UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

MARIANA CONDE RHORMENS LOPES

A Máscara Mapiko: entre identidades e alteridades

Mapiko’s Mask: between identity and alterity

CAMPINAS 2020 MARIANA CONDE RHORMENS LOPES

A Máscara Mapiko: entre identidades e alteridades

Mapiko’s Mask: between identity and alterity

Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutora em Artes da Cena, na área de Teatro, Dança e Performance.

Thesis presented to the Institute of Art of the State University of Campinas in partial fulfillment of the requirements for the degree of Doctor in Performing Arts, in the area of Theater, Dance and Performance.

ORIENTADOR: MATTEO BONFITTO JÚNIOR

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA MARIANA CONDE RHORMENS LOPES, E ORIENTADO PELO PROF. DR. MATTEO BONFITTO JÚNIOR.

CAMPINAS 2020 Processo nº 2016/07577-0 Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). “As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP”. COMISSÃO EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO

MARIANA CONDE RHORMENS LOPES

ORIENTADOR: MATTEO BONFITTO JÚNIOR

MEMBROS: 1. PROF. DR. MATTEO BONFITTO JÚNIOR 2. PROF. DR. CASSIANO SYDOW QUILICI 3. PROFA. DRA. LUCIANE DA SILVA 4. PROFA. DRA. MARTA DENISE DA ROSA JARDIM 5. PROFA. DRA. VILMA CAMPOS DOS SANTOS LEITE

Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da comissão examinadora encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

DATA DA DEFESA: 10.07.2020

À vida que leva e traz À Wilson Vieira À Luana Mwedi AGRADECIMENTOS

Começo agradecendo às sementes… À semente que brotou em mim e se fez menina Lua Luana Mwedi. Que me acompanhou, ainda antes de nascer, em oficinas, Mapiko, viagens à Moçambique e África do Sul, e descobriu o mundo junto às escritas longas, e ensaios mascarada. Que me dá forças e me mostra diariamente a força dentro de mim.

E então, àqueles que são raízes… Alicerces para que árvores possam crescer e dar frutos: Adriana Rhormens, Emílio Lopes Júnior, Audineia Conde, Mãe Cláudia, Clarice Scarpelli... e às raízes mais profundas que já estão em terra Wilson Vieira, Dona Magdalena Rhormens, Seu Perseu Rhormens, Vó Bela, Vovó Polita, Vó Mariana, Vô Emílio, Vó Marcolina, Bisa Esther, Vó Mina e todas aquelas que seguem enraizando…

Agradeço também aos galhos... Que como meus outros braços auxiliaram várias necessidades: Carolina Rhormens, Tatiana Rhormens, Amanda Schmitz, Roselene Scarpelli, Felipe Lopes, Ana Pessoa, Carolina Portella, Marcelo Moraes, Sandra Frias, Rafael Augusto, Heraldo Firmino e Matteo Bonfitto.

E às folhas… Que, às vezes, mesmo com passagens simples, significam tanto e nos permitem florir: Lidia Olinto, Luiza Lopes, Viridiana Bueno, Maíra da Rosa, Luisa Dalgalarrondo, Jessika Rabello, Tatiana Rabello, Gabriel Bito, Rosana Weg, Editora Kapulana, Marta Jardim, Vilma Campos, Olavo Frias, Regina Santos, Luciane da Silva Ramos, Thaiane Athanásio, Bruno Rhormens, Gustavo Rhormens, Edgard Ghilard, Caio Bueno, Pedro Bueno, Otávio Mattos, Márcia Conde, Thereza Cristina, Mariama Camara, Roberta Vianna, Thais Vasques, Célia Portella, Ocimar José, Lenna Bahule, Rubens Oliveira, Tiche Vianna, Ésio Magalhães, Fernando Linares, Victoria Viana, Viviane Vieira, Melina Marchetti, Juliana Birchal, Eliane Rocha, Paulo Xavier e André di Giacomo.

Também aos rizomas que, passeando por terras, geram encontros... Agradeço cada encontro em terras: Marílio Wane, Claudia Mahota, Guimarães Mahota, Eduardo Adolfo Lichuge, Nália, Alda Costa, Evaristo Abreu, Marcial Macome, Alfredo Semo, Adelino Branquinho, Arménio Matavele, Assane Cassimo, Atanásio Nhussi, Moisés Abel, Mauricio Nangonga, Dawa Mafunga, Lindo Cuna, Boaventura Machavele, Tomás Melisse, Helio Atmanne, Maria Clotilde, Vitor Gonçalves, Arminda Reis, Dadivo José, Joaquim Matavel, Judith Novela, Eugenio Joaquim, Mario Macuvele, Rita Couto, Venâncio Calisto, Zainá Rajá, Alvim Cossa, David Abílio Mondlane, Estreanty, Mariana Tembe, Felix Mambucho, Maria José, Matheus Carvalho e todos os integrantes dos grupos e participantes das oficinas oferecidas Associação Cultural Hodi, CTO Moçambique, Grupo de Teatro Khuhlanganyeta, Grupo de Dança da Associação Cultural Wuchene, Companhia Nacional de Canto e Dança e atores que compareceram na oficina realizada no Centro Cultural Brasil - Moçambique. Agradeço os encontros nas areias: Germaine Acogny, Patrick Acogny, Alesandra Seutin, Irineu Nogueira, Saky Bertrand Tchébé, Max Diakok, Lamine Diagne dit Alvine, Rokhaya Thioune, Ibrahima, Ndeye Seck, Eliot Shrimpton, Aisha, Mamas que cozinhavam maravilhosos peixes, toda equipe da escola e cada aluno do curso Danses Noire 2017.

Agradeço aos encontros nos quintais de casa: Grupo Desembargadores do Furgão, Ilú Obá de Min, Teatro da Neura. E aos que alimentam tantas árvores: FAPESP, Universidade Estadual de Campinas, Universidade Eduardo Mondlane.

E a essa natureza que permite que as árvores cresçam, criem raízes, floresçam dêem frutos e estejam umas ao lado de tantas. Salve todos os orixás!

Axé!

RESUMO

O presente trabalho propõe um aprofundamento no estudo acerca dos saberes tradicionais das máscaras de Mapiko, manifestação cultural de Moçambique. A partir da investigação do mascaramento de tal tradição, discorre-se sobre o termo Corpo- Fronteira, ampliando questões acerca da liminaridade e da percepção do ator/atriz/dançante/performer. Problematizando a formação eurocêntrica e propondo um debate sobre as epistemologias decoloniais, apresenta-se propostas metodológicas para as técnicas de mascaramento. Realizando trocas interculturais, a tese traz um material extenso sobre a tradição Mapiko e o Teatro Moçambicano. Com pesquisa realizada no Brasil, Moçambique e Senegal, essa investigação dispõe de conteúdos extraídos de entrevistas, oficinas ministradas e cursos realizados tais como ‘Danses Noires 2 - Mémoire et évolution’ na École des Sables, e do contato com artistas e grupos moçambicanos: Cia Nacional de Canto e Dança de Moçambique, Cia Mutumbela Gogo, Cia de Teatro Gungu, Grupo de teatro Girassol, Associação Cultural Wuchene, Centro do Teatro do Oprimido em , Associação Cultural Hodi, entre outros. A tese envolve ainda a produção de um material áudio-visual: o Documentário “Ka Mimbangu: A Cena Moçambicana - entre tradições e contemporaneidades”.

PALAVRAS-CHAVE Máscara; Mapiko; Moçambique; Maconde; Liminaridade; Decolonial; Corpo-fronteira

ABSTRACT

This paper proposes a deepening in the study about the traditional knowledge of Mapiko masks, a cultural manifestation from . Based on the investigation about the use of masks in such a tradition, the term Corpo-Fronteira (body-frontier) is discussed, expanding questions about the liminality and perception of the actress/actor/dancer/performer. In order to question eurocentric formation and proposing a debate on decolonial epistemologies, methodological approaches for masking techniques are presented. Performing intercultural exchanges, the thesis brings extensive material on the Mapiko tradition and the Mozambican Theater. With researches carried out in Brazil, Mozambique and Senegal, this investigation has relevant topics extracted from interviews, workshops and courses such as 'Danses Noires 2 - Mémoire et évolution' at École des Sables, and contact with Mozambican artists and groups: Cia Nacional de Canto e Dança de Moçambique, Cia Mutumbela Gogo, Cia de Teatro Gungu, Grupo de teatro Girassol, Associação Cultural Wuchene, Centro do Teatro do Oprimido em Maputo, Associação Cultural Hodi, among others. The thesis also involves the production of audiovisual material: the Documentary “Ka Mimbangu: A Cena Moçambicana - entre tradições e contemporaneidades”.

KEYWORDS Mask, Mapiko, Mozambique, Maconde, Liminality, Decolonization, Body-frontier

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 13 CAPÍTULO 1 - TERRA: CONTANDO CONCEITOS A importância das histórias ...... 19 Exu, o colecionador de histórias ...... 22 A tradição oral – tradição griot – condensados de saberes ...... 23 Contos (conceitos em formas de contos) ...... 31 Natu Imbeju - As três sementes ...... 31 Alto do céu. Alto do mar...... 36 A casa da tradição ...... 42 Caminhando com… ...... 46 Baobab ...... 50 Do outro lado da rua ...... 54 De onde vem? ...... 59 CAPÍTULO 2 - RAIZ: REMEMORANDO PARTE A A silenciada África ...... 63 (Pós)(Des)(De)Colonial ...... 77 Discurso decolonial com práticas colonialistas ...... 83 A chamada “Arte primitiva” ...... 92 Rompendo fronteiras coloniais – Macondes de Moçambique e Tanzânia ...... 108 PARTE B Vozes ...... 116 O Mapiko dos Macondes ...... 118 Likumbi – Rito de iniciação masculina ...... 119 Lihoka ...... 120 A máscara Mapiko ...... 121 Confecção ...... 122 Transmissão de histórias ...... 123 O corpo que fala ...... 123 Batuques e Cantos ...... 125 Múltiplas Vozes ...... 127 Contexto Histórico de Moçambique ...... 127 Período Pré-Colonial ...... 128 Colonial ...... 131 Guerra de libertação ...... 146 Independência de Moçambique ...... 152 Companhia Nacional de Canto e Dança de Moçambique (CNCD) ...162 Guerra civil ...... 166 Companhia Mutumbela Gogo ...... 168 Atualidade ...... 173 Centro de Teatro do Oprimido Moçambique (CTO) ...... 174 Teatro em casa ...... 178 Companhia de Teatro Gungu ...... 180 Associação Cultural Wuchene ...... 181 Associação Cultural Hodi ...... 182 Grupo de Teatro Girassol ...... 184 Festivais de Teatro ...... 184 Políticas públicas ...... 188 A Terra e o Palco - As tradições nos palcos moçambicanos ...... 191 CAPÍTULO 3 – SEMENTES: O PERFORMAR DA MEMÓRIA PARTE A Reflexões sobre ‘Entre Lugares’ ...... 208 O lado de cá. O lado de lá...... 209 Senegal - Experiências de sables ...... 214 Experiência Liminar ...... 214 A chegada ...... 221 Entre máscaras e baobás ...... 222 Dançando o mar ...... 233 Relatos e anotações ...... 235 Moçambique / África do Sul ...... 244 Revendo Mapiko da zona militar ...... 248 Gumboot dance / Dança de botas / Makwayela ...... 258 Entrevistas realizadas ...... 270 Oficinas ministradas ...... 271 Brasil ...... 340 Grupo de estudos ...... 340 Oficinas Brasil ...... 344 Experiência cênica ...... 353 Experiências mascaradas ...... 353 Dançando conceitos ...... 357 Diáspora ...... 359 Somos ...... 368 Corpo-Memória ...... 373 Fronteiras ...... 378 Espetáculo final ...... 380 PARTE B Metodologia Decolonial ...... 391 Caminho para Mascarar-se ...... 391 Em cima. Norte. Centro. – Relações de poder ...... 391 Norteando a formação (de teatro) – Formação Eurocentrada ...... 396 Vejo Europa, EUA e Oriente nos painéis de referências, mas onde estão a África e a América Latina? ...... 398 Quais máscaras? Pedagogia da máscara? Até onde podemos ir?....400 Desnorteando nosso fazer – Pedagogia Decolonial das Máscaras ...406 Nosso caminho desnorteado para mascarar-se – Pistas para se perder ...... 408 Exercícios desenvolvidos ...... 411 CAPÍTULO 4 – TERRA: CONCEITOS EM AÇÃO A Fronteira ...... 466 As Fronteiras da Fronteira ...... 478 Entre o Aye e Orun – Ancestralidade ...... 478 Entre Tempos - Presente Passado Futuro ...... 481 Tradição e contemporaneidade ...... 484 Zona fronteiriça - O entre-lugares ...... 489 O Mapiko Fenômeno Liminóide ...... 494 O Mascarar-se ...... 497 Corpo-Fronteira ...... 502 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 514 APÊNDICES ...... 525

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INTRODUÇÃO

Quando eu somos outros

Essa pesquisa nasceu há muito tempo…

Essa pesquisa vem de um mestrado onde “Um olhar sobre as máscaras de Mapiko” foi feito com curiosidade, um primeiro mergulho em Moçambique. Nas terras vermelhas aprender... Aprender com os pés os passos que batem terra, contando histórias e conversando com diferentes mundos. Aprender com mãos e ferramentas a arte da confecção de verdadeiras casas de uma tradição. Entre a força do talhar a madeira e os movimentos minuciosos das mãos sobre a argila, o masculino e o feminino das máscaras e suas tradições. Aprender com os ouvidos… ouvir histórias, ouvir batuques, ouvir os cantos e também ouvir o vento, o mar, ouvir o silêncio da natureza e das vozes que guardam segredos. Aprender com as trocas… e perceber que tudo se resume às relações. Aprender com os olhos tudo que a experiência trazia. Olhar de dentro, olhar de fora, olhar de perto, olhar de longe… um olhar sobre as máscaras de Mapiko. Na verdade, essa pesquisa nasceu antes ainda… Vem de uma jovem curiosa ainda em formação de Teatro, buscando danças afro-orientadas nos cursos de danças brasileiras. Jovem que descobre um mundo novo e outra forma de ser/estar, ao vestir pela primeira vez, um rosto que não era seu, mas que também era. De fato, essa pesquisa vem de antes… antes ainda… de uma menina que passava tardes brincando na rede que era seu barco atravessando o Atlântico. Menina ela que sonhava com África, que curtia os batuques, que o corpo pulsava nas capoeiras nos quintais de casa, que tinha o sonho de morar em África quando crescesse. Essa pesquisa nasceu antes… antes da menina… antes ainda de umas três ou quatro mulheres que a antecederam … Vozes dentro de mim contam que essa pesquisa nasceu antes … bem antes. Quatro anos de pesquisa. Um trabalho que interfere nos caminhos de nossa vida. Uma vida que interfere nos caminhos da pesquisa. As duas: Vida e Pesquisa que se retroalimentam. 14

Uma pesquisadora numa busca curiosa, discute conceitos, vê, aprende. Uma atriz e dançarina fazendo o corpo mergulhar em experiências de cá e de lá, corpo que dança, atua, reage, é dançado, é tomado... que dialoga, troca, leva e traz danças, contextos, cantos, cenas. Uma musicista que explora o universo dos ritmos fazendo com que os tambores e melodias ressoem dentro de si. Um canal de comunicação, mascarada ou não, na vida, na espiritualidade ou na cena. Uma escritora quem sabe... que com as palavras que escuta de lá, de cá, de acolá e de si transforma folhas em textos com imagens que quer compartilhar. Uma mãe, que dentro desse processo de comunicação e criação, compartilha o corpo com um ser e cria uma vida para além da sua. Essa pessoa e essas páginas propõem ao leitor camadas de experiências… com palavras, sons, imagens, fotografias, vídeos, cena, dança e música. Convido-te a desvestir os calçados e caminhar pelas páginas de pés descalços, dialogando e experimentando o que as folhas trazem. A escritura de tal tese foi dada em camadas. Uma sensação cíclica ou espiralada, onde mesmas temáticas vão surgindo, mas sendo olhadas com focos, olhos ou modos distintos. Propõe-se cada vez um mergulho diferente, descascando as camadas, problematizando-as e questionando-as A língua expressa uma compreensão e visão de mundo de determinada cultura ou de determinado grupo que compartilha tal idioma. Buscando não descontextualizar, empresto palavras de outros idiomas, conceitos em suas línguas originais, em línguas de raízes africanas como Suaíli e Bantu para contemplar tais conceitos e sua abrangência cultural. Não buscando traduções para simplificar as palavras ou ainda, imprimir um outro olhar (de outra cultura) sobre aquele saber. O português entra, não como uma tradução, mas como uma reflexão sobre o conceito/palavras para que possamos juntos pensar sobre tais saberes. Portanto, como brasileira e candomblecista trago algumas referências em Iorubá. Pesquisando o povo Maconde surgem conceitos e termos em Shimakonde (língua do Norte de Moçambique), e em Suaíli (língua da Tanzânia). Como a pesquisa de campo foi realizada em Maputo, ao Sul do país, algumas referências são trazidas em Changana. A pesquisa abre caminhos para as histórias. Laroyê! Ao ouvir e contar histórias se constroem nossa memória que é cultivada nas terras do primeiro capítulo. 15

TERRA. É onde se encontra a ancestralidade, o sagrado, o mundo espiritual, algo que está além da vida e do tempo cotidiano, além da horizontalidade das relações. No capítulo um, cultivamos e cultuamos a terra. Conceitos em forma de contos são trazidos para as páginas e palavras escritas. Valorizando a tradição oral, e incentivada pelas entrevistas, relatos, histórias aprendidas e vividas ao longo de todo doutorado, criei contos que explicassem o que entendia sobre os conceitos como ancestralidade, liminaridade, fronteiras, colonialismo, globalização, espiritualidade… Proponho como de início adentrar nessa lógica das histórias narradas com temáticas que serão retomadas ao longo dos demais capítulos. Início também com Exu, o colecionador de histórias, que além de nos ensinar o poder das narrativas, também se refere à ligação com o candomblé, com o qual me aproximei ainda mais no decorrer da pesquisa e no processo de investigar minhas identidades e raízes. RAIZ. No Capítulo dois rememoramos. Trazemos à tona memórias passadas. Okê arô! Das matas vem o misterioso Mapiko, chega à aldeia, alcança outras terras, alcança os palcos. Estudos históricos africanos, questões sobre colonialismos, a história de Moçambique, Mapiko realizados em tempos remotos, o desenvolvimento da história do país e o surgimento de diversos grupos de dança e teatro da cidade de Maputo. Com isso, podemos questionar a relação entre tradição e contemporaneidade, entre Terra e Palco. A pesquisa abordada neste capítulo traz como fruto e registro o documentário: ‘Ka Mimbangu – A Cena Moçambicana: entre tradições e contemporaneidades.’ Um vento sopra e me leva para terras de lá. Eparrey Oyá! E a tese segue o vento que leva e traz SEMENTES passando nas areias da Ecole des Sables no Senegal, revivendo as terras de Maputo e experimentando uma distinta África do Sul. Debatendo-me em um mar de questões, Odoyá! Mergulho nas ondas de propostas pedagógicas, que assim como o mar, levam e trazem questões, ensinamentos e exercícios. Irôko Kissilé! Das raízes surgem os exercícios, que crescem em troncos e folhagens, propondo um caminho que nada mais é do que o crescer de uma árvore. Caminho de propostas, de pistas e exercícios para desnortear nossas pedagogias eurocêntricas. No Capítulo três, trago-me. Empresto-me a voz e o corpo. Nele, descrevo as oficinas que realizei com tais exercícios, e meu trabalho prático de investigação cênica, o meu ‘pisar em terras’. 16

Buscando novos caminhos e abrindo trilhas. Ogunhê! A leitura propõe uma desconstrução, um sentido oposto ao fluxo das águas. Do mar da pesquisa apresentado subimos ao rio. Ora yê yê ô! Um rio é fronteira física, temporal, sagrada… entre tantas outras que nosso Corpo-Fronteira nos permite perceber. TERRA. É preciso cultivar o próprio ser. Esse corpo-mãe, que gesta, que pari, que (re)nasce, que cria. Esse corpo atriz-dançarina que se desenvolve a partir de diversos atravessamentos. Esse corpo-música que pulsa ritmos, que traz a melodia e se expressa em canções. Esse corpo-mascarado que se abre a diversas percepções. Esse corpo-oyá que é vento, é caos, é borboleta, mas também sabe ser raio e búfalo. Esse corpo ancestral que é há muitos e muitos tempos. Esse Corpo-Fronteira. Assim convido o leitor a romper fronteiras e pisar nas terras que estão por vir… Epa Babá!

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Existem memórias e histórias no mundo que podem ser contadas, trazidas para os ouvidos no presente daquele que escuta. Existem aquelas que podem ser dançadas, trazida aos olhos. E aquelas que são tocadas, cantadas, pisadas, trazidas à terra... 18

Laroyê! A pàdé OlóònOn e mo júbà Àwa sé awo, àwa sé awo, àwa sé awo Mo júbà Òjísé

Vamos encontrar o Senhor dos Caminhos, Meus respeitos àquele que é o mensageiro, Vamos cultuar, vamos cultuar, vamos cultuar Meus respeitos àquele que é o mensageiro (OLIVEIRA, 2009, p. 20) 19

Capítulo 1 - TERRA: Contando conceitos

A IMPORTÂNCIA DAS HISTÓRIAS

O mito é ponte. É a conexão entre o que podemos compreender e o que transcende a racionalidade. É onde o discernimento e o bom senso não alcançam e, por isso, é solo fértil para a imaginação. É o não lugar, é atemporal, é impessoal. A simbolização nos aproxima do metafórico e é assim que o rio deixa de ser apenas o rio. O mesmo significado traz em si inúmeros significantes. E, assim, podemos acessar as profundezas com maior nitidez. Segundo Campbell (1992), é o pensamento mitológico que traz aprendizados para que as pessoas consigam lidar com os acontecimentos inevitáveis da vida. A mitologia é a dança que todos dançam mesmo que de forma inconsciente. O mito é uma forma simbólica do inconsciente se manifestar. Não é apenas uma história, é também preenchida de sentimento. Tem gosto, cheiro, som, textura. Através do mito, ultrapassamos a esfera comum da experiência e podemos expandir e vivenciar as múltiplas formas de ser. Somos transportados do espaço profano ao espaço transcendente; do tempo concreto ao tempo mítico. O mito promove, bem como a máscara, uma infinidade de possibilidades. Possibilidades de ser, de estar, de histórias e de como contar tais histórias.

Um mito narra os acontecimentos que se sucederam in princípio, ou seja, “no começo”, em um instante primordial e atemporal, num lapso de tempo sagrado. Esse tempo mítico ou sagrado é qualitativamente diferente do tempo profano, da contínua e irreversível duração na qual está inserida nossa existência cotidiana e dessacralizada. Ao narrar um mito, reatualizamos de certa forma o tempo sagrado no qual se sucederam os acontecimentos de que falamos. (ELIADE, 1991, p. 53)

Segundo Lévi-Strauss (1958), as mitologias têm a peculiaridade de se situar na história e também, ao mesmo tempo, fora dela. Segundo Macagno (2014), os mitos se valem da história não só utilizando sua cronologia, mas, principalmente, com objetivos lógicos e simbólicos. O antropólogo Lorenzo Macagno discorre sobre mitologias nacionais e narrativas de origem. Segundo Macagno (2014), o mito e a história se retroalimentam. O antropólogo discute, a partir dos pensamentos de Michel Foucault em “Faire vivre 20

et laisser mourir: la naissance du racisme”1, em que fala sobre a genealogia do Racismo, sobre táticas discursivas e dispositivos de saber-poder, em que se colocam em perspectiva diferentes mitologias e, também, sobre como mitologias afirmam hierarquias entre diferentes povos. Macagno (2014), referindo-se ao mito das três raças, que trata da formação do povo brasileiro, diz que “os componentes etnogenealógicos que conformaram o ‘povo brasileiro’ se basearam na combinatória dessas três substâncias intelectualmente inventadas e arbitrariamente hierarquizadas, segundo a preferência ideológica de seus respectivos mentores e porta-vozes” (MACAGNO, 2014, p. 62). Sobre o mito das três raças, Roberto da Matta diz que este mito “tornou-se uma ideologia dominante, abrangente, capaz de permear a visão do povo, dos intelectuais, dos políticos e acadêmicos de esquerda e de direita, uns e outros gritando pela mestiçagem e se utilizando do ‘branco’, do ‘negro’ e do ‘índio’ como as unidades básicas através das quais se realiza a exploração ou a redenção das massas” (MATTA, 1987, p.63 apud MACAGNO, 2014, p. 61)

Narrativas históricas de origem africana que precisam receber o devido peso ao lado das narrativas europeias. Temos visto, entretanto, que este não é um processo simples de inclusão de mais um conjunto de conhecimento para o nosso fundo, do aumento do equilíbrio no relato. (FEIERMAN, 1993, p. 212)

Nas escolas coloniais na Tanzânia, uma palavra muito utilizada nos livros de história em suaíli é Uhuru, que podemos entender como Liberdade. Tais livros contavam que o povo africano se escravizava e, com a chegada do governo colonial, ganharam Uhuru. Julius Nyerere, ativista anti-colonial e presidente da Tanzânia de 1964 até 1985, governava sobre a lógica que denominava Ujaama (em suaíli significa unidade familiar) visando um socialismo africano. Nyerere defendia o fato de que, diferentemente do que os livros na escola ensinavam, Uhuru não foi dado ao povo pelo governo colonial, pois tal governo também reprimia e os tirava a liberdade. Afirmava, portanto, que Uhuru é algo que não se ganha por governantes, mas se conquista. “A história do domínio colonial é dividida entre as histórias feitas na Europa e outras que encontraram fontes de coerência dentro das histórias africanas, enraizadas nas tradições orais” (FEIERMAN, 1993, p. 177).

1 “Faire vivre et laisser mourir: la naissance du racisme” foi compartilhado nas conferências ministradas em 1976 no Collège de e parcialmente publicado em 1991 na revista Les Temps Modernes. 21

Quantas interpretações os mitos podem trazer? Como interesses de poder podem associar-se a mitologias, valorizando umas em detrimento de outras ou interpretando de forma a explicar lógicas de poder, dominação e superioridades?

Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caça sempre glorificarão o caçador – Provérbio nigeriano.

Macagno (2014), comenta sobre o capítulo X do livro Gênesis, em que uma interpretação auxiliou na construção da ideologia racista da Igreja Reformada Holandesa na África do Sul, a justificar o Apartheid. Nessa passagem, Cam, por falta de respeito a Noé, foi sujeito a subordinação perpétua aos seus outros irmãos. Essa narrativa mítica explicava o fato dos negros, considerados descendentes de Cam, serem subordinados, inferiores e condenados à escravidão. É relevante enfatizar a importância das histórias na perspectiva do desenvolvimento de identidade individual e coletiva. A autora nigeriana Chimamanda Adichie (2019), aponta para a relação direta entre história e poder ao desenvolver o conceito de ‘história única’. Como as histórias são contadas? Por quem? Quantas vezes? Segundo ela, a história é usada como um instrumento de poder.

Comece a história com flechas dos nativos americanos e não com a chegada dos britânicos e você tem uma história totalmente diferente. Comece a história com o fracasso do estado africano e não com a criação colonial do estado africano e você tem uma história totalmente diferente (ADICHIE, 2019, p. 23)

A ‘história única’ propicia a criação e manutenção de estereótipos. O problema dos estereótipos não é que não sejam verdades, mas sim, que são incompletos. O perigo da ‘história única’ é que os estereótipos reduzem a pluralidade das narrativas. Adichie (2019) defende a necessidade de ruptura com únicos pontos de vista, ampliando o comprometimento com os múltiplos lados da narrativa. Define este movimento de expansão como um equilíbrio de histórias. Quais histórias nos contaram? Qual história vamos contar? Quais mitos nos formam? “Como se diz (na África), cada partido ou nação ‘enxerga o meio-dia da porta de sua casa’ – através do prisma das paixões, da mentalidade particular, dos interesses ou, ainda, da avidez em justificar um ponto de vista” (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p.168). 22

EXU, O COLECIONADOR DE HISTÓRIAS

Um dia, em terras dos povos iorubás, um mensageiro chamado Exu andava de aldeia em aldeia à procura de solução para terríveis problemas que na ocasião afligiam a todos, tanto os homens como os orixás. Conta o mito que Exu foi aconselhado a ouvir do povo todas as histórias que falassem dos dramas vividos pelos seres humanos, pelas próprias divindades, assim como por animais e outros seres que dividem a Terra com o homem. Histórias que falassem da ventura e do sofrimento, das lutas vencidas e perdidas, das glórias alcançadas e dos insucessos sofridos, das dificuldades na luta pela manutenção da saúde, contra-ataques da doença e da morte. Todas as narrativas a respeito dos fatos do cotidiano, por menos importantes que pudessem parecer, tinham que ser devidamente consideradas. Exu deveria estar atento também aos relatos sobre as providências tomadas e as oferendas feitas aos deuses para se chegar a um final feliz em cada desafio enfrentado. Assim ele fez, reunindo 301 histórias, o que significa, de acordo com o sistema de enumeração dos antigos iorubás, que Exu juntou um número incontável de histórias. Realizada essa pacientíssima missão, o orixá mensageiro tinha diante de si todo o conhecimento necessário para o desvendamento dos mistérios sobre a origem e o governo do mundo dos homens e da natureza, sobre o desenrolar do destino dos homens, mulheres e crianças e sobre os caminhos de cada um na luta cotidiana contra os infortúnios que a todo momento ameaçam cada um de nós, ou seja, a pobreza, a perda dos bens materiais e de posições sociais, a derrota em face do adversário traiçoeiro, a infertilidade, a doença, a morte (PRANDI, 2001, p. 17).

O mito de Exu explica os saberes dos adivinhos de nome Orunmilá ou Ifá. Tais saberem foram passados aos babalaôs que aprendem em suas iniciações as histórias primordiais que contam sobre o passado mas que se repetem nos dias atuais. Na tradição Ifá, do Candomblé e para os antigos iorubás “nada é novidade, tudo que acontece já teria acontecido antes” (PRANDI, 2010, p. 18). Desta forma, o conhecedor dos mitos, das histórias primordiais, também chamadas de itá, consegue identificar os acontecimentos do presente no passado mítico. Os mitos, ou itá, estão divididos em dezesseis capítulos e cada um, por sua vez, dividido em dezesseis partes. Todas essas histórias e suas partes (também chamados de odus) deviam ser atentamente decoradas, pois tudo era passado através da oralidade. A tradição oral era a forma de transmissão e aprendizado de tais saberes. Essa arte da adivinhação está viva em África entre os iorubás seguidores da religião dos orixás; no Brasil, entre os seguidores do candomblé brasileiro; em Cuba e Estados Unidos, entre os seguidores da santeria cubana. 23

O mito é muito presente no cotidiano do povo de santo (como são chamados os adeptos do candomblé no Brasil). Além dos saberes referidos anteriormente nos jogos de adivinhação (chamados jogos de búzios no Brasil), os mitos são o que explicam as danças, os rituais, as vestimentas, os tabus e estão presentes nos objetos, cantos, roupas, comidas, adereços, na arquitetura dos templos, nos passos de dança, e no que Prandi (2010) descreve como “arquétipos ou modelos de comportamento do filho de santo”, fazendo alusão aos mitos e comportamentos de determinados orixás ao qual tal filho se crê descendente.

Na sociedade tradicional dos iorubás, sociedade não histórica, é pelo mito que se alcança o passado e se explica a origem de tudo, é pelo mito que se interpreta o presente e se prediz o futuro, nesta e na outra vida. Como os iorubás não conheciam a escrita, seu corpo mítico era transmitido oralmente (PRANDI, 2010, p. 24).

A TRADIÇÃO ORAL – TRADIÇÃO GRIOT – CONDENSADOS DE SABERES

A escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber em si. O saber é uma luz que existe no homem. A herança de tudo aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos transmitiram, assim como o baobá já existe em potencial em sua semente. – (BOKAR 2 apud KI-ZERBO, 2010, p. 167)

A importância, a validade e a legitimidade da tradição oral africana, antes contestada, é compreendida e aceita nos dias atuais. A palavra contada traz em si toda a simbologia cantando seus ritmos, suas ações, sua vida. A tradição oral é conhecimento, fé e divertimento. É conexão com o presente ato de dizer; ao mesmo tempo é união com o passado, com o que foi dito; é também a preparação para o futuro que está por vir. “Nada prova, a priori, que a escrita resulta em um relato da realidade mais fidedigno do que o testemunho oral transmitido de geração a geração” (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 168).

2 Tierno Bokar Salif é tradicionalista em assuntos africanos. Nascido no Mali em 1875 e falecido em 1939. 24

Pela grande amplitude de saberes que a tradição oral possui, o malinês Amadou Hampâté Bâ3 supõe que, se perguntássemos a um verdadeiro tradicionalista africano o que é a tradição oral, ele “talvez respondesse simplesmente, após um longo silêncio: é o conhecimento total” (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p.169). Isso se dá pelo fato da tradição oral não se limitar a histórias, relatos históricos e/ou mitológicos e lendas. A tradição oral segue uma lógica não cartesiana de separar saberes ou categorizá-los. O espiritual e o material estão associados. “Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recreação” (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 169). A memória da herança oral é carregada pelos tradicionalistas africanos, também chamados de conhecedores, em algumas regiões do atual Mali. Na língua bambara, são chamados de Doma ou Soma (Conhecedores), ou Donikeba (Fazedores de conhecimento), em fulani, chamados de Silatigui, Gando ou Tchiorinke (Conhecedor). Tais conhecedores são mestres iniciados (e iniciadores) que possuem diversos conhecimentos.

Um mesmo velho conhecerá não apenas a ciência das plantas (as propriedades boas ou más de cada planta), mas também a ‘ciência das terras’ (as propriedades agrícolas ou medicinais dos diferentes tipos de solos), a ‘ciência das águas’, astronomia, cosmogonia, psicologia, etc. Trata-se de uma ciência da vida cujos conhecimentos sempre podem favorecer uma utilização prática [...] Os grandes Doma, os de conhecimento total, eram conhecidos e venerados, e as pessoas vinham de longe para recorrer ao seu conhecimento e à sua sabedoria (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 175).

A tradição dos Doma é ligada à verdade. A mentira, segundo Hampâté Bâ (1980), nessa tradição é uma interdição ritual que impossibilita o Doma de seguir seu ofício. Isso difere os Doma e os Griot, onde a tradição lhes dá o direito de embelezar e criar sobre os fatos narrados para torná-los mais interessantes e divertidos àqueles que escutam. Um Doma não necessariamente é um Griot, mas um Griot pode se tornar um Doma, podendo, segundo Hampâté Bâ (1980), utilizar-se de inspirações poéticas que não chegam a alterar a história, apenas a enfeitá-la.

3 Amadou Hampâté Bâ é autor e mestre de tradição oral. Nascido no Mali em 1901, faleceu em 1991. 25

A tradição lhes confere um status social especial. Com efeito, contrariamente ao Horon (nobres), têm o direito de ser cínicos e gozam de grande liberdade de falar. Podem manifestar-se à vontade, até mesmo impudentemente e, às vezes, chegam a troçar das coisas mais sérias e sagradas sem que isso acarrete graves consequências. Não tem compromisso algum que os obrigue a ser discretos ou guardar respeito absoluto para com a verdade. Podem, às vezes, contar mentiras descaradas e ninguém os tomará no sentido próprio. ‘Isto é o que o Dieli diz! Não é a verdade verdadeira mas a aceitamos assim ‘Essa máxima mostra muito bem de que modo a tradição aceita as invenções dos Dieli, sem se deixar enganar, pois, como se diz, eles têm a ‘boca rasgada’ (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p.193).

Griot é tradição africana principalmente da região do Mali, entretanto são encontrados em muitos países africanos e não africanos com outros nomes, mas com essências semelhantes. São os guardiões das histórias, são os contadores de histórias, são quem transmitem a partir da oralidade as memórias da cultura. A região do Império Mandinga, dos povos bambara, diola e malincas, localizado onde atualmente estão os países Guiné, Mali, Senegal, Burkina Faso, Nigéria, Costa do Marfim e Mauritânia, era dividida por castas. Entre elas, encontravam-se as castas: dos ferreiros, dos tecelões, dos trabalhadores da madeira, dos trabalhadores do couro, e dos animadores públicos conhecidos como Dieli ou Griot. A casta Dieli é formada por famílias de Griot e tal arte é tão importante quanto os outros ofícios. A principal diferença entre o ofício Dieli e os demais é a imaterialidade do objeto de trabalho: histórias e palavras. Os Griot são da casta dos Dieli, ou seja, é preciso nascer um Dieli para ser um. São preparados desde a infância e a formação e educação de um Griot é de responsabilidade da família e da comunidade, e dividida em períodos de sete anos. O primeiro é acompanhado pela mãe, o segundo pelo pai, o terceiro na rua. O Griot desde o início aprende o poder da sua palavra e se mantém disponível para o outro servindo-lhes de histórias, investigando genealogias, conduzindo festas e cerimônias e cumprindo diversas funções dentro da sua comunidade. Treinados para colher e fornecer informações, cumprem suas funções de valorizar e perpetuar as raízes de seu povo. Cada casta é dividida em grupos. Existem, por exemplo, três tipos de ferreiros: ferreiro de mina, ferreiro do ferro negro e ferreiro dos metais preciosos. O mesmo acontece com as demais castas. A casta dos Dielis ou Griot também é dividida em três grupos: os Griot músicos, que preservam e transmitem canções tradicionais, 26

compõem, cantam e tocam instrumentos; Os Griot embaixadores, responsáveis por mediações entre famílias ou desavenças na comunidade; Os Griot genealogistas, também chamados por Hampâté Bâ (1980) de historiadores e/ou poetas ao mesmo tempo, que são normalmente contadores de histórias e grandes viajantes. Segundo Hampâté Bâ (1980), os Griot dessa última categoria, muitas vezes não são ligados a nenhuma família e viajam pelo país em busca de informações históricas cada vez mais extensas, de novas histórias, aprofundando-se em genealogias. Esse grupo de Griot são conhecidos por ter uma ampla memória e por isso são identificados como os arquivistas da sociedade africana. A educação de um genealogista, descrita por Hampâté Bâ (1980) em seu texto intitulado ‘A tradição viva’, que não se limita a casta dos Dieli/Griot, difere da educação ocidental, sendo dada durante todos os momentos da vida e ao longo de toda uma vida. “O ouvido ouve aquilo que ainda não ouviu. Assim, a educação podia durar a vida inteira” (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 200). Também é incentivada a busca por conhecimentos em diferentes locais. “Aquele que não viajou, nada viu” (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 201). Desta forma, o ampliar do aprendizado era estimulado pelos encontros e memória. “O homem que viaja descobre e vive outras iniciações, registra diferenças e semelhanças, alarga o campo de sua compreensão” (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 201). Como resultado deste pensamento, temos uma troca e circulação de conhecimento que não se limita a territórios, mas sim a grupos étnicos que migraram pelo continente. A palavra Griot é de origem francesa, e refere-se ao que, na região do Mali, em bambara, chamam de Dieli (Jéli ou Djéli) que significa sangue. O sangue é vida, fluxo, comunica todos os órgãos. O sangue traz em si uma herança ancestral e circula pelo corpo assim como os Dieli/Griot circulam pela sociedade. Assim como o mito ‘Exu, o colecionador de histórias’, os Dieli/Griot são possuidores de sabedorias e conhecimentos a partir do acúmulo de histórias e vivências ao longo de suas vidas, em suas memórias. Aqui discorremos sobre especificamente os tradicionalistas e genealogistas Doma e Dieli/Griot, mas existem outros diversos Conhecedores por todo o continente, com funções e valores semelhantes como, por exemplo, os Guessere da etnia Mande, os Gaolo da etnia de língua fulfulde.

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Essa ciência se encontra na própria base da história da África, pois o interesse pela história está ligado não à cronologia, mas à genealogia, no sentido de se poder estabelecer as linhas de desenvolvimento de uma família, clã ou etnia no tempo e no espaço (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 203).

O termo Griot veio para o Brasil, sendo abrasileirado pela grafia Griô, e refere- se à tradição oral muito presente na cultura popular. Entretanto, não se sabe de nenhuma família das castas Dieli vindas ao Brasil. Portanto, compreende-se os griôs brasileiros independentes da tradição familiar dos Griot africanos, mas a partir de seus conhecimentos e modos de transmissão semelhantes, provavelmente vindo com outros conhecedores africanos. Tal movimento Griô no país visa valorizar e enraizar tradições e ensinamentos transmitidos a partir da oralidade, e tem crescido gerando políticas nacionais de valorização a este movimento; o desenvolvimento de uma pedagogia griô que valoriza tais modos de transmissão e suas resistências. Atualmente, fazem parte da chamada Ação Griô no Brasil: os Kaingang, do Sul; os Tupinambá, das Aldeias Tukun e Serra Negra (BA); os Pankararu, de Pernambuco; os Macuxi, em Roraima, e tantos outros. A Ação Griô envolve projetos pedagógicos que dialogam tradição oral e educação formal. Fazem parte desta rede griôs, mestres de tradição oral, pontos de cultura, escolas, universidades e outras entidades de educação e cultura.

Os contos iniciáticos apresentados por Sotigui permitem aos participantes dos estágios um mergulho em outras culturas e tradições diversas da sua. Assim, um conto de tradição oral proveniente da África Negra, como o Cultivador e o Guinarou, através das palavras e imagens que contém, possibilita uma viagem sensorial a este continente tão presente em nossa cultura, mas ao mesmo tempo tão desconhecido. Além desta função de esclarecimento, o mesmo conto toca ainda em questões éticas e humanísticas através da saga do cultivador que, alertado por todos a sua volta para não desmatar uma floresta sagrada, encontra um destino trágico ao se deparar com Guinarou, o espírito protetor da mata. Sem didatismo, os contos iniciáticos proporcionam ensinamentos e reflexões profundas, tanto para quem conta como para quem ouve. Nesta relação entre contador e público, o conto, ele próprio, é o vértice do triângulo. É nesta triangulação que reside o poder transformador do ato de contar, pois ele é um ato de comunicação tridimensional (LOISEAU, 1992, p. 131 apud BERNAT, 2008, p. 3)

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Bernat (2008) fala sobre sua experiência nas oficinas realizadas com Sotigui Kouyaté, Griot malinês. Sotigui é Griot da família Kouyaté, do antigo império Mandinga, radicado na França, onde trabalhou por mais de 20 anos com Peter Brook. Desenvolveu oficinas para atores nas quais compartilhou conhecimentos de sua tradição griot em diferentes lugares do mundo. Podemos notar no trecho acima, que o conto traz um condensado de saberes. Bernat, ao entrar em contato com contos propostos por Sotigui, se deparava, como ele próprio diz, com diversos saberes. Ao contar uma história, muitos saberes estão presentes. A transmissão oral, a partir de ensinamentos compartilhados por histórias, deixa isso evidente, pois, mesmo tendo um foco de interesse, um tema central a ser abordado é transmitido. Quando é compartilhado dentro de uma narrativa, envolve outros ensinamentos, pois está inserido num contexto e tal contexto também é transmitido, como, por exemplo, história, costumes, roupas, alimentação... Ser alguém, em algum lugar, em algum tempo. As histórias, com sua linguagem coloquial, alcançam diversos alguéns, em diversos lugares, em diversos tempos, e assim, abrangem uma vasta interdisciplinaridade de saberes. Ultrapassam os limites da narrativa, trazendo em si resquícios da psicologia, biologia, botânica, da geografia e outros tantos saberes que foram passados tradicionalmente através da palavra contada. Hampâté Bâ (1980) refere-se também ao quanto as histórias podem conter diferentes níveis de compreensão. Desta forma, tornam-se ainda mais múltiplas e potentes no que diz respeito aos ensinamentos ao abordar determinados saberes. “Ele pode fazer dela simples história infantil com fundamento moral educativo ou uma fecunda lição sobre os mistérios da natureza humana e da relação do homem com os mundos invisíveis” (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 201). A partir das viagens feitas à Moçambique e Senegal, ao longo da atual pesquisa, deparei-me com o ato de contar histórias. Os ensinamentos, os questionamentos e problemáticas que surgiram nos encontros (da autora com artistas e mestres) se davam a partir de um relato de suas próprias histórias, ou no contar determinada história para que eu compreendesse certo ensinamento e, obviamente, junto ao ensinamento, estavam um condensado de diversos saberes imbuídos na história e no contexto dela. Muitas vezes, tais histórias eram contadas no presente.

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Tais estórias interrompem o fluxo da história e produzem um espaço de tenso confabular. Nesse narrar, não é uma outra verdade histórica que se constrói, mas fragmentos do passado e traços do presente, saturados por múltiplos imaginários de raça e de nação, que são conjurados pelas performances do contar e incorporados pela presença dos espíritos (CARDOSO, 2013, p. 43-44).

O ato de contar história se deu de maneira relevante na atual pesquisa, se tornando parte da metodologia abordada. As entrevistas realizadas não eram mais perguntas específicas sobre determinado tema, mas sim, relatos de histórias pessoais e, a partir deles, acabávamos discutindo e aprofundando em temas que surgiam e nos interessavam durante as conversas. A entrevista tornou-se pretexto para um encontro e um momento de rompimento do tempo cotidiano, em que a história daquele que contava era retomada, representificada. Tal experiência de encontros que as entrevistas proporcionaram geraram aproximação com a tradição oral.

Minha discussão visa criar, através do pensamento liminar (isto é, pensamento situado entre as ciências humanas e a literatura) um arcabouço no qual a prática literária não seja concebida como objeto de estudo (estético, linguístico ou sociológico), mas como produção de conhecimento teórico; não como “representação” de algo, sociedade ou ideias, mas como reflexão à sua própria moda sobre problemas de interesse humano e histórico. (MIGNOLO, 2003, p. 305 apud BELÉM, 2016, p. 122)

Isto posto, a proposta deste capítulo inicial é tentar discutir e abordar conceitos que serão utilizados ao longo da pesquisa com a criação de pequenos contos. Propõe- se um mergulho sensível em diversos outros saberes tais como cultura, geografia, idiomas, culinária, vestimentas, clima, história, botânica, biologia, psicologia, etc.

O ato de contar histórias nos aproxima de nós mesmos, pois a parceria com a história e a cumplicidade com os ouvintes só se estabelecem se o contador compreender que não há uma diferença hierárquica em relação ao público, mas sim uma diferença de circunstância. (BERNAT, 2008, p. 3-4)

Vale ressaltar que aqui discorro contos em textos escritos e a palavra escrita tem outras especificidades diferentes do que visa a tradição oral. A voz, cantada ou falada, tem sua importância no ato de contar histórias. Entretanto, seguimos inspirados na tradição oral, principalmente na tradição Dieli/Griot, e deixo o convite para que leia em voz alta, propondo um contato também com a sonoridade de algumas 30

palavras escritas, adentrando e buscando encontrar-se com tais textos e mergulhar sensorialmente nos universos propostos pelas narrativas.

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CONTOS - CONCEITOS EM FORMAS DE CONTOS

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“Cada pessoa tem um sonho, uma missão e um objetivo na vida”. Foi a frase que Seu Tatamunu5 mais escutou de sua mãe, o ensinamento que ela deu desde a sua infância. Mas qual era o seu sonho, missão ou objetivo na vida? Foi criado pela mãe, pois seu pai morreu muito jovem. O pai não teve tempo de deixar nada a ele. Não se lembra de nenhum ensinamento de seu pai. Não se lembrava, ao menos, da fisionomia de seu pai. Por conta disso, Seu Tatamunu cresceu pensando em deixar algo para os filhos. Acabou tomando isso como foco em sua vida: queria ser pai e dar aos filhos, logo quando crianças, algo que pudessem levar para toda vida e os orientasse, guiando e iluminando os sonhos, missões e objetivos de cada um. Mhunti yi thlangisa a ñwana.6 Teve três filhos. Enquanto seus meninos cresciam, ele ia observando os miúdos. Analisava e pensava o que deixar para cada um deles. Tinha como um pressentimento, ou objetivo, ou missão de vida, o dever de deixar algo até os dez anos do mais velho. Talvez fosse medo por ter perdido seu pai cedo, talvez uma sabedoria de deixar algo, pois sentia que ia partir. Não se sabe ao certo, o que acontece é que Seu Tatamunu olhava os meninos crescerem com certa nostalgia, e sempre teve os olhos marejados e um tom de despedida em suas falas. O filho mais velho, Majani7, filho de sua primeira esposa, sempre foi muito correto em suas brincadeiras. Menino cauteloso e que ajudava os outros mais do que

4 Natu: Três; Imbeju – Semente. Artes desenvolvidas por Roselene Scarpelli para a presente tese. 5 Tatamunu: Pai. 6 Provérbio em Changana (língua do Sul de Moçambique). Tradução: A gazela ensina cria a brincar. 7 Majani: Folhas de chá. 32

a si mesmo. Tinha uma ligação muito forte com a natureza. Animais e plantas eram seus amigos, quase do mesmo modo que os outros meninos do povoado. O menino do meio, seu segundo filho, parecia-se muito com a mãe, sua segunda esposa, que falava muito bem e sabia como convencer Seu Tatamunu e quem quer que fosse a fazer o que ela quisesse, sempre com um bom argumento. Ele havia nascido dois anos depois do Majani. Imepo8 veio para movimentar aquela casa. Era um menino esperto e ágil. Articulador desde muito miúdo. Depois de um ano, Seu Tatamunu casou-se com sua terceira esposa. Uma moça muito doce que respeitava muito as primeiras esposas de seu marido. Seu sonho era ter um filho. Depois de quase dois anos tentando e não conseguindo, quando já estava para desistir, as outras mulheres de seu marido se juntaram e a chamaram para dar uma volta, um certo dia. Foram até o rio levando uma cabaça e um pote de barro. Sem que dissessem nada, jogaram as coisas que traziam na cabaça e no pote de barro sobre as águas correntes do rio e pediram que ela entrasse nas mesmas águas. A mulher, que confiava e respeitava muito as mulheres mais antigas, entrou no rio sem hesitar e sem entender o que queriam. Pediram que mergulhasse e, ao sair, voltasse a casa, sem nunca contar a ninguém o que havia se passado. Foi exatamente o que ela fez. E em menos de dois meses, lá estava ela esperando um bebê. Aquela gravidez durou mais do que as outras. Foi um bebê demasiadamente esperado. E nasceu Wakati9. Esses eram os três filhos de Seu Tatamunu. Aqueles a quem ele queria deixar algo significativo até os dez anos do mais velho. Um dia, quando já havia chegado a hora, o pai chamou os três miúdos. Sentaram aquelas crianças, ao lado do seu pai, na esteira do quintal de sua casa. - Tenho algo para vocês. – disse o pai, e entregou uma muda de planta a cada um dos filhos. - Cuidem, cultivem e reguem. Aí está meu ensinamento à cada um dos meus filhos. E, por fim, alertou: – Cuidado! Elas não são iguais. Cada um tem uma espécie e seu motivo para tal. Talvez um dia entenderão. Isso é o que deixo a vocês.

8 Imepo: Ar; vento. 9 Wakati: Tempo. 33

Os meninos ficaram intrigados. Aquela noite, dormiram com suas mudas de planta. No dia seguinte, saíram os três para escolher lugares para plantá-las. Majani plantou no terreno atrás de sua casa. Queria ter por perto sua muda e num lugar protegido. Imepo estava com medo da planta não vingar, então, resolveu plantar perto de onde as Mamas tinham suas machambas. Ali sabia que a terra era boa. E Wakati não conseguiu escolher o lugar no primeiro dia. Ficou uma semana olhando cada canto do povoado para escolher um lugar ideal. Depois de sete dias e oito noites ouvindo os palpites de todos que encontrava sobre onde colocar a sua planta, depois de uma semana regando aquela muda que caminhava com ele para lá e para cá, enfim... decidiu. Escolheu um terreno que ficava ao lado das casas, mas que não era a casa de ninguém, onde muitas vezes os meninos se reuniam para conversar ou brincar, e onde também os homens se juntavam e as mulheres sentavam para fazer alguma atividade coletiva. Não era lugar de jovens, nem de velhos, nem de mulheres, nem de homens. Um lugar de todos. Também não era um local muito perto, mas também não muito longe. Independente dos seus motivos, o menino... simplesmente escolheu aquele lugar. E começaram a regar. Todos os dias, os meninos iam regar cada um a sua planta. O pai observava a dedicação dos seus meninos. Observava com atenção, nostalgia e com um gosto de fim nos lábios. Passados dois meses, o pai viu que os meninos ainda estavam dedicados e cuidando de suas plantas, e foi junto com cada filho ver como estavam as tais mudas. Majani mostrava orgulhoso e observava o tipo de folha de sua planta como era diferente. Imepo mostrava empolgado como sua pequena muda estava a se espalhar e crescer rapidamente. E Wakati disse: - Eu dou minha palavra que rego e cuido todos os dias, até converso com ela, mas ela demora a crescer. E o pai apenas aconselhou: - Continuem assim... cada um a seu modo. Depois daquilo, o Seu Tatamunu sentiu que podia partir. E como quem dá a autorização para virem buscá-lo, partiu com os ancestrais para um lugar de onde via tudo, mesmo não estando presente. O tempo foi passando e os meninos crescendo, assim como suas plantas. Imepo foi o primeiro a entender o seu aprendizado deixado pelo pai. Começaram a 34

surgir pequenos tomates de sua plantação que já havia se alastrado. Ele cuidava tão bem que eram tomates aos montes e muitos saborosos. Ele os colhia e estendia no centro da vila para vendê-los. Não tinha um dia que não vendia tudo. Eram tomates maravilhosos e Imepo sabia muito bem fazer uma boa propaganda. Majani foi percebendo que sua planta tinha poderes. Poderes de cuidado, cura, de calma. Ele podia ajudar os outros com isso. Estudou suas ervas. Batia num pilão, passava na pele e curava feridas ou coceiras. Misturava com água quente e surgiam belos chás. Ele ajudou muitas pessoas do povoado. Era tão bom com isso que vinham povos de outros lugares até sua casa procurando ajuda. Wakati continuava cuidando de sua árvore, mas não entendia muito bem o que ela trazia de ensinamento. Primeiro teve paciência e esperou como quem espera. Parecia que esperar estava de certa forma em seu destino. Sentava ao lado da pequena árvore que crescia. E, às vezes, passava tardes, dias e noites ali, esperando. Via as crianças brincarem. Chegavam os velhos fazendo suas reuniões, os homens seus encontros e as mulheres suas atividades coletivas... e Wakati ali, ao pé de sua pequena árvore. Deixavam o menino ficar nos encontros, pois sabiam que estava ali com sua árvore, esperando entender a utilidade dela. - Coitado do garoto. Os irmãos se deram tão bem, já estão encaminhados na vida, e ele aí sempre a esperar. – comentava a vizinhança. - Será que Seu Tatamunu entregou uma muda pensando que era outra? - Sim, deve ter dado a muda errada ao coitado. - Acho que não. Seu Tatamunu era esperto demais para se confundir assim e acabar com o destino do menino. Além de comentar sobre o destino do menino, todos da aldeia também conversavam muito com ele. Era Wakati que sabia onde o filho daquela senhora estava. Era ele que sabia quando aconteceu determinada reunião. Era ele que sabia as decisões tomadas pelos velhos. Ele também que via todos que passavam com frutas e legumes para vender ali próximo. A sua árvore, com o tempo, foi crescendo e criando uma copa muito boa. Não, não deu frutos. Não, não se podia fazer chás com suas folhas, mas sua copa dava uma sombra muito boa e que todos desfrutavam. Como era Wakati que sempre estava por ali, quando qualquer um queriam saber de algo, perguntavam a ele. Se tivessem querendo lembrar de algo que já aconteceu, também perguntavam a ele. Se 35

precisassem de opinião, também conversavam com ele, pois ele já havia visto e ouvido muitas histórias e podia sempre ajudar. Sua opinião era importante. O tempo foi passando, o tronco de sua árvore tornando-se mais espesso, a copa cada vez mais cheia. Seus galhos podiam abrigar os meninos que vinham brincar, podiam apoiar os tecidos das mulheres em seus encontros, podiam fazer sombras às reuniões importantes. E Wakati era cada vez mais procurado por todos. Sua opinião começou a fazer diferença a todos da aldeia. Antes de qualquer decisão, perguntavam a ele. Se ele confirmasse ou desse uma espécie de autorização, realizavam tal ação. Um dia, um menino miúdo veio até ele. Chegou perto de Wakati, que já adulto estava, e disse: - Quero plantar sementes tão bem como o senhor. E foi só então, que Wakati entendeu o ensinamento do seu pai e o homem que havia esperado para se tornar.

