual orientadora Katiane Silva fui motivada e incentivada a fazer o processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) para Universidade Federal do Pará (UFPA), aonde hoje faço mestrado.

Militância da mulher indígena e seu papel político no Baixo Tapajós A interpretação analítica sobre a militância da mulher indígena parte da minha vivência junto à história de vida de mulheres que atuavam ou atuam como lideranças. A abrangência dessa atuação é marcada pelo início da organização do departamento de mulheres indígenas na região do Baixo Tapajós, pelas trocas e contribuições com as diversas perspectivas sobre o movimento, contrapondo e/ou convergindo com o papel político (militância) das principais lideranças femininas que atuam na mobilização e no enfrentamento à violência e hoje em defesa da vida e dos territórios indígenas.

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Conhecer as experiências das mulheres indígenas no Baixo Rio Tapajós, permite traçar as dificuldades, interesses e as estratégias de luta das mulheres, protagonistas que se faz presente não só na “caminhada” junto ao coletivo indíge- na, mas também, refletem sobre a importância da mulher na tomada de decisão e de fazer valer a sua ótica no movimento indígena. Os discursos das mulheres indígenas apresentam convergências e divergências nos direcionamentos do movimento. Contudo, é possível identificar situações em que a resistência das mulheres vem tomando espaço no campo dos cacicados, quando as mulheres têm assumido ou herdado o papel de cacicas, tuxauas e de pajés no contexto social e político específicos. Nesse sentido, as mulheres estão se reterritorializando politicamente nos espaços tidos antes como de dominação masculina. O papel político das -mu lheres indígenas configurou em um quadro de múltiplas identidades políticas, no qual as mulheres assumem posições em diferentes situações da vida cotidiana. A realidade em que se encontra a mulher no movimento indígena do Baixo Tapajós contribuiu para a manutenção e valorização e permanência ou não no movimento, além de promover, indiretamente, o fortalecimento e aglutinação dos laços políticos entre os povos indígenas. Outros resultados importantes, tam- bém, puderam ser identificados como assimetria das características entre os dois perfis: universitárias (graduandas em Pedagogia, Antropologia, Direito, Farmácia e Gestão florestal), catequistas (religiosas que atuavam nas pastorais das CEB’s), provenientes das mobilizações por reformas urbanas, inclusive com uma lingua- gem ambientalista, também proveniente de grêmios estudantis. Em geral, o movimento foi constituído por mulheres solteiras e casadas e com e sem filhos/as. Sobre essa realidade constatou-se que apesar de terem sofrido com a forte pressão do sistema de “dominação masculina”, as mulheres conseguiram estabelecer estratégias de resistência, delimitando o respeito às diferenças de gênero, sem cair no apelo do contra-discurso, que privilegia o bio- logismo e a fragilidade física, como forma de estabelecer padrões biologizados, usando a medição de força física ou formas desiguais de exercer o poder, tanto nas tomadas de decisão dos rumos do movimento indígena quanto sobre as reivindicações dos territórios indígenas. As mulheres indígenas por suas formas de organização têm sido aguerridas e bastante politizadas tanto nas formas de

304 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 293-307, maio/ago. 2019 Memorial de uma liderança indígena: a construção política da trajetória... driblando as armadilhas da colonização reivindicar seu espaço no movimento; quanto na afirmação do seu papel como liderança nas aldeias. O reflexo desta posição política feminina resulta na amplitude dos debates que vão além da questão da terra, mas do território que abarca necessidades centrais como a educação, saúde, meio ambiente e a empregabilidade por meio de projetos sociais e econômicos que valorizam a cultura e a identidade indígena nas suas aldeias.

A territorialização política das mulheres indígenas do Baixo Tapajós Em 2017, nós, mulheres indígenas do Baixo Tapajós, por meio do nosso conselho representativo, Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA) organizamos três encontros regionais reunindo mulheres das nossas aldeias com a intenção de fortalecer nossa articulação dentro dos territórios. Realizamos os seguintes encontros regionais : I Encontro: Mulheres Indígenas da região do Rio Arapiuns, 20 e 21 de outubro de 2017, Aldeia São Pedro; II Encontro: Mulheres Indígenas do Planalto, Aveiro e Belterra, 04 e 05 de novembro de 2017, Aldeia Ipaupixuna; e o III Encontro: Mulheres Indígenas do Tapajós, 05, 06 e 07 de janeiro de 2018, Aldeia Solimões. Nos encontros regionais mobilizamos cerca de 250 mulheres de todas as regiões do Baixo Tapajós. Hoje, de acordo com nosso Censo, somos 13 po- vos: Arapium, Apiaká, Vermelha, Borari, Jaraqui, Kumaruara, Maytapu, Munduruku, Munduruku Cara¬ Preta, Tapajó, Tapuia, Tupayú e Tupinambá (Projeto Nova Cartografia Social, 2016), que vivem em 65 aldeias e também na cidade de Santarém. Estimamos nossa população em aproximadamente sete mil pessoas. Somos muitas e vivemos em uma grande extensão territorial, sendo que o aces- so principal para nossas aldeias é feita pelos rios. Isso traz desafios para a nossa organização política, pois demanda tempo e dinheiro para conseguir reunir as participantes dos eventos. Para compartilhar informações usamos de diferentes estratégias como envio de documentos por intermédio dos barcos e enviando recado por parentes que se deslocam pelos rios. Mas, nem sempre funciona com rapidez e eficiência exigidas pelo movimento. Uma das questões que definimos como prioritária nos encontros regionais foi viabilizar a eleição do Departamento de Mulheres do CITA para poder voltar

