Revista África[s], v. 04, n. 07, 142 p., jan./jun. 2017 ISSN 2446-7375

Revista África(s) Núcleo de Estudos Africanos — NEA Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras – PPGEAFIN Universidade do Estado da Bahia — UNEB, Campus I, Salvador

Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Estudos Africanos e Representações da África Universidade do Estado da Bahia — UNEB, Campus II, Alagoinhas Núcleo de Estudos Africanos — NEA Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras – PPGEAFIN Unidade Acadêmica de Ensino a Distância (UNEAD), Campus I Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Av. Engenheiro Oscar Pontes s/n, Calçada, (Edf. Jequitaia) – 5º andar – Salvador/BA CEP: 40411-220

Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos e Representações da África Departamento de Educação, Campus II Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Rodovia Alagoinhas-Salvador BR 110, Km 3 – CEP 48.040-210 Alagoinhas/BA Caixa Postal: 59 – Telefax.: (75) 3422-1139 Endereço eletrônico: [email protected]

Editores gerais deste número: Prof. Dr. Ivaldo Marciano de França Lima Prof. Ms. Cândido Domingues

Capa e Editoração eletrônica: Lino Greenhalgh

Revisão linguística: Prof. Dr. Ivaldo Marciano de França Lima Profa. Dra. Alyxandra Gomes Nunes

Revisão (resumos inglês): Profa. Dra. Alyxandra Gomes Nunes

Foto da capa (Mahomed Bamba): Virginia Maria Yunes

Sítio de internet: www.revistas.uneb.br www.revistas.uneb.br/index.php/africas

Ficha Catalográfica — Biblioteca do Campus II/UNEB – Bibliotecária: Maria Ednalva Lima Meyer (CRB: 5/504)

África(s): Revista do Núcleo de Estudos Africanos, do Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras – PPGEAFIN e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos e Representações da África, Universidade do Estado da Bahia – v1, (v 04 - n.1, jan./jun., 2017) – Salvador/Alagoinhas: UNEB, 2017 v.; il. Semestral ISSN 2446-7375 online

1.Negros -História 2.África - Civilização 3. Brasil -Civilização – Influências africanas

4.Negros – Identidade racial 5. Cultura afro-brasileira

CDD305.89

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É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora. Todos os direitos reservados ao Núcleo de Estudos Africanos, ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras (PPGEAFIN) – e ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos e Representações da África da UNEB. Sem permissão, nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados. Revista África(s), do Núcleo de Estudos Africanos, do Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras (PPGEAFIN) - e do Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Estudos Africanos e Representações da África, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus II, AIagoinhas, ISSN 2446-7375 online, v. 4, n. 7, jan./jun. 2017. Disponível em: www.revistas.uneb.br/index.php/africas

Editores: Docentes: Prof. Dr. Ivaldo Marciano de França Lima Profa. Dra. Celeste Maria Pacheco de Andrade Prof. Dr. Moiseis de Oliveira Sampaio (UNEB/DEDC II) Prof. Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho Prof. Dr. Detoubab Ndiaye Prof. Ms. Cândido Domingues (UNEB/DEDC II) Prof. Dr. José Jorge Andrade Damasceno (UNEB/DEDC II) Prof. Dr. Ivaldo Marciano de França Lima Amarino Queiroz (UFRN) (UNEB/DEDC II) ConselhoBas’Ilele Malomalo científico: (UNILAB/CE) Profa. Dra. Joceneide Cunha dos Santos Carlos Liberato (UFS) (UNEB/DCHT XVIII) Celeste Maria Pacheco de Andrade (UNEB, UEFS) Prof. Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho Christian Muleka Mwema (UNISUL) (UNEB/DEDC I) Eduardo de Assis Duarte (UFMG) Prof. Dr. Moiseis de Oliveira Sampaio Elio Ferreira (UESPI) (UNEB/ DCH IV) Elio Flores (UFPB) Eliziário Souza Andrade (UNEB) Coordenação do Programa de Pós-Graduação Felix Odimiré (University Ife/Nigeria) em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Flavio García (UERJ) Culturas Negras PPGEAFIN: Flávio Gonçalves dos Santos (UESC) Gema Valdés Acosta (Universidad Central de Las Villas Prof. Dr. Ivaldo Marciano de França Lima — UCLV/Cuba) (UNEB/DEDC II) Ibrahima Thiaw (Institut Français d´Afrique Noire — Ifan/UCAD/Senegal) Professores permanentes: Isabel Guillen (UFPE) Prof. Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho - UNEB/ DEDC I Jacques Depelchian (UEFS) Prof.º Dr.º Francisco Alfredo Morais Guimarães - UNEB/ DCH I João José Reis (UFBA) Prof. Dr. Ivaldo Marciano França Lima - UNEB/ DEDC II João Lopes Filho (Universidade Pública de Cabo Verde) Prof.º Dr.º José Jorge Andrade Damasceno - UNEB/ DEDC II Júlio Cláudio da Silva (UEA/ AM) Prof.º Dr.º Detoubab Ndiaye - UNEB/ DEDC II Jurema Oliveira (UFES) Prof. Dr. Moiseis de Oliveira Sampaio - UNEB/ DCH IV Leila Hernandez (USP) Prof. Dr. Jackson André da Silva Ferreira - UNEB/ DCH IV Lourdes Teodoro (UNB) Prof.º Dr.º Valter Gomes de Oliveira - UNEB/ DCH IV Luiz Duarte Haele Arnaut (UFMG) Prof. Dr. José Carlos de Araújo Silva - UNEB/ DCH IV Mamadou Diouf (UCAD/Senegal; Columbia University/EUA) Prof.ª Dr.ª Cristiane Batista Da Silva Santos - UNEB/ DEDC XIII Marta Cordiés Jackson (Centro Cultural Africano Prof.º Dr.º Francisco Eduardo Torres Cancela - UNEB/ DCHT XVIII Fernando Ortiz/Cuba) Prof.ª Dr.ª Joceneide Cunha dos Santos - UNEB/ DCHT XVIII Mônica Lima (UFRJ) Prof.ª Dr.ª Juliana Barreto Farias - UNILAB/Campus dos Patricia Teixeira Santos (UNIFESP) Malês (BA) Raphael Rodrigues Vieira Filho (UNEB) Prof.º Dr.º Karl Gerhard Seibert - UNILAB/Campus dos Malês (BA) Rosilda Alves Bezerra (UEPB) Prof.º Dr.º Pedro Acosta Leyva - UNILAB/Campus dos Malês (BA) Roland Walter (UFPE) Prof. Dr. Roberto Mauro Cortez Motta - UFPE Severino Ngoenha (Universidade São Tomás de Moçambique — USTM) Professores colaboradores: Tânia Lima (UFRN) Prof. Dr. Pedro Abelardo Yeda Castro (UNEB) Prof.ª Dr.ª Cecília Soares Youssouf Adam (Unversidade Eduardo Mondlane/ Prof.ª Dr.ª Maria Hilda Baqueiro Paraíso Moçambique) Venétia Reis (UNEB) Apoio: Zilá Bernd (UFRGS, Unilasalle) Universidade do Estado da Bahia — UNEB Reitor: Prof. MS José Bites de Carvalho Coordenação do Programa de Pós- Vice-Reitora: Profa. Dra. Carla Liane Nascimento Santos Graduação em Estudos Africanos e Pró-Reitor de Pós-Graduação: Prof. Dr. Tania Maria Hetkowski Representações da África (PPGEAF): Diretora DEDC II: Profa. Dra. Áurea da Silva Pereira Santos Diretor da UNEAD: Prof. Dr. Jader Cristiano Magalhães de Prof. Dr. Ivaldo Marciano de França Lima (UNEB/DEDC II) Albuquerque Sumário

5 Apresentação – mahomed bamba Ivaldo Marciano

7 Apresentação do dossiê Alessandra Meleiro e Lúcia Ramos Monteiro

14 , Memória e Massacre (1979-1980), de Ruy GUERRA Raquel Schefer

21 Avó e O Jogo, ou o Arquivo Colonial “em Movimento” nos Vídeos de Raquel Schefer Ana Balona de Oliveira

30 As contradições do projeto da nação moçambicana pós- independência no filme Virgem Margarida (2012), de Licínio Azevedo Alex Santana França

46 Em nome do cinema-ação e das utopias terceiro-mundistas: intervenção dos cineastas estrangeiros no cinema moçambicano (anos 70-80) Mahomed Bamba

61 Yaaba, Cinefilia e Realismo sem FRONTEIRAS Lúcia Nagib

71 O consumo audiovisual em Moçambique. Relato de viagem, dezembro de 2016 Mateus Nagime

75 Projecto Instituto Moçambicano: uma montagem de afeto Catarina Simão

87 Soft Power e Cinema Sul Africano: negociação de agendas mutuamente incompatíveis? Paul Cooke

103 Os soldados-narradores e as “placas tectônicas da história”: memória e política nos documentários As duas faces da guerra (2007) e Cartas de Angola (2012) Alexsandro de Sousa e Silva

119 Transnacionalização de talentos e tecnologias no campo cinematográfico: o caso Moçambique Alessandra Meleiro; Mahomed Bamba

126 Zakat in Maroua: the irrelevance models for socio-economy and justice (Northern Cameroon) Ousmanou Adama

141 Objetivo e política editorial

4 Revista África(s), v. 04, n. 07, jan./jun. 2017 Alessandra Meleiro; Lúcia Ramos Monteiro

Apresentação

Mahomed Bamba, por Ivaldo Marciano Conheci Bamba no ano de 2008, mais pre- como intelectual que não se colocava sob cisamente em Feira de Santana, nas depen- as marés das modas acadêmicas. Não pude dências da Universidade Estadual de Feira conversar o tanto que gostaria com este ge- de Santana, por ocasião do VII Seminário nial intelectual marfinense, mas lembro de Brasil – Canadá de Estudos Comparados. algumas das suas colocações postas para al- Era uma atividade do Núcleo de Estudos guém que, naquele já distante 2008, ainda Canadenses, a época coordenado pelo ilus- não pesquisava com tanto afinco sobre as tre colega Humberto Oliveira. Minha ida questões do continente africano. Bamba, ao para este evento foi promovida pelo também discorrer sobre a África, se mostrou crítico ilustre e querido colega Roberto Seidel que ao uso indiscriminado do adjetivo pátrio já integrava os quadros desta universida- de “africano”. Disse-me ele que tal palavra, de. Ele, no afã de contribuir com um evento para determinados contextos, não dizia mui- robusto, na perspectiva intelectual, pinçou to, e que, em muitos casos, era insuficiente nomes de pessoas que considerava (e consi- para definir os diversos povos ou países que dera, eu creio), importantes para integrar o existem no continente em questão. Eu achei evento, que tinha a frente o não menos que- estranho isto, pois “africano” era, até aquele rido Humberto Oliveira, docente do curso de momento, o melhor termo que eu dispunha Letras e membro do programa de pós-gra- para definir tudo o que estava do outro lado duação da egrégia Universidade Estadual de do Atlântico. Feira de Santana. Bamba não via com bons olhos, ao que Era eu apenas um doutorando, e que na me parece, a ideia de uma homogeneidade época estudava os fenômenos da cultura, posta para o continente africano. Também mais precisamente do maracatu nação, ob- era crítico da relação natural entre África jeto ao qual dediquei vários livros e artigos, e a religião, algo que o senso comum cons- todos possíveis de serem vistos (ao menos os truiu com força suficiente para causar es- seus nomes) no meu currículo Lattes. Pois tranhamento em quem pensa o contrário. bem, estávamos todos em Feira de Santana, Qualquer pessoa que não seja “bom leitor” no caso, eu e aqueles que eu conhecia: Sei- de obras sobre o continente africano, terá, del, Brice Sogbossi, Amarino... E em meio eu creio, a impressão de que por lá todos são às atividades de um evento científico, sou praticantes da religião dos orixás, adeptos apresentado a um gentil e sorridente colega, de práticas mágicas e assemelhados. Bamba que falava com um português dotado de um era, portanto, alguém fundamental e impor- sotaque, típico dos que dispõem o francês tante para mostrar aos “neófitos” que o con- como língua nativa. tinente africano é muito mais complexo do Bamba me impressionou bastante em que alguns pensam, e que se há complexida- vários sentidos, seja na condição de homem de entre os pernambucanos, falantes em sua extremamente gentil e educado, que sabia maioria de um só idioma, imaginem então ouvir argumentos contrários aos seus, seja um contexto em que existem mais de duas

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mil línguas distintas, dispostas em pelo me- Que esta homenagem se faça presente e nos seis famílias linguísticas diversas? Sim, ecoe aos quatro cantos, e que as boas lem- mesmo estando na área da comunicação, branças possam vir à tona, pois Mahomed Bamba era também alguém importante para Bamba continua entre nós, sob a forma da os Estudos Africanos. E esta importância vai gentileza que nos influencia, ou de sua ex- além dos seus trabalhos e performances... trema humildade e genialidade. Bamba pode ser descrito também como O dossiê, organizado pelas colegas Ales- um homem e intelectual generoso, que se sandra Meleiro e Lúcia Ramos Monteiro dispôs a dar seu nome para compor o conse- reuniram artigos de pesquisadores que de lho científico de África(s). Seu incentivo foi alguma maneira estiveram juntos com Bam- importante para que naquele ano de 2012, ba. Excetuando o último artigo, que discute quando ainda estávamos, eu, Detoubab e questões alusivas ao sistema de doações e Seidel “conspirando” contra o mundo das caridade no âmbito do islã, comparando-o ideologias e subjetividades, África(s) se tor- com as práticas existentes no norte da Re- nasse uma realidade. Infelizmente Bamba pública dos Camarões, os demais trabalhos não pôde contemplar nosso êxito da cons- desta presente edição versam sobre as ques- trução de nosso programa de pós-gradua- tões alusivas ao cinema no/ou sobre o conti- ção em Estudos Africanos, tendo em vista nente africano, evidenciando assim um dos que seu falecimento ocorreu na madrugada principais vetores do trabalho intelectual do do dia dezesseis de novembro de dois mil e nosso saudoso e inesquecível Bamba. dezesseis. Sim, Bamba não pôde ver muitos África(s), desta maneira, traz a tona uma dos êxitos deste grupo, que hoje se tornou homenagem para aquele que foi o mais bra- maior, sobretudo por ter aprendido com sua sileiro dos marfinenses, e que deixou sauda- generosidade. Contudo, sem querer aludir des de seu jeito sincero, honesto e generoso à homogeneidade do continente africano, de ser. creio que neste momento importa declarar que para alguns povos da África centro oci- Ivaldo Marciano de França Lima, dental, a morte não ocorre da mesma forma Editor da Revista África(s). que entre nós “ocidentais”. A morte, para al- guns destes povos que estão espalhados no que é hoje Angola e RDC, só ocorre quando seu nome deixa de ser pronunciado e sua memória reverenciada. Portanto, ao que me parece, Bamba continua entre nós, presen- te em nosso conselho editorial, e nas nossas mentes, além de figurar neste número de África(s) sob a forma de um dossiê. Bamba dificilmente irá sucumbir ao esquecimento, ao menos enquanto aqueles que o conhece- ram estiverem vivos. Sim, Bamba continua entre nós, presen- te, e agora imortalizado!

6 Revista África(s), v. 04, n. 07, jan./jun. 2017 Alessandra Meleiro; Lúcia Ramos Monteiro

Apresentação do Dossiê sendo o caso de Moçambique aquele que re- cebeu maior atenção dos autores, junto, em Se o cinema continua um terreno fértil para menor medida, com Angola e Guiné-Bissau. todas as experimentações estéticas e militan- Os demais artigos tratam da produção au- tes é porque homens e mulheres atrás da câ- diovisual da África do Sul (analisada em um mera acreditaram e continuam acreditando estudo de Paul Cooke) e de Burkina Faso na emergência de um mundo novo graças à magia das imagens e do som. Com este espí- (mais especificamente sobre o filme Yaaba rito, todas as causas e lutas transcendem as [1989], de Idrissa Ouédraogo, que recebe a fronteiras. atenção de Lucia Nagib), aos quaisretorna- Mahomed Bamba remos em instantes. No momento, nos pa- rece importante sinalizar que, ainda que de Mahomed Bamba nasceu na Costa do Mar- certo modo determinado por uma dose ine- fim, onde se graduou em Letras na Univer- vitável de casualidade, tal recorte não deixa sité Nationale d’Abidjan, em 1992. Quan- de refletir em alguma proporção o escopo do do passou a morar no Brasil, ingressou na trabalho do próprio Bamba, interessado na Universidade de São Paulo (USP), para um peculiar articulação entre nacionalismo e in- mestrado em Linguística Geral e Semiótica ternacionalismo que preside a fundação do (1997) e depois o doutorado em Cinema e cinema moçambicano1, dedicado a análises Estética do Audiovisual (2002). Professor a filmes das mais variadas latitudes africa- da Faculdade de Comunicação da Univer- nas, entre os quais burquinenses2, e estu- sidade Federal da Bahia (Facom/UFBA), dioso dos modelos de recepção da peculiar desde 2009 Bamba também fazia parte do indústria cinematográfica da África do Sul. Programa de Pós-graduação em Comunica- Nos últimos anos, trabalhos significati- ção e Cultura Contemporâneas (Pós Com) vos foram dedicados a produções audiovi- e ministrava disciplinas na área de cinema. suais pós-coloniais oriundas de países afri- Bamba faleceu na madrugada do dia 16 de canos, seja no campo dos Estudos Africanos, novembro de 2015, aos 48 anos, deixando no dos Estudos Pós coloniais ou no dos Es- uma trajetória brilhante e de valiosa contri- tudos Cinematográficos, embora, no contex- buição na pesquisa em audiovisual, sobretu- to brasileiro, ainda se careça de mais pesqui- 3 do no que diz respeito aos cinemas africa- sa sobre o assunto. No âmbito mundial, os nos e estudos de recepção. Se a seleção de 1 A tradução de um de seus textos a esse respeito (BAMBA, 2012), foi incluída neste dossiê: “Em artigos que compõem este dossiê especial nome do cinema-ação e das utopias terceiro- em sua homenagem não poderia pretender mundistas: intervenção dos cineastas estrangei- restituir a envergadura e a amplitude dos in- ros no cinema moçambicano (anos 70-80)”. 2 Trabalhados por exemplo em um artigo que dis- teresses de Bamba, ela se inspira na liberda- cute experiências migratórias e desejo de alteri- de e na curiosidade com que o pesquisador dade, em que Bamba discorre sobre Moi et mon trabalhava, desde um assumido entre-luga- Blanc (2000), de Pierre Yaméogo, e Paris mon paradis (2010), de Éléonore Yameogo (BAMBA, res, fruto de uma identidade construída em 2011). trânsito (CESAR; MONTEIRO, 2016, p. 3). 3 Devem ser lembradas as coletâneas organiza- das por MELEIRO (2007), MELEIRO; BAMBA A maior parte dos textos aqui reunidos (2012) e OVERHOFF FERREIRA (2014), o dos- (sete, de um total de nove artigos, além de siê “Africanidades” publicado pela revista on-li- um ensaio visual) dedicam-se a pensar o ci- ne Rebeca (MONTEIRO; CESAR, 2016), além de mostras e festivais de cinema que favorecem nema de ex-colônias portuguesas em África, a circulação de filmes, não raro em companhia

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cinemas africanos “francófonos” e “anglófo- Cineastas estrangeiros haviam acompa- nos” – voltaremos a discussão dessa nomen- nhado a luta armada movida pelos movi- clatura ao final desta introdução –têm rece- mentos independentistas, incluindo a FRE- bido maior atenção dos escritos acadêmicos. LIMO (Frente de Libertação de Moçambi- No que se refere às filmografias relativas às que), o MPLA (Movimento para a Libertação antigas colônias portuguesas em África, no- de Angola) e o PAIGC (Partido Africano para ta-se ainda a falta de pesquisa crítica sobre a Independência na Guiné e Cabo Verde), e cinemas e coproduções das antigas colônias a colaboração internacional permanece du- portuguesas em África. Este dossiê preten- rante os primeiros anos pós-independência. de contribuir para minimizar esse déficit Os filmes que resultam dessa experiência no trabalho universitário, apresentando um descrevem os impactos históricos, políticos corpo crítico e informativo de pesquisas so- e sociais do colonialismo e da guerra civil bre o assunto. sobre as populações de diferentes países do Sete dos artigos que compõem esta edi- continente africano. ção apresentam uma perspectiva pluralis- Falar da presença de cineastas estrangei- ta sobre cinema em territórios que estive- ros nos cinemas africanos é, antes de tudo, ram sob o domínio histórico de na falar de deslocamentos motivados política África, destacando os contextos culturais e ideologicamente, acompanhados de uma e socioeconômicos do cinema, em um pe- implicação pessoal com a prática cultural e o ríodo na história africana em que a questão cinema em gestação no país em questão. Tal do inter-desenvolvimento de “nação e ci- prática de engajamento de cineastas e inte- nema” se revelou crucial. Os ensaios abor- lectuais estrangeiros nas utopias cinemato- dam diversos temas ligados à produção gráficas de um determinado país do tercei- cinematográfica de quatro países: Angola, ro-mundo interessa a Mahomed Bamba em Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde, “Em nome do cinema-ação e das utopias ex-colônias portuguesas que conquistaram terceiro-mundistas: intervenção dos cineas- sua independência de Portugal da década tas estrangeiros no cinema moçambicano de 1970. É preciso salientar que, embora a (anos 70-80)”. O autor parte de uma releitu- maioria das independências só tenham sido ra do caso do cinema Moçambicano dentro proclamadas após o fim do Estado Novo, os de uma perspectiva de estudo anticolonial, movimentos de libertação africanos con- relacionando os motivos ideológicos de tal tribuíram para o desgaste do regime au- compromisso político com o contexto global toritário de direita de Salazar-Caetano, de das ideias e das teorias terceiro-mundistas modo que a relação de causalidade opera que fervilhavam na Europa e na América La- em mão-dupla. Com exceção da Guiné-Bis- tina nas décadas de 60-70. 4 sau, que proclama sua independência uni- Parte da história cultural do Moçambi- lateralmente em setembro de 1973, é após a que pós-colonial é fortemente relacionada a Revolução dos Cravos, em 1974, que o fim esse princípio de engajamento universal que do colonialismo é garantido em Moçambi- fez com que cineastas e técnicos estrangei- que, Angola e Cabo Verde, cujas indepen- 4 No contexto da expansão da reflexão sobre o dências ocorrem em 1975. cinema militante na Europa, a ideia de Cinema -Ação se destaca, sendo uma referência impor- de textos críticos – infelizmente, não nos é pos- tante para Bamba o trabalho de Guy Hennebelle sível listá-los aqui. (1979).

8 Revista África(s), v. 04, n. 07, jan./jun. 2017 Alessandra Meleiro; Lúcia Ramos Monteiro ros (sobretudo da Europa Central, mas tam- seia-se na filmagem da reconstituição de um bém iugoslavos, cubanos e brasileiros, entre dos mais importantes episódios de resistên- outros) participassem do processo de cria- cia contra o colonialismo português, resul- ção do cinema no país. Depois de uma longa tandono massacre perpetrado pelas tropas guerra de descolonização contra Portugal de portuguesas em Mueda em 1960, depois de Salazar, a jovem nação africana conquistava uma revolta da população que exigia da ad- sua soberania em 1975. O primeiro ato cul- ministração colonial o direito à autodeter- tural do novo governo foi a criação do Insti- minação. A população de Mueda passou a tuto Nacional de Cinema (INC), cuja voca- reencenar o massacre de maneira teatral, e ção seria política, cultural e artística. O cine- é nesse ritual de memória coletiva repetido ma era, então, estrategicamente concebido- paulatinamente que Ruy Guerra ancora seu como um instrumento de descentralização filme, que recusa uma representação exótica da história oficial escrita e endossada pelos das sociedades africanas, particularizando colonizadores e aliados e, igualmente, como essa prática maconde. um instrumento de criação de uma identida- Para a pesquisadora portuguesa Raquel de moçambicana, contribuindo para a con- Schefer, no artigo “Mueda, Memória e Mas- formação de uma comunidade política ima- sacre (1979-1980), by Ruy Guerra”, o filme ginada, de acordo com a expressão do histo- não apenas comemora um dos mais impor- riador britânico Benedict Anderson (2008).5 tantes antecedentes simbólicos da Guer- É nesse contexto político e cultural – em ra de Independência de Moçambique, mas que a Frelimo implementava uma cultura também inscreve historicamente (dada a cinematográfica que pudesse ensejar a pro- ausência de imagens de arquivo) a memória paganda revolucionária de cunho marxista- cinematográfica desse evento histórico. Para que chegam Jean Rouch, Jean-Luc Godard, ela, “o filme pontua a passagem do tempo José Celso Martinez Correa, Celso Luccas e sobre o discurso da história, a ideologia e o outros, para ajudar o país recém-indepen- trabalho da memória”. dente a montar uma atividade cinematográ- As questões históricas em jogo em Mue- fica perene e participar da criação da mitolo- da, Memória e Massacre apontam para gia da nação moçambicana em construção. uma genealogia do cinema revolucionário O caso mais emblemático desse engajamen- moçambicano, entrelaçada com o projeto to transnacional é o de Ruy Guerra. político do país: um dos filmes fundadores De família portuguesa, nascido em Lou- do cinema moçambicano, o filme seria cen- renço Marques (atual , capital mo- surado, reeditado e, finalmente, relegado às çambicana) e estabelecido no Brasil como prateleiras empoeiradas de um arquivo, de- um dos expoentes do Cinema Novo, Ruy pois de premiado em eventos internacionais Guerra é chamado a Moçambique para con- como um exemplar filme revolucionário tribuir com o desenvolvimento do cinema moçambicano. nacional. Ele se interessa por um fato do Infelizmente, anos de guerra civil segui- passado colonial como assunto de Mueda ram-se às independências, e as ambições de – Memória e massacre (1979). O longa ba- órgãos como o Instituto Nacional de Cinema 5 Sobre a aliança entre nacionalismo e internacio- moçambicana viram-se confrontadas a uma nalismo nas origens do cinema moçambicano, cf. também os trabalhos de Ros Gray (2016) e desoladora realidade, não só impedindo a Fernando Arenas (2018). continuidade dos projetos iniciados, mas

Revista África(s), v. 04, n. 07, jan./jun. 2017 9 Apresentação do Dossiê

também comprometendo a preservação dos descreve um cenário encontrado em 2010. materiais realizados. Um breve panorama As organizadoras deste dossiê optaram por sobre como Moçambique conserva sua me- não atualizá-lo, preservando-o como regis- mória cinematográfica está relatado no ar- tro histórico de um momento em que a po- tigo “O consumo audiovisual em Moçambi- lítica externa brasileira voltava sua atenção que. Relato de viagem, dezembro de 2016”, para parcerias Sul-Sul, com especial inte- do pesquisador brasileiro Mateus Nagime, resse em possibilidades de cooperação com fruto de uma visita à sede do Instituto Na- o continente africano e os integrantes dos cional de Arte e Cinema (INAC), em Maputo. PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Criado logo depois da independência Portuguesa), entre as quais destacava-se o do país como Instituto Nacional de Cine- Seminário Terceira Metade, que publicara ma (INC), o órgão tomou a atual forma em originalmente esse trabalho. O objetivo do 2000. Sua função original era a de organizar artigo co-escrito por Bamba e Meleiro era toda a produção e a distribuição do Kuxa Ka- identificar, desde uma perspectiva brasilei- nema, um cine jornal exibido em todo país, ra, fluxos transnacionais históricos e com- através de uma estrutura de cinema móvel pará-los às possibilidades de políticas trans- exposta pela cineasta portuguesa Marga- nacionais então em curso. rida Cardoso em seu documentário Kuxa Parte das questões levantadas no texto Kanema: o nascimento do cinema (2003). são retomadas e aprofundadas por Bamba Com o passar dos anos, além de produzir os no artigo que ele assina sozinho, original- novos filmes, também adquiriu a tarefa de mente publicado em inglês em 2012, re- preservar um rico acervo audiovisual. Nagi- produzido neste dossiê em sua versão em me, em relato em primeira pessoa, descreve português. A comparação entre o contexto situações em que se destacam falta de mão que Meleiro e Bamba descrevem com aquele de obra qualificada, ausência de equipamen- que Nagime encontra indica um desolador tos, carência de treinamento e inexistência movimento de desesperança e desinvesti- de infraestrutura básica na principal insti- mento, principalmente no que diz respeito tuição de preservação audiovisual do país. O à conservação da memória cinematográfi- autor afirma ter visto “a história audiovisual ca pelas instituições locais. Há, ao mesmo de um país se perdendo”. tempo, que se reconhecer a valorização e Situação precária não muito diferente a atualização da memória da colonização e da enfrentada pelas várias salas de exibição da luta anticolonial em África, por exemplo, da capital moçambicana, hoje usadas como através de iniciativas artísticas articuladas pontos de drogas, armazéns ou completa- com a Europa, como as de Catarina Simão e mente inutilizadas. O estado dos antigos ci- Raquel Schefer. nemas moçambicanos foi retratado por Chi- É justamente em desvelar arquivos colo- co Carneiro e Clarice Goulart, em imagens- niais “em movimento”, quer públicos, quer reunidas no ensaio visual e reproduzidas privados, que se apoia a prática artística in- ao longo do artigo “Transnacionalização de vestigativa/ videográfica de Raquel Schefer, talentos e tecnologias no campo cinemato- objeto de análise de Ana Balona de Oliveira gráfico: o caso Moçambique”, de Alessandra no ensaio “Avó e O Jogo, Ou o Arquivo Co- Meleiro e Mahomed Bamba. Publicado ori- lonial ‘em Movimento’ nos Vídeos de Raquel ginalmente em português em 2011, o artigo Schefer”. No trabalho da artista, os docu-

10 Revista África(s), v. 04, n. 07, jan./jun. 2017 Alessandra Meleiro; Lúcia Ramos Monteiro mentos de arquivo são apropriados e inse- do pela raiz do baobá) e o impulso migrató- ridos em sua obra videográfica que, dessa rio (simbolizado pelo vento do Sahel), que forma, adquire uma qualidade arquivística explicaria a trajetória de muitos dos cineas- sem se transformar em arquivo num sentido tas africanos e também a do próprio Bam- literal. Segundo Oliveira, “trata-se de inscre- ba (CESAR; MONTEIRO, 2016, p. 8). Sob ver as histórias e as memórias reprimidas esse prisma fica mais fácil entender porque da violência colonial portuguesa, algumas o gaúcho Licínio Azevedo talvez seja, de to- das quais privadas e familiares, num deba- dos os realizadores estrangeiros que passa- te público sobre a condição pós-colonial; de ram pelo cinema moçambicano, aquele que contribuir para um exame crítico da forma se tornou o mais moçambicano e o mais como o passado continua a afectar o presen- visceralmente ligado culturalmente com o te; de promover a sua lembrança sem cair na país. Predomina, em sua filmografia, uma nostalgia”. preocupação estética com um tipo de cine- Este dossiê traz ainda outra prática ar- ma mais engajado socialdo que ideologica- tística que teve como origem um arquivo mente, o que demonstra, de certa forma, um colonial. Trata-se de “Projecto Instituto Mo- desencantamento pós-colonial do cineasta e çambicano: uma montagem de afeto”, de o fim das grandes utopias nacionalistas que Catarina Simão. O trabalho nasceu de um acompanharam os primeiros anos da inde- texto escrito por Eduardo Mondlane, en- pendência moçambicana. tão Presidente da Frente de Libertação de Em “As contradições do projeto da na- Moçambique (FRELIMO), para o Comitê ção moçambicana pós-independência no Africano de Libertação. Nesse memorando, filme Virgem Margarida (2012), de Licí- Mondlane explicava como foi idealizado um nio Azevedo”, Alex Santana França analisa projeto educacional para acolher jovens mo- as contradições do projeto da nova nação çambicanos em Dar-es-Salaam, e a que cha- moçambicana, proposto pelo governo pós maram “Instituto Moçambicano”. Ao ilumi- -independência, através de Virgem Mar- nar como a FRELIMO mobilizava e “educa- garida (2012). O filme expõe contradições va” jovens moçambicanos para os objetivos do projeto da nova nação moçambicana imediatos da guerrilha, Catarina Simão, pós-independência, pautada pelas ideias de em sua prática artística, visa descolonizar liberdade, igualdade e união, mas que tam- o nosso conhecimento e as nossas emoções bém foi marcado pela violência, perseguição em relação ao passado colonial. Em sua in- e opressão, como ocorreu com as persona- vestigação, que a levou para arquivos de três gens do filme que, por supostamente serem continentes, Simão desvela materiais “peda- prostitutas, são enviadas a campos de ree- gógicos” – textuais e fílmicos - produzidos ducação. Segundo França, Licínio Azevedo por guerrilheiros treinados pela FRELIMO, recorre, então, ao passado, não como forma pioneiros dentro de uma cronologia de fil- de reviver o irrecuperável, mas sim, para mes militantes que se expandiu logo depois, propiciar uma reflexão crítica sobre os acon- com a vinda de realizadores estrangeiros às tecimentos históricos referidos. Zonas Libertadas. Outros realizadores que investigam o Dudley Andrew (2016) identifica uma passado como forma de buscar respostas às tensão própria à identidade africana na opo- suas inquietações, com foco na colaboração sição entre o desejo de fixação (representa- de Cuba com movimentos independentistas

Revista África(s), v. 04, n. 07, jan./jun. 2017 11 Apresentação do Dossiê

africanos são Diana Andringa e Dulce Fer- Tal questionamento, que emerge aqui nandes (Portugal), e Flora Gomes (Guiné- atravésdo exame da situação sul-africana, Bissau), analisados proximamente por Ale- marcou o debate sobre os primeiros tempos xsandro de Sousa e Silva no artigo “Os sol- do INC em Moçambique, quando os locais dados-narradores e as “placas tectônicas aprendiam a desempenhar funções técnicas, da história”: memória e política nos docu- dando apoio a cineastas vindos de fora. À mentários As duas faces da guerra (2007) e primeira vista, o problema também poderia Cartas de Angola (2012)”. O artigo traz re- ser entendido como espelho da discussão em flexões em torno de dois documentários con- torno do filme burquinense Yaaba (1989), temporâneos sobre conflitos bélicos no con- de Idrissa Ouédraogo, a que Lucia Nagib tinente africano da segunda metade do sé- dedica seu texto. Para quem se destinaria o culo XX: enquanto As duas faces da guerra longa-metragem? Teria ele um público “afri- (Diana Andringa, Flora Gomes, 2007) relata cano” ou “ocidental”? E o que querem dizer as guerras de independência em Guiné-Bis- exatamente tais categorias? Haveria, como sau e Cabo Verde, Cartas de Angola (Dulce colocam Murphy e Williams (2007, p. 162 e Fernandes, 2012) aborda a guerra civil an- seguintes), contradição entre a “elevada am- golana, e a presença de cubanos e cubanas bição artística” do projeto cinematográfico que participaram civil ou militarmente nas de Ouédraogo e sua destinação a espectado- lutas do Movimento Popular de Libertação res locais? Em “Yaaba, cinefilia e realismo de Angola (MPLA) contra a União Nacional sem fronteiras”, Nagib opta por um estudo para a Independência Total de Angola (UNI- mais detido do filme, distanciando-se sa- TA) e sua apoiadora, a África do Sul regida biamente de tal discussão, ademais pouco pelo Apartheid. frutífera. A autora propõe uma análise cal- Com o fim do Apartheid, mudaram as cada na combinação que o filme produz, prioridades políticas do governo sul-afri- entre um realismo absolutamente ancorado cano, o que promoveu um cenário de esta- na paisagem e na tradição locais, e uma he- bilidade política e crescimento econômico, rança cinematográfica universal. O percurso inclusive para a indústria cinematográfica. do protagonista, Sana, é por ela visto como A Cidade do Cabo torna-se um centro de busca “de um mundo melhor, que não se de- produção global, através de production ser- fine pela diferença ou alteridade, mas sim- vices, gerando emprego e renda para equi- plesmente pelo aprimoramento humano”. pes técnicas locais, mas pouco contribuindo E Nagib completa: “O mesmo acontece na para o desenvolvimento criativo de talen- forma do filme, no qual uma cinefilia sem tos locais. Paul Cooke, em “Soft Power and fronteiras é colocada a serviço de um novo South African Film: Negotiating Mutually realismo”. Incompatible Agendas?”, debruça-se sobre Através de Yaaba, o povo mossi de o fenômeno, investigando até que ponto o Burkina Faso, de língua moré, conquista imperativo econômico do governo para de- expressão audiovisual inédita. Como forma senvolver a indústria está trabalhando con- de conclusão desta introdução e convite à tra o poder do seu soft power para projetar leitura das páginas que seguem, parece- histórias sul-africanas tanto local quanto nos fundamental pensar na multiplicidade internacionalmente, e com ela, a “narrativa de realidades escondidas atrás de divisões estratégica” nacional. das produções audiovisuais africanas entre

12 Revista África(s), v. 04, n. 07, jan./jun. 2017 Alessandra Meleiro; Lúcia Ramos Monteiro

“cinema da África francófona”, “cinema da cias muitos acreditavam na necessidade que África anglófona” ou “cinema da África lusó- uma língua unificadora se sobrepusesse à fona”. Tais expressões, além de reiterarem variedade existente sobre os territórios, e o permanências coloniais em um mundo que cinema tenha então majoritariamente ado- se diz pós-colonial, a exemplo das próprias tado as “línguas oficiais”, hoje esse gesto pa- fronteiras entre os países, artificialmen- rece tornar-se insustentável. A ambição da te desenhadas na Europa (ARMES, 2007), reunião de textos aqui reunidos é a de apro- revelam-se também imprecisas, quando fundar essa discussão, deixando de lado es- se pensa no kriol guineense adotado por quemas totalizantes. Flora Gomes na maioria de seus filmes, na população maconde de Mueda, memória e massacre e em Yaaba, entre tantos outros Alessandra Meleiro e exemplos. Se no momento das independên- Lúcia Ramos Monteiro

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Revista África(s), v. 04, n. 07, jan./jun. 2017 13 Mueda, Memória e Massacre (1979-1980), de Ruy Guerra

Mueda, Memória e Massacre

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(1979-1980),Raquel de Schefer Ruy* Guerra

Resumo Reencenação, documentário histórico, ficção política, filme etnográfico, to- dos esses gêneros são evocados, à primeira vista, por Mueda, Memória e Massacre (Mueda, Memória e Massacre), um longa-metragem moçambi- cano de 1979-1980 dirigido por Ruy Guerra, um dos Os mais importantes cineastas de Cinema Novo, nascidos em Lourenço Marques (agora Maputo) em 1931. Mueda, Memória e Massacre é geralmente considerado o primeiro filme de ficção de Moçambique independente. No entanto, o filme cria uma síntese profunda entre os gêneros cinematográficos, superando todos os es- forços na classificação genérica e, assim, abrindo a categoria de obra cinema- tográfica, como forma cultural, até novas dimensões que incluem modos de expressão de cinema, teatro e memória coletiva, bem como o projeto político de Moçambique, no qual o cinema desempenhou um papel fundamental. Ao mesmo tempo, a estrutura diegetica do filme revela uma complexa concep- ção intertextual da narrativa histórica – e do objeto fílmico como uma forma de representação histórica –, questionando a validade das categorias opera- cionais de documentário e ficção e dando aos procedimentos cinematográfi- cos de reconstituição novos significados. Uma análise crítica do contexto de produção do filme, bem como de suas características estéticas, narrativas, ideológicas e temáticas, nos permite esboçar uma genealogia do cinema re- volucionário moçambicano e começar o desenvolvimento de uma arqueolo- gia de suas formas de ficção. Palavras chave: Ruy Guerra; Mueda, memória e massacre; Cinema Mo- çambicano

1 A first version of this article was published in Africa's Lost Classics: New Histories of African Cinema / ed. by Bisschoff, Lizelle and Murphy, David (Oxford: Legenda, Maney Publishing, 2014), p. 168-173. * A researcher, filmmaker and film curator, Raquel Schefer has a Ph.D. in Film and Audiovisual Studies from the New Sorbonne — Paris 3 University, with a dissertation on aesthetics and politics, focused on Mozambican revolutionary cinema. She published the book El Autorretrato en el Documental in 2008, in Argentina, where she received a master’s degree in Documentary Film. Graduated in Communication Sciences from the New University of Lisbon, she is co-editor of the film journal La Furia Umana. Realiza Pós-doutorado na Universidade de Lisboa. Doutora em Estudos Cinematográficos pela Université de la Sorbonne Nouvelle - Paris 3, com uma tese sobre estética e política, focada no cinema revolucionário moçambicano. Email: [email protected]

14 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 12-18, jan./jun. 2017 Raquel Schefer

Abstract

Reenactment, historical documentary, political fiction, ethnographic film, allMueda, those genres Mem oarery evoked, and Massa at firstcr glance,e (1979-1980), by Mueda, byMemória Ruy Guee Massacrerra (‘Mueda, Memory and Massacre), a 1979-1980 Mozambican feature film di- rected by Ruy Guerra, one of Cinema Novo’s most important film directors, born in Lourenço Marques (now Maputo) in 1931. Mueda, Memória e Mas- sacre is generally considered to be the first fiction feature film of independent . Nevertheless, the film creates a profound synthesis between cinematographic genres, overriding all efforts at generic classification, and thus opening the category of cinematographic œuvre, as a cultural form, up to new dimensions that include cinema, theatre, and collective memory’s modes of expression as well as Mozambique’s political project, in which cine- ma played a fundamental role. At the same time, the film’s diegetic structure reveals a complex intertextual conception of the historical narrative - and of filmic object as a form of historical representation -, questioning the validity of the operative categories of documentary and fiction, and giving the cine- matographic procedures of reenactment new meanings. A close and critical analysis of the film’s context of production as well as of its aesthetic, narra- tive, ideological and thematic features allows us to sketch out a genealogy of Mozambican revolutionary cinema, and to begin the development of an archaeology of its fictional forms. Keywords: Ruy Guerra; Mueda, memória e massacre; Mozambican cinema

Reenactment, historical documentary, po- which cinema played a fundamental role. litical fiction, ethnographic film, all those At the same time, the film’s diegetic struc- genres are evoked, at first glance, byMueda, ture reveals a complex intertextual concep- Memória e Massacre (‘Mueda, Memory and tion of the historical narrative - and of filmic Massacre), a 1979-1980 Mozambican featu- object as a form of historical representation re film directed by Ruy Guerra, one of Cine- -, questioning the validity of the operative ma Novo’s most important film directors, categories of documentary and fiction, and born in Lourenço Marques (now Maputo) in giving the cinematographic procedures of 1931. Mueda, Memória e Massacre is gene- reenactment new meanings. rally considered to be the first fiction feature The historical issues at stake in Mueda, film of independent Mozambique. Never- Memória e Massacre point to a genealogy theless, the film creates a profound synthe- of Mozambican revolutionary cinema, inter- sis between cinematographic genres, overri- woven with the country’s political project: ding all efforts at generic classification, and one of the founding films of Mozambican thus opening the category of cinematogra- cinema, since it launched the formal and phic œuvre, as a cultural form, up to new di- expressive conditions of its development, mensions that include cinema, theatre, and Mueda, Memória e Massacre would be cen- collective memory’s modes of expression as sored, partially re-shot, and reedited, with- well as Mozambique’s political project, in out Ruy Guerra’s direct supervision, and

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 12-18, jan./jun. 2017 15 Mueda, Memória e Massacre (1979-1980), de Ruy Guerra

finally relegated to the dusty shelves ofan and the cinematographic production made archive after being screened in the Tashkent during the post-revolutionary period), the Film Festival, where it was awarded with birth and decline of fiction happens at the the Prizes “Film and Culture”and “People’s same time as Marxism-Leninism is adopt- Friendship Union” in 1980, and other in- ed as the country’s official ideology, during ternational events as an exemplary piece of FRELIMO’s Third Congress in 1977, and it is Mozambican revolutionary cinema. later abandoned in 1989. The production of Mueda, Memória e Massacre was pro- Mueda, Memória e Massacre between 1979 duced by INC, Mozambique’s National Insti- and 1980 was followed by 1985 O Tempo tute of Cinema, established in 1976, as one dos Leopardos (The Time of Leopard), by of the Frelimo Party’s first cultural acts, just ZdravkoVelimirovic, co-produced with Yu- a few months after the country’s indepen- goslavia, and 1987 O Vento Sopra do Norte dence from Portugal in June 1975.2 The in- (The Wind Blows from the North), by Mo- stitute closed its doors in 1991, as a result of zambican filmmaker José Cardoso, which a fire that partially destroyed its production can be regarded as fictions of the Liberation and editing facilities - two years after FRE- War, close to the Socialist Realist aesthet- LIMO renounced Marxism-Leninism -, and ics. The cinematographic production would was reconverted in 1994 into INAC, the cur- then decline, while the production of feature rent National Institute of Audiovisual and fiction films would stop until recently. The Cinema, where INC’s archive remains today. history of fiction film in Mozambique seems A close and critical analysis of the film’s to be twisted together with the history of the context of production as well as of its aes- country’s revolutionary project. thetic, narrative, ideological and thematic During the Liberation War, an import- features allows us to sketch out a genealogy ant number of militant and engaged films of Mozambican revolutionary cinema, and on FRELIMO’s anti-colonialist struggle was to begin the development of an archaeology produced, such as 1966 Yugoslavian film di- of its fictional forms. Although documenta- rector Dragutin Propovich’s Venceremos! ry film would be the dominant form of ex- (We will win!), Behind the Lines (1971), di- pression of Mozambican revolutionary cin- rected by British filmmaker Margaret Dick- 3 ema (comprising the country’s pre-cinema inson, 1972 North-American film director 2 The Front for the Liberation of Mozambique, Robert Van Lierop’sA Luta Continua (The founded by Eduardo Mondlane in in Struggle Continues), or 1973 Étudier, pro- 1962 to fight for the independence of Mozam- bique. duire, combattre, directed by the Group 3 According to the operative chronology proposed in Cinéthique, on the education work in a FRE- this article, Mozambican revolutionary cinema has LIMO training centre in Tanzania, among three phases: pre-cinema (1966-1974/1975), pri- or to the country’s independence, a category which others. is simultaneously temporal and material, linked to the affirmation of an aesthetics of contingency or Socialist Realism (1984/1985-1987). In accordance an “aesthetics of the possible”, according to Guer- with this chronology, Mueda, Memory and Massacre ra (Ruy Guerra, Interview with CatarinaSimão and would mark, respectively, via its aesthetic system and Raquel Schefer, Maputo, 16 September 2011); the its material history, the transition from the period of Aesthetics of Liberation (1975/1976-1984) of the institution—insofar as it has an influence on the cin- National Film Institute (INC), the organisation set ematic language under development —to the period up in 1976, spanning its two stages —the period of of destitution —inasmuch as it announces canoniza- institution (1975/1976-1979), and the period of des- tion and state control of the film production —of the titution (1979/1980-1984) of cinematic language —; INC’s Aesthetics of Liberation.

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In a country with 90% illiteracy and great 1964 Os Fuzis (The Guns). Guerra’s interna- linguistic diversity, cinema would soon be tional reputation as one of Cinema Novo’s conceived by FRELIMO as an instrument leading cineasts would legitimate Mozam- to decentralize the place of colonial history bican cinema, while his presence in Ma- within postcolonial Mozambique; it would puto would symbolically mark the birth of also serve as an instance of legitimization national cinema. He participated in the de- not only of the socialist state under con- velopment of Mozambican cinema not only struction, but also of Mozambican identity training technicians at INC, but also recon- and cultural specificity, establishing the idea stituting cinematographically the collective of nation beyond ethnic multiplicity. With memory of one of the most significant epi- this purpose, international cinematograph- sodes of resistance against Portuguese colo- ic technicians and filmmakers were called nialism, the Mueda Massacre, the subject of to Mozambique, including Jean Rouch, and Mueda, Memória e Massacre. Jean-Luc Godard. From 1976 to 1991, INC On 16 June 1960 – just four years before produced thirteen documentary and feature the official beginning of the Mozambican films, 119 shorts and 395 cinema reports, Liberation War–the Mueda Massacre took newsreels, denominated KuxaKanema place in the Makonde Plateau, in Northern (Birth of the Image or Birth of Cinema). The Mozambique. The Portuguese colonial ad- KuxaKanemawere screened from South to ministration repressed a peaceful demon- North, even in remote rural areas, where the stration for the improvement of work and film rushes and screening equipment were life conditions and eventually for the cre- taken by mobile cinema units. To paraphrase ation of an independent Makonde state, Jean-Luc Godard (1979),4 evoking his work murdering more than 600 people according in Mozambique in the late 1970s to assist in to official Mozambican history. The circum- the foundation of the first television station, stances surrounding the massacre are still the political birth of the country would co- ambiguous today, particularly regarding the incide with the birth of its cinematographic number of victims. The Mueda Massacre images and filmic forms of representation. considerably contributed to the Makonde’s 5 It was in this context that Ruy Guerra, politicization, influencing the development who had been living in Brazil since 1958, of FRELIMO and of its military campaign. In fact, the firstliberated areas6 were estab- came back to his place of birth, invited by lished precisely on the Makonde Plateau. INC. At the moment of his return to Mozam- From this point of view, Guerra’s film would bique, Guerra had already directed some of not just commemorate one of the main sym- his most remarkable works, such as 1962 Os Cafajestes (The Unscrupulous Ones), and 5 In 1917, the Makonde were already the protago- nists of the final insurrection against Portuguese 4 Godard’s visual essay was published in Cahiers colonialism in Mozambique before the Libera- du Cinéma’s 300th issue: it is a hybrid piece, tion War. combining texts and images, excerpts of God- 6 ‘The guerrilla called “liberated areas”to the terri- ard’s travel journal in Mozambique, using pho- torial surfaces where the administration was al- tomontage procedures: ‘En route to the village ready made under its control. (...) The concept... where the comrades with the Super 8 stock are was, for the FRELIMO’s committee, even deep- going to project their film. Stop on thebanks of er since it integrated the idea that the fight for the Limpopo River. Children. A Polaroid colour the socioeconomic transformation of people’s instamatic.The first image.Of men.And of wom- life was also taking place in those areas’(Cabaço en’(119). 2010: 274, my translation).