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O sol brilhava no clarão do alto céu. As mãos secas do menino puxavam e soltavam a corda em ritmo sincopado. O pano dançava como se nada estivesse acontecendo, como que bailando com vento ao som ritmado da corda, iluminado pelo clarão do sol. Os chinelos eram úmidos e salgados. A testa úmida e com um sal diferenciado. Madeiras velhas, cordas velhas, menino novo. O sol brilhava no clarão do alto céu e o menino suava na madeira sobre o alto mar. Era filho de uma mãe e de um pai. E isso não era para qualquer um. Tinham muitos que eram filhos só de mãe ou só de pai, filhos de avó, filhos de irmão. Mas o fato é que ele era filho de uma mãe e de um pai. Mãe, que em casa lhe ensinou a comer pão e peixe. Pai, que na rua lhe ensinou a ganhar o pão e o peixe. Ele sabia das coisas. Sabia tudo que deveria saber para viver entre o sol quente no alto do céu e a água funda do alto mar. Enquanto estivesse ali, estava bem. Todos os dias acordava com o Sol. O calor era tanto que não era possível dormir depois do despertar da grande estrela que ilumina nossos dias. E não se pode reclamar do Sol e do calor que ele traz, o menino sabia muito bem disso. Vó Mina contava de um tempo em que os homens, não aguentando mais o calor do Sol, se revoltaram. Cruzaram os braços diante do Sol e já não o saldavam. Mas, segundo Vó Mina, quando você se entorta para alguma coisa, o mundo entorta você. E não é que o Sol se recusou? Breu! Não se via nada. As pessoas não se encontravam. Era uma cegueira total. Bastaram três manhãs e três tardes. Na quarta manhã, o Sol despertou mais quente do nunca. O povo cantou, saldou, dançou o Sol, suou o Sol. Desde então, ele desperta parece que cada vez mais quente, para o homem aprender a não ser bobo e ficar se entortando com coisa pouca. Todo dia o Sol vinha quente... quente. Um clarão de cegar a primeira abertura dos olhos pela manhã. O menino levantava, colocava o seu mesmo chinelo cinza e 37

saía. Pedia a guarda da mãe, o incentivo do pai e os olhos firmes e fortes da sua avó Mina, que podia ver mais tudo que todo mundo. Ele saía para fazer o que tinha que fazer, o que sabia fazer, o que devia fazer. Sem pensar duas vezes, agradecia ao Sol e ao calor que esquentava o corpo dele e o deixava vivo; pegava a sua rede e botava no ombro direito; pegava um pedaço de pão do cesto e, comendo, seguia para o mar. Ia buscar peixe. Toda manhã, mas toda mesmo, sem pular umazinha manhã que seja, respeitosamente, toda santa manhã de dias quaisquer, lembrava-se de seu falecido avô. Era como se ele caminhasse ao seu lado pelo caminho até a praia todos os dias, todas as manhãs. O avô, que já não era na vida, não era nem na memória do menino, que nem chegou a conhecê-lo. Mas o garoto sabia das coisas de seu avô. Sabia que gostava da cachaça branca, que usava botinas grandes, mas quando entrava em casa, tirava o sapato. Sabia que abria suas trilhas na mão sem nem usar facão. Sabia que construiu a maior rede dos arredores, que pescava peixe grande junto com pequeno, médio, colorido e preto e branco. Pescava até peixe que chorava e pedia pra voltar para o mar. E ele deixava. Devolvia os peixes chorões para o fundo do alto mar. Na época do seu avô, era fartura de peixarias na mesa de todo mundo. O menino sabia. Sabia também que ele usava aquela corrente de metal com um desenho que já estava apagado. Aquela mesma corrente que o menino hoje tinha no pescoço. Ele a usava desde que passou a se conhecer por gente. Ou até antes disso. Era a herança que seu avô tinha deixado. Vó Mina diz que, numa manhã de Sol forte, ele tirou a corrente, deixou em cima do vaso de flor seca, deu um beijo nela e saiu com sua botina e rede, na mesma trilha do caminho para mar. E de lá... nunca mais voltou. Nunca mais foi visto o velho, nem a rede, nem as botinas, nem o barco. Só sobrou a correntinha que estava no vaso seco. Aquele dia. Dizem que os peixes choraram tanto de desgosto que não sobrou mais uma lágrima para chorar para os próximos pescadores os devolverem à água. Por isso que não se encontra mais peixe chorão. O menino caminhava um bocado, embaixo do Sol, nesse caminho para a praia e, quando lá chegava, pegava seus chinelos na mão e entrava no mar. Não molhava mais do que os pés, tornozelos e joelhos. Era o necessário para alcançar o barco que ficava bem a beira mar. O Sol queimava quente e o vento não era forte. Não haviam fortes ondas. Era necessário remar um bocado para adentrar o mar. Os outros meninos se rendiam ao calor. O Sol queimava tanto a cabeça e os ombros que 38

pulavam de vez em sempre na água para refrescar. Depois voltavam ao barco, até que secassem e mergulhavam de novo, assim, venciam o calor que o Sol botava no mundo. E não eram só os meninos não. Homem feito, já formado e até velho caía no fundo da água, fugindo das armas quentes do Sol de todo dia. Mas o menino não. Não adentrava na água nem que o Sol se aproximasse de sua cabeça, fazendo torradinha de seus cabelos. Não entrava. Não se rendia. Lutava contra o calor do Sol. Molhava- se apenas de seu suor salgado. Não queria mergulhar e encontrar peixe ex-chorão junto com lágrimas derrubadas pelo seu avô. Não se renderia ao Sol. Seu lugar era ali mesmo, entre o alto do céu e o fundo do alto do mar. Sem chão. Sem água. Só ar quente e calor seco. Era maio. E dizem que mês de maio o Sol gosta de caprichar. Além da quentura, ele espanta a chuva. Uma gota doce sequer se arrisca a cair do céu. Dizem as boas línguas, aquelas línguas que tudo explicam, que isso é questão de acordo. Um tratado. No céu, se resolveram assim: pegaram os meses do ano e tiraram dois, um pra cada um. Sobraram dez meses, dos doze que o ano tem. Dos dez, dividiram em dois, tendo cinco pra cada lado. E por assim, decidiram que cinco eram os meses que os separavam. O Sol ficaria com o mês cinco, mês de maio, e a Chuva com o mês onze, mês de novembro. Em mês de maio, a chuva que fique no seu canto com sua umidade, que o Sol vai clarear e brilhar sozinho. E mês de novembro, que ela caia derrubando o mundo, que o Sol só viria para que o povo enxergasse, tímido e no seu canto. Tratado e acordo de poder é assim mesmo, fazem umas contas que dá certo, mas não tem porque e ninguém entende. Só se sabe que é. E acordado está. O que importa é que era mês de maio. Ninguém esperava um pingo, ninguém esperava água doce do céu. Economizavam água de beber, de cozinhar. Dividiam pra não faltar pra ninguém. Mas isso já era de costume. Desde que aqueles arredores existiam e pessoas viviam ali, mês de maio era mês de maio. Sempre assim. E ninguém se entortava quanto a isso, porque não se entorta quando é acordo tratado há milianos. Foi então que uma gota sozinha caiu. Não se sabe se ela se jogou, arriscou ou estava desafiando o trato. Ou poderia ter simplesmente despencado sem querer. Ou desistido de lá e se jogado, como cai ao vento aquele que não quer mais. O fato é que a gota caiu. Era pequena, era sozinha, mas reverberou no mar quando afundou nele. Criou ondas e ondas e ondulações e delações e ações. Todos viram. Todos sentiram. E nem sempre uma novidade atrai as pessoas. Essa novidade reverberou 39

dentro dos pescadores que ali estavam de um jeito duvidoso. Não sabiam o que era aquilo. Não sabiam o que ia acontecer. Não sabiam o que fazer. Então, na dúvida, voltaram pra casa mais cedo. Recolheram suas redes com peixes pescados e remaram de volta à beira. A pescaria não tinha sido ruim. Exceto para o menino que, quando foi recolher sua rede, também para regressar à casa, viu que quase não havia peixe. Como os peixes se encantavam com as redes dos outros e com a dele não? Achou que podia ser por causa do calor. Sua mão seca e a temperatura alta o deixam fraco para puxar a corda da rede rápido, e encantar os peixes a virem junto. Como os outros pulavam vez em sempre na água do mar, se refrescavam e molhavam a mão. Então, puxavam mais rápido, forte e encantadoramente os peixes para dentro das madeiras do barco. Ou seria algo que acontecia lá embaixo? Pensou que os outros, quando mergulhavam no fundo do alto mar, podiam convencer os peixes com boa lábia a grudar em sua rede, e depois era só subir e puxar a corda. Talvez por isso mergulhassem tantas vezes. Enquanto pensava parado, os outros pescadores partiam. E por essas de não ter peixe pra levar pra casa, e outras que ele não sabia explicar, ele resolveu ficar pra ver no que aquilo ia dar. Aliás, não tinha medo da gota. Queria ele que ela caísse sobre sua cabeça para refrescar o Sol forte. Até tinha admiração por ela. Afinal, ela conseguiu mergulhar pra dentro do ar. Ele mesmo não conseguiria. Não mergulhava para dentro do fundo do mar, quanto mais pular de lá de cima do céu. E para o azar da gota, além de passar por todo o ar, foi cair justo no mar. Coitada, pensava, teve que mergulhar na água salgada de peixes ex-chorões. Água triste. Pelo que parece, pelo desenrolar da situação, a gota, corajosa ou não, acabou incentivando outras a virem com ela. Não se sabe se queriam resgatá-la ou se estavam de acordo com sua atitude. Mas o que aconteceu foi que o céu choveu. O céu de maio choveu. E não foi pouco. De uma a uma, começaram a cair gotas e mais gotas. Gotas juntas, gotas sozinhas, gotinhas e gotas enormes. Caíam todas. O menino sorria, timidamente. Ele sabia que aquilo não era certo, não era mês de chover, ele deveria aguentar o calor, mas algo dentro dele parecia adorar o que estava acontecendo, parecia refrescar-se por fora e por dentro também. Ele estava ali no seu lugar. No meio do alto do céu e do fundo do alto mar. Onde sabia muito bem estar. Mas a chuva engrossava. Chegava a parecer que não se sabia mais onde acabava água doce e onde começava água salgada. Este meio do alto e fundo confundiam-se. O lugar do menino estava nebuloso. Os peixes, que 40

desde que se conhecem por peixes, sabem que mês de maio não há chuva. Começaram a confundir-se. Saltavam do mar como que pudessem nadar na água da chuva. Nadavam para fora aos montes. O menino, que tinha que pegar peixe, pegava. Pegava peixe com as mãos. Peixes vinham nadar no seu barco. Esticava a rede e os peixes se encantavam por ela, sem ele nem afundá-la. Aquilo era fácil demais. O Sol, em meio a toda essa confusão chuvosa, começou a queimar mais forte. Vó Mina dizia que Sol que é Sol, ou queima de amor ou de raiva. Com certeza era de raiva, pensou o menino. A luz do dia começou a ficar tão forte que o menino já não conseguia ver direito os arredores. Os peixes continuavam a nadar para fora do mar. O menino não conseguia mais ver o barco. A luz do sol estava cegando as vistas. Não conseguia mais desviar dos peixes que pulavam sem parar. Estava trombando com peixes ex-chorões direto. Não sabia mais como sair dali. Desesperou-se, e chorou. Chorou por dúvida. Chorou para molhar os olhos secos e cegos. Chorou para tentar resolver as coisas e acalmar-se. Chorou para se misturar às águas doces e salgadas. E foi o que aconteceu. Misturou-se. Água doce, água salgada, choro e o menino no meio. Já não estava no barco. Mergulhava nas águas. Já não via nada e se batia em meio a tanta água. Chorava e nadava dentro e fora do mar. Em meio à confusão, a chuva começou a diminuir e o menino alcançou uma madeira. Era seu barco. Nadou para cima dele e deitou-se. Respirou fundo. As coisas estavam se ajeitando, as gotas paravam de cair e o Sol queimava cada vez mais forte, expulsando a chuva e fazendo as gotas voltarem ao seu lugar. Em cima do barco, o menino todo molhado de água salgada, água doce e choro. Quando se deu conta, estava deitado sobre os peixes. Haviam muitos dentro do barco. Um mar de peixes ali para ele. Começou a recolher um a um, colocando em suas latas pra levar pra casa. Tinha peixe de tudo quanto é jeito: peixe pequeno, grande, médio, colorido e preto e branco. Alguns peixes olhavam para ele e parecia que ainda tinham muita vida pra nadar. O menino entendia, porque ele também sentia que tinha muita vida pra pescar, então, os devolvia ao mar. Tinha tanto peixe que uns ou outros não iam fazer diferença. Remou de volta à beira e desceu do barco com um punhado grande de peixes. Mas onde estava seu chinelo? Havia perdido no fundo do alto do mar. Sem problemas, pensou, e caminhou aos pés descalços até sua casa. Quando chegou com peixes que mal conseguia carregar, o povo ficou em festa. A mãe guardou os peixes, o pai incentivou a pescaria e a Vó olhava tudo com muito orgulho. Uma festa foi feita em 41

comemoração. Serviram cachaça branca à vontade. Beberam até o Sol cansar de brilhar. Na manhã seguinte, ao calor do Sol, levantou-se. Notou que seus pés estavam machucados por ter voltado descalço pelo caminho do mar. Pegou uma botina velha de seu pai, apanhou a rede e seguiu. Voltou a pescar e não tinha mais problemas em mergulhar no fundo do mar para se refrescar. Pescava tanto peixe que mal conseguia levar todos para casa. Tinha até que devolver alguns. Eita, peixes chorões! – pensava ele. Era sempre uma fartura na mesa dos arredores. Um dia, uma manhã qualquer, enquanto caminhava pela trilha para o mar com sua grande rede e botinas grandes, lembrou-se de seu avô. Aquele que não vivia mais na vida, nem existia na memória do menino, mas que ele sabia muito bem quem era. Percebeu que há tempos não caminhava com ele nesse caminho para o mar. Olhou seu colar gasto. Sorriu e continuou caminhando. Naquele mês de maio as coisas mudaram. Ou simplesmente as coisas voltaram a ser o que deviam ser.

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Nasci num N’Polo10. Demorei alguns dias para ser talhada. Antes era apenas um pedaço de madeira N’tene11, mas fui recebendo forma. Primeiramente, o arredondar da cabeça. Depois, aquelas mãos que me fizeram, talharam o local dos meus olhos, nariz e boca. Ainda sem definições, mas sabia onde ficariam. Dormi assim aquela noite, e foi só no dia seguinte que se definiram meus olhos. Minha boca tomou forma e até ganhei esboço de dentes. Uma leve elevação para as bochechas. Um nariz feito e minha orelha também surgiram. Mais um dia se passou e eu tinha detalhes como pálpebras, dentes definidos, passei a ter cabelos. E as mãos que me fizeram eram atentas e caprichosas, realizou todo meu rosto enquanto talhava também meu interior e lixava minha superfície. Somente mais uma noite e, no dia seguinte, ganhei cor. Estava finalizada. Pronta para ser usada na próxima dança que aconteceria no próximo sábado. Dois dias se passaram e estava eu dançando minha primeira dança. Servindo de casa para meu primeiro humano e para o meu primeiro espírito. Eu, símbolo daquela tradição. Depois daquele dia, dancei muito ainda. Muitos espíritos vieram me visitar. Muitos homens vieram me vestir. Ouvi muitos toques de tambores e muitos cantos. Ouvi muitas conversas e segredos na casa secreta masculina onde ficava guardada. Certo dia, tombei no chão. Um jovem desastrado passou correndo por lá e me derrubou. Lasquei e fiz uma rachadura. Não era nada simples, mas chamaram um homem para vir a ter comigo. Voltei ao encontro daquelas mãos que me fizeram. As mesmas mãos já muito mais velhas. Rugosas e sem a mesma precisão. Colou-me.

10 N’polo: Local dos homens Maconde. Onde confeccionam e guardam as máscaras de Mapiko em segredo. 11 N’tene: Madeira leve utilizada para confeccionar máscaras de Mapiko.

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Reformou-me. Repintou-me. E eu estava lá, pronta para uso novamente. Um pouco mais frágil, não posso negar, mas pronta para uma próxima dança. Demorou um tempo para me escolherem para dançar. Dancei mais algumas poucas vezes. Cada dia ia ficando mais difícil me pegarem para dançar. Cada dia mais esquecida naquela casa de homens. Até um dia que chegou um homem falando uma língua estranha. Estava num canto, em cima de um banco. Dali, avistava somente ele e um dos meus homens. Apenas os dois numa tarde vazia. Ele me pegou e me colocou dentro de um saco de tecido, junto com outras semelhantes a mim, porém, um pouco diferentes. Estava eu junto com outras casas de outras tradições e outros espíritos ancestrais. Eu pude ver toda conversa e negociação acontecendo por entre as tramas do tecido do saco onde me meteram. - Mas isso aqui não pode vender. É tradição. É sério. Você sabe que eu devia enterrar ela, né? Não podíamos mais usar. - Sim, eu sei. Mas eu vou viajar para longe. Não vou vender ela aqui. Estou pagando um bom dinheiro. Vocês já não dançam com ela. Estou com outras aqui que estão na mesma situação. Outras que não são dançadas. Vou para muito longe. Não tem problema. Não falha nada. Então, seguimos. Eu e as outras com o homem, dentro do saco de tecido. Meteram-nos dentro de uma mala. Viajamos para longe. Foram horas de viagem numa caixa pelo céu. Chegamos em um país onde se falava outra língua ainda. Tiraram-me da mala e me deram a um homem. Ficamos, eu e as outras, na casa da família desse homem. Sua mulher me tratou muito bem. Com um tecido me limpou, arrumou algumas coisas que já estavam desajustadas em mim. Mas foram poucos dias com essa família. Logo, colocaram-nos sobre um tecido no chão de um local quente onde passavam muitas pessoas. Às vezes, pessoas falando outras línguas, pessoas de outras cores. Depois de muito tempo, ficando guardadas em um saco durante a noite e expostas ao sol num chão quente durante o dia, um homem me viu. Era um senhor peculiar, de uma cor diferente com um sotaque estranho. Ele me olhou com outros olhos. Olhou todas as outras e perguntou para o homem de onde eu vinha. O homem respondeu para o senhor o nome de um lugar que eu nunca tinha ouvido falar. Definitivamente, ele não sabia de onde eu vinha. Não sabia a minha importância na tradição. Não sabia que recebia espíritos ancestrais de meu povo Makonde. Não sabia nem qual era meu povo. O homem falou mentiras 44

sobre mim e eu queria poder responder ao homem e contar mais sobre meu povo, minha dança, minha terra e meus ancestrais, que às vezes habitavam em mim. Mesmo sem saber a verdade, ele me pegou em suas mãos. Entregou dinheiro ao homem, me meteu num saco e me levou com ele. No dia seguinte, me meteu em uma mala novamente e, mais uma vez, fiz uma viagem na caixa de ferro pelo céu. Viagem longa. Ao chegar em terras, eu ouvia lá de dentro mais uma língua diferente. Cheguei à casa de mais uma família. Desta vez, foi o próprio homem que me limpou e cuidou de mim, mas não me colocou em um tecido num chão quente. Guardou-me dentro de um armário com porta de vidro. Dali, vi muita coisa acontecendo com essa família. Vi muitas visitas. Todas as visitas olhavam para mim, perguntavam de onde vinha. O homem buscava em livros e descobriu algumas verdades de mim. Ele sabia mais do que o homem anterior que me deixava no tecido. Certo dia fui levada. Dessa vez, colocaram-me em uma caixa muito especial, quase não senti balanços da viagem. Viajei no escuro sem saber para onde estava indo. Cheguei em um local grande e iluminado. Eu e outras esculturas e utensílios de minha terra, de minha cultura. Estávamos ali, numa prateleira cercada de vidros. Ao lado, uma placa com verdades e meias verdades sobre mim. E, acima, outra placa que dizia “Arte Primitiva”. Naquela grande sala, muitas pessoas passavam, nos olhavam, comentavam sobre nós e seguiam seu caminho. O local era frio, e o olhar das pessoas também. Eu pensei que nunca mais viriam o homem e sua família, até o dia em que me colocaram na mesma e ajeitada caixa, e me levaram de volta à casa dele. Voltei ao armário da sala. E ali continuei por tempos. Vi seus filhos nascerem, crescerem, saírem e voltarem. Acompanhei aquela família por anos. Até o dia em que aquele homem saiu e nunca mais voltou. Depois disso, nada foi igual. Tiraram-me do armário com porta de vidro e me colocaram em uma caixa em algum outro armário. Fiquei por tempos naquele lugar escuro, sem saber o que aconteceria comigo. Até que um dia, aquela criança que eu havia acompanhado crescer, me tirou de lá. Já estava adulto. Olhou para mim e me juntou em outra caixa com mais outros objetos velhos. Meteram-me em um outro transporte, desta vez por terra. Chegamos a um local com cheiro de velho e úmido. Lá havia um senhor velho com barba branca. O jovem adulto entregou toda a caixa ao velho e recebeu algum 45

dinheiro em troca. O velho de barba branca retirou cada um dos objetos da caixa e colocou em prateleiras daquele lugar úmido e empoeirado. Eu nunca havia visto tantos objetos velhos juntos. Bicicletas, chaleiras, telefones, discos, patos de borrachas, cadeiras luxuosas, bonecas, panelas... Desde então, é lá onde habito. Meu novo lar. Ferro-velho doce lar. Rua Corifeu de Azevedo Marques, número 185.

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Desço os nove lances de escadas. Chego à portaria. - Auxene12! - cumprimento os guardas. Abro o portão de ferro que fica destrancado e saio. Subo a rua e logo que viro à direita, encontro Eduardo. Ele que nasceu em Manjacaze, em Gaza. Filho de um chefe tradicional, Mondlane. Estudou muito e tinha boas e revolucionárias ideias. Esperamos o chapa13 juntos. O sol já nasceu, mas ainda não esquentou o asfalto e concreto da cidade de Maputo. Ainda é cedo. Chega o chapa cheio. A porta se abre. Entramos. Perco-me entre mão, sacolas, panos, cabelos, braços, cotovelos, pernas, pés. Onde coloco meus pés? Paragem. Desço. Subo. Ao som da Marrabenta14 que toca no rádio, mergulho novamente no emaranhado de corpos. Curvas, buracos, lombada, curva. - PARAGEM! Desço do chapa e me despeço de Eduardo Modlane, primeiro presidente da Frente de Libertação de Moçambique, enquanto atravesso as quatro faixas da sua grande avenida. Na esquina, à esquerda, encontro Amílcar Cabral, o guineense que sempre tem bons ensinamentos a dar. Precursor da libertação de Guiné Bissau, ensina-me: "O nosso povo africano sabe muito bem que a serpente pode mudar de pele, mas é sempre uma serpente15”. Continuo um pouco mais e me deparo com Vladimir Lenine. Embebidos no comunismo russo, que influenciou muitos países africanos em suas libertações, descemos pelas ruas em direção à baixa da cidade. Na esquina, lembramos das medidas tomadas na altura da independência, pelo presidente de Moçambique

12 Auxene e Lichile significam “Bom dia” (pergunta e resposta) em Changana, língua falada no sul de Moçambique. 13 Chapa: Transporte público. 14 Marrabenta: Música-dança moçambicana muito popular. 15 Fala de Almicar Cabral, em Villen, Patrícia (2013). Fonte: Amílcar Cabral e a Crítica ao Colonialismo, 1ª edição, São Paulo: Expressão Popular, 2013. 47

Samora Marchel, como a Nacionalização em 24 de julho de 1975, quando o governo assumiu a gestão das casas e cada moçambicano passou a ter direito a uma casa. E bem ali, na esquina onde fica o instituto industrial 1° de maio, matabichamos16. - Auxene, Mama. - Lichile. - Um pão e cinco badjias17, por favor. - Pode escolher... - Estou a pedir bacela18. - Epa! - ela ri e coloca uma badjia a mais no pão. Mais alguns quarteirões sobre a 24 de julho, e sigo com os ideais do grande influenciador alemão Karl Marx: “Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas”. E assim, chego no Mercado do Povo. Encontro as Mamas a cozinhar Matapa com as folhas da mandioca, Nhangana com as folhas do feijão, Frango à Zambezia, Caril de Amendoim e muita Xima19. Sinto bem o cheiro da comida e me animo para seguir. Encontro com o vietnamita Ho Chi Min, "aquele que ilumina”20, e faço uma espécie de reverência lembrando de todos os seus feitos. “As raízes da nação estão nas pessoas”. Logo cruzo o Museu de Arte, a Assema (Associação de Escultores Macondes). Viro à esquerda e me deparo com o mar de pessoas. São muitos moçambicanos na rua. Nossa Guerra Popular. Muitas vendas, muitas barracas na rua. Por lá encontro de tudo: camisetas, pilhas, calças, capulanas, sapatos, cabos para celulares, lanternas... Andando, acompanhado das falas de todo um povo, dos gritos, dos cantos, das vendas, da luta, cruzo com uma mulher onde devo parar na esquina para relembrar seus atos e sua importância. Ela, Josina Marchel, que não só lutou pela independência de Moçambique, mas também pelo direito das mulheres participarem de tal luta e poderem ter lugar na política. Jovem insistente e resistente.

16 Matabichar: Tomar o café da manhã; desjejum. 17 Badjias: Salgadinhos fritos, feitos com farinha de feijão Nhemba. São tradicionalmente da culinária indiana, mas populares em Moçambique, onde são normalmente vendidas na rua juntamente com pão, para servirem como “matabicho” ou desjejum. 18 Bacela: Brinde quando se compra algo. 19 Matapa, Nhangana, Frango à Zambezia e Xima são pratos tipicamente moçambicanos. 20 Significado do nome Ho Chi Min. 48

Tão jovem, mas com muita força e luta, por isso não cansa de ser homenageada, ou femenageada, se preferir. São capulanas com seu rosto, o dia da mulher moçambicana em 7 de abril, em nome dela, nome de rua no Rio de Janeiro, nome de um hospital em Angola e aqui também encontro com ela antes de seguir meu caminho. E, enfim, chegamos na baixa da cidade. Atravesso a praça dos trabalhadores. Ali compro uma fruta na barraca das mamas. Cruzamos a rua do Bagamoyo, nome dado em homenagem a cidade na Tanzânia. É a antiga Rua Araújo, zona quente do período colonial renomeada. Ainda conversando sobre o direito das mulheres com Josina Marchel, nos deparamos com essa antiga fronteira colonial, onde homens brancos encontravam com mulheres negras embebidos de abusos, machismos e dominação dos nossos corpos, terras e muito mais. Passo pela rua e ecoam dentro de mim versos do escritor moçambicano José Craverinha: “Mas tu! Tu minha doce Albertina assídua nos snack-bares. Neste mundo os encervejados filhos de tuas tarefas com um milhão de pais e padrastos incógnitos mas cedo ou mais tarde nós todos juntos havemos de preencher as certidões de nascimento com os verdadeiros apelidos escritos na correcta caligrafia dos irrefutáveis argumentos Moçambicanos desengatilhados no norte ao sul e do sul ao norte fumegando em prol das Albertinas.21” Então, seguindo a frente, damos de cara com a fortaleza da cidade. Altos muros, grandes canhões, que protegiam a colônia da entrada pelas águas. E lá adiante, vejo as águas do rio Umbuluzi, que seguem para o Grande Índico. Águas que abraçam nossa cidade Maputo. Onde a água encontra a terra. Terra cheia de histórias. Histórias contadas por alguéns, escritas em suas ruas e estradas. Terra com os nomes de tantos que acabam por caminhar conosco todos os dias.

21 Poema “Doce Albertina das Cervejarias” (CRAVEIRINHA, 1960). 49

Mapa da cidade de Maputo, com trajeto percorrido no conto, passando pela Avenida Eduardo Modlane, Avenida Amílcar Cabral, Avenida Vladimir Lenine, Avenida 24 de julho, Avenida Karl Marx, pelo Mercado do Povo, Rua Ho Chi Min, pelo Museu de Arte, pela Assema (Associação de Escultores Macondes), pela Avenida Guerra Popular, Rua Josina Marchel, Rua do Bagamoyo, pela Fortaleza de Maputo, chegando ao rio Umbeluzi, que deságua no Oceano Índico.22

22 Fonte: Google Maps. 50

Eu aqui estou. Desde que me conheço por árvore, sempre aqui estive. Nasci e cresci aqui durante centenas de anos. Minhas raízes foram descobrindo outras profundidades, mas aqui estavam. Meu tronco crescendo, se ramificando, acompanhando todos que por aqui passaram, tocaram, encostaram. Minhas folhas passam para renovar: surgem, ficam por um tempo, atualizam as ideias, e depois, partem para dar espaço às novas. Eu aqui. Vendo gerações e gerações de várias outras espécies. Eu continuo aqui. Desde que me conheço como árvore, baobá sou aqui. Nessa mesma e diferente terra. Mesma, pois estou exatamente no mesmo lugar, nunca daqui saí. Diferente, pois as terras mudam. Mudam de cor, mudam de tempo, mudam de texturas e contextos. Mudam seus habitantes, mudam os passos que caminham por ela, mudam as pegadas que recebem, mudam os passos de danças que batem sobre as terras. Terras. Batidas com danças, molhadas de lágrimas, regados com sangue, mexidas com caminhar de muitos passos e diferentes pegadas. Muda-se a terra, mas fico na mesma. Eu aqui, baobá. Lembro-me bem quando era mais jovem. Curioso de tudo, ficava a pedir que as folhas calassem ao vento para que eu escutasse as histórias que as famílias contavam. Uma família por quem tenho carinho, pois acompanhei tudo. Era lugar de reuniões familiares, de encontros. Participei das novidades, dos medos e das decisões. Fui ensinado também sobre toda história e costumes que deveriam aprender. Decidimos o que íamos fazer, como íamos atacar e proteger terras, como caçar, como usar uma lança, como construir um lar, como preparar um alimento. Aprendi tudo sobre os homens em seus encontros. Sei também os segredos das mulheres. Sei tudo sobre o que as mais velhas passam para as mais novas, pois tudo 51

aconteceu do meu ladinho, próximo ao meu tronco. Eu estava em todas as reuniões. E minha função? Ser sombra e som. Proteger todos do sol e devolver aos ouvidos das pessoas as batidas de tambores das festas que aconteciam ao meu pé. Bons tempos aqueles... Vi aquela família crescer enquanto eu crescia também. Aumentávamos, eu e eles. Faziam grandes festas próximo a mim. Às vezes, se afastavam para fazer algo perto do fogo que armavam. Eu achava bom, pois sempre tive um pouco de medo do fogo. Mantinha-nos distantes, cuidavam de mim. Ouvi muitos tambores, muitos cantos. Vi muita dança. Vi bebês nascerem. Vi brigas e desavenças. Vi casais se apaixonarem. Vi muitos doentes também. Às vezes, pegavam minhas folhas ou davam-lhes algo do meu tronco para passar em adoentados. Quando maior, mas jovem ainda, as coisas foram mudando. Aqueles com quem convivi minha infância inteira começaram a partir. Alguns pude ver falecer aos meus pés, outros preparavam-se com armas de fogo para partir. Acima da minha copa, vi muitas bombas explodirem ao meu redor. Surgiram aves feitas por homens que voavam nos céus e de lá também atiravam balas que nos atingiam, a mim e àqueles que entendia por família, por mais diferentes que pudéssemos ser. Sim, eu era diferente. Percebi cada vez mais quem eu era. Apesar de acompanhá-los durante quase um século, saber canções, entender seus costumes e tradições. Eu não era um deles. Não era da família. Era um baobá, uma árvore. Todos podiam sair, fugir, lutar, mas eu não. Eu ficaria com minhas raízes na mesma e diferente terra. Foram tempos estranhos. Assim, entrei na vida adulta. Sozinho. Às vezes ouvindo bombas. Às vezes vendo as tais aves humanas passando. Mas, sozinho. Começaram a sumir os humanos. E a solidão me fez entender e me conectar com outras coisas. Estava eu cercado de pequenas plantas espinhosas. Percebia o sol indo e vindo a cada dia, dando espaço à lua que não gostava de mesmice e mudava de cara a cada semana que passava. Percebi que as folhas vinham e iam e os dias não eram todos iguais. Existiam dias mais quentes, e outros mais frios. Eu gostava da companhia das folhas, elas zumbiam com os ventos, às vezes cantavam com eles, outras ralhavam gritando bem alto. Também me agradava a companhia das flores brancas e dos frutos verdes e aveludados, eles tinham um cheiro especial, mas 52

todos eram passageiros. Percebi que, por mais que eu quisesse, minhas folhas só tornavam a aparecer nas épocas de chuva, e sempre caíam quando o tempo esfriava um pouco. Quando as chuvas iam embora, além das folhas, outros animais também migravam para longe de mim, e a solidão aumentava. Nesses tempos, sozinho, pude perceber meu interior e não me preocupava quando não chovia, pois eu guardava água, muita água. Depois de anos, as bombas cessaram. Aquelas aves humanas também não tornaram a aparecer. E com o passar de tempos, comecei a avistar alguns humanos. Alguns começaram a fazer morada próximo a mim. Lá de cima, eu via outros fazendo morada um pouco mais distante. E cada vez chegavam mais. Surgiam mais e mais humanos... As cores, as vozes, as conversas, os cantos, as pegadas nas terras voltaram a surgir. Aquilo trouxe um frescor na minha vida. Uma nostalgia também. O colorido das vogais e consoantes agora eram diferentes. Ouvia aos arredores uma língua outra. Caminhavam bem próximo a mim. Às vezes apoiavam, encostavam, e até escreviam seus nomes ou faziam desenhos em mim. Sim, nossa relação não era a mesma. Acho que nunca teria a mesma relação que tive com aqueles de antes, mas fomos construindo nossa relação. Também voltei a ser útil com minha sombra. Pegavam também meus frutos e retiravam folhas para tratar doentes ou passar na pele. À sombra da minha copa, havia muitas barracas. Ali era um lugar de comércios, de trocas. Entendi o valor do dinheiro e a importância do verbo TER. Vendiam de tudo: frutas, legumes, roupas, coisas. Era uma delícia voltar a ver o cotidiano dos seres humanos. As conversas, as negociações. Gritos daqui, canções dali. E cada vez aquele local ficava mais e mais movimentado. Não sei de onde surgiam tantos humanos. Lá de cima, eu via tanta terra para se ocupar, mas todos queriam ficar ali, pertinho de mim. Traziam movimento para as terras de minhas raízes, histórias para meu tronco, e animação para as folhas de minha copa. Entretanto, aquilo foi tomando outras proporções. Começaram a construir moradas grandes. Cobriram partes das terras com asfalto. Eu já não podia escutar os passos dos caminhos pelas minhas raízes, que ficavam cada vez mais esquecidas lá embaixo. Hoje, escuto gritos, falações e sons do que chamam automóveis, que fazem com que os humanos andem bem rapidamente e não deixem rastros de pegadas no chão. 53

Agora já não são todos que vem até mim. Construíram uma grande cerca ao meu redor. Talvez por me darem muito valor ou por não saberem o quão valioso sou. Agora somente alguns entram pela cerca, depois de um acordo com a família que começou a cuidar das terras onde estou. Aquela mesma terra, mas agora diferente, pois tem um dono. Vire e mexe, vem pessoas de todos os jeitos encostar e tocar em mim. Sentam aos meus pés. Abraçam-me. Pessoas de todas as espécies e de todas as cores, falando línguas diversas. Normalmente ficam um tempo, fotografam, e vão embora. Ainda estou me adaptando a esse novo mundo. Mas também sei que é passageiro. As coisas vão se transformar. Não sei o que acontecerá com essas terras, mas eu continuarei aqui, nela, mesma e diferente. Espero eu.

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Nasce mais um santo dia qualquer. Os pássaros começam a cantar, os galos e galinhas conversam do outro lado da rua, e Mama Lutavi23 levanta as suas pálpebras dando bom dia para mais um dia. Levanta-se da cama e vai logo matabixar24 para começar o dia de trabalho. “O melhor horário para trabalhar na machamba25 é pela manhã”, sempre lhe ensinou sua mãe. Sua mãe havia sempre vivido com ela, e agora, como não estava mais entre os vivos, seu corpo habitava as terras ao redor da grande mangueira, ao fundo de sua casa. Pronta para o trabalho logo cedo, Mama Lutavi vai para sua machamba. Atravessa a estreita rua e, bem à frente, está seu pequeno e fértil pedaço de terra para trabalhar. Ao lado, as terras e casas de seus familiares. Cumprimentam-se e se colocam todos a trabalhar. Ao descansarem, conversam um pouco sobre a vida, sobre os filhos, sobre os netos. Mama Lutavi tem um único filho homem, já moço, já criado. O ano passado havia ido trabalhar fora. Precisavam de homens fortes para um tal trabalho em minas, trabalhar embaixo da terra não é para qualquer homem. É preciso força e coragem para ir trabalhar embaixo da terra de outros mortos. O filho de Mama Lutavi havia ido, era um grande homem corajoso que só ele, e ela orgulhava-se dele. Não havia um dia que não falava de seu filho ou o citava em qualquer ocasião. “Lidengo26 meu filho sim é corajoso”, “Se Lidengo estivesse aqui nem precisávamos perder tempo, ele forte do jeito que é, faria tudo rapidinho”, “Lidengo quando vivia comigo buscava água quando eu precisava”, “Lidengo isso...”, “Lidengo aquilo...”, as

23 Lutavi: Ramo. 24 Matabixar: Tomar café da manhã; Desjejum. 25 Machamba: Pedaço de terra utilizado para plantio. 26 Lidengo: Trabalho.

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pessoas estavam acostumadas e reconheciam no sorriso daquela velha mulher o orgulho e a saudade do filho que partira. Quando o sol ficava bravo e ralhava com os homens na metade do dia, todos iam se abrigar nos quintais de alguém. Às vezes na casa de Mama Lutavi, outras na casa de seu irmão, por vezes na de sua prima. Iam revezando os quintais onde sentavam embaixo da sombra de árvores e comiam, dando um suspiro no trabalho que logo regressaria. Quando o dia findava e o vento da noite começava a correr pelas ruas, Mama Lutavi regressava ao seu lar, onde descansava. Volta e meia saía para conversar com alguém. Meia e volta apareciam na sua casa para conversar. Falavam sobre tudo e todos, mais sobre todos do que tudo. E assim, mais um santo dia qualquer acabava, dando espaço para outro nascer e assim por diante… Certo dia, um santo dia nasceu, mas não era qualquer, talvez não fosse santo também. Mama Lutavi abriu as pálpebras para o dia como se fosse qualquer outro, os pássaros cantavam como em todas as manhãs. Ela matabixou sem saber o que a esperava quando abrisse a porta. Ao sair pela porta, se deparou com algo bem em frente à sua casa. Cortando a estreita rua de terra havia uma enorme cerca. Uma cerca intranspassável, uma cerca limitadora. Algo que a impedia de dar três passos e chegar a sua machamba. Algo que a impedia de ir comer com sua família, algo que a impedia de receber visitas. “Mas o que significa isso?”, pensou Mama Lutavi, sem entender por que suas terras estavam divididas. Aquela terra onde tinha sua casa havia sido dada no momento de seu matrimônio. Seu pai, Liduva27, separou a terra, seu marido, Cassimo, construiu a casa junto com a ajuda do seu irmão e de dois primos. Construíram-na próxima a machamba para facilitar, bem próximo a família, como de costume. Quando seu filho Lidengo tinha onze anos, o Cassimo, seu marido, faleceu. Foi uma morte casual, apesar de muito jovem. Simplesmente, um certo dia, as pálpebras não deram bom dia ao sol. O corpo dele estava junto ao de sua mãe, de seu pai, e de outros ancestrais que existiam apenas em terra. Todos habitavam as terras ao fundo da casa de Mama Lutavi. Seu marido estava ali, mas seus irmãos estavam do lado de lá, sua machamba

27 Liduva: Sol, dia. 56

estava do lado de lá, seus mortos aqui, mas seus vivos estavam do lado de lá. O que ela fazia viva aqui sozinha? Eis que chega um homem, um militar trazendo notícias. “Limanyidyo28!”, vem ele anunciando. Mama Lutavi foi a primeira a sair e se aproximar do homem que estava do lado de cá da cerca, mas falava para todos do outro lado também. Todos os familiares do lado de lá vieram correndo também saber quais notícias aquele sujeito trazia. O sujeito explicou em uma só respiração, em alto e bom tom, o porque da cerca: “É de conhecimento de todos que estamos aqui diante de uma mwisho29, uma fronteira que divide dois países que sempre foram irmãos. Mas, irmandades e acordos políticos entre países são desfeitos como desfazemos certos nós... essa cerca delimita a fronteira, mwisho. Mwisho deve ser respeitada, não podendo nada... nada transitar de um lado para o outro”. Sem querer ouvir discussões e questionamentos que estavam nascendo aos seus ouvidos, dos murmúrios e dúvidas das pessoas que ouviram o Limanyidyo, ele finalizou dizendo: “Vocês não querem ser os culpados de causar uma guerra e conflitos ainda maiores, temos cidadãos que ainda precisam regressar ao nosso país, não vamos complicar as coisas”, e calou-se. O homem virou-se, parecia preparar-se para partir, mas aquele dia o sol estava queimando de indignação logo pela manhã, ralhava seus raios entre os homens na terra e, diante do extremo calor, o homem da notícia voltou-se a Mama Lutavi e pediu um pouco d’água. Os murmúrios que haviam começado secaram em um só instante. Todos olhavam os olhos de Mama Lutavi e aguardavam sua resposta. Ela sorriu, fez um sim com a cabeça e pediu ao mensageiro que a acompanhasse. Entrou em casa e o convidou a entrar. E assim que entraram em casa, o sol começou a ralhar mais forte de indignação, e os murmúrios cresceram de forma devastadora. Os murmúrios não compreendiam como Mama Lutavi aceitara essa nova cerca, porque tratara bem o senhor que havia trazido essa divisão imposta na sua família, a separando de todos os outros e separando os outros de seus mortos também. Em casa, Mama Lutavi permanecia em silêncio, mas agia com hospitalidade. Indicou onde sentar, ofereceu água e algo para comer. Ele, militar, ainda muito sério, sentou-se, bebeu e comeu. Olhou ao redor a casa e fitou bem Mama Lutavi, que o

28 Limanyidyo: Anúncio, notícia. 29 Mwisho: Fronteira.

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aguardava atentamente ao seu lado, com olhar de submissão. Então, o mensageiro militar levantou-se, pediu com os olhos que Mama Lutavi abrisse a porta e saiu, partindo para o oeste. Quando Mama Lutavi saiu de casa, encaminhou-se para a cerca onde todos a esperavam, ansiosos. Uma cerca, uma simples cerca? Não. Um acordo. Um acordo que foi feito sem consultarem Mama Lutavi e sua família. Uma cerca-acordo entre dois homens que nunca nem se quer conheceram Mama Lutavi e sua família, mas que se intrometeram nos quintais de suas casas. Uma cerca. Mama Lutavi ficou em silêncio, ouvindo lamentos, revoltas, dúvidas, olhares repressivos e ideias de ação. Quando o caos começava a se instaurar e o sol já havia subido mais, Limanyilo30, irmão de Mama Lutavi, se pronunciou. Calmamente, pediu para que as ideias fossem dadas e discutidas, uma a uma. - Podemos derrubar isso, juntamos os homens aqui presentes e destruímos essa cerca como manadas de elefantes enfurecidos. - Mas a cerca é muito forte e alta. - Sim a cerca é alta, mas podemos tentar trazer Mama Lutavi para o lado de cá, a subindo. - Todo caso, nossos mortos ficariam do lado de lá. - Sim, mas resolvemos o problema de Mama Lutavi. - Uma possibilidade. – disse Limanyilo – Alguma outra ideia? - Podemos esperar e ver quando eles vêm retirar essa cerca, às vezes os acordos são desfeitos com a mesma facilidade com que são feitos. Enquanto isso, podemos passar alimentos para Mama Lutavi, já que as machambas ficaram do lado de cá. - Mas não deve atravessar a fronteira sem autorização. “Nada”, ele disse. Nem o que produzimos aqui pode ser enviado para o lado de lá sem autorização. Tenho medo que eles descubram e nos castiguem. - Não sei do que eles são capazes. - Calma – disse Limanyilo. - Vamos nos acalmar. Lutavi, conversou com ele algo dentro de casa? - Não – disse Mama Lutavi.

30 Limanyilo: Conhecimento; sabedoria. 58

- Vamos deixar como está. Melhor não fazermos nada. Isso pode ser pior para nós. - Sim. Ela sabia de tudo. Por que convidou ele para entrar? Está no acordo também? - Parem com isso. Vamos nos ajudar. - Não vamos fazer nada – disse Mama Lutavi, em alto e bom tom. E todos se calaram para escutá-la. - Nada será feito. Não pediram nossa opinião para firmar um acordo e fincar uma cerca. Não querem saber o que achamos e deixamos de achar. Vocês escutaram bem o homem... temos homens que não estão aqui e pretendem voltar. Não queremos piorar as coisas. A volta deles depende de tais acordos que não nos cabem. Sigam a vida de vocês. Eu ficarei aqui na minha casa cuidando de nossos mortos, enquanto aguardo meu filho Lidengo. Enquanto ele não regressar, nada será feito. Ela voltou à casa e lá ficou para o seu sempre...

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Ela tinha olhos curiosos. Eram os olhos mais curiosos de toda aldeia. Desde o momento quando se abriram pela primeira vez, eles brilhavam e queriam sempre ver mais adiante. Quando começou a falar suas primeiras palavras, ouvia tudo com muita atenção e imitava as vozes daqueles que a cercavam. Logo dominou a fala, dialogando e conversando com quem quer que fosse. Ainda pequena, mas não tão pequena assim, começou a querer saber mais das coisas. - Dada31, de onde vem o sol? - perguntou à sua avó. - O sol vem do mar. - respondeu aquela senhora que fazia badjias. - E por que as terras o engolem depois? - continuou a busca por saciar sua curiosidade e, pegando um badjia, e colocando no pão para comer, saciava sua fome também. - Quem devora o sol é o Zimbábue, nosso vizinho. O sol precisa iluminar e aquecer as terras de lá. Seu estômago estava saciando delicioso pão com badjia, mas a fome de saber só aumentava. As dúvidas na cabeça da menina borbulhavam. Mwedi era seu nome. Mas de onde vinha tal nome? - Mwedi significa Lua. - contou sua mãe - Colocamos esse nome pois na noite em que você nasceu, uma lua sorria para nós lá em cima. Mwedi é maconde. Sua mãe é maconde, e tu também és. E Mwedi seguia com suas curiosidades. Findava uma questão e aparecia outra:

31 Dada: Avó, na língua Shimakonde. 60

- E a canção Amatuwe32, de onde vem? - perguntou ao seu pai sobre as palavras de tal música. - Como assim, Mwananga33? Não sabe o que significa isso? - Sim eu sei, mas de onde vem? - Isso é língua Changana. Eu sou Tsonga, tu és Tsonga. Essa música é de nossa terra. Certo dia na escola, Mwedi levantou-se para tirar uma dúvida que não podia esperar: - De onde vem a coragem? A professora, surpresa com sua pergunta, respondeu: - Coragem? A coragem vem de dentro de você. - Sim! Mas estou a perguntar da palavra coragem. De onde vem essa palavra? - Ah sim. É uma palavra em português. Veio com os portugueses de . - Kanimambo34! Um dia a brincar com colegas na rua, dois deles jogavam ntchuva35. Muitos estavam a assistir ao jogo e a torcer. Em determinado momento, um disse: - Kalakawana! Outro menino logo repetiu: - Kalakawana! E então, todos começaram: - Kalakawana! Kalakawana! Mwedi sabia exatamente o que aquilo queria dizer, mas logo uma dúvida começou a crescer dentro dela. Aquela dúvida de sempre: De onde vem essa palavra? Pronto! O jogo continuou, deram ponto aos dois jogadores, pararam de gritar Kalakawana. A tarde seguiu... o jogo terminou, começaram outro, ouviram e dançaram marrabenta36, conversaram… o sol estava quase sendo engolido pelo Zimbábue e Mwedi não parava de pensar: Kalakawana, de onde será?

32 Amatuwe é uma música e brincadeira tradicional moçambicana, cantada em roda, com duas pessoas girando ao centro. 33 Mwananga: Minha filha, na língua Changana. 34 Kanimambo: Obrigada(o), na língua Changana. 35 Ntxuva: Jogo de tabuleiro variante do jogo Mancala, também conhecido como xadrez africano. Com origem mais provável no Egito, expandiu-se por muitas áreas do território africano. Conta-se que, Ntxuva, era o passatempo preferido dos soldados em tempos de guerra. É muito popular no Sul de Moçambique. 36 Marrabenta: Música e dança típica de Moçambique, que traz influências de muitos ritmos do país como Magika, Xingombela e Zukuta, e também de músicas ocidentais. Criada em Maputo, ao final dos 61

Com sua curiosidade tamanha, não conseguiu mais acompanhar as crianças, porque queria resolver a nova dúvida em questão. Perguntou às crianças e elas disseram: - Sei lá, Kalakawana é Kalakawana. - Mas onde aprenderam? - Eu já ouvi os homens falando isso numa reunião deles. - disse um menino. - Minha avó que me ensinou. - disse uma menina - Sempre quando estava ajudando ela a cozinhar, ela dizia Kalakawana. - Eu não sei onde aprendi, acho que já nasci sabendo. - disse uma outra colega e todos riram. Mwedi, não satisfeita com as respostas, seguiu sua busca. Chegou em casa e colocou a questão à sua família. Seu irmão disse que não importava de onde vinha: - Kalakawana é Kalakawana! Se você entende, segue e vai. É o que vale. - É uma palavra em Changana. - disse seu pai. - Lógico que não. - contestou sua mãe - Essa palavra é maconde! Eu acho. - Você não aprendeu essa palavra aqui no Sul? - reforçou o pai. - Não me lembro. Mas não me diga que você aprendeu essa palavra quando era miúdo? - Acho que não também. Deve ser português ou inglês, sei lá! - respondeu finalmente seu pai. - Talvez. - concordou a mãe - Não sei, Mwananga. Não sei bem. Então Mwedi, no dia seguinte, foi perguntar à sua professora, afinal, ela falava bem inglês e português. - Kalakawana me parece Macua37. - disse a professora. - Macua? - pensou a menina em voz alta. - Sim, pois me lembra a palavra Okawa, que é dividir em Macua. - Nossa! Mas meu pai disse que parecia Changana. Minha mãe disse que era Maconde. Depois questionei os dois e disseram que deve ser português ou inglês. - É Mwedi... Eu também não sei. Chegando em casa, Mwedi correu para sua avó. Ela devia saber. - Dada, de onde vem a palavra Kalakawana?

anos 1930, tornou-se muito popular, principalmente nos anos 50 e 80. O seu nome traz referência da palavra “rebentar”, do português. 37 Macua: Grupo étnico de Moçambique, com origem ao norte do país. 62

- Kalakawana? – perguntou com riso no rosto. E pensando, foi respondendo. - Não existia no norte Maconde, de onde eu venho. Tão pouco aqui no Sul, quando chegamos. Minha neta, aqui, nesta aldeia onde vivemos, é uma mistura. - Mistura? - Não vê sua amiga Piedade, os pais dela são Macua, não? - Sim. - E Eusébio? - Ele é Maconde. É até iniciado. - Dona Dawa é Macua, e casou-se com um Chopi. Você é Maconde e Tsonga. Eu sou Maconde, sua mãe também, mas seu pai é Tsonga. Percebe essa mistura? Essa aldeia se formou aqui no Sul com ex-combatentes daqui, e também os vindos do Norte como eu e de todas as regiões desse país. Há até Velho Hortêncio que é de Tete. Aqui, minha neta, as coisas se misturam e, lógico, com o português também. Em que língua te ensinam na escola? - Português. - Ya! Aqui as coisas se misturam. Misturam o que falam em casa, misturam o que ouvem nas ruas, misturam o que aprendem na escola, misturam… misturam... e de tanta mistura, surgem novas formas de se comunicar... novas palavras… - Então, Kalakawana é nosso? Vem da gente? - Sim. Deve ser nosso! No fim da conversa, o irmão de Mwedi passou pelo quintal, e escutando, disse: - Mwedi, você ainda com essa questão com o Kalakawana? Já te disse, se você sabe o que significa, é o que importa. Não é, Dada? É bom você se interessar por isso, mas não precisa muito… Nem lá, nem cá! Nem um, nem outro. Isso é Kalakawana! Você deve Kalakawana, Mwedi! - Kalakawana! - concordaram Mwedi e a Avó, e riram juntos.

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Capítulo 2 – RAIZ: Rememorando

PARTE A

A SILENCIADA ÁFRICA

Houve um tempo em que os historiadores entendiam que certas civilizações (as ocidentais) eram seus temas naturais, que alguns líderes políticos (Thomas Jefferson, Napoleão, Carlos Magno) eram os mais importantes, e que determinados períodos e temas (a Renascença, o iluminismo, o surgimento do Estado - Nação) eram os únicos merecedores de nossa atenção. Outros lugares, outros povos, outros temas culturais menos centrais no curso da civilização ocidental não contavam. (FEIERMAN, 1993, p. 167)

Por muito tempo a história da humanidade teve como centro a Europa e as civilizações ocidentais. Os saberes de diversas áreas tais como teatro, dança, história, ciência, política, sociologia, economia, artes plásticas, música, arquitetura entre tantos outros, tinham como foco de estudo e como principais, ou quiçá, únicas referências, as trajetórias e desenvolvimentos históricos europeus. Tal olhar eurocêntrico da chamada narrativa da humanidade que Feierman (1993) questiona, revela os caminhos e vazios que se abrem quando historiadores passam a considerar narrativas silenciadas anteriormente. Segundo Feierman, ao incluírem em seus estudos relatos de povos não considerados outrora, os historiadores levantam questionamentos sobre os modos de construir narrativas. “Suas escolhas de temas e métodos são produto de seu próprio tempo e das circunstâncias e não um resultado inevitável do progresso imparcial da ciência histórica.” (FEIERMAN, 1993, p. 167). Discorreremos, portanto, sobre o que nos ensina Feierman olhando a princípio para a área da história, especificamente sobre a corrente de estudos em história da África. Nos anos 50 as “universidades brancas da América” como ele se refere, como “Harvard, Princeton, Chicago, Berkeley e Columbia” lidavam em seus currículos com uma historicidade onde a África não tinha lugar e era simplesmente desconsiderada. Foi a partir dos anos 1960 que o número de historiógrafos sobre o continente africano aumentou nos Estados Unidos da América. Segundo Curtin (1980), em 1970 existiam seiscentos historiadores africanistas nos EUA e esse número cresceu com passar do tempo. Foi nos anos 1960 também que muitas nações africanas recém-independentes 64

fundaram suas universidades. Com isso houve um aumento no número de africanos que passaram a integrar essas instituições dentro e fora de África.

Entre os africanistas existem aqueles que leem os arquivos europeus sob uma nova perspectiva, para apreender o que os documentos conservados em tais instituições revelam sobre a sociedade africana; ou existem aqueles que estudam fontes escritas em árabe, tanto por africanos quanto por visitantes muçulmanos vindos de fora do continente; e existem outros ainda que leem fontes em línguas africanas; há também os coletores e analistas críticos da tradição oral; linguistas históricos; estudiosos especializados na religião africana, na história da agricultura africana, na da doença, na do gênero, na dos movimentos dos camponeses e uma infinita gama de outros assuntos. (FEIERMAN, 1993, p. 167)

Ivan Van Sertima, nascido na Guiana, na América do Sul, é um importante historiador linguista e antropólogo reconhecido por sua pesquisa e produção acerca da presença africana na construção das civilizações do mundo antigo. Devido ao reconhecimento de seu trabalho foi convidado a integrar a comissão Internacional da UNESCO para reescrever a História Científica e Cultural da Humanidade. Em 1981, recebeu o prêmio Clarence L. Holte “pelo excelente trabalho em literatura e humanidades relacionadas ao patrimônio cultural da África e da diáspora africana”.38 Sertima é o idealizador do Journal of African Civilizations que, fundado em 1979, é fonte de materiais históricos e antropológicos que revelam uma perspectiva de África vista em foco como participante das formações das grandes civilizações do mundo, tendo conquistas nas artes e nas ciências. Sertima visa “enfatizar o que os negros deram ao mundo e não o que perderam”. Nos livros do Journal of African Civilizations39 podemos encontrar diversas influências africanas no mundo antigo, inclusive na Europa.

Gostem ou não do fato, os estudiosos clássicos são obrigados a considerar as origens. Os gregos que discernimos nessa nova aurora

38 “For a work of excellence in literature and the humanities relating to the cultural heritage of Africa and the African diaspora.” Journal of African Civilizations. Edison: NY [acesso 2018 abril 8]. Disponível em: http://www.journalofafricancivilizations.com/VanSertima 39 Nossa preocupação urgente é garantir o uso desses livros e textos em colegiais e em universidades. O trabalho de toda uma geração de estudiosos será desperdiçado, a menos que esses trabalhos possam entrar no “currículo da inclusão” ou, como é conhecido em alguns círculos, “no currículo multicultural”. Este é o começo da principal revolução de pensamento, que vai além da mera retórica de protesto que tenta, com a máxima seriedade, mudar a percepção, em toda parte, do papel das pessoas de ascendência africana na história do mundo. Isso não pode ser realizado sem a ajuda de muitas pessoas. Journal of African Civilizations. Edison: NY [acesso 2018 abril 8]. Disponível em: http://www.journalofafricancivilizations.com/VanSertima 65

não eram nórdicos de pele clara, mas essencialmente da raça de cabelo preto escuro e pele escura. (BRUNSON apud NASCIMENTO, 2008, p. 94).

Elisa Larkin Nascimento40 em seu livro “A Matriz Africana no Mundo”, nos revela pontos onde a influência africana na Europa é evidente, porém negada, esquecida ou mesmo disfarçada, deixando evidente o discurso seletivo do que se conta uma visão eurocêntrica, norteadora, preconceituosa e, sobretudo racista. Nascimento (2008) refere-se a proliferação de Nossas Senhoras negras pela Europa. Nos trabalhos tanto de Nascimento como de Sertima (especificamente em “Mulheres Pretas na Antiguidade”, 2007) podemos notar que as imagens de madonas negras têm origem no culto à Ísis do Egito.

Os Egípcios veneravam Ísis como uma deusa lunar e como uma encarnação de todas as qualidades femininas que tornam as mulheres desejáveis. As lendas sobre Ísis e a lua abarcam tanto o realismo — efeitos das pressões barométricas sobre a natureza física (marés) bem como sobre a natureza humana, quanto o surrealismo — interpretações universais de sonhos. (MCKINNEY-JOHNSON apud SERTIMA, 2007, p. 64).

O Egito Antigo assim como diversas culturas africanas era uma sociedade matrilinear, a imagem da Ísis representava a feminilidade e normalmente aparecia com um filho, Hórus, no colo. Acredita-se portanto, que dela vem a inspiração das imagens da Virgem Maria e seu filho Jesus. Na citação acima, podemos notar também o que discutimos no capítulo 1 sobre os condensados de saberes e os conhecimentos que estão na figura de Ísis, neste caso.

Não há dúvida de que em seu caráter da mãe amorosa e protetora ela apelava fortemente à imaginação de todos (...) E que as imagens e esculturas em que ela é representada no ato de amamentar Hórus formaram a base para as pinturas Cristãs da Madona e a Criança. (...) E muitos dos atributos de Isis, a Deus-mãe, a mãe de Hórus... São idênticos aos da Mãe de Cristo. (BUDGE, 1969 apud SERTIMA, 2007, p. 220)

Outro ponto observado por Nascimento (2008) é a existência pouco conhecida de três papas africanos na Igreja Católica: Vítor I, Melquíades e Gelásio I. “Esses

40 Elisa Larkin Nascimento é doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano da Universidade de São Paulo (2000). Atualmente diretora do Ipeafro - Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros. 66

papas são descritos por seus contemporâneos como africanos fisicamente bem caracterizados. Entretanto, as representações posteriores, em livros didáticos e histórias da Igreja, pintam-nos como brancos de clássico perfil romano.” (NASCIMENTO, 2008, p. 96). Mais uma evidência de uma história seletiva e racista que os novos olhares e pesquisas trouxeram à tona. A problemática do embranquecimento atingiu também artistas brasileiros, como é o caso do escritor Machado de Assis41 que fora retratado como branco em diversos registros. A ação “Machado de Assis Real”, organizada pela Faculdade Zumbi dos Palmares, foi uma prática para impedir o racismo na literatura. O mesmo aconteceu com a escritora Maria Firmina42 que, apesar de seu engajamento a favor da abolição da escravatura, não foi retratada como negra; e com o Padre José Maurício43, conhecido pela produção de música sacra, que, de origem africana era representado como branco. Temos ainda exemplos como o presidente político Nilo Peçanha44, o escritor Lima Barreto45 entre outros.

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41 Machado de Assis (1839-1908) um dos mais relevantes literatos da língua portuguesa. Passou pelo romantismo e também inaugurou a literatura realista brasileira com Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). 42 Maria Firmina dos Reis (1822-1917) escritora maranhense, relevante pelo marco de ser a primeira autora a publicar um romance no Brasil: Úrsula, lançado em 1859. 43 Padre José Maurício Nunes Garcia, (1767-1830) presenciou a transição do Brasil Colonial para o Império Independente. Descendente de escravos, optou pela carreira da Igreja Católica, onde pode desenvolver sua educação musical. Compositor com mais de 200 composições catalogadas. 44 Nilo Peçanha é o primeiro presidente de descendência negra do Brasil. Assumindo o cargo com a morte do presidente Afonso Pena. 45 Afonso Henriques de Lima Barreto escritor brasileiro e neto de pessoas escravizadas. Começou carreira com a produção de contos curtos. Autor de O Triste Fim de Policarpo Quaresma, de 1911. 46 Registro de Padre José Maurício. Fonte: Foto divulgação. Imagem 1 disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/598/vozes-imaginadas. Imagem 2 disponível em: http://www.josemauricio.com.br/JM_P_Cap.htm 67

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47 Registro de Machado de Assis. Fonte: Foto divulgação. Disponível em: . 48 Registro de Maria Firmina. Fonte: Foto divulgação. Disponível em:

Vale ressaltar que não apenas os estudos ligados à história da África desenvolveram-se, mas também se passou a incluir olhares para os povos antes não estudados, como camponeses medievais, bárbaros na Europa antiga, escravos das plantações americanas e mulheres.