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 293-307, maio/ago. 2019 305 Luana da Silva CARDOSO a nos articular dentro do nosso conselho. Desse modo, após a renovação da coordenação do nosso conselho, o CITA, que aconteceu efetivamente em junho de 2018, iniciamos articulação para composição do departamento de mulheres. Então, nós decidimos realizar uma assembleia das mulheres com objetivo principal de eleger aquelas que ficarão à frente do departamento de mulheres.

Figura 4 - Encontro de Mulheres Indígenas na aldeia de Solimões (janeiro/2018)

Foto: Vanessa Barros

Realizamos a Assembleia de Mulheres, entre os dias 3 e 5 de setembro de 2018, na região Planalto Santareno para dar visibilidade a nossa luta. Os povos Munduruku e Apiaká do Planalto não têm garantido o direito ao território tradi- cionalmente ocupado. Além da terra indígena não estar demarcada, os parentes sofrem pressão cotidiana do avanço da monocultura da soja na região. As lideran- ças vivem sob ameaça dos “sojeiros”, a terra está envenenada por agrotóxico, os igarapés morreram, grande proporções do território foi desmatada. A situação é alarmante, a violência e a insegurança se faz presente razão pela qual decidimos realizar nossa assembleia na aldeia Açaizal, no Planalto. Nos nossos encontros dialogamos sobre diversos assuntos, os quais dizem respeito a nossa cultura, a luta pelo acesso e gestão de nossos territórios e ao nosso bem viver. Discute-se sobre acesso às políticas públicas de saúde, educação e demarcação de terras. Conversa-se muito a respeito dos desafios de ser mulher e participar das atividades do movimento indígena, pois temos tarefas domésticas que dificultam nossa saída, uma vez que os cuidados com filhos, casa, alimenta- ção, roça ficam sob nossa responsabilidade. Além disso, é comum nossos maridos

306 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 293-307, maio/ago. 2019 Memorial de uma liderança indígena: a construção política da trajetória... driblando as armadilhas da colonização

­tentarem e mesmo impedirem nossa participação. Criamos espaços de acolhimento para as mulheres indígenas compartilharem seus sofrimentos, para nos apoiar e construir estratégias para superar todos os tipos de violências que vivenciamos. Para nós, mulheres indígenas, é muito importante quando estamos juntas termos tempo para nossas atividades manuais. Por isso, gostamos de realizar oficinas de remédio caseiro, material limpeza, artesanato, corte e costura, entre outras. É um momento de troca de conhecimento, produção de materiais para nosso consumo e, também, para comercialização, fala-se de política, coloca-se a conversa em dia, e fortalecemos nossos laços de amizade e afeto. Esse processo de proporcionar encontros entre nós nos fortalece e nos motiva a lutar pelos direitos dos nossos povos e pelo nosso território. Cada dia mais mulheres indígenas se juntam a nossa luta! É esse o caminho que estamos construindo! As guerreiras indígenas do Baixo Tapajós fortes e unidas na resistência em defesa da nossa existência.

REFERÊNCIAS HARRIS, Mark. Rebellion on the Amazon: the Cabanagem, race, and popular culture in the North of Brazil, (1798-1840). Cambridge: University Press, 2010.

PROJETO NOVA CARTOGRAFIA. Caderno nova cartografia social: resistência e mobilização dos povos indígenas do baixo tapajós. Manaus: UEA Edições, 2016.

VAZ FILHO, Florêncio Almeida. Pajés, benzedores, puxadores e parteiras: os imprescindíveis sacerdotes do povo na Amazônia. Santarém: UFOPA, 2016. 138 p.

VAZ FILHO, Florêncio Almeida; CARVALHO, Luciana Goncalves de. Isso tudo é encantado. Santarém: UFOPA, 2013. 126 p.

Sobre a autora: Luana da Silva Cardoso – Mestranda no Programa de Pós-graduação em Antropologia (PPGA) na Universidade Federal do Pará. E-mail: [email protected]

Recebido em 20 de setembro de 2018 Aceito em 09 de maio de 2019

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Sou professor Ejiwajegi/Kadiwéu

Gilberto Pires1

DOI: http://dx.doi.org/10.20435/tellus.v19i39.635

Preciso contar a minha história até chegar ao mestrado em Antropologia Social que faço junto ao Programa Pós-Graduação em Antropologia Social na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). Para fazer isso achei que seria melhor dividir minha trajetória em fases: infância, juventude e vida adulta.

