PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-graduação em Letras

Adriana dos Reis Silva

AS RELAÇÕES INTERÉTNICAS BRASILEIRAS: UMA ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DE CLARA E

Belo Horizonte, 2014 Adriana dos Reis Silva

AS RELAÇÕES INTERÉTNICAS BRASILEIRAS: UMA ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DE CLARA E FERA FERIDA

Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa.

Orientadora: Profa. Dra. Terezinha Taborda Moreira. Coorientador: Prof. Dr. Hugo Mari.

Belo Horizonte, 2014

FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Silva, Adriana dos Reis S586r As relações interétnicas brasileiras: uma análise da construção discursiva de Clara e Fera Ferida / Adriana dos Reis Silva, Belo Horizonte, 2014. 188 f.: il.

Orientadora: Terezinha Taborda Moreira Coorientador: Hugo Mari Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Televisão e literatura. 2. Telenovelas - Crítica e interpretação. 3. Análise do discurso. 4. Sociolingüística. 5. Racismo. I. Moreira, Terezinha Taborda. II. Mari, Hugo. III. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 869.0(81).09

Adriana dos Reis Silva

AS RELAÇÕES INTERÉTNICAS BRASILEIRAS: UMA ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DE CLARA E FERA FERIDA

Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa.

______Terezinha Taborda Moreira (Orientadora) – PUC Minas

______Hugo Mari (Coorientador) – PUC Minas

______Marco Antônio Rodrigues Vieira – UFV

______Paulo Henrique Aguiar Mendes – UFOP

______William Augusto Menezes – UFOP

______Márcia Marques de Morais – PUC Minas

Belo Horizonte, 03 de outubro de 2014.

Aos meus pais e a todos aqueles que acreditam em seus sonhos e suas realizações.

AGRADECIMENTOS

Obrigada meu DEUS pela disciplina, perseverança e sabedoria para conduzir tudo isso.

Obrigada mãe, pai pelo apoio e crença.

Obrigada Mestres, Terezinha e Hugo, as palavras me faltam para dizer o quanto sou agradecida...

Agradeço aqueles que trilharam este caminho comigo me aconselhando, dando apoio moral, (pois sabiam das pedras no caminho...) além da amizade e carinho, vocês minhas amigas Maysa e Nazaré, boas companheiras.

Agradeço a aquela que estava nos bastidores dessa festa e, certamente, sem ela não seria possível tal evento, a minha prezada amiga Berenice.

Obrigada àqueles que contribuíram direta ou indiretamente para a ordem do intelecto: agradeço ao Paulinho (Paulo Mendes), ao Marco Antônio (pelas prosas insólitas), à Márcia Morais, à Nazaré Fonseca, à Ivete Walty, ao Milton Nascimento, à Jane Quintiliano, à Juliana Assis, à nossa querida Malu, que certamente, nos olha lá de cima...

Pela paciência e companheirismo agradeço a vocês meus irmãozinhos: Camilla, André, Daniela; a minha sobrinha, querida, Yasmim.

Pela virtude daqueles que me escutaram ao longo desses anos: Cris, Vini (Carlos Vinícius)...

A experiência de reler um texto ao longo de quarenta anos me mostrou como são bobas as pessoas que dizem que dissecar um texto e dedicar-se a uma leitura meticulosa equivale a matar sua magia. (ECO, 1994, p. 18).

RESUMO

Este trabalho propõe uma reflexão acerca dos conflitos raciais presentes no romance Clara dos Anjos, do escritor Lima Barreto, escrito em 1922 e publicado postumamente em 1948, em contraponto com a telenovela Fera ferida, de , Ricardo Linhares e Ana Maria Moretzsohn, produção da Rede Globo de Televisão e releitura da narrativa de Barreto realizada em 1993. À luz da Análise do Discurso – AD –, aliada às teorias raciais subjacentes aos Estudos Culturais – EC, objetiva-se analisar, de maneira contrastiva, do ponto de vista discursivo, a questão das diferenças e/ou contradições raciais apresentadas pela narrativa literária e pela narrativa telenovelística, tendo como apoio as noções de semiolinguística e formação discursiva. Aqui intentamos investigar o eco dos discursos raciais presentes nas vozes literárias e nas da narrativa televisiva, o engendramento dessas vozes pela ordem do social, assim como as determinações de caráter sócio-histórico que estão presentes nos recortes dos objetos de estudos selecionados. Através desse procedimento metodológico, contextualizamos o discurso racial que se faz presente no corpus. Assim, tratamos da relação interacional sob a concepção semiolinguística, investigando as relações intersubjetivas decorrentes do contexto ficcional conflituoso de certos personagens presentes nas narrativas em questão. Essa análise demonstrou, a princípio, que o imaginário social brasileiro inscrito na obra de Barreto não permite a mobilidade social dos sujeitos negros/mulatos e/ou pobres. A desigualdade em relação a esses indivíduos aqui é incisiva. Entretanto, a narrativa barretiana, mesmo expressando a pressão do discurso racial de sua época, promove uma subversão e questiona o racismo ao colocar, na cena literária, personagens negros vivendo no seu próprio mundo. Diferente da telenovela, que apresentou o debate sobre o racismo a partir de desvios promovidos por discursos que circulam na sociedade, como aquele que atribui ao próprio negro características racistas, sem se preocupar em explorar o porquê disso. A partir da noção de Formação Discursiva – FD –, segundo Michel Pêcheux, investigaram-se os padrões sociais instituídos pelos contextos ficcionais de determinados personagens principais das tramas em foco: Clara, Cassi Jones, Salustiana, Engrácia e Joaquim dos Anjos. Sob essa ótica, verificou-se que as narrativas Clara dos Anjos e Fera ferida retratam uma sociedade cujo coletivo ainda mantém uma prerrogativa inferiorizante em relação ao negro. Avaliamos que a trama contemporânea poderia reler essas questões, buscando desmitificar o motivo para tal racialização. Porém, a nosso ver, o tempo que decorre entre uma produção discursiva e outra apenas descaracterizou a contundência racial apresentada pela primeira – o romance de Lima Barreto –, estabelecendo a cordialidade para com de cor que se percebe na telenovela Fera ferida.

Palavras-chave: Personagem.Racialidade.Discurso.Interação.Formação Discursiva.

ABSTRACT

This work aims a reflection about racial conflicts which is present in the novel Clara dos Anjos, by Lima Barreto, written in 1922 and published posthumously in 1948, in counterpoint with the soap opera Fera ferida, written by Aguinaldo Silva, Ricardo Linhares and Ana Maria Moretzsohn, production made by Rede Globo de Televisão and rereading from narrative by Barreto held in 1993. Through the study of Discourse Analysis -, allied to the subjacent racial theories to the Cultural Studies, has a goal to analyze, from contrastive way, by the discursive perspective, question of differences and/or racial contradictions presented by literary narrative and by television soap opera narrative, having as support notions of semiolinguistique and discursive formation. From here we tried to investigate the echo from racial discourses presented in literary voices and on television narrative, the engendering from these voices by social order, such as determinations of social historical character which are presented on cutting of objects from the selected studies. Through this methodological procedure, we contextualize racial discourse which is present in the corpus. Therefore, we treat the interactional relationship under a semiolinguistique conception, investigating intersubjective relations due to the conflict fictional context from certain characters present in the narratives so far. This analysis showed, at first, Brazilian social imaginary enrolled in the work of Lima Barreto does not allow social mobility from subjects like black / mulatto and / or poor. The inequality in relation to these individuals here is incisive. However, barretiana narrative, even expressing pressure of racial discourse from his time, promotes subversion and questions racism to insert, on the literary scene, black characters living in their own world. Different from television soap opera, which showed the debate about racism from promoted deviations by discourses circulating in society, as the one which attributes the own black man racist characteristics, without worrying to explore why does it happen. From the notion of Discursive Formation, according to Michel Pêcheux, it was investigated social standards established by fictional contexts of determined characters from plots in evidence: Clara, Cassi Jones, Salustiana, Engrácia and Joaquim dos Anjos. Under this view, it has been found in narratives such as Clara dos Anjos and Fera ferida a society whose collective still retains a inferior prerogative in relation to black ones. We evaluated a contemporary plot that we could reread these questions, searching demystify the subject for such racialization. However, in our view, time runs between discursive production and other only misread racial forcefulness showed by the first – novel by Lima Barreto -, establishing cordiality for the other color which is perceived on the television soap opera Fera ferida.

Keywords: Character. Raciality. Discourse. Interaction. Discursive Formation.

LISTA DE QUADROS

Quadro 01: Contrato Comunicacional...... 75

Quadro 02: Contrato comunicacional adaptado...... 77

Quadro 03: Processo enunciativo – circuito interno...... 81

Quadro 04: Contrato comunicacional adaptado...... 91

Quadro 05: Processo enunciativo – circuito interno...... 93

Quadro 06: Caracterização de Clara (Romance)...... 116

Quadro 07: Caracterização da personagem Clara (Novela)...... 118

Quadro 08: Caracterização de Engrácia (Romance)...... 135

Quadro 09: Caracterização de Engrácia (Novela)...... 136

Quadro 10: Caracterização de Joaquim (Romance)...... 147

Quadro 11: Caracterização de Joaquim (Novela)...... 148

Quadro 12: Caracterização de Cassi Jones (Romance)...... 156

Quadro 13: Caracterização de Cassi Jones (Novela)...... 158

Quadro 14: Formação Social e Discursiva – Adaptação do quadro de Grigoletto...... 170

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 10

1. MOTIVAÇÕES ACERCA DA RACIALIDADE...... 18

2. A QUESTÃO RACIAL...... 31 2.1 Situando o discurso da racialização...... 31 2.2 O racismo brasileiro...... 37 2.3. A raça na atualidade...... 39

3. CLARA DOS ANJOS E FERA FERIDA: EVENTOS COMUNICACIONAIS. 44 3.1 O reconhecimento dos campos teóricos...... 46 3.2 Os objetos...... 55 3.3 O recorte dos objetos...... 57

4. A PERSPECTIVA DOS GÊNEROS: LITERATURA X MÍDIA TELEVISIVA... 61 4.1 Gênero Literário: Clara dos Anjos...... 64 4.2 Gênero midiático: a telenovela Fera ferida...... 68

5. CONFLITO CONTRATUAL EM: CLARA DOS ANJOS E FERA FERIDA.... 73 5.1 Os circuitos externo e interno de Clara dos Anjos...... 76 5.2 Os circuitos externo e interno de Fera ferida...... 90

6. AS FORMAÇÕES DISCURSVAS EM CLARA DOS ANJOS E FERA FERIDA...... 105 6.1 Clara dos Anjos: caracterização...... 116 6.2 Clara dos Anjos: análise...... 119 6.3 Engrácia: caracterização...... 135 6.4 Engrácia: análise...... 137 6.5 Joaquim dos Anjos: caracterização...... 147 6.6 Joaquim dos Anjos: análise...... 149 6.7 Cassi Jones: caracterização...... 156 6.8 Cassi Jones: análise...... 159 6.9 Entrelaçamentos discursivos...... 168

CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 174

REFERÊNCIAS...... 179

ANEXO...... 187

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INTRODUÇÃO

Tecer considerações acerca do trabalho artístico literário, sem dúvida, é algo arriscado, requer não só conhecimento, mas talvez certo refinamento para entender as possibilidades significantes que este permite. No entanto, ousaremos percorrer essa trilha, apreciando uma escritura que nos possibilita ―revelar umas almas às outras‖ (BARRETO apud PRADO, 1980, p. 112), ou ainda, uma linguagem que traz à memória uma imagem que simula, através da recriação de um coletivo, o modo de ser de indivíduos comuns, como os negros, pobres, enfim, aqueles que sobrevivem marginalmente. Esse parece ser o legado da obra barretiana, cuja proposta estética apresenta ―o senso da vida e da realidade circundante‖ (BARRETO, 2006) pelas vozes de suas principais personagens, como Policarpo Quaresma, Isaías Caminha, Gonzaga de Sá e Clara dos Anjos.

A escrita de Lima erige-se como uma lâmina cortante, subverte o beletrismo de sua época e deixa esvair a voz dos amargurados. Para tanto, observe como o autor, por uma via engenhosa, mostra um momento de devaneio e introspecção de sua personagem Clara dos Anjos:

Clara contemplava o céu negro, picado de estrelas, que palpitavam. A treva não era total, por causa da poeira luminosa que peneirava das alturas. (...) só distinguia o Cruzeiro do Sul. Correu com o pensamento errante toda a extensão da parte do céu que avistava. Voltou ao Cruzeiro, em cujas proximidades, pela primeira vez, reparou que havia uma mancha negra, de um negro profundo e homogêneo de carvão vegetal. Perguntou de si para si: - Então, no céu, também se encontram manchas? Essa descoberta, ela a combinou com o transe por que passara. Não lhe tardaram a vir lágrimas; e, suspirando, pensou de si para si: - Que será de mim, meu Deus? Se "ele" [Cassi Jones] a abandonasse, ela estava completamente desmoralizada, sem esperança de remissão, de salvação, de resgate... Moça, na flor da idade, cheia de vida, seria como aquele céu belo, sedutoramente iluminado pelas estrelas, que também tinha ao lado de tanta beleza, de tanta luz, de não sabia que sublime poesia, aquela mancha negra como carvão. Cassi a teria de fato abandonado? Ela não podia crer, embora há quase dez dias não a viesse ver. Se ele a abandonasse – o que seria dela? Veio-lhe então perguntar a si mesma como se entregou. Como foi que ela se deixou perder definitivamente? (BARRETO, 1998, p. 117).

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Esse retalho de texto alude à condição da mulata Clara dos Anjos, personagem da narrativa barretiana publicada em romance em 1948, que apresenta como título, o mesmo nome da moça, Clara dos Anjos. A jovem protagoniza uma estória de desamparo, pobreza e preconceito, como veremos a seguir. A partir da metáfora da mancha que destacamos acima, vem à tona a percepção da personagem Clara acerca dos acontecimentos que a rodeiam. Aqui ela parece se encontrar e/ou começar a ter noção de quem é. Ao constatar que ―até o céu tinha mancha‖ – a mácula negra – a personagem reflete sobre o que esperar de sua situação, já que sua cor representava a ignomínia social. Ela percebe que o estigma da cor negra permeia outros âmbitos da natureza, e não só sua lastimável condição. Mais do que isso, ela se dá conta de que, na sociedade em que vive, a infâmia se abate sobre a imagem do negro.1

Clara consegue, por meio dessa percepção, anunciar seu destino: estaria fadada à imobilidade social e econômica. O sentimento de isolamento e de abandono atordoa o mundo de Clara – ―Que será de mim, meu Deus?‖ (BARRETO, 1998, p. 117). Esse sentimento legitima a existência, no contexto da narrativa barretiana, do preconceito racial, da constante dependência do negro ao branco, de sua falta de autonomia. A jovem dependia do mundo branco, assim como do consentimento dessa sociedade para se estabelecer nesse universo, veja como a moça se expressa: ―Se ele [Cassi Jones] a abandonasse, ela estava completamente desmoralizada, sem esperança de remissão, de salvação, de resgate...‖. (BARRETO, 1998, p. 117). Clara, nesse momento, enuncia as armadilhas que a vida na sociedade carioca do início do século XX irá lhe oferecer.

É por meio da consciência de raça apresentada pela personagem Clara dos Anjos, a qual sangra em veias abertas o seu destino enquanto mulata, que gostaríamos de mostrar como a contemporaneidade da telenovela Fera ferida, de Aguinaldo Silva, Ricardo Linhares e Ana Maria Moretzsohn, realizada pela Rede Globo de Televisão em 1993, construiu a sua releitura da criação barretiana publicada pela primeira vez como conto em 1922.

O propósito da realização de tal estudo se estabelece a partir das seguintes indagações: quais seriam as possíveis construções discursivas que evidenciam as

1 Essa inferência se torna possível porque, ―existe um consenso intersubjetivo pelo qual o idealismo promove a compreensão do indivíduo a partir de seu pensamento‖. (PÊCHEUX, 1997, p. 162).

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relações de sentido etnicorraciais no âmbito da narrativa literária e da narrativa midiática apresentada pelo corpus? Como se apresentam as determinações e/ou manifestações históricas constituintes das condições enunciativas raciais presentes nos discursos em questão.

A partir dessas questões intentamos examinar, de maneira contrastiva, como se estrutura, do ponto de vista discursivo, a questão das diferenças e/ou contradições raciais apresentadas pela narrativa literária e sua releitura realizada pela trama telenovelística.

Assim, através de um espaço/tempo completamente novo e inusitado, intenta- se desvendar e/ou retomar, desses objetos culturais2, aspectos que demonstrem o lugar discursivo dos sujeitos negros que integram a nação brasileira. Acreditamos que recorrer a um exame sobre as práticas racializantes presentes nessas narrativas certamente nos assegurará uma exterioridade discursiva singular acerca do racismo brasileiro.

A escolha dessas obras não resultou somente de meros insigths. Houve, na seleção dos objetos culturais com os quais pretendemos trabalhar nesta pesquisa, uma preocupação quanto à racialidade instaurada no âmbito social brasileiro, que surge por meio das diferenças existentes nas relações entre indivíduos brancos e negros, tendo em vista a predominância, na sociedade, de uma crença numa realidade biológica das raças3. Nesse sentido, buscou-se uma abordagem da questão racial através dos tempos, por meio de discursos não canônicos, como o apresentado pela voz mulata do escritor Lima Barreto em suas narrativas literárias e por meio de outro de cunho midiático, uma telenovela que releu as escrituras deste autor.

2 Esclarecemos que entendemos por objeto cultural as entidades e/ou sistemas simbólicos que asseguram o sentido e a significação de determinados estados de coisas partilhados por certos grupos sociais. 3 Kwame Anthohy Appiah explica-nos que o racialismo se baseia na distinção entre as raças segundo o campo das teorias científicas. Já o racismo é o tratamento diferenciado existente nos relacionamentos humanos, independente da raça do indivíduo. Nesse bojo, o autor distingue o racismo extrínseco, que se baseia na ideia do tratamento diferenciado dado às pessoas de raças diversas, visto que algumas raças são determinadas como superiores ou inferiores. Enquanto isso, o racismo intrínseco estabelece as ―diferenças morais entre membros das diferentes raças, por acreditarem que cada raça tem um status moral diferente, independente das características partilhadas por seus membros‖. (APPIAH, 1997, p. 33-35).

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A designação de não cânone com que a princípio referenciamos o autor Lima Barreto calcou-se no pensamento que vigorava em sua época, constituído por meio de uma sociedade de classe recém-saída do regime imperial e da escravidão, fatores determinantes para a desqualificação de mestiços:

Questão fundamental, a mistura de raças na versão poligenista apontava para um fenômeno recente. Os mestiços exemplificavam, segundo essa última interpretação, a diferença fundamental entre as raças e personificavam a ―degeneração‖ que poderia advir do cruzamento de ―espécies diversas‖. (SCHWARCZ, 1993 p. 56 – destaque da autora).

Lembremo-nos que o ideário brasileiro dos idos de 1900 baseava-se nas relações senhoriais e burguesas, de precedência europeia, as quais desprezam os elementos da cultura popular, e Barreto, como um mulato, não seguia essas normas. Em suas narrativas era recorrente a recriação de aspectos presentes no cotidiano das massas populares. No entanto, como veremos adiante, a escrita de Lima Barreto perde esse status de não canônica especialmente a partir de estudos como os de Osman Lins (1976) e Antonio Arnoni Prado (1980, 1999, 2004), os quais contribuem significativamente para a revisão crítica da obra barretiana.

Quanto ao sistema de televisão, sabe-se que esta exerce um papel fundamental para a forma como os sujeitos estabelecem as bases de suas atividades diárias. Souza (2004) explica que esse sistema apresenta um universo lúdico, o qual possui a capacidade de cingir e aprisionar a consciência do público por todos os ângulos. Tal veículo comunicacional tornou-se um importante elemento na vida cotidiana do brasileiro. Porém, Sodré aponta que

a análise dos diversos aspectos do fenômeno televisivo tem mostrado que a televisão (o sistema de broadcast e suas extensões industriais) não pode ser pensada como um mero esquema técnico de transmissão de imagens, mas como a ponta de um sistema complexo, articulado com todas as instâncias sociais de uma economia de mercado. (SODRÉ, 1987, p. 09).

Assim, não sejamos ingênuos quanto à difusão desse meio de transmissão. Sobre isso, Muniz Sodré explica que a sociedade industrial do Ocidente se move através de uma avançada tecnologia e ―cada nova etapa tecnológica pretende

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determinar ideologicamente o conjunto de produção‖. Sendo assim, a ordem de mercado de uma sociedade moderna estabelece o ―real‖, isto é, uma ―realidade do espaço social‖ que se constitui por meio de dispositivos ideológicos do mercado. (SODRÉ, 1987, p. 09). Assim, entendemos que há processos construtivos divergentes entre a obra literária de Lima Barreto e a sua releitura contemporânea a partir de uma mass media. Dessa forma, interessou-nos investigar como a temática barretiana e, consequentemente, a racialidade, são retomadas por esse contexto?

Diante disso, percebemos que, para percorrer por essas vias marginais, precisaríamos de uma metodologia cuidadosamente articulada. Dessa forma, nos guiamos pelo campo dos Estudos Culturais, acreditando que essa noção nos possibilitaria romper com as barreiras tradicionais hegemônicas e adentrar as vias da ―marginalidade‖, cujas constituintes se estabelecem por meio das camadas populares brasileiras, contexto de onde emergem nossos objetos de estudo.

Os Estudos Culturais – doravante denominados pela sigla EC –, nessa perspectiva, como aponta Hall (1980), não se caracterizam como uma disciplina, mas como um espaço em que as disciplinas interagem, tendo em vista as inter- relações culturais de uma sociedade.

Por conseguinte, os EC nos permitem adentrar pelo campo da racialidade – temática abordada por nosso estudo através de suas vertentes críticas, a saber, as que se estabelecem sob o foco das questões raciais, como os trabalhos de Frantz Fanon, Kwame Anthony Appiah, Homi K. Bhabha, Paul Gilroy, Stuart Hall, Thomas Skidmore, Michael Hanchard, Gilberto Freire, Abdias do Nascimento, Carlos Moore, Muniz Sodré, Lilia Moritz Schwarcz, entre outros que trabalham com as questões acerca da racialidade. Nessa perspectiva, acreditamos obter uma melhor compreensão acerca das estruturas e mecanismos que envolvem o discurso racial brasileiro, tendo em vista que

As grandes divisões do racismo como estrutura de conhecimento e representação são também, a meu ver, um sistema profundo de defesa. São as fortificações externas, as trincheiras, as posições defensivas em torno de algo que se nega a ser domado e contido por esse sistema de representação. (HALL, 2005, p. 08).

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Através dessas considerações, este trabalho se constitui por meio de uma perspectiva teórico-metodológica filiada à linha de pesquisa ―Enunciação e processos discursivos‖, da área de Linguística, em diálogo com a linha de pesquisa ―Identidade e alteridade na literatura‖, da área de Literaturas de Língua Portuguesa, ambas do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC Minas.

Essa possibilidade transversal entre teorias se justifica por dois motivos. O primeiro refere-se à condição dialogal propiciada pelos estudos da Análise do Discurso, noção analítica eleita para se estabelecer o sentido racial presente nesse estudo. O segundo refere-se aos objetos que compõem o corpus desta pesquisa, estabelecidos a partir de gêneros distintos e de uma temática racializante manifestada pela opressão e dominação de grupos sociais representados por negros, pobres e afrodescendentes. Esse fato torna conveniente o empréstimo das teorias raciais que se vinculam aos Estudos Culturais como cerne do trabalho, pois essa concepção tem em seu bojo a flexibilidade entre teorias, a preocupação com as práticas sociais decorrentes de camadas populares e, certamente, a criticidade para se pensar o racismo na contemporaneidade.

No que se refere à Análise do Discurso, doravante denominada apenas AD, essa disciplina não se concebe sob uma abordagem única, centrada em um só método, ou objeto, que se organiza em torno de um exclusivo sistema de pensamento,

A natureza diversa do objeto-discurso, os múltiplos interesses que nele são projetados possibilitam a existência de escolas distintas, a ampliação do quadro metodológico e uma fundamentação teórica em pressupostos cada vez mais amplos. (MARI et al., 1999, p. 16).

Os métodos constituintes da AD se constroem através de determinados campos de estudos e objetos que perpassam a psicanálise, pelo marxismo e pela linguística, porém esses métodos não se confundem, pois a AD relaciona certas regiões científicas para se constituir, tais como a ideologia, a semântica, a enunciação, o discurso e suas determinações históricas em seu processo de significação. (ORLANDI, 2010, p. 13). E ainda, a AD pode ser concebida como uma investigação acerca da linguagem do homem que vive em sociedade, em relação com o outro. (CHARAUDEAU, 2012).

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Logo, o estudo desenvolvido pela AD favorece a apreensão das condições de produção de certos enunciados instaurados nos discursos ficcionais racializantes que se constroem sob o contexto sócio-histórico e ideológico da sociedade brasileira. Já os Estudos Culturais, a partir das pesquisas que abordam o pensamento teórico racial, promovem a multiplicidade discursiva em suas diversas histórias, compreendendo um conjunto de formações que apresenta conjunturas e momentos distintos que remontam ao passado (HALL, 2003, p. 200), permitindo apropriarmo-nos, interpretar e revestir de novos sentidos a racialização presente no meio social brasileiro.

Nesse sentido, o eco das vozes discursivas, engendradas pela ordem do social, assim como as determinações de caráter histórico presentes nos recortes dos objetos de estudo, nos permitem trabalhar com noções como as de enunciação, gêneros, formação discursiva e com a corrente teórica racial advinda dos EC, pressupondo que essas categorias nos possibilitarão elaborar análises mais amplas e completas acerca da circulação dos discursos raciais apresentados ao longo do tempo no Brasil, assim como de sua permanência nessa sociedade e, ainda, das possíveis modificações sofridas por estes.

Para a abordagem aqui instaurada, iniciamos o trabalho com o capítulo ―Motivações acerca da racialidade‖ estabelecendo, a partir de um diálogo com os objetos de estudos, a razão do trabalho sobre a questão racial.

No capítulo seguinte, ―A questão racial‖, buscamos contextualizar o discurso racial, situando raça na perspectiva brasileira e na atualidade. Ressalvamos que essa contextualização sobre as teorias raciais advindas dos Estudos Culturais possibilitam que nossas análises se legitimem, tornando essa concepção um fio condutor para a realização desse trabalho.

No terceiro capítulo ―Clara dos anjos e Fera ferida: eventos comunicacionais‖, direcionamos nosso olhar para uma melhor compreensão das áreas de conhecimento eleitas para a investigação e a apresentação do corpus e do recorte estabelecidos para o estudo.

No próximo capítulo, o quarto, a abordagem recai sobre a questão do gênero, intencionando uma reflexão acerca das instâncias sociais caracterizadoras dos objetos eleitos para esse estudo.

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No quinto capítulo, ―O conflito contratual em Clara dos Anjos e Fera ferida‖, trataremos das condições racializantes estabelecidas no processo intersubjetivo constituído pelos atores ficcionais das narrativas em questão, tendo como foco o contexto conflituoso estabelecido por esses discursos.

O capítulo seis, ―As formações discursivas em Clara dos Anjos e Fera Ferida‖, se constitui a partir do estudo de Michel Pêcheux (1997) acerca da noção de formação discursiva. Na análise proposta buscamos apreender os padrões sociais instituídos pelos contextos ficcionais de determinados personagens, a saber, os personagens principais das tramas em questão: Clara dos Anjos, Cassi Jones, Salustiana, Engrácia e Joaquim dos Anjos.

Por último, nas ―Considerações finais‖, registramos uma reflexão geral acerca das análises desenvolvidas ao longo deste estudo, lembrando que, com vistas a traçarmos conclusões mais amplas e confiáveis acerca da racialização brasileira, buscamos articular dados de áreas distintas do saber como a Literatura, os Estudos Culturais e a Análise do Discurso, apoiando-nos para isso, em autores como Hall (2003), Fanon (2005), Mendes (2006), Santiago (2008), entre outros.

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1 MOTIVAÇÕES ACERCA DA RACIALIDADE

A possibilidade deste trabalho surge a partir das reflexões advindas da experiência do mestrado, assim como da participação em projetos, ações afirmativas e cursos sobre a diáspora negra. Essas experiências nos motivaram a observar melhor as imagens de negros e mestiços criadas e disseminadas na cultura brasileira, seja pela literatura ou por outros suportes midiáticos, tais como a televisão.

A partir disso, o romance de Lima Barreto nos parece bem apropriado para uma investigação acerca de questão racial, pois o autor se propõe abordá-la sob um viés de resistência que se molda por um traço pautado pela denúncia contra as injustiças sociais e a discriminação para com o outro. Não bastando, a contemporaneidade relê a obra barretiana pela telenovela, mas qual será o tratamento dado à questão racial nesse âmbito? Através dessa indagação, cresce nossa expectativa acerca dessa construção contemporânea.

Micheletti explica que Barreto, na obra Clara dos Anjos, que é nosso objeto de estudos, apropria-se da técnica de escritores realistas, fazendo com que o narrador se aproxime de seu leitor a partir de descrições

parciais e minuciosas, numa espécie de acúmulo de pequenas informações. Usa (...) o lugar em que moram, trabalham ou se divertem para definir a posição social e construir o perfil psicológico dos personagens. (MICHELETTI, 1998, p. 04).

Nesse sentido, Clara dos Anjos revela contextualmente ―retalhos da vida suburbana‖, assim como as mudanças urbanas numa sociedade que se mostra a partir das tensões presentes no romance, e talvez no próprio ambiente vivido por Lima Barreto. Tal romance ainda denota a preocupação em revelar a marginalização na qual vivia a camada popular, e, ao fazer isso, o escritor dá aos rejeitados – sujeitos abandonados pela sociedade – um momento para que estes se apresentem como o centro articulador da narrativa.

No romance de Lima Barreto, a personagem Clara dos Anjos é uma jovem mulata de dezessete anos, descrita pelo narrador como ingênua e de personalidade

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frágil. De família humilde, seu pai, Joaquim dos Anjos, era carteiro e, nas horas livres, compartilhava com os amigos o seu gosto pela música – a modinha – e pelo violão. Sua mãe, Engrácia, era dona de casa. Devido a uma criação limitada e muito controladora da família, Clara era uma moça que não possuía ambições de crescer na vida. Só saia de casa acompanhada pelos pais ou por Dona Margarida, viúva moradora da vizinhança que ensinava à moça bordados e costuras. Contentava-se com a sua condição social e prendia-se aos costumes da família. Seus princípios eram vagos, baseavam-se nas ―modinhas‖ e sonhos nos quais os homens eram como seu pai, frequentadores de rodas de violão às sombras das árvores. Sempre repleta de dúvidas, acreditava na pureza do amor. Muito influenciável, Clara deixa- se seduzir por Cassi Jones de Azevedo, homem branco, com uma grande fama de sedutor, que já havia desonrado e explorado muitas mulheres pobres e/ou negras e mestiças, mas que conseguia livrar-se da prisão e ficar impune graças à ajuda da mãe. Interessado em Clara, o jovem, de uma classe social um pouco melhor, passa a visitar a casa de Joaquim dos Anjos. Inconformado com a ideia e alerta dos riscos que essa aproximação podia causar, Marramaque, padrinho de Clara, tenta afastá-lo dela. Revoltado, Cassi se vinga e assassina Marramaque. Clara engravida e Cassi desaparece subitamente. A moça conta à sua mãe o acontecido. As duas resolvem procurar a família de Cassi. Porém descobrem que, para Salustiana, a mãe de Cassi, era um absurdo uma mulata pobre ter coragem de ir cobrar um casamento com seu filho. Após se deparar com a mãe de Cassi, Clara toma consciência de sua posição na sociedade e de sua diferença em relação às outras jovens. O autor representa, na figura da personagem Clara e no seu drama, a condição social da mulher pobre e negra na sociedade brasileira do início do século XX. No final do romance, consciente e lúcida, Clara assim reflete sobre a sua situação:

O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil Dona Margarida, para se defender de Cassi e semelhantes, e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o admitiam... (BARRETO, 1998, p. 133).

Em Clara dos Anjos, Lima Barreto nos dá a impressão de não separar o que de fato é da ordem do literário daquilo pertencente ao âmbito dos acontecimentos

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reais, e assim, sua escrita surge a partir das representações das crenças, dos comportamentos e das tradições populares das pessoas. Dessa forma, o autor parece-nos desejar a fusão do real com a ficção e, em função disso, cria uma obra ficcional que não se permite o afastamento da realidade. Nesse âmbito surgem as narrativas de acontecimentos e fatos que demonstram a situação das famílias cariocas no início do século XX, atentando para a maneira de agir de alguns grupos sociais que contribuiriam direta ou indiretamente na formação da nova sociedade que estava por vir. Sendo assim, o autor situa bem sua escrita a partir da opção que faz por relatar a vida dos pobres, negros, mulatos etc. A hipocrisia social e racial, então, vem à tona pela navalha da escritura realista barretiana.

Logo, entender o processo da racialidade conforme é retratado pelo discurso barretiano torna-se algo relevante para adentrarmos nas investigações as quais nos propomos, sobre o tratamento dado à questão racial pela narrativa de Lima Barreto.

Pensemos, por exemplo, na construção do personagem Joaquim dos Anjos, pai de Clara dos Anjos. Tendo em vista sua cor, a submissão que envolve seu modo de viver e a sua não integração nas estruturas sociais do início do século pós- escravagista, podemos pensar nele como um sujeito da diáspora. Essa situação, de certa forma, nos leva a reconhecer um pouco da história do negro em solo brasileiro. Esse sujeito, tal como observamos no personagem Joaquim dos Anjos, tem pouca ou quase nenhuma condição para lutar por um espaço identitário nesse território, pois o arrivismo da escravidão tornou-se contundente nessa época.

A interpretação para a noção de diáspora tornou-se parte do ―nosso recém- construído senso coletivo do eu‖. (HALL, 2003, p. 28). Modela-se pela história moderna dos judeus, lócus de origem do termo ―diáspora‖, cujo fim culminou no holocausto. (HALL, 2003). O conceito de diáspora, segundo Stuart Hall, se pauta através da visão binária da diferença, um limite que se estabelece de forma excludente, e necessita de um ―outro‖, além de uma oposição austera entre o ―eu‖ e aquilo que não se conhece, o que causa o mal-estar entre os sujeitos da diáspora. (HALL, 2003, p. 33).

Hall explica que sob esse conceito se apoia uma estética diaspórica que traz em sua configuração o hibridismo,

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uma poderosa dinâmica sincrética que se apropria criticamente de elementos dos códigos mestres das culturas dominantes e os ―criouliza‖, desarticulando certos signos e rearticulando, de outra forma, seu significado simbólico. (MERCER apud HALL, 2003, p. 33 – destaques do autor).

Acerca dessa concepção, também podemos imaginar o personagem Joaquim dos Anjos como um sujeito híbrido, tendo em vista o seu gosto pelas modinhas, que o leva a transformar essa prática musical numa ―artinha‖ particular, como explicará o narrador os saraus que o personagem organiza em sua casa aos domingos. (BARRETO, 1998, p. 13). Sobre isso, é bom entendermos que à modinha se atribui um surgimento nobre, branco e europeu. Ela é reconhecida por sua linguagem harmônica, a qual se desenvolve a ponto de abarcar as camadas populares do final do século XIX. Trilhando semelhante caminho, o lundu, de origem popular e negra, surge nesse percurso, se consagra pelo batuque dos escravos libertos e evolui de modo a tornar-se uma canção que cai no gosto das elites dessa época. Assim, tais gêneros musicais passam por um processo cultural convergente, ―numa palavra, mestiço, representando o caráter nacional e popular da música produzida neste país‖ (FERLIM, 2006, p. 02).

A prática da modinha permite-nos caracterizar o personagem Joaquim dos Anjos como um sujeito hibridizado porque, ao assimilar a modinha ele a toma para si, para sua vida, preceitos de valores hegemônicos da cultura europeia portuguesa os quais incorpora a valores decorrentes de sua origem afrodescendente, tais como o cultivo da música, em forma ritualística ou como divertimento, nos terreiros e praças públicas. Assim é que vamos encontrar, na narrativa, o personagem envolvido com uma prática musical que ele aprende em ―festas de igreja‖ e sobre a qual demonstra um conhecimento que resulta mais da experiência vivida do que da teoria:

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na sua simplicidade de nascimento, origem e condição, Joaquim dos Anjos acreditava-se músico de certa ordem, pois, além de tocar flauta, compunha valsas, tangos e acompanhamentos de modinhas. (...) O seu saber musical era fraco; adivinhava mais do que empregava noções teóricas que tivesse estudado. Aprendeu a ―artinha‖ musical na terra do seu nascimento, nos arredores de Diamantina, em cujas festas de igreja a sua flauta brilhara, e era tido por muitos como o primeiro flautista do lugar. Embora gozando desta fama

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animadora, nunca quis ampliar os seus conhecimentos musicais. Ficara na ―artinha‖ de Francisco Manuel, que sabia de cor; mas não saíra dela, para ir além. Pouco ambicioso em musica, ele o era também nas demais manifestações de sua vida. (BARRETO, 1998, p. 13).

A estética diaspórica, nesse âmbito, nos permite pensar as culturas nacionais como constituintes de um dispositivo discursivo representado pela diferença como identidade, perpassada por divisões e distinções internas, que se unem através da prática instituída pelas diversas formas de poder.

Os motivos para a diáspora, segundo o autor, são vários: as pessoas migram pela escassez de comida, de trabalho, de educação; pela precariedade econômica etc. Esses são alguns fatores que originam a dispersão dos povos.

A diáspora, ainda, pode ser entendida como uma forma de dispersão de certos grupos humanos que implica a separação de um povo como resultado de preconceito ou perseguição política, religiosa ou étnica.

O Brasil, em seu processo de colonização portuguesa, escravizou o negro africano tendo em vista o lucro. Essa prática imperialista realizou-se através da extração da riqueza local brasileira, da fixação do colono português e da doutrinação religiosa do povo nativo, os índios, juntamente com o africano em solo brasileiro.

O jesuíta Andre João Antonil assim expressou toda a importância do escravo africano para a colonização portuguesa: ―[são] as mãos e os pés do senhor de engenho‖. O escravo negro simplesmente gerava tributos para o rei e lucros para a burguesia metropolitana e para os comerciantes da colônia, garantia a honra e a riqueza da nobreza (...) (BORGES, MEDEIROS, D‘ADESKY, 2002, p. 24).

Os milhares de africanos que cruzaram o Atlântico rumo ao Brasil se estabeleceram aqui na condição de escravos, foram ―coisificados‖ e marginalizados, sem reconhecimento de uma história ou família. A colonização portuguesa tentou impedir a esse povo cultuar suas tradições, costumes etc., e o valor que lhes era imputado decorria apenas da força do trabalho que eles exerciam. No entanto, essa tentativa não se sustenta devido ao fato de os sujeitos subalternizados elaborarem processos de mesclagem culturais pelos quais as matrizes culturais africanas sobreviviam em contato com a cultura branca europeia, em verdadeiros processos

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de hibridação cultural. É o que se observa, por exemplo, no personagem Joaquim dos Anjos, o qual, apesar de ser caracterizado como um cantor ―pouco ambicioso‖ (BARRETO, 1998, p. 13) pelo narrador, encontra na prática da modinha um modo de inserção cultural com o qual se identifica como sujeito híbrido.

Devemos nos lembrar que os sujeitos africanos escravizados mantinham entre seus grupos diversos elos sociais, como irmandades religiosas, tradições, crenças e artes próprias de sua cultura, como forma de subverter a imposição da cultura branca etnocêntrica portuguesa. (BORGES, MEDEIROS, D‘ADESKY, 2002, p. 25). Essa questão da religiosidade de matriz africana será retratada pela trama Fera ferida.

Nessa narrativa, Engrácia, mãe de Clara de Clara dos Anjos, é a rainha da irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte. Ela cria sua filha para ser sua sucessora nessa ordem religiosa. A jovem fica em um colégio de freiras até a idade de dezesseis anos. No entanto, quando Clara sai dessa instituição ela conhece Cassi Jones e se envolve com ele, não desejando assumir o legado que a mãe lhe impõe. Assim como na trama barretiana, Clara será abandonada por Cassi. Entretanto, observaremos Engrácia percebendo que a condição do negro ainda é desabonadora no contexto social no qual vivem, diferentemente da narrativa de Lima Barreto, na qual essa descoberta é realizada por Clara dos Anjos.

Assim, na telenovela, o personagem Joaquim dos Anjos aparece ao lado da filha Clara dos Anjos, defendendo-a das imposições que a mãe faz como rainha da irmandade. Ele, como membro dessa associação religiosa, contesta tais atos de sua esposa, Engrácia. Mas perceberemos também, no decorrer deste estudo, que essa releitura da religiosidade afrodescendente seguirá em um sentido diferente daquele apresentado pela narrativa barretiana no que se refere à inserção do sujeito numa prática cultural com a qual ele pode estabelecer uma relação de identidade. Veremos que a telenovela, ao encenar uma expressão religiosa de matriz africana nos moldes como elabora a irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte e sua líder, Engrácia, acabará por colocar em cena uma forma identitária reprimida, que se manifestará por meio de um discurso elaborado sob o peso de uma ideologia branca cristã. Desse modo, a telenovela promoverá uma propagação inadequada da prática sociocultural do sujeito afrodescendente, acarretando vários paradigmas preconceituosos acerca do contexto sociocultural desse indivíduo.

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Por sua vez, Wendy Walters (2005) considera que a noção de diáspora, em muitos dos casos, reacende a nostálgica referência de lar (no sentido de habitação, pátria), referindo-se à ausência desse lugar e, assim, pressupondo a reconstrução desse ambiente, seja como for e/ou onde for.

Para Paul Gilroy, a concepção diaspórica se concebe também sob a forma de conscientização, cuja noção se estabelece pela concomitância da probidade entre pátrias e culturas (GILROY, 2001). Desse contexto nasce o sujeito da diáspora, híbrido, resultado de um processo circular devido à constante negociação a que se expõe, entendendo, com Stuart Hall, que o conhecimento intelectual e a experiência desse indivíduo criam desordem nos modelos rígidos de identidade cultural. (HALL, 2003).

Suscitamos essas questões porque o Brasil sofreu um processo diaspórico no início de sua colonização. Os africanos que aqui se estabeleceram foram privados de manifestarem integralmente suas matrizes culturais. A escravização negra no Brasil visou apenas aos valores do dominador europeu:

sem exceção, tudo que sobrevive ou persiste da cultura africana e do africano como pessoa no Brasil é a despeito da cultura branco-europeia dominante, do ―branco‖ brasileiro e da sociedade que, há quatro séculos reina coagindo-os a alienar a própria identidade pela pressão social, se transformando cultural e fisicamente em brancos. (NASCIMENTO, 1978, p. 123 – destaques do autor).