Tratar os africanos, mulheres, camponeses e escravos como atores históricos colocou um desafio fundamental para a compreensão histórica de um modo geral. Desafiou a noção de que a história contada do ponto de vista restrito e de uma população menos representativa tivesse um menor valor e universalidade. (FEIERMAN, 1993, p. 178).

A questão desenvolvida por Feierman e a ser discutida aqui é que o aumento do conhecimento dos saberes das sociedades não européias passou a questionar as narrativas acadêmicas existentes até então. Começou a tomar-se consciência de que o que se pensava ser, até então, universal ou mundial era, na verdade, uma apresentação seletiva e parcial. “A narrativa da história humana que os historiadores ocidentais montaram naquele tempo não poderia mais se sustentar.” (FEIERMAN, 1993, p. 168). Frederick Cooper50 (1977), historiador americano especializado em colonização, descolonização e história africana, também desenvolve seu pensamento de como o escrever sobre África e América Latina levou à fragmentação da história mundial proposta anteriormente. Esse novo conhecimento da história dos povos silenciados até então rompeu com duradouras tradições intelectuais que tratava as “culturas exóticas como se elas existissem em um tempo diferente do resto da humanidade” (FEIERMAN, 1993, p. 178).

O surgir da história africana (e da asiática e da latino-americana) tem mudado profundamente nossa compreensão da história geral, e do lugar da Europa no mundo (...). Essa mudança em nossa compreensão é desconfortável para quem vê a história como a expansão da civilização a partir de um centro europeu, e é igualmente desconfortável para quem esquematiza a história em termos de um sistema auto-determinado de exploração escravista. (FEIERMAN, 1993, p. 176).

50 Frederick Cooper (1947) historiador norte americano. Professor na Universidade de Nova Iorque e um dos mais importantes historiadores da atualidade. Autor de Decolonization and African Society: The Labor Question in French and British Africa (1996). 69

Com o considerar das narrativas de povos africanos, latino americanos, asiáticos e grupos até então silenciados, a noção da compreensão de história geral e do lugar da Europa no mundo transformou-se e gerou o que Feierman chama de “crise epistemológica”. Com isso mudanças metodológicas ocorreram incluindo história oral, arqueologia, etnologia, linguística histórica, antropologia e etc.

Contribuições de escolas antropológicas, o nascimento da etnofilosofia, a preocupação com a hermenêutica, ou o repensar do primitivo e da teologia cristã, dividem as ortodoxias que podem ser visibilizadas, por exemplo, com a discussão sobre a Filosofia Bantu, de Tempels ou ainda com as revelações de Marcel Griaule acerca da cosmologia Dogon. A antropologia que descreve “organizações primitivas”, e também programas de controle advindos das estratégias colonialistas, produziu um conhecimento que demandava aprofundamento nas sincronias dessas dinâmicas. Com isso, é plausível considerarmos que os discursos históricos que interpretam uma África mítica são apenas um momento, porém significativo, de uma fase que se caracteriza por uma reinvenção do passado africano, uma necessidade que advém desde a década de 1920. (WEBER, 2014, p. 566).

Feierman nos traz muitas referências de autores que colocam a relação de centro ocidental civilizado em oposição ao que seria a ‘não civilização’. Podemos encontrar em diversos outros discursos e em nossa formação escolar a mesma relação. Afinal, como problematizamos no capítulo 1, a história é contada de qual ponto de vista? Discutimos aqui o termo ‘Civilização’, guiado pelo pensamento do historiador Feierman, para desdobrar durante a tese em outras questões a partir dessa temática que ‘norteia’ nosso pensamento e formação. Tal relação com a chamada civilização que também cunha termos que abordaremos a seguir como “arte primitiva”, onde um olhar preconceituoso, folclorista, muitas vezes racista e de diminuição está vinculado à arte produzida por povos que foram excluídos da chamada “história da humanidade” durante muito tempo como vimos no início deste capítulo. Segundo McNeill, “Sociedades civilizadas têm muito para ensinar e relativamente pouco para aprender dos povos ainda não civilizados” (McNeill, 1963, p. 65 apud FEIERMAN, 1993, p.172). Crescemos ouvindo exemplos de como o processo de civilização dos indígenas aconteceu no Brasil e em toda América Latina51,

51 Segundo Ballestri, “a região que em 1856 foi batizada como “América Latina” pelo jornalista colombiano José María Torres Caicedo foi duplamente o primeiro grande laboratório da experiência 70

diversos discursos desconsiderando organizações tanto latino-americanas como africanas, tais como grandes populações indígenas no Brasil, as organizações incas no Peru, os grandes impérios em diversas regiões africanas, como o “reino” do Congo. A questão é o que está vinculado ao termo ‘Civilização’, que faz com que retirem tais povos e estruturas de organização durante anos da chamada “história da civilização”? Para McNeill civilização é “um estilo de vida caracterizado por uma complexidade, riqueza e imprevisibilidade geral que justificam o epíteto de ‘civilizada’” (MCNEILL,1963, p. 35 apud FEIERMAN, 1993, p. 172). Segundo o dicionário Oxford, civilizar é “educar o que é rude e grosseiro… domesticar, domar (animais selvagens), fazer ‘civil’ no sentido de ter boa ordem pública ou social. Civilização é uma condição ou estados civilizados nestes sentidos, mas é igualmente um desenvolvido ou avançado estado da sociedade humana.” (FEIERMAN, 1993, p. 172). Braudel divide as sociedades em “civilizações” e “culturas” dizendo que “a cultura é uma civilização que não atingiu ainda sua maturidade” (BRAUDEL, 1981, p.101 apud FEIERMAN, 1993, p.172).

As sociedades que correspondem a culturas são aquelas que têm a tendência de se manter indefinidamente em seu estado inicial, o que explica, além disso, porque elas, para nós, parecem ser sociedades sem história e progresso… Nas breves culturas primitivas encontramos a semente das sociedades igualitárias, nas quais as relações entre os grupos são reguladas uma vez e para todos, repetindo elas próprias, enquanto as civilizações são encontradas nas sociedades hierárquicas, com tensões que se transforma, conflitos sociais, lutas políticas e uma perpétua evolução. (BRAUDEL, 1987, p. 48 apud FEIERMAN, 1993, p. 172).

A partir dessas colocações as sociedades africanas são tidas como igualitárias e estáticas, não considerando as evoluções e dinamismos existentes em tais tradições e sociedades, enquanto hierarquia e dinamismo são encontradas somente em associações européias. Para Braudel, os pontos que definem entidades civilizadas são: existência de hierarquia econômica e política, o cultivo com arado e não com enxada, comércio e a existência da escrita. “As artes da memória estão

colonial e imperial moderna: do colonialismo europeu do século XVI e do imperialismo estadunidense do século XX. (BALLESTRI, 2017, p. 507). A América Latina está inserida atualmente na expressão Sul Global, retratada em grande parte pela categoria “Terceiro Mundo” - termo criado por volta de 1950. O que se destaca nesse contexto, é que o continente era permeado por processos diversos de países distintos que naquele e em momentos posteriores, protagonizaram movimentos de revolução e libertação, que ocasionou na independência da Ásia, África, Caribe e o Pacífico. 71

situadas no coração da acumulação e a arte da escrita é a mais eficaz das artes da memória” (BENNASSAR; CHAUNU, 1977, p. 56 apud FEIERMAN, 1993, p. 172). Todavia, existem diversos exemplos africanos de grandes reinos com hierarquias, e mesmo sem a presença da escrita, alto fluxo de comércio e intercomunicação. O uso da enxada para o cultivo se dá por ser mais apropriada ao tipo de solo. A não presença da escrita não exclui um conjunto substancial de conhecimento que é transmitido de geração em geração através de uma tradição oral, como descrito no capítulo 1. Portanto, as características colocadas por Braudel para analisar uma civilização tornam-se irrelevantes. A questão é que os modos de análise e esses critérios de avaliação são normalmente europeus. Segundo Mudimbe, “as análises funcionalistas dependem do contraste entre o normal e o patológico. Se o europeu é definido como normal, então os nãos europeus aparecem de forma distorcida, anormal, primitiva”. (MUDIMBE, 1988, p. 27,191-192 apud FEIERMAN, 1993, p. 174)

Os conceitos de tradicional versus moderno, oral versus escrito e impresso, ou os sistemas de comunidades agrárias e consuetudinárias versus civilização urbana e industrializada, economias de subsistências versus economias altamente produtivas, podem ser citados para que exemplifiquemos o modo como o discurso colonizador pregava um salto de uma extremidade considerada subdesenvolvida para outra, considerada desenvolvida. (WEBER, 2014, p. 564).

Cardoso (2013), refletindo sobre os pensamentos de Fanon52 (2008), afirma que o colonizador é tratado como herdeiro de valores universalistas civilizatórios e o civilizado como primitivo, selvagem, não possuidor e necessitado do que lhe é transmitido. Existe nesse sistema uma superioridade do colonizador sobre o colonizado que de certa forma justifica suas ações e intervenções que são vistas nessa ótica como benefícios ao povo submetido a colonização. Esse sistema é formado e reforçado por tais referências centralizadas em um polo civilizatório e pela exclusão dos silenciados. Defende-se a ideia de que os europeus colonizadores se auto definiam nos discursos sobre o outro colonial, os chamados “povos nativos”.

52 Frantz Fanon (1925), francês e um dos pensadores mais importantes do século XX. Em 1944 se alista no exército francês para lutar contra a invasão alemã durante a II Guerra Mundial, posteriormente seguiu para Lyon para estudar medicina e psiquiatria. Em 1950, escreve sobre efeitos psíquicos do racismo colonial. 72

Como era possível definir a liberdade e não a partir do contraste com a escravidão, ou civilização (ela própria o coração da história mundial, como vimos) senão em contraste com o barbarismo? Sem o nativo, sem o escravo, o servo ou o bárbaro, os valores centrais do ocidente seriam difíceis de imaginar. (FEIERMAN, 1993, p. 177)

Bebemos nos saberes da História da Humanidade, mas tais reflexos são dados na História da Arte, nos fazeres das Artes da Cena, Teatro, Dança, Literatura, assim como em outras áreas de conhecimento. Como refletimos no capítulo anterior, trabalharemos com condensados de saberes, onde problemáticas e pontos a serem discutidos se utilizam de referências e ciências de distintas e diversas áreas. Mesmo porque, dividimos conhecimentos em determinadas áreas de entendimento justamente com base em nossa formação ocidental. Tais divisões de pensamento também são o que chamo aqui ‘formas norteadas de formação’. A criação de universidade ocidentais que separam as educações em áreas de sapiência é uma forma de organização que se expandiu para todo o mundo. Expandimos essas questões para a História Mundial do Teatro que muitas vezes cita formas de teatro em África e nas Américas, apenas nos termos de ‘Teatro Primitivo’. Afinal, a “Grécia Antiga, assinalada como o berço da cultura ocidental, desenvolveu o teatro de modo a fornecer um modelo que iria influenciar todo o fazer teatral vindouro.” (CEBULSKI, 2007, p. 76).

Mais tarde, em território grego, essa tradição, aliada à intenção dos seus dirigentes de proclamar uma identidade política e cultural, mesclando as histórias das famílias reais, das batalhas travadas com outros povos, deu origem ao teatro grego, considerado o berço do teatro ocidental. É importante ressaltar, que em toda a Antiguidade fervilhavam representações teatrais entre os diferentes povos margeados no Mediterrâneo – os povos mais tarde considerados “ocidentais” – ou entre as civilizações orientais. (CEBULSKI, 2010, p. 12)

Obviamente as teorias são dadas e feitas nas palavras com bases eurocêntricas, portanto, não é de se estranhar que o Teatro é tido como nascido na Grécia visto que o próprio termo recebe nome grego: theatron (“lugar para olhar”, de theasthai - “olhar” e tron - “lugar”). Como diz Ariano Suassuna, “o Teatro não começa na Grécia, é o teatro grego que começa na Grécia.” (SUASSUNA apud CARVALHO, 2001, p. 170).

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MARCIAL - É um fato que o tal teatro convencional que nós conhecemos hoje surgiu de rituais que existem em qualquer parte do mundo. Então não se pode ter uma base geográfica que seja localizada e que diga: “o teatro surge daqui”. Ainda que, um lugar tenha explorado mais um ritual, esse ritual não pode ser universal. Porque, por exemplo, o Mapiko, [...] tem uma estrutura que se assemelha um pouco ao ritual Dionisíaco. Não quero necessariamente fazer comparações desses dois rituais e dizer que isso é isso e isto é aquilo. Cada um no seu lugar, cada um no seu espaço, cada um com suas práticas, mas existe uma ação que acontece fora do espaço cênico, ritualístico desde o processo da circuncisão nas matas e tal (...). Então, esse processo todo pode ser discutido como uma perspectiva de surgimento de uma arte cênica dentro de uma estrutura dos Macondes. E ainda sim, não se pode olhar para essas estruturas do Maconde como uma estrutura de toda Moçambique.

Entretanto, refletindo sobre o conceito ‘teatro’ e adentrando cada vez mais como já vimos as histórias dos povos do Sul e dos silenciados, notamos formas não comentadas quando normalmente aprende-se a “História Mundial do Teatro”. Cito aqui, como exemplo, o livro de Margot Berthold53 (1968), com uma pesquisa extensa sobre a história mundial do teatro (como ela mesma refere-se) onde a narrativa é contata com os subitens: O Teatro Primitivo, Egito e Antigo Oriente, As Civilizações Islâmicas, As Civilizações Indo-Pacíficas, China, Japão, Grécia, Roma, Bizâncio, A idade Média, A Renascença, O Barroco, A Era da Cidadania Burguesa, Do Naturalismo ao Presente. O livro traz o conceito teatral baseado na lógica de que o drama e teatro “demandam forças criativas que fomentem o seu crescimento; é também necessária uma auto-afirmação urbana por parte do indivíduo, junto a uma superestrutura metafísica. Sempre que essas condições foram preenchidas seguiu-se um florescimento do teatro”. (BERTHOLD, 2004, p. 15). A obra traz uma extensa pesquisa considerando tradições e ‘origens’ do teatro descentralizadas necessariamente da Europa, quando cita o que chama de “teatros primitivos” e nos apresenta os diferentes tipos de teatros chineses e japoneses, por exemplo. Entretanto, da metade do livro para o fim, o foco é o teatro europeu e quando refere-se a atualidade traz o teatro estadunidense. “Comediantes e colonizadores cruzaram juntos o Atlântico. O contingente teatral foi conduzido pelos chefes dos

53 Título do livro: História Mundial do Teatro. 74

pioneiros, e suas troupes chegaram logo” (BERTHOLD, 2004, p. 514)54. Durante a extensa “História Mundial do Teatro” narrada por Berthold, a América Latina e África aparecem somente como referência nos ítens ‘Teatro Primitivo’ e ‘Egito e Antigo Oriente’. E mesmo quando citados, podem ser interpretados como gêneros menores que ficaram aquém de formas dramáticas europeias, pois segundo Berthold “para um florescimento das artes dramáticas, teria sido necessário o desenvolvimento de um indivíduo livremente responsável que tivesse participação na vida da comunidade, tal como encorajado a democrática Atenas. Faltava ao egípcio o impulso para a rebelião, não conhecia o conflito entre a vontade do homem e a vontade dos deuses, de onde brota a semente do drama”. (BERTHOLD, 2004, p. 15). Retoma-se aqui a ideia ‘norteadora’ da história universal que citamos anteriormente onde Braudel diferencia ‘cultura’ de ‘civilização’ e problematiza-se aqui também o conceito de civilização.

O “drama” geral, que ela apresenta como inegável conquista civilizatória, [...] Já o conceito de teatro a que ela se refere parece sugerir toda e qualquer organização espetacular com intenção estética evidente. Uma dança ritual indígena ou um canto invocatório, por exemplo, seriam formas que “carregam em si as sementes do teatro”, mas que não podem ser lidas com os mesmos parâmetros. (CARVALHO, 2001, p. 171)

Nota-se com esse exemplo pontual do livro de Bertold uma defasagem de pesquisas nas áreas de história do teatro, remetendo ao que discutimos no início do capítulo sobre a lacuna deixada na história quando desconsiderado algumas sociedades e culturas.

História Mundial do Teatro, de Margot Berthold, é dos poucos livros desse tipo lançados no Brasil. Na década passada tivemos, salvo engano, apenas uma publicação semelhante, Teorias do Teatro55, de Marvin Carlson, que, como o nome diz, dá um panorama das teorias cênicas e dramatúrgicas desde Aristóteles, mas sem o propósito de descrever as práticas do palco. (CARVALHO, 2001, p. 170)

54 Berthold refere-se rapidamente em uma única passagem ao teatro de ópera de Sydney na Austrália, entretanto é a única passagem ao falar do presente e atualidade teatral a que não se refere à Europa e Estados Unidos. ”A capital da Austrália, Sydney, possui um importante teatro de ópera em forma de um grande barco a vela, situado no porto, numa ponta da enseada. Seu projeto foi idealizado pelo arquiteto dinamarquês Jorn Utzon. Ele ganhou com sua ousada construção em concha o primeiro prêmio em concurso público”. (BERTHOLD, 2004, p. 522). 55 Estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade. O livro de Carlson é uma exposição das teorias sobre o teatro ocidental, dos gregos aos contemporâneos. 75

A ideia não é criticar negativamente o trabalho e pesquisa realizada pela alemã Margot Berthold. Reconheço a importância de tal trabalho e o registro da ampla pesquisa e considero a data em que foi escrito, 1968. Entretanto, aqui utilizo tal pesquisa como um reflexo de nossa formação em teatro no Brasil e em Moçambique (tema que será discutido com mais foco no capítulo 3).

É preciso lembrar que o estabelecimento do teatro no Brasil advém da época da colonização. A produção intelectual sobre o teatro pareceu seguir a mesma lógica durante muito tempo: “O teatro foi o espaço de abordagem de muitos problemas, tanto do ponto de vista do dominado como do dominador. No entanto, os desempenhos têm sido registrados até hoje segundo a versão do dominador” (CAFEZEIRO; GADELHA, 1996, p. 11 apud BELÉM, 2016, p. 122)

A problemática colocada é: por que ainda não estão nos cursos, nos discursos e discussões o teatro contemporâneo da Nigéria, a Yoruba Folk Opera56 e por que não citamos peças como ‘As Orações de Mansata’57 (2007) do dramaturgo Abdulai Sila58, que retrata a identidade de Guiné-Bissau no período pós-colonial, sendo uma das primeiras obras do período pós-independência de toda África? Você já ouviu falar de Brecht,59 já leu textos de Shakespeare60 e Molière61 e Tchekhov62? Conhece Stanislavski63, Grotowski64 e Eugenio Barba65? Sabe como

56 Yoruba Folk Opera – “Surgiu a partir de versões profanas de manifestações rituais, tornando-se um sucesso em toda África Ocidental” (REIS: 2011, p. 140) 57 Peça escrita em português com expressões em como crioulo e mandinka. Com texto movimento e música a peça retrata criticamente mecanismos de poder e a vida individual e coletiva de Guiné-Bissau pós-colonialismo. 58 Abdulai Sila (1958) é engenheiro, economista e investigador social da Guiné-Bissau. Escritor consagrado e autor do primeiro romance guineense Eterna Paixão (1994). 59 Euger Berthold Friedrich Brecht (1898-1956) dramaturgo, romancista e poeta alemão.Criador do teatro épico anti aristotélico. 60 William Shakespeare (1564-1616) dramaturgo e poeta inglês. 61 Jean-Baptiste Poquelin, (1622-1673) dramaturgo francês, destaques do teatro francês no século XVII. 62 Anton Pavlovitch Tchekhov (1860-1904), médico, dramaturgo e escritor russo. 63 Constantin Stanislavski (1863-1938) dramaturgo russo. Em 1897, encontrando se com Vladimir Danchenko, resolveu fundar com o mesmo o Teatro de Arte de Moscou, na direção do qual manteve se durante 40 anos. 64 Jerzy Grotowski (1933-1999) diretor de teatro polaco e figura central no teatro do século XX, principalmente no teatro experimental ou de vanguarda. 65 Eugenio Barba (1936) teatrólogo italiano. Criador do Odin Teatret (1964). Fundados da ISTA, International School of Theatre Anthropology (Escola de Antropologia Teatral) - em 1979. 76

trabalha Ariane Mnouchkine,66 já deve ter ouvido falar da escola de Jacques Lecoq67 na França? E Wolly Soyinka68? Já leu alguma peça desse dramaturgo? Conhece Abdias do Nascimento69 e o Teatro Experimental do Negro70? Provavelmente já ouviu falar de Amadou Hampâte Bâ71? E Mudimbe72? Tem conhecimento do Método Acogny e a Escola de Areia no Senegal73? Sabe como trabalha Augusto Boal74 ou Grupo Cultural Peruano Yuyachkani75? Se as respostas são distintas para os dois parágrafos, alguma coisa está desigual nos estudos, referências e visibilidades de todos esses grandes artistas, escritores e teóricos. Tais pensamentos estão sendo derrubados com os avanços em estudos dos povos silenciados ao longo dos anos. Entretanto precisamos tomar devidos cuidados, pois tais estruturas centralizadoras são bases de pensamentos e alicerces até então de nossa formação, formas metodológicas, formas de ensinamentos, e mesmo sendo questionada e desconstruída fiquemos atentos! “Se os contornos da história mundial foram determinados pelos silêncios de nossas fontes, e não pela forma dos objetos históricos, então precisamos encontrar novas fontes” (FEIERMAN, 1993, p. 170).

66 Ariane Mnouchkine (1939) diretora de teatro e cinema. Fundadora do Théâtre du Soleil em Paris (1964). 67 Jacques Lecoq (1921-1999) francês ator, mímico e professor de arte dramática. Fundador da Escola Internacional de Teatro (1956), onde sistematizou suas pesquisas, criando métodos inovadores. 68 Wole Soynka (1934) intelectual nigeriano vencedor do Prêmio Nobel de Literatura. Preso durante a guerra civil pelo governo e autor de poemas durante, entre eles, o Poems From Prision (1969). 69 Abdias do Nascimento (1914-2011) brasileiro ator, diretor e dramaturgo. Militante da luta contra a discriminação racial e pela valorização da cultura negra. Fundador do Teatro Experimental do Negro, (TEN). 70 Teatro Experimental do Negro (TEN) surgiu em 1944, no Rio de Janeiro, idealizado por Abdias Nascimento. 71 Hampâté Bâ (1990/1-1991) pensador da África no século 20, integra a primeira geração do Mali com educação ocidental. 72 Valentim Yves Mudimbe (1941) da República Democrática do Congo. Doutor em filosofia pela Catholic University of Louvain (1970). 73 Germaine Acogny (1944) dançarina e coreógrafa senegalense. Fundadora da Ecole des Sables (Escola de Areias) em 1998. 74 Augusto Pinto Boal (1931-2009) foi a principal liderança do Teatro de Arena de São Paulo, na década de 1960. Criador do Teatro do Oprimido. 75 Em quechua Yuyachkani significa “estou pensando”, “estou recordando”. O Grupo Cultural Yuyachkani, fundado em 1971, é uma instituição independente. 77

(PÓS) (DES) (DE) COLONIAL

Não podemos seguir adiante em nossas discussões e problematizações sem entender melhor a colonização. Falamos de África, especificamente de Moçambique, e as escritas de tal trabalho são do Brasil (ambos países colonizados por Portugal). Discutimos a questão dos saberes do Sul, buscando um movimento decolonial. Faz- se necessário, portanto, discorrer sobre o termo Decolonial. Ou seria Descolonial? Ou Pós-colonial? E sua relação com o Colonialismo? Ou seria Colonialidade? Visto a confusão que tais conceitos e termos podem causar devido às suas semelhanças, discorreremos aqui sobre eles. Reflitamos primeiramente sobre o Colonialismo e a Colonialidade. Mignolo76 (2017) nos convida a imaginar o mundo nos anos 1500. No Oriente, a dinastia Ming reinava na China de 1368 a 1644. O Huángdinate chinês, por volta de 200 a.C, chamada de forma equivocada de “Império Chinês”, concomitante com o Império Romano. Nesse período Moscou é declarada como a “terceira Roma”, dando início ao czarato russo. Perto da atual Nigéria, na África, o Reino de Oyo composto pela nação Iorubá, foi o maior “reino” encontrado pelos europeus na África Ocidental. Os incas Tawantinsuyu e os astecas em Anahuac eram, até a chegada dos espanhóis, populações sofisticadas. O mundo na altura era, portanto, policêntrico e não capitalista. Mignolo questiona: “O que aconteceu, então, no século XVI que iria mudar a ordem mundial, transformando-a naquela em que vivemos hoje? O advento da “modernidade” poderia ser uma resposta simples e geral, mas... quando, como, onde e por quê? (MIGNOLO, 2017, p. 3).

A colonização (…) uma forma de poder constituinte, na qual a relação com a terra, as populações e o território associa, de modo inédito na história da Humanidade, as três lógicas de raça, da burocracia e do negócio (commercium), (…) onde um sistema econômico fundado na escravatura contribuirá de maneira decisiva para a acumulação primitiva de capital.” (MBEMBE, 2013 apud DUARTE 2017, p. 1)

A transformação do mundo não capitalista e policêntrico de 1500 para um novo contexto capitalista e monocêntrico, se fez entre os anos 1500 e 2000. As

76 Walter Mignolo (1941) semiólogo argentino e professor de literatura na Universidade de Duke (EUA). Conhecido como pensador decolonial latino-americano membro fundador do Grupo modernidade/colonialidade. 78

colonizações de territórios e povos, principalmente do hemisfério Sul, foram fatores evidentes de tal processo. Segundo Mudimbe (2013) a intenção dos colonizadores era “de invenção e conquista de um continente, nomeando a sua ‘primitividade’ ou ‘desordem’, bem como os meios subsequentes da sua exploração e métodos para a sua ‘regeneração’.” (MUDIMBE, 2013, p. 32).

A “América” passa a ser o ponto zero para a criação do sistema- mundo77 moderno/colonial. Esse projeto com vocação mundial de poder e dominação, é cúmplice com o aprofundamento do capitalismo, racismo e eurocentrismo; inaugura a divisão do trabalho global e a classificação dos povos baseadas na cor da pele e atravessa e perpassa o próprio fenômeno do colonialismo (Quijano, 2000). (BALLESTRIN, 2017, p. 518)

A colonização deixou como herança “Tanto para os povos negros como para os indígenas e mestiços, a desumanização de alguns, a super-humanização de outros e a negação dos sentidos integrais da existência e humanidade” (WALSH, 2009, p. 30)78. Mignolo (2005) refere-se a tal herança como “ferida colonial” e a relaciona diretamente com a perspectiva da Colonialidade no mundo atual. A Colonialidade é uma estrutura gerada a partir da colônia que se faz presente nos dias atuais, inclusive em países independentes há muitos anos.

A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial de poder capitalista. É fundada na imposição de uma classificação racial/étnica da população (...) como pedra angular desse padrão de poder, e opera em todos os planos, âmbitos e dimensões materiais e subjetivas da existência social cotidiana e em escala societal. (QUIJANO, 2000, p. 342 apud WALSH, 2009, p. 28).79

77 Teoria de Wallerstein, criada por Immanuel Wallerstein (1931-2019). Consiste em: estabelecer as origens do atual sistema econômico global entre finais do século XV e as primeiras décadas do século XVI na Europa, particularmente na Inglaterra e na França. A obra aborda a expansão-transição do capitalismo a partir do feudalismo e antecipa as crises climáticas, demográficas, políticas e mesmo culturais. 78 Texto original em espanhol - Tanto para los pueblos negros como para los indígenas y mestizos, la deshumanización de algunos, la sobre humanización de otros y la negación de los sentidos integrales de la existencia y humanidad. 79 Texto original em espanhol - La colonialidad es uno de los elementos constitutivos y específicos del patrón mundial de poder capitalista. Se funda en la imposición de una clasificación racial/étnica de la población (...) como piedra angular de dicho patrón de poder y opera en cada uno de los planes, ámbitos y dimensiones materiales y subjetivas, de la existencia social cotidiana y a escala societal. 79

Catherine Walsh80 (2009) em seu livro “Interculturalidad, Estado, sociedad. Luchas (de)coloniales de nuestra época” discorre sobre a relação colonial nas Américas, e cita a hierarquização posta na colônia onde os brancos-europeus estavam acima e em seguida vinham em ordem, os mestiços, os indígenas e os negros. Segundo Wash, as condições históricas, sociais, políticas e culturais que esse sistema de hierarquização representa é o que constitui a Colonialidade. O termo Colonialidade foi conceituado no final dos anos 1980, por Anibal Quijano81, sociólogo peruano, e discutido por diversos pensadores, tais como Mignolo e Walsh. A Colonialidade é um sistema de dominação que existe no mundo relacionada diretamente ao modelo capitalista e classificações étnicas e raciais. Ela se dá a partir de controles da economia, organizações políticas, relações de gênero, sexualidade, estruturas de conhecimento, subjetividade, natureza e recursos naturais. Walsh (2009) ainda comenta que a colonialidade também se dá epistemologicamente superestimando o conhecimento produzido na Europa e desconsiderando as produções de pensamento de negros, indígenas e outras minorias, como observado e discutido no início do atual capítulo. A relação de Colonialidade é um sistema dado no mundo atual que age em diversas áreas de nossa vida e, assim também, em nossa formação artística, nossas metodologias, nosso corpo criativo, fazeres e criações. Reflitamos, portanto, sobre tais estruturas para que possamos questioná-las e transformá-las se forem nossos desejos. Desta forma, Colonialismo são procedimentos e estruturas dadas no Período Colonial. Ao termo Colonialidade referimo-nos às estruturas e conceitos que tiveram sua origem no Período Colonial mas que são vigentes até os dias atuais, após a independência do país em questão, no chamado período Pós-Colonial. Refiro-me aqui ao Período Pós-colonial com uma visão histórica e temporal. O tempo após a Colônia, um tempo de independências. Vários movimentos e pensamentos surgiram a partir de tais acontecimentos e discorreremos sobre eles a seguir.

80 Catherine Walsh, professora e diretora do doutorado em Estudos Culturais da América Latina na Universidade Andina Simón Bolívar, sede do Equador, onde também dirige a Oficina Intercultural e a Cátedra de Estudos da Diáspora Afro-Andina. 81 Aníbal Quijano (1930-2018) sociólogo e pensador humanista peruano, conhecido por desenvolver o conceito de "colonialidade do poder". Seu trabalho é influente nos campos dos estudos descoloniais e da teoria crítica. 80

A política oficial das Nações Unidas reconhece a existência de dezesseis territórios não autônomos e coloniais na atualidade (United Nations, 2014). O Comitê Especial para a Descolonização trabalha desde sua criação, em 1962, para supervisionar a Declaração sobre a Concessão da Independência dos Países e Povos Coloniais de 1960, com metas a cada década para eliminação do colonialismo – o período entre 2011 e 2020 constitui seu terceiro decênio internacional. (BALLESTRI, 2017, p. 508)82

O primeiro movimento Pós-Colonial estabelece uma forte ligação com o anticolonialismo revolucionário, com os movimentos de independências e lutas de libertação nacional (principalmente em África e Ásia). Essa primeira fase que Luciana Ballestrin83 (2017) chama de “Pós-colonialismo anticolonial”, consiste em um movimento de líderes, ativistas e intelectuais de diferentes regiões do mundo tais como Amílcar Cabral84, Che Guevara85, Frantz Fanon, Ho Chi Minh86, Jean-Paul Sartre87, Aimé Césaire88 e Albert Memm89. As contribuições de tal movimento tinham como inspirações o pensamento afro diaspórico, o marxismo revolucionário, o pan- africanismo e questões de identidade. A segunda fase do chamado pós-colonialismo teve início com a publicação do palestino Edward Said90, “Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente” de

82 Recentemente, o comitê reiterou o pedido de independência de Porto Rico. Os territórios não autônomos são: Polinésia Francesa, Gibraltar, Nova Caledônia, Saara Ocidental, Samoa Americana, Anguilha, Bermuda, Ilhas Virgens Britânicas, Ilhas Caimã, Guam, Montserrat, Ilhas Picárnia, Santa Helena, Ilhas Turks e Caicos, Ilhas Virgens Americanas, Toquelau e Malvinas. A grande maioria destes territórios é de caráter insular, sendo que dez territórios estão sob a administração do Reino Unido e três dos Estados Unidos (United Nations, 2014) (BALLESTRI: 2017, p. 534). 83 Luciana Ballestrin, professora Associada de Ciência Política do Curso de Relações Internacionais e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pelotas. Editora da Revista Sul-americana de Ciência Política (RSuLACP), Membro da Diretoria da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) (2018-2020) e coordenadora da área de investigação de Teoria Política da Associação Latino-americana de Ciência Política (ALACIP). 84 Amílcar Cabral (1924-1973) foi engenheiro agrônomo e escritor, considerado como o ideólogo da independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, então colónias portuguesas. 85 Ernesto Guevara de La Serna (1928-1967) foi um guerrilheiro e revolucionário argentino, um dos principais líderes da Revolução Cubana. Braço direito de Fidel Castro, foi presidente do Banco Nacional e depois Ministro da Indústria de Cuba. 86 Ho Chi Minh (1890-1969) revolucionário e estadista vietnamita. Envolve-se com os movimentos socialistas franceses e, em 1920, ajuda a fundar o Partido Comunista Francês. Em 1923 vai para Moscou estudar táticas de guerrilha e entra para o Comintern, braço internacional do Partido Comunista russo. 87 Jean-Paul Sartre (1905-1980), ffilósofo e escritor francês, um dos maiores representantes do pensamento existencialista na França. "O Ser e o Nada" foi o seu principal trabalho filosófico. 88 Aimé Fernand David Césaire (1913-2008) foi poeta, dramaturgo, ensaísta e político da negritude. Além de ser um dos mais importantes poetas surrealistas no mundo inteiro. 89 Albert Memmi (1921) é um escritor e ensaísta francês nascido na Tunísia. 90 Edward Wadie Said (1935-2003) importante intelectual palestino, crítico literário, ativista político e social. Sua obra mais importante é Orientalismo, publicada em 1978. 81

1978 onde é defendida a ideia de uma construção de um Oriente, repleta de estereótipos, forjada/fabricada pelo Ocidente de forma estratégica visando a conservação da dominação colonial europeia. Tal fase pode ser chamada de “Pós- Colonialismo Canônico” ou “Pós-Estrutural”, pois tem influências pós-estruturalistas, desconstrutivistas e pós-modernas, e dialoga com classes subalternas. Ao lado de Said nesse movimento encontram-se Gayatri Spivak91, Paul Gilroy92, Stuart Hall93, Homi Bhabha94. O Decolonial seria, portanto, a terceira fase dos movimentos pós-colonialistas, que, segundo Mignolo (2003), visa resistir à ideologias vigentes tais como cristianismo, marxismo, liberalismo, conservadorismo e sobretudo ao colonialismo. A América Latina tem um papel muito importante nesse movimento nos pensamentos do argentino Walter Mignolo e do peruano Aníbal Quijano, que refletem sobre “a lógica continuada do colonialismo através da colonialidade do ser, do saber e do poder e as propostas de descolonização epistêmica por um giro decolonial” (BALLESTRI, 2017, p. 509-510).

De(s)colonizar ganha um sentido de afastamento da modernidade e de sua racionalidade, resgatando a subjetividade terceiro-mundismo desalinhada do capitalismo e do comunismo, da direita e da esquerda, ao mesmo tempo em que não consegue escapar de um saudosismo pré-colonial. (BALLESTRIN, 2017, p. 518).

91 Gayatri Chakravorty Spivak (1942) é crítica e teórica indiana. Leciona na Columbia University e é membro-visitante do Centre for Studies in Social Sciences de Calcutá. 92 Paul Gilroy (1956), sócio do escritor, fotógrafo e acadêmica Vron War. Estudioso de Estudos Culturais e Atlântico Negro cultura diaspórica com interesses em os "inumeráveis manifestações da britânica preta cultura". 93 Stuart Hall (1932-2014) foi autor, teórico cultural jamaicano que atuou no Reino Unido. Ele contribuiu com obras chave para os estudos da cultura e dos meios de comunicação, assim como para o debate político. 94 Homi Bhabha (1949) é indiano e professor doutor “Anne F. Rothenberg” de Humanidades, diretor do Centro de Humanidades Mahindra de Harvard, conselheiro sênior do presidente e reitor da Universidade de Harvard (EUA). 82

Pensadores importantes para o movimento são também Catherine Walsh, Ramón Grosfoguel95, Enrique Dussel96, Eduardo Restrepo97, Nelson Maldonado- Torres98, Immanuel Wallerstein99, Arthuro Escobar100 e Santiago Castro-Gómez101.

A partição imperial da África entre os países ocidentais no final do século XIX e início do século XX (o que provocou a Primeira Guerra Mundial) não substituiu o passado da África pelo passado da Europa Ocidental. Foi assim, também, na América do Sul: 500 anos de regimes coloniais por oficiais peninsulares e, desde os anos 1900, por elites de crioulos e mestiços, não apagaram a energia, a força e as memórias do passado indígena (comparemos com questões contemporâneas na Bolívia, Equador, Colômbia, no sul do México e na Guatemala), assim como não foram apagadas as histórias e memórias das comunidades afrodescendentes no Brasil, na Colômbia, no Equador, na Venezuela e no Caribe insular (MIGNOLO, 2017, p. 3).

Assim como afirma Mignolo, a memória e a história de um povo não é apagada pelo colonialismo. Entretanto, a colonização passa a fazer parte dessa história e também não pode ser esquecida ou desconsiderada. Segundo Elisa Belém (2016) “não parece haver corpo ou indivíduo imune aos efeitos da colonização e da descolonização nas culturas que sofreram esses processos. (BELÉM, 2016, p. 124) Soyinka102 defende que “o sujeito africano contemporâneo resulta da articulação e negociação das tradições culturais nativas, da civilização ocidental e, finalmente, da tradição cosmopolita que caracteriza a atual sociedade transnacional.” (REIS, 2011, p. 25)

95 Ramón Grosfoguel (1956) é sociólogo porto-riquenho e professor na Universidade de Berkeley (EUA). 96 Enrique Dussel (1934), filósofo argentino exilado desde 1975 no México. Autor de uma grande quantidade de obras, seu pensamento discorre sobre temas como filosofia, política, ética e teologia. 97 Eduardo Restrepo é doutor em Antropologia pela Universidade da Carolina do Norte-Chapell Hill, professor associado do Departamento Estudos Culturais da Universidad Javeriana de Bogodá, coordenador do grupo de investigação em estudos culturais da Faculdade de Ciências Sociais e do Instituto Pensar na mesma instituição. 98 Nelson Maldonado-Torres é bacharel em filosofia pela Universidad del Puerto Rico, doutor em Estudos da Religião da Universidade de Brown em Rhode Island, (EUA). Integrante do Grupo Modernidade/Colonialidade. 99 Immanuel Maurice Wallerstein (1930) sociólogo estadunidense, conhecido pela sua teoria do sistema-mundo. Doutor Honoris Causa pela Universidade de Coimbra (2006) e pela Universidade de Brasília (2009). 100 Arturo Escobar (1952) é um colombiano-americano antropólogo e Distinguished Professor Kenan de Antropologia da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, EUA. 101 Santiago Castro-Gomez (1958) colombiano doutor em filosofia pela Johann Wolfgang Goethe Universität e atualmente professor catedrático da faculdade de filosofia da Universidad Santo Tomás, em Bogotá. 102 A universidade de Ibadan foi berço de muitos artistas pós-coloniais como Wole Soyinka,o poeta Christopher, o dramaturgo Clark e o romancista Chinua Achabe. 83

Walsh nos explica que prefere suprimir o uso do “S” do termo Descolonial, para diferenciar-se do prefixo “Des” que traz a ideia de desfazer ou reverter o colonial. O termo Decolonial não propõe uma forma contrária ao Colonial, uma negação ou a não existência deste. Walsh pondera a colonização como fato na história que deixou heranças e construiu o caminho de sociedades, economias, políticas, estruturas e culturas. O movimento Decolonial considera, portanto, a Colonialidade presente até os dias atuais. O termo Decolonial propõe uma atitude contínua, como a própria Walsh diz “De transgredir, intervir, insurgir e incidir. O decolonial denota, então, um caminho de luta contínuo, no qual podemos identificar, visibilizar e estimular "lugares" de exterioridade e construções alternativas”103 (WALSH, 2009, p. 14). Decolonial seria então praticamente um verbo, um termo de ação, de uma luta contínua. Como diria Silvia Cusicanqui é preciso “Descolonizar gestos, atos e a língua com que nomeamos o mundo.” (CUSICANQUI apud SILVA, 2017 p. 23).

A alternativa é clara: a destruição da colonialidade do poder mundial” (Quijano, 1992: 10). Logo, não há possibilidade de decolonização dentro do quadro da modernidade. O giro decolonial significa o movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico. (CASTRO GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007 apud BALLESTRIN, 2017, p. 518).

Tais pensamentos e movimentos trouxeram à tona diversas propostas epistemológicas decoloniais. No capítulo 3 abordaremos algumas dessas propostas no campo das artes da cena, dança e teatro, incluindo a tentativa de proposta da atual pesquisa.

DISCURSO DECOLONIAL COM PRÁTICAS COLONIALISTAS

Se você, leitora, leitor, pensa que tais discussões e problemáticas levantadas até o momento já estão ultrapassadas, que bom! Significa que tais processos de pensamento de desconstrução da formalização eurocêntrica e sobretudo racista já estiveram presentes em suas experiências e vivências. Entretanto, acredita-se que tal discurso ainda deve ser feito e muito ainda temos que caminhar.

103 Trecho original em espanhol - de transgredir, intervenir, in-surgir e incidir. Lo decolonial denota, entonces, un camino de lucha continuó en el cual podemos identificar, visibilizar y alentar “lugares” de exterioridad y construcciones alternativas. 84

Ainda existem aqueles que aparentemente com discurso decolonial continuam, mesmo que inconscientemente, tendo práticas colonialistas. Certa vez, estava em um congresso de artes da cena, em uma mesa com muitos ouvintes e grandes nomes de pesquisadores de teatro, quando uma pesquisadora (não citarei nomes de pesquisadores ou do evento por questões éticas) trouxe para a discussão o pensamento de ‘uma mãe de santo’. Sua intenção provavelmente era trazer os discursos muitos anos silenciados, incluir em suas pesquisas e pensamentos ensinamentos de saberes tradicionais de uma religião afrodescendente brasileira que durante muitos anos vivia à margem da sociedade. A questão é que, aparentemente, sua intenção, que podemos chamar de decolonial, era interessante, mas sua forma de colocação questionável. Em uma mesa com diversos pesquisadores, em um evento acadêmico, ouvia-se: “uma mãe de santo disse” e em seguida, a pesquisadora discorreu sobre os ensinamentos de tal mãe de santo. O que questiono aqui é que se por um acaso qualquer pesquisador dissesse “um filósofo disse:” ou “um historiador disse:” essa pessoa provavelmente seria questionada: Que filósofo? Que historiador? De onde? De qual corrente de pensamento? De qual época? Entre outras questões que buscariam uma melhor referência de tal citação para contextualizá-la sem generalizar a todos os filósofos e historiadores, pois sabemos que existem diferentes correntes de pensamentos, diferentes escolas e etc. A problemática que coloco aqui é por que quando citada uma mãe de santo não é questionado “de qual religião?” “Qual das nações”? O que acontece aqui é, a meu ver, que apesar de haver uma intenção decolonial, os discursos e os ouvidos dos que os recebem ainda estão mergulhados na Colonialidade e generalizam tais ensinamentos como se todas as religiões onde existem mães de santos fossem iguais, como se não houvesse nações ou correntes, ou como se todas as casas de santos tivessem os mesmos pensamentos e desconsiderando também a individualidade de tal mãe de santo. Isso se dá talvez pelo fato de durante muitos anos o pensamento africano ou afro-descendente não ser considerado conhecimento ou possível de elaborar discursos e pensamentos como discutido anteriormente. Situação semelhante acontece em muitos palcos e escolas onde a chamada “cultura popular” é colocada em foco de forma rasa, exótica e turística. Allan da Rosa (2019) comenta sobre “cursos de percussão e de dança em bairros nobres (nobres?) que cobram caro por aulas de poucas horas mensais, vendendo pingos de 85

“autenticidade” maquiada que terminam por não proporcionar nada ou muito pouco das rodas e dúvidas, dos esforços e conquistas, das concepções de mundo e de imagens que as comunidades deslindam diariamente, há séculos.”(ROSA: 2019, p. 37) Segundo Rosa tais atitudes acabam por ser um desserviço tanto às comunidades onde tais manifestações são originárias, como aos próprios alunos. Mbembe explica que para o pensamento iluminista, a posse de uma identidade genérica em sua essência é universal e definida pela sociedade, e da qual, demanda valores e direitos que por todos podem ser partilhados. Todos os seres humanos são unidos em uma mesma natureza. A razão central está justamente nessa identidade comum. Exercitar a racionalidade conduz não somente à autonomia e a liberdade, mas inclusive, ao moralismo e ao bem por conduzirem as individualidades de cada vida. Não há lugar para uma política universal fora desse âmbito. Segundo Mbembe “durante a fase pós-abolição, a questão era se os africanos estavam fora ou dentro do círculo, ou seja, se eles eram seres humanos como todos os outros” (MBEMBE, 2001, p. 178-179). As questões colocadas são: entre os africanos, seria possível encontrar o mesmo ser humano com outra configuração e definição? Os corpos, trabalhos, línguas e a vida africana, como possível consequência da produção humana, podem ser considerados como um outro “eu ocidental”? O Papa Paulo III declarou em 1537 que os ameríndios eram humanos. Sua declaração que está longe de ser revolucionária sob o ponto de vista éticos entre os povos deixou claro que nem todos os humanos possuem humanidade. Quijano nos diz: “Desde então, nas relações intersubjetivas e nas práticas sociais de poder, formou-se, de um lado a ideia de que os não europeus têm uma estrutura biológica, não somente diferente da dos europeus, mas sobretudo pertencente a um tipo ou nível ‘inferior’”104 (QUIJANO, 1992, p. 437 apud WALSH, 2009, p.263).

Se os africanos eram tipos diferentes de seres, era porque eles tinham sua própria identidade. Esta identidade não podia ser abolida. Pelo contrário, a diferença teria de ser inscrita em uma ordem institucional distinta, enquanto, ao mesmo tempo, esta ordem seria forçada a operar a partir de uma perspectiva fundamentalmente desigual e hierarquizada. (MBEMBE, 2001, p. 179).

104 Texto original em espanhol - Desde entonces, en la relaciones intersubjetivas y en las prácticas socialies del poder, quedó formada, de una parte la idea de que los noeuropeus tienen una estrutura biológica, no solamente diferente de la de los europeus, sino, sobre todo, perteneciente a un tipo o a un nivel “inferior”. 86

Segundo Mbembe (2001) a diferença dos povos africanos era reconhecida e ao mesmo tempo justificava desigualdades. A partir desse princípio de diferenciação e não similaridade o Estado Colonial utilizou-se da ‘Tradição’ com o objetivo de colonizar a diferença e delimitá-la, desconsiderando sua pluralidade e ambivalências.

O paradoxo deste processo de reificação era que, de um lado, ele parecia ser o reconhecimento desta tradição, enquanto de outro ele constituía um julgamento moral, porque, em última análise, tal tradição se tornara específica apenas para melhor indicar a extensão na qual o mundo do nativo, em sua naturalidade, não coincidia, de forma alguma, com o nosso; em suma, ele não era parte de nosso mundo, e, portanto, não podia servir como base para uma experiência de convivência em uma sociedade civil. (MBEMBE, 2001, p. 179).

Mbembe discorre também sobre a política de assimilação que à princípio consistia na possibilidade de vivência em um mundo comum a todos os seres humanos. Entretanto, este mundo à priori não estava disponível à todos. O chamado “nativo” deveria se converter à tal mundo, assimilando regras de convívio e vivência pré-estabelecidas. Portanto “os sujeitos africanos podiam ter direitos e usufruir deles, não por causa de seu pertencimento às regras da tradição, mas pelo seu status como indivíduos capazes de pensarem por si mesmos e exercerem sua razão, esta faculdade peculiar aos humanos” (MBEMBE, 2001, p. 179).

Desta forma, a essência da política da assimilação consistia em dessubstancializar e estetizar a diferença, ao menos para uma categoria de nativos (les évolués) cooptados para o espaço da modernidade por terem sido “convertidos” e “cultivados”, ou seja, tornados passíveis de se encaixarem na ideia de cidadania e do gozo dos direitos civis. Isso envolvia a passagem da tradição para a sociedade civil – mas, por meio da experiência do cristianismo e do Estado colonial. (MBEMBE, 2001, p. 179).

Tal política de assimilação retoma a noção de ‘civilização’ discutida anteriormente e concede a definição entre o que era humano, não humano e o que poderia ser projetado como humano caso lhe fosse aplicado uma formação adequada ou se assimila ‘formas civilizadas’. Citando o caso de Portugal e Moçambique Colonial, Talise Gasparetto (2013) comenta que os portugueses optaram pela política de assimilação visando “fazer com que estes indígenas se aproximassem da cultura lusitana e absorvessem valores e hábitos que fossem condizentes com seus desígnios colonialistas.” (GASPARETTO, 2013, p. 365). 87

Esta visão colonial, ainda está presente e por vezes disfarçada em diversos discursos. Ainda hoje, existem esforços para o reconhecimento da filosofia africana como sistema de conhecimento. Segundo Diagne (2014) “algumas críticas expõem esse pensée como incapaz de produzir algo que sensatamente seja considerado como filosofia.” (DIAGNE, 2014 apud WEBER: 2014, p. 565).

Muitos dos discursos que testemunham o conhecimento sobre a África ainda são aqueles que colocam estas sociedades enquanto incompetentes e não produtoras de seus próprios textos, pois estes não necessariamente se ocupam de uma lógica do escrito (DIAGNE, 2014 apud WEBER: 2014, p. 565).

Vi aquela família crescer enquanto eu crescia também [...] Ouvi muitos tambores, muitos cantos. Vi muita dança. Vi bebês nascerem. Vi brigas e desavenças. Vi casais se apaixonarem. Vi muitos doentes também. Às vezes pegavam minhas folhas ou dava-lhes algo do meu tronco para

passar em adoentados. Quando maior mas Baobab jovem ainda, as coisas foram mudando. Aqueles com quem convivi minha infância

inteira começaram a partir. Alguns pude ver falecer aos meus pés, outros preparavam-se com armas de fogo para partir. Acima da minha copa vi muitas bombas explodirem ao meu redor. Surgiram aves feitas por homens que voavam nos céus e de lá também atiravam balas que nos atingiam, a mim e àqueles que entendia por família, por mais diferentes que pudéssemos ser. [...] Depois de anos as bombas cessaram. Aquelas aves humanas também não tornaram a aparecer. E com o passar de tempos, comecei a avistar alguns humanos. Alguns começaram a fazer morada próximo a mim. Lá de cima, eu via outros fazendo morada um pouco mais distante. E cada vez chegavam mais. Surgiam mais e mais humanos... As cores, as vozes, as conversas, os cantos, as pegadas nas terras voltaram a surgir. (Conto Baobab)

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Assim como no conto ‘Baobab’ (Capítulo 1), a árvore revela a história de uma África maior do que uma vida, discorre sobre a existência de povos antes da colonização e se retomarmos também o conto ‘De Onde Vem’, percebemos, mesmo em localidades próximas, a existência de diversas culturas de distintos povos. Questiona-se desta forma a visão generalizada que muitas vezes se tem da África. Segundo Eliana Reis “ao contrário do que pode indicar a visão homogeneizadora da África presente no discurso colonial, os europeus encontraram um continente marcado pelas histórias locais, múltiplas e interligadas, de povos caracterizados pela diversidade étnica e cultural” (REIS, 2011, p. 21).

Quando você pensa em África qual a primeira que lhe vem a mente? Negros? Fome? Escravidão? Um território homogêneo? Calor e safári? O continente africano está ligado a uma série de préconceitos que dificilmente são reprimidos por um motivo bem claro: o desconhecimento. (GASPARETTO, 2013, p. 364)

No início do atual capítulo discorremos sobre diversos motivos e processos que tornaram o continente africano esquecido e geraram tal desconhecimento citado por Talise Gaparetto. Mbembe (2014) discorre sobre a lógica francesa de consignação racial onde três pontos são colocados. Primeiramente, a negação, ocultação ou a recusa em ver. Em seguida, a limpeza, o travestimento. E por fim, o exotismo. No Brasil, nossa herança africana foi negada durante muitos anos. Primeiramente, a conhecida história das ‘Sete voltas na árvore do esquecimento105’, que simbolicamente seria um apagar da memória africana quando negros eram trazidos forçadamente ao Brasil colonial. Em seguida, pela política de embranquecimento, que disfarçava e apagava a memória africana, como discorrido anteriormente no primeiro item do presente capítulo. Essas ‘feridas coloniais’106 fizeram com que muitos descendentes de africanos não soubessem de quais nações e regiões do imenso continente vieram, o que corrobora para tal visão generalizada de África e pode se refletir no exemplo citado acima sobre a não especificação do discurso de ‘uma mãe de santo’.

105 Dar sete voltas na árvore do esquecimento é o último gesto que os escravizados teriam feito antes de embarcar nos navios negreiros e deixar para trás o continente africano, suas famílias, suas origens. Um ritual de partida: partir sem olhar para trás. Tal gesto é registrado principalmente no Benin. 106 Feridas coloniais - termo de Mignolo (2005) 89

Um dos problemas que enfrentamos sempre que a palavra África surge é que a vemos apenas sob o ponto de vista de um paradigma colonial. [...] Nós não reagimos só ao colonialismo. Temos múltiplas existências e o confronto com o colonialismo é uma delas - mas não é o único paradigma que descreve a nossa vida diária. (AWAM AMKPA 2010 apud COSTA, 2014, p. 7).

Awam Amkpa107 fala sobre a visão de África sempre combatendo um colonialismo e retoma a multiplicidade e pluralidade do continente e de vivências do africano atual. Segundo Feierman, “as próprias narrativas, contadas no interior das sociedades africanas, não são citações socialmente neutras que servem a todos igualmente.” (FEIERMAN, 1993, p. 176). As palavras de cada indivíduo (africano ou não) devem ser contextualizadas, pois estão embutidas de uma corrente de pensamento, uma vivência e também de uma rede de relações de poder. Isto vale para os relatos de vitórias europeias, de criações afrocêntricas, de filósofos americanos, de indígenas latino-americanos ou de mães de santo brasileiras. “A interpretação histórica precisa ler as tradições (precisa ouvi-las e assistir suas performances) prestando atenção nas formas de dominação inscrita nelas, as relações da rede social na qual elas estão encravadas” (FEIERMAN, 1993, p. 176). Antropólogos, historiadores e pesquisadores de distintas áreas em Moçambique revelam que ao chegar a uma comunidade para pesquisar, primeiramente é necessário entrar em contato com o chefe dirigente de determinada região. Tal chefia que tem ligação governamental apresentará grupos e pessoas específicas para que você possa realizar sua pesquisa. Marílio Wane108, na palestra “Moçambique Arte e Memória - danças tradicionais e patrimônio cultural em Moçambique” ministrada em São Paulo no ano de 2016, levantou a problemática sobre a quais grupos são permitidos acesso e quais não? Teriam eles ligações com associações políticas? No debate discutia-se que tais chefes acabavam dando luz e compartilhando contato de grupos que apoiavam seu posicionamento político e grupos que iam contra os posicionamentos do dirigente acabavam tendo menor visibilidade externa. Isso reforça o que Feierman aponta sobre as relações de poder entre as

107 Awam Amkpa (1959) é um ator, dramaturgo e professor de artes dramáticas da Nigéria. 108 Marílio Wane é moçambicano doutorando em Ciências Musicais (Etnomusicologia) pela Universidade Nova de Lisboa, desde o ano de 2017. Pesquisador do ARPAC – Instituto de Investigação Sócio-Cultural, órgão do Ministério da Cultura e Turismo de Moçambique dedicado à pesquisa do Patrimônio Cultural Imaterial Nacional. 90

tradições, e nos coloca em um lugar de não ingenuidade no ato de pesquisar sabendo que relações de poder podem guiar seus olhares e orientar pesquisas e dar visibilidade externa de tais manifestações ou práticas tradicionais. Isto posto, percebemos que o Mapiko também entra nessas relações de poder. Os Macondes tiveram forte influência e participação na guerra de libertação em Moçambique. Conquistada a independência muitos Macondes foram para o Sul habitando a então capital Maputo. Entre eles muitos assumiram posições políticas do novo governo. É possível que isso tenha gerado uma maior visibilidade na manifestação em comparação a outras manifestações semelhantes muito menos conhecidas e pesquisadas em Moçambique (tal como Nyau109). O Mapiko, bem como as esculturas em pau-preto, foi valorizado como representante da arte moçambicana em eventos internacionais e de apoio à independência do país. Após a independência, o Mapiko e as esculturas em pau-preto receberam destaque como patrimônio cultural moçambicano. O enfoque dado à máscara de Mapiko na representação da arte moçambicana é um reflexo da simbologia que permeia os macondes, simbologia atrelada à resistência de um povo que lutou por sua libertação. Pode-se enfatizar as relações de poder uma vez que esta simbologia também é vinculada à adaptação do povo moçambicano à um novo modelo de ser, modelo que segue a ideologia da FRELIMO. A seleção de tais manifestações artísticas como patrimônio cultural também reflete uma valorização estética e comercial da cultura maconde, transformando-as em produto. Desde viajantes estrangeiros adentrando os territórios maconde até as exposições internacionais, o patrimônio cultural moçambicano é consumido. Podemos notar também o jogo de relação de poderes com o Mapiko, especificamente quando o governo socialista pós-independência assume e patrocina grupos de Mapiko que tratam em suas danças sobre temáticas socialistas e cívicas. O que houve com os grupos que não seguiam tais direcionamentos? É de suma importância colocar que, os registros que a atual pesquisa alcançou, tem como base as vozes de entrevistados Macondes especificamente

109 A origem do Nyau é associada, segundo o historiador Fernando Dava à formação do Estado Undi, por volta do século XVII, altura em que se supõe ter sido adoptado como uma forma de manifestação do seu poderio sobre os povos conquistados. A dança é executada por diversas etnias das zonas transfronteiriças de Moçambique, Malawi e Zâmbia. É conhecida como “dança dos mistérios”. É também conhecida por gule wankulo, sendo preferida por tribos como os Chewa, Achipetas e Azimbas.

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fazedores dos Mapiko da Zona Militar e de Boane, em Maputo, e trechos de outras pesquisas realizadas no planalto de . Tais vozes relatam uma das possíveis raízes e recortes na história e desenvolvimento do Mapiko. Existem outros tipos de Mapiko que tal pesquisa não alcançou, outras histórias que contrapõem ou completam a história aqui narrada.

É tão difícil satisfazer-se em ouvir uma única voz africana autoritária deixando outras silenciadas, ou ler textos africanos sem reconhecer marcas de poder, ou sem questionar a autoridade do historiador (africano, americano, europeu ou asiático) que presume para representar a história. (FEIERMAN, 1993, p. 212).

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A CHAMADA “ARTE PRIMITIVA”

Cheguei em um local grande e iluminado.