DA INFÂNCIA No ano de 1966, no dia seis do mês de dezembro, aproximadamente ao meio dia nasci, sou o terceiro filho do casal Alfredo Pires e Inácia Bernardino, “criança nascida antes da hora”, mas no momento certo para a minha família. Meus pais são Ejiwajegi (Kadiwéu) da Aldeia Libadi (Alves de Barros)2. Cheguei como uma criança, segundo meus pais, que veio na boa hora por causa da recente perda de um filho de apenas três anos do jovem casal (meu pai com 26 anos e minha mãe 16 anos). Então o pequeno Gilberto Pires veio em boa hora. Então, daí começou a minha a missão, além de nascer prematuro, mesmo assim trazia muita alegria para a família. Quando eu estava com dois anos de idade chega a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) na Terra Indígena Kadiwéu, instalando-se no território do meu povo, na parte chamada de Nalique, uma antiga aldeia, que desta forma se torna a sede do órgão indigenista oficial do Estado brasileiro e, ao mesmo tempo, “institui” uma fazenda que tinha como objetivo ser o modelo agropecuário para a minha comunidade. A comunidade estava cheia de expectativas com o projeto novo na comunidade eu, Gilberto, aquela altura estava com cinco anos e ainda com “moleira aberta”, mas, graças a chegada do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), os religiosos logo diag-

1 Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil. 2 Por razões étnicas escreverei primeiro na minha língua materna e depois colocarei entre pa- rênteses os vocábulos em português para facilitar a leitura pelos não Ejiwajegi/Kadiwéu.

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 309-313, maio/ago. 2019 Gilberto PIRES nosticaram que estava com falta de cálcio e informaram que eu teria que tomar leite natural até fechar por completo a cabeça. Como existia a intervenção da FUNAI na pecuária, minha família conseguiu que lhe fosse emprestado cinco vacas leiteiras que o meu pai, Alfredo Pires, tirasse o leite todos os dias durante muito tempo da sua vida para nutrir as minhas necessidades e também as dos meus outros cinco irmãos. Com oito anos de idade inicia-se um novo período em minha vida, começo a frequentar pela primeira vez a escola, graças a insistência da minha avó ma- terna, dona Dorira, que eu acompanhava todos os dias, pois ela não queria ficar sozinha na escola por não saber falar uma palavra em português. A professora era a senhora Keila, esposa do missionário Geraldo da missão evangélica, instituição que havia chegado anos atrás em nossa aldeia. Antes de ser alfabetizado chegaram as professoras gêmeas Ilka e Gilka, ainda, na época do coronelismo na década de setenta. E elas seguindo as regras da ditadura vigente no Brasil (1964-1985) começaram a alfabetizar na maneira rígida da qual ninguém escapava. Todos tinham que aprender a falar e a ler em língua portuguesa, processo de escolarização que me causou muito trauma pois, com frequência, ficava de castigo, por horas, ajoelhado nas pedrinhas, ou por horas intermináveis no pátio ao pé do coqueiro para que todos que passassem pudessem ver os castigados. Só quem passou por uma situação dessas sente o tamanho da humilhação, além das palmadas e puxões de orelhas que eram constantes no cotidiano escolar. Em suma, a escola para mim e para o meu povo começou como um ato de violência contra a nossa cultura e as nossas formas de educar as crianças. Fora da escola eu tinha uma vida feliz, de uma criança normal, que brincava, sem esquecer as pequenas obrigações como: levar o almoço para o meu pai na roça; levantar de manhã para montar a égua preta e rodear o engenho de moer cana de açúcar para extração do walabo (garapa) que servia para fabricação de rapadura que era vendida na redondeza do meu território. Também, tinha horas de lazer para brincar com meus irmãos e primos, todas as vezes que nos juntáva- mos sempre fazíamos travessuras, brincadeiras de criança feliz!

310 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 309-313, maio/ago. 2019 Sou professor Ejiwajegi/Kadiwéu

DA JUVENTUDE Uma fase boa e também muito marcante, diz respeito aos anos oitenta quando a FUNAI criou alguns postos de vigilância nas imediações da divisa do nosso Território, período em que meu pai foi contratado para trabalhar como vigi- lante em um desses postos. Senti muita falta dele, pois se tornou um pai ausente, fiquei somente com a minha mãe, quando era jovem, na maior parte do tempo. Aproveitei esse tempo para me destacar e desenvolver talentos. Com treze anos me tornei um dos oficiais músicos da igreja local tocando violão. Na escola tive boas notas, comecei a me interessar pela leitura e com quinze anos saí para trabalhar na fazenda Taquarusu, atualmente conhecida como Flôr da Bodoquena. Lá nessa fazenda, eu fazia de tudo, capinava e colhia café entre muitas outras atividades. O trabalho veio pelo desejo de me vestir com botas de cano longo que, à época, todos os garotos tinham, só eu que não. Na volta dessa primeira experiência de trabalho fora do território do meu povo continuei estudando só que, à época, na aldeia, o ensino era oferecido apenas até a quarta série do fundamental, depois os alunos tinham que se deslocar para outro lugar se quisessem continuar com os estudos. Foi quando parei de estudar por falta de condições de ir viver na região do território do povo Terena, onde as escolas ofereciam a continuação do ensino fundamental. Nesse período, como bom Ejiwajegi comecei a me apaixonar pela montaria em cavalo e me tornei peão por algum tempo. Na mesma época, me tornei um menino rebelde, nos conceitos do período, pois gostava de festas, encontros com amigos e muitas meninas, foi um período que na minha opinião foi uma fase de aprendizagem de vida. Aos 18 anos me apaixonei por uma garota, e com 19 anos já estava amigado, aí o resultado é fácil de se imaginar, vieram os primeiros filhos. Sem saber direito o que fazer tive que me empenhar no trabalho de forma dobrada. Meu pai que foi contra o casamento, me deixou sem auxilio algum, e sozinho tendo que arcar com a criação dos filhos. Como sempre considerado pela comunidade como di- ferente, inteligente, capaz de aprender com facilidade as coisas e os ofícios, com o tempo, fui superando os desafios de ter a minha própria família. No ano 1997 a professora que atuava na escola da aldeia, Dona Cleusa Alcântara, de etnia Terena e casada com um Ejiwajegi, entrou em licença de