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 12-18, jan./jun. 2017 17 Mueda, Memória e Massacre (1979-1980), de Ruy Guerra

bolic antecedents of Mozambican Indepen- of representation that would be inseparable dence War, but it would also – and above from the emergence of new sensible models all – found and historically inscribe (given as well as an affirmation of cinema as a form the absence of archive images) the cine- of historical thought. The filmic organisa- matographic memory of the historical event. tion of the temporalities and narratives in Yet, Mueda, Memória e Massacre goes conflict inscribes this aesthetic and political even further since the massacre’s represen- manifesto –or, better, this statement on the tation is based on the shooting of a popular, inseparability between aesthetics and poli- spontaneous and collective dramatisation of tics – in the programme of the new country the event that, from June 1976 until about under construction. At the same time, since two decades later, took place every year at the massacre’s representation is based on its Mueda’s public square, in front and inside of collective, direct and popular memory, the the colonial administration’s ancient build- film –and its polyphonic enunciative sys- ing; that is to say, in the same place where tem - indicates a reinvention of the expres- the massacre happened in 1960. The theat- sive possibilities, which would be entwined rical and carnivalesque performance of the in the creation of a new dimension of Mo- massacre was based on the homonymous zambican identity, founded on a creative theatre play by Calisto dos Lagos, who is also confrontation between modernity and tradi- quoted as the film’s screenwriter and dra- tional society. matic director. In this oral and improvised In this way, Mueda, Memória e Massa- play, which was never set down in writing, cre tackles the massacre’s affective collec- Mueda’s people incarnated simultaneously tive memory rather than the historical event the colonial administration’s characters and in itself. According to Guerra, it is a movie the demonstrators. The film intercuts imag- about the massacre’s mythical significance, es from this mise en scène with documen- the transformation of such a cruel act into 7 tary interviews with survivors and witnesses an act of joy, and about the self-represen- of the massacre. tation forms of the people engaged in the This fiction de mémoire (fiction of revolutionary process. It is a reconstitution memory) to quote a concept articulated by of the massacre’s reenactment that creates Jacques Rancière (2001), not only visually its definitive forms of visibility, developing, puts together the relation between affective in the process, Mozambican’s film language. memory and history, but also relates closely Yet, this re-constitution also contains a ges- to the notions and practices of re-enactment ture of spatial and temporal transference, and re-effectuation, a term with a deeper that is, a transference from the mythic na- pragmatic dimension, since it re-constitutes ture of the past into the present of the coun- the massacre’s dramatic reenactment and try under construction, a living time that is takes a Makonde process of memory’s fic- already a past tense, a gesture of investment tionalisation as its point of departure. The of the past’s symbolic weight into the new film is characterised by a complex articula- images. The possibility of the past’s refigu- tion between history, enunciative present, ration comes out precisely through the in- memory and their mise en rapport, which tensity of the present. The film comes from destabilises the operative categories of doc- a history already in progression; conse- umentary and fiction, pointing to a politic 7 Simão and Schefer.

18 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 12-18, jan./jun. 2017 Raquel Schefer quently, the present –the cathartic and car- actments of the massacre and several inter- nivalesque celebration of the massacre –is views. The narrative structure that is formed treated as the inaugural force of the history by the montage, the deferred temporalities to come. All the work developed by Guerra and the articulation of heterogeneous ex- in Mozambique may be inscribed in this lin- pressive systems create, in this way, a new eage, particularly the monumental fresco Os memory of the massacre. At the same time, Comprometidos. Actas de um Processo de in its content and form the film is also a doc- Descolonização (The Collaborators. Min- ument about the revolutionary process in ute of a Decolonization Process, 1982-1984) Mozambique. that assembles the declarations of ex-collab- Genre’s frustration9is the expression that orators of the colonial regime in a popular Guerra uses to describe Mueda, Memória court, and which constitutes, according to e Massacre as it is a film that refuses po- the director, the catharsis of colonialism.8 litically both the epic reenactment and the In Mueda, Memória e Massacre, the documentary’s reality effect. It is entirely a borderline between the interior and the ex- Mozambican production, which determined terior scenes signals the genre’s conflict and the usage of black and white negative film. determines the relation between a collective Yet, the director’s cut of Mueda, Memory body and the camera’s position. The film’s and Massacre was refused in 1979 by Jorge structure is determined by the contrast be- Rebelo, then Minister of Information (1975- tween the sequence-shots of the self-deter- 1980). Following a meeting between Guer- mined theatrical play, shot at Mueda’s pub- ra and the minister,10the film was censored, lic square, and the sequences shot inside the partially re-shot and reedited without the colonial administration’s ancient building, filmmaker’s direct supervision. Unlike Guer- which were re-staged for the film. During ra’s cut, the film’s official mutilated version, the shooting of these interior scenes, Mue- responded to João Paulo Borges Coelho’s da’s inhabitants, who stayed outside the notion of“Liberation Script”,11 an epistemo- building, spontaneously performed the the- logical apparatus of FRELIMO’s politics of atrical play again, becoming spectators of representation and political representation the political action, which was being staged that aims to order and codify the history of inside the building, and active participants the country, in particular the history of the at once. Guerra’s camera shows us inces- liberation struggle. santly their double condition, which also The nature and the extent of the ma- signals the contiguity and friction between terial interventions in the film reveal the documentary and fiction. normative deviation from Mozambique’s Nevertheless, the main filmed events politico-cultural project and announce the are independent of the shooting, thus from direct mise en scène. The work of fiction is 9 Simão and Schefer. 10 Guerra, Ruy, Interview to Schefer, Raquel. Par- built upon the organisation of the different is, 2013. narrative levels in the editing process. Even 11 Borges Coelho. João Paulo, ‘Politics and Con- temporary History in Mozambique: A Set of if the film follows the theatre play’s origi- Epistemological Notes’, in The Liberation Script nal structure, the editing articulates images in Mozambican History, ed. par Assubuji, Rui, from different (at least two) popular reen- Israel, Paolo and Thompson, Drew, Kronos: Southern African Histories, nº39 [special issue], 8 Simão and Schefer. p. 20-31.

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 12-18, jan./jun. 2017 19 Mueda, Memória e Massacre (1979-1980), de Ruy Guerra

process of aesthetic canonization of the So- Epistemological Notes’, in The Liberation Script cialist Realist tendency, which was later ex- in Mozambican History, ed. par Assubuji, Rui, Israel, Paolo and Thompson, Drew, Kronos: tended to the sphere of cinema in the early Southern African Histories, nº39 [special issue], 1980s (1984/1985-1987). Mueda, Memória p. 20-31. e Massacre’s performative and cyclical time CABAÇO, José Luís, Moçambique, Identi- seemed not to be adjusted to the Mozambi- dades, Colonialismo e Libertação. Maputo: can political project’s didactic and progres- Marimbique, 2010. sive time, as it would not entirely sublimate CABRAL, Amílcar. ‘Libertação Nacional e Cul- the interaction between the historical and tura’. In: SANCHES, Manuela Ribeiro. Malhas structural determinant (Mozambican peo- que os Impérios Tecem. Textos Antico- ple heroic fight for liberation) and the super- loniais, Contextos Pós-Coloniais. Lisboa: Edições 70, 2011, p. 355-375. structural component (the representation of the conscience of the fight’s heroism and CONVENTS, Guido, Os Moçambicanos per- justness). ante o Cinema e o Audiovisual. Uma História Político-Cultural do Moçambique Colonial até à Mueda, Memória e Massacre lies on the República de Moçambique (1896-2010). Mapu- border of a period of transformation in Mo- to: Edições Dockanema e Afrika Film Festival, zambican revolutionary cinema and in the 2011. country’s political project itself. The excava- FANON, Frantz. The Wretched of the Earth. tion of the material time and space of Mue- London: Penguin, 2001. da, Memória e Massacre’s images brings GODARD, Jean-Luc. ‘Nord contreSudou Nais- out discontinuities, fundamental contradic- sance (de l’Image) d’une Nation 5 films émis- tions and incompatible postulates. Starting sions de TV’. Cahiers du Cinéma, nº300, May to be the country’s first fiction feature film, 1979, p. 70-129. interconnecting African and Latin-Ameri- GRAY, Ros, ‘An Archive of Aspirations’, 2009, can film, it became a film out-of-circulation, [accessed 17 July 2012]. institutional archives, discarded as FRE- LIMO’s political project. The film’s images GUERRA, Ruy. Interview to Simão, Catarina and Schefer, Raquel. Maputo, 2011. are deferred archives because they do not claim to be (nor are they) images from the GUERRA, Ruy. Interview to Schefer, Raquel. past, as they constitute, on the contrary, a Paris, 2013. disruptive force that connects transversally RANCIÈRE, Jacques. La fable cinémato- to the past of the 1960s and to the enuncia- graphique. Paris, Seuil: 2001. tive present of 1979, as well as finally to to- RANCIÈRE, Jacques. Malaise dansl’esthétique. day and to the failure of Mozambican rev- Paris, Galilée: 2004. olutionary process. These three moments VOLOSINOV, V. N., Marxism and the Philosophy of the image punctuate the passage of time of Language. Harvard: Harvard University Press, over history’s discourse, ideology, and the 1986. work of memory. Recebido em: 24/01/2017 Aprovado em: 18/03/2017 Bibliography Borges Coelho. João Paulo, ‘Politics and Con- temporary History in Mozambique: A Set of

20 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 12-18, jan./jun. 2017 Ana Balona de Oliveira

Avó e O Jogo, Ou o Arquivo Colonial “em Movimento” nos Vídeos de Raquel Schefer

Ana Balona de Oliveira*

… um fantasma nunca morre, permanence sempre por vir e por regressar … estão sempre aí, os espectros, mesmo se eles não existem, mesmo se eles já não são, mesmo se eles ainda não são. Derrida (1994, p. 123, p. 221, tradução da autora)

O arquivo funciona sempre, e a priori, contra si próprio. Derrida (1996, p. 11-12, tradução da autora)

Nestas matérias, só se pode experienciar um assombrar, confirmando em tal expe- riência a natureza da própria coisa: um desaparecimento só é real quando aparece. Gordon (2008, p. 63, tradução da autora)

Ler de acordo com o grão do arquivo direcciona a nossa sensibilidade para a sua tex- tura mais granular do que lisa, para a superfície áspera que lhe dá matiz e forma. Stoler (2009, p. 53, tradução da autora)

Resumo Este ensaio examina a forma como a prática videográfica de Raquel Schefer (Portugal, 1981) tem contribuído para uma descolonização epistémica e ético -política do presente através da investigação crítica de vários tipos de arqui- vos coloniais, quer públicos, quer privados. Analisa até que ponto a estética de Avó (Muidumbe) (2009) e Nshajo (O Jogo) (2010) implica uma política e uma ética da história e da memória relevantes para pensar criticamente as amnésias coloniais e as nostalgias imperiais que ainda caracterizam uma condição pós-colonial marcada por padrões neo-coloniais de globalização e por relações difíceis com comunidades migrantes e diaspóricas. Em particu- lar, é prestada atenção às histórias e às memórias da ditadura portuguesa e do império colonial; das lutas de libertação / guerras “coloniais” combatidas em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau entre 1961 e 1974; da Revolução dos Cravos em Portugal em 1974; e da independência das antigas colónias portuguesas entre 1973 e 1975. Palavras-chave: Arquivo Colonial; Descolonização; Imagem em Movi- mento; e Arte Arquivística.

* Ana Balona de Oliveira é investigadora de pós-doutoramento (FCT), Universidade de Lisboa (CEC/FLUL) e Universidade Nova de Lisboa (IHA/FCSH/NOVA). E-mail: [email protected]

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 19-27, jan./jun. 2017 21 Avó e O Jogo, ou o Arquivo Colonial “em Movimento” nos Vídeos de Raquel Schefer

Abstract Granny e The Game, or the colonial archive “in motion” in Raquel Schefer’s videos This essay investigates the ways in which the video practice by Raquel Schefer (Portugal, 1981) has been working towards an epistemic and ethico-political decolonization of the present by means of critical examinations of several sorts of colonial archives, whether public or private. It analyses the extent to which the aesthetics of Granny (Muidumbe) (2009) and Nshajo (The Game) (2010) puts forth a politics and ethics of history and memory relevant to thinking critically about the colonial amnesias and imperial nostalgias which still pervade a post-colonial condition marked by neo-colonial patterns of globalization and by uneasy relationships with diasporic and migrant com- munities. In particular, attention is paid to the histories and memories of the Portuguese dictatorship and the colonial empire; the liberation wars / the “colonial” war fought in Angola, Mozambique and Guinea-Bissau between 1961 and 1974; the Carnation Revolution in Portugal in 1974; and the inde- pendence of the former Portuguese colonies between 1973 and 1975. Keywords: Colonial Archive; Decolonization; Film and Archival Art.

Este ensaio examinará a forma como a práti- Que tipos de arquivos são desvelados por ca videográfica de Raquel Schefer (Portugal, esta prática artística investigativa e que es- 1981) tem contribuído para uma descoloni- tratégias arquivísticas descolonizadoras são zação epistémica e ético-política do presen- postas em movimento no e pelo próprio tra- te através da investigação crítica de vários balho, que constitui, como defenderei, um tipos de arquivos coloniais, quer públicos, arquivo em si mesmo? As obras em análise quer privados. Indagarei até que ponto a apoiam-se, na sua maioria, sobre a materia- estética do seu trabalho videográfico im- lidade arquivística das imagens reproduzi- plica uma política e uma ética da história das mecanicamente pelo cinema, donde o e da memória relevantes para pensar criti- meu uso da expressão “em movimento” no camente as amnésias coloniais e as nostal- título deste ensaio. Ao usar a expressão ima- gias imperiais que ainda caracterizam uma gens “em movimento”, refiro-me também à condição pós-colonial marcada por padrões própria deslocação da fonte arquivística que neo-coloniais de globalização e por relações a realização da obra envolve. Isto é, os docu- difíceis com comunidades migrantes e dias- mentos de arquivo também estão “em movi- póricas. Em particular, será prestada aten- mento” na medida em que são apropriados ção às histórias e às memórias da ditadura e inseridos na obra, que dessa forma adquire portuguesa e do império colonial; das lutas uma qualidade arquivística sem se transfor- de libertação / guerras “coloniais” combati- mar em arquivo num sentido literal (FOS- das em Angola, Moçambique e Guiné-Bis- TER, 2004; GODFREY, 2007). sau entre 1961 e 1974; da Revolução dos Mas, o movimento de imagens coloniais Cravos em Portugal em 1974; e da indepen- da materialidade crua dos arquivos, em si dência das antigas colónias portuguesas en- mesmos mais caóticos e granulares do que tre 1973 e 1975. ordenados e lisos (DERRIDA, 1996; STO-

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LER, 2009), até à sua aparição nas obras mas destas imagens são recuperadas em ar- em questão implica também uma transfor- quivos privados da família da própria artista mação, com consequências ético-políticas, e se relacionam com experiências pessoais, das suas qualidades estéticas. Por isso, em e porque o seu uso artístico opera no senti- terceiro lugar, nas obras em análise, as ima- do de convocar as memórias e experiências gens coloniais também se movem no sentido do próprio espectador, a sua qualidade en- em que são subvertidas pelos próprios ges- quanto imagens “em movimento” (moving) tos artísticos que as revelam. Isto é, são não também se refere à emoção (affect) e ao seu só recuperadas, como também deslocadas valor epistemológico e ético-político. Por úl- nas imagens “em movimento” do vídeo. Este timo, o movimento em questão em algumas processo permite que o passado surja como das imagens de arquivo com que a artista imagem, mas sem que esta seja congelada, trabalha refere-se também ao trânsito de fixa ou fetichizada, na linha da concepção de pessoas (quer forçado, quer proibido) e de passado de Walter Benjamin, segundo a qual mercadorias em tempos coloniais e pós-co- o passado emerge como imagem-clarão mo- loniais, bem como à fluidez das identidades mentânea naqueles momentos de perigo em diaspóricas. Examinarei agora de que for- que o presente reconhece o passado como ma as qualidades estéticas destas imagens uma das suas preocupações (1999, p. 247). de arquivo “em movimento” permitem que O processo também permite que o passado as mesmas se constituam como espaços éti- surja como imagem espectral, que o que de- co-políticos no presente para as histórias e sapareceu apareça na visibilidade do écran, memórias que as atravessam. o que, por sua vez, torna possível a tarefa Em Avó (Muidumbe) (2009), histórias e ético-política, decorrente de uma preocu- memórias familiares e intergeracionais cons- pação com a justiça, de encontro com o que tituem o objecto das investigações de Schefer do passado continua a assombrar o presente através do vídeo.2 A obra começa com ima- (DERRIDA, 1994; GORDON, 2008). gens de chuva torrencial, filmadas em 1960 O objectivo destas práticas artísticas é pelo seu avô, autor do filme doméstico com descolonizar o nosso conhecimento e as nos- que a artista compõe o seu curta-metragem. sas emoções em relação ao passado colonial. Este foi o momento da chegada da família à Isto é, trata-se de inscrever as histórias e as sua nova residência em Muidumbe, no norte memórias reprimidas do colonialismo e do de Moçambique, onde o avô de Schefer as- império, algumas das quais privadas e fami- tar para uma tendência para a amésia do impé- liares, num debate público sobre a condição rio e para a falta de debate crítico sobre este na pós-colonial; de contribuir para um exame sociedade portuguesa contemporânea, distan- crítico da forma como o passado continua a cia-se de qualquer psicologização colectiva, que culmina em generalizações estereotipadas que afectar o presente; de promover a sua lem- ignoram as realidades concretas das desigualda- brança sem cair na nostalgia.1 Porque algu- des de classe, raça e género. Por outras palavras, a obra de Gil acaba por cair na mesma não-ins- 1 É importante clarificar que o meu uso dos ter- crição amnésica que pretende criticar. Para uma mos “inscrição” e “não-inscrição” ao longo deste crítica à obra de Gil, e a O Labirinto da Saudade ensaio, embora possa evocar Portugal, Hoje: O de Eduardo Lourenço, conferir Rodrigues Lo- Medo de Existir de José Gil, não é devedor das pes, 2010, p. 227-239. elaborações deste autor em torno de uma supos- 2 Sobre a noção de pós-memória enquanto memória ta “portugalidade”, que redundam num essen- de eventos experienciados indirectamente através cialismo problemático (veja-se GIL, 2004; GIL, de transmissão intergeracional, nomeadamente 2009). Apesar de o meu uso destes termos apon- em contexto familiar, conferir Hirsch, 2012.

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sumiria o cargo de chefe do posto adminis- os espectros, os fantasmas de Mueda que ela trativo. O filme gira em torno da figura da convida a entrar na casa dos avós. avó, dos seus movimentos lúdicos e felizes, Como Jacques Derrida salientou, no con- quase infantis, para a câmara, na varanda da texto não só da sua noção de “hantologie”, casa nova, enquanto a família se abrigava da mas também do que denominou como poé- chuva e aguardava o acesso ao interior. Cor- tica dos espectros ou “poétique des spectres” pos brancos e negros habitam este mesmo – a qual, à maneira de Jacques Rancière, não espaço exíguo, esta espécie de limbo entre o pode constituir-se senão também como po- exterior e o interior, mas a linha divisória é lítica (2004), como “politique des spectres” bem patente na forma como o corpo bran- –, é uma das tarefas ético-políticas do pre- co, quer masculino, quer feminino, se mo- sente aprender a viver de forma mais justa, vimenta, em contraste com o imobilismo o que aqui, para Derrida, significa “apren- silencioso do corpo negro, aparentemente der a viver com fantasmas, na presença de, submisso. Estamos em 1960, e a felicidade à conversa com, na companhia, ou na ca- conjugal e familiar deste espaço doméstico maradagem, no comércio sem comércio de não passa de écran (FREUD, 2006 [1899]), fantasmas” (1994, Exordium, tradução da velando a realidade do massacre de Mueda autora). Ele acrescenta: “este estar-com es- a 16 de Junho de 1960, a trinta quilómetros pectros seria também, não só mas também, dali, zona descrita como sendo “pacífica”, de uma política da memória, da herança e de “gente amistosa e ordeira”.3 Schefer encarna gerações” (1994, Exordium, tradução da a figura da avó: no início do filme, tira me- autora). Ele que, como sabemos, perseguia didas e faz provas para uma réplica da in- obssessivamente espectros etimológicos, dumentária que a avó veste (calças, blusa e numa poética dos espectros e numa política chapéu). A meio, já vestida como a avó, mas da memória, da herança e de gerações tam- ainda não assumindo o seu papel, lê, como bém ao nível da linguagem como escrita, di- se estivesse a ensaiar, as palavras com as ferença e diferimento (1976; 2001), chamou quais a avó descreve o momento da chegada a nossa atenção para o facto de que os es- à casa nova de Muidumbe. No final, desfo- pectros pertencem, tal como nós, os espec- cada, podendo por isso já quase confundir- tadores, à frequência de uma certa visibili- se com a avó, mas sendo ainda reconhecível, dade – no caso dos primeiros, à visibilidade percorre o jardim e dança, imitando os ges- do invisível – e que o écran “tem sempre, no tos que vemos nas imagens de arquivo. Nas fundo, no próprio fundo de que é feito, uma cenas finais, a voz-off de Schefer, assumida estrutura de aparição em desaparecimento” sempre como neta, descreve aquilo que, ao (1994, p. 125, tradução da autora). Esta es- contrário da vida pacífica de gente amistosa trutura de “aparição desaparecida”, mas de e ordeira que nos é dada a ver, não foi nem aparição apesar de tudo, ou de aparição de- fotografado, nem filmado. Observando a fe- saparecida como forma de resistência, atra- licidade doméstica de Muidumbe, ouvimos, vés das imagens, contra a amnésia histórica através das palavras de Schefer, os mortos, e a não-inscrição, faz lembrar igualmente as 3 Conferir o argumento do vídeo. Este massacre lições de Georges Didi-Huberman sobre as foi um dos eventos que despoletou o início da imagens sobreviventes e as imagens “apesar luta armada, por parte da FRELIMO, contra o colonialismo português em Moçambique em de tudo” (2002; 2008), bem como os escri- 1964. tos de Avery Gordon acerca de “assombro”,

24 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 19-27, jan./jun. 2017 Ana Balona de Oliveira segundo os quais “um desaparecimento só é RA, 2016; RIBEIRO SANCHES, 2017). real quando aparece” (2008, p. 63, tradução Com efeito, o casal Dias efectuou o seu da autora). trabalho de campo numa área e num pe- Em Nshajo (O Jogo) (2010), Schefer dá ríodo de crescente mobilização clandestina continuidade às suas reflexões em torno de contra a presença colonial portuguesa, que histórias e memórias da violência colonial culminaria na fundação da FRELIMO em portuguesa através de excertos de filmes 1962 (dois anos após o massacre de Mueda) amadores realizados pelo seu avô no norte e no início da luta armada em 1964. Enquan- de Moçambique. Em vez da representação da to dirigia a MEMEUP, Jorge Dias escrevia felicidade conjugal e doméstica, sobressaem relatórios confidenciais para o Ministério do agora imagens de arquivo de cariz etnográfi- Ultramar, onde dava conta da influência que co de cerimónias tradicionais e do quotidia- os movimentos independentistas do territó- no do povo maconde, em cujo pano de fundo rio vizinho do Tanganyika (actual Tanzânia) emerge igualmente a realidade da opressão exerciam sobre os macondes de Moçambi- colonial. O vídeo está dividido em três par- que. Às relações estreitas entre a MEMEUP tes: Nshajo (O Jogo), A Maçã e Vayungu (O e o Ministério do Ultramar, acresce a com- Conto do Homem Branco). A primeira sec- plexidade das relações entre observadores e ção inicia-se com um texto introdutório so- observados que a própria prática etnológica bre Jorge e Margot Dias, o casal de antropó- e etnográfica implicavam no período colo- logos portugueses que estudou o povo ma- nial, particularmente no cinema. Com efeito, conde no norte de Moçambique, no contexto apesar da sua enorme relevância para a his- da “Missão de Estudos das Minorias Étnicas tória da etnografia portuguesa, os filmes de do Ultramar Português” (MEMEUP), diri- Margot Dias não deixam de estar imbuídos, gida por Jorge Dias entre 1957 e 1961.4 Se, como muitos outros exemplos de cinema et- por um lado, o trabalho científico do casal nográfico realizado por cineastas europeus Dias culminou numa das mais importantes no continente africano, de um olhar que não obras da etnografia portuguesa – os quatro escapa inteiramente a uma representação volumes de Os Macondes de Moçambique exoticizante das sociedades africanas, neste 6 (1964-1970) –5, incluindo mesmo a realiza- caso a maconde. ção de vários filmes etnográficos por parte Diante da impossibilidade de recorrer a excertos dos filmes de Margot Dias,7 de Margot Dias, por outro lado, não pode Schefer deixar de ser compreendido no âmbito das utiliza imagens suas e imagens de arquivo relações próximas que o casal manteve com dos filmes amadores realizados pelo seu avô o poder colonial do Estado Novo (PEREI- 6 Manuela Ribeiro Sanches dá como exemplo bem RA, 2005; WEST, 2006; DOMINGOS, 2015; diferente de uma representação cinematográfica deste período o filme que o moçambicano Ruy FERREIRA, 2015; FERREIRA, 2016; WEST Guerra realizou na mesma zona logo após a in- e DOMINGOS, 2016; BALONA DE OLIVEI- dependência de Moçambique – Mueda, Memó- ria e Massacre (1979-1980) –, na linha das aná- 4 António Jorge Dias (1907-1973); Margot Schmi- lises da própria Schefer (RIBEIRO SANCHES, dt Dias (1908-2003). O trabalho do casal Dias e 2017; SCHEFER, 2016). da sua equipa constituíu uma mudança de pa- 7 Os filmes etnográficos de Margot Dias encon- radigma (tardia) em Portugal, da antropologia tram-se no Arquivo do Museu Nacional de Etno- física para a antropologia social e cultural. logia em Lisboa e foram de difícil acesso até há 5 O quarto volume foi da responsabilidade de Ma- pouco tempo. Foram editados em DVD no final nuel Viegas Guerreiro. Conferir Dias, Dias e Vie- de 2016 numa parceria entre o Museu Nacional gas Guerreiro, 1964-1970. de Etnologia e a Cinemateca Portuguesa.

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 19-27, jan./jun. 2017 25 Avó e O Jogo, ou o Arquivo Colonial “em Movimento” nos Vídeos de Raquel Schefer

junto da comunidade maconde na mesma Mais especificamente, a avó conta a história zona onde o casal Dias efectuou trabalho do jantar em que terá inadvertidamente fei- de campo. A primeira secção do seu vídeo, to com que Jorge Dias desistisse de comer marcada por essa dificuldade em utilizar à mão uma maçã sul-africana à sobremesa fragmentos dos filmes de Dias – como, por para fazê-lo com faca e garfo, de forma a se- exemplo, Jogo do Nshayo das Raparigas, guir o exemplo da sua anfitriã. Tal como em Aldeia de Ntchamu (1961) – é constituída Avó (Muidumbe), Schefer parece represen- por imagens de pendor etnográfico de um tar o papel da avó. Logo de seguida, assis- grupo de jogadores de pétanque filmadas timos a excertos de imagens de arquivo dos por Schefer em Paris. O propósito foi o de filmes amadores do avô de Schefer, docu- “inverter” a dinâmica de poder entre obser- mentando os macondes a dançar – como se, vadores e observados que se encontra tanto invertendo o que sucedera ao jantar entre a nos filmes de Margot como nos do seu avô, e avó e Jorge Dias, fosse agora a vez do avô mostrar comunidades europeias – parisien- imitar a prática de Margot Dias, neste caso ses, neste caso – como etnografáveis. Parece fílmica. Na terceira parte do vídeo, Vayungu haver aqui uma alusão crítica implícita ao (O Conto do Homem Branco), Schefer lê em legado importante mas controverso de Jean voz-off um conto maconde que encontrou no Rouch – o chamado “pai” do cinema etno- quarto volume de Os Macondes de Moçam- gráfico e do cinéma vérité –, e uma aborda- bique, da autoria de Manuel Viegas Guerrei- gem algo semelhante à estratégia de inver- ro. Narrada pela própria artista em língua são utilizada por Manthia Diawara no seu shimakonde, a história equipara metaforica- filmeRouch in Reverse (1995).8 Neste filme, mente a vivência do colono em Moçambique Diawara torna-se numa espécie de etnógrafo à de um violento peixe fora de água, e reza em Paris, recorrendo ao método Rouchiano da seguinte forma: antigamente, os brancos da “shared anthropology”, mas invertendo-o eram peixes; um dia, um homem negro foi de modo a que o próprio Rouch se transfor- pescar; o peixe fora de água transformou-se me no seu “native informant”. num homem branco, de quem os negros to- Além disso, tal como Diawara surge no maram conta enquanto crescia; entretanto, écran e em voz-off, também Schefer inscreve o homem branco começou a adquirir coisas, a sua subjectividade corpórea na visibilidade momento a partir do qual começou a cau- (e na sonoridade, como explicitarei adiante) sar sofrimento aos negros; desde então, o do seu próprio filme. Em A Maçã, a segun- homem branco nunca mais parou de tratar da parte do vídeo de Schefer, a artista surge mal os negros. sentada à mesa, em primeiro plano, a des- Enquanto ouvimos esta história em shi- cascar e a comer uma maçã com faca e garfo, makonde, assistimos a imagens de arquivo com uma paisagem de vegetação luxuriante dos filmes do avô de Schefer: primeiro, ima- em pano de fundo, enquanto se ouve a sua gens de pesca do quotidiano maconde; de- avó a narrar um episódio da estadia do casal pois, imagens de uma visita de autoridades Dias em sua casa no norte de Moçambique. militares portuguesas a um posto adminis- 8 Diawara também escreveu, entre outros auto- trativo no norte de Moçambique, filmadas res, sobre o projecto de Super 8 que Rouch rea- no fim da década de sessenta, ou seja, já du- lizou em Moçambique, a convite da Universida- rante a guerra de libertação/ guerra “colo- de Eduardo Mondlane, após a independência (DIAWARA, 1992). nial”. Na senda de Fanon, mostra-se como é

26 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 19-27, jan./jun. 2017 Ana Balona de Oliveira a violência do colonizador que exige e legiti- a história e a memória, incluindo privada ma a tomada de acção violenta por parte do e familiar, em vista da descolonização dos colonizado (2001). nossos conhecimentos e afectos, das nossas Uma descolonização epistémica e éti- teorias e práticas. co-política da nossa condição pós- e neo- colonial globalizada requer que olhemos para aquilo que, do passado, continua a Raquel Schefer, Avó (Muidumbe), 2009. Vídeo, afectar o presente, as formas pelas quais a Filmografia10 min 47 seg. nostalgia do império, os silêncios da memó- Raquel Schefer, Nshajo (O Jogo), 2010. Vídeo, ria traumática e as repressões da amnésia 7 min 54 seg. continuam a surtir efeito ao nível das divi- Manthia Diawara, Rouch in Reverse, 1995. UK, sões sócio-económicas e raciais das nossas USA, 52 min. sociedades contemporâneas (APPADURAI, Margot Dias, Filmes Etnográficos, 1958-1961, 2013; CHAKRABARTY, 2000; COMARO- 2016. Cinemateca Portuguesa – Museu do FF, 2012; MBEMBE, 2014, 2015; MIGNO- Cinema/Direcção-Geral do Património Cultural LO, 2011; RIBEIRO SANCHES, 2006; SOU- e Museu Nacional de Etnologia, 3 DVDs. SA SANTOS; MENESES, 2010; SPIVAK, 1999). Para a tarefa de desvelar, sem conge- lar e sem “fetichizar”, uma aparição sempre em desaparecimento, o passado enquanto APPADURAI, A. The Future as Cultural imagem, surgindo como clarão naqueles ReferênciasFact: Essays on the bibliográficas Global Condition. Lon- momentos de perigo em que é reconhecido don: Verso, 2013. pelo presente como uma das suas preocupa- BALONA DE OLIVEIRA, A. Imagens e Sons de ções (BENJAMIN 1999, p. 247), o arquivo Revolução entre o Altaneiro e o Subterrâneo / Images and Sounds of Revolution between the torna-se ferramenta indispensável. Como Towering and the Underground. In Ângela Fer- lugar de “começo” e de “comando”, Derrida reira. In: Underground Cinemas & Towering notou, “o arquivo funciona sempre, e a prio- Radios, 7 - 50. Lisboa: EGEAC - Galerias Muni- ri, contra si próprio”, alojando sempre tanto cipais, 2016. o Eros da preservação como o Thanatos do BENJAMIN, W. Theses on the Philosophy of caos, da desordem, da perda e da destruição History. Illuminations. Trad. Harry Zorn. Lon- don: Pimlico, 1999). (1996, pp. 11-12, tradução da autora). Fun- ciona sempre contra si próprio, de acordo CHAKRABARTY, D. Provincializing Euro- com Ann Stoler, porque “ler de acordo com o pe: Postcolonial Thought and Historical Difference. Princeton, N.J.: Princeton Univer- grão do arquivo” é precisamente aquilo que sity Press, 2008. nos permite ver a sua textura “mais granular COMAROFF, J. & COMAROFF, J. L. Theory do que lisa”, a “superfície áspera que lhe dá from the South, or, How Euro-America is matiz e forma” (2009, p. 53, tradução da au- Evolving toward Africa. Boulder: Paradigm tora). As “superfícies àsperas” dos arquivos Publishers, 2012. e écrans artísticos de Raquel Schefer, mais DELEUZE, G. Cinema I. The Movemen- granulares do que lisas, poderão considerar- t-Image. Trad. Hugh Tomlinson and Barbara se como fazendo uma certa forma de justi- Haberjam. Minneapolis: University of Minneso- ça à dificuldade epistémica e à necessidade ta Press, 1997. ético-política do nosso encontro crítico com DELEUZE, G. Cinema II. The Time-Image.

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 19-27, jan./jun. 2017 27 Avó e O Jogo, ou o Arquivo Colonial “em Movimento” nos Vídeos de Raquel Schefer

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Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 19-27, jan./jun. 2017 29 Virgem Margarida (2012), de Licínio Azevedo

As contradições do projeto da nação moçambicana pós-independência no filme As contradições do projeto da nação

mfioçalmembi Virgemcana pós-independên Margarida cia no Licínio Azevedo (2012), de

Alex Santana França*

Resumo O presente artigo pretende analisar as contradições do projeto da nova nação moçambicana, proposto pelo governo pós-independência, através do filme Virgem Margarida (2012), dirigido pelo cineasta brasileiro-moçambicano Licínio Azevedo. A metodologia de análise fílmica proposta segue a perspec- tiva de interpretação sócio-histórica (VANOYE, 2014). Acredita-se que ao retomar o ano de 1975, quando Moçambique torna-se oficialmente um país independente, e em que se dará, na prática, o projeto de nova nação, em parte delineado ainda no período de luta de libertação, Virgem Margarida traz alguns questionamentos à funcionalidade desse projeto, apresentando falhas que não estavam previstas quando então elaborado. Defende-se que a recorrência ao passado no filme não funciona como um desejo de reviver o ir- recuperável, e sim, estabelecer uma reflexão crítica sobre os acontecimentos históricos referidos, a fim de, inclusive, oferecer outras narrativas e olhares sobre esse fatos, que não necessariamente dialoguem com os discursos ofi- ciais, como os das personagens femininas do filme, que sofreram opressão e violência, ao longo de toda a narrativa, desde a captura delas em Maputo pelos soldados do Exército da FRELIMO, até o treinamento militar ao qual são submetidas para que atingissem o status de “Mulher Nova”. Palavras-chave: Cinema e Nação; Moçambique Pós-Independência; Licí- nio Azevedo.

Abstract

Virgin MaTherg caonridtraadictions of the project of nation-building inThis pos essayt-independen explore questionsce raisedMoza mbybique the film in Virgin the fMargaridailm (2012), directed by Brazilian-Mozambican (2012), by Licínio director Azevedo Licínio Azevedo, regarding the

* Doutorando do Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura (PPGLitCult/UFBA). E-mail: [email protected].

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process of nation-building in post-independence Mozambique for an un- derstanding of country’s post-colonial experience. The critical methodology utilized in this essay follows the perspective of socio-historical interpretation (VANOYE, 2014). Virgin Margarida takes place in 1975, when Mozambique officially became an independent country, raising questions about the viabili- ty of the FRELIMO national project, with faultliness that where not foreseen at the time. This essays argues that the return to past in this film does not operate as a regressive desire to revive the irretrievable past, but to engage a critical reflection on certain historical events to offer alternative narratives and perspectives that do not necessarily align witn official government dis- cours. This is particularly the case with the opression and violence suffered by female characters in the film who were arrested in Maputo by FRELIMO soldiers to be sent to re-education camps where would achieve the status of “New Women” as envisioned by the Marxist-Leninist party in power. Keywords: Film and Nation; Mozambique After Independence; Licínio Azevedo.

“Só revendo o passado conheceremos o pre- do “Homem Novo” proposta pela FRELIMO sente. Só conhecendo o presente faremos a (Frente de Libertação de Moçambique)3, perspectiva do futuro. São três elementos ainda durante o confronto contra Portugal, fundamentais na sociedade: o passado, o visava, entre outros objetivos, repudiar o presente e o futuro. São histórias... são pági- nas marcadas pela história. Não podemos ir colonial e o tradicional, baseando-se em va- contra elas. História é história! […]” lores nacionalistas, em símbolos patrióticos, (Samora Machel, 1982).1 nas relações interpessoais de solidariedade e na formação político-militar (CABAÇO, O enredo de Virgem Margarida (2012), 2009, p. 305). Em relação à mulher, o obje- longa-metragem dirigido pelo cineasta bra- tivo era criar a “nova mulher moçambicana” sileiro-moçambicano Licínio Azevedo, com fora dos estereótipos e ideais colonialistas. argumento escrito pelo próprio Azevedo A proposta deste artigo é analisar as contra- junto com Jacques Akchati e montagem de dições desse projeto, através do filme sele- Nadia Ben Rachid, constrói-se baseado no cionado. período no qual foi criado e funcionou os Em entrevista a Leonardo Ferreira chamados “centros de reeducação” em Mo- (2015), o diretor explicou, com mais deta- çambique, uma das estratégias, no campo lhes, como surgiu a ideia do filme: sócio-comportamental, adotada pelo go- A ideia do filme surge-me, como documen- verno do presidente Samora Machel após a tário, a partir de uma foto do meu amigo Ri- independência do país, em 1975, para a efe- cardo Rangel, o grande fotógrafo moçambi- tivação do projeto do “Homem Novo” e da cano, da geração do Ruy Guerra, que faleceu “Mulher Nova”2 moçambicanos. A criação há uns cinco anos. Um dia mostrou-me uma 1 Arquivo Histórico de Moçambique – Fundo tes ao assunto, não há menção ao termo no femi- Oral. “Reunião com os Comprometidos, 1982”, nino. Fundo SM0006 (apud MENESES, 2015, p. 42). 3 A FRELIMO unificou e conduziu a luta de inde- 2 A expressão “mulher nova” foi uma escolha do pendência contra Portugal, e assumiu o governo autor, para diferenciar os gêneros, pois nos do- após o fim dessa guerra (tornando-se partido cumentos oficiais e artigos consultados referen- político em 1977).

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 28-43, jan./jun. 2017 31 Virgem Margarida (2012), de Licínio Azevedo

As contradições do projeto da nação moçambicana pós-independência no filme foto: uma mulher, prostituta, de minissaia, de Comunicação Social, época em que a TV escoltada por dois militares, guerrilheiros estava em fase experimental. Durante cinco recém-saídos da guerra pela Independência. anos foi responsável, nesse instituto, pelo Era o começo da operação que tinha como programa televisivo semanal Canal Zero, objetivo levar todas as prostitutas, símbolo da decadência e exploração colonial, para que recebeu vários prêmios internacionais. centros de reeducação no interior do país, no Como escritor, além de Diário da liberta- meio da selva, entre animais selvagens, para ção, publicou Moçambique com os mirage serem transformadas em “mulheres novas”. sul-africanos a 4 minutos (1980), Rela- Eu próprio, ultra-idealista na época, julgava tos do povo armado (1983), Coração forte aquele processo algo de positivo. Rangel deu (1995) e o romance Comboio de sal e açúcar o nome à foto, “A Última Prostituta”, mas de (1997). Através de um breve levantamento maneira bastante irônica. A foto me inspirou para um documentário que fiz, com o mesmo de sua produção fílmica, extensa e reconhe- título, documentário bastante tradicional, cida internacionalmente, é possível obser- baseado em entrevistas com reeducandas e var uma grande variedade de questões refe- reeducadoras (ex-combatentes) pois o tema, rentes às experiências políticas, históricas e na época, não permitia grandes fantasias. No sociais moçambicanas, como as consequên- documentário, com os depoimentos das ree- cias da guerra civil pós-independência, em A ducandas, sobretudo, me dei conta do que guerra da água (1995) ou O acampamento realmente havia acontecido em nome das boas intenções, todo o lado machista, etc. da desminagem (2005), a repercussão e es- Um homem entre 500 mulheres. Elas conta- tratégias de combate da epidemia de AIDS ram-me a história de Margarida, uma cam- em Night Stop (2002), ou práticas sócio- ponesa adolescente que foi levada por enga- culturais diversas do contexto moçambica- no para o centro de reeducação. A história de no, em filmes comoRosa Castigo (2002) e O Margarida, para mim, merecia uma ficção e grande bazar (2006), entre outros. Muitos não alguns minutos de documentário (FER- de seus filmes também exploram os temas REIRA, 2015). da migração, dos deslocamentos e das trocas Nascido no Rio Grande do Sul, Licínio culturais, como A árvore dos antepassados Azevedo iniciou sua carreira profissional (1995), que retrata o retorno de refugiados no jornalismo, na década de 1970, em Por- de guerra à terra natal. to Alegre, em plena ditadura militar no país. Quando questionado, em entrevista ao Ainda como repórter, percorreu quase site C7NEMA, sobre o que pensava em re- toda a América Latina, escrevendo sobre te- lação aos centros de reeducação, Azevedo mas sociais. Trabalhou igualmente em Por- considerou inicialmente o processo como tugal e na Guiné-Bissau, onde, durante dois algo positivo. Ele afirma que, apesar daque- anos, atuou na formação de jornalistas, e la opinião favorável, lembra que, na época, também escreveu o livro Diário de liberta- não havia informação alguma sobre o que se ção (1977). Ele chegou a Moçambique logo passava nos centros: “Até o meu documen- em seguida, radicando-se no país em 1978. tário, praticamente nada se falou sobre o Trabalhou no Instituto Nacional de Cinema tema. Foi nas filmagens de A Última Pros- (INC), importante centro de produção de tituta que soube como as coisas haviam se cinejornais, documentários e longas-metra- passado” (C7NEMA, 2015). O diretor acre- gens, criado em 1975. Após extensa expe- dita que o filme funciona como “gancho para riência no INC, Azevedo atuou no Instituto se falar sobre aquela situação, a relação en-

32 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 28-43, jan./jun. 2017 Alex Santana França tre as mulheres e as guerreiras camponesas, de uma época, as ficções respeitam (salvo e sobre como eventualmente todas se unem em certos gêneros específicos que tem suas contra a opressão” (O GLOBO, 2015). próprias leis, como os filmes de terror) as re- Em relação à escolha do gênero do filme, gras da verossimilhança. Para Wolfgang Iser ao justificar a opção de construir Virgem (2002, p. 957), crítico literário alemão, a Margarida como filme de ficção, a fala de distinção entre textos ficcionais e não-ficcio- Licínio endossa um discurso recorrente no nais a partir desse critério (vinculação à ver- campo do cinema que defende a extrema dade, à realidade) é certamente questioná- distinção entre o filme documentário (cons- vel, alegando que textos supostamente não- tantemente utilizado pelos historiadores ficcionais, como por exemplo, os históricos, para o entendimento aprofundado de ques- não seriam totalmente isentos de ficciona- tões atuais ou retomadas sob perspectivas lidade, assim como os textos ficcionais não de investigação histórica), e o filme de ficção são isentos de realidade no todo. O historia- (ainda visto sem o mesmo prestígio e credi- dor Hayden White (2005, p. 43-44) também bilidade por, por exemplo, alguns historia- compartilha a ideia de que os textos histó- dores). Muitos acreditam que o documen- ricos e ficcionais “são mais semelhantes do tário traz para o espectador uma realidade que distintos da realidade” (WHITE, 2005, própria, sem a mediação de uma situação p. 44). O debate, nesse aspecto, permanece, predominantemente imaginária, como ocor- e pensando justamente nisso, Licínio Azeve- re na ficção. Contudo, outros defendem que do tem mesclado sua produção fílmica en- esta mesma realidade pode ser representada tre o documental e o ficcional, enfatizando a partir de sua refiguração, através da ima- os possíveis objetivos e as características ginação, da criatividade e da inspiração de- diferenciadas de cada um deles. No caso de dicadas durante o processo (LESSA, 2013, p. Virgem Margarida, pela complexidade do 59). Isto significa dizer que no filme docu- contexto histórico abordado, a escolha e de- mentário também é possível encontrar, com fesa pelo filme de ficção, pode isentá-lo, por bastante frequência, elementos comumente exemplo, de problemas com o governo do associados à ficção: “imaginação, criativida- país e autoridades da FRELIMO. de, subjetividade e o exercício de uma visão de mundo particular, resultado da inspira- O Projeto da Nação ção do autor” (LESSA, 2013, p. 57), todos Moçambicana e o “Homem estes elementos, por sua vez, de alguma forma, voltados para modelos discursivos Novo” comprometidos com critérios de validade na O projeto da nova nação moçambicana pós vinculação de informações sobre o histórico. -independência, na concepção da FRELI- Assim, a diferença entre o cinema docu- MO, visava a transformação de todos, sem mental e o cinema de ficção, como aponta a exceção, “diante de sua imersão na dupla historiadora Michele Lagny (2009, p. 113), práxis do trabalho com o povo e da guerra é totalmente incerta, já que a ficção pode se como instrumento de aprendizagem per- inspirar frequentemente no documentário manente e progressiva” (CABAÇO, 2009, p. ou o documentário na ficção. Mesmo quan- 314). A expressão “homem novo”, ou seus do a temática dos filmes de ficção não se re- similares, “novo homem comunista” e “novo fira a eventos ou preocupações dominantes homem socialista”, tomando como referên-

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As contradições do projeto da nação moçambicana pós-independência no filme cia o Dictionary of Political Thought (1982), sobre a função da cultura nos processos pré elaborado por Roger Scruton, e pós independência:

foi usado desde a década de 1920 tanto por foram contributos necessários para que os seguidores como por críticos do comunismo povos, submersos no colonialismo, avalias- soviético, com o intuito de descrever certa sem a situação particular relativamente a transformação não só na ordem econômica, outras situações, aparentemente análogas, mas também no nível da personalidade in- e tomassem em consideração os componen- dividual. Essa transformação ocorreria, ou tes culturais que praticam classes subalter- deveria ocorrer, tanto sob o socialismo como nas para se aproximarem de uma definição sob a “plenitude do comunismo” para onde particular de cultura popular (GARCÍA, o socialismo supostamente caminharia. Con- 1999, p. 23). forme essa lógica, ao possuir uma essência histórica, o homem passa a ser, em algum O próprio Cabral, em seus textos, defen- sentido, uma criatura diferente sob uma nova dia o valor da cultura como elemento de re- ordem econômica, de modo que os valores e sistência ao domínio estrangeiro, pelo fato as aspirações que o motivavam previamente de ela ser “a manifestação vigorosa, no pla- já não podem ser nem compreendidas, nem no ideológico ou idealista, da realidade ma- reconhecidas (SCRUTON, 1982, p. 322 apud terial e histórica da sociedade dominada ou MACAGNO, 2009, p. 20). a dominar” (CABRAL, 1999, p. 102). Assim, Essa perspectiva, pautada pela ideologia foi com base na teoria do nascimento de marxista, teve fortes implicações no conti- um “Homem Novo” e uma “Mulher Nova” nente africano. Um dos responsáveis pela (ambos restituídos à sua própria história) e adaptação do marxismo à realidade da Áfri- na concepção de luta anticolonial como um ca, de forma crítica e criativa, foi Amílcar processo de transformação política, econô- Cabral, importante líder político de Cabo mica e mental que Cabral desenvolveu suas Verde e Guiné-Bissau. Com base nas prin- ideias (VILLEN, 2013, p. 125). cipais referências do marxismo e do estudo No caso de Moçambique, também se ob- das classes sociais, ele desenvolveu uma for- serva a extensão desse projeto e discurso ma de luta própria contra o regime de espo- ideológico. Segundo Eduardo Mondlane, liação colonial e se ergueu com “a crítica das um dos fundadores e primeiro presidente da armas e as armas da crítica” para conduzir Frelimo, à vitória o Partido Africano da Independên- como todo nacionalismo africano, o de Mo- cia de Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC), çambique nasceu da experiência do colonia- diante de regime colonial português. O pro- lismo europeu. A fonte de unidade nacional jeto político do PAIGC, entretanto, ia além é o sofrimento comum durante os últimos cinquenta anos sob o domínio português. O da conquista da independência. Seu objetivo movimento nacionalista não surgiu numa principal era realizar um trabalho de educa- comunidade estável historicamente com ção político-cultural com o propósito de aju- uma unidade linguística, territorial, econô- dar o povo africano a entender o seu “direito mica e cultural. Em Moçambique, foi a domi- de possuir a própria história”, ou seja, de se nação colonial que deu origem a comunidade territorial e criou as bases para uma coerên- tornar protagonista e arquétipo do próprio cia psicológica, fundada na experiência da destino. No prefácio do livro Nacionalismo e discriminação, exploração, trabalho força- cultura, escrito por Cabral, Xosé Lois Garcia do e outros aspectos da dominação colonial afirma que as observações do líder africano (Mondlane, 2011, p. 333).