Pelas reflexões ora apresentadas percebemos a importância da narrativa barretiana, que retrata, por meio de seus personagens, um contexto cultural no qual há uma identificação mútua entre os sujeitos, ou seja, esses indivíduos se inserem em um lugar de cultura com o qual eles se identificam e que, ao mesmo tempo, os reconhece como seres humanos. Nesse sentido, ela difere da narrativa telenovelística, a qual promove um deslocamento da questão identitária do sujeito afrodescendente por ceder ao peso de um olhar ideologizado.

O senso comum da supremacia branca que permeou esse país emerge de uma base colonial eurocêntrica, e nela a palavra de ordem centra-se no universo burguês europeu. Para Muniz Sodré, a Europa se torna ―uma espécie de teatro para as metamorfoses do ‗império‘, materializado no cristianismo como o poder de tudo

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crer; na técnica como o poder de tudo fazer; na ciência como o poder de tudo conhecer e na filosofia como o poder de tudo saber‖. (SODRÉ 1999, p. 55 – destaque meu). Assim, ela reduz o mundo ao seu critério de classificação, o que lhe confere o direito de nominar, por exemplo, de ―não-homem‖ os índios, os negros, os bárbaros, os selvagens, enfim todo aquele que não apresente ancestralidade europeia.

É sob essa óptica que o modo de ser eurocêntrico se estabelece no Brasil colonial e repercute no modo de viver das pessoas. Dialogando criticamente com essa perspectiva como a sociedade brasileira se comporta, a escritura de Barreto mostra que, ao ceder a esse modo de vida, o personagem Joaquim dos Anjos se contenta em ter um emprego público medíocre de carteiro, levar a vida tocando modas sem pretensões outras, casar-se com Engrácia e submeter a esposa a seu jeito peculiar de viver e, logo, seguir a vida reproduzindo o modo de existência burguês branco. Como, porém, essa forma de vida da sociedade burguesa e branca que ele reproduz não lhe permite identificar-se como sujeito diaspórico, a educação que ele dará a sua filha Clara não permitirá à moça desenvolver a consciência de sua condição de mestiça. Desse modo, podemos pensar que o narrador barretiano, ao contar a história de Clara, faz uma crítica à maneira como a população afrobrasileira reproduz o jeito de viver eurocêntrico sem procurar desenvolver uma consciência de sua identidade mestiça. Inserida em um sistema de vida que não é o do sujeito diaspórico, Clara dos Anjos sucumbe ao sonho burguês de casar-se com um homem branco. Ao fim da narrativa, grávida e desprezada pelo namorado, restará a Clara concluir que ela ―não é nada nesta vida‖.

Sabe-se que a superioridade branca dita a ordem, seja ela de cunho social, político e/ou cultural. A identidade negra advinda do contexto escravagista não adquire visibilidade e se organiza sob um segundo plano, insignificante no contexto macro social brasileiro,

no pressuposto da superioridade branca – algumas vezes implícita, pois deixava em aberto a questão de saber quão ―inata‖ era a inferioridade negra, e usava os eufemismos ―raças mais avançadas‖ e ―menos avançadas‖. (SKIDMORE, 1993, p. 64 – destaques do autor).

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No entanto, é interessante perceber que, no Brasil, tornou-se corriqueiro, entre a população, afirmar que não existe discriminação do negro. Vivemos a cordialidade racial, segundo Florestan Fernandes, que se caracteriza por ―um preconceito de ter preconceito‖. (FERNANDES, 1972, p. 42). O estudioso, nesse contexto, mostra que nós, brasileiros, ainda, não sabemos tratar com a diversidade e acabamos por não assumir o nosso preconceito racial. Antes negamos a existência do preconceito racial. Porém, o quadro discriminante da racialização brasileira permite-nos afirmar o contrário, conforme pretendemos mostrar por meio do estudo do corpus selecionado para esta pesquisa.

Esse discurso do ―preconceito de ter preconceito‖ irá aparecer na telenovela Fera ferida quando, por exemplo, a personagem Engrácia é contextualizada numa situação de poder, o que sugere, a princípio, a inexistência de discriminação do negro nessa narrativa. Ela aparecerá como líder de uma irmandade negra e será respeitada nessa condição até mesmo por brancos que necessitam de sua ajuda. Porém, a maneira como Engrácia exerce o poder chama nossa atenção. A personagem age de maneira arrogante e autoritária a maior parte da narrativa. Ao final, ao que nos parece, ela será castigada por sua atitude: sua filha Clara não quererá assumir o posto de rainha da irmandade e, além disso, sofrerá abuso sexual pelo personagem Cassi Jones. Sem suportar a vergonha que a situação lhe trará, Engrácia renunciará ao posto de rainha da irmandade. Esse será seu castigo. E com ele atrevemo-nos a sugerir que a retratação da personagem, pela telenovela, reforça e reascende o preconceito racial. Afinal, pela trama narrativa de Fera Ferida, vemos que, quando o negro está no poder, ele reproduz o autoritarismo que sofreu ao longo de sua história. No entanto, ao invés de tratar essa questão numa perspectiva dialética, que explique a introjeção, pelo negro, de um comportamento discriminatório, nos moldes como o faz Frantz Fanon (2005, 2009), a telenovela trata a ação do afrodescendente numa perspectiva maniqueísta, atribuindo-lhe uma característica negativa pela qual ele merece ser punido. Com isso, ela acaba reproduzindo a maneira estereotipada conforme o negro sempre foi tratado, por exemplo, pela literatura brasileira, que sempre atribuiu ao negro um caráter pervertido em relação aos padrões e valores da sociedade branca eurocêntrica, conforme nos mostra Domício Proença Filho (2004) em suas reflexões sobre a trajetória do negro na literatura brasileira.

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A ideia de viver em uma democracia racial no Brasil se forma, inicialmente, por meio de alguns discursos, como o de Gilberto Freyre em Casa grande & Senzala (1933), cuja história revela as ―doces‖ relações entre os colonos e os escravos, fatos que são retratados sob o tom da sutileza. Nesse contexto se desconhece a violência à qual o negro fora submetido historicamente, e se mostra como povos com características raciais distintas vivem em harmonia, como, por exemplo, o português europeu, o índio e o negro africano. Na perspectiva de Freyre,

Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo - há muita gente de jenipapo e mancha mongólica no Brasil - a sombra, ou pelo menos a pinta do indígena e do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do africano. Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolegando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho de pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama de vento, a sensação completa de homem. Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo. (FREYRE, 2002, p. 301).

A história narrada por Freyre apresenta-se sob um tom poético, conivente com a visão colonialista e muitas vezes descompromissado com a realidade da escravização negra e indígena, bem como com os efeitos dela decorrentes, tais como a exploração sexual da mulher, tanto a indígena quanto a negra. O discurso de Freyre sugere que a própria existência da miscigenação seria uma evidencia de que nunca teria existido discriminação em relação ao negro nem ao indígena na formação étnica e cultural brasileira.

Cabe reconhecer, nesse âmbito, ainda, a obra de Sergio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (1995), que apresentará uma mediação na divisão social brasileira sob outra óptica, a do homem cordial, aquele que, na verdade, retém vantagens individuais. O autor apresenta esse discurso para mostrar como a relação familiar e a ligação estatal no Brasil se difere do resto do mundo. Tal fato cria uma situação propícia para a constituição do sujeito cordial:

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A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as suas capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático. (HOLANDA, 1995, p. 146).

A partir desse imaginário social, fundado no império da família patriarcal, o Brasil apresentará um sistema administrativo e uma gama de empregados que se dedicam inteiramente a interesses particulares. Assim, não há uma separação do público para o privado, e a compreensão da integração para um Estado burocrático, que deveria ocorrer de modo impessoal, inexiste. Essa conduta nos leva a perceber o surgimento do que virá a ser a cordialidade brasileira.

Tal perspectiva não escapa à crítica do narrador barretiano quando esse descreve Joaquim dos Anjos, um sujeito originário de Diamantina que segue rumo ao Rio de Janeiro como um serviçal de um Inglês. Após conhecer a cidade carioca e não mais prestar serviços para o tal estrangeiro, Joaquim decide permanecer na cidade maravilhosa, e assim consegue um emprego em um escritório, como veremos a seguir:

Quando acabou, procurou conhecidos que já tinha; e, em breve, entrou para o serviço de empregado de escritório de um grande advogado, seu patrício, isto é, mineiro. - Não te darei coisa que valha a pena - disse-lhe logo o doutor -, mas aqui irás travando conhecimentos e podes arranjar coisa melhor mais tarde. Viu bem que o "doutor" lhe falava a verdade, e toda sua ambição se cifrou em obter um pequeno emprego público que lhe desse direito a aposentadoria e a montepio, para a família que ia fundar. Conseguira, ao fim de dois anos de trabalho, aquele de carteiro, havia bem quatro lustros, com o qual estava muito contente e satisfeito da vida, tanto mais que merecera sucessivas promoções. (BARRETO, 1998, p. 14).

Nota-se, nesse contexto, certa ironia do narrador à cordialidade que Joaquim demonstra ter em relação a seu patrício. Aparentemente, aquilo que faculta a Joaquim assimilar a cordialidade relaciona-se à sua acomodação à sua condição de mestiço. Ou seja, Joaquim não se percebe como negro e tenderá a assimilar um comportamento da sociedade burguesa e branca brasileira. Nessa perspectiva, a cordialidade afetará não apenas a vida de Joaquim dos Anjos, mas também, e

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principalmente, o comportamento de Clara e seu modo de vida. Ela terá uma formação débil, uma falta de maturidade, que ocasionarão a projeção negativa que constituirá de si e que se formará em torno dela, dado que sustentará a sua falta de faculdade de estabelecer julgamentos morais e éticos sobre os atos que realizará.

Outro ideário que perpetuou o mito da democracia racial no Brasil advém da consolidação do ―racismo científico‖ e suas peculiaridades eugênicas. O movimento eugênico, ocorrido no final do século XVIII e início do XIX, defendia a manutenção de uma raça pura e pressupunha que o homem branco era o protótipo ideal dessa raça; quem não era branco era inferior, e assim, alvo de discriminação. Nesse sentido, o trecho acima nos revela a forma como Joaquim lida com a concepção cientificista e fortalece os indicativos da estratificação social por ele vivido.

Tais fatos nos ajudam a compreender o tratamento velado dado à racialidade brasileira. Nas palavras de Kabenguele Munanga, ―a retórica oficial se expressa através das próprias contribuições culturais negras no Brasil, para negar a existência do racismo e afirmar a proclamada ‗Democracia Racial‘‖ (MUNANGA, 1991, p. 09 – destaques do autor).

Ações preconceituosas contra a etnia africana são perceptíveis no discurso social brasileiro. Basta observar atentamente o contexto midiático, por exemplo. Nas telenovelas a subalternidade dos personagens recai, geralmente, para os atores e atrizes negras, como poderá ser observado em Fera ferida. No cenário televisivo, percebemos, também, pouca aparição de apresentadores e jornalistas de cor.

Lilian Moritz Schwarcz explica que expressões como ―esse é um sujeito de raça, você vale quanto vale sua raça, vai na raça‖, mais do que vestígios de algo que já passou, remontam a uma lógica que se mantém e direciona uma visão de nação ―como um resumo das raças que a compõem‖. (SCHWARCZ, 1993, p. 249).

Sob esses apontamentos, torna-se pertinente observar, a partir da narrativa barretiana, a assimilação dos discursos dos segmentos sociais superiores pelos outros estratos da população, como reconhecemos rapidamente pelas passagens anteriores e veremos em análises posteriores através da voz do personagem Joaquim dos Anjos. Nesse sentido, a obra de Barreto ressignifica a óptica racial por meio da criação de ―uma literatura social politicamente militante, voltada para a urgência do cotidiano em mudança e ao mesmo tempo inspirada na redenção do

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homem e na defesa do trabalhador oprimido pelas distorções sociais‖. (PRADO, 1980, p. 13). De forma divergente, a narrativa Fera ferida mostrará, em sua trama, a desconstrução dos discursos produzidos sobre o negro, perspectiva que distorce a racialidade e, consequentemente, demanda uma nova ordem, como a criação de leis que se interpõem de forma a rever a questão racial.

A partir disso, vimos no Brasil um cenário em modificação, o tema racial adquiriu seu lugar na mídia, tornando-se alvo de debates significativos e de combate através de notícias e reportagens acerca do assunto. O racismo também tem sido contestado a partir de certas leis4, como, por exemplo, o Projeto de lei nº 4.370/98, do deputado Paulo Paim (PT-RS), que define a cota de 25% de presença obrigatória de negros e afrodescendentes em atrações de TV, filmes e peças e, em peças publicitárias, aumenta a exigência para 40%; entre outras. Uma ilustração de mais um projeto em prol dos negros ocorreu no âmbito educacional brasileiro quando se criou a Lei nº 10.639/03, contemplando a diversidade inter-racial e fazendo-a presente em nossa constituição. Nela incluem-se a obrigatoriedade do ensino da história africana e a valorização da cultura afrodescendente em território nacional. O debate proposto por essa norma se estende para a Lei nº 11.645/08, que torna obrigatório na educação básica, agora também, o estudo da constituição e da cultura dos povos indígenas. As duas legislações pressupõem um resgate desses elementos constituintes da nação brasileira e sua inserção mais cuidadosa na educação básica.

Sendo assim, os objetos escolhidos para esse estudo nos permitem examinar a ocorrência de discursos raciais que se fazem presentes na sociedade brasileira em um contexto temporal significativo, compreendido pelo início e final do século XX, de maneira a promover um novo modo de olhar o lugar do negro nessa sociedade.

4 A nosso ver, essas leis são formas de retificar, assim como de ratificar a existência do racismo. No entanto, não é objetivo deste estudo debater esta questão.

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2 A QUESTÃO RACIAL

Este capítulo se constrói no intuito de esclarecer certos conceitos raciais pelos quais necessitaremos percorrer em nossas análises sobre a obra Clara dos Anjos e a telenovela Fera ferida. Sendo assim, traremos, a seguir, um discurso pautado em abordagens teóricas que envolvem a racialidade em sua constituição ao longo do tempo.

A incursão dessas secções tem a sua devida importância neste estudo na medida em que retoma aspectos da racialização ora desconhecidos e/ou velados. Logo, intenta-se, com esse capítulo, uma breve ―arqueologia‖ da questão racial, de forma a consolidar as reflexões que se evocam a partir dos diálogos propostos com as tramas narrativas em questão.

Sabe-se que ações anti-racistas têm se proliferado na atualidade social brasileira, e se existe essa preocupação e necessidade, é porque a discriminação existente na sociedade brasileira ainda é um fato real.

Mas há a preocupação em reverter esse quadro. A exemplo disso, no ano de 2005, a temática racial esteve presente nas discussões governamentais brasileiras. A ordem do dia foi promover debates sobre a racialização brasileira, inserindo nesse contexto projetos sociais novos, propostas educacionais, tais como a implementação de cotas nas universidades etc. (SCWARCZ, 2005-2006, p. 06). A conscientização quanto à alteridade do outro, nesse caso, a do negro, do afrodescendente, parece- nos um assunto que ainda precisa ser discutido.

2.1 Situando o discurso da racialização

Raça, outrora, foi um conceito que se apoiou na Biologia. Sabemos hoje que isso não faz sentido. Os princípios da ciência do século XXI nos confirmam esses dados. Contudo, existe uma construção sociopolítica para o conceito de raça, pois não há uma designação única acerca desse vocábulo. Entretanto, muitas vezes, essa concepção surge sob um estado de coisas de ordem ideológica.

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São várias as denominações acerca do léxico raça, tais como conjunto de características físicas de um sujeito (para identificar indivíduos – brancos, negros etc.); elemento que permite reconhecer certos grupos humanos pertencentes a determinadas regiões do mundo (raça africana, raça oriental, raça ariana etc.); e ainda, elemento caracterizador de populações a partir de conceitos genéticos (subespécie, espécie avançada etc.). A ideia de raça difere, assim, do racismo, pois este é um fenômeno histórico que se relaciona aos embates recorrentes entre determinados povos, tratando-se de algo ―que antecede sua própria definição‖. (MOORE, 2007, p. 38).

Ao se pensar em raça, à maneira do Brasil, observa-se que esse termo, em nossa cultura, expressa uma conotação política, sendo frequentemente usado nas práticas sociais/culturais como meio de identificar certos atributos físicos, morais e sociais, determinantes para a posição social/cultural dos sujeitos que engendram a sociedade brasileira. Não obstante, ao abordar a racialização a partir de uma perspectiva sociopolítica, o centro dessa discussão vem à tona. O negro, então, adquire o direito de reivindicar seu lugar sociocultural, podendo, assim, desmistificar e tornar conhecidas as afirmações excludentes das teorias raciais formuladas em outros tempos a seu respeito. Por conseguinte, percebe-se que, para entender os elementos geradores da racialização, se faz importante uma retomada da história da própria humanidade.

Desde há muito, a escravidão racial tem um público alvo: os negros. Essa realidade, sem precedentes, iniciou-se por volta do século IX, com o tráfico negreiro pelo oceano Índico, e se estendeu ao resto do mundo. A partir do século XVI, com o tráfico negreiro pelo oceano Atlântico, torna-se um fenômeno de proporções mundiais, seja na área demográfica, econômica, política e cultural, dado que esbarra e converge nas apropriações do mundo capitalista. (MOORE, 2007, p. 250).

Contudo, por volta do século XVIII-XIX, na era do iluminismo, a partir de associações classificatórias, como a científica e a religiosa, o conceito de raça se torna determinante para a segregação racial. Essa noção, segundo Niro (2003), surge como maneira de aquietar a consciência ocidental e permitir-lhe justificar-se em seu processo de escravização do homem negro africano, fato que, mais uma vez, promove a soberania da Europa.

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Diante disso, não havia nada mais a fazer, senão criar uma ideologia para sustentar o tratamento discriminatório destinado a uma importante força de sustentação do quadro econômico da Europa: o negro. A sociedade, que já via esse sujeito de forma bestial, agora o toma também como inferior. Nessas circunstâncias, o crescimento das fronteiras europeias faz com que o resto do mundo torne-se um simples ―objeto dos processos de acumulação capitalista‖ (MOORE, 2007, p. 127), fato categórico para a promoção, por parte da Europa, de um sistema econômico universal e racista em relação aos países conquistados.

Assim, a hegemonia europeia define, por exemplo, a ideia de identidade, seja no plano político, religioso, social etc. O indivíduo, nesse momento, ou é ―o ser humano universal‖, que se molda através de uma noção cultural que reflete a realidade da vida burguesa europeia, ou se enquadra como ―inumano universal‖, tendo atributos tais como ―não-homem‖: ―bárbaro‖, ―negro‖, ―selvagem‖ (SODRÉ, 1999, p. 54).

Percebe-se, nesse contexto, que há um lastro simbólico estruturando as relações entre os homens. A partir dessa ótica, o racismo parece manifestar-se sob níveis distintos, como explica Moore (2007):

(a) através de processamento simbológico pelo qual uma coletividade, convertida em grupo dominante, estabelece uma forma de rejeição de uma dada alteridade fenotípica, com o propósito de exercitar a dominação grupal de maneira efetiva sobre o outro inferiorizado; (b) pela organização da sociedade numa ordem sistêmica, de acordo com um critério especificamente fenotípico, para exercer uma gestão monopolista dos recursos globais, de modo a excluir o grupo dominado e subalternizado; (c) a partir da elaboração de estruturas intelectuais normativas (as ideologias), sob a seguinte ordem: regulamentar as relações entre dominados e dominantes; inculcar um sentimento permanente de derrota no segmento subalternizado; criar uma convicção narcísea de inquestionável superioridade e invulnerabilidade no setor dominante. (MOORE, 2007, p. 248).

Em síntese, a gênese do fenômeno racial, como delineada acima, manifesta- se, respectivamente, a partir: de certo grupo dominante - exemplo, quando um dado colonizador elege determinados signos sociais como certos; da distinção de classes como determinante para a segregação; da superioridade de um povo cuja ideologia

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é ressaltada como a ideal – a soberania social/cultural de qualquer colonizador é sempre imposta ao colonizado.

Os movimentos mencionados, portanto, quando interligados, parecem revelar como se dão as bases sustentadoras da racialização. Todavia, pensando em um processo contrário, percebe-se a importância da luta anti-racista como maneira de romper com essas ações advindas do plano sócio-histórico-cultural elaborado e/ou desenhado segundo as demandas ontológicas acerca do outro, aqui, o negro.

Nesse contexto, compreender a racialização – a relação entre o sujeito branco e o negro – torna-se algo complexo, sobretudo porque ―o branco está fechado na sua brancura. O negro na sua negrura.‖ (FANON, 2008, p. 27). O embate entre o negro e o branco tornou-se uma questão política, além de socioeconômica, já que ―a verdadeira desalienação do negro implica uma súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais.‖ (FANON, 2008, p. 28). O complexo de inferiorização, assim, se baseia no processo econômico e na ―epidermização dessa inferioridade‖ (FANON, 2008, p. 28):

Todo povo colonizado – isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural - toma posição diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. Quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será. (FANON, 2008, p. 34).

Ao negro nega-se tudo, a pobreza torna-se parte de sua natureza social, sua pele o difere dos demais. A cultura e a identidade dessa etnia se perdem diante do domínio do colonizado. O discurso da soberania social branca impõe a esse indivíduo, o negro, uma sobredeterminação quanto ao modo de ser/agir/viver etc.

Um fato curioso explicitado por Fanon diz respeito à linguagem: ―quando encontro um alemão ou um russo falando mal o francês‖ há a tentativa, segundo ele, através da gestualidade e/ou outro modo de se comunicar, de ceder a esses sujeitos as informações que eles necessitam. No entanto, em se tratando de um negro, ―nada é parecido‖, o olhar que se tem dele é o de aculturação, incivilização, de negação do seu passado histórico. (FANON, 2008, p. 46). A origem da mobilização

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da resistência negra pode surgir desse contexto, dessa necessidade de provar ao mundo branco a existência de uma civilização negra. (FANON, 2008, p. 47).

Lembremo-nos aqui que não só o branco impôs ao negro essa condição inferiorizante, pois o próprio negro sofreu em África um processo racializante: ―os menos afortunados eram destinados às fazendas de escravos, onde trabalhavam sob as ordens de um feitor e o máximo a que podiam aspirar era ter uma parcela de terra para trabalhar em proveito próprio.‖ (PRIORE & VERNÂNCIO, 2004, p. 18). Ou seja, o próprio negro africano escravizava o seu semelhante.

Uma das explicações para tal processo pode ser encontrada pela desolação natural sofrida em África, como, por exemplo, aquela resultante dos grandes períodos sem chuva que provocava a aridez do solo e a escassez de comida, culminando numa situação de pobreza absoluta, fazendo os africanos se vender como escravos como único meio de sobrevivência. (PRIORE & VERNÂNCIO, 2004, p. 11).

A organização familiar em África também motivou a segregação. ―Sem filhos está nu‖ é uma espécie de slogan que mostra que a virilidade era fundamental para que um homem fosse honrado. A mulher fértil tinha seu lugar de aceitabilidade na sociedade, a estéril não. Os filhos eram a garantia de que os pais teriam uma velhice assegurada. Além de garantir a ancestralidade, eles garantiam a existência de seu grupo nas sociedades, às vezes de maneira violenta. Os indivíduos que não possuíam descendência corriam o risco de serem agregados, muitas vezes na condição de escravos, daqueles grupos étnicos mais fortes. (PRIORE & VERNÂNCIO, 2004 p. 12).

Estabelecer que a exploração colonialista fosse a grande causa para a separação de negros e brancos é uma assertiva inviabilizada pela própria história africana, como vimos anteriormente. Mas, torna-se interessante pensar que as formas de exploração se assemelham, buscam se sustentar através de algum ―decreto bíblico‖, mítico e/ou sagrado, já que ―todas as formas de exploração são idênticas, pois todas elas são aplicadas a um mesmo ‗objeto‘: o homem.‖ (FANON, 2008, p. 86 – destaque do autor).

Na contemporaneidade, tornou-se um desafio saber se o negro superaria o sentimento de inferioridade adquirido em decorrência do processo colonial: ―no

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negro existe uma exacerbação afetiva, uma raiva em se sentir pequeno, uma incapacidade de qualquer comunhão que o confina em um isolamento intolerável‖. (FANON, 2008, p. 59).

A inferiorização do negro ―é o correlato nativo da superiorização europeia. Precisamos ter a coragem de dizer: é o racista que cria o inferiorizado‖. (FANON, 2008, p. 90).

Na situação colonial, o colonizado aceita os valores do colonizador como uma lei. A posição de soberania, e assim, a legitimidade de poder se instaura nas mãos do colonizador. ―Todo mundo já disse para o negro que a alteridade não é do outro negro, é do branco‖ (FANON, 2008, p. 93):

O negro não deve mais ser colocado diante desse dilema: branquear ou desaparecer, ele deve poder tomar consciência de uma possibilidade de existir; ou ainda, se a sociedade lhe cria dificuldades por causa de sua cor, se o encontro em seus sonhos a expressão de um desejo inconsciente de mudar de cor, meu objetivo não será dissuadi-lo, aconselhando-o a ―manter as distâncias‖; ao contrário, meu objetivo será, uma vez esclarecidas as causas, torná-lo capaz de escolher a ação (ou passividade) a respeito da verdadeira origem do conflito, isto é, as estruturas sociais. (FANON, 2008 p. 96 – destaques do autor).

O colonialista precisa sempre se justificar, a fim de manter sua conduta doutrinária junto ao colonizado. Ele estabelece sua história, seu costume, e o que é sociológico esse colonizador batiza como biológico, ou ―melhor metafísico‖. (MEMMI, 1977, p. 70). A opressão ao modo de viver do colonizado se instaura, e esse acaba ou por odiar a si mesmo ou ―adorar‖ seu benfeitor colonialista.

Nesse contexto, funda-se uma relação de autoritarismo, desprezo e exploração do Outro. Os direitos dos seres são negados e subjugados por atos de violência cometidos pelo colonizador, como, por exemplo, aqueles narrados nas histórias brasileiras acerca do tráfico negreiro, de açoites de negros e de agressões vivenciadas pelos escravos em solo brasileiro, entre muitas outras atrocidades que estabelecem, para esse indivíduo, uma condição subumana.

Assim, o indivíduo negro precisa do confronto que procede de objetificação da sua alteridade: ―na psique colonial, há uma negação inconsciente do momento negador, fendente, do desejo‖. (BHABHA, 1998, p. 86). A representação do espaço do Outro não pode ser vista somente através da ótica fenomenológica fixa que se

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opõe ao eu, como uma reprodução da consciência cultural estrangeira. Ela deve também ser encarada como uma ―negação necessária de uma identidade primordial – cultural ou psíquica – que introduz o sistema de diferenciação que permite ao cultural ser significado como realidade linguística, simbólica histórica‖. (BABHA, 1998, p. 86).

2.2 O racismo brasileiro

No Brasil, o racismo surge de uma maneira ―cordial‖, ou parece mesmo não existir. A telenovela Fera ferida mostrará, em sua parcialidade narrativa, a proporção dessa perspectiva, como será observado nas seções que se seguem a este capítulo, principalmente, no que diz respeito à condição da personagem Engrácia enquanto rainha da irmandade negra da cidade ficcional de Tubiacanga.

Tomando as palavras de Schwarcz (2000): a racialidade brasileira apresenta uma ―especificidade‖ singular em seu ―preconceito de ter preconceito‖ (FERNANDES, 1972). E entender esse processo demanda uma retomada da história.

A questão racial, como se pode observar, emerge desde os tempos mais remotos, e é interessante pensar que o Brasil, mesmo com mais de quinhentos anos, ainda tem muito pouca idade diante da existência europeia. Os preceitos sociais, morais, culturais etc. advindos do continente europeu foram contundentes para o processo de colonização brasileiro.

A noção de raça que se desenvolve no ideário social brasileiro aparece, num primeiro momento, por volta do século XVIII, quando se começa o questionamento acerca das noções de desigualdades/diferenças humanas.

As pesquisas desenvolvidas no Brasil acerca da racialização, nessa época, se fizeram sob o julgo do conhecimento trazido por estudiosos europeus para essas terras – a visão nacional brasileira repetia a europeia. Ao continente americano recaía o título de ―debilidade‖ e ―imaturidade‖, lugar onde os homens são devastados pela ―preguiça‖, pela não ―sensibilidade‖ e pela fraqueza mental, e mais, onde os

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seres humanos da época são vistos como ―bestas decaídas‖. (SCHWARCZ, 2000, p. 16).

Um estudo realizado no Brasil entre os períodos de 1817 e 1820, percorrendo grande parte do território brasileiro, apontou que a situação do país permanecia

em grau de inferior da humanidade, moralmente, ainda na infância, a civilização não altera o primitivo, nenhum exemplo o excita e nada o impulsiona para um nobre desenvolvimento progressivo. (PAW apud SCHWARCZ, 2000, p. 16).

O Brasil era visto como um local que tentava rumar para a civilidade; no entanto, não conseguia nada mais que a degradação de sua ―espécie‖. Desde logo, percebe-se que a visão acerca de nosso país era a de pura degenerescência humana. A ideia de inferioridade populacional começa a se arraigar no imaginário social, se tornando uma concepção arrebatada pelo senso comum da época.

Se as teorias raciais percorreram um trajeto especifico no contexto europeu e norte-americano, o mesmo pode ser dito do caso brasileiro. Tomaram força e forma conjuntamente com o debate sobre a abolição da escravidão, transformando-se em ―teorias das diferenças‖, na medida em que recriaram particularidades e transformaram em estrangeiros aqueles que há muito habitavam o país. (SCHWARCZ, 2000, p. 32 – destaque da autora).

Cria-se nesse contexto a seguinte máxima: ―quem pensa em raça esquece o indivíduo‖. O jogo das relações sociais aqui despreza índios e negros e revela a superioridade dos brancos, nascendo daí um racismo particular. (SCHWARCZ, 2000, p. 32). O problema acerca da racialização brasileira revela, então, a desigualdade entre os homens mestiços, negros e índios de um lado, e homens de direito e ciência de outro, sendo este último o grupo que irá ditar as leis e deveres daqueles que só fazem degenerar o país.

Diante dessas questões, arriscamos uma conjetura: parecem existir circunstâncias específicas para a constituição da dinâmica que envolve a racialidade brasileira. O trabalho de Moore (2007) acerca desse assunto revela que esse processo acontece a partir de:

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(i) ―fenotipização de distintas civilizações e culturas‖, que pode ser entendida a partir das características singulares de um povo como justificativa para sua exclusão, ou subalternização;

(ii) ―simbologização da ordem fenotipizada por meio de transferência do conflito concreto para a esfera do fantasmático‖, que remete a algo de ordem metafísica, isto é, as crenças sobre o fenótipo humano se realçam a ponto de alguns grupos considerarem isto uma bestialidade/pecado/etc.

(iii) ―estabelecimento de uma ordem social baseada numa hierarquização raciológica, mediante a subordinação política e socioeconômica permanente do mundo populacional conquistado‖, instância na qual nos parece que a disposição de caráter capitalista prevalece.

Nessa perspectiva, o argumento racial brasileiro ganha força, tendo a seu favor pressupostos etnocêntricos de ordem capitalista, cientificista e religiosa que fazem emergir uma formação nacional e social desqualificadora para todo aquele sujeito que não pertença à elite branca e/ou europeia.

2.3 A raça na atualidade

Na atualidade, a ideia racializante parece estar perdendo a credibilidade pela biologia e também pela antropologia. O pensamento de superioridade racial tem sido rejeitado pelas ciências sociais e até pela racionalização do senso comum, sendo ―retrabalhado pelos discursos midiáticos‖. Esses estudos consideram que raça, em sujeitos falantes, existe apenas uma, a humana. (PAIVA & SODRÉ, 2004, p. 143).

O preconceito racial, assim, abandona os seus fundamentos biológicos, porém entranha-se pelas razões socioculturais, apreendido pela supremacia branca. Se raça não existe, a relação de racialização ainda continua trazendo ―o sentimento de dissimetria ou disparidade nas relações sociais‖, fato este causado pela ilusão racial, isto é, pela superioridade de um modelo étnico ou fenotípico sobre os outros. Para Paiva e Sodré,

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o preconceito racial já pode mesmo abrir mão da palavra ―racial‖, pois hoje ele se difratou (...) para uma gama ampla de pequenas certezas, que estão ancoradas no senso comum da branquitude e chegam junto com uma miríade de proposições culturais hegemônicas. (...) O problema, como se pode perceber, persiste neste terceiro milênio, sob múltiplas astúcias da razão e do sentimento. (PAIVA & SODRÉ, 2004, p. 144 – destaque do autor).

Hall (2003) aponta que o trabalho que se volta para a questão da raça ainda é um desafio. É necessário, segundo o autor, tratar esse assunto de maneira cautelar, para que se obtenha um reconhecimento sério acerca dessa discussão diante da teoria política, do ideário jornalístico e academicista. Para autor, a veleidade sobre essa temática esta sendo rompida na medida em que os debates sobre a racialidade se interpõem na consciência pública. ―Encontramos agora ‗raça‘ entre parênteses, ‗raça‘ sob rasura, ‗raça‘ em uma nova configuração com etnicidade.‖ (HALL, 2003, p. 52 – destaques do autor). Nessa perspectiva, raça poderá ser trabalhada como uma categoria discursiva que incide sobre o campo político, social e cultural, se organizando sob um sistema de poder socioeconômico que explora, além de excluir.

Van Dijk (2008) explica que existe uma preocupação atual pelo estudo acadêmico acerca do racismo, no intuito de desmistificar a negação racial, fato que acontece, por exemplo, na América Latina, em países como o Brasil e a Venezuela, onde se fala em uma ideologia de democracia racial.

Para o autor, o racismo não é algo inato, é aprendido/reproduzido; os indivíduos não nascem racistas, eles aprendem a sê-lo com seus pares (família, escola, mídia etc.).

Muitas práticas de racismo cotidiano, tais como as formas de discriminação, podem até certo ponto ser aprendidas pela observação e imitação, mas até mesmo estas precisam ser explicadas, legitimadas ou sustentadas discursivamente de outro modo. (DIJK, 2008, p.15).

Hoje, a apresentação dos discursos políticos acerca de imigrantes e/ou minorias étnicas ocorre de maneira eufêmica, revestida sob uma discursivização positiva, como tentativa de atenuar o olhar discriminante sobre o outro, fato que dissimula a satisfação política de se viver numa sociedade multicultural.

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O multicultural, segundo Hall, tornou-se um ―termo qualitativo‖, expõe particularidades sociais e problemáticas da ―governabilidade‖ apresentada por sociedades que têm grupos culturais distintos convivendo e buscando, juntos, construir uma comunidade, ―ao mesmo tempo em que retém algo de sua identidade original‖ (HALL, 2003, p. 52).

Entretanto, sabemos que a possibilidade de apropriação dos aspectos culturais e/ou sociais pertencentes ao Outro, o negro é pouca ou nula – a negação dos segmentos afrodescendentes da sociedade torna-se contundente diante do poder inscrito nas mãos das elites simbólicas brancas.

Discursos racistas surgem através de atitudes socialmente compartilhadas por determinados grupos. Há a necessidade de apreensão desses contextos racistas, na tentativa de explicar esse engajamento racial.

É interessante pensar que no Brasil o escopo racial se fixa pela negação do mesmo. A contemporaneidade não precisa mais do conceito de raça em seu discurso. Grande parte dos países ocidentais exerce a racialização antinegros e antiárabes, e para isso, não mais utiliza as noções de superioridade e inferioridade racial, apenas as concepções de diferenças culturais e identitárias. (MUNANGA, 2005-2006, p. 53).

Raça, nessas circunstâncias, aparenta ser uma realidade social e política - uma categoria social que exclui. Os atos raciais existem socialmente e independem da aceitabilidade do Outro,

O discurso racial torna-se então ―culturalizado‖ ou ―mentalizado‖, (...) a substituição da noção zoológica de raça pela noção de cultura implica um deslocamento da problemática (...) o que torna o pluralismo cultural um dos fenômenos aceitos por todos hoje, porque nele se esconde o racismo. (MUNANGA, 1996, p. 18 – destaques do autor).

Sob essas circunstâncias cruzam-se as discussões e polêmicas quanto aos direitos dos indivíduos (no âmbito da mistura cultural), das identidades coletivas, pois os discursos com o propósito racial ou antirracial militante acabam se transpondo sob o mesmo jogo da linguagem, percorrem as mesmas evidencias e visam realizar valores iguais. (MUNANGA, 1996).

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Nesse sentido, existe uma antinomia do antirracismo, fundada a partir de uma dualidade retórica: primeiro, ela se baseia nos direitos do homem que se estabelece como indivíduo pertencente ao grupo humano (tem garantia de sua humanidade), e segundo, ela se fixa no direito à identidade comunitária, no direito à diferença que se perpetua no grupo (étnica, cultural etc.). (MUNANGA, 1996, p. 19).

Ainda existe a necessidade da luta contra a alienação, mais até do que contra a segregação, já que a perda de identidade é algo sério, talvez até mais do que o isolamento de uma etnia. (MUNANGA, 1996, p. 19). Estudiosos, como por exemplo, Kabenguele Munanga, chamam a atenção para a necessidade de se fazer alguma coisa para mudar a representação negativa dos grupos minoritários, sugerindo que uma política de reconhecimento de uma identidade seria um bom começo.

Nesse bojo, o conceito de identidade proposto por Hall torna-se proeminente para essa discussão. Para o autor a identidade como um conceito, deve ser tomado ―sob rasura‖, pois, para ele, a identidade se realiza ―no intervalo entre a inversão e a emergência: uma ideia que não pode mais ser pensada da forma antiga, mas sem a qual certa questões-chave não podem ser sequer pensadas.‖ (HALL, 2000, p. 104).

A noção de identidade, segundo Hall, não se apresenta de modo essencialista. Trata-se de uma concepção estratégica e posicional, pois não se traduz sob o significante habitual, ―não assinala aquele núcleo estável do eu que passa, do início ao fim, sem qualquer mudança, por todas as vicissitudes da história‖. (HALL, 2000, p. 108). Esse conhecimento rompe com a ideia de um eu imutável, e não faz referência à identidade cultural traduzida pela história de um povo, sua ancestralidade, tradição etc.

Essa concepção aceita que as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas, que elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas. (HALL, 2000, p. 108).

As identidades pensadas dessa forma sofrem modificações históricas e estão sempre sob a intervenção das mudanças, das rupturas e das metamorfoses que elas tangenciam. Nessa perspectiva, os debates sobre identidade têm que ser

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construídos na emergência da modernidade e da globalização instaurada no planeta.

Os processos de migrações forçadas, como também daquelas livres, contribuem da mesma forma para a crescente problemática sobre a identidade. Ao pensar em identidade deparamo-nos com indagações como ―quem nós somos‖, ―de onde nós viemos‖, ―quem nós podemos nos tornar‖, ―como nós temos sidos representados‖, ―como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios‖. (HALL, 2000, p. 109). Essas indagações surgem, de acordo com Hall, sob a invenção da tradição, ou pela própria tradição, nos fazendo ler as várias transformações a que estamos sujeito.

Como as identidades se constroem dentro e não fora do processo discursivo, precisamos entendê-las como produções históricas e institucionais que presidem no interior de formações e práticas discursivas específicas. (HALL, 2000, p. 109).

Nesse sentido, compreendemos que a perspectiva identitária pode, através das posições que o sujeito assume para si, promover a apreensão de novas produções de sentido acerca das práticas discursivas que buscam interpelar o indivíduo, nesse caso, as que dizem respeito à racialidade.

Assim, entender, esclarecer e tentar formar massa crítica para que se realizem discussões pertinentes acerca dos fatos de ordem racial tornou-se, desde já, um caminho fundamental no que diz respeito às mudanças das concepções racialistas que ainda vigoram no Brasil e no mundo, e nessa pesquisa, mais propriamente, torna-se uma apropriação relevante para apreender a temática racial apresentada pelas tramas Clara dos Anjos e Fera ferida.

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3 CLARA DOS ANJOS E FERA FERIDA: EVENTOS COMUNICACIONAIS

O texto literário, assim como o midiático, não se ―move‖ sozinho; ele se estabelece a partir das interações compartilhadas entre sujeitos, que se reconhecem e se descobrem através de possibilidades comunicacionais. Nessas circunstâncias, admitimos que nossos objetos a priori se ordenam sob certos enunciados que pressupõem um agir sobre os outros.

Considerar os enunciados como atos é, então, admitir que eles são realizados para agir sobre os outros, mas também para levá-los a reagir: o dizer não é somente fazer, mas também fazer fazer. (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2006, p. 73).

Nesse sentido, a obra Clara dos Anjos, de Lima Barreto e a telenovela Fera ferida, de Aguinaldo Silva e coautores podem ser vistas como ―eventos linguísticos‖, no sentido atribuído por Culler, que conjectura nessa instância um modo de imprimir/expressar uma ficcionalidade constituída por meio dos sujeitos ficcionais (seres de fala), acontecimento, público, dêiticos (traços orientadores da linguagem que se relacionam com o momento elocutivo, tais como pronomes, advérbios etc.) (CULLER, 1999, p. 37). Esses projetam mundos ficcionais, constituídos através da enunciação, ou seja, da relação existente entre a língua e o mundo, dado que permite a representação dos fatos enunciativos, além de definir os acontecimentos no tempo e no espaço. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2006, p. 193).

As narrativas em questão, sob a óptica apresentada, se estruturam sob um viés linguístico e psicológico, ambos transmitidos de maneira histórico-cultural, orientados pelo nível de domínio linguageiro de cada sujeito e por meio da junção de práticas sociocomunicativas estabelecidas em certos contextos, nesse caso sob a práxis racial.

Sendo um produto da televisão, a telenovela se faz sob o avanço tecnológico instituído pela ordem ideológica do mercado e/ou do mundo globalizado, tratando-se de uma espécie de monopólio, o que a torna, nesse contexto, um meio comunicacional propício para inserir ou defender certas tendências. A obra literária,

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ao seu modo, também busca consolidar certo ideário, prerrogativa que nos motiva a indagar sobre a construção do discurso racial brasileiro nesses contextos.

Dessa maneira, tanto o romance barretiano como a telenovela nos levam a um tipo de comunicação intersubjetiva, constituída sob um plano discursivo, apreendendo que ―o discurso (...) não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.‖ (FOUCAULT, 1996, 10).

Os discursos produzidos por essas obras, portanto, trazem a racialização a partir de circunstâncias históricas distintas e que, certamente, revelam, cada uma a seu modo, as relações interétnicas decorrentes do meio social que se erige no Brasil – fato que iremos contrastar, pressupondo, nesse sentido, um resgate das relações entre negros e brancos estabelecidas nesse espaço temporal.

A racialidade que nos propomos reconstruir se faz sob o plano dos enunciados constituídos pelas narrativas Clara dos Anjos e Fera ferida e se realizará por meio de um diálogo entre campos de saberes distintos, a saber, o da linguística e o da literatura.