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 309-313, maio/ago. 2019 311 Gilberto PIRES maternidade. Surgiu então a oportunidade de despertar um sonho que estava adormecido dentro de mim, de um dia voltar a estudar. De início fiquei seis me- ses de professor substituto e quando terminou o meu tempo, na despedida eu disse para os meus alunos, bastante emocionado, que um dia voltaria, mas, com a formação adequada de professor. Em 1999 passei por uma experiência radicalmente diferente: sofri um aten- tado e levei um tiro a queima roupa na região da nuca e, só por milagre fiquei sem sequela nenhuma. Entretanto, gastei tudo o que tinha com médico particular e acabei ficando sem posses, pois o gado foi vendido, assim como a tropa de equi- nos e muares, tudo se foi. Até a esposa, mas ainda consegui perdoá-la, pois ela, ficou sem muita confiança em mim, afinal de contas quem me atirou em mim foi o irmão dela.

COM ADULTO, VEIO A SUPERAÇÃO No ano de 2000 consegui entrar em um projeto de computação básica, no município de Bodoquena, onde estava morando. Aproveitei que estava na cidade e me matriculei na escola para continuar com meu sonho de terminar o curso em nível superior. Em 2001 abriu vagas para a primeira turma do magistério na aldeia, projeto no qual mergulhei de cabeça, pois vi que era minha oportunidade de continuar sonhando e realizando a vontade de estudar. Para completar esse caminho me contrataram no mesmo ano para lecionar para as séries iniciais. No final de 2004 concluí o magistério, porém, o partido político que criou o projeto do magistério perdeu a eleição e fiquei sem sala de aula, mas vi que era a minha oportunidade de partir para mais um desafio até então desconhecido por mim, a universidade. No mesmo ano de 2005 prestei o primeiro vestibular na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), mas não consegui passar. No ano seguinte passei para cursar administração, porém acabei desistindo, por vários motivos: tempo, recursos e dificuldade com os estudos, entre outros. Fui morar na cidade de Bonito, onde foi implantado um núcleo da FUNAI e, em 2007, estava nova- mente estudando, dessa vez no curso de administração rural, no qual consegui me manter até o terceiro ano, mas acabei desistindo novamente por falta de condições financeiras.

312 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 309-313, maio/ago. 2019 Sou professor Ejiwajegi/Kadiwéu

Nesse interim eu tinha passado no concurso da prefeitura de Bodoquena como secretário de escola, voltei à Bodoquena, fiquei apenas por um ano e re- solvi voltar para a Terra Indígena, pois havia recebido uma excelente proposta do município de Porto Murtinho, para lecionar, com uma carga horária de 40 horas, em sala de aula. Novamente, por um curto período, pois fiquei por apenas seis meses no cargo. Nesse tempo, tinha concorri, em uma eleição, para a associação da comunidade, chamada Associação Indígena da Reserva Kadiwéu (ASIRK) a qual perdi, e acabei perseguido pela liderança que conquistou o posto eletivo. Tive que ir embora para Bonito novamente. Em Bonito trabalhei por mais um semestre de vendedor externo de vários produtos de mercado, quando um belo dia tocou meu telefone, era a secretária de educação de Porto Murtinho, a qual, além de minha amiga, gostava muito do meu trabalho e, do telefonema resultou que fui enviado para Barro Preto, uma outra aldeia do mesmo Território Kadiwéu, onde trabalhei de 2010 a 2013 como professor regente. Uma nova experiência conhecendo outra realidade de um povo quase iso- lado e que fica muito distante de qualquer cidade. A cidade, mais próxima, dista da aldeia aproximadamente de 150 km, era Bonito. Em 2011, passei no vestibular na UFMS, Licenciatura Intercultural Indígena com habilitação em Ciências Sociais, concluído em 2014, em seguida em 2015-2016 fiz especialização em Educação, História e Cultura Indígena pelo Centro Universitário Filadélfia (UNIFIL). Em 2017 consegui entrar no mestrado em Antropologia Social pela UFMS e agora estou aqui, escrevendo a minha dissertação para pensar a educação escolar indígena na Terra Indígena Kadiwéu e ao mesmo tempo refletir sobre a minha sociedade, na tentativa de me tornar um antropólogo, o primeiro do meu povo.