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A fala de Mondlane endossa a proposta vozes, compacta, singular, unificada. Porém, da FRELIMO de acreditar e defender que esse unitarismo reproduzirá, mesmo que a definição de “Homem Novo” se opunha a com conteúdos inversos, a mesma gramáti- ca assimilacionista e intolerante em face dos algo velho, no caso, representado pelo colo- particularismos culturais, veiculada pelo dis- nizador português, seus hábitos, culturas, curso colonial português (MACAGNO, 2009, mentalidades e comportamentos. Assim, no p. 20). processo de luta pela libertação, essa visão do inimigo (o português) foi fundamental Assim, “esse processo de união foi levado para o desenvolvimento de uma consciên- a cabo (...) pelo Estado/Partido Frelimo que cia nacional comum (MENESES, 2015, p. assumiu o papel dirigente e de vanguarda 10) e, para tal concretização, era necessário denunciando os desvios doutrinais promo- uma ruptura radical com a história colonial vidos pelos inimigos da nação” (MACAGNO, e com as relações sociais, econômicas e polí- 2009, p. 21), e, para alcançar êxitos, essa ticas herdadas do colonialismo (MENESES, ambiciosa “operação de engenharia social 2015, p. 10). e moral” (MACAGNO, 2009, p. 21) pautou- A primeira vez que Samora Machel abor- se em “uma parcela de tortuosidade e vio- dou de forma central e sistemática a ideia de lência” (MACAGNO, 2009, p. 21). A iden- “Homem novo” foi em 1970, de acordo com tificação de ‘quem é o inimigo’, “fulcral aos Sérgio Vieira, ex-membro do Comitê Cen- processos políticos em situações de guerra” tral da FRELIMO (apud MACAGNO, 2009, (MENESES, 2015, p. 10), e o entendimento p. 21), da sua forma de atuar, portanto, tiveram um papel decisivo no contexto moçambicano e em um discurso pronunciado na II Confe- rência do DEC (Departamento de Educação continuam presentes “nas disputas entre os e Cultura) em Tunduru. Nessa ocasião, afir- vários projetos políticos contemporâneos” mava a necessidade de “Educar o homem (MENESES, 2015, p. 10). para vencer a guerra, criar uma sociedade Esses inimigos que, durante a luta de li- nova e desenvolver a pátria”, sendo imperio- bertação centravam-se na figura dos coloni- so, “depois de demonstrar-nos a nocividade, zadores portugueses, após a independência, quer da educação tradicional, quer da edu- cação colonial, explicar os objetivos educa- passaram a ser identificados principalmente cionais que nos propomos atingir, em função como internos, isto é, aqueles moçambica- da nova sociedade pela qual lutamos” (Ma- nos que atuaram ao lado dos portugueses chel, 1978a, p. 8, apud Macagno, 2009, durante o período colonial, além daqueles p. 21). que defendiam o ‘tribalismo’, a ‘preguiça’, o Para Lorenzo Macagno (2009, p. 20), ‘tradicionalismo’. Nos discursos oficiais da Frelimo, por exemplo, em boa parte deles a construção da nação moçambicana como uma entidade homogênea só é compreensí- proferidos pelo líder do movimento, Samora vel sob a lógica do enfrentamento a uma ou- Machel, primeiro presidente do país após a tra entidade que se apresentava igualmente independência, o ‘tribalismo’, a ‘superstição’ homogênea: a nação portuguesa e suas pre- e a ‘tradição’ eram os elementos menciona- tendidas províncias de ultramar. A tão dese- dos que operavam no sentido de fragmenta- jada morte da tribo não passava, então, de ção, atentando, portanto, contra a tentativa um desejo de união, de uma forma de con- jurar a herança colonial. Sob essa lógica, a de construir a nação moçambicana (MA- nação seria, na imaginação de seus porta- CAGNO, 2009, p. 21). João Lopes (2009,

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As contradições do projeto da nação moçambicana pós-independência no filme p. 38) também lembra que os primeiros do- que não existe nenhuma “comunidade na- cumentos oficiais da data da independência tural” em torno da qual se possam reunir já refletiam o desejo do novo poder de criar as pessoas que constituem um determina- a unidade da nação moçambicana. A Cons- do agrupamento nacional, ela precisa ser tituição da República dizia que eram seus inventada, imaginada. Portanto, torna-se objetivos fundamentais: a defesa e consoli- necessário “criar laços imaginários que per- dação da independência e da unidade nacio- mitam ‘ligar’ pessoas que, sem eles, seriam nal (como consta no artigo 4), assim como o simplesmente indivíduos isolados, sem ne- combate enérgico contra o analfabetismo e nhum ‘sentimento’ de terem qualquer coisa obscurantismo, o desenvolvimento da cultu- comum” (SILVA, 2000, p. 85). ra e de personalidade nacionais (como cons- Os chamados discursos de fundação, ta no artigo 15) (LOPES, 2009, p. 38). quando construídos, visavam atender a esse A ideia de nação que se desenvolveu a propósito, ser elemento de ligação e de in- partir do século XIX na Europa (e que foi, de terpelação, e incluíam uma série de símbo- certa forma, adotada por países africanos, los, precisamente poemas, imagens visuais, como Moçambique, que tiveram experiência hinos, moedas, selos e monumentos, que de colonização, após suas independências), operariam como “elementos centrais do es- de fato, propunha, entre seus princípios, a forço fundacional para a constituição de um união da comunidade em torno de projetos imaginário social que, a seu tempo e a sua comuns. O filósofo e historiador francês Er- vez, terminaria por ser objeto de lembrança nest Renan, um dos primeiros estudiosos a e se objetivaria na memória nacional oficial” teorizar sobre o assunto, acreditava que uma (ACHUGAR, 2006, p. 204). Além dos sím- das funções da nação era criar e manter um bolos, as narrativas nacionais, produzidas a comportamento de fidelidade dos cidadãos partir da rede intertextual que representa a em relação ao Estado (RENAN, 1997). Bene- coesão imaginária da coletividade ligada a dict Anderson (1989) também acredita que uma suposta ancestralidade comum a todos, a consciência nacional constrói-se a partir costumam ser atualizadas à medida que no- de elementos constitutivos imaginados co- vos textos passam a integrá-las, produzin- muns a todas as experiências de formação do novos sentidos, mas sempre se referin- da nação. O primeiro subsídio da imagina- do a um passado pretensamente imutável ção nacional seria sua capacidade de criação (Hall, 2006, p. 51). Cabe a essas narrativas de fronteiras finitas que dariam às mesmas fornecer: condições de contenção de seu acesso, fa- Uma série de estórias, imagens, panoramas, zendo da nação uma comunidade limitada. cenários, eventos históricos, símbolos e ri- Outro elemento adequado seria o empe- tuais nacionais que simbolizam ou represen- nho em afiançar que haja uma incontestável tam as experiências partilhadas, as perdas, soberania dada a um Estado autônomo que os triunfos e os desastres que dão sentido à nação (HALL, 2006, p. 52). zele pelos exclusivos interesses dos que a ele se encontram subordinados e, por fim, con- O teor imaginativo da nação encontra-se cebendo um sentimento de pertencimento justamente no argumento de que os inte- à comunidade que fraternalmente faça seus grantes de uma nação se alimentam de uma integrantes se imaginarem como compa- comunhão construída que não estabelece a nheiros profundos e iguais. Na medida em obrigatoriedade de que um membro do gru-

36 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 28-43, jan./jun. 2017 Alex Santana França po conheça todos os demais integrantes, mas “lógica de recordação/esquecimento” (MA- a imagem de comunhão entre os mesmos é CAGNO, 2009, p. 29), através de “violentas suficiente para garantir a constituição de um medidas revolucionárias, como a implanta- vínculo de comunidade. No caso de Moçam- ção da Operação Produção e a construção bique, o projeto de nação também deveria de prisões, eufemisticamente denomina- estar pautado pelas “ideias de igualitarismo, das Centros de Reeducação”, assim como distribuição da riqueza social e democra- a guerra entre a FRELIMO e a RENAMO, cia participativa” (CABAÇO, 2009, p. 314). entre 1976 e 1992 (MACAGNO, 2009, p. 29). Entretanto, como lembra Hugo Achugar, o projeto “patriarcal e elitista”, discurso fun- Virgem dante do Estado-nação, em especial o que se Margarida desenvolveu na América Latina, excluiu não Análise do filme só a mulher, mas os índios, negros, escravos, A metodologia de análise proposta nesse analfabetos e, em muitos casos, aqueles que trabalho segue a perspectiva de interpreta- não possuíam propriedades (ACHUGAR, ção sócio-histórica (VANOYE, 2014), que 2006, p. 204). Assim, no modelo de nação concebe o filme “como um produto cultural proposto inscrito em um determinado contexto só- cio-histórico”, e que traz como hipótese di- as diferenças étnicas, linguísticas, religiosas retriz a ideia de que um filme “sempre fala e econômicas, raízes de conflitos intestinos ou de possíveis conflitos no futuro, foram do presente, ou sempre diz algo do presente, escamoteadas a favor de um todo nacional do aqui e do agora de seu contexto de pro- íntegro, patriarcal e fraterno, republicano dução” (VANOYE, 1994, p. 54). Para a pes- e disciplinado, aparentemente coeso e, às quisadora Manuela Penafria (2015), duas vezes, democrático. Os cacos e as sobras do etapas são fundamentais nesse processo: a material de construção, que ajudou a elevar decomposição, ou seja, a descrição do filme; o edifício da nacionalidade, são atirados ao lixo da subversão, que deve ser combatida a e a interpretação, isto é, o estabelecimento e qualquer preço pela polícia e pelo exército compreensão das relações entre os elemen- (SANTIAGO, 2008, p. 58). tos decompostos. A análise de conteúdo, por exemplo, que considera o filme “como Para isso, o discurso sobre a nação pres- supôs o “esquecimento e o silenciamento, um relato e tem apenas em conta o tema ou o supôs como uma condição intrínse- do filme” (Penafria, 2015, p. 6), implica, em ca, como natural à sua lógica discursiva” primeiro lugar, identificar-se o tema de um (ACHUGAR, 2006, p. 164). O relato da his- filme, para em seguida, fazer um resumo da tória oficial, portanto, construiu-se não só a história e a decomposição do filme tendo em partir de dados e fontes que se escolheram conta o que o filme diz a respeito do tema conscientemente para se ter em conta, mas (Penafria, 2015). a partir do “esquecimento” que deixou de A cena de abertura do filmeVirgem Mar- fora dados e fontes que o sujeito não conse- garida, com um caminhão circulando por guia “ler” ou “lembrar” (ACHUGAR, 2006, ruas de Maputo repleto de pessoas cantando p. 164). e levantando cartazes com os dizeres: “A luta Em Moçambique, o surgimento de uma continua”, “Unidade, trabalho e vigilância” nova consciência nacional também exigiu e “Independência ou morte: venceremos”; uma nova forma de amnésia, seguindo a e a frase: “Inspirado em acontecimentos e

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As contradições do projeto da nação moçambicana pós-independência no filme personagens reais - Moçambique 1975”, que Suzana dançava no palco de uma dancete- surge ainda nos créditos iniciais, inserem o ria, Luísa estava sentada defronte a uma das filme em um momento histórico. Integrada mesas do bar trocando carícias e beijos com nesse contexto, a narrativa apresenta em um homem; havia outro casal na mesa tam- seu decorrer a história de cinco mulheres, bém demonstrando muita intimidade. Nes- quatro destas (Rosa, Suzana, Luísa e Marga- sas cenas iniciais, percebe-se que, além de rida) estariam no grupo “subversivo”, isto é, apresentar algumas das personagens princi- o das mulheres que não seguiam as normas pais do filme, com pequenas narrativas in- propostas pelo novo governo, portanto, “ini- trodutórias, elas também destacam algumas migo”, e uma, Maria João, representaria o características das personalidades dessas governo e sua proposta de comportamento personagens, que serão mais aprofundadas ideal para a nova nação. Nas cenas seguin- adiante: a geniosa e, ao mesmo tempo, bem tes, são apresentadas as rotinas de cada uma humorada, Rosa, a maternal Suzana, a inde- dessas mulheres, seus desejos, demandas e pendente Luisa. algumas características de suas personali- Sabe-se que a narrativa fílmica é orga- dades. A primeira personagem protagonis- nizada e sistematizada em planos fílmicos. ta que aparece em cena é Rosa, que estava Segundo Bruno Silva (2013, p. 97), a ação saindo de casa para trabalhar, enquanto o temporal de um filme pode se desenrolar tal caminhão continuava circulando pela locali- qual a duração objetiva da vida, em uma ten- dade. Suzana é apresentada na cena seguin- tativa de reprodução mecânica e fotográfica te: mãe solteira, de duas crianças, enquanto da realidade. Para isso, “o curso temporal se arrumava para ir trabalhar, observava e da vida sofre cortes contínuos no sentido de orientava os filhos durante a refeição do café produzir um movimento peculiar que garan- da manhã. Todos os dias as crianças ficavam te a sua especificidade em relação ao empíri- aos cuidados da vizinha, Dona Vanda, até co” (SILVA, 2013, p. 97). Esse efeito é conse- o retorno da mãe deles no tardar da noite. guido através da montagem. De acordo com Depois dessa cena, tem-se a apresentação de Lukács (1982), “a montagem é um princípio Luísa, arrumando-se em frente ao espelho, estético e ideológico, cujo efeito criador pro- ao mesmo tempo em que é criticada pela duz refigurações da realidade que sustentam mãe por conta da vestimenta, considerada a credibilidade ou a falseabilidade”. por ela “indecente”. A mãe de Luisa retoma O processo de montagem proporciona “a a memória do marido, alegando que se ele ligação que estabelece uma lógica narrativa estivesse vivo não permitiria que a filha saís- e o espaço temporal em uma película” (SIL- se de casa trajada daquela maneira. VA, 2013, p. 99). Tal procedimento, costu- O plano posterior mostra o movimento, meiramente considerado técnico, entretan- à noite, da rua Araújo, famosa na capital to, não se reduz a esse aspecto, “tampouco moçambicana pelos bares e danceterias, as- a concepções simplificadas na organização sim como pela prostituição. Após esse plano do material, sobretudo quando se leva em de localização, Rosa apareceu novamente consideração a responsabilidade de fazer na cena, dessa vez, oferecendo seus servi- emergir representações das condições ob- ços a um dos marinheiros que andava pela jetivas de existência” (SILVA, 2013, p. 99). calçada. A indiferença do homem deixou-a Em relação ao filme Virgem Margarida, bastante irritada. Na sequência, enquanto duas possibilidades de montagem podem

38 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 28-43, jan./jun. 2017 Alex Santana França ser observadas para a construção narrativa: parar ali, são questões que serão reveladas uma delas, é a montagem narrativa, segun- aos poucos. Nesse sentido, Dancyger (2007, do Michel Martin (2013, p. 147), p. 400) afirma que

o aspecto mais simples e imediato da monta- a premissa da não necessidade de mostrar gem, que consiste em reunir, numa sequên- tudo leva logicamente à questão do que é ne- cia lógica ou cronológica e tendo em vista cessário mostrar. Que elementos da cena, em contar uma história, planos que possuem in- uma série de planos, fornecerão os detalhes dividualmente um conteúdo fatual, e contri- necessários para levar o público em direção bui assim para que a ação progrida do pon- ao que é mais importante, afastando-se do to de vista dramático (o encadeamento dos menos importante? É aqui que surge a esco- elementos da ação segundo uma relação de lha do tipo de plano - o plano geral versus causalidade) e psicológico (a compreensão o plano médio, o plano médio versus o clo- do drama pelo espectador). se-up. É aqui também que surge a decisão sobre o posicionamento da câmera - objetiva A apresentação sequencial de cada per- ou subjetiva (DANCYGER, 2007, p. 400). sonagem protagonista (na ordem, Rosa, Su- zana, Luísa, Margarida e Maria João) ilustra Somente na cena em que Margarida está a escolha pela montagem narrativa (pela li- sentada ao lado de Luísa no ônibus, em dire- nearidade das ações) o que torna a narrativa ção ao norte do país, descobre-se o que acon- mais facilmente compreensível. Segundo Ken teceu com ela. Margarida explica que estava Dancyger (2007, p. 400), a clareza na narra- em Maputo com a tia para comprar produ- tiva é alcançada justamente “quando o filme tos do enxoval de seu casamento, quando foi não confunde os espectadores. Isso requer interpelada e interrogada por um soldado, uma ação contínua de um plano ao outro e que também pediu seus documentos. Entre- a manutenção de um sentido claro de dire- tanto, separada da tia, sem saber ler nem es- ção entre os planos” (DANCYGER, 2007, p. crever e sem qualquer documento, Margari- 400). Para alcançar tal objetivo, o montador da acabou sendo levada à força pelo soldado depara-se com alguns desafios: “escolher o ao caminhão. Enquanto conta sua história, plano que melhor sirva ao propósito dramá- Margarida pede a Luísa que escreva em um tico do filme” (DANCYGER, 2007, p. 400) e, lenço o nome de cada cidade por onde pas- escolhido o plano, “como cortar de um plano sassem. O ônibus atravessa as localidades para o seguinte a fim de gerar continuidade” de Xai Xai, Maxixe e Save. Todos os lugares (DANCYGER, 2007, p. 400). são registrados no lenço pela escrita de Luí- A escolha do diretor (em parceria com o sa e posteriormente bordados pelas mãos de outro roteirista, Jacques Ackchati, e a mon- Margarida. Ela deseja utilizar aquele lenço tadora, Nadia Ben Rachid) para a introdu- como prova de sua inocência, diante do seu ção da personagem Margarida (ela aparece sumiço, para o noivo. Surpresa, Luísa não pela primeira vez, já capturada dentro do acredita que Margarida fosse noiva, mas a caminhão), por exemplo, funcionou satis- menina insiste que estava falando a verda- fatoriamente, pois evitou repetição de cena, de, afirmando, inclusive, que o rapaz já ha- assim como não ofereceu naquele momento via pago o “lobolo” (espécie de acordo fami- muitos detalhes sobre a história da perso- liar para o casamento tradicional). Um dos nagem, criando expectativas no espectador desafios da personagem, ao longo do filme, é para desvendá-las: o que Margarida fazia provar, diante das desconfianças das outras naquele caminhão, quem era ela, como foi mulheres, que não era prostituta. Uma vez

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 28-43, jan./jun. 2017 39 Virgem Margarida (2012), de Licínio Azevedo

As contradições do projeto da nação moçambicana pós-independência no filme que Margarida tinha noivo e era virgem, ela nial, Virgem Margarida aponta para algu- não se encaixava no perfil das mulheres que mas contradições no exercício desse proje- precisavam ser reeducadas, portanto, deve- to, apresentando falhas que, possivelmente, ria ser liberada a fim de voltar para casa. não estavam previstas quando elaborado. A A personagem Maria João, por sua vez, violência e opressão sofridas pelas mulheres representa o lado da ordem (do Exército da no filme é um exemplo disso. Em uma das FRELIMO). Ela, inclusive, lutou durante a sequências da narrativa, soldados do Exér- guerra de libertação de Moçambique contra cito moçambicano entram em um dos hotéis Portugal. Maria João aparece pela primeira da rua Araújo, na época, um dos lugares da vez no filme, quando, ao conversar com um capital moçambicana que representava um dos comandantes, recebe a notícia de que resquício do colonialismo, por isso deveria teria uma nova missão a cumprir: supervi- ser combatido, e recolhem todas as mulhe- sionar um centro de reeducação localizado res que estavam nele. Todas elas são levadas no norte do país. Surpresa, ela ainda tenta para outro local, passam por um processo refutar a tarefa, alegando que sua priorida- de triagem, com análise de documentos e de agora era casar e construir uma família, resposta de questionários, para identificar já que havia prometido isso ao noivo, assim quais delas representavam “perigo” para a que terminasse a guerra. Entretanto, com o nova nação, por conta de seus comporta- discurso de que “a luta não terminava com mentos morais. Outra contradição está rela- a independência, que a independência era cionada à manutenção de comportamentos apenas uma etapa da luta de libertação do de integrantes do Exército da FRELIMO, povo moçambicano”, proferido pelo co- que deveriam ser condenados e combatidos mandante, ela acaba sendo convencida de pelos próprios, mas continuavam sendo pra- suas obrigações para com o país e aceita a ticados (abuso de poder, corrupção, etc.). missão, acreditando que aquela tarefa seria Para Hayden White (2005, p. 48), não há mais curta que a anterior. uma descrição neutra dos fatos em discursos Além da construção narrativa, viu-se que vinculados à História, como se costuma acre- a montagem pode ser concebida também ditar e apontar como mais uma característica como um “princípio ideológico” (LUKÁCS, distintiva entre textos históricos e ficcionais: 1982). Segundo Michel Martin (2013, p. “os fatos não falam por si, é o historiador 169), o termo ‘ideológico’ é tomado em um quem fala por eles, quem fala em seu nome sentido mais amplo, “que serve para desig- e quem dispõe dos fragmentos do passado nar as aproximações de planos destinadas a de modo a formar um todo cuja integridade comunicar ao espectador um ponto de vista, é meramente discursiva” (WHITE, 2005, p. um sentimento ou uma ideia mais ou me- 48). Nesse sentido, haveria diferentes ver- nos precisos e gerais” (MARTIN, 2013, p. sões históricas sobre o mesmo fato, quando 169). Ele ressalta que é fundamental tam- narrados por historiadores diferentes, assim bém estudar o papel ideológico da monta- como “cada texto literário, como produto de gem. Acredita-se que, ao retomar o ano de um autor, é uma forma determinada de te- 1975, quando Moçambique torna-se oficial- matização do mundo” (ISER, 2002, p. 961). mente um país independente, e quando se Uma das características do trabalho de Li- dará, na prática, o projeto da nova nação, cínio Azevedo é justamente sua ligação com em parte delineado ainda no período colo- acontecimentos históricos de Moçambique

40 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 28-43, jan./jun. 2017 Alex Santana França após a independência. O próprio cineasta camente “com o esforço por se exprimir cla- reconhece seu interesse em contar parte da ramente, para evitar figuras de estilo elabo- história pouco conhecida do país, no caso de radas, por garantir que a persona do autor Virgem Margarida, “narrar o lado trágico não é identificável no texto e por esclarecer e absurdo de um processo social e político o significado dos termos técnicos” (WHITE, em que o coletivo elimina totalmente o in- 2005, p. 51). Entretanto, o autor defende dividual, com todos os aspectos negativos que decorrentes” (AZEVEDO, 2015), não esta- (...) qualquer conjunto de fatos pode ser des- belecendo, assim, vínculos com um possível crito de diversas formas, todas elas legítimas, cinema de propaganda do governo. e que não pode existir uma descrição única, Wolfgang Iser afirma que cada forma original e correta de algo; qualquer descrição (que não está dada de antemão pelo mundo original de um conjunto qualquer de fenô- menos constitui já uma interpretação da sua a que o autor se refere) precisa ser implan- estrutura e que o modelo linguístico utiliza- tada, neste caso, através da estratégia de se- do na descrição original desse conjunto im- leção, necessária a cada texto ficcional, dos plica, em termos de sua estrutura, a exclusão sistemas contextuais preexistentes, sejam de certas modalidades de representação e de eles de natureza sociocultural ou mesmo li- explanação e a legitimação tácita de outras terário. Para Iser, a seleção (WHITE, 2005, p. 52).

é uma transgressão de limites na medida em Portanto, as escolhas pessoais, tanto do que os elementos acolhidos pelo texto agora historiador quanto do artista, podem con- se desvinculam da estruturação semântica duzir à narrativas diferentes e também a di- ou sistemática dos sistemas de que foram to- ferentes possibilidades de leitura. Para Iser mados. Isso tanto vale para os sistemas con- (2002, p. 962), a seleção também possibilita textuais, quanto para os textos literários a apreender a intencionalidade de um texto, que os novos textos se referem (ISER, 2002, p. 961). pois ela faz com que determinados sistemas de sentido do mundo da vida se convertam White, por sua vez, também acredita que em campos de referência do texto e estes, o uso de “estratégias tropológicas e (...) mo- por sua vez, na interpretação do contexto. dalidades de representação verbal das rela- Ela, por fim, se manifesta no controle de tal ções” (WHITE, 2005, p. 48), sejam comuns interpretação, porquanto o campo de refe- não só aos poetas, romancistas, entre outros rência único que separa os elementos esco- lhidos do segundo plano que, por efeito da artistas, como aos historiadores também. escolha é excluído e, desta maneira, concede Significa dizer que os fatos apenas existem à visibilidade do mundo reunido no campo “como uma acumulação de fragmentos rela- de referência uma disposição perspectivís- cionados por contiguidade, (...) articulados tica. Neste processo, esboça-se o objeto in- entre si, de modo a formar um todo de na- tencional do texto, que deve sua realização à tureza particular e não em geral” (WHITE, irrealização das realidades que são incluídas no texto (ISER, 2002, p. 962). 2005, p. 48-49), algo semelhante ao que Iser se refere na estratégia de seleção. Ainda de acordo com Iser, A linguagem também é outro elemento (...) a intencionalidade do texto não se ma- importante nesse aspecto, na perspectiva nifesta na consciência do autor, mas sim na de White. Acredita-se que a preocupação do decomposição dos campos de referência do historiador com a linguagem tem a ver uni- texto. Como tal, ela é algo que não se encon-

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 28-43, jan./jun. 2017 41 Virgem Margarida (2012), de Licínio Azevedo

As contradições do projeto da nação moçambicana pós-independência no filme tra no mundo dado correspondente. Tam- derson, 1989) de um único povo, no suposto pouco ela é apenas algo imaginário; é a pre- apagamento da diversidade étnica em favor paração de um imaginário para o uso, que de da representação nacional. Essa nova con- seu lado depende das circunstâncias em que cepção de cinema almejava um outro públi- deve ocorrer (ISER, 2002, p. 963). co alvo, o povo moçambicano, em sua maio- No caso da narrativa escolhida, a análise, ria constituído por camponeses analfabetos. através do estudo da montagem, do processo Assim, muitos filmes produzidos no país po- de seleção e organização dos planos do filme dem ser lidos “como narrações e enunciados que constroem e conduzem toda a ação, de da nação, que nos permitem mapear parte fato, contribuiu para a leitura interpretativa das relações entre sociedade e imaginário feita, e considerações feitas a seguir. nacional. A ideia é possibilitar algumas dire- ções de decodificação do cinema como lugar discursivo que interpreta e também inventa As narrativas da nação, construídas, divul- um país” (BOTELHO, 2010, p. 16). Os dis- Consideraçõesgadas e ou consolidadas finais pela arte cinema- cursos cinematográficos, “por trazerem em tográfica, “também nos interpela a partir de seu conteúdo visões possíveis da nação e da representações e discursos de pertencimen- nacionalidade de um país, podem encarnar tos identitários” (Botelho, 2010, p. 14). toda uma construção identitária que se fazia Para Robert Stam (1996, p. 201), o cinema no período histórico em que estão inseridos” “como contador de histórias do mundo por (GONÇALVES, 2009, p. 32), assim como excelência era (e continua sendo) o veículo podem também “representar algum papel ideal para transmitir as lendas de nações e no próprio processo de formação da identi- impérios, assumindo assim um papel decisi- dade nacional” (GONÇALVES, 2009, p. 32). vo no fomento das identidades”. Além disso, Uma das estratégias adotadas pelo go- “as imagens audiovisuais levam uma vanta- verno após a independência do país para gem em relação a outras formas de repre- difusão e consolidação do projeto de nação sentação: elas podem até mesmo prescindir em construção (de cunho político-ideológico da alfabetização do espectador” (BOTELHO, marxista) foi o uso do cinema, visando pro- 2010, p. 14), fundamental, no caso moçam- pagar, em consequência, a ideia imaginá- bicano, e, “como entretenimento popular, ria de nação de um único povo, no suposto são mais acessíveis que a literatura” (STAM, apagamento da diversidade étnica em favor 1996, p. 201). da representação nacional. Percebe-se, tam- De fato, após a independência de Mo- bém, na trajetória cinematográfica moçam- çambique, o cinema foi rápida e estrategica- bicana pós-independência, a frequência de mente concebido pela FRELIMO como um obras que se propõem (re)contar e/ou (re) instrumento de descentralização da história mitificar, questionar e/ou contestar aspectos oficial escrita e endossada pelos colonizado- sociais, políticos e culturais do passado e da res e aliados, uma instância de legitimação História contemporânea (como Mueda, me- do Estado marxista em construção e, igual- mória e massacre, de 1979, dirigido por Ruy mente, como um instrumento de criação Guerra, Acampamento da desminagem, de e de consolidação de uma identidade mo- 2005, e O comboio de sal e açúcar, de 2016, çambicana, propagando, em consequência, ambos de Licínio Azevedo, entre outros). a ideia imaginária de nação (Benedict An- Retomando a frase de abertura deste traba-

42 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 28-43, jan./jun. 2017 Alex Santana França lho, trecho de um dos discursos de Samora las, na cidade de Maputo, pelos soldados Machel, “só revendo o passado conhecere- do exército da FRELIMO, a viagem longa mos o presente. Só conhecendo o presente e sem adequadas condições de transporte e faremos a perspectiva do futuro”. Boa parte de alimentação até o centro de reeducação, dos filmes de Licínio Azevedo atende a esse a falta de qualquer contato ou aviso prévio objetivo. Essa revisitação do passado, entre- à família, até o treinamento militar ao qual tanto, na perspectiva proposta pelo escritor são submetidas para que atingissem o status espanhol Julio Plaza (2001), pode se dar de “Mulher Nova”. Mesmo diante desse con- de duas maneiras: na primeira, “o presen- texto, Virgem Margarida também destaca a te recupera o passado como fetiche, como luta dessas mulheres contra essa opressão, novidade, como conservadorismo, ou como tendo, inclusive, o apoio da comandante nostalgia” (PLAZA, 2001, p. 07); na segun- responsável pelo centro, Maria João, que da, “recupera de forma crítica, tomando no final do filme mostra-se desiludida com aqueles elementos de utopia e sensibilidade o projeto pelo qual havia lutado durante a que estão inscritos no passado e que podem guerra pela independência e que imagina ter ser liberados como estilhaços ou fragmentos continuidade na construção da nova nação. para fazer face a um projeto transformativo A decepção da comandante Maria João (por do presente, a iluminar o presente” (PLAZA, conta da corrupção, da violência – a princi- 2001, p. 07). A leitura interpretativa pre- pal, o estupro que Margarida sofreu por um liminar do filme Virgem Margarida leva a dos comandantes do Exército - e do machis- deduzir que o caminho escolhido pelo dire- mo) representa a frustração diante do sonho tor não envereda pela nostalgia do aconteci- de um novo país independente (pautado em mento do passado moçambicano enfatizado. princípios de igualdade, justiça, democra- A recorrência ao passado não funciona como cia, etc.) e que poderia resultar em bons fru- um desejo de reviver o irrecuperável, e sim, tos futuros. na intenção de reflexão, denúncia e crítica. Para Lorenzo Macagno (2009, p. 26), “a Nessa perspectiva, ideia de homem novo, que começou a ser construída nos discursos de Samora Machel (...) o passado não aparece como um lugar e de outros notáveis membros da FRELI- sagrado e desprovido de espírito de conflito a partir do qual se resista ao indiferenciado MO”, entusiasmou, inclusive, muitos inte- acionar do processo da globalização, mas lectuais e militantes não-moçambicanos, como um lugar/problema a partir do qual como o próprio Licínio Azevedo comentou se assinala os vazios das histórias oficiais e em entrevista. Para Macagno, esse entusias- também os problemas de uma resistência mo para criar uma nova sociedade “neutra- potencialmente desativadora (ACHUGAR, lizava qualquer dúvida quanto à viabilidade 2006, p. 88). daquele otimismo revolucionário” (MA- Isso porque o filme expõe contradições CAGNO, 2009, p. 26). Hoje, o autor ressalta do projeto da nova nação moçambicana que o termo “Homem Novo”, passados mais pós-independência, pautado pelas ideias de trinta anos do momento em que começou de liberdade, igualdade e união, mas que a ser concebido, soa um tanto antiquado, também foi marcado pela violência, per- “não tanto pelas visões de messianismo sal- seguição e opressão, como ocorreu com as vacionista ou pelos ex-abruptos moralistas personagens do filme, desde a captura de- que evoca, mas sim porque a sociedade mo-

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 28-43, jan./jun. 2017 43 Virgem Margarida (2012), de Licínio Azevedo

As contradições do projeto da nação moçambicana pós-independência no filme çambicana foi se complexificando à medida das letras: revista do Departamento de Letras que aquela fraseologia se transformava, pro- e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana, n. 11, 2010, p. 13-29. gressivamente, em uma cópia desgastada de si mesma” (MACAGNO, 2009, p. 26), pas- CABAÇO, José Luís. Os anos da libertação. sando para uma perspectiva distinta e me- In:______. Moçambique: identidade, co- lonialismo e libertação. São Paulo: Editora nos apaixonada. UNESP, 2009, p. 243-315. Assim, defende-se que, diante desse con- CABRAL, Amílcar. Nacionalismo e cultura. texto, a recorrência ao passado no filme visa Santiago de Compostela, Galícia: Laiovento, estabelecer uma reflexão crítica sobre os 1999. acontecimentos históricos referidos, a fim DANCYGER, Ken. Técnicas de edição para de, inclusive, oferecer outras narrativas e cinema e vídeo. Tradução: Angélica Couti- olhares sobre esses fatos, que não necessa- nho e Adriana Kramer. Rio de Janeiro: Elsevier, riamente dialoguem com os discursos ofi- 2007. ciais, como a opressão e violência sofrida pe- FERREIRA, Leonardo Luiz. Perfil com o cineas- las personagens femininas no filme, desde a ta Licínio Azevedo. In:______. África, cine- captura em Maputo pelos soldados do exér- ma: um olhar contemporâneo. Rio de Ja- neiro: Gráfica Stampa, 2015, p. 36 - 39. cito da FRELIMO até o treinamento militar ao qual são submetidas para que atingissem GARCÍA, Xosé Loís. Amílcar Cabral: ideologia, o status de “Mulher Nova”. nacionalismo e cultura. In: CABRAL, Amílcar. Nacionalismo e cultura. Santiago de Com- postela, Galícia: Laiovento, 1999, p. 9-26. GONÇALVES, Maurício R. Nação, identidade ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos e cinema. In:______. Cinema e identidade Referênciasefêmeros sobre arte,bibliográficas cultura e literatura. nacional no Brasil (1898-1969). São Paulo: Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. LCTE, 2009, p. 17-33. ANDERSON, Benedict. Nação e consciência HALL, Stuart. A identidade cultural na pós- nacional. Tradução Lólio Lourenço de Olivei- modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Sil- ra. São Paulo: Ática, 1989. va. 4 ed. Rio de Janeiro: LP & A, 2006. Azevedo, Licínio. Entrevista a Licínio Azevedo, ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é o realizador de Virgem Margarida. C7nema, fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa 21.11.2013. Disponível em: (org.). Teoria da literatura e suas fontes. http://www.c7nema.net/entrevista/ vol. 2. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasilei- item/40529-entrevista-a-licinio-azeve- ra, 2002, p. 955 - 985. do-o-realizador-de-virgem-margarida. LAGNY, Michèle. O cinema como fonte de his- html#sthash.FcRXtJYD.dpuf.Acesso: tória. In: NÓVOA, Jorge; FRESSATO, Soleni 06.8.2015 Biscouto; FEIGELSON, Kristian (orgs.). Cine- Azevedo, Licínio. “O mal está no homem, não matógrafo: um olhar sobre a história. Sal- na ideologia”, diz cineasta Licínio Azevedo. O vador: EDUFBA; São Paulo: EDUNESP, 2009, Globo, 2.7.2015. Entrevista a Fabiano Ristow. p. 99-131. Disponível em: http://oglobo.globo.com/ LESSA, Rodrigo Oliveira. As representações cultura/filmes/o-mal-esta-no-homem- da vida cotidiana no cinema documentário. In: nao-na-ideologia-diz-cineasta-licinio-a- CÂMARA, Antônio da Silva; LESSA, Rodrigo zevedo-16625030#ixzz3i4o2289K. Oliveira (org.). Cinema documentário bra- BOTELHO, Marcos Cezar. Cultura nacional sileiro em perspectiva. Salvador: EDUFBA, como comunidade imaginada: representações 2013, p. 55-85. da nacionalidade no cinema brasileiro. A cor LOPES, José de Sousa Miguel. Educação e

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Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 28-43, jan./jun. 2017 45 Em nome do cinema-ação e das utopias terceiro-mundistas: intervenção dos cineastas estrangeiros no cinema moçambicano (anos 70-80)

Em nome do cinema-ação e das utopias tecinearceirsto-amsundis estrangeirotas: intesr novenção cinema dos

moçambiMahomedcano Bamba(anos* 70-80)

Resumo A história oficial da sétima arte na África quer que os cinemas africanos te- nham começado com a vontade de homens e mulheres africanos de produzi- rem imagens e narrativas sobre sua própria realidade. Sendo assim a inter- venção esporádica ou a presença perene de cineastas e artistas estrangeiros em algumas aventuras cinematográficas africanas continuam ignoradas ou obliteradas. Ao propormos uma releitura, num movimento retrospectivo, de uma parte dessas experiências de engajamento ideológico e estético de cineastas europeus e latino-americanos no cinema moçambicano, nosso ob- jetivo é triplo: 1) mostrar que o fenômeno de “transferências culturais” não é inerente unicamente ao cinema ocidental (migração e participação de ci- neastas estrangeiros na história de Hollywood); 2) relacionar parte das mo- tivações desses engajamentos estrangeiros no cinema moçambicano com as utopias e o idealismo militante da ética e estética do cinema-ação e do tercei- ro cinema em voga nas décadas de 60-70, 3) apontar, através da releitura das vicissitudes e desencantamentos que marcaram algumas dessas experiên- cias, para os limites das utopias anticolonialistas e do terceiro-mundismo cinematográfico ambiente de ontem e de hoje. Palavras chave: África; Cinema africano; transferências culturais.

Abstract

the intervention of foreign filmmakers in Mozambican In the Name of Cinema Action and Third-world Utopias: The official history of seventh art in Africa wants African cinemas to have beguncinem witha (1970s the will and of African 80s) men and women to produce images and nar- ratives about their own reality. Thus the sporadic intervention or perennial presence of foreign filmmakers and artists in some African film adventures

• Foi professor na Faculdade de Comunicação (FACOM) e no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas (PÓSCOM) da Universidade Federal da Bahia.

46 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 44-58, jan./jun. 2017 Mahomed Bamba

remains ignored or obliterated. In proposing a retrospective re-reading of a part of these experiences of ideological and aesthetic engagement of Eu- ropean and Latin American filmmakers in Mozambican cinema, our goal is threefold: 1) to show that the phenomenon of “cultural transfers” is not inherent solely in Western cinema (migration and participation of foreign fil- mmakers in Hollywood history); 2) to relate part of the motivations of these foreign engagements in Mozambican cinema with the utopias and militant idealism of the ethics and aesthetics of the action-cinema and of the third cinema in vogue in the decades of 60-70, 3) to point out, through the re-rea- ding of the vicissitudes and disenchantments that marked some of these ex- periences, to the limits of the anticolonialist utopias and of the third-world cinema environment, yesterday and today. Keywords: Africa; African cinema; cultural transfers.

As “transferências culturais”

O fim da primeira e segunda guerras mun- Nos cinemas periféricos ou incipien- nodiais campo foi acompanhado cinematográfico de uma onda de mi- tes, assistimos também a um fenômeno de gração de cineastas europeus em direção ao “transferência cultural”, embora as razões e cinema americano. A chegada de grandes motivações sejam radicalmente diferentes nomes do cinema europeu em Hollywood do contexto hollywoodiano. Falar da pre- não só se traduziu por uma renovação (re- sença de cineastas estrangeiros nos cinemas volução) estética, bem como insuflou um africanos é, antes de tudo, falar de um movi- novo ar nos modos de produção. Simples mento de sujeitos indivíduos de um local X fenômeno de cooptação ou transferência para um país X na África. Quando esta mi- cultural? Na coletânea de ensaios teóricos gração é motivada política e ideologicamen- que coordena sobre a temática, Marc Ceri- te, não há dúvida de que ela se acompanha suelo (2006) prefere falar de “transferências de uma implicação pessoal com a prática culturais”. A nova perspectiva em que ele cultural e o cinema em gestação no país em e outros pesquisadores situam o estudo da questão. O engajamento político e social no presença germânica em Hollywood (filmes cinema pode assumir várias formas, desde americanos de Murnau e Lubitsch, Lang e a realização de um filme dito militante até a Wilder...) permite encarar o fenômeno da implicação direta e pessoal nos esforços de presença dos cineastas alemães e europeus criação de uma cinematografia nacional. Os do leste na América sob uma diversidade cineastas, como atores e testemunhas de seu de aspectos. Da criação cinematográfica à tempo, sempre procuraram lugares do mun- composição musical, à fotografia e àmise en do onde manifestar, pela ação, sua simpatia scène, passando pela produção de filmes de por uma determinada causa. prestígio ou de baixo orçamento, a partici- Este artigo se interessa particularmente pação dos cineastas provenientes de Viena pela prática de engajamento representada e Berlim é reavaliada em termos estéticos, pela implicação de cineastas e intelectuais mas também culturais. estrangeiros nas utopias cinematográficas

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 44-58, jan./jun. 2017 47 Em nome do cinema-ação e das utopias terceiro-mundistas: intervenção dos cineastas estrangeiros no cinema moçambicano (anos 70-80)

num determinado país do terceiro-mundo. tica toma a realidade sócio-cultural e sócio A partir de uma releitura do caso do cinema -política como pano de fundo e como objeto Moçambicano e dentro de uma perspecti- de transformação. Além de ser uma forma va de estudo anti-colonial (e pós-colonial), de luta ideológica, a arte engajada pode ser procuraremos, num primeiro momento, re- também concebida como um meio de alcan- lacionar os motivos ideológicos de tal com- çar o conhecimento e a liberdade. promisso político com o contexto global das Em que medida o gesto de filmar resgata ideias e das teorias terceiro-mundistas que inteiramente ou parcialmente esse engaja- fervilhavam na Europa e na América latina mento da literatura e das artes? O cineas- nas décadas de 60-70 e cujos pontos culmi- ta é testemunha de seu tempo. Na ficção nantes foram o “CinémAction” (na França) e como no documentário, ele intervém sobre a teoria do Terceiro Cinema. a realidade, e quando sua obra tem caráter declaradamente pedagógico e militante, é Anos 60 e 70: contexto para agir sobre a percepção e a consciência do engajamento terceiro- do espectador. O cinema dito político ten- mundista e do “cinema-ação” tou levar até suas últimas consequências esse objetivo. O filme militante, ao se ins- As preocupações “terceiro-mundistas”, que crever na linha de uma luta de caráter polí- começaram a despontar na história do cine- tico, social ou ideológico, retrata ao mesmo ma a partir das décadas de 60 e 70, encon- tempo em que denuncia uma situação que tram-se expressas, às vezes, na teoria e nas considera injusta. De Eisenstein a Griffith, ações. O apelo pela emergência de novas passando por documentaristas como Joris cinematografias nacionais teve como res- Ivens até Michael Moore hoje, vemos que o posta a implicação direta de alguns cineas- compromisso do cinema com “boas causas” tas estrangeiros nas experiências fílmicas acompanhou as diversas fases da história do incipientes em países em luta contra a co- cinema. Essa evolução oscila entre períodos lonização e o imperialismo. Foi a partir dali de recrudescência e de crise1. Novas causas que foi se desenhando o conceito de cinema surgem. As formas do cinema militante mu- engajado (em comparação com a literatura dam, porém o princípio permanece o mes- engajada). O engajamento sartriano, como mo: o cinema a serviço da transformação sabemos, pressupõe um posicionamento do social (GAUTHIER, 2004). escritor, mas também dos artistas e intelec- 1 Hoje assistimos a uma nova forma de engaja- tuais, com relação a diversos tipos de causas mento em que é a notoriedade do artista que e problemas contemporâneos. É uma toma- serve de chamariz para uma mobilização da opinião pública e dos governantes em torno de da de posição que transcende as fronteiras. uma determinada questão. A implicação quase Esse compromisso com as boas causas desá- passional de George Clooney na causa do Darfur simboliza essa tendência. O cineasta america- gua numa espécie de engajamento universal. no, além de protagonizar a realização de filmes Se há um humanismo nisso, é porque o escri- (como diretor e produtor) sobre o drama desta tor e o artista em geral sentem-se em primei- região em rebelião no Sudão, procura denunciar na mídia o que qualifica de novo “genocídio”, ro lugar engajados no mundo circundante de com o objetivo de alertar a opinião pública e le- que eles fazem parte e, consequentemente, var a comunidade internacional a agir. Cf. filme sentem-se responsáveis pela “liberdade hu- documentário “Sand and Sorrow” (2007), diri- gido por Paul Freeman e produzido pelo próprio mana”. Qualquer atividade de criação artís- George Clooney.

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Foi nos anos 60 e 70, período histórico te” (HENNEBELLE, 1979, p. 6). O cinema em que vigorou a ideologia do cinema de militante ou de intervenção postula e atribui intervenção, que diversas experiências esté- uma missão pedagógica ao cinema. A ação ticas se multiplicaram na Europa e na Amé- passa pela organização de projeções-debates rica no sentido de conciliar teoria e ação. junto com plateias selecionadas, com o ob- Na França surge o termo de “CinémAction” jetivo de atualizar e prolongar o efeito “anti para designar aquilo que Guy Hennebelle, -imperialista” de alguns filmes. um dos seus idealizadores, define sucessi- Boa parte das ideias do cinema-ação en- vamente como um estado de espírito, um controu no Terceiro Mundo um campo de programa, uma identidade e “um movimen- aplicação. A maioria dos países, na sua luta to informal composto de cineastas, críticos, de independência, suscitou todos os tipos animadores e professores que se situam na de simpatia participativa. O apoio aos movi- dinâmica e no espírito do cinema de inter- mentos de emancipação se intensificou com venção (antigamente chamado de “militan- o fim da Segunda Guerra Mundial. Primeiro te”) para promover, diferentemente da ci- no plano puramente ideológico quando os nefilia, um cinema em contato direto com comunistas não hesitaram em romper com a vida e a ação.” (HENNEBELLE, 1979, a lógica colonialista ambiente em toda Euro- p. 6). No plano das ideias, o movimento pa dos séculos XIX e XX. No plano literário “CinémAction2” se reconhece na concepção e artístico, o apoio ao afã nacionalista das de Bela Balazs sobre o cinema3 e, por outro colônias era bem mais nítido nos escritos de lado, reivindica sua filiação com o manifesto vários autores. O cinema pós-colonial fran- argentino “Hacia un tercer cine”, de Solanas cês, tal como concebido por Caroline Eades e Getino. Na perspectiva do cinema de in- (2006), revela parte desse compromisso dos tervenção, a ação deve ser o prolongamento cineastas da época com a realidade colonial. natural das formalizações teóricas das fun- Diferentemente dos filmes produzidos e -fi ções sociais do cinema. O cinema-ação deve nanciados pelo Império colonial francês, o se desenvolver nos lugares do mundo em cinema pós-colonial francês, de acordo com que a intervenção no campo da práxis social a autora, é formado por apenas um corpus se torna primordial. De acordo com Hen- de cinquenta filmes que têm em comum o nebelle, o cinema de intervenção consiste fato de conterem na sua trama narrativa um simultaneamente numa concepção e numa questionamento da expansão imperialista. metodologia que permitem evitar o engodo São filmes que produzem um contra-discur- do “cinefilismo”. Sendo assim, o que se pro- so ideológico. O “discurso oposicionista” de cura valorizar são “a informação, a análise, a algumas obras sobre a presença colonial da teoria e a ação no estilo claro e transparen- França na Argélia ou na Indochina se de- marcava do discurso histórico oficial na me- 2 Existe também uma revista trimestral com o mesmo nome que continua sendo publicada até dida em que punham em cena as derivas e o os dias de hoje e aborda os cinemas do mundo “fim iminente e confirmado da colonização”. em toda a sua diversidade temática e estilística, Através desse cinema pós-colonial, muitos ainda que, de fato, seu tom tenha se tornado me- nos político e ideológico do que no passado. cineastas afirmavam seu engajamento a fa- 3 O cinema, de acordo com Bela Balazs, é como vor da descolonização e professavam pela um mundo imaginário que se sobrepõe ao mun- do real e o transforma, modificando a percepção narrativa ficcional sua fé no sacro-santo que temos de nosso universo. princípio da auto-determinação dos povos.