Nessa perspectiva, o texto não mais é estudado por si próprio, tampouco por seus meros efeitos; ele se fixa por seu viés subjetivo, o cunho sociocultural e ideológico é imprescindível para a sua compreensão. (JOHNSON 2010). Assim, acreditamos que os objetos escolhidos para essa pesquisa podem apontar aspectos pertinentes para tratar e/ou legitimar questões importantes sobre a racialidade brasileira, pois

as estórias, obviamente, não se apresentam apenas na forma de ficções literárias ou fílmicas; elas se apresentam também na conversação diária, nos futuros imaginados e nas projeções cotidianas de todos nós, bem como na construção de memórias e histórias – de identidades individuais e coletivas. (JOHNSON, 2010, p. 69).

Através dessas reflexões, percebe-se a possibilidade de se construir, por meio desses atos de linguagem, novas redes de significações, modos distintos de olhar e de apreender os sentidos instaurados pelo (re)arranjo entre a literatura e a telenovela acerca das relações interétnicas constituintes da formação brasileira:

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Ao longo de nossa história, o fenômeno da mistura de raças e culturas recebeu distintos tratamentos, indo da idealização romântica de uma terra sem conflitos ao mito da democracia racial, por um lado; e da condenação racialista típica do século XIX ao fundamentalismo de muitos segmentos contemporâneos, que rejeitam a mestiçagem e defendem a existência de uma possível essência racial negra, por outro. (DUARTE, 2005, p. 113- 131).

Reconhecendo, portanto, os lugares sociais, as circunstâncias históricas e culturais que permeiam a presença da etnia africana no Brasil é que buscamos discutir, analisar e revelar as possíveis construções de sentido instauradas pelos discursos advindos desses objetos de estudo.

A partir de tais perspectivas, abranger a temática racial conforme ela se faz presente nas camadas elitistas e populares brasileiras e retomar essa temática num discurso produzido por meio de um instrumento de transmissão de massa tão peculiar ao Brasil, quanto a telenovela, a princípio, se mostra um fato inusitado, mas pertinente. Afinal, esse assunto precisa ser ratificado, já que a sociedade brasileira trata a questão racial de maneira velada. O comprometimento ideológico no sentido de reacender a discussão e a conscientização acerca da constituição racial se faz necessário no contexto social em que vivemos.

3.1 O reconhecimento dos campos teóricos

Resgatar em textos literários e midiáticos algum elemento axiológico em que se interpõe o imaginário coletivo e que conduz certas atitudes socioculturais de um povo, como a racialidade, é, em certa medida, reconhecer a existência de uma interação entre os sujeitos que se realiza a partir de diferenças existentes entre negros e brancos, de uma hierarquia global que orienta a emergência dessas diferenças, e ainda, de uma forma de poder que se legitima em torno dela.

Diante disso, a interface entre a Análise do Discurso – AD – e as questões da identidade e da alteridade propostas para esse estudo se sustentam, pois estamos lidando com discursos advindos de práticas raciais estruturadas a partir de atos enunciativos realizados por meio da relação entre brancos e negros, presentes em

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narrativas distintas, mas que se constroem sob determinados símbolos, crenças, comportamentos, juízos de valores etc., concebidos pela intersubjetividade e, sobretudo, a partir de um olhar peculiar sobre o outro.

A AD, nessas circunstâncias, se torna uma ferramenta imprescindível para a investigação discursiva acerca da constituição racializante dos objetos de estudo. Entretanto para tal estudo, necessitamos de uma noção mediadora, que nos permita percorrer por essas questões veladas, como o racismo. Sendo assim, nos apropriamos de certas pesquisas que tratam da racialidade advindas dos Estudos Culturais – EC –, área do conhecimento que se estabelece sob tendências distintas, porém, apresenta um foco singular, a cultura, e ainda, que se caracteriza por uma dimensão multidisciplinar, que busca romper com as fronteiras tradicionalmente estabelecidas pelas universidades, pois a preocupação inicial dos EC se constitui a partir das pesquisas vinculadas aos produtos da cultura popular e dos mass media, expressões culturais da contemporaneidade e que presidem nossos objetos.

O ponto inicial das discussões acerca dos Estudos Culturais inicia-se na academia britânica, tendo como principais representantes Raymond Williams, E. P Thompsom e Richard Hoggart.

Willians, em suas pesquisas sobre os meios comunicacionais, pressupõe que estes evocam significados culturais, como os textos produzidos em um determinado tempo histórico. A mídia provocaria impactos comportamentais que se externalizariam a partir de certas intenções, de caráter persuasivo ou subjetivo. Além disso, o significado veiculado pela mídia envolveria as pessoas, promovendo a intersubjetividade sob um dado momento cultural e histórico. (WHITE, 1998, p. 60).

Os trabalhos de E. P. Thompsom e Richard Hoggart acerca da cultura presentificada pela classe de trabalhadores também tiveram seu grau de relevância para os Estudos Culturais:

Esta cultura é apresentada de dentro, isto é, interpretada pela própria classe trabalhadora, apresentada não como um grupo passivamente explorado, mas como um conjunto de pessoas que criam sua própria tradição paralela, a despeito da modernização da mídia de massa e da incorporação à cultura massificada. (WHITE, 1998, p. 60).

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Os primeiros olhares para o que viriam a ser os Estudos Culturais não se limitariam a um único campo do saber, mas retomariam os elementos definidos por outras disciplinas, estabelecendo uma nova correlação para as formas de cultura. Nota-se que os EC agregam trabalhos advindos da crítica literária, entretanto, confluem também com outros campos do conhecimento, como a sociologia, a história, a antropologia, a linguística etc. O interessante desse entrecruzamento, certamente, é que ele se atém aos vários significantes culturais que cada abordagem revelará.

Outra figura importante para a formação dos EC foi Stuart Hall (1969-1979), motivador de pesquisas etnográficas sobre os meios massivos e de investigações de práticas de resistência em subculturas. Para Ana Carolina Escosteguy,

A proposta original dos cultural studies é considerada por alguns como mais política do que analítica. Embora sustentasse um marco teórico específico – amparado principalmente no marxismo, a história deste campo de estudos está entrelaçada com a trajetória da New Left, de alguns movimentos sociais (Worker’s Educational Association, Campaign for Nuclear Disarmament) e de publicações – entre elas, a New Left Review – que surgiram em torno de respostas políticas à esquerda. (ESCOSTEGUY, 2010, p. 141-142 – destaque da autora).

Na primeira década do surgimento dos EC observou-se que a ênfase de Marx nas relações de classe compatibilizava com o foco dos trabalhos desenvolvidos pelo Centre for Contemporary Cultural Studies – CCCS –, da Universidade de Birmingham, Inglaterra na cultura popular, vista como um ―reflexo da luta implícita da classe operária por sua autoexpressão‖. (SCHULMAN, 2010, p. 178).

Com a entrada de Hall no referido Centro, a transformação viria por meio de textos midiáticos, mostrando como a ideologia presentificava as ideias dos grupos dominantes. Ao reler os trabalhos de Antonio Gramsci, o Centro lança um novo olhar aos estudos do gênero e da raça, passando a ver a cultura popular como um lugar de resistência e de embates em potencial. (SCHULMAN, 2010, p. 179).

Os EC rompem com a ideia de que a cultura só poderia ser expressa através de pesquisas consolidadas pelo cânone tradicional. Nessa perspectiva, a cultura relaciona-se a um domínio do campo do conhecimento que permite a produção do

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sentido através das vivências humanas, que se organizam sob as práticas sociais, delineando, segundo Hall, ―um modo de vida global‖. (HALL, 2003, p. 127).

Hall aponta que, por várias vezes, o desenvolvimento dos EC foi interrompido por ―verdadeiras rupturas‖, isto é, por novos pensamentos, desviando o foco do Centro, tal como aconteceu com os estudos acerca do feminismo e da questão racial. (HALL, 2003, p. 210).

Nesse âmbito, os trabalhos sobre identidade, pós-colonialismo, multiculturalismo etc., problematizam a questão da raça e da etnicidade e estabelecem uma nova ordem para se debaterem a racialidade e as relações de poder assimétricas manifestadas nas atitudes preconceituosas existentes entre grupos humanos diversos, isto é, não-europeus. Questões como as de cunho sexual, gênero etc. também ganham destaque nesse momento dos EC, constituindo, assim, um processo de rupturas e de proliferação subalterna das diferenças, como aponta Hall:

Os resultados das lutas de poder entre os grupos são vistos como fluidos, contínuos, nunca pré-determinados; eles compreendem pequenas ―revoluções em torno de algo tão específico quanto a mudança da forma como os epítetos raciais são usados. (HALL, 2003, 178 – destaques do autor).

Sob essa perspectiva os EC conquistam espaços reais, reivindicando recursos para aprimorar conhecimentos, priorizando pesquisas e manifestando, a partir das práticas sociais, os efeitos da ideologia. A questão da identidade, por exemplo, abordada pelos EC não é algo novo, mas segundo Hall, as novas demandas sociais e políticas da contemporaneidade possibilitam observar a questão identitária de uma forma mais problematizada a partir do tratamento dado à etnicidade, pauta que se renova na perspectiva dos EC:

As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado histórico com o qual elas continuariam a manter certa correspondência. Elas têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que somos, mas daquilo em que nos tornamos. (HALL, 2000, p. 109).

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Logo, o que nos interessa observar nessa instância recai sobre as questões de raça, que se traduzem sob formas de resistência, mestiçagem, hibridação e que convergem para a formação de identidades múltiplas. Especificamente para esse estudo interessam-nos aquelas questões que dizem respeito à racialização brasileira.

Para um melhor entendimento sob a perspectiva de raça, Kabengele Munanga nos explica que

A história das sociedades e culturas modernas foi sempre acompanhada de certa ideia de humanidade, de uma apreensão do ser humano pensado essencialmente através das noções de igualdade e de liberdade. À medida que a significação e o alcance dessa ideia moderna de humanidade foram se aperfeiçoando, ela se viu atravessada por uma tensão muito forte entre duas exigências comparativamente opostas (MESURE & RENAUT, 1999, p. 18, apud KABENGELE MUNANGA, 2005-2006, p. 47).

Segundo o autor, a exigência primeira estabelece a compreensão de que a humanidade se constitui por sua essência ou natureza. Os valores do humanismo abstrato e/ou do universalismo, que sugerem haver uma natureza comum a todos, se legitima nesse discurso. Já a segunda exigência pode ser notada no ―fim do século XVIII na Alemanha, depois na França e na Inglaterra, na medida em que alguns efeitos perversos da primeira exigência se deixaram perceber.‖ (MUNANGA, 2005-2006, p. 47). Nessa ocorrência a definição essencialista do sujeito agiu como pretexto para a discriminação, já que os grupos que não pertenciam a certa identidade poderiam ser excluídos sob alegações despóticas, que se fundam em ―algumas máximas universais e sacrificam totalmente a riqueza e diversidade das tradições.‖ (MUNANGA, 2005-2006, p. 48).

Após a Segunda Guerra Mundial, muitos liberais aguardavam alguma mudança sobre os direitos do homem, discurso pautado pela Declaração Universal dos Direito Humanos, da Organização das Nações Unidas – ONU. Acreditavam que esse ato resolveria, de alguma forma, os problemas das minorias. Nesse âmbito, havia o pensamento de que os grupos culturais minoritários estariam, de certa forma, protegidos pelas garantias dadas a todos os sujeitos quanto a seus direitos civis e políticos fundamentais – a liberdade de expressão, de associação, de consciência –, sem consideração do seu pertencimento a qualquer grupo.

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(MUNANGA, 2005-2006, p. 51). Nesse sentido, muitas vezes o sistema torna-se inoperante e controverso quando se trata de resolver as questões dos subgrupos que, dentro de uma sociedade, consideram-se e/ou concebem-se como diferentes.

Para Gilroy, estudar a cultura negra tornou-se algo maior, isto é, parte de um contexto cultural transnacional, que apresenta a capacidade de incorporar, além de inflamar as manifestações que emergem nas fronteiras geográficas, como o caso da brasileira.

Situamos essa dimensão cultural do racismo lembrando que esse fato se expressa no cotidiano, por meio de formas de comportamento – escolhas matrimoniais, tratamento pessoal discricionário, rituais –, insulto racista, humilhações, assim como por meio da marginalização social e espacial,como veremos, adiante pelas análises de nossos objetos. Sob essa óptica, sabe-se que o racismo vem sendo combatido de diversas formas: introdução de conteúdos anti- racistas nos currículos escolares, assistência jurídica a vítimas de racismo, rigor na apuração e punição de crimes de racismo etc. Para Hall,

O preconceito, a injustiça, a discriminação e a violência em relação ao ―Outro‖, baseados nessa ―diferença cultural‖ hipostasiada, passou a ocupar seu lugar — o que Sarat Maharaj chamou de um tipo de "sósia- assombração do apartheid" — junto com racismos mais antigos, fundados na cor da pele ou na diferença fisiológica — originando como resposta uma ―política de reconhecimento‖, ao lado das lutas contra o racismo e pela justiça social. (HALL 2003, p. 46 – destaques do autor).

De acordo com Hall, a batalha que a modernidade travará advém dos processos das diferenças e semelhanças culturais, já que o povo que foi obrigado a se sentir fora de uma dada cultura tem uma visão singular a respeito dessa sociedade. (HALL, 2003).

Hall afirma que a identidade cultural leva em si traços de uma unidade essencial e questiona: ―unicidade primordial, indivisibilidade e mesmice, como devemos pensar as identidades inscritas nas relações de poder, construídas pela diferença e disjuntura?‖ (HALL, 2003, p. 28). Tarefa complicada diante do postulado de que a identidade seja algo compartilhado desde o nascimento, que se estabelece por uma linhagem genética, constitutivo de nosso eu interior. (HALL, 2003, p. 28).

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Nessa perspectiva entende-se o quanto se torna difícil aceitar o Outro, aquele que advém de um contexto de pobreza, ou de um lugar como África,

O subdesenvolvimento, a falta de oportunidades – os legados do Império em toda parte – podem forçar as pessoas a migrar, o que causa o espalhamento – a dispersão. Mas cada disseminação carrega consigo a promessa do retorno. (HALL, 2003, p. 28).

Para o autor, essa conjetura tornou-se importante para apreender a diáspora, que fornece, sob sua metáfora dominante, a possibilidade de disseminar os discursos libertários do povo negro em solos americanos:

Nessa metáfora, a história – que se abre à liberdade por ser contingente – é representada como teleológica e redentora: circula de volta a restauração de seu momento originário, cura toda ruptura, repara cada fenda através desse retorno. Essa esperança foi condensada, para o povo caribenho, em uma espécie de mito fundador. Pelos padrões usuais, trata-se de uma grande visão. Seu poder – mesmo no mundo moderno – de remover montanhas jamais deve ser subestimado. (HALL, 2003, p. 29).

Hall explica, nessas circunstâncias, a relevância de se possuir uma identidade cultural e conseguir relacionar-se com um ―núcleo imutável e atemporal‖, que une o passado ao futuro e o agora num circuito sem interrupções; a essa ligação o autor chama de tradição, consciência de si, conhecimento da origem. (HALL, 2003 p. 29).

Ainda sobre a reflexão acerca da questão de raça, Hall, relatando o momento das especificidades culturais negras, toma de empréstimo a conjectura formulada por Cornel West, que consiste em uma genealogia constituída por três grandes eixos para se pensar esse momento da cultura popular negra:

. um primeiro que se faz pelo descolamento dos paradigmas europeus da alta cultura – a Europa enquanto sujeito universal da cultura, e ―da própria cultura‖;

. um segundo com o surgimento dos Estados Unidos da América – EUA – como potência mundial, sendo o centro de produção e circulação da cultura global (nesse âmbito há uma desarticulação e uma modificação

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hegemônica na ―definição‖ de cultura – ―um movimento que vai da alta cultura à cultura popular americana majoritária e suas formas de cultura de massa mediadas pela imagem e formas tecnológicas‖);

. e um terceiro eixo que se estabelece pela descolonização do terceiro mundo, assinalado pelo iminente momento cultural das ―sensibilidades descolonizadas.‖ (HALL, 2003, p. 336).

Sob a descolonização, Hall esclarece: ―Eu entendo a descolonização do Terceiro Mundo no sentido de Frantz Fanon: incluo aí o impacto dos direitos civis e as lutas negras pela descolonização das mentes dos povos da diáspora negra.‖ (HALL, 2003, p. 336).

Diante desses apontamentos, percebe-se que os negros continuam a viver num período de contradições, ambiguidades quanto às hierarquias étnicas, sabendo que são essas hierarquias que definem as políticas culturais, as quais, em muitos desses momentos, acabam por silenciar as classes minoritárias da sociedade.

Por essas questões é importante fixarmo-nos em concepções que nos permitam

Rastrear as origens dos sinais raciais a partir dos quais se construiu o discurso do valor cultural e suas condições de existência em relação à estética e à filosofia europeias, bem como à ciência europeia, pode contribuir muito para urna leitura etno-histórica das aspirações da modernidade ocidental como um todo e para a crítica das premissas do Iluminismo em particular. É certamente o caso das ideias sobre "raça", etnia e nacionalidade, que formam urna importante linha de continuidade vinculando os estudos culturais ingleses a urna de suas fontes de inspiração – as doutrinas estéticas europeias modernas que são constantemente configuradas pelo apelo à particularidade nacional e, muitas vezes, à particularidade racial. (GILROY, 2001, p. 44 – destaque do autor).

Os Estudos Culturais, assim, emergem por meio de teorias e métodos que enfocam: ―descrições complexas, concretas, que sejam capazes de apreender, particularmente, a unidade ou a homologia das formas culturais e materiais‖ (JOHNSON, 2010, p. 42). Para além disso, eles se tornam um local para observar e/ou trabalhar as diferenças, os embates sociais, onde a representação se apoia nas

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formas vividas por certos grupos sociais subordinados e promove a criticidade acerca dos modos de dominação públicos existentes. (JOHNSON, 2010, p. 105).

Sobre os EC, portanto, recai a tensão entre o querer do analista em investigar a cultura a partir de um conjunto de códigos e práticas alienantes dos seres e de seus ganhos, e o desejo do pesquisador de deparar, nesse contexto, com uma cultura popular como uma expressão autêntica de valor. (CULLER, 1999, p. 51).

Sob tais possibilidades percebemos que trabalhar com os EC em consonância com a AD se faz pertinente à medida que essas áreas do conhecimento nos propiciam investigar o fenômeno sociorracial por meio das estruturas enunciativas presentes nos objetos deste estudo. A primeira nos fornecendo o embasamento para situar o discurso racial no contexto acadêmico; a outra produzindo meios materiais de exteriorizar o sentido dos discursos presentes nos objetos em questão. Assim, aspectos relevantes, como os de cunho social, cultural e ideológico advindos da racialidade brasileira podem vir a ser revelados, vislumbrando o que se pode dizer sobre si e o outro nesse contexto, e ainda, as significações que emergem acerca do sujeito de cor brasileiro.

Como se pode observar, as pesquisas realizadas no campo das teorias raciais nos permitem estruturar os processos discursivos raciais sob a problemática das ambiguidades, subjetividades, incidentes etc., que circulam pela sociedade acerca da racialidade. Acreditamos que o contraponto realizado sob os dois objetos culturais distintos, a saber literatura X mídia telenovelística, poderá nos esclarecer e/ou permitir o reconhecimento acerca da racialização existente no meio social brasileiro.

A inter-relação teórica adotada para este estudo, portanto, parece se fixar em um ―entre-lugar‖, pressupondo um entrecruzamento discursivo que se faz através de estratégias intersubjetivas e se estabelece sob o jogo das formações imaginárias, presidindo o discurso racializante em questão. Assim, buscamos novas interpretações sobre os signos que compõem a identidade do negro brasileiro, além de apreender a nova ordem que se instaurou sobre o ideário de raça na sociedade do Brasil.

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3.2 Os objetos

O nosso primeiro objeto é o romance Clara dos Anjos, de Lima Barreto. Ele se constrói a partir da história de Clara, filha do carteiro Joaquim dos Anjos e da dona de casa Engrácia, irrompendo nesse contexto o envolvimento amoroso com Cassi Jones, um exímio conquistador suburbano. Lembremos que Clara é uma mulata, filha de um casal de cor, ambos descritos pelo autor como pardo-claros. A trama descreve o meio degradante vivido pelos negros, pardos e mulatos brasileiros, como, por exemplo, quando retrata a trajetória decadente do poeta mulato Leonardo Flores, o alcoolismo do dentista Menezes, além do destino maculado das mocinhas de cor, como foi o caso de Clara.

A narrativa se desenvolve sob o olhar de um narrador heterodiegético, que revela de modo onipresente os acontecimentos dessa estória. O espaço se caracteriza através da apresentação do subúrbio, remetendo ao Rio de Janeiro do início do século XX, que o autor denomina como ―refúgio dos infelizes‖ (BARRETO, 1998, p. 74).

Através da personagem Clara e da condição social na qual vive, a obra de Barreto retrata as humilhações, em especial a decorrente do preconceito racial, de que eram vítimas os afrodescendentes. Sendo assim, esse autor se afirma enquanto escritor que, em perspectiva realista, faz o narrador se aproximar do seu leitor a partir de descrições singulares, mas que, de certa forma, sugerem informações importantes para apreender o espaço físico e o ambiente, assim como a posição social e moral de um Brasil pós-escravocrata recriado em texto. Veja-se, por exemplo, uma das descrições do subúrbio:

O subúrbio propriamente dito é uma longa faixa de terra que se alonga, desde o Rocha ou São Francisco Xavier, até Sapopemba, tendo para eixo a linha férrea da Central. (...) Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas. Todo o material para essas construções serve: são latas de fósforos distendidas, telhas velhas, folhas de zinco, e, para as nervuras das paredes de taipa, o bambu, que não é barato. (...) Nelas, há quase sempre uma bica para todos os habitantes e nenhuma espécie de esgoto. (...)

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Carneiros, cabritos, marrecos, galinhas, perus – tudo entra pela porta principal, atravessa a casa toda e vai se recolher ao quintalejo aos fundos. Se acontece faltar um dos seus "bichos", a dona da casa faz um barulho de todos os diabos, descompõe os filhos e filhas, atribui o furto à vizinha tal. Esta vem a saber, e eis um bate-boca formado, que às vezes desanda em pugilato entre os maridos. A gente pobre é difícil de se suportar mutuamente; por qualquer ninharia, encontrando ponto de honra, brigando, especialmente as mulheres. (...) Todas elas se têm na mais alta conta, provindas da mais alta prosápia; mas são pobríssimas e necessitadas. Uma diferença acidental de cor é causa para que possa se julgar superior à vizinha; o fato do marido desta ganhar mais do que o daquela é outro, Um ―belchior‖ de mesquinharias açula-lhes a vaidade e alimenta-lhes o despeito. (BARRETO, 1998, p. 72- 73 – destaques do autor).

Nessa passagem o narrador retratra a dificuldade que se econtra no subúrbio, decorrentes da superpopulação que ali vive e do mal estar decorrente da situação financeira precária dos indivíduos de cor.

A estória de Clara apresenta um triste desfecho para ela; para as afrodescendentes, como Inês, que, após ser seduzida por Cassi Jones, filho da patroa Salustiana, gerar um filho dele e perder o emprego, acabou se tornando ―uma negra suja, carpinha, desgrenhada, com um caco de pente atravessado no alto da cabeça, calçando umas remendadas chinelas de tapete.‖ (BARRETO, 1998, p. 115); e também para as moças pobre como Nair, cuja mãe suicida-se após entender que não havia reparo para o defloramento da filha pelo mesmo Cassi Jones.

―Nós não somos nada nessa vida‖ (BARRETO, 1998, p. 133) é a conclusão da jovem mulata Clara quando, ao final da narrativa, encontra-se grávida, sozinha e estigmatizada pela sociedade branca. A fala de Salustiana, mãe de Cassi Jones, reitera o infortúnio de Clara: ―Casado com gente dessa laia‖. (BARRETO, 1998, p. 131). A mulata, nessa obra, revela um status marginal, pois não tem direito à liberdade e carrega os estereótipos de uma sociedade pós-escravagista.

Para contrapor ao referido objeto literário, trouxemos um outro, pertencente à mídia, a telenovela Fera ferida, que rememora, em seu contexto, várias histórias de personagens criados ao longo da carreira literária de Lima Barreto.

A história é escrita por Aguinaldo Silva, Ricardo Linhares e Ana Maria Moretzsohn. É uma produção da Rede Globo de Televisão exibida de novembro de 1993 a julho de 1994, no horário de oito e trinta, tendo 221 capítulos.

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Fera ferida se passa na cidade ficcional de Tubiacanga, tendo como protagonista Raimundo Flamel ou Feliciano Júnior (), sujeito que volta a essa cidade para vingar a morte de seus pais.

Essa telenovela traz personagens curiosos, presentes em várias obras do escritor Lima Barreto, como o Professor Praxedes de Menezes, que reúne características trazidas pelo personagem Lobo, de Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909) e também por Pelino Guedes, personagem presente em Nova Califórnia (1910). Praxedes (representado por ), nesse contexto, é apresentado como um gramático purista, intelectual. Ele é o editor do jornal Gazeta de Tubiacanga e diretor do liceu. É Casado com Querubina () e sempre tem desavenças com o poeta Afonso Henriques (Otávio Augusto).

Nessa narrativa encontramo-nos, também, com personagens presentes em contos de Lima Barreto, como: ―Nova Califórnia‖, com os personagens Flamel, Major Bentes etc.; ―O homem que sabia Javanês‖ (1911), com o personagem Castelo (o sujeito que dizia saber javanês), além, de ―Clara dos Anjos‖, com os personagens Engrácia, Clara, Joaquim, D. Margarida, Cassi Jones, Salustiana, entre outros. Até o próprio Lima Barreto é reconstituído em Fera ferida através do personagem poeta Afonso Henriques de Lima Barreto, interpretado por Otávio Augusto. Além disso, a novela faz outra menção a Lima Barreto ao mostrar sua foto com a faixa presidencial dentro do gabinete da cidade ficcional de Tubiacanga.

Essa novela projeta várias tramas paralelas, como traição, corrupção, racismo etc, sendo que nosso enfoque, a princípio, se volta para o núcleo vivenciado pela personagem Clara dos Anjos e as condições racializantes estabelecidas naquele contexto.

3.3 O recorte dos objetos

Na constituição deste corpus verificou-se a necessidade de um recorte, pois se constatou que seria inviável um estudo de todos os elementos presentes nos objetos em questão, segundo a definição do marco teórico e da temática racial. Assim, previamente, realizou-se um exame sobre a narrativa barretiana, retirando

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desse contexto as enunciações que evidenciavam a racialização, isto é, a relação entre negros e brancos que se direcionavam para um possível conflito entre sujeitos e/ou processos de natureza discriminatória, preconceituosa. E isso pontuando que a narrativa de Barreto é o texto fundador, pois a trama televisiva é uma releitura deste.

Elegeu-se, assim, o contexto racial apresentado pelas personagens centrais de Clara dos Anjos, seguido de outros secundários, necessários para a investigação enunciativa, recaindo a escolha sobre a personagem Clara, sua família, Cassi Jones, Salustiana, Inês, Marramaque e Margarida Weber.

Passando à telenovela, mantivemos a mesma organização, tentando, a princípio, um contraste homológico entre personagens, isto é, na obra barretiana escolheu-se a personagem Clara dos Anjos e sua família; em Fera ferida, trouxemos o processo racializante também explicitado pela família dos Anjos, buscando, desse modo, uma contraposição dos discursos presentes entre as duas narrativas.

O recorte realizado na novela ocorreu sob uma base similar ao recorte realizado no romance Clara dos Anjos, porém, acrescentando-se alguns personagens cuja relevância se fez proeminente para a composição do núcleo ficcional eleito, construído em torno da personagem Clara.

Na trama televisiva, personagens como Clara e sua família não são mais centrais, como os apresentados pelo romance de Barreto. Logo, a Clara dos Anjos de Fera ferida não é mais a protagonista da obra ficcional. A centralidade dessa trama se faz através de outros personagens, como Raimundo Flamel e Linda Inês. Nessa trama, o tema principal é a relação amorosa e seus desencontros. A visão crítica da sociedade racista proposta por Lima Barreto dá lugar a um enfoque ―contemporâneo‖ do racismo, aparentemente amistoso, porém persuasivo, sedutor e maniqueísta, distanciado do debate racial pretendido por Barreto com a obra Clara dos Anjos no Brasil do início do século XX.

Diante disso, percebemos que o tratamento dado pelas narrativas Clara dos Anjos (1922) e Fera ferida (1993) à questão racial se difere inicialmente pela forma de criação, exposição, veiculação, intencionalidade, proposta estética que cada uma apresenta, objetivos desses objetos de estudos – que também são bem diferentes –, e ainda, pela modernidade – a novela se estabelece como um produto tecnológico.

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Outro fato que se faz importante mencionar diz respeito ao processo de coleta de dados realizado para a análise da telenovela. As cenas dessa trama selecionadas para a investigação foram extraídas a partir da relevância racial ali apresentada e, após tal escolha, essas cenas foram transcritas, buscando uma representação fidedigna da pronúncia dos personagens. Para realizar este processo de transcrição, então, nos baseamos no trabalho de Preti (2000), conforme o anexo, entendendo que é fundamental para o analista saber quais são seus objetivos no momento da transcrição, para não deixar de pontuar aquilo que lhe convém.

Desse modo, as etapas que seguem essa pesquisa se constituem a partir das categorias analíticas: teorias raciais, gênero, processo enunciativo, formação discursiva, pressupondo a seguinte organização:

i. As teorias raciais integrarão cada uma das categorias apresentadas, a fim de consolidar e/ou corroborar as questões raciais investigadas.

ii. A categoria de gênero propiciará entender as intenções e as situações comunicativas apresentadas por ambas narrativas propostas para a investigação desse corpus.

iii. A noção semiolinguística conduzirá a construção da intersubjetividade instaurada pelas relações enunciativas entre os personagens ficcionais negros e/ou brancos, buscando determinar e apreender os conflitos raciais presentes nos objetos.

iv. A concepção sobre a formação discursiva sustentará as análises dos contextos sócio-históricos vividos pelos personagens escolhidos, segundo a temática racial, tanto na narrativa literária quanto na telenovela, demonstrando as formações discursivas e ideológicas inscritas em uma dada formação social instaurada no âmbito de cada objeto.

v. Por fim, apresentaremos os resultados encontrados nesse percurso.

Logo, acreditamos que o estado de coisas que deverá emergir dessa ficcionalização racializante apresentada pelo corpus nos conduzirá rumo a descobertas e/ou aos entendimentos acerca de práticas discursivas de cunho

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racializante que circulam na sociedade e que ainda necessitam de um debate significativo, no intuito de desmitificar a racialização presente no contexto social brasileiro.

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4. A PERSPECTIVA DOS GÊNEROS: LITERATURA X MÍDIA TELEVISIVA

Eleger objetos de pesquisa pertencentes à esfera pública, que apresentam gêneros distintos, como a literatura e o midiático campo da telenovela, para repensar e re (construir) a racialização moderna, mostrou ser, a princípio, um trabalho inusitado, curioso e ousado (isso não seria tarefa da antropologia, sociologia etc.?). Não bastando, buscamos uma interface entre campos de saberes como linguística e literatura, outra perspectiva não usual. Mas, entendemos a viabilidade dessa construção a partir das manifestações da linguagem, objeto comum a essas duas áreas do conhecimento.

Dessa forma, a obra literária e a telenovela podem ser vistas como espaços que reúnem diversas possibilidades de leitura, devido à pluralidade de sentidos que caracteriza ambas. Além disso, podem ser pensadas como lugares onde se privilegia a produção/reprodução simbólica significante, cuja enunciação pode originar elementos relevantes que apagam ou ressignificam uma dada identidade social.

Contudo, aprendemos que a linguagem literária apresenta uma estética e se constitui como um bem capital cultural. A narrativa telenovelística não tem esse caráter, trata-se de um elemento da mass media e tem um status que caminha para a marginalidade, daí a proposta de se trabalhar com campos teóricos distintos, como mostramos acima.

Ainda, sob certos aspectos da dualidade, observamos que os discursos de Clara dos Anjos e Fera ferida se exteriorizam por meio de subjetividades individuais e coletivas, como se percebe pelo romance, o qual emerge de uma individualidade para abranger certas camadas coletivas da sociedade. Já com a telenovela isso não acontece; ela se constrói sob o olhar de várias pessoas: primeiro, os autores; após eles, os diretores, atores etc. Quer dizer, ela se organiza a partir de um grupo que apresenta núcleos coletivos, visando temáticas distintas, em horários pré-determinados para um público alvo, projetados para uma sociedade massiva.

Nesse âmbito, torna-se interessante verificar o posicionamento desses discursos a partir de seus modos de constituição e/ou construção, quer seja

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enunciativa, composicional, estilística etc. Para tal investigação, portanto, propomo- nos utilizar a noção de gêneros discursivos de Bakhtin (1997), Bronckart (2003), Maingueneau (2004), entre outros.

Tomamos os gêneros, primeiramente, à luz de Bakhtin, que considera que as esferas humanas, por mais distintas que sejam, sempre se relacionam por meio do uso da língua.

A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais –, mas também, e, sobretudo, por sua construção composicional. (BAKHTIN, 1997, p. 280).

Segundo o autor os recursos da língua como o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional se organizam de forma indissolúvel no ―todo‖ do enunciado. As esferas de utilização da língua estabelecem as bases dos enunciados de maneira ―relativamente‖ estáveis, constituindo, assim, os gêneros do discurso.

Nossos enunciados, sob tal acepção, se baseiam em formas padronizadas e apresentam uma estabilidade relativa de estruturações como um todo, marcadas por uma dada conjuntura sócio-histórica fundada sob diferentes situações sociais.

Bakhtin diferencia os gêneros discursivos primários dos secundários. O primeiro o autor chama de simples, algo semelhante à comunicação do dia a dia. O segundo é considerado como complexo, pois surge a partir de circunstâncias de comunicação cultural elaboradas, como a escrita. Durante o processo formativo, os gêneros secundários ―absorvem e transmutam‖ os gêneros primários de qualquer espécie, constituídos em ocasiões comunicativas cuja verbalidade é expressa espontaneamente:

Os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários, transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular: perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios - por exemplo, inseridas no romance, a réplica do diálogo cotidiano ou a carta, conservando sua forma e seu significado cotidiano apenas no plano do conteúdo do romance, só se

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integram à realidade existente através do romance considerado como um todo, ou seja, do romance concebido como fenômeno da vida literário- artística e não da vida cotidiana. (BAKHTIN, 1997, p. 280).

Existem autores que fazem distinções ao tratarem dos gêneros, como por exemplo, Bronckart (2003), que em seu trabalho explica a dificuldade de se definir gêneros. O pesquisador expõe nesse estudo a noção terminológica de gênero e tipo, segundo Ducrot & Todorov (1973), observe:

Diante do universo de textos concretos em um período histórico dado, eles consideram que uma primeira abordagem, de observação e de indução, permite delimitar gêneros diferentes, mesmo quando as fronteiras entre esses gêneros permaneçam permeáveis. Sobre essa base, uma segunda abordagem, de caráter dedutivo, permitiria então postular as regras e as características linguísticas definidoras de um tipo: em princípio o tipo não seria jamais realizado por um exemplar de texto concreto, mas constituiria uma espécie de modelo teórico subjacente a cada gênero. (BRONCKART, 2003, p. 52).

Bronckart ainda explana sobre as ―tipologias de tipologias‖, como a de Petitjean (1989), sugerindo classificações baseadas em critérios homogêneos ou dominantes que demarcam os ―tipos‖ – ―tipos de textos‖ fundados em critérios linguísticos, ―nesse caso sobre a forma de sequencialidade ou de ―plano‖ que um texto exibe (planos injuntivo, argumentativo, narrativo etc.)‖ (BRONCKART, 2003, p. 53). E ainda, fala de ―tipo de discurso‖ para aqueles que privilegiam os fatores pragmáticos (o modo enunciativo, intenção comunicacional, condições sociais de produção). (BRONCKART, 2003, p. 53).

Segundo Maingueneau (2004), existem vários autores que empregam de maneira indiferente ―gênero‖ como ―tipo de discurso‖. Contudo, a tendência é tentar distingui-los, como mostrado acima pelos estudos de Bronckart.

O gênero, de acordo com Schneuwly & Dolz, tende a atravessar

a heterogeneidade das práticas de linguagem e faz emergir toda uma série de regularidades no uso. São as dimensões partilhadas pelos textos pertencentes ao gênero que lhe conferem uma estabilidade de fato, o que não exclui evoluções, por vezes, importantes (SCHNEUWLY & DOLZ, 2004, p. 45).

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Por conseguinte, parece-nos que o estudo dos gêneros nessa perspectiva ajudará a corroborar a apreensão acerca do formato do romance barretiano e sua releitura pela telenovela.

4.1 Gênero literário: Clara dos Anjos

Intentamos neste momento, situar Clara dos Anjos como um gênero discursivo construído sob determinados padrões (princípios) que se exteriorizam sob propriedades classificatórias específicas. Entretanto, faz-se importante entender a complexidade de se trabalhar com um objeto situado no campo da Literatura, então, ressalvamos que o presente estudo não tem a pretensão de discorrer sobre esse campo teórico. No entanto, em determinados momentos dessa pesquisa, talvez haja a necessidade de se fazer um ―passeio pelos bosques da ficção‖ (ECO, 1994) como maneira de legitimar certos aspectos desse objeto.

A literatura tornou-se uma instituição paradoxal na medida em que criar literatura é produzir uma escrita segundo alguns moldes já existentes, ―produzir algo que parece um soneto ou que segue as convenções do romance – mas é também zombar dessas convenções, ir além delas‖. (CULLER, 1999, p. 47). Esse campo de conhecimento apresenta, em suas composições, regras e características lexicais próprias para cada gênero; e como uma instituição, tem o propósito de se tornar a expressão cultural de uma sociedade.

Em seu sentido amplo, tudo que é impresso, e até mesmo manuscrito, situa- se no espaço da literatura. Os livros de uma biblioteca, por exemplo, pertencem ao domínio literário; essa é uma acepção clássica para o termo ―belas-letras as quais compreendiam tudo o que a retórica e a poética podiam produzir, não somente a ficção, mas também a história, a filosofia e a ciência, e, ainda toda a eloquência.‖ (COMPAGNON, 1999, p. 31). Nessa perspectiva encontra-se o caminho para o conhecimento clássico e formal dos indivíduos, emergindo daí a face elitista da literatura. O reconhecimento e a autorização para determinar o que é literário ficam a cargo de poucos, como os homens de cultura, professores, escritores, críticos, acadêmicos etc.

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A distinção entre as obras literárias dos outros textos de cunho narrativo começa a se estabelecer pela seletividade: o texto de literatura se publica, resenha- se sobre o assunto, há a possibilidade de reimpressão, tudo isso para que o leitor se aproxime desse bem cultural, dando-lhe o seu devido valor. A obra literária, assim, adquire um princípio cooperativo que é ―hiper-protegido‖. (CULLER, 1999, p. 33). E, inevitavelmente, se torna um campo do saber de domínios específicos.

Em tal âmbito, a literatura apresenta-se como uma etiqueta institucional que ―nos dá motivo para esperar que os resultados de nossos esforços de leitura ―valham a pena‖. (CULLER, 1999, p. 33 – destaques do autor). O literário, também, é reconhecido como ―capital cultural‖, já que a compreensão sobre a literatura fornece ao sujeito uma ―baliza na cultura que pode compensar de variadas maneiras, ajudando-o a se entrosar com pessoas de status social mais alto‖. (CULLER, 1999, p. 46).

Ainda, a literatura pode se constituir em um ―instrumento poderoso‖ que, ao mesmo tempo em que deleita, educa, mas não no sentido pedagógico, exemplar: a literatura educa para a vida justamente por ser capaz de nos mostrar as contradições, as experiências diversas, o bem, o mal etc., que compõem a experiência humana: ―A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.‖ (CANDIDO, 2004, p. 175). A obra literária, sob esse viés, nos propicia uma (re) ordenação da percepção do mundo, ampliando os horizontes do ser humano.

A escrita de Lima Barreto, tal como os romances de sua época, se fixam sob o campo da literatura e, em virtude disso, se constituem sob determinados padrões genéricos, visto que certas convenções pragmáticas regem essas construções discursivas, como por exemplo, a linguística, a estilística, a teoria da literatura etc.

O panorama literário da época barretiana tem em sua expressão a realidade local, exibindo-a como um ―elemento positivo na construção nacional‖. Nessas circunstâncias, houve uma ―tomada de consciência dos autores quanto ao seu papel, e à intenção mais ou menos declarada de escrever para a sua terra, mesmo quando não a descreviam.‖ (CANDIDO, 1981, p. 27-28). A ordem era ―maquiar‖ o cenário brasileiro. No entanto, o escritor Lima Barreto não segue as regras, rompe com os modelos acadêmicos de sua época, contemplando sua realidade local: ―Lima insurgiu-se contra a ordem estabelecida nos cânones literários e contra o

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cerceamento da liberdade na sociedade carioca que se modernizava rapidamente.‖ (SANTOS, 2011, p. 04). Desse modo, o autor surge para balançar o ―adestramento intelectual do dominante sobre o dominado‖, e claro, sofre as consequências desse ato. (NOLASCO-FREIRE, 2005, p. 16). O reconhecimento acadêmico de Barreto só acontece tardiamente. O estudioso Antonio Arnoni Prado, nesse sentido, aponta que,

No conjunto, mais talvez que a singularidade dos tipos, Lima Barreto inaugura uma incursão estética pela melancolia da pobreza. Com ele surge uma nova paisagem na ficção brasileira que vem do artigo de jornal e da crônica do cotidiano para encorpar o registro que migra do realismo convencional para um novo enquadramento da realidade na chave do relato-flagrante, anterior à prosa de 22. (PRADO, 1999, p. 77).

Em Clara dos Anjos, por exemplo, quando Barreto se refere ao subúrbio como ―o refúgio dos infelizes‖ – ―os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal vão se aninhar lá (...)‖ (BARRETO, 1998, p. 74), percebemos a incursão de uma criação artística singular de um sujeito preocupado em descrever um discurso que outros não consideravam conveniente. Na trama barretiana, percebe-se um discurso oralizado e a situação do pobre, do negro, do indivíduo desfavorecido socialmente é contada através desse tom. Esse fato contraria toda uma expectativa elitista brasileira em relação à literatura. Barreto, com essa forma de escrita, subverte os padrões dominantes de sua época e a crítica literária o coloca à margem do sistema social, ora ignorando-o, ora tratando- o com desprezo, atribuindo a sua obra um caráter marginalizado, considerando-a uma não-literatura. Somente na contemporaneidade Lima Barreto conseguiu entrar para o rol da academia literária, como vimos pelo contexto acima.