Sobre o autor: Gilberto Pires – De pertença Ejiwajegi/Kadiwéu. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e professor. E-mail: [email protected]

Recebido em 30 de novembro de 2018 Aprovado para publicação em 10 de maio de 2019

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Trajetória de Ʉremirĩ Arapasso: movimento indígena e resistência na universidade

Virgínia Braga Fonseca1

DOI: http://dx.doi.org/10.20435/tellus.v19i39.636

UNIVERSIDADEPɄ WAKŨ TUTUARÃ NIRA WE´E ɄHSÃ! (SOMOS RESISTÊNCIA NA UNIVERSIDADE!) O Brasil é conhecido pela diversidade cultural de povos indígenas e tra- dicionais. Herança que nos foi deixada pelos ancestrais, a qual norteia a nossa resistência, sobretudo nós povos indígenas da Amazônia. Muitas foram as formas coloniais que tentaram nos aprisionar e, desde a descoberta do látex (borracha), o contexto do suposto progresso ou do desenvolvimento econômico afetou toda a região, do hoje, estado do Amazonas. A urbanização dos espaços, a industriali- zação, a apropriação dos meios de produção e as formas de trabalho inspiradas nos modelos de países capitalistas, produziu inúmeras dificuldades. Apesar das dificuldades impostas, nós povos indígenas (23 etnias) do Rio Negro contamos com o ativismo evangelizador da Igreja Católica teve forte influ- ência na área por intermédio das Carmelitas, sobre as 23 etnias. Nosso povo Arapasso surgiu em uma das muitas cachoeiras do Alto Rio Negro em um orifício (buraco) da grande pedra, como contava meu pai, ensinando-nos a nossa história, o trajeto percorrido pela cobra grande permitiu que os nossos ancestrais, subissem os rios e assim surgiram os povos indígenas. Assim, meu pai e minha mãe, meus grandes sábios, começavam a contar a trajetória de cada um dos parentes. Jovens, minha mãe veio descendo o rio Papuri e meu pai o rio Uaupés. Passaram por São Gabriel da Cachoeira, descendo o Rio Negro, ambos ficaram em “Tapuruquara” (buraco de tapurú), atualmente, município de Santa Isabel do Rio Negro.

1 Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, Pará, Brasil.

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Tiveram dez filhos/as, sou a última recebi o nome de Ʉremirĩ Arapasso, -du rante minha infância, minha mãe que sofreu muito com a opressão da exploração ocidental, e cedo me alertou para que eu, e meus irmãos pudéssemos estudar, pois ela acreditava, à época, que somente pela educação que alcançasse o en- sino superior, é que poderíamos alcançar justiça e manter a nossa determinada resistência como indígenas. Lembro-me das vezes em que ela dizia “ou estuda ou tem roça para plantar”, não que o trabalho na roça fosse algo ruim, aliás, sempre que me vem à memória o trabalho da terra, é quase impossível não lembrar dela. Minha mãe, Mercedes Baré, é uma mulher literalmente guerreira. Mesmo com suas limitações de conhecimentos escolares, nunca permitiu que meus irmãos e eu, ficássemos desamparados nos estudos. Ela e meu pai Olavo Arapasso, tiveram pouca instrução escolar básica, pode-se dizer que de fato nenhuma, apenas meu pai estudou até a quinta série na escolar rural coordenada pela Igreja Católica. Nossa rotina era sempre a mesma. No meu caso, durante a semana eu ia a escola e nos finais de semana e em feriados, ajudava a família nas atividades da roça.

DO CHAMADO MISSIONÁRIO, AO ENFRENTAMENTO DO RACISMO Fiz o ensino Básico na Escola Santa Isabel, sob a direção era por freiras sale- sianas. E lá no município de Santa Isabel, dei início ao ensino médio, na escola Pe. José Schneider, que não mais era coordenada pela Igreja, mas sim pelo Município. Mais tarde, tive que me transferir para São Gabriel da Cachoeira, onde conclui o segundo grau. Na verdade, a mudança, foi motivada pela experiência vocacional junto a Congregação Salesiana. Em São Gabriel da Cachoeira participei ativamente nos movimentos da Congregação Salesiana. Enquanto estudante, atuei na Paroquia da Pastoral da Juventude, fui cate- quista e coordenei o grupo Infância Missionária. E, a partir desse instante, a minha vivência passou a ser exclusivamente dentro da Congregação e na comunidade paroquial, e isso fez com que eu tivesse vontade de seguir a vocação missionária. Consequentemente, fui desenvolvendo minhas funções, chegando a ser assesso- ra do grupo Juventude Católica (JUSC) na Comunidade São Sebastião conhecida como Dabarú.