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 44-58, jan./jun. 2017 49 Em nome do cinema-ação e das utopias terceiro-mundistas: intervenção dos cineastas estrangeiros no cinema moçambicano (anos 70-80)

Foi em nome desse mesmo princípio nal. Duas décadas mais tarde, era a vez de do cinema social e ideologicamente enga- Cuba abrigar um dos maiores centros de for- jado que, entre os anos 60 e 70, muitos ci- mação em cinema e audiovisual, ampliando neastas estrangeiros se espalharam mundo assim o conceito de cooperação sul-sul em afora (América Latina, Caribe, África) para matéria cinematográfica. Apesar da incom- realizar filmes anti-colonialistas em países preensão que pontua a realização e a recep- em que as utopias cinematográficas nacio- ção desse filme monumental dedicada à ilha nais começavam a brotar. Em alguns casos, caribenha, Kalatozov entrou para a história criou-se uma espécie de conjunção e comu- do cinema por causa da ousadia formal e es- nhão entre utopias individuais e naciona- tética da sua obra, mas também por causa listas. Em outras situações, dificuldades de do idealismo e ingenuidade que completa- toda sorte revelaram rapidamente os limites ram seu engajamento ideológico numa rea- do cinema de intervenção. Por exemplo, as lidade cultural diferente. experiências de cinema militante protagoni- Parte da história cultural do Moçambi- zadas por Gillo Pontecorvo e Mikhail Kala- que pós-colonial é fortemente relacionada tazov (em contextos diferentes) se tornaram a esse princípio de engajamento univer- notórias na história do cinema mundial, sal que fez com que cineastas estrangeiros tanto pelo aspecto anedótico quanto pelo (europeus, mas também brasileiros) par- impacto estético real de tais aventuras fílmi- ticipassem do processo de criação do cine- cas em países em luta de libertação. Ponte- ma no país. Depois de uma longa guerra de corvo não só realiza o maior filme sobre a descolonização contra Portugal de Salazar, a guerra de descolonização na África, como jovem nação africana reconquistava sua so- abre caminho para a criação de um cine- berania em 1975. No mesmo ano, o gover- ma genuinamente argelino. As vicissitudes no criava o Instituto Nacional do Cinema de produção do filme Soy Cuba (1964), de (INC), cuja vocação seria política, cultural e Mikhail Kalatozov, representam o caso mais artística. Podemos dizer que, naquela altu- emblemático de implicação anti-imperia- ra, iniciou-se em Moçambique um processo lista de um cineasta estrangeiro num outro semelhante àquilo que Marco Ferro identi- país. Kalatazov vai até a ilha caribenha em fica como o “terceiro nível da estratificação plena revolução não só para compor um do conhecimento do passado”. E o cinema poema visual à glória do comunismo cubano era o principal agente dessa reescrita da his- triunfante, como procura retratar as maze- tória. O cineasta, como um historiador, era las sociais que justificaram a transformação convidado não só a reavaliar e re-escrever a política. Ao desembarcar com uma equipe história oficial, bem como tinha como mis- de filmagem digna de uma superprodução, são retratar a realidade pós-colonial. Como o diretor soviético, graças ao seu virtuosis- no Vietnã, em Cuba e na maioria dos países mo e suas proezas técnicas, sela, no plano latino-americanos, o cinema foi experimen- cinematográfico, a fraternidade entre a ilha tado nos últimos países africanos ainda em caribenha e a superpotência comunista na- luta contra a colonização portuguesa (Ango- queles anos 60. Primeira coprodução entre la, Moçambique) como uma arma de liber- a União Soviética e Cuba, mas também pri- tação, mas também como uma mecânica na meiro passo decisivo para a emergência de criação simbólica da nação. Tentou-se apli- uma cinematografia revolucionária nacio- car até as últimas consequências a mítica

50 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 44-58, jan./jun. 2017 Mahomed Bamba frase de Lênin: “o cinema é a mais impor- (LEQUERET, 2003). Parte dos paradoxos tante das artes”. nos cinemas pós-coloniais africanos está nesta relação ambígua com a ex-potência co- Quando o cinema nasce junto lonial e que Elisabeth Lequeret resume bem com a nação em Moçambique nesta frase: “uma relação constante e jamais desmentida com a antiga potência colonial. Posterior em mais de uma década ao resto Escolha da língua, lugar de formação dos do cinema na África, o cinema moçambica- realizadores, ajudas à produção: numerosos no surge num contexto de luta de descoloni- e poderosos, quase incestuosos são os laços zação e de guerra contra seus vizinhos (a an- que unem os diretores de cinema africano à tiga Rodésia e a África do Sul). Esse contexto França” (LEQUERET, 2003, p. 8-9). histórico de luta anti-imperialista abria um As cinematografias moçambicana e an- caminho quase natural para uma utilização golana, ao contrário, surgiram e se afirma- política do cinema, bem como preparava o ram na adversidade e na alteridade com re- terreno para uma nova forma de cooperação lação ao ex-colonizador. Isso, de certa for- com o resto do mundo. A guerra de inde- ma, permite o estudo de sua história numa pendência havia levado a um rompimento perspectiva mais anti-colonialista do que de qualquer relação com a ex-potência colo- pós-colonial4. Diferentemente dos governos nial, só restando às autoridades políticas da dos países da África francófona que abdica- nova nação lusófona da África uma coope- ram do cinema a favor de televisões públicas ração com outros países, às vezes, com base e estatais, a FRELIMO no meio da guerra de numa afinidade ideológica. Assim, os pri- independência já planejava a política cine- meiros apoios técnicos e logísticos vieram matográfica. Entre as preocupações dos di- da cooperação com Cuba e com a ex-União rigentes moçambicanos durante e depois da Soviética. guerra de independência germinam o pro- É importante salientar a particularidade jeto de dotar a nova nação em gestação de do cinema moçambicano no contexto africa- no. É uma cinematografia que, além de coin- uma forma de expressão que pudesse tradu- cidir com a utopia da construção da nação, zir os ideais da revolução e atingir as popu- distingue-se do resto dos cinemas nacionais lações rurais e citadinas. Mais tarde, a ajuda africanos pelo fato de se constituir como da França, de Cuba e da ex-URSS vieram prática cultural sem nenhuma intervenção em complemento aos esforços endógenos já da ex-potência colonial, Portugal. Como se empreendidos pela FRELIMO. No lugar de sabe, as cinematografias dos países da Áfri- um cinema independente, como era comum ca ocidental francesa (Costa do Marfim, Se- no resto dos países recém-independentes da negal, Burkina Faso) nasceram e permane- África, a FRELIMO optou declaradamen- ceram tributárias da relação de cooperação te por um cinema estatal e ideologicamen- cultural pós-colonial com a França. Os pri- 4 Mesmo num país como Argélia, em que as pri- meiros cineastas e técnicos foram formados meiras experiências fílmicas apoiadas pelo FLN no contato com os filmes de atualidades pro- e que retrataram a guerra de descolonização num tom nacionalista, as relações com a Fran- duzidos na era colonial. O direito de olhar, ça não foram totalmente rompidas, pelo menos reivindicado e exercido mais tarde pelos no plano cultural. O filme Le vent des Aurès, de Mohamed Lakhdar Hamina, foi o primeiro filme cineastas africanos, nasceu, de certa forma, africano a ter conquistado a Palma de Ouro do sob o controle e a tutela do poder colonial Festival de Cannes em 1967.

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 44-58, jan./jun. 2017 51 Em nome do cinema-ação e das utopias terceiro-mundistas: intervenção dos cineastas estrangeiros no cinema moçambicano (anos 70-80)

te marcado. O cineasta, nessas condições, Se há um período na história da África era reduzido ao mero papel de produtor de em que a questão da imbricação entre “na- imagens políticas. O interesse que o cinema ção e cinema” se mostrou crucial, foi, por- suscitava na esfera política em Moçambique tanto, naqueles anos 70, nas ex-colônias resultou na criação de um Instituto Nacional portuguesas. O cinema para a FRELIMO de Cinema (INC) e prosseguiu com a produ- naquela altura serve tanto para as pro- ção de um dos maiores cinejornais jamais postas nacionalistas quanto para a resolu- registrada na história dos cinemas africa- ção de problemas cotidianos da população nos: o Kuxa Kanema. (educação e campanhas de sensibilização O cinejornal Kuxa Kanema5 não só re- nas áreas da educação, saúde, higiene). É presentava a concretização de um cinema nesse contexto político e cultural em que o popular no sentido de “capturar a imagem cinema moçambicano ainda está numa fase do povo numa tela e restitui-la ao povo”, de balbucio que chegam Jean Rouch e sua mas simbolizava também a vontade política equipe francesa a Maputo para tomar parte de transformar o cinema numa arma de luta desse processo de treinamento da popula- ideológica e numa mecânica para a criação ção ao manuseio da tecnologia do Super-8, simbólica da nova nação moçambicana. En- para que pudesse ser protagonista desta quanto o Instituto Nacional de Cinema, cria- criação da mitologia da nação moçambica- do no ano da independência, encarregava-se na em construção. da produção e realização dos filmes de atua- lidade, unidades móveis6 percorriam o inte- A passagem de Jean Rouch rior do país para levar até o povo imagens da e Godard pelo cinema nova nação socialista. Sendo assim, o Kuxa moçambicano Kanema (o “nascimento do cinema”, na língua local) representa, na história de Mo- Geralmente, quando a concepção utilitaris- çambique, um ponto de junção que sempre ta da arte cinematográfica não se insere na existiu entre a maquinaria do cinema e as linha de um projeto governamental nacio- mistificações criadoras da nação. Se há uma nalista, ela transparece, como pano de fun- espécie de “comunidade de natureza entre a do, no trabalho de cineastas que, de forma nação e o cinema”, conforme diz J.M Frodon individual ou coletiva, procuram arquitetar (2008), é porque nação e cinema existem e uma poética do cinema revolucionário que só podem existir graças a um mesmo meca- possa transformar a realidade política e so- nismo: a projeção. cial. Artistas e intelectuais provenientes de outros horizontes e convencidos do alcance 5 Kuxa Kanema ou « nascimento do cinema » é considerado por muitos historiadores do cinema dos filmes implicaram-se diretamente nos africano como uma das primeiras ações cultu- esforços de criação de uma cinematogra- rais concretas do governo moçambicano um ano fia que pudesse refletir os anseios do povo depois da independência. O filme documentário que a cineasta Margarida Cardoso realizou em moçambicano. As contribuições foram das 2004 pode ser lido como um testemunho sobre mais variadas e correspondiam, naquele essa aventura cinematográfica, mas também como um filme-memória sobre aquele período período, a uma espécie de comunhão de so- de todas as utopias e um esforço de resgate de nhos e de utopias por parte de cineastas do uma parte da própria história da construção da norte e do sul. É bom lembrar que os anos nação moçambicana. 6 Carros doados pela cooperação soviética. 70 são marcados pela guerra ideológica

52 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 44-58, jan./jun. 2017 Mahomed Bamba acirrada entre os dois blocos hegemônicos prestava a tal experimentação por ser um e seus respectivos satélites espalhados no terreno “virgem”, em que tudo estava em mundo. Na África austral, Angola e Mo- construção. Em 1977, Jean-Rouch já tinha çambique constituem não somente o cená- travado um primeiro contato com as auto- rio onde se travam as últimas lutas de inde- ridades moçambicanas, indo à Universida- pendência, bem como são terra fértil para de de Maputo e propondo a ideia de criar a aplicação das concepções anti-colonia- oficinas que permitissem aos moçambica- listas e terceiro-mundistas do cinema. Os nos filmar a sua própria realidade. Otra- apoios técnicos de Cuba e da ex-URSS são balho subsequente da equipe de Jacques de grande valia para a FRELIMO imple- d’Arthuys fazia parte de uma nova forma de mentar uma cultura cinematográfica que cooperação cultural que o governo moçam- pudesse ensejar a propaganda revolucioná- bicano queria com o resto do mundo dis- ria de cunho marxista. A crença no poder posto a ajudá-lo. Além dos cursos rápidos e nos valores emancipadores das imagens de leitura fílmica ministrados para grupos em movimento no Terceiro Mundo fez com de pessoas selecionadas em várias camadas que os destinos de Jean Rouch e de Godard sócio-profissionais, o que os organizadores se cruzassem com uma parte da história do dessas oficinas queriam mesmo era dar ên- cinema africano. Ao desembarcarem em fase na formação prática. Isso resultou na Moçambique, os dois cineastas franceses realização de vários curtas, realizados na tinham um projeto claro: ajudar o país lu- improvisação, mas em torno de temas e as- sófono recém-independente a montar uma suntos de interesse geral (uma escola de pe- atividade cinematográfica perene. riferia de Maputo, uma velha penitenciária Em 1979, a conceituada revista Cahiers colonial transformada em escola-orfanato, du Cinéma7 publicava uma entrevista com o ambiente hospitalar, etc.). Se a experiên- quatro integrantes do Comité du Film Et- cia do Super 8 em Moçambique se asseme- nographique do departamento de cinema lha a uma prática de cinema militante ou de da Université de Paris X em que cada um intervenção é porque ela comportava uma relatava em detalhes a experiência de pro- modalidade de exibição/recepção. Os fil- dução e realização de filmes com o super 8 junto com a população de Moçambique. mes, realizados em pequenos grupos, eram Os organizadores frisavam o contexto sócio em seguida visionados a fim de provocar -político complexo, em plena mutação, em uma primeira reação entre os participan- que todos concebiam o filme como um “veí- tes. Debates que conduziam a reflexões de culo de informação e instrumento ideológi- ordem estética, mas também de cunho polí- co importante”. Sendo assim, a experiência tico e social. Como reconhece J. d’Arthuys, com o super 8 na jovem república moçam- às vezes, o teor dessas discussões apaixo- bicana tinha valor de teste sobre os reais nantes deixava essa equipe francesa deso- potenciais dessa tecnologia que permitia rientada. A dimensão pedagógica consistia explorar as dimensões políticas, econômi- basicamente em colocar a familiarização à cas e estéticas do cinema. Moçambique se linguagem cinematográfica antes de qual- quer consideração ideológica. Na avaliação 7 “Une expérience de Super 8 au Mozambique”, in Cahiers du Cinéma, nº296, janeiro de 1979, do próprio J. Rouch, a experiência do su- p.54-59 per-8 em Moçambique se revelou a “mais

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 44-58, jan./jun. 2017 53 Em nome do cinema-ação e das utopias terceiro-mundistas: intervenção dos cineastas estrangeiros no cinema moçambicano (anos 70-80) bela escola de cinema” na África, por causa A experiência frustrada de da espontaneidade e da implicação direta e Godard ativa da população local: “pela manhã, as pessoas rodavam numa aldeia. Eles revela- No final, Godard, assim como Jean Rouch, fo- vam no processador, faziam uma pré-mon- ram confrontados ao paradoxo da responsa- tagem numa moviola de super-8 e na mes- bilidade do escritor engajado tal como enun- ma tarde, numa tela de 2x1 metros, proje- ciado por Sartre: a defesa da liberdade oscila tavam na aldeia aquilo que haviam rodado entre a aceitação dos fins e a recusa de alguns pela manhã 8”. O caráter etnográfico dessa meios. O cineasta, como o escritor, quando experiência se deve aos temas e às questões se engaja numa causa e numa luta de liber- do dia a dia abordados de forma documen- tação, sente na pele o dilema de escolher en- tal: “eram pequenas histórias construídas tre os meios apropriados para chegar a uma para as atividades deles e que eram esboço finalidade. No caso do cinema popular que a de um cinema novo”. Resultou dessa práti- FRELIMO tencionava implementar, a dificul- ca pedagógica e experimental o esboço de dade de conciliar alguns meios preconizados 9 um novo tipo de cinema documentário que por Godard e Rouch entrou em choque com até hoje faz a reputação de Moçambique as propostas do partido político moçambica- nos cinemas africanos. no. De qualquer forma, essa empreitada com As razões das divergências e frustrações o Super 8 em solo africano, como qualquer que pontuaram essas experiências se situam aventura terceiro-mundista no âmbito das artes, comporta uma parte de sonho, de erro a esse nível. Enquanto Rouch e Godard ad- e de frustração decorrente da divergência en- vogavam por uma formação da população tre utopias, pessoas e políticas culturais num às técnicas e que pudesse desembocar na determinado momento da história de uma emergência de um cinema do povo para o nação. Mesmo sendo uma nação ainda em povo, o governo da FRELIMO, com a cria- fase de construção, Moçambique já tinha, nos ção de estruturas como o INC, o Centro de tempos da guerrilha, seus próprios idealiza- Estudos de Comunicações (encarregado de dores no que tangia à elaboração de projetos fomentar campanhas de informação sobre culturais e artísticos. Com a independência, saúde, educação e técnicas agrárias), pare- restava apenas pôr em aplicação essas novas cia mais interessado no fomento de um ci- ideias, mesmo se, é verdade, com a ajuda de nema estatal, feito por profissionais. Mesmo algumas nações estrangeiras. Inevitavelmen- utilizando essa infra-estrutura de base, os te havia em perspectiva um choque entre vi- organizadores franceses das oficinas reco- sões de dentro e de fora, como o ilustra bem nheciam que sua colaboração ocorria em essa anedota relatada por Carlos Patraquim paralelo com as atividades cinematográficas sobre a chegada de Godard a Maputo e a de- que eram de incumbência do INC, principal mora para ser recebido pelas autoridades mo- agente do cinema moçambicano e responsá- çambicanas (PATRAQUIM, 2000). vel pela produção hebdomadária dos cine- jornais Kuxa Kanema. 9 Godard, como relatam os historiadores daque- le período do cinema moçambicano, tinha em mente, ao chegar a Maputo, a realização de um 8 In entrevista de J. Rouch na revista eletrôni- documentário com o título profético: “Images ca Kinok: .http://www.arkepix.com/kinok/ pour la renaissance d´une nation”, numa nítida Jean%20ROUCH/rouch_interview.html. Aces- alusão ao épico de Griffith sobre a guerra de se- so em 30 de julho de 2009. cessão americana.

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Brasileiros no cinema simbólica forte na emergência da consciên- moçambicano cia de nação. Se muitos historiadores viram um ponto em comum entre o massacre de Foi também naquele contexto histórico Mueda e o motim a bordo do Encouraçado marcado pelo anti-colonialismo de frater- Potemkin, é porque os dois eventos envol- nidade intercultural que alguns cineastas e vem morte em massa de populações inocen- homens de teatro brasileiros se implicaram tes e marcam um estopim para a revolução. nos esforços para a criação do cinema mo- Ruy Guerra, com certeza, tem consciência da çambicano. O caso mais emblemático des- carga emocional e simbólica desse fato colo- se engajamento transnacional é o de Ruy nial. Por influência ou não do cinema sovié- Guerra. A própria confusão que paira sobre tico, ele decide, como Eisenstein, explorar a identidade cultural e a nacionalidade desta cinematograficamente o acontecimento que figura importante do Cinema Novo constitui diz respeito ao inconsciente coletivo do povo um traço distintivo de sua trajetória como moçambicano. O massacre de Mueda, como cineasta de todas as causas. Ruy Guerra é o a matança nas escadarias de Odessa, é uma típico sujeito cidadão do mundo; sua vida e tragédia. E como tal, ele deve ser objeto de atividade de cineasta e crítico se estendem e uma recuperação política e ideológica. 10 In- se dividem entre três países (Moçambique, tegra-se, como ingrediente, na mitologia ci- Portugal, Brasil). Quando ele deixa o Brasil nematográfica criadora na nação. e ruma de volta para Moçambique naqueles Pelos títulos e temas de seus filmes, po- anos 70 – depois de ter realizado o filme Os de-se notar que Ruy Guerra, como outro fuzis (1964) –, é com o objetivo de ajudar a grande nome do cinema moçambicano, reorganizar o cinema móvel. Passa a dirigir Fernando Almeida, tem como preocupação as atividades do INC em 1978. Seguindo os falar do presente pós-colonial e do futuro a passos de outro grande cineasta moçambica- partir de testemunhos extraídos do período no, Fernando Almeida e Silva, que já tinha da luta anticolonial de Moçambique. Esse capturado algumas imagens do período da duplo compromisso com a memória do pas- transição e da independência moçambica- sado colonial e com as utopias do presente é na, Ruy Guerra se interessa por um fato do nítido no trabalho de muitos cineastas afri- passado colonial como assunto do seu filme canos depois das independências. Seus fil- Mueda – Memória e massacre (1979). O mes são militantes na medida em que a me- filme revisita o massacre perpetrado pelas mória é seletiva e estrategicamente revisita- tropas portuguesas em Mueda no dia 16 de da. A figuração cinematográfica que dão do Junho de 1960 depois de uma revolta da po- passado deve servir de meio de agitação das 11 pulação que exigia da administração colonial consciências. Se há, portanto, uma forma o direito à auto-determinação. Para a FRE- 10 Este acontecimento ocupa um lugar importante LIMO, esse acontecimento foi a prova de no ideário histórico da FRELIMO para justificar que a independência se conseguiria só pela a sua luta anticolonialista pelas armas. Cf o livro “Datas e Documentos da História da FRELIMO” “violência da revolução” e pela luta arma- 1975, 2ª Edição de Alberto Joaquim Chipande. da. Todos os povos que aspiram à liberdade 11 O primeiro longa de Ruy Guerra em terra mo- têm suas grandes tragédias e seus mártires çambicana, Mueda – Memória e massacre (1979), divide as opiniões: alguns vêem nele que funcionam no imaginário coletivo como uma manipulação cinematográfica de um fato ponto de referência. Elas têm uma carga histórico pela FRELIMO, outros consideram o filme como um testemunho histórico.

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 44-58, jan./jun. 2017 55 Em nome do cinema-ação e das utopias terceiro-mundistas: intervenção dos cineastas estrangeiros no cinema moçambicano (anos 70-80)

de engajamento político nessa ação de Ruy guerras (guerra de descolonização e guerra Guerra no cinema moçambicano, isso se civil) que marcaram a história recente de deve ao seu trabalho como cineasta e como Moçambique. Os seus documentários mais responsável pela direção do INC. Ele cola- atuais abordam, no estilo do cinema direto, bora na cumplicidade com aquele que Luís o tema da guerra civil pelo viés dos estragos Carlos Patraquim considera “o responsável e as conseqüências que causou. Os dois fil- e a alma” da primeira série dos Kuxa Kane- mes mais expressivos neste sentido são os ma, Fernando Silva. O fruto desta colabora- documentários Hóspedes da noite (2007) ção é a inauguração de “uma nova poética e e A árvore de nossos antepassados (1994). uma temática específica ao cinema moçam- Filmados com um realismo cru e típico dos bicano” (PATRAQUIM, 2000). O resultado documentários sociais, as duas obras põem desse trabalho acabou suscitando a simpatia em cena a palavra e as ações das pessoas co- e o entusiasmo militante de outros cineastas muns. Ao longo dessas falas, o julgamento africanos e do mundo. da guerra civil fratricida em que se livraram a FRELIMO e a RENAMO aparece em fili- Licínio Azevedo: o mais grana até ser o fio condutor de toda a tra- moçambicano de todos os ma narrativa. Em Hóspedes da Noite, são cineastas brasileiros os passos e as vozes de dois ex-empregados do antigo Grand Hotel, símbolo do luxo no Se Ruy Guerra costuma ser apresentado tempo colonial, que o espectador e a câmera como o mais brasileiro do cinema moçam- acompanham nas suas perambulações nos bicano (e o mais moçambicano do cinema aposentos agora ocupados por uma popula- brasileiro), Licínio Azevedo é incontestavel- ção sem abrigo. Aos comentários se acres- mente o mais moçambicano e africano dos centam os depoimentos dos novos donos do cineastas brasileiros. A aventura africana lugar. Num dos quartos um jovem mencio- de Licínio começa e se limita ao Moçam- na a guerra civil como sendo uma das razões bique quando ele vai realizar um filme de que o obrigaram a migrar do campo para a ação, Crossing the River, uma coprodução cidade. A árvore dos nossos antepassados é com a Tanzânia. As motivações da ida desse protagonizado por uma família de refugia- jornalista gaúcho a Maputo transbordam o dos que a câmera do cineasta acompanha estrito quadro da investigação jornalística, na sua volta do exílio forçado da Tanzânia constituindo-se na prática do cinema mili- para sua aldeia do outro lado da fronteira, tante. O projeto fílmico consistia em reco- em Moçambique. Ao longo da caminhada da lher testemunhos para construir um docu- família, em suas confissões à câmera, o tema mentário sobre a guerra contra a coloniza- da causa do exílio, isto é, a guerra civil que ção portuguesa (o filme ficou inacabado). O devastou e deixou Moçambique numa situa- compromisso do brasileiro com Moçambi- ção exangue durante quase 20 anos, é rapi- que se tornou tão literário quanto cinema- damente suplantado pelo tema do retorno, tográfico. Quando os trabalhos de campo de do apelo da ancestralidade e da terra natal. Licínio não se traduziam em filmes (ficção Tais questões reaparecem no documentário ou documentário), eles tomavam a forma Mãos de barro (2003), que retrata a vida de de livros. Suas obras fílmicas e romanes- uma ceramista e ex-combatente da guerra cas exploram até hoje a temática das duas de independência, Reinata Sadimba, e seu

56 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 44-58, jan./jun. 2017 Mahomed Bamba retorno ao planalto de Mueda, terra de céle- a principal explicação para o desencanta- bres escultores de ébano. mento dos cineastas está na própria situa- Todos os filmes de Licínio são construí- ção pós-independência mal administrada dos como filmes sociais e privilegiam o pon- politicamente em Moçambique e em outras to de vista da população sobre sua realidade partes da África. Situação pós-colonial em (a luta de sobrevivência protagonizada pe- que o cinema se tornou o primo pobre das las mulheres cisterneiras no documentário políticas culturais. Assim “a emergência da A guerra da Água [1995]), e das vítimas televisão nos anos 80 e as vicissitudes da da guerra civil e o contingente de desloca- política, da economia e da guerra fizeram dos e refugiados que ela criou. Sendo as- morrer aquele sonho da criação e da conti- sim, são obras que representam uma nítida nuidade de uma cinematografia nacional” inflexão na filmografia de Licínio Azevedo (PATRAQUIM, 2000). No novo quadro que e uma distância com a estética do cinema se desenha a partir do final dos anos 80, da nacionalista. Predomina nos seus trabalhos desilusão dos cineastas moçambicanos, ori- uma preocupação estética com um tipo de gina-se uma nova fase de experimentação cinema mais engajado socialmente do que de novos modelos de produção cinemato- ideologicamente. Um cinema que escruta gráfica, dentre os quais, o vídeo. É como se o destino do pequeno povo e que explora a história se repetisse às avessas. Depois da as relações que se tecem entre a história, a experiência militante do Super 8 da equipe memória, a tradição africana, os problemas de Jean Rouch, é a vez das “ONGs, das agên- cotidianos das populações do campo e das cias internacionais e dos interesses privados cidades. Essa mudança pode significar uma definirem as exigências de produção, longe forma de desencantamento pós-colonial do das temáticas do INC e dos Kuxa Kanema” cineasta e o fim das grandes utopias nacio- (PATRAQUIM, 2000). nalistas que acompanharam os primeiros anos da independência moçambicana. Mas Os limites do cinema-ação e indica, por outro lado, certo pragmatismo e do engajamento militante em lucidez na forma como Licínio passou a ad- terra estrangeira ministrar sua carreira a partir dos anos 90 em Moçambique. 12 De todos os cineastas estrangeiros que pas- Essa mudança de postura, aliás observá- saram pelo cinema moçambicano, Licínio vel em quase todos os cineastas que partici- Azevedo foi aquele que se tornou o mais param dos primeiros esforços de criação do moçambicano e o mais visceralmente ligado cinema moçambicano, denota o fim de uma culturalmente com o país da África, sendo era marcada pelas utopias do engajamen- citado hoje como um dos grandes nomes do to ideológico. Com o incêndio que destruiu cinema moçambicano e africano. em 1987 aquilo que tinha sobrado do INC, Como Licínio Azevedo, outro brasileiro, é como se toda a memória da década prodi- José Celso Correa Martinez, homem de tea- giosa do cinema moçambicano tivesse se vo- tro mais do que de cinema, teve uma passa- latilizado junto. Para Luís Carlos Patraquim, gem pelo cinema moçambicano. Foi uma ex- periência esporádica, curta, mas intensa. Ele 12 Além de se tornar realizador independente, Licí- e sua equipe13 chegaram a Moçambique com nio Azevedo decidiu criar sua própria produtora, a Ebano Multimédia. 13 Na realidade, José Celso Martinez Correa e Cel-

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 44-58, jan./jun. 2017 57 Em nome do cinema-ação e das utopias terceiro-mundistas: intervenção dos cineastas estrangeiros no cinema moçambicano (anos 70-80)

a ideia de criar um circuito cinematográfico nial e terceiro-mundista, ele realiza, com o revolucionário. Esse projeto se inscrevia na aval e a carta branca da FRELIMO, 25, um mais pura tradição do cinema de ação ou ci- filme-homenagem, em forma de ode à revo- nema de intervenção. Aqui no Brasil, o dra- lução moçambicana: maturgo iconoclasta já havia formalizado “Nós estivemos em Moçambique filmando essa forma de intervenção política pela arte o “25” e desde o início tivemos um apoio através do projeto do Teatro Oficina, criado muito grande do Ministério da Informação, no final dos anos 50. O conceito de “cinema- que entrou na produção com uma Bolex, um ção” era uma espécie de desdobramento da gravador cassete e filme Kodak. Depois do força subversiva do teatro no campo cine- filme pronto (ele foi finalizado em Portugal) nós retornamos a Moçambique e no dia 25, matográfico. Depois do Brasil, Moçambique um ano de independência, de noite nós pas- se prestava como terra de experimentação samos a primeira sessão para o pessoal do dessa estética política. Instituto de Cinema e depois o filme foi mos- Muito se escreveu sobre essa experiência trado para a população, foi mostrado para de José Celso na África. Mas o maior tes- os dirigentes, que gostaram muito do filme temunho está no livro-memória em que o e nos convidaram para participar do institu- to, da organização do instituto” (MARTINEZ próprio dramaturgo paulista detalha as tri- CORREA, 1980). bulações e peripécias que marcaram o seu engajamento no cinema incipiente de Mo- A proposta e o objetivo da intervenção de çambique naqueles anos 70. Como a maioria José Celso e de sua equipe em Moçambique dos artistas que protagonizaram a revolução era centrar seus esforços na questão da dis- de Maio 68 através do mundo, Zé Celso con- tribuição dos filmes produzidos localmente. cebia as artes do teatro e do cinema como Mesmo sendo bem-recebidos pelas autori- meios de desmistificação. Sendo assim, o dades políticas, os problemas dos idealiza- poder transformador do Teatro Oficina não dores de Cinemação começaram surgir das só podia ser transferido para o campo cine- divergências de ponto de vista com os demais matográfico, bem como os filmes e o palco administradores das estruturas do cinema eram concebidos como espaços de experi- moçambicano. José Celso atribui essas de- mentações complementares. Nas suas peças savenças a fatores de ordem ideológica. Nas polêmicas como nos seus filmes, Celso Mar- suas confissões compiladas no livroCinema - tinez se posiciona como um artista engajado ção (1980), ele classifica os responsáveis do no sentido sartriano. A defesa da liberdade cinema moçambicano em duas categorias. não tem fronteira nem nacionalidade. Todas De um lado havia os próprios moçambica- as causas daquele momento conturbado da nos que já faziam cinema no tempo da guer- história da África e de Portugal permeiam ra de libertação e que já eram aguerridos nas suas obras14. Na sua empreitada pós-colo- técnicas do vídeo. Mas depois da indepen- so Luccas, também integrante do Teatro Oficina, dência, explica Zé Celso, “este pessoal todo encontravam-se exilados em Portugal quando foi para a zona de luta da Rodésia”, país vi- decidem ir a Moçambique, numa equipe que se resumia aos dois, Zé Celso no som, Celso Luccas zinho de Moçambique que também acabava na câmera. [N.E.] de desencadear a sua luta de libertação. Por 14 Ele realizou um filme documentário, O Parto, outro, havia na capital Maputo um grupo de sobre a revolução dos Cravos que pôs um fim a ditadura de Salazar em Portugal. [de 1975, o fil- cineastas que “foram convidados para orga- me foi co-realizado por Celso Luccas, N.E.] nizar o cinema, as pessoas que eram ligadas

58 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 44-58, jan./jun. 2017 Mahomed Bamba ao cinema já na época colonial”. No meio e do som. Com este espírito, todas as causas desses dois grupos havia a equipe do próprio e lutas transcendem as fronteiras. José Celso Martinez Correa, disposta a con- A emergência do cinema nacional mo- tribuir, do seu jeito, para o nascimento do çambicano intervém naquele período e aca- cinema moçambicano. Para isso, eles procu- ba se beneficiando dessa efervescência de raram basear o seu programa em “várias re- ideias e de ação que acompanha o conceito soluções da própria FRELIMO que durante de cinema engajado e militante. Mas como a época da guerra estabeleceu, mais ou me- toda forma de engajamento ideológico tem nos, um programa do que seria o cinema em sua contrapartida no desencantamento, não Moçambique” (MARTINEZ CORREA, 1980, é surpreendente que muitas dessas expe- p. 10). Mas, como o grupo da capital tinha riências dos estrangeiros na história de Mo- “uma compreensão muito ocidental, inte- çambique pós-colonial tenham representado lectualizada de cinema, dentro do mercado exemplos quanto aos alcances e limites do de cinema mais sofisticado…”, ele era menos cinema militante e do terceiro-mundismo ci- disposto a concordar com as concepções de nematográfico. A aventura de cada um des- um cinema, embora engajado política e so- ses cineastas ilustra, ao seu modo, a dialética cialmente, feito no improviso e no limite do da relação entre o cinema e a política. amadorismo. As dificuldades do grupo de No novo contexto geopolítico atual em Zé Celso de se fazer um lugar nessa disputa que se exalta uma espécie de aproxima- nas contribuições trazidas à emergência do ção entre países lusófonos e exalta-se uma cinema moçambicano demonstra o quanto cooperação cultural pela língua entre Bra- pode ser difícil conciliar o engajamento e o sil, Portugal e países africanos de língua idealismo de cineastas estrangeiros com a portuguesa, acreditamos que a releitura da realidade local. participação bem-sucedida ou frustrada de cineastas brasileiros na história do cinema Conclusão e da invenção da nação moçambicana pode ser rica de ensinamento para o futuro. Depois da era do cinema colonial, a África foi escolhida como terra de predileção para Referências a busca do pitoresco pelo cinema mundial. Mas os anos 70 representaram uma virada CERISUELO, Marc et alii (org.). Vienne et Berlin à Hollywood: nouvelles appro- nesse encontro do continente africano com ches. Paris: Presses Universitaires de – o resto do mundo. O engajamento pessoal e PUF, 2006. subjetivo dos cineastas estrangeiros no cine- EADES, Caroline. Le cinéma post-colonial ma moçambicano representou um momen- français. Paris: ed. Cerf-Corlet. 2006 to-chave na relação entre cinema e utopia, FRODON, Jean-Michel. La projection natio- dando uma dimensão universal ao conceito nale. Cinéma et Nation. Paris : Éditions Odi- de cinema-ação. Se o cinema continua um le Jacob. 1998. terreno fértil para todas as experimenta- GAUTHIER, Guy. “Le cinéma militant reprend ções estéticas e militantes é porque homens du travail”. In: Cinémaction nº 110, janeiro de e mulheres atrás da câmera acreditaram e 2004. continuam acreditando na emergência de HENNEBELLE, Guy. CinémAction. Revista um mundo novo graças à magia das imagens trimestral Nº 8, 1979.

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 44-58, jan./jun. 2017 59 Em nome do cinema-ação e das utopias terceiro-mundistas: intervenção dos cineastas estrangeiros no cinema moçambicano (anos 70-80)

OUDART, Jean-Pierre & TERRES, Dominique. PATRAQUIM, Luís Carlos. “Cinéma Mozambi- Une expérience de Super 8 au Mozambique en- cain: il était une fois les images ». In Africultu- trevista In Cahiers du Cinéma, n.° 296, 1979, res, nº. 26, março de 2000. p. 54-59 RAMONET, Ignacio. Propagandas silencio- LEQUERET, Elisabeth. Le cinéma Afri- sas. Petrópolis: Vozes, 2002 cain. Un continent à la recherche de son propre regard. Paris: Cahiers du Cinéma STAM, Robert. Introdução à teoria do cine- -Scérén-CNDP, 2003 ma. São Paulo: ed. Papirus, 2003. MARTINEZ CORREA, José Celso (et alii): Ci- nemação. São Paulo: Cine Olho Revista de Ci- Recebido em: 22/02/2017 nema. 1980 Aprovado em: 04/04/2017

60 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 44-58, jan./jun. 2017 Lúcia Nagib

1 Yaaba,s emCine Fronfiliat eirae Realiss mo

Lúcia Nagib*

Resumo Graças a Yaaba (Idrissa Ouédraogo, 1989) o povo mossi, de língua moré, de Burkina Faso, ganhou expressão audiovisual e física sem precedentes ou rivais. Desde as primeiras imagens, mostrando os protagonistas infantis No- poko e Bila correndo na paisagem vasta e ocre do Sahel, não resta dúvida, de que Yaaba é um filme internacional, que recicla com criatividade tropos universais num ambiente nunca antes filmado com tanto realismo. Ouédrao- go aponta como fonte da história, escrita também por ele, a literatura oral de sua região. Em que pese essa origem local, o argumento desenvolvido é claramente produto de um cinéfilo que se deixou inspirar amplamente por um dos filmes fundadores do cinema realista,Pather Panchali (Satyajit Ray, 1955). O que essa intertextualidade demonstra não é a falta de originalidade de Ouédraogo, mas o modo pelo qual realismo e tropos universais se irma- nam quando se trata de explorar um novo veio cinematográfico. Palavras chave: Yaaba; Idrissa Ouédraogo; Cinema; África.

Abstract

Thanks to Yaaba (Idrissa Ouédraogo, 1989) the Mossi people, from Burkina Faso,Yaaba, gained Cine unprecedentedfilia and Realis audiovisualm wi andthou physicalt Bo expression.rders From the first images, showing the children’s protagonists Nopoko and Bila running in the vast and ocher landscape of the Sahel, there is no doubt that Yaaba is an

1 Este artigo, originalmente escrito em inglês, é um excerto do livro de Lúcia Nagib (2011), World Cinema and the Ethics of Realism. Nova York/Londres: Continuum. A versão em português, traduzida por Ca- rolina Canguçu, foi publicada originalmente no catálogo Forumdoc.BH.2009 – 13º Festival do Filme Documentário e Etnográfico/ Fórum de Antropologia, Cinema e Vídeo. * Lúcia Nagib é professora titular de Cinema na Universidade de Reading, onde dirige o Centre for Film Aesthetics and Cultures. É autora dos livros: World Cinema and the Ethics of Realism (Continuum, 2011), A Utopia no Cinema Brasileiro: Matrizes, Nostalgia, Distopias (Cosac Naify, 2006; versão inglesa: Bra- zilon Screen: Cinema Novo, New Cinema, Utopia, I.B. Tauris, 2007), O Cinema da Retomada: Depoi- mentos de 90 Cineasatas dos anos 90 (Editora 34, 2002), Nascido das Cinzas: Autor e Sujeito nos Filmes de Oshima (Edusp, 1995), Em Torno da Nouvelle Vague Japonesa (Editora da Unicamp, 1993) e Werner Herzog: O Cinema como Realidade (Estação Liberdade, 1991). É organizadora dos livros: Impure Cine- ma: Intermedialand Intercultural Approaches to Film (com Anne Jerslev, I.B. Tauris, 2014), Theorizing World Cinema (com Chris Perriam e Rajinder Dudrah, I.B. Tauris, 2011), Realismandthe Audiovisual Media (com Cecília Mello, Palgrave, 2009), The New Brazilian Cinema (I.B. Tauris, 2003), Mestre Mizo- guchi (Navegar, 1990) e Ozu (Marco Zero, 1990). E-mail: [email protected]

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 59-68, jan./jun. 2017 61 Yaaba, Cinefilia e Realismo sem Fronteiras international film that creatively recycles universal tropes in an environment never before filmed with such realism. Ouédraogo points out as a source of history, written by him, the oral literature of his region. In spite of this local origin, the argument developed is clearly the product of a movie buff who was largely inspired by one of the founding films of realistic cinema, Pather Pan- chali (Satyajit Ray, 1955). What this intertextuality demonstrates is not the lack of originality of Ouédraogo, but the way in which realism and universal tropes come together when it comes to exploring a new cinematographic vein. Key Words: Yaaba; Idrissa Ouédraogo; Cinema; Africa.

Graças a Yaaba (Idrissa Ouédraogo, 1989) pode oferecer pistas iluminadoras para este o povo mossi, de língua moré, de Burkina filme, como veremos. Faso, ganhou expressão audiovisual e física Yaaba é de fato uma obra de cinéfilo, sem precedentes ou rivais. A estética do fil- que reflete tudo o que o diretor Ouédraogo me se baseia em distensão, desdobramento aprendeu em sua rigorosa formação cine- geométrico de espaço e tempo, depuração matográfica, que se iniciou no extinto Ins- e economia de meios de modo geral. Num titut Africain d’Études Cinématographiques, mundo rigorosamente uniformizado, sem em Ouagadougou, prosseguiu em Kiev (na demarcação histórica ou sinal de outras antiga União Soviética) e encerrou-se em civilizações, os personagens se expressam Paris, no famoso IDHEC, ou Institut des pausadamente, em falas simples e claras, Hautes Études Cinématographiques. Após em postura solene frente a uma câmera vários curtas e um primeiro longa metragem predominantemente estática, enquanto as filmado em 16mm, A escolha (Yamdaabo, cenas se desenrolam em rígida ordem cro- 1986), Ouédraogo finalmente embarcou, nológica, sem saltos ou sequer fusões entre com Yaaba, no formato 35mm, mas não sem planos. antes formar uma equipe internacional com Tais características estéticas derivam, profissionais de alta categoria, começando por um lado, de opções estilísticas compatí- com o produtor executivo suíço Pierre-Alain veis com o realismo baziniano, que inclui a Meier, que trouxe consigo o diretor de foto- ideia do cinema como “janela para o mundo” grafia e também cineasta Matthias Kalin, e e a primazia do real objetivo sobre o sujeito a maquiadora NathalieTanner, cuja linha- observador. Mas são, igualmente, resulta- gem cinematográfica remonta a seu pai, o do dos limites impostos por um orçamento célebre diretor Alain Tanner. Da França, ele restrito e o uso da película de 35mm, que convidou o experiente engenheiro de som requer equipamentos pesados e recursos in- Jean-Paul Mugel, colaborador frequente viáveis numa região semi-desértica, distante de diretores do porte de Wim Wenders, Ag- dos serviços urbanos. A combinação desses nèsVarda e Manoel de Oliveira, além de seu fatores resultou no que alguns chamam de antigo professor no IDHEC, o câmera Jean mise-en-scène ‘hierática’ (BOUGHEDIR, Monsigny (CRESSOLE, 1998). 1995, p. 28), um estilo que coloca Ouédrao- A eles se juntaram alguns dos melhores go, pelo menos nesta altura de sua carreira, talentos do cinema da África subsaariana, ao lado de cineastas ascéticos, como Bres- como o mais famoso ator de Burkina Faso, son, e eu acrescentaria Ozu, cujo cinema Rasmane Ouédraogo, o compositor expe-

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Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 59-68, jan./jun. 2017 Lúcia Nagib rimental camaronês Francis Bebey e uma guir radicalmente do primeiro (ver Diawara, equipe de atores inesquecíveis, selecionados 1992). Por exemplo, um volume sobre cine- entre os habitantes do povoado de Tougou- ma africano dedica várias páginas a esse de- zagué, a alguns quilômetros de onde o dire- bate improdutivo que, invariavelmente, ter- tor nasceu. Burkina Faso também ofereceu mina com a crítica velada de que ambos os contribuição significativa para o orçamen- filmes, pela elevada ambição artística, não to, principalmente graças à intervenção de seriam suficientemente “populares” para o Watamou Lamien, um conselheiro gover- público africano (MURPHY; WILLIAMS, namental que apoiou vários cineastas talen- 2007, p. 162 e seguintes). Em resposta a es- tosos da África. Lamentavelmente, Lamien sas críticas prescritivas e em última análise morreu num acidente automobilístico a ca- esterilizantes, Ouédraogo reitera em suas minho das locações onde Ouédraogo filma- entrevistas: va Yaaba (CRESSOLE, 1998), e por isso o “São os intelectuais que acusam meus filmes filme lhe é merecidamente dedicado. Graças de não serem africanos. Eles esquecem que a essa equipe forte e a um diretor com pro- a técnica é universal, mesmo se a aprende- fundo conhecimento da região e seus habi- mos na França. É como a ciência ou a medi- tantes, o filme transmite uma sensação de cina, temos direito a elas, pois representam um conhecimento que pertence ao mundo segurança e precisão que já rendeu muitos e, consequentemente, a mim também” (NA- elogios, mas também desconfiança. GIB, 1998, p. 118). Yaaba foi aclamado em Cannes, onde ga- nhou o prêmio FIPRESCI entre outras men- Desde as primeiras imagens, mostran- ções. Seu conteúdo de conto moral, centrado do os protagonistas infantis Nopoko e Bila nos personagens de uma anciã e duas crian- correndo na paisagem vasta e ocre do Sahel, ças, também facilitou a distribuição e exibi- não resta dúvida de que Yaaba é um filme ção do filme nos cinemas e TVs do mundo. internacional, que recicla com criatividade Tal receptividade encorajou Ouédraogo a tropos universais num ambiente nunca an- mergulhar logo em seguida num novo filme tes filmado com tanto realismo. Ouédraogo no mesmo estilo sóbrio, Tilai (1990), desta aponta como fonte da história, escrita tam- vez uma tragédia de conotações míticas, en- bém por ele, a literatura oral: volvendo traição entre pai e filho, amor edi- “[É] um conto da minha infância, uma forma piano e fratricídio. Tilai alcançou sucesso de educação noturna do lugar em que nasci, ainda maior em Cannes, onde recebeu o prê- algo que adquirimos entre os sete e dez anos mio do júri. A seguir, conquistou o Étalond’ de idade, logo antes de dormir, se tivermos a sorte de ter uma avó” (BARON, 1989). Yenenga, o prêmio principal do FESPACO (Festival Pan-Africano de Cinema de Oua- A figura dessa sábia avó é representada gadougou), consolidando a reputação inter- no filme por Sana, a anciã marginalizada nacional de Ouédraogo. Apesar disso, críti- que o garoto Bila carinhosamente chama de cos africanos e de outros lugares continuam yaaba (avó). Em que pese essa origem lo- insistindo em questionar se Yaaba e Tilai cal, o argumento desenvolvido é claramente foram feitos para um público vagamente produto de um cinéfilo que se deixou inspi- definido como “africano”, ou para um ainda rar amplamente por um dos filmes fundado- mais evasivo “ocidente”, a quintessência do res do cinema realista, Pather Panchali (Sa- “Outro” que tais críticos insistem em distin- tyajit Ray, 1955), um detalhe decisivo que

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 59-68, jan./jun. 2017 63 Yaaba, Cinefilia e Realismo sem Fronteiras parece ter escapado à maioria dos críticos. aproveita a oportunidade de citar Ray lite- O filme de estréia de Ray, e primeira parte ralmente, retomando a famosa cena em que de sua trilogia de Apu, gira em torno de uma os irmãos, em Pather Panchali, encontram personagem frágil e idosa, Indir, que vive a tia sentada no chão, aparentemente cochi- atormentada por sua cunhada muito mais lando, com a cabeça apoiada nos joelhos do- nova, dona da casa em que moram. Indir, no brados. Quando Durga a toca, ela cai para o entanto, consegue ajuda secreta da filha pe- lado e as crianças percebem, horrorizadas, quena da cunhada, Durga, que rouba frutas que ela está morta. Sana também cai morta de um pomar vizinho para alimentá-la. Nas- para o lado, quando Bila tenta acordá-la do ce um irmãozinho, Apu, que logo se junta a sono, sentada no chão com a cabeça apoia- Durga no apoio à tia, mesmo depois que ela da nos joelhos dobrados. é expulsa de casa. Em Yaaba, são também O que essa intertextualidade demonstra um menino e uma menina (embora aqui o não é a falta de originalidade de Ouédrao- menino seja o líder), os primos Bila e No- go, mas, o modo pelo qual realismo e tro- poko, que tomam o partido de Sana, con- pos universais se irmanam quando se trata trariando o restante da aldeia que a consi- de explorar um novo veio cinematográfico. dera uma bruxa. Bila também é compelido O próprio Ray havia recorrido abertamen- a roubar – uma galinha, entre outras coisas te, para seu primeiro filme, ao neorrealis- – para alimentá-la. mo italiano e a Renoir, cujos métodos rea- Os detalhes que indicam a penúria da listas ele experimentara na prática como velha são, em alguns momentos, idênticos assistente do diretor francês nas filmagens em ambos os filmes, como o xale esfarra- de O rio (The River, 1951) na Índia. Além pado que tanto Yaaba como Indir tentam disso, crianças protagonistas, desde o neor- remendar em vão. Também é semelhante realismo e Alemanha Ano Zero (Germania o vínculo entre as crianças, sugerido por Anno Zero, Roberto Rossellini, 1947), estão brincadeiras carinhosas, jogos de esconde historicamente associadas a novos realis- -esconde, e até verdadeiros testes de amor, mos, pois constituem o espelho perfeito dos como quando Bila finge ter se afogado no processos de aprendizagem dos próprios di- lago ou quando Durga desaparece na plan- retores em sua busca de imagens nunca an- tação de arroz, ou mesmo quando Apu, tal tes mostradas na tela. Bila e Nopoko, assim como Nopoko, fingem não acordar do sono. como Durga e Apu, partem para descobrir e Em ambos os casos, brincadeiras acabam se tomar posse de um território que é tão novo transformando em doenças sérias. Em Pa- para eles quanto para o espectador, consti- ther Panchali, durante uma escapada para tuindo, assim, o canal pelo qual a novidade ver o trem passar, os irmãos são pegos por migra da fábula para a estética do filme. uma tromba d’água que causa pneumonia Em Yaaba, esse aspecto é enfatizado pela em Durga e sua morte trágica. Em Yaaba, ligação física que os atores mantêm com as quando Nopoko intervém em defesa de Bila locações reais (Fig. 1). A combinação des- numa briga com três outros garotos, ela é tes com os habitantes verdadeiros da região ferida por uma faca enferrujada e quase conferem ao filme um tom de naturalidade e morre de tétano. A experiência da morte é, adequação que, nas palavras de Serge Daney na verdade, a lição mais importante que a a respeito de Souleymane Cissé, “opera, não anciã ensina às crianças, e aqui Ouédraogo uma estetização do mundo, mas uma inscri-

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ção imediata do corpo no meio-ambiente” pés no chão. Na maioria de suas aparições (apud BARLET, 1996, p. 165). A beleza re- Bila está correndo, seja em brincadeiras sultante, para além do efeito de cartão-pos- infantis, para escapar da fúria do pai, para tal, se deve à continuidade que a fisicalida- buscar ajuda quando Nopoko adoece, ou em de produz entre o corpo e o meio-ambiente, suas visitas regulares a Sana. A mobilidade como ilustram os planos gerais da figura se- conectiva de Bila instrui o espectador sobre mi-nua de Sana cruzando a paisagem vasta a paisagem do Sahel e sobre a relação entre e árida, onde sua pele enrugada e marrom os vários pontos geográficos do filme: o mer- é apenas um tom a mais sobre o solo ocre. cado, o lago, o cemitério, os pastos de gado, A mais apta expressão de ligação física com a cabana semi-destruída de Sana fora dos o meio, em Yaaba, é o ato de Bila correr de muros da aldeia.

Figura 1 – Fotograma de Yaaba (Idrissa Ouédraogo, 1989): o filme estabelece uma ligação física entre personagens e paisagem. © Idrissa Ouédraogo.