A primeira versão de Clara dos Anjos publicou-se em forma de conto em 1922, época pós-abolição, e sua versão final se fez a partir de outro gênero, o romance, publicado em 1948.

O conto remonta à época em que a transmissão oral das narrativas tem seu auge até a afirmação de seu caráter literário. Manifesta, de maneira peculiar, como os grandes escritores flagraram a vida cotidiana de seu tempo. (GOTLIB, 2006). O

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conto, segundo Gotlib, carrega consigo a dificuldade de uma definição. No entanto, esse gênero apresenta elementos constantes, imanentes à sua construção, como a brevidade, a explosão de energia, a condensação em sua relação tempo e espaço, a promoção do sequestro do leitor, prendendo-o à obra, à intensidade.

Já o romance, explica Reeve, trata-se de uma narrativa que é centrada na vida real, está próxima do leitor no tempo e no espaço, retrata fatos do cotidiano, busca o convencimento, pois quem o lê acredita que aquilo realmente aconteceu.

Segundo Benjamin (1994), o romance difere da narrativa, assim como da ―epopéia no sentido estrito‖ porque ―ele está essencialmente vinculado ao livro‖, quer dizer, sem a invenção da imprensa não haveria a possibilidade de existência esse gênero.

Por volta do século XVII, especialmente na Europa, assim como no Brasil, o gênero romance expressava uma finalidade moralizante, trazia aspectos do cotidiano, e de certa forma, uma concepção pedagógica, sobretudo aquele romance ambientado no espaço urbano. Tal gênero poderia colaborar para a construção de alguns mitos nacionais, assim como na divulgação histórica e geográfica da nação. (FRANÇA, 1998, p. 71).

A experiência humana, nesse sentido, será uma expressão do gênero romance, pelo menos no que diz respeito aos escritores oitocentistas brasileiros. E sob manifestação similar surge a obra de Barreto, situada em um tempo cujo ideário se depreende do conservadorismo do final do século XIX e início do século XX.

Segundo um estudo realizado por Silva (2008), Lima Barreto construiu três produções literárias sob o mesmo título, Clara dos Anjos. O primeiro experimento textual deu-se em 1904 e foi inserido no diário particular do escritor, figurando como um esboço dessa obra. Em 1905 Lima escreve em seu Diário Íntimo:

Veio-me a ideia, ou antes, registro aqui uma ideia que me esta perseguindo. Pretendo fazer um romance em que descrevam a vida e o trabalho dos negros numa fazenda. Será uma espécie de ―germinal‖5 negro, com mais psicologia especial e maior sopro de epopeia. Animará um drama sombrio, trágico e misterioso, como os do tempo da escravidão. (...) Como exija pesquisa variada de impressões e eu queira que esse livro seja, se eu puder ter uma, a minha obra prima, adiá-lo-ei para mais tarde. (...) Ah! Se alcanço

5 Referência a obra naturalista Germinal, de Émile Zola.

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realizar essa ideia, que glória também! Enorme, extraordinária e – quem sabe? – uma fama europeia. Dirão que é um negrismo, que é um novo indianismo, e a proximidade simplesmente das coisas turbará todos os espíritos em meu desfavor, e eu pobre, sem fortes auxílios, com fracas amizades, como poderei viver perseguido, amargurado, debicado? (...) Mas... e a glória e o imenso serviço que prestarei a minha gente e a parte da raça a que pertenço. Tentarei e seguirei adiante. (VASCONCELOS, 2002, p. 1247 – destaque do autor).

Sabemos que Lima não conseguiu seu ―germinal‖. No entanto, não parou, fez a segunda versão desse texto em 1920, em conto, que se publicou no livro Histórias e sonhos (1920). Nota-se, desde logo, que o autor não se contentou em produzir apenas o conto; ele quis, mais talvez, preencher as lacunas desse não dito.

Assim, seu projeto se torna um romance acabado e intitulado em 1922, com o mesmo nome do primeiro texto, e será publicado depois da sua morte. Clara dos Anjos, enquanto gênero romance torna-se um legado que propõe ao leitor uma perspectiva para pensar as mazelas humanas vividas pelos afrodescendentes, promovendo, por meio da ficção, a discussão das adversidades vividas pelo negro de outrora.

4.2 Gênero midiático: a telenovela Fera ferida

Para discorremos sobre telenovela, faz-se relevante entendermos que se trata de um gênero inscrito e atuante em um veículo de comunicação de massa, diferente da proporção que a literatura alcança.

O espaço televisivo determina-se a partir das dimensões do vídeo e pela especificidade das câmaras televisivas, tendo uma dinâmica própria. Apresenta, ainda, um tempo que pode ser o real (como a transmissão direta de algum evento). (ECO, 1991, p. 181). Salles acredita que

é possível afirmar, sem medo de erro, que a televisão é a mídia brasileira mais importante. Em menos de quatro décadas, o vídeo transformou a face do país, modificou hábitos diários do povo, revolucionou a política, impôs profundamente alterações na cultura, estabeleceu parâmetros de comportamento, afetou a fala e inovou a língua dos brasileiros. Na economia, a televisão, como veículo publicitário, firmou-se como a mais

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atuante ferramenta de venda de bens e serviços (...) (SALLES, apud SOUZA, 2004, p. 24).

Nesse sentido, o gênero telenovelístico, como algo que subjaz a televisão ao se exteriorizar por meio do contexto de mass media, se torna um negócio extremamente rentável, uma forma de entretenimento que propicia a grandes marcas e empresas venderem seus produtos através da publicidade que propaga, por exemplo, no espaço do intervalo da novela.

A telenovela no Brasil se constitui como um produto cultural significante para o setor econômico (gera empregos, modismo etc.), além de estabelecer/salientar/mostrar aspectos culturais da sociedade brasileira. Baccega explica que a telenovela se estabelece em nossa sociedade como um ―produto transclassista‖ (as novelas são assistidas por pessoas distintas, seja pela escolaridade, posição social, status etc.), permitindo a construção do debate sobre a temática pautada pela teledramaturgia do momento. Contudo, as temáticas eleitas nem sempre são exploradas adequadamente, compreendendo que o universo ficcional não é a realidade, o que a isenta de conotações panfletárias, dado avesso à produção artística. (BACCEGA, 2003, p. 08).

A telenovela e a ficção televisiva em geral (minissérie, seriado, caso especial, também chamado unitário) estão aí e, pelo próprio formato do gênero – figurativo por excelência -, conseguem, de maneira muito mais ágil, expor conceitos e caminhar com êxito no sentido da persuasão da população em geral. (BACCEGA, 2003, p. 08).

O contexto telenovelístico propõe uma narratividade a fim de informar, persuadir, entreter, etc. A tendência maniqueísta é forte na telenovela, cuja base é a luta entre o bem e o mal. A ficção televisiva desenvolve sua história de acordo com a aceitação do público, a temática abordada pela trama da telenovela só ficará no ar, se a audiência permitir. Ela pode ser pensada como uma espécie de obra aberta, não somente pela participação do público, via redes sociais etc., mas também pela possibilidade ―de mil interpretações diferentes, sem que isso redunde em alteração de sua irreproduzível singularidade.‖ (ECO, 1991, p. 40).

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As raízes históricas da telenovela se baseiam nos aspectos do romance- folhetim oriundo da França, por volta do século XIX. A partir desse modelo construiu- se o gênero telenovela, que a nosso ver transgride6 a forma do folhetim, indo muito além.

O folhetim apresenta a composição de um texto literário, seja romance ou novela, realiza-se em capítulos e pode ser representada pelo teatro e pelo rádio em capítulos:

A grande popularidade do folhetim influenciou os demais gêneros da literatura e os meios de comunicação. No rádio, o folhetim também deixou sua marca nos programas de ficção. Na década de 1940, os Estados Unidos levaram as histórias seriadas ao rádio, mas foi em Cuba, por volta de 1935, que começaram a surgir as radionovelas. (SOUZA, 2004, p. 122).

Nos EUA, o sucesso da radionovela propiciou a aparição das séries televisivas, uma dramaturgia voltada para uma linguagem própria da TV, a soap opera. A designação para esse nome advém das indústrias de sabão (soap) com seu patrocínio. No Brasil o sucesso das radionovelas acontece em 1941. A primeira telenovela estreará em 1951, na antiga TV Tupi. (SOUZA, 2004, p. 122).

A telenovela brasileira e a soap opera se diferem quanto à média de duração: a novela brasileira pode ter entre 150 a 180 capítulos, enquanto a soap opera pode durar anos. A novela apresenta uma programação diária, a soap opera, por sua vez, tem maior periodicidade. No Brasil, a novela está muito próxima do cotidiano das pessoas e apresenta uma dose alta de realismo. (SOUZA, 2004, p. 122).

O formato da telenovela acontece por meio de episódios diários, com duração de 30 a 40 minutos e neles há sempre uma sequência narrativa. As redes brasileiras modelaram sua grade de horário há décadas, por exemplo, o horário nobre ocorre entre às 20:00 e 22:00 horas, tendo um índice de audiência considerável, fato que propicia a maior veiculação de publicidade.

6 Tomamos a transgressão do gênero segundo Machado: ―um gênero é transgressivo quando ele ‗ousa‘ amalgamar em si diferentes tipos de discursos que tinham, em suas respectivas origens, um objetivo diferente daquele que vão assumir quando reunidos em um só‖. (MACHADO, 2004, p. 78 – destaques da autora).

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Esse gênero assume um formato imposto por seu veículo comunicacional – a televisão, com extrema meticulosidade e uma composição singular que gira em torno de uma trama, elenco, personagens de caráter variados, diálogos, locações, cenários, música, figurino, maquiagem, planos de câmara, horários, edição etc. Logo, ela apresenta elementos de produção que se organizam em torno de um único objetivo, seduzir o telespectador.

Assim, a telenovela, nos permite (re) organizar os sentidos, perceber a dimensão sociocultural, política e econômica vivida no mundo moderno. Estudar esse tipo de mídia, como aponta Silverstone (2002), nos faz verificar o seu modo onipresente e a sua complexidade. Além disso, permite-nos apreender que esse meio comunicacional contribui para a capacidade de compreensão do mundo em sua produção e compartilhamento de significados.

A telenovela representa um repertório de representações identitárias compartilhado por produtores e consumidores, construído no Brasil ao longo de 35 anos, e por meio dela é possível estudar a recepção não como um momento em si, mas uma perspectiva a partir da qual se pode estudar todo o processo de comunicação, a partir da qual a vertente latino-americana das mediações aparece explicitamente ligada ao reposicionamento que o estudo sobre as culturas populares produz no campo da comunicação. (LOPES, BORELLI & RESENDE, 2002, p. 12-13).

A mídia telenovelística, nesse contexto, favorece a compreensão identitária e cultural da sociedade brasileira, em decorrência de sua possibilidade de integração social – trata-se de um gênero que se inscreve em um veículo que é assistido por todas as classes sociais e tenta refletir projeções cotidianas da vida dos brasileiros. A telenovela nos permite, assim, considerar as possibilidades raciais que se inscrevem em nosso objeto midiático.

Ainda, ressaltamos que a telenovela tem sintetizado problemáticas amplas em figuras pontuais. Contudo, percebemos que a construção da narrativa telenovelística se pauta por uma lógica ficcional que tem por base o referente cultural de uma dada sociedade. Mas, não podemos nos esquecer de que a função social da telenovela se constitui pelo entretenimento. (LOPES, 2003). A ficção televisiva

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tem limites para além dos quais a ação passa para o poder público e para a sociedade, que não podem delegar a ela a solução dos problemas concretos que a ineficiência dos sucessivos projetos políticos brasileiros não conseguiu resolver. (MOTTER, 2003, p. 79).

Sob tais considerações, percebemos que a telenovela tem a capacidade de ditar moda, tocar no imaginário social, nortear comportamentos, enfim, por meio da televisão ela entra na vida dos brasileiros diariamente, através de seu formato singular.

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5. O CONFLITO CONTRATUAL EM CLARA DOS ANJOS E FERA FERIDA

Para depreender o processo enunciativo do romance Clara dos Anjos e da telenovela Fera ferida, tomaremos de empréstimo as ideias de Charaudeau (2001) a respeito da noção de semiolinguística, concepção, a nosso ver, pertinente para direcionarmos nossa investigação acerca do conflito contratual racial presente nos objetos.

Sob essa perspectiva, consideramos que somente a linguagem compreendida como produção, e principalmente, como interação verbal, é que nos permite ficar a par de conhecimentos adquiridos e transmitidos para os outros através dos atos linguageiros.

A comunicação, segundo a teoria semiolinguística, definiu-se a partir da relação contratual entre sujeitos do discurso, que se estabelece, e se restringe, em função dos componentes: (a) comunicacional – quadro físico da situação interacional; (b) psicossocial – estatuto sócio-institucional dos interlocutores; e (c) intencional – expectativas recíprocas estabelecidas entre os interlocutores em função das estratégias planejadas. Logo, determinadas normas comunicacionais não podem ser infringidas, sob pena de impossibilitar a comunicação, e certas escolhas têm que ser feitas para que o sujeito comunicante alcance seu objetivo, que é estabelecer o processo interacional entre interpretante e destinatário.

Nessa perspectiva, a enunciação surge como encenação do ato de linguagem (mise-em-scène), que depende de um dispositivo compreendido por dois circuitos:

(i) o circuito externo – situacional (lugar do fazer psicossocial), lugar no qual se localizam as circunstâncias de produção do discurso, assim como os sujeitos responsáveis por essa produção;

(ii) circuito interno – discursivo (lugar da organização do dizer), local de materialização discursiva.

Esses circuitos vislumbram quatro sujeitos que se distribuem da seguinte maneira:

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 No Circuito do fazer estão o sujeito comunicante (EUc) e o sujeito interpretante (TUi), seres reais historicamente determinados, parceiros do ato comunicativo, enunciando e co-enunciando.

 No circuito do dizer encontram-se o sujeito enunciador (EUe) e o sujeito destinatário idealizado (TUd), denominados por Charaudeau (2001) como seres de fala, por apresentarem-se no nível discursivo.

É interessante elucidar que, para Charaudeau (2001), o sujeito é o lugar de produção da significação linguageira, não se constituindo por um indivíduo preciso, tampouco um ser coletivo, e sendo, então, uma abstração, o lugar da produção/interpretação da significação.

Recuperando a noção de linguagem a partir da relação contratual proposta pela teoria semiolinguística, pode-se verificar que o contrato comunicacional se organiza sob três níveis:

(i) nível situacional – diz respeito à estrutura do contrato e envolve questões como o reconhecimento da identidade dos interlocutores, as finalidades (fazer fazer, fazer saber, fazer crer, fazer sentir), o domínio temático e o suporte material do ato de comunicação;

(ii) nível comunicacional – se relaciona com a dinâmica e o funcionamento do contrato e diz respeito às estratégias possíveis, como, por exemplo, as relativas à legitimidade, à credibilidade e à captação;

(iii) nível discursivo – considera o desempenho linguístico-enunciativo dos interlocutores, ou seja, as estratégias efetivas, ou ainda, o ―como dizer?‖.

Buscando situar as referidas hipóteses, reproduzimos, abaixo, o quadro comunicacional proposto por Charaudeau (2001):

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Circuito externo – Fazer

Circuito interno – Dizer

EUc EUe ←______→ TUd TUi

Relação Contratual

Quadro 01: Contrato Comunicacional

Diante dessas considerações, a noção contratual de Charaudeau (2001) diz respeito a toda situação de comunicação regida por um contrato, que geralmente é implícito a essa situação, se constituindo:

 por meio dos sujeitos que depreendem a finalidade do ato comunicacional (qual a pretensão do dizer do sujeito comunicante nessa instância?);

 pela identidade dos parceiros do ato de comunicação (que papéis são assumidos por esses sujeitos na troca interacional?); e

 pela discursivização – instância de intervenção do sujeito falante, projeção do sujeito enunciador, o qual deve atender a certas condições de interação como, legitimidade, credibilidade e captação.

O sujeito comunicante, segundo esta concepção, institui um EUe que representa o seu projeto de fala. Este EUc idealiza seu TUi – que em nossos objetos se estabelece através da projeção do leitor destinátario e/ou telespectador, evocado através das estratégias:

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 Comunicacional: lugar da troca enunciativa, o autor e/ou escritor escreve em função de um TUi, sujeitos empíricos projetados pelo corpus em questão);

 Intencional: o apelo nessa estratégia se dá através dos saberes partilhados, o EUc, a partir de seu EUe e TUd, idealiza seu TUi em função de crenças que circulam por uma dada sociedade – em nosso caso, o contexto dos valores instituídos pela coletividade social brasileira;

 Psicossocial: que se estabelece a partir da situação externa, ou seja, o estatuto de escritor e/ou autor de um dado gênero, nesse caso as narrativas em questão. Assim, esse circuito do fazer interage diretamente com o nível do dizer por meio de seus projetos de fala – EUc, pressupondo um EUe e TUd, visando a alcançar um determinado TUi.

Assim, a concepção Semiolinguística nos propicia depreender o conflito presente na relação contratual de comunicação estabelecida pelo discurso literário e midiático, nos quais se inscrevem os parceiros/sujeitos e seus protagonistas comunicacionais.

Nas seções a seguir analisaremos os contextos externo e interno das narrativas em questão.

5.1 Os circuitos externo e interno de Clara dos Anjos

Neste capítulo trataremos da relação contratual presente nos componentes internos e externos da obra de Lima Barreto. Ao adequarmos o quadro comunicacional, primeirante, à narrativa barretiana, encontramos:

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Circuito externo - Fazer

Circuito interno – Dizer

EUc EUe TUd TUi Autor Personagens Personagens Conjunto de Leitores Individuais Individuais

Mundo das palavras

Relação contratual

Mundo sócio-histórico

Quadro 02: Contrato comunicacional adaptado.

Na instância do circuito do fazer, o processo comunicacional inicia-se com o EUc projetado pelo autor Lima Barreto que constrói sua estória tendo em vista um leitor empírico (TUi). O estatuto de escritor lhe confere a capacidade de perceber de modo sagaz a sociedade carioca do início do século XX. Como um flanêur, caminha pela cidade, e sob um olhar perspicaz, capta, ao seu modo, as nuances de um Rio de Janeiro que se modifica para atender ao projeto republicano de modernidade. Na visão desse autor, os problemas da cidade centravam-se no advento da modernidade, que atuava no empobrecimento das massas, observe:

Não há água, ou, onde há, é ainda nos lugarejos do Distrito Federal que o governo federal caridosamente supre em algumas bicas públicas; não há esgotos; não há médicos, não há farmácias. Ainda dentro do Rio de Janeiro, há algumas estradas construídas pela Prefeitura, que se podem considerar como tal; mas, logo que se chega ao Estado, tudo falta, nem nada há embrionário. (BARRETO, 1998, p. 75).

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A escrita crítica barretiana nos fornece uma excelente ferramenta de análise dessa sociedade, na medida em que foi produzida por ele na condição de vivente do cotidiano carioca. Barreto encena, através de seu discurso, o caos em que se encontra a sociedade brasileira, a urbanização desordenada do Rio de Janeiro, o descaso político, a condição dos pobres e negros no Brasil:

Para os lados, não se aprofunda muito, sobretudo quando encontra colinas e montanhas que tenham a sua expansão; mas, assim mesmo, o subúrbio continua invadindo, com as suas azinhagas e trilhos, charnecas e morrotes. (...) Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas. Todo o material para essas construções serve: são latas de fósforos distendidas, telhas velhas, folhas de zinco, e, para as nervuras das paredes de taipa, o bambu, que não é barato. (...) A gente pobre é difícil de se suportar mutuamente;(...) Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma grande parte da população da cidade, a cuja existência o governo fecha os olhos, embora lhe cobre atrozes impostos, empregados em obras inúteis e suntuárias noutros pontos do Rio de Janeiro. (BARRETO, 1998, p. 72-73).

Faz-se pertinente pontuar que essa foi uma época na qual esta cidade passou por uma brusca transformação econômica, política e social. Esse cenário propiciou e/ou estimulou os principais autores desse tempo a retratarem esses fatos em suas obras.

Lima Barreto, entre outros escritores de origem afro, segundo Bernd, constitui ―a periferia do sistema discursivo‖ do século passado. Esses autores fundam ―um antagonismo explícito ao pensamento hegemônico dominante, sendo que o valor das suas obras só será resgatado muitos anos depois‖. (BERND, 1992, p. 79). Através dos textos de Barreto reconhecemos o lugar dos pobres, da baixa camada social carioca do século passado, daqueles que sofrem discriminação e fracasso:

Mulato e alcoólatra, ocupando ele próprio enquanto indivíduo o espaço da margem, ele produziu seguramente a obra mais corrosiva de seu tempo. Sua timidez e sua aversão às luzes da academia, bem como as teses dissonantes que ele defendia ao contrário da formidável doxa do início do século, são as principais razões da rejeição e da incompreensão crítica a seu respeito durante um longo período. (BERND, 1992, p. 79).

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Assim se constitui o EUc Lima Barreto, detentor da iniciativa do processo comunicacional. Enquanto participante desse momento interacional, Barreto é um EUc que escreve para um TUi (um sujeito imaginado pelo EUc). A comunicação entre esses parceiros acontecerá através da materizalização escrita do texto barretiano.

Contudo, o TUi que se inscrevia na sociedade da Belle Époque (a elite letrada) não considerou digna a escrita barretiana, pois ela buscava sempre captar a realidade local, até mesmo quando era projetada de forma caricatural e irônica. Em seu diário íntimo, Barreto confessa o desprezo por essa crítica infundada.

Sem data Eu tenho notado nas rodas que hei frequentado, exceto a do Alcides, uma nefasta influência dos portugueses. Não é o Eça, que inegavelmente quem fala português não o pode ignorar, são figuras subalternas: Fialho e menores. Ajeita-se o modo de escrever deles, copiam-se-lhes os cacoetes, a estrutura da frase, não há dentre eles um que conscienciosamente procure escrever como o seu meio o pede e o requer, pressentindo isso na tradição dos escritores passados, embora inferiores. É uma literatura de concetti, uma literatura de clube, imbecil, de palavrinhas, de coisinhas, não há neles um grande sopro humano, uma grandeza de análise, um vendaval de epopéia, o cicio lírico que há neles é mal encaminhado para a literatura estreitamente pessoal, no que de pessoal há de inferior e banal: amores ricos, mortes de parentes e coisas assim. A pouco e pouco vou deixando de os frequentar, abomino-lhes a ignorância deles, a maldade intencional, a lassidão, a covardia dos seus ataques. (BARRETO, 2006, p. 41).

O EUc Lima Barreto só alcançará a credibilidade de escritor por volta de trinta anos após a sua morte, sendo Francisco de Assis Barbosa o organizador das obras barretianas. Logo, a crítica literária brasileira irá não só reavaliar a posição do autor na história da literatura do país, como construirá um projeto para avaliar esse período literário, até então, obscuro para a contemporaneidade. (SANTOS, 2011, p. 03). Desse modo, Barreto assume o contrato de escritor-romancista e seu discurso demonstra legitimidade, o TUi contemporâneo reconhece o saber e o poder que o EUc Lima Barreto exerce ao desempenhar a escritura do gênero romance.

Para Adorno (1983) as narrativas acompanham as experiências humanas na diversidade dos momentos. Nesse sentido, parece que a escrita de Lima Barreto

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revela a prática da vida – o autor nos dá a impressão de conhecer bem o convívio com a miséria humana, observe:

Os botequins e tascas estavam povoados do que há de mais sórdido na nossa população. Aqueles becos escuros, guarnecidos, de um e outro lado, por altos sobrados, de cujas janelas pendiam peças de roupa a enxugar, mal varridos, pouco transitados, formavam uma estranha cidade a parte, onde se iam refugiar homens e mulheres que haviam caído na mais baixa degradação e jaziam no último degrau da sociedade. (BARRETO, 1998, p. 115-116).

É sob dadas circunstâncias da degeneração humana que a narrativa Clara dos Anjos discorrerá. O ―saber fazer‖, barretiano expressa a realidade nacional do século XIX, o embate social dessa época se projeta na escrita do autor.

Lima Barreto é um EUc que tem a iniciativa do processo da escrita. Ao produzir seu texto ele aciona um EUe, que em sua ficção corresponderá, ao narrador.

Para constituir sua obra, pressupomos que o autor contou com certos saberes partilhados, como a questão racial no âmbito social. Nesse ritual linguageiro, Barreto deixa subentendidos, em sua enunciação, aspectos marcantes que projetam, possivelmente, as vivências singulares de outrora, veja:

 inconformidade: ―O espectro da escravidão, com todo o seu cotejo de infâmias, causa-lhe secretas revoltas.‖ (BARRETO, 1998, p. 36);

 indignação: ―O povo é avesso a guardar os nomes dos autores, mesmo os dos romances, folhetins que custam dias e dias de leitura. A obra é tudo para o pequeno povo; o autor nada.‖ (BARRETO, 1998, p. 51);

 pobreza: ―Toda essa população, pobríssima, vive sob a ameaça constante da varíola e, quando ela dá para aquelas bandas, é um verdadeiro flagelo.‖ (BARRETO, 1998, p. 72);

 denúncia: ―Mais ou menos é assim o subúrbio, na sua pobreza e no abandono em que os poderes públicos o deixam. (...) O subúrbio é o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias, bem cedo, lá descem à procura de

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amigos fiéis que os amparem, que lhes dêem alguma coisa, para o sustento seu e dos filhos.‖ (BARRETO, 1998, p. 74); dentre outros.

Barreto, enquanto EUc, idealiza um TUi contemporâneo a ele, que irá interagir com sua escritura, de função social, já que ―nunca, um minuto só da sua vida, pôs a sua pena a serviço de nenhuma causa iníqua‖. (LINS, 1976, p. 175). Já o TUi (leitor empírico) extemporâneo deve reconhecer que esse autor escreveu em determinada época (século passado), a qual contextualiza certos aspectos próprios daquele tempo, como a escravidão, as inovações republicanas etc. Ao TUi, o leitor real, portanto, cabe realizar a interpretação do texto.

Observamos, agora, em Clara dos Anjos, o espaço onde se encontram os seres de fala, isto é, o nível do dizer que corresponde aos sujeitos enunciadores e destinatários, que nesse momento são representados pelo narrador e por certos personagens como Cassi Jones, Inês, Salustiana, Joaquim e Margarida, de Clara dos Anjos. Apresentamos, então, inicialmente, a possibilidade de desdobramento do quadro enunciativo no âmbito do dizer. Assim encontraremos:

EUe: narrador/personagens

EÃO EDO: Registros discursivos/Estruturação linguística do significado

TUd: leitor idealizado/personagens

Quadro 03: Processo enunciativo – circuito interno.

Sob essa óptica elegemos algumas passagens da narrativa barretiana para demonstrar tais ocorrências, conforme se observará a seguir.

Os trechos seguintes dizem respeito a Salustiana, mãe de Cassi Jones:

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EUe (...) não era lá muito querida, nem prezada. Tinha Narrador: fumaças de grande dama, de ser muito superior às pessoas de sua vizinhança e mesmo às dos seus conhecimentos. O seu orgulho provinha de duas fontes: a primeira, por ter um irmão médico do Exército, com o posto de capitão; e a segunda, por ter andado no Colégio das Irmãs de Caridade.

(BARRETO, 1998, p. 24-25)

Essa construção de linguagem se faz pelo ato de enunciação proferido pelo sujeito comunicante, inscrevendo o sujeito enunciador a partir de seu próprio modo de dizer/falar, ou ainda, na mise-em-scène (encenação) de seu discurso, produzido pela projeção do EUc tendo em vista o EUe. Na escrita barretina, os parceiros interacionais se constituem sob a voz do EUe (narrrador), que pressupõe seu TUd/TUi (leitor), que nessa circunstância comunicacional apresentará Salustiana.

A personagem é retratada como uma mulher de poucos amigos, arrogante. Ela se estabelece sob uma identidade superior à dos demais sujeitos de seu convívio, pois segundo seu julgamento, ―ter um irmão médico do Exército, com o posto de capitão‖ e ―ter andado no Colégio das Irmãs de Caridade‖ a faz melhor do que seus concidadãos. Nesse nível, o intencional, o EUe partilha com o TUd/TUi determinadas particularizações acerca do modo de ser e agir de Salustiana.

Através do componente psicossocial, apreendemos a posição hierárquica de Salustiana, que se apresenta como uma mulher branca e nobre: ―A mãe, nas crises de vaidade, dizia-se descendente de um fantástico Lorde Jones, que fora cônsul da Inglaterra, em Santa Catarina...‖ (BARRETO, 1998, p. 23).

Esclarecemos que nosso interesse se faz sob as relações racializantes que o corpus expõe. No entanto, em alguns momentos, acreditamos que a apresentação de certos aspectos de determinados personagens se faz pertinente, como essa caracterização de Salustiana, mãe do anti-herói Cassi Jones, tendo em vista uma melhor compreensão das cenas que serão analisadas.

Para demonstrar uma das relações raciais presentes na obra Clara dos Anjos, trouxemos uma cena de Salustiana na qual ela se mostra conivente com as investidas amorosas do filho Cassi Jones. Nesse episódio, a mãe da jovem Nair

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tenta a reparação para a desonra sofrida pela filha e imputada por Cassi Jones. Veja:

EUe Falou a Dona Salustiana e esta, empertigando-se toda, Narrador: disse secamente: EUeSalustia - Minha senhora, eu não posso fazer nada. Meu filho é na: maior.

EUe Mãe - Mas, se a senhora o aconselhasse como mãe que é, e de de Nair: filhas, talvez obtivesse alguma coisa. Tenha piedade de mim e da minha, minha senhora.

EUe E pôs-se a chorar e a soluçar. Narrador: Dona Salustiana respondeu amuada, sem demonstrar o mínimo enternecimento por aquela dor inqualificável:

EUeSalustia - Não posso fazer nada, no caso, minha senhora. Já lhe na: disse. A senhora recorra à justiça, à polícia, se quiser. É o único remédio. (...)

EUe No dia seguinte, a mãe de Nair suicidava-se com lisol. Narrador: (BARRETO, 1998, p. 26)

Nessa cena deparamo-nos com a seguinte troca enunciativa: ora fala o EUe narrador, que pressupõe o TUd/Tui (leitor); ora o EUe (Salustiana) fala, visando o TUd (Nair); e em outro momento Nair se assume com EUe, que tem em vista Salustiana como seu TUd. Nesse âmbito comunicacional as personagens se veem e dialogam.

No nível psicossocial, a mãe de Nair reconhece sua posição de inferioridade: ela se assume como uma viúva, pobre, com uma filha para criar – ―Mas, se a senhora o aconselhasse como mãe que é, e de filhas, talvez obtivesse alguma coisa. Tenha piedade de mim (...)‖. Já Salustiana se coloca altiva, não demonstra ―o mínimo de enternecimento‖ (BARRETO, 1998, p. 26), pelo infortúnio que seu filho, Cassi, havia causada a Nair. A pobre viúva faz um apelo a Salustiana: ―Tenha piedade de mim e da minha, minha senhora.‖ (BARRETO, 1998, p. 26). No entanto,

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esta não admite a culpa de seu filho e não se sensibiliza com o defloramento cometido por Cassi.

Diante da cena apresentada, o componente intencional demonstra o conhecimento a priori de que o sujeito de cor ou pobre é sempre inferior àquele de boa situação financeira, e claro, branco. Assim, Salustiana não aceita que o filho se relacione com mulheres pobres e/ou negras/mulatas. O modo de ser dessa personagem demonstra a relação conflituosa que esta mantém com as pessoas negras e pobres.

O contrato comunicacional estabelecido entre Salustiana e a mãe de Nair produz um efeito interacional catastrófico. A mãe de Cassi Jones diz à outra mulher que, se ela quiser algum reparo moral do filho, que recorra à polícia. Entretanto, a mãe de Nair não segue essa ação, o contrato comunicacional não se estabelece, e ela (a progenitora de Nair) tira a própria vida. A manobra realizada por essa personagem se faz sob uma ação desesperadora, afinal, ela não vê uma ―saída‖ para o fato ocorrido com sua filha.

O próximo desdobramento enunciativo ocorre a partir do modo de ser de Joaquim dos Anjos, mulato e pai da protagonista dessa trama, Clara.

EUe Gostava de lidar com aqueles homens louros, Narrador: rubicundos, robustos, de olhos cor do mar, entre os quais ele não distinguia os chefes e os subalternos. Quando havia brasileiros no meio deles, logo adivinhava que não eram chefes.

(BARRETO, 1998, p. 47)

Nessa instância o EUe, narrador, através do âmbito comunicacional, revela ao TUd/TUi leitor a identidade assumida por Joaquim e o pensamento europeizado que esse apresentava.

Através do nível psicossocial, Joaquim se estabelece sob a condição de mulato que tem um trabalho público de carteiro. Ele se apresenta como um sujeito subalterno, isto é, subordinado a alguém, pois não era ―louro‖ e nem tinha ―olhos da cor do mar‖, estando sempre à margem da sociedade.

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O componente intencional se apoia em certos saberes partilhados apresentados pelo personagem narrador. Um deles diz respeito à inferioridade ―adquirida‖ pelo negro: ―Para o negro há apenas um destino, e ele é branco‖ (FANON, 2009, p. 28). A visão histórica e ideológica construída acerca do negro/mestiço não associa esse sujeito a funções de poder.

Aliás, achando-se inscrita a servidão na natureza do colonizado e a dominação na sua, não haverá problema. Às delícias da virtude recompensada, acrescenta a necessidade das leis naturais. A colonização é eterna, pode encarar seu futuro sem nenhuma inquietação. Após o que, tudo tornar-se-ia possível e assumiria novo sentido. O colonialista poderia permitir-se viver quase descansado, benevolente e mesmo benfeitor. O colonizado só lhe poderia ser reconhecido pelo abatimento que recebe naquilo que lhe é devido. Inscreve-se aqui a surpreendente atitude mental chamada paternalista. O paternalista é aquele que quer ampliar ainda mais, uma vez admitido, o racismo e a desigualdade. (MEMMI, 1977, p. 72 – destaques do autor).

Percebe-se, pelo contexto apresentado, que a imposição do branco sobre o negro é algo antigo, que condiz com a retórica apresentada pelo período colonialista. O negro, nessa circunstância, está fadado à subordinação e submissão.

Segundo o EUe (narrador), Joaquim não admite seu valor enquanto homem de cor, mas historicamente ele está impossibilitado de associar sua própria imagem ao poder. A concepção da superioridade branca prevalece no imaginário vivido por esse personagem: ―Quando havia brasileiros, no meio deles, logo adivinhava que não eram chefes.‖ (BARRETO, 1998, p. 47). Joaquim parece ter consciência da realidade do homem de cor, e assim surge a ―verdadeira desalienação do negro‖ sob sua realidade econômica e social, onde ―só há complexo de inferioridade após um duplo processo: inicialmente econômico; em seguida pela interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa inferioridade.‖ (FANON, 2009, p. 28).

A visão conflituosa vivida por esse personagem perante a condição do negro tem uma razão de ser: o mundo que ele conhece se concebeu sob os pilares ideológicos da sociedade branca – observe o posicionamento de Memmi acerca do movimento da colonização:

Na base de toda a construção, enfim, encontra-se a mesma dinâmica: a das exigências econômicas e afetivas do colonizador que nela faz às vezes

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da lógica, comanda e explica cada um dos traços que atribui ao colonizado. Em definitivo, são todos vantajosos para o colonizador mesmo aqueles que à primeira vista, ser-lhe-iam prejudiciais. (MEMMI, 1977, p. 80 – destaques do autor).

Ao colonizado não resta nada, o colonizador lhe tirou o direito da humanidade, e também o de ter liberdade, e esse parece ser o destino que Joaquim acaba por idealizar: o da inferioridade.

O lobo, o Diabo, o Gênio do Mal, o Mal, Selvagem, são sempre representados por um preto ou um índio, e como sempre há identificação com o vencedor, o menino preto torna-se explorador, aventureiro, missionário ―que corre o risco de ser comido pelos prestos malvados‖, tão facilmente quanto o menino branco. (FANON, 2009, p. 130-131 – destaques do autor).

Em outro trecho, trazemos mais alguns aspectos que demonstram o embate da racialização no romance barretiano. Esse episódio acontece a partir de uma das andanças de Cassi Jones pela cidade. Nesse circuito ele irá deparar-se com Inês, uma ex-empregada negra de sua casa que ele havia engravidado:

EUe Inês: - Então, você não me conhece mais, ―seu canaia‖? Então você não ―si‖ lembra da Inês, aquela crioulinha que sua mãe criou e você... (...)

EUe Narrador: Era a sua primeira vítima, que sua mãe, sem nenhuma consideração, tinha expulsado de casa em adiantado estado de gravidez. (...)

EUe Senhor - O que te fez esse moço? que se

reporta a Inês:

EUe Inês: - É o ―home qui mi‖ fez mal; que ―mi‖ desonrou, ―mi pois‖ nesta ―disgraça‖. (...)

EUe Uma outra mulher, mas esta branca, com uns Narrador: lindos cabelos castan‘os, em que se viam lêndeas, comentou:

EUe - É sempre assim. Esses ―nhonhôs gostosos‖ Senhora desgraçam a gente, deixam a gente com o que se filho e vão-se. A mulher que se fomente...

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reporta a Malvados! (...)

Inês:

EUe Inês: - Você sabe onde ―tá‖ teu ―fio‖? ―Tá‖ na detenção, fique você sabendo, ―Si‖ meteu com ladrão, é ―pivete‖ e foi ―pra chac'ra‖. Eis aí que você fez, ―seu marvado‖, ―home mardiçoado‖. Pior do que você só aquela galinha-d'angola de ―tua‖ mãe, ―seu‖ sem- vergonha!

(BARRETO, 1998, p. 115-116)

Temos nessa passagem um EUe Inês que se dirige a um TUd Cassi Jones. Contudo, percebem-se ainda certas trocas de turno de fala, como a de um senhor que pergunta para Inês o que Cassi lhe havia feito; e ainda, a entrada de uma mulher dando palpite na discussão de Inês com Cassi, além do narrador, como EUe.

Os parceiros dessa troca enunciativa se reconhecem pela miséria humana, eles ―haviam caído na mais baixa degradação e jaziam no último degrau da sociedade‖, o lugar onde Inês vivia sendo visto, na perspectiva do EUe narrador, como um território de ―deserdados de tudo deste mundo‖. (BARRETO, 1998, 114).

Os saberes partilhados nesse momento demonstram a relação inferiorizante de um negro para com o branco. Esse componente intencional ainda revela a estratégia de Inês, que é a de humilhar Cassi Jones. Ela, nesse momento, está em território seguro: a rua é seu espaço e ali Cassi não poderia mais fazer mal algum a ela.

A expectativa do ato de linguagem se faz pelo conflito das relações entre negros, mulatos e brancos, determinadas pelas ofensas e pela ridicularização sofridas pelos parceiros da comunicação, especificamente, as vividas pela negra Inês.

Assim, o contrato de comunicação acontece, porém, o reconhecimento da palavra do outro, ou da atitude para com o outro, como a de Cassi Jones, se faz de modo inescrupuloso. A aceitação do fato relatado pelos sujeitos destinatários não ocorre de maneira tranquila, e sim de modo desabonador, pois os sujeitos que se assumem como EUe revelam as infâmias cometidas por Cassi Jones. Nessa perspectiva, Inês incorpora o seguinte quadro de comportamento definido por

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Fanon: de ―preto inferiorizado passa da insegurança humilhante à auto-acusação levada até o desespero‖. (FANON, 2009, p. 66).

Segundo Fanon (2009, p. 95) à medida que o branco estabelece sua superioridade social ele subsume o negro à sua inferioridade. E ainda, consegue criar uma situação de neurose nesse indivíduo. O negro acaba por ser levado a contestar sua humanidade: ―começo a sofrer por não ser branco, na medida em que o homem branco me impõe uma discriminação faz de mim um colonizado, me extirpa qualquer valor (...).‖ (FANON, 2009, p. 94).

Inês, como uma mulher negra, se deixa enganar pela armadilha da sedução em que Cassi a envolve, e ela parece se esquecer do fardo de sua cor,

Todas essas mulheres de cor, desgrenhadas, à caça do branco, esperam. E certamente um dia desses se surpreenderão não querendo mais se atormentar, mas pensarão ―em uma noite maravilhosa, um amante maravilhoso, um branco‖. Porém também elas talvez compreendam um dia "que os brancos não se casam com uma mulher negra." Mas aceitam [elas] correr o risco, porque precisam da brancura a qualquer preço. (FANON, 2009, p. 58 – destaques do autor).

O próximo recorte presentifica Margarida Weber, filha de um alemão com uma mulher russa. Essa personagem veio para o Brasil ainda jovem. Sobre essa estrangeira o narrador aponta que:

EUe Embora nascida em outros climas e cercada de outra Narrador: gente, o seu inconsciente misticismo humanitário, herança dos avós maternos, que andavam sempre às voltas com a polícia dos czares, fê-la logo se identificar com a estranha gente que aqui veio encontrar. Aprendeu-lhe a linguagem, com seus vícios e idiotismos, tomou-lhe os hábitos, apreciou- lhe as comidas, mas sem perder nada da tenacidade, do esprit de suite, da decidida coragem da sua origem. Gostava muito da família do carteiro; mas, no seu íntimo, julgava-os dóceis demais, como que passivos, mal armados para a luta entre os maus e contra as insídias da vida.

(BARRETO, 1998, p. 128-129)

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Observa-se que o EUe comunga a ideia de que há uma raça superior: ―(...) o seu inconsciente misticismo humanitário (...) fê-la logo se identificar com a estranha gente que aqui veio encontrar (...)― (BARRETO, 1998, p. 128-129). Esse saber partilhado se estabelece a partir do etnocentrismo, isto é, a concepção da supremacia branca sobre os povos não pertencentes a essa etnia. O termo etnocêntrico pressupõe que exista superioridade de uma cultura sobre outras, atribuindo o valor de universalidade a essa cultura, e as restantes têm que usufruir dessa noção, ou se tornam as diferentes. (GOMES, 2005, p. 53).

Diante disso, são perceptíveis, nesse trecho, a elevação intelectual, moral e cultural de Margarida em relação aos demais concidadãos brasileiros, inclusive para com seus amigos, a família de Joaquim dos Anjos. O fato de ser estrangeira e branca denota um modo de ser superior diante das mulatas e/ou outras mulheres que o EUe pressupõe em sua trama.

Sobre isso, Vasconcellos (1999) explica que Margarida escapa ao protótipo da construção feminina de sua época. Ser europeia lhe confere um modo de ser altivo perante a sociedade vigente. E isso ocorre devido ao pensamento etnocêntrico que permeia a construção dessa personagem. A concepção da superioridade branca explicita as diferenças culturais concretas desde o Iluminismo (séc. XVIII), cujo princípio era baseado na ciência como fonte da razão. Segundo Sodré, para ser ter noção desse pressuposto acerca das diferenças raciais, o filosofo Kant (1724-1804) refere-se aos negros africanos como seres que:

não possuem, por natureza nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo (...) O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um negro tenha demonstrado talentos [...] os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores que se deve dispersá-los a pauladas. (KANT apud SODRÉ, 1999, p. 26).