Eu, outras esculturas e utensílios de minha A casa da tradição da Acasa terra, de minha cultura. Estávamos ali, numa prateleira cercada de vidros. Ao lado uma placa com verdades e meias verdades sobre mim. E acima outra placa onde dizia “Arte Primitiva”. Naquela grande

sala muitas pessoas passavam, nos

olhavam, comentavam sobre nós e seguiam seu caminho. O local era frio, e o olhar das pessoas também. (Conto A Casa da Tradição)

O conto ‘A casa da tradição’ (capítulo 1), traz a história de uma máscara com sua trajetória desde a confeção, venda em território africano, venda para exterior, coleção particular, exposição em museu, desvalorização e venda como objetos usados. O objetivo do conto é discutir e apontar as problemáticas de diversas formas de descontextualização quando as máscaras saem de seu contexto original. Narrado nos dias atuais, não aborda os roubos de tais peças durante principalmente a colonização ou diversas outras possibilidades para tais objetos. Discorreremos agora especificamente sobre a problemática colocada na narrativa ao expor tal máscara em uma secção do museu nomeada ‘arte primitiva’.

No final do século XV, marinheiros portugueses trouxeram para a Europa os primeiros feitiços, objectos africanos que se pensava serem detentores de poderes misteriosos. Encontramo-los sobretudo em gabinetes de curiosidades bem organizados, juntamente com machados ou flechas índios, artefactos egípcios e tambores siameses. Alguns intérpretes consideram-nos sinais de um estádio de barbárie (Hodgen, 1971: 162-203). Contudo, podemos assegurar que são, mais frequentemente, vistos como simples curiosidades coligidas à luz da décima tarefa do viajante-observador indicada na tabela Geographia generalis (1650) de Varenius: considerar “Homens famosos, Artífices e Invenções dos Indígenas de todos os países” (Hodgen, 1971: 167- 68). De um modo geral, estes objectos são culturalmente neutros. Devido às suas formas e estilos, por vezes um pouco assustadores, representam a diversidade misteriosa do Mesmo (Bal, 1963: p. 67). Só a partir do século XVIII é que esses artefatos estranhos e “feios” passarão a ser considerados arte africana. (MUDIMBE, 1988, p. 6)

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A “arte primitiva” aparece como definição de uma classe de obras artísticas em diversos museus e exposições. Os termos Premier e primitif aparecem no Museu do Louvre110 em Paris em catálogos e painéis nas exposições. O Musée du Quai Branly111 também em Paris, tinha como proposta em seu projeto inicial o nome Musée des Arts Premiers. Tal proposta foi negada, pois alegou-se o teor preconceituoso que o termo carregava. Segundo Willet112 “O termo ‘arte primitiva’ é um legado do século XIX que vinham a Europa de seu tempo como ápice da evolução social. Da maneira como é usado atualmente, trata-se de um conceito negativo, e não positivo (...). Certamente se trata de uma definição etnocêntrica.” (WILLET, 2017, p. 40) O termo em francê Premier traz a noção de anterior, próximo ao estado de origem. Tal termo remete a noção de arte produzida por sociedades “primitivas”, menos evoluídas, menos civilizadas e atrasadas, trazendo a ideia dos evolucionistas onde existe uma pirâmide evolutiva entre humanos, e na base estavam os negros e indígenas (povos menos evoluídos) e no topo estavam os brancos europeus.

Numa época em que os franceses, como os britânicos e os alemães [...] criavam museus etnográficos e várias formas de estudo antropológico institucionalizado, os artefatos dos povos colonizados eram vistos amplamente como prova de sua natureza incivilizada, “bárbara”, de sua falta de “progresso” cultural. (PERRY, 1998, p. 5 apud GOLDSTEIN, 2008, p.303)

Em 1984, foi realizado uma exposição no Museu de Arte Moderna de NY nos Estados Unidos sobre o século XX e seu primitivismo artístico. A exposição questionando noções de artistas autônomos e inovadores, propunham similaridades formais de suas obras com peças antigas. Uma máscara Kwakiutl113 era o espelho da

110 Inaugurado a finais do século XVIII, é o museu mais importante da França e um dos mais visitados do mundo. Atualmente recebe mais de oito milhões de visitantes a cada ano. Formado a partir das coleções da monarquia francesa e das espoliações realizadas durante o Império Napoleônico, o Louvre abriu as suas portas em 1793. 111 Museu das Artes e Civilizações da África, Ásia, Oceania e Américas. Fundado pelo ex-presidente Jacques Chirac. Entre eles obras permutadas, compradas ou ainda peças roubadas por exploradores, soldados e outros tantos durante o período colonial. 112 Frank Willet (1925–2006) é antropólogo, autor e arqueólogo britânico. Especialista da África do Sul, diretor e curador de museus. Considerado pela crítica o melhor escritor de introdução geral à arte africana. 113 Os Kwakiutl habitam a Ilha de Vancouver, no Canadá. Sustentam-se da caça, coleta de frutos e especialmente da pesca. Metaforizam esta mudança através do uso de máscaras, permitindo ao indivíduo que se ambiente e se adapte ao mundo no qual ele está adentrando. 94

mulher de Picasso114; em uma máscara tusyan115, a cabeça de pássaro de Max Ernst116; em um deus guerreiros dos zuni117, a máscara de Temos de Klee118; entre figuras da Tanzânia, imagens alongadas de Giaconetti119. A dependência dos modernos sob os arcaicos era o que foi revelado com a exposição, abrangendo desde os expressionistas até os fovistas, de Brancusi120 até os artistas rurais e todos aqueles que desenvolvem ações inspiradas em rituais tidos como “primitivos”. Segundo a historiadora Juliana Bevilacqua121 “não se tratou de uma exposição de arte africana em si, mas uma celebração do modernismo através das ‘afinidades’ formais com a arte não ocidental, onde as obras de arte africana apareciam como coadjuvantes.” (BEVILACQUA, 2011, p. 2). A exposição foi amplamente criticada pela falta de debates sobre o colonialismo, a hegemonia política, e as relações de poder entre Ocidente e Não ocidente. Outro ponto crítico foi a falta de contextualização das obras não ocidentais, ou “primitivas” segundo a exposição. O catálogo de tal exposição se limitava em descobrir o caminho traçado de tais obras antigas até os artistas modernos. Segundo Canclini122, “O deslocamento do foco da arte ocidental e moderna fica na metade do caminho ao preocupar-se apenas em reconstruir os procedimentos através dos quais objetos da África, Ásia e Oceania chegaram à Europa e aos Estados Unidos, e de que modo foram adotados pelos artistas ocidentais.” (CANCLINI, 1998, p. 54-55). A grande maioria dos artistas que eram influenciados pelas artes africanas entrava em contato com tais obras a partir

114 Pablo Ruiz Picasso (1881-1973) foi um pintor espanhol. A Pomba da Paz, Guernica, Les Demoiselles d'Avignon, são algumas de suas obras mais importantes. Foi um dos criadores do Cubismo, um dos mais destacados movimentos de arte do século XX. 115 Máscara tusyan - máscara da região de Burkina Faso. 116 Max Ernst (1891-1976) foi pintor, escultor e artista gráfico alemão. Um dos fundadores do Dadaísmo e mais tarde se une ao Movimento Surrealista. 117 Os Zuni são uma tribo nativa norte-americana, do povoado de Zuni Pueblo, oeste do estado do Novo México. O povoado fica 55 quilômetros ao sul da cidade de Gallup e tem uma população de 12 mil pessoas (80% descendentes de nativos norte-americanos). 118 Paul Klee (1879-1940) foi um pintor e poeta suíço naturalizado alemão. O seu estilo, grandemente individual, foi influenciado por várias tendências artísticas diferentes, incluindo o expressionismo, cubismo e surrealismo. 119 Alberto Giacometti (1901-1966) foi artista plástico suíço que se destacou pelas suas esculturas e pinturas expressionistas. Adere ao movimento surrealista entre 1930 e 1934, período em que produziu algumas obras fundamentais para a caracterização da escultura surrealista. 120 Constantin Brâncuși (1876-1957) foi o mais célebre escultor romeno e um dos principais nomes da vanguarda moderna. Figura central do movimento moderno e um dos pioneiros da abstração. 121 Juliana Bevilacqua é historiadora e mestra em História Social pela Universidade de São Paulo. É pesquisadora de História da África e Arte africana, membro do ACASA-Arts Council of the African Studies Association. Atua como colaboradora do Núcleo de Pesquisa do Museu Afro Brasil. 122 Néstor García Canclini (1939) é antropólogo argentino contemporâneo. É considerado um dos maiores investigadores em comunicação,estudos culturais e sociologia da América Latina. 95

dos acervos de museus e colecionadores, e muitas vezes, não havia preocupações com a contextualização de tal obra ou com a compreensão de significados, funções e valores desses objetos para com suas culturas de origem. Tal fato esteve também retratado na exposição com a falta de foco e contextualização para tais obras.

É oportuno ressaltar que – à mesma época em que se desenvolvia a assimilação das então chamadas “culturas primitivas” pelos cubistas, fauvistas e outros campos estéticos – os músicos ocidentais também abriam uma corrente estética que se empenhava em trabalhar com ritmos que eram percebidos como primitivos, pelos europeus, e com danças ritualísticas, fossem da África ou da América Latina. Alguns dos exemplos mais notórios desse “primitivismo musical” – uma designação que frequentemente era evocada pelos músicos ocidentais – podem ser encontrados na célebre Sagração da Primavera, de Stravinsky (1913), ou no Allegro Bárbaro de Bela Bartók (1911). Essas obras despertaram o mesmo escândalo que algumas das pinturas cubistas, sobretudo o ballet Sagração da Primavera, que tematiza um mundo de sacrifícios pagãos e de ritmos selvagens. Dessa maneira, pode-se concluir que a assimilação da “alteridade primitiva” foi um fenômeno amplo, que abarcou as diversas modalidades de expressão artística e que corresponde de algum modo a uma tendência cultural mais ampla. (BARROS, 2001, p. 90)

É um fato que muitas obras africanas levadas à Europa no período colonial influenciaram diversos artistas ocidentais. A questão levantada é que tais obras são colocadas de “pano de fundo” neste processo, assim como a qualidade artística de obras tidas durante anos como “arte primitiva”. O que foi visto como primitivismo por tal exposição? Segundo Llana Goldstein123 (2008), dois critérios são observados para tal suposta classificação de diversas artes não europeias serem classificadas como “artes primitivas”. O primeiro critério é o caráter instintivo da criação de tais obras, associados à “estágios arcaicos da evolução da espécie, em indivíduos com baixo nível de instrução formal ou em pessoas cujo inconsciente efervescente invade as fronteiras da consciência.” (GOLDSTEIN: 2008, p. 309). Tal critério pode ser debatido facilmente, pois as obras denominadas primitivas envolvem técnicas e maestrias para serem produzidas. Peguemos o Mapiko como exemplo. O ato de confeccionar uma máscara de Mapiko exige um saber, estudo e tempo de prática, além de um processo

123 Llana Seltzer Goldstein é doutora em Antropologia Social (UNICAMP, 2012). Professora do curso de História da Arte da Unifesp, onde ministra as disciplinas Antropologia e Arte e História da Arte Ameríndia. Editora-responsável pela Proa - Revista de Antropologia e Arte (http://www.revistaproa.com.br/05/). 96

longo de aprendizado, onde nem todos podem participar (havendo restrições por sexo, idade, etnia, aptidão, status) e técnicas de utilização de materiais e de linguagens. Pode-se alargar tal exemplo não somente a confecção da máscara em questão, ou de esculturas em geral, mas às danças, toques e cantos e diversos saberes artísticos. O segundo critério é a “posição marginal de seus produtores”, relacionada diretamente ao etnocentrismo. Classificar obras de artistas da atualidade como arte primitiva, coloca-os, suas produções e toda sociedade em um passado histórico e em hierarquia mais baixa, menos evoluída.

Ao examinarmos as artes não-ocidentais, estamos diante de objetos que operam, simultaneamente, como testemunhos etnográficos de outras culturas aos olhos ocidentais, como manifestações estéticas com forte poder de comunicação, no seio das comunidades em que são produzidas, e como mercadorias com valor de troca, no mercado global (GOLDSTEIN, 2008, p. 310).

A exposição Art/Artifact de 1988, no The Center for African Art em Nova York, discutia justamente o fato de como os ocidentais viam as artes africanas e como tais obras eram expostas. A exposição trazia a dicotomia entre objetos que eram considerados arte e outros artefatos, ressaltando e problematizando a visão de arte africana condicionada a cultura de quem a expõe e a consome, e questionando em como o local e a forma de apresentação de uma obra pode influenciar o seu reconhecimento e valorização. Um exemplo de como determinadas questões foram colocadas em prática por Susan Vogel124 em tal exposição foi a forma como uma rede de caça Zande (povo da atual República Democrática do Congo) e diversas estatuetas africanas estavam dispostas. A primeira estava em local privilegiado, com foco de luz, poucos objetos ao seu redor e apenas uma legenda curta com informações objetivas “Rede, povo Zande, Zaire”. As estatuetas por sua vez estavam em uma vitrine juntamente com vários outros objetos diversos e com legendas longas de textos explicativos e densos. A repercussão da exposição gerou aos colecionadores uma ânsia em adquirir a tal rede e um maior interesse geral àquela obra, que aparentemente era um objeto cotidiano. Por outro lado, as estatuetas, que são consideradas obras-primas da

124 Susan Vogel (1987) doutora em história da arte. Curadora no Metropolitan Museum of Art, diretora no Museu de Arte Africana e da Galeria de Arte da Universidade de Yale Professora de história da arte em Columbia. 97

escultura, passaram despercebidas. As problemáticas discutidas por Vogel no ano de 1988, ainda hoje, são atuais. Em 1996, Lévi-Strauss enviou uma carta ao presidente da comissão de artes “primeiras”, Jacques Friedmann, dizendo que os museus de etnografia, atualmente, não podem oferecer imagens válidas de sociedades distintas da dele, pois, segundo Strauss, essas sociedades estão em constante mudança e sendo cada vez mais integradas às políticas e economia globais. Segundo Goldstein, “A convicção de que é possível reconstruir uma sociedade a partir de sua cultura material caiu em descrédito e os museus etnográficos foram acusados de reificar e caricaturar culturas alheias.”(GOLDSTEIN, 2008, p. 311). Esse movimento nos traz a outro debate com relação a antigas coleções de artes de museus principalmente europeus: a relação de poder envolvida nas aquisições dos objetos e obras. Segundo Mbembe (2001), a escravidão, colonização e o apartheid geram a desaparição de bens, que resulta em um desapossamento material. Um caso interessante para problematizar determinado debate é o pedido de devolução à Nova Zelândia da Cabeça Maori125. Tal obra estava nas coleções do Muséum d’Histoire Naturelle de Rouen. O pedido do retorno da cabeça aos Maori foi pelo desejo de sepultamento de tal guerreiro morto em combate. O processo estava dando seguimento a devolução, pois o então prefeito da cidade de Rouen, Pierre Albertini, entendia como devolução de vestígios humanos e aceitou o pedido. Entretanto, Christine Albanel, na altura ministra francesa da cultura, tomando como base a lei Tesca (2002) que veda a comercialização de obras de coleções públicas de toda a França sem uma análise por uma comissão científica, paralisou o processo de devolução. Esse caso, poderia abrir precedente para outros pedidos de devolução e o que seria da coleção francesa de “arte primitiva”? Em 2010, houve um episódio de devolução ao Museu Nacional da Tanzânia, de uma máscara de Mapiko que fazia parte da coleção de arte maconde do Musée Barbier-Mueller de Genebra. A negociação de devolução se deu apartir de mediação do Conselho Internacional de Museus (ICOM).

125 A história das cabeças preservadas está associada ao antigo costume das tribos Maori de cobrir os rostos com tatuagens ritualísticas conhecidas como Moko. Normalmente, eram os homens que recebiam as tattoos e tanto a quantidade quanto os desenhos serviam para simbolizar o status social desses indivíduos. 98

Destaque dado à arte maconde pelos grandes museus com coleções de arte africana pode ser ilustrado pelo recente episódio (2010) envolvendo a devolução dessa máscara Mapiko após vinte anos de negociação entre o Musée Barbier-Mueller de Genebra e o Museu Nacional da Tanzânia, de onde a peça foi roubada, em 1984. A devolução foi realizada sob mediação do Conselho Internacional de Museus (ICOM). Com medo de os museus serem obrigados a se desfazer de seus acervos, potências antigas coloniais têm tratado de forma lenta acordos e atualizações nas legislações. Em 2016, o presidente de Benim, Patrice Talon, exigiu que fosse restituído pela França os cetros, entalhes e as portas sagradas dos palácios de Abomei - capital do Reino do Daomé. Mencionando sua legislação, a França se recusou. “As relações de poder pelas quais uma porção da humanidade pode selecionar, valorizar e coletar os produtos puros de outros precisam ser criticadas e transformadas”126 (CLIFFORD, 1996, p. 213 apud GOLDSTEIN, 2008, p. 299). A questão é como tais obras foram conquistadas? Charlotte Joy127, para debater determinada questão, nos convida a pensar sobre as distinções entre os termos “herança” e “patrimônio”. Segundo a antropóloga, o termo “herança” é associado ao que recebemos de antepassados, já o termo “patrimônio” vem do francês “patrie”, pátria, ou terra natal. Joy (2019) discorre sobre o período colonial e tal noção de pátria alargada para grande parte do território africano colonizado. Desta forma as colônias seriam uma parte mais distante e periférica da metrópole europeia. Com isso, os objetos retirados das áreas da Colônia e trazidos para o Centro de sua pátria formavam, a partir deste argumento, a identidade nacional. Estes objetos hoje estão nas coleções privadas e nacionais de diversos países europeus. Joy aponta para uma contradição entre objetos e pessoas. Nos mesmos países onde objetos são considerados aceitos em diversos museus, imigrantes de antigas colônias não são bem-vindos.

Jovens migrantes não-documentados de antigas colônias francesas ficam a poucos metros do Museu do Quai Branly – Jacques Chirac, um museu em Paris lotado com seu patrimônio inacessível. Os migrantes são tratados com desprezo enquanto os objetos de suas

126 Texto original em inglês: “the relations of power whereby one portion of humanity can select, value and collect the pure products of others need to be criticized and transformed.” 127 Charlotte Joy é autora, especialista em políticas de gerenciamento de patrimônio e professora de antropologia na Goldsmiths, Universidade de Londres. 99

terras natais recebem atenção em museus e são tratados com grande reverência. Os migrantes serão deportados, mas os objetos não serão repatriados. A terra natal é, portanto, apenas a terra dos objetos, não de pessoas. (JOY, 2019, p. 1)

As obras do antigo Reino de Benin exibidas no Metropolitan Museum of Art, possuem ênfase na exposição de Arte Africana. O que não é mencionado é que tais peças foram surrupiadas pelos ingleses em 1897, episódio conhecido como “expedição punitiva128”. Em momento nenhum é abordado a maneira torpe e violenta que foi a expedição de 1897, causando a sensação de que tais peças sempre pertenceram ao museu. A falta de contextualização da apropriação dos objetos é criticada por diversos historiadores e pesquisadores. Segundo Bevilacqua (2011), uma máscara do Reino de Benin semelhante à do Metropolitan Museum of Art “apareceu” na lista de obras a serem leiloadas pela Sotheby´s de Londres, gerando uma enorme manifestação, especialmente entre os pesquisadores e historiadores da arte africana e instituições como Nigéria Liberty Forum. Estima-se em cinco milhões de libras o valor da máscara, que se encontra sobre posse pessoal do coronel que compôs a “expedição punitiva”. O leilão foi suspenso após inúmeros protestos.

128 A expedição punitiva foi uma missão militar conduzida pelas forças britânicas, que contou com 1.200 homens sob o comando do almirante Sir Harry Rawson que investiu contra a Cidade do Benim, capital do Reino do Benim. Na ocasião, foram confiscadas mais de duas mil peças de bronze, criadas desde o século XIII. (GONZAGA. Disponível em: ) 100

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Pelo colonialismo ter sido uma experiência humilhante para muitas pessoas que foram colonizadas, é simples entender por que recuperar o controle sobre seu patrimônio seria um passo na direção de um começo da cicatrização. A devolução de objetos culturais permitiria que se tivesse acesso com profundidade à arte e à sabedoria cultural de modo a alimentar as economias criativas dessas jovens nações. Os atos de devolução em si são um símbolo de forte contrição, reabrindo o diálogo a respeito de erros do passado para melhor estabelecer relacionamentos para o futuro. (...) Restos humanos já foram devolvidos de museus para que fossem sepultados com dignidade. Arte saqueada pelos nazistas foi confiscada de colecionadores desavisados e devolvida a famílias judias. Agora é a época de levar a sério o patrimônio colonial, porque o patrimônio registra as biografias de quem fez e adquiriu os objetos, lançando seus descendentes em relacionamentos morais no presente. Agora não é uma questão de “se”, mas “quando” os objetos serão devolvidos, e se isso acontece de bom grado ou por meio de um litigioso processo de resistência. (JOY, 2019, p. 2)

Segundo Joy (2019), a ideia de construção da nação de diversos países da África Subsaariana pode ser fortalecida também a partir da devolutiva de objetos

129 Membros da expedição e peças saqueadas na expedição punitiva ao Benim de 1897.GONZAGA. Rafael. Expedição Punitiva ao Benim de 1897. - Disponível em http://www.afreaka.com.br/notas/expedicao-punitiva-ao-benin-de-1897/ (Acesso em 20 de novembro de 2019).

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residentes em museus externos, ocasionando na reparação do projeto colonial e seus danos consequentes, e apoiando a economia criativa emergente. Um movimento de retorno de tais obras, de forma lenta e burocrática, está por ocorrer. O presidente francês, Emmanuel Macron, em 2017 num discurso em Burkina Faso declarou: "O patrimônio africano não pode estar unicamente nas coleções privadas e nos museus europeus" (MACRON, 2017), e as negociações de obras que foram para o território francês durante o período da colonização estão sendo consideradas. Em 2017, Monika Gruetters, ministra alemã, se posicionou a favor de tratar de peças africanas como o Centro Alemão de Propriedade Cultural Perdida que busca a devolução de obras roubadas pelos nazistas. Apesar desse movimento ainda existe muita oposição às devoluções. Os descontentes com perspectivas de devoluções alegam temer o esvaziamento de museus e galerias dos países ocidentais. Também argumentam que muitas das obras são originárias de reinos não mais existentes e desta forma não teriam os proprietários legítimos para devolução. O medo também está em colecionadores particulares não mais disponibilizarem suas coleções aos museus com medo de perderem “suas” obras. Também existem críticas que reforçam o preconceito e hegemonia eurocêntrica, alegando o receio de as obras se perderem por medo de roubos ou falta de cuidados por parte dos governos africanos, com “museus inexperientes” e “estados politicamente instáveis”. O colecionador norte americano, John Friede, em um ciclo de debates na inauguração do Musée Branly, o qual ele fazia parte do comitê de aquisições, fez um pronunciamento em defesa da autonomia dos colecionadores e museus em relação aos povos tradicionais, com o intuito de preservar obras de artes. Nesse pronunciamento ele tenta elevar as obras elogiando sua potência artística, mas considera que tais sociedades de onde tais obras são originárias, fossem incapazes de guardá-las ou preservá-las. No mesmo debate, Manuela Carneiro da Cunha130, discorreu sobre o direito que o artista de uma obra tem a acompanhá-la, mesmo que a tenha doado ou vendido. Mas e as peças sem autoria? Determinadas questões nos levam a outra problemática: autoria e datação das obras. A ausência de atribuição autoral ou datas expostas vagamente nas peças

130 Manuela Carneiro da Cunha é autora, professora titular aposentada da Universidade de São Paulo (USP) e emérita da Universidade de Chicago. Teve papel importante, durante a Assembleia Constituinte, na elaboração dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, que garantem os direitos dos povos indígenas. 102

contribuem para o anonimato ou para a crença de serem obras coletivas, o que ressalta a falta de informação das galerias e museus. A utilização da nomenclatura “artista” é comum entre os estudiosos da “arte primitiva”. Durante o referido debate, Maurice Godelier131, ressaltou que nas sociedades tradicionais não são todos capazes de fornecer um utensílio repleto de poder e sentido. Muitos anos podem levar até que a aprendizagem do ofício possa fazê-lo. Como já citamos acima, o exemplo do Mapiko, que assim como em muitas outras sociedades africanas exige maestria e uma tradição compartilhada para a confecção de tais objetos, com diversas restrições para a conquista de tal espaço de artista. Até recentemente, a arte africana foi adquirida como propriedade de grupos “étnicos” e não por indivíduos ou estúdios, sendo comum que na exposição Perspectivas 18 nenhuma das peças que constavam no catálogo tenham sido identificadas com o nome do artista individualmente, mesmo muitas delas tendo origem no século XX. Tampouco houve revolta ou surpresa, ao ser anunciado o nome dos proprietários das coleções rotuladas (que eram basicamente, particulares). Essa falta de definição com relação às datas das obras faz com que muitas confusões aconteçam, como por exemplo, expor em mesmas salas, compartilhando o mesmo texto explicativo, obras pré-históricas e contemporâneas. Segundo Robert Layton (2001), “As sociedades atuais não são ‘fósseis’ do passado, de modo que a arte pré-histórica não deveria ser equiparada às artes indígenas de nossos dias” (LAYTON, 2001 apud GOLDSTEIN, 2008, p. 302).

O mercado internacional da arte turística está dependente da procura ocidental de um souvenir “exótico," de artigos para oferecer e do pressuposto de que eles devem ser adquiridos no exterior. Os artistas e artesãos veem essa procura como um estímulo para criar novas ideias e tecnologias, para atender às necessidades do mercado em expansão. (Jules-Rosette, (1984:1192). A arte africana para turistas e as suas contradições (Será arte? Em que sentido e de acordo com que tipo de classificação estética?) são apenas uma consequência ad valorem do processo que, durante o período do comércio de escravos, classificou artefactos africanos à luz do modelo do pensamento e da imaginação ocidental, em que a alteridade surge como uma categoria negativa do Mesmo. É significativo que um grande número de representações europeias de africanos ou, mais genericamente, do continente africano, demonstrem essa ordenação da alteridade. (MUDIMBE, 1988, p. 21)

131 Maurice Godelier (1934) é antropólogo francês. Também advoga a incorporação do marxismo à antropologia. 103

Sociedades sem escrita e produções artísticas de países em desenvolvimento satisfazem o anseio euro-americano do encontro com um “outro” exótico. Ao compreender esse rendimento do mercado, entidades africanas produzem e comercializam a escultura “neotradicional”, segundo nomeia Appiah (1997), exclusivamente pensada para o Ocidente com obras semelhantes às peças pré- coloniais. A noção de “pseudotradicional” é um termo próximo utilizado por Nelson Graburn132 (2006), ao exemplificar os trabalhos manuais indígenas que são estereotipados no conceito cultural que compradores têm sobre essas populações. Em casos assim, o artista nativo cria propositalmente a projeção esperada pelos colecionadores. Graburn acredita que obras que ele nomeia “pseudotradicionais” trazem uma objetividade por parte dos artistas com uma mensagem: “estamos aqui, somos distintos nos orgulhamos do que fazemos e é exclusivamente nosso”.

Os Makondo da Tanzânia, que recentemente adotaram a escultura em ébano por causa da pobreza e do deslocamento de Moçambique, fizeram o melhor uso dessa tendência: eles desenvolveram duas formas de arte turística totalmente novas, o bindamu, formas puramente realistas que são reconhecidas como africanas, e o shetani, ou formas espirituais, que são semi-abstratas. [...] os africanos são "supostamente" entalhadores de madeira e, mesmo onde não são, pegam no métier e se tornam bons nisso! (GRABURN, 2006, p. 425 apud GOLDSTEIN, 2008, p. 360)133.

Existem casos em que muitos souvenirs étnicos são produzidos em série, de modo mais simplificado, para que possam competir com artigos industriais. Ao fabricar peças em série conquistam sucesso no comércio de mercadorias, mas tais ações também desvalorizam peças antigas, antes supervalorizadas por colecionadores de arte. Dessa forma, o movimento traz a polêmica das falsificações. Segundo Goldstein, “o problema é que a idade é justamente um dos critérios de autenticidade mais acionados no mundo dos museus e dos colecionadores de arte ‘primitiva’. Normalmente, o autêntico é associado por esses especialistas ao pré-moderno. A

132 Nelson Graburn foi professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley, (1964-2007). É conhecido como um dos pioneiros e mais importantes estudiosos do turismo na área da antropologia no mundo. 133 Texto original em inglês: The Makondo of Tanzânia, who only recently took up ebony carving because of poverty and displacement from Mozambique, have made the best use of this trend: they have developed two entirely new tourist art forms, the bindamu, purely realistic forms that are recognizable African, and the shetani, or spirit forms, which are semi-abstract. [...] Africans are “supposed” to be woodcarvers, and, even where they are not, they take up the métier and become good at it! 104

raridade é outro critério que valoriza um artefato indígena no mercado especializado.” (GOLDSTEIN, 2008, p. 300). A escultura Maconde é apresentada em diversos museus e desperta interesse no público que se dispõe em apreciar e também em adquirir peças. Dessa forma, há um mercado ativo de esculturas macondes. Há uma relação entre comerciantes e escultores na qual os comerciantes fornecem a madeira e os escultores criam peças, mantendo as lojas cheias de arte maconde. Esta relação é mantida pelo interesse no lucro das produções e foi durante anos forma de manutenção de um poder colonial sob a cultura e o povo maconde. Segundo Lia Laranjeira (2016), pode-se notar, portanto, que a consolidação do mercado de arte maconde bem como o enaltecimento do lucro, colocando-o acima da arte e do próprio artista, vai de encontro com os estereótipos que acompanham as narrativas sobre o povo maconde. É embasado no estereótipo do exotismo de “arte africana” que maior número de compradores é atraído. Ou seja, a valorização da arte maconde está diretamente relacionada com a exotização do povo maconde. Com o crescimento do capitalismo o mercado pode se apropriar de um elemento cultural para gerar venda e/ou estipular uma corrente de moda, sem dialogar, como nos referimos acima, com tal cultura, muitas vezes descontextualizando-a. Desta forma, ao contrário de ressaltar e valorizar tal cultura, acaba por diminuí-la, aproximando-a de forma hierárquica. “Veículo para invocar a tradição e reciclar identidades locais é o mercado.” (MBEMBE, 2001, p. 24). Segundo Willet (1971), “O único modo razoável de abordar as tradições artísticas estrangeiras é em seus próprios termos” (WILLET, 2017, p. 40). Em defesa à não utilização do termo “arte primitiva” pelos mesmo argumentos que citamos anteriormente, ele propõe nomeá-las a partir de suas regiões e exemplifica “arte tradicional africana”, “oceânica” ou “americana”. Willet reforça a importância do termo arte tradicional: “é importante dizer ‘tradicional’, porque em todas essas regiões do mundo estão mudando ou mudaram, e os artistas estão sendo impelidos para o mundo cosmopolita da arte moderna.” (WILLET, 2017, p. 40).

A importância do contato com tradições vivas, que souberam cultivar um trabalho colaborativo no tempo, transmitindo experiências preciosas, nos faz refletir sobre capacidades que se encontram atrofiadas no homem da nossa época e sobre a necessidade de uma cultura equacionar processos de inovação e conservação, trabalhando com uma noção mais complexa do tempo. (QUILICI, 2015, p. 49). 105

Se entendermos o termo tradição como “trabalho colaborativo no tempo”, como defende o professor Cassiano Quilici134, notamos que tais artes estão no tempo fluindo junto dele e não situadas em um recorte de tempo passado como sugerido por Willet. Quando pontuado “arte tradicional africana”, como diz Willet e diversos outros pesquisadores, parece-me que o intuito é localizá-la em um determinado tempo e espaço. “Tradicional”, seria o tempo passado e “Africana” o espaço do continente africano. Acho possível tal definição se entendermos que o tradicional continua fluindo no tempo, sem situá-las em um passado fixo, mas sim no tempo passado-presente- futuro fluido, assim como veremos o exemplo do Mapiko no decorrer da tese. Ao lidarmos com termo: arte tradicional africana, devemos tomar o devido cuidado também com a generalização do continente africano. Como o próprio Willet diz: “O tamanho do continente africano por si só explica os perigos da generalização (...) o continente africano tem uma diversidade maior de povos e culturas que os outros.” (WILLET, 2017, p. 20). Arte tradicional africana seria, portanto, uma arte viva situada no passado-presente-futuro e no continente africano e não podemos esquecer de localizá-la, e especificar seu contexto.

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134 Abordaremos mais detalhadamente este termo no capítulo 4. 135 Máscaras de Mapiko. Imagem 1: Máscara Mapiko, data aproximada 1900-1930, Localização: Museé Dapper.(Paris: Museé Dapper, 1995, p. 79 apud BORTOLOT, 2007, p. 245) 2013. Imagem 2: Dançarino performando Mapiko Shikeyla, com uma máscara representando Papa João Paulo II, vila Mbau. (BORTOLOT, 2007, p. 266) 106

Desta forma as duas imagens são de Artes Tradicionais Africanas Moçambicanas de Mapiko. A primeira máscara, localizada atualmente no Museé Dapper, data do início dos anos 1900 e a segunda máscara em ação na Vila Mbau no norte de moçambique, foi registrada em 2004. Entretanto, devido às datas a primeira é tida como arte tradicional e a segunda seria o que podemos chamar de arte contemporânea? Cassiano Quilici também afirma visões para o termo contemporâneo, onde pode ser visto como uma noção de tempo, que sucede a modernidade (compreensão superficial do termo)” (QUILICI, 2015. p. 31) ou como “um modo específico de relação com o nosso tempo” (QUILICI, 2015, p. 28). Atanásio Cosme Nyusi ao falar da manifestação Mapiko problematiza “eles chamam de dança tradicional, mas esse é o nosso contemporâneo” (NYUSI apud ISRAEL, 2013, p. 3). Tais relações entre tradição e contemporaneidade serão aprofundadas no decorrer da tese. Importante pontuar a ligação de arte tradicional com religiosidade. Na atual pesquisa abordaremos o Mapiko, cuja origem está pautada na base espiritual, entretanto, quando adaptado e usado como referência para a cena (como veremos a seguir em teatro moçambicano), pode não ser religioso. As máscaras africanas no imaginário do ocidente muitas vezes são ligadas ao primitivismo e a ligação com espíritos. Segundo Monti (1966) “o estudo da máscara africana leva inevitavelmente a uma análise da personalidade do homem primitivo, em contraposição à do coirmão mais evoluído do ponto de vista cultural.” (MONTI, 1992, p. 8). Willet afirma “não é verdade que toda arte africana seja religiosa” (WILLET, 2017, p. 178) É importante a não generalização. O Brooklyn Museum, nos Estados Unidos, tem uma importante coleção de arte africana, tais peças chamadas de “Arte tradicional” são separadas por localizações geográficas. Máscaras e alguns outros objetos são contextualizados com o acompanhamento de fotografias ou vídeos de suas utilizações e contextos originais. Assim como outros museus que expõem arte africana, a coleção de arte do Egito, são apresentadas separadamente. Aos poucos, e de forma ainda tímida, as obras chamadas “Arte africana contemporânea” estão sendo inserida na exposição. O Metropolitan Museum of Art, de Nova Iorque, também tem inserido obras de arte contemporâneas africana juntamente com as obras da chamada arte tradicional africana. Tal movimento, apesar de contemplar a gama de artistas contemporâneos africanos e atualizar as produções artísticas ocorridas no continente, desconstruindo 107

a visão até então de África estagnada no tempo como vimos anteriormente, traz outros questionamentos. Por que os artistas contemporâneos de África são expostos junto às obras de arte tradicional africana e não em exposições de arte contemporânea que contempla artistas de diferentes países? Um exemplo interessante onde o diálogo entre as artes tradicionais e contemporâneas é feito de maneira fluida e a imagem de África como continente dinâmico, transformador e agente de mudanças está na exposição permanente “African Voices” do National Museum of Natural History (Smithsonian Institution) em Washington, Estados Unidos. O objetivo da exposição é de “examinar a diversidade, dinamismo e influência global dos povos da África e culturas ao longo do tempo nos domínios da família, trabalho, comunidade e meio ambiente natural”136. Dialogando com os pontos levantados no início do capítulo por Sertima (2007) e Feierman (1993) sobre a influência que o continente africano tem na história global e exposição ressalta: “a História da África e dos povos influenciaram profundamente a cultura global e do pensamento - e continuam a fazê-lo hoje. O próprio passado e presente da América estão fortemente ligados à África”. (NATIONAL MUSEUM OF NATURAL HISTORY, 2019) A exposição explora temáticas como ‘A riqueza em África’, ‘Vivendo África’, ‘Trabalhando em África’, abordando trocas, comércios, contatos e conhecimentos fluidos no passado e no presente, expondo áreas urbanas e não somente rurais. Expõem de forma fluida obras chamadas “contemporâneas” e “tradicionais”, misturada com contextos sonoros como por exemplo o som de músicas africanas contemporâneas misturadas com o barulho dos mercados das ruas. Em determinado setor da exposição, chamado ‘Africa Global’ é enfatizada à diáspora africana, contanto inclusive com uma obra brasileira do baiano José Adário dos Santos, “Tenda Omulu”.

136 Site do National Museum of Natural History (Smithsonian Institution) - exposição African Voices. Disponível em: . Acesso em: 22 nov. 2019. 108

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Alda Costa (2014) ao falar da arte moçambicana diz ser “uma oportunidade para mostrar as particularidades dos diferentes tempos de uma produção artística, largamente ignorada, sujeita a estereótipos e carente de novas formas de interpretação” (COSTA, 2014, p. 7).

ROMPENDO FRONTEIRAS COLONIAIS – Macondes de Moçambique e Tanzânia

Isto posto, discorreremos na seguinte tese sobre o Mapiko baseado na discussão que tivemos até então, sendo ele arte tradicional africana moçambicana do povo Maconde. Nota-se forte influência política nas pesquisas sobre manifestações culturais e a presença inevitável do colonialismo, da colonialidade e dos movimentos pós-coloniais na vida de todos, assim como, em suas formas de produções artísticas. Com a Conferência de Berlim (1884-1885), o povo Maconde foi dividido por uma fronteira colonial segregando os que viviam acima do Rio Rovuma, antiga área de colonização inglesa (atual Tanzânia138) e ao sul do Rio Rovuma, antiga colônia portuguesa (atual Moçambique). Tanto o povoado quanto suas expressões culturais transformam-se com os anos, as divisas coloniais também interferiram nessas metamorfoses. Questiono aqui, se nos estudos e compartilhamentos dessa tese, a

137 Exposição ‘African Voices’. Um aqual, casa portátil usada na Somália. Recriação de um mercado em Accra, Gana. Imagens disponível no site do museu. Disponível em https://naturalhistory.si.edu/exhibits/african-voices Acesso em 02/01/2020.

138 O Tanganyika passou a ser Tanzânia a partir da união com o estado do Zanzibar em 1964. 109

divisão entre os Macondes faz sentido ou reforça as estruturas coloniais? Pois como afirma o maconde Atanásio (2018) “afinal o Mapiko não é só nosso é dos tanzanianos também. Então essa coisa não pára só ali no Rovuma e ponto final. É uma coisa que vai para além … longe... longe de nós…”139 Os povos Macondes, de ambos os lados do rio tem sua origem mesma. A história que se repete de ambos os lados é de que ancestrais macondes saíram das margens do lago Malawi em direção ao Rio Rovuma. Aqueles que ficaram nas planícies foram chamados de "Matambwe", e os que seguiram para o leste, ao longo do Rio, até atingir os planaltos de ambos os lados do Rovuma ficaram conhecidos como Macondes. “Nós precisamos imaginar milhares de fronteiras, não apenas uma [...] algumas políticas, algumas econômicas e outras culturais” (BRAUDEL, 1976, p. 170 apud FEIERMAN, 1993, p. 169)

139 Entrevista com Atanásio Nyusi, realizada pela autora em 15 de novembro de 2018. 110

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Tais populações vivenciaram períodos de colonização, duas diferentes guerras por independência e processos de formação de seus países, por isso, acabam de fato se diferenciando. Desta forma essa divisão entre Moçambique e Tanzânia realmente existe, pois como falamos anteriormente, o período colonial e as fronteiras impostas não podem ser desconsiderados. Percebe-se que as barreiras forçadas não são apenas limites políticos, mas também econômicos, sociais e culturais, como discutido no conto ‘Do outro lado’ (capítulo 1).

140 Mapa de Moçambique/Tanzânia, utilizado em performance cênica da autora. Fonte: Foto da autora, 2018. 111

A fronteira pode limitar algo, ou fixar um determinado conteúdo com sentidos específicos, dessa maneira ocorre uma construção simbólica de pertencimento, que constrói um marco de referência que é definido pela diferença e a alteridade na relação com o outro. (GONÇALVES, 2011, p. 7)

Uma divisa imposta pode gerar modificações em organizações sociais, ações cotidianas, econômicas, culturais e etc. Fronteiras muitos anos existentes acabam definindo caminhos distintos para cada povo, reafirmando o que discutimos anteriormente sobre como as “feridas coloniais”, segundo Mignolo (2005), não podem ser desconsideradas.

Todos os familiares do lado de lá vieram correndo também saber quais notícias aquele sujeito trazia. O sujeito explicou em uma só respiração, em alto e bom tom o porquê da cerca “É de conhecimento de todos que estamos aqui diante de uma rua da lado outro Do mwisho, uma fronteira que divide dois países que sempre foram irmãos. Mas, irmandades e acordos políticos entre países são desfeitos como desfazemos certos nós... Essa cerca delimita a fronteira, mwisho.” [...] Um acordo que foi feito sem consultarem Mama Lutavi e sua família. Uma cerca-acordo entre dois homens que nunca nem sequer conheceram Mama Lutavi e sua família, mas que se intrometeram nos quintais de suas casas. (Trecho do conto ‘Do outro lado da rua’)

O conto discute a imposição da demarcação e o quanto ela pode transformar a vida do indivíduo sob diferentes aspectos. O que acontecerá depois de anos passados com a Mama Lutavi? “Portanto, para distinguir os dois Makondes, faz sentido aplicar os termos ‘moçambicano’ e ‘tanzaniano’ (ou ‘Tanganyikan’ ao discutir o período anterior a unificação política de Tanganica e Zanzibar em 1964).141“ (BORTOLOT, 2013, p. 107).

141 Texto original em inglês para usar de citação - Therefore, to distinguish the two Makondes it makes sense to apply the terms “Mozambican” and “Tanzanian” (or “Tanganyikan” when discussing the period prior to the political unification of Tanganyika and Zanzibar in 1964). 112

Discorreremos agora sobre o Mapiko dos Macondes abaixo do Rio Rovuma. O Mapiko tem um espaço muito significativo na cultura da província de Cabo Delgado ao norte de Moçambique. Rodeada de mistérios e segredos, é originária do rito de iniciação masculina Likumbi. Os Macondes colocam sua visão de mundo na dança do mascarado que, ao som de cantos e tambores tradicionais, realiza passos de Mapiko, contam histórias e retomam o contato com os espíritos Lihoka (espíritos ancestrais dos Macondes). A manifestação apresenta a existência do mundo sobrenatural e a convicção na ligação lógica entre o dançarino principal mascarado e as suas crenças, dando a capacidade de recriar na arte os diferentes modos de estar na vida espiritual, usando a força da sua história e do seu cotidiano transmitindo em cada dança as suas convicções. O Mapiko constrói e fortalece a identidade do povo Maconde. Em busca de fontes primárias (sobre Mapiko ou Macondes) encontro-me com Jorge e Margot Dias, Manuel Viegas Guerreiro, Harry West, Alexander Bortolot, Paolo Israel, Lia Laranjeira, entre outros pesquisadores. Revisito também o material videográfico que coletei como fonte primária em Moçambique em 2014 e o material produzido na atual pesquisa em Moçambique em novembro e dezembro de 2018. Durante os anos de 1957 e 1960, Jorge Dias, Manuel Viegas Guerreiro e Margot Dias fizeram trabalhos de campo com o povo Maconde e publicação de coleção de livros em quatro volumes intitulados ‘Os Macondes de Moçambique’. Tais publicações estavam vinculadas aos resultados das pesquisas etnográficas realizadas pela Missão de Estudos das Minorias Étnicas no Norte da Província de Moçambique142, missão criada em 1957, que tinha como compromisso encaminhar relatórios à direção do Centro de Estudos Políticos e ao Ministério do Ultramar143 em Portugal.

142 “Apesar do foco sobre os makonde de Cabo Delgado, em 1957 a missão também produziu estudos acerca das “minorias estrangeiras da Província de Moçambique”, tais como os agricultores chineses, os comerciantes de origem indiana e os moçambicanos negros islamizados. Manuel Viegas Guerreiro, no mesmo período, realizou um estudo sobre os Boers de Angola.” (DIAS, Jorge; GUERREIRO, Manuel Viegas. Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português. Relatório da Campanha de 1957 (Moçambique e Angola). Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigações do Ultramar. Lisboa, 1958 in LARANJEIRA, 2016, p. 77). 143 “A denominação de “província ultramarina” foi utilizada nos países africanos colonizados por Portugal a partir de 1951, com a substituição do termo “colônia”. A mudança instituída com a revogação do Acto Colonial de 1930 acompanhou a criação de uma política ultramarina portuguesa, em resposta aos problemas enfrentados com o controle das populações locais e à pressão internacional. Fez parte dessa tentativa de mudança, um suposto esforço para a implementação de uma política assimilacionista.” (TORGAL, Luís Reis. Estados Novos, Estado Novo: ensaios de História Política e Cultural. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009. in LARANJEIRA, 2016, p. 78). 113

Na percepção de Jorge e Margot Dias, a produção de um estudo etnográfico sobre a população makonde traria contributos para uma política assimilacionista que deveria ser adotada pelo governo português; no entanto, isso só seria possível com o conhecimento de aspectos da cultura do grupo colonizado. (LARANJEIRA, 2016, p. 93).

Trabalhos de campos específicos também foram realizados nos anos 2000, como por exemplo, pelo historiador americano Alexandre Bortolot em 2004, pelo antropólogo italiano Paolo Israel em 2002 a 2006, 2008 e 2009 e pela historiadora brasileira Lia Laranjeira em 2013 e 2014. Os Macondes de Moçambique, foram foco de diversos estudiosos, muito pela sua excelência artística, pela resistência durante período de colonização e grande participação na luta de libertação. Tais trabalhos foram de importante relevância para minha aproximação junto ao povo Maconde e ao Mapiko, e para o desenvolvimentos da dissertação de mestrado “Um olhar sobre as máscaras de Mapiko: apropriação técnica, simbólica e criativa da máscara.” Entretanto, o trabalho de campo e contato direto com artistas e fazedores de Mapiko na Zona Militar e em Boane no distrito de Maputo foi parte principal dessa compreensão e aproximação com tal manifestação.

Outra exigência imperativa é de que essa história seja enfim vista do interior, a partir do pólo africano, e não medida permanentemente por padrões de valores estrangeiros (...). Certamente, a opção e a ótica de auto-exame, não consistem em abolir artificialmente as conexões históricas da África com os outros continentes do Velho e do Novo Mundo. Mas tais conexões serão analisadas em termos de intercâmbios recíprocos e de influências multilaterais, nas quais as contribuições positivas da África para o desenvolvimento da humanidade não deixarão de aparecer. (KI-ZERBO, 2010, p. - LIII).

Turner refletindo sobre o olhar do pesquisador aponta “Como pode, então, o antropólogo social justificar sua pretensão de interpretar os símbolos rituais de uma sociedade mais profundamente e de modo mais compreensivo que os próprios atores?” (TURNER, 2005, p. 57). A partir dos pensamentos de Ki-Zerbo e da provocação feita por Turner (2005), questiono o porquê da utilização em maior parte das referências de palavras de estudiosos estrangeiros à manifestação? Levando em consideração as questões levantadas até então, proponho uma leitura diferente para o próximo trecho da atual tese. Uma tentativa de diálogo com artistas e fazedores do Mapiko a partir de um foco maior nas falas e vozes de tais moçambicanos. 114

Reconhecendo e valorizando a importância dos estudos de todos os pesquisadores citados, a proposta aqui é dar foco às falas de entrevistas realizadas em minhas viagens e contatos com os artistas e fazedores de Mapiko em Maputo e de entrevistas realizadas por diversos pesquisadores citados acima. A proposta é tirar o foco de discursos e olhares estrangeiros, incluindo o meu, e a construção de uma proposta de diálogo do leitor com diversas vozes que possibilitaram tais trabalhos de pesquisa, o meu e de muitos pesquisadores até então. Como já discutido anteriormente sobre as relações de poder, correntes de pensamentos e vivências que estão embutidas nos discursos de qualquer ser humano, tento aqui trazer uma gama de vozes e interlocutores de Moçambique que deem conta de diversos pontos de vista, para maior aprofundamento do diálogo com você leitora, leitor.

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PARTE B

Okê Arô! Olówó gìr`-gìrì lóòde, ó gìrì-gìrì lóòde Ó wà nígbó òrò ode òkè ó dára sáà ló gbèeron.

Abastado senhor que faz barulho com os pés, como se fosse muitas pessoas ao redor (tática de caça africana), ele faz barulho com os pés como se fosse muitas pessoas ao redor, Ele está no bosque (na floresta), a fala (voz) do caçador é alta e ele é bom na rapidez (tempo) em ferir a caça. (OLIVEIRA, 2009, p. 42) 116

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144 MANUPA - Mapiko é tradição Maconde, desde aquele tempo, tempo dos velhos. Não é nós que começar esse Mapiko não. Desde muito tempo... os velhos nasceram naquele tempo de atrás. Então, aquilo é tradição Maconde... tradição para dizer que criança não pode nascer sem saber que isto Mapiko é. Mapiko começa a respeito das pessoas.

PEDRO AMBONE - Nós fomos herdados com esse tipo da cultura Mapiko. Porque esse tipo de Mapiko, é tipicamente cultura dos Macondes e não tem outra tribo que pode praticar esse tipo de atividade, só Maconde. Então, nós quando crescemos, encontramos essa nossa atividade e nós herdamos de nossos pais, e não conseguimos deixar. Mesmo com a luta, a gente lutava e dançávamos Mapiko.

GERALDO MAOCHA - O Mapiko? Isso aqui nós, para dizer que começou, isso não vamos saber. São os nossos defuntos, são os nossos velhos que começaram.

DOMINGOS – Antepassados.

GERALDO MAOCHA – Vieram nos ensinar. Essa ensinação, ensina os outros sucessivamente até chegar nessa fase.

ATANÁSIO - O homem por se achar que não tem campo para reinar, criou o Mapiko e pra dizer que o homem é um pouco mais superior. Isso aqui é uma coisa secreta, feita por homem. Esse homem tem que ser iniciado. [...] Os Macondes inventaram o Mapiko por causa de ser uma linha matrilinear e que o homem não tem força em relação à mulher, então fizeram isso. O objetivo é esse, de que os homens queriam se achar mais, mas é por isso que criaram o Mapiko, para depois marcar a diferença. Só sei que pronto, essa dança quando nasceu ficou logo mítica. Essa tradição é rito de iniciação. Se não passou por rito de iniciação, não pode ficar perto.

MENINOS – Só meninos.

GERALDO MAOCHA – Meninas não. Meninas não.

SAMUEL – É necessário que entre na tradição, durante três meses ou dois meses assim. Para saber bem, bem, é necessário que entre na tradição, rito de iniciação, ficar uns dois meses lá no mato, a te ensinar tudo como a tradição é.

144 As duas páginas de apresentação do item Vozes contém carômetros com os artistas citados na presente tese. Montagem feita pela autora. Fonte: Fotos da autora. 119

ATANÁSIO - Aprender como caçar, como fazer casa, como fazer cama, como fazer machamba, como dormir com uma mulher na cama.

SAMUEL – Como se faz Mapiko. Porque não é qualquer pessoa que vai no túmulo fazer essas coisas, não vai sair Mapiko nada. Só vai o homem apropriado.

MANUPA - Aquele pequenino não pode saber logo não. É preciso crescer pouco. Começa com 15 anos, desde 18 anos aquele já pode saber bem o que o Mapiko é. Mapiko é tradição dos Macondes, aqueles que antigamente nenhuma senhora podia ficar perto não. Ficar longe. Ficar longe aquela que não ultrapassa. Também ele que não passou na tradição não pode ficar perto. Até entrar no Likumbi (rito de iniciação masculino). Quando entra ali, fica pouco tempo. Então quando chega o tempo, arranja aquele Mapiko para mostrar que aquela criança que saiu daquele lugar é Likumbi. Agora, dias de hoje como temos essas mudanças, pode chegar criança 15 anos ou 10 anos para entrar no Likumbi. Então, quando chega, aí pronto. É pode. Pode ver o que é Mapiko.

PEDRO AMBONE - E este Mapiko tinha como a sua atividade, quando nossas crianças crescessem, colocávamos no rito da iniciação. O dia de saída, nós fazíamos Mapiko para ir apresentar os nossos filhos, em termo de que era pra nós uma escola. Pra nós era uma escola. Porque é ali onde o miúdo devia adquirir a consciência duma pessoa maturada.

BINAMO NANGUILE - Entrei no Likumbi para adquirir maturidade. Era como uma escola. [...] Quando saí do rito de iniciação, as pessoas já me viam como um jovem bonito.

GERALDO MAOCHA - Eu fiz minha atividade (rito de iniciação) lá em Cabo Delgado. E essa atividade de Mapiko não comecei aqui, comecei lá. Então, com os meus colegas. Depois de vir aqui, também começamos a mesma atividade até o momento. A nossa tradição é de: quando nós queremos pedir para brincarmos, temos a tradição que nós usamos. Há uma tradição que nós usamos. Até nossos antepassados nos informaram: para assim Mapiko é preciso fazer assim. Então, às vezes se for, costumamos ir em árvore no coiso. Então ali há qualquer medicamento que aplicamos. Então... sai Mapiko.

MENINOS – (Risos)

DOMINGOS – Aquilo ali não é uma pessoa não. Não é que é uma pessoa de nós aqui não.

ALBERTO – Aquilo é o espírito dos Macondes, onde os Macondes se inspiram cada dia a dia.

GERALDO MAOCHA – Aquilo é um medicamento cortado pelo do mato, então corta- se assim uma planta assim. 120

Tipo fio, assim. Então vai lá cortar. Sai água essa planta. Então, vai no túmulo. Então, você bate três vezes e aquilo sai o Lipiko.

ATANÁSIO - Levar um ovo de um galo. Sabes que galo quando fica velho, lá os galos da aldeia faz ovo. Esse ovo nunca fica seco. [...] é o sinal de que aquele galo é velho já. Levam aquele, com uma farinha de utane. Utane é um cereal muito fino de cor estranha. Leva aquela farinha ali, põe em cima da campa e leva o ovo, põe ali em cima da farinha. Bate-se! Quando aquele ovo espalha-se, sai aquele espírito, aquele Lihoka. O nome dele é Lihoka. E você persegue-lhe e agarra. Esta é a história que se conta para as mulheres e as crianças. Lihoka é o espírito que se comunica com os antepassados e com os vivos. É o único que ele pode saber dos dois mundos. É Lihoka. O mundo que existe e o mundo inexistente. Porque o Mapiko é feito com Lihoka. Mahoka. Muitos são Mahoka, um é Lihoka. É aquele plural, parte que vem de trás da palavra. Tu encarnas o Lihoka, porque no momento que você entra dentro da máscara, tu mudas de comportamento. Aquilo ali é automático. Você fica não você. Tu encarnas um espírito qualquer. E não sabes qual é esse, se é feminino se é masculino, se é feio, se é bonito, nem tens ideia. Mas tu. Já não és tu. Lembras das coisas. É por isso que combina com o tamborista principal.

ALBERTO - Isso depende da canalização. Porque nós chamamos de espírito dos Macondes. Depende da canalização. Isso é o espírito dos Macondes e isso conseguimos entender quando alguém tem capacidade e tem como entender as coisas.

ERNESTO GASPAR NAMPUNDE - No passado, os mais velhos diziam que o Lipiko era um Lihoka. Então, desde que foi espírito, as máscaras grudaram nesses assuntos para serem mais perigosas, e mulheres e crianças a ficarem mais assustadas e convencidas de que foi de fato esse Lihoka.

SHUNIKA FELIPE - A máscara é uma coisa sagrada que não pode ser vista ou enganada por todos, mulheres e crianças e pessoas que não fazem parte do grupo Mapiko. É segredo. Os tambores podem ser manuseados e usados por qualquer pessoa, desde que não seja quebrada ou perfurada.

MANUPA - Máscara é alguma coisa que secreta. Não é tudo as pessoas, não. Aquele que dança, ele sabe sozinho. Sabe sozinho, porque a ideia dele ele está a pensar sozinho. Ali quando está com a máscara ali na cabeça. Pode tocar batuque como não ele é que está a pensar sozinho. 121

ATANÁSIO - Quando já você está encarnado na máscara, porque aquilo é dança espiritual, então você cria o seu personagem dentro de ti e comunica-se com o músico. [...] A própria máscara te muda de ser. Você está preso já. É como se fosse um piloto militar. O avião do militar quem fecha está por fora. Não és tu que fechas. E na máscara é assim, quem fecha é aquele que está por fora, não és tu. Então se alguém fechas por ti, estás preso. Só pode ser esse alguém a tirar. Tu não tiras. [...] Aí, depende de você imaginar a máscara que trazes. Depende da emoção que naquele dia tu estás a ter, imagina, na verdade. A máscara como tal não te dá respiração. A respiração tá consigo, latente da máscara. Geralmente tu escolhes por causa de saber, que ele hoje, que esse caráter aqui. Corre, corre que depois fica esgotado. Chegou um momento que usou tanta força que a energia foi-se embora. Esse quando dança a energia vai, por isso cada vez que ele dança, tá ganhando nova maneira, nova força. A primeira vez dói mais, a segunda dói menos, a terceira ainda mais menos porque você transpirou, e quando tu transpiras ele já fica leve (mostra a máscara), quer dizer, solta, fica assim. E aquela capulana que tá lá, fica também um pouco solta e aquela daqui fica também um pouco solta. A máscara é que faz que você se sinta preso mesmo de ti. Aqui dentro (mostra o interior da máscara), não tem diferença nenhuma. Aqui dentro. Tu encarnas o Lihoka, porque, ao momento que você entra dentro da máscara, você muda de comportamento. Aquilo ali é automático, você fica não você.

MUSTAFA BONDE - Cada máscara tinha sua história e haveria ser um narrador dizendo ao público o que era.

MANUPA - Não é todo mundo que conhece máscaras. É preciso arranjar o tronco, não é tronco qualquer tronco, não. Esse tronco está a semear na cidade aqui nas ruas… corta então. Arranja faca, catana. Em nossa língua, há uma pessoa que tem, chama-se Guadion, aquilo que abre o caminho para a pessoa que entrar, ver. Não é qualquer um, não. Então, antigamente, eu não podia dizer para você, não, mas agora que há mudança. Então, é por isso que eu te explico a você para saber, mas antigamente não. Até o lugar que eu estar a fazer, não entra qualquer pessoa não. Eu fico com aquela pessoa como esse, e eu fazer aquilo, e pronto. Aqui sou eu, aqui que faço máscara. Muito tempo aí, o papai estava a fazer que nem esse aqui, e me ensinou a mim para fazer máscara. Ah… corta tronco, depois sente num lugar assim. Quando abre caminho para entrar a cabeça. Quando entra, aí arranja qualquer maneira... é arranjar bem. Pronto! Há muitas pessoas que podem ver máscara mas não pode saber como nós fazemos.

ATANÁSIO - O escultor escolhe uma cara que gostou lá fora e faz. Não se faz desenho para depois fazer máscara. Vai diretamente na madeira e cria personagens que quer.