Já se observou que a sede e curiosidade em Deus e o diabo na terra do sol (Glauber de Bila com relação ao mundo representam Rocha, 1964) (XAVIER, 1999, p. 32). Como os “valores da África moderna” (UKADIKE, tal, o personagem de Bila incorpora a crí- 1991, p. 56). No que se refere à fábula, o filme tica severaaos costumes tradicionais que é inteiramente atemporal, sem qualquer in- permeiam o filme como um todo, apesar de dicação de períodos pré-moderno ou moder- firmemente enraizado na cultura tradicio- no na África. No entanto, não há dúvida de nal mossi. Essa crítica não surge de confli- que o fato de Bila estar constantemente cor- tos com culturas alienígenas (totalmente rendo em linha reta projeta o filme para um ausentes no filme), mas dos problemas so- futuro melhor. É um movimento teleológico ciais próprios dessa comunidade. Cada uma cujo objetivo final é a mudança social – um das cenas se destina a demonstrar as conse- aspecto que já foi analisado de perto por Is- quências nefastas do preconceito, seja este, mail Xavier em relação à corrida de Manuel por exemplo, contra uma esposa adúltera

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 59-68, jan./jun. 2017 65 Yaaba, Cinefilia e Realismo sem Fronteiras (Koudi), cujo marido alcoólatra (Noaga) de “sistema Ozu” está, em primeiro lugar, a sofre de impotência, ou contra o próprio al- conhecida rejeição, por parte do cineasta ja- coólatra. Por sua vez, personagens margina- ponês, de qualquer movimento de câmera, lizados como Sana e Noaga são dotados de exceto em raras ocasiões. Mas, Bergala cha- pensamento progressista justamente por se ma a atenção para outro detalhe sutil, que é encontrarem à margem da sociedade e suas o fato de a câmera estática começar a filmar regras. A principal mensagem que Sana pas- antes de os personagens entrarem em cena sa a seu aprendiz Bila é de que as pessoas e continuar filmando depois que eles saem, “têm suas próprias razões”, o que o leva a o que produz uma sensação de que “a enun- perdoar a infiel Koudi e travar amizade com ciação precede o enunciado” (BERGALA, o bêbado Noaga. 1980). Essa precedência, acrescenta Bergala, As vantagens do comportamento pro- é certamente a regra em todos os filmes, mas gressista de Bila ficam evidentes quando é normalmente suprimida a fim de preser- Nopoko adoece. Órfã de mãe, a menina está var a ilusão do espectador de que o filmado sob os cuidados da tia, mãe de Bila. Os ho- precedeu a filmagem. Em Yabba a câmera é mens da aldeia se desdobram em busca de também predominantemente estática, mo- socorro. Um curandeiro charlatão é contra- vendo-se poucas vezes em lentas panorâmi- tado e exige o sacrifício de vários animais, cas e breves travellings. Ouédraogo atribui sem qualquer resultado. Bila, no entanto, isto à impossibilidade de se instalarem gruas recorre a sua mentora Sana, que parte em naquelas locações e também a restrições or- busca do herbalistaTaryam, residente no ou- çamentárias que limitavam a extensão de tri- tro lado rio. O pai de Bila barra a entrada de lhos. No entanto, isto não explica o fato de Taryam na aldeia, mas sua mãe mais sensa- que as extremidades de planos estáticos, an- tamanda o garoto de volta atrás de Taryam, tes e depois da apresentação de personagens, e ele retorna com o remédio que finalmente não tenham sido cortadas. Tal opção, exclu- salva Nopoko da morte. Vencedores e per- sivamente estilística à moda de Ozu, causa dedores são assim claramente definidos: as certo atraso que indica ao espectador como mulheres provam ser mais sábias do que determinada cena foi feita, uma informação seus maridos tradicionalistas e autoritários, que é normalmente excluída na montagem. e a ciência prevalece à superstição. Atinge- É um intervalo na ação que revela, por assim se dessa maneira o final feliz que satisfaz de- dizer, como os personagens sobem ao ‘palco’ vidamente os requisitos do conto moral. e se ‘apresentam’, efeito que se vê intensifi- É de se perguntar, no entanto, onde está cado por outro recurso apresentacional rela- o realismo nisto tudo. Não na fábula, eviden- cionado à construção do olhar, que Bergala temente, mas na qualidade apresentacio- também aponta a respeito de Ozu: nal de seu estilo narrativo, que expõe, para “O olhar de Ozu, ‘indeciso’ entre encarar di- além das exigências da ficção, a realidade retamente a câmera e um olhar inteiramente dos atores e da cena. O modo de elocução ficcional, coloca o espectador numa posição apresentacional de Yaaba pode ser melhor singular... a do espectador que não está intei- ramente centrado (como operador) nem in- compreendido através daquilo que seria seu teiramente excluído da construção do olhar aspecto mais abertamente cinéfilo, isto é, ficcional (ou seja, forçado pelo olhar direto suas afinidades com Ozu. Entre as opções a abandonar sua posição espectatorial).” contidas naquilo que Alain Bergala chamou (BERGALA, 1980).

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Voltemos a Yaaba. Também aqui as ce- apresentacional, o papel dessas faces é ainda nas são compostas de maneiraa colocar o mais complexo pelo fato de que incorporam olhar numa posição intermediária. Eis um o espectador ativo e passivo dentro da diege- exemplo típico: duas pessoas dialogam e, se. A intencionalidade desse recurso pode ser ao final, se retiram, mas um terceiro per- observada na predominância de composi- sonagem permanece em cena, vira-se ligei- ções triádicas, em que dois personagens con- ramente em direção à câmera e para logo versam no primeiro plano e são observados antes de encontrar o olhar do espectador; a por um terceiro no plano de fundo. Isso, cer- seguir, faz um comentário sobre o que aca- tamente, requer o uso de planos de conjunto, bou de acontecer. Essa composição produz e é aqui onde Ouédraogo se distancia de Ozu um espectador dentro da cena que fica na e de seu apego pela montagem em campo- fronteira entre o voyeurismo e a observação contracampo, e nos remete ao realismo bazi- ativa. É uma figura que ‘apresenta’ a cena ao niano baseado na continuidade espaço-tem- espectador de um modo que não difere mui- poral. A inserção de uma figura julgadora em to do papel do narrador oral, ou griot, pre- cena é, na verdade, um traço muito distintivo sente em tantos filmes africanos, ou mesmo e autoral em Yaaba, no qual aparece como do explicador benshi dos filmes japoneses recurso estrutural do filme como um todo. do período silencioso, cuja herança Ozu car- Mesmo quando não faz comentários verbais, rega em seus filmes. esse espectador diegético comparece para David Murphy e Patrick Williams notam, balançar a cabeça e sorrir, expressando sua em Yaaba, a recorrência de close-ups de fa- opinião para uma plateia dentro do filme ou, ces sorridentes, que eles atribuem ao gosto então, apenas para o espectador do filme. Os de Ouédraogo pela comédia (2007, p. 160). rostos sorridentes da mãe de Bila e de Sana Se o efeito cômico de fato contém um aspecto (Fig. 2) são exemplos desse procedimento.

Figura 2 – Fotograma de Yaaba (Idrissa Ouédraogo, 1989): sorriso da anciã Sana, chama- da carinhosamente de “yaaba”, ou avó, pelo garoto Bila. © Idrissa Ouédraogo.

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 59-68, jan./jun. 2017 67 Yaaba, Cinefilia e Realismo sem Fronteiras Numa variação da composição triádica, lugar num diálogo entre dois personagens; o voyeur permanece invisível tanto para os quando o diálogo termina e um dos inter- personagens do filme quanto para o espec- locutores se retira, o outro vira para a câ- tador até o fim do diálogo, quando então mera e faz um comentário. Isso acontece, surge por detrás de um muro ou uma moi- por exemplo, entre Bila e Nopoko, quan- ta com um sorriso no rosto (demonstrando do estão indo buscar água no lago; Bila vê esperteza, tanto quanto humor) para fa- uma vaca com um bezerro e para para tirar zer um comentário (Fig. 3). Um exemplo um pouco de leite para Sana; Nopoko, no típico seria a figura de um velho sem ou- entanto, decide continuar e, nesse momen- tra função no filme senão a de emergir de to, Bila vira-se e olha diretamente para a vez em quando por detrás de um muro ou câmera para rir da “covardia” de Nopoko, uma moita, rir de um casal de amantes e momento em que a quarta parede é efeti- dizer: “É a vida”. Uma última variante tem vamente quebrada (Fig. 4).

Figura 3 – Fotograma de Yaaba (Idrissa Ouédraogo, 1989): o voyeur-narrador. © Idrissa Ouédraogo.

Tanto o posicionamento enunciativo da desse modo a formação de qualquer nostalgia câmera e o espectador dentro da cena são re- romântica dos costumes tradicionais; por ou- cursos apresentacionais, que chamam aten- tro lado, tais elementos colocam o espectador ção não só para a arbitrariedade da ficção, no interior dessa mesma rede de vigilância mas para sua própria realidade, ou seja, a rea- que se estende para além de fronteiras cul- lidade do filme como medium. Eles trazem a turais. Na fábula, fronteiras são efetivamen- consciência, por um lado, de uma sociedade te cruzadas por Sana, que toma o barco para de vigilância foucaultiana, em que prevale- atravessar o grande rio em busca de Taryam e cem a inveja, a intriga e a traição, e impedem o poder curativo de sua medicina natural. Sua

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Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 59-68, jan./jun. 2017 Lúcia Nagib busca é a de um mundo melhor, que não se mesmo acontece na forma do filme, no qual define pela diferença ou alteridade, mas sim- uma cinefilia sem fronteiras é colocada a ser- plesmente pelo aprimoramento humano. O viço de um novo realismo.

Figura 4 – Fotograma de Yaaba (Idrissa Ouédraogo, 1989): Bila (NoufouOuédraogo) e Nopoko (Roukietou Barry) estão entre os personagens esclarecem a cena para o espectador, como aqui, com este olhar para a câmera. © Idrissa Ouédraogo.

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Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 59-68, jan./jun. 2017 69 Yaaba, Cinefilia e Realismo sem Fronteiras Oral Literature: Functions in Contempo- XAVIER, Ismail. Allegories of Underdeve- rary Contexts. Cape Town: NAE, 2001, p. 100- lopment: Aesthetics and Politics. In Mo- 110. dern Brazilian Cinema. Minneapolis: Uni- versity of Minnesota Press, 1999. ______. “Entrevista com Idrissa Oué- draogo”. In: Imagens, n. 8, Maio-Agosto 1998. UKADIKE, N. Frank. “Yaaba”. In: Film Quar- Recebido em: 14/01/2017 terly, vol 44, n. 3, Spring 1991, p. 54-57. Aprovado em: 18/02/2017

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Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 59-68, jan./jun. 2017 Mateus Nagime

O consumo audiovisual em Moçambique. Relato de viagem, dezembro de 2016

Mateus Nagime*

Resumo Especialista em conservação do patrimônio cinematográfico residente em São Paulo, mestre em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Car- los (UFSCar), Mateus Nagime traz um relato pessoal sobre sua viagem de férias a Maputo – e sua visita informal à sede do Instituto Nacional de Arte e Cinema (INAC), onde a memória cinematográfica moçambicana está arma- zenada, em condições distantes do ideal. Palavras chave: Conservação; Patrimônio cultural; Instituto Nacional de Arte e Cinema.

Abstract Audiovisual consumption in Mozambique. Travel report, December 2016 Mateus Nagime, a specialist in conservation of the cinematographic heritage residing in São Paulo, master in Image and Sound by the Federal University of São Carlos (UFSCar), brings a personal account of his trip to Maputo - and his informal visit to the headquarters of the National Institute of Art and Ci- nema (INAC), where the Mozambican film memory is stored, in conditions far from ideal. Keywords: Conservation; Cultural heritage; National Institute of Art and Cinema.

Em dezembro de 2016, fui a Moçambi- Tive um bom preparo através da Mostra que, em minha primeira viagem à África. África(s). Cinema e revolução, que aconte- Peço perdão pelo tom mais pessoal do tex- ceu em São Paulo em 2016. Na abertura da to, mas já que ele nasce das lembranças e mostra, foi exibido 25 (1975), filme em que das memórias, tenho segurança que valerá José Celso Martinez Corrêa e Celso Lucca a pena no final. Não conseguiria escrever documentam a luta pela independência do sobre minhas experiências com o cinema e país, finalmente alcançada e reconhecida audiovisual em Moçambique de outra ma- por Portugal em 25 de junho de 1975. Samo- neira. ra Machel, o primeiro presidente moçambi-

* Atua no setor de preservação da Cinemateca Brasileira (São Paulo). Mestre em Imagem e Som pela Uni- versidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: [email protected]

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 69-72, jan./jun. 2017 71 O consumo audiovisual em Moçambique. Relato de viagem, dezembro de 2016

cano, acreditava na importância de mostrar mados entre Frelimo e Renamo (que ainda imagens da revolução e do novo país em é dominante politicamente na parte central construção. Numa terra ainda sem televi- do país), mas não existe mais anseio por são – a rede seria implementada apenas em secessão. Todos se sentem moçambicanos, 1981, e de forma bem precária – optou-se ainda que a definição de cultura moçambi- por realizar noticiários cinematográficos, cana seja algo incerto. chamados de Kuxa Kanema. A maior parte da música que é consumi- Vários cineastas e técnicos europeus, so- da não é a americana, e sim a brasileira. As viéticos, brasileiros e de outras nacionalida- dublagens cinematográficas nas salas de ci- des foram convocados para auxiliar na im- nema ou na televisão é aquela feita para o plementação de uma rede de produção, dis- mercado brasileiro. Ou seja, a voz brasileira tribuição e exibição destes cineclubes. Uma é a mais difundida, ainda que isso não acon- guerra civil entre a Frente de Libertação de teça sem problemas: se o domínio português Moçambique (Frelimo) e a Resistência Na- é combatido e isso se vê refletido num cer- cional Moçambicana (Renamo), que contou to preconceito contra os portugueses ainda com a colaboração das potências vizinhas, residentes no país, a relação com a cultura colaborou para o fim do projeto do Kuxa brasileira é paradoxal. Ouvi uma vez, por Kanema durante a década de 1980. A guer- exemplo, que “a língua brasileira serve para ra civil chegou a um fim oficial em 1992 e a a música, mas é péssima para a fala”. Mas televisão já começava a se impor como um era inegável que os moçambicanos são am- importante agente cultural. plos conhecedores das gírias brasileiras. É fundamental ressaltar aqui a importân- Se a música brasileira é amplamente co- cia que o cinema teve e continua tendo para nhecida, o cinema brasileiro, não. Em parte, a manutenção do português como língua ofi- por conta do baixo número de cinemas que cial do país. Além disso, não tenho dúvidas de ainda existem nas cidades. Hoje em Moçam- que a própria ideia de nação do enorme país, bique o audiovisual é conhecido principal- que já sofreu muitas tentativas de separação, mente através da televisão. E se o cinema bra- foi fortalecida pelo Kuxa Kanema. Alguns da- sileiro não é tão célebre (apesar de Cidade de dos: de acordo com o censo de 2007, apenas Deus e Tropa de Elite terem uma boa legião 12,8% da população fala majoritariamente o de fãs), o audiovisual produzido do lado de cá português em casa; somente 10,7% conside- do Atlântico exerce forte apelo na África. ra o português a sua língua materna (em Ma- Para começar, claro que as telenovelas puto, capital, o número aumenta para 25%). brasileiras são super conhecidas. Mas se en- E pouco mais da metade da população fala o gana quem acha que a TV Globo é dominan- português (50,4%, sendo que no espaço rural te. Enquanto algumas novelas de lá são exi- o número diminui para 36,3%). bidas por um canal específico da Globo vol- O país conta com 42 línguas oficiais. Se tado para o mercado internacional e encon- a televisão e o cinema falharam em estabe- trado na programação a cabo, a Rede Record lecer o português como língua falada por tem força no país através de sua subsidiária, todos, essa rede de imagens em movimento a TV Miramar, uma das maiores televisões contribuiu para manter o país unido, sobre- do país. Assim, ao contrário do que imagi- tudo por meio das imagens da revolução. É nava, as pessoas tinham como principais verdade que hoje persistem os conflitos ar- referências televisivas não Regina Duarte

72 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 69-72, jan./jun. 2017 Mateus Nagime ou Suzana Vieira, mas Sabrina Sato, Rodri- do no Jornal Notícias1. go Faro, entre outras estrelas da Record. A Para o bem e para o mal, o que mais cha- Miramar também exibe programas produzi- mou a minha atenção durante a viagem foi a dos localmente, entre eles o Balanço Geral, ida ao Instituto Nacional de Arte e Cinema no mesmo formato daquele transmitido no (Inac). Criado em 1976 ainda como Insti- Brasil, em tom sensacionalista. A Soico Te- tuto Nacional de Cinema (INC), o Instituto levisões, outra das principais televisões pri- tomou a atual forma em 2000.Sua função vadas de Moçambique, exibe programas do original era a de organizar toda a produção e SBT, tais como os apresentados por Silvio a distribuição do Kuxa Kanema. Com o pas- Santos e Ratinho, além de Domingo Legal. sar dos anos, além de produzir os novos fil- Costumam ser retratados temas como mes, também adquiriu a tarefa de preservar violência doméstica e preconceito. É notável um rico acervo. a falta de crítica política, no máximo presen- Tendo ido com a incumbência de entregar te apenas em notícias de cotidiano (como um catálogo da Mostra mencionada acima, por exemplo um bairro na periferia de Ma- aproveitei para conversar com os funcioná- puto que não conta com saneamento básico, rios e fazer uma visita. Minha credencial de etc). Quando a televisão retrata a atual guer- Diretor Técnico da Associação Brasileira de ra civil, não deixa dúvidas de que os oposi- Preservação Audiovisual, com passagem pela tores da Renamo formam parte de um grupo Cinemateca Brasileira, Cinemateca do Mu- terrorista que está em operação no centro do seu de Arte Moderna do Rio e Centro Técnico país. O governo segue utilizando o audiovi- Audiovisual (CTAv), chamou a atenção, pois sual como forma de propagação do poder, percebi facilmente - e explicitamente - que não distante do que fazem outros países. falta mão de obra qualificada, isso para come- Nesse aspecto, como ficam as salas de çar - também são ausentes os equipamentos, cinema? Como era de se esperar, abando- treinamento e infraestrutura básica. nadas. Tive a oportunidade de passar em O diretor da Cinemateca, Alcidio José, frente ao Cinema Scala, uma das relíquias reconheceu que não tinha uma formação es- arquitetônicas da antiga Lourenço Mar- tritamente cinematográfica e me contou que ques, como era chamada a capital da colô- tentava formar uma equipe para cuidar do nia portuguesa. Um tanto com pressa, com acervo que se deteriorava rapidamente. Ape- um amigo que estava em seu último dia em nas uma sala comportava negativos e positi- Maputo, entrei rapidinho para ver como era. vos, enquanto idealmente estes deveriam ser Os funcionários muito solícitos nos permiti- preservados em cofres separados, cada qual ram entrar, tirar fotos e conhecer a sala que com suas próprias características técnicas de décadas atrás reunia mil espectadores num controle de umidade e temperatura. As có- dos mais luxuosos locais da região, ponto pias positivas em geral servem para serem de encontro da juventude, agora deixado às exibidas enquanto os negativos guardam as moscas. Teve ao menos um destino esperan- imagens com a maior qualidade possível e çoso: é palco de eventos culturais e, espora- servem para produzir novas cópias. dicamente, de exibições audiovisuais. Várias outras salas de cinema da cidade hoje são 1 http://www.jornalnoticias.co.mz/index.php/ caderno-cultural/68539-cidade-de-maputo usadas como pontos de drogas, armazém ou -o-in-evitavel-fim-das-salas-de-cinema.html. completamente inutilizadas, como noticia- Acesso em 14 de setembro de 2017.

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 69-72, jan./jun. 2017 73 O consumo audiovisual em Moçambique. Relato de viagem, dezembro de 2016

Aqui é importante abrir um parênteses Concordamos que ações pontuais não para explicar algo do processo de preser- fariam sentido: era necessário um projeto vação audiovisual: o filme de acetato libera para garantir a preservação a longo prazo um ácido acético que deteriora a película em dos filmes ali. Não se sabe quanto tempo po- um processo irreversível. Assim, os filmes demos esperar para que realmente o gover- devem ser separados para não contaminar no moçambicano invista na preservação das as películas que ainda não possuem o que películas reunidas no INAC. Isso para não chamamos de síndrome de vinagre (chama- falar dos diretores e produtores que natural- da assim pois as películas começam a soltar mente não confiam no Inac e preservam por um odor parecido com o do vinagre). Não só conta própria suas obras ou preferem enviar contaminam as películas, mas também es- seus filmes para arquivos estrangeiros - em tragam os equipamentos que são instalados geral portugueses. para assegurar a preservação das películas. Numa sociedade que não frequenta mais Assim, é comum os arquivos sofrerem com o cinema e que usa periodicamente o you- desumidificadores e condicionadores de ar tube, seja para ver filmes ou para cantar no corrompidos por conta do ácido acético li- karaoke, a situação é bem preocupante. Um berado pelas películas. país que ainda se orgulha de ter filmado a Dito tudo isso, quando eu entrei na única própria independência e de ter usado o ci- sala que continha películas, me assustei com o nema como meio de disseminar uma ideia forte cheiro de vinagre liberado. Era fato que de nação – com todos problemas que isso a maior parte das películas já estavam subme- envolve – assiste a sua história virar ruínas. tidas ao irreversível processo de deterioração. Em um país que sofre de apagões elétri- Se a maior parte daqueles filmes já tinha sido cos, corrupção endêmica, conflitos políticos digitalizada, certamente foi em condições tec- e territoriais, como esperar que os cinemas nológicas que podem melhorar. É sempre im- do passado, relíquias do colonialismo por- portante manter a película original, pois em tuguês ou do projeto revolucionário de Sa- bom estado nada a supera em qualidade de mora Machel, sobrevivessem? Se boa parte imagem e som. O que via (e sentia) ali era a da população ainda não tem smartphone, história audiovisual de um país se perdendo. eles vislumbram mais este caminho, aliado Isso tudo para não falarmos dos acervos ao dos shopping centers (onde estão locali- televisivos que não eram responsabilidade do zadas a maioria das poucas salas em funcio- Inac (me disseram que cada televisão cuidava, namento no país). Foi um futuro glorioso, em estados variados de competência, de seus incerto, mas promissor, que essas salas de acervos) e de uma pilha com fitas magnéticas cinema sempre projetaram, a possibilida- que estavam no chão. Alcídio tinha me dito de de que através daquelas salas, daqueles que eles não sabiam o que havia naquelas fi- filmes, Moçambique tivesse um vislumbre tas por falta de equipamento para visioná-las. da modernidade anunciada. É invocando a Também me disse que todos os filmes tinham mesma modernidade, ainda desejada e nun- sido examinados em mesas enroladeiras por ca alcançada, que as salas de cinema vão uma equipe de preservadoras portuguesas pouco a pouco deixando de existir. que tinha passado uma temporada em Mapu- to. Porém, passados os anos, os filmes volta- Recebido em: 06/01/2017 vam ao caminho da deterioração. Aprovado em: 07/03/2017

74 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 69-72, jan./jun. 2017 Catarina Simão

Projecto Instituto Moçambicano: uma montagem de afeto

Catarina Simão*

Resumo Relato de pesquisa artistica sobre os sinais emergentes de uma pedagogia radical no contexto da Luta pela Libertação de Moçambique. A pesquisa Pro- jecto Instituto Moçambicano fez a autora viajar para três continentes em busca da história da primeira escola da FRELIMO em Dar-es-Salaam. Palavras Chave: Frelimo; Moçambique; Instituto Moçambicano.

Abstract Mozambican Institute Project: an editing of affection Report of artistic research on the emerging signs of a radical pedagogy in the context of the Fight for Liberation of Mozambique. The research Project Mo- zambican Institute has made the author travel to three continents in search of the history of FRELIMO’s first school in Dar-es-Salaam. Keywords: Frelimo; Mozambique; Mozambican Institute.

Durante o ano de 2014 envolvi-me numa primeira escola da FRELIMO em Dar-es-Sa- pesquisa sobre os sinais emergentes de uma laam. pedagogia radical no contexto da Luta pela Foi aí, do outro lado da fronteira, que as Libertação de Moçambique. A guerra que condições para que uma nova geração de opôs a Frente de Libertação de Moçambique moçambicanos prosseguisse os seus estudos (FRELIMO) ao Exército Colonial Português foi idealizada, e onde um novo sistema pe- durou de 1964 a 1974. Em causa estava o con- dagógico se fundou, em ruptura com o siste- trole das Zonas Libertadas, correspondentes ma colonial. a três províncias no Norte de Moçambique. Logo a partir de 1962, e enquanto se Dessas províncias, é Cabo Delgado que faz preparava a insurreição armada, o primei- fronteira com a Tanzânia, um aliado abso- ro presidente da FRELIMO, Eduardo Mon- luto dos movimentos de libertação. Chamei dlane, angariava fundos junto de doadores a esta pesquisa Projecto Instituto Moçam- internacionais, para a construção dessa es- bicano, porque me fez viajar para três con- cola. O primeiro apoio foi concedido pela tinentes diferentes em busca da história da Fundação Ford americana, o que possibili-

* Arquiteta (FA-UTL), investigadora independente (membro do grupo de investigação, Oficina de História - Mo- çambique), artista/realizadora. Vive e trabalha entre Lisboa e Maputo. E-mail: [email protected]

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 73-84, jan./jun. 2017 75 Projecto Instituto Moçambicano: uma montagem de afeto

tou o funcionamento do seu primeiro ano. quanto Mondlane ainda trabalhava sob a tu- Este apoio não recebeu oposição do Governo tela da ONU. Nessa visita, o casal conheceu Norte-Americano, porque, apesar dos acor- dezenas de jovens africanos com esperança dos de aliança com a política colonial portu- de prosseguir os seus estudos, apesar dessa guesa, a Administração Kennedy acreditava possibilidade ser-lhes negada por uma série que apoiar a educação de jovens africanos de obstáculos criados pelo sistema de estra- iria facilitar a penetração da sua influência e tificação racial, que controlava de forma não prevenir a escalada comunista ao poder nos -oficializada o acesso da população negra a “países africanos em vias de obter a Inde- níveis superiores de ensino. pendência”. O memorando teria sido escrito em in- A atribuição de um apoio americano ao glês, no original. Mas, o texto não deixava movimento de libertação moçambicano por isso de transmitir a capacidade vívida de crispou necessariamente as relações com comunicar de Mondlane, expressão da sua Portugal e levantou uma polêmica que foi mente visionária investida na compreensão largamente alimentada pela imprensa in- da necessidade de assumir grandes ações ternacional. No arquivo da Fundação Ford emancipatórias no mundo. No texto, mes- em Nova Iorque, as linhas fundamentais da mo as ideias mais elaboradas estavam cir- polémica estão reveladas nas cartas troca- cunspectamente traduzidas num português das entre o Presidente da Fundação, Henry corretíssimo, e as palavras que se referiam T. Heald e Alberto Franco Nogueira, o então a conceitos de emancipação estavam subli- Ministro dos Negócios Estrangeiros Portu- nhadas cuidadosamente a lápis. À primeira guês. Nessa troca se descreve o modo como vista, alguém poderia pensar que essa pre- a lógica deste projeto educativo escamotea- cisão na tradução, e o sublinhado a lápis no va de fato uma ação política internacional, papel, vinham de um tradutor/leitor afetuo- independentemente dos termos usados para so. Porém, não era esse o caso. Este texto qualificá-lo como neutral ou humanitário; pertence ao fundo da Polícia Internacional e isso acontecia, tanto do lado americano e de Defesa do Estado, e está hoje deposita- como do lado do movimento nacionalista do no Arquivo Nacional da Torre do Tom- moçambicano. bo, em Lisboa. Tratava-se, portanto, de um Mas foi a descoberta de um texto escrito documento interceptado por informadores por Eduardo Mondlane que acabou por de- ou por espías, depois traduzido e examinado terminar a minha pesquisa. O que eu li exa- pelos técnicos treinados da PIDE/DGS. tamente foi a versão traduzida para o portu- O texto de Mondlane continuava com a guês do memorando enviado em 1963, em explicação das medidas tomadas para con- nome da FRELIMO, para o Comitê Africano seguir fundos adicionais para a construção de Libertação. Nesse memorando, Mondla- do Instituto Moçambicano, para o qual a ne explica como ele e Janet Mondlane, a sua americana Ford Foundation havia dado esposa americana, idealizaram um projeto uma primeira e importante contribuição. educacional para acolher jovens moçambi- Nesta fase, Mondlane provavelmente desco- canos em Dar-es-Salaam, e a que chama- nhecia que este primeiro apoio seria inter- ram “Instituto Moçambicano”. A ideia terá rompido devido a alegações de que a FRE- surgido a partir de uma viagem que os levou LIMO estava envolvida numa luta armada, e a percorrer Moçambique em 1960-61, en- em relação à qual a Administração America-

76 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 73-84, jan./jun. 2017 Catarina Simão na e a Fundação Ford supostamente não se ao modelo europeu-colonial. A língua por- queriam envolver. A Diplomacia Portuguesa tuguesa assumiu uma nova sonoridade des- tinha ganho a primeira batalha. conhecida anteriormente: palavras como Este texto inteligente, veículo de uma ‘camarada’, ‘responsável’ e ‘engajado’ foram visão inspiradora, foi cautelosamente exa- usadas com conotação de participação so- minado e reescrito pela língua portuguesa. cial, auto disciplina e emancipação. Contudo, ele foi entendido com o sentido ra- Como exemplo, e por contraste, até hoje dicalmente oposto ao da sua finalidade. Será Portugal não encontrou tradução para “po- que esta contradição se explica para além da litically engaged”, recorrendo a “compro- distorção ideológica mais óbvia? Por que é metido/a”, uma expressão contendo em si que as expressões de emancipação que hoje uma atormentada contradição. E “explora- estão em contato com a nossa sensibilida- ção” continua a resistir à transformação que de comum não poderiam ser articuladas no sucedeu atempadamente em outras línguas seu sentido universal há 50 anos? Talvez a europeias (exploration-exploitation), usan- mentalidade fascista, de tão estruturada na do-se essa palavra indistintamente para re- língua portuguesa, não se encontrasse pre- ferir uma aventura emancipatória e a práti- parada para aceitar uma redação de com- ca de fazer lucro usando recursos questioná- promisso tão intempestivo com o futuro. veis. Foi por isso muito revelador entender Mondlane estava determinado a fazer que as expectativas de transformação da lín- tudo em seu poder para conquistar a inde- gua portuguesa não foram formuladas pe- pendência por meios pacíficos, usando a los opositores ao regime fascista português, sua habilidade diplomática e influência para mas sim pelos movimentos de Luta de Liber- tentar convencer o governo Português a ne- tação. A escolha do uso do português como gociar. Mas, como sabemos, nenhum resul- língua de instrução durante a luta serviu a tado positivo surtiu desse esforço e chega- idéia de uma unidade linguística nas Zonas do o primeiro congresso da FRELIMO, em Libertadas e nos campos de treino militar, e Setembro de 1962, ele já tinha abandonado também veio resolver o problema da escolha essa ideia. Estava já convencido de que uma da língua bantu que se tornaria a oficial após insurreição armada era necessária, e que ti- a independência. Mas desde logo o portu- nha que partir e ser organizada desde o mo- guês deixou de ser apenas a língua do inimi- vimento. No seu plano teórico para a luta, go. A guerrilla adaptou a língua portuguesa Mondlane define a sua visão para legitimar à sua própria cultura de luta. Novas canções o uso da violência: “A independência formal foram criadas, a poesia e literatura foram apenas substitui o colonial pelo neo-colo- reapropriadas e transformadas. Os livros de nial. A verdadeira libertação só pode surgir história foram reescritos; a alfabetização li- de um gesto pleno de empoderamento e de bertou-se da lógica de memorização mecâ- emancipação cultural”. nica promovida pelo ensino colonial. Novos Estas palavras são proferidas por um in- manuais foram reinventados com base em telectual, um líder de um movimento arma- conceitos revolucionários; a aprendizagem do investido na libertação do seu país. Por da matemática desenvolveu-se com base na isso, entendo esta formulação como articu- oralidade, em oposição ao seu ensino com lando a ideia de cultura e guerra nascendo base textual, que correspondia igualmente do mesmo projeto de revolução. Nele, a luta

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 73-84, jan./jun. 2017 77 Projecto Instituto Moçambicano: uma montagem de afeto

e a cultura são instrumentos complemen- conseguia fornecer regularmente à FRE- tares para a emancipação do povo moçam- LIMO relatórios oficiais do exército portu- bicano, têm uma teoria em comum e parti- guês, os quais eram enviados para Amster- lham as mesmas terminologias. dã por oficiais do exército em Lisboa que se Os movimentos de emancipação que não opunham às guerras coloniais. Os apoios escusam uma inerente pulsão violenta estão estrangeiros para a FRELIMO vieram tam- instruidos de uma experiência sobredeter- bém destas organizações independentes, minada, e por isso de difícil tradução quando que surgiram da luta contra a agressão ame- transpostos para outros contextos geopolíti- ricana ao Vietnam e dos movimentos de so- cos: na política internacional da FRELIMO lidariedade Anti-Apartheid. Estes grupos e, particularmente, nos contos com o mundo militavam sobretudo para captar o apoio da ocidental. De acordo com a evolução da sua sociedade civil e pressionavam os respecti- linha política, e dependendo de seus inter- vos governos para abandonar o apoio à po- locutores – internos ou externos, do lado do lítica colonial de Portugal. bloco socialista ou do capitalista – a FRE- De fato, a longo prazo, o objetivo do Ins- LIMO promovia ou recortava habilmente as tituto de Moçambique era possibilitar que referências à violência no seu discurso de alguns dos alunos continuassem os estudos luta. superiores no estrangeiro – em países euro- Foram habilidades lexicais que tornaram peus, soviéticos ou nos Estados Unidos – e possível separar o esforço de guerra das ini- se capacitasse assim uma geração de qua- ciativas com pendor educacional, facilitando dros que assumissem responsabilidades na as condições para que o mundo se alheasse construção do país, “servindo a evolução das das implicações violentas ao qual todo o qua- necessidades do povo moçambicano livre”. dro correspondia. Foi assim que o Instituto Mas, a curto prazo, a ideia era mobilizar Moçambicano conseguiu o apoio do Conse- jovens moçambicanos para o movimento e lho Mundial das Igrejas e foi nessa base que prepará-los para os objetivos imediatos da os governos de outros países o fizeram tam- guerrilha, através de conhecimentos em geo- bém. A Dinamarca, a Noruega, eram mem- grafia, ciências e em matemática. A aprendi- bros da OTAN e, em conjunto com a Suécia zagem do português era central no sistema e a Finlândia, também membros da EFTA. educativo do Instituto, pois habilitava-os Estes países concederam apoio para o fun- com uma maior capacidade de compreender cionamento do Instituto Moçambicano, ain- e aplicar a estratégia militar: os conceitos de da que apoiassem igualmente a política co- guerrilha que chegavam de instrutores chi- lonial de Portugal. neses, cubanos, soviéticos e argelinos, não O Instituto Moçambicano consagrou esse encontravam tradução direta nas línguas modelo ambíguo e singular, que permitia bantú – que era o que a maioria dos jovens moldar-se à esquizofrenia do mundo: à vi- alunos falava. são daqueles que baseavam o seu apoio num O meu filme Efeito e redação (Effects of canal de ação moral e puramente humanitá- Wording, 2014) mosta documentos, fotogra- ria, e à daqueles que viam os Movimentos de fias e excertos de filmes que resultaram da re- Libertação como uma violência necessária colha para a investigação que fiz nos Estados para a libertação do jugo do capitalismo. É o Unidos, na Holanda e depois em Moçambi- caso do Angola Committee, na Holanda, que que. O filme inclui os testemunhos orais de

78 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 73-84, jan./jun. 2017 Catarina Simão uma antiga professora e um antigo aluno da tas. Foi esta crise que forçou as autoridades escola da FRELIMO, o que permite trazer a Tanzanianas a tomarem medidas, a fechar a voz e a experiência contada por aqueles que escola do Instituto Moçambicano em 1968 a viveram e a integraram na continuação das e expulsaram do país o grupo de professo- suas vidas. Este texto fica muito aquém des- res brancos que foi acusado pelos alunos de sa percepção, pois assume uma leitura mais serem espiões infiltrados na escola. Os de- teórica e descritiva sobre a batalha lexical talhes e protagonistas deste episódio que que tomou parte integrante da Luta. Efei- aconteceu no interior do movimento são to e Redação transmite, igualmente, o meu criteriosamente estudados pelos historiado- fascínio pelos princípios da montagem mi- res da FRELIMO, porque os conflitos que se litante, pela organização da matriz da luta deram no contexto desta grave crise tiveram segundo regras implícitas, e que requerem, consequências imediatas, com a eliminação hoje, uma decifração. Essa matriz é reforça- de outros elementos e o assassinato do pró- da pela distribuição e a transcrição dessas prio Presidente Eduardo Mondlane, em Fe- operações para dentro de várias outras es- vereiro de 1969. tratégias figurativas: as cores da bandeira, Para dar continuidade à noção de ordem os textos dos manuais escolares, as roupas, e disciplina promovida pelo movimento, e as canções e outros procedimentos ligados à facilitar o restabelecimento das relações constante representação da luta. A fórmula com as organizações que apoiavam a FRE- que transforma a educação numa estratégia LIMO, a estratégia foi então a de não pon- de guerra e emancipação é veiculada essen- tuar o episódio violento de 1968. “Mozam- cialmente através da experiência da monta- bique Institute” sobreviveu ao fechamento gem visual e sonora do filme. da escola para passar a designar uma estru- Os arquivos oficiais da FRELIMO sobre tura de fundraising que trabalhava para a o Instituto Mozambicano não me foram dis- manutenção do conjunto das várias estru- ponibilizados. Ainda assim, eu imagino que turas sociais e da nova escola que reabriu recriam o dispositivo de propaganda para dois anos depois. A escola nova reabriu gerir a sua relação com o exterior, mas não com uma orientação diferente, num anti- só isso. Outros elementos, que vi descri- go campo de treino da FRELIMO situado a tos em outras fontes, dão prova da questão 70 kilometros de Dar-es-Salaam, em Baga- conjuntural que por vários meios resistia à moyo. Já bem distante das perturbadoras execução do plano de Mondlane para a in- influências da cidade, a FRELIMO corrigiu dependência. Desde a fundação do próprio da linha anterior os seus “vícios e os de- movimento que o plano de Mondlane não foi feitos”. Nesta escola nova, os novos alunos consensual. A sua proximidade com a “fren- que chegavam a Bagamoyo deveriam já ter te imperialista” foi usada para desacreditá passado pela vivência nas zonas libertadas -lo como líder do movimento. Juntaram-se ou por treino militar. ações subversivas internas e externas que, As memórias involuntárias dos arquivos aproveitando-se de conflitos geracionais, – mesmo que inoportunas para a escrita da provocaram uma revolta nos alunos que história – são os simuladores de experiên- estudavam no exterior e depois também os cias que mais fortemente influenciaram esta do Instituto Moçambicano. Os alunos insur- pesquisa. Por exemplo, sabemos que na ter- giram-se e envolveram-se em ações violen- minologia do arquivo, o “índice” significa

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 73-84, jan./jun. 2017 79 Projecto Instituto Moçambicano: uma montagem de afeto

uma descrição curta, um atalho para um vo- novo apego. Na impossibilidade de aceder ao lume maior de informação. O “Índice” cor- arquivo oficial da FRELIMO, perguntei-me responde a uma mera necessidade técnica que dispositivos guardariam memória des- de redução e de distanciamento em relação sa passagem, desse intervalo, onde as mes- a um conhecimento muito maior. Contudo, mas expressões (cuidadosamente traduzidas esse atalho gera rapidamente outras novas e sublinhadas em um texto arquivado pela formas de afecto e vínculo a esses conteúdos. PIDE) que provocavam conflito para os inte- Entre a palavra e o mundo que ela convoca resses do regime fascista português, convo- existe um intervalo de passagem de um es- caram gestos de emancipação naqueles que tado de desapego inicial para a forma de um procuram derrotar o sistema colonial.

Figura 1 – A lição 2 do Livro de Alfabetização 1, ocupa as duas folhas que vemos na figura reproduzida.

No lado direito vemos o desenho de uma rilheiro carrega consigo são os instrumentos catana. No lado esquerdo vemos um guer- da sua própria emancipação. rilheiro. Este carrega um livro, uma enxada O leitor comum lê a palavra “camarada” e uma espingarda. Na terminologia da luta, como se fosse a legenda que corresponde ao a arma, significa o combate e o sacrifício do desenho. Ele pode pronunciá-la entendendo corpo, a enxada, é a produção e a autono- o que significa. Porém, isso quer dizer tam- mia, e o livro é a consciencialização do futu- bém que o leitor avançou já para além do ro. “É importante a escola, a colheita da noz- ponto onde a relação cognitiva que opera aí, de-côco e disparar contra o Português”, diz pode ser descodificada. Há que voltar atrás. Samora Machel no filme Dieci giorni con i Para Paulo Freire, o conhecido pedagogo guerriglieri nel Mozambico libero (1972, F. brasileiro, o processo de alfabetização tem Cigarini), ”as duas coisas caminham lado a como base a ligação afetiva entre a coisa, a lado, uma vive se a outra vive”. O que o guer- sua vocalização e a sua grafia. Na sua expe-

80 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 73-84, jan./jun. 2017 Catarina Simão riência que iniciou no Brasil nos anos 60, O camarada tem uma enxada primeiro procurava identificar os temas e as O camarada tem uma arma preocupações que mais envolviam as comu- O camarada tem um livro O camarada transporta o velho nidades oprimidas. Esses temas eram então O camarada constroi a casa sintetizados numa só palavra. Essa palavra encontrada foi “favela”. Na metodologia de Na tarefa dos alunos-alfabetizadores de Freire, só depois de um diálogo e da análi- Bagamoyo, estes manuais serviam de mate- se do que significa para a comunidade a vi- rial de apoio para as campanhas de alfabeti- vência da favela é que os alunos começam zação das populações das aldeias e campos a ler, escrever e construir novas palavras de treino do “interior”. Muitos destes mate- a partir das unidades fonéticas “fa”, “ve” e riais se extraviavam em fugas dos ataques, “la”. A aprendizagem da palavra correspon- por exemplo, ou eram deixados para trás, de à progressiva consciência do mundo que pois podiam ser considerados materiais ela convoca. Cada um dos fonemas que a subversivos e comprometer ações clandesti- compõe leva essa consciência à construção nas. Mas como as revistas da PIDE a euro- de outras palavras que são construidas com peus brancos podiam ser problemáticas de- base nas mesmas sílabas. Freire chamou a pendendo das alianças oficiais desses países esta fórmula “ler o mundo antes de ler a pa- com Portugal, alguns destes sobreviveram lavra” e desenvolveu-a através das suas teo- de fato, conservados entre os haveres de ati- rias da pedagogia crítica. vistas europeus que tinham vindo a Tanza- Na nova escola da FRELIMO, em Baga- nia e Moçambique apoiar a causa da FRELI- moyo, a preparação para as campanhas de al- MO, contribuindo enquanto instrutores. fabetização juntou os alunos-alfabetizadores Foram antigos professores holandeses em torno de problemas muito semelhantes da escola de Bagamoyo que me contaram aos descritos por Freire. Alunos e professores que este manual de alfabetização, aparen- foram experimentando e testando a melhor temente mais politizado que os anteriores, forma de proceder. Trabalhando com um foi idealizado após a visita que o pedagogo grupo de alunos que vinham de diferentes re- brasileiro Paulo Freire fez àquela escola da giões do interior do país, encontraram a pa- FRELIMO. Com esta referência, e um cálcu- lavra “catana” por ser uma coisa “que todos lo aproximado com base em cartas trocadas conhecem e usam”, um instrumento de tra- entre o Instituto Moçambicano e os respon- balho, do cotidiano de todos. O som “r” não sáveis pelo Conselho Mundial de Igrejas existe em muitas línguas bantu; quem falasse em Genève, é possível situar a feitura deste Shimaconde, por exemplo, teria dificuldade manual (Livro de Alfabetização 1) em 1972. em pronunciar, ler e entender a palavra “ca- Trata-se de uma reprodução mimeografa- marada”. É uma palavra difícil para ser tra- da e agrafada, certamente produzida em balhada diretamente. A montagem entre os Dar-es-Salaam, no Instituto, que depois da vocábulos “catana” e “camarada” é o propó- crise continuou a ser utilizado pela FRELI- sito da lição 2. Trata-se de um processo cog- MO para funções variadas, nomeadamente nitivo baseado primeiro no vínculo afetivo ao como oficina de impressão do Departamen- instrumento “catana”, depois à transferencia to de Informação e Propaganda (DIP). desse vínculo para um vocábulo com seme- Quando Freire veio a Tanzania em 1972, lhanças fonéticas: “camarada”. foi convidado por representantes da FRE-

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 73-84, jan./jun. 2017 81 Projecto Instituto Moçambicano: uma montagem de afeto

LIMO e do Instituto Moçambicano a visitar que se fez mais confiantemente depois da a escola de Bagamoyo. Depois de um en- sua vinda, se tenha sacrificado razões peda- contro anterior com membros do MPLA na gógicas em favor de premissas puramente Zambia, Freire estava agora muito motiva- ideológicas. do em conhecer a natureza do novo proces- De muitas formas diferentes se poderia so educacional em curso, particularmente chegar a esse episódio, mas a equação fica aquele que estava a acontecer nas zonas li- inevitavelmente resolvida quando, de lição a bertadas, onde a prática da luta constituia- lição, vemos o modo como texto e imagem se como práxis pedagógica. O encontro com conformam uma realidade vinculada à vida aqueles que, com armas nas mãos, estavam e à experiência das Zonas Libertadas. Do co- a por à prova as condições desenvolvidas nhecimento teórico de Freire, vieram os ins- nas suas teorias, deve ter impressionado trumentos para a compreensão integrada do Freire. A história contada por quem o re- trabalho desenvolvido em Bagamoyo. Dos cebeu assume diferentes formas. Alguns fa- alunos-alfabetizadores de Bagamoyo vieram lam de “coincidência” entre o trabalho que os instrumentos para uma indexação radical estavam já a praticar na alfabetização e o da Luta. método transmitido por Freire. Os antigos Um pequeno filme feito com uma câmara professores holandeses da Escola de Baga- Super 8, em 1967 (e sem som), mostra cenas moyo, falam com entusiasmo da sua vinda do cotidiano de campos de treino e do Insti- mas temem que no livro de alfabetização tuto Moçambicano (Figuras de 2 a 7). Effects of Wording (2014)

Fonte: Tempo de Luta, de Jacinto Veloso (captura de tela), Arquivo Pessoal da Autora, Dar-es-Salam, 1967-1968

82 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 73-84, jan./jun. 2017 Catarina Simão

Effects of Wording (2014)

Fonte: Tempo de Luta, de Jacinto Veloso (captura de tela), Arquivo Pessoal da Autora, Dar-es-Salam, 1967-1968

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 73-84, jan./jun. 2017 83 Projecto Instituto Moçambicano: uma montagem de afeto

Os formatos domésticos de filme seriam rivados do seu acto radical, Jacinto Veloso testados para produção profissional em Mo- regressaria a Dar-es-Salaam vindo de Alger çambique com a chegada da Independência. em 1966, agora como professor no Instituto Mas este filme é uma descoberta inesperada, Moçambicano. Aí ensina Geografia, adap- uma ruptura no padrão do cinema militan- tando o programa para o reconhecimento de te produzido nesse período, onde necessa- mapas militares. riamente a locução e discurso imperam so- Utilizei o filme feito por Jacinto Veloso na bre a imagem. É fácil imaginar este tipo de pesquisa, para identificar os alunos e os pro- imagens vindo de um realizador amador: a fessores que apareciam nas imagens. Entre proximidade com que está filmado permi- adultos e meninos, aqueles que mais fácil- te-nos imaginar sermos nós próprios a fazer mente eram identificados, haviam assumido aquelas imagens; reconhecer a ligação sim- mais tarde um papel público na reconstru- ples que articulam com a realidade, descar- ção política e cultural de Moçambique, na tando a função expressa de descrever uma Estrutura, na Universidade, na Diplomacia visão nova dentro daquela que está a ser e Ministérios. Outros meninos identificados observada. Em vez disso, estas imagens pa- tiveram um envolvimento na crise violenta recem descrever intuitivamente a paisagem, de 68, outros morreram na luta, outros fugi- o edifício, as situações ligadas ao seu funcio- ram para o Quénia com medo de retaliações namento, a sala de leitura, o laboratório de e não voltaram a Moçambique depois da In- química, a aula de matemática, o recreio e dependência. Veio também à memória de algumas atividades paralelas. O centro do Veloso, que o teatro que estava a ser traba- filme é uma sequência que regista o ensaio lhado no terraço do Instituto, era uma peça de uma peça de teatro, no terraço do edifício comunista radical, de Berthold Brecht. do Instituto. Um homem branco orienta um À medida que estas informações concre- grupo de jovens negros. Entre eles intuem-se tas se foram articulando em torno das ima- relações ternas e uma temporalidade lenta gens, fui descobrindo como nelas existe uma e amável contrasta com a revelação da cena qualidade indexical inerente, aquela que que é representada: um corpo inerte é for- acompanha um texto não expresso, e que çado a um movimento de rendição, contra a faz deter o movimento da câmara em pon- parede. Há coqueiros no fundo da paisagem tos precisos. Ao inquirir as imagens que cita e um letreiro afincado na terra mostra, com para contar a história do Instituto, Efeito e clareza: “Mozambique Institute”. Redação interroga-as precisamente sobre as O filme que documenta o cotidiano do instruções implícitas nesse sistema imagem/ Instituto foi feito pelo General e Antigo texto-não-expresso. Dois momentos forne- Combatente da Luta de Libertação Nacio- cem os pontos chave que fazem reverter o nal, Jacinto Veloso, também dirigente his- modo como eu usei inicialmente estas ima- tórico do partido da Frelimo e ex-ministro gens, fazendo que deixem de pertencer defi- da Segurança do Estado de Moçambique. nitivamente à ordem da memória biográfica. Jacinto Veloso era piloto do Exército Portu- Primeiro, na sequência do teatro, na guês quando em 1963 desertou, fretando o qual entendo a função didática e premoni- avião onde ia em missão para juntar-se ao tória na repetição dos gestos de violência. Movimento de Libertação de Moçambique Isso liberta toda a sequência da necessida- na Tanzânia. Depois de vários episódios de- de de imaginar um público para a peça. A

84 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 73-84, jan./jun. 2017 Catarina Simão câmara-testemunha de Veloso mostra que como produzem o seu sentido através de um são os participantes que estão a aprender. processo de montagem. Tal como na lição Ser testemunha dessa aprendizagem é ser 2, o conteúdo do filme está na natureza da prova dos seus jogos de dramatização. Ao sua indexicalidade. Em ambos, a indexação instalar-se a ideia de uma função associada acontece para significados convenciona- à encenação de gestos, esta liberta também dos dentro de um universo de experiência os primeiros indícios de um filme amador, intersubjetiva. Ela reflete um universo co- agora reinvestidos em significações com mum de afeto potenciado pela realidade de propósitos operativos precisos. É na captu- ações partilhadas; os instrumentos de luta e ra dos elementos em torno da preparação, emancipação estão a ser trabalhados dentro da encenação e da repetição, que estas ima- dessa experiência de imersão, para a qual a gens transmitem uma clara intenção mili- ação não precisa ser reclamada. tante. Que narrativa reproduziriam estas As qualidades descritivas deste filme Su- imagens, senão aquela do constante teste- per 8 foram utilizadas em Efeito e redação, munho das várias fases da luta? para abrir pistas para uma outra história Em vários momentos se surpreendem que está a ser contada em contra-mão, que é personagens com aparelhos fotográficos na a história do olhar militante dessas imagens. mão. Numa dessas situações (no campo de Utilizei primeiro uma estratégia de impres- treino em Bagamoyo), a câmara de Jacin- são e contágio: cerquei as imagens feitas to Veloso mantêm-se atrás do fotógrafo em por Veloso, de registos de manuseamento ação, regista o momento da pose dos guer- convencionado de documentos de arquivo, rilheiros e o relaxar da formatura depois do onde a lógica é a da fotografia associada a click. É esse “click” mudo que dirige a aten- uma legenda. Depois, adicionei uma locu- ção para o que deve ser anotado como desfe- ção que dobra o fluxo das imagens e dupli- cho da cena: a formatura e a juventude mol- ca a sua leitura enquanto evidência factual dada pela disciplina. Pontuar este momento da realidade. Com este eco de excesso, esta é como tocar a imagem em movimento, é amplificação gratuita, quis trazer para o pri- como virar uma fotografia na palma da mão meiro plano, a experiência da sua recepção. à procura do que a legenda diz no seu verso. A intenção é formar um círculo de trocas no A enumeração dos modos de ocupação qual cada sistema de imagem presente, se dos espaços, o relato das tarefas do dia-a- livra da responsabilidade de fixar um único dia, as provas de autonomia e disciplina protocolo de leitura. aplicadas aos jovens apresentam a revolução .... enquanto um problema técnico, a insurgên- “na sala de leitura” cia enquanto um avanço científico e pedagó- .... gico, a escola enquanto proto-estado. É essa, “durante o intervalo” aliás, a condição de todo o movimento no lo- .... cal onde se encena e põe à prova, não apenas “na sala de aula” o desempenho dos alunos, mas também a .... “durante o ensaio de uma peça de Berthold da própria estrutura política do movimento, Brecht” em vistas da liderança do país futuro...... O filme de Veloso em Super 8 e o Livro “pose para o fotógrafo da FRELIMO, no de Alfabetização 1 encontram-se no modo campo de treino”

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 73-84, jan./jun. 2017 85 Projecto Instituto Moçambicano: uma montagem de afeto

Esse eco acaba por tornar-se um novo efei- pioneiros dentro de uma cronologia de filmes to no qual o espectador pode reconhecer-se e militantes que se expandiu logo depois, com vir a ocupar o lugar de um observador distan- a vinda de realizadores estrangeiros às Zonas ciado. A ligação a estas imagens é arregimen- Libertadas. Porém, o controle sobre a com- tada pela experiência no tempo da luta. Como preensão destas imagens pertencerá sempre na Lição 2, o seu modo operativo nos escapa. ao grupo político que produziu a luta.1 Este filme Super 8, e outros produzidos por guerrilheiros treinados pela FRELIMO, são Recebido em: 19/01/2017 Aprovado em: 14/03/2017

1 Nota: Este artigo é o original da versão publica- da em inglês: Catarina Simão (2016): The Mo- zambique Institute Project: A Montage of Affect; What's the Use?: Constellations of Art, History and Knowledge: A Critical Reader Paperback – June 28, 2016; Editors Nick Aikens,Thomas Lange, Jorinde Seijdel, Steven ten Thije.