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Com o objetivo de concluir mais uma das etapas de formação missionária me transferi para a cidade de São Paulo em meados de 2010. Permaneci durante sete meses na capital paulista, durante a estada, me deparei com o preconceito e racismo das noviças que vinham do sul para fazer a mesma formação que eu. Muitos são os episódios dos quais me lembro. O comportamento de algumas companheiras de noviciado, com as quais dividia o quarto, desconfiavam de que eu pudesse roubá-las durante a noite de sono. Internamente, eu sofria com tal injustiça, pois estava compartilhando do mesmo espaço que elas, ao ouvir as ideias e comentários, ficava triste. Ao passar pela experiência tive a oportunidade de conhecer outras atividades religiosas que envolviam uma maior integração com a sociedade em geral, como por exemplo a Pastoral da Juventude. Naquele momento, tive certeza que o meu lugar não era na Congregação, e sim estar na luta com juventude, que para mim representou aprofundar a busca espiritual. Saindo da Congregação eu poderia fazer muito mais, sobretudo pelo aprendizado, pela experiência boa e, mesmo outras, não tão boas. Eu tinha a possibilidade de, enquanto jovem, me tornar protagonista, queria ser como um pássaro livre, pois na Congregação não me sentia à vontade, eu não era eu mesma, ou melhor, talvez eu não fosse quem realmente queria ser. Assim refletindo, decidi voltar para o Amazonas, para perto do meu povo. Logo após o meu retorno, sofremos a perda do meu irmão mais velho, que era professor, o primeiro da família a ter a Graduação (Proformar/Universidade Estadual do Amazonas [UEA]). Ele lecionava em uma comunidade indígena no Rio Içana. Em umas das suas viagem a trabalho, seu barco naufragou. Não consigo descrever em palavras a dor de meus pais, para eles, era muito difícil lidar com a expectativa de aguardar a chegada do filho professor, afinal ele não mais chegaria! No ano de 2012, iniciei o trabalho na coordenação da Pastoral da Juventude de Santa Isabel do Rio Negro (PJSIRN) e, ao mesmo tempo, passei a realizar traba- lhos voluntários na Associação das Comunidades Indígenas do Médio Rio Negro (ACIMRN) e dessa forma comecei a acompanhar a luta, os projetos e as reuniões da Associação, à época surgiu a oportunidade de ser contratada como auxiliar bibliotecário da Escola Municipal Tenente Brigadeiro. E assim caminhando, fui sentindo necessidade de avançar nos estudos. A minha primeira tentativa de ingressar no ensino superior, veio pela seleção para

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 315-324, maio/ago. 2019 317 Virgínia Braga FOSENCA povos indígenas da Universidade de Brasília (UnB), no ano de 2011. Não fui aprova- da e, desde então, me debrucei sobre nas atividades da Pastoral da Juventude e da ACIMRN. O tempo passou e eu ouvi falar do Processo Seletivo Especial para Povos Indígenas que acontece todos os anos, desde 2009, promovido pela Universidade Federal do Pará, pioneira na adoção de políticas afirmativas para povos indígenas. A minha segunda tentativa de ingressar no ensino superior foi na UFPA, uma vez mais não consegui êxito, algo estava errado, comecei a refletir sobre o insucesso. Analisando as duas primeiras tentativas, descobri que os cursos que pretendia, eram os de maior concorrência, justamente Medicina. São apenas duas vagas para povos indígenas e a maioria dos parentes (termo comumente utilizado pelos povos indígenas, ao se reconhecer, independente de parentesco) optavam por este curso. Foi assim que juntando outras questões, sai em busca de que tipo de formação eu precisava para ajudar o meu povo? Que tipo de retorno eu poderia oferecer de melhor para os povos indígenas? E mudei... No ano de 2016, fui aprovada no curso de Administração pela Universidade Federal do Pará, e decidi que iria ser não apenas gestora, mas uma futura admi- nistradora que pudesse melhor articular as questões indígenas que por muito tempo tem sido gerenciada por não indígenas. A entrar na Universidade, desde o primeiro momento, eu fui alertada sobre o preconceito e racismo com que os indígenas eram tratados. Então, fui muni- da de toda a segurança que minha família e meu povo me passou bem antes de viajar. Eu sabia que tinha que ter sempre em mente que ninguém, além do meu povo, conhecia a minha história e o que eu passei até chegar no banco de uma sala de aula universitária. Passei pelos semestres com muitas dificuldades, algumas delas veio não somente da minha dificuldade em compreender, mas também das práticas pedagógicas utilizadas pelos professores ao ministrar suas aulas. Infelizmente me deparei com falhas institucionais que jamais imaginei que pudessem acontecer em uma Instituição de renome como a UFPA. Percebi que teria de caminhar sozinha em muitos momentos. Em contrapartida, conheci e me afiliei em uma organização sem fins lucra- tivos que amparava o estudante indígena em sua entrada e permanência acadê- mica. A Associação dos Povos Indígenas Estudantes na Universidade Federal do Pará (APYEUFPA) criada pelos próprios indígenas estudantes que ingressaram na UFPA, nas primeiras edições do Processo Seletivo Especial (PSE).

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EM BELÉM DO PARÁ Quando escrevo sobre o começo da minha graduação, gosto de começar pelas minhas dificuldades vir para Belém, pois não contava com uma certa viabi- lidade financeira para me movimentar de avião. Então, comprei minha passagem de barco e viajei por quatro dias, naveguei por muitos rios, pelo Rio Negro até encontrar o Rio Solimões, depois o Amazonas, e finalmente cheguei! Matriculada no curso de administração, eu passei a frequentar cotidia- namente as aulas pelo turno da manhã. Durante o resto do dia, permanecia o máximo de tempo que podia dentro do Campus, usufruindo da refeição popular no Restaurante Universitário (RU), utilizando as dependências da biblioteca para estudar, descansando em baixo das arvores, olhando o rio Guamá esperando dar a hora de ir jantar no RU. Quando me dava conta, já tinha passado um dia todo, aí eu encarava o translado de Belém a Ananindeua onde fui acolhida, por alguns meses, na casa de uma parente, Putira Sacuena (Eliene Rodrigues) e família. Lá fiquei durantes um ano até. Até que eu pudesse receber a bolsa permanência para me manter de forma independente. Permaneci em Ananindeua (município da área metropolitana de Belém) até janeiro de 2018, quando me mudei para Belém, para mais próximo da Universidade, coloquei a mudança nos planos por conta do cansaço físico da logística de translado.