Conde Gobineau (1816-82), por sua vez, afirma que a população brasileira é ―totalmente mulata, viciada no sangue e no espírito e assustadoramente feia‖. (RAEDERS apud SCHWARCZ, 1994, p. 13).

Através dessas concepções, Schwarcz (1997) explica que modelos teóricos surgem nessa época como tentativa para se estabelecer contrapontos com a teoria de Charles Darwin, no que se refere às sociedades. Tais modelos levaram os

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teóricos a concluírem que pelas ciências naturais se poderiam explicar as diferenças humanas, já que a sociedade passara a ser pensada pela adaptação ao meio, numa proposta de darwinismo social. Logo, a superioridade branca se comprovaria pela hegemonia sociopolítica, assim como a capacidade física e moral do indivíduo branco em relação, por exemplo, ao negro, se explicaria pelo fato de que o segundo era dado à debilidade. Nessa perspectiva, a disseminação do darwinismo social na intelectualidade brasileira circunda a construção de Margarida Weber e a coloca em um lugar privilegiado na sociedade oriunda da trama ficcional barretiana.

Por conseguinte, percebe-se que o processo interacional existente entre os parceiros e protagonistas se engaja de maneira recíproca, porém assimétrica, nada garante que o contrato seja cumprido. O sentido aqui é sobredeterminado pelas restrições da situação de troca e pela singularidade própria do projeto linguageiro.

Nesse sentido, em Clara dos Anjos o preceito hegemônico de uma ideologia de superioridade racial contribuiu para a segregação entre as raças. O imaginário social brasileiro inscrito na obra de Barreto não permitia a mobilidade social dos sujeitos negros/mulatos e/ou pobres. A desigualdade em relação a esses indivíduos é incisiva. Entretanto, Lima Barreto mesmo reconhecendo a pressão do discurso racial de sua época, promove uma subversão e provoca o questionamento sobre o racismo ao colocar, na cena literária, personagens negros.

5.2 Os circuitos externo e interno de Fera ferida

Em Fera Ferida não existe narrador. Esse circuito do fazer apresenta a projeção de um EUc que se constitui pelo autor, direção, roteirista, câmara, etc. (conjunto de seres empíricos necessários para a construção das cenas ficcionais), visando um EUe (personagem-ator-enunciador) que interage com o TUd (outro sujeito ficcional-destinatário), que almeja um TUi (o telespectador idealizado pela trama assistida- indivíduo real). Observe o quadro abaixo:

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Circuito externo - Fazer

Circuito interno – Dizer

EUc EUe TUd TUi Autor Personagens Personagens Conjunto de Scriptor Telespectadores, Individuais Individuais Diretor Elenco etc. Roteirista Atores Atores etc.

Mundo das palavras

Relação contratual

Mundo sócio-histórico

Quadro 04: Contrato comunicacional adaptado.

O contrato telenovelístico apresenta um EUc (autor, que a princípio, constrói o projeto ficcional); após isso, conjeturamos, a priori, o que poderíamos chamar de scriptor um sujeito que fará uma ponte para movimentar a ficção no âmbito discursivo, textual e imagético (RODRIGUES & MELLO, 2005), sendo ele a projeção também do autor, assim como da direção, do roteirista, do câmara, dentre outros (aqui temos um caso complicado de desdobramento, pois há vários sujeitos envolvidos nesse processo). Esse sujeito (ou sujeitos), na perspectiva de Rodrigues & Mello, ―é fonte da enunciação na instância produtora‖ (RODRIGUES & MELLO, 2005, p. 107); ele que irá transpor a escritura textual para o nível discursivo apresentado pelo quadro Contratual.

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O EUc Aguinaldo Silva é conhecido como ―Senhor das Oito‖7, considerando o número de telenovelas que ele escreveu para esse horário. Mas esse EUc, na produção de Fera ferida, teve a parceria de mais dois sujeitos comunicantes: Ana Maria Moretszohn e Ricardo Linhares e como dissemos anteriormente, os outros parceiros que em conjunto irão elaborar a trama televisiva .

Como participantes da troca enunciativa esses EUc‘s se revelarão através das marcas discursivas presentes nos vários EU-comunicantes que se voltam para o projeto de fala criado por Silva, Moretszohn e Linhares. Esses sujeitos estão inscritos em um veículo comunicacional que, em prática, atuam na produção das relações sociais, as quais se estabelecem por meio da articulação das formas de conteúdos e expressões, permeando o imaginário dos cidadãos brasileiros.

Os autores de Fera ferida, como EUc‘s, assumem a função de escritores telenovelísticos e, dessa forma, assumem a legitimidade sobre a escrita desse gênero, tendo, é claro, a cooperação de uma série de parceiros os quais consideramos como o scriptor, e todos eles com um único propósito: o entretenimento.

Os efeitos de sentido possíveis são muitos, levando em consideração que, nessa leitura telenovelística, múltiplos contratos comunicacionais podem surgir, tanto pela trama central da novela quanto pelas tramas paralelas, revestindo o espectador (TUi) do poder do ato interpretativo, pois esse na medida em que decorre a trama ele pode intervir, dando sua opinião, por exemplo, a partir do IBOPE - que é o Instituto Brasileiro de Opinião e Estatística, um medidor da audiência televisiva.

Tendo como foco, nesse momento, o circuito do dizer, contemplamos, para análises, os seguintes protagonistas dessa estória: Ilka Tibiriçá, Engrácia, Salustiana, Terezinha e Joaquim. Observe a seguir a possibilidade de desdobramento do circuito do dizer.

7 Cfe. Portal Globo. Disponível em: Acesso em: 20 jan. 2014.

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EUe: personagens/atores/atrizes

EÃO EDO: Registros discursivos/Estruturação linguística do significado

TUd: personagens/atores/atrizes/telespectador idealizado

Quadro 05: Processo enunciativo – circuito interno.

Deparamo-nos, nesse âmbito, com algumas cenas protagonizadas por Ilka Tibiriçá, uma mulher branca, da sociedade de Tubiacanga e cunhada de Demóstenes, o prefeito dessa cidade.

Nesse episódio, Joaquim dos Anjos, pai de Clara e carteiro da cidade de Tubiacanga, entrega as correspondências para Ilka, que está na prefeitura. Ela pergunta sobre a filha do carteiro, Clara, e Joaquim responde:

Joaquim: - Inteligente como ela só... as freiras sempre a elogiam!

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha)

Após essa fala, Ilka faz o seguinte comentário, porém sem que Joaquim a escute:

Ilka: - Não sei pra que colocar aquela pretinha no colégio de freiras... Ela devia era aprender a lavar... passar... cozinhar... limpar o banheiro...ai, quase perdi a conta!

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaque meu)

Temos, nessa instância, o EUe Ilka que se dirige ao TUd Joaquim. Em um segundo momento os papéis se invertem: o EUe será Joaquim e o TUd será Ilka. No

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desfecho dessa cena, o EUe, novamente, será Ilka, pressupondo um TUd/TUi agora não mais Joaquim, e sim o telespectador. A partir desse ato de linguagem, os parceiros se reconhecem, conversam e se apresentam sob a representação midiática, a telenovela.

Ilka é uma mulher branca da sociedade de Tubiacanga, tem o ofício de secretária da Prefeitura dessa cidade. Já seu parceiro de troca interacional é um negro, Joaquim dos Anjos, indivíduo subalterno, que trabalha como carteiro e não apresenta nenhum status social. Essa personagem, quando assume o projeto de fala e se direciona ao TUd/TUi telespectador, parece querer se elevar moralmente. O componente intencional nos permite apreender que Ilka é uma mulher preconceituosa, a ponto de acreditar que Clara, por ser mulata, deveria aprender os ofícios de doméstica, ao invés de estudar.

Cria-se nessa cena um momento que tende ao cômico, pois Ilka fala muito rápido, e Joaquim não escuta o dizer dela. Ele continua a fazer seu trabalho sem notar o desdém que Ilka sente quanto a sua filha Clara. Essa contraposição entre uma branca e um negro se apresenta de maneira caricatural, tendo em vista que a personagem Ilka se constrói sob a ótica do ridículo, a partir da ligeireza de sua fala e de suas maneiras precipitadas ao agir. Além disso, ela é uma pessoa considerada, pelos próprios parentes, como desajustada.

O EUe projetado sob Ilka parece acreditar na inferioridade do negro em relação ao branco ao expressar seu desejo de colocar a ―pretinha‖ para lavar, passar etc. Nessa fala da personagem subentende-se o seu desejo pelo retorno da condição escravagista, na qual o lugar do negro era na cozinha, na senzala, enfim, fazendo o serviço braçal.

Ainda sobre as peripécias de Ilka, em outra ocasião, em sua casa, ela revela ser nada amistosa com a empregada negra Cleonice. Observe:

Ilka: - Este café está ralo demais sua imprestável... vai lá dentro e passe um mais forte para mim....vai!

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaques meus)

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Através desse circuito, Ilka surge como um EUe que se dirige a Cleonice, que se assume como um TUd. A personagem Cleonice é negra, doméstica da casa onde Ilka mora com seu cunhado Demóstenes e a sobrinha Linda Inês. Já Ilka é a branca que se porta como patroa, e mesmo não sendo dona da casa se posiciona como tal.

Ilka trata Cleonice de maneira hostil e parece fazer isso com prazer – ―sua imprestável... vai lá dentro e passe um mais forte para mim...‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993). Sua atitude revela sua malícia no tratamento para com o Outro negro, desvelando certo sadismo da personagem. Nessa instância há uma relação contratual insatisfatória, pois apenas o EUe, Ilka, exerce o direito à fala e a negra Cleonice se cala e sai de cena, não tendo direto a réplica.

Em mais uma cena inusitada, Ilka Tibiriçá vai até a casa de dona Engrácia, mãe de Clara dos Anjos e esposa do carteiro Joaquim, no intuito de lhe pedir ajuda para encontrar uma beberagem que ―anime‖ um homem. No meio dessa conversa, Terezinha, sobrinha de Orestes e amiga de Clara, aparece na casa de Engrácia pedindo ajuda, pois na residência de seu tio está acontecendo uma desgraça: o delegado está lá para prender Orestes. Engrácia sai às pressas deixando Ilka sozinha, esta começa a mexer nos objetos ali presentes e aprecia uma santa que adorna a casa de Engrácia, dizendo:

Ilka: - Quanta heresia... devem ter roubado de alguma igreja...

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaque meu)

O EUe Ilka, nesse instante, expressa em seu dizer a dúvida sobre a possibilidade de um negro adquirir pertences como os que estavam dentro daquela casa. Esse sujeito de fala aparece divagando, não há nenhum TUd (personagem) compartilhando a troca enunciativa, assim Ilka se assume enquanto um EUc/EUe pressupondo um TUi telespectador.

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Ilka novamente provoca uma comicidade cênica, zomba do sujeito de cor e o vincula a um ser degenerado, associando-o à marginalidade: ―(...) devem ter roubado de alguma igreja...‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993).

Instantes depois dessa cena, Engrácia volta à casa e Ilka começa a falar sobre a erva que procura. Só que a mãe de Clara diz não poder ajudá-la e Ilka, não satisfeita, fala:

Ilka: - Vou procurar outra macumbeira sim! O que não falta nessa cidade é quem pratique o catimbó...

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha)

Quando Engrácia se nega a ajudar Ilka, esta a chama de macumbeira e praticante do ―catimbó‖, isto é, de magia negra, propondo um sentido pejorativo para o fato de Engrácia participar de uma irmandade negra na cidade de Tubiacanga.

A relação entre o EUe projetado por llka pressupondo o TUd Engrácia se faz sob um contexto de desavença, e os dizeres proferidos por Ilka demonstram tal ocorrência. Esse ato comunicacional se apóia em saberes discriminatórios partilhados pelo EUe e reconhecidos pelo TUd/TUi. Há, nesse âmbito, uma maneira preconceituosa de falar que se projeta sobre o negro e sua descendência, como também sobre suas crenças. Nessa circunstância, é interessante lembrarmo-nos de que vivenciamos atitudes semelhantes de discriminação em nossa sociedade. É comum, no cotidiano brasileiro, as pessoas denominarem de macumbeiros, por exemplo, os praticantes e/ou os adeptos da religiosidade africana, desconhecendo totalmente a crença. ―Negão‖ é outra palavra comum no linguajar brasileiro para denominar um sujeito de cor. Enfim, tudo o que diz respeito à tradição africana, a essa cultura e à cor do indivíduo tornou-se clichê e estigma negativo e circula no imaginário social do Brasil.

Nessas circunstâncias, Ilka se posiciona sobre o ideário pautado na degenerescência do negro, isto é, o sujeito de cor é, e sempre será, um ser inferior. A ideia do colonizador soberano que acredita plenamente em sua superioridade e age como tal rege o modo de pensar e agir dessa personagem, tanto que ela só se

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refere aos negros a partir de termos infamantes, desabonadores, como ―negrinha, ―macumbeira‖, ―imprestável‖. Isso nos remete, também, ao pensamento que alguns têm de que o negro é preguiçoso (no sentido de imprestável, inútil). Sobre isso Memmi explica que o pensamento do colonizador era de que: ―seja qual for a função que assuma, seja qual for o zelo que manifeste, [o negro] nunca seria nada mais do que um preguiçoso‖. (MEMMI, 1977, p. 79). Essa foi uma das representações com as quais o negro colonizado teve que conviver e que são recuperadas no contexto da telenovela.

Ilka, diante dessas exposições, parece se comportar como uma colonizadora, ela acredita ter para si a virtude e a beleza, o conhecimento intelectual, o poder por ser da elite, enquanto aos negros que com ela convivem cabem apenas a primitivização e seu aprisionamento pela sociedade branca. (FANON, 2009, p. 45).

Assim, pelas cenas enunciativas, percebe-se que o EUe apresentado por Ilka Tibiriçá revela, em seu constructo de linguagem, uma aversão pelos sujeitos negros e/ou mestiços, além de pobres, mostrando-se um sujeito extremamente preconceituoso.

Passando a outro episódio, Joaquim dos Anjos vai até a delegacia tentar buscar notícias de Orestes, o coveiro, que havia sido preso. Temos o seguinte processo interacional: Joaquim, um EUe, dizendo para o delegado, seu TUd, que o coveiro não havia feito nada de grave. Contudo, o sujeito destinatário assume agora o projeto de fala, se tornando um EUe, e se irrita com Joaquim (TUd) dizendo:

Delegado: - Você desacata minha autoridade que eu lhe enquadro como cúmplice, seu crioulo safado!

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaque meu)

Em tal instante comunicacional, o EUe não admite a intervenção de Joaquim. Como um sujeito de cor poderia questionar a autoridade de um delegado branco: ―Você desacata minha autoridade (...)‖(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993). Sobre esse posicionamento, Fanon explica que o destino do negro é branco, a

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sociedade colonialista não aceita que um indivíduo de epidermização escura intervenha num mundo do qual ele não faz parte, onde ele é um estranho.

A realidade econômica e social é outro fator que afeta diretamente a consciência do negro. Ele entende que não pode competir na sociedade branca, pois a sua falta de dinheiro e a sua pele o colocam em desvantagem no percurso ditado pela ordem capitalista e branca.

A posição social e a cor, nesse contexto, parecem ser preponderantes para definir a identidade do ser negro como subalterno, sem direito à palavra, e a do branco como altivo, ditando as regras e governando todas as instâncias sociais do mundo que ele diz ser seu.

Quando o filho de Orestes, Vivaldo, sabe da prisão do pai, ele diz para a mãe, que está rezando:

Vivaldo: - E adiantou... adiantou por caso? A gente não vale nada pra eles mãe ...nem meu pai que é branco... o que... que vai servir pra essa santa....

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha)

Nesse momento enunciativo, o jovem Vivaldo, enquanto EUe, percebe que, mesmo sendo branco, o pai não tinha como lutar por sua liberdade, pois era um homem pobre: ―A gente não vale nada pra eles mãe ... nem meu pai que é branco... o que... que vai servir pra essa santa.....‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993)

Desse contexto podemos aludir as desigualdades fundadas sob o universo capitalista brasileiro. Guimarães (2002) discute que a noção de classe social capitalista surge através de processos de análises que se referem a um tipo de exploração, materializados sob as práticas sociais do mundo real, cujas manifestações acontecem sob a ordem da hierarquia, gênero, raça, etnia etc.

Sob esse ângulo, a classe se mistura aos conceitos que traduzem as desigualdades entre os homens e mostra a fragilidade do indivíduo enquanto uma

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categoria da negação social, apontada por dualidades do tipo branco/preto, pobre/rico, superior/inferior.

Diante disso, não só a cor está em julgamento, mas também a condição financeira, intelectual, já que o status do indivíduo enquanto um membro da sociedade tem que estar numa situação favorável. Assim, Vivaldo não acredita, tampouco, na intervenção da Santa para ajudar um pobre – se o mundo dos homens não o faz, algum ser mítico o faria? O universo de crenças compartilhadas nessa instância se apóia no preconceito e na discriminação para com o outro, o pobre, o negro/mulato.

Na próxima relação interacional apresentamos Terezinha e Engrácia, ambas mulatas e pertencentes à irmandade:

Engrácia: - O que é justo ou não... quem dita sou eu... que sou a rainha menina... são as regras da irmandade...

Terezinha: - Eu nunca vi nada mais antigo... mais quadrado do que isso...a senhora acha que pode mandar nas pessoas por quê? Será que vocês não ficaram satisfeitos com a abolição da escravatura e resolveram criar essa irmandade pra aprisionar as pessoas... ((Neste instante Orestes entra na conversa e manda Terezinha ir para o quarto dela.))

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha)

Engrácia se posiciona como um EUe, enquanto Terezinha se mantém como um TUd. Entretanto, quando Terezinha assume a fala, esta se torna o EUe e Engrácia um TUd.

Verifica-se, nesse instante, uma intenção crítica por parte de Terezinha: mesmo praticante dos preceitos da irmandade, ela se volta contra as regras estabelecidas por essa associação religiosa, que permite a sua líder atuar de maneira autoritária. A expectativa que se cria nesse momento é a de que Terezinha, como membro da irmandade, aceitaria as condições vigentes. Mas não é isso o que

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acontece. A jovem questiona o posicionamento de Engrácia como rainha, – ―Será que vocês não ficaram satisfeitos com a abolição da escravatura e resolveram criar essa irmandade pra aprisionar as pessoas...‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993) –, e aponta uma falha na conduta dessa confraria, a ponto de compará-la àquilo que é abominado por todos dessa associação negra: a escravatura, lugar que aprisiona e retira a liberdade do sujeito de cor.

Os parceiros comunicacionais Engrácia e Terezinha reconhecem seus lugares sociais – esta como seguidora da ordem religiosa negra e aquela como autoridade máxima dentro desse grupo. No entanto, Terezinha desafia e questiona a rainha da irmandade. A relação contratual se faz sob o conflito do autoritarismo do negro em relação ao próprio negro, reforçando o discurso que circula na sociedade, de que o próprio negro é racista. Esse fato pode ser explicado pela negação do negro ao seu semelhante. Segundo Fanon, o sentido das ações do indivíduo de cor só têm valor no mundo dos brancos, afinal, esse é o lugar que ele conhece: ―só o Outro pode valorizá-lo‖, diz Fanon. (FANON, 2009, p. 136). Logo, quando o negro adquire algum poder, ele se compara ou encarna atitudes praticadas pela soberania do indivíduo branco, conforme encenado pela personagem Engrácia.

Sob essa perspectiva, Memmi (1977) atribui ao colonizador sua parcela de culpa, pois este nega ao colonizado o direito a liberdade. O colonizado é destituído de sua humanidade e, assim, acaba se familiarizando com sua inaptidão e perde a esperança em se tornar um cidadão da colônia. ―A agressão ideológica, que tende a desumanizá-lo, depois a mitificá-lo, correspondem em suma a situações concretas que visam ao mesmo resultado.‖ (MEMMI, 1977, p. 86). O colonizado é posto para fora da história e da vida da colônia, afirma o autor.

O colonizado, diante de tais brutalidades, assimila a cultura e o modo de vida do colonizador – a sociedade que o colonizado acaba por reconhecer se faz sob o âmbito colonial. (MEMMI, 1977).

O fato verificável é que a colonização reduz o colonizado à privação e que todas as carências se entretêm e se alimentam umas as outras. (...) Tudo no colonizado, enfim, é privação, tudo contribui para torná-lo um ser de carência. (MEMMI, 1977, p. 107).

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Dessa forma, o colonizado adota os valores do colonizador, sendo esse o modo de vida reconhecido pelo sujeito de cor. Engrácia, nesse contexto, parece ter assimilado o comportamento do branco (colonizador) e a base autoritária que este aplica ao lidar com a subalternidade. Nessa instância, portanto, parece-nos haver a troca interacional. Porém, isso ocorre como um embate, uma desavença entre parceiros da comunicação.

Na situação enunciativa que virá deparamo-nos com uma discussão entre Engrácia e Salustiana:

Engrácia: - A senhora vai me desculpar, mas a parte ofendida aqui sou EU!

Salustiana: - A parte ofendida vai ser sempre você na vida, nunca eu! É inevitável! É inevitável, sabe por que, por causa da desigualdade inata que existe entre pessoas da minha linhagem e gentinha da sua laia!

Engrácia: - Eu não vim aqui pra ser insultada!

Salustiana: - Quem tá sendo insultada sou eu que tô sendo obrigada a ficar olhando pra sua cara. Ah! vai se daqui... vai! Vai embora! ((Engrácia deixa a casa do Major e Salustiana diz)):

Salustiana: - Ah! Cassi Jones você não toma jeito hein... e elas também não! É sempre a mesma história, entram cheias de empáfia e saem com o rabinho entre as pernas... ((Salustiana dá gargalhadas))

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaques meus)

Temos, aqui, mais um conflito entre branco e negro/mulato, respectivamente Salustiana e Engrácia, que se posicionam em dados momentos como EUe e TUd, e em outros fazem a troca dessas instâncias.

Percebe-se, nessas circunstâncias, a posição de superioridade de Salustiana em relação a Engrácia: a primeira se assume como uma dama da sociedade

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tubiacanguense, enquanto a outra surge como uma simples tecelã, e ainda, carrega o estigma de sua cor, é uma negra.

Essa cena enunciativa se constrói por meio de uma determinada intencionalidade, que é a de mostrar a discriminação contundente realizada por Salustiana em relação a negros e pobres, além de demonstrar sua certeza de que a inferioridade do negro é inevitável na sociedade na qual vive. Observe sua fala: ―(...) por causa da desigualdade nata que existe entre pessoas da minha linhagem e gentinha da sua laia!‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993).

Parece-nos que o senso comum que permeia o imaginário da personagem Salustiana se constitui através da internalização dos modelos cientificistas introduzidos no Brasil por volta de 1870, sob um ―um novo ideário positivo- evolucionista‖ (SCHWARCZ, 1993, p14), os quais serviram como base para a construção do ideário racializante.

Os ―homens de sciencia‖, como denomina Schwarcz (1994), no final do século XIX, tentaram explicar o que seria o processo de miscigenação brasileira, e questionaram os motivos para as diferenças entre os homens.

Adeptos, em sua maior parte, dos modelos poligenistas de análise – que entendiam as raças como fenômenos essenciais e ontológicos, resultantes de centros de criação diversos – concluíam, esses teóricos dos museus, não só que ―a evolução encontrada na natureza era exatamente igual àquela esperada para os homens‖ (Boletim do Museu Paraense E. Goeldi), como supunham que ―os grupos inferiores constituíam barreiras frente ao progresso da civilização‖. (SCHWARCZ, 1994, p. 03 – destaques da autora).

―Os grupos inferiores‖ a quem os cientistas se referem dizem respeito aos negros, que, nesse período, no Brasil, saem de um processo de escravidão e não têm nenhum amparo social. Contudo, a desatenção com a população negra era explicada por sua inferioridade. As classes dominantes, assim, continuam com sua mão de obra de baixo custo, e o negro, predestinado à pobreza, à degeneração humana.

Assim, esse episódio denota que as personagens se reconhecem tal como outrora, época em que as teorias estabeleciam a superioridade das raças e a hierarquia social instituía o branco como superior e o negro como inferior. Nessa

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instância surge a reprodução desse ideário preconceituoso e Engrácia representa o negro fadado à submissão, mesmo sendo rainha da irmandade, ou seja, mesmo ocupando, em relação aos próprios negros, uma posição superior. O problema do negro, como se vê, se instaura no plano social, pois o discurso preconizado pela sociedade ainda permanece sob a voz do capitalismo colonialista, que se fez por uma soberania acidentalmente branca. (FANON, 2009, p. 170).

Salustiana evoca, portanto, um imaginário racial preconceituoso: ―A parte ofendida vai ser sempre você na vida, nunca eu! É inevitável! É inevitável, sabe por que, por causa da desigualdade inata que existe entre pessoas da minha linhagem e gentinha da sua laia!‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993). Ao negro cabem todas as formas de humilhação e exploração, sua vida miserável é um fardo que se explica até mesmo por decretos bíblicos, o mundo branco, único modelo de humanidade rejeita o negro: ―O preto é um animal, o preto é ruim, o preto é malvado, o preto é feio (...)‖ (FANON, 2009, p. 106).

Assim também é a construção do imaginário a respeito do negro brasileiro e Engrácia, como um representante desse grupo, perde o embate argumentativo. Salutiana, enquanto EUe, detém o projeto de fala. O contrato de comunicação se constrói sob o julgamento do negro versus o branco e, claro, sob a ideologia da supremacia branca, que sobressai nessa situação.

A telenovela, portanto, apresentou o debate sobre o racismo a partir de desvios promovidos por discursos que circulam na sociedade, como aquele que atribui ao próprio negro características racistas, sem se preocupar em explorar o porquê disso. Ela também mostrou aspectos conflituosos em relação à interação negro/mulato e branco, manifestados de forma nada sutil, observe:

. ―... eu lhe enquadro como cúmplice seu crioulo safado!‖ (Delegado);

. Não sei pra que colocar aquela pretinha no colégio de freiras... (Ilka);

. É inevitável, sabe por que, por causa da desigualdade nata que existe entre pessoas da minha linhagem e gentinha da sua laia! (Salustiana).

Diante do tratamento dado à questão racial na telenovela, tem-se a impressão de que, no contexto social brasileiro, a distância temporal não apagou a discriminação, ela promoveu a ―cordialidade‖ à condição de marca do preconceito racial.

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A nossa intenção nessas primeiras análises, foi mostrar que as relações conflituosas entre brancos, negros e mulatos existem no Brasil. Mesmo perante o fator tempo e as mudanças de épocas, a desigualdade parece não ter se modificado, prevalecem os mesmos preceitos, porém em contextos distintos e com finalidades também diferenciadas.

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6. AS FORMAÇÕES DISCURSIVAS EM CLARA DOS ANJOS E FERA FERIDA

Para constituir o aporte teórico estabelecido nesse estudo, utilizaremos a noção de formação discursiva segundo Michel Pêcheux (1997).

A base do pensamento de Pêcheux se constitui sob a interpelação do sujeito pela ideologia. As formações discursivas nesse contexto se compõem pelos diversos interdiscursos e, assim, possuem ideologias distintas no seu interior.

De acordo com esse autor, a ideologia indica, através do ―hábito‖ e do ―uso‖, ―o que é‖ e ―o que deve ser‖ e isso, em alguns casos, por intermédio de desvios linguisticamente assinalados em meio do preceito e da constatação, funcionando como dispositivo de ―retomada do jogo‖. As evidências pelas quais ―todo mundo sabe‖ o que é, por exemplo, um soldado, um operário, uma fábrica, uma greve, etc. são geradas pela ideologia. Essas certezas manifestas fazem que um enunciado/palavra diga o que realmente deseja dizer, sendo mascarado sob a ―opacidade da linguagem‖, isto é, a materialidade do sentido contido nos léxicos e enunciados. (PECHEUX, 1997, p. 159).

Nesse sentido, o autor considera, que o caráter material do sentido, mascarado por sua evidência transparente para o sujeito, consiste na sua dependência constitutiva daquilo que chamamos ―o todo complexo das formações ideológicas.‖ (PECHEUX, 1997, p. 160). Diante dessa afirmação o autor busca especificar essa espécie de subordinação do sentido através do seguinte princípio: o sentido de uma palavra, expressão, proposição etc. não existe por si, isto é, em sua correspondência com a literalidade significante na qual é introduzido, sendo , então, estabelecido pelas posições ideológicas inscritas no jogo do processo social e histórico com os quais essas palavras, expressões, proposições etc. são confrontadas.

Em linhas gerais, os vocábulos, frases, expressões adquirem sentido segundo as posições mantidas por aqueles que as empregam. Isso quer dizer que a aquisição de sentido, por parte desses termos/expressões, se dá em referência às formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem. Essa perspectiva demonstra uma dimensão do sentido pressuposta pela concepção da análise do discurso; no entanto, existem outras noções que tratam o significado como resultado

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da atividade perceptiva, ficando mais atrelado a condições cognitivas mais fundamentais.

Reconhecemos, então, uma formação discursiva, segundo Pêcheux, a partir de sua constituição que se estabelece por

aquilo que numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.). (PECHEUX, 1997, p. 160).

As Formações Discursivas – doravante denominadas FD – são, nessas circunstâncias, projeções, na linguagem, de certas formações ideológicas vigentes. Logo, o sentido de um estado de coisas só é adquirido a partir do posicionamento daqueles que o empregam, inscritos sob uma dada ideologia.

Para Pêcheux (1997), qualquer formação discursiva dissimula, pela diafaneidade do sentido constituído por ela, sua dependência ao ―todo complexo com dominante‖ das formações discursivas, enredado no complexo das formações ideológicas. A esse ―todo complexo com dominante‖ das formações discursivas atribui-se o nome de interdiscurso:

Diremos, nessas contradições, que é próprio de toda formação discursiva é dissimular, na transparência do sentido que nela se forma, a objetividade material contraditória do interdiscurso, que determina essa formação discursiva como tal, objetividade material essa que reside no fato de que ―algo fala‖ (ça parle) sempre ―antes, em outro lugar e independentemente‖, isto é, sob a dominação do complexo das formações ideológicas. (PECHEUX, 1997, p. 162 – destaques do autor).

Pode-se compreender essa passagem como algo relativo a uma memória discursiva constituída por um esquecimento determinante, com base no princípio de que todo discurso se manifesta na relação com a sua alteridade/exterioridade ou, ainda, numa interação constitutiva com outros discursos.

O interdiscurso assinala o espaço discursivo e ideológico no qual se desenvolvem as formações discursivas sob as relações de subordinação, dominação e contradições existentes no âmbito enunciativo.

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A partir dessas considerações, Pêcheux (1997) aponta dois tipos de discrepâncias para essa questão apresentada: o efeito de encadeamento do pré- construído (ilusão da existência de uma realidade dada como tal e representável pelo discurso) e a articulação (ilusão da existência de uma relação explicativa entre os sentidos que funcionaria como processo de sustentação do discurso). Essas discrepâncias são determinadas na própria estrutura do interdiscurso.

A noção de formação discursiva, desse modo, é concebida, pelo referido autor, em termos de regularidades distintivas de posições sociais determinadas em função das lutas ideológicas constitutivas de uma conjuntura histórica e política.

Orlandi (2010) afirma que pelo funcionamento das formações discursivas e do interdiscurso, podemos apreender os mecanismos ideológicos para a constituição do sujeito e do sentido. A formação discursiva, enquanto conceito torna possível que sujeitos empíricos apreendam sentido de certas palavras, expressões etc. em um determinado período histórico.

Uma FD é, portanto, heterogênea a ela própria: o fechamento de uma FD é fundamentalmente instável, ela não consiste em um limite traçado de forma definitiva, separando um exterior e um interior, mas se inscreve entre diversas FDs como uma fronteira que se desloca em função dos embates da luta ideológica. (COURTINE & MARANDIN, 1981, p. 41).

Assim, uma formação discursiva pressupõe ser uma unidade heterogênea, indispensável àquilo que deve e pode ser dito em um dado momento da vida social humana.

Valemo-nos, nessa pesquisa, do conceito de FD, buscando apreender, como a macro e a microesturação enunciativa dos objetos Clara dos Anjos e Fera ferida se articulam através da perspectiva do dizer racial brasileiro.

Conduziremos a investigação a partir do lugar social/empírico que cada um dos sujeitos comunicantes assume no discurso racializante brasileiro. Iniciamos com Lima Barreto, seguidamente, do posicionamento ideológico televisivo e a autoria telenovelística. Logo, passamos ao circuito da ficção, primeiro abarcando análises sobre a obra barretiana, e depois o foco se volta para a ficcionalização de Fera ferida.

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Para discorrer sobre o lugar social em que Lima Barreto se inscreve e as relações de classe presentes no contexto vivido por ele, faz importante entendermos que as relações sociais se baseiam em determinados preceitos hierárquicos (status, situação econômica, cultural etc.), e o Brasil, no que diz respeito às hierarquias, revela algumas combinações que estão intimamente ligadas ao processo de formação das diferenças sociais brasileiras como a raça, classe ou a cor do indivíduo (lembremo-nos que Barreto é um mulato).

O discurso racial brasileiro possui, em sua base, um pilar escravagista, sustentado pelo pensamento eugênico e eurocêntrico. Esse contexto se apropriou de uma de configuração liberal-escravista, instituindo uma ideologia que perdurou anos, que só começou a ser contestada com a escassez da mão de obra negra, após extinção do tráfico negreiro. (BOSI, 1995).

A ascensão do negro/mulato/afrodescendente ocorreu nessa ‗nação‘ sob um processo de concessão de regalias ao sujeito branco, deixando o negro à margem, – a civilidade brasileira em relação aos homens de cor se fez sob os segmentos privilegiados da raça dominante. (FERNANDES, 1972).

(...) as posições desvantajosas dos estoques negro e mulato na estrutura socioeconômica condiciona formas de participação cultural e de integração ao sistema de classes que favorecem a sua perpetuação crônica naquelas posições, em vez de estimularem a ruptura com o passado e as sua superação. (FERNANDES, 1972, p. 49).

Os padrões deformadores da condição negra no Brasil perpetuam ainda no contexto brasileiro. A herança escravagista pode ser observada por meio de formas discriminatórias utilizadas discursivamente para lidar com o sujeito de cor. Esses indivíduos formam ―uma espécie de escória da grande cidade‖ e se veem condenados a uma miséria social que os degrada terrivelmente. (FERNANDES, 1972, p. 42).

Lima Barreto nasceu em 1881 e cresceu sob panorama político e social marcado pela Abolição da Escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889). Presenciou a sucessão de vários presidentes, como Afonso Pena (1909), Nilo Peçanha (1909-1910), entre outros. Ainda, assistiu um período de crise no Brasil,

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com desempregos, reivindicações políticas, e tudo isso, concomitante a primeira Guerra Mundial, tornando a situação brasileira ainda pior.

Esse é o cenário no qual o Barreto se faz escritor, sua obra se constitui em um período evidenciado por momentos de saudosismos, de reforma, mas, apresentando, também, a irreverência das vanguardas, da psicanálise, da relatividade de Einstein, da Revolução Russa, da anarquia espanhola e dos sindicatos fascistas. (BOSI, 1970, p. 342-343). Enquanto jovem, Barreto, estudou na Politécnica, ali sofreu preconceitos de seus colegas, era o estranho no meio de jovens abastados. Já adulto, de forma muito comum, chamavam-no de negro, ás vezes era tomado como bandido. Lima misturava-se com todo o tipo de pessoa, prostituta, viciados etc. (PRADO, 1999). O escritor era consciente da situação brasileira, ele a vivia; combatendo a desigualdade do país através de sua escritura, se tornando a voz dos ―infelizes‖.

Encontraremos, em suas páginas íntimas, expressões de desalento, mas não de autocomiseração. Mesmo as alusões constantes ao problema da cor ou à adoração nacional pelos doutores, embora ligadas a experiências pessoais, voltam-se para fora, para a sociedade que conhece e sobre a qual testemunha. (LINS, 1976, p. 24).

Lima Barreto é um indivíduo descontente com a sociedade, a literatura que ele cria fornece pistas para tal apreensão, veja: ―a vida cara, enquanto os salários eram mais ou menos os mesmos anteriores. O descontentamento se fez e os pobres começaram a ver que, enquanto eles ficavam mais pobres, os ricos ficavam mais ricos‖ (BARRETO, 1956, p. 54). O autor em sua incursão literária busca promover reflexões sócio-raciais e políticas. Ele ironiza e escarnece de uma sociedade nada convencional e democrática, mas, a elite de sua época não o perdoa por tal fato.

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As classes dominantes (e, com elas, amplos setores das classes dominadas, que refletem em grande parte a visão conservadora) são particularmente sensíveis no Brasil aos que as renegam de maneira ostensiva. Pareceu-me sofrer Lima Barreto, e creio não enganar-me, o efeito de uma ação difusa, um processo disfarçado, surdo, de sonegação (muito semelhante, por sinal, ao que entre nós marginaliza o negro). Acresce que os povos mostram-se sensíveis às idealizações. E Lima Barreto é talvez o autor brasileiro que nos viu até hoje com maior verdade e lucidez. (LINS, 1976, p. 12).

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Nesse sentido, Barreto toma a literatura não como expressão, mas, principalmente, como ―comunicação militante‖, palavra empregada pelo autor que ―se engaja, tão ostensivamente quanto possível, com suas palavras e o que elas transportam, a mover, demover, comover, remover e promover.‖ (LINS, 1976, p. 18). Lima através de sua escrita confronta a sociedade brasileira e é ignorado por ela.

O âmbito social e histórico vivido por Barreto, como vemos, advém do domínio dos grandes latifúndios – os senhores de escravo. A formação social, nesse contexto, presentifica um processo de produção no qual as forças produtivas são movidas pelas leis escravagistas. Sob esse aspecto Althusser (1983, p. 10), considera que uma formação social ―releva de um modo de produção dominante, podemos dizer que o processo de produção põe em movimento forças produtivas existentes em (dans et sous) relações de produção definidas‖. Logo, a relação de produção subsistente na nação brasileira defendia a coisificação do negro, determinante para um ideário racista.

Os pretos e descendentes de pretos, esses continuavam relegados, ao menos em certos textos oficiais, a trabalhos de baixa reputação, os negro jobs, que tanto degradam o indivíduo que os exerce, como sua geração. Assim é que, em portaria de 6 de agosto de 1771, o vice-rei do Brasil mandou dar baixa do posto de capitão-mor a um índio, porque ―se mostrara de tão baixos sentimentos que casou com uma preta, manchando o seu sangue com esta aliança, e tornando-se assim indigno de exercer o referido posto‖. (HOLANDA, 1995, p. 56 – destaques do autor).

Nota-se, desde logo, que a formação ideológica que perpetua no espaço o qual Lima transitou evidenciou crenças da inferioridade do negro, ―sem a ideia de que o negro seja ―inferior‖ e necessariamente ―subordinado‖‘ ao ―branco‖, a escravidão não seria possível num país cristão‖. (FERNANDES, 1972, p. 42). Por essa forma, condicionam o indivíduo africano a crer em sua debilidade; e o europeu consegue o respaldo da escravatura.

O racismo representa todas as forças antidemocráticas, formada pela vantagem econômica, ou seja, ser bem nascido, ter herança etc. É uma maneira de querer ser melhor que o outro, e isso, sem esforços. Com o racismo forma-se

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monopólio de classes e/ou governos cujo poder é exercido apenas por indivíduos privilegiados. (ROSENFELD, 1993).

Diante disso, podemos dizer que a filiação discursiva de Lima Barreto se apoia, é claro, em várias FD‘s de diversos valores, mas a que trata da racialidade, em especial, foco desse trabalho, é demonstrada pela interdiscursividade racializante – o bom combate do escritor. Essa ocorrência direciona para uma FD antirracial constituinte do padrão comportamental do autor.

Assim, tendo em vista, que uma formação discursiva se estabelece por um sistema de relações linguísticas e interdiscursivas no qual acontecem os processos discursivos efetivos, as evidências intertextuais corroboram as diferenças entre os indivíduos. O período discriminatório vivido por Barreto demonstra, sem dúvida, a iniquidade da relação branco-negro.

Nesta sequência, observamos o padrão discursivo e social de Fera ferida. O discurso telenovelístico exterioriza por meio de um trabalho coletivo, implicado em um conjunto de elementos que se articulam a partir do ―padrão Globo de qualidade‖ (símbolo da TV Globo, líder de audiência do Brasil e a emissora de televisão que veiculou a telenovela eleita para a pesquisa em questão). Segundo Motter & Mungioli (2007), a máxima da Rede globo não se traduz apenas por um slogan, a grade da programação, a produção de programas, além da organização da empresa sofreu uma reestruturação, buscando tal excelência.

No entanto há quem conteste tal pensamento, como Eugênio Bucci8 em seu artigo O mau gosto e o desgosto, copyright Folha de S. Paulo, 5/5/029:

Tenho insistido, e volto a insistir, que o padrão Globo de qualidade não era simplesmente uma escolha intencional dos gerentes, mas um padrão ideológico tornado possível pelo regime autoritário. Não é bem que a liderança da Globo se devesse ao seu autodenominado padrão de qualidade; era antes o contrário: o tal padrão é que só foi possível porque dispunha de condições prévias, o monopólio entre elas. O Estado autoritário distribuía as concessões como se fossem capitanias hereditárias, privilegiando certos grupos econômicos em detrimento de outros e inibindo a concorrência. Houve competência da Globo? (...) O que foi o padrão Globo de qualidade senão a face da integração nacional sob a ditadura? Claro que houve aí momentos de mal-estar, houve censura às

8 Bucci é Jornalista, tem o título de Doutor em Ciências da Comunicação, área de Jornalismo, pela Escola de Comunicações e Artes da USP. 9 Disponível em: < http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/showNews/asp080520029.htm>. Acesso em: 24 nov. 2013.

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novelas, houve arestas, mas nada disso foi definidor. O que definiu o padrão Globo de qualidade foi a necessidade imperativa de mostrar ao Brasil qual era a cara do Brasil. Era um Brasil de notícias governistas, de regionalismos de cartão-postal, de ufanismos futebolísticos e, por favor, sem negros nas novelas, sem evangélicos no horário nobre, sem excluídos desdentados no auditório. (...). O padrão Globo de qualidade era a expressão do bom gosto da classe média (bom gosto não é nada além do gosto médio da classe média). E não tinha concorrência, só por isso que reinava, mandão, pacífico e ordeiro. Ainda bem que ele já era. O que acabou não foi o padrão Globo, mas a sua sustentação histórica.

Percebe-se que a essência do poder incutido sobre o veículo televisivo consiste em seu estatuto de significação, que requer o controle do processo de significantes culturais por meio de uma entidade empresarial ou ―tecnoburocrática‖ (SODRÉ, 1987, p. 10). Isto é, um moderno sistema tecnológico que rege indivíduos, economia etc.