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MANUPA - Essa gente aqui costuma fazer o que? Desenho e depois fazer. Mas nós não. Nós não fazemos desenho. É pensar com a cabeça. Pensar com a cabeça para fazer. Quando corta a madeira começa a esculpir. Depois quando acabar. Entra o que? Faca. Entra faca para fazer isso. Faca até acabar. Abre o caminho para a pessoa que entrar caber. Depois, quando acabar, procura o quê? Lixa para fazer ficar bonita. Depois pintar. Não acaba um dia não. Leva três dias, quatro dias pronto. É isso mesmo, máscara assim.

EVARISTO - Os personagens do Mapiko são muitos. O Mapiko representa professores, o colono português, representa o ladrão, representa o bandido armado, representa o polícia... tens uma infinidade de personagens com Mapiko. O Mapiko faz todos esses personagens com a máscara. Dependendo do momento que está sendo usado. Então o Mapiko é usado em diferentes circunstâncias. E as máscaras são feitas em função das circunstâncias. Por isso que tens a máscara do tigre, a máscara do gato bravo, tens a máscara do leão, tens máscara de macaco, de feiticeiro... tens uma infinidade de máscaras. O Mapiko é um personagem bastante representativo da sociedade moçambicana.

PEDRO AMBONE - O Mapiko pode aparecer vários tipos. As caras diferentes, mas também essas caras, alguma coisa está a explicar para os pequenos ou para aqueles que ainda não viram esse tipo de Mapiko. Por exemplo hoje, vimos uma velha com rodela muito grande, então as crianças de hoje nunca viram aquela senhora, aí, com aquela rodela grande em frente ao lábio, então perguntam: O que que é isso aqui? Essa é uma pessoa? Sim, é uma pessoa, como estão a ver. Aquela rodela foi a cultura dos nossos antepassados, por isso os nossos avós eram assim e às vezes podem encontrar uma estatueta sem coisa, sem tatuagem, esse tem outra etapa. Porque essa etapa aqui, foi pra nós, porque a nossa mocidade tinha sido proibido, cortar tatuagem. Então quando vê uma coisa igual assim, estamos a comparar as Eras.

SAMUEL, DAOTE, ALBERTO - É nossos antepassados. Uma pessoa até é fácil de perceber. De perceber que aquilo significa o quê. Porque, às vezes, nós dançamos e mostramos uma parte, o Mapiko a peneirar. Às vezes, a capinar. Ou até a levantar bandeira. Até dizer Frelimo, oi.

ATANÁSIO - É um teatro. Pode haver educação cívica para SIDA (AIDS). Pode haver educação cívica para cólera. Pode haver educação cívica para malária. Trazer uma rede mosquiteira assim. Dançar, dançar e você entrar dentro da rede assim. Para dizer que esse aqui é bom sono, sem incômodo nenhum. E não vais ter malária de nenhum sítio. Não precisa do comprimido, basta um pano com furos. É isso. Estou a contar história também e estou a dançar. Estou a te fazer dançar. Essa é a vida cotidiana. O dia-a-dia do povo africano. 123

O próprio fundador que nunca conhecemos, ele imaginou duas fases: fase de Lishesho - para o ritmo ser muito diferente do segundo ritmo, tais a ver? E também os próprios movimentos também do Lishesho são diferentes. O Lishesho permite parar pra fazer, mas o Nchakacha, há andamento contínuo para a pessoa parar pra descansar. E essa coisa de vir de frente pra trás, é diferente de todas as danças que você já viu. Você pode, põe ali uma bandeira, tá a sair a bandeira do português que és o colonizador, tá a baixar de qualquer maneira, até nem se dobra bem, você faz assim e entrega. Depois, você volta a subir a mesma história do passado, mas existiu aqui, aqui em Moçambique, também todos os ares dessa maneira também, a mostrar que volta a desbravar a terra, depois leva amassado, e depois leva, e depois semeia.

EVARISTO - Agora o Mapiko, o que acontece é que normalmente a gente está habituado a ver dança em si e não percebemos que aqueles elementos, cada gesto, cada movimento tem um significado, tem um propósito.

ATANÁSIO - É ação naquela personagem. Por exemplo, tu estás a fazer a ação de cocho em uma figura. É o Lipiko todo com ação de cocho. É a personagem com a ação, simboliza que esse cocho precisa de pegar o pé para ter forma, e se tem o chocho verdadeiro podes ficar também um pouco forçado, vais ver que esse pode estar a gozar a mim. Essa é a vida cotidiana. Dia a dia do povo africano. Uma vez qualquer, eu dancei e fui acabar na barriga de uma senhora com a máscara. Depois de me desmontar, ela veio a ter comigo e disse: Você me procurou de propósito para vir acabar aqui (mostra a barriga). Eu perguntei a mim mesmo: Como essa daí sabe que era eu? Vi que não. Pensamos que isso é segredo, mas esse segredo é conhecido. Mas a gente tende a dizer que é segredo. Mas é um segredo que não é segredo.

MOISÉS - Comecei a dançar na infância. Isso partiu depois dos ritos de iniciação. Porque lá nos ritos ensina-se a cultura. Então, dali eu descobri meu talento sozinho.

MANUPA - Aquela é a técnica de uma pessoa sozinha. Aquele que faz, não é qualquer pessoa que faz não, aquele não. Aquele que dança é esse espírito, aquela pessoa.

ATANÁSIO – É um dom que a pessoa tem que ter e não alguém te ensinar. Em princípio, quando a pessoa está a aprender, não põe máscara. Mas só põe para dançar, já pra não saber quem está por detrás dela. Eu desaparecia, sabe? Quando soubesse que eles querem me amarrar (ritual de vestir a máscara para dançar), eu não queria. Desaparecia. Você sabe que aquilo dói. Dançar? Dói. Você não pode tirar a máscara de qualquer maneira, vão te assassinar, porque você está a divulgar um segredo. E quanto mais tu danças, estás a apanhar cada vez mais intoxicação lá dentro. O ar não circula (mostra uma máscara). Estás a ver isso? Só tem uma única abertura, na boca. Mas tu não estás a respirar pela boca, estás a respirar no nariz e o nariz está em baixo de boca. A boca 124

145 está aqui (mostra a altura dos olhos). Então, o nariz está onde? Está no pescoço da máscara. Então, você está a respirar com muita dificuldade. Assim (mostra respirações curtas). Tu vês isso, levanta-se assim (mostra o peito levantando ao respirar). O peito do gajo sobe e desce. Castigo. Grande. Grande castigo. Mas, e agora compensas quando tu sais de lá dentro, as pessoas que te admiram, vem ter consigo: Ya, você é louco, você é muito... não sei o que... eles podem te dizer indiretamente. Você faz de conta que não estás a perceber. Quanto mais tu tens velocidade, melhor. Não interessa ter força bruta, é preciso trabalhar essa força. Esse Mapiko que é rápido, violento, mas tem colocação do corpo também. Esse é Lipiko de verdade, independentemente se as pessoas gostam ou não dele. É bom! E depois se sabem inclinar. O segredo no Lipiko está em abaixar-se. Na dança clássica, eles têm tendência de dançar alto assim (estica o corpo), para nos enganar que podem voar. O africano dança no chão. Ele comunica-se com a terra. Por isso se diz: nós com os antepassados, o Lipiko é o antepassado que está conosco mas pode prever o futuro. Então, nós africanos temos a dança no chão. Galinha come no chão. Então a gente inclina (mostra passo de Mapiko que anda para trás), quanto mais fazer para baixo, melhor é. Ponto final. O espaço para a dança ou é uma linha, ou um semi- círculo, ou é círculo completo. A quarta coreografia é oval: onde tem Mapiko (mostra a ponta da forma oval), onde tem Ligoma-Tambores (mostra a outra ponta), e a população (indica as laterais fechando a forma oval). O cenário é o mais natural possível. Dançam embaixo de uma árvore e as pessoas às vezes não sabem o porquê, mas para além da árvore, trazer a sombra, a própria árvore é caixa de ressonância. Toca-se ‘TEMTEMTEM’, o som bate nas folhas e volta, depois espalha. E você bebe aquele som terrivelmente. Imagina dançar num ar livre qualquer ali, aquilo vai ficar difuso. Ya! Então aquele cenário ali é base. A própria raiz da árvore está a receber o som e está a devolver para nós. E nós também estamos a receber e estamos a devolver. Aquela nossa expressão que usamos: o Mapiko eletrifica o ambiente! Qualquer dança eletrifica o ambiente, basta estar embaixo de uma árvore. Quando se acha bem, ali está bem colocado. Esse é o nosso cenário.

GERALDO MAOCHA – Eu sempre... sou uma pessoa. O que dizer aqui? Sou uma pessoa artista. A minha arte é de ensinar as pessoas a tocar. Sou tocador, meu colega é tocador e eu também sou tocador. Tudo aquilo ali. Sei tocar Singanga. Sei tocar Neya. Sei tocar o Ligoma. Sei tocar o Ntoji. Tudo isso aí.

ALBERTO – Eu sou Alberto. Nasci aqui mesmo. Eu sou de 1998. Tenho 16 anos. Comecei a praticar a dança de Mapiko tocando em 2010. Nunca dancei Mapiko, eu

145 Zona militar Maputo, Moçambique. Foto da autora, 2014. 125

só sei tocar e ensinar os outros como se faz, e se deixa de fazer isso aqui. Sei tocar todos. Tem que sempre estar atento. Porque o dançarino dança a simulação e a simulação que ele faz, se eu conheço sim, se não conheço, desvio a simulação e ele faz outra.

ATANÁSIO - O músico principal é que comunica. Ele sabe o que você vai dançar. Eles vos encarnam e faz com que vocês entrem dentro do pensamento dele. Ele faz vocês estarem a viajar nele. Porque ele está a viajar. O músico principal dirige.

MANUPA - Porque ali tem duas coisas, aquele chama Lipiko, aquele que toca batuque grande fica ali. O segredo está nesses dois, porque aquele toca batuque e aquele está máscara, é Lipiko. É duas pessoas que sabem esse segredo… em comunicação com aquele. Aqueles outros podem tocar tudo, mas o segredo está com duas pessoas. Quem toca e quem dança. Está a dirigir, aquele lá está a dirigir. Aquele que batuque dois. Aquele que toca com batuque dois. Aquele que dirige Lipiko. E os outros batuques estão a acompanhar. Quem dirige é um só.

ATANÁSIO - Ele faz um desenho qualquer, mas quando chegar a vez de dançar, tem que tocar exatamente o que ele está a dançar. Há de ver que onde termina o tambor, é onde termina o movimento.

MANUPA - Mas quem manda é o tambor. Então este (Lipiko), está a acompanhar este (músico principal). Está a acompanhar. Quando este aqui disser sim, pronto. Ele não pode variar esse. Ele acabar ele sozinho e ele acabar sozinho não. As canções... aquele aí está a cantar para acompanhar aquele Lipiko. O Lipiko sozinho não pode dançar e cantar não. O Lipiko deve dançar bem. Porque quando ele dança sozinho sem cantarem, não fica bom não. É preciso cantar.

ATANÁSIO - É uma coisa simultânea. A música está a tocar. A música dos tambores e as canções estão a andar, e o Mapiko está a dançar.

MANUPA - Aquela é tal mesmo como a pessoa que arranja essa máscara. Aquele está a arranjar canção de coisas que ele também tem conhecimento dentro na cabeça. Então, ele arranja sozinho, e depois quando acabar, como esta chama pessoa para coisa dirigir ele para pessoa que então cantar.

ATANÁSIO - Ele faz as músicas.

MANUPA - Sozinho.

ATANÁSIO - Depois chama as pessoas e ensina o que ele pensou. E eles depois passam a cantar. Pode não ser ele a cantar, mas eles já vão passar a cantar.

MANUPA - Sim. Ele primeiro sozinho, e depois quando ele adora essa canção. Esse aqui está bom. Pronto, chama pessoas que canta aqui. Por logo, ele que arranjou essa canção para cantar coisa. Primeiro ele sozinho, ou duas pessoas. Depois que está na linha da machamba que ele sente, vamos lá. Primeiro uma pessoa, depois chamar as gentes. 126

146 ATANÁSIO - Mas tem dom também. Tens que ser um poeta. E depois imaginar a melodia da música tocada e a sua letra entrar dentro da melodia dos instrumentos. No campo, é um camponês qualquer ali, mas que tem ideias que ultrapassam um gajo, como lugares como Beethoven, mas tem, tem, tem, ele a ver a situação a bocado logo canta, afinal a cultura é uma coisa dinâmica e esse dinamismo, tanto homens como mulheres. Verso se dado a mudar, ele muda a música, que enquadrada naquele mundo ali, naquele momento ali. Aquela metamorfose que eu sempre tô. Metamorfose, metamorfose... desaparece um tipo de Mapiko e aparece outro.

PEDRO AMBONE - É dessa maneira como nós fizemos essa nossa cultura. Cultura tipicamente Maconde. Sim. [...] E pro agora, agora estamos a andar. Mas mesmo assim, estamos a ensinar os nossos filhos, estão aqui, junto conosco. Como estão a ver aqueles que estão a tocar aí. É o ensinamento esse. No futuro eles vão continuar, porque essa cultura não morre. Vão continuar.

146 Zona militar Maputo, Moçambique. Fonte: Foto da autora, 2014. 127

Nesse momento do texto, abro espaço para minha voz, a fim de estabelecer um diálogo com tais vozes moçambicanas e buscando adentrar mais em questões que podem gerar discussões providenciais para o desenrolar da tese. Entretanto, sigo trazendo narrativas deste território, agora não só Macondes, mas de artistas, pensadores, pensadoras, atrizes, atores, diretores, diretoras, cenógrafes, professores, professoras, artesãos de Moçambique e de outros pesquisadores estrangeires, assim como eu. Todas as pessoas entrevistadas e citadas estão mencionadas nos apêndices da presente tese.

CONTEXTO HISTÓRICO MOÇAMBIQUE

Conhecer a história é ser capaz de construir uma conexão entre a sociedade de hoje e as sociedades que a precederam, e que diretamente preocupe-o; é ser capaz de preencher o vácuo que existe entre nós e nossos antepassados [...] tornando possível que o povo se reconheça como sujeito histórico.147 (PARA UMA HISTÓRIA DE MOÇAMBIQUE,1975 apud BORTOLOT, 2007, p. 180).

Para que possamos melhor discutir alguns aspectos do Mapiko, ao longo dos anos e do desenvolvimento do Teatro Moçambicano, faremos um breve resumo da história política do país. A intenção é apresentar um simples panorama histórico para localizar e contextualizar as correntes e estruturas apresentadas. A região onde hoje está localizado Moçambique passou por muitas transformações políticas que reestruturaram o país social e culturalmente. O território tornou-se colônia de Portugal e depois de uma guerra de libertação, com uma configuração livre em 1975, atravessou um regime socialista e chegou ao pluripartidarismo (situação atual).

147 Texto original em inglês - To know history is to be capable of constructing a connection between the society of today and the societies that preceded it, and that directly concern it; it is to be capable of filling the vacuum that exists between us and our ancestors. [...] making it possible for the people to know itself as an historical subject. 128

Período Pré-Colonial

Com a descoberta do fogo, quando a horda se reúne, as sombras facilitam o mistério, o movimento das chamas convida o corpo a dançar, enquanto sobre as faces os reflexos modelam uma máscara, o homem serve-se então do corpo para comunicar com o grupo e viver emoções colectivas, e os seus movimentos criam a primeira linguagem. (VAZ, 1978, p. 16).

As manifestações tradicionais são essencialmente populares e criadas por um coletivo. Pode haver autorias individuais em alguns passos, músicas ou máscaras confeccionadas, mas o todo pertence a todos. Os temas abordados também são grupais e fazem referência à vida de tal comunidade. O sujeito que participa assiste ao mesmo tempo em que executa ações como canto, dança, música e etc. Tais manifestações são realizadas pelo coletivo para o coletivo e têm função de consolidar a ordem da comunidade, transmitir valores, histórias e ensinamentos, proporcionando a cada indivíduo, o sentimento de pertencimento a determinado grupo. As manifestações culturais apresentam caráteres religiosos, plásticos, poéticos, dramáticos, rítmicos e a oralidade. Carlos Vaz, em seu livro “Para um conhecimento de teatro africano” afirma que “o teatro” realizado desde épocas longínquas tem características mimético-mágico-religiosas, referindo-se a tais manifestações culturais que aconteciam por todo o território que hoje é conhecido como Moçambique no período pré-colonial com origem no animismo e na magia e, a partir delas surgem os ritos e cerimônias. “(...) de início constituído pela ritmatização de gestos de animais, e de movimentos imitados de determinado indivíduo, real ou imaginário, cujo espírito se pretendia captar.” (VAZ, 1978, p. 15).

DAVID ABÍLIO - São designações feitas por outros, pelo ocidente e que procuramos estudarmos e incorporarmos, mas que na verdade, é para a população não, não diz nem teatro, não diz nem música, não diz nem dança. Eu vou ver Mapiko hoje, vou ver Mapiko e Mapiko é que é festa, mas esse Mapiko exatamente ele é “dança”, “música’”e “teatro”. Eu vou ver Ngalanga, essa é uma dança tradicional, eu não digo vou ver dança, vou ver Ngalanga, ok? Na comunidade essa que é a designação que eles usam, não é não fazer esse tipo de separações que nós fazemos, porque nós sabemos o que é 129

teatro, o que é música o que não sei quê etc, etc. Mas na comunidade essas coisas estão interligadas.148

Deve-se questionar a visão colonialista de Vaz ao se referir-se a tais manifestações como teatro, pois associá-las a este termo, pode diminuir o olhar para com aquelas práticas. É importante não abrandar as realizações de outras culturas aos olhares que não compreendem tal tradição. É necessário que se entenda essas práticas culturais como manifestações completas e não necessariamente como teatro ou dança especificamente. No decorrer desta tese são utilizadas as categorias de Teatro e Dança, uma vez que as adaptações atuais da tradição são realizadas em tais artes por artistas moçambicanos. Porém, é de suma importância enfatizar que essas práticas vão além dos limites conceituais e categóricos.

MARCIAL - Teatro, quando a gente vai dizer “teatro” pode-se dizer que, como já feito no passado, que África não tinha teatro. Mas uma das coisas que está por trás disso é a tradução direta do dicionário de todas as línguas colônias. O que que elas fazem? Elas enquadram, elas chegam e perguntam, “o que é isso”? Se você não tem nome para aquilo então significa que você não tem conhecimento sobre aquela área. E se você não tem conhecimento sobre aquela área, ela sente na liberdade de te dar um conceito. E a partir daquele momento você adota aquele conceito como se fosse teu. Mas se não olharmos para essa tradução direta, olhar para o contexto, o contexto e a produção da toda coisa, eles têm várias, várias formas de que nós poderíamos até ter nomeado porque tem suas designações locais, que têm a mesma aplicação e mesma função de teatro, ainda que sejam estruturas diferentes, do ponto de vista espacial, do ponto de vista conceitual e que não precisam ser iguais, mas existem lá estruturas. Existem lá um contexto de produção que se aproxima aquilo que poderia ser chamado de teatro?

Durante tal período, por exemplo, na região próxima ao rio Rovuma, onde atualmente se localiza o norte de Moçambique e sul da Tanzânia, estava o povo Maconde realizando sua manifestação tradicional denominada Mapiko. Por mais que, ao longo dos anos essa manifestação aproximou-se cada vez mais do conceito de Teatro (do grego theatron, “local onde se vê” ou “lugar para olhar”), como veremos no decorrer do texto, em certa altura não existia tal conceito trazido necessariamente com a Colonização européia. O Mapiko, portanto, era realizado pelos homens macondes

148 Todas as pessoas entrevistadas e citadas estão mencionadas nos Apêndices da presente tese. 130

na saída dos ritos de iniciação masculina (Likumbi). Um mascarado (Lipiko) ao som de cantos e tambores trazia o espírito ancestral maconde Lihoka às terras da comunidade. Antigamente o clã matrilinear era a forma como os macondes se organizavam em sociedade. Jovens que saiam de suas casas recebiam dinheiro, terra e bens materiais para conquistar independência na vida adulta. Nessa época, os grupos de Mapiko eram compostos apenas por homens da mesma linhagem e chefiados pelos mais velhos, ocasionando assim, o que se pode chamar de uma verticalização do poder, estando o mais velho acima do mais novo. Esses grupos davam preferência aos conceitos básicos espirituais do Mapiko. As máscaras eram representações dos Macondes. Os movimentos realizados pelo mascarado eram violentos e frenéticos acompanhado de cantos que tinham a intenção de rebaixar outros grupos de Mapiko.

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Colonial

Ouviram certa vez que os Macondes, mesmo durante a colônia, demoraram para conhecer os portugueses. O planalto era difícil de acessar e durantes anos os portugueses não o alcançaram. Quando os Macondes viam os barcos chegarem do mar acreditavam que eram peixes saindo das águas e invadindo as terras. Peixes gigantes com grandes nadadeiras (as velas dos barcos). Tentavam conter aquilo os atacando com flechas, pedras e facas. E conseguiam. Foi depois de muito tempo que os portugueses conseguiram adentrar nas terras vermelhas dos Macondes. Construíram uma estrada que chegava até o planalto e formou-se o distrito de Mueda, com administração portuguesa - Trecho de Tchoti – Sobre um Menino. (RHORMENS, 2015, p. 330)

Ao norte do território colonizado por portugueses, zona do povo Maconde durante o período colonial, novas oportunidades sociais e econômicas surgiram, como por exemplo, o trabalho migratório, a conversão religiosa e a escultura comercial. Isso se deu sobretudo pela divisão imposta pela colonização. Como já referimo-nos anteriormente, a área ao norte do rio Rovuma seguia sobre o sistema colonial inglês e ao sul do rio, os portugueses eram os colonos.

ATANÁSIO - É assim. Há muito tempo os colonizadores, no nosso caso os portugueses, eram um pocadinho estranhos em relação aos outros colonos, por exemplo os ingleses. A dominação deles era diferente da dominação portuguesa. Porque os portugueses os maltratavam, os obrigavam a fazer trabalho forçado, nos faziam ir para aldeias onde nunca passamos, faziam aldeamentos para nos controlar como se fossemos cabritos. E isso maconde não gosta, não gosta de ser controlado. Então fugiam para Tanzânia porque na Tanzânia eram os alemães e os ingleses. E a colonização deles era diferente. Eles construíram caminho de ferro até lá no mar e carregavam as coisas para Inglaterra mas sem conflito sem guerra sem nada. Então o maconde achava melhor ir para Tanzânia. Primeiro: é perto. Segundo: a colonização é diferente. Mesmo quando fores a ver a região dos Grandes Lagos, estou a falar do Niassa. As pessoas do Niassa muitos, muitos estão no Malawi. Malawi era inglês e esse lado era português. Então fugimos do sistema para ir residir em outro país por que aquele sistema não nos atingia cem por cento.

Havia um grande fluxo migratório de Macondes moçambicanos à Tanganyika e seu retorno com inovações no Mapiko e futuramente preparos para a guerra de libertação que viria a acontecer (1964-1974). Nos anos 1930 a 1950, 132

aproximadamente 75.000 Macondes de Moçambique, fugindo da colonização portuguesa, cruzaram a fronteira e atravessaram o rio Rovuma, buscando em Tanganyka trabalho e condições melhores geradas pela demanda de mão-de-obra nas plantações de sisal. Tais plantações tiveram um aumento ainda maior de demanda em 1950, e mais moçambicanos migraram em busca da garantia de salário e benefícios que esse trabalho oferecia. Normalmente retornavam quando o contrato de trabalho chegava ao fim, trazendo consigo riquezas como o dinheiro ganho e importações de tecidos e roupas. Enquanto os jovens buscavam suas ambições econômicas e sociais fora do sistema colonial português, no trabalho transfronteiriço na Tanzânia, os velhos anciãos viam sua autoridade espiritual e social abalada. Foi nos anos de 1930 e 1940 que missionários chegaram ao planalto com a intenção de conversão religiosa do povo maconde ao catolicismo. Nessa época, conta-se que o povo avistou caminhando pelas vilas espíritos antepassados equilibrando cargas sobre as cabeças. Segundo Bortolot, tais imagens denominadas “O sofrimento dos antepassados foi interpretado como um reflexo da adoção de práticas de seus descendentes vivos que refutaram as crenças tradicionais de Makonde”.149 (BORTOLOT, 2013, p. 108)

PITAMWIU - Os escultores saíam com os vendedores de gergelim, de amendoim, formavam um mesmo grupo e iam vender na Tanzânia para não ter dificuldade em roupa, sabão, sal.

A área do rio Rovuma, pela ampla e interétnica gama de escultores, interessava ao mercado de arte desde o início dos anos 1900. Durante os movimentos transfronteiriços dos anos 1930, 1940 e 1950 a nomenclatura ‘escultura Maconde’ interessava aos olhos dos compradores europeus na Tanganyika. Escultores que voltavam à Moçambique com tais referências propunham trabalhar para clientes europeus (colonos, missionários, turistas) e com isso conseguiam medidas de proteção no sistema colonial abusivo. Essas novas condições sociais e econômicas, provocadas tanto pelo trabalho migratório como pela conversão religiosa e escultura comercial, teve repercussão na sociedade Maconde moçambicana. Permitiram maior autonomia e liberdade aos jovens, pois já não dependiam do patrocínio dos seus anciões para seguir suas

149 Texto original em inglês – “The suffering of the ancestors was interpreted as a reflection of their living descendents’ adoption of practices that refuted Makonde traditional beliefs”. 133

ambições. Com isso, a estrutura, até então vertical de poder no Mapiko se fragilizou. Grupos de Mapiko começaram a se formar não mais por parentesco, como de costume até então, mas por redes de amizade. As modificações refletiram em organizações, intenções, coreografias e máscaras que surgiram na tradição Mapiko, onde a base espiritual da manifestação perdeu força, dando espaço a representação das experiências contemporâneas. Grupos de Mapiko desse período ainda fincavam raízes nas tradições anteriores, não aceitando muitas modificações, como é o caso do Mapiko Walikuti. Desenvolvido em 1930, é a forma mais antiga de Mapiko que ainda é praticada hoje em dia. Com grupos formados normalmente por homens conservadores com relação à realização e orientação do Mapiko, conservam sua tradição e se negam a representar através de máscaras, outros indivíduos que não os próprios Macondes. Esse conservadorismo também permeia os cenários e figurinos utilizados. Os dançarinos não desviam dos passos “padronizados” e suas coreografias transmitem ações cotidianas em desempenhos rítmicos, sem componentes representacionais e/ou dramáticos. Entretanto, o contexto cheio de novas experiências fazia com que cada vez mais aparecessem grupos buscando inovações para os seus Mapiko. E foi nos anos 50, no mesmo período de maior fluxo migratório no rio Rovuma, que surgem grupos trazendo mais inovações a tradição Mapiko como Nampyopyo, Mang’anyamu, Mashalawesha e Washilo. Nampyopyo, o fundador dessa nova forma de Mapiko era um escultor de máscaras e figuras em madeira e trouxe transformações para a forma como o Mapiko era realizado, principalmente por incluir uma maior variedade de máscaras. Trouxe ao planalto dos macondes uma dança com ênfase ao naturalismo, tanto nas confecções das máscaras, como nos comportamentos do dançarino e nos estilos trazidos na Tanzânia, como a máscara corporal (artefatos de madeira esculpidos em forma de peitorais, seios e abdomens). Desenvolvido em 1950, esse tipo de Mapiko é realizado até os dias atuais.

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Pela quantidade de inovações, esse Mapiko é questionado pelos grupos mais antigos, entretanto teve uma grande aceitação tornando-se muito popular. Jorge e Margot Dias, que realizaram um trabalho de campo junto ao povo Maconde nos anos 1960, afirmam que o Mapiko Nampyopyo era chamado também de “Mapiko de brincar”

MARTINS JACKSON - Também existia o Mapiko de um homem chamado Nampyopyo. Se algum grupo que dançava a versão Nampyopyo viesse dançar enquanto dançava wanshesho, todos iriam assistir Nampyopyo. […] Houve muita conversa do wanshesho que disse que Nampyopyo não teve respeito e estava arruinando o Mapiko clássico revelando seu o segredo (...) porque wanshesho estava perdendo fama quando a dança de Nampyopyo se tornou mais popular.151

150 Máscara Corporal. Fonte imagem esquerda: (BORTOLOT, 2007, p. 278); Fonte imagem direita: (DUARTE, R; GRAÇA, J., 1992, p. 32). 151 Texto original em inglês – “There also existed the mapiko of a man named Nampyopyo... If any group that danced Nampyopyo’s version came to dance while they were dancing wanshesho, everyone would go watch Nampyopyo. But afterward, because of the problems it created, there was a lot of talk from wanshesho that said that Nampyopyo didn’t have respect and was ruining classic mapiko and revealing mapiko’s secret, even though no one came when Nampyopyo’s dancers were preparing themselves, from the mask to the costume. He didn’t accept the presence of strangers who wanted to get near the group. But they spoke poorly of Nampyopyo so that he wouldn’t be accepted. It was a form of defamation, taking away the dance’s moral and civic value, because wanshesho was losing fame as Nampyopyo’s dance became more popular. (Interview: Martins Manjibula Jackson, Mauricio Chiminda Ngui, and Horacio Manuel Multa, Matambalale Village, July 29, 2004. in BORTOLOT: 2007, p. 78) 135

Jackson Martins, muito inspirado pelo Nampyopyo, tendo-o como um modelo de sucesso para a introdução respeitosa de inovações, cria o Mapiko Mang’anyamu, (animais em Shimakonde) trazendo animais para as comunidades macondes.

MARTINS JACKSON - Algumas pessoas que assistem pela primeira vez têm medo, não chegam perto e depois correm para casa. Outros dizem que eles nunca viram um animal, como um rinoceronte ou nenhum que temos em mag’anyamu. Eles dizem: “eu vou vê-los pela primeira vez” e é assim que aumentamos audiência e ganhamos dos outros grupos.152

153

O grupo busca uma interação direta com o público “quando o público está feliz o dançarino faz seu melhor show e não consegue parar de dançar… e ele é inspirado a fazer tudo que pode para animar as pessoas presentes.”154

152 Texto original em inglês: Some people who watch for the first time are afraid and don’t come near and then run home. Others say that they have never seen an animal, like a rhinoceros or any other we have in mang’anyamu. They say, “I’ll go see it for the first time,” and in this way we draw an audience and beat other groups. (Interview: Martins Manjibula Jackson, Mauricio Chiminda Ngui, and Horacio Manuel Multa, Matambalale Village, July 29, 2004. in BORTOLOT: 2007, p. 86) 153 Leopardo durante Mapiko Mang’anyamu na vila Muambula, Moçambique. 2004 (BORTOLOT: 2013, p. 130) 154 Texto original em inglês: The interaction is reciprocal. For us, when the public is happy the dancer puts on a better show and can’t stop dancing ... he can’t stop himself because the public is reveling in the performance and he’s inspired to do everything he can to animate the people present. Interview: 136

As canções utilizadas falavam do próprio grupo, do vilarejo e do distrito, com autoelogios. “Se alguém está nos assistindo pela primeira vez, saberá quem somos.”155

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Jovens buscavam cada vez mais reconhecimento ao seu Mapiko, e popularidade, demonstrando suas inovações e diferenciais. Trabalhando com comicidade e humor, cria-se o Mapiko Mashalawesha. Bortolot explica “a combinação de "mashala" e "wesha" (atrair, trazer), denotando um gênero lúdico ou cômico de Mapiko”157. Humanos, animais e confecções bizarras e obscenas são utilizados para atrair o público no planalto dos macondes. Ainda na década de 50, criado por Shumu, o Mapiko Washilo trazia durante a noite muitas máscaras representando animais selvagens. Tais máscaras eram de madeira e grandes, às vezes precisando de dois homens para vesti-las. O mascaramento era feito no corpo também com a utilização de paus, folhas, gramas, tecidos, panelas de barro. Na escuridão noturna surgiam fazendo ruídos dos animais selvagens. “Shumu é comemorado hoje por sua invenção de um Mapiko estilo que

Martins Manjibula Jackson, Mauricio Chiminda Ngui, and Horacio Manuel Multa, Matambalale Village, July 29, 2004 in BORTOLOT: 20107, p. 60) 155 Texto original em inglês: If someone is watching us for the first time, he’ll know who we are.” (Interview: Martins Manjibula Jackson, Mauricio Chiminda Ngui, and Horacio Manuel Multa, Matambalale Village, July 29, 2004. in BORTOLOT: 2007, p. 58) 156 Máscaras de Mapiko de macacão, jacaré e rinoceronte. (BORTOLOT, 2013, p. 128,129) 157 Texto original em inglês: A combination of “mashala” and “wesha” (v. to attract, to bring), denoting a playful or comic genre of mapiko. in BORTOLOT, p. 302) 137

inclui até cinquenta máscaras e roupas tipos, que foram realizados um após o outro ao longo de um único dia” (ISRAEL, 2005, p. 113 apud BORTOLOT, 2013, p. 119)158 Muitos viam o Washilo como um Mapiko com inovações dos jovens, mas segundo Bortolot Washilo não era especificamente maconde, pois tinha origem no norte do rio Rovuma onde tanto os Macondes, como outras etnias como os Yaos e os Macuas criaram máscaras tais como essas, entretanto com outros nomes. (Isinyago para os Macuas e Inyago para os Yaos). É de se esperar que Mapiko Washilo também traga influências de tais danças do norte da fronteira, dado o contexto com alto nível migratório.

159 160 Tais vivências e experiências mudaram significativamente as confecções das máscaras de Mapiko, além de abordar não somente o povo Maconde como antes, as formas de confecção passaram a buscar perfeições, sendo fiéis a retratos e a observação realista.

158 Texto original em inglês: “Shumu is celebrated today for his invention of a mapiko style that includes as many as fifty mask and costume types, which were performed one after another over the course of a single day (Israel 2005:113).” (in BORTOLOT, p. 119). 159 Máscara Mapiko Hiena. Figure 3.15 Helmet Mask (lipiko) Makonde, 20th century. Wood, pigment Height: 38.1 cm (15 inches) Private collection. (Bortolot, p. 119) 160 Máscara Mapiko Leão.Figure 3.16. Helmet Mask (lipiko) Makonde, 20th century. Wood, pigments. Height: 22.9 cm (9 inches) Private collection (in bORTOLOT, p. 120) 138

161

Segundo Bortolot, os grupos de Mapiko surgidos nesse período revelavam uma preferência à assuntos que reforçaram os perigos e vantagens das experiências transfronteiriças e das oportunidades e mobilidades criadas a partir da vida à beira de dois sistemas coloniais. As máscaras que começaram a surgir expandiram os limites até então explorados, incluindo outras etnias africanas e europeias. As influências portuguesas e de sua cultura, religião, modos de vida eram tamanhas, e isso passou a ser representado no Mapiko também. Máscaras de portugueses, padres, bispos começam a surgir nesse período. A coreografia tornou-se mais complexa e elaborada de uma forma mais narrativa.

161 Máscara do homem maconde. (BORTOLOT: 2013, p. 124) 139

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O Mapiko representava um lugar para registrar a identidade cosmopolita daquele indivíduo viajado, que trazia assuntos e diferenças estéticas. Um exemplo disso é o fato de que em 1953 a Rainha inglesa Elizabeth II fez uma visita à África Oriental Britânica. Tal acontecimento reverberou no Mapiko realizado em Moçambique, com o surgimento da máscara Kwini Elizabeti Yapili Waingilesa, que em suaíli (língua falada na Tanganyika) significa Rainha Elizabeth - a Segunda da Inglaterra.

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162 Máscara do português e do católico. (BORTOLOT: 2007, p. 278-267) 163 Máscara Kwini Elizabeti Yapili Waingilesa (1952) (BORTOLOT, p. 118). 140

Paralela a tais práticas culturais moçambicanas que resistiram, adaptaram-se e sobreviveram durante o período colonial (Mapiko e diversas outras ao longo de todo o território moçambicano que não vamos discorrer na presente tese), os portugueses que habitam, sobretudo a segunda capital, a então Lourenço Marques (atual Maputo), construíram diversos espaços teatrais e realizaram encenações teatrais elitizadas em tais salas e espaços de teatro, segregando os negros e os que não pertenciam à elite colonial. “E nada mais se passa com o teatro colonial, que era feito por colonos e para colonos, pois nunca nenhum preto tomou parte em qualquer representação, devido a uma segregação racial.” (VAZ, 1978, p. 59). Diferente do que aconteceu com as colônias francesas, onde houve mais liberdade para criação de um Teatro Africano, o teatro nas colônias portuguesas (Cabo Verde, Guiné – Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique) era prioritariamente feito pelos próprios colonos para os próprios colonos, importando padrões culturais e formas teatrais da Europa e desvalorizando as teatralidades africanas. Em 1856, o teatro do Príncipe Real, localizado na Ilha de Moçambique, recebeu no dia 31 de março a encenação de “Dona Filipa de Viena”, de Visconde Almeida Gasset. Em 1898, a capital do país foi transferida da Ilha de Moçambique para Lourenço Marques, futura Maputo. Carlos Vaz (1978) indica o ano de 1898 como o início do teatro colonial “à maneira do ocidente” (termo utilizado pelo autor). Carlos da Silva, que escreveu as peças “Crime Anica”, “As aventuras de um herói”, “Sua Alteza – O criador” e as operetas “Os cavaleiros do Arcabuz” e “Era Eu”, teve espaço para suas encenações no Teatro Vasco da Gama, “um barracão de madeira e zinco, onde segundo os colonialistas cabia toda a população branca do burgo” (Vaz, 1978, p. 57). Tal teatro havia sido fundado a pedido do próprio dramaturgo Carlos da Silva. Fernando Baldaque, dramaturgo encenado na época, juntamente com Carlos Queirós da Fonseca, escreveu em 1928 “Polaina Azul e 7 de Março”. Em 1931 e 1932 a parceria de Fernando Baldaque e Arnaldo Silva se faz e escrevem juntos “Ponta Vermelha”. Em 1932, os dois dramaturgos junto com António Alonso Moreira escreveram “Ice cream to-day”, ambas as peças foram encenadas no teatro Varietá. Nesta época, as peças tinham o objetivo de divertir o público, eram em sua maioria comédias e teatro de revista com piadas do ponto de vista colonial. Entretanto, 141

dramas também eram escritos e encenados como “Renúncia” de Alexandre Sobral Campos, encenado pela Companhia Teatral Berta Bivar, em 1932. Foi em 1936 que Fernando Baldaque e Arnaldo Silva escrevem a revista “Império das laurentinas” e tiveram grande sucesso. Diante da receptividade da obra, os autores escreveram em 1939 uma revista baseada em um tema moçambicano “Palhota de Moçambique”, que depois recebeu o nome de “Palhota Maticada”. Em 1941, os dois ainda escreveram “Zona perigosa”. Ao fim de 1941, aquele teatro mais cômico, teatro ligeiro, muitas vezes operetas e teatro de revista, que buscava o divertimento dos espectadores foi colocado em questão e outra tendência ganha espaço nos palcos coloniais de Moçambique, o teatro dito “teatro sério”. Este termo surge como resposta ao teatro cômico. Percebe-se que há um público potencial para o teatro que emerge. Por um período extenso, as duas formas de teatro coexistiram. Em 1941, são escritas as peças “África, menina e moça” do Brito e Nascimento; “Latitude Sul” de Luna de Oliveira; a opereta “Amor à vista” de José Mendonça e Fausto Ritto; “Infortúnio” de Felisberto Ferreirinha; e o drama “O mato” de Caetano Montêz. Ambas as formas teatrais são elitizadas e o desenvolvimento do teatro moçambicano é atrasado pelo rigor dos estatutos que colonizaram também as salas de espetáculos segregando os negros e os que não pertenciam à elite colonial. “Aliás, a opinião dos colonos era a de que o teatro colonial poderia ser feito, mesmo sem a intromissão do indígena.” (VAZ, 1978, p. 59) Como resposta à segregação, em 1959, o neorrealista Afonso Ribeiro denuncia em sua obra: “Três setas apontadas para o futuro” a ordem racial estabelecida pelo colonialismo português.

Uma geração de artistas que se afirmou ou começou a afirmar-se num contexto de polaridade entre o colonizador e o colonizado mas também produto de um contexto inseparável das relações que, entre um e outro, se estabeleceram. Uma geração, a primeira geração de artistas modernos moçambicanos, moçambicanos “não-brancos” [...] que influenciou profundamente os artistas e o ambiente artístico do pós-Independência”. (COSTA, 2014, p. 7-9)

Na década de 60 surgem grupos de suma importância na transformação do cenário cultural moçambicano: O Teatro dos estudantes universitários de Moçambique (1965) e o Teatro de amadores de Lourenço Marques (1962). O movimento não se 142

limita ao teatro podendo citar referências importantes para o momento, tais como o pintor Malangatana, o poeta José Craverinha e o conjunto musical ‘Os Monstros’. Segundo David Abílio, “Embora houvesse um grande controle para, que as pessoas, estivessem alheias a tudo isso, havia pequenos núcleos que tinham uma paixão por isso e encontravam as sua próprias formas de se manifestar, sem criar uma grande confrontação com o colonialismo.” Malangatana foi um pintor moçambicano nascido em 06 de junho de 1936, em Marracuene, distrito da então capital Lourenço Marques. “Usou os seus pincéis para combater o colonialismo, para falar da guerra vivida pelo país independente, para, até ao fim dos seus dias, mostrar as suas preocupações em relação à pobreza e a injustiça mas também para criar alegria nas pessoas.” (COSTA, 2014, p. 9).

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José Craverinha, poeta moçambicano, nascido em 28 de maio de 1922, na zona periférica de Xipamanine da capital colonial Lourenço Marques. Grande artista moçambicano reconhecido por fazer resistência ao sistema colonial com suas palavras, letras, pontos, pausas, gritos, protestos, denúncias e lirismo… poesias.

Inclandestinidade

Eu jamais movi um dedo na clandestinidade Mas militante de facto sou. Por acaso até nasci numa grande e próspera colónia Depus flores na estátua do sr. António Enes recitei versos de Camões num tal ”dia da raça” e cheguei a cantar uma marcha chamada ”A Portuguesa”.

164 “25 de Setembro” de Malangatana Ngwenya (1968) - Localização: Galeria Museu Hloyasi - Rua Camões 359 - Maputo, Moçambique. (Disponível em Acesso: 20 de dezembro 2018> 143

Cresci. Minhas raízes também cresceram e tornei-me um subversivo na genuína legalidade. Foi assim que eu subversivamente clandestinizei o governo ultramarino português. Foi assim! (CRAVEIRINHA, 1980, p. 85)

O grupo musical ‘Os Monstros’ era composto por jovens negros adolescentes que viviam nos bairros suburbanos da então Lourenço Marques (Mafalala, Minkadjuíne, Chamanculo, Mahotas e Indígena). Inspirados por Martin Luther King e a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos marcaram presença na cena cultural de 1968 e 1976. David Abílio conta que “é o conjunto histórico portanto na história de Moçambique. (...) Na altura, era uma das formas que encontraram para sua afirmação como negros a falar no tempo colonial, em que não se podia manifestar de uma forma aberta esse tipo de coisa.”

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Esses grupos e artistas citados e muitos outros no mesmo período influenciaram gerações futuras com posicionamentos artísticos com os quais experimentavam e criavam uma identidade moçambicana em um contexto colonial.

DAVID ABÍLIO - Fui recrutado para ir ao exército colonial, e no exército colonial eu trabalhava no escritório e estava numa zona

165 Imagem do grupo ‘Os Monstros’ Disponível em Acesso em 20 de fevereiro de 2019 144

de guerra, mas infelizmente eu não ia combater porque tinha que estar no escritório a fazer coisas. Calha que eu estava em uma companhia que chamava de Companhia de Africanos. [...] Nessa altura da época ocidental havia uma onda, quase generalizada da juventude a tentar contestar o establishment. [...] Estávamos ali, nessa altura a construir uma grande estrada, isso na província de Tete, como havia guerra, era necessário proteger [...] Essa Companhia do exército onde estava, é que encarrega de fazer esse acompanhamento. Então o que que esses faziam, saiam a dizer que iam ver, inimigo - inimigo na altura era os guerrilheiros da luta armada da libertação nacional. Então chegavam mas eles não faziam nada. Chegamos a num sítio, durante quatro dias, três dias e voltavam. E quando voltavam, só diziam escreva lá um relatório a contar o que aconteceu não sei quê, não sei quê, ya. Eu produzia relatórios diferentes, isso ao longo do mundo, durante muito tempo, pelo menos acho que uns dois anos. Produzia sempre relatórios, inventados que falava de atividades que realmente não tinham acontecido e aquilo era realmente muito convincente.

É em abril de 1972 que chega a cena a peça escrita pelo primeiro dramaturgo negro moçambicano Lindo Lhongo “Os noivos ou uma Conferência dramática sobre o Lobolo”166. O advento de uma dramaturgia negra, moçambicana promove a raiz do teatro de um povo para um povo, refletindo sobre sua situação e contexto. Surge o teatro moçambicano. “Era importante usar o teatro como arma educativa. Aliás não posso esquecer, ainda em 1970, o quão importante foram as peças: ‘O Lobolo’ e ‘Trinta mulheres de Mezeleni’, de Lindo Lhongo”. (MALANGATANA, 2006, p. 5) O autor da peça, Lindo Lhongo diz:

Falar de Lobolo – é falar dos nossos casamentos, muito antes de se pensar no Registro Civil e no sacramento que se receberá na Igreja. O Lobolo também é um sacramento que os nossos antepassados nos deixaram...(LHONGO apud VAZ, 1978, p. 60).

Segundo Vaz, tal encenação “Os Noivos” foi a experiência mais notável do teatro colonial. Tal encenação antecedeu outras peças teatrais com temáticas de debates entre África e Europa, como é o caso de “As trinta mulheres de Muzeeni” escrita também por Lindo Lhongo onde é debatida a influência da civilização ocidental no mundo africano, e a peça “Feitiço e a Religião”, em 1973, de João Fumane, cujo tema é a resistência do homem africano ao cristianismo. Lindo Lhongo é visto por

166 Lobolo– Dote entregue pelo noivo a família da mulher pretendida. 145

muitos como o maior dramaturgo moçambicano pela qualidade do seu trabalho e por conseguir exibir uma peça teatral em plena era colonial, sendo precursor de diversas temáticas africanas no teatro. A colonização não atingiu somente a instância política, mas também a social e a cultural. Fazer arte era um ato revolucionário em busca da identidade nacional. As manifestações culturais, com resistência e adaptabilidade, também cultivavam sua sobrevivência no período colonial. Um povo buscando vencer os limites impostos através da arte.

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Guerra de libertação (1964 – 1974)

Poema do futuro cidadão (1964)

Vim de qualquer parte de uma nação que ainda não existe. Vim e estou aqui! Não nasci nem eu nem tu nem outro... mas irmão. Mas tenho amor para dar às mãos cheias. Amor do que sou e mais nada. E tenho no coração gritos que não são meus somente porque venho de um país que ainda não existe. Ah! Tenho meu Amor a todos para dar do que sou. Eu! Homem qualquer cidadão de uma Nação que ainda não existe. (CRAVEIRINHA, 2010, p. 19)167

BINAMO NANGUILE - Apercebemos-nos que o colono tinha vindo levar-nos a terra. Porque eles não queriam sair do país. Nós fizemos muita força e avisamos: vocês vão sair! E vão acabar morrendo, todos. Shilambwashi Shetu - Esta terra é nossa! (em shimakonde)168

A opressão colonial portuguesa levou o povo moçambicano a pegar em armas e lutar pela independência. A independência de Tanganyika foi conquistada em 9 de dezembro de 1961 e passou a ser chamado Tanzânia a partir da união com o estado do Zanzibar em 1964. Nessa altura Moçambique ainda estava vivendo o sistema colonial português e travaria uma guerra pela libertação em 1964 que só teria fim em 1974.

NCHUCHA - Nyerere alcançou a independência no país dele e os Makonde que viviam lá na Tanzânia ajudaram muito nesse

167 CRAVEIRINHA, José. Livro “Xigubo” de 2008, Editora Alcance Editores - 4ª Edição. 168 Binamo Bahali Nanguile. Filme “Shilambwashi Shetu - essa terra é nossa” realizado por Albino Moises, Emílio Baloi e Teodósio Langa, produzido em 20 de novembro de 2011. Disponível em Acesso em 18 de junho de 2018 147

processo. (...) Só que aqui em Moçambique havia problemas, os portugueses maltratavam a população. (...) Porque nós somos moçambicanos, e depois a situação lá em Moçambique não está boa. E nós também queremos pedir a independência lá em Moçambique. (2014 apud LARANJEIRA, 2016, p. 130).

O então presidente de Tanganyika/Tanzânia, Julius Nyerere, apoiava a resistência e luta pela libertação moçambicana ativamente. O sul tanzaniano foi base militar e acolheu refugiados moçambicanos, soldados e agentes políticos. Foi também no norte de Moçambique, sobretudo nas vilas Macondes, que o movimento de resistência colonial conseguiu ter presença administrativa que possibilitasse prosseguir estrategicamente com suas atividades militares e projeto ideológico. Foi nas fronteiras do rio Rovuma que as forças de movimento pela independência se fortaleceram e se organizaram. Num contexto de dominação sócio-política-cultural é de suma importância a organização de um movimento de resistência colonial. Surge então, em 1962, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) com uma campanha de guerrilha contra o governo português. Tal movimento unia-se aos conflitos que já haviam iniciado contra os colonizadores nas outras colônias: Angola e Guiné- Bissau, formando a chamada Guerra Colonial Portuguesa (1961–1974). A luta pela libertação nacional foi dirigida pela FRELIMO e iniciou-se em 25 de setembro de 1964 no posto administrativo de Chai - na província de Cabo Delgado. A FRELIMO, fundada em 1962, originou-se da fusão de três movimentos constituídos em Tanganyika, a UDENAMO (União Nacional Democrática de Moçambique), a MANU (Mozambique African National Union) e a UNAMI (União Nacional de Moçambique Independente). A FRELIMO era dirigida por seu primeiro presidente Eduardo Chivambo Mondlane, que assassinado em 3 de fevereiro de 1969, foi sucedido por Samora Machel. Do ponto de vista militar, o exército português manteve o controle dos centros populacionais, enquanto as forças de guerrilha procuraram espalhar a sua influência em áreas rurais no norte e no oeste do país.

NCHUCHA - Nós próprios queríamos governar o nosso país. Mas também dissemos aos portugueses que quem quisesse ficar, muito bem, podia desde que aceitasse as nossas ordens. Os portugueses podiam ficar em Moçambique na condição de estrangeiros. Ao dizermos isso, os tipos opunham-se e consideravam-nos como gajos que não sabiam nada, sobretudo escrever. Nós queríamos a independência do nosso país, 148

Moçambique.(...) A independência que nós fomos pedir não era só para os macondes ou macuas, mas para todos os moçambicanos.

Muitos Macondes compunham o movimento de libertação nacional, como soldados espiões, ativistas e diversos outros papéis necessários. Segundo Pitamwiu (2013) “havia machambas nativas para os mais velhos que não conseguiam ir à guerra, para produzir, mas também para fazer escultura para alimentar os combatentes”.169 O movimento de libertação percebeu nas artes veículos eficazes de comunicar resistências, ideias de identidade nacional e valores socialistas.

FRELIMO - Os escultores estão organizados em cooperativas que atuam em seja nas bases militares dos escultores que são membros da Exército de Libertação ou aos comitês da aldeia. Ambas as formas de organização e o novo quadro social do qual eles têm crescem refletem-se no conteúdo do trabalho artístico que, juntamente com temas tradicionais, agora descreve os novos temas inspirados na guerra revolucionária.170

Artistas Macondes, sobretudo escultores passaram a utilizar seus trabalhos em prol do movimento. Organizados os artesãos em cooperativas, as esculturas eram transportadas à Tanzânia para serem vendidas a fim de colaborar com os fundos do movimento de libertação que, por sua vez, eram usados para compras de armamentos e outros suprimentos necessários.

Os hábeis escultores Macondes, originários do norte de Moçambique, e a renovação temática e formal das suas formas escultóricas são associados à cultura nacional emergente reivindicada pelo movimento de libertação e, mais tarde, pelo projeto de construção do Moçambique moderno. (COSTA, 2014, p. 31)

Nesse contexto, os escultores foram incentivados a imprimir em suas obras conceitos socialistas, influenciados por temas ideológicos e estilos naturalistas e heroicos. Divulgando o movimento e o pensamento socialista, a FRELIMO na

169 Entrevista realizada em Pemba em 15 de novembro de 2013 in LARANJEIRA: 2016, p. 228. 170 Texto original em inglês - The sculptors are organized in cooperatives that operate in relation either to the military bases for sculptors who are members of the Liberation Army, or to the village committees. Both these forms of organization and the new social framework out of which they have grown are reflected in the content of artistic work which, together with traditional subjects, now depicts the new themes inspired by the revolutionary war. (FRELIMO, Dept. of Information, “Shaping the Political Line: Analysis of FRELIMO’s Political Evolution,” Mozambique Revolution no. 51 (April-June, 1972): 20. in BORTOLOT: 2004, p. 208). 149

Tanzânia publicou diversos pôsteres onde pretendiam abordar um ‘estado socialista pós-português’ (tal produção aumentou após a independência).

O soldado, um dos pilares de apoio à Moçambique independente, foi um frequente objeto de tais criações. Imagens de soldados marchando no futuro, ao lado de agricultores, crianças, médicos, enfermeiros e professores da escola, como pode ser visto em um cartaz que tem a exortação. (1983 apud BORTOLOT, 2013, p. 131)171

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Obviamente, tal movimentação influenciou grupos de Mapiko. Grupos desenvolveram máscaras e coreografias com influências do movimento e pensamento socialista. As marcas com ‘tatuagens’ faciais, dentes lascados e aplicações nos lábios não eram mais utilizadas nas esculturas desse novo repertório de máscaras que retratava agora também personalidades importantes para o movimento como Eduardo Mondlane e Samora Machel. Anna Fresu e Mendes de Oliveira (1979) afirmam que o Mapiko, durante tal período, cumpria com as necessidades da FRELIMO de comunicar seus objetivos e mobilizar pessoas para as tarefas da luta. As coreografias,

171 Texto original em inglês - The soldier, one of the pillars supporting independent Mozambique, was a frequent subject of such creations. Images of soldiers marching into the future alongside farmers, children, doctors, nurses, and school teachers, as seen on one poster that bears the exhortation 172 Pôster publicado pela FRELIMO, 1983. Fonte: BORTOLOT, 2013, p. 131. 150

portanto, tratavam dos males do sistema colonial, da importância da educação e da saúde pública, incentivando o público a criticar o colonialismo, rejeitando-o e idealizando um movimento de liberdade. Chinyenga Likambe conta que houve Mapiko nessa época que retratava a escravidão, torturas e opressões em suas danças “Por exemplo, homens presos apareceram no espaço da dança e o mascarado fez os espectadores entenderem que eram prisioneiros ou soldados capturados na guerra. Isso fazia parte da vida durante esse período e sim, Mapiko comunicou que estávamos em guerra.”173 Durante o período em que a luta armada pela libertação se intensificou e atingiu todo o território moçambicano, o teatro, assim como o Mapiko, também assumiu um caráter político e de mobilização com a finalidade de esclarecer a necessidade da luta e fazendo campanhas de conscientização e de alfabetização. O teatro corroborou para a expansão da guerrilha, ultrapassou o campo da arte, tornando-se um instrumento de comunicação de um povo com sua linguagem direta, imediata, acessível. Teatro denunciava a vida em todos os seus âmbitos.

O teatro é arte, é cultura e é política, podendo ser utilizado como arma, devido à sua linguagem extremamente directa e à sua riqueza, que faz dele o maior meio de expressão e comunicação dum povo, pelo seu alto espírito crítico em relação à vida (entendendo-se por vida a complexa actividade instintiva, social, cultural e política do homem e da comunidade em que se integra), o seu dinamismo, a sua capacidade polêmica... Assim, se compreende a ferocidade do colonial-fascismo contra o teatro africano, impedindo-o de se expandir e de se desenvolver. (VAZ, 1978, p. 11)

O teatro caminha lado a lado com a literatura moçambicana nesse momento, onde grandes autores surgem combatendo em suas obras, o colonialismo português, alguns: Rui Nogar, Marcelino dos Santos, Orlando Mendes, Virgílio Lemos e o já citado José Craveirinha.

[…] – Já caiu alguém dos andaimes? O pausado ronronar Dos motores a óleos pesados E a tranqüila resposta do senhor empreiteiro:

173 Texto original em inglês: For example, bound men appeared in the dance space and the masked dancer made the viewers understand that they were prisoners or soldiers captured in the war. This was part of life during this time and yes, mapiko communicated that we were at war. (Interview: Chinyenga Likambe, Nakachenga Shukulu, Amadeus Focas, Lilende Miyaui, and Njebwa Shamana, Mbau Village, May 28, 2004. in BORTOLOT: 2007, p. 213) 151

– Ninguém. Só dois pretos” (“Ninguém”, Obra Poética I, Craveirinha. Edit. Caminho, 1999).

A arte se torna uma arma pela independência. Uma arma potente que fora combatida e diminuída pelos dominadores. Mas resistiu. Resistiu e resiste. Após dez anos de guerra a FRELIMO assumiu o controle do território moçambicano. Moçambique tornou-se independente de Portugal em 25 de junho de 1975.

FRELIMO - A Cultura é uma arma poderosa para a mobilização e organização do Povo numa ideologia revolucionária, enquanto interpreta aquilo que nós fomos, somos e o que queremos ser e ao mesmo tempo constitui uma ameaça ao inimigo. A Dança, o Drama, a Poesia, a Escultura, a Música, desempenham um papel muito importante na luta. Estes elementos no seu conjunto compõem a cultura Nacional e tem a tarefa de destruir o velho e de construir o novo.

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Independência de Moçambique

SAMORA MACHEL - Operários, camponeses, combatentes. Povo moçambicano. Em vosso nome, a zero horas de hoje, 25 de junho de 1975, o comitê central da FRELIMO proclama solenemente, a independência total e completa de Moçambique.174

Entre a repressão, o paternalismo, a indiferença e o desejo de liberdade chegou-se a Abril de 1974. Portugal, o país colonizador, e Moçambique, o país colonizado, começam uma grande transformação. (COSTA, 2014, p. 33)

Na noite de 24 de junho, juntei-me a milhares de outros moçambicanos no Estádio de Machava para assistir à proclamação da Independência Nacional que era anunciada na voz rouca de Samora Moisés Machel. O anúncio estava previsto para meia-noite em ponto. Nascia o dia, alvorecia o país. Passavam vinte minutos da meia-noite e ainda Samora não emergira no pódio. Sem dar confiança ao rigor do horário, o Presidente proclamou “à zero hora de hoje, 25 de junho...” Um golpe de magia fez os ponteiros recuarem. A hora ficou certa, o tempo ficou nosso. (COUTO, 2005, p. 191-192).

Após a independência, Moçambique passou por um processo de valorização da cultura nacional visando construir a identidade do novo país independente. A liberdade recém-conquistada floresceu por meio das manifestações artísticas. A cultura africana que, no período colonial, havia sido desincentivada e até mesmo proibida, é então redescoberta. Como afirma Ki-Zerbo, “A atitude histórica africana não será então uma atitude vingativa nem de auto-satisfação, mas um exercício vital da memória coletiva que varre o campo do passado para reconhecer suas próprias raízes.” (KI-ZERBO, 2010, p. - LIII). A arte produzida em Moçambique voltou-se então para sua própria história, a fim de pensar a identidade cultural do país como nação independente, com autonomia política, econômica, cultural e religiosa. As manifestações tradicionais eram valorizadas, revisitadas e compartilhadas, com intuito de criação e afirmação de uma identidade moçambicana.