INSEGURANÇA E VIOLÊNCIA NA CIDADE GRANDE O motivo que me fez tomar a decisão de sair de Ananindeua foi que o medo de morar naquele local, consumia meus pensamentos. O kitnet em que eu morava foi invadido por dois homens se dizendo da polícia, e vejam, eu moro com dois jovens do Rio Negro, uma moça e um rapaz. No bloco em frente, outros dois jovens vindos da mesma região, portanto nos conhecemos antes de chegar a Belém. Todos juntos sentíamos segurança, mas... Ainda não sei o real motivo da invasão, mas foi ruim e nos traumatizou, acordamos assustadas, pois os dois caras disseram estar à procura dos meninos que com eles tinham dívida. Os homens bateram nos meus amigos e eu atordoada sem entender o que estava acontecen- do, tentei tomar informações sobre a ocorrência e acabei agredida, bateram no meu rosto. Ainda carrego sentimentos ruins deste episódio, pois foi inesperado

Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 315-324, maio/ago. 2019 319 Virgínia Braga FOSENCA e ainda desconheço o que levou aos agressores fazerem tal brutalidade com os meus amigos. É comum os indígenas veteranos abrigarem os outros, na verdade, os ve- teranos acabam sendo referência para os parentes que se encontram em nossas aldeias. Em relação a situação de moradia ou como na academia dizem “perma- nência” tivemos que lutar, nós estudantes indígenas, novatos e veteranos, gradu- andos e pós-graduandos por uma mesma finalidade, a permanência adequada dos estudantes indígenas no ensino superior público. Em meio a reuniões, os membros da APYEUFPA discutiam nossas carências e como podíamos superá-las via programas institucionais. Foram, e ainda são muitos os debates que temos isoladamente, antes de levarmos a mesa da Reitoria, nossas reivindicações. A meu ver, uma das atribuições de maior importância da Associação é levar os assuntos pontuais às reitorias das instituições que nos abrigam como estudantes, pois, foi esse tipo de atitude que fez com que estreitássemos mais as nossas parcerias com outros núcleos do Campus. Realizamos e fomos convidados em muitas rodas de conversas, seminários, debates. Fizemos tudo que o que foi preciso para que a “comunidade acadêmica” nos notasse, e assim aconteceu.

Na faculdade de Administração Ao receber o resultado de aprovação no curso de Administração, fui orien- tada quanto ao processo de encaminhar ao Centro de Registro de Indicadores Acadêmicos (CIAC), na UFPA, e logo pude perceber como a burocracia faria parte incessante da minha vida. A Faculdade de Administração como todos os cursos da UFPA possui disci- plinas introdutórias, que permite que ao discente, uma compreensão panorâmica dos conhecimentos na área, afim de que os estudantes possam estar “nivelados” para as disciplinas específicas que se iniciam a partir do segundo semestre letivo. Todavia, quando faço um retrospecto percebo que o curso possui uma grade curricular desatualizada em que não abarca muito do que se é necessário para a formação de um administrador no Brasil, especialmente de uma indígena que se pretende administradora. Hoje reflito como indígena e futura administradora, que a educação superior pública deste país, sobretudo a do Norte, precisa fixar-se de maneira mais próxima

320 Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 39, p. 315-324, maio/ago. 2019 Trajetória de Ʉremirĩ Arapasso: movimento indígena e resistência na universidade de nossa realidade econômica e social, para que crescimento do Brasil, seja um desenvolvimento honesto e respeite a diversidade presente na Amazônia, sem saquear nossas riquezas naturais. As dificuldades com as disciplina e os conteúdos que incluem contas e cálculos, sem dúvida, eram as mais difíceis para mim e para quase todos os cole- gas de turma. Ao entrar no curso conheci outra pessoa indígena, Evelyn Xipaya, oriunda do hoje município de Altamira no Pará, ela me relatou ter desistido do curso em um dado momento, em que não se identificava, mas que resolveu ten- tar novamente dois anos depois, e ,em alguns momentos pudemos nos apoiar enquanto indígenas mulheres dentro de uma faculdade altamente machista e racista. Alguns trabalhos acadêmicos, Evelyn pode me ajudar enquanto eu tentava avançar em outros. Lembro-me de em uma semana, muitos eram os trabalhos a serem entregues e em curto espaço de tempo, para que se compensasse os atrasos gerados pelas greves. Enquanto estudava, a APYEUFPA crescia. No ano de 2016, o professor Emmanuel Tourinho elegeu-se a reitor da Universidade, juntamente com seu vice, professor Gilmar. Ambos nos procuraram para conhecer a Associação e suas principais demandas que ao longo dos anos vínhamos reivindicando. Selamos o compromisso de apoiá-lo enquanto Reitor, em troca de que ele pudesse enxergar os indígenas com um olhar desprovido de preconceito, racismo e, principalmente, que ele e sua gestão nos convidasse enquanto associação de estudantes indígenas, à participar e se possível, deliberar sobre o ingresso e as condições de perma- nência de indígenas na UFPA por intermédio das Políticas de Ações Afirmativas.