Nesse campo de interação, defrontamos com o que Thompson (1995) denomina de instituições sociais, ou conjuntos exclusivos e possivelmente estáveis de recursos e regras que manifestam ao mesmo tempo com as relações sociais. A Rede Globo de Televisão, nesse sentido, pode ser caracterizada como uma organização que se constitui sob esse foco. Afinal, trata-se de uma empresa que apresenta certos tipos e quantidades de recursos constituídos a partir de regras próprias, normas de ação e com uma flexibilidade esquemática a qual administra os recursos e os sujeitos dentro dessa organização. Sob esse contexto, ainda, encontramos a possibilidade das relações hierarquizadas entre os indivíduos e/ou as posições ocupadas por esses (fato comum nas organizações Globo de Televisão). Esse processo interacional estruturante da Rede Globo apresenta aspectos os quais Thompson (1995, p. 198) nomeia de ―assimetrias e diferenças relativamente estáveis em termos de distribuição de, e acesso a, recursos de vários tipos, poder, oportunidades e chances na vida.‖

Consoante a essas questões, a televisão torna-se um veículo eficaz para gerir um país, transformando-se em uma corporação que difunde de maneira maciça conhecimento, diversão, publicidade, informações etc. Na ordem dessa instituição prevalece a hegemonia e a ideologia capitalista. Através de tal aspecto, Sodré afirma que,

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Os media vinculam estreitamente à organização monopolista do mercado – oligopólios e multinacionais controla os diferentes níveis de captação e receitas publicitárias e em ativos centros geradores de informações ideológicas dependentes do capitalismo ou do status quo. (SODRÉ, 1987, p. 32).

Destarte, o padrão estrutural da televisão, e claro, sua mediação pela telenovela se constitui sob o discurso advindo de um sistema econômico e social que se baseia na propriedade privada dos meios de produção, ou seja, assume uma FD capitalista.

No entanto, a conjuntura discursiva que nos interessa é da racialidade, e isso, só será exposto se houver algum interesse capitalista em jogo. A visibilidade no negro na televisão, e em particular na telenovela, é ínfima, tal fato corrobora-se através do estudo de Araújo. Observe:

Examinamos 512 telenovelas e a constatação foi chocante: Identificamos que: - em um terço das telenovelas produzidas até 1997 não havia nenhum personagem afrodescendente. - Apenas em outro terço o número de atores negros contratados conseguiu ultrapassar levemente a marca de 10% do total do elenco. - E, 90% dos personagens criados representavam a subalternidade do negro na sociedade brasileira. Ou seja, traziam os negros em estereótipos de si mesmos. (...) somente as duas últimas décadas do século XX, os anos 80 e 90, um período de ouro da telenovela, marcado por autores progressistas como Dias Gomes: - de 98 novelas produzidas pela Rede Globo não foi encontrado nenhum personagem afro-descendente em 28 delas. - Apenas em 29 telenovelas o número de atores negros contratados conseguiu ultrapassar a marca de dez por cento do total do elenco. - E em nenhuma delas o total de negros e pardos chegou a ser metade, ou mesmo 40% de todo o elenco. (ARAÚJO, 2012, p. 02).

A consequência desse discurso se traduz pela negação do negro brasileiro, emergindo a FD racial, alimentada pelo discurso dominante, acessível apenas pela elite simbólica (de raça branca) e colaboradora da difusão desigual entre os seres.

Conjecturamos nessa perspectiva, ainda, que a filiação discursiva de Aguinaldo Silva e coautores, também, situa-se no âmbito de uma FD capitalista,

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observe o trecho abaixo extraído do blog de Aguinaldo que nos possibilita pensar tal hipótese.

Quando você adapta um livro para uma novela, minissérie ou filme de longa metragem, a liberdade de criação é decisiva, assim como deve ser absoluta a fidelidade do adaptador à essência da obra original. Lembra daquela frase? Quem ama não mata? Eu diria: quem adapta não trai. Aguinaldo diz que só não fez mais cinema porque em comparação com o que se paga na TV é muito pouco.10

Parece-nos, assim, que a filiação discursiva dos autores têm a capacidade de reproduzir a veleidade racial brasileira, legitimando o mito da democracia racial e o posicionamento imposto pela classe dirigente, que preza o domínio de vida capitalista.

A partir de tais constatações, identificamos posições singulares que delimitam o que se pode e o que se deve dizer acerca do Outro negro/mulato/pardo/afrodescendente. A FD de caráter antirracial trazida pelo posicionamento de Lima Barreto, assim como, a FD capitalista vinculada à televisão e o seu gênero telenovela se articulam como um complexo dominante que pode orientar para outras FD‘s, e nesse caso, segundo o recorte desse trabalho, pode direcionar-se a uma a FD racial, alimentado-a. Aquela por seu caráter contraditório, como forma de ratificar a existência racial, e esta pela possibilidade da associação do discurso capitalista que se aproveita de seu modo dominante para corroborar as práticas raciais a partir das relações de exploração.

Sob tais circunstâncias, postulamos algumas FDs que julgamos recorrentes nos nossos processos sociais e sobre as quais pretendemos desenvolver as análises no âmbito das enunciações ficcionais.

. FD1: superioridade racial (não apenas de reconhecimento do lugar de superioridade, mas também de atribuição do lugar de inferioridade ao outro, e/ou autoafirmação enquanto um ser social);

10Cfe. . Acesso em: 15 jan. 2014.

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. FD1.1: discriminação de cor (o reconhecimento e a atribuição de papeis subalternos a pessoas de cor negra e/ou suas variantes cromáticas);

. FD1.2: discriminação sexual (reconhecimento e atribuição de papeis secundários e subalternos a mulheres de cor negra);

. FD2: inferioridade racial (é a partir dela que discursos de submissão, de conformismo, de aceitação de papeis subalternos difundidos numa sociedade);

A noção de FD segundo a base proposta por Pêcheux se realiza sob as regularidades particulares de posições de classes definidas em função de embates ideológicos constitutivos de uma situação histórica, política e social. O autor postula que todo discurso se inscreve em certa FD, que é dominante a esse discurso; entretanto essa FD só se estabelece em relação a sua exterioridade, ou seja, através de outras FD‘s determinantes para esse mesmo discurso. Nessa perspectiva, encontra-se o interdiscurso, delimitando as vinculações possíveis entre as FD‘s, possibilidade que se instaura pela reconfiguração que as FD‘s sofrem em função das condições históricos, sociais e ideológicas particulares.

O nível da constituição do sentido, nessas circunstâncias, é evocado através de termos, léxicos etc., que surgem por meio de outros; são as posições ideológicas sob um contexto sócio-histórico que definem o que dizer, ou ao menos, aquilo que se pretende dizer. (PECHEUX, 1997). É, então, a partir dessa noção, que apreendemos certos posicionamentos ideológicos, como os que circundam o preconceito e a discriminação para com o Outro, temática desse estudo. A problemática racial e, consequentemente, o aparecimento das diferenças entre as pessoas no Brasil emergem da associação existente entre classe social e raça, demonstradas pelos embates racializantes presentes no contexto sócio-histórico desse país.

A partir desse viés, então, conjecturamos as FD‘s raciais, tendo em vista as várias possibilidades interpretativas acerca da racialidade que circundam o meio social brasileiro. Logo, pressupomos que algumas das FDs elencadas podem identificar melhor o posicionamento discursivo dos sujeitos ficcionais estabelecidos por esse estudo.

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Nas próximas seções apresentaremos as caracterizações das personagens Clara dos Anjos, Engrácia, Joaquim e Cassi Jones das narrativas Clara dos Anjos e Fera ferida e as respectivas análises sobre as FD‘s que as circunscrevem.

Apreendemos que as FD‘s são produto de padrões ideológicos que determinam certos comportamentos sociais que os sujeitos históricos vivem. No caso do texto ficcional, as FD‘s se tornam uma projeção de comportamentos que cada autor faz para a construção de seus personagens.

Assim, investigaremos a seguir a reprodução desses padrões pelas narrativas em questão.

6.1 Clara dos Anjos: caracterização

Neste momento, contemplar-se-ão as peculiaridades da personagem Clara dos Anjos, presente na obra de Barreto, em contraposição à personagem presente na telenovela Fera ferida.

O quadro abaixo busca mostrar, de um modo geral, a condição de Clara na obra barretiana:

Romance: Clara dos Anjos

Caracterização do sujeito de ficção

Personagem Cor Ambiente Espaço Participação (Etnia)

Clara dos Anjos Mulata Nenhuma ascensão Subúrbio do Rio Principal/Heroína social/Boa conduta moral / de Janeiro Amorfa11

Quadro 06: Caracterização de Clara (Romance)

11 O narrador se refere à Clara como portadora de uma natureza ―amorfa, pastosa que precisava mãos fortes que modelassem e fixassem.‖ (BARRETO, 1998, p. 90).

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Clara dos Anjos, nesse contexto, é de uma família humilde, sem posses, porém honesta e trabalhadora. Trata-se de uma jovem prendada. Fora criada de uma maneira reclusa, saia de casa somente com a mãe ou com alguém de confiança da família.

Engrácia, cujos cuidados maternos eram louváveis e meritórios, era incapaz do que é verdadeiramente educação. Ela não sabia apontar, comentar exemplos e fatos que iluminassem a consciência da filha e reforçassem-lhe o caráter, de forma que ela mesma pudesse resistir aos perigos que corria. A mulher de Joaquim dos Anjos tinha a superstição dos processos mecânicos, daí o seu proceder monástico em relação à Clara. (BARRETO, 1998, p. 54).

Diante de tantos desvelos, Clara não adquire experiências sobre a vida, fato que a aliena dos dissabores do mundo, acentuando sua ingenuidade perante as atitudes humanas.

A personagem12 teve um pouco de estudo, mas isso não foi o suficiente para se tornar uma pessoa independente, ou até mesmo crítica diante das atribulações que a vida lhe proporcionou. Nesse sentido, o narrador aponta que: ―A idade, o sexo e a falsa educação que recebera, tinham muita culpa nisso tudo; mas a sua falta de individualidade não corrigia a sua obliquada visão da vida.‖ (BARRETO, 1998, p. 90).

Fisicamente, Clara, tinha a pele pardo-clara e cabelos lisos. Crescera em um ambiente em que a predominância musical era efervescente: seu pai era habituado às modinhas, tanto que ―enfumaçara a sua pequena alma de rapariga pobre e de cor com os dengues e o simplório sentimentalismo amoroso dos descantes e cantarolas populares‖. (BARRETO, 1998, p. 42).

12 Clara é descrita pelo narrador como possuidora de uma natureza ―amorfa‖, que necessitava de ―mãos fortes que a modelassem e fixassem‖ e seus pais não tinham condições para tal atuação. Acerca dessas considerações, veja o ponto de vista do narrador: ―A mãe não tinha caráter, no bom sentido, para fazê-lo; limitava-se a vigiá-la caninamente; e o pai, devido aos seus afazeres, passava a maioria do tempo longe dela.‖ (BARRRETO, 1998, p. 90).

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A vida que Clara conhecia advinha das canções que ela crescerá ouvindo nas modinhas cantadas por seu pai e os amigos deste: ―O mundo se lhe representava como povoado de suas dúvidas, de queixumes de viola, a suspirar amor.‖ (BARRRETO, 1998, p. 90).

Faltavam-lhe maturidade e entendimento acerca de sua condição feminina perante a sociedade patriarcal e machista na qual ela vivia. Diante disso, a moça se torna uma presa fácil na presença de qualquer pessoa de índole duvidosa.

Agora, trazemos a personagem Clara da narrativa telenovelística Fera ferida, como se pode verificar:

Novela: Fera ferida

Caracterização do sujeito de ficção

Personagem Cor Ambiente Espaço Participação (Etnia)

Clara dos Anjos Mulata Nenhuma ascensão Cidade de Coadjuvante social/Boa conduta moral/ Tubiacanga opaca13

Quadro 07: Caracterização da personagem Clara (Novela)

Nessa novela, Clara dos Anjos é representada pela atriz Érica Rosa. A moça fora criada com muito desvelo por seus pais. Estudou em um colégio de freiras até seus dezesseis anos, de onde saiu para ser a próxima rainha da irmandade de mulheres negras existentes em Tubiacanga, que, nesse momento, é liderada por sua mãe Engrácia. Essa personagem vive sob os mandados de sua mãe.

Clara é uma moça ingênua, que acredita na bondade humana, fora criada em convento, não sabe da maldade e tampouco da vilania humana, acredita nas pessoas e segue fielmente seu coração de jovem apaixonada.

13 No sentido de ser apagada, sem atitude e/ou iniciativas próprias.

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6.2 Clara dos Anjos: análise

O lugar da constituição do sentido é a formação discursiva, isso implica defini- la em função de sua dependência constitutiva do ―todo complexo com dominante‖, ou seja, do interdiscurso (PÊCHEUX, 1997, p. 162). Desse espaço apreende-se o efeito de pré-construído ―sempre-já-aí da interpelação ideológica‖ e a articulação constituída pelo ―sujeito em relação com o sentido‖, que são evocados através do processo da interdiscursividade (PÊCHEUX, 1997, p. 164). O pré-construído faz alusão a determinadas certezas manifestadas pelo sujeito através de sua enunciação, isto é, ―o que cada um sabe e simultaneamente o que cada um pode ver‖ (BRANDÃO, 2004, p. 49).

Diante dessa perspectiva, observaremos, nesse momento, a formação discursiva que envolve a personagem Clara dos Anjos, inscrita no romance de Lima Barreto, tendo em vista o lugar assumido por esse sujeito ficcional em um dado momento histórico e social da narrativa barretiana.

A circunstância histórica do contexto expresso por Clara remete aos idos de 1900. A personagem se projeta sob uma classe social baixa, um estado de pobreza, e ainda, apresenta a condição física de mulata. Sob esse espaço discursivo apresentaremos, a seguir, alguns recortes, visando demonstrar o posicionamento socioinstitucional e ideológico conferido a Clara, como se pode observar abaixo:

EUe Na sua vida, tão agitada e tão variada, ele sempre Narrador: observou a atmosfera de corrupção que cerca as raparigas do nascimento e da cor de sua afilhada; e também o mau conceito em que se têm as suas virtudes de mulher. A priori, estão condenadas; e tudo e todos pareciam condenar os seus esforços e os dos seus para elevar a sua condição moral e social.

(BARRETO, 1998, p. 42 – destaques meus)

Nessa passagem o narrador revela o pensamento de Marramaque em relação às moças de cor, como é o caso de Clara, e nela estão contidos os primeiros

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aspectos da FD1 que assinala aquilo que se pode dizer em relação a esses indivíduos: ―(...) atmosfera de corrupção que cerca as raparigas do nascimento e da cor de sua afilhada (...)‖ (BARRETO, 1988, p. 42); bem como a FD1.1, assinalando o teor discricionário sobre a mulher negra – ―(...) o mau conceito em que se têm as suas virtudes de mulher (...)‖(BARRETO, 1988, p. 42) . Por fim, a sentença final desse episódio: ‖A priori, estão condenadas; e tudo e todos pareciam condenar os seus esforços (...)‖ (BARRETO, 1988, p. 42) revela-nos o caráter determinista desenhado pela FD1.

O inusitado do tratamento de superioridade racial configurado acima, se pauta pela reflexão advinda de Marramaque, um mulato, padrinho da jovem Clara; demonstrando o assujeitamento e/ou a interpelação sofrida por esse indivíduo perante um discurso discriminatório presentificado por uma formação ideológica racializante, que ele reproduz, mesmo sendo um representante da classe que sofre o preconceito.

Marramaque viveu no meio de ―rodas de gente fina‖ (BARRETO, 1988, p. 40); apesar de pouca instrução e apresentando uma saúde debilitada, esse personagem presenciou um período de:

Plena escravatura, se bem que nos fins, mas a antiga Província do Rio de Janeiro era próspera e rica, com as suas rumorosas fazendas de café, que a escravaria negra povoava e penava sob os açoites e no suplício do tronco. (BARRETO, 1998, p. 36).

Diante disso, percebe-se que Marramaque, enquanto um sujeito de cor, reproduz a ideologia da supremacia branca, e igualmente a FD1, como se observa pelo enunciado: ―(...) raparigas do nascimento e da cor (...) A priori, estão condenadas (...)‖ (BARRETO, 1998, p. 42). Essa possibilidade enunciativa, segundo Fanon, corrobora-se à medida que entendemos que o negro se autoescraviza, após ter sofrido como escravo do branco. ―O preto é na máxima acepção do termo, uma vítima da civilização branca.‖ (FANON, 2008, p. 162). Sendo assim, ele não tem seu próprio lugar e discurso, reproduz o padrão social em que vive.

É interessante pensar, também, que esse contexto social expressa a riqueza brasileira que se constrói sobre o trabalho escravo, o que pressupõe uma ideologia

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racista, se constituindo a partir de uma prática social que tem como base a dissimetria entre a relação branco-negro, perpetuado sob a desigualdade da estrutura social.

A condição de produção discursiva se faz sob a égide racializante, como se verifica pela presença das FDs no texto, levando em consideração que a organização enunciativa se realiza a partir dos valores negativos em relação ao negro, e nesse âmbito em especial, à ―atmosfera de corrupção que cerca as raparigas do nascimento e da cor de sua afilhada‖ (BARRETO, 1988, p. 42), afinal, Clara é uma mulata.

Observa-se que, desse espaço, surge uma avaliação depreciativa a respeito das mulheres, principalmente, das afrodescendentes e pobres. O mundo projetado pela história ficcional de Clara desenvolve padrões discriminantes, revelando uma sociedade cujas relações sociais de seus membros se estabelecem de maneira restrita, na qual – as ideias da classe dominante são preponderantes e projetam: a inferioridade do negro, do pobre, a submissão feminina etc.

No próximo trecho acentua-se, novamente, a desvalorização quanto à cor de Clara, a condição social e psicológica da jovem. Essa construção discursiva acontece a partir da crença inferiorizante estabelecida pelo ideário de Engrácia em relação à filha, o que reproduz um discurso previsto pela FD1 – ―(...) pela sua condição, já pela sua cor (...) (BARRETO, 1998, p. 54). Enfim, por mais que tenhamos um discurso flexibilizado – ―(...) fustigava lhe a curiosidade em descobrir (...)‖ (BARRETO, 1998, p. 54), o teor da FD1 se faz aqui presente como algo da ordem de dever dizer. É possível concessões, mas o teor imperativo da FD1 continua se fazendo presente. Vejamos os textos que representam essas considerações:

EUe Essa reclusão e, mais do que isso, a constante Narrador: vigilância com que sua mãe seguia os seus passos, longe de fazê-la fugir aos perigos a que estava exposta a sua honestidade de donzela, já pela sua condição, já pela sua cor, fustigava-lhe a curiosidade em descobrir a razão do procedimento de sua mãe.

(BARRETO, 1998, p. 54 – destaques meus)

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Assim, por aquilo que é imposto pela FD1, a mãe de Clara reproduz a preeminência ideológica branca que se constrói sob a base da diferença entre seus participantes. Desse modo, infere-se, pelo contexto, o motivo de Engrácia para tal vigilância em torno da filha.

Clara, nesse próximo excerto, parece começar a entender sua posição na sociedade revelada pela narrativa barretiana, observe:

EUe Uma dúvida lhe veio; ele era branco; e ela, Narrador: mulata. Mas que tinha isso? Havia tantos casos... Lembra-se de alguns... E ela estava tão convencida de haver uma paixão sincera no valdevinos, que, ao fazer esse inquérito, já recolhida, ofegava, suspirava, chorava; e os seus seios duros quase estouravam de virgindade e ansiedade de amar.

(BARRETO, 1998, p. 56 – destaques meus)

No entanto, o entendimento revelado pela jovem Clara está longe de representar uma ruptura da FD1, quando muito reproduz a extensão daquilo que é dito (ou imaginado) acerca do discurso racial: ―Uma dúvida lhe veio: ele era branco; e ela, mulata (...)‖ (BARRETO, 1998, p. 56). Há nesse contexto certo conformismo diante da incerteza colocada pelo posicionamento da cor do sujeito, que se traduz pelo enunciado: ―(...) já recolhida, ofegava, suspirava, chorava (...)‖ (BARRETO, 1998, p. 56).

Esse âmbito narrativo evoca o efeito do encadeamento do pré-construído àquilo que todos já conhecem acerca da história social/cultural brasileira: a relação escravocrata implicou o processo racializante, estabelecendo a segregação entre brancos e negros. A personagem se ilude ao pensar que poderia ter um relacionamento normal com um homem branco, as determinações históricas no Brasil nos confirmam esses dados: ―E é porque há essa ligação que as filiações históricas podem-se organizar em memórias, e as relações sociais em redes de significantes.‖ (PÊCHEUX, 1997, p. 54).

Nesse sentido, Memmi nos lembra que o sujeito acaba por reproduzir os padrões de dominação em que vive, traduzidos aqui, em termos das FDs que

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apontamos mais acima, já que é através delas que os sujeitos exteriorizam as marcas profundas da discriminação. Nesse caso, Clara, ao tentar ignorar a separação social estabelecida pela diferença de cor entre ela e Cassi Jones, se convence da superioridade branca e busca viver dentro dos padrões dessa sociedade, como destacamos pela força de FD2, como ratificado nas palavras de Memmi:

O colonizado se perde no ―outro‖, se aliena. Tentará, pois, de acordo com a lógica desse movimento, levar a alienação às últimas consequências, tornando-se ele próprio um colonialista, casando-se entre os representantes da metrópole, por exemplo. (MEMMI, 1977, p. 08 – destaque do autor).

A personagem Clara demonstra, então, não ter forças para lutar contra seu destino. A condição de sujeito dominado, segundo o complexo dominante dos interdiscursos, materializados, neste caso, na FD2, pode ser observada pelo trecho abaixo:

EUe Não havia, em Clara, a representação, já não exata, Narrador: mas aproximada, de sua individualidade social; e, concomitantemente, nenhum desejo de elevar-se, de reagir contra essa representação.

(BARRETO, 1998, p. 90 – destaques meus)

Acerca de tal contexto, nos parece que o padrão ideológico da superioridade branca, o qual envolve o discurso circunscrito por Clara, revela a inércia e o desconsolo dela perante um destino que não seria modificado, cabendo a ela aceitar sua mísera condição social e cultural. Essa postura aparece circunscrita na determinação da FD2 que caracteriza a imposição desse lugar subalterno, conforme destacado no trecho abaixo.

EUe A filha do carteiro, sem ser leviana, era, entretanto, Narrador: de um poder reduzido de pensar, que não lhe permitia meditar um instante sobre o destino, observar os fatos e tirar ilações e conclusões. A

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idade, o sexo e a falsa educação que recebera, tinham muita culpa nisso tudo; mas a sua falta de individualidade não corrigia a sua obliquada visão da vida.

(BARRETO, 1998, p. 90 – destaques meus)

Assim, ―‗(...) um poder reduzido de pensar (...) não lhe permitia meditar (...) sobre o destino (...)‖ (BARRETO, 1998, p. 90), nem ao menos ―(...) observar fatos e tirar ilações e conclusões.‖ (BARRETO, 1998, p. 90), são expressões que ocupam lugares de opressão racial numa sociedade. E são elas que condenam Clara a um lugar de submissão, à condição de que ela não dava conta de perceber e compreender as coisas mundanas, a sua educação pressupunha apenas as seguintes obrigações: cuidar da casa e dos filhos.

A pouca maturidade, além da escassa capacidade de refletir acerca das ações e intenções experienciadas pelo ser humano, associadas à condição de pobreza e de cor, demonstram a fragilidade de Clara diante do circuito social mostrado pela narrativa barretiana, como se observa pelo trecho a seguir:

EUe Agora, é que percebia bem quem era o tal Cassi. O Narrador: que os outros diziam dele era a pura verdade. A inocência dela, a sua simplicidade de vida, a sua boa fé, e o seu ardor juvenil tinham-na completamente cegado. Era mesmo o que diziam... Por que a escolhera? Porque era pobre e, além de pobre, mulata.

(BARRETO, 1998, p. 126 – destaques meus)

A ideologia da classe dominante impõe a Clara uma pré-condição para que ela aceite seu modo de viver: ―(...) era pobre e, além de pobre, mulata‖ (BARRETO, 1998, p. 126), evidenciando a realidade da jovem Clara sob a FD2.

O narrador no plano narrativo a seguir, expõe a infeliz condição social e moral da personagem Clara:

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EUe O bonde vinha cheio. Olhou todos aqueles homens Narrador: e mulheres... Não haveria um talvez, entre toda aquela gente de ambos os sexos, que não fosse indiferente à sua desgraça... Ora, uma mulatinha, filha de um carteiro! O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir- se de vontade, como possuía essa varonil Dona Margarida, para se defender de Cassis e semelhantes, e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o admitiam... (...) Dona Margarida relatou a entrevista, por entre o choro e os soluços da filha e da mãe. (...) Clara ergueu-se da cadeira em que se sentara e abraçou sua mãe, dizendo, com um grande acento de desespero:

EUe Clara: - Mamãe! Mamãe! (...) - Nós não somos nada nesta vida!

(BARRETO, 1998, p. 133 – destaques meus)

Clara percebe, no final de sua história, não ter valor, nenhuma perspectiva de vida adequada a aguardava na sociedade preconceituosa na qual se inscrevia. Ainda que a visão da personagem possa ter o teor de uma avaliação crítica da sociedade em que vivia, o seu posicionamento diante da situação reflete o que estamos caracterizando pela FD2, que implica a inferioridade, o sujeito sob a condição de negro torna-se rejeitado perante a outra classe social (branca), a qual representa os padrões culturais vigentes.

Clara, ao dizer que ―(...) não somos nada nessa vida!‖ (BARRETO, 1998, p. 133), revela que sua condição econômica e de cor eram algo determinante na sociedade vigente da época. Esse fato reforça a ideia da imobilidade social de Clara, dado que se torna preponderante na construção de um modelo comportamental de inferioridade, de conformismo por parte dessa personagem, confirmando a FD2.

A partir desses apontamentos, percebemos que os atos enunciativos que circunscrevem Clara adquirem uma estabilidade referencial a partir de certa

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conjuntura histórica e social, e se apoiam em saberes instituídos e legitimados no circuito social brasileiro, revelados pelas posições discriminatórias em relação ao Outro (negro/mulato/afrodescendente).

Um problema que é bastante evidente no Brasil, (...) é das relações entre negros puros e mulatos. Muitas vezes o negro se ressente do que os mulatos têm de sangue branco, vendo-os, pelo menos em parte, como membros da raça que oprimiu o negro. Um outro sentimento (...) é o da vergonha por parte do negro, reconhecendo que os primeiros mulatos foram fruto de violentações dos brancos contra as mulheres escravas, geralmente à força ou sem consentimento delas. (...) o mulato permanece como símbolo de traição forçada imposta ao macho africano. (...) Seu sangue negro o impede de ascender a uma posição de igualdade social com brancos, enquanto seu sangue branco o separa dos negros, o que muitas vezes o infelicita. (RABASSA, 1965, p. 440).

O contexto social brasileiro atribui um caráter depreciativo ao ser negro(a) e/ou mulato(a), dado que corrobora para a violência simbólica que envolve esses sujeitos. Há uma construção estereotipada em relação à mestiçagem brasileira. Contudo, a condição da origem escrava do negro, além do contexto da superioridade branca, propicia a legitimação desse discurso degenerativo.

As passagens acima indicam a sujeição social e moral à qual a personagem Clara é compelida, dados que nos autorizam a deduzir, por meio do imaginário brasileiro, traduzido pelo romance, as formações discursivas que apontamos acima e que estão implicadas nas relações sociais presentes na sociedade brasileira.

A personagem Clara dos Anjos se constitui sob uma configuração negativa à qual os negros e/ou mulatos se associam no contexto ideológico brasileiro. Por isso, o discurso a partir do qual Clara se apresenta, emerge em relação a certo domínio da memória marcado pela ideia da inferioridade do negro perante o branco e mostra a posição dessa personagem se estabelecendo enquanto sujeito, revelando formações discursivas que reiteram não só o seu reconhecimento da inferioridade racial do negro, como os processos de discriminação a que é submetido na sociedade. Numa dimensão estrutural, podemos descrever de forma mais completa as FD‘s incorporando os seus elementos constitutivos.

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→ Pré-construído: inferioridade do negro/superioridade branca

FD FD1: Atribuição do lugar de inferioridade do outro/ FD1.1 discriminação de

cor/ FD2: Inferioridade racial

→ Interdiscurso: darwinismo social (escravagista)

Logo, nesse contexto, as FD1, FD1.1 e FD.2 subjacentes a uma ideologia racista e estabelecidas por estruturas e posicionamentos sócio-culturais, além de avaliações depreciativas que circulam no meio brasileiro acerca do sujeito de cor, nos permitem configurar a condição de vida de Clara e a relação inferiorizante que esta estabelece com a sociedade de sua época. Clara carrega fisicamente o estigma do preconceito, sendo ainda descrita como ―amorfa‖ e/ou apagada, apática, por não ter expressividade, o que direciona para um pré-construído que fornece uma realidade legitimadora para as FD‘s sob as quais ela se acha vinculada. Essa problemática em torno do negro se apóia nos modelos evolucionistas e social- darwinistas que são introduzidos no Brasil em meados de 1870, como forma de justificar teoricamente as práticas imperialistas de dominação. (SCHWARCZ, 1993, p. 30). Os conceitos da obra de Darwin servem de análises para o comportamento humano, assim como para questões acerca da seleção humana e social.

Conceitos como ―competição‖, ―seleção do mais forte‖, ―evolução‖ e ―hereditariedade‖ passavam a ser aplicados aos mais variados ramos do conhecimento: na psicologia, com H. Magnus e sua teoria sobre as cores, que supunha uma hierarquia natural na organização dos matizes de cor (1877); na linguística, com Franz Bopp e sua procura das raízes comuns da linguagem (1867); na pedagogia, com os estudos do desenvolvimento infantil; na literatura naturalista, com a introdução de personagens e enredos condicionados pelas máximas deterministas da época, para não falar da sociologia evolutiva de Spencer e da história determinista de Buckle. No que se refere à esfera política, o darwinismo significou uma base de sustentação teórica para práticas de cunho bastante conservador. (SCHWARCZ, 1993, p. 56 – destaques da autora).

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Passamos, então, à Clara dos Anjos de Fera ferida. Esta é representada pela atriz Érica Rosa. Nessa trama, Clara vive em um colégio de freiras até seus dezesseis anos. Ela volta para a cidade de Tubiacanga para assumir seu legado: ser a nova rainha da irmandade, posto passado de geração a geração (Engrácia, mãe dessa jovem passaria seu governo de rainha à filha).

Assim, a partir de determinadas enunciações tomaremos o padrão racializante que envolve a personagem Clara da trama telenovelística, observe:

Ika: - Não sei pra que colocar aquela pretinha no colégio de freiras... ela devia era aprender a lavar... passar... cozinhar... limpar o banheiro ...ai quase perdi a conta!

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaques meus)

Recordamos que a passagem acima se constitui pela enunciação de Ilka, como foi visto no subtópico 5.2 ―O circuito externo e interno de Fera ferida‖, do capítulo 5. Nele, Ilka se apresenta como uma personagem branca, da sociedade de Tubiacanga e cunhada do prefeito dessa cidade, Demóstenes. O discurso dela se realiza por meio uma conversa informal com Joaquim dos Anjos, pai de Clara. Ela pergunta a Joaquim sobre a filha, mas sem que ele perceba, essa personagem expõe o que pensa a respeito de Clara. A opinião de Ilka nos remete a FD1.1, além da FD1 que determina a exterioridade preconceituosa dessa personagem, assim como assegura o seu lugar de soberania social. Ao pronunciar que Clara devia era ―lavar... passar... cozinhar‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993), Ilka atribui, através desses significantes, que à força do trabalho doméstico é algo imanente ao destino do negro.

Em outro momento, Ilka vai até a casa de Clara, e lá, essa personagem, mais uma vez, revela seu modo discriminante de pensar por meio da FD1.1, ao pegar o portaretrato de Clara e dizer:

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Ika: - Ah!!...Clara dos Anjos... isso é nome que dê a uma negrinha dessas...

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaques meus)

Por esse contexto, percebe-se uma associação negativa relativa à cor negra, significando o mal, fato que leva a alteridade africana a ser conotada com debilidade moral, física e social. A personagem Clara não é clara, como quer Ilka, dado que externa o preconceito dessa mulher, supondo, nessa situação, a transparência de significado das palavras. Para Ilka a palavra ―clara‖ deveria ser algo que só cabe a um significante que tenha tais atributos; claro(a) denota o branco, o alvo, e Clara dos Anjos não apresenta essas características fisicamente, (é uma ―negrinha‖ segundo a personagem), fato que, para Ilka, contraria o bom senso, evidenciando a FD1.1.

Ainda sobre a significação do nome de Clara, convém esclarecer que o seu sobrenome manifesta a concepção da pureza e inocência com que é vista apenas pelos pais, dado que será posto em objeção a partir do momento em que ela se deixa seduzir por Cassi Jones:

A contradição do nome também serve para reafirmar a crítica à fatalidade sociorracial na obra. Dessa forma, o nome Clara dos Anjos e as referências evocadas assumem o papel de polo contraditório da denúncia. (FURTADO, 2003, p. 82)

O trecho a seguir diz respeito a uma cena em que Engrácia busca esclarecer a relação amorosa entre Cassi e a sua filha Clara. Nessa situação, Engrácia aparece na casa do Major Bentes, discutindo com Cassi, como veremos pela análise do subtítulo 6.8 – ―Cassi Jones: análise‖, do capítulo 6. Em um dado momento, surge Salustiana, conforme mostrado pela situação abaixo:

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Salustiana: - Ah... Cassi Jones! Meu filho:::... Não me diga que você andou se metendo novamente com essas mocinhas de cor....eu já te disse que não vale a pena...E você? Você por acaso veio aqui exigir alguma reparação? Passa aí nessa sua cabeça de pensamento curto obrigar meu filho a se casar?

Engrácia: - Deus me livre! Eu amo a minha filha e juntar a vida dela à desse cafajeste seria o pior dos castigos!

Salustiana: - Bom... então você veio pegar um dinheirinho... só pode ser isto!

Engrácia: - Claro que não! Graças a nossa Senhora do Bonfim e a Deus! Eu e os meus parentes não precisamos...

Salustiana: - Indigente não tem parente, principalmente, na hora do aperto. Ah! Olha... eu se fosse você engolia esse orgulho e aceitava esse dinheirinho... vai ser bom... ela pode comprar um vestido... um... um brochinho, uma jóia ... vai ajudar ela a se conformar... difícil mesmo vai ser ela esquecer do meu filho.... engraçado... NÉ Cassi, como essas meninas se apegam....também não é pra menos... chegam a pensar que são gente!! Quando um rapaz assim de boa família... bonito... papa fina, dá o prazer a elas de dividir um pouco da sua intimidade... Ah! Ah! Ah!

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaques meus)

Nessas circunstâncias, Salustiana insulta Engrácia ao vociferar: ―Indigente não tem parente (...)‖ e ―(...) como essas meninas se apegam... também não é pra menos... chegam a pensar que são gente!!‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993). A personagem busca demarcar seu lugar social através de uma postura intolerante com aqueles de posição inferior (pobre, e de cor como Engrácia e sua família), fato que a projeta sob uma FD1. É bom lembrar que Salustiana pertence à elite de Tubiacanga e acredita na superioridade desse meio social, dado que acentua a reprodução da FD1. Diante disso, ela alimenta as diferenças entre brancos, negros e pobres; Engrácia, juntamente com a filha e o marido representam, nesse instante, esse desafeto, ou seja, a classe desfavorecida.

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A condição social e de cor da jovem Clara e de sua mãe acabam por colocarem-nas numa situação de desvantagem perante essa sociedade, manifestando a intolerância de Salustiana: ―Não me diga que você andou se metendo novamente com essas mocinhas de cor... (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993), ocorrência que assinala a FD1.1.

A FD1.2 também condiciona o modo de ser de Salustiana na a fala: ―(...) essas meninas se apegam.... também não é pra menos... chegam a pensar que são gente!! Quando um rapaz assim de boa família... bonito... papa fina, dá o prazer a elas de dividir um pouco da sua intimidade...‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993). Nessa fala a personagem manifesta o preconceito em relação aos relacionamentos afetivos entre etnias diferentes.

Para a maioria dos brancos o negro representa o instinto sexual (não educado). O preto encarna a potencia genital acima da moral e das interdições. (...) a realidade desmente todas essas crenças. Mas tudo isso se acha no plano do imaginário (...). (FANON, 2008, p. 152).

Nota-se, que a mulata é reduzida ao corpóreo e à sexualidade que pode oferecer. Essa herança advém do processo escravagista brasileiro. Sobre isso, Freyre explica que: ―(...) a animalidade dos negros, essa falta de freio nos instintos, essa desbragada prostituição dentro de casa, animavam-na os senhores brancos.‖ (FREYRE, 2002, p. 402). Nesse sentido, o personagem Cassi, como um membro da elite tubiacanguense branca, apenas desfruta e/ou se diverte com as jovens desafortunadas, mas uma relação duradoura com elas seria insustentável para ele, ratificando a FD1.2.

A construção discursiva de Aguinaldo Silva e Linhares e Moretzsohn (1993), mesmo sendo contemporânea, ainda carrega consigo os estigmas sociais da discriminação. As representações em torno de Clara corroboram para esse dado e se manifestam sob a FD2.

Existe, nesse contexto, uma ideologia racial presentificando a questão apontada, como vimos nos discursos racistas de Ilka e Salustiana, representações que se traduzem pela FD1. Nesse sentido, apreende-se que ―em qualquer dos disfarces, os negros desfrutam de uma posição subordinada no sistema dualista que

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reproduz a dominação da brancura‖. (GILROY, 2001, p. 109). A mãe de Clara, ao constatar que a filha envolveu-se com Cassi, chega à seguinte conclusão:

Engrácia: - Não! Eu... vou conversar com a minha filha sobre é::.. as coisas da vida. Não a vida como ela sonha, mas a vida como ela é. E depois ela vai voltar logo pro colégio, não vai? Cê concorda com isso, não é?

Joaquim: - Claro, Engrácia. É o que ela quer! A Clara sempre foi muito estudiosa, muito esforçada... ela vai se formar, ser professora... fazer uma faculdade, ser até doutora, Engrácia!

Engrácia: - Hum! Ser alguma coisa! Ser alguém! É, Joaquim, eu acabei de descobrir que a gente não vale nada nessa vida!

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaques meus)

Engrácia, nesse momento, reflete sobre o peso que a cor negra parece exercer em sua família: ―- Hum! Ser alguma coisa! Ser alguém! É Joaquim eu acabei de descobrir que a gente não vale nada nessa vida!‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993). A proposição em destaque, assim, exterioriza a ocorrência da FD2 nesse âmbito.

Como se pode verificar, a personagem Clara vive em uma sociedade branca, que dita as regras, as quais estigmatizam as pessoas de cor. Assim, a identidade discursiva dessa jovem se constrói na relação com o Outro branco, que estabelece o lugar dela perante a sociedade de Tubiacanga, o que nos leva a presumir que tal personagem se assume por um FD de inferioridade racial, isto é, a FD2.

De maneira estrutural, representamos abaixo as FD‘s produzidas pela exterioridade discursiva que permeia o padrão comportamental de Clara:

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→ Pré-construído: inferioridade do negro/superioridade branca

FD FD1: Atribuição do lugar de inferioridade do outro/ FD1.1 discriminação de

cor/ FD2: Inferioridade racial/FD1.2 discriminação sexual

→ Interdiscurso: darwinismo social (escravagista)

Percebe-se que Fera ferida, mesmo sendo uma construção dos anos noventa, ainda tem como base o discurso escravagista como pilar para a racialização apresentada.

Clara se insere em um contexto discriminante, mas que se faz por uma ótica restrita. Nessa telenovela, o preconceito emerge através de um contexto particular, no qual se inserem apenas alguns personagens, como Ilka, Salustiana, Rubra Rosa (esposa de Numa), o delegado da cidade (que tem um caso com Salustiana), enfim, um pequeno grupo de pessoas. Não há maiores preocupações voltadas para o debate racial.

Contudo, percebe-se que a modernidade, aos poucos, começa a fazer parte do contexto vivido pela jovem Clara. Observe a fala de seu pai, Joaquim: ―Claro, Engrácia. É o que ela quer! A Clara sempre foi muito estudiosa, muito esforçada... ela vai se formar, ser professora... fazer uma faculdade, ser até doutora, Engrácia!‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993). Essa Clara, de Fera ferida, diferente da Clara, de Lima Barreto, que não tem outra perspectiva social a não ser a desonra, pode recorrer ao estudo e tentar modificar seu padrão de vida inferiorizante.

A Clara de Lima Barreto reproduz a racialização por meio do coletivo. Toda a obra apresenta ou conduz para uma perspectiva coletiva acerca de raça. Diferente da telenovela, que concentra essa problemática em apenas um núcleo. Nesse

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sentido, o modo de produção social inscrito nesse âmbito demonstra a subalternidade do negro, conforme nos explica Muniz Sodré:

[a] elite branca fazia o trânsito histórico do racismo de dominação para o de exclusão: o homem concreto, o povo, seria socialmente discriminado (...) a ideia de nação confundia-se com a de uma comunidade baseada em laços de sangue ou território. Mais tarde no século dezenove, a comunidade ―sanguínea‖ tornou-se comunidade de ―raça‖, isto é, uma unidade política garantida tanto pelo ordenamento estatal quanto pela ideia de uma diferença biológica a nível humano. A manipulação de diferenças servia a propósitos coloniais: manter o outro, o colonizado, em posições subalternas. (SODRÉ, 1999, p. 79 – destaques do autor).

A discriminação sociorracial vivenciada por Clara reproduz um ideário pautado nos valores do homem branco do início do século XX, aquele que detém o poder, a riqueza e a influência em relação às classes baixas, que acabam suplantadas e subjugadas nesse contexto de dominação etnocêntrica.

O coletivo apresentado pela novela Fera ferida mascara a racialidade. O preconceito surge em posições individuais, que fantasiam um espaço de superioridade em relação aos pobres e negros presentes nessa narrativa.

A contemporaneidade da narrativa de Aguinaldo Silva e coautores talvez pudesse repensar a história da Clara barretiana, mas não o faz. Reproduz a situação de Clara com brandura, própria de sua função social, enquanto gênero de entretenimento. E assim, diverge da literatura barretiana em seu tom de transformação, reflexão e/ou a discussão acerca da racialidade brasileira.

Outro aspecto em desarmonia com obra Barreto é a conformidade da situação discriminante da jovem Clara sob o ponto de vista de Engrácia, ao dizer que não vale nada nessa vida, diferente do acontece na obra de Barreto, pois nela a perspectiva do não ser nada na vida parte da própria Clara.