ATANÁSIO - Samora o que queria quando aconteceu a independência? Quando nós conquistamos a independência, o objetivo era de misturar as pessoas para não haver aquele de ‘dividir para reinar’, não haver Machangana, não haver Maconde,

174 Documentário feito pela autora, discurso feito entre 2’40” e 3’40”. Disponível em: 153

haver essa palavra unidade nacional. (...) Povo moçambicano. E uma das coisas que une o povo é a cultura. Essa é a arma mais mais poderosa pra unir qualquer povo. Pode ser um chinês, um camponês, vão se unir. Basta saber dançar a mesma coisa, hão de fazer. E nós fizemos.

SAMORA MACHEL - Assumir uma consciência colectiva de trabalho significa abandonar o individualismo e considerar que todas as machambas são nossas, do povo, todos os celeiros e casas são nossos, do povo. Quer dizer, unir-me com os outros numa cooperativa, numa brigada de produção. Juntos cultivamos, colhemos, juntos organizamos a vigilância, juntos protegemos o que pertence, não a mim ou a ti, mas a nós. Este campo não é meu nem teu, é nosso. (MACHEL, 1975 apud LARANJEIRA, 2016, p. 228, nota de rodapé n. 554).

O governo incentivava nessa altura a união dos distintos povos que existiam no território moçambicano. Segundo a FRELIMO (1968) “Temos certeza de que, se o colonialismo não tivesse imposto a separação geográfica forçada, o processo natural de assimilação social e cultural que estava ocorrendo em toda a África Austral teria visto a fusão dos diferentes grupos étnicos em um único povo.175” Apostava-se nas manifestações culturais como ligações e construção da identidade do que nomeava e queria identificar como ‘povo moçambicano’. Vale ressaltar que, a seleção e escolha das manigestações, musicalidades e corporeidades para a formação da unidade nacional defendida como plano de ação do governo, tinha também seus critérios próprios e favoritismos. Como nos refererimos anteriormente, a história é contada por um ponto de vista e aqui formada por quem estava no poder.

I FESTIVAL DE DANÇA POPULAR - Hoje o Mapiko é, entre todas as danças de Moçambique, o que sofreu as alterações mais dramáticas. Isso é porque encontrou seu papel preciso na cultura revolucionária que queremos construir. O experimento de longa data da criação do Novo Homem nas zonas liberadas de Cabo Delgado pôs fim ao obscurantismo, que era (e ainda é) uma das principais características das danças mais tradicionais. Anos atrás, as pessoas podiam matar para defender os mitos

175 Texto original em inglês - The longstanding economic relations between the various Mozambican ethnic groups have also facilitated a cultural exchange that continues today. Everyday social contact, inter-tribal marriages, forced mergers through conquest, have resulted in the mingling and fusion of usages and habits. We are certain that, if colonialism had not imposed forced geographical separation, the natural process of social and cultural assimilation which was taking place in the whole of southern Africa would have seen the fusion of the different ethnic groups into a single people. (FRELIMO, Dept. of Information, “Mozambican Tribes and Ethnic Groups: Their Significance in the Struggle for National Liberation,” Mozambique Revolution 36 (1968): 21. in BORTOLOT: 2007, p. 168). 154

promovidos pela superstição. Hoje, quando fomos para as áreas onde as pessoas vivem em aldeias comunais, vimos que a dança Mapiko é um elemento fundamental na intensa atividade cultural dessas aldeias. Hoje, homens, mulheres e crianças podem desfrutar de toda a riqueza cultural desta dança, desde as máscaras e adornos até a performance real.176

Durante este período, no norte do país, no planalto maconde, o governo socialista fomentava a participação na vida política, social e econômica controlada pelo Estado e rompia alianças familiares. Àqueles que demonstravam maior lealdade ao governo eram recompensados e colocados em posições de influência dentro de organizações econômicas, políticas e sociais, ignorando e deslegitimizando elites tradicionais. O Estado socialista se utilizou do Mapiko como meio de comunicação ideológica. Patrocinava grupos de dança que desenvolviam, dentro do Mapiko, princípios socialistas. A partir dessa situação histórica, podemos questionar se aquela manifestação estava sendo protegida pelo estado e/ou limitada por ele.

A questão prende-se com situar o sentido das obras produzidas pelos artistas no momento em que aparentemente a contra-elite simbólica do tempo colonial entra na esfera do poder. Nas relações entre a matriz-arte e a matriz-política, a segunda impõe-se gradualmente e a sua estratégia passa pelo apoio e divulgação da arte popular: o canto, a dança, o artesanato. A arte Maconde passou a ser apresentada como um expoente elevado da cultura nacional” (MIRA, 1999, p. 16).

O Mapiko seguiu o caminho que já estava trilhando durante a guerra de libertação, entretanto agora com mais incentivos para transformações. Incluiu personagens personificados e alegorias para tratar dos valores socialistas. Máscaras de heróis militares, cidadãos idealizados e personagens alegóricas representando virtudes cívicas passam a ser muito utilizadas.

FRELIMO - Como nossa arte é revolucionária, ela morre e nasce na práxis. Nosso teatro, nossa música, nossos sons, nossa

176 Today mapiko is, between all dances of Mozambique, the one that has suffered the most dramatic alterations. Thats is because it found its precise role in the revolutionary culture that we want to build. The longstanding experiment os creation of the New Man inte the liberated zones of Cabo Delgado put an end to obscurantism, which was (and still is) one of the main characteristics of most traditional dances. Years ago, people could kill to defend myths fostered by superstition. Today, when we went in those areas where people live in communal villages, we saw that Mapiko dance is a fundamental element in the intense cultural activity of those villages. Taday, men, women and children can enjoy all cultural richness os this dance, from the masks and the adornments to the actual performance. (I festival de Dança Popular, 1978, in Israel 2005, p. 112. - Mapiko marquesados of makonde: performance and historicity). 155

escultura, nossa pintura, nossa literatura, tudo é forjado com a participação ativa das massas (...) O artista vendo sua atividade como uma tarefa e essa tarefa sendo vinculada com o processo revolucionário de transformação. Isso não significa que o Partido dirige o artista administrativamente. Muito pelo contrário, o Partido fornece a definição ideológica básica sem a qual o artista se isolaria em estética, afastados dos problemas das pessoas e de sua luta concreta. A autenticidade do artista encontrava-se então na coerência entre seu trabalho criativo e sua vida, sua integração com as massas. Nesse contexto, a forma de expressão, porque acompanha um conteúdo autêntico, assume seu verdadeiro significado como meio de sensibilidade de comunicação.177

Modificaram-se suas coreografias, as tornando mais narrativas para comunicar tais valores e enaltecer os heróis nacionais, menos agressivas e continham agora componentes de dramaticidade. Os cantos passaram a se vangloriar, ao invés de insultar os adversários. O Mapiko passou então a se distanciar do ritual e de suas bases espirituais e aproximar-se da representação performática, teatral.

Seu rosto é uma alegoria da Estado socialista moçambicano: a sua saúde é um testemunho da abundância de alimentos fornecidos pelos recém-criados cooperativas agrícolas e assistência médica universal, enquanto o capacete do soldado o identifica como seu libertador da nação e seu futuro protetor.178 (BORTOLOT, 2013, p. 132).

177 Texto original em inglês - Because our art is revolutionary, it both dies and is born in praxis. Our theater, our music, our songs, our sculpture, our painting, our literature, is all forged with the active participation of the masses, without the distortion created by the contradiction between the public as object and the creator as subject …. This possibility of solving the contradiction between an object public and a creative public starts with the artist joining the political formation which is leading the people to transform society, or at least with the artist seeing his activity as a task and this task being bound up with the revolutionary process of transformation. This does not mean that the Party directs the artist administratively. Quite the contrary, the Party provides the basic ideological definition without which the artist would isolate himself in aesthetics, removed from the peoples’ problems and their concrete struggle. The authenticity of the artist is then to be found in the coherence between his creative work and his life, his integration with the masses. In this context, the form of expression, because it goes with an authentic content, takes on its true significance as a means of communicating sensitivity. The form becomes a kind of soft and fresh skin covering a harmonious body. All attempts at aestheticism only result in rendering this skin a flabby, empty, repulsive object (FRELIMO, Dept. of Information, “The Growth of a New Culture,” (1971): 10. in BORTOLOT: 2004, p. 199). 178 Texto original em inglês: “his face is an allegory of the Mozambican socialist state: his health is a testament to the abundance of food supplied by newly established agricultural cooperatives and universal medical care, while his soldier’s helmet identifies him as both his nation’s liberator and its future protector.” 156

179 KATARINA KUVAVA - Antigamente as mulheres não dançavam Mapiko. Só os homens dançavam Mapiko. Eu tinha medo, fugia da dança dos homens. Mas comecei a aprendê-la. Por que é que não posso dançar Mapiko? Porque não podes! Experimentei. Diziam: Não dances isso. Eu respondia: Danço. Os maridos ficavam muito nervosos: minha mulher, isso não. És maluca? Não sou maluca. E continuei até dominar bem a dança. Chamavam Mapiko da Kuvava. E até nas reuniões aqueles que me criticavam deixaram de o fazer. Os homens começaram a gostar do meu Mapiko. E passaram a tocar batuque para dançarmos. [...] Mesmo que eu morra, continuarei existindo. O corpo será sepultado mas meu nome não vai morrer. Katarina Kuvava. Um nome importante! Vem da parte de Deus, deve permanecer.”

As mulheres, depois de serem aceitas como soldados e lutarem ao lado dos homens na guerra de libertação, com o intuito de revelar sua nova posição de igualdade na sociedade Maconde, pela primeira vez dançaram mascaradas o Mapiko. Foi nesse período que surgiu o gênero de Mapiko das mulheres chamado Lingundumbwe.

GRUPO LINGUNDUMBWE - Após a independência, o governo disse que existia igualdade entre homens e mulheres e que poderíamos fazer as mesmas coisas. A inspiração de lingundumbwe foi o resultado de um de nossos amigos que tinha visto lingundumbwe na aldeia de Lyanda, perto de Moçimboa da Rovuma, e quando ela voltou aqui, ela disse que tinha visto uma

179 Máscara Mapiko do soldado, 1970. Fonte: BORTOLOT, 2013, p. 132. 157

dança que nós poderia aprender. Começamos a nos ensinar as músicas e depois a dança de verdade. Ela disse que a maneira de preparar o lingundumbwe era o mesmo que os homens [Mapiko] e que nós poderíamos tentar isso também. Nós experimentamos e conseguimos180

O Mapiko feminino ainda é questionado. Segundo os homens do Distrito de Muatide a igualdade entre homens e mulheres com a chegada e em defesa do estado socialista tinha limites: LUCAS NJASHI NANELO e JANUÁRIO JUDITH MATIAS NTUMAKE - Após a independência, os homens deram às mulheres mais oportunidades de serem igual aos homens, mas essa igualdade é baseada em idéias, trabalho, emprego, e oportunidades educacionais: retirar das mulheres o tradicional espírito de ser apenas a dona de casa, apenas trabalhando nos campos e tomando cuidado de crianças. Mas essa igualdade não era cultural, por exemplo, mulheres não pode entrar onde os homens estão se preparando para o Mapiko e as máscaras, ou ir para likumbi. Nós homens não podemos entrar em ing'oma ou nkamango. Nós mantemos isso respeito e não gostaria se fosse violado.181

O grupo feminino Lingundumbwe afirma que as danças são distintas, revelam que não dançam como os homens, sua dança é própria. “Dançamos de maneira diferente dos homens, de uma maneira característica das mulheres, como a maneira como dançamos lingundungu182, bem como outros estilos de movimento. Nós nunca dançamos como a Lipiko dos homens que dá meia-volta e volta para onde ele

180 Texto original em inglês - After independence the government said that equality existed between men and women and that we could do the same things. The inspiration of lingundumbwe was the result of one of our friends who had seen lingundumbwe in the village of Lyanda near Moçimboa da Rovuma, and when she returned here she said that she had seen a dance that we could learn. We began to teach ourselves the songs and afterward the actual dance. She said that the manner of preparing lingundumbwe was the same as the men’s [Mapiko] and that we could try that too. We tried and we succeeded. 273 Interview: Rufina Saide, Tereza Joaquim José, Tereza Paulo, Muatide Village, July 29, 2004. IN BORTOLOT: 2007, p. 185). 181 Texto original em inglês - After independence we men gave women more opportunities to be equal to the men, but this equality is based in ideas, work, employment, and educational opportunities: removing from women that traditional spirit to be only the housewife, only working in the fields and taking care of children. But this equality wasn’t cultural, for example women can’t enter where men are preparing for mapiko and the masks, or go to likumbi. We men can’t enter ing’oma or nkamango. We maintain this respect and wouldn’t like it if it were violated. (Interview: Lucas Njashi Nanelo and Januário Judith Matias Ntumake, Mwambula Village, July 8, in BORTOLOT: 2004, p. 188). 182 Realizada por in'goma inciados, é uma dança onde se arrasta pés e balança os quadris para a frente, para trás e de um lado ao outro. 158

começou.”183 Contam que anteriormente a sua apresentação pública ensaiavam e eram ensinadas na “floresta, longe dos homens e quando nós pensamos que éramos boa o suficiente, convidamos três homens e o chefe do distrito para vir assistir e determinar se poderíamos apresentá-lo para o público.” Com a confirmação destes elas foram apresentar-se em público. “Quando apresentou o show ao público, estava cheio de pessoas e elas estavam muito animadas.”184

SIMÃO ASHUSHÉ - A princípio, eles admiraram a maneira como a dançarina estava vestida e equipada. [Mas então] eles acreditavam que algum homem havia feito isso por elas, apesar de terem sido as mulheres, e concluíram que estavam revelando os segredos dos homens.185(...) Bem, algumas morreram por causa do mito [isso provavelmente se refere à idéia de que mulheres que manipularam a máscara ou dançaram Mapiko morreram por causa de seu poder inerente], e outras foram mantidas prisioneiras no distrito…186(...) Vimos que essa dança expunha os segredos dos homens e a dança não era das mulheres. Seria o mesmo se um homem fosse para nkamangu: eles poderiam espancá-lo e mantê-lo prisioneiro.187 (…) Elas dançaram por um ano. Tínhamos proibido, mas eles se recusaram a aceitar isso. Somente depois que os prendemos eles pararam.188

183 Texto original em inglês: We danced differently from the men, in a way characteristic of women, like the way we dance lingundungu [a dance performed by in’goma initiates, in which they shuffle their feet and swing their hips forward, backward, and side-to-side] as well as other styles of movement. We never danced like the men’s lipiko that does an about-face and returns to where he started [ie: full turn followed by nchakacha and tipwito]. (Interview: Rufina Saide, Tereza Joaquim José, Tereza Paulo, Muatide Village, July 29, in BORTOLOT: 2004. p. 185). 184 Texto original em inglês - We began to teach ourselves in the forest away from the men and when e thought we were good enough we invited three men with the village president to come and watch and determine whether we could present it to the public. The president of the village agreed after watching, saying that we could perform in the village for people to watch… When we presented the show to the public, it was full of people and they were very excited. (Interview: Rufina Saide, Tereza Joaquim José, Tereza Paulo, Muatide Village, July 29, 2004. in BORTOLOT: 2007, p. 186). 185 Texto original em inglês - At first they admired the way the dancer was dressed and equipped. [But then they] believed that some man had done it for them, even though it was the women who had, and they concluded that they were revealing men’s secrets. (Interview: Simão Ashushé, Muatide village, Nov. 25, 2004. in BORTOLOT: 2004, p. 187). 186 Ashushé: Well, some died because of the myth [this probably refers to the idea that women who handled the mask or danced mapiko died because of its inherent power], and others were held prisoner in the district… 187 Ashushé: We saw that this dance exposed the secrets of men and the dance was not the women’s. It would be the same if a man went to nkamangu: they could beat him and hold him prisoner. 188 Ashushé: No. They danced for a year. We had forbidden it, but they refused to accept that. Only after we arrested them did they stop. (Interview: Simão Ashushé, Muatide village, Nov. 25, 2004 i BORTOLOT: 2004, p. 187). 159

A repercussão do estilo Lingundumbwe no distrito de Muatide não foi satisfatória. Como contam os homens da região e as mulheres do grupo, elas puderam dançar por um ano e depois foram presas. Após a prisão esse grupo deixou de se apresentar.

GRUPO LINGUNDUMBWE - O presidente da vila disse que poderíamos continuar a dançar lingundumbwe porque já tínhamos ido para a prisão e que a decisão foi mais para reduzir a tensão e acalmar as pessoas. Nós decidimos abandonar a prática de qualquer maneira, e mesmo em casa nossos maridos não paravam de falar sobre como abandonamos a dança porque fugimos do perigo.189

190

Mesmo gerando controvérsias e resistência de aceitação pelos homens, os grupo de Lingundumbwe tinham apoio do governo socialista e como evidência da natureza progressista do governo, em 1985 o presidente moçambicano Samora Machel enviou um grupo de Lingundumbwe para dançarem na Tanzânia.

189 Texto original em inglês - The village president said that we could continue to dance lingundumbwe because we had already gone to prison and that the decision was more to reduce the tension and calm people down. We decided to abandon the practice anyway, and even at home our husbands couldn’t stop talking about how we had abandoned the dance because we ran away from danger. (Interview: Rufina Saide, Tereza Joaquim José, Tereza Paulo, Muatide Village, July 29, 2004. in BORTOLOT: 2004, p. 192). 190 Mapiko Lingundumbwe no Distrito de Mueda, Moçambique. 2004 (BORTOLOT: 2007, p. 280)

160

Estas formas reais do teatro vão-se evoluindo progressivamente, vindo muito mais tarde fazer parte do teatro tradicional africano, cuja existência sucitou numerosas controvérsias, a ponto de antropólogos culturais da administração colonial, afirmarem que não existia teatro em África. [...] Porém, se pensarmos nos espetáculos da Grécia antiga (ditirambo popular, corística, cosmo) ou nas celebrações litúrgicas da Idade Média, cujo carácter é essencialmente religioso, vê-se claramente que a África conheceu o teatro desde as suas origens. (VAZ, 1978, p. 16).

O trecho acima foi escrito por Carlos Vaz em 1978. O contexto de construção do país independente e valorização de um teatro moçambicano fazia parte da discussão e reconhecimento de práticas/manifestações culturais tradicionais africanas. Após a independência, a capital Maputo recebeu moçambicanos de distintas regiões. Os Macondes com forte participação na libertação do país traziam consigo a forte presença do Mapiko e da arte maconde.

ATANÁSIO - Quem que viria que Moçambique guardara o presidente que viria aqui? É Maconde, é Macua, é Yao e nós viemos pra cá, logo a ver pra cá, é nossa cultura que tá a vir pra cá. Pode dizer que nós viemos dessa maneira, mas depois da independência veio o que? Veio a cultura, veio a economia, veio a sociologia, veio a antropologia.

MANUPA - Vim para aqui (Maputo) em 77. Eu tenho 63. Foi aquele tempo, tempo de guerra, então tinha 20 anos entro para exército da FRELIMO como soldado. Está a envelhecer aqui mesmo Maputo aqui.

GERALDO MAOCHA – Eu sou Geraldo Maocha e sou o chefe da aldeia. Sou o chefe da cultura da nossa comunidade. Eu nasci em Cabo Delgado. Eu cheguei aqui em Maputo em ...88...83. 83. Cheguei aqui em Maputo porque sou militar da luta de libertação nacional. Então eu vim estar aqui em Maputo.

Muitos Macondes, que vieram para o sul do país depois de 1974 e dos Acordos de Lusaka, que determinou o fim da guerra colonial, passaram a habitar o chamado Bairro Militar em Maputo. “Pertencente ao Ministério da Defesa Nacional (MDN), o Bairro Militar corresponde a um conjunto de casas e pequenos edifícios padronizados, dentro do bairro administrativo Sommershield, uma das regiões mais nobres da cidade.” (LARANJEIRA, 2016, p. 101) O bairro é o local onde se 161

desenvolveu o Mapiko dentro na região central de Maputo. Outras áreas ao redor da cidade também existem grupos de Mapiko, como por exemplo Boane, na aldeia dos antigos combatentes. Pode-se dizer que onde há maconde, há Mapiko.

ATANÁSIO – Quando fomos para Boane, pela primeira vez, ir ver um rito de iniciação, ir pelo caminho, ouvimos anúncio de que o Agostinho Neto191 morreu, é, na União Soviética. Nossa primeira vez devemos juntar entre nós e o grupo de Mapiko. Aí, fomos pra Boane. Boane é no quartel também. Tudo estava a acontecer com os militares. Lá dançávamos.

As artes e visões pós-coloniais dão início nesta conquista pela independência, na saída da situação colonial. Com base no contexto geopolítico, o Teatro e Dança se desenvolveu enaltecendo suas raízes, com a tentativa de uma ‘mistura’ e encontro de uma identidade moçambicana.

ATANÁSIO - Dali, a Graça Machel antiga ministra da educação (...) Então é ela que nos leva, a mim e o Casimiro, pra dar aula de Mapiko. (...) Apareceu Graça a dizer: Gostaria que vocês ensinassem danças Maconde. E nós de verdade, eu e Casimiro, meu pai com os amigos dele, eles a tocar, nós a cantar e a dançar com os… era 900 alunos, enchia o campo, estádio da Machava (...) Mas nós amarrávamos nosso Mapiko, nas escondidas, mas ensinávamos os passos aos alunos, assim sem vestir. (...) Eram todos. Machangana, uma mistura, Macua, tudo (...) Muitas filas. E cada pessoa que está na frente é chefe daquela fila toda lá atrás. Se queremos controlar passávamos, os que estão a frente. E ele controlava assim. Em menos de cinco minutos já temos 900 pessoas. Eu e ele arrumávamos ali. (...) Muitas danças, Mapiko é o fim. No fim é que púnhamos Mapiko, que era o prato mais quente. (...) Porque o Mapiko tinha que ser Maconde, o tocador Maconde, só dançarino que podia não ser Maconde. Dançavam passos de Mapiko, mas Mapiko entrar lá dentro... Só Maconde.192

Passos de Mapiko, assim como de diversas outras manifestações tradicionais começam a ser ensinados para diversos moçambicanos. Atores, atrizes e dançarinxs incorporam suas próprias tradições em suas criações. Dessa forma, a produção artística da cena alcança outro patamar: promove diálogo de diferentes tradições. A partir disso, o Teatro Moçambicano ganha contornos construindo sua própria

191 Agostinho Neto morreu em 10 de setembro de 1979. 192 Entrevista com Atanásio Cosme Nyusi, realizada em Maputo. 12 de abril de 2014. 162

identidade composta pelo híbrido de várias línguas, danças e músicas. Surge então sua própria estética, ritmo, dinâmica e atmosfera.

A construção da nação moçambicana como entidade homogênea só é compreensível sob a lógica do enfrentamento com outra entidade que se pretendia igualmente compacta: o império-nação português e suas províncias de ultramar. (...) A tão propalada “morte da tribo” e do “tribalismo” evidenciava, na verdade, um desejo de união. (...) A unidade do povo deveria eclipsar e neutralizar toda e qualquer tentativa particularista, localista, tribalista, tal como afirma Samora em um discurso pronunciado na cidade de Beira, em janeiro de 1980: ‘nós matamos a tribo para fazer nascer a nação’ (apud Musnslow, 1985:77). De certa forma, Samora fala em nome do ‘povo’ e ao mesmo tempo o cria. (...) o heterogêneo se transforma em homogêneo. Um só povo, uma só nação, uma só cultura ‘de Rovuma a Maputo’193.”(MACAGNO, 2014, p. 252-253)

No que diz respeito às artes teatrais buscava-se a identidade, a ‘moçambicanidade’, a raiz, o desejo de um teatro popular embasado por crenças, histórias e memórias. O contexto geopolítico internacional propiciou um terreno fértil para o desenvolvimento da arte moçambicana. A queda do Muro de Berlim (1989) e o fim da Guerra Fria possibilitaram intercâmbios culturais que promoveram o crescimento de companhias teatrais e do movimento cultural artístico. Enaltecidas, resgatadas e preservadas as teatralidades tradicionais que haviam sido subjulgadas no período colonial, a classe artística de Moçambique passa a buscar uma forma de arte que dialogava o tradicional (que eram em sua essência criações coletivas) a uma autoria contemporânea. Então, coreógrafes, atrizes, atores, encenadoras, encenadores, dançarines, escritoras, escritores, musicistas e músicos criam suas obras autorais.

COMPANHIA NACIONAL DE CANTO E DANÇA DE MOÇAMBIQUE - CNCD

Nesse período surge a Companhia Nacional de Canto e Dança de Moçambique (1979) (4 anos após a independência do país). Composta por diversos artistas (bailarines, atrizes, atores, músicos, musicistas, contadoras e contadores de histórias, etc.) a Cia se embasa na cultura de diferentes povos com suas tradições, danças, musicalidades e teatralidades. Em sua criação, a Cia. representava um modo

193 De Rovuma a Maputo referência geográfica da unidade nacional, sendo Rovuma o ponto mais ao norte e Maputo o ponto mais ao sul do país. 163

de construção de identidade nacional, buscando uma unidade dentre as diversas culturas e povos moçambicanos. O grupo tinha como palavras de ordem “recolher, preservar e valorizar diversas formas de arte de Moçambique”.

A área da cultura era uma batalha declarada pelo governo, sujeita a mudanças sociais do sistema existente para a nova sociedade livre e preocupada com a valorização do Patrimônio Cultural Nacional. Eis a razão porque em 1979, período de grande e repentina Manifestação da Efervescência Cultural, para a afirmação de todos os valores, nasceu o Grupo Nacional de Canto e Dança. (CNCD, 2000, p. 5).

Em 1983, o governo moçambicano profissionalizou a Companhia Nacional de Canto e Dança de Moçambique, que continuou seu trabalho selecionando artistas de diferentes províncias e viajando durante o ano para pesquisar diferentes danças, canções, teatralidades de distintas regiões e povos moçambicanos. Segundo Sofia Soromenho, “o poder em Moçambique apostava na cultura, como meio de promover a autoconsciência de uma nação.” (SOROMENHO, 2013, p. 15). Em 1984 a CNCD estendeu o trabalho coreográfico para concepção e desenvolvimento de seus espetáculos. Anteriormente, o trabalho consistia na pesquisa e tentativa de realização com o mínimo de transformação para o palco da dança, musicalidade e teatralidade de diversas manifestações populares de Moçambique.

DAVID ABÍLIO - No Brasil, fomos o primeiro grupo a atuar no Teatro Municipal de São Paulo, em 1984. Como usar corretamente o Teatro Municipal, com toda aquela sofisticação, para que nós não fiquemos estranhos ao teatro? Exige algum conhecimento, exige um estudo. E isso sem querer, também trás forma no pouco do próprio nosso produto, ya. Mas não significa uma adulteração, uma imposição de coisas. Significa um processo natural, portanto, de adaptação, que é necessário como do próprio ser humano. Se você não se adapta, morre, então para não morrer é preciso sempre saber adaptar-se. Então é um processo, ya.

David Abílio, o primeiro diretor da Cia, conta: “Primeiro, nós quando surgimos como companhia, atuávamos gratuitamente para as pessoas. Fazíamos coisas que as pessoas conhecem, um pouco mais bem representada, mas não era novidade para as pessoas”. Depois, a Cia. passou a elaborar novas concepções coreográficas, 164

trabalhando com o material recolhido das pesquisas das tradições como elemento para suas criações. Em seguida, chega a incluir em seu repertório criativo o que chama de “domínio de técnicas universais da dança contemporânea e moderna”.

DAVID ABÍLIO - Não queria continuar só a fazer dança assim, dança tradicional, mas queria fazer, contar histórias dançadas. Por conta também do grande desafio que nosso país temos, o nosso país na altura da independência tínhamos cerca de 95% de analfabetos - pessoas que não sabiam falar português - 95% era muito, ya. Então, fazer teatro na língua portuguesa para mim era um limitante. [...] Procurar romper com barreiras de comunicação usando o teatro, portanto, na sua plenitude, sobretudo expressão corporal. Mas como também estava ligado a um grupo de dança já era fácil, foi então transformar esse grupo, não transformar, integrar nas coreografias, histórias teatrais.

Durante tal período a Cia. começa a dividir-se em duas direções, manter sua proposta inicial de preservação da cultura tradicional ou estar permeada a outros tipos de projeto. Cândida Mata, diretora da CNCD em 2011, que durante muitos anos enfatizou a função principal da CNCD (recolher, preservar e valorizar diversas formas de arte de Moçambique) passa a defender a abertura da Cia. para outros estilos de dança. “Temos realmente esta abertura de trabalhar com diferentes coreógrafos que é muito importante para que os nossos artistas tenham uma visão global do que está a acontecer no mundo”. (CÂNDIDA MATA, 2011 apud SOROMENHO, 2013, p. 99). Segundo o coreógrafo Rui Lopes Graça existem dois tipos de repertório na CNCD: a ‘dança etnográfica’ e as ‘incursões na dança contemporânea’, passeando entre a preservação e transformação do patrimônio coreográfico. Muitos espetáculos da CNCD ficam em cartaz por um grande período, tendo assim a Cia. um grande e distinto repertório. “N’tsay”, de 1986, criado por David Abílio por exemplo, uma coreografia que conta a história de Moçambique e “Em Moçambique o sol nasceu”, de 1985, que é uma amostra de diversas danças tradicionais moçambicanas. Do mesmo coreógrafo são exemplos de grandes sucessos da Cia. Em 1984, ganha o prêmio de melhor presença e grupo no Festival Internacional de Artes Negras “Kizomba” no Brasil, Rio de Janeiro. A Cia. já se apresentou em diversos festivais em diferentes países, como Estados Unidos, Cuba, Jamaica, Bulgária, Romênia, Alemanha, Zimbabwe, Angola, Itália, Noruega, Espanha, entre outros. 165

ATANÁSIO - E a Companhia começa a viajar. O grupo nessa época de dança, eu viajo, primeira vez. Viajo pra Europa. Foram cinco países seguidos. Logo primeira vez. A dançar.. Era o espetáculo chamado “Em Moçambique o sol nasceu”. Eram danças tradicionais. (...) Samora mandou nós para irmos lá, como se fosse isca, pesquisar. Porque se eles não gostassem de nós, a visita dele também não ia ser muito boa.194

Não se pode desconsiderar o fato de que as manifestações culturais tradicionais são a forma de expressão artística que ganhou mais visibilidade fora do continente africano. De fato, o crescimento da (re)invenção da tradição e no contexto de (re)afirmação das identidades nacionais pelas performances artísticas são forte alimento para o turismo e para fins comerciais. Entretanto, elas representam mais do que meras apresentações folcloristas. Elas dão espaço para uma reelaboração de valores e tradições, dialogando o passado, o presente e tendo em vista o futuro. São dotadas de uma comunicação reflexiva, pautada pela essência no ritual de cada tradição. Ela representa, reflete e comenta a sociedade, além de contribuir para a reprodução e transmissão de elementos culturais. Segundo Soromenho: “Alguns intérpretes mencionam ver nas peças de dança contemporânea um resultado do fluxo contínuo de evolução do mundo, ao qual a companhia resiste, persistindo no seu intuito de proteger um património coreográfico” (SOROMENHO, 2013, p. 62).

DAWA - Solo para cinco, dançávamos nus, completamente nus. Primeira obra a ser fazer aqui em Moçambique, peladinha. Aí então, éramos cinco mulheres, todas nuas, mas nós ficávamos nuas em que momento? No momento em que entrávamos num balde de argila, nos punhamos, punhamos com aquela argila em todo corpo, toda cabeça, ficamos todas sujas. Todo corpo e tals. Então, depois quando saíamos fora daquela bacia, era uma banheira grande cheia de argila, saíamos e começávamos a dançar por cima das folhas todas nuas ali.

EUGÊNIO - É as pessoas dançavam nuas, totalmente nuas, então isso levantou uma grande polêmica aqui, tipo mas “como que essas coisas são apresentada no público?” [...] Essa galera já foi ultrapassada, creio eu. Já começam a compreender um pouco esse lado contemporâneo.

194 Entrevista com Atanásio Cosme Nyusi, realizada em Maputo. 12 de abril de 2014. 166

Tais espaços criados para inicialmente a preservação da cultura e a (re)invenção de uma identidade, também acabam por gerar espaços de criação e desenvolvimento da arte contemporânea africana que se reinventam e desenvolvem suas formas de expressão até os dias atuais.

Este momento agitadíssimo e de indefinição é o que encontras no país. Acho impressionante. É como se fosse uma epiderme da situação social. A grande baralhação é a própria consciência de qual é o lugar que a companhia ocupa no mundo contemporâneo. (LUCAS, 2011 apud SOROMENHO, 2013, p. 65)

195

GUERRA CIVIL (1977 – 1992)

Conquistada a independência moçambicana, a FRELIMO assumiu o poder do país. Como governo, aliada a países do então “bloco socialista” introduziu um sistema político de partido único. O regime não foi muito bem aceito por uma parte dos moçambicanos e pelos países vizinhos segregacionistas na época, como África do Sul e Rodésia, que então apoiaram recolonizadores e guerrilhas internas.

195 CNCD. 20 anos - Companhia Nacional de Canto e Dança. Concepção, design e Produção: JBdeB, Imagem & comunicação. Maputo, 2000. 167

No final dos anos 70 o país viveu uma guerra civil que só terminou em 1992. O conflito foi dirigido pela REMANO (Resistência Nacional de Moçambique), que viria a se tornar principal partido de oposição ao partido FRELIMO. Samora Machel ocupou a presidência até sua morte em 1986. Seu sucessor Joaquim Chissano, negociou o fim da guerra civil. Passados 16 anos, o conflito se encerrou com a assinatura dos Acordos Gerais de Paz entre o Governo da FRELIMO e a REMANO. O período de 16 anos de guerra civil (1977 – 1992) teve grande repercussão na cultura. Cinemas e linhas de rádio foram destruídos pelos conflitos internos no país. Como resposta ao abismo que se abriu com o abalo da arte e da cultura, o teatro reforça seu papel como meio de comunicação. Em entrevista concedida ao jornal ‘O País’ o ator moçambicano Alex Elliot diz que com o fim da guerra civil em Moçambique, a comunicação estava devastada, os mediadores (TV e rádio) não propagavam informação. Nessa época, o teatro assumiu papel de comunicação.

Não havia tanta mídia no nosso país. Os caminhos que deviam levar certa informação aos cantos mais recônditos desta nação não eram da TV nem da rádio, mas do teatro. Nós fomos à última fronteira deste país para buscar o cidadão moçambicano que estava refugiado mesmo fora de Moçambique para lhe dizer que a guerra havia terminado, e que podia voltar para o seu local de origem. (ALEX, 2015).

Neste contexto, as companhias teatrais utilizam como forte referência o teatro do oprimido, o teatro de campanha e o teatro fórum. As peças passam a ser encomendadas e desenvolvidas a partir de temáticas específicas, as quais abordavam assuntos de modo não agressivo ou ofensivo, considerando a abertura para assuntos como sexualidade e doenças196 em diferentes comunidades.

O teatro didático é rico em ensinamentos tanto para os espectadores eventuais, como para os próprios atores. O teatro didático é não só um método pedagógico, mas também um meio de investigação psicológica e de formação política. [...] Atendendo a que o teatro é a forma de comunicação mais viva e directa, ele poderá ser útil na formação do homem africano, principalmente quando utilizado no campo da educação (teatro sobre alfabetização, educação sanitária, reforma agrária, história africana, formação política e etc.) (VAZ, 1978, p. 103).

196 Durante o período o crescente número de casos de AIDS/SIDA fez com que utilizassem o teatro como forma de comunicação sobre a doença e sua prevenção. 168

COMPANHIA MUTUMBELA GOGO

MANOELA SOEIRO - O moçambicano é teatral. Sempre tem público. É um contador de estórias, é contador de tudo. Tem uma flexibilidade corporal incrível.197

Em 1986, funda-se a Companhia Mutumbela Gogo que se tornou referência nas artes cênicas em Moçambique. A ideia de retornar às raízes africanas constituía uma das premissas para a libertação da África e para consolidar identidades. Amilcar Cabral, nascido em Guiné-Bissau, grande nome da luta contra o colonialismo português, afirmava que o povo africano deveria reinterpretar suas tradições levando em consideração a herança colonial e, a partir daí, recriá-la. Essa também era a proposta de trabalho da Companhia teatral Mutumbela Gogo. Mutumbela passou por diversas dificuldades de manter-se como grupo teatral durante as transformações políticas e sociais em Moçambique. A Cia resistiu às barreiras na comunicação encontradas durante a Guerra Civil sendo de suma importância na troca de informações sobre a guerra, inclusive sendo veículo de aviso aos refugiados de que a guerra havia acabado.

MANOELA SOEIRO - Nós começamos numa altura de guerra, não havia cinema, não havia nada. Nada. Não havia nada neste país. Não havia luz. Muitas vezes abrimos a porta aqui [Teatro Avenida], eu punha o farol do meu carro para iluminar o palco porque interrompiam a luz, e continuávamos a peça com a luz de fora, a iluminar o palco. Era uma altura de guerra, não havia nada. Contudo, isto enchia, as pessoas vinham.198

Assume importante função na comunicação ao possibilitar o contato com a literatura de difícil acesso, seja pelo alto custo dos livros ou pelo analfabetismo. “Ao profissionalizarmo-nos tínhamos a convicção de fazer bom teatro, melhor teatro, mas não tínhamos textos. Olhámos à nossa volta e descobrimos as nossas personagens, lemos os contos dos nossos autores.” (SOEIRO, 2006, p. 3). Mutumbela então mergulha na literatura moçambicana de Luís Bernardo Honwana, José Craverinha,

197 Entrevista realizada com Manoela Soeiro, pelo Literatas Moçambique. Disponível em: . 198 Mesma referência da nota anterior. 169

Paulina Chiziane, Ungulani Baka Kossa e o próprio Mia Couto, que participou ativamente fazendo parte da Cia por um período.

Pessoas como Craverinha, Rui Nogar, Luis Bernardo Honwana, etc, não hesitaram em dar apoio a um projeto que abriu fronteiras do pensamento a muitos jovens. Quando se entregou o Teatro Avenida à Manuela houve à mistura com murmúrios negativos, aplausos de alegria. Sabíamos muitos, o que ela seria capaz de fazer em prol do desenvolvimento. (...) O Teatro Avenida tem sido uma Escola de desenvolvimento da mente através do teatro. (MALANGATANA, 2006, p. 5)

Então, Manoela comenta, “abrimo-nos ao mundo”, referindo-se tanto às viagens feitas pela Cia como aos contatos com textos do teatro clássico europeu e artistas de outros contextos, como o norueguês Henrik Ibsen, o sueco Peter Oskarson, e o próprio sueco Henning Mankell que permaneceu na Cia durante anos. “Gostaria de fazer referência ao Mia Couto e ao Henning Mankell que durante estes anos me deram as suas mãos para construir este símbolo do teatro que é o Mutumbela Gogo.” (SOEIRO, 2006, p. 4)

MANOELA SOEIRO - O Henning Makel dava-nos informação técnica e o grau de desenvolvimento do grupo aumentou, o impacto aumentou, porque não chega só estar no palco e dizer um texto. É preciso interpretar, criar formas e, inclusive, há vezes que a gente está a dizer um texto e o texto está a ser interpretado de uma forma, a expressão corporal, facial. Então era preciso aprender.199

A companhia representa diversos estilos do teatro clássico ocidental e explora o estilo moçambicano com criações coletivas e textos de autores do próprio país. Suas peças enaltecem pontes que permitem diálogo entre as tradições nacionais e as tradições e técnicas do teatro ocidental, como "Os pilares da sociedade", do norueguês Henrik Ibsen, ou textos literários de Moçambique adaptados para teatro como "Os meninos de ninguém", do autor moçambicano Mia Couto. Buscando maior acessibilidade quando são apresentadas nas províncias, as peças muitas vezes são traduzidas para línguas maternas moçambicanas. Henning afirma que “Desde o início

199 Entrevista realizada com Manoela Soeiro, pelo Literatas Moçambique. Disponível em: . 170

buscamos criar um diálogo com nosso público. Nunca quisemos ser um teatro para uma elite exclusiva.” (MANKELL, 2006, p. 6). Tal histórico e importância do grupo teatral trouxe um resultado de duradoura vida de profissionalismo e competência. Manoela comenta: “que tinha que criar um grupo de teatro profissional para que aquela actividade não morresse e desse inspiração a outros para formarem novos grupos” (SOEIRO, 2006, p. 3) Pelo reconhecimento da Cia e seus caminhos que vêm sendo trilhados desde os anos 80, Manoela Soeiro é por muitos chamada de ‘mãe do teatro moçambicano’. E a Cia inspira gerações de artistas. Mia Couto afirma: “Para mim o Mutumbela é uma escola que frequentei (e ainda frequento) para aprender mais da minha própria arte.” (COUTO, 2006, p. 8). Manoela aponta para o futuro com a Escola de Teatro que pretende inaugurar.

MANOELA SOEIRO - Agora vamos abrir a escola de teatro porque são anos de experiência que acumulada, em tudo: cenografia, guarda-roupas, iluminação, muita coisa. Nós estamos a preocupar-nos também em passar determinados aspectos que tivemos acesso algumas vezes quando vamos a festivais, para fazer crescer o teatro, porque se somos os únicos isto está mal. Desculpa, não quero dizer que vou morrer agora, mas estou mais para lá do que para cá. Então tenho que deixar o que aprendi, do que as pessoas disseram que era bom e que era mau, tenho que deixar para as gerações mais novas.200

Nos dias atuais muitos acabam colocando o Mutumbela na classificação de um Teatro “mais clássico”, “não popular” considerando-o inclusive “de elite” ou “teatro para pensar e não para se divertir”. Colocam-o em comparação muitas vezes com a “popular” Cia. Gungu, que discorreremos mais adiante. Um dos fatores que reflete tais falas é a baixa de público atual do Mutumbela Gogo. Entretanto todos reconhecem a relevância e importância que a Cia tem para a história do teatro moçambicano, como um ‘divisor de águas’ que abriu caminhos para diversos outros grupos teatrais.

Quando se escrever a história do teatro moçambicano haverá que demarcar dois momentos: antes e depois do Mutumbela Gogo. Na realidade, foi este grupo de teatro de marcar diferença, de empreender

200 Entrevista realizada com Manoela Soeiro, pelo Literatas Moçambique. Disponível em: . 171

rupturas formais e sugerir uma linguagem mais moçambicana nos nossos palcos (COUTO, 2006, p. 8).

201

201 CATALOGO COMEMORATIVO MUTUMBELA. 172

202

203

202Foto do espetáculo Os meninos de ninguém. Disponível em: . 203CATALOGO COMEMORATIVO MUTUMBELA.

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ATUALIDADE

Em 1994, Moçambique realizou suas primeiras eleições multipartidárias, onde a vitória foi conquistada pela FRELIMO que voltou a ganhar as eleições seguintes, em 1999, 2004, 2009, 2014 e 2019. A REMANO, agora partido de oposição acusa, desde então, a FRELIMO a se utilizar de fraudes nas eleições para suas vitórias nas eleições. A situação política atual apresenta tumultos e guerras civis, principalmente, em anos de eleições presidenciais. No período da independência, buscou-se a raiz do teatro moçambicano, retornando às suas tradições e cultura enfatizando as tradições pré-coloniais. Porém, hoje, com pensamento seguindo correntes descoloniais, entende-se que a identidade cultural moçambicana é um reflexo da sua história como um todo, incluindo a colonização e a guerra civil. Dialoga-se estéticas ocidentais e não ocidentais, tradicionais e contemporâneas. A identidade cultural moçambicana é gerada a partir da relação dialética entre suas tradições e as influências impostas pelos europeus.

VENÂNCIO CALISTO - A necessidade de nós começarmos a explorar, hãm, as nossas, a nossa cultura tais a ver? A necessidade de nós termos uma abordagem, na encenação e na dramaturgia que transforma o que nós já temos de potencialidade cultural. Então nós temos um país muito rico, então temos muitos tipos de danças, muitos tipos de máscaras, então são coisas que nós podemos usar para nosso teatro e enriquecer nosso teatro. Depois a ideia de não largar o conhecimento que nós temos do ocidente, mas fazer dialogar esse conhecimento que nós temos, com a nossa potencialidade cultural, então criar algo sincrético.

A cidade de Maputo depois da guerra de libertação recebeu e continua a receber moçambicanos de todas as regiões do país, de diferentes povos e etnias concentrando a mistura de culturas que refletem no teatro e dança atualmente. Em Maputo está o que Bhabha chama de “sociedades complexas moderno- contemporâneas” (BHABHA, 1990, p. 27 apud REIS, 2011, p. 27). Tais sociedades têm como características a interação intensa de diferentes grupos étnicos.

Através da urbanização crescente, as sociedades africanas de hoje convivem com a globalização associada à economia transnacional, às novas tecnologia e às trocas culturais proporcionadas pelos meios de

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comunicação de massa e pelas migrações internas e externas ao continente”. (REIS, 2011, p. 27).

Nesse contexto, florescem manifestações artísticas moçambicanas a partir da reinterpretação de suas tradições considerando sua herança colonial e carregando em si a face multicultural, multiétnica do moçambicano; se expressando através de uma estética que expõe a tensão de ser múltiplo.

Mesmo nas mudanças aparentemente mais incisivas de identidade individual, permanecem as experiências e vivências anteriores, embora reinterpretadas com outros significados. Entre um self fixo e imutável, por detrás das aparências, e uma plasticidade total, procuro captar o jogo da permanência e da mudança (REIS, 2011, p. 27).

Dentre os muitos grupos que emergiram nesse período, citaremos na atual pesquisa Centro do Teatro do Oprimido Moçambique, Companhia de Teatro Gungu, Associação Cultural Hodi, Associação Cultural Wuchene, Grupo de Teatro Girassol, Teatro em Casa e Mbeu Grupo de Teatro. Tantos grupos coabitam em uma Maputo movimentada e presenciam questões semelhantes como a falta de espaços teatrais, como chegar ao público ou fazer com que ele chegue até os espetáculos, como sobreviver de arte no contexto atual, e a falta de políticas públicas de incentivo e defesa ao teatro. Abordaremos tais questões ao discorrer sobre tais grupos citados anteriormente.

CENTRO DE TEATRO DO OPRIMIDO MOÇAMBIQUE - CTO

VENÂNCIO CALISTO - Há uma coisa que se chama empowerment que é devolver o poder para as pessoas. A arte visa isso, visa ao empowerment, visa devolver o poder as pessoas. Uma das coisas que o teatro deve e faz é isso, é devolver o poder às comunidades. O poder delas escolheres e decidirem e ter a liberdade de se expressar. Mas vamos a ver lá para a história, no último século por exemplo criou-se o teatro político, teatro de intervenção social. Teatro de Brecht do Boal. Isso tudo pra que Para munir as comunidades de poder para que elas possam pensar por elas próprias a decidir o seu futuro e também a participar politicamente. É preciso incluir as pessoas nos debates.

Uma corrente relevante no teatro moçambicano é o que chamam de Teatro na comunidade, que visa desenvolver espetáculos ou grupos de teatro nas áreas

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descentralizadas em Maputo. O teatro na comunidade é uma componente forte da linguagem em Moçambique, e como exemplo da sua importância o curso de graduação em teatro na Universidade Eduardo Mondlane (UEM) tem como vertente de formação: encenação, atuação e teatro na comunidade. O interesse e desenvolvimento deste teatro originaram-se tanto da necessidade de alcance da comunicação à população moçambicana, que em sua grande maioria está distante do centro maputense, como por influência de métodos como o do brasileiro Augusto Boal.

DAVID ABÍLIO - Quando dá independência, calha que o Brasil também existia lá uma ditadura, havia lá uma companhia que chamava Teatro de Arena de Augusto Boal, e que eram perseguidos e tiveram que fugir para se exilar em vários países. Incluindo Augusto Boal, uma das atrizes de Augusto Boal fugiu para Moçambique. Edna Tossate. Então a Edna Tossate introduz-me na espécie de Teatro do Oprimido. Naquela altura tinha tudo a ver com teatro popular, quer dizer, teatro e mobilização social, teatro de conscientização, teatro que envolvesse a participação da comunidade para ganhar consciência. Na altura, como era um pouco antes da independência, a temática era procurar levar as comunidades as minas, como um gesto já sujeito ao seu próprio país.

Alvim, o fundador do CTO em Moçambique, conta como teve contato com a metodologia desenvolvida pelo brasileiro Augusto Boal. A Unesco tinha um projeto bolsas de estudos para artistas do terceiro mundo, onde muitos cursos de diversas áreas eram oferecidos em diferentes países. Na altura de candidatura, Alvim verificou que o único curso que tinha língua portuguesa era no Centro de Teatro do Oprimido no Brasil, e assim foi feita sua escolha que viria a transformar sua vida. Alvim chega no Rio de Janeiro em 2001 e realiza diversas oficinas de formação na metodologia de Augusto Boal.

ALVIM - Eu desembarco, o Teatro do Oprimido, o CTO estava a fazer o Teatro do Oprimido nas prisões, estava a fazer oficinas com o MST, estava a trabalhar com o Ministério da Saúde. Estava com projetos que nunca mais acabam. Foi um tempo fértil de atividade. (...) Três meses de Oficinas feitas por Boal, oficinas feitas por Bárbara Santos, oficinas feitas por Helen, por Claudette, por Gel.

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Quando retorna a Moçambique reencontra seu grupo Gota de Lume e passam a trabalhar com o método de Boal que Alvim havia sido formado.

ALVIM - Tínhamos um grupo aqui que é o Gota de Lume, e já tinha alguns atores que tem ideia do teatro, eu trabalhava na casa da cultura, então tinha uma sala….Cheguei aqui reuni os meus colegas, informei que aprendi o método, que a partir de hoje vamos desaparecer como “estrelas”, porque o método que aprendi não tem nada a ver com “estrelato”. Tem a ver com povo, população. (...) E comecei a oficina com esse grupo, com essas pessoas, montamos uma peça, que na verdade essa peça foi montada em uma oficina em Santo André, sobre AIDS, sobre HIV, fizemos uma adaptação aqui para Moçambique. “O vírus mora lá em casa”, para discutir a questão da sexualidade dentro de casa. E montamos essa peça, e foi estreada no dia 16 de Julho de 2001, foi uma grande estréia, 16 de julho comemorava- se o dia nacional de cultural. Era um evento muito grande, estava o presidente da República, Ministro da Cultura, estava o governo. Estava o corpo diplomático, estava várias pessoas. Por isso que 16 de julho é o dia do teatro do Oprimido moçambicano, também fizemos questão que o registro do CTO para o boletim da república, para acontecer no dia 16 de julho. Mesmo propositado, então esse é o nosso dia.

Com a apresentação do espetáculo “O vírus mora lá em casa” estava marcado nascimento do Centro de Teatro do Oprimido de Moçambique. A grande visibilidade na imprensa ajudou a divulgar essa nova forma de fazer teatro que estava sendo proposta por Alvim, “essa forma estranha”, como era visto na época. A cooperação Suíça ajudou a oficializar o grupo, a UNICEF204 convidou-os para trabalhar com criança e a partir daí vieram muitos outros trabalhos por todo o país. Faziam oficinas de formação para que cada local tivesse seus atores e suas peças em suas línguas lidando com os assuntos locais.

ALVIM - Moçambique é um país constituído por várias nações, nós temos aqui o português como uma língua nacional, mas ainda temos uma grande porcentagem de moçambicanos que não falam português, nós temos aqui um pouco mais de 30 ou 40 línguas, e seus dialetos, e língua carrega consigo práticas, hábitos, outras coisas (...). O teatro é a forma mais clarividente, propícia para levar essa mensagem. Porque a pessoa pode não ouvir, mas vê, sente, toca, experimenta.

204 O Fundo das Nações Unidas para a Infância.

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Segundo Alvim: “Não há como montar uma peça em Maputo e o grupo sair daqui e se apresentar em Nampula. Língua diferente, maneira de ser diferente, até a fisionomia é diferente.” Levando em consideração as diferentes etnias do país, o CTO trabalha com a formação de grupos locais. “O grupo de lá e fazer a apresentação de lá, na língua de lá, com rosto de lá e discutir os problemas lá”. Até os dias atuais o grupo vem desenvolvendo esse trabalho, buscando parcerias e patrocínios (na maioria das vezes de ONGs). Atualmente o grupo tem uma sede onde desenvolve seus trabalhos de formação, trabalhos com as crianças da região, onde fazer parcerias com outros projetos, cedendo o espaço a eventos e apresentações de outros grupos, promovendo debates. A sede é aberta a comunidade e Alvim reforça “completamente aberta, comunitárias, de todo mundo, até casamento e reuniões”.

ALVIM - O ministério do exterior resolveu criar um departamento de arte e cultura. Mas o ministério do exterior tem quadras, não tens espaços para ensaiar. Então os policiais do ministério trabalham aqui. Todas as manhãs 70 policiais de teatro, dança, canto coral [...] concordamos com a ideia, a ideia é mostrar a sociedade que ao mundo e que o crime não se combate apenas com balas e com armas. Pode-se combater o crime viajando para o interior das pessoas e mudá-las lá dentro, e o método que faz isso com maestria é a arte. A arte faz essas viagens, a arte propicia essa introspecção, propicia esse espelho da pessoa olha para si mesma.

205

205 Sede do CTO, Moçambique. Fonte: Foto da autora, 2018.

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O CTO tem um projeto de produção de CDs onde gravam uma espécie de ‘rádio novela’ de algumas peças que são feitas pelos pólos formados em diversos locais do país. Tais CDs são distribuídos localmente, pois trazem temas da região em língua local. Distribuem para a população local e para transportes intracomunitários. “As pessoas fazem uma viagem de um dia, doze horas, escutam músicas, peças que são engraçadas, para sempre para gerar um debate. As peças levantam questões que são debatidas lá durante a viagem”. Alvim conta como exemplo um dos CDs produzidos onde a história narra um grupo de camponeses “que discutem assuntos de camponeses, discutem outros também, discutir HIV, mas na perspectiva dos camponeses. Que é uma perspectiva diferente das dos médicos, professores, engenheiros e por aí vai…”.

ALVIM - O trabalho de teatro é um trabalho extremamente libertador, a pessoa se liberta, se abre, se solta. E a coisa de Boal de “a minha arte me faz criador” as pessoas descobrem a possibilidade de criar, de fazer, de abrir outros caminhos.

TEATRO EM CASA

Pôde-se perceber que durante o período colonial houve acentuado crescimento nas construções de instituições teatrais, porém, como vimos anteriormente, determinadas salas recebiam grupos e espetáculos dos e para os colonizadores. A atividade teatral moçambicana em si foi intensificada, a partir do período de libertação nacional. A independência trouxe a conquista destes prédios e salas de teatro, que passaram a ser do Estado. A partir disso, as construções dos colonizadores foram usadas em benefício dos moçambicanos, e tais espaços foram distribuídos pelo governo entre órgão, militares, moçambicanos, e grupos de teatro e dança. Surge o Cine África, por exemplo, espaço sede da Cia Nacional de Canto e Dança de Moçambique. Nos últimos anos, muitos destes prédios foram privatizados, o que acarretou na perda de espaços para manifestações artísticas. Como resultado, a menor parte dessas construções é direcionada a grupos e companhias teatrais. Hoje, os grupos de teatro buscam sobreviver à escassez de salas de teatro para ensaios e apresentações e a falta de financiamento para tal arte. Outras formas alternativas para ensaios e apresentações teatrais são criadas por novos grupos na cidade de Maputo. Diante das barreiras determinadas pelo teatro

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atual elitizado, um grupo de estudantes universitários busca ultrapassar os limites impostos dando espaço para novas possibilidades. Criam, então, o projeto “Teatro em Casa”, que tem como primordial objetivo levar o teatro aos subúrbios expandindo a perspectiva do que é o teatro moçambicano. Desse modo há oportunidades para novos talentos.

ASSANE - As casas de teatro existentes, as maiores, que tem apresentado teatro, constantemente determinam seus valores para os grupos que vai apresentar. Isso é difícil. Por outro lado, as casas grandes perdem uma coisa: os novos talentos, novas possibilidades de atuação. A esperança do país, a esperança do teatro. Perde-se.

O Teatro em Casa leva peças de gêneros variados às casas nas zonas periféricas de Maputo. Uma pessoa pode disponibilizar um espaço de sua casa (interno ou externo) para que o grupo apresente para toda a comunidade vizinha. Assane, fundador do projeto conta que logo depois da primeira apresentação, que foi em sua casa, pensaram “não pode ser na sua casa só, tem que ser alguma coisa diferente, num outro sítio porque é comunidade. Então as pessoas começaram a sugerir, um amigo sugeriu a casa dele e outro amigo sugeriu a casa dele, então foi a coisa ficou animada, animada, animada e fizemos em vários sítios.” Tal ação, além de gerar mais espaços tanto para ensaio como para apresentações, acaba por deslocar as produções artísticas antes centralizadas no centro de Maputo para outros bairros. Assane afirma que o público que vive fora do centro de Maputo muitas vezes não tem acesso ao teatro, pois a arte é feita de maneira mais centralizada, apresentada predominantemente no bairro central e, segundo ele, as pessoas dos bairros periféricos “não tem acesso de vir a distância, ao tempo e ao receio, a criminalidade etc. Então, transporte principalmente, acaba não sendo… por isso torna- se o mesmo público que vai ao teatro, agora quando tu vais a comunidade, ao menos tens o público daquele bairro, só daquele bairro, embora também venha, por vezes vêm pessoas de outros bairros, mas a maior parte das pessoas que vão assistir é dalí.” Comenta também que os próprios fazedores de teatro e dança normalmente vivem nos bairros periféricos, mesmo estudando no centro e diz que essa é uma forma

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de trazer o seu trabalho à sua própria comunidade. Conta que sua mãe, por exemplo, não o havia visto em cena antes da iniciativa do “Teatro em Casa”.

COMPANHIA DE TEATRO GUNGU

A Companhia de Teatro Gungu foi criada em 1992 por Gilberto Mendes, ex- integrante do Mutumbela Gogo, que adquiriu os cinemas Matchedje (1000 lugares) e Estúdio 222 (222 lugares) e criou sua própria Companhia onde escrevia, atuava e encenava suas peças criando também uma escola de atores. As peças encenadas pelo grupo profissional são baseadas em contos africanos ou em fatos reais e retratam questões do dia a dia. Suas peças são, em sua maioria cômicas e de natureza política, especialmente no que diz respeito às críticas de políticos, corrupção e assuntos sociais. A Companhia de Teatro Gungu trouxe uma nova dimensão ao teatro moçambicano, traz a crítica através do riso, e trabalhando com humor conquistou o público moçambicano. Hoje em dia é muito popular, lotando as suas salas com um repertório que sempre se renova. Atualmente a Companhia conta com o que chama de ‘Afiliados’ que são grupos de jovens do teatro Gungu: Gungulinho 1 (semi-profissional); Gungulinho 2 (amador); Gungulito (juvenil); Gungulinhozinho (infantil). A Companhia de Teatro Gungu já participou de inúmeros festivais em diversos países como Portugal, Ilhas Canárias, Espanha, França, Argentina e Brasil. Por sua característica mais cômica e improvisada e extremamente popular (casa cheia de sexta a domingo), a Cia. é vista como um “teatro de entretenimento” ou “teatro para se divertir.” Muitas vezes comparado ao outro grupo profissional da cidade (Mutumbela Gogo) “as pessoas dizem - aquele teatro ali é para qualquer um, qualquer um pode entender - mas não é para a elite. A elite quer aquelas peças calma, soft, mais clássicas por exemplos, modelo clássico. E é diferente do teatro de gungu é mais comédia, mais comédia, mas como é… não muito clássica.”206

MARCIAL - E uma das coisas que muitas vezes as pessoas, muitos estudantes questionavam, é que ah porque que, diziam que o teatro do Mutumbela Gogo é melhor que do Gungu e eu questiona, eu dizia tá, tá bom. É melhor do que o Gungu pra

206 Entrevista com Cassimo Assane, realizada pela autora. Maputo, 2018.

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quem? Porque só de olhar pelo número do público, o Gungu tá sempre cheio e o Mutumbela tá vazio. E o Gungu faz espetáculo sexta, sábado e domingo e tá tudo lotado. E não há nenhum final de semana que não tem teatro, então você está a dizer que aquela população toda que vai para Gungu, não tem gosto? Não sabe do que quer? Então, hã, pra quem está habituado ao formalismo, essas estruturas todas padronizadas, modelo ocidental, acha que o teatro do Mutumbela é o melhor, mas se tu olhares pra quem quer e se identifica com o contexto local, vai pro Gungu. Então essas coisas todas devem ser problematizadas.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL WUCHENE

Associação Grupo Cultural Wuchene207 foi fundada em 2000 com o objetivo de preservar o patrimônio cultural do país, divulgar danças e ritmos de diferentes tradições moçambicanas, defender e representar os jovens com atividades culturais, educativas nas linguagens artísticas de dança, teatro e música.