Construindo e testemunhando resultados O ano de 2017, foi o ano em que colhemos alguns frutos que vínhamos lutando em semear. Isso porque os primeiros parentes que ingressaram em 2010, 2011 e 2012, vinham trabalhando em unidade para a construção da APYEUFPA, de forma que ela pudesse representar todos os indígenas da UFPA, para isso, precisávamos de estrutura física e autonomia. Na necessidade de somar forças, a APYEUFPA juntamente com outras associações e movimentos sociais respondeu presente no Campus, somaram para a eleição do novo reitor.

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Conquistamos uma sala equipada, em 2017, e no ano seguinte recebemos a Capela Ecumênica do campus básico da UFPA, e a batizamos ela de “maloca” nossas atividades culturais passaram a ser realizadas no espaço da Maloca, as- sim, as pessoas pudem ver e ouvir nossa atividades, conquistamos dessa forma maior visibilidade. Alguns professores se mostraram parceiros e interessados em fazer algo pela educação dos indígenas de cursos da área da saúde. Os primeiros programas de tutorias para povos indígenas, aconteceram através do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) na UFPA. A melhora no aprendizado foi gradativo e teve efeitos sociais positivos, no final do ano de 2018, os programas de tutoria específicos para indígenas, foram formulados pelo Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) e pelo Instituto de Ciências Jurídicas (ICJ) estão iniciados ofe- recendo-nos apoio.

Fora da sala de aula, muitas conquistas Outro espaço muito importante que nós conquistamos, foi a participação e a possibilidade de deliberar em conjunto com o Diretório Central de Estudantes (DCE). Foi neste momento que me dei conta da minha atuação. Participava ati- vamente das reuniões, pois a medida que me importava estar a par de decisões do Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão (CONSEPE) e percebia que nós deveríamos estar próximos das lideranças estudantis a fim de unir forças na busca pelo direito a permanência digna do estudante dentro das universi- dades. Atualmente além do CONSEPE, temos representatividade no Conselho Superior de Administração (CONSAD) e no Diretório de Movimentos Sociais. Consequentemente temos assento no Conselho Universitário. A minha experiência com o DCE foi ativa, pude acompanhar todo o processo da campanha que nos rendeu vitória e a partir desse momento fomos cada vez mais nos inserindo no movimento estudantil, enquanto a APYUFPA. Participei em 2017 no 57º. Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) uma experiência de suma importância para a representatividade da APYEUFPA nesses espaços, Resgatando a experiência que tive com a Pastoral da Juventude, contribuo com as lutas junto aos movimentos sociais e fui aprendendo a me identificar e, hoje, participo do Levante Popular da Juventude (LPJ), no qual tem sido parceira de luta junto com os estudantes indígenas.

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Algo muito significativo também, foi o Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas (ENEI), em 2016, em Santarém-PA e, em 2017, em Salvador-BA, um espaço de partilha, sobre diversos temas voltados à educação, à saúde, à re- sistência e à permanência junto com os parentes discentes universitários de todas as regiões. Volto sempre renovada dos eventos, pois encontrar com outros parentes, saber dos demais povos aprendendo com as suas especificidades e compartilhando situações parecidas com a minha, isso me ajuda a entender que não estou só na luta.

Eu serei resistência junto com meu povo Atualmente, me encontro no penúltimo semestre de Administração e fui eleita a nova presidente da APYEUFPA. O sentimento que tinha de que não alcançaria grandes coisas, hoje, não existe mais, pois analiso e leio de tudo que aconteceu, e consigo me enxergar um destino do qual não posso me desviar, especialmente quando olho para os 23 povos da minha região e percebo, sinto como eles esperam que eu ajude na luta pela nossa resistência. Tenho minhas limitações, no entanto, a força que vem da união dos parentes, tanto da base, quanto da cidade, me faz acreditar que posso alçar voos altos. Olho para o nosso cenário político e me entristeço, me revolta ver o retrocesso que os povos indí- genas estão a sofrer, mas não desisto! Hoje eu entendo melhor o propósito de eu vir de tão longe. Preciso estu- dar para ter propriedade em debater politicamente as questões indígenas, mas sobretudo, preciso me fortalecer honrando os meus ancestrais, eu sei que eles estão comigo, por onde eu caminhar. Nossa luta hoje é para validar o sangue que foi derramado desde que o branco empurrou goela a baixo o seu modo de vida em nossas aldeias. Agora, usaremos do nosso poder e sabedoria indígenas somados aos conhecimentos do homem branco, e assim mostraremos o quão honesta e justa é a nossa busca por respeito e reparo desta sociedade com os povos indígenas da Amazônia, do Brasil e do mundo.

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Sobre a autora: Virgínia Braga Fonseca – De pertença Arapasso. Graduanda no Curso de Administração da Universidade Federal do Pará (UFPA). Presidenta da Associação dos Povos Indígenas estudantes da Universidade Federal do Pará (APYEUFPA). E-mail: [email protected]

Recebido em 2 de março de 2019 Aprovado para publicação em 13 de maio de 2019

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