No Brasil, como não se toca mais publicamente na ―questão nacional‖ (levantada em 1822, 1888, e 1930), a temática identitária foi abandonada pelas elites dirigentes e retomada por ―comunidades‖ setoriais (negros, índios, mulheres, homossexuais etc.). Na imprensa, apenas eventualmente o problema da discriminação é aflorado, mas sem compromisso de causa, daí as acusações de conivência na reprodução de formas discriminatórias. (SODRÉ, 1999, p.134-135 – destaques do autor).

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Nesse sentido, a telenovela também não está preocupada em discutir a racialidade, apenas reproduz o social como ele sempre foi retratado: o branco em lugar de poder e de dominação e o negro em seu estado de dominado.

Assim, as proposições analisadas nos direcionam, em ambas as narrativas, para FD2 de inferioridade racial, assim como, aquela que denota a superioridade racial, FD1. Os discursos de aceitação da subalternidade e submissão que são impostos à personagem Clara, tanto na construção de Barreto quanto na de Aguinaldo Silva e outros se corroboram pela FD2, enquanto a hegemonia branca e a discriminação de cor e sexual se exprimem pela FD1, FD1.1 e FD 1.2, que atribuem ao sujeito de cor um não-lugar social, dado que o mantém à margem e o exclui perante uma sociedade de preceitos racistas.

6.3 Engrácia: Caracterização

Este subtópico se constrói a partir das peculiaridades de Engrácia presente na obra barretiana e sua releitura pela telenovela Fera ferida. Observe primeiramente, no quadro a seguir, a caracterização de Engrácia de Clara dos Anjos:

Romance: Clara dos Anjos

Caracterização do sujeito de ficção

Personagem Cor Ambiente Espaço Participação (Etnia)

Engrácia Mulata Nenhuma ascensão Subúrbio do Rio Secundária social/Boa conduta moral / de Janeiro Inerte14

Quadro 08: Caracterização de Engrácia (Romance)

14 ―Era incapaz de tomar uma iniciativa em qualquer emergência‖ (BARRETO, 1998, p. 52).

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A Engrácia construída por Lima Barreto era uma mulher do lar, dedicada à família. Apresentava um tom de pele escuro e cabelos lisos. Trazia em seus atributos físicos uma estatura mediana: ―Não era muito baixa, escapava a media de nossas mulheres em geral. Tinha uma fisionomia medida, de traços leves, mas regular‖. (BARRETO, 1998, p. 18).

Aceitava tudo o que a vida tinha a lhe oferecer de maneira passiva, era dependente do marido e quase não saía de casa, exceto em feriados santos ou para ir à mercearia.

Já a Engrácia de Silva, Linhares e Moretzsohn, apresenta outros traços, veja:

Novela: Fera ferida

Caracterização do sujeito de ficção

Personagem Cor Ambiente Espaço Participação (Etnia)

Engrácia Mulata Nenhuma ascensão Cidade de Coadjuvante social/Boa conduta moral / Tubiacanga Forte/Decidida

Quadro 09: Caracterização de Engrácia (Novela)

O papel de Engrácia é desempenhado por Maria Ceiça. A personagem é uma mulher decidida, de temperamento forte, que trabalha fora, numa tecelagem, e ainda atua como rainha da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, confraria de negros existente em Tubiacanga. Essa personagem é a guardiã das jóias da Irmandade. Sua condição de rainha se constitui por sua descendência a uma linhagem de príncipes africanos, fato que lhe confere um poder soberano entre os negros e a faz ser respeitada pela sociedade branca tubiacanguense.

Diante disso, Engrácia tem muito cuidado com a filha Clara, pois esta será sua substituta na Irmandade, perpetuando a tradição africana.

Em casa, Engrácia também lidera sua família com certa imposição: a filha tem que seguir o caminho que ela escolheu, e seu marido pouco opina em suas

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decisões. A relação de Engrácia e Joaquim é de puro respeito. As mulheres da Irmandade não devem se envolver sexualmente com seus maridos.

6.4 Engrácia: análise

Nesta seção se contemplará, a partir de uma determinada posição e conjuntura, como se estabelece a FD na qual se inscrevem as personagens Engrácia da narrativa Clara dos Anjos e da telenovela Fera ferida.

Segundo a obra de Barreto, Engrácia, apresentada pela voz do narrador, exibe um comportamento inerte, sem muita atitude.

EUe Era incapaz de tomar uma iniciativa em qualquer Narrador: emergência. Entregava tudo ao marido, que, a bem dizer, era quem dirigia a casa.

(BARRETO, 1998, p. 52 – destaques meus)

Engrácia nos é apresentada sob um padrão social verossimilhante ao da década brasileira de 1920. Nessa ocasião, os preceitos patriarcais vigoram, denotando que o lugar da mulher era de submissão. A idealização do sexo feminino estabelecida por Barreto demonstra que a mulher deveria servir ao pai antes do casamento, e após, ao marido: ―(...) constituir função do pai, enquanto solteira, e do marido, quando casada. (BARRETO, 1998, p. 89). Sob essa perspectiva, ―Gilberto Freyre, acentua a submissão da mulher, repetindo a famosa frase de Capistrano para definir a família colonial: ―pai taciturno, mulher submissa, filhos aterrorizados‖...‖. (CORREA, 1981, p. 12 – destaques do autor).

Um dado curioso nessa situação era que, essa mesma mulher, quando negra e/ou mestiça, além da subserviência física, deveria tê-la também no plano espiritual e em tudo mais que fosse contra a ordem eurocêntrica, dado que possibilita a inscrição desse indivíduo sob a FD2, caracterização exibida por Engrácia da narrativa barretiana, como veremos adiante.

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Para melhor entender essa concepção de cunho religioso, trouxemos a reflexão de Abdias do Nascimento, apontando que

Para manter uma completa submissão do africano, o sistema escravista necessitava acorrentar não apenas o corpo físico do escravo, mas acorrentar também seu espírito. Para atingir este objetivo se batizava compulsoriamente o escravo e a Igreja Católica exercia sua catequese e proselitismo à sombra do poder armado. (...) hoje, em vez do batismo compulsório, temos a ―democracia racial‖ compulsória cujos mandamentos são impostos pela ameaça policial, pela Lei de Segurança Nacional, e todo um cortejo de instrumentos legais e ilegais para amedrontar e dissuadir aqueles que não querem rezar pelo catecismo oficial(...) (NASCIMENTO, 1978, p. 109 – destaque do autor).

Na obra de Barreto não há indícios de alguma matriz religiosa africana, o que existe é uma completa assimilação da religião cristã e sua presentificação, dado que nos leva a perceber a presença da FD1 relativamente ao caráter da auto-afirmação, como verificaremos pelos textos abaixo:

EUe Ambos, porém, estavam de acordo num ponto Narrador: religioso católico-romano: batizar quanto antes os filhos, na Igreja Católica Apostólica Romana. Foi assim que procederam, não só com a Clara, o único filho sobrevivente, como com os demais, que haviam morrido.

(BARRETO, 1998, p. 18 – destaques meus)

EUe Não saía quase. Era regra que só o fizesse duas Narrador: vezes por ano: no dia 15 de agosto, em que subia o outeiro da Glória, a fim de deixar uma espórtula à Nossa Senhora de sua íntima devoção; e, no dia de Nossa Senhora da Conceição, em que se confessava. (BARRETO, 1998, p. 53 – destaques meus)

Engrácia, nesse âmbito, segue incisivamente os preceitos da religião Católica Romana – ―Ambos, porém, estavam de acordo num ponto religioso católico-romano: batizar quanto antes os filhos, na Igreja Católica Apostólica Romana.‖ (BARRETO,

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1998, p. 18). Ao se estabelecer sob a posição ideológica dessa classe, Engrácia aceita o condicionamento dessa ordem que se inscreve sob a FD1 e institui para o outro um não-luqar dentro de uma comunidade cuja religião, que é a católica, se constituiu num poderoso instrumento de dominação sociocultural e político na nossa sociedade.

Levantamos a questão de caráter religioso no intuito de contextualizar o posicionamento alienado da personagem: ―(...) não era animado de grande fervor religioso. Sua mulher, Dona Engrácia, porém, o era ao extremo (...)‖ (BARRETO, 1998, p. 18) e ―A mulher de Joaquim dos Anjos tinha a superstição dos processos mecânicos, daí o seu proceder monástico em relação à Clara.‖ (BARRETO, 1998, p. 54). Engrácia, nessa ocasião, parece reconhecer e/ou assimilar, novamente, o lugar de superioridade estabelecido pela instituição Igreja, exteriorizado sob a FD1.

Sabe-se, pela voz do narrador, que Engrácia apresentava cabelos lisos e pele escura. Ela era neta de escravos e filha de algum de seus ―protetores‖, antigos senhores de sua avó. Sob essa caracterização, o padrão da FD1.1 torna-se possível, como se pode observar pelo destaque abaixo:

EUe O cochicho não era destituído de fundamento, Narrador: naquela família, composta de irmãs e irmãos, ainda abastada, que se comprazia, tanto uns como as outras, em tratar filialmente aquela espécie de ingênuos, que viam a luz do dia, pela primeira vez, em sua casa. As senhoras, então, eram de uma meiguice de verdadeiras mães.

(BARRETO, 1998, p. 53 – destaques meus)

Engrácia fora criada em uma família abastada e tratada por eles como filha, teve babá e uma boa educação. Contudo, seu biótipo mestiço a colocava em situação de desvantagem social, assegurado o padrão discursivo imposto pela FD1.1, conforme nos mostra expressão: ―aquela espécie de ingênuos‖ (BARRETO, 1998, p. 53). Esse poder de atribuição de submissão às pessoas, de julgá-las inferiores, predestinadas a tarefas menores numa sociedade, tem na FD1.1 a sua fundamentação. Acerca dessa questão, Fanon afirma que, para o negro, existe

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somente um futuro, e este está em mãos da sociedade branca, (FANON, 2008, p. 28), máxima que se torna um registro decisivo no interior da FD1.1.

Logo, deparamos com uma personagem inexpressiva, sem voz ativa, dependente do marido: ―Qualquer acontecimento inesperado que lhe surgisse no lar punha-a tonta e desvairada.‖ (BARRETO, 1998, p. 53). Além disso, essa personagem interioriza bem as normas sociais ditadas às mulheres do século passado: ―(...) mas logo se casou – como geral acontece com as nossas moças – , tratou de esquecer o que tinha estudado.‖ (BARRETO, 1998, p. 53 – destaques meus).

A discursivização que se constrói em torno de Engrácia no romance se revela através do fenômeno da intertextualidade, afinal ―nenhum campo discursivo existe isoladamente, havendo intensa circulação de uma região a outra do universo discursivo‖ (MAINGUENEAU, 1993, p. 117). Ao mesmo tempo, ela revela a incursão dessa personagem na FD2, já que a condição em que vive se faz pelo reconhecimento da superioridade do branco em relação à submissão do negro.

Sob uma dimensão estrutural, as FD‘s elencadas acima podem ser reconhecidas como:

→ Pré-construído: inferioridade do negro/superioridade branca

FD FD2: Inferioridade racial/FD1: superioridade racial FD1.1/discriminação de cor

→ Interdiscurso: darwnista social (escravocrata)/patriarcal

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Engrácia está fadada a um sistema de representação patriarcal e racista próprio do início do século XX, que segue a ordem do darwinismo social 15. Ela experimenta o mundo em que vive através dessa óptica, se restringindo a cuidar do lar e carregando o estigma da cor negra, padrões externalizados sob as FD1, FD2 e FD1.1.

Por sua vez, Engrácia da telenovela Fera ferida é representada por Maria Ceiça, uma mulata. Essa personagem, ao contrário daquela construída por Lima Barreto, não é do lar, trabalha em uma tecelagem. Trata-se de uma mulher forte e decidida, não inerte como aquela idealizada por Barreto. Observe, por exemplo, a posição desta ao descobrir que o rapaz prometido a casar-se com sua filha Clara estava a se enamorar de outra:

EUe - O que é justo ou não... quem dita sou eu...

Personagem que sou a rainha, menina... são as regras da Engrácia: irmandade!

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaques meus)

Engrácia, aqui, se instaura sob um espaço de prestígio: ela é a rainha da irmandade negra existente na cidade ficcional de Tubiacanga. O discurso dessa personagem se revela sob um lugar de autoridade, legitimado pela soberania e pelo poder que ela aparenta ter. Nessa situação, percebe-se que os padrões discursivos engendrados a partir de uma FD1, condizente com a elite, são apropriados pelos negros, quando ocupam uma posição de poder, como no caso de Engrácia, fato que nos autoriza a postular que a personagem se inscreve, inicialmente, em uma FD1, ―O que é justo ou não... quem dita sou eu (...)‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993).

Através desse posicionamento, Engrácia demonstra uma condição real para a existência da irmandade, propiciando a exaltação de sua cultura negra, embora isso se realize de forma exagerada e dogmática, como veremos a seguir. Ela, por ser a

15 Baseia-se sob conceitos que serviram de base para selecionar, classificar a humanidade – em raças e etnias, assim como sua organização social. Nessa perspectiva, a escravidão, e, por conseguinte, a inferioridade do negro tornou-se a partir da seleção natural, uma argumentação biologizante que se apoiou sob as teorias raciais, permitindo a naturalização das desigualdades sociais.

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―rainha‖, se fixa através de um padrão comportamental de superioridade diante aqueles que seguem os preceitos desse grupo.

Para melhor apreendermos o comportamento apresentado por Engrácia percebemos a necessidade de evidenciar as regras dessa doutrina, como se pode observar abaixo:

EUe (...) um povo só sobrevive quando consegue Personagem fincar suas raízes... e mostrar o quanto elas Orestes: são profundas ... A irmandade existe pra que todo negro não se esqueça de suas origens ...suas raízes e se você cortar essas raízes... o caule apodrece... os galhos caem ...a vida acaba... por isso é que se passam séculos e séculos e as tradições têm que continuar como são... (Fala pertencente ao personagem Orestes)

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha)

Sob o ponto de vista do Orestes (um personagem branco, de baixa condição social – ele é o coveiro da cidade de Tubiacanga), esse trecho revela a realidade da irmandade, a concepção de mundo desse grupo. O autor, ao introduzir esse dado em sua narrativa, parece reconhecer a importância do sincretismo religioso como alvo de um debate social que assegura a identidade do indivíduo negro, afinal, uma maneira de conservar uma cultura é propiciar que os segmentos sociais envolvidos com ela expressem-na e pratiquem suas crenças.

Contudo, a promoção dessa discussão se esvai, à medida que a narrativa se fixa apenas em mostrar o comportamento arbitrário de Engrácia em relação aos membros da irmandade, situação que evoca uma FD1. Diante de tal situação, percebe-se que o dado de preservação de uma tradição cristã de origem negra que seria levantando como mecanismo de reafirmação e/ou conhecimento das questões socioculturais africanas pelo sincretismo religioso é deixado de lado, nesse contexto, perdendo a importância diante as intrigas que a trama proporciona.

Assim, a irmandade, ao invés de ser tratada como espaço de preservação de uma expressão cultural da tradição negra, ganhará a conotação negativa desse

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lugar, estigmatizando uma cultura que, por intolerância, se nega ao convício e às trocas sociais.

A construção da personagem Engrácia, a princípio, se faz num tom de loucura e obsessão: ―Ao traidor a morte... a indiferença... ninguém poderá tocar em qualquer coisa em que você toque, principalmente, nos alimentos! (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993). Ou seja, é como se a personagem se apegasse demasiadamente ao lugar de poder que ocupa na irmandade, incorporando os padrões discursivos da FD1, aquela usada para discriminar os sujeitos de sua raça, fato que conduz Engrácia a segregar o seu próprio grupo étnico.

Nessa perspectiva, para manter esse lugar soberano, Engrácia é capaz de sacrificar a filha, Clara, forçando-a a um casamento indesejado. Sua atitude acaba denotando uma imagem negativa para seu respeito e para o do grupo que lidera, como poderemos ver pela passagem abaixo:

EUe Ao traidor a morte... àqueles que descumprem Personagem as nossas leis, a indiferença.... a Engrácia: marginalidade....a miséria... o desalento... a aflição... nada! A partir dessa noite Terezinha... é isso que você será para nós... nada! A partir de agora, ninguém de nossa irmandade poderá olhar para você... falar com você, ou tocar em qualquer coisa em que você toque, principalmente, nos alimentos! Você acabou!... Morreu! E o que restou foi isso...

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha)

Pelo contexto mostrado, a personagem é apresentada de forma bem elaborada e resolvida. Seu lado enérgico nos legitima a fazer essa leitura: ―A partir dessa noite, Terezinha,... é isso que você será para nós... nada!‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993). E ainda, ela ―reina‖ como líder de uma irmandade religiosa, assinalando a ocorrência da FD1.

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Outro exemplo desse comportamento ―rigoroso‖, calcado sob uma FD1, acontece em um contexto de insubordinação de Wotan16, personagem que não quer cumprir com a promessa de casamento com a filha de Engrácia, Clara. Nessa situação, Engrácia é incisiva e o trata duramente por não acatar os seus deveres, dizendo que Wotan não é digno de sua raça, tampouco, de seus antepassados e de sua filha Clara.

Contudo, não podemos nos esquecer de que esse fato de superioridade ocorre apenas quando Engrácia está diante do grupo da irmandade e de sua família (entre as pessoas de cor). Nessas circunstâncias ela assume uma FD1. Já na interlocução branco-negro, a constituição autônoma do discurso de Engrácia se extingue (ou melhor, parece não existir) e retorna a condição da submissão da personagem, como vimos pelo embate discursivo realizado entre Salustiana e Engrácia no subtítulo 6.2, ―Clara dos Anjos: análise‖, do capítulo 6, ou mesmo entre Ilka e Engrácia, quando aquela diz: ―Vou procurar outra macumbeira sim! (...)‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993), estabelecendo para esta um lugar discriminante. Engrácia, nesse interstício, deixa de assumir a FD1 e se fixa numa FD2, tanto é que, no fim da trama telenovelística, será Engrácia que dirá: ―(...) nós não somos nada nesta vida.‖

Logo, a posição de soberania dessa personagem expressa valor no momento em que ela lidera religiosamente a irmandade de negros, fato que a faz reproduzir o padrão da FD1. No entanto, ao sair dessa posição e retomar seu lugar de mestiça perante a sociedade tubiacanguense, a FD2 se torna sua realidade.

Para uma personagem altiva como ela foi, no decorrer da novela, sua fala pode ser lida como uma punição, ou seja, no final da novela ela é posta em seu lugar, o da sujeição social diante do domínio branco, fato que a inscreve numa FD2.

Através desses posicionamentos deparamos com uma personagem que, a princípio, se enquadraria numa formação discursiva de reconhecimento do lugar de superioridade, FD1, que se autoafirma enquanto indivíduo/ser humano. Mas que, também, se revela sob uma forma libertária de expressão cujo teor sugere uma FD feminista. Porém, esse não é o centro de nossa análise. No entanto, torna-se interessante apreender que a dispersão de certos enunciados nos propicia um

16 Norton Nascimento é o ator que representa Wotan na trama de Aguinaldo Silva e outros.

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diálogo com determinados acontecimentos, e estes nos remetem a um jogo interdiscursivo. Observe o plano histórico acerca da ascensão feminina brasileira:

Nos anos 1980 o movimento de mulheres no Brasil era uma força política e social consolidada. Explicitou-se um discurso feminista em que estavam em jogo as relações de gênero. As ideias feministas difundiram-se no cenário social do país, produto não só da atuação de suas porta-vozes diretas, mas também do clima receptivo das demandas de uma sociedade que se modernizava como a brasileira. Os grupos feministas alastraram-se pelo país. Houve significativa penetração do movimento feminista em associações profissionais, partidos, sindicatos, legitimando a mulher como sujeito social particular. (SARTI, 2004, p. 42).

A circunstância histórica acima decorre do mesmo período temporal próximo ao da criação da telenovela, fato que nos permite inferir que a novela viabiliza certos assuntos em voga na atualidade, como as drogas (novela , 2001), a corrupção (novela , 2008), o feminismo dos anos 80 (novela Fera ferida, 1993) etc.

A telenovela, assim, se estrutura sob representações que singularizam a formação social brasileira contemporânea. Entretanto, no que se refere à questão racial, isso fica muito aquém. Engrácia, no final dessa trama, recebe uma punição pela ―insolência‖ de ser altiva e desejar o poder (os padrões sociais acerca da raça reforçam as raízes da supremacia branca, o agenciamento formativo midiático não permite a desmistificação do sujeito de cor e esse Outro acaba por ser sempre o inferior).

Sob os aspectos levantados, Engrácia, primeiro, apresenta um discurso que a enquadra em um momento de soberania, dado sustentado pela FD1. Agora, no que diz respeito a ela como negra, na interação com os brancos, o processo é outro, já que prevalece o discurso empregado pela FD2, a igualdade de direitos dessa senhora desaparece. Os valores do sujeito de cor só têm importância entre eles, nisso o branco não interfere, como no caso da irmandade. Contudo, a classe dominante não deixa que o discurso do outro (negro) se propague, e se o faz, o estereotipa, como vemos no discurso de Ilka quando se rebela contra Engrácia no momento em que esta lhe nega ajuda: ―(...) o que não falta nessa cidade é quem pratique o catimbó...‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993)

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Por esses indícios, percebemos que essa personagem se posiciona sob uma FD1 e uma FD2; logo, de modo estrutural trazemos a forma composicional dessas FD‘s.

→ Pré-construído: inferioridade racial/superioridade branca e/ou do outro

FD FD2: Inferioridade racial/FD1: superioridade racial

→ Interdiscurso: darwinismo social (escravagista)

Engrácia, em um dado momento da trama, retoma o seu lugar de inferioridade, assumindo a FD2, através de um mundo controlado pelos preceitos da cultura e identidade colonialista. O sujeito discriminado e/ou inferiorizado, nesse âmbito, não é qualquer um; são precisamente os afrodescendentes que participam de um contexto específico, o da irmandade, e têm como líder Engrácia que, a partir desse plano social, dirige e exibe essa congregação como um gueto – lugar onde são confinadas certas minorias por imposições econômicas e/ou raciais.

Diante desses apontamentos, percebe-se que a personagem Engrácia, de Lima Barreto, se constrói sob a mansidão e a submissão perante os homens, retratando uma época retrógrada, com uma representação da mulher passiva, destinada a satisfazer o marido, dado que valida o posicionamento dela em uma FD2.

Por sua vez, a Engrácia de Fera ferida surge mostrando outra face, atuando fortemente sobre o grupo de negros que a rodeia; porém, a representação hegemônica da cultura branca apaga as raízes da africanidade propostas pela narrativa e estereotipa negativamente a retratação que a irmandade negra poderia vir a ter nesse contexto ao transformá-la num gueto, propiciando a ocorrências das FD1 e FD2.

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Lembramos que, quando algo da ordem da identidade negra surge na telenovela, como a Irmandade de negros de Tubiacanga, isso aparece como reivindicação de lugar de poder, e não de identidade de um povo. O comportamento da personagem Engrácia nos direciona para essa projeção negativa acerca de um fato que mereceria uma melhor abordagem. Assim, torna-se interessante pontuar que a telenovela surge como um suporte que serve ao entretenimento, típico da cultura de massa, que não se preocupa em despertar a consciência crítica do espectador.

6.5 Joaquim dos Anjos: caracterização

Voltamos, agora, o olhar para Joaquim, pai de Clara, da narrativa de Barreto, como se pode verificar:

Romance: Clara dos Anjos

Caracterização do sujeito de ficção

Personagem Cor Ambiente Espaço Participação (Etnia)

Joaquim pardo- Nenhuma ascensão Subúrbio do Rio Secundária claro social/Boa conduta moral / de Janeiro Simpático

Quadro 10: Caracterização de Joaquim (Romance)

Joaquim dos Anjos, pai de Clara, era um homem simples, nascido nos arredores de Diamantina. Tinha em seus traços uma pele mais clara; era alto, ombros quadrados e musculatura forte: ―Apresentava um nariz grosso, quase chato e a maçã do rosto saliente.‖ (BARRETO, 1998, p. 42). Ele se considerava músico. Era tocador de flauta, e ainda, arriscava-se compondo valsas, tangos e acompanhamentos de modinhas17.

17 Modinhas – trata-se de um estilo musical romântico que surgiu pelos idos do século XVIII na Europa, contudo toma feição própria em terras brasileiras.

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Ainda jovem foi para o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor, tornou- se carteiro e casou-se com Engrácia, com quem teve a filha Clara.

Um dos traços mais simpáticos do caráter de Joaquim dos Anjos era a confiança que depositava nos outros, e a boa fé. Ele não tinha, como diz o povo, malícia no coração. Não era inteligente, mas também não era peco; não era sagaz, mas também não era tolo; entretanto, não podia desconfiar de ninguém, porque isso lhe fazia mal à consciência. Não se diga que, às vezes, não recebesse certos conhecimentos com reservas e cautelas; tal coisa, porém, era rara, e gracioso era estar já prevenido de antemão com o sujeito. Em geral, fosse quem fosse, ele acolhia com simpatia, de braços abertos. (BARRETO, 1998, p. 88 – destaques do autor).

Joaquim, com os seus cinquenta anos de vida, acreditava na bondade humana, tinha pouca instrução, embora algum conhecimento sobre as coisas do mundo. Não era, também, um homem religioso, entretanto, não dispensava o batismo dos filhos na igreja Católica Apostólica Romana. Foi assim que procedeu com Clara e os demais filhos que haviam falecido.

Joaquim carregava consigo a ―artinha‖ de música, isto é, sabia noções elementares dessa arte. Entretanto, não levou adiante os ensinamentos musicais da filha Clara.

Esse personagem era um sujeito trabalhador e provedor do sustento da casa. Era Joaquim, também, que tomava todas as decisões administrativas e/ou de outra ordem que a família necessitava.

Já Joaquim de Fera ferida traz as seguintes singularidades, observe:

Novela: Fera ferida

Caracterização do sujeito de ficção

Personagem Cor Ambiente Espaço Participação (Etnia)

Joaquim Negro Nenhuma ascensão Cidade de Coadjuvante social/Boa conduta moral/ Tubiacanga Simpático

Quadro 11: Caracterização de Joaquim (Novela)

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É do ator Antônio Pompeo a responsabilidade de dar vida a Joaquim dos Anjos. O personagem é um carteiro simpático e trabalhador, pai dedicado e marido leal. O personagem não tem muito destaque, vive à sombra da esposa. Compartilha com a esposa o destino de Clara, que será manter-se virgem como Nossa Senhora e, assim, liderar a Irmandade.

Como Joaquim, de Lima Barreto, esse personagem toca flauta, além de compor valsas e tangos. Na obra de Barreto, o melhor amigo de Joaquim é Marramaque. Na novela criada por Aguinaldo Silva e outros, o sujeito que exerce com Joaquim esse elo de amizade é Afonso Henriques, um poeta que vivia a boemia intensamente, encenação realizada pelo ator Otávio Augusto. Eles algumas vezes se arriscam a musicar os poemas de Henriques, e se divertem bebendo no bar de Chico da Tirana. Outro amigo fiel é o coveiro Orestes, representação do ator Claudio Marzo e, sempre que pode, Joaquim ajuda o companheiro.

6.6 Joaquim dos Anjos: análise

O foco, nesse instante, recai sobre o personagem Joaquim dos Anjos presente na narrativa de Lima Barreto. Esse personagem é retratado pelo narrador como um sujeito simpático e de boa fé. Não tinha ―malícia no coração‖ e ―não podia desconfiar de ninguém, porque isso lhe fazia mal à consciência‖. (BARRETO, 1998, p. 88).

Segundo Pêcheux, o sentido das palavras é determinado pelas posições ideológicas numa certa conjuntura social e histórica. Diante disso, observe o trecho abaixo, revelando o pensamento de Joaquim em relação ao modo de vida que ele crê ser adequado para sua filha Clara.

EUe O seu ideal na vida não era adquirir uma Narrador: personalidade, não era ser ela, mesmo ao lado do pai ou do futuro marido. (...). Não imaginava as catástrofes imprevistas da vida, que nos empurram, às vezes, para onde nunca sonhamos ter de parar

(BARRETO, 1998, p. 89)

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Para esse senhor sua filha deveria ‖(...) adquirir uma personalidade, não era ser ela, mesmo ao lado do pai ou do futuro marido. (BARRETO, 1998, p. 89). Assim, a jovem deveria servir, antes de tudo, ao pai e, depois, obedecer ao marido, ou seja, a mulher nascera para servir ao lar, casar e ter filhos, fato que, implicitamente, se funda sob o patriarcalismo e, talvez, sob o machismo, coisas normais para a época vivida por esse personagem. A noção patriarcal se constitui por regras de descendência que concedem ao lado masculino todo e qualquer poder sobre os demais que o cercam. Sob essa concepção, o homem se instaura numa posição de poder, é o ser da virilidade, e nessas circunstâncias, acaba por se fixar discursivamente sob o padrão estabelecido pela FD1. Assim, tal posicionamento discursivo, parece-nos ser assimilado por um negro, Joaquim, no que se refere à autoafirmação do ser, mais precisamente, a do sujeito do sexo masculino, enquanto membro de uma sociedade e chefe de família. Nessa situação, o negro acaba por assimilar um ideário, que a princípio, caberia apenas à sociedade branca.

Contudo, Joaquim sabia que a condição do negro era desfavorável no meio em que vivia, validando a ocorrência da FD2, como poderemos ver pelas expressões, ‖(...) mas não à filha, como fazia, porque, no tocante a esta (...) admitindo tacitamente que ela estava fadada ao destino das "outras‖.‖ (BARRETO, 1998, p. 93), como mostrado abaixo:

EUe Estendia essa sua confiança à sua mulher, no que Narrador: tinha razão; mas não à filha, como fazia, porque, no tocante a esta, precisava contar com a crise da idade, a estreiteza de sua educação doméstica e a atmosfera de corrupção com que o meio a envolvia, admitindo tacitamente que ela estava fadada ao destino das "outras".

(BARRETO, 1998, p. 93 – destaques meus)

Joaquim se coloca vigilante em relação a sua filha Clara, e reconhece a condição social da jovem, sob a evidência de uma FD2 ―(...) fadada ao destino das "outras‖.‖ (BARRETO, 1998, p. 93). Dessa forma, o personagem deixa subentendido o infortúnio que as moças de cor teriam em seu futuro, diante disso, Joaquim teme pelo envolvimento de sua filha com Cassi Jones, um sujeito branco.

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No próximo segmento, através da voz do narrador, que expõe o pensamento de D. Margarida, conheceremos o posicionamento dessa senhora acerca da família de Joaquim:

EUe Gostava muito da família do carteiro; mas, no seu Narrador: íntimo, julgava-os dóceis demais, como que passivos, mal armados para a luta entre os maus e contra as insídias da vida.

(BARRETO, 1998, p. 129 – destaques meus)

A representação enunciativa acima expõe, implicitamente, que a subserviência é algo imanente aos ascendentes de Joaquim dos Anjos, evidenciando a FD2 como padrão comportamental desses indivíduos, conforme indicado pelo enunciado: ―(...) julgava-os dóceis demais, como que passivos, mal armados para a luta entre os maus e contra as insídias da vida.‖ (BARRETO, 1998, p. 129). Margarida Weber por ser uma estrangeira evoca um discurso discricionário em relação às outras etnias, como já mostrado no subtítulo 5.1 ―O circuito externo e interno de Clara dos Anjos‖, do capitulo 5, que se enquadra sob a representação proposta pela FD1 – ―Embora nascida em outros climas e cercada de outra gente, o seu inconsciente misticismo humanitário, herança dos avôs maternos, que andavam sempre às voltas com a polícia dos czares, fê-la logo se identificar com a estranha gente que aqui veio encontrar.‖ (BARRETO, 1998, p. 128-129).

Ainda, no que diz respeito a Joaquim, o narrador revela que: ―Joaquim dos Anjos não tinha capacidade intelectual para tanto...‖ (BARRETO, 1998, p. 93) e ―Agora, porém, e mesmo há vários anos, estava em plena posse do seu ―buraco‖, como ele chamava a sua humilde casucha‖ (BARRETO, 1998, p. 15 – destaques do autor). As considerações anteriores descrevem as circunstâncias vividas por Joaquim, reiterando a inscrição deste na FD2, levando-nos a perceber que o personagem se estabelece na narrativa à margem do social, e que sua intelectualidade e posição social são extremamente modestas.

Esse personagem, então, aceita sua condição de subalternidade através das regras ditadas por uma sociedade cujos preceitos são da ordem do colonialismo.

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A ideologia de uma classe dirigente, sabemos disso, faz-se adotar em grande parte pelas classes dirigidas. Ora, toda ideologia de combate inclui como parte integrante dela mesma, uma concepção do adversário. Ao concordar com essa ideologia, as classes dominadas confirmam, de certa maneira, o papel que lhes foi atribuído. O que explica, entre outras coisas, a relativa estabilidade das sociedades; a opressão é, por bem ou por mal, tolerada pelos próprios oprimidos. (MEMMI, 1977, p. 83).

Joaquim, nessa situação, consente, de maneira silenciosa, com os padrões impostos pela sociedade na qual vive. Sob uma extensão estrutural, temos as FD‘s analisadas a partir de seus elementos constitutivos.

→ Pré-construído: inferioridade do negro/superioridade branca

FD FD2: Inferioridade racial/ FD1: Atribuição do lugar de inferioridade do outro e superioridade racial

→ Interdiscurso: darwnista social (escravocrata)/patriarcal

A superioridade dos homens brancos, representada pela FD1 – e em algumas ocasiões apropriada pelos negros, revela que a ordem social, naquele momento, não proporciona ao homem de cor, como Joaquim, alguma possibilidade de expansão, seja cultural, social etc., fato que situa esse sujeito sobre enunciações instauradas sob a FD2. Diante disso, o personagem aceita o padrão imposto pela FD1 como algo irrevogável, fazendo-o se inscrever, então, no pólo contrário a esse discurso, sob a sujeição, a submissão social, devido a sua cor e condição social.

Em Fera ferida, Joaquim dos Anjos nos é apresentado pelo ator Antonio Pompeo, sujeito de cor, simples e que esbanja simpatia por onde passa em seu trabalho de carteiro. Esse personagem atua de maneira muito aquém as aparições de sua esposa Engrácia e/ou as de sua filha Clara. Joaquim, geralmente, fica à

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sombra da esposa, mulher decidida, que trabalha fora de casa e, ainda, lidera uma irmandade negra, conforme mostrado anteriormente.

A ―realidade‖ 18 fornecida a Joaquim enquanto sujeito de seu discurso pode ser percebida pela subordinação, pela apatia em relação ao Outro, instituindo a FD2, como mostrado pelas expressões, ―(...) homem não apita... eu sou forçado a aceitar as decisões da Engrácia (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993). Observe o trecho abaixo.

((Joaquim dos Anjos está no bar de Chico da Tirana19 e parece preocupado. Dona Maria dos Remédios20 observa Joaquim e caminha até ele e lhe pergunta se já não é hora dele se arrumar (vestir) para o noivado de sua filha. Ele responde para Dona Maria dos Remédios)):

Joaquim: - Noivado da minha filha???... Será o noivado da minha filha ou o noivado da futura rainha da irmandade?

Maria dos - Nós estamos falando da mesma pessoa, né::... Remédios: seu Joaquim? Quando a Clarinha casar ela vai ser coroada rainha da irmandade.

Joaquim: - Acontece o seguinte, Dona Remédios... é que no noivado da futura rainha da irmandade eu não posso me meter.. é uma irmandade só de mulheres... homem não apita... eu sou forçado a aceitar as decisões da Engrácia. Agora quanto ao futuro da minha filha eu posso me meter sim! Eu não posso admitir que esse casamento torne a Clara infeliz pelo resto da vida, dona Remédios!

Maria dos - Eu concordo com o senhor. Eu acho que é Remédios: uma injustiça a Clarinha sacrificar a dela pra::... pra seguir essa tradição...

Joaquim: - Que pai seria eu, dona Remédios, se permitisse um sacrifício desses? Só eu sei... em nome da harmonia e a paz da família o quanto eu não aguentei da Engrácia... Eu fiz tudo pra não me aborrecer com ela... eu não sou uma pessoa de brigar, mas ela não entendeu... foi intransigente... fez pé firme nesta

18 Reconhecida como um sistema de evidências e de significações geralmente conhecida, aceita e experienciada. (PECHEUX, 1997, p. 162). 19 Chico da Tirana é vivido por . 20 Representação de Luiza Thomé.

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história desse noivado aí...

Maria dos - Mas noivado não é casamento... ainda tá em Remédios: tempo de evitar o pior...

Joaquim: - A senhora tá certa, dona Remédios.... eu vou falar com a minha filha que vou ficar do lado dela...mesmo que isso signifique a desunião da nossa família... e tem uma coisa se ela não quiser levar esse noivado pra frente eu vou ficar do lado dela... (...) ((Dona Remédios vibra com a decisão do Joaquim)).

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaques meus)

Joaquim pode ser reconhecido como um sujeito passivo, que acata a maioria das decisões de sua mulher Engrácia – praticante extemporânea da FD1, como demonstra a expressão: ―... Eu fiz tudo pra não me aborrecer com ela...‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993). Esse personagem se assume por atitudes inertes, exceto ao se tratar da felicidade de sua filha; nessa ocasião, sua sujeição desaparece – ―(...) com a minha filha que vou ficar do lado dela... mesmo que isso signifique a desunião da nossa família...‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993).

O padrão comportamental de Joaquim se exterioriza sob a base da classe dominante, dado que lhe confere um espaço de inferiorização, evocado pela FD2. Lembremo-nos do episódio no qual o delegado de Tubiacanga não aceita a intervenção de Joaquim na prisão de Orestes e diz: ―- Você desacata minha autoridade que eu lhe enquadro como cúmplice, seu crioulo safado!‖ – uma ilustração do poder da FD1.

Diante de tais apontamentos, arriscamo-nos a inferir que Joaquim se estabelece sob a FD2 de inferioridade racial; afinal, ele se conforma com a subalternidade que a sociedade de Tubiancaga lhe confere.

Estruturalmente, a FD2 a que o personagem se submete se constitui por:

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→ Pré-construído: inferioridade do negro e/ou pobre

FD FD2: Inferioridade racial

→ Interdiscurso: darwinismo social (escravagista)

Pelo contexto apresentado, percebe-se uma inversão de papéis entre a relação homem e mulher: quem dita as regras agora é a mulher, e não o homem, fato que revela a superioridade feminina. Em outros termos, podemos dizer que a mulher se vale de uma FD1, como circunscrita ao âmbito do poder, e o homem se submete a uma FD2, como o reconhecimento do poder. Logo, a filiação discursiva de Joaquim se constitui sob as bases impostas pela ideologia da classe dominada.

Em ambas narrativas, a de Barreto e a de Silva, Linhares e Moretzsohn, Joaquim surge com um discurso resignado, passivo. No entanto, em Fera ferida há um apagamento do sujeito enquanto chefe de família, fato decorrente, talvez, da contemporaneidade da situação enunciativa e inexistente na narrativa barretiana, momento em que o homem se estabelece enquanto provedor e líder no seio familiar.

A troca de posições entre homens e mulheres é explicitada nesse âmbito, no qual a autonomia feminina aparece de forma destemida e nada ingênua. Enquanto isso, os anos vinte do século passado, marcam a superioridade masculina, época da escritura de Lima Barreto. Entretanto, a racialização ainda vigora nas duas narrativas, mesmo que sob óticas distintas. Em Clara dos Anjos a discriminação racial permeia toda a obra e em Fera ferida isso só aparece pela voz de alguns sujeitos ficcionais.

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6.7 Cassi Jones: caracterização

Veremos nessa instância a caracterização de Cassi Jones, personagem da obra barretiana, em contraposição ao personagem de Aguinaldo Silva e outros. Vejamos, primeiro, a construção de Lima Barreto:

Romance: Clara dos Anjos

Caracterização do sujeito de ficção

Personagem Cor Ambiente Espaço Participação (Etnia)

Cassi Jones Branco Apresenta ascensão Subúrbio e Principal/Anti-herói social/Baixa conduta Centro do Rio moral/Trapaceiro de Janeiro

Quadro 12: Caracterização de Cassi Jones (Romance)

Cassi Jones era considerado o ―mestre suburbano do violão, o dedo da modinha‖. (BARRETO, 1998, p. 42). Tinha por volta dos trinta anos, ―branco, sardento, insignificante, de rosto e corpo‖. (BARRETO, 1998, p. 23).

Contava com dez defloramentos em seu currículo de galanteador. Ele tirava proveito de suas vítimas, praticando o crime da sedução de forma implacável, ―(...) simulava amor, escrevia detestavelmente cartas langorosas, fingia sofrer (...)‖ (BARRETO, 1998, p. 35). Porém, as moças que sucumbiam aos seus encantos possuíam pouca ou quase nenhuma destreza mental: ―(...) a estreiteza de inteligência e a reduzida instrução (...)‖ (BARRETO, 1998, p. 35). Essa proposição enuncia a alienação na qual as jovens seduzidas por Cassi se encontravam. Em outros termos, podemos dizer do lugar de submissão à FD2 que as jovens sustentavam.

Era o filho protegido de Dona Salustiana Baeta Azevedo. Esta sempre livrava Cassi de suas encrencas. Seu pai, Manuel Borges de Azevedo, não aceitava as trapalhadas do filho.

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O nome do rapaz era Cassi Jones de Azevedo. O sobrenome Jones ele usava desde os vinte anos. Alguns diziam que era porque ele o achava bonito, mas sua mãe, em certas crises de vaidade, se dizia descendente de um tal lorde Jones, cônsul da Inglaterra em Santa Catarina. Cassi ainda tinha duas irmãs: Catarina e Irene.

O narrador expõe esse personagem denominando-o como um ―tipo bem brasileiro‖. Observe:

EUe Nunca suportara um emprego, e a deficiência de Narrador: sua instrução impedia-o que obtivesse um de acordo com as pretensões de muita coisa que herdara da mãe; além disso, devido à sua educação solta, era incapaz para o trabalho assíduo, seguido, incapacidade que, agora, roçava pela moléstia. A mórbida ternura da mãe por ele, a que não eram estranhas as suas vaidades pessoais, junto à indiferença desdenhosa do pai, com o tempo, fizeram de Cassi o tipo mais completo de vagabundo doméstico que se pode imaginar. É um tipo bem brasileiro.