86 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 73-84, jan./jun. 2017 Paul Cooke

negociaSoft Poweçãor de e Cineagendama Ssul mutu Aframenicano:te incompatíveis?

Paul Cooke*

Resumo Este artigo oferece a primeira análise do papel do filme como um recurso de soft power na África do Sul. Ele examina as maneiras pelas quais as priorida- des políticas do governo sul-africano, até recentemente, pareciam trabalhar contra o objetivo estratégico da nação de usar o filme como uma ferramenta para alavancar soft power para obter influência política em toda a África, bem como para maximizar o potencial econômico da globalização. A econo- mia do cinema sul-africano está crescendo. Cidade do Cabo, em particular, tornou-se um centro de produção global. As produções internacionais são atraídas para o país pela versatilidade de seus locais, seu clima e suas insta- lações de baixo custo e alta qualidade. Isso proporcionou excelentes oportu- nidades de emprego para a equipe de produção local. No entanto, tem feito muito pouco para apoiar o desenvolvimento do talento criativo local. Assim, ao contrário, por exemplo, Nollywood, que apóia toda a “cadeia de valor” da produção e que permite que as habilidades criativas e técnicas se desen- volvam em conjunto, o sucesso da infra-estrutura de produção sul-africana é em detrimento de seus cineastas sul-africanos. Neste artigo, investigo até que ponto o imperativo econômico do governo para desenvolver a indústria está trabalhando contra o poder do seu soft power para projetar histórias sul-africanas tanto local quanto internacionalmente, e com ela, a “narrativa estratégica” nacional. Em seguida, sugiro que a paisagem atualmente parece estar mudando à medida que uma nova geração de cineastas sul-africanos está começando a ganhar terreno. Palavras chave: Soft Power; África do Sul; Filme; Nollywood; BRICS.

Abstract

ThisSoft article Powe offersr and the S oufirstth analysisAfrican of theFil mrole: N ofe gfilmotia ast ina softg power as- Muset Intually .Incom Itpa examinestible Ag waysendas? in which the policy priorities of the South African government have, until recently, seemed to work against the

* Professor Titular em Cinema Mundial - University of Leeds. E-mail: [email protected]

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nation’s strategic aim to use film as a tool to leverage soft power in order to gain political influence across Africa, as well as to maximise the econo- mic potential of globalisation. The South African film economy is booming. Cape Town, in particular, has become a key production centre globally. In- ternational productions are attracted to the country by the versatility of its locations, its weather and its low cost, high quality, facilities. This has pro- vided great employment opportunities for local production staff. However, it has done very little to support the development of local creative talent. Thus, unlike, for example, Nollywood, which supports the entire ‘value chain’ of production and which is allowing creative and technical expertise to develop in tandem, the success of the South African production infras- tructure is to the detriment of its South African filmmakers. In this article I investigate the extent to which the government’s economic imperative to develop the industry is working against its soft power aim to project South African stories both locally and internationally, and with it, the national ‘strategic narrative’, considered to be one of the country’s prime soft power assets. I then go on to suggest that the landscape would currently seem to be changing as a new generation of South African filmmakers are starting to gain ground. Key words: Soft Power; South Africa; Film; Nollywood; BRICS

Despite the fact that Nigeria now has the lar- On the continent, setting aside external ac- gest economy on the continent; despite the tors, South Africa is probably the country continual allegations of corruption raised with the best claim to the exercise of soft power, as defined by Nye […]. Nigeria may against the country’s President Jacob Zuma have Nollywood (cultural reach through its and the disquiet of the so-called ‘Born-Free’ film industry), and its economy may have generation at the post-Apartheid transition overtaken South Africa’s as the largest in settlement worked out by their parents — Africa, after the April 2014 rebasing of its manifest in the widely-reported #Rhodes- gross domestic product calculations; howe- MustFall, and its successor #FeesMustFall, ver, Nigeria still has some way to go in ri- valling the South African story. (SIDIRO- campaigns; despite the country’s failure to POULOS, 2014, p. 197) deal adequately with its HIV/Aids epidemic, or the xenophobic attacks of recent years The attractiveness of a country’s ‘story’, against the country’s migrant population, or as Laura Roselle, Alister Miskimmon and South Africa continues to enjoy a position Ben O’Loughlin term it in their recent re-e- of unrivalled international influence and valuation of soft power discourses a nation’s authority in Africa. As numerous commen- ‘strategic narrative’, is central to understan- tators have noted (SIDIROPOULOS, 2014; ding the value of ‘soft power’ as a tool of in- OGUNNUBI and OKEKE-UZODIKE, 2015; ternational influence. So much of the recent OGUNNUBI and ISIKE, 2015), this is due in discussion of soft power, Roselle et al. argue, no small part to the country’s ability effec- has moved a long way from Nye’s original tively to marshal its ‘soft-power’ potential formulation. For Nye soft power is a des- (NYE, 2004, p.ix). As Sidiropoulos puts it: criptive term, used to capture what he iden-

88 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 85-100, jan./jun. 2017 Paul Cooke tified as a shift in international relations in economic stability and prosperity, culmina- the 1990s towards the instrumentalisation ting in the country’s invitation to join the of ‘attraction rather than coercion or pay- BRICS grouping in 2011 (OGUNNUBI and ment’ (NYE, 2004, p. x), his analysis focu- OKEKE-UZODIKE, 2015, p. 23-4). sing on the ways in which questions of ‘cul- Of course, as can be seen from my ope- ture’ and ‘values’ were playing an ever-grea- ning description, there are other ways of ter role in foreign policy (NYE, 2004, p. 11). evaluating the post-apartheid development Roselle et al point to how the term has been of the country, and how long South Africa taken up by political elites, in particular, far can maintain the strength of its current stra- more normatively. Here it is frequently con- tegic narrative is debatable. Nonetheless, ceptualized as something that governments one need only look to the country’s latest can themselves proactively manufacture. National Development Plan (NDP) — which In the process, the discussion of soft power sets out the government’s goals for 2030 — is increasingly focussed on identifying and to see that the soft power potential of this exploiting potential soft power ‘assets’, be it narrative remains central at least to the Nollywood in Nigeria, Bollywood in India or country’s own plans for its international re- China’s ability to use its economic might to lations (NDP, 2012, p. 241). Indeed, as the buy a piece of Hollywood’s global influence. country’s economic power falters, the soft However, it is the story behind such ‘assets’, power of its strategic narrative, as well as and the values that the story communicates, the concomitant set of values this communi- that is key to their success or failure: ‘Stra- cates to the world, becomes all the more im- tegic narrative is soft power in the 21st cen- portant. Miller Matola, CEO of ‘Brand South tury’ (ROSELLE et. Al, 2013, p. 71, emphasis Africa’ — the national agency tasked with in original), or as John Arquilla and David presenting a coherent image of the nation Ronfeldt put it, international standing and abroad in order to maximize its soft power influence is fundamentally shaped by ‘who- — speaks for many state representatives: se story wins’ (ARQUILLA and RONFELDT, ‘we are proud of our history and diversity. 2001, p. 328). [These are] our greatest strengths’ (BRAND And South Africa’s story is hard to beat: SOUTH AFRICA, 2013), a position further that of a country which swiftly transformed underlined in a survey carried out by this itself from apartheid pariah into a democra- organization in 2016, which found the coun- tic, outward-looking state that has one of the try’s story of democratic transition, along world’s most progressive constitutions, de- with its strong institutions, to be central fined by strong institutions which embrace to the continuing strength of the national the nation’s diversity. It was the first country ‘brand’ (BRAND SOUTH AFRICA, 2016). ever to unilaterally give up its nuclear arse- Moreover, the role of soft power and na- nal and has, since 1994, sought to represent tion branding is often not only about gene- on the global stage not only its own interests rating international influence. Michael Barr, but also those of Africa as a whole, a position in his analysis of China, notes that here the that was shaped by the foundational pos- use of ‘soft power is not only limited to in- t-Apartheid leadership of Nelson Mandela, ternational image building. Rather its de- an unimpeachable moral authority of global ployment is as critical at home within the significance. This, in turn, led to a period of country as it is abroad.’ ‘Nation branding’,

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in the Chinese case, is inextricably intercon- Mashatile, the then Minister of Arts and nected with ‘nation building’ (BARR, 2011, Culture: p. 81). A similar dynamic can be found in Film now occupies the centre stage in on- South Africa. Chapter 15 of the NDP focus- going efforts to foster social cohesion and ses entirely on ‘nation building and social nation building as well as the economic em- cohesion’, setting out a strategy for sprea- powerment of the people of South Africa […]. ding awareness of the values at the centre It is, among others, through film that we can of ‘Brand South Africa’ across society, in open powerful spaces for debate about whe- re we are, as a society and where we are hea- order to establish ‘a united, prosperous, ded. Film is also one of the mediums through non-racial, non-sexist and democratic Sou- which we can tell our unique and compelling th Africa’ (NDP, 2012, p. 65): the ‘Rainbow stories to the world. We have seen on many Nation’, as propagated by Mandela, which, occasions that the world is hungry to hear the NDP hopes, might be ‘refracted in each the South African story; a story of a people one of us at home, in the community, in the that have overcome adversity and are now working together towards a shared and pros- city, and across the land, in an abundance of perous future (MASHATILE, 2013). colour’ (NDP, 2012, p. 12). Remaining for the moment with the This is a policy position that continues NDP, the cultural and creative industries are with the present incumbent, Nathi Mthe- considered to be pivotal for the delivery of thwa, who similarly insisted at the laun- both the internal and external dimensions of ch of the youth dance film Hear Me Move the country’s soft-power. At home, arts and (Scottnes L. Smith, 2015) upon the power of culture generally, and film and media in par- film to allow, in this case ‘the young of Sou- ticular, are seen as crucial to the project of th Africa to tell their own stories and write nation building, of helping to unite society our history’. For Mthethwa, film can act as by embedding the types of values outlined ‘a cultural ambassador who will give South in the NDP in the general population, on the African artistic genres exposure to world au- one hand, while also supporting economic diences. [It] will put South Africa on a global growth and national prosperity on the other map and also increase the contribution of (NDP, 2012, p.36). Abroad, the NDP sug- the South African film industry to the Gross gests, the nation’s culture needs to be utili- Domestic Product’, the latter being equally zed as a tool for ‘South Africa to promote its as important as the former. The Department presence and leadership on strategic issues of Arts and Culture, she insists, is ‘serious as part of its “soft power”’ (NDP, 2012, p. about the business of the arts’, wishing to 241). For the NDP ‘The country’s rich cul- ‘develop South African films to be globally tural legacy and the creativity of its people competitive’ (MTHETHWA, 2015). mean that South Africa can offer unique sto- For the government, then, its support ries, voices and products to the world’ (NDP, for the film industry has several competing 2012, p. 35). And as the Government’s Whi- goals. On the one hand, film is seen as an im- te Paper on Arts, Culture & Heritage— whi- portant tool in the country’s soft power arse- ch emerged from the NDP — makes clear, nal, not in the way that other nations, not film has a particular role to play in this re- least some of the BRICS, seek to use film — gard (DEPARTMENT OF ARTS AND CUL- namely as a cultural product with global rea- TURE, 2013), a position emphasised by Paul ch that can be instrumentalised to increase

90 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 85-100, jan./jun. 2017 Paul Cooke the nation’s attractiveness to the rest of the solely as a vehicle for the communication of world (see, for example the Chinese case) — the ANC’s version of the South African story but as a way of better communicating to the (for more detailed discussion see MILTON rest of the world the essential value of the and FOURIE, 2015). South African strategic narrative of demo- Studies on post-apartheid South Afri- cratic transition. This, in turn, is viewed as a can Cinema, specifically, have not explored means to support the government’s internal the relationship of the film industry to sof- nation-building endeavours. On the other t-power discourses. That said, scholars have hand, it is viewed as an important part of paid a good deal of attention to the role of the culture and creative industries that can film as part of the nation-building project. support economic growth, contributing, ac- Lindiwe Dovey, for example, her study quo- cording to the latest available figures, appro- tes Lionel Ngakane, ‘Father of Black South ximately R3.5 billion annually to South Afri- African Cinema’, who argues that the nation ca’s GDP, and generating over 25 175 FTE ‘needs to recognize that at this stage of our jobs (NFVF, 2013, p. 6). history cinema is perhaps the most power- As Ogunnubi and Okeke-Uzodike note, ful instrument to foster a stable, democratic in the literature on soft power there has, and united South Africa through feature fil- until recently, been little discussion of Sou- ms and documentary films about ourselves’, th Africa (OGUNNUBI and OKEKE-UZO- noting the extent to which ‘contemporary DIKE, 2015, p. 154). Within this literature South African filmmakers are playing an there has, however, been some exploration important role in narrating the new South of the regional influence of the South Afri- African nation into being’, for all their hete- can broadcast media as a soft power tool. rogeneity (DOVEY, 2009, p. 50 - 52). Martin Stacy Hardy, for example, examines the sig- Botha and Lucia Saks also draw out the role nificant role played by MultiChoice Africa of film as a tool of nation-building, while si- across the continent in this regard. Multi multaneously highlighting the difficultly of Choice Africa is a satellite and internet te- this endeavour, given the diversity of poten- levision company owned by the South Afri- tial narratives available to the post-Apar- can company Naspers. Its digital satellite theid nation. Botha, who was a key figure in services help to spread South African cul- the development of the 1996 White Paper on tural products across the continent, and film that led to the creation of the National with them South Africa’s cultural values, be Film and Video Foundation (NFVF), points it via the local versions of western reality to the burgeoning diversity of contemporary shows such as Big Brother Africa (2003-) South African film production, while also la- or through popular ‘Soapies’ such as Gene- menting what he sees as the inability of the rations (1994-2014) or Egoli: Place of Gold institution he helped to create to foster and (1992-2010) (HARDY, 2015). At the same sustain this diversity (BOTHA, 2012, p. 203; time, DStv, MultiChoice Africa’s digital sa- 250). Saks also points to the difficulties fa- tellite platform, also carries a whole host of ced by the national film infrastructure in de- competing messages, be they broadcast via livering on what she sees as the ‘incompati- Nollywood on its ‘Africa Magic’ set of chan- ble aims’ of the country’s film policy. On the nels, the BBC World Service, Russia Today one hand, she too notes the government’s or China’s CCTV. It can hardly be considered goal to create a ‘national cinema […] which

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reflects the nation’s own culture’, while also the industry in South Africa seems to work positing what, in her view, is the impossibi- against the development of films that can lity of forming a coherent sense of national help to communicate the diversity of the na- cinema at a time when there is such a strong tional strategic narrative internationally — a need to protect the polyvocality of the na- far less discussed aspect of contemporary tional strategic narrative. On the other, she South African film culture, but one which is highlights how this is made more complex currently growing in significance both cultu- still due to the government’s aim to build an rally and economically. industry which can ‘create jobs at home, ge- nerate economic spin-offs in local economi- ‘Cape Town takes on cs, earn foreign revenue by touting locations Tinseltown’: the Place of and production expertise, generate revenue South Africa in the Global from co-productions and sales abroad, and encourage tourism’ (SAKS, 2010, p. 6 - 7). Cinema Infrastructure And this is made yet more difficult if one As a driver of economic growth, the South considers the role the government sees for African film industry clearly has a very good film as an agent of international influence. story to tell. ‘Cape Town takes on Tinseltown’ Laks points to the desire, particularly un- write Robyn Curnow and TeoKermeliotis, der the Mbeke government, to use film as highlighting the ability of the city to attract part of his drive to foster a pan-continental major Hollywood film productions such as ‘African Renaissance’ (SAKS, 2010, p. 7) and Lord of War (Andrew Niccol, 2005), Blood as we can see from the statements made by Diamond (Edward Zwick, 2006) or Invictus Mashatile and Mthethwa quoted above, this (Clint Eastwood, 2009). South Africa has remains important. Indeed, it would seem become a favoured destination for so-cal- that the state’s ambition in this regard has, led Hollywood ‘runaway’ productions for a if anything, grown, Mthethwa, for example number of reasons. In terms of filming lo- wishing to see a greater presence for Sou- cations, it is hugely versatile. Michael Auret, th African culture not only across but also managing director of South Africa’s Spier beyond the continent. In the rest of this ar- Films, suggests: ticle, I wish to discuss further the tensions You can shoot the Mediterranean climate evident in the government’s approach to around Cape Town and you can shoot the film, focussing in particular on how the in- tropical climate in Johannesburg — it’s de- compatibilities identified by Laks impact sert, as well as jungles, as well as beaches, it’s upon the way film can be utilised explicitly urban centres […] So there are very few films as a national soft power asset. Concentra- that can’t be made here — other than pos- ting predominantly on developments since sibly a film shot completely in snow, in the 2010, I build on a number of excellent re- Arctic or something (Quoted in CURNOW and KERMELIOTIS, 2012). cent studies on the first two decades of pos- t-Apartheid film by the like of Botha, Dovey, Cape Town has about the same amount Saks and others (for example BALSEIERO of sunshine as LA. It also has a state-of – and MASILA, 2003; MAINGARD, 2007; the-art production facility (Cape Town Film BOTHA, 2007), exploring, in particular the Studios). However, most importantly it is manner in which the economic structure of around 30-40% cheaper to shoot here than

92 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 85-100, jan./jun. 2017 Paul Cooke in the US or Europe (OLSBERG, 2008). Walk to Freedom (Justin Chadwick 2014). This is further aided by the current weak- Crucially, however, such stories are the ex- ness of the Rand, as well as various natio- ception rather than the rule. Cape Town nal funding initiatives and tax breaks, in- Studios is without doubt benefiting the local cluding ‘The Foreign Film and Television and national economy. Garreth Bloor, Cape Production and Post-Production Incentive’ Town’s mayoral committee member for tou- and ‘The South African Film and Television rism, events and economic development, Production and Co-Production Incentive’, suggests that the studio has generated arou- developed by the Department of Trade and nd R5 Billion over the last 3 years for the ci- Industry, as well as support from the sta- ty’s coffers (PHAKATHI, 2016). However, if te-sponsored Industrial Development Cor- one considers the studio’s projected roster poration. These work alongside a number of productions, including the US pirate ad- of international co-production treaties as venture series Black Sails (2014-) and a film well as a series of regional tax incentives adaptation of Stephen King’s novel series designed to stimulate local production and The Dark Tower (1982-), there is currently bring in international investment to speci- no space for local productions, or for local fic cities (for further discussion see TREF- stories. FRY-GOATLEY, 2010; BOOYENS, MOLOT- Furthermore, there is in practice very li- JA, and PHIRI 2013; VISSER, 2013). Nico ttle opportunity for South African talent to Dekker, chief executive of Cape Town Film play a major role in these kinds of produc- Studios sees his facility, supported by pu- tions. Although the South African actress blic and private financing, in particular, as Chloe Hirschman featured in The Odyssey having brought about a step-change in the (L’odyssée, 2016), Jérôme Salle’s Cape-town South African film industry: ‘You can now -shot film about the life of deep-sea diver shoot stuff [here] that we [could] only dream Jacques Cousteau, such opportunities are of’. The studio is thriving, with an impressi- rare. Mandela, for example, was played by ve roster of productions which, he suggests, Morgan Freeman (US) in Invictus, and Idris provide a great opportunity for the local in- Elba (UK) in Long Walk to Freedom. This dustry: ‘We need to grow and to understand is an issue which, Helena Barnard and Kris- that the world out there is waiting for us. ta Tuomi note, is symptomatic of a wider We’ve got everything now — we’ve got great structural problem in the industry. Compa- crews, good stories, we’ve got a great studio’ ring South Africa with Nigeria, they argue (Quoted in CURNOW and KERMELIOTIS, that ‘in Nigeria there is virtually no gap be- 2012). This would also seem to be confir- tween the expectations of different parties in med in some of the films that the studio has the film industry (e.g. customers, producers produced, which appear intent upon com- and distributors), resulting in a robust but municating the national strategic narrative low-quality industry’ (BARNARD and TUO- of democratic transition, such as Invictus, MI, 2008: 665). In Nollywood, all elements the story of how Mandela worked with the in the industry’s value chain are developing captain of the national rugby union team to at similar speeds. The technical competen- help bring the country together during the cy of crews is growing alongside the profes- sport’s World Cup finals in 1995, or the story sionalism of script-writers, producers and of Mandela’s time in prison, Mandela: Long directors, alongside the audience for their

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product. This differs noticeably from South underline, or are even exasperated by, a Africa where, they suggest: more disturbing form of implicit censorship. As actor and director Sechaba Morojele puts (...) familiarity with a high-quality foreign of- fering creates a substantial gap between the it: ‘The bigger picture is if you talk politics, actual and desired capabilities of the emer- race, or racism, people go “Sh-shh.” White ging industry. This gap may create the moti- people still have a strong hold over our so- vation for learning, but it is hard to close the ciety […] You [have] never really seen a bla- gap —that is, integrate the weaker local with ck South African make a true black political the stronger foreign capabilities —across all film about the past’ (MC CLUSKEY, 2009, segments of the value chain (BARNARD and TUOMI, 2008, p. 665). p. 40). This appears curious, given the role the past ostensibly plays in the national stra- Thus, the industry’s huge success in at- tegic narrative. However, it would seem, to tracting international investment and pro- some in the industry at least, that funding ductions, one of the key aims of the govern- bodies only want a very specific version of ment’s film policy, would seem to be actively the past. A similar claim is made by the fil- undermining its other aim of supporting mmaker Angus Gibson. He recounts his at- South Africa to tell local stories. While the tempt to get a screenplay taken up which success of Cape Town Studios is clearly ai- painted a bleak picture of contemporary ding the wider Cape Town economy, and society: ‘Everybody was very kind of saying, might well also be having a positive effect “There’s not space for this kind of narrative on skills development amongst those in te- in South Africa right now.” They thought it chnical or ancillary roles in the industry, it doesn’t represent the kind of rainbow nation would seem to be crowding out those people that is painted’ (MC CLUSKEY, 2009, p. 55). looking to develop their creative skills. Such comments might well be dismissed as sour grapes from artists unable to find the Soft Power at Home: resources to realise their projects. However, Authentic Stories and what is less open to debate is the relative Building an Audience lack of public funding in South Africa for lo- cal film production compared to other coun- The difficulty of finding funding to tell ‘au- tries. Astrid Treffry-Goatley points out that thentic’ South African stories (however ‘au- the budget available to the NFVF (currently thenticity’ might be defined) is a frequent around R120 million) is far less than that complaint amongst those working in the typically available to flourishing national local industry. For example, the screenwri- film industries elsewhere, ‘such as that of ter and director Ntshaveni Wa Luruli argues France’ (TREFFRY- GOATLEY, 2010, p. 42). that ‘The South African industry is basically France spent €74.8 million (R1.2 billion) of a service industry’, a state of affairs that has, public funding on film in 2015 (CNC 2016, p. he feels, inhibited his own development as 82). As the NFVF’s CEO, Zama Mkosi, is at ‘an indigenous filmmaker’ (MC CLUSKEY, pains to point out, the demand for funding 2009, p. 77). This has led, such critics sug- ‘currently exceeds the budget by 116% each gest, to a dearth of high quality South Afri- quarter’ (Quoted in WAGNER, 2016). It is can stories. Indeed for some, the structural unrealistic to expect a developing country issues around how the industry has evolved like South Africa to be able to fund the in-

94 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 85-100, jan./jun. 2017 Paul Cooke dustry to the same level as France, even if, the rise, predominantly, given the audien- according to the NFVF’s 2013 Film Indus- ce, for Afrikaans film. The NFVF box-office try Economic Baseline Study, ‘for every R1 report for the first half of 2016 saw ticket spent in the industry, another R1.89 was ge- sales for local films grow by 55% to R43.9 nerated within the South African economy million compared to the same period in 2015 (NFVF 2013, p. 6). Despite this claim, it is (R28.2 million). This was primarily due to widely acknowledged that with regard to the the success of VirAltyd (Jaco Smit, 2016) creation of local content there is a problem. an Afrikaans romantic adventure. Afrikaans At the root of this problem, commenta- films are invariably the most popular local tors frequently acknowledge, is the issue of films with cinema audiences, accounting for audience development. The majority of the 77% of releases in 2016 (NFVF 2016: 6-8). population does not go to the cinema and Given the asymmetrical growth of the so the cinema audience for domestic South South African cinema market, the increasing African films telling South African stories success (however limited) for South African is limited. A report commissioned by the films at home would not seem to be suppor- NFVF in 2015 found that, while there was ting the culture of national inclusivity and a large appetite for South African content cohesion that the government’s film policy amongst the population as a whole, very few ostensibly wishes to develop. This is why the people would consider watching such films NFVF’s audience analysis puts such an em- in a cinema. If they did watch films, where- phasis in its recommendations on audience ver the films were from they tended to be on development and film education: (frequently pirated) DVDs or on free-to-air Film education can assist in growing the television. Part of this is due to the lack of a audiences of today and tomorrow, ensuring tradition of going to cinemas in rural areas that more people have an improved unders- or in townships, a legacy of the apartheid tanding and appreciation of the value of di- era. Visiting cinemas is largely an urban ac- fferent kinds of film. The young generation tivity and is considered to be out of the pri- can be encouraged to learn through and ce range of the majority of the population about film, providing them with a wide ran- (NFVF 2015, p. 20-39). ge of activities to encourage watching, un- derstanding and making films (NFVF 2015, It is interesting to note in this regard p. 39). that a far greater proportion of the Afrika- ner community go to the cinema than other Here we see the report following the di- communities, an audience that is, in fact, rection of travel of similar studies commis- supporting an overall growth in the cinema sioned by national film institutions around sector. South Africa’s box office hit a record the world, such as the UK Film Policy Re- high in 2015 of R1.2 billion, up 36% on the view of 2012, which also concluded that the previous year. Only 6% of this came from lo- future of British film ‘begins with the au- cal films, however, and the only one of these dience’ (SMITH, 2012). Furthermore, it chi- films to make it into the top 25 films was the mes with local initiatives designed to raise comedian Leon Schuster’s latest ‘Candid Ca- awareness of South African films beyond the mera’ movie Shucks! Pay Back The Money cities, such as the ‘New Spaces for African (2015) (ODEK, 2016). That said, the market Cinema’ project, which took place as part for local productions does seem to be on of the 2013 Durban International Film Fes-

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tival (GOVINDASAMY, 2013). Or one mi- of cheap Nollywood product at home — ‘the ght mention ‘Kasi Movie Nights’, a mobile real thing’ as it were — the market for which cinema unit which seeks to bring cinema is growing across the continent (ONISHI, to the townships, building an audience for 2016). One further problem amongst these South African stories in order ‘to empower fledgling industries has been their ostensib- local communities and to share the indus- le focus on positive images of South Africa. try with regular South Africans’, an initiati- Reporting on a screening of the Sollywood ve that, like the NFVF audience report, sees film Ingxoxo: The Negotiation (Tiro Ven- teaching filmmaking skills as an important ter, 2010), Guardian journalist David Smi- means of growing an audience for local pro- th noted how the film producers saw their duct (MOKOENA, 2014), an idea that is also role to ‘make films that present South Africa set to shape the NFVF’s approach to audien- in a positive way, much as Hollywood pre- ce development in the future. Terrence Khu- sents America and prove that many of the malo, its manager of film certification, notes world’s negative stereotypes are wrong’. that the NFVF is seeking to create a series Smith goes on: of regional film ‘hubs’ that would bring both Certainly, there are plenty of Hollywood fil- exhibition spaces and production facilities ms that end up waving the Stars and Stripes, to more rural areas (KHUMALO, 2016). more or less subtly. But my favourites, such It is too early to say what effect these ini- as Citizen Kane, The Godfather and Taxi tiatives might have on the long-term sustai- Driver, are rather more subversive […] I sus- nability of the industry and how far they will pect most films that self-consciously set out to promote a country, or any other product, be successful in building a broader audience are ultimately doomed to obscurity (SMITH, for South African films at home. One out- 2010). come may, of course, be the overcoming of the gap between producers and consumers, Thus we return to the question of soft pointed to by Barnard and Tuomi. Might power, the national strategic narrative and this lead to the growth of a more sustainable the reality of life in South Africa, which wou- low-tech film industry such as we see in Ni- ld seem to challenge this narrative. Using geria as well as other parts of the continent film to generate soft power either domesti- (DOVEY, 2009, p. 22 - 24)? There have cally or internationally is not simply a ques- been some attempts to develop this kind of tion of propaganda. Here we might be re- model in South Africa, be it ‘Sollywood’ Pro- minded of Mashatile’s call for South African ductions in Kwa-Zulu Natal or ‘Vendawood’ cinema ‘to open powerful spaces for debate in the country’s northernmost province, about where we are, as a society and whe- both of which have attempted to ape the low re we are headed’ (MASHATILE, 2013). It -budget, quick-turn around production and is interesting to see that, particularly inter- distribution ethos of Nigeria. However, if nationally, the version of the South African the mainstream industry faces the challen- story that seems to fit most straightforwar- ge of its audience being very familiar with, dly with the image of ‘Brand South Africa’, and thus the industry being unable to com- while being attractive to international pro- pete with, Hollywood, any Nollywood-type duction companies, does not necessarily do industry in South Africa is always going to that well with international audiences. The have to compete with the ready availability most obvious example of this is the UK-Sou-

96 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 85-100, jan./jun. 2017 Paul Cooke th African co-production Mandela: Long the international box office. Far more suc- Walk to Freedom. Although this did very cessful in recent years has been South Afri- well at home, it flopped abroad, despite the ca’s small but growing animation industry. universally praised performance of Elba as The two feature length animations produced the lead (CUNNINGHAM, 2014). Far more by Triggerfish Animation Studios, Zambe- successful, as I shall now discuss, and ulti- zia (Wayne Thornley, 2012) and Khumba mately far better for the nation’s internatio- (Anthony Silverston, 2014) both had wide nal soft power profile, are those films that international releases, being distributed to highlight many of the challenges faced by over 150 countries in 27 languages and ge- the post-apartheid nation. nerating grosses in excess of R900 Million. Both films are amongst the top five highest- grossing South African films of all time. The International Screens way in which Jean-Michel Koenig, chief fi- nancial officer (CFO) at Triggerfish, sees the SouthWatching African S filmouth has A frica not ontended to have value of the company’s work would seem a large presence on international screens. to be particularly well aligned to both the The story of Mandela and the democratic government’s ‘internal’ and ‘external’ soft transition has regularly been the subject of power objectives. On the one hand, Koenig international — particularly western-ma- sees his films as being able to bring ‘African de — films, as well as those made through animation to global audiences’, thus helping international coproduction with South Afri- to protect the continent’s ‘unique culture’ ca. I have already mentioned Invictus, and nuancing a view of Africa as propagated, for Long Walk to Freedom, to which one could example, by Disney’s The Lion King (Roger add several others including the Truth and Allers, Rob Minkoff, 1994) — a company, Reconciliation Committee drama Red Dust it might, however, be noted that Trigger- (Tom Hooper, UK South Africa 2004), Ca- fish now works in partnership with. On the tch a Fire (Phillip Noyce, United Kingdom, other, the company also sees its animation United States/France/South Africa, 2006), a as a tool for education across the continent, thriller about the anti-apartheid resistance, helping to support wider government litera- Goodbye Bafana (Bille August, Germany/ cy and numeracy initiatives (MULLIGAN, France/Belgium//South Africa, 2007], 2016). the story of Mandela’s friendship with one However, the South African films that of his jailers, or the biopic Winnie Mande- circulate internationally most frequently la (Darrell Roodt, South Africa/Canada, have tended to be those that present the so- 2011). And recently announced plans for a cial challenges the country has faced since new film based on the memoir of Zelda la the end of apartheid. The two nominations Grange, Mandela’s personal assistant, Good the country has received for Best Foreign Morning, Mr Mandela (2015), shows that Language Film Oscar highlight this particu- for the international industry South Africa’s larly well. Darrell Roodt’s Yesterday (2004), strategic narrative continues to be conside- the first ever international commercial fea- red a bankable commodity (CHILD, 2016). ture made entirely in Zulu, is typical of many As already discussed, however, these fil- internationally-successful contemporary ms are often not particularly successful at films, telling the story of a woman infected

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with the AIDS virus by her husband who is view of South Africa on western screens. desperate to see her child go to school before The 2000s saw a spate of films depicting the she dies. The following year Gavin Hood’s prevalence of extreme violence in both the Tsotsi (2005) gained huge international country’s townships and its urban centres, acclaim when it was awarded the Oscar for including Jerusalema (Ralph Ziman 2008), its depiction of gang violence in Alexandra, a fictionalized account of how organized cri- a poor township in the Gauteng province minals ‘hijacked’ apartment blocks in the of South Africa, its narrative focussed on Johannesburg suburb of Hillbrow in the the story of a troubled young man who has 1990s, the revenge tragedy State of Violence grown up on the streets as he attempts to (KHALO MATABANE, 2010) and Four Cor- look after a baby he finds in the back of a car ners (2013), Ian Gabriel’s crime drama set he has hijacked. amongst the criminal underworld of the no- As Dovey notes, the representation of torious Cape Flats ‘Numbers Gangs’. Here social violence has been a particularly im- one might also mention Neill Blomkamp’s portant part of contemporary South African internationally successful dystopian Science cinema since the end of apartheid (DOVEY, Fiction films set in Johannesburg,District 9 2009, p. 90). While both these film highlight (2009) and Chappie (2015), both of which key issues that would seem to challenge the address questions of social inequality and national strategic narrative, it is noticeable the rise in xenophobia that this inequality that they also play to western narrative con- has led to. While such films might seem to ventions. Georg Seeßlen, for example, argues play to Miles’ definition of ‘poverty porn’, that in order to win the Foreign Language they also reflect the experience of large parts Oscar, ‘the film has to be “foreign enough,” of the population, for whom violence, exa- but must also not flout the aesthetic codes of cerbated by the huge disparity between the the dream factory too flagrantly’ (SEEBLEN, richest and poorest members of society, is 2007). Tsotsi, in particular, can be seen as an everyday reality. Consequently, althou- part of a wider penchant amongst the mem- gh these films might appear to challenge the bers of the American Academy of Motion dominance of the national strategic narra- Picture Arts and Sciences, specifically, and tive abroad, questioning the success of the western audiences more generally for ‘po- post-apartheid transition, they are also in a verty porn’, a term coined by Alice Miles position to support a public debate on the to describe Danny Boyle’s Oscar-winning state of the nation and thus can themselves story set in the slums of Mumbai, Slumdog also be seen a part of the nation-building Millionaire (2009) (MILES, 2009), but that project, further highlighting the role of film has also been applied to other Oscar films, as a key platform for public debate, as defi- including Fernando Meirelles and Kátia ned by Mashatile above. Lund’s depiction of the Brazilian favelas Ci- Rather than challenging the country’s dade de Deus (City of God, 2002) (WILSON, soft power strategic narrative, such films 2010). Such films tend to present the preca- might be viewed as pointing to a greater rious, and specifically violent, nature of life national maturity, highlighting to the wor- amongst some of the world’s most margina- ld the nation’s faith in the strength of the lised communities for ready consumption country’s underlying democratic values, and by the western gaze. This is the dominant thereby ultimately helping to strengthen the

98 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 85-100, jan./jun. 2017 Paul Cooke power of its strategic narrative. This is a di- year, which ran a special strand on BRICS mension of South African film production films, during which South African films had that is becoming increasingly important and a large presence. as it does, it is interesting to see that South This growing presence ties in with a shift African films are becoming increasingly visi- not only in the ethnicity but also the age ble on the international stage. That said, in demographic of these filmmakers. As Ian terms of whose voices are being represented -Malcolm Rijsdijk points out, these are the in such films, the majority of the filmmakers filmmakers of the ‘Born Frees’, the genera- mentioned above are white, highlighting tion that has come of age in the post-apar- the fact that this part of the community re- theid era. It is a generation that, Rijsdijk mains disproportionally represented in the argues, is currently questioning the limits industry (NFVF 2013, p. 15 - 16). There are, of freedom in post-apartheid South Africa. however, signs that this too is beginning to ‘Are they truly born free, or are they growing change. South African films are a growing up with the burden of expectation born of presence on the international festival circuit the fact of political liberation?’ (RIJS DIJK, representing an ever-wider cross section 2017), the expression of which is also mani- of society. In 2012 Craig Freimond’s story fest in a wider ‘post-nationalist shift’ amon- about an Indian stand-up comedian, Ma- gst filmmakers where, drawing on the work terial, was shown at Montreal, London and on contemporary African Cinema of Alexie Busan. In 2015 The Endless River, Oliver Tcheuyap, ‘nation building has become a Hermanus’ beautifully shot exploration of less prominent, if not absent, motivation in how violence continues to define South Afri- filmmaking’ (TCHEUYAP, 2011, p. 1). Here can society became the country’s first film we see the growth of critical voices on in- to be nominated for the Golden Lion at Ve- ternational screens. To the films already nice. Necktie Youth (Sibs Shongwe-La Mer, mentioned could be added Brett Michael 2015), which presents the world of well-off Innes Sink (2016), which challenges the young people living in Johannesburg, was frequently cosy view of society presented in screened in Berlin. The noir story of a ru- mainstream Afrikaans cinema. Sink tells the thless debt collector For Love and Broken traumatic story of a Mozambican domestic Bones (Tebogo Malope) won best film at the worker whose daughter dies while under Portland festival. The NFVF now has a regu- the supervision of her Afrikaner employer. lar presence at Cannes, as do South African Limited by her immigration status, the wo- films, the young Cape-Town filmmaker Dan man is compelled to remain in the employ of Mace winning awards in 2016 for his short this woman or lose her livelihood, a state of documentaries (Mine Sniffing Rats and affairs that has profound psychological con- Gift, 2016). And so the list goes on. It is also sequences for all members of the household. worth noting in the context of this volume Sink was viewed as a breakthrough for Sou- that the BRICS group is also supporting the th African film, described by the critic Leon presence of South African films internatio- van Nierop as one of the most important nally, most noticeably at the film festival in Afrikaans films of all time, setting ‘the tone New Delhi in 2016 timed to coincide with and chart[ing] a course from which we can- that year’s BRICS summit (ANI, 2016), but not divert.’ (Quoted in SCREEN AFRICA, also at the Sao Paulo film festival that same 2016). However, this new growth in critical

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voices has also highlighted the limits of the cation of locally produced films, telling Sou- government’s willingness to embrace film as th African stories and featuring South Afri- a forum for critical debate. can talent, would seem to be beginning to In 2013, the Durban International Film fulfil the aims for the industry set out by the Festival (DIFF) selected as its opening film likes of Mashatile and Mthethwa. The film Jahmil X.T. Qubeka’s stylish noir thriller Of economy is growing and, be it because of, or Good Report. Reworking the core motif of despite of, this, more South African stories Nabokov’s Lolita (1955), Of Good Report are also beginning to be told on screen. In traces the journey into sexual obsession of the process, film has a growing potential to rural school teacher Parker Sithole (Mothu- generate soft power for the nation interna- si Magano) with his teenage pupil Nolitha tionally, not through any straightforward (Petronella Tshuma). The film received wi- affirmation of a national strategic -narrati de-spread critical acclaim, being screened ve that celebrates the Rainbow Nation, but at international festivals and winning nu- through films that can intelligently debate, merous awards, including the Africa Movie or even dismiss, any sense of a ‘national pro- Academy Award for Best Picture. However, ject’, thereby highlighting the robustness of just before it was originally to be screened the nation’s underlying values. at the 2013 DIFF it was banned by the Films and Productions Board for being ‘child por- Bibliographic references nography’. As Stuart Muller notes, the film is ANI (2016), ‘BRICS film festival to kick-off clearly not pornographic. It is, rather, a cri- on Friday’, The Indian Express, http://india- tique of a society in which predatory beha- nexpress.com/article/india/india-news-in- dia/brics-film-festival-to-kick-off-on-fri- viour of older men towards teenage girls is day-3009286/, September 2. common place, where ‘28% of South Africa’s ARQUILLA, J.; RONFELDT D. Networks and school girls are infected with HIV, versus Netwars: The Future of Terror, Crime, and just 4% of boys’, and where 77 000 girls re- Militancy, Santa Monica: RAND Corporation, ceived abortions in 2011. ‘Misogynism and 2001. sexual predation, especially on young girls, BALSEIRO, I. and MASILELA, N. (eds). To are national afflictions that flagrantly con- Change Reels: Film and Culture in South Afri- tradict the exemplar South Africa proudly ca, Detroit: Wayne State University Press, 2003. embodies as the manifestation of Nelson BARNARD, H.and TUOMI, K. (2008), ‘How Mandela’s principles’. This led, Muller sug- Demand Sophistication (De-)limits Economic gests, to the ‘hypersensitivity’ of the board Upgrading: Comparing the Film Industries of South Africa and Nigeria (Nollywood)’, Industry towards this film (Muller 2014). and Innovation, 15 : 6, p. 647-668. The film clearly did not suffer in the BARR, M. ‘Nation Branding as Nation Building: long run from the publicity generated by its China’s Image Campaign’, East Asia, 29: 1, p. banning. Its subsequent international cri- 81–94, 2012. tical success has done much to support the BISSER, G. ‘The Film Industry and South African continued growing reputation of the nation’s Urban Change’, Urban Forum 25: 2012: 13-15. films. In so doing, while one must be careful BOOYENS, I., MOLOTJA, N. and PHIRI, M. not to overstate the present success of the Z. ‘Innovation in high-technology SMMEs: the industry, there are grounds for optimism for case of the NewMedia Sector in Cape Town’, Ur- the industry’s future. The growing sophisti- ban Forum, 24, p. 289–306, 2013.

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102 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 85-100, jan./jun. 2017 Alexsandro de Sousa e Silva

“pOlsaca soldados-nas tectônicarrs adoda hriesstó eria as ”: memória e política nos documentários As duas faces da guerra

1 Cartas de Angola (2007) e

Alexsandro de Sousa e S ilva*(2012)

Resumo O artigo busca trazer reflexões em torno de dois documentários contempo- râneos sobre conflitos bélicos no continente africano da segunda metade do século XX. O primeiro é As duas faces da guerra (Diana Andringa, Flora Go- mes, 2007), que ressalta a participação de portugueses, guineenses e cabo- verdianos na independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde entre 1959 e 1974, e o segundo, Cartas de Angola (Dulce Fernandes, 2012), trata da presença de cubanos e cubanas na guerra civil em Angola entre 1975 e 1991. Analisaremos ambas as obras para compreender como são construídas audiovisualmente as memórias sobre os conflitos e de que maneira as narrativas evitam expor os dilemas políticos e traumas sociais ainda presentes em Guiné-Bissau e na Ilha caribenha nos respectivos contextos históricos de realização dos filmes. Palavras-chave: Memória; África; Cuba.

Abstract

As Theduas S foldieaces rds-a Nguerrarraators and theCa “Tertacts onide Angc Plaoltaes of TheHis tarticleory”: seeks Mem too rbringy and reflections Politic arounds in t hetwo do contemporarycumentar documenies - taries about the warlike conflicts (2007) in and the African continent on the (2012) second half of the twentieth century. The first is As duas faces da Guerra (Diana

1 O presente texto faz parte de uma reflexão proposta pela professora doutora Fátima Bueno (Departamen- to de Letras Clássicas da Universidade de São Paulo), a quem agradecemos pela oportunidade. * Alexsandro de Sousa e Silva é bacharel e licenciado em História pela Universidade de São Paulo (USP), e mes- tre e doutorando em História Social pela mesma universidade, com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O texto submetido é 100% inédito e não se encontra em processo de julgamento em nenhum outro periódico ou coletânea. E-mail: [email protected].

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 101-116, jan./jun. 2017 103 Os soldados-narradores e as “placas tectônicas da história”: memória e política nos documentários As duas faces da guerra (2007) e Cartas de Angola (2012)

Andringa, Flora Gomes, 2007), which highlights the participation of Por- tuguese, Guinean and Cape Verdean people in the independence of Guinea Bissau and Cape Verde between 1959 and 1974, and the second, Cartas de Angola (Dulce Fernandes, 2012), deals with the presence of Cubans in the Civil War in Angola between 1975 and 1991. We will analyze both docu- mentaries to understand how audiovisual memories are constructed and how narratives avoid exposing political dilemmas and social traumas still present in Guinea Bissau and Cuba in the respective historical contexts of filming. Keywords: Memor; Africa; Cuba.