MÁRIO - Foi uma junção de jovens, iniciativa de ocupar os jovens, nós tivemos mesmo uma ideia de nos encontramos uns, termos um movimento que pudermos terminar com a bandidagem, e com as epidemias (...). Então, primeiramente nós fazíamos o teatro, a primeira atividade que nós tivemos no grupo, foi o teatro. Andamos, andamos, andamos, andamos e por questões de acompanhamento, acabamos entrando na dança tradicional, onde também buscamos nas artes a sua origem toda.

A associação trabalha em duas vertentes: a formação em dança, teatro e música e Companhia das Artes Wuchene. Com vasto repertório de danças tradicionais, Wuchene representa o país e seu amplo território em diversos festivais e mostras nacionais e internacionais. A sede da associação fica no bairro de Maxaquene, trabalha com muitos jovens e é berço de muitos artistas que hoje ocupam renomados grupos de teatro e dança da cidade, inspiração para associações semelhantes, como a Associação Cultural Hodi.

207 Wuchene: Nascente, na língua Ronga.

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ASSOCIAÇÃO CULTURAL HODI

EUGÊNIO - Hodi (em changana) significa o “pedir permissão”, quando tu vais para a casa de alguém tem esse nock, que dá. Então é pedido de permissão aos mais velhos para que possamos continuar com essa arte de dançar.

Fundada pelos irmãos Elias e Augusto Manhiça e por Eugénio Macuvel em 2012 e reconhecida juridicamente em 2018, a Associação Cultural Hodi Maputo Afro Swing teve origem no Bairro Polana Caniço com o intuito de proporcionar o “resgate” de crianças através da cultura e da arte.

AUGUSTO MANIÇA - Escasseiam os transportes escolares, há falta de material didático e as infraestruturas das escolas são débeis. As crianças do nosso bairro só têm cerca de 3 a 4 horas de aulas diárias, e depois? Estas dificuldades podem ser minimizadas através do nosso programa.

Polana Caniço é um bairro com alto grau de violência, portanto a associação teve tal iniciativa de trabalho com jovens que desenvolve com o segmento chamado Hodi Júnior, através de atividades educativas artísticas recreativas com dança e música. Segundo Augusto Maniça: “Estas performances são uma parte importante do desenvolvimento dos jovens, uma vez que aumentam a sua autoestima, conseguem representar as suas raízes históricas e ganham o respeito da família e da sociedade.”

208 12º festival internacional de folclore de Passo Fundo (2014). Fonte: Foto divulgação.

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Entretanto, esse não é o único foco do Grupo. Adentrando nos campos de pesquisa, preservação e divulgação da cultura moçambicana Hodi desenvolve com músicos e dançarinos pesquisa e espetáculos explorando dança, instrumentos e ritmos tradicionais. A associação conta com a Companhia Sénior, a Banda Hodi e o grupo Makwaela Hodi.

EUGÊNIO - É um grupo que faz múltiplas, aliás, muitos estilos de dança e mas o nosso lema é: “divulgação e valorização de ritmos, diferentes ritmos das danças tradicionais”. Então estamos também nessa pesquisa, para alguns não há portas fechadas, nós gostamos de coisas novas, gostamos de inovar mas também gostamos de saber da onde que veio e se pudermos chegar onde veio queremos saber qual é a essência dessa dança.

O segmento musical explora a fusão de instrumentos tradicionais de moçambique com instrumentos não moçambicanos como timbila, nhatiti, mbira, toges, viola baixo, guitarra, congas ou bateria. O grupo de dança iniciou a pesquisa e trabalho com danças moçambicanas, aprofundando a pesquisa em Makwaela. Depois abriram- se para criações que nomeiam contemporâneas, aprofundam-se no Afro Swing e em outras criações livres. Eugênio, ao falar sobre a abertura para danças não tradicionais conta que “primeiro foi uma situação delicada, porque a vertente contemporânea muitas das vezes, é numa sociedade com muitas regras incompreendida. Incompreendida. Porque as pessoas não gostam de coisas abstratas [...] Então, foi uma batalha aqui no grupo, mas começamos todos em 2010 a vertente contemporânea, hoje em dia as pessoas já começam a compreender também quais são as ideias por trás disso”. Atualmente, o grupo dialoga com as danças tradicionais em coreografias contemporâneas.

EUGÊNIO - Esse choque, nesse choque o que pode sair. Nesse choque entre dança contemporânea e dança tradicional, qual é esse choque que pode sair entre essas duas coisas. Então quando surgiu essa componente, foi um estrondo. Afinal, podemos levar os nossos valores do tradicional para o contemporâneo, podemos levar esses valores que temos aqui na dança tradicional porque essas duas coisas podem caminhar juntas. Então foi um ganho muita gente agora aposta nessa vertente.

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GRUPO DE TEATRO GIRASSOL

O Grupo de Teatro Girassol foi criado em 1897 inicialmente como um Grupo Infantil de Teatro. Em 2004 transformou-se em Associação Cultural Girassol. Hoje, conta com o grupo dos seniores e o de jovens. O grupo vai “se autoalimentando”, pois a formação dos mais jovens é dada pelos atores seniores. Com o passar dos anos, aqueles que continuam, passam a integrar o grupo sênior e a formar outros jovens.

JOAQUIM - E que técnicas? Bom, não sei que técnicas nós usamos. Só sei que, aquilo que nós aprendemos quando éramos crianças, aquilo que vemos nas outras companhias, aquilo que lemos na literatura, aquilo que vamos vemos nos festivais, tanto nacionais quanto internacionais que vamos participando e aquilo que depois bebemos e fazemos com que isso produza, um teatro que seja genuinamente nosso. Não diria um teatro moçambicano, mas um teatro a moda moçambicana, um teatro a moda do grupo girassol.

Além das peças que desenvolve e da formação de jovens, o grupo busca um trabalho para o desenvolvimento cultural com ações como a organização do FITI – Festival Internacional Teatro de Inverno.

FESTIVAIS DE TEATRO

Os Festivais de teatro que acontecem na cidade de Maputo vêm dando espaço para novos grupos de teatro, pois conta com uma programação não somente de grupos tradicionais de teatro de Maputo, como Mutumbela Gogo e o Gungu, mas também abre espaço para grupos mais jovens, de outras províncias e de outros países.

Fiti - Festival Internacional Teatro de Inverno

O festival internacional teatro de inverno, organizado pelo Grupo de Teatro girassol iniciou-se em 2004 “Nós começamos a fazer esse festival para poder combater a lacuna que sempre existiu em termo de espaços para apresentar as peças

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de teatro, em termo de convívio entre os grupos [...] e em termos de formação e capacitação dos atores”.

JOAQUIM - Mas antes de existir o Festival, o nosso Festival, já tínhamos um Festival Internacional no país, que era produzido por, pela companhia Mbeu, do Teatro Avenida, Companhia que trabalha com o Mutumbela Gungu, mas é um festival que era destinado apenas a grupos profissionais, a companhias profissionais. Logo as companhias amadoras ficaram sempre de fora, entretanto, esse Festival teve a duração, só durou 5, 5 anos e 5 edições. O Festival de Agosto - se a memória não me falha - terminou em 2005 e nós começamos o Festival de Inverno em 2004, então estamos nessa altura numa situação que, cuidando dos orfãos (risos) porque o teatro ficou orfão e nós ficamos como os tutores que… só tem esse festival de caráter internacional.

O festival inicialmente era, como refere Joaquim, um festival de teatro “amador” com grupos compostos por jovens apenas da cidade de Maputo, competitivo. O festival com o tempo foi crescendo e absorvendo outras demandas por ser o único festival de teatro da cidade, desta forma tiveram que fazer algumas mudanças. A primeira foi abandonar seu caráter competitivo “não vale a pena competir por que a arte é subjetiva, avaliar a arte é muito subjetivo. (...) e passamos para um festival apenas demonstrativo”. A segunda mudança foi estender a sua abrangência - antes restrita a grupos da cidade de Maputo - com o crescimento envolveu inicialmente grupos da cidade Matola, seguido da região sul do país, e por fim atingindo nível nacional. Então, em 2009 abre espaço para participações internacionais, mas só em 2015 nomeando-se Festival internacional. “Porque já começávamos a ter companhia moçambicanas, brasileiras, portuguesas, angolanas e de 2017 pra agora começamos também a ter companhias Sul Africanas, que são falantes em língua inglesa mas vem participar de um festival que é falado em língua portuguesa. E essa que é a história desse festival.” A partir de 2007, os critérios passaram a ser mais rigorosos e a banca de seleção hoje é composta por professores da escola de teatro da universidade, artistas da cidade e jornalistas. O festival conta com 20 cias e acontece durante 4 a 5 finais de semana (de quinta a domingo). Antes, os espetáculos aconteciam apenas no centro da cidade de Maputo, mas há dois anos o festival vem buscando descentralizar os espetáculos, levando-os para outras zonas da cidade. Com intuito de formação de

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público o festival separa convites que são dados aos alunos de escolas primárias e secundárias.

JOAQUIM - O festival, um festival é uma festa, não é, quem quer fazer a festa apenas convida e cria as condições básicas, condições mínimas para que a festa aconteça. Nesse caso o Girassol, que é o produtor do Festival, convida os outros para fazerem parte dessa festa. O que deve garantir? Deve garantir espaço, que é o palco. É a primeira coisa que é importante, que exista para que haja um espetáculo de teatro. Garantir o palco, garantir o mínimo, condições técnicas de luz e som. E depois? Aquelas companhias que são da cidade de Maputo, que são próximas, facilmente elas podem fazer parte do festival, podem- se dirigir-se até, pode vir até o local do espetáculo. Mas as companhias que são fora de Maputo, essas devem é, custear as suas despesas de transporte. E a produção do Festival que é o Girassol nesse caso, custear as despesas do alojamento e alimentação. Tanto os grupos das províncias, quanto os grupos que vem de fora do país. (...) Apoio financeiro como tal, não tem do Governo, mas se nós dissermos que estamos num país que é a República de Moçambique e que o Festival acontece há 15 edições consecutivas, porque o Governo deixa que aconteça, então tem esse apoio: que é deixar fazer. Mas, por outro lado, temos que anualmente bater portas, ficar dependentes da boa vontade das cooperações internacionais embaixadas e também de algumas empresas que vão dando a sua mão. Algumas empresas que também patrocinam e também fazem a publicidade, e também contar com a boa vontades daqueles que tem as salas de espetáculos, por exemplo, o Teatro Avenida é um espaço que não é do Girassol, mas o Festival acontece lá, podia ser então um espaço que não é do Girassol mas o Festival acontece lá e assim sucessivamente, vamos usando todas as formas, parcerias possíveis para que o festival aconteça.

Outras formas de arte vêm surgindo na cidade de Maputo, como o malabarismo, o teatro mudo, o teatro de rua, as pernas-de-pau, e as marionetes. Acredita-se que tais artes surgem a partir da vinda de orientadores e artistas de outros países através principalmente do Centro Cultural Franco-Moçambicano.

ESTREANTY - Já tinha, como eu disse antes, de sair um pouco do gueto para a cidade para tentar encontrar parcerias e conhecer técnicas, pra desenvolver o meu teatro lá, então nessa pesquisa toda acabei encontrando o Centro Cultural Franco- Moçambicano. Então foi lá a primeira formação que tive, foi mesmo de teatro de rua. Então cheguei lá fazendo teatro de rua,

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circo essas coisas, mímica, malabares, ou seja, outras coisas né.[...] Foi um projeto organizado pelo diretor do Franco Patrick Smith a ideia dele, do Centro Franco Moçambicano, a ideia dele era trazer artistas franceses para ensinar a disciplinas europeias que são menos praticadas em Moçambique, é o caso do teatro de rua, circo no geral, então nós oportunista, “oh quê?” essa oportunidade, fomos pra lá e tentamos aprender. De lá saíram grandes parcerias de grandes projetos.

O grupo de Macueiro em 2018 fez uma proposta diferente ao Festival de Inverno: o espetáculo ‘Munhama’. Foram escalados para apresentar no Teatro Avenida, entretanto a proposta cênica era para a rua, e apresentaram em frente ao teatro. Uma ideia diferente para o público, pois segundo Estreanty “O teatro de rua é uma coisa um pouco rara, difícil de encontrar aqui.” Tal grupo organiza o Festival de Teatro de Rua no bairro de Mavalane.

Festival de Teatro de rua

Outros eventos para além dos festivais acontecem por iniciativa própria como, por exemplo, nos conta Estreanty das “Tardes de teatro” que organizou com seu grupo de teatro Macueiro em Mavalane nos últimos domingos de cada mês. “Temos como objetivo levar o teatro para a comunidade” e formação de público. Preparavam cenas para apresentar e também convidam grupos de outros lugares. A partir dessa iniciativa surge a ideia ‘que tal fazermos uma semana de teatro? Um festival de teatro?’ Então foi daí que surge a ideia do Festival de Teatro de Rua.” Em 2007 convidaram grupos e fizeram o I Festival de Teatro de Rua no próprio bairro. Conseguiram muito público, pois como conta Estreanty: “Lá no gueto tem poucas luzes, poucos postes. Então quando colaca luz as pessoas já aparecem - o que está a acontecer? o que está a acontecer? Então viam: era teatro. Então ficavam assim concentrados e prestavam atenção na história.” Hoje o festival tem o objetivo de trazer outros artistas que tenham experiências em teatro de rua para fazerem trocas e vem alcançando parcerias ao longo desses últimos anos.

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POLÍTICAS PÚBLICAS

MOISÉS - Mesmo aqui em Moçambique encontrar grupos que vivem de arte é difícil, porque não tens uma agenda anual. O que acontece é que um empresário vai investir num festival em junho e nós estamos aqui em janeiro, estás a ver? Vamos supor, vais esperar junho para ter um festival grande. Há uma festa em sei lá onde e chamam o grupo para dançar numa festa, então imagina se ele paga 10 mil à distribuir às vezes por 12 pessoas. Não é nada. Então você não sobrevive do espetáculo. A gente quer que sobreviva, mas não está fácil. O mercado de arte e cultura não está fácil. Mesmo a Companhia que é a Companhia (Companhia Nacional de Canto e Dança) não está a sobreviver dos espetáculos. Não sobrevive dos espetáculos. A maioria tem outros trabalhos que não estão em arte. Tem alguns que vivem de arte, outros que estão nos ministérios de não sei daonde, os mais novos estão a estudar. Então o grupo não sobrevive da dança, tem outros meios para sobreviver.

A falta de políticas públicas e de público gera uma dificuldade aos artistas da cena de viverem de sua arte, e acabam precisando encontrar outras fontes de renda. Como consequência desse contexto, nota-se uma gama de jovens artistas produzindo, mas que diminui quando ficam mais velhos, tendo uma curta duração de carreira artística em sua maioria.

ALVIM - A grupos… o Teatro ainda é praticado muito por jovens, o trabalho é com a juventude. Tem o grande risco de mobilidade. Os jovens tão aqui mas terminam lá, um foi para a universidade, outro foi para a escola segundária, outro arranjou emprego, outro não sei quantos e desaparecem. Estamos sempre a formar novos.

Com o objetivo de formação de público a CNCD desenvolveu um projeto de escola teatro onde espetáculos eram apresentados às escolas primárias e secundárias e em seguida fazia-se um debate. Outros grupos tiveram iniciativas semelhantes. David Abílio comenta que essa iniciativa auxilia na formação de público, entretanto não são normalmente institucionalizadas. “São coisas de uma pessoa. Eu deixei a Cia as coisas morreram”. Comenta também que acredita ter uma relação da falta de público atualmente com as políticas públicas. “Porque perdeu completamente o público e faltou também uma perspectiva que não devia ser só uma perspectiva dos artistas e dos grupos, tinha que haver uma comunicação entre os de política, quer

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dizer, o governo tem que promover e criar acesso, portanto do público ao teatro”. Segundo Mário, da Associação Wuchene “Não há uma politica que defende os artistas. Todas as politicas defendem as questões dos políticos infelizmente. O artista é uma marginal”. Uma das questões apontadas por artistas da cidade é o não reconhecimento de seus trabalhos. Judith - dançarina da Associação Cultural Hodi - relata “nós que batalhamos que ensaiamos muito tempo, suamos, por vezes eles dizem que estamos a brincar. É o nosso trabalho, mas eles não valorizam, gostam de ver, mas não valorizam. Não pagam pelo nosso trabalho, não pagam pela nossa arte. Como se fosse brincadeira”. Lutando pela falta de reconhecimento do trabalho dos artistas, bailarines, atrizes, atores, coreógrafes, encenadoras, encenadores, reuniram-se no dia do trabalho (1° de maio) para desfilar junto ao evento que reúne diversos tipos de trabalhadores da cidade.

EUGÊNIO - Uma forma de fazer valer as palavras dos artistas, que teve como lema ‘arte é trabalho e o artista é trabalhador’ que desfilamos no primeiro de maio, que é o dia do trabalhador.

O ator Venâncio Calisto comenta o fato de em Moçambique só existirem dois grupos profissionais de teatro (Teatro Mutumbela Gogo e Teatro Gungu) “Como é que em 45 anos de independência temos 2 grupos profissionais e com milhares de grupos amadores? Porque não há políticas que apoiem esses grupos.” Segundo o ator, a falta de financiamento gera a falta de condições de trabalho onde os artistas são “obrigados a ser produtores, dramaturgos, encenadores, atores e ainda dar aulas”, como ressalta o encenador Evaristo Abreu. A falta de condições de trabalhos interfere diretamete na arte produzida. Segundo Venâncio, uma peça que deveria ter um tempo mais longo de ensaios para seu processo e desenvolvimento. “Será montada em três semanas, pois não tem como. Portanto, vai ser sempre trabalhos improvisados, não são maturados, não têm tempo de maturação por falta de meios.”

VENÂNCIO CALISTO - Os artistas são agentes políticos, temos que acabar com essa mentalidade de que ‘eu sou artista não sou político’ não a arte é profundamente política. A nossa arte é uma forma de fazer política. Não existe uma forma mais profunda e mais forte de fazer política do que a partir da arte. Os artistas devem perceber esse poder que têm. Quem vai defender nossos

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direitos somos nós mesmos. (...)Política é participar na vida social, é influenciar de alguma forma, é uma forma de existir numa comunidade, numa sociedade. Então o artista é sim um agente político. Essa intervenção que nós nos referimos é também uma intervenção política. Então política é participar para o bem coletivo. Se a arte participa para o bem coletivo então é uma forma de fazer política. Temos que iluminar os paradigmas, os conceitos que nós temos de política. Política não é estar na assembleia da república; política é contribuir para o bem estar das pessoas. E a arte já faz isso. Tens que influenciar as decisões lá da assembleia da república para que hajam melhores condições para os artistas [...] A arte é importante. Vamos fazer política. Vamos defender o futuro dos artistas e o futuro da arte.

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A TERRA E O PALCO - AS TRADIÇÕES NOS PALCOS MOÇAMBICANOS

As terras do planalto maconde guardam pegadas de colonos portugueses, de missionários religiosos, de macondes que iam e vinham atravessando o rio Rovuma, de guerras, sangue, massacre, palavras de liberdade, organizações políticas... E o mascarado Mapiko continua a bater seus pés levantando as terras, conversando com tambores e dançando junto ao seu povo. Toda saída de ritos de iniciação é marcada ainda hoje por Mapiko. Competições são organizadas por grupos de diferentes vilas de todo o planalto e acontecem semanal ou mensalmente. Ritos fúnebres, festas de feriados nacionais, recepção de visitas ilustres, campeonatos de futebol, festivais… o Mapiko se faz presente na vida dos macondes. Inovações surgiram ao longo dos anos, como comentamos anteriormente, e continuam a surgir. Tais inovações não excluíram a existências dos grupos anteriores. O Mapiko hoje em dia é plural e os grupos chamados de tradicionais/clássicos como Walikuti e Wanshesho coexistem com os grupos chamados modernos Nampyopyo, Mashalawesha, Mang’anyamu e Washilo. O Mapiko segue conceituando o mundo maconde, cultivando e construindo a própria história. Onde há maconde, há Mapiko. O Mapiko, então, assim como os macondes, caminha por terras de todo o país e alcança palcos internacionais. Terras internacionais não. Palcos. Traz sua dança, os tambores, e até o espírito lihoka aos palcos nacionais, africanos, europeus e sulamericanos.

MAURÍCIO - Sim, sim, ainda continua sendo Mapiko. Aquilo é o que? É um palco. É o lugar onde está a acontecer a atividade, não é mudar do ser Mapiko porque estar a dançar em cima de um tapete. Dançar na areia, dançar no palco, tá bom.

O grupo de dança Massacre de Mueda da Zona Militar de Maputo é um grupo que realiza danças tradicionais incluindo Mapiko em festivais e já se apresentou em diversos palcos nacionais e internacionais.

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209

Muitos integrantes do grupo são macondes fazedores do Mapiko da zona militar. Moisés explica a distinção entre o Mapiko realizado pelo grupo Massacre de Mueda e o realizado tradicionalmente junto a sua comunidade.

MOISÉS - Aquele Mapiko é popular, é pra qualquer um. Não se paga nada. Qualquer um vem se quiser. Entra ali dança, ou canta, festeja, mas esse grupo é grupo de Mapiko da Zona Militar, assim como é chamado. Massacre é um grupo que faz Mapiko. O festival contata o grupo. Então eles pedem Mapiko ao Massacre de Mueda. Mas Mapiko sai do Massacre de Mueda, não sai da Zona, do Bairro Militar. [...] As mesmas pessoas que estão lá na comunidade são as que estão no Massacre só que temos que diferenciar. Lá não estamos como grupo, estamos como Massacre, quando estamos aqui (Zona Militar) estamos no grupo.

Questionados sobre a adaptações do Mapiko para o palco, os dançarinos falam sobre moldar o Mapiko de acordo com algumas regras e novas estruturas como limites de tempo e estrutura do solo dos palcos para dançar.

MAURICIO - É diferente do equilíbrio do tato de você como dançarino, porque a areia movimenta, o palco não movimenta.

209 Mapiko em cena. Ilha da reunião, 2013. (UN PONT, 2013, p.11)

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Então aquele é um desequilíbrio, um bocadinho só, não é que já muda do tradicional para o não(...) Aqui na areia é sempre melhor. Porque ali onde o Mapiko dança sente-se a vontade, agora dançando no palco quanto dançando na areia é isso.

MOISÉS - O tempo do festival querem Mapiko de 5 minutos a 10. então a gente faz a preparar a dança de tal modo a ter aqueles minutos ali. Às vezes podem pedir dancem um espetáculo como uma velha. E nós vamos fazer a velha como se comporta na aldeia, depois como se comporta na machamba, como plantar arroz, como plantar milho. Isso já é uma coisa já trabalhada coreograficamente.

Entretanto, a tradição Mapiko não é contestada. O Mapiko não deixou de ser Mapiko nos palcos se toda a preparação e ritual é executada. Atanásio afirma que o Mapiko do palco é o mesmo que fazem na terra, pois executam o ritual de amarração e preparação do mascarado da mesma forma “porque, afinal, o Lipiko é o conjunto de tudo aquilo que ele traz, não é só a máscara”. Refere-se, portanto, a toda a indumentária que acompanha a máscara e também aos iniciados que realizam os rituais tradicionais de preparação da parte espiritual responsáveis por preparar a conexão com Lihoka (espírito ancestral maconde).

MOISÉS - Lihoka... tanto esse da Zona quanto o Massacre de Mueda seguem a tradição. Tudo isso sempre existe. Mesmo quando vai ao palco, pois temos que preparar, tem a tradição. Também quando há espetáculo, a pessoa que faz Mapiko é a pessoa que tem rito de iniciação. Porque o Mapiko do palco é o Mapiko, aquele Mapiko de rito de iniciação. O Mapiko do palco é Mapiko verdadeiro. Ya. Continua. Não muda nada. A tradição tem que continuar.

Enfatizam que não são todas as máscaras feitas com inspiração de Mapiko que são consideradas Mapiko em cena. “Se eu só ponho uma máscara e vou ali dançar contemporâneo, posso chamar dança de Mapiko. Porque Mapiko é aquele Mapiko completo”. Desta forma, reforçam que quando se utiliza máscara para dançar o que chamam de contemporâneo não estão a fazer Mapiko, mesmo que as coreografias ou cenas tenham passos de Mapiko e as máscaras sejam como as tais. “Mas Mapiko? Só tem maconde. Máscara você pode usar como quiser, onde quiser, basta não

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chamar de Mapiko. O resto nós vamos chamar Passos de Mapiko. Dança Mapiko, se lá dentro do grupo não existe um maconde, essa dança não é Mapiko.” Referem-se, portanto, a espetáculos, tanto de dança como teatrais, que afloram pela cidade de Maputo com a utilização de máscaras inspiradas em Mapiko. Percebem-se três vertentes: o Mapiko realizado nas Terras, o Mapiko realizado nos Palcos, e a terceira que são as inspirações do Mapiko para a Cena. Todas essas vertentes são aceitas por tais fazedores como desdobramentos e consequências do caminhar histórico e do desenvolvimento natural da humanidade e suas tradições. Os próprios fazedores do Mapiko nas Terras da Zona Militar são os dançarinos do Mapiko nos Palcos e os que auxiliam com materiais e ensinando passos aos artistas que trabalham com inspirações do Mapiko em Cena. Citamos aqui o exemplo do Mapiko, mas o mesmo acontece com outras tradições moçambicanas. Isso se dá principalmente devido ao movimento de construção de identidade nacional no período da independência, onde a valorização da cultura tradicional moçambicana trouxe diversos grupos étnicos aos festivais e palcos e como consequência, as tradições às suas criações cênicas e coreográficas.

VENÂNCIO CALISTO - E depois, eu acho pessoalmente que o teatro está sempre ligado ao mistério, acho que...disse que o drama afastou-se do ritual, mas eu sinto que no momentos está a voltar para o ritual. O tipo de performance, a tendência de pensamento hoje em dia é mesmo o regresso ao ritual, então acho que é sempre, há uma relação muito forte entre o mistério entre a tradição.

Moçambique está a transformar-se. Uma nova geração cedente por transformações e cheia de questionamentos vêm transformando as tradições, modos e costumes vividos até então. Jovens que ‘não esperam sentados’ e que fazem acontecer as mudanças com suas próprias mãos. A questão muito levantada a partir dessa situação é: como não abandonar a tradição ao mesmo tempo atualizando-a e contextualizando-a no mundo atual? Quando observamos a história do Mapiko, por exemplo, notamos gerações que inovam contextos sociais, políticos e econômicos. A contemporaneidade não está do lado oposto a tradição. A tradição é algo do passado que caminha no presente almejando sobreviver no futuro. As suas atualizações não necessariamente as negam, mas as fazem dialogar com contextos que se transformam ou com novos saberes que

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são absorvidos, conquistados, desenvolvidos, descobertos e reinventados pela comunidade. Quando, por exemplo, Atanásio em 2014 conta que antigamente como parte do rito os meninos deveriam ser circuncidados, todos com a mesma lâmina, e depois da descoberta do SIDA (AIDS) essa tradição se adaptou, podendo ou cada pai trazer a lâmina para seu filho ou havendo a possibilidade de ser circuncidado no hospital e depois seguir para as outras etapas do rito. Isso também traz a imagem de uma tradição fluida.

MBEU TEATRO

Entre memória e evolução, dialogando a cena atual com a tradição Mapiko, Evaristo Abreu encenou duas peças teatrais com o Mbeu Grupo de Teatro: “O dançarino” e “Nós matamos o cão tinhoso”. Evaristo reconhece o Mapiko como elemento representativo da cultura moçambicana. Acredita que a teatralidade do Mapiko e seus elementos são importantes para o desenvolvimento do teatro moçambicano e por isso passa a estudá-lo, principalmente a nível teatral, desde o final dos anos 80.

O DANÇARINO

A peça “O dançarino” de 1992 foi criada a partir de uma história contada a Evaristo Abreu pelo pai de um amigo. A história impressionou Evaristo e sendo essa família de amigos Macondes, Evaristo resolveu pela primeira vez experimentar uma adaptação da máscara de Mapiko em cena. A peça tomou como base uma história de um maconde e a concepção de espírito ancestral Lihoka retratada no uso da máscara pelo personagem que já não habitava a terra dos vivos. Evaristo afirma que a intenção seria fazer um teatro que fosse “inteiramente com características moçambicanas” mas que dialogasse ao mesmo tempo com o que chama de “técnicas universais” citando o método de Stanislavski e Brecht como referências utilizadas para sua concepção.

ATANÁSIO - Quando o Mapiko vai ao palco depende… Depende de como é que o Mapiko está vestido lá no palco. Porque se estamos a levar que a gente faz aqui na mangueira,

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é tradicional aquele Mapiko. Mas aqueles Mapiko que fazem o Evaristo. Ai estamos a sair do Mapiko para o Teatro para dizer que é contemporâneo deles no teatro.

NÓS NÃO MATAMOS O CÃO TINHOSO

Em “Nós matamos o cão tinhoso”, o encenador Evaristo Abreu volta a trazer a tradição Mapiko como importante influência. O espetáculo conta com máscaras inspiradas em Mapiko, segmentos de passos tradicionais e estímulos sonoros pontuais que dialogam diretamente com as ações. O texto original de Luís Bernardo Homuana, é adaptado e encenado por Evaristo Abreu que problematiza a questão do soropositivo (AIDS/SIDA) e o preconceito da sociedade para com ele. O espetáculo é resultado da pesquisa de mestrado do encenador realizada na África do Sul. O elenco era composto por Isabel Jorge, Eliot Allex, Silvia Mendes, Ademar Chauque, Dawanivera Pensar. A peça conta com dois músicos, tambores e timbila dispostos no canto esquerdo da cena. As máscaras utilizadas no espetáculo têm o formato capacete, assim como as de Mapiko. São feitas de papel; com a boca vazada com espaço para visão; um tecido preenchendo o pescoço da máscara, cobrindo o rosto do mascarado. As máscaras representam os personagens: Cão; Mulher 1; Mulher 2; Homem Calvo; Homem. O início do espetáculo é um aquecimento aberto, onde o coro (composto por cinco atores não mascarados) dançam passos de Mapiko ao som de tambores e timbila. Começam como contadores de história que se desenrola, permeando a encenação, mascarados e não mascarados. Os atores quando mascarados, mesmo com máscaras inteiras falam e cantam. As máscaras são colocadas e retiradas em cena, sempre que necessário para mudanças de personagens por exemplo.

DAWA - Mas naquela experiência o Evaristo queria que todos fizessem, que todos fizéssemos assim. É artista, artista é assim. Artista pensa além, além mais né? Artista faz coisas impossíveis, então é o que aconteceu nessa peça “Nós matamos o cão tinhoso”. O Atanásio deu uma mão na peça, na peça sim, ensinou-nos Mapiko. Ele foi chamado em algum momento para corrigir algumas partes do Mapiko e ver se está bem encaixado lá ou não, mas o Mapiko acontecia no meio da cena, pra perceber porque algum momento o Cão tinhoso fazia o Mapiko,

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hã? Fazia o Mapiko! (fala batendo na mesa) o cão tinhoso, dançava o Mapiko. E eu é que fazia o Mapiko (risos).

Durante o espetáculo muitas vezes é retomada a figura do narrador. Encerra- se uma cena e volta um ator não mascarado para continuar contando a história ao público. Em seguida sai e a representação continua. O recurso da contação de história também é utilizado com as máscaras nas mãos, mostrando e se referindo a elas quando fala de algum personagem, para em seguida a representação com novos personagens ficar mais clara ao público.

EVARISTO - Usei duas técnicas que não eram supostas ser usadas. Mas como eu estava fazendo um trabalho direcionado para o teatro educativo então aproveitei usando do playback como a técnica para pôr o espetáculo em palco. E o texto era como fio condutor “O Cão tinhoso”. Eu queria como fazer educação, teatro educativo, para chamar a atenção sobre a discriminação na área do SIDA. Então usei o Mapiko como elemento. Usei o playback teatro como técnica e usei “O Cão tinhoso” como fio de ligação.

Durante a criação da encenação Evaristo revela se debater com a questão sobre a permissão, o respeito e os limites para lidar com tradições culturais e trazê- las para cena. Conta que os macondes mais velhos tinham medos com relação a desvendar os segredos do Mapiko, mas alegando que não iria dançar Mapiko e sim “fazer coisas com ele” teve o aceite da comunidade maconde. “Ya! Se é para divulgar nossa cultura [...] E então, eles aceitaram porque eles perceberam que não havia nenhuma intenção de se desvirtuar a própria dança. Era mais de buscar elementos da dança para o espetáculo“.

EVARISTO - O que eu queria fazer, e que de certa maneira consegui, era não usar a dança em si mas buscar o gesto, o olhar, o movimento e tentar incorporar num determinado personagem que depois passa uma determinada mensagem. Essa é a minha principal ideia.

Evaristo diz seguir sua pesquisa onde o diálogo de tradições moçambicanas com a cena teatral é seu foco. “E agora, criar outro desafio que é ir buscar o Nyau, que é muito mais complicado. Embora se diga por aí que o Mapiko e o Nyau vêm da

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mesma linhagem.” Evaristo afirma que a tradição Nyau e o Mapiko tem suas semelhanças.”

EVARISTO - Porque os ritmos são os mesmos. Os segredos todos são os mesmos. Os tipos de máscaras um bocado parecidos. E os personagens são bastante iguais. Nyau também tem muitos personagens. Retratam tudo da sociedade e vão em casamentos... O Nyau tem um processo secreto. Ninguém sabe o que é o Nyau, da mesma forma que ninguém sabe o que é o Mapiko. Estás a ver? Então, tem muitas coisas parecidas.

Evaristo, em seu trabalho como pesquisador, encenador e professor busca tal identidade do teatro moçambicano no diálogo entre tradições e contemporaneidades. “Isto é uma teoria para o teatro moçambicano, entende? Tens o Nyau. Tens o Mapiko. Tens muito personagens, uma dança forte. Tens elementos que podem fazer espetáculos que são histórias para contar. Epa! ”

ESPETÁCULO MAR ME QUER - GRUPO GIRASSOL

JOAQUIM - Encontramos ali toda um moçambique que está representando. Quando essa máscara se associa a forma de falar o português herdado dos portugueses é falado a moda moçambicana, então temos moçambicanos ali representados.

Em 2018, no Teatro Avenida apresenta-se o espetáculo “Mar me quer” do grupo de Teatro Girassol, texto inspirado na obra de Mia Couto. O personagem mascarado (máscara baseada em Mapiko) retrata novamente o falecido. O mascarado aparecia no canto da cena e falava com máscara. A máscara ficava um pouco para cima como de costume do Mapiko, entretanto o corpo do ator não levava a posição do Lipiko ao dançar Mapiko em consideração, o que fazia com que a máscara mesmo falando e dirigindo-se ao personagem do filho, ficasse aparentemente olhando para o céu, com um aspecto de que não estava a ver com quem se dirigia.

JOAQUIM - O personagem que está em palco está com a máscara ali, a cara dele não está descoberta, de modo que se fique claro que estamos a falar com ser mítico, que não está ali. Na verdade, tínhamos ali o pai, o pai do Zeca Perpétuo que

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faleceu há muito tempo, mas ele sempre aparece nos sonhos e essa questão que queríamos trazer. E a máscara dentro daquilo que é o africano, daquilo que é o moçambicano tem essa componente, a componente cultural a componente mística a componente da ancestralidade que se está ali.

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PROBLEMATIZANDO TRADIÇÕES

Na produção da cena atual em Maputo, nota-se um movimento para além de uma busca do teatro moçambicano com a utilização de manifestações culturais tradicionais em suas criações, mas também o questionamento de costumes e práticas de suas comunidades como temáticas dos espetáculos. Cassimo Assane, do Teatro em Casa, reforça que a importância da utilização de elementos tradicionais em cena é “Poder juntar primeiro músicas moçambicanas por exemplo além de rituais ou danças moçambicanas é uma coisa muito forte e muito própria dos próprios moçambicanos porque existe o meu lá dentro [...] O público a partir do momento que assisti identifica-se”. No dia 02 de novembro de 2018, tive a oportunidade de assistir à peça teatral “Mãe Coragem” do Teatro Gungu de Maputo no Cine Gilberto Medes na Baixa da

210 Máscara inspirada em Mapiko -“Mar me quer” do Grupo de Teatro Girassol, Maputo, Moçambique. Fonte: Foto da autora, 2018. 211 Divulgaçaõ do espetáculo “Mar me quer” do Grupo de Teatro Girassol. Fonte: Divulgação física.

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cidade. Discorrerei a seguir sobre a peça “Mãe Coragem”. Refiro-me a especificamente a essa peça nesse momento da discussão, pois ela traz como debate justamente a relação da tradição e da contemporaneidade. Como dito, o Teatro Gungu tem modo de trabalho que vem sendo utilizado ao longo dos anos, um teatro muito próximo ao teatro de revista onde retrata a sociedade atual de maneira cômica e popular colocando questões, personagens e críticas cotidianas em cena. Sem transmitir uma mensagem específica, o Teatro Gungu costuma colocar um retrato da sociedade nos palcos de forma novelesca e é o que notamos em “Mãe Coragem”. Naquele dia 02/11/2018, o público foi chegando durante a apresentação e embora fosse dia de chuva, aquela sexta-feira contou com a imensa sala do Cine Gilberto Mendes lotada. Com ingressos vendidos à 250 meticais. O espetáculo retrata a história de uma mãe viúva com 3 filhas e seu irmão mais novo. Todos habitam a mesma casa. O cenário, bem realista/naturalista, é a sala de uma casa e não se modifica durante a peça. A mãe retrata a tradição mais antiga, as mulheres mais velhas, os costumes e educação antigos. Já as três filhas, cada uma trazia uma questão do contexto atual da cidade de Maputo, debatiam, questionavam e buscavam atualizar a tradição e os costumes representados pela mãe. Uma filha está se divorciando de seu terceiro marido e questiona a questão do machismo. De forma cômica, ela retrata uma crítica aos homens que querem mulheres submissas e que cuidem das tarefas do lar. Questiona também a negação de tradições nacionais. A personagem, por vergonha, se nega a falar changana (língua banto local do sul de Moçambique), a comer comidas típicas ou a dançar marrabenta (dança tradicional e popular moçambicana). Apesar de todos os personagens dizerem que ela não encontrará marido ideal como ela procura, ela acaba a peça sem perder as esperanças. A segunda filha, se mostra uma jovem que trabalhadora, estuda, tem seu próprio dinheiro, objetivos e almeja sucesso. Amante de um homem casado e bem mais velho, revela não amar e não precisar casar. Ela diz lutar pelo que quer. Entretanto, no fim da trama, a mulher de seu amante a descobre e ela se transforma. Na última cena, ela, arrependida de ter se tornado amante de um homem casado, se transforma e aparece convertida à religião evangélica, que traz outra questão e debate

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frequente na vida cotidiana do moçambicano. Tal personagem ao final aparece de forma jocosa e cômica, gerando muitos risos na plateia. A terceira filha aparece como uma alcoólatra que desistiu da vida. Personagem cômica que sempre vem para animar a cena. Entretanto, depois descobrem o motivo da sua desistência. Ela conta que se casou e fez tudo como a tradição moçambicana manda com relação ao casamento e a vida de casada. Em sua casa, vivia para seu marido e o amava. Certo dia, descobriu remédios de SIDA (AIDS) em sua própria casa. A questão colocada pela trama é que o então ex-marido era soropositivo e fazia o tratamento escondido de sua mulher, não contando para ela que também contraiu e não a dando a chance a ela de se tratar também. Ela então abandonou o marido, voltou para a casa da mãe e começou seu tratamento, mas com o psicológico abalado começou a beber como forma de desistência. O tio, então, nessa altura da trama aparece como um soropositivo saudável, bem estável com seu tratamento e que segue sua vida. Mostram e dizem que o mal da doença AIDS é o preconceito e revelam que é preciso falar mais sobre a doença e conscientizar a população que o tratamento existe e é eficaz e para todos. Ao final da peça a terceira filha, aparece transformada, saudável, sem álcool e vivendo sua vida muito bem. O tio é um malandro que passeia por todas as camadas da trama. Ao mesmo tempo em que revela a posição do homem dentro de casa, dialoga com cada uma das histórias, de forma extremamente cômica. Ele retrata também o sistema de educação antigo, querendo utilizar a violência para educar as três filhas, mas a mãe evita tal método violento. Desta forma, concluo a descrição das questões e notas sobre temas contemporâneos como machismo, feminismo, religiosidades e AIDS são colocados em debate com a tradição que em tal peça é vista como algo velho e rígido. Entretanto, a peça não defende nenhum lado, apenas expõe os fatos. Ora mostra a tradição como algo mais positivo, ora percebe força nas questões colocadas como contemporâneas. O público reage participando do espetáculo. Homens se queixando das abordagens feministas e as mulheres aplaudindo e clamando tais abordagens. Tudo se passa de forma leve, descontraída e aos risos. Teatro visto como teatro de entretenimento, onde aparentemente colocam situações vivenciadas nos lares de todo o público.

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A produção atual da cena moçambicana traz questionamentos e assuntos muitas vezes espinhosos ao publico, seja por suas problematizações às tradicoes, seja por suas inovaçoes estéticas. Questionar a tradição é abrir um espaço para outras possibilidades. Não necessariamente negá-la mas problematizá-la. O ator e encenador Venâncio defende que a tradição deve ser discutida e questionada para termos uma “convivência mais democrática” pois “os maiores problemas sociais que nós temos é por causa da tradição”. Venâncio diz que as tradições justificam muitas ações como abuso, racismo, machismo. O lugar da mulher e noções de feminismo que por muitas vezes questionam tradições de longas datas são temas de diversas produções. Eugênio, da Associação Cultural Hodi, problematiza a questão da mulher em cena que muitas vezes não é visto com olhar artístico por seu parceiro, namorado ou marido e pela própria sociedade. “A mulher muitas vezes não tem essa liberdade de escolha aqui”. A dançarina Dawa da Companhia Nacional de Canto e Dança comenta a peça sob a qual fizemos referência anteriormente, onde dançava com os seios à mostra. Conta que seu marido, mesmo sendo dançarino, não permitiu tal ação. Dawa descreve o desenrolar da situação.

DAWA - Então houve muita guerra nessa situação, mas eu também puxava pro meu lado, porque, ali era guerra entre o meu profissionalismo, aquilo que eu escolhi e meu marido, tá a ver? Então tiveram que arranjar tampinhas. Mas para mim foi ridículo, porque só tapava aqui (mostrando os mamilos do peito), pra mim foi ridículo. Eu quando cheguei em Portugal eu mandei passear as tampinhas (risos) Mandei passear as tampinhas. E quando chega cá o vídeo, para nas mãos dele. Então ele foi ver os vídeos de Portugal, que as tampinhas não estavam lá (risos) ôpa! Aquilo foi uma guerra em casa “eu vi o vídeo, tu não pões essas tampinhas“ aquilo foi para a mídia aqui em Moçambique, “não deu tempo de pôr as tampinhas, tava na hora, estava ainda a colar as tampinhas não deu”, mas houve uma confusão. O Covilas como sempre, monta outra obra ‘Solo para cinco’. Aí dançávamos nus, completamente nus.[...] Então aquilo também criou polêmica, barulho, com meu marido. Então disse que não, “tens que arranjar, uma calcinha só para tapar aquilo sei quê quê“. Mas isso pra mim foi ridículo mais uma vez, porque aquilo só tapava aqui e aquela calcinha tenho até agora em casa de recordação, aquilo puseram mechinhas ali pra parecer que é sexo e lá fora todos os rabinho estavam fora. Então foi ridículo!

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[...] Houve um dia que apareceu, não sei se canadiano, norueguês que queria tirar, fazer fotos eu fiz pelada, totalmente pelada, mais um vez o vídeo foi parar nas mãos dele. Ôôôôô. Houve barulho mais uma vez, porradas também mais uma vez.

Maria Clotilde é encenadora, formada pela Universidade Eduardo Mondlane, e dirigiu os espetáculos “O sexo da mulher como campo de batalha”, “Fim de pena” “Monólogos da vagina” e “Ngilina da Zona”, entre outros. Maria observa que todas suas peças têm a temática da mulher como evidência.

MARIA CLOTILDE - Quem sou eu, na sociedade? Como é que eu imponho, como é que eu estou, como é que eu vivo, como é que lido com outra pessoa, como é que a outra pessoa lida comigo? Como é que a sociedade tem leis e costumes e hábitos que, eu sou obrigada a seguir, porque estou inserida nessa sociedade, mas como é que eu me sinto no meio delas? Será que eu quero ser aquela mulher submissa, aquela mulher que aceita tudo que é vítima da tradição? Ou quero ser eu, fazer aquelas coisas que fazem bem a minha alma?

O espetáculo “Ngilina da zona”, texto criado pela própria encenadora a partir do conto moçambicano “Sileman cassam” e entrevistas realizadas com meninas que se prostituem na baixa da cidade de Maputo, problematiza a tradição Lobolo. A peça narra a história de uma jovem de 16 anos que a partir da tradição Lobolo, casa-se com um homem da mesma idade de seu pai. O pai da protagonista realiza tal lobolo para sustentar a familia, entretanto coloca a menina nas mãos de um homem que se sentia seu ‘novo dono’. A jovem apos sofrer diversos abusos em casa resolve criar forças e fugir. Maria Clotilde conta que “no conto ela enforca-se, mas eu decidi no meu espetáculo não enforcá-la, porque não é essa mensagem que eu quero dar as pessoas, a mensagem que eu quero dar é que mulher também pode sair, pode ter outras formas de viver, pode ter outros pontos de vista da vida”. A protagonista como heroína ao fugir de sua situação não encontra facilmente o final feliz tanto desejado, e sim dificuldades de viver na cidade grande. Descobre, então, sua fonte de renda e sobrevivência na prostituição. A peça traz no final uma reviravolta onde a menina, então prostituta, reencontra o marido criando a oportunidade de confrontá-lo.

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A peça traz à tona às violências sofridas pelas mulheres: “A menina é pequenina passa de todo tipo de abusos, tanto violência sexual, porque ela não sabia nada, primeira experiência com relações sexuais foi com homem de 50 anos numa situação de obrigação. Violência doméstica, tipo todo tipo de violência se passava com ela”. Questiona associação da mulher à um objeto de posse e a tradição do Lobolo, que segundo a encenadora “É uma cerimônia que existe, é na verdade para se falar com antepassados tanto da parte mulher, assim como na parte do homem. Pra que se peça proteção pra esse casal que está a se juntar”. E discute a problemática da infância e os direitos das crianças e dos adolescentes ao comentar casamentos precoces. “Onde estão os sonhos dessa criança, meu Deus do céu? Não há”. Ao trazer a trama da protagonista que Maria chama de “vítima da tradição”, traz também debates para a sociedade moçambicana.

ESPETÁCULO (DES)MASCARADOS

VENÂNCIO - O título era desmascarados porque era questionar a tradição nós pensamos que muitas vezes oculta coisas más, principalmente com relação a opressão. A tradição do Mapiko de uma ou outra forma oprime a mulher. É uma tradição que é injusta nesse sentido, e nós sentimos que, a modernidade a tendência do quando se reivindica os direitos da mulher, quando reivindicamos por um mundo mais justo, é uma forma também de questionar a tradição. Questionar essa convenção que foi criada de que a mulher é inferior ao homem, e de tanto, por exemplo, há tradições que são a favor do machismo e de muitas outras coisas mais. Então acho que é missão tirar, questionar essas coisas, então o (Des)mascarados é isso, é uma questão que nós pomos à tradição.

Venâncio Calisto pensando sobre uma manifestação estritamente masculina que durante muitos tempos assombrou as mulheres, coloca a máscara de Mapiko como símbolo do masculino. Contextualizando-a nos das atuais, traz à tona a temática do machismo. Tem como inspiração a origem do Mapiko, rito de iniciação masculina, num contexto onde a mulher tinha muita força e os homens criaram o segredo do Mapiko para se fortalecer. O encenador e dramaturgo buscando “criar um teatro sincrético a partir do Mapiko, um teatro que fosse um diálogo entre a tradição dramático ocidental com a estrutura performativa, mitológica do Mapiko”, cria a peça

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que se utiliza da simbologia da máscara Mapiko, passos de dança em um palco italiano e cenário realista. A peça “(Des)Mascarados”, encenada em 2018 pelas atrizes Lucrécia Paco e Rita Couto, conta a história de um casal moderno, cujo homem diz apoiar um movimento de independência financeira da mulher. Entretanto, na sala de sua casa fica a máscara de Mapiko como símbolo da tradição masculina e do patriarcado e machismo. O homem entra em contradição durante muitos momentos da peça sobre aceitar um movimento feminista e de independência financeira e de não tratamento do lar de sua mulher ou “seguir o que manda a tradição” e ter uma mulher em casa que cuide de suas coisas, que não trabalhe ganhando mais do que ele e etc. Essa contradição é colocada simbolicamente no diálogo do homem com a máscara que está todo tempo somente apoiada no balcão da sala de sua casa. No fim da peça ele veste a máscara e buscando reestabelecer um machismo que a “tradição dita”, ele tenta agarrar sua esposa a força estando mascarado. A peça conclui-se com a mulher conseguindo retirar a máscara do marido, desmascarando-o e retirando todo o símbolo, força do patriarcado e do machismo que a tradição visa sobre ela.

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212 Espetáculo (Des)Mascarados. 2018. Fonte: Foto de Venâncio Calisto.

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Vale ressaltar que, na tradição maconde, nos ritos de iniciação masculino (Likumbi), existe uma etapa chamada shipito (vipito no singular). Estimulando o medo de forma violenta, os adultos acompanham os inciandos a criarem coragem para desmarcarar aquele espírito que está a dançar diante deles. Mas, em que consiste em fazer com que os iniciando enfrentem o mascarado e o desmascare? O que está em questão ao desmascarar, retirar a máscara que traz o espirito lihoka? Tal prova dos ritos de iniciação maconde explora o poder dos segredos e de quem os domina e conhece, os iniciados. Bortolot (2007) acredita que a tensão entre revelação e ocultação que anima o segredo, que empresta ao segredo seu poder, fazendo com que o ato profano de desmarcarar o sacralizasse ainda mais. A peça faz uma referência a tal vipito entretanto nesse caso busca trazer uma mensagem de resistência e de novos tempos com relação tanto às tradições, como ao machismo que é carregado junto com muitas destas tradições. Traz a mensagem de uma luta por igualdade.

Mando eu Ou mandas tu Cor-de-rosa ou azul Sociedade é uma selva Vale tudo para reinar Nós os dois Um só Se eterno fosse o sol Mas a noite sempre chega Não há como fugir A tempestade não cessa Ferida acesa Entre nós o abismo... (Trecho do espetáculo (Des) Mascarados)

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213 Foto do espetáculo (Des) Mascarados. Fonte: Foto de Venâncio Calisto, 2018.

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VENÂNCIO - O teatro é a arte da possibilidade (...) quando contamos uma história estamos a dar alternativas ao mundo. E o Desmascarados é isso. É trazer uma outra alternativa. É criar um espaço de transformação, um espaço que aceita a discussão. Então não podemos ficar presos ao passado, temos que compreender que aquilo que foi ontem pode não ser hoje. Esse mundo se desenvolveu foi graças a isso, a capacidade de se reinventar a cada momento.

214 Cartaz de divulgação do espetáculo (Des) Mascarados. Fonte: Página do facebook Franco Moçambicano.

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Capítulo 3 - SEMENTES: O performar da memória

PARTE A

REFLEXÕES SOBRE ‘ENTRE LUGARES’

Eparrey Oyá! Oya odò hó yà-yàyà, odò hó yà-yà, Oya odò hó yà-yàyà, odò hó yà-yà.

Oyá é o redemoinho dos rios, redemoinho dos rios, Oyá é o redemoinho dos rios, redemoinho dos rios. (OLIVEIRA, 2009, p 114)

Vivo na fronteira. Nunca me senti pertencente a lugar nenhum aonde habitei, aonde habito. Sou estrangeira do meu espaço e do meu tempo. Nas artes, sou composta e formada pela não divisão artística, como nas culturas populares. Formada em teatro, mas a música sempre esteve muito forte e presente em minha vida, apesar de não ter estudado tal matéria a fundo, toco, brinco e componho. A dança sempre se fez presente desde a infância, talvez por herança familiar que tentava negar, mas acabei mergulhando e encontrando o meu lugar nessa arte. As artes plásticas, a confecção, a escrita, a fotografia sempre foram também formas de expressão, formas de romper a barreira de minha pele e deixar minhas ideias, pensamentos, sensações, trevas e sonhos desaguarem no mundo. Brasileira. Bem brasileira. Da mistura. De lugar nenhum, de muitos lugares. De heranças múltiplas. Sou descendente de portugueses como muitos brasileiros. Tenho também índios como ancestrais. Tataravó vinda de África. De onde? De África, mas negaram que ela soubesse de qual parte. As memórias tentaram apagar, mas não conseguiram, pois o sangue segue. Espanhóis por aí. Alemão no nome vindo de algum lugar. Uma mistura de tempos. Há tempos... sem duplas ou triplas cidadanias... Brasileira sou. Regionalismos se confundem dentro do corpo que é preenchido de mistura de sangues. Corpo que vive em uma grande metrópole onde tudo existe e tudo é

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possível, misturando-se. Onde estão os limites? O que é Brasil? O que é Regional? O que é meu? O que não é? Nada é. Ou talvez tudo seja.

O LADO DE LÁ. O LADO DE CÁ.

As artes performativas podem se transformar numa área da cultura em que se processa um diálogo intercultural mais aprofundado, que não se restringe a um intercâmbio de técnicas, mas coloca em jogo questionamentos sobre os modos de vida hoje predominantes e as possibilidades da arte ensaiar outros caminhos. (QUILICI, 2015, p.49)

Na citação acima, Cassiano Quilici (2015) defende que o diálogo intercultural deve ser estabelecido de forma aprofundada, não se limitando ao que chama de intercâmbio de técnicas, mas se faz necessário um diálogo de fato entre culturas, perceber suas dinâmicas, lógicas, simbolismos, etc. Segundo Pavis (2017), durante as décadas de 1970 a 1990 as artes da cena ocidentais tinham o interculturalismo como um vasto campo de pesquisa.

Em Grotowski, ele se manifestou muito cedo como ‘sincretismo cultural’ (...). E não se deu de modo diferente em Brook, na sua pesquisa também, dos universais culturais [...] Nos decênios de 1980 e 1990, os do ‘todo cultural’, a tendência tanto da teoria como da prática foi a de multiplicar os exemplos da atividade cultural, de analisar todas as possíveis cultural performances. (PAVIS, 2017, p. 27)

Entretanto, muitas vezes, apostava-se em intercâmbio de técnicas ou estéticas sem um diálogo cultural estabelecido de fato. Cassiano refere-se ao “interesse vanguardista no primitivo e no Oriente” (QUILICI, 2015, p. 47) que segundo ele gerou o movimento de estudos e pesquisas em performatividades de outras culturas. Todavia, o autor atenta para que as pesquisas nao se limitem, como acontece em muitos casos, na técnica, treinamento ou procedimento. Cassiano enfatiza a importância da contextualização do método na busca da construção de um corpo e presença cênica por parte dos atores e dançarinos. “Embutido nas técnicas existe toda uma concepção de arte e de homem que acaba contaminando os artistas, mas são raros os casos que levam estas questões até às últimas consequências”. (QUILICI, 2015, p.47)

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Quer ele queira ou não, o intercultural tem uma parte ligada ao exotismo, e até ao colonialismo. Censuram-lhe com frequência seu eurocentrismo, inclusive na teorização que ele propõe para dar conta das experiências de Peter Brook ou de Ariene Mnouchkine nos anos 1970 e 1980. Acusam-no, não sem demagogia, de se apropriar de culturas indefesas. (PAVIS, 2017, p. 145)

Segundo Cassiano, no teatro, existe um “viés antropológico desenvolvido por artistas que trabalham o diálogo e a hibridização com elementos performáticos”. (QUILICI, 2015, p. 47) A questão é como se dá tal diálogo e hibridismo? O indiano Rustom Bharucha (2016) acredita que a interpretação das culturas não pode deixar de considerar as particularidades específicas de uma condição histórica. Segundo Bharucha, a falta de contextualização leva o pesquisador a olhar a cultura e suas expressões de forma redutora. A falta de conjuntura histórica é a problemática de processos e pesquisas interculturais, pois como podemos observar (Capítulo 2 – Rememorando), no caso do Mapiko, cada região de Moçambique e cada grupo de Mapiko tem suas particularidades e especificidades decorrentes do contexto no qual surgiram e vivem nos dias atuais. Essas particularidades decorrentes da contextualização são significativas para pensar a própria identidade de tal povo e da própria manifestação. Bharucha, em palestra dada ao Congresso ABRACE em 2016, questiona a ética e o respeito decorrentes do modo como se dá o diálogo entre as culturas. Como você escolhe a outra cultura com a qual vai dialogar? Como você sabe que a outra cultura quer se relacionar com você? Quem é o agente da escolha? O caminho se dá em via única?

Bharucha afirma, por exemplo, que a exposição a outras culturas não foi uma questão de escolha no caso da Índia. Isso se deu de forma contrária a outros países como os Estados Unidos da América, nos anos de 1960, no qual houve um grande interesse e procura de artistas e intelectuais por outras culturas, sem nenhum tipo de imposição política. Na Índia, esse processo foi ligado ao colonialismo, que não opera por princípios de intercâmbio, mas sim de apropriação e de legitimidade da autoridade do colonizador, ao pressupor sua superioridade cultural. A questão que Bharucha enfatiza, conforme outros teóricos da corrente pós-colonial, concerne à complexidade do processo de colonização das culturas, já que o modelo colonial não é simplesmente imposto, mas assimilado. Mesmo após o fim da colonização e independência, as culturas continuam marcadas pelo processo colonial por terem assi•milado e passar a reproduzir essas

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formas de relação como um colonialismo interno215. (BELÉM, 2015, p.76)

Tanto Bharucha (2016), como Qulici (2015) referem-se ao olhar ocidental em relação às culturas orientais. O mesmo acontece em África. O olhar colonial, principalmente de europeus para com países africanos e suas práticas e manifestações culturais acontece nos dias atuais. O diálogo 'eu-outro' pode ser entendido como apropriação do outro e pelo outro. A apropriação é um dos problemas possíveis que surgem ao retirar elementos de seus contextos originais. “Apropriação cultural é a adoção de alguns elementos específicos de uma cultura por um grupo cultural diferente. Ela descreve aculturação ou assimilação, mas pode implicar uma visão negativa em relação a aculturação” (Geledés Instituto Da Mulher Negra). Nesse sentido, é de suma importância que se saiba quais lógicas mediam nossas percepções de mundo. É preciso compreender de onde se olha e por que se olha.