(BARRETO, 1998, p. 29 – destaques meus)

O narrador ironiza a tipicidade do caráter do brasileiro ao associá-lo a Cassi Jones, além de sugerir que o brasileiro é um ser dado à vadiagem. Tendo em vista que o sujeito brasileiro se constituiu pelo processo de mestiçagem entre os portugueses, os negros e os indígenas, e a obra Clara dos Anjos foi escrita num período pós-abolição, em cujo imaginário social vigente prevaleciam às leis darwinistas sociais. A sociedade dessa época havia eliminado o escravo; no entanto, a designação para negro e/ou preto ainda era algo que se pautava sob um valor degenerativo, a ponto de estabelecer a legalidade a favor da ideia de ―vadiagem‖ a fim de controlar esse sujeito, que não tinha para onde ir – ―o colonizado é obrigado, para viver a aceitar-se se como colonizado‖ (MEMMI, 1977, p. 84). No entanto, sabemos que Cassi não é descendente de negro. Contudo, carrega o estigma que é próprio do negro, pois mesmo não sendo dessa descendência, ele envolve-se com as negras, e parece extrair disso toda a peculiaridade do sujeito de cor, inclusive a vadiagem, característica que a sociedade atribui ao negro.

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Já o Cassi Jones de Fera ferida se apresenta da seguinte maneira:

Novela: Fera ferida

Caracterização do sujeito de ficção

Personagem Cor Ambiente Espaço Participação (Etnia)

Cassi Jones Branco Apresenta ascensão social/ Cidade de Coadjuvante Baixa conduta Tubiacanga moral/Trapaceiro

Quadro 13: Caracterização de Cassi Jones (Novela)

A representação de Cassi Jones é desempenhada por . O personagem é um jovem que não gosta de trabalhar, mas é ávido por dinheiro. Ele parece não ter amor por ninguém, exceto por sua mãe e por ele mesmo. Ao se envolver com Clara dos Anjos, Cassi mostra seu lado sensível. Contudo, a ganância do jovem é maior do que qualquer sentimento.

Cassi pertence a uma família renomada da cidade de Tubiacanga. Mesmo sem posses e/ou dinheiro, continua tendo status, posição que Salustiana acredita ser imprescindível para a continuidade de uma estirpe.

Esse personagem apresenta o caráter trapaceador (de Cassi), o que pode ser notado em um dado momento da narrativa, quando ele para em frente à casa de Clara e começa a rir ao olhar o número da casa da moça,171, e fala: ―- Logo esse número... é coincidência demais!‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993). Essa situação deixa subentendido, a partir do número em questão, a forma que Cassi irá proceder em relação a Clara dos Anjos ao longo da trama, tendo em vista que o artigo 171, segundo o código penal brasileiro, contido no Decreto Lei nº 2.848/40, implica em: ―Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento: Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.‖ 21. Cassi irá

21 Cf. Portal Jusbrasil. Disponível em: . Acesso em: 23 jan. 2012.

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se aproveitar de Clara, conduzirá a jovem ao prazer e depois a abandonará, mantendo a vantagem da relação havida para si.

6.8 Cassi Jones: análise

Essa última sessão contemplará as FD‘s que dizem respeito a Cassi Jones, personagem inscrito na obra barretiana e na de Silva, Linhares e Moretzsohn.

Salustiana, mãe de Cassi, como veremos abaixo, apresenta em seu discurso o ideário estabelecido pela superioridade entre raças, representação estabelecida pela FD1 – ―A mãe (...) tinha as suas presunções fidalgas, repugnava-lhe ver o filho casado com uma criada preta (...)‖ (BARRETO, 1998, p. 24).

EUe Em geral, as moças que ele desonrava eram de Narrador: humilde condição e de todas as cores. Não escolhia. A questão é que não houvesse ninguém, na parentela delas, capaz de vencer a influência do pai, mediante solicitações maternas. A mãe recebia-lhe a confissão, mas não acreditava; entretanto, como tinha as suas presunções fidalgas, repugnava-lhe ver o filho casado com uma criada preta, ou com uma pobre mulata costureira, ou com uma moça branca lavadeira e analfabeta.

(BARRETO, 1998, p. 24 – destaques meus)

A expressão ―ter presunções fidalgas‖ assume a conotação de nobreza e pertencimento a uma classe dominante. Tal reprodução por parte de Salustiana, se apoia em algo que Memmi denomina como complexo de Nero do colonizador, ou o ―papel do usurpador‖ – ao aceitar-se como colonizador, este, assim como o Outro (colonizado) consentem (mutuamente) que o privilégio e o mérito fazem parte da essência do colonizador. (MEMMI, 1977, p. 56). Esse lugar social confere o poder ao colonizador e com ele a opressão sob o colonizado. Nesse âmbito, o colonizador alardeia suas próprias virtudes, as defende com demasiada obstinação, levando a

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acreditar que estas são dádivas heroicas, e consequentemente, esse é o fado da fortuna. (MEMMI, 1977, p. 58).

À mãe de Cassi, Salustiana ―(...) repugnava-lhe ver o filho casado com uma criada preta, ou com uma pobre mulata costureira, ou com uma moça branca lavadeira (...)‖ (BARRETO, 1998, p. 24). A frase em questão demonstra a discriminação que Salustiana assume ter em relação às pessoas de cor, direcionando a um conjunto de atitudes que reportam àquilo que se pode dizer a partir de uma FD1.1.

Esse trecho, ainda, nos mostra o comportamento de Cassi: ―(...) as moças que ele desonrava eram de humilde condição e de todas as cores.‖ (BARRETO, 1998, p. 24). Essa conduta toma como base a discursivização presente na FD1.2, pois esse sujeito não se importava em ultrajar o Outro, em geral algum desprovido, para obter vantagens para o seu próprio bem, o que nesse caso se faz sob a ordem da sexualidade.

Aparentemente, essas moças sonhavam com o grande amor, e claro, geralmente não tinham ninguém para confortá-las, como se pode observar pelo enunciado: ―A questão é que não houvesse ninguém, na parentela delas, capaz de vencer a influência do pai, mediante solicitações maternas.‖ (BARRETO, 1998, p. 24). A condição de subalternidade da mulher de cor negra, assim como o desfavorecimento econômico, propicia a Cassi reproduzir o padrão discursivo proposto pela FD1.2, pois o desamparo dessas jovens e/ou senhoras promove a sua insegurança.

Tendo em vista, ainda, a FD1.2, posição que atribui a desqualificação das negras e/ou pobres, permitindo o tratamento preconceituoso no que diz respeito à sexualidade, trazemos o excerto abaixo, visando corroborar tal atitude enunciada por Cassi. A construção frasal ―Escolhia bem a vítima‖ aponta para tal ocorrência.

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EUe Escolhia bem a vítima, simulava amor, escrevia Narrador: detestavelmente cartas langorosas, fingia sofrer, empregava, enfim, todo o arsenal do amor antigo, que impressiona tanto a fraqueza de coração das pobres moças daquelas paragens, nas quais a pobreza, a estreiteza de inteligência e a reduzida instrução concentram a esperança de felicidade num Amor, num grande e eterno Amor, na Paixão correspondida.

(BARRETO, 1998, p. 35 – destaques meus)

As vítimas de Cassi nascem sob o caráter da marginalização devido à condição da cor e da falta de recursos, como se nota pela proposição: ―(...) das pobres moças daquelas paragens, nas quais a pobreza, a estreiteza de inteligência e a reduzida instrução (...)‖ (BARRETO, 1998, p. 35). Sabedor dessas particularidades sobre as moças com quem se envolve, o comportamento de Cassi difunde a FD1.2, demonstrada pela ingenuidade de suas vítimas, em contraponto à sagacidade que este apresenta em seu caráter.

Cassi consuma o seu desejo em relação à mulata Clara, tem-na em seus braços e, logo após isso, desaparece da vida da jovem deixando-a grávida. Nessa situação, a FD1.2 se revela, mais uma vez, a partir da seguinte situação promovida por Cassi: ―Catava com cuidado as vítimas entre as pobres raparigas que pouco ou nenhum mal lhe poderiam fazer (...)‖. (BARRETO, 1998, p. 126). É o que observaremos pelos trechos em realce:

EUe Ele contava, já não se dirá com o apoio, mas com Narrador: a indiferença de todos pela sorte de uma pobre rapariga como ela.Devia ser assim, era a regra. Nessa indiferença, nessa frouxidão de persegui-lo, de castigá-lo convenientemente, é que ele adquiria coragem para fazer o que fazia. Além de tudo, era covarde. Não cedia ao impulso do seu desejo, de seu capricho, por uma moça qualquer. Catava com cuidado as vítimas entre as pobres raparigas que pouco ou nenhum mal lhe poderiam fazer, não só no que toca à ação das autoridades, como da dos pais e responsáveis.

(BARRETO, 1998, p. 126 – destaques meus)

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A construção do personagem Cassi revela o caráter desprezível deste: ‖Além de tudo, era covarde.‖ (BARRETO, 1998, p. 126). Esse sujeito busca mulheres socialmente desamparadas, pois elas não tinham como denunciá-lo; assim, ele saía impune de suas obscenidades, pronto para atuar novamente, garantindo seu prazer e a motivação de sua autoestima, dado que legitima a FD1, assim como, a FD1.2: – ―Não cedia ao impulso do seu desejo, de seu capricho, por uma moça qualquer.‖ (BARRETO, 1998, p. 126). Contudo, Cassi não se atrevia a um envolvimento com mulheres de uma classe superior à dele, visto que sua intelectualidade não permitia, pois era ―mal-educado, bronco e analfabeto‖. (BARRETO, 1998, p. 112).

Parece-nos que aquilo que diz respeito ao personagem Cassi envolve a ignomínia, como se observa no discurso do pai em relação ao jovem: ―Esse biltre sem senso moral algum; esse assassino, esse desgraçado que leva a corromper todas as moças e senhoras que lhe passam debaixo dos olhos, não o quero mais aqui, não o quero mais na minha mesa.‖ (BARRETO, 1998, p. 28).

Sendo assim, a partir da composição estrutural para as FD‘s elencadas, observe seus constituintes:

→ Pré-construído: superioridade branca e inferioridade do negro e/ou pobre

FD FD1: superioridade / FD1.2: discriminação sexual

→ Interdiscurso:darwinismo social (escravagista)

A FD1 na qual Cassi se enquadra o constitui como um sujeito que se reveste de superioridade racial. Ele não apenas tem o reconhecimento de seu lugar superior, como sabe atribuir, com transparência, inferioridade às jovens as quais ele seduz. Logo, Cassi se expõe sob um contexto que o exalta enquanto um ser social representante da classe branca.

Entretanto, os dizeres acerca de Cassi nos levam a evidenciar outra formação discursiva: a FD1.2, cujo teor envolve a discriminação sexual, que pode ser

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explicada por aquele que atribui papeis secundários e subalternos às mulheres de cor negra, fato que Cassi realiza em toda a trama.

O personagem Cassi Jones, portanto, é exposto a partir de atributos disfóricos (elementos de valoração negativa), mas, por pertencer a uma classe mais abastada e ser um sujeito branco dentro de um contexto que promove a superioridade desse tipo de indivíduo, as conotações negativas a seu respeito parecem se apagar.

Cassi Jones, de Fera ferida, também é um sujeito de pouco melindre, branco, representado pelo ator Marcos Winter. Traremos brevemente o contexto pelo qual Cassi é exposto, no intuito de situar melhor sua aparição na trama em questão.

Cassi retorna a Tubiacanga após sua mãe, Salustiana, desviar o dinheiro de Demóstenes22 (prefeito dessa cidade e cunhado de Salustiana), para a conta bancária dela, com o objetivo de pagar a fiança de Cassi. O rapaz e a mãe venderam oitenta carros importados sem os possuir, dando um golpe fraudulento no mercado.

Ao chegar à cidade, Cassi e Salustiana se hospedam na casa de Demóstenes, mas logo arquitetam um plano para que Cassi fique na casa de Emiliano Cerqueira Bentes, mais conhecido como Major Bentes, representado por , para assim lhe roubarem seu ouro. Salustiana diz a Cassi que ele irá se passar por filho de Emiliano, mas no decorrer da trama o jovem descobre ser filho legítimo do Major Bentes.

Para Cassi sair da casa de Demóstenes sem levantar maiores suspeitas sobre o motivo dessa saída, o moço irá se envolver com Clara dos Anjos. Ele faz isso buscando despertar a fúria de Linda Inês, juntamente com a de seu pai. A filha de Demóstenes, Linda Inês, representada pela atriz , tem muito apreço pela família dos Anjos – a mãe de Clara, Engrácia, trabalha na tecelagem dessa jovem. Observe:

Salustiana: - Eu vi como a Linda Inês ficou indignada, essa gente daqui é muito apegada aos pobres que os rodeiam... eles pensam que eles são gente

22 O ator que representa Demóstenes é Jose Wilker.

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também... esses camponeses, domésticos.... ahh... quando Demóstenes souber vai querer lhe dar uma lição de moral... vai ser duro... e aí você faz como eu mandei!

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha)

É sob essas reflexões que começamos a entender a postura assumida por Cassi e daqueles que o rodeiam, membros da sociedade de Tubiacanga. O contexto evoca a presença da FD1 sob a voz de Salustiana ao dizer: ―(...) é muito apegada aos pobres que os rodeiam... eles pensam que eles são gente também...‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993). Para a mãe de Cassi, ser pobre e/ou negro é um fardo para o ser, ou melhor, torna-o não-humano.

Em um momento da trama, Cassi discute com a mãe sobre os relacionamentos dela, e essa diz:

Salustiana: - Não seja hipócrita, Cassi Jones! Você não anda por aí com suas mulatinhas, pobres, suas vagabundinhas de beira de estrada... Não faz com essas bugras o que você bem entende? Alguma vez eu me meti? Dei palpite... te condenei? Então?

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha)

Salustiana, mais uma vez, admite seu preconceito de cor a partir da fala: ―Você não anda por aí com suas mulatinhas, pobres, suas vagabundinhas de beira de estrada... Não faz com essas bugras, o que você bem entende? Alguma vez eu me meti? (...)‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993). Tal situação pressupõe o descaso que Cassi demonstra ter com as mocinhas de cor com as quais se envolve, evidenciando a FD1.2.

Sob essa questão, recordemo-nos que a preferência pela mulher negra no imaginário brasileiro se constrói a partir do Brasil escravocrata, momento de rigorosas proibições morais para a união interracial. Ela é uma forma de manter a estabilidade do grupo dominante e favorecer o comércio sexual entre brancos e

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escravas. Coisifica-se a negra e a torna meio de fomento sexual entre jovens rapazes do engenho, preservando assim a sexualidade das mulheres brancas. (PRAVAZ, 2003). A concupiscência pela negra e/ou mulata, como se pode observar, tornou-se uma apropriação consentida entre a classe dominante brasileira.

A família de Clara, nesse ínterim, descobre que ela se envolveu com Cassi, como mencionado no subtítulo 6.2 ―Clara dos Anjos: análise‖, do capítulo 6. A mãe da jovem, Engrácia, vai à procura do rapaz e o encontra na casa de Major Bentes, observe:

Cassi: - O que é isso? Como é que você entrou aqui? Posso saber? Quem deu ordem pra você entrar aqui? ANIMAL! ((Cassi grita por Animal – o fiel escudeiro do Major Bentes, uma espécie de ―faz tudo‖))

Engrácia: - Ele não está! Eu fiquei lá fora vigiando para ter certeza que você estava sozinho. O que eu tenho pra te dizer é degradante demais! E acho que você não vai gostar de ter testemunhas...

Cassi: - Animal!

Engrácia: - Não adianta tentar escapulir. Você vai ouvir tudo que eu tenho pra te dizer... aqui ou lá na praça... tanto faz é só escolher... Eu vim aqui pra dizer tudo o que eu penso... você é ordinário, safado e desprezível!

Cassi: - Um momento! Um momento só! Se você veio até aqui pra falar da sua filha...

Engrácia: - Eu não vim aqui pra fala da Clara... ela foi apenas mais uma de suas vitimas! Eu vim aqui pra falar de sua vida! O que é que você faz rapaz? O que é que você constrói?

Cassi: - Olha aqui minha senhora...

Engrácia: - Não! Não responda! Não perca o seu tempo... você não faz nada! Álias! Álias você faz sim! Você espalha tudo de ruim que tem dentro de você por aí! Desonra, indecência, desonestidade e maldade! Você por acaso acha que isso faz de você homem? Não faz!? Isso faz de você o pior dos covardes porque suas vítimas são indefesas demais... são inocentes demais e decentes demais até pra descobrir o que tá por

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trás desse rosto seu bonitinho! A sorte é que um miserável como você não se contenta só com crime... e uma dia, você vai perder muito mais do que minha filha perdeu, do que tanta outras perderam! E eu vou ficar rezando... rezando sabe pra que? Pra você ter remorso! E pra esse remorso consumir sua paz o seu corpo e a sua vida! Essa vai ser a sua expiação! E você nem imagina quanto sofrimento isso vai lhe trazer!

Cassi: - A Clarinha...

Engrácia: - Você cala essa boca! E não pronuncia o nome da minha filha! Você pode ter tirado a pureza dela... a pureza do corpo dela, mas a alma dela... a alma dela continua casta e sem maldade! E a santa... a santa olha por ela! OLHA POR ELA e vai dar a ela um dia... um amor de verdade... um amor que vai fazer a minha filha esquecer essa imundície toda que foi ter conhecido você!

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaques meus)

O personagem Cassi é construído a partir de certos emblemas desprezíveis para a conduta humana e o dizer de Engrácia reitera isso: ―Isso faz de você o pior dos covardes porque suas vítimas são indefesas demais... são inocentes demais e decentes demais até pra descobrir o que tá por trás desse rosto seu bonitinho!‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993). A fala de Engrácia confirma o padrão de comportamento de Cassi, determinado pela FD1.2, como já mostramos em outros momentos. Suas atitudes se desenvolvem sobre o padrão dessa formação discursiva, validando a intolerância e o abuso entre etnias diferentes, sobretudo em relação às mulheres.

Nota-se, desde logo, que a exteriorização discursiva que envolve a enunciação do personagem se faz através da superioridade social, ou seja, a FD1 e suas ramificações FD1.1 e a FD1.2. Esse sujeito abusa da condição submissa de Clara, a seduz e a abandona, já que Cassi vai embora de Tubiacanga com parte da fortuna de Major Bentes, que ele subtrai de maneira fraudulenta.

Estruturalmente, as FDs que envolvem o comportamento de Cassi se constituem a partir dos seguintes elementos:

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→ Pré-construído: superioridade branca e inferioridade do negro e/ou pobre

FD FD1: superioridade / FD1.2: discriminação sexual

→ Interdiscurso: darwinista social, escravagista

Nesse jogo linguageiro, percebe-se que a ideologia da superioridade branca ainda permeia o discurso vigente da atualidade retratada pelo contexto telenovelístico, sendo ainda evidente o abuso contra as pessoas de cor e pobres.

O Cassi Jones construído por Lima Barreto buscava mulheres socialmente desfavorecidas, frágeis, justamente por saber que elas não iriam puni-lo, tampouco a sociedade, que acabava por ser conivente com seus atos, devido à sua condição social. O personagem de Fera ferida também desfruta desses privilégios. O estigma social da pobreza e da cor ainda vigora em ambas as tramas, a contemporaneidade não apagou o sentimento negativo face aos negros.

A adaptação da obra barretiana para a novela de Aguinaldo Silva e outros deveria/poderia subverter aquilo que foi dado como um retrato de época no romance, tendo em vista que a telenovela, como produção cultural de massa, é capaz de controlar, em determinados horários, as emoções, entre outras questões relevantes para a vida social de milhares de telespectadores (MOTTER, 2003). Diante disso, temas sociais recorrentes na sociedade brasileira, como racismo, alcoolismo, droga etc., teriam a possibilidade de um tratamento não estereotipado por parte desse gênero.

Motter, em seus estudos, traz a hipótese de que ―(...) a telenovela não é neutra, alienada ou engajada enquanto gênero. Ela será uma coisa ou outra, dependendo das propostas do autor, da emissora e do segmento de público considerado.‖ (MOTTER, 2003, p. 34). Se assim fosse, teríamos um instrumento comunicacional agindo de modo implacável na realidade brasileira, podendo ser um

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meio de intervenção poderoso para certos temas sociais, mas claro, se esse veículo não tendesse a certos jogos de poder, e ainda, se mostrasse em suas tramas telenovelísticas abordagens que favorecessem o debate e/ou desenvolvessem o pensamento crítico acerca dos contextos delicados com os quais vivemos socialmente, como alguns já mencionados.

No entanto, não é isso que acontece, nas narrativas de telenovelas; geralmente, tratam insatisfatoriamente as temáticas sociais a que se propõem, como a racialidade presente em Fera ferida, fato que nos leva a reiterar a difusão do racismo velado no Brasil. Mas, sob esse aspecto, lembremos que a função social da telenovela não é combater certos problemas sociais, ou mesmo educar; o entretimento é seu objetivo principal.

6.9 Entrelaçamentos discursivos

Diante dessas tramas, seguidamente da temática eleita para tal estudo, a racialidade, apreende-se que determinadas classes sociais acreditam em sua superioridade, instaurando então certas crenças de que alguns nascem para dominar, enquanto outros vêm ao mundo para servir. Nesse sentido, esse contexto apresenta a histórica supremacia ideológica do sujeito branco em contraposição à do negro.

Sob essa perspectiva, a personagem Clara dos Anjos, de Lima Barreto, é reconhecidamente o estereótipo da mulata, pobre, com pouco estudo e sonhadora.

Já a Clara, de Aguinaldo Silva e coautores continua a se entregar a seus devaneios. É mulata, mas não é tida como ignorante, afinal, estudou em colégio interno; no entanto, é alheia às coisas do mundo. Observa-se, por esses contextos, que a contemporaneidade contribuiu para a ascensão feminina, mas não para o rompimento da discriminação para com a mulata.

Essa concepção preconceituosa se apoia em saberes coletivos advindos de um tempo retrógrado, como se pode observar pelos estudos de Schwarcz:

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Os mestiços exemplificavam, segundo essa última interpretação [a concepção Poligenista do século XIX, cuja crença preconizava a existência de distintos centros de criação, estabelecendo as diferenças físicas e morais dos indivíduos], a diferença fundamental entre-as raças e personificavam a ―degeneração‖ que poderia advir do cruzamento de ―espécies diversas‖. Com respeito a essa noção, conviviam, inclusive, argumentos variados. Enquanto Broca defendia a ideia de que o mestiço, à semelhança da mula, não era fértil, teóricos deterministas como Gobineau e Le Bon advogavam interpretações opostas, lastimando a extrema fertilidade dessas populações que herdavam sempre as características mais negativas das raças em cruzamento. (SCHWARCZ, 1993, 56 – destaques da autora).

O mestiço, nessa instância, representa a degeneração social, sendo colocado numa posição de objeto e/ou coisa, como no caso de Clara, um objeto sexual.

A mulher brasileira, no contexto da obra de Lima Barreto, é a encarnação da submissão. A construção da personagem Engrácia legitima essa realidade e demonstra o assujeitamento do discurso masculino sobre o feminino.

De maneira divergente, a mulher revelada por Aguinaldo Silva e coautores se projeta rumo a novos posicionamentos sociais, a exemplo de Clara, tendo uma educação formal. Já Engrácia trabalhava fora de casa, estava à frente de uma irmandade, buscando legitimar/resgatar suas raízes, mesmo que de maneira arbitrária e solitária, pois a irmandade apresentava regras muito rígidas: só aceitavam a participação de negros e/ou seus descendentes. Isso parece gerar um desconforto, fazendo que outros sujeitos de ficção discriminem esse grupo, até mesmo o telespectador que assistiu a tal fato.

A condição do homem mostrada em Clara dos Anjos é a da soberania. O branco se projetava como dominador, a exemplo Cassi Jones; já o negro, mesmo com toda sua subalternidade, enquanto dono de seu lar era tido como altivo, ditando as regras para a sua família, como mostrado pelo contexto apresentado por Joaquim dos Anjos.

Em Fera ferida, a supremacia masculina fica aquém. Joaquim se revela de forma resignada; contudo, Cassi ainda se mantém superior, mas não pela virilidade de homem, e sim, por sua ascensão social.

Diante de todas essas menções, podemos dizer que a nossa projeção analítica, de certa forma, pode acontecer devido à possibilidade interdiscursiva, levando em consideração os campos externos discursivos.

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Nesse sentido, a noção de formação social, que converge para uma formação ideológica e discursiva, nos levou a padrões discursivos materializados sob a dissimulação da transparência da linguagem literária e telenovelística. E essa possibilidade surgiu através da instituição de certos poderes, como a mídia, o estado etc., que, por sua vez, determinam como o sujeito pode e deve atuar na sociedade. Logo, a formação discursiva garantiu o lugar discursivo e sua forma-sujeito em suas diversas posições-sujeito constituindo o funcionamento do discurso, além de nos conduzir para a apreensão de certos sentidos e não outros. De forma estrutural, adaptamos o quadro de Grigoletto (2005), tendo em vista essas considerações. Observe:

FORMAÇÃO SOCIAL FORMAÇÃO DISCURSIVA

E   E S Formações ideológicas S Forma-sujeito P P A A Ç Ç

O O Racista, Machista, Patriarcal... Carteiro, Doméstica, Do lar,

Burguês, Prefeito, Delegado, (...) D

H I Relações de poder institucionais Processo Discursivo I S

S C T  U Ó R R Literatura/Telenovela S I Estado, Igreja, Mídia, (...) I Sistema de relações C V (representações interdiscursivas) O O Lugar social Posições-sujeito

  Personagens Eu Superior/ Tu Inferior/ Trabalho, Escola, Casa,(...) Ele preconceituoso e/ou imparcial/inexistente

Quadro 14: Formação Social e Discursiva – Adaptação do quadro de Grigoletto (2005).

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No quadro acima, na dimensão do espaço histórico, percebe-se que a formação social converge para certas formações ideológicas como o racismo, o machismo, o patriarcalismo etc. Essas ideologias se fundam sob determinadas relações de poder e se institucionalizam por meio dos veículos comunicacionais que, nessa pesquisa, se revelam pela literatura e mídia televisiva. Assim, esses meios de comunicação se inserem num lugar social que irá determinar a posição do sujeito na sociedade a qual vive.

O espaço discursivo traduz a formação discursiva em que o sujeito se inscreve, pressuposto por sua filiação discursiva e ideológica. Nesse momento, entra em jogo o processo discursivo através de seu sistema de relação intradiscursivo e interdiscursivo revelando as posições que o sujeito irá assumir, nesse caso, especificamente, a condição de superioridade ou inferioridade racial, revelado pela temática racial privilegiada pelos objetos em questão.

Destarte, as narrativas apresentadas nos permitem apreender a existência de situações preconceituosas vividas pelos personagens eleitos nesse estudo. A ideologia preconizadora, nesses contextos, retrata uma sociedade cujo coletivo ainda mantém a prerrogativa inferiorizante em relação ao negro. A trama contemporânea deveria reler essas questões, buscando desmitificar e/ou explicar o motivo para tal racialização. Porém, a nosso ver, o tempo apenas descaracterizou a contundência racial, estabelecendo a cordialidade com o outro de cor.

A linguagem aqui apresentada reproduz e difunde as relações de preconceito com o negro/mulato/mestiço, ocorrendo apenas um ajustamento temporal e circunstancial acerca do papel marginal desses sujeitos no contexto social. As épocas mudam, mas o pensamento retrógado acerca das diferenças humanas, não.

Nesse sentido, percebe-se que ambas as narrativas expressam, em seus contextos, uma divisão na linguagem, no sentido barthesiano:

É tempo de dar nome a essas linguagens sociais recortadas na massa idiomática e cuja estanqueidade, por mais que tenhamos sentido, de início, como existencial, acompanha, através de todas as trocas, todos os matizes e complicações que é licito conceber, a divisão e a oposição das classes; chamemos essas linguagens de socioletos (...) (BARTHES, 2004, p. 125).

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O autor explica que o campo socioletal se estabelece por meio da divisão, por uma separação ―inexpiável‖, sendo que nesse âmbito deve ocorrer a análise/pesquisa. (BARTHES, 2004, p. 126). Segundo Barthes, o trabalho com o socioleto dispõe de um processo avaliativo, que desde embrião, se faz sob o conflito dos grupos e das linguagens, pois ao confrontar esses aspectos o analista entende que existe uma dualidade constituída através ―da contradição social e da fratura do sujeito sábio‖ (―sujeito suposto saber‖ segundo os termos lacanianos) (BARTHES, 2004, p. 126)

Assim, para descrever cientificamente as linguagens sociais (socioletos), há que se fazer uma ―avaliação política fundadora‖ (BARTHES, 2004, p. 127 – destaque do autor), que se estabelece a partir de dois grupos socioletais: os discursos ―no poder‖, considerados pelo autor como aqueles que se constituem à ―sombra‖ do poder – os discursos encráticos; e outros que ocorrem ―fora do poder‖, nos quais o poder torna-se inexistente – os discursos acráticos. (BARTHES, 2004, p. 127).

Para Barthes na atualidade, as sociedades se estabelecem pela ―divisão mais simples da linguagem‖ que ―diz respeito à sua relação com o poder‖ (BARTHES, 2004, p. 135). Apropriando-nos de tal postulado, podemos traduzi-lo nessa instância pelas FD‘s analisadas em nossa proposta de análise, a partir do contraste que estas apresentam – FD1 e FD2, representado respectivamente pela linguagem encrática e a linguagem acrática.

A FD1 de superioridade racial se enuncia sob a marca do poder, tendo como instrumento transmissor o movimento da literatura e da mídia telenovelística, denotando o discurso encrático. Já, a FD2, que surge na contramão discursiva, pois se constitui fora do poder, pode ser demonstrada pelo discurso acrático, assumido pelos grupos discriminados, ou a eles imposto. O discurso encrático, designado por nós, nesse momento, como a FD1, ―age por opressão‖ (BARTHES, 2004, p. 130), e nesse estudo perpetua a soberania do branco sobre os homens de cor. A linguagem acrática opera pela ―sujeição‖ (BARTHES, 2004, p. 130), representada aqui pela FD2. Esse discurso se destina a ―constranger‖ o outro, emergindo daí, por exemplo, os estereótipos em relação ao negro.

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Um socioleto, de acordo com Barthes (2004, p. 131), não apresenta o teor de intimidar somente o que dele se exclui (social e/ou culturalmente), ele coage também aqueles que o partilham, fato que para nós se assemelha à referência de interpelação/assujeitamento. Segundo o conceito de FD,

(...) os indivíduos são ―interpelados‖ em sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam ―na linguagem‖ as formações ideológicas que lhes são correspondentes. (PÊCHEUX, 1997, p. 162 – destaques do autor).

Estruturalmente, o socioleto, no âmbito discursivo, comporta ―rubricas obrigatórias‖ que, segundo Barthes, são maneiras estigmatizadas pelas quais ―a clientela do socioleto não pode falar (não pode pensar)‖. (BARTHES, 2004, p. 131). Nesse sentido, ele tem uma perspectiva de língua que se constituiu não por aquilo que lhe é permitido dizer, mas por aquilo que nos obrigam a dizer: ―Em outras palavras, como toda língua, o socioleto implica o que Chomsky chama de ―competência‖, em cujo seio de variações de ―performance‖ tornam-se estruturalmente insignificantes (...)‖ (BARTHES, 2004, p. 132 – destaques do autor).

Entendemos, sob essa perspectiva, que há uma linguagem sem/fora do poder (FD2, discurso acrático) e aquela do poder (FD1, discurso encrático), surgido através das relações intersubjetivas, implicando na construção positiva ou negativa acerca das identidades, posicionamentos sociais e, até mesmo, sobre a noção de verdade, ou de certo e errado, que se estabelecem sob o que pode e/ou aquilo que se será dito sobre o negro no Brasil.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta tese, no que diz respeito a racialidade, as determinações de ordem histórica apresentada pela obra de Lima Barreto inter-relacionam com as ideologias presentes no contexto vivido pelo autor e, obviamente, em sua criação Clara dos Anjos. No que concerne a releitura da narrativa barretiana pela telenovela, constatamos que isso não acontece na mesma proporção, essa mídia reproduz ideologias necessárias a ela em dado momento; as condições socioideológicas que são reproduzidos nesse contexto, não se colocam a serviço de nenhuma causa, podemos dizer que a telenovela, assim como outros formatos televisivos ―(...) será o que quer ser, se conseguir se vender extraordinariamente‖. (SANTIAGO, 2008, p. 121).

Sob essa perspectiva a autoria de Barreto o eleva a uma condição de autenticidade acerca da crítica histórica e cultural brasileira, afinal, ele não se dobra ao arranjo das relações dominantes, e escreve com maestria acerca dos problemas sociais e raciais brasileiros, fato que fica muito aquém na mídia televisiva.

No que se refere a literatura, entendemos que o envolvimento com esta se torna pertinente e importante na construção do intelecto humano na medida em que nos mostra as faces do desconhecido (algo passado, um possível futuro, ou outro estado de coisas) através de sua relação ficção e realidade efetiva do leitor. Esse é um processo que pode ser transformador na vida do indivíduo. Além disso, com sua capacidade atemporal, a linguagem literária fornece elementos para entendermos as construções históricas, sociais e culturais da humanidade, podendo, por exemplo, a (re)criar arquétipo cultural de determinado tempo. A fim de corroborar esse pensamento tomamos a reflexão de Silviano Santiago:

(...) a literatura oferece uma outra e alternativa compreensão da atualidade, buscando formas de conhecimento que escapam ao campo epistemológico comum aos seus contemporâneos. A obra literária começa a se realizar ao apontar para futuros leitores que tentarão – do patamar histórico onde estiverem – conhecer os alicerces desse patamar. (...) Todo texto literário, por mais alheio que seja aos valores do passado, movimenta direta ou indiretamente formas de tradição que são o palco onde se desenrolam os acontecimentos presentes que real e virtualmente se representam no temo anacrônico e no passado atópico da escrita. (SANTIAGO, 2008, p. 121- 122).

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A óptica da ordem do intelecto, da história e ou outra fonte pedagógica, não é, necessariamente, algo com o que a telenovela se comprometa; ela apresenta uma função social própria do divertimento. Nesse sentido, em seu jogo intertextual, a trama Fera ferida destitui a obra de Barreto de seu principal elemento axiológico – a racialidade.

A perda de valor de culto de uma obra de arte, ao mesmo tempo em que dessacraliza, torna-a alheia à sua inscrição na tradição, ou seja, a perda de um lugar onde ela era te(le)ologicamente objeto de ritual. A obra de arte no momento em que passa a ser produzida tecnicamente perde algo, mas ganha, como consequência, os infinitos lugares e contextos da sua reprodução. E se perde o valor culto, também se refuncionaliza passando a ter uma práxis social leiga (...). (SANTIAGO, 2008, p. 114).

A narrativa barretiana constrói uma tese acerca da vida do negro, do pobre e/ou sujeito periférico. Ainda crítica os costumes, observem como o autor mostra o destino das mulheres de cor: ―(...) observou a atmosfera de corrupção que cerca as raparigas do nascimento e da cor de sua afilhada; e também o mau conceito em que se têm as suas virtudes de mulher. A priori, estão condenadas;‖ (BARRETO, 1998, p. 42), ou dos que vivem no subúrbio e enfrentam a mudanças dos valores sociais burgueses republicanos pelo qual transcorria a vida cotidiana – ―Mais ou menos é assim o subúrbio, na sua pobreza e no abandono em que os poderes públicos o deixam.‖ (BARRETO, 1998, p. 74). Nesse contexto, por exemplo, a mulher nasceu para ser do lar. Assim, a literatura de Barreto de certa forma questiona e/ou mostra as versões ―politicamente simplificadas de nacionalidade‖ (SANTIAGO, 2008, p. 177).

Já a telenovela não apresenta tal fato, ela joga com o assunto que lhe interessa, no tempo e momento que são pertinentes, como o modismo que pode tornar atraente o merchandising telenovelístico. Na época de Fera ferida a imagem feminina remete a um contexto liberal, mostrando a mulher que trabalha fora, independente, auto-suficiente etc. E pode comandar uma irmandade, como a releitura que Aguinaldo e coautores propõem para a personagem Engrácia. Essa personagem da atualidade não é submissa como a na versão barretiana, ela se constrói exatamente de forma oposta, no entanto, quando se relaciona com os brancos, a personagem retoma sua condição negra, pois alguns a discriminam,

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como Salustiana, e ela não o direito a réplica, tanto que será Engrácia e não Clara23 que dirá ―a gente não vale nada nessa vida!‖. Com tal assertiva a personagem assinala seu destino e reforça o racismo imposto pela época colonial.

Os personagens barretianos aqui analisados fazem parte de um Brasil pós- escravidão, e como mestiços e/ou descendentes africanos esses são tidos como parias sociais. Na modernidade de Aguinaldo Silva e coautores vemos o deslocamento das estruturas tradicionais modernas, a nação hoje se preocupa, não com a cultura indígena, ou mestiça, mas com a cultura do rico, do pobre assalariado, da burguesia etc. Sobre isso, Harris comenta que no Brasil não se discrimina um brasileiro somente por sua cor. Segundo o autor, branco ou negro, sendo rico, com boa educação, tem um lugar diferenciado na sociedade. Agora, se esse sujeito é pobre, seja branco ou preto, sem educação, ele não é nada, está à margem do que as instituições sociais preconizam como ideal.

O produto desta qualificação pela educação e pelos recursos financeiros determina a identidade de classe de alguém. É a classe e não a raça de uma pessoa que determina a adoção de atitudes subordinadas ou superordinadas entre indivíduos específicos, em relações face a face. Não há grupos raciais contra os quais ocorra discriminação. Há, ao contrário, grupos de classe. A cor é um dos critérios da identidade de classe; mas não é o único critério (HARRIS, 1967, p. 61).

Tal posicionamento conceberá o racismo atual em outra perspectiva, no Brasil, por exemplo, sob o tom da cordialidade conjugado ao perfil sociofinanceiro do indivíduo e o seu tom de pele, quanto mais branco, menos discriminação.

Ao discorrermos sobre o campo interacional, observamos que as máximas discursivas acerca da racialização não permitem ao negro o direito a uma réplica, ele não consegue negociar em prol de sua legitimidade, a sua imagem está sempre ameaçada por um conjunto de aspectos que o coloca no patamar da iniquidade.

A priori, acreditamos que uma interação regida por contratos comunicacionais deveria neutralizar qualquer tipo de conflito racial. Tendo em vista que o contrato, segundo Mendes (2006, p. 242) ―constitui uma forma de regulação de conflitos em função de um esforço de comunicabilidade e de preservação das divergências‖. O

23 Na obra barretiana será Clara dos Anjos que dirá: ―Nós não somos nada nesta vida!‖

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que se percebe nos objetos, a princípio, não é bem isso. A racialização presente nesses contextos parece emergir a partir de (pre)conceitos que não são construídos na interação, mas talvez, no campo ideológico, pois as premissas existentes sobre o negro advêm de uma formação social e/ou de um espaço cultural específico, endossado como vimos pelo ideário científico de 1800/1900. ―Quer como Louis Althusser, digamos que somos culturalmente interpelados‖ (CULLER, 1999, p. 114), isto é, por mais que o sujeito não queira reproduzir um estado de coisas, ele ainda carrega uma memória discursiva produto do seu território social, cultural e histórico. A fim de corroborar tal perspectiva Mendes explica que

(...) nenhum falante enuncia apenas em razão da sua própria individualidade, mas, sobretudo em função do lugar social que o determina, assim como nenhum ouvinte interpreta somente a partir de sua própria consciência individual, mas antes em razão de uma intencionalidade socializada. A dimensão histórica do vivido implica uma certa fragmentação da identidade do sujeito, cujo desdobramento configura um conjunto múltiplo de lugares enunciativo e de representações sociais que se relacionam, se contaminam e se contradizem. (MENDES, 2006, p. 271).

A ideologia racial alimenta uma formação discursa de tal caráter, e no Brasil, essa rede de relações racializantes ainda acontece, não só na ficção, mas também na realidade como as mortes de jovens negros, reportagem veiculada pelo Jornal Hoje24 em 2012, a partir do levantamento realizado pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em Brasília, mostrado pelo ―Mapa da Violência - A cor dos homicídios‖ que expõe a diferença entre negros e brancos assassinados no Brasil entre 2002 e 2010. E também, pela revista Trip25, que em abril de 2014 publicou: ―Não existe nada mais perigoso do que ser um jovem negro no Brasil – dos 52.198 mortos por homicídio em 2011 no país mais da metade eram jovens, 71,5% eram negros e 93% eram homens.‖ Essas informações foram divulgadas pelo Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde. Além disso, o mundo presenciou o caso da banana jogada em um campo de futebol europeu para o jogador brasileiro Daniel Alves. Segundo informações da Revista Veja: ―aquele era o

24 Cfe. Portal G1.GLOBO. http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2012/11/quase-35-mil-jovens- negros-foram-mortos-no-brasil-entre-2002-e-2010.html>. Acesso em: 14 mar. 2014. 25 Cfe. Portal Trip. . Acesso em: 04 mai. 2014.

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oitavo caso de racismo nos gramados espanhóis somente na temporada‖. (GAMA, 2014, p. 85).

E o interessante é que o discurso preconceituoso mantém o mesmo status quo do início do século, ―a mulatinha‖, ―as mocinhas de cor‖, ―o macaco‖, entre outros termos são utilizados desde outrora, mas soam com naturalidade na era global. Hoje nos situamos num contexto de (pós)modernidade, mas com os problemas que ainda temos a respeito de raça, por exemplo, vemos que na verdade, não superamos as adversidades do colonialismo.

Na atualidade, encontramos paradigmas que deveriam colocar os sujeitos em um patamar de igualdade, mas isso não acontece, a ideia do multiculturalismo de uma comunidade imaginada isenta a classe dominante das exigências sociais políticas e culturais que ―transbordam do círculo estreito da nacionalidade econômica‖. (SANTIAGO, 2008, p. 57). Essa perspectiva, infelizmente subverte o que se propõe para uma nação, e mantém o indivíduo numa situação de interpelação pelo que delineia ser o multicultural, quer dizer, há nesse contexto uma espécie de assujeitamento daquele que é de cor, imigrante pelo que prega esse ―pseudo-multiculturalismo‖ sobre aquilo que querem para a nação.

As diferenças étnicas, linguísticas religiosas e econômicas, raízes de conflitos intestinos ou de possíveis conflitos no futuro foram escamoteadas a favor de um todo nacional íntegro, patriarcal e fraterno, republicano e disciplinado, aparentemente coeso, e às vezes democrático. (SANTIAGO, 2008, p. 57).

Se quisermos fazer a diferença para atenuar o racismo simbólico ou discursivo, temos que começar a refletir sobre nosso processo histórico para desmistificar a questão das diferenças, e pensar que ―o poder do nível ideológico se elabora e se reforça à medida do desenvolvimento da luta, das manobras do adversário, das vitórias e dos reverses‖. (FANON, 2005, p. 170). Novamente, apropriaremos do dizer de Fanon para mostrar que as mudanças podem ocorrer, mas ―só o engajamento maciço dos homens e das mulheres em tarefas esclarecidas e fecundas dá conteúdo e densidade a uma consciência‖. (FANON, 2005, p. 234). Talvez, com esses esclarecimentos possamos aceitar o multifacetado e suas divergências, buscando uma convergência para a nação.

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ANEXO

Fonte: Preti (2000).