O cinema contemporâneo coloca em sultados encontrados pelas cineastas e pelo pauta diversos temas veiculados às expe- diretor foram colocados em formas fílmicas riências sociais traumáticas do século XX que apresentam tensões intrínsecas às suas e alimenta debates que a sociedade civil narrativas que, por usa vez, transformam-se acompanha com interesse. Regimes auto- em interrogantes dessas mesmas maneiras ritários e violações dos direitos humanos de expor os caminhos trilhados. A nosso são alguns destes assuntos, muitos deles ver, tal problemática está presente em dois permeados por temas “tabus”, postos em documentários recentes que abordam as tela por meio de diferentes estéticas e posi- guerras de independência de Guiné-Bissau e ções político-ideológicas. No que se refere Cabo Verde (1959-1974) e a participação de à balança que equilibra os âmbitos coleti- cubanos e cubanas na guerra civil de Angola vo e privado nas perspectivas narrativas, (1975-1991). muitas das obras que se destacaram desde O primeiro documentário é As duas fa- os anos 1990 mantiveram o fiel pelo lado ces da guerra, lançado em 2007 e dirigido da subjetividade. No documentário, essa conjuntamente pela jornalista angolana última perspectiva é ressaltada em filmes -portuguesa Diana Andringa e pelo cineasta enquadrados nos “modos” participativo e guineense Flora Gomes. Na obra, composta reflexivo, marcados pela abertura ao diálo- de duas partes (uma hora de duração cada), go com o espectador, pelo questionamento acompanhamos as memórias construídas da linguagem cinematográfica e pela per- pelos protagonistas dos conflitos entre os formance dos cineastas em tela, segundo as africanos de Guiné-Bissau e Cabo Verde proposições de Bill Nichols (2012). e os portugueses, ocorridos entre 1959 e Para sairmos dessas considerações ini- 1974. As filmagens na África são marcadas ciais generalizantes e imprecisas, nos de- por visitas dos protagonistas aos “lugares bruçaremos aqui sobre documentários diri- de memória” (Bissau, Mansoa, Geba, Bafa- gidos por duas cineastas portuguesas (Diana tá e Guiledje), no geral espaços repletos de Andringa e Dulce Fernandes) e um diretor ruínas, como a simbólica “pedra de Geba”. de Guiné-Bissau (Flora Gomes) sobre confli- O segundo filme é Cartas de Angola, di- tos armados no continente africano. Os três rigido por Dulce Fernandes e lançado em vivenciaram direta ou indiretamente expe- 2011. Filmando em Cuba, a documentarista riências traumáticas e investigaram o passa- portuguesa entrevistou cubanos que esti- do para responder suas inquietações. Os re- veram em Angola entre 1975 e 1991 parti-

104 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 101-116, jan./jun. 2017 Alexsandro de Sousa e Silva cipando, civil ou militarmente, nas lutas do hegemônicas de Cabo Verde, Guiné-Bissau Movimento Popular de Libertação de Ango- e Cuba. la (MPLA) contra a União Nacional para a Para fazer as análises e conclusões, leva- Independência Total de Angola (UNITA) e remos em conta as relações entre História sua apoiadora, a África do Sul regida pelo e Cinema que privilegiam o filme como ob- apartheid. Enquanto Diana Andringa ten- jeto principal de reconstituição do passado, ta descobrir os nomes dos soldados portu- com suas tensões intrínsecas. Tal proposta gueses homenageados na Pedra de Geba em metodológica foi defendida por historia- ruínas, Dulce Fernandes, por sua vez, busca dores franceses, como Marc Ferro e Pierre conhecer a Angola que não vivenciou (era Sorlin, e no Brasil por meio dos trabalhos uma das “retornadas”)2 por meio dos rela- de pesquisadores como Eduardo Morettin tos de cubanos (estrangeiros como ela se e Marcos Napolitano. Como referente teó- sente, apesar de nascida na África). rico, trabalharemos com a diferenciação A escolha recai sobre esses documentá- entre História e Memória, tal como pensou rios por dois motivos. O primeiro é a pos- Roberto Vecchi (2010) e outros intelectuais sibilidade de pensar os conflitos políticos e (LE GOFF, 2003). militares antes e depois das independências africanas e os traumas sociais deixados em As duas faces da guerra: os seus partícipes. Com isso, verificaremos as soldados-narradores e a voz distintas maneiras de narrar e interpretar o passado, que muda de sentido quando es- da autoridade crito (ou filmado) por algum dos lados do Os dois episódios de As duas faces da guer- conflito. O segundo motivo justifica-se sobre ra possuem uma narrativa fragmentada e as diferentes motivações das cineastas e do diversos personagens, em sua maioria com- diretor na realização das obras como ponto batentes portugueses e africanos na guerra de partida para as reflexões, mas veremos da independência de Guiné-Bissau e Cabo que as conclusões são, a nosso ver, conver- Verde. A narração em over é dividida entre gentes. Afirmamos esse paralelo entre os Diana Andringa, quem apresenta a maioria filmes, pois acreditamos, como hipótese de dos personagens portugueses, e Flora Go- investigação, que as obras amenizam as ten- mes, a cargo dos guineenses, angolanos e sões entre memórias dos anos 1960-1980 e caboverdianos, majoritariamente. Apesar reforçaram implicitamente as visões oficiais da fragmentação, há uma linearidade na or- do passado defendidas pelas forças políticas ganização dos fatos relembrados, partindo

2 Logo após a Revolução dos Cravos em Portu- da greve de marinheiros no Porto Pidjiguiti gal, em abril de 1974, e diante da iminência da (Bissau) em agosto de 1959 até a Revolução concretização das independências das colônias dos Cravos, em abril 1974. Nessa cronolo- africanas, colonialistas europeus que se encon- travam na África começaram a emigrar, gerando gia, o ano de 1963 foi recordado pela narra- um êxodo rumo ao país lusitano. As pessoas que tiva devido ao início das ações armadas do voltavam à Europa, ou iam pela primeira vez visto que nasceram em terras africanas, eram Partido Africano para a Independência da chamadas de “retornadas” e enfrentaram a des- Guiné e Cabo Verde (PAIGCV), movimento confiança geral dos conterrâneos portugueses e político criado por Amílcar Cabral e intelec- as acusações de se beneficiarem da exploração econômica na África, gerando ainda hoje em tuais desses territórios africanos em setem- Portugal dificuldades em lidar com o tema. bro de 1956. O líder guineense é homena-

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 101-116, jan./jun. 2017 105 Os soldados-narradores e as “placas tectônicas da história”: memória e política nos documentários As duas faces da guerra (2007) e Cartas de Angola (2012)

geado pela obra que, como mote principal, quanto o vemos conversar amigavelmente reitera uma frase a ele atribuída: “Não luta- com dois africanos. Em uma das imagens mos contra o povo português, mas contra o de arquivo que fecha a primeira parte do colonialismo”.3 documentário, um instrutor negro diz em Assim ocorre na abertura de ambos os dialeto local a seus homens: “Não lutamos episódios: a Pedra de Geba, parcialmente contra o povo de Portugal, nem contra ne- destruída, é lentamente exibida em meio nhum português. Pegámos em armas para a um matagal e algumas ruínas em último liquidar a dominação colonial portuguesa”. plano. A mão de Diana Andringa limpa o Como resposta, a narrativa mostra imagens objeto e ela lê alguns nomes inscritos, re- de soldados colonialistas feridos e outros ferentes a portugueses mortos entre 1967 perpetuando a destruição, enquanto a mú- e 1968 durante a guerra de independência. sica Ronda dos paisanos, de José Afonso, Roberto Vecchi (2010) lembra-nos de que afirma que “Ao cair do Sol doirado / Venha a literatura sobre as “guerras do ultramar” meu soldado / Largue o seu punhal / Vá- é constituída por uma “poética de rastros e se embora sentinela / Vá-se embora que aí de restos” (p. 115), noção que caberia aqui fica mal”, como forma de engajamento do para entender a mencionada cena e as de- documentário contra o colonialismo, rea- mais que seguem ao longo do enredo. Dois firmando um dos motes principais da obra. dos nomes gravados na Pedra de Geba e Também ao final da segunda parte, o jogo lidos pela cineasta (Guimarães e Antó- de futebol entre negros e brancos ocorri- nio Gomes) faleceram em 21 de agosto de do na Guiné após a Revolução dos Cravos 1967, quando Andringa cumpriu 20 anos. (momento de libertação das opressões se- O interesse em saber daqueles nomes e a gundo a narrativa) e os gritos de “Viva Por- mencionada frase são, de acordo com a voz tugal!” por parte de um líder do PAIGCV, over da cineasta em sequência posterior respondido por crianças, selam a harmo- (a vemos de costas em um barco), “a razão nia entre os grupos. desse filme”. Retomaremos sobre as me- A organização dos personagens foi pen- mórias do conflito adiante. Interessa-nos sada de modo a demonstrar a ideia de uni- por enquanto destacar a valorização das dade na luta contra o colonialismo. Luis “boas relações” entre ex-colonizador e ex- Graça (2009) relata como isso ocorre e dá colonizado. seu parecer sobre os embates representa- Pontuam pela narrativa sequências que dos: “E mais uma vez, não há ódio no rosto reafirmam o mencionado pensamento de e no coração dos guineenses entrevista- Amílcar Cabral. É o caso do ex-soldado dos, mesmo naqueles que foram presos e condutor João Marques Diniz, que passou torturados pelos portugueses...”. Livia Apa a viver com a esposa Célia em Guiné-Bis- (2010), por sua vez, destaca a leitura do fil- sau após prestar o serviço militar obriga- me: “De facto, o que fica explícito no filme tório. “Nada de vinganças, nada de repre- é que a guerra se conclui com duas vitórias, sálias”, afirma o personagem em off, en- por ambas as partes, como se a partir de 3 Vale lembrar que Amílcar Cabral foi assassinado certo momento os dois povos em guerra ti- em 21 de janeiro de 1973, isto é, antes da inde- vessem começado uma aventura a dois que pendência de Guiné-Bissau, ocorrida em setem- levaria ambos para um futuro finalmente bro do mesmo ano e reconhecida um ano depois por Portugal. mais democrático”.

106 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 101-116, jan./jun. 2017 Alexsandro de Sousa e Silva

Luis Graça e Livia Apa reafirmam o sen- sídio, Paulo de Jesus e Carlos Sambú re- tido de “confraternização” do documentá- cordam que os soldados negros eram mais rio. Ele se dá pela reiteração da obra em ex- agressivos contra os anticolonialistas, plicitar a confluência de interesses entre os enquanto os portugueses eram menos. O portugueses forçados a participar na guer- ódio entre os negros está no centro de um ra e os guineenses e caboverdianos explo- controverso tema: os comandos africanos, rados. No primeiro grupo, dão seus relatos recrutados pelos colonialistas de acordo ex-combatentes, como os ex-soldados Leo- com as diferentes etnias para enfrentar o nel Martins e Pedro Gomes, que se emocio- PAIGCV. nam ao falarem das imagens de arquivo que Esses comandos, segundo a voz over de veem, e o “capitão de Abril” Vasco Louren- Diana Andringa, eram mais “valentes” e se ço, cuja importância na revolução de 1974 destacavam nas frentes de batalhas, mas não foi ressaltada no documentário, porém também eram os mais violentos. Agnelo reconhecível ao espectador ou espectadora Dantas, do PAIGCV, recorda a maldade dos conhecedores da história recente do país. soldados colonialistas negros contra um Entre os africanos, mais numerosos em preso do movimento, que teve os testículos tela, predominam antigos guerrilheiros, arrancados. O português Marcos Lopes diz como Paulo de Jesus, Dalmo Embunde e que tal recrutamento era possível porque a Fefé Gomes Cofre, que percorrem os espa- oportunidade de ascensão social era questão ços onde ocorreram os conflitos rememora- de sobrevivência. Com a independência, li- dos. Como contraponto aos defensores da deranças dos soldados dos comandos africa- independência na África, o português Ma- nos foram executadas, gerando um trauma nuel Monge faz a defesa do colonialismo, e social. João Paulo Borges Coelho (2003) tra- seus discursos são contestados, através da ça um panorama sobre algumas das raízes montagem, por vozes anticolonialistas. As- dos violentos conflitos pós-independência sim sendo, transparece-se que a demanda em países africanos de Língua Portuguesa; africana por “vingança” ou justiça contra os no caso de Guiné-Bissau, a formação dos europeus é matizada, dada a diferenciação comandos africanos constitui a “herança” entre portugueses colonialistas e anticolo- dos portugueses para a construção de um nialistas. “potencial de violência” que explodiu com Por outro lado, o mesmo não ocorre en- a execução dos líderes dos grupos armados tre os africanos, cujos problemas o docu- pró-colonialismo: mentário se esforçará em conter. Alguns [Foi na Guiné-Bissau] onde as tropas es- relatos explicitam essas questões. Uma peciais africanas mais haviam evoluído, das problemáticas expostas é a violência estruturadas que estavam como um ver- entre os negros. Relembrando a formação dadeiro exército organizado em batalhões do PAIGCV, o antigo combatente Sulei e companhias à semelhança das forças ar- Baldé recorda-se do “juramento da Cola”, madas portuguesas, com grande experiên- cia de combate e, portanto, representando permeado por ameaças aos seguidores e uma verdadeira ameaça para o novo regi- não participantes: “Você não vai entrar me. Consequentemente, este foi impiedoso, mas também não diz a ninguém. Isso fica localizando, prendendo e eventualmente consigo. Porque quem quebra o juramen- executando sumariamente muitas das figu- to da Cola, morre”. Em visita a um pre- ras de relevo daquelas forças (p. 189).

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 101-116, jan./jun. 2017 107 Os soldados-narradores e as “placas tectônicas da história”: memória e política nos documentários As duas faces da guerra (2007) e Cartas de Angola (2012)

No documentário, o colonialista Ma- geográficos e linguístico impostos pela Eu- nuel Monge afirma que “dói” nele saber ropa. Evidentemente, cabe aqui dizer que das mortes, pois a saída dos portugueses da existe uma distância entre as tensões entre África foi “rápida” demais. O caboverdiano os africanos e a violência descomunal do Pedro Pires, a voz autorizada entre os afri- colonialismo, representada no documentá- canos a fazer sínteses estratégicas do PAI- rio através dos testemunhos de tortura por GCV, diz que houve “equívocos” nos “dois parte de ex-guerrilheiros como Paulo de lados”, mas o colonialismo cometeu o prin- Jesus, Agnelo Lourenço Fernandes, Sulei cipal “crime” por estimular a “vietnização Baldé e Carlos Sambú. da guerra”, ou seja, a divisão entre os pró- Isto posto, ressaltamos o descompasso prios explorados. que há entre a representação visual da li- Apesar da acusação de Pedro Pires, a derança do PAIGCV e das camadas popu- qual induz o espectador e a espectadora a lares no documentário. Os que lutaram nas pensar que o PAIGCV era coeso e mantinha frentes de guerra e os civis que viveram o união dos colonizados, há testemunhos período guardam informações e materiais que colocam tal raciocínio sob tensão. Fi- sobre as lutas e geralmente fazem os relatos linto de Barros queixou-se para a câmera caminhando pelos “lugares de memória” da dificuldade em convencer os pobres a (utilizando a terminologia proposta por apoiarem o movimento de independên- Pierre Nora). Chico Bá e Paulo de Jesus, cia, na formação do grupo anticolonialista; por exemplo, são nossos “guias” em algu- imagens de arquivo em sequência poste- mas sequências iniciais, sobre a revolta do rior mostrará um líder palestrando junto a porto de Pidjiguiti, ocorrida em 1959. No um grupo de pessoas humildes. Trata-se de segundo episódio, Dalmo Embunde e Fefé uma representação verbal e visual da posi- Gomes Cofre mostram diversos caminhos e ção vanguardista do grupo, encarregado de como vivenciaram esses espaços. Luis Gra- “esclarecer” o sentido da luta anticolonial ça (2009) destaca a desenvoltura desses aos explorados. Ansumane Sambú mostra personagens quando eles descrevem suas que houve desconfianças por parte do PAI- ações do passado: “No filme, ouvem-se de- GCV com relação a determinados grupos poimentos de gente que combateu nos dois nativos, quando repetiu a reclamação feita lados, caboverdianos e guineenses... Os aos líderes do movimento: “Então? Somos primeiros mais comedidos, os guineenses mentirosos? Ou contra o partido? É por isso muito mais espontâneos e soltos, dotados que andam aqui de um lado para o outro, de grande oralidade (‘São mesmo grandes e não nos dizem nada? Que mal fazemos? contadores de histórias’)”. Fefé Cofre de- Também somos Guinéenses! Queremos ir monstra como encontrou o fornecimento à luta!”. O relato expõe-nos a existência de de água do quartel português de Guiledje, fissuras no discurso homogêneo acerca da relato que evidencia serem os soldados as “unidade” partidária, e mostra que as se- “mãos” que tateavam desconhecidos terre- culares rivalidades étnicas na região (entre nos das lutas bélicas. Passado (memórias, fulas, balantas, felupes, mandingas, ma- relato, oralidade, gestos corporais) e pre- jacos, nalus e papéis) não foram elimina- sente (imagem e som ambiente) se fundem das no momento de criação de um Estado para dar conta de experiências pouco co- que manteve, em termos gerais, os limites nhecidas (Imagem 1).

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Imagem 1: Dalmo Embunde (1º plano, à direita) explica como eram coloca- das a minas terrestres durante a guerra, enquanto Fefé Gomes, Mamani Dan- so, Assana Silá e homem ao fundo acompanham a explicação.

Um breve apontamento sobre os lu- os espaços memorialísticos. Por sua vez, gares de memória. É empregada estraté- quando Leonel Martins e Pedro Gomes gia semelhante à do documentário Shoah veem através da televisão as imagens da (Claude Lanzmann, 1985), em que sobre- emboscada que sofreram em Guiné-Bissau viventes do Holocausto falam dos campos em 1969, eles se emocionam, num dos ra- de concentração e até mesmo os visitam.4 ros momentos de respeito às imagens de Como dissemos, os ex-combatentes gui- arquivo (a única sequência não utilizada neenses vão apresentando ao espectador como ilustração dos discursos em voz off os sítios de combate. Assim ocorre com o ou over) bem como aos sentimentos de ex- “caminho de Candjafra”, sobre o qual a voz combatentes (os únicos a se emocionarem over de Diana afirma que ali, no meio de explicitamente no documentário), que se uma floresta, há muitas vítimas dos confli- recordam daquelas matas e da experiência tos vivenciados. Esse espaço é o contrapon- traumática.5 Roberto Vecchi (2010) afirma to visual da Pedra de Geba, cujos corpos que a reivindicação do espaço como lugar provavelmente não estão ali, mas os no- de memória tem fins políticos: mes, sim. Corpos ocultos e nomes expostos 5 As imagens de arquivo correspondem à repor- compõem intrincadas formas de delimitar tagem da ORTF intitulada La guerre en Guinée, exibida em cadeia nacional francesa em 11 de no- 4 Uma diferença importante entre As duas faces vembro de 1969. A matéria fez parte de L’oppo- da guerra e Shoah é em relação ao uso de do- sition portugaise et le maquis de Guinée no cumentários de arquivo. Enquanto Claude Lanz- programa Point contrepoint, que exibiu repor- mann rejeitou a utilização desses registros, o tagens sobre os portugueses exilados na Fran- documentário de Diana Andringa e Flora Gomes ça e os conflitos bélicos em Guiné Portuguesa, valeu-se diversas vezes dos mesmos, a maioria Angola e Moçambique. Disponível em: http:// das vezes sem a devida contextualização dos www.ina.fr/video/CAF93023747. Acesso em 20 contextos de filmagem. fevereiro 2017.

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 101-116, jan./jun. 2017 109 Os soldados-narradores e as “placas tectônicas da história”: memória e política nos documentários As duas faces da guerra (2007) e Cartas de Angola (2012)

O topônimo Wiriamu, portanto, não poderá de Amílcar Cabral para negociar um pacto nunca resgatar, em si, o referente perdido, nos combates por meio de contatos dentro porque inacessível, do massacre. Mas pela do partido, mas foram capturados e mortos. performatividade da representação e da ci- No “jogo de culpas”, Lourenço e Pires jus- tação, que se relaciona com a sua ocupação como significante político onde os restos e os tificaram o ato como sendo de guerra, en- rastros fantasmáticos desse e de outros mas- quanto Manuel Monge afirma a covardia do sacres se repercutem e ‘agem’ em chave perfo- evento e o incômodo que o assunto gera nos mativa, construindo o que enuncia, Wiriamu defensores do partido guineense. Por sua pode tornar-se não uma catarse, ou um “lugar vez, na parte sobre o ataque a Guiledje nar- comum”, mas um lugar político de uma topo- rada no segundo capítulo do documentário, grafia não esvaziada do tempo (p. 175). enquanto os ex-combatentes explicavam Enquanto os soldados anônimos são como as ações foram realizadas em terreno retratados em lugares abertos, outros en- (Imagem 1), o líder político caboverdiano fa- trevistados em África ficam em espaços zia as sínteses das estratégias em sequências fechados, assim como a maioria dos en- paralelas, de modo que a “cabeça” explicava trevistados portugueses. Dentre os africa- com mapa o trajeto e as “mãos” apontavam nos, destacamos a presença de Pedro Pires, topograficamente onde ocorreram os inci- identificado como “Comissão Executiva da dentes (Imagem 2).6 Luta PAIGCV”, e presidente de Cabo Ver- de (2001-2011) no momento da entrevista. O personagem apresenta-se como um dos porta-vozes das estratégias do grupo e dá a visão oficial que, conforme veremos, o docu- mentário segue em linhas gerais. Menciona- mos acima sua “autocrítica” e a acusação ao colonialismo sobre a responsabilidade pela execução dos comandos africanos no pós-in- dependência em Guiné-Bissau; além disso, afirmou o mandatário que os negros que en- frentaram o PAIGCV “deveriam ter a humil- dade de aceitar que estavam no lado errado e que perderam a guerra”. Também diz que Imagem 2: Pedro Pires faz as sínteses das es- “se identificava” com “aqueles que sofreram tratégias do PAIGCV realizadas na guerra pela na pele tudo isso”, ou seja, com aqueles que independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde. passaram por privações nos conflitos. Duas sequências atestam a autoridade de 6 Tal forma de narrar, separando “líder” e solda- dos em suas ações, traz à memória a represen- Pedro Pires como a voz principal do PAIG- tação da guerra feita em filmes soviéticos como CV no documentário. O colonialista Manuel A batalha de Stalingrado (Stalingradskaya Bi- Monge, o “capitão de Abril” Vasco Louren- tva, Vladimir Petrov, 1949) e A queda de Ber- lin (Padeniye Berlina, Mikheil Chiuareli, 1950), ço, e Pires protagonizaram o debate sobre nos quais Josef Stálin era mostrado dentro do a morte violenta de três majores portugue- Palácio de Inverno como um “deus” da guerra ses, assassinados por setores do PAIGCV em no Olimpo planejando os ataques, enquanto os soldados estavam nas frentes de batalha seguin- 1970. Os militares buscavam se aproximar do os planos.

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Pedro Pires retorna nos momentos finais “real” motivo de libertação, segundo a obra, do documentário, ao afirmar que após a Re- que seria a Revolução dos Cravos em abril volução dos Cravos “não havia ódio”. Aqui de 1974. Sobre esse último movimento, vale voltamos ao ponto inicial da análise de As lembrar que o início da organização dos ca- duas faces da guerra, sobre a “ausência de pitães, na qual Vasco Lourenço teve papel ressentimentos” que marcou a independên- destacado, ocorreu em terras guineenses e cia. O gesto de Assana Silá, que perdeu fami- nada se diz no documentário. Enfim, é no- liares na guerra enquanto trabalhava para tável a ausência de líderes da “velha guarda” os portugueses, em cumprimentar Fafá Go- do partido africano entre os entrevistados, mes em off (deduzimos que o seja, só vemos como o então líder político de Guiné-Bissau a mão) enquanto diz que “guerra é guerra; João Bernardo Vieira, presidente em déca- agora, todos são família” vem a ratificar o das anteriores, organizador de golpes de Es- discurso conciliador do documentário, que tado no país e assassinado dois anos depois expande as supostas boas relações entre por- do documentário, em 2009. São lacunas tugueses e africanos a todos os atores envol- que evidenciam as possíveis negociações e vidos nos conflitos. Leopoldo Amado, histo- “pactos” para a concretização do projeto fíl- riador de Guiné-Bissau, elogia o “refinado mico e que constroem um discurso histórico sentido de equilíbrio e de História” do filme, monumentalizante das lutas anticoloniais e faz a seguinte observação: “em certo sen- envolvendo Portugal, Guiné-Bissau e Cabo tido, [é] notório um certo escamoteamento Verde; porém, enquanto exercício da crítica das contradições, divergências e confrontos do documento histórico (o documentário), de que esta guerra se rodeou, tanto entre os recordamos as reflexões de Jacques Le Goff contendores como no seio de cada uma das (2003): “O documento é monumento. Re- partes tomadas separadamente”. No entan- sulta do esforço das sociedades históricas to, para o autor, a obra acerta em “maiores para impor ao futuro – voluntária ou invo- e mais sensatas atitudes de reconciliação e lutariamente – determinada imagem de si aproximação que se registram hoje entre os próprias” (p. 538). antigos contendores, sejam eles europeus e africanos ou africanos entre si” (apud TU- Cartas de Angola: as “garrafas NES, 2007). ao mar” e as “placas No entanto, as “sensatas atitudes de re- conciliação” ocultam questões necessárias tectônicas” da história para maior compreensão do fenômeno das Enquanto em As duas faces da guerra Pe- guerras pelas independências africanas. Na dro Pires é mostrado como a voz africana homenagem do documentário a Amílcar autorizada a sintetizar movimentos gerais Cabral, pouco sabemos de seus valores po- dos conflitos, em especial nos relatos sobre o líticos, dada a predominância dos elogios “caso dos majores”, a execução dos coman- ao líder e a ausência de sua voz nas imagens dos africanos e o ataque a Guiledje, em Car- de arquivo. Tampouco entendemos como tas de Angola nenhuma autoridade política de fato ocorreu a libertação de Guiné-Bis- ou militar é entrevistada. Artistas e ex-com- sau do jugo colonial, pois a independência batentes cubanos que estiveram nas guerras foi autodecretada pelo PAIGCV em 23 de civis em Angola dão a visão mais imediata setembro de 1973, ou seja, meses antes do das vivências no conflito. O mote princi-

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 101-116, jan./jun. 2017 111 Os soldados-narradores e as “placas tectônicas da história”: memória e política nos documentários As duas faces da guerra (2007) e Cartas de Angola (2012)

pal apresentado pela documentarista Dul- redes de atuação do governo de Fidel Castro ce Fernandes é entender o país africano de no continente africano, em especial na ajuda nascimento por meio dos relatos de estran- militar a Amílcar Cabral no final da década geiros, no caso, cubanos e cubanas, pois ela de 1960. também se sente uma estrangeira. As cartas, Sete personagens compõem a narrativa tema da obra, são apresentadas e mesmo de Cartas de Angola: Carlos Mirabal, pes- lidas em algumas passagens. No entanto, cador; Chichi, músico da Tumba France- trata-se de uma metáfora sobre a memória, sa Pompadour, espaço religioso e cultural pois os entrevistados e entrevistadas seriam consagrado às origens africana e haitiana; o “cartas vivas” que relatam o que ocorreu nos casal Lourdes Doménigo, anestesista, e Oc- anos de guerra. tavio Lauro Moreno, pediatra; Roberto Mo- Vale lembrar que Cuba e União Soviética ralez, jogador de front tenis; Isabel Izquier- foram os principais países comunistas que do Viciedo, dona de casa; e Emilio Urgelles auxiliaram o Movimento Popular de Liber- Savón. Cada um deles relata ao espectador tação de Angola (MPLA) contra a União Na- como foi a abordagem pelo governo cubano, cional para a Independência Total de Angola a ida a Angola (entre 1975 e 1987 de acordo (UNITA). As cifras de cubanos em território com os testemunhos), as principais ativida- angolano entre 1975 e 1991, na chamada des e alguns detalhes do convívio no país Operación Carlota (nome da escrava africa- africano. Cada portador de memória seria na que liderou revolta em 1843), é incerta e uma espécie de “carta viva”, cujo montan- varia entre 300 e 500 mil, entre civis (mé- te dá a dimensão multifacetada do que foi dicos, professores, técnicos, artistas) e mi- a experiência cubana em Angola. Dulce Fer- litares. Edward George (2005) afirma que nandes também se coloca como uma perso- “os quinze anos de intervenção em Angola nagem do filme, apesar de não aparecer em fizeram parte das vidas de uma geração de cena. Escutamos sua voz em over em diver- cubanos, e ao seu final em 1991 cerca de meio sas passagens, especialmente nos momen- milhão de cubanos trabalharam no país” tos em que fala de sua trajetória de Angola (p. 01, tradução nossa).7 Em As duas faces a Portugal quando criança. Filha de coloni- da guerra há três menções da ajuda cuba- na ao PAIGCV: o médico angolano Manuel zadores portugueses, a cineasta foi levada Boal diz que trabalhou com profissionais da pela família na fuga para a Europa devido Ilha na fronteira entre a Guiné Portuguesa à independência do país africano. No mo- e Senegal (onde eram proibidos permane- mento em que ela parte, em 1975, chegam os cer); o soldado Dalmo Embunde atesta que cubanos em Angola para cumprir diferentes mapeou terreno com estrategistas cubanos missões no território. para cercar um quartel; e um morador de O interesse do documentário é pelo pas- Guiledje lembrou que, no momento de ata- sado e pela vida de cada um daqueles per- que ao quartel português onde vivia, as pes- sonagens. Ao contrário de As duas faces da soas gritavam “Aí vêm os cubanos!” como guerra, a diretora optou por não mostrar sinal de perigo. Tais indícios evidenciam as imagens de arquivo sobre o contexto, rea- lizando um exercício sobre a memória na 7 Excerto no original: “The fifteen-year interven- mesma forma que Claude Lanzmann fez em tion in Angola would shape the lives of a gene- ration of Cubans, and by end in 1991 nearly half Shoah (1985), que tampouco se valeu de an- -a-million Cubans would have served there”. tigos registros, mas que, à diferença do docu-

112 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 101-116, jan./jun. 2017 Alexsandro de Sousa e Silva mentário de 2012, visitou os “lugares de me- mãos, restando fragmentos, ruínas. Tal re- mória”. Em Cartas de Angola há destaque às lação com o passado lembra uma das teses fotografias, além das cartas. As fotos exibidas “Sobre o conceito de História” escritas por em tela têm as marcas de ação corrosiva do Walter Benjamin (1985) em 1940, sobre o tempo sobre a superfície dos objetos, carac- anjo representado na pintura de Paul Klee, terizando imagens desgastadas em algumas personagem que quer olhar para o passado, cenas. É como se o filme quisesse agarrar o mas é empurrado pelos ventos do progresso que ficou do tempo, mas este escapa de suas que acumulam ruínas aos seus pés.

Imagem 3: Fotografia de Isabel Izquierdo Viciedo em Angola.

Imagem 4: Fotografia de esposa de Carlos Mirabal.

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 101-116, jan./jun. 2017 113 Os soldados-narradores e as “placas tectônicas da história”: memória e política nos documentários As duas faces da guerra (2007) e Cartas de Angola (2012)

Nos relatos, que majoritariamente re- As cartas intercambiadas entre os en- metem aos bons momentos de vivência na trevistados em Angola com suas famílias África, há poucas aberturas para críticas ou também ocultavam a dura realidade vivida. autocríticas. Carlos, na maioria das vezes Carlos escreveu somente uma única para a mostrado no mar onde lhe agrada viver, diz esposa porque achou que não escaparia com que teve problemas em Cabinda: “Metemo- vida em uma das missões internacionalistas. nos em sarilhos, pois os donos do poço [de Chichi, talvez um dos personagens mais con- petróleo] zangaram-se porque os cubanos victos da importância de sua participação na andavam às voltas aos poços. Estávamos só a guerra, não hesita afirmar que mentia para olhar, a observar coisas que nunca tínhamos a mãe, para que ela não se preocupasse com visto, já que nessa altura quase não se explo- o filho em meio aos combates. Por sua vez, rava petróleo aqui em Cuba. Agora, sim”. Por Emilio se diverte com as histórias que in- sua vez, Chichi relaciona sua vivência musi- ventava aos pais: quando estava em comba- cal na Ilha e a sonoridade escutada no outro te, dizia-lhes que estava em festas, longe dos lado do Atlântico quando remete ao vínculo territórios em conflito. A razão maior para cultural entre Cuba e África: “Vi-o primeiro que ocorra este tipo de comunicação talvez aqui e comprovei-o lá em Angola”. No entan- fosse a pouca disposição em compartilhar e to, diz que não houve maior interação com os propagar os traumas vividos em terras es- habitantes locais, dado o restrito tempo que trangeiras. Censuras das autoridades cuba- conviveu com as instrumentalizações sono- nas no período não seriam de todo descar- ras africanas: “Muito pouco, pois nossa fun- tadas. ção não era pra estar ali [junto aos músicos]”. Os personagens, cada um ao seu modo, Ou seja, havia limites para a circulação dos são representados de forma solitária, ape- cubanos em Angola. Assim como não existia sar de muitos estarem cercados de pessoas. liberdade de movimentação, tampouco o ir e Carlos Mirabal está frequentemente olhan- vir a Angola eram opções dos entrevistados. do para o mar nas primeiras sequências do A antiga artista Isabel, orgulhosa do período documentário e, na última, após breve visi- em que viveu no país africano, dada a inte- ta a sua casa, volta de bicicleta aos barcos ração local que teve (ao contrário de Chichi), (personagem mais próximo do referencial queixa-se por ter voltado para casa. No caso cultural lusitano). Ao final de uma apre- de Roberto, o governo ocultou da família as sentação religiosa, Chichi fecha o salão ab- razões pelo seu desaparecimento, uma vez solutamente sozinho em tela. A anestesista iniciados os treinamentos bélicos em mea- Lourdes fecha a participação saindo sozinha dos dos anos 1970. Somente quando esteve por um corredor do hospital. Isabel é mos- preso pelas forças sul-africanas e perdeu o trada em seu cotidiano conformada com sua braço esquerdo, seus entes souberam da ver- vida pacata, com grandes histórias e memó- dade, anos depois de serviço militar. Como a rias musicais em sua memória (junto à irmã hierarquia oficial cubana (e, principalmente, Silvia, ela canta Valódia (1975), do compo- angolana) é ausente enquanto personagens, sitor e intérprete angolano António Sebas- as recordações a trazem em cena para ex- tião Vicente “Santocas”). São personagens por algumas arbitrariedades cometidas em que vivem isolados em seu dia a dia cujo nome do “internacionalismo revolucionário” heroísmo ficou ocultado, juntamente com na época. o trauma. António Tomás (2011) ressalta o

114 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 101-116, jan./jun. 2017 Alexsandro de Sousa e Silva descompasso temporal entre o heroísmo e a la, terra onde nasci mas que nunca conheci... banalidade cotidiana registrada pela câmera [...] Apesar da inconstância da história, sem- de Dulce Fernandes: pre encontramos a nós próprios ao longo do caminho. Escrevo para dizer que cheguei ao Como o que lhe interessa é o passado no presente, ela [a diretora] opta por colocar os meu destino”. A tela escura com sons do mar cubanos a discorrer sobre a passagem por agitado precede e encerra os respectivos tre- Angola, enquanto lidam com as suas tarefas chos, como se a correspondência chegasse do quotidiano: seja lavar carros, ou a jogar por barco à Ilha (o mar como fronteira do ténis e xadrez, ou a estender roupa no varal. mundo). Porém, este nível de reflexão nos Não fosse a história que contam esses cuba- deixaria no terreno da chamada “micro-his- nos nada tinham de heroico [sic], e seriam muito provavelmente como qualquer outro tória”, ou seja, da história contada a partir nacional na ilha de Fidel Castro com os quais de perspectivas singulares. um turista se deve cruzar nas ruas de Havana. O documentário possui quatro telas com letreiros em fundo negro e letras brancas O sentimento de trauma, segundo Rober- que explicam os contextos gerais da época to Vecchi (2010), remete a um paradigma, dos cubanos em Angola. O primeiro letreiro, o da Medusa, cujo horror em visualizá-la que surge aos primeiros cinco segundos do paralisa a vítima e a impossibilita de seguir filme, fala da sangrenta guerra em Angola seu relato (p. 166-167). E assim ocorre com entre o MPLA e a UNITA entre 1975 e 1991 Lourdes duas vezes, ao relembrar a fome e da ida de meio milhão de cubanos para o que as pessoas passavam e a quantidade de país. O segundo, a 22 minutos de filme, rela- feridos e aleijados em Angola; também com ta a Revolução dos Cravos, a independência Roberto, que se emociona ao falar do mem- das ex-colônias e remete ao meio milhão de bro perdido; e, por fim, com Emilio, que pa- portugueses “retornados”. O terceiro, aos 44 rece querer convencer-se de que está bem, minutos, reitera a violência da guerra du- olhando fixamente para o vazio. Concorda- rante a Guerra Fria, o meio milhão de ango- mos com António Tomás (2011), quando diz lanos mortos e os quatro milhões de deslo- que “nos silêncios dos entrevistados perante cados dentro do território nacional. Enfim, as câmaras, muitos certamente se pergun- o último, que fecha a narrativa (01h01min), tam se terá valido à pena”. Por isso, ressalta- lembra os acordos de paz de 1988, a saída mos que Carlos, Chichi e Emilio utilizaram das tropas cubanas em 1991, o fim do apar- distintos artifícios para não repassarem aos theid na África do Sul (o regime durou entre familiares em Cuba os traumas vividos. 1948 a 1994) e a continuidade da Guerra Ci- Aqui, poderíamos pensar nas tensões vil Angolana. São esses os panos de fundo entre verdade e ficção que as cartas podem macroestruturais que limitam a grande tem- apresentar, como todo texto narrativo, in- poralidade na qual as memórias se inserem. cluindo o próprio documentário. Este últi- Em uma de suas reflexões em voz over, mo apresenta-nos também como uma carta Dulce Fernandes faz a seguinte intervenção: por parte da diretora, que inicia e termina o “Essas convulsões são agora nada mais do relato como se estivesse enviando uma men- que acontecimentos perdidos nos movimen- sagem a alguém: “Havana, março de 2010. tos tectônicos da história. As bombas, os Cheguei hoje a Cuba, em busca das histórias refugiados, os feridos, os mortos, os vivos. dos cubanos que lutaram na guerra de Ango- Pergunto-me, tal como Chris Marker: quem

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 101-116, jan./jun. 2017 115 Os soldados-narradores e as “placas tectônicas da história”: memória e política nos documentários As duas faces da guerra (2007) e Cartas de Angola (2012)

se lembra ainda de tudo isso? A história pas- das cidades, na persistência das rotas e dos sa suas garrafas vazias pela janela”. A “histó- tráficos, na surpreendente fixidez do marco ria” entendida como a grande temporalidade geográfico das civilizações”, p. 14-15). A his- delimitada pelos quatro letreiros cujos “mo- tória faz-se no entrecruzamento entre esses vimentos tectônicos” são o grande palco do níveis de temporalidade, uma vez que ações teatro de guerra, enquanto que as “garrafas” localizadas podem interferir num processo seriam as memórias “soltas” (ou mesmo as histórico de média e longa datas. cartas) representadas nos relatos apresenta- A observação acima se faz necessária, dos na obra. Dessa forma, chegamos a dois porque Cartas de Angola aborda os níveis níveis da história: a macro, representada da “curta” e da “longa” duração, porém si- nos letreiros, que interfere diretamente na lencia-se na “média” duração que, a nosso micro, que são as vidas retratadas com suas ver, seria representada nos períodos de go- glórias e seus traumas. Quando a relação é verno de Fidel Castro e do MPLA. António invertida, constatamos que o micro, por sua Tomás (2011) percebeu essa lacuna, quando vez, não parece interferir no macro. Em uma afirma que o documentário “Não nos revela entrevista, a diretora reitera a analogia: os trabalhos da ideologia, ou da simbologia da nação, ou os processos através dos quais [...] o filme tornou-se uma maneira de eu indivíduos são transformados em máquinas entender a minha própria história, aquilo que me aconteceu e à minha família, através de guerra, dispostos a morrer por uma ban- dos cubanos, também eles frágeis partícu- deira ou por um ideal”. Assim sendo, o do- las no meio dos turbilhões da História. Tal cumentário evita confrontar visões oficiais e como eu, apanhada no meio das convulsões particulares e, ao delimitar os “movimentos do tempo – a derrocada de um império de tectônicos” do passado, apresenta uma vi- quinhentos anos, o êxodo maciço de milha- são muito geral que não abre espaço para res de pessoas, um novo país que nascia – os cubanos foram igualmente apanhados no maiores questionamentos. Como exemplo, turbilhão de um processo histórico que mu- podemos mencionar a questão do número daria para sempre suas vidas (FERNANDES, de cubanos mortos no conflito (legendas 2013, grifos nossos). mencionam apenas as perdas angolanas) e o “caso Ochoa”, referente ao julgamento e O historiador Fernand Braudel (1990), execução do militar Arnaldo Ochoa Sánchez em um texto publicado originalmente em em 1989, acusado de contrabando de drogas 1958, trata da problemática do tempo. Argu- em Angola mas que, segundo visões mais menta o francês que há diferentes níveis de críticas, foi uma depuração dentro do Es- temporalidade: a curta (ligado aos aconteci- tado cubano para o regime de Fidel Castro mentos: “o tempo breve, à medida dos indiví- manter-se no poder.8 Os detalhes das lutas duos, da vida quotidiana, das nossas ilusões, internas em Angola tampouco são reconsti- das nossas rápidas tomadas de consciência; tuídos. Restam o trauma, o silêncio e a gló- o tempo, por excelência, do cronista, do jor- ria de tempos remotos de heróis anônimos nalista”, p. 10), a média (“pode-se dizer o em fotografias desgastadas e em memórias ‘recitativo’ da conjuntura, do ciclo [,..] uma sedimentadas. curva de preços, uma progressão demográ- fica, o movimento de salários, as variações 8 A ideia de que o general Arnaldo Ochoa tenha da taxa de lucro [...]”, p. 12) e a longa dura- sido assassinado por motivos políticos vem de obras como o documentário 8-A (Orlando Jimé- ção (“repare-se na duradoura implantação nez Leal, 1993).

116 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 101-116, jan./jun. 2017 Alexsandro de Sousa e Silva

res da memória por um lado, fotografias e cartas por outro); e trazem pontos de vista Dois homens ao final dos dois episódios de por meio da narrativa em over que evitam ConsideraçõesAs duas faces da guerra finais falam da necessi- confrontar amplamente os relatos dos que dade em recordar das guerras de indepen- vivenciaram diretamente as dores da guerra dência. Os documentários aqui analisados com as visões defendidas por forças políti- cumprem a necessidade em recuperar algu- cas hegemônicas no contexto de realização mas das experiências bélicas e traumáticas dos filmes (2007-2011), de maneira que es- ocorridas entre 1959 e 1991, porém o ato de tes últimos não sejam questionados frontal- rememorar implica uma leitura da história mente. No filme de Diana Andringa e Flora que se quer memória hegemônica. Com isso, Gomes, um dos líderes das independências as visões nacionalizantes preponderam nas de Guiné-Bissau e Cabo Verde aparece em rememorações históricas e pouco se colo- tela e delimita a condução dos relatos; na se- cam como questionadoras dos processos de gunda obra, as autoridades cubanas e mes- exclusão nas revoluções em construção no mo angolanas (a questão é como entender século XX. Essa crítica no processo africa- Angola por meio da memória) não estão no de pós-independência foi realizada pela presentes, mas os relatos (as “garrafas va- historiadora Letícia Bicalho Canêdo (1985), zias” ou as “cartas”) são condicionados pelas que aqui reproduzimos: “placas tectônicas da história” representa- [...] o nacionalismo precisou ser inventando. das pelos letreiros. Melhor dizendo, ele se transformou em álibi dos privilegiados, que passaram a recorrer ao Referências mito da totalidade nacional para não enfren- tar o problema das desigualdades reais. Esta APA, Livia. A terceira margem da história. Apon- totalidade passou a ser expressa pelo Esta- tamentos em volta de As duas faces da guerra de Diana Andringa e Flora Gomes. Revista Abril, do Nacional, que se tornou o instrumento de Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Por- garantia de estabilidade social e econômica. tuguesa e Africana da UFF, Niterói, vol. 3, n. 05, Foi assim que a realidade nacional passou a p. 89-96, novembro 2010. ser fabricada pelo aparelho administrativo desse Estado Nacional [...] Assim as lutas de BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da Histó- independência acabaram produzindo regi- ria [1940]. In: Magia e técnica, arte e polí- mes nacionalistas de tendências estatizan- tica. Ensaios sobre literatura e história da cul- tes, anticolonialistas e anti-imperialistas, tura. Obras Escolhidas, vol. 1. Tradução: Sergio Paulo Rouanet. Prefácio: Jeanne Marie Gagne- mas preocupados em evitar transformações bin. 3ª Ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, reais nas sociedades (p. 71). p. 222-232. Enquanto As duas faces da guerra faz o BORGES COELHO, João Paulo. Da violência co- relato sobre as guerras de independência em lonial ordenada à ordem pós-colonial violenta. Guiné-Bissau e Cabo Verde, Cartas de An- Sobre um legado das guerras coloniais nas ex- colónias portuguesas. Lusotopie, Paris, p. 175- gola aborda a guerra civil angolana. Ambas 193, 2003. as narrativas, cada uma ao seu modo, apre- sentam motivações pessoais de cineastas CANÊDO, Letícia Bicalho. A descolonização da Ásia e da África: processo de ocupação como ponto de partida para as narrativas; colonial, transformações sociais nas colônias, têm zelo pelas memórias anônimas e ima- os movimentos de libertação. 1ª Ed. São Paulo: gens de época (imagens de arquivo e luga- Atual, Editora da UNICAMP, 1985, 84 p.

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 101-116, jan./jun. 2017 117 Os soldados-narradores e as “placas tectônicas da história”: memória e política nos documentários As duas faces da guerra (2007) e Cartas de Angola (2012)

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118 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 101-116, jan./jun. 2017 Alessandra Meleiro; Mahomed Bamba

Transnacionalização de talentos e tecnologias no campo cinematográfico: o caso Moçambique1

Alessandra Meleiro* Mahomed Bamba**

Resumo Os primeiros filmes contra o colonialismo português em Moçambique foram feitos por realizadores estrangeiros a convite da Frelimo, transformando o país em um laboratório de experiências para Ruy Guerra, Jean Rouch, Jean -Luc Godard, Murilo Salles e outros cineastas, atraídos a Maputo para filmar com o apoio do governo. Atualmente, o governo atrai especialistas estrangei- ros em tecnologia para a Implantação de uma Rede de Cinemas Digitais em Moçambique. Palavras chave: África; Cinema africano; transferências culturais; transfe- rências de tecnologia

Abstract Transnationalisation of talents and technologies in the cinematographic field: the case of Mozambique The first films against Portuguese colonialism in Mozambique were made by foreign filmmakers at the invitation of Frelimo, transforming the coun- try into a laboratory of experiments for Ruy Guerra, Jean Rouch, Jean-Luc Godard, Murilo Salles, and many other filmmakers, attracted to Maputo to film with government support. Currently, the government attracts foreign technology experts for the Implementation of a Network of Digital Cinemas in Mozambique. Keywords: Africa; African cinema; cultural transfers; technology transfers

1 Artigo originalmente publicado em: Meleiro, Alessandra; Bamba, Mahomed. “Transnacionalização de Talentos e Tecnologias no Cinema Moçambicano”. In: Terceira Metade. Bloco temático Produção e Cir- culação de Tecnologias e Imaginários. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011, p. 73-77. www.terceirametade.com.br * Pós-doutorado junto à Universityof London (Media andFilmStudies). Doutora pela ECA/USP e Mestre em Multimeios pelo Instituto de Artes/ UNICAMP. Professora Adjunta do Bacharelado em Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). E-mail: [email protected] ** Foi professor na Faculdade de Comunicação (FACOM) e no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas (PÓSCOM) da Universidade Federal da Bahia.

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 117-123, jan./jun. 2017 119 Transnacionalização de talentos e tecnologias no campo cinematográfico: o caso Moçambique Diferentemente de outros países africa- bém em terras lusófonas e demais territó- nos, Moçambique teve, mesmo antes de sua rios africanos. independência, uma relação privilegiada Ou seja, não apenas no cinema mains- com o cinema. A nova República Popular tream, mas também nos cinemas periféricos de Moçambique, tornada independente em assistimos a um fenômeno de “transferência 1975, iniciou um processo de transformação cultural”. Quando esta migração de um ci- política, social e cultural, em muito inspira- neasta estrangeiro para um país da África é do nos exemplos soviético e cubano. motivada política e ideologicamente, não há A Frelimo – Frente de Libertação de Mo- dúvida de que ela é acompanhada de uma çambique –, visando cumprir objetivos polí- implicação pessoal com a prática cultural e ticos, investiu fortemente na produção de fil- o cinema em gestação no país em questão. mes, especialmente no gênero documentário, O engajamento político e social no ci- e soube utilizar o cinema como meio de afir- nema pode assumir várias formas. Desde a mação e unificação – em um país que conta realização de um filme dito militante até a com 28 línguas reconhecidas e muitos diale- implicação direta e pessoal nos esforços de tos – bem como meio de pressão diplomática. criação de uma cinematografia nacional. Além da produção, a exibição de filmes Foi em um contexto histórico marcado moçambicanos também tornou-se uma prio- pelo anticolonialismo de fraternidade in- ridade para o governo no período pós-inde- tercultural que alguns cineastas e homens pendência. Em 1978, a pequena indústria de teatro que atuavam no Brasil se implica- de distribuição e exibição é nacionalizada, ram nos esforços para a criação do cinema e é criado o “Cinema Móvel”, em que trin- moçambicano. O caso mais emblemático ta e cinco carros equipados para projeções desse engajamento transnacional é o de itinerantes que levavam às aldeias os filmes Ruy Guerra. intitulados “Kuxa Kanema” (Nascimento do Cinema). O cinema móvel difundia o discur- so do governo em zonas rurais, bem como propiciava a descoberta do cinema para pla- teias de regiões remotas. Transnacionalização de talentos Os primeiros filmes contra o colonialismo português em Moçambique foram feitos por realizadores estrangeiros a convite da Recuperação do arquivo no INAC: latas de fil- mes produzidos por Ruy Guerra em Moçambi- Frelimo, transformando o país em um la- que (Foto: Chico Carneiro) boratório de experiências para Ruy Guer- ra, Jean Rouch, Jean-Luc Godard, Murilo A própria confusão que paira sobre a na- Salles, José Celso Martinez Correa, San- cionalidade desta importante figura do Cine- tiago Alvarez, e muitos outros cineastas, ma Novo constitui um traço distintivo da sua atraídos a Maputo para filmar com o apoio trajetória como cineasta de todas as causas. do governo. Suas passagens deixaram mar- Ruy Guerra é o típico sujeito cidadão do mun- cas não apenas em Moçambique, mas tam- do; sua vida e atividade de cineasta e crítico

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Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 117-123, jan./jun. 2017 Alessandra Meleiro; Mahomed Bamba se estendem e se dividem entre três países ação ou cinema de intervenção. Aqui no Bra- (Moçambique, Portugal, Brasil). Quando ele sil, o dramaturgo já havia formalizado essa deixa o Brasil e ruma de volta a Moçambique forma de intervenção política pela arte “ci- naqueles anos 70 é com o objetivo de ajudar nemação”, uma espécie de desdobramento a reorganizar o cinema móvel. Passa então a da força subversiva do teatro no campo cine- dirigir as atividades do INC em 1978. matográfico. Depois do Brasil, Moçambique Pelos temas de seus filmes, pode-se no- se prestava como terra de experimentação tar que Ruy Guerra tem como preocupação dessa estética política. falar do presente pós-colonial e do futuro a O maior testemunho dessa experiência de partir de testemunhos extraídos do período José Celso em Moçambique está no livro-me- da luta anti-colonial de Moçambique. Este mória em que o próprio dramaturgo paulista duplo compromisso com a memória do pas- detalha as tribulações e peripécias que marca- sado colonial e as utopias do presente é níti- ram o seu engajamento no cinema incipien- do no trabalho de muitos cineastas africanos te de Moçambique naqueles anos 70. Como depois das independências. Seus filmes são a maioria dos artistas que protagonizaram militantes na medida em que a memória é a revolução de Maio 68 através do mundo, seletiva e estrategicamente revisitada. Zé Celso concebia as artes do teatro e do ci- Se há, portanto, uma forma de engaja- nema como meios de desmistificação. Sen- mento político nessa ação de Ruy Guerra no do assim, o poder transformador do “Teatro cinema moçambicano, isso se deve ao seu Oficina” não só podia ser transferido para o trabalho como cineasta e como responsável campo cinematográfico, bem como os filmes pela direção do INC. e o palco eram concebidos como espaços de O fruto desta colaboração é a inaugura- experimentações complementares. A defesa ção de “uma nova poética e uma temática da liberdade não tem fronteira nem nacio- 2 específica ao cinema moçambicano ”. O re- nalidade. Todas as causas daquele momento sultado desse trabalho acabou suscitando a conturbado da história da África e de Portugal simpatia e o entusiasmo militante de outros permeiam suas obras, como no filme “25”.3 cineastas africanos e do mundo. A proposta e o objetivo da intervenção de Os limites do engajamento José Celso e de sua equipe em Moçambique era centrar seus esforços na questão da dis- militante em terra estrangeira tribuição dos filmes produzidos localmente. Outro brasileiro, José Celso Martinez Cor- Mesmo sendo bem-recebidos pelas autori- rea, homem de teatro mais do que de cine- dades políticas, os problemas dos idealiza- ma, teve uma passagem pelo cinema mo- dores de Cinemação começaram a surgir a çambicano. Foi uma experiência esporádica, partir de divergências com os demais admi- curta, mas intensa. Integrantes do Teatro nistradores das estruturas do cinema mo- Oficina, que havia sido fechado, ele e Celso çambicano. Luccas, exilados, chegaram a Moçambique com a ideia de criar um circuito cinemato- 3 Antes de 25, ele e Celso Luccas haviam realizado, gráfico revolucionário. Esse projeto se ins- em Lisboa, o documentário “O Parto”, sobre a Re- volução dos Cravos que pôs um fim a ditadura de crevia na mais pura tradição do cinema de Salazar em Portugal. Em 1983, Zé Celso e Noilton Nunes realizam O Rei da Vela, filme baseado no 2 “Cinéma Mozambicain: ilétait une foisles ima- espetáculo montado em 1967 pelo Oficina, com ges”. In: Africultures, nº26. base na obra de Oswald de Andrade.

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 117-123, jan./jun. 2017 121 Transnacionalização de talentos e tecnologias no campo cinematográfico: o caso Moçambique Licíno Azevedo: o mais moçambicano de todos os cineastas brasileiros De todos os cineastas estrangeiros que pas- saram pelo cinema moçambicano, Licínio Azevedo foi aquele que se tornou o mais moçambicano e o mais visceralmente ligado culturalmente com este país da África, tanto Frame de “Hóspedes da Noite”, de Licínio Aze- que é citado hoje como um dos grandes no- vedo (2007). mes do cinema moçambicano e africano. Se Ruy Guerra costuma ser apresentado Predomina em sua obra uma preocupa- como o mais brasileiro do cinema moçam- ção estética com um tipo de cinema mais en- bicano, Licínio Azevedo é incontestavel- gajado socialmente do que ideologicamente. mente o mais moçambicano e africano dos Esta mudança pode significar uma forma de cineastas brasileiros. A aventura africana desencantamento pós-colonial do cineasta e de Licínio começa e se limita a Moçambi- o fim das grandes utopias nacionalistas que que, quando vai realizar o filme de ação acompanharam os primeiros anos da inde- Crossing the River, uma co-produção com pendência moçambicana. Mas indica, por a Tanzânia. outro lado, certo pragmatismo e lucidez na forma como Licínio passou a administrar sua carreira4, a partir dos anos 90, em Mo- çambique. Esta mudança de postura, aliás observá- vel em quase todos os cineastas que partici- param dos primeiros esforços de criação do cinema moçambicano, denota o fim de uma era marcada pelas utopias do engajamen- to ideológico. Com o incêndio que destruiu em 1987 aquilo que tinha sobrado do INC, é Frame de “O Grande Bazar”, Licínio Azevedo como se toda a memória da década prodigio- (2006). sa do cinema moçambicano também tivesse As motivações da ida deste jornalista gaú- se volatilizado. Para Luís Carlos Patraquim, cho a Maputo transbordam o estrito quadro a principal explicação a este desencanta- da investigação jornalística e se transfor- mento dos cineastas está na própria situa- ma numa prática do cinema militante. Suas ção pós-independência mal administrada obras fílmicas exploram até hoje a temática politicamente em Moçambique e em outras das duas guerras (guerra de descolonização partes da África. Situação pós-colonial em e guerra civil) que marcaram a história re- que o cinema se tornou o primo pobre das cente de Moçambique. Seus documentários políticas culturais. mais atuais abordam, no estilo do cinema 4 Além de se tornar realizador independente, Li- direto, o tema da guerra civil pelo viés dos cínio decidiu criar sua própria produtora, a Eba- estragos e as consequências que causou. noMultimédia.

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No novo quadro que se desenha na atuali- litando, assim, a operacionalização do ci- dade, passamos da experiência militante para nema digital, que poderá viabilizar de ma- a vez dos interesses privados, que definem as neira mais simples e menos custosa o envio exigências de produção e exibição, longe das de filmes – digitalizados – para os cinemas temáticas do INC e dos Kuxa Kanema.5 conectados à rede. Atualmente, Moçambique vive uma si- Transnacionalização de tuação bastante dramática no seu setor de Tecnologias difusão audiovisual e carece de uma rees- truturação da indústria e do mercado de ci- A 5ª. edição do Festival do Filme Documen- nema local. Além de uma presença maciça e tário Dockanema, que ocorreu em setem- quase indissolúvel da pirataria, o país, que já bro de 2010 na cidade de Maputo, em Mo- teve cerca de 120 salas de cinema operando çambique, abrigou o encontro profissional simultaneamente, hoje tem apenas três fun- “Cinema Digital”: uma opção válida para a cionando regularmente e sendo operadas de difusão Audiovisual em Moçambique”, que forma comercial. reuniu especialistas brasileiros e portugue- ses em cinema digital, especialistas em tele- As três salas pertencem ao grupo portu- comunicações de Moçambique, instituições guês Lusomundo que, com raras exceções, financeiras, governo e exibidores moçam- exibem filmes americanosmainstream e su- bicanos para discutir a transição digital, ou cessos do cinema português. seja, a substituição do projetor em película 35 mm para a exibição digital nas salas de cinema. No encontro “Cinema Digital” foi apre- sentado um Estudo de Viabilidade para a Implantação de uma Rede de Cinemas Digi- tais em Moçambique, que mapeou a situação vivida pelo mercado cinematográfico do país e os avanços do cinema digital no mundo. Relevantes para a construção do estudo Fachada do Cinema desativado “3 de Feverei- foram as experiências bem-sucedidas ocor- ro”, na cidade de Beira/ Moçambique (Foto: ridas em outros países, especialmente a do Chico Carneiro) Brasil, reconhecido pela implantação de uma rede de cinemas digitais voltada para o cinema independente, que mudou o curso do mercado audiovisual local. O Estudo de Viabilidade fez-se necessá- rio a partir do momento em que surgiu um panorama favorável para a instalação de sa- las digitais, ou seja, a conclusão, em 2011, da implantação de uma rede de fibra ótica em todas as capitais distritais, levando internet Piano no Cinema desativado “3 de Fevereiro”, de banda larga para todo o país e possibi- na cidade de Beira/ Moçambique (Foto: Chico 5 Ibid Carneiro)

Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 117-123, jan./jun. 2017 123 Transnacionalização de talentos e tecnologias no campo cinematográfico: o caso Moçambique Atualmente existe uma rede desses “ci- nemas” informais, com leitor de DVD, uma TV, ingresso baratíssimo e filmes piratas. Não existe, portanto, nenhuma opção de sala de cinema com conteúdo variado e inde- pendente, como filmes africanos, europeus ou de outros continentes. Os filmes feitos em Moçambique hoje não dispõem de locais Cinema “Nacional”, desativado, na cidade de para serem exibidos comercialmente em seu Beira/ Moçambique (Foto: Chico Carneiro) próprio país, portanto não chegam até seu público primário e, consequentemente, não geram renda dentro de seu mercado.

Cinema “Vitória”, desativado, na cidade de Bei- ra/ Moçambique (Foto: Chico Carneiro)

Sessão típica em uma “Casa de Filme” de Xi- pamanine, Maputo (foto: Clarice Goulart).

Atingir o público de baixa renda que não tem acesso aos cinemas comerciais; difundir a produção de conteúdos regionais; valori- zar a exibição de filmes moçambicanos e in- centivar a difusão de filmes procedentes de Projetores no Cinema desativado “Olympia”, na cidade de Beira/ Moçambique (Foto: Chico Car- outras origens que não são comumente acei- neiro) tos pelo circuito comercial são metas apon- tadas pelo Estudo de Viabilidade que podem se tornar realidade através da criação de po- líticas públicas de incentivo ao cinema digi- tal pelo governo moçambicano. Referências CERISUELO, Marc et alii. Vienne et Berlin à Hollywood: nouvelles approches. Paris: Presses Universitaires de France – PUF, 2006.

“Cinema” num bairro da cidade de Quelimane EADES, Caroline. Le cinéma post-colonial français. Paris: ed. Cerf-Corlet, 2006. (capital da Província da Zambézia). . (foto: Chi- co Carneiro) FRODON, Jean-Michel. La projection natio-

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Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 117-123, jan./jun. 2017 125 Zakat in Maroua: the irrelevance models for socio-economy and justice (Northern Cameroon)

Zakat in Maroua: the irrelevance

models for socio-economy and justice

(NortheOusmanourn Ca Adama*meroon)

Resumo Zakat em Maroua: os modelos de irrelevância para a

Zakat, um dos cinco pilares do Islã, é uma doação de caridade que incumbe ae ctodosono osm iamuçulmanos social e comjus tativosiça ( acimaNort dee dos um determinado Camarões) nível especi- ficado. Oito objetivos são definidos no Alcorão para o uso de doações zakat, dos quais o mais importante é o apoio aos pobres e desafortunados. Embora estimativas confiáveis da geração de zakat não estejam disponíveis, evidên- cias episódicas indicam que grandes quantidades são geradas anualmente, na faixa de vários bilhões ou dezenas de bilhões de CFA. Um debate surgiu nos últimos anos sobre como gerenciar e usar o zakat, abrangendo três áreas principais. Primeiro, os estudiosos e os profissionais discordam sobre se o zakat deve ser usado para doação direta para indivíduos ou pode ser usado para apoiar instituições que atendem indivíduos ou para combater a pobreza através de projetos de desenvolvimento, como microfinanças. Em segundo lugar, os estudiosos conservadores argumentam que apenas as autoridades islâmicas podem coletar zakat, o que constitui uma das poucas fontes de im- postos permitidas aos líderes islâmicos, enquanto os reformistas promovem organizações privadas sem fins lucrativos como igualmente apropriadas. Os fundos Zakat que dependem do último modelo estão se espalhando no nor- te dos Camarões. Uma terceira interpretação envolve a parcela das coletas de zakat para administração de programas por parte de particulares. Ou- tras questões incluem como responder às demandas dos reformadores para maior transparência e responsabilidade das autoridades tradicionais ou ins- tituições privadas que gerenciam a coleta e distribuição de zakat; como ex- pandir a definição dos propósitos para os quais o zakat pode ser usado; e até que ponto o zakat pode ou deve servir para redistribuir a riqueza em toda a sociedade e alcançar a justiça social. O objetivo deste artigo é analisar essas questões com base em pesquisa de campo e uma revisão da literatura para examinar as práticas atuais, com ênfase em modelos emergentes inovadores

* Ousmanou Adama, PhD, Departamento de História, Universidade de Maroua. E-mail: [email protected]

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de zakat para gerenciamento de desenvolvimento e como eles diferem da prática tradicional no Norte dos Camarões. Palavras-chave: Zakat; Sistema de Tributação; Justiça Social; Redução de Pobreza; Islã; Norte dos Camarões.

Abstract Zakat, one of the five pillars of Islam, is a charitable donation incumbent upon all Muslims with assets above a specified level. Eight purposes are de- fined in the Qur’an for the use of zakat donations, of which the most import- ant is the support of the poor and unfortunate. Although reliable estimates of zakat generation are not available, anecdotal evidence indicates that very large sums are generated annually, in the range of several billion or tens of billions of CFA. A debate has arisen in recent years over how to manage and use zakat, encompassing three main areas. First, scholars and practitioners disagree as to whether zakat must be used for direct donation to individuals or can be used to support institutions that serve individuals or to combat poverty through development projects such as microfinance. Second, con- servative scholars argue that only Islamic authorities can collect zakat, which constitutes one of the few permitted sources of taxes to Islamic leaders while reformists promote private nonprofit organizations as equally appropriate. Zakat funds relying on the latter model are spreading in Northern Cameroon. A third issue surrounds the share of zakat collections for program adminis- tration by private parties. Other issues include how to respond to demands by reformers for increased transparency and accountability from the tradi- tional authorities or private institutions that manage zakat collection and distribution; how to expand the definition of the purposes for which zakat can be used; and the extent to which zakat can or should serve to redistribute wealth across the society and to achieve social justice. The purpose of this article is to analyze these issues based on field research and a review of the literature to examine current practices, with an emphasis on emerging in- novative models of zakat for development management and how they differ from traditional practice in Northern Cameroon. Key Words: Zakat, taxation system, social justice, poverty reduction, Is- lam, Northern Cameroon

Introduction In contemporary discussions of ways to at- faith-based organizations in alleviating pov- tain sustainable and authentic human de- erty and hunger by various forms of charity velopment, there is a reluctance to consider (Zakat, Alms, Awqaf), contemporary devel- the influence of religion. In fact, Develop- opment discourse finds itself in a dilemma ment institutions and agencies often consid- as to what form their relationship with reli- ered religion as partner in development. In gion ought to be, in promoting development, addition, when religion is involved through especially at the grassroots level. From the-

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oretical and conceptual approaches we in- command to have solidarity with and mercy tend to apprehend how the irrelevant model upon fellow human being, beyond the act of of Zakat organization in Maroua urban area securing their need. In fact, the duty of the leads to a wrong approach of development rich to give and the right of the poor to recei- based on the collection and distribution of ve support are mentioned in numeral verses this religious charity in order to enhance of the Quran. During Madina governance and improve the lives of the needy people. under the prophet, they become mandatory Therefore, one cannot assess the effective- act in the form of obligatory Zakat.3 ness of Zakat in poverty alleviation in the Beyond these moral boundaries, the Qu- region. The same is the case with the insti- ran established economic policy in relation tution of awqaf1. These institutions need to with trade, finance and inheritance. Where- be revived and organized with proper plan- as begging is not admitted in early Islamic ning, which will provide additional source of sources. Even though the poor have the right income to the traditional kingdoms, (Lami- to a share in the wealth of the rich, the tribu- date) for the social welfare of the society. lations of poverty are seen as severe, to such an extent that they may become a threat to Conceptualizing poverty and an individual’s belief. In fact, the objective misery reduction in Islam of Sharia is the welfare of the community. This welfare is expressed as religion (deen), From the beginning, Islam basically deals life (nafs), mind (aql), progeny (nasl) and with human morals. In this perspective, ear- poperty (maal). The protection of religion ly revelation chapters exhorted believers to entails the protection of the community of care about the poor and the needy: we were the believers as a sociopolitical entity, whilst not of those who prayed and did not feed the maintenance of life suggests the inclusion of poor” (Sourate 43 verses 44). In this con- food, shelter and medical care. This clear- dition, worship is always associated with ly is the important terms of how poverty is the fact of being charitable. In this regard, understood in Islam. If only one the needs Islamic worship called the act of zakat as a mentioned above is unfulfilled, the person is financial worship in opposition with body considered poor. There are two main cate- worship (Salat, Ramadan for example). gories of poor in Islam. The poor (fkir) and More revelations made from Makkat2 do the needy (miskin). Being poor according to refer to poverty reduction through wealth some Ulama is being unwealthy. Wealth in transfer, donations and advocacy on behalf this regard, is needed to satisfy ones basic life of the poor. “He did not use to believe in needs like shelter and cloths, but only if the Allah, nor did he urge the feeding of the person property is below the nisab (amount poor” (Sourate 69 verses 30-34). The Ulama below the level at which the Zakat payment we meet explained those verses as an overall becomes obligatory). Whilst a needy person 1 Awqaf is in Islamic law, a gift made in perpetuity by does not have any wealth or property. This an individual for public utility, pious or charitable, is in many ways reminds us of the concept or to one or more individuals. The property given as usufruct is therefore placed under sequestration and of a poverty line, a monetary definition of becomes inalienable. 2 Mekkat is a city in and the capital of Hejaz, in 3 For more detail on this issue see: Abraham, A., Saudi Arabia: birthplace of Muhammad; spiri- J., 1998, Islam and Human right, Journal of tual center of Islam. third world studies, XV, 316

128 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 124-137, jan./jun. 2017 Ousmanou Adama poverty that is commonly used in the devel- • Peace-building and community cohesion opment discourse (Nkurunziza, 2007). In • Promotion of freedom, human right and fact, we should notice that the human needs civil liberties identify as conditioning the poor to receive • Personal insolvency settlements Zakat are not exlusively material and cannot be captured in monetary terms alone. In- • Security and defense deed, the Islamic understanding of poverty • Homeless, refugees and migrants.5 is transcended by the physical world, with its emphasis on spiritual well-being. In addition to Zakat, voluntary charity, in Arabic sadaqah (meaning to give away Zakat and social justice and realizing one’s faith by action), is also strongly encouraged, based on many sayings The redistributive of wealth in the form of of the prophet Muhammad. It is regarded as charitable giving is central to the Islamic fai- an act of individual devotion, in which char- th and an obligation upon every believer. Its ity is given directly to a destitute beneficiary importance highlighted by the term “finan- (Al Qardawi, 1999). Islam is the only one of cial worship” used by Imam Mahmoud Mal the three Abrahamic religions that explicit- Bakary.4 The basic mechanism for this Zakat ly urges the believer not only to be generous was established by the prophet Muhammad but also to persuade others to be charita- in 622. In fact, Zakat derive from Arabic ble: have you seen the one who denies the verb zaka which means to grow and become recompense? For that is the one who drives better, zakat consequently means “purifica- away the orphan, and does not encourage tion of wealth” (Al Qardawi, 1999: XLIII). the feeding of the poor” (Sourate 107 verses As one of the five Islamic pillars, Zakat can 2-3). be given by every Muslim at the end of each year and is calculated at a rate of 2.5 per cent Social Security Based on Zakat of any disposable wealth above a minimum amount called nisab. Beneficiaries of the Zakat is a levy paid by Muslims, whose weal- obligatory charity are detailed in the Quran. th exceeds a particular exemption allowan- Zakat expenditure are only for the poor and ce, and it is used for social purposes, details the needy, and for those employed to collect of which are set out in the Quran.6 (zakat) and for bringing hearts together and The act of paying zakat is one of the most for freeing captives and for those in debt fundamental religious duties for a Muslim. and in the way of Allah and for the traveler Islamic economics emphasizes that zakat an obligatory imposed by Allah (sourate 9 represents the needy’s claim to share in so- verses 60). In modern public finance terms, 5 Benthall, J., 2003, The Charitable Crescent: po- this can be translated into the following ex- litics of aid in the Muslim world, I.B. Tauris. 6 Cf. Farishta G. de Zayas, The Law and Institu- penditure headings: tion of Zakat (Kula Lumpur: The Other Press, 2003 [first published: Damascus: Al-Jadidah • Poverty reduction Press, 1960]); Mohammed Akhter Saeed Si- ddiqi, Early Development of Zakat Law and • Administrative overheads for civil ser- Ijtihad (Karachi: Islamic Research Academy, vants dealing with public welfare 1983); Volker Nienhaus, “Zakat, Taxes, and Pu- blic Finance in Islam,” in: Sohrab Behdad and 4 Interview with Imam Mahmoud Mal Bakary, Is- Farhad Nomani (eds.), Islam and the Everyday lamic Scholars of the Maroua main Mosque. World – Public.

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ciety’s wealth and, as such, is at the core of produce universal principles; rather it pro- the social security system. The zakat system vided analogies based on previous cases to can be organized by the state if, for exam- assist in new and individual instances. ple, Muslims fail to perform their payment The Prophet listed the following assets duties adequately on a voluntary basis. In- (and sources of income), which were to be stead, they may only be used to help entitled subject to zakat payments (basis of assess- recipients for the purposes set out in the Qu- ment): ran. Nevertheless, there is a need to reeval- 1. Camels, sheep, and cows, uate and clarify these legitimate uses and recipients in light of modern developments. 2. Gold, silver, and coins, In addition, the form in which the zakat 3. Wheat, barley, dates, and grapes, funds are supposed to be used (e.g. as direct 4. Buried treasure.7 monetary transfers or to finance institutions which provide benefits to the entitled recip- It is unclear whether he also levied zakat ients) must also be determined. However on honey and trade goods. When one of the these last considerations are not yet apply in early caliphs had to decide whether zakat Maroua as zakat collection and redistribu- was also payable for horses, for example, he tion is still carried out on traditional basis. only reached a decision for that specific in- The example of zakat in Maroua illus- stance and left open the question of wheth- trates the principle of pragmatic legislative er other animals, such as goats or donkeys, development which, on the one hand, al- should also be subject to zakat. Later judg- lows flexible adjustments to be made to the es widened the above mentioned group 3 legal system in view of new phenomena or to include rice in the list of produce sub- changed conditions, but also leads to con- ject to zakat. In so doing, they based their troversy and partisan inconsistencies on the decision on an observation that all objects other. The literature often gives the impres- in this group originally covered foodstuffs; sion that the Prophet implemented an im- thus, rice – as a foodstuff –should also be mutable zakat system on the basis of the Qu- included. Yet, it is peculiar to the pragmat- ran valid for all times. That is not the case, ic legislative development that a decision is however: the basis of assessment for zakat reached only for a specific case (rice), but no laid down by the Prophet was changed by generalization or postulation of the princi- his immediate successors as well as the levy ple used in reaching that decision is made rates. For the early caliphs, the zakat rules of – e.g. that all foodstuffs should become sub- the Prophet were evidently not considered ject to zakat. invariable rules given by God, but merely an Thus, there continue to be food items for expression of (revisable) legislation which which producers do not have to pay zakat. depended upon particular circumstances, Economists view this lack of consistency a particular period, and a particular place. as problematic from the point of view of Such pragmatic legislation did not seek to non-discrimination or fairness. From this establish universally applicable and timeless perspective, deciding on a case-by-case basis principles; rather, it aimed at solving par- 7 Interview with Imam Mahmoud Mal Bakary, Is- ticular problems. The pragmatic legislation lamic Scholar of Maroua main Mosque, October of the Prophet and the early caliphs did not the 7th 2016.

130 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 124-137, jan./jun. 2017 Ousmanou Adama by way of analogies also causes further prob- of economic downturn, the number of peo- lems of justice: thus, all agricultural, forest- ple requiring support rises while zakat re- ry, and plantation produce, as well as reve- ceipts decline. And, even worst the number nues or profits derived from the respective of zakat potential donors and the number of businesses should be subject to zakat lev- recipients is unequally higher and higher ev- ies. In that instance, however, the question ery year. Sometimes the number of potential must be asked why zakat is only levied on donors decreases while enhancing the one of revenues or profits from the primary sector, the recipients. This divergent relationship while profits from the secondary and tertia- between expenditure and income, which is ry sectors remain zakat-free. Such consid- highly adverse for a social security system, erations, though, would require a complete must be covered by reserves and, perhaps, abandonment of the established methods by additional sources of income. The leading of pragmatic legislative development and a Imams of Maroua Main Mosque Mahmoud move towards a type of “constructivism in Mal Bakary did not yet provide the technical the spirit of the Quran.” knowledge on this Islamic economy in the Clearly, then, there is great scope for dis- region. Unfortunately the scholars probably cussion and conflict between Islamic econo- have less to offer in this regard. mists and Islamic lawyers. The latter group (Buried treasure) may point out that even Zakat and poverty alleviation the Prophet was aware that goods in the One might ask oneself why there is such a third group could be subsumed under the tremendous emphasis on and debate about heading of “foodstuffs” when he stipulated zakat in Maroua urban area. One reason for them. Nevertheless, he did not levy zakat on this is that a common factor of all Cameroo- all food items known at his time, but only on nian Muslim NGOs has been their inability certain ones. This fact must not be ignored. to generate funding within the country for There is also a need to interpret the origi- their projects. This inability is seen by many nal stipulations for entitled recipients Islam- Muslim scholars as highly problematic. In ic economists consistently point to the poor their view, the end effect is that one either and the needy as a group that is of particular becomes dependent on foreign assistance or importance. However, without a definition that the funding is earmarked and is thus not of need specific to a particular country and a at the full disposal of the implementing or- particular period, and the establishment of ganization. However, the discussion is much the nature and level of help based on zakat more complex. Not all scholars and intellec- income, it is impossible to evaluate the via- tuals focus on the needs of the NGOs, but bility and the allocative and distributive ef- rather on the spiritual and religious aspects fectiveness of the system, let alone its moral of giving and receiving: in their articulation, or ethical qualities. the provision for social welfare is part and If we draw our attention to a particular parcel of an Islamic discourse about the ful- problem the Maroua Muslim community fillment of religious norms and duties. One is facing according to the above mention finds as many positions as there are inter- conditions, which arises when we seek to pretations about how to collect and distri- understand zakat as the nucleus of a social bute the obligatory alms as well as who has security system and justice: in such times the right to collect and who has the right to

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receive. However, the most recent – and in zakat is the fact that there never existed any many way the most difficult – debate among Islamic order in pre-colonial period upon Muslim scholars in Maroua has been the is- which the collection and distribution of sue whether or not zakat should be made a zakat, and by extension a kind of public so- public affair or not, i.e., is it to be collected cial welfare, could be built. Whatever existed by Muslim institutions and NGOs as a way was based on non-Islamic models and per- to generate funds for communal develo- ceptions. Yet, though there were no Islam- pment? As will be argued below, although ic institutions, this did not mean that there zakat is so far not a public affair and neither existed no traditional support system. Inter- its collection nor its distribution is institu- estingly, all of our Muslim informants not- tionalized, almsgiving as such has been and ed the fact that there is, after all, not much is an integral part of the Muslim sphere in difference between the moral obligation of Cameroon. Islam to support the poor and needy and the With the realization of the Muslim lead- traditional, pre-Islamic ways of support. ership that Muslim communities in post- Although Muslims in Maroua are trying colonial Cameroon are, with each passing to fulfill their obligation of paying zakat, decade, lagging behind the rest of the soci- most Muslim scholars claim that the collec- ety in societal and economic development, tion and distribution of zakat is not handled traditional ways of mutual and communal in the proper way. Some scholars, such as assistance and person-oriented poverty re- Imam Mahmoud, Oustaze Yaya criticizes lief through charity are not enough to cope the collectors of donations, be they foreign with structural problems that affect the lot or local ones, for misusing, even embezzling of the Muslim population in the Northern the funds they receive. What is needed, they regions. One reason for the non-existence of argue, is for these people to move from a an institutionalization of the collection and culture they define as ‘collect and keep’ to distribution of zakat in Maroua has been a ‘collect and share’ one: What they collect the lack of consensus among Muslim schol- in the name of religion must be used to pro- ars. Conflicting views about who has the mote the work of God and to relieve the suf- right to collect and distribute have result- ferings of the people. The sharing of what ed in endless debates. However, even more is collected in the name of God among reli- 8 problematic has been the inability of most gious leaders for their personal use is a sin. Muslims to fulfill their religious obligation: According to Alhaji poudditto, zakat is all scholars that I interviewed lamented that not strictly observed or practiced in Muslim the local people are too poor to pay zakat, a communities in Maroua, and by only a few statement that, in the light of the structural on a personal level. Another critique of the poverty that marks the savannah region and Muslim scholars is that zakat is believed to urban poor areas, comes as no surprise. At be only a duty for Muslim millionaires. In least from a subjective standpoint, but argu- Maroua, for example, the payment of zakat ably also from an objective one, the Muslim is not regularly practiced by the Muslim population belongs to the poorer strata of community. According to Poudditto, this is Maroua. 8 Eickelman, Dale and Armando Salvatore, “The public sphere and Muslim identities,” European However, one could also argue that one Journal of Sociology (Arch. Europ. Sociol.), reason for the non-institutionalization of XLIII: 1, 2002, 92-115

132 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 124-137, jan./jun. 2017 Ousmanou Adama due to several factors, among which is the it is given to boost neighbor relations.”11 mistaken notion that zakat should be paid A similar criticism was put forward by only by Muslims who are fabulously rich[E- some Imams: There was a situation when a ickelman and Salvatore 2002: 101-104]. man said that he begins his zakat from his Such ‘assistance’ cannot produce any struc- house. The wives were the first to receive tural change because, as Ibrahim Suleiman zakat before any other person. But you know, states, such alms are but handouts that are you cannot give zakat to your dependants.12 randomly distributed and thus only have an Critical observations on the functioning effect on a particular person – if that, as the of zakat illustrated several problems in con- amount that is distributed is barely suffi- nection with it. According to him, the un- cient for the recipient to stay alive for a cou- willingness, if not neglect, to pay for the up- ple of days.9 keep of the destitute in the community, the Many of the scholars I interviewed stated lack of discipline in its collection, and the that the main reason for not paying zakat is lack of integrity of the collectors are mainly due to ignorance. As a result, zakat is given due to no relevant knowledge of the rules of in a haphazard way and has an uneven im- zakat and no properly constituted body for pact. In fact, the wealthy do not consult the collection. Thus, there is little trust in both local imams and scholars about the rules of collectors and distributors in addition to the zakat and much of what actually should be ignorance of the payers. As a result, there- spent is held back. Similarly some Imams fore, alms are haphazardly distributed: in- complained that those who give zakat give stead of donating the due sum in total to a such a small sum that the receiver cannot destitute person, it is divided among many even get a shirt for that amount. Other schol- recipients each of whom receives a small to- ars state that people who are willing to give ken. Consequently but not unexpectedly, the zakat investigate potential recipients: What community lacks basic amenities. According we observed is that rich Muslims who pay to Awudu, zakat revenues could have been zakat do some investigations either through used to develop and maintain basic infra- friends or family to ascertain either talaka’n structure and buildings, such as public toi- or needy people who qualify to receive zakat lets, mosques and water taps in some com- and give their zakat to those identified. In pounds. In the meantime, Zakat collected some cases it is done through trusted friends can also be used. and Ulamas.10 The malfunctioning and mishandling of However, we identify two kinds of prob- zakat is also criticized by Sali Garba Mous- lematic cases: the general problem of those sa. According to him, only businessmen and who do not give enough zakat and the special businesswomen, as well as large-scale millet problem of those who give zakat to someone farmers and transport owners belong to the who does not deserve it. “In most cases, it is categories of those capable of paying zakat. not given to those who should receive it but However, it is observed by only a few people and the mode of payment leaves much to be 9 For details see Ibraheem Sulaiman, The Isla- 11 Interview With Imam Mahmoud Bal Bakary, Is- mic State and the Challenge of History, London, lamic Scholar of Maroua main Mosque, October Mansell Pub. Ltd. 1987. P. 50-55. the 7th 2016 10 Interview with Imam Saliou, Maroua october 12 Interview with Imam Saliou, Maroua october the 8th 2016. the 8th 2016.

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desired. Some other Muslims who want to Alhaji Hamidou Goni, also pointed out give out zakat in cash just invite many people the fact that the assistance given was far too to their homes, distribute one or two hun- little and bringing only temporary relief: “I dred thousand CFA francs to each of them will say the maximum relief will last three and are satisfied that they have observed days and the person is back to square one.” 16 zakat. Others decide to give between twenty Although an imam is supposed to moni- and fifty thousand CFA francs as zakat to a tor the calculation and distribution of zakat single poor person, with the aim of reliev- in his community, in many cases he is un- ing his/her financial woes, either partially or able to do so. As zakat is due on wealth one fully. Others change the monies to be given year after its acquisition, the sum that is due out as zakat into smaller denominations, es- cannot be collected on one fixed day each pecially coins, carry them in bags and stand year but depends on when the one-year pe- along the main streets where there are many riod has elapsed and if the person is still in people. They then dip their hands into the possession of that particular income. Thus, bags and throw the coins at the gathering, pooling zakat is more or less impossible as who struggle among themselves to pick up there are no funds where the collected sums 13 something. This manner of doing poses a could be invested, as Shaykh Abdur-Rah- serious inconvenience to the targeted goal of man Abu Bakar notes. Instead, whenever Zakat as a mean to eliminate poverty. Or, as the imams receive zakat they immediate- Alhaji Ali Hassana explained to us: “I don’t ly distribute it to those members in their say that the wealthy are not doing their best community whom they know to be needy or as such, but because of the way the whole poor.17 system is working it is not easy to know how Shaykh Abdur-Rahman Abu Bakar also many of them actually are paying. They pay raised another problem connected with 14 person to person, but nobody knows.” zakat, namely the lack of trust and confi- However, as Shaykh Abdourahman dence in the talaka: “Some will just think Djribine explained, the crucial problem is that the talaka want the money for their the distribution of zakat: Instead of giving it own selfish needs and not to address social to one or a few persons, they (i.e., those who problems.” Afa Razaq said that a common give zakat) would like it to cover a large num- accusation is that a Muslim scholar or imam ber of people. At the end the impact is neg- ‘eats the sadaqa and zakat he receives’, if the ligible and not felt. Some send their zakat to scholar or imam seems to live in affluence, the shops and give one thousand CFA francs dresses in fancy clothes or lives in a rich to anybody who comes to the shops as if they house.18 were beggars. What will one thousand CFA The Tidjaniya scholars explained to me francs do for the recipients?15 that …initially their main mosque in Do- 13 The eight categories of recipients of zakāt as lis- ted in Sura 9:60 are: the poor (faqīr), the des- Maroua October the 7th 2016 titute (miskīn), the collectors of zakāt, those 16 Interview with Alhaji Hamidou Goni, Maroua slaves who want to buy their freedom, the har- October the 6th 2016. d-pressed debtors, for expenditure in God’s cau- 17 “Towards a unified Muslim leadership,” The se, the wayfarers and those whose hearts have Muslim Searchlight, 1:36, 10-23 January not been reconciled. 2003; Interviewwith Alhaji Mumuni Sulemana 14 Interview with Alhaji Ali Hassana, Maroua Oc- 11.3.2005 tober the 6th 2016 18 Interwiew with Oumarou Poudditto, Maroua 15 Interview with Shaykh Abdourahman Djribine, October the 8th 2016

134 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 124-137, jan./jun. 2017 Ousmanou Adama mayo was a centre where people sent their alms to this particular Goni.20 zakat and their Goni then distributed it to Boubakar Saidou is also rather criti- the poor and the needy. Part of it was used cal about the way zakat is spent by the lo- to construct a mosque or a school. But this cal imams in Maroua. Imams and Muslim practice has been stopped. People no longer scholars appeal to their followers to contrib- send their zakat to Tidjaniya leader. People ute generously to the building of mosques now give zakat to individual talaka because and Arabic and/or Quran schools, with the they do not trust others. Secondly, some effect that such buildings have been erect- give to people who will recognize and praise ed all over region. The idea is to impress them and this is not the purpose of zakat. upon the Muslim public that the building of Zakat should have been given to the Ti- mosques and Arabic schools is a meritorious djaniya mosque, but people did not do that deed and that whoever contributes towards anymore. The Tidjaniya mosque was built their completion by payment of zakat will be with the zakat. We used to pay our Quranic abundantly rewarded on the Day of Judg- school teachers through the zakat since they ment. Thus, Boubakar’s conclusion is that are not paid by the parents, but this has not zakat is handled in an imperfect way: What been forthcoming due to the change of atti- zakat means to many Muslims in this area tude of the people.19 is to give cash to the talaka (poor people in As a consequence, most of the Muslim Hausa language) as contributions towards scholars and imams we met live in rather mosque and school projects, but to all in- poor conditions: their houses might not be tents and purposes, zakat means more than the most dilapidated, and they are not liv- that. ing in total poverty, but their living standard However, it is questionable to what ex- is not higher than that of their neighbors. tent the imams and talaka have to urge None of the imams are in fact able to enforce their followers to contribute to the building the collection and distribution of zakat; it projects. It should be stressed that there is a seems rather that whether or not someone deeply rooted religious mentality where the pays his zakat, is his own decision. The Ti- act of participation in a building project is djaniya scholars told me about a case some understood as a pious act. This is at least the years ago when a Muslim had visited a par- view of a certain Imams “…when you build ticular Goni (Muslim scholar) one morning. a mosque you build it for the glory of God. The Goni had been eating breakfast – tea, [...] Everyone rushes to sponsor a mosque bread and fried eggs. However, although before they die.”21 such a breakfast is common in Maroua to- Similar critical considerations have been day, the Muslim argued that it was a clear raised by Hamidou Adji. According to him, sign of the lavish lifestyle of the Goni. As a not all so-called poor are qualified as recip- consequence, he decided never again to give ients of zakat and he calls for a revision and re-examination of the position of those who 19 For some similarities of this issue see Weiss, usually receive alms and assistance. In his Holger, “Zakāt and the question of social welfa- opinion, one should make a difference be- re. An introductory essay on Islamic economics and its implications for social welfare,” in: So- 20 Author’s personal observations cial Welfare in Muslim Societies in Africa, ed. 21 Dean, Hartley and Zafar Khan, “Muslim Pers- Holger Weiss, Uppsala: Nordiska Afrikainstitu- pectives on Welfare,” Journal of Soc. Pol. 26:2, tet 2002, 7-38. 1997, 193-209

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tween the ‘really’ poor, either persons and from poverty and due to his hard working he families who are hit by a natural disaster or will also work and next year he will be okay calamity as well as poor widows, orphans, for himself and also give out zakat to other aged and destitute persons, and those “who persons.23 are pretending” to be poor, i.e., able-bodied persons who beg. Whereas the first category The irrelevant Zakat model in should be supported, the second one should Northern Cameroon not as, according to him, zakat will stop them The nature and existence of zakat in the Nor- working and make them idle. He therefore thern Cameroon is far from clear. First, the- calls for a change in attitude among the giv- re is the general notion among scholars that ers and urges a more effective way to help the Fulani word zakka is equivalent to zakat. the poor and needy. He therefore argues for However, it is evident from the sources avai- indirect assistance, namely that any poor lable for the study that zakka only implied person, able-bodied or not, should first and the levy on grain, i.e., being ushr but not the foremost receive proper training at educa- levy on other zakatable goods or on wealth. tional institutions so that they are capable of Second, there is a general lack of informa- earning a living through a vocation and not tion on the collection and distribution of by begging.22 zakat in the Northern Cameroon. For exam- On the other hand, the rationale for ple, Heinrich Barth, who has provided often obligatory almsgiving is fully understood quoted information on the fiscal basis of the by the Muslim scholars I interviewed in central emirates of the Sokoto caliphate, Maroua. For them, zakat is the best form did not mention zakka or zakat at all (Bar- of poverty alleviation due to its moral sanc- th, 1857: 163-164). Third, the idea of zakka tion. Interestingly, when we discussed with being zakat seems to have led to confusion Imam Mahmoud Mal Bakary about the Ma- not only among the early colonial officials liki and Shafi’i interpretations of mandatory but also later researchers. However, what almsgiving and about the role of the imams seems most striking is the fact that some of as collectors and distributors of zakat, he the taxes levied in the Lamidates clearly can explained that the Maliki standpoint about be identified as variations of zakat, such as the central role of the imam is only valid the garama. Although W. F. Gowers24 alrea- in Islamic states, not in situations such as dy noted this fact, it seems as if the local po- in Maroua or northern Cameroon where pulation did not do so and the early colonial the Muslims constitute citizens of a secular officials used a lot of ink trying to identify state. He further defended the circumstan- and separate the various taxes and forms of tial necessity of splitting zakat into small taxation and tribute that existed in the va- sums, but argued in the same vein that its rious lamidates. Investigations in today’s distribution in a lump sum is to be preferred Maroua show clearly that both zakat and sa- if zakat is to have a lasting effect: Imam sup- daqa, voluntary alms, still constitute a part ported that you should give Zakat in bulk to of the religious spheres. The role of the Sufi a hard working person. Why? Because if you give it to him you have removed that person 23 Interview with Imam Mahmoud Mal Bakary, Is- lamic Scholar, Maroua October the 7th 2016. 22 Interview with Hamidou Adji, Maroua, October 24 W.F. Gowers, “Sokoto Provincial Annual Report for the 9th 2016. 1910,” SNP 10.

136 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 124-137, jan./jun. 2017 Ousmanou Adama brotherhoods cannot be overemphasized; However, the attempt op build a social they receive and disburse a major part of welfare system based on the collection of these alms. Zakat seemed to have caused concern among However, the political and socio-eco- scholars that the conventional rate of Zakat nomic crisis in Northern Nigeria has led to would be insufficient to meet the require- a rise of critical Muslim movements, among ment of the modern social welfare system. others, Islamists and pseudo-Mahdistic Imam Mahmoud’s agenda was the exten- ones, who criticize the lax following of the sion of the impact of Zakat in the society. He rules concerning the payment, collection pointed out that due to the absence of an or- and disbursement of zakat. Thus, it can be ganized collection and distribution of Zakat argued that only the tax on grain - zakat - and the neglect of wealthy class to alleviate but not obligatory almsgiving as such, was the situation of poor people in the region, so- at stake at the beginning of the colonial era. cial stratification and marginalization have But what happened to the supposed social become a profound problem in Northern welfare system that was based on the collec- Cameroon. According to him, if any chang- tion of zaka-grain? es of the rate of Zakat are for instance for- The discrepancy between the ideal and bidden, it is high time to reorganize the tar- reality of zakat is evident in many cases, geted areas of Zakat expenses in the region. if not most, pre-colonial Muslim societ- What he proposed is an extension and entire ies throughout the Bilad al-Sudan. In most revision of the Zakat rules. In fact the Zakat cases, the intention to implement Islamic rules are not fixed. These rules were already taxation can be identified. However, reality revised by the second caliph, Umar, and proved in most cases to pose constraints on proposed not only a correction of the rates the realization of an Islamic order; the col- but also an extension of the areas of Zakat. lection and distribution of zakat being one Imam informs the community about wheth- major problem. In general, only a minor er or not it should be task and duty of the part of the collected zakat seemed to have Lamibe to meet the demands of social jus- reached the lawful receivers of zakat (not to tice, to remove privations of human beings, mention how much the poor and needy ac- and to provide basic social welfare such as: tually received). food, clothing, shelter, education, as well as During 1990s the Imam of the main taking care of widows and orphans. But we Mosque of Maroua Ustaz Mahmoud Mal are aware of the restrictions funded through Bakary carried out a campaign sensitizing traditional zakat that prevent such realiza- the community about the irrelevant model tions. “…would you not agree that insistence of Zakat in the development of the locality on the unchangeable character of details of and the possibilities of implementing some Zakat has been the biggest obstacle in the changes in its collection and distribution. way of establishing of Islamic social welfare The background of Imam Mahmoud’s idea in this country?” is it not high time that we is an attempt to establish an Islamic econ- open the gate of Islam? omy for social welfare in the region. Apart Although it seems unlikely that Imam from outlawing ribaa (interest), zakat was Mahmoud reorganization and demand for a to be reinstated as annual tax and would redefinition of the rules of Zakat would have provide a social welfare fund. had an impact, his attempt was, in a sense,

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a sign of an opening the closed gate of Islam poor, the family and the society. Wealth is in the region regarding the zakat collection transferred from private ownership to col- and distribution. lective ownership (beneficiaries) through Since the 1980s a research institution this mechanism. Personal assets or any oth- under organization of Islamic conference in- er belonging can be endowed in awqqf for tervened in Zakat collection without reach- religious, educational, or any other benevo- ing an impact. In fact, different policies and lent purpose under specific terms and con- strategies have been adopted in the past to ditions. The terms and conditions include: reduce the poverty, but the fact remains that 1. it is a permanent arrangement, and can- poverty persists especially among Muslims. not be done for a certain period; Northern Cameroon inherited very strong 2. it becomes immediately effective, and institutions of Zakat, sadaqat and awqqf for cannot be kept in abeyance; fighting against poverty. In the past, these institutions were for the rehabilitation and 3. it is an irrevocable legal contact; and welfare of the poor. Unfortunately these in- 4. Waqf property can never be confiscat- stitutions have been neglected by the Mus- ed.26 lims whereas the region is housing many It is proven fact that Awqaf have been poor. Few countries (Nigeria, Sudan and the important pillar in the religious, social, Chad) have introduced the system of Zakat, cultural, scientific, economic and political which, however, is different in terms of cov- life of Islamic society. For every conceiv- erage of zakatable items and assets.25 North- able enterprise of social benefit, there was ern Cameroon Muslims rejected such a sys- an awqqf, such as for mosques, universi- tem and have not introduced any changes ties, schools, hospitals, orphanages, houses for they considered Zakat as a private affair. for the poor, food for the poor, the blind, This is known fact that Muslims are paying battered/abused women, wells, aqueducts, their Zakat on their own to the poor but to fountains, cemeteries, salaries, pensions … any charitable institutions. However, these The paper finds that if Zakat is imple- transactions that are not passing through mented to letter and spirit then enough proper channels are un- recorded, with- resources can be generated which will be out any planning and are not a part of any enough for poverty alleviation from all the strategy. Therefore, one cannot assess the Muslims community in the region. effectiveness of Zakat in poverty alleviation. Keeping in view the Islamic principles The same is the case with the institution of and the reality in Maroua we find that Zakat awqaf. These institutions need to be revived and Awqaf can generate enough revenue for and organized with proper planning, which meeting all the pro-poor expenditures. Mus- will provide additional source of income to lims do not need any financial assistance the traditional kingdoms for the social wel- from the multinationals or international fare of the society. donors for mobilizing resources for the pro- Beside Zakat, Awaqf is an important religious and social institution, which has 26 The Malikites accept temporal awqqf by the will of the founder. (See for details Kahf . The Role of been used for the welfare of the needy, the Waqf in Improving the Ummah Welfare, 2003. [PDF] available at http://monzer.kahf.com/ 25 NNAK SNP 7 425211909, Taxation of Emirs and papers/english/Role_of_Waqf_in_the_Welfa- District Heads, Gill to sNp, 19.1.191I, paragraph E. re_of_the_Ummah.Pdf

138 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 124-137, jan./jun. 2017 Ousmanou Adama poor budgetary expenditures. Therefore, almsgiving; although zakat, awqaf and sada- even though the Imams suggested the en- qa should to be given ‘for God’s sake’, almsgi- forcement of Zakat and Awqaf laws to letter ving is not an altruistic act. But does one have and spirit, integrate these into the poverty to dismiss almsgiving, especially mandatory reduction strategy, and make these as a part or obligatory almsgiving (zakat), as a possib- of their pro-poor budgetary expenditures, le solution for poverty alleviation? Muslims in Northern Cameroon are not liv- The irrelevant model of Zakat in Maroua ing under an Islamic state. As Imam Mah- urban area in terms of haphazard or non-in- moud explained: Sharia would wipe out beg- stitutionalized and non centralized imple- ging and all forms of destitutions as a wel- mentation and running of social welfare in- farist system would be created where Zakat stitutions prevails. Whereas some Muslims would be collected to help the needy”.27 scholars in Northern Nigeria loudly demand the the Islamization of the society, such de- Conclusion mands are not made in Northern Cameroon. When Muslim scholars and leaders are asked Though the call of Islamic scholars of the es- to articulate the problems of their communi- tablishment of an Islamic order is evident in ties and to promulgate a solution to them, they Northern Cameroon, one could argue that generally turn to religious vocabulary. This is in terms of establishment of social welfare not surprising when one is dealing with reli- based on Zakat, there exist several possibili- gious experts. For them, a secular perspective ties. One would have been the establishment can only address part of the problem. Based of an organization that prioritized listed and on the Islamic concept of the indivisibility satisfied the needy people. of the moral and the secular order, i.e., the If there is any consensus among Mus- imperative that religious/divine norms shou- lims- that is not yet the case in Maroua- one ld always guide the actions and activities of could agree that establishment of a central- humans and, by extension, also society and ized Zakat organization is still in the remote state, a moral articulation of the problems is future. However turning to the example of preferred. Poverty alleviation, therefore, is the local tradition of accommodation as well not only a matter of economic, political and as the modern implementation of the Zakat societal changes but even more a question of rules by Muslims in Maroua, one could ar- morals and reciprocity. But here lies one of gue that for an applied model to be imple- the problems, in our opinion. If the condition mented among Muslim societies, namely of a poor person is articulated within religious that of the establishment of an Islamic order discourse, the Islamic perspective on poverty within Muslim community but without the and wealth becomes problematic. A rich per- Islamization of the state. Consensus among son needs a poor person for the purification the Muslim still needed: since the national of his/her wealth and ultimately it is in his/ Zakat boards or organization can be estab- her interest that there are poor persons in so- lished when there is consensus among Mus- ciety, otherwise the rich person cannot purify lims from below (regional Level). However his/her wealth. Thus, one could even argue this is the academic task of researchers to that poverty alleviation is not at all the aim of identify the possibilities, impact and draw- backs of various existing Islamic social wel- 27 Interview with Imam Mahmoud mal Bakary, Maroua October the 7th 2016. fare programmes.

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140 Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 124-137, jan./jun. 2017 Objetivo e Política Editorial

Objetivo e política editorial

A revista África(s) publica artigos originais e resenhas que tenham como foco pesquisas sobre o continente africano e suas representações. São bem vindos artigos nas áreas de História, Ciências Sociais, Educação, Economia, Artes, Arqueologia, Literatura e Letras. A revista África(s) tem como objetivo a divulgação de pesquisas que abordem o continente africano, contribuindo assim para di- fundir o conhecimento sobre a África e seus povos.

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Textos Todos os textos aprovados na avaliação preliminar e que atendam aos requisitos mínimos apontados nas normas de apresentação de colaborações serão submetidos a dois pareceristas. Havendo parece- res contrários, recorrer-se-á a um terceiro.

Cabe ao Conselho Editorial a decisão referente à oportunidade da publicação das contribuições re- cebidas e aprovadas.

Cada autor só poderá ter um artigo em processo, entre o início da submissão e a publicação final. Será ainda observado um intervalo de uma edição entre a publicação e o início de um novo processo de submissão de texto.

Normas para a apresentação de colaborações 1. Todos os trabalhos devem ser apresentados em duas versões, uma com e outra sem a identifica- ção do autor; não é necessário enviar cópia impressa. O programa utilizado deve ser compatível com o Word for Windows. Imagens: 300 dpi.

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3. Caso a pesquisa tenha apoio financeiro de alguma instituição, esta deverá ser mencionada.

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6. As resenhas poderão ter entre 1.000 e 1.500 palavras. Fontes e margens seguem mesmas normas dos artigos. Devem referir-se a livros nacionais publicados até cinco anos anteriores a data da submissão à revista. Para livros estrangeiros admite-se que tenham sido publicados nos últimos dez anos.

7. As referências bibliográficas completas devem ser listadas em ordem alfabética, no final do ar- tigo. Quando citada, a obra deve ser indicada de maneira simplificada no corpo do artigo: (AU- TOR, ano, p. número).

8. As notas devem ser colocadas sempre no final do texto.

9. Normatização das notas conforme NBR 6023.

Exemplos para as referências Livro: DAMASCENO, José Jorge Andrade. Vozes eclipsadas, memórias silenciadas. Tradução (se houver). 1ª Ed. Recife: Bagaço, 2016, 349 p.

Capítulo ou parte de livro: SAMPAIO, Moiseis de Oliveira; FERREIRA, Jackson André da Silva. Coquí: um coronel negro no sertão baiano (Morro do Chapéu- BA, 1864-1919). In: LIMA, Ivaldo Marciano de França; DAMASCENO, José Jorge Andrade; SANTOS, Joceneide Cunha dos; VIEIRA FILHO, Raphael Rodrigues; SAMPAIO, Moiseis de Oliveira; FERREIRA, Jackson Andre da Silva (Orgs). Áfricas, Índios e Negros. 1ª Ed. Recife: Bagaço, 2016, p. 365 – 399.

Artigo em periódico: LIMA, Ivaldo Marciano de França. Selvas, povos primitivos, doenças, fome, guerras e caos: a África no cinema, nas histórias em quadrinhos e nos jornais. África(s). V. 01, p. 81- 105, 2014.

Dissertação: SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e mulheres escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004.

Tese: VIEIRA FILHO, Raphael Rodrigues. Os Negros em Jacobina (Bahia) no século XIX. Tese (Doutorado em História do Brasil) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006.

Trabalho apresentado em evento: SANTOS, Cristiane Batista da Silva; BISPO, Daniana Oli- veira. Identidade negra no ensino e aprendizagem de história local e regional nas experiências do PIBID. In: V Encontro Nacional das Licenciaturas - IV Seminário Nacional do PIBID, 2014, UFRN. Natal, ENALIC, 2014, p. 10-15. Disponível em: http://enalic2014.com.br/anais/anexos/1247.pdf

Os originais devem ser submetidos pelo endereço: escrever o endereço eletrônico da revista, o cami- nho da submissão.

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