Nos diversos vetores e perspectivas em que abordamos as relações Brasil-África, não o fazemos com o desejo de um pseudo retorno às origens ou o que questionamos como a “louvação entusiástica e acrítica das Áfricas”, mas desejamos redimensionar nossas relações com o continente, mobilizando um senso de pertencimento expandido acerca de nossas identidades (SILVA, 2017, p. 17).

Ao entrar em contato com manifestações culturais não ocidentais ou interculturais faz-se necessário refletir sobre a forma eurocêntrica que se desenvolve a pesquisa antropológica, sendo fundamental utilizar “criticamente suas ferramentas de análise, sobretudo a perspectiva etnográfica” (SILVA, 2017, p. 18) É preciso repensar os métodos de análise, elaborando uma etnometodologia que analise/comente/aborde de forma adequada a outros campos culturais. A relação sujeito-objeto demanda especial atenção, uma vez que a pesquisa consiste em um trabalho de campo, sendo uma imersão em uma cultura outra que não a de origem da pesquisadora. Portanto, tal pesquisa articula também o olhar antropológico. A observação-participante prevê uma reflexão através da qual, segundo Pavis, “os instrumentos de descrição do mundo, as categorias, e os aspectos

215 Essa questão foi tratata por autores da corrente pós-colonial e descolonial como Franz Fanon, Walter Mignolo, Boaventura de Sousa Santos, dentre outros.

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veiculados pela linguagem e a cultura são examinados para julgar o que revelam ou escondem do objeto estudado.” (PAVIS, 2008, p.260). Faz-se necessário a utilização de categorias, termos, grades da própria cultura estudada. “Nós não podemos claro, sair de nossa cultura, de seus preconceitos, de suas insuficiências, mas nós sabemos pelo menos que nosso olhar é imbuído, mas também enriquecido por toda nossa experiência cultural.” (PAVIS, 2008, p.284) A pesquisa se relaciona, portanto, com a etnocenologia, que segundo Chérif Khaznadar216(1999), estuda as manifestações espetaculares dos povos. Célia Conceição Sacramento Gomes (2007), afirma que o comportamento espetacular (maneira de se expressar e se apresentar distinta do cotidiano) pode ser encontrado nos rituais, festejos, cerimônias e diversas tradições culturais. Tais comportamentos revelam padrões de representação singularizado por um conjunto de elementos como música, figurinos, dança e figuras representativas, expressando um imaginário coletivo. “As formas espetaculares que entram no campo da etnocenologia são aquelas que são próprias de um povo, que são a expressão particular de sua cultura, que não pertencem ao sistema codificado do teatro tradicional”. (KHAZNADAR, 1999, p. 30) O Mapiko é visto no presente trabalho como uma prática espetacular, sendo entendido em seu contexto expandido. Dessa forma, é de suma importância que as práticas socioculturais que sustentam tal manifestação sejam estudadas, assim como a cultura específica do povo Maconde. Frente à manifestação cultural Mapiko, a pesquisa tem como campo central o mascarado que dança na tradição, permeando sua experiência liminar e o ‘entre lugares’ onde ele se encontra, dialogando com o mundo visível e invisível. O olhar epistemológico da fenomenologia é apropriado para tal pesquisa, pois “torna possível uma conciliação do objetivismo e do subjetivismo, do saber abstrato e da vida concreta” (LYOTARD, 1967, p.40). É necessário para tal abordagem que o pesquisador não reduza o desconhecido ao já conhecido. Segundo o pensador Edmund Husserl (1913), é preciso "retornar às coisas mesmas", o que significa suspender os pré-conceitos e permitir vê-las tais como se mostram. O pesquisador deve lidar com aspectos não acessíveis e não decifráveis que a pesquisa pode

216 Chérif Khaznadar, diretor-fundador de la Maison des Cultures du Monde, é um dos cinco membros fundadores em 1995 do conceito de etnocenologia a saber (por ordem alfabética): André-Marcel d’Ans, Jean Duvingnaud,Françoise Grund, Chérif Khaznadar, Jean-Marie Pradier.

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apresentar. Tal característica é relevante por se tratar de um mergulho em tradição imbuída de mistérios de um grupo ao qual a pesquisadora não faz parte, homens Macondes. Para Bharucha, “as diferenças não necessariamente separam as pessoas, mas se respeitadas e conhecidas podem contribuir para entender o que se tem em comum.” (BELÉM, 2015, p. 80). Um mergulho que instiga o olhar para minha identidade e para as minhas próprias raízes. As ancestralidades, as famílias, as danças, as musicalidades, os sagrados, as espiritualidades, as religiosidades: uma imersão neste universo individual que me direciona ao "Lado de lá" (Moçambique e Senegal). À alteridade, levando-me a um trabalho de campo que visa conhecer outras culturas. Abordaremos a seguir as experiências que emergem dos diálogos entre distintas formas artísticas e culturais permeando Senegal, Moçambique e Brasill. É uma experimentação sem um olhar voltado apenas às técnicas e treinamentos. Busca-se permitir que a relação aconteça, mas sem deixar de dialogar com as práticas metodológicas. Os exercícios a serem descritos no final deste capítulo foram desenvolvidos através desse contato com as metodologias e treinamentos bem como com as línguas, as musicalidades, os sabores, os cheiros, as amizades, as passagens, a política, a ancestralidade, espiritualidade, os segredos e etc. Os exercícios surgem das necessidades da busca por um caminho próprio, decolonial. Caminho este que emerge do diálogo, tanto com o Mapiko como com as companhias e grupos de teatro e dança de moçambique, o Sabar senegalês, a École des Sables. E também com os muitos encontros que me perpassaram: as cores de capulanas das cidades, o cheiro de Badjias, o gosto quente do café toubab217, os carneiros à venda nas ruas de Dakar para Tabaski218, os pés de muitas cores e histórias na areias de Toubab Dialaw219, o atravessar do Atlântico e o mirar do Índico...

217 Café touba - Café tradicional e muito popular no Senegal. 218 Tabaski- Festa muçulmana com duração de 4 dias. 219 Toubab Dialaw - Vila ao sul de Dakar no Senegal. Local onde se localiza a École des Sables.

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SENEGAL - Experiências de sables

Experiência Liminar

Primeiro, um adeus.

Sim, começamos pela despedida. Um adeus a casa, um adeus aos trabalhos, um adeus aos parentes, amigos, vizinhos, um adeus aos costumes, comidas, um adeus a rotina, um adeus ao cotidiano, um adeus a essa terra, a esse país, aos horários, a esse tempo, a esse espaço, um adeus ao meu eu.

Dois dias de viagem, quilômetros de distância, um oceano de separação, trinta e seis línguas de deslocamento.

Eis que chego, em outro espaço, outro tempo, tendo atravessado dimensões horários e fronteiras espaciais.

Chego a uma construção física que chamamos de escola, mas existe na ruptura, existe na fenda, na dimensão “entre” criado na abertura do tempo e espaço cotidiano.

Olhamo-nos nos olhos, somos muitos. Vindos de diferentes lugares, com diferentes costumes, falando diferentes línguas, deixando cotidianos diversos, diferentes corpos, diversas vozes... Muitos... Diversos e diferentes.

Passamos a viver ali, na fenda do tempo e espaço. Nessa ruptura, dormimos, comemos, nos banhamos, nos comunicamos, dançamos, cantamos, nos ligamos a terra, ao sol, as pedras, ao mar, às arvores, à chuva, uns aos outros... Passamos a comer do mesmo, a falar do mesmo, a andar como mesmos, a dançar em coro, a cantar em uníssono, a vestir mesmas roupas, a dormir e levantar em mesmas horas, a cultuar a natureza juntos, a nos sentir os mesmos.

A imagem de identidade que tínhamos quando chegamos se dissolvia nos dias que passavam. Nosso novo modo de viver nos levava a correr juntos como um rio, com margens que nos separavam da vida, tempo e espaço comum. Já não éramos diferentes. E mergulhávamos nesse liminar passeando na margem e guiados por mestres. Mestres estes, que viviam conosco nessa dimensão “entre” e nos acompanhavam nos ensinando, nos

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questionando, nos explicando, nos mostrando, nos fazendo experimentar, olhar, sentir, ouvir, cantar, dançar, ser... nos transformando, ou permitindo que nós nos transformássemos.

Eis que em certo momento, se é que podemos falar em momento num tempo outro, enfim, eis que tais águas que corriam livres na margem, tais gotas que seguiam dissolvidas no fluxo do rio chegam a uma queda. Cada gota precisa se lançar, tombar, formar a cachoeira e cair de volta no tempo e espaço cotidiano. Voltar, sair da dimensão criada como fenda no mundo.

Eis a saída. Depois de muito aprendermos e nos transformarmos, nos lançamos nesse grande mundo, apresentando-nos, fazendo o espetáculo da queda d’água. Rompemos os limites do período liminar, dançamos pelos ares e terras. Aterrissamos no cotidiano.

Dançamos iguais, ou quase iguais. Águas começam a correr gotas. Rememoramos, fechamos e amarramos, mostramos o que aprendemos. Um grande e coletivo espetáculo, com solos, com individualidades, mas coletivo. Eu danço mascarada, saio do rito mascarada. Me laço mascarada formando a queda que me devolve ao meu tempo e espaço, me devolve a mim, ou inventa um novo eu.

Volto transformada. Volto um novo eu.

Estou mergulhada na liminaridade

Sou atravessada pela liminaridade

Vivo em outro espaço e tempo

O tempo para mim e o espaço se transcende.

Meu corpo fala e aprende a falar mais.

Sou atravessada por saberes dos corpos e dos sons.

Encontros e reencontros... Aprendizados.

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220 Estátua de Germaine Acogny. École des Sables. Fonte: Foto da autora, 2017.

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Entre 17 de julho e 26 de agosto de 2017, realizei o curso Danses Noires 2 - Memoire et evolution na École des Sables em Toubab Dialow no Senegal. A École des Sables (Centro de formação e criação em danças tradicionais e contemporâneas de África) foi criada em 1988 por Germaine Acogny, a coreógrafa e dançarina conhecida como a mãe da dança africana contemporânea, e seu marido Helmut Vogt. Os objetivos principais da escola são a profissionalização de dançarinos africanos; o incentivo à comunicação e colaboração entre dançarinos, coreógrafos de África e do mundo; e desenvolver e promover dança africana contemporânea. A escola oferece regularmente cursos reunindo artistas de todo o mundo.

A École des Sables está localizado perto de Toubab Dialaw, uma vila de pescadores a 53 quilômetros ao sul de Dakar, aos pés de uma lagoa entre o oceano e a savana. Possui 2 salões de dança (400 m2 e 280 m2), 24 bangalôs para hospedagem de estagiários, restaurante, sala de conferências e enfermaria. (Descrição da divulgação do curso)

O curso trouxe artistas para ministrar aulas explorando universo das danças tradicionais e contemporâneas da África e da diáspora. Sob a direção artística de Patrick Acogny, que também ministrava uma disciplina contamos com Alesandra Seutin (UK) - Técnica de acogny e fusão / dança urbana; Irineu Nogoulez (Reino Unido) | Danças Afro-Brasileiras; Saky Bertrand Tchébé (Senegal) - Danças urbanas da Costa do Marfim; Max Diakok (França) - dança afro-caribenha e contemporânea; Lamine Diagne dit Alvine (Senegal) - Danças urbanas africanas; Rokhaya Thioune (Senegal) - Sabar, Danças tradicionais do Senegal. Pude realizar também aulas particulares de percussão com Ndeye Seck, percussionista da escola, aprendendo um pouco sobre Sabar (ritmo e instrumento), além de experimentações com máscaras trazidas pelo professor Irineu Nogueira e pelo diretor de teatro londrino Eliot Shrimpton. Além das aulas citadas, realizavamos debates sobre temas com convidados artistas senegaleses, compartilhavamos danças de nossos próprios países, experimentos cênicos pessoais, e assistimos as danças Sabar e Leão (danças tradicionais senegalesas).

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Seis semanas de trabalho intensivo de dança, criação, vivências, debates, filmes, mostras e compartilhamentos dos alunos. Sete horas de aula por dia nas incríveis Salle Henriette e Salle Aloopho. Uma imersão realizada com dançarinos de diferentes continentes, sendo 25 participantes de outros continentes e 15 de diversos países africanos. A Escola seleciona participantes que possam contribuir para o desenvolvimento da proposta do workshop, ou seja, pessoas que pesquisem ou trabalhem com danças de África e diáspora e estejam interessadas em fazer dialogar a tradição e a contemporaneidade (memória e evolução).

221 Salle Allopho. École des Sables. Fonte: Foto da autora, 2017.

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Minha turma do curso era provinda de distintos países: Brasil, Eua, Canadá, Senegal, Benin, Togo, Costa do Marfim, Cabo Verde, Burkina Faso, Mali, Itália, França, Espanha, Alemanha, Suécia, Suiça, Inglaterra, Coreia do Norte e Japão. A escola dispõe de alojamentos, refeitório e salas de trabalho, portanto a estadia dentro da escola é intensa. Vivencia-se a experiência coletiva e intercultural tanto nos fazeres artísticos e pedagógicos quanto na convivência diária.

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222 École des Sables, Senegal. Fonte: Foto de participante do curso, 2017. 223 École des Sables, Senegal. Fonte: Foto da autora, 2017.

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Tal experiência trouxe ganhos para pesquisa, pois ampliou referências de metodologias descoloniais; possibilitou o contato com diferentes vertentes da dança africana para melhor compreender e aprofundar questões sobre a dança e o mascaramento do Mapiko moçambicano; aprimorou minhas reflexões problematizando e refletindo sobre o tema central proposto pelo workshop 'memória e evolução' ou o que entendemos pela relação tradição e contemporaneidade. Escreverei em breve relatos de experiências, questões, problemáticas, caminhos e sementes que tal experiência fertilizou.

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224 Cartaz de divulgação do curso.

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225 A chegada

Grande roda. Pés de todas as cores vindos de diferentes terras do mundo pisavam as areias na École des Sables. Pés que traziam histórias e memórias, areias cheias de memórias e histórias, juntas na grande sala de areia Aloopho.

Meia cabaça ao centro da roda, dentro dela água e pétalas de flores. Momento da primeira apresentação. Diga seu NOME. Diga seu SOBRENOME. Diga seu PAÍS. Com isso você conta quem você é e de onde veio. (o nome da família é conhecer suas origens e mostrar sua raiz) Vá ao centro. Faça o que quiser com essa água e pétalas na cabaça.

Realizar uma dança? É necessário algum pensamento estético? Os movimentos devem ter a ver com a minha identidade ou meu caminho, minha história? Não. Não e não. Não pense tanto. Faça com verdade. Apenas faça o seu ritual de iniciação. O que você quer realizar para dar início a essa experiência? Como transforma seus desejos e ansiedades do início em sagradas e simbólicas.

A água purifica. Cada gesto diz de si, da sua crença, da sua origem, da sua pessoa.

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225 Sala Aloopho. École des Sables. Foto da autora, 2017. 226 Sala Henriette. École des Sables. Foto da autora, 2017.

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Entre máscaras e baobás

Uma floresta de Baobá ao lado da escola. Aquela floresta que, também localizada na ruptura do tempo – espaço, era repleta de portais. Portais para o passado, corredores onde os tempos se misturam no mesmo corpo, corpo fronteiriço. Floresta fronteiriça.

A máscara não poderia ser um portal também?

Relato agora experiências entre Baobás e Mascaramentos, buscando encontrar tais portais e fronteiras em meu corpo.

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227 Baobab, Senegal. Fonte: Foto da autora, 2017.

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Salamaleico228 Baobá

Partimos. Marchamos pelos caminhos. Itinerários desconhecidos, mas o alvo certeiro. Atchacha! Silêncio. Pelo caminho apenas o som de nossa marcha. Nossos pés batendo no solo e os passarinhos a convidar o sol a nascer conosco. Marchamos. Caminhamos. Andamos. Quais caminhos? Quanto tempo? Os pensamentos traziam turbilhões e o ritmo me voltava ao caminho.

Tum Tum Tum Tum ... Apenas a som dos nossos pés batendo a terra e os pássaros a convidar o sol a nascer conosco. Caminhamos por terras e pedras, entre muros, árvores, portas, touros, cabras, cobras, cercas... Eis que avistamos ao longe um pequeno baobá. Distante, pequeno, mas exuberante. Desperta da terra fazendo firulas nos ares e encantando o céu com suas pequeninas folhas.

Continuamos o caminho e ele se aproxima. Nós nos aproximamos, nos encontramos e vemos cada vez mais baobás. Uma porção deles. Maiores, menores, largos, com muitas ou poucas folhas... Todos em suas moradas sorrindo para a luz do dia que vem chegando, cortejando o sol que está por vir.

Chegamos a uma pedra e ainda em silêncio damos bom dia aos colegas que caminharam conosco e que ainda vão caminhar. Em seguida, fazemos um meio círculo incluindo o sol. E damos bom dia a ele também. Cada um, um bom dia. Abrem janelas, rodam com o sol, batem no chão, batem palmas, reverenciam, pedem a bençam, dão Bom dia ...

Então seguimos ao baobá...

Tocamos. Escutamos. Abraçamos. Observamos. Experimentamos. Guardamos. Baobamos.

Em um só corpo só somos sons.

228 Salamaleico é uma expressão árabe utilizada por mulçumanos como saudação. Tal expressão é muito usada no Senegal.

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Não soamos só.

Saímos ao espaço. Explorar, registrar na memória, na experiência, no corpo. Explorar. Seguir.

Vejo um pequeno Baobá. Abraço. Quero ficar só com ele. Cavidades. Rachaduras em seu tronco. Seco e molhado. Chega alguém. Parto.

Quero vê-los de longe também. Sua imensidão quando olho para cima e vou me distanciando.

Sou pequena mas sou.

Suas linhas dançam.

Caminho mais um pouco.

Textura de uma folha. Peluda. Carinho. Macia. Aconchegante. Encontro sua irmã caída. Guardo...

Caminho mais ...

...

Uma cerca. Uma placa pequena (pedaços de lixo) 114 ou 141. Número da pequena placa. Guardo? Não guardo?

Não guardo.

A cerca. A ação humana que não podemos ignorar.

229 Anotações pessoais. Fonte: Foto da autora, 2017.

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Meus pés, com grandes sapatos e grossas solas pisam sobre uma floresta pequena em miniatura que há no chão. Destruindo? Não. Transformando o espaço. Deixando minhas pegadas lá. Deixando minha historia lá. Fazendo parte do local.

Pertenço quando estou.

Pertenço quando sou.

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Sigo.

Devemos pegar algo para levar. O que?

Depois da cerca o que há? Penso que lá não devo ir, já estou muito longe. Será? Por que não? Porque há uma cerca.

Mas a curiosidade me carrega...

Dou uma espiada. Nada demais, mas ao lado da cerca encontro um galho seco. Ainda um pouco preso na sua árvore ou na sua ex-árvore. Retiro-o de lá, acelerando o trabalho do tempo. Trago-o comigo.

ACELERO O TRABALHO DO TEMPO.

Encontro outro, mais ramificado.

230 Anotações pessoais. Fonte: Foto da autora, 2017.

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Devo escolher e fico com o primeiro.

Continuo seguindo e quero deitar na pequena miniatura de floresta que há.

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Ouço o chamado. Madeira batendo em madeira. O som para voltarmos.

Por mim ficava lá o dia todo.

231 Anotações pessoais. Fonte: Foto da autora, 2017. 232 Anotações pessoais. Fonte: Foto da autora, 2017.

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Voltamos todos e nos colocamos formando um corpo só. Todos um Baobá. Um corpo só soamos. Somos um som. Escuto-nos. Baobando.

BAOBANDO. NUM CORPO SÓ SOMOS UM SOM!

Caminhamos mais um pouco para provar o eucalipto.

Provar uma árvore. Experimentá-la. Sê-la. Ouvi-la. Tocá-la. Senti-la. Degustá-la. Olhá-la. Reguardá-la. Guardá-la.

Regarde - olhar em Francês Guardar – reguardar.

Reguardar na memória, nas sensações, na experiência.

Ser atravessada por ela – Atravessá-la

Pegamos a folha e sentimos seu cheiro. Hum... conheço! Saudade de terras minhas.

A saudade passa por mim como uma brisa e segue para algum lugar que nos acompanha.

233 Anotações pessoais. Fonte: Foto da autora, 2017.

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Provar o Baobá. Degustar seu fruto.

Textura macia, áspera, sutil, com pelinhos. Como a tal folha de outrora. Dentro um ácido bom, um cítrico. Algo que te amarra um pouco a boca. Amarra.

O retorno sob o sol. Com água e um galho parceiro. Meu galho. Ou eu sou do galho? Somos um. Devemos ficar juntos.

Sigo e ao som da marcha e dos pássaros que comemoram que o sol nasceu e dançam com seus raios quentes, vejo sombras.

Chegamos na escola e começamos nossa aula. Primeiramente nos foi proposto experimentar dançar o baobá (suas raízes, seu tamanho, seu grande tronco, seus galhos ramificados, suas pequeninas folhas, seu ritmo, seu peso, sua dimensão, seu sabor, seu som, sua dança...)

Em seguida a professora Alessandra nos passou a sequência do baobá. Sequência de movimentos desenvolvida pelo Método Acogny. Experimentamos tal sequência em nosso corpo.

234 As três imagens desta página são de anotações pessoais. Fonte: Fotos da autora, 2017.

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Então, fomos divididos em grupos para trabalhar o baobá com alguns pontos que nosso experimento deveria apresentar: 1 momento uníssono, 1 momento com os pés fora do solo, 1 momento de contato físico entre os integrantes do grupo, 1 momento de canto coletivo, ou de rápida intensidade.

Com esses pontos necessários e com objetos que cada um trouxe e uma frase de cada integrante sobre a experiência do baobá, foi nos dado um músico e um espaço para criarmos coletivamente um experimento de 3 minutos.

As frases dos integrantes: “Kungo Kunona – na floresta”; “Estabilidade e Fragilidade”; “No meio do oco, coração”; “Saudando ancestrais”; “Baobando. Num corpo só somos um som”.

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235 Baobab, Senegal. Fonte: Foto da autora, 2017.

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A Máscara e o Baobá

Chegamos ao Baobá.

O lugar parece sagrado. Tem outro tempo. O tempo que não cabe em nós. Um tempo que não cabe na nossa compreensão, na nossa existência, não cabe no nosso corpo.

Chegamos. Olhamos e tocamos o grande e velho Baobá, que nos cedeu espaço para experimentar.

Máscaras sobre rocha. Descobrem o tecido que as cobrem. Elas deitadas sobre a rocha, ao lado de raízes do grande e velho Baobá.

A máscara me chama. Sua madeira. Seu cheiro. Olho para ela. Dentro dela um baobá. O baobá nos atravessa. A copa do baobá atravessa os olhos da mascara e chega às minhas retinas.

Vejo máscara. Vejo baobá.

Meu corpo quase que animalesco a observa, a toca, olha através dos seus olhos à grande arvore. E... a veste... e torna-se ela .

Continua animalesco e se impressiona com a imensidão do Baobá, olhando para cima. O som dos pássaros encontra um foco para a máscara. Encanto-me com o canto dos pássaros, com a imensidão do baobá. Deixamos o Baobá entrar e aos poucos vamos nos enchendo do que vemos. Lembro-me de respirar. Respiramos....Baobamos...

236 Baobab, Senegal. Fonte: Foto da autora, 2017.

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É uma concessão

Quase uma possessão

Mas você não está do lado de lá

e também não está do lado de cá.

Ando até o Baobá. Cuidado! Sempre cuidado e respeito. Pisando com minhas raízes me aproximo das raízes do Baobá.

Toco-o. Toco-o .. oco-o ..oco ...

Sua textura e força me fazem gostar. Experimento empurrar e tocar mais. Outras partes do meu corpo tocam também. Tocam, empurram, acariciam. Braço, escápula, costas. Respiro. Suspiro. É bom.

Olho o Baobá. Toco o corpo todo nele.

É muito bom. É uma delícia. Suspiros saem com sons. Baobá entram. Encontro furos. Quero ficar junto com baobá. Subir nele. Ser ele! Somos baobás.

Vejo outro! Ele, encolhido em um cantinho ao lado da enorme raiz do grande e imenso Baobá, chora. Se revolta. Bate na raiz. Resmunga em algum idioma.

Chamo ele para se aproximar do Baobá. Mas já era hora de partir. Não quero, mas é preciso. O sol estava indo embora e nós precisávamos ir também.

Expiro o que me inspirou. Saio. Separamo-nos.

237 Baobab, Senegal. Fonte: Foto da autora, 2017.

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Dançando o mar

Seguimos pela manhã de sol quente até a praia. A beira mar, tocamos a areia úmida com os pés. Em seguida tocamos com as mãos, seguramo-la, pegamo-la. Então, tocamos com a pele. Passamos areia nos corpos ao nosso redor (corpos dos colegas que realizavam a mesma experimentação). Encontramos diferentes possibilidades entre corpos e areia: contato. Acordamos o corpo à areia, à praia.

Após esse primeiro momento, encontramos um espaço para juntos dançarmos em frente ao mar e olhando para ele. Primeiramente, realizamos sequências do método Acogny que já conhecíamos. Finalizadas as sequências coletivas, fomos caminhando em direção ao mar. Um coro unido caminhava, atravessando as ondas e sentindo, como um corpo só, o impacto que as fortes ondas provocavam.

Em duplas dilatamos esse corpo único, encontrando cada dupla um espaço mais amplo no mar. Trabalhamos, então, a confiança. Um da dupla fechava os olhos e o outro guiava seus caminhos. Primeiramente andando e em um segundo momento dançando.

Então as mãos se soltaram e aquele que estava com os olhos fechados continuava sua dança sozinho no mar. O outro o assistia e o vigiava, protegendo e acompanhando aquele que dança. E então, trocavam-se os papéis.

O corpo segue os movimentos das ondas. O corpo resiste ao movimento das ondas. O corpo dança o movimento das ondas. Ondas. Ondulações. O corpo vai e volta. O corpo é levado e trazido com a corrente das águas. O corpo é água, o corpo é onda e ondula. Mas também é resistência, o corpo resiste a água, resiste a onda, resiste a corrente. Uma parte dele vai com o movimento das águas enquanto outra parte resiste a esse movimento, por isso ondula. Enquanto uma parte vai a outra resiste e trocam os papeis num fluxo continuo. Corpo água e resistência, corpo onda.

Depois dançam os dois corpos juntos com os olhos abertos.

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238 Ilha de Gorée, Senegal. Fonte: Fotos da autora, 2017.

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Relatos e anotações

‘Si tu ne sais pas où tu vas, regarde d'où tu viens.’

O mais importante não é responder minhas perguntas e sim ser atravessada por essas experiências descobrir novos caminhos para mim. Ser atravessada pela liminaridade. Encontros e reencontros. Aprender a pensar com o corpo e entender com o corpo. Memória antes de você. A extensão da memória. Buscamos quem somos com esse curso.

Areia guarda Nadei nas ondas do mar sem opinar, nem decidir. As ondas me trouxeram até aqui por mãos amarradas e arrastadas. Com olhos cerrados, Yemanjá me acolheu. Gotas e mais gotas ficaram em águas profundas Sangue, suor e lagrimas. O fundo do mar os guarda em Método Acogny - Todas as marchas seus corais. (caminhadas) e as posições têm Mas como as ondas, o vai e vem imagens. Importante trabalhar com as do mar fez-me voltar. Regressar. imagens não apenas dançar por dançar, Levou-me e me traz e volta. mas ser o leão que bebe água, ser a girafa... A visão de corpo, a cosmologia do corpo Acogny, os movimentos, as march as, as posições são dados de observação da natureza e do povo senegalês principalmente (seu modo de

andar, de realizar suas ações cotidianas e suas danças). Técnica Acogny é um trabalho de

reflexão entre memória e imagem. O que você dança deve fazer sentido no seu corpo. É preciso ter imagens para você, símbolos. É importante que o que faz com o corpo signifique algo, não racionalmente, mas no próprio corpo.

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COSMOLOGIA DO CORPO

O sol – peito Serpente ou árvore da vida – coluna A lua – bunda Estrelas – ventre

COLOCAR O COSMO EM MOVIMENTO MOVIMENTAÇÃO MovimentAÇÃO.

ORGANIZAR PRECISAMENTE UM LUGAR E UM MOVIMENTO PARA SEU COSMO.

COMO É O SEU SISTEMA SOLAR?

Onde ficam o SOL, a LUA, as ESTRELAS, a ÁRVORE? Como elas giram? Como se movimentam? Qual o tempo? Quais os ritmos dessas rotações e translações?

A mesma organização em dois corpos diferentes. O corpo que fala! Cada corpo com sua cosmologia, com seus tamanhos e ritmos.

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QUERO VER O QUE ESSE CORPO TEM A DIZER!

NUNCA DANÇAMOS SOZINHOS NUNCA DANÇAMOS SÓ!

Mesmo quando dançamos um solo, dançamos com nossos ancestrais.

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239 Senegal. Fonte: Fotos da autora, 2017.

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EVOLUÇÃO – Tudo muda. Somos expostos ao mundo. O mundo muda constantemente... o mundo muda e muda os modos de transmissão e de O tempo é aprendizado de uma tradição. As suspenso na tradições são permeáveis. dança. Tempo Na escola falam sobre evolução do não tempo. como reciclagem. O Afro pop, por Tempo exemplo, começa em África e vai dilatado. para os EUA, lá se transforma e com Tempo da características vindas de África liminaridade. acaba assumindo uma identidade Por outro própria e norte-americana. Então, lado, em meio retorna à África. Jovens africanos se a esse tempo inspiram no Afro pop norte- do não tempo, americano, que por sua vez trouxe esse tempo de África suas influências. Ele vai e dilatado da retorna, se recicla. liminaridade, o

tempo, ditado

pelo ritmo dos Meu corpo grita tambores é de extrema importância, e Meu corpo vibra

está totalmente conectado com Meu corpo dança a movimentação Descascar-me dos corpos. “Ocidentais pensam que

nós vamos até o futuro, mas

na verdade o futuro que vem até nós”

Estou no meio, então entender quem sou e criar o meu lugar para criar o meu caminho. Criar o espaço do possível.

O poder está no sagrado, nos segredos e espíritos que te auxiliam a criar. Há um encantamento nos fazeres que os tornam especiais e restritos aos que conhecem determinado saber.

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“Se não sabe para onde vai, olhe de onde veio” (Frase que se repete a todo momento, pois guia nossos passos a cada encruzilhada. Laroyê.)

Quando ensinavam um movimento, eu passava a aula tentando reproduzi-lo, entender suas características e precisões. Quando os professores faziam a Estava muito cansada. Foi um decupagem de cada parte do dos dias mais quentes. Quase movimento, eu me focava em não aguentava dançar, muito entender seu ritmo e o canto dos menos na areia e a última aula tambores associados à tal do dia. Em um momento, como movimento, e em entender a em um exercício de exaustão, eu energia colocada nele. parei de pensar e dancei. Não Normalmente ao aprender, meu pensava mais nos movimentos, corpo tentava reproduzir, mas nem na ordem deles, mas parecia só mastigar algo ainda dançava os movimentos e suas duro e não conseguia digerir. No ordens. Essas informações não dia seguinte o movimento fluía. O passavam pela minha parte corpo trabalha quando achamos racional, apenas pelo corpo. que ele está descansando. Ele Ouvia o toque dos tambores, via continua trabalhando, digerindo os outros dançando, estava os movimentos. O movimento, na aberta e dançava também. aula seguinte, fluía e na próxima Dancei e me diverti com a aula mais ainda, e então era o música... passeei nos seus momento de mastigar e digerir os ritmos, sons e batuques... próximos movimentos e deixar Sabar... aquele que já foi digerido encontrar sua organicidade junto aos tambores e suas imagens junto ao meu cosmo.

VIBRAÇÃO

O corpo todo vibra. A cada andada, cada vez que o pé bate o solo ele emite uma vibração na terra e recebe uma vibração da terra. Deixe essa

vibração repercutir no corpo todo. Sempre que caminhamos, a cada batida do pé no chão mudamos, nunca somos o mesmo, estamos em constante vibração. Sentimos o eco da terra ecoar no nosso corpo, principalmente na nossa coluna vertebral, nossa serpente ou árvore da vida.

ECO DA TERRA MOVIMENTO EVOLUÇÃO .... DESENVOLVE ... SEGUE....

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240 Senegal. Fonte: Fotos da autora, 2017.

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Mudando o ponto de vista do eu que dança, Patrick nos ensinou que você não deve vir dançar. Você deve deixar tudo preparado

e disponível para que a dança aconteça.

Vitalidade X Energia

Patrick defende que diferente do que muitos pensam sobre danças africanas, tais danças não têm muita energia e sim muita vitalidade e presença. Diferencia assim energia de vitalidade e presença. Diz que energia em excesso não atrai e sim repele o público e que desprendendo muita energia ao dançar não conseguiria dançar Qual o meu caminho ? durante muito tempo, pois logo Qual a minha ideologia? estaria demasiadamente Meu mix? cansado. Já se trabalhar com a Meu corpo fronteiriço? noção de vitalidade e presença Quem eu sou? (termos colocados por Patrick De onde venho ? Agcony) a energia é controlada e “se não sabes para onde vai, convida os outros. veja de onde veio...” É necessário trabalhar com controle e concentração de energia na dança, desta forma é possível um crescente de energia para uma dança mais eficaz e forte. (termos também colocados por Patrick Acogny).

A aproximação com o Sabar (Dança tradicional do Senegal) foi dada pelo corpo.

Entender sua estrutura, sua dinâmica, sua qualidade de movimento no fazer. Entrar em contato com o corpo, colocar o corpo naquela dinâmica e estrutura, tentar alcançar tal qualidade de movimento através da repetição. Olhar e repetir, repetir para aperfeiçoar. E num piscar de olhos, estávamos dançando Sabar, compreendendo sua estrutura, seu ritmo, cada corpo encontrou um caminho para se aproximar da qualidade de movimento de tal dança e podíamos então improvisar junto aos tambores, e criar sequências coreográficas de Sabar.

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Je sens que je traverse et que je suis traversée par le Sabar. Pour moi, le rythme et la musique sont la porte d’entrée, parce que mon chemin rencontre cette forme d’approximation. Je joue la musique dans

l’espace. Je danse et je suis dansée. Dans la salle de Patrick, la déconstruction et les principes presentés me font penser beaucoup, donc je me sens moins traversée. Mais quand je danse le Sabar, tous ces principes me traversent sans que je pense. C’est après que je peux réflétir et voir les principes dans mon corps.

Vou à vila Seguimos por ruas de areia-terra. Está tudo noire . A luz que nos acompanha é da lanterna dela. Ela segue com suas filhas magras e longilíneas, cobertas a cabeça de tecido. Marcha rápido, très vite. Faz esse caminho todos os dias. As ruas se estreitam. Demoro a perceber porque quase não se vê Mon ideologie du corps vient d’un nada. Viramos, viramos, seguimos. lieu de frontières. Je me sens Salamaleico ! Aleikum Essalam! dans la frontière. La frontière Pedras, buracos, seguimos, mais terra, entre des arts. Entre le théâtre, la areia, terra , mais e mais ... chegamos. musique, les arts plastiques, la Ela nos abre a porta e nos convida a dance... la frontière entre le entrar. pensée du corps et le pensée

Na casa, tudo azulejo. Cozinha aberta rationnel. La frontière où sont mes à esquerda. À direita uma cortina ancêtres. La frontière que je suis. branca um pouco transparente revela Tous les cours et les stages que partes de uma sala ou quarto. Ela nos j’ai déjà fait habitent mon corps. Toutes les histoires et les choses oferece água fresca. Pegamos e todas vamos à calçada do lado de fora sentar que j’ai déjà vécu habitent mon e beber água. corps. Toutes les influences de Na rua vem uma brisa fresca... Ali mes ancêtres, mes racines, ficamos a conversar. Sob nós, o céu habitent mon corps. estrelado de Toubab Dialaw. Mon corps raconte des histoires. Mon corps sont des histories. Mon corps est un lieu de frontières disponible. Mon corps.

O que eu compartilho é o meu olhar, o que atravessou meu corpo, minhas retinas, meu nariz, meu ouvido, minha pele.

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MOÇAMBIQUE/ÁFRICA DO SUL

A pesquisa em Moçambique foi realizada com financiamento FAPESP a partir do Estágio de pesquisa no exterior, um vinculada com a Universidade Eduardo Mondlane, a fim de produzir referências primárias e possibilitar aproximação e observações das Máscaras de Mapiko, oferecer oficinas/workshops sobre o processo de mascaramento que vem sendo desenvolvido na atual pesquisa (oficina nomeada Máscaras e Ancestralidade), realizar entrevistas com atores/atrizes, dançarinos(as), diretores(as), coreógrafos(as) e envolvidos com o fazer artístico na cidade de Maputo, assistir espetáculos, debates, palestras e acompanhar aulas de danças. Tal estágio teve o objetivo de produzir referências primárias acerca do Mapiko, enriquecer a compressão do fazer artístico na cidade de Maputo, da relação entre tradição e contemporaneidade, e de buscar mais embasamento aos exercícios desenvolvidos para o processo de mascaramento experienciado nas oficinas ministradas. O projeto foi realizado no período de 29 de outubro de 2018 a 06 de dezembro de 2018. O cronograma inicial que consistia em 3 etapas de execução onde na primeira etapa com duração de 15 dias, a pesquisadora ficaria em Maputo (passagem obrigatória para chegar a Cabo Delgado) acompanhando o grupo de Mapiko da Zona Militar de Maputo, realizando aulas de dança Mapiko, e acompanhando a Companhia Nacional de Canto e Dança de Moçambique, realizando aulas de danças e entrevistas. A segunda etapa, com duração de 10 dias, consistia em uma visita à província de Cabo Delgado. Tal região conta com uma ampla gama de grupos de diferentes gêneros e especificidades, que apenas são encontrados na província de Cabo Delgado. A estadia junto ao povo Maconde tem como finalidade observar, analisar e entrevistar aqueles que dançam mascarados o Mapiko, produzindo, assim, uma série de fontes primárias (entrevistas, material fotográfico e videográfico). A terceira etapa, com duração de 13 dias, consistia em um retorno a Maputo (passagem obrigatória para retornar ao Brasil), produção de oficinas ministradas pela pesquisadora sobre mascaramento na Companhia Nacional de Canto e Dança e na ECA (Escola de Comunicações e Artes da Universidade Eduardo Mondlane (ECA–UEM), entrevista com grupos de teatro (Mutumbela Gogo, Teatro Gungu, Teatro em Casa), organização prévia e o armazenamento de cópias de tais materiais nos arquivos da Universidade Eduardo Mondlane.

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Tal cronograma inicial sofreu alterações. Na altura da viagem a situação de instabilidade com conflitos armados se agravou no norte de Moçambique, local onde se realizaria a segunda etapa do cronograma proposto inicialmente. Não havendo garantia de segurança pessoal para realizar tal viagem, o cronograma alterou-se.

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O cronograma de execução do Estágio de pesquisa no exterior foi adaptado incluindo outras fontes, outras oficinas e outras pesquisas de campo. Tal adaptação agregou novos encontros, aulas de dança, maior amplitude no alcance das oficinas e a aproximação com a dança Gumboot Dance. Durante a primeira etapa do Estágio de Pesquisa foi realizada uma pesquisa bibliográfica na Universidade Eduardo Mondlane, na Cia Nacional de Canto e Dança, nas bibliotecas em Maputo e nos arquivos pessoais de atores, diretores e pesquisadores de arte. Tal levantamento contou com uma série de documentações, livros, escritos, encartes e fotos de espetáculos, sobre o teatro e a dança da cidade de Maputo. A contribuição principal para a pesquisa se dá, pois, muitas das fotos,

241 Matérias do Jornal O País. Novembro de 2018.

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escritos, textos e encartes de espetáculos eram ainda não catalogados e não publicados. Ainda na primeira etapa foram realizadas uma série de entrevistas com diferentes figuras das artes de distintos grupos de teatro e dança da cidade de Maputo, entre eles Mutumbela Gogo, Gungu, grupo Massacre de Mueda, Associação Cultural Wuchene, Companhia Nacional de Canto e Dança, Escola de Arte da Universidade Eduardo Mondlane, Grupo Hodi, Grupo de Teatro Girassol, centro do Teatro do Oprimido Maputo e Teatro em Casa. A intenção com as entrevistas foi de ampliar a gama de entrevistados na direção de coletar vozes/falas de diferentes pontos de vista. Por isso, buscou-se entrevistar atores/atrizes, dançarinos(a), cenógrafos(a), mascareiros, coreógrafos(a), professores(a) de teatro e dança, pesquisadores(a), estudantes e etc. Durante a primeira etapa, reestabeleceu-se contato com o grupo Massacre de Mueda, grupo de dança Maconde e com o grupo de Mapiko da Zona Militar, situado na cidade de Maputo, onde pude acompanhar e coletar imagens da festa de Mapiko na Zona Militar. Ainda na primeira e mais duradoura etapa, realizou-se a produção de oficinas ministradas pela pesquisadora sobre mascaramento. Tal oficina recebeu o nome de “Máscaras e Ancestralidade” e ela consistia e experienciar uma série de exercícios e procedimentos sobre o mascaramento que vem sendo desenvolvido ao longo da pesquisa de doutorado. Tais procedimentos, exercícios e metodologia assim como a descrição de cada uma das oficinas ministradas serão apresentados a seguir no presente relatório. As oficinas realizadas foram para os grupos: Companhia Nacional de Canto e Dança, Centro de Teatro do Oprimido Maputo, Grupo de Teatro Girassol, Associação Cultural Hodi, Associação Cultural Wuchene e Grupo Khuhlanganyeta. Uma oficina com duração de três dias também foi ministrada para público em geral no Centro Cultural Brasil-Moçambique. A ideia foi de produzir mais oficinas do que previstas e com maior pluralidade de público, procurando grupos do centro de Maputo e grupos das periferias que circundam a cidade, grupos jovens, e companhias com mais história, assim como grupos de dança e grupos de teatro. Buscou-se, desta forma, maior pluralidade e diversidade de público com o intuito de maior possibilidade de análises sobre os

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exercícios que seriam experienciados nas oficinas. A pesquisa ainda contou com uma oficina que não envolvia nenhum grupo específico, mas que era proposta de forma aberta à dançarinos e atores e interessados em geral, tal oficina foi oferecida no Centro Cultural Brasil-Moçambique com parceria da ECA – Escola de Comunicações e Artes da UEM (Universidade Eduardo Mondlane). Nessa oficina pode-se contar com um público dispare, composto por pessoas que não formavam um coletivo e que não se conheciam, assim como com diferentes idades e vindas de diferentes trajetórias, entretanto o curso acabou atraindo basicamente o público de atores, diretores ou fazedores de teatro em geral. Para finalizar a Etapa I e adentrar na Etapa II foram realizadas investigações especificas sobre tipos de dança de contribuem e desenvolvem metodologicamente os exercícios criados para o trabalho com mascaramento que a autora vem investigando durante a pesquisa de doutorado. A dança específica chamada Gumboot dance é originaria da África do Sul, mas como era realizada por muitos trabalhadores imigrantes vindos também de Moçambique, acabou por migrar para Moçambique, mas de forma pouco representativa. A dança em Moçambique é chamada de dança das botas, mas é muito pouco conhecida e sempre referenciada ao Gumboot dance da África do sul. Realizou-se aulas de Dança de Botas / Gumboot Dance e aulas de uma dança moçambicana que se aproxima em seu caráter rítmico chamada Makwaela. Desta forma, iniciou-se a Etapa II que consistia em um trabalho de campo específico na África do Sul, buscando aproximações com o Gumboot Dance, a relação rítmica da dança e a relação com a migração moçambicana. Durante tal etapa uma pesquisa em Johanesburgo e em Cape Town Foram realizadas. A Etapa III consistiu em um retorno a Maputo / Moçambique, continuidade de entrevistas, levantamento bibliográfico, assim como a organização prévia do material produzido durante tal estágio de pesquisa no Exterior. Durante todas as etapas a pesquisa também contou com participações em eventos e debates sobre o estado da arte africana, com a apreciação de filmes e documentários que agregaram a pesquisa e com o acompanhamento de ensaios, de peças teatrais e performances durante tal período. Apesar das alterações no cronograma, o estágio de pesquisa no exterior teve a duração prevista e o objetivo central do projeto não foi alterado. O estágio foi realizado de forma proveitosa e possibilitou experiências, vivências práticas e

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aprofundamento para a pesquisa, além de produzir referências primárias sobre as máscaras Mapiko, o teatro e dança na cidade de Maputo e sobre o Gumboot Dance/Dança de botas.

Revendo Mapiko na Zona Militar

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242 Mapiko, Zona Militar. Fonte: Foto da autora, 2018.

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Andando por ruas passadas, seguindo as trilhas da memória, encontro esquinas mesmas mudadas, terras pisadas há tempos, aromas conhecidos e ao fundo meus ouvidos alcançam o som dos vinganga 243com seu agudo a anunciar a quem vem de longe que já há

Mapiko.

Passo a passo me aproximo, escuto os Neya com seus graves dando o pulso que me faz pulsar junto antes de chegar ao local da festa. Viro na rua de terra, caminho muito traçado há anos, ainda não pisado no presente. Presenteio-me. Representeio-me. Sigo andando e chego ao canto. Já escuto as vozes do coro. Likute e Ligoma ainda em silêncio.

Vou me aproximando. Vejo pessoas. Guiada pelo som dos tambores, chego.

O Lipiko está ao lado da árvore a respirar e os tambores Likute e Ligoma também respiram. Chego e o público maior é de crianças e mães. A festa não está cheia.

10 de novembro de 2018, aniversário da cidade de Maputo. Sábado. Feriado. A cidade estava cheia de eventos e atrações. Shows de música em praças públicas que acompanharam a madrugada de sexta para sábado. Inauguração da ponte Maputo-Katembe

(a maior ponte suspensa de África) e diversos eventos em outros sítios. Mas a tradição deve continuar. Mapiko foi amarrado. Um único Lipiko, uma máscara, muitos músicos. Mulheres e crianças principalmente participando da festa.

243 O mascarado no Mapiko é acompanhado pelo coro e uma banca de tambores. Tal banca executa estrutura polirritmia e é formada por apenas um Ligoma, apenas um Likute, vários Vinganga (No singular Singanga), Neya ou Neha e Ntoji ou Ntonha.

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244 Mapiko, Zona Militar. Fonte: Foto da autora, 2018.

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Chego próximo aos tambores. Começo a assistir o Mapiko que vem dançar.

Cumprimento as pessoas. Crianças e adolescentes vem falar comigo. Conversamos. Mapiko volta ao galpão. Os tambores vão se aquecer e afinar junto à fogueira feita ao lado. Amigos de datas passadas, professores de dança, conhecidos e mestres vêm falar comigo durante essa pequena pausa. Apresentam seus filhos pequenos enquanto as crianças transformam o espaço antes da dança em fluxo de passagem e lugar para brincadeiras. Fluxo da festa. Lugar fluido. Terra entre cotidiano e sagrado. Entre palco e passagem....

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E o Mapiko deve continuar. Tambores afinados. Depois falamos ... e segue a tradição

Mapiko. Os tambores voltam a tocar mais agudos e recém afinados. Chamam o coro que canta e dança. Chamam Mapiko e este sai do galpão para dançar.

Sento ao lado dos filhos de meus amigos para acompanhar a festa. Eu e meus colegas, filhos daqueles que me ensinaram. Junto da nova geração, que interessada em minhas câmeras, me ajuda a registrar a festa. Escolhem o que acham mais interessante, escolhem ângulos e pontos de vista distintos.

245 Olhar das crianças, Mapiko, Zona Militar. Fonte: Foto das crianças, 2018.

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O olhar das crianças sobre o Mapiko

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246 Mapiko, Zona Militar. Fonte: Foto da autora, 2018.

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A tradição é a modernidade e a continuidade da mesma. E o Mapiko segue... a renovação.

E assim, acompanhamos as danças e fluímos para as conversas e brincadeiras nos

‘momentos de pausa’, que não gosto de chamar de ‘momentos de pausa’ pois fazem parte da festa e é o que a torna fluida. Tudo acontece no fluxo entre lisheshos, nchakachas e brincadeiras....

247 Olhar das crianças, Mapiko, Zona Militar. Fonte: Foto das crianças, 2018.

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Somos retratados na dança. Eu de fora, os jovens da nova geração, a guerra. Entra o mascarado com um galho e nos mostra a guerra. Ele vem atirar com sua grande arma e a combater.

E então, um passo que conheço bem e reconheço em uma memória corporal antiga e no vibrar do meu tímpano com o vibrar dos tambores: a dança do manco.

O Mapiko vem caçar animais que imaginava na grande mangueira. E uma dança que nunca havia visto antes: chega alguém e deixa uma garrafa de cerveja vazia ao centro, vem

Mapiko pega a garrafa e começa seus passos, cambaleando junto com o som. Parece que vai cair, mas tem domínio de sua dança. O bêbado dança bem junto ao ritmo.

248 Mapiko, Zona Militar. Fonte: Foto da autora, 2018.

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249 Olhar das crianças, Mapiko, Zona Militar. Fonte: Fotos das crianças, 2018.

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O sol começa a cair. Chega a ventar e a festa começa a intensificar. Enquanto o sol cai, o tempo esfria, o Mapiko esquenta. Chegam mais pessoas. Vejo mais adultos, homens e mulheres. Álcool, conversas e o foco no Mapiko quando vens.

O Lipiko vem forte e eu sentada, rodeada das crianças, que às vezes se escondem em mim quando o Lipiko vem em nossa direção. Assusta-nos. Assusta os miúdos. Tradição que segue. Terra que levanta. Voa em nossos olhos.

250 Olhar das crianças, Mapiko, Zona Militar. Fonte: Fotos das crianças, 2018.

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A noite chega e eu parto. Despeço-me da antiga e nova geração e sigo pelas ruas com o som dos tambores que reverberam pelo fim da noite em meu corpo memória que revive experiências passadas, danças e canções, mesmo sem dançá-las ou cantá-las. O ativar do corpo-memória Mapiko que nos representeia.

251 Mapiko, Zona Militar. Fonte: Fotos da autora, 2018.

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Gumboot Dance / Dança de Botas / Makwayela

“My blood Will nourish the tree which Will bear the fruits of freedom” (SOLOMON MAHLANGRE,1979)

A investigação acerca do Gumboot Dance entra na pesquisa buscando a compreensão do caráter ritmo e da comunicação com a terra como é dada no Mapiko e também que vem se desenvolvendo no exercício proposto pelo trabalho prático nomeado Ngoma da Corda (proposto nas oficinas oferecidas no presente Estágio de Pesquisa no Exterior) A pesquisa inicia-se em Moçambique, na capital Maputo, onde encontro a dança de Botas e a Dança Makwayela. Buscando aprofundamento e conhecimento em tais danças que dialogam com os exercícios que vem sendo desenvolvidos para o mascaramento e as oficinas ministradas, foram realizadas aulas de Makwayela e de Dança de Botas. Makwayela é uma dança bastante praticada na zona sul de Moçambique, resultante dos intercâmbios culturais estabelecidos pelos habitantes desta região durante o período de trabalho migratório nas minas da África do Sul, absorvendo assim, influências musicais e coreografias. Encontra-se em tal dança o principal interesse da atual pesquisa: construção rítmica e comunicação a partir do contato dos pés com a terra/solo.

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252 Makwaela – Grupo de Dança da Associação Cultural Hodi, Maputo, Moçambique. Fonte: Acervo particular da Associação Cultural Hodi.

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Aulas de dança Makwaela com Grupo de Dança da Associação Cultural Hodi

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253 Aula de dança Makwaela. Fonte: Fotos da autora, 2018.

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254 Aula de dança Makwaela. Fonte: Fotos da autora, 2018.

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Dança de Botas – Gumboot Dance

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Súplica Tirem-nos tudo, mas deixem-nos a música! Tirem-nos a terra em que nascemos, onde crescemos e onde descobrimos pela primeira vez que o mundo é assim: um labirinto de xadrez…

Tirem-nos a luz do sol que nos aquece, a tua lírica de xingombela nas noites mulatas da selva moçambicana (essa lua que nos semeou no coração a poesia que encontramos na vida) tirem-nos a palhota ̶ humilde cubata onde vivemos e amamos, tirem-nos a machamba que nos dá o pão, tirem-nos o calor de lume (que nos é quase tudo) - mas não nos tirem a música!

Podem desterrar-nos, levar-nos para longes terras, vender-nos como mercadoria, acorrentar-nos

255 Aula de Gumboot Dance/ Dança das Botas – Companhia Nacional de Canto e Dança. Fonte: Foto da autora, 2018.

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à terra, do sol à lua e da lua ao sol, mas seremos sempre livres se nos deixarem a música! Que onde estiver nossa canção mesmo escravos, senhores seremos; e mesmo mortos, viveremos. E no nosso lamento escravo estará a terra onde nascemos, a luz do nosso sol, a lua dos xingombelas, o calor do lume, a palhota onde vivemos, a machamba que nos dá o pão!

E tudo será novamente nosso, ainda que cadeias nos pés e azorrague no dorso… E o nosso queixume será uma libertação derramada em nosso canto! - Por isso pedimos, de joelhos pedimos: Tirem-nos tudo… mas não nos tirem a vida, não nos levem a música! (NOEMIA DE SOUZA, 2016)

A Dança de Botas é como chamam em Moçambique o Gumboot Dance. Gumboot Dance tem origem nos trabalhos nas minas na África do Sul nos anos XIX. Em tal período, minas de ouro e diamante foram descobertas. Sob o comando dos colonizadores holandeses e britânicos, tais minas começaram a ser exploradas. O sistema de trabalho imigrante levou muitos africanos de diferentes regiões para o trabalho nesses locais. Tais trabalhadores separados da família e sobre as leis opressivas do Apartheid, eram obrigados a trabalhar em condições adversas. Trazidos de diferentes lugares, o local de trabalho nas minas contava com uma grande junção de identidades e línguas. O Gumboot Dance surge nesse contexto e foi criado como comunicação entre tais trabalhadores. A dança desenvolve uma comunicação dentro das minas, uma vez que qualquer tipo de conversa ou comunicação verbal entre os trabalhadores eram severamente punidas. Desta forma começam a utilizar o batuque das botas, cantos e gritos como elementos de comunicação. A comunicação é dada a partir de células rítmicas que são criadas.

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Muitas vezes encontram-se botas com sinos, produzindo uma qualidade de som diferente ao dançarem. Tal som pode ter surgido como um chamado diferente para dizer algo a outra pessoa a uma curta distância, ou podem ter influencias nas correntes e sons metálicos que utilizavam na altura. Muitas simbologias surgiam nessa comunicação como a “saudade da família”, o trem que os conduziam às minas e a própria iniciativa em se divertir mesmo estando em condições adversas de trabalho. A coerência de sons e ritmo foi amadurecendo e aos poucos transformaram tal ‘comunicação das botas’ em dança. O ambiente de trabalho das minas era um local com pouca infraestrutura para o trabalho, local escuro e com frequentes inundações. Tais condições de trabalhos dadas pelo local e também pelas regras e diretrizes impostas, trabalho excessivo, severas punições, condições desumanas de trabalho (como trabalhar acorrentados e durantes longos períodos sem poder haver comunicação) geram muitas doenças e mortes por acidentes, abusos e punições. As frequentes inundações tornaram-se grandes problemas aos patrões que a perceberam como causa de adoecimento e morte dos funcionários. Tentando controlar tais perdas, os patrões optaram por resolver a situação de uma forma que não envolvesse muitos gastos. Ao invés de drenarem a água das minas, optaram por comprar aos trabalhadores, macacões e botas/galochas que impediam o contato direto da pele com a água. Assim o uniforme dos trabalhadores, que se assemelha ao figuro da dança atualmente, consiste em capacetes, macacão e botas/galochas. Esse uniforme, além de impedir o contato da pele com a água, também impedia um reconhecimento da identidade étnica de cada trabalhador que vinha de diferentes regiões. Com as expressões em suas roupas, tradições e comunicação censuradas os trabalhadores começaram a se expressar fazendo ritmos e batidas com seus corpos, botas e correntes. A expressão pela composição rítmica começou a se desenvolver utilizando os elementos disponíveis no determinado contexto, tais como a percussão corporal, a batida dos pés no chão, batida das mãos nas botas, sons com as correntes e algemas. Tais formas de expressão supriam o que haviam sido censurados, pois colocavam nos ritmos, sua identidade étnica e também os ajudava a desenvolver um diálogo e uma forma de comunicação no local de trabalho.

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Com o passar dos tempos, a dança Gumboot começou a ganhar espaço fora das minas, sendo praticada nas ruas e comunidades como forma de entretenimento. Os patrões, ao perceberem tal dança, vista como forma de entretenimento, viram nela uma oportunidade. Começaram, então, a chamar grupos que dançavam para se apresentarem à visitantes, com o intuito de mostrar as qualidades e boas produções de suas empresas. Entretanto, tal comunicação, músicas e cantos, não eram compreendidos pelos visitantes que apenas apreciavam a beleza da dança, o que dava espaço para as críticas feitas pelos dançarinos. As danças, portanto, zombavam dos patrões e denunciam as péssimas condições de trabalho, comunicando-se às comunidades, mas conseguindo passar pela censura dos patrões e visitantes colonizadores. Tais performances e o alcance que começaram a tomar, levaram a popularizar tal dança. Hoje o Gumboot é dançado tanto na África do Sul como em países ao redor, para onde muitos trabalhadores voltaram quando o trabalho nas minas se encerrou, levando consigo as influências dessa dança e influenciando novos gêneros como, por exemplo, em Moçambique a Dança de Botas e a Makwayela (descrito anteriormente). Hoje em dia encontram-se muitos grupos de dança de Gumboot em diversos festivais pelo no mundo, assim como grupos desse gênero de dança em vários outros países tais como Estados Unidos e Brasil, adaptando-se a danças modernas e outros contextos. Nos Estados Unidos, por exemplo, encontra-se danças que tem sua origem no Gumboot, entretanto recebem outro nome a partir de suas transformações e modernizações. É o caso do Stepping por exemplo. O Stepping foi criado por estudantes universitários afro-americanos. Tal dança envolve o uso do corpo como principal instrumento, batendo os pés, palmas e batendo diferentes partes do corpo, gerando uma composição rítmica com pensamento estético de dança. Os tambores são em muitas culturas africanas e afrodescendentes uma comunicação com o sagrado. Os tambores, como agentes de comunicação, também são usados para a comunicação entre os homens. A questão de ritmos e musicalizações como comunicação também está presente na história do negro no Brasil, pois durante o tráfico negreiro muitos africanos de distintas regiões, culturas e línguas, tinham que conviver, desenvolvendo tal comunicação. Quando as famílias negras chegavam escravizadas ao Brasil, eram separadas pelos brancos, que temiam a organização e a revolta. Mas os sinhôs não

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entendiam que os tambores são nosso laço de união, de comunicação e de ajuntamento. (BATISTA apud SIMOES, 2017 p. 187) O tambor, ou Ngoma em línguas de raízes Bantu, é um elemento essencial na comunicação e união dos negros da história do Brasil. Tal comunicação é feita ritmicamente, onde as células rítmicas, o pulso e os improvisos produzem significados.

[...] ritmo é visto como um meta-princípio, uma explanação pragmática todavia quase-transcendental daquilo que significaria ser negro e que transbordaria por narrativas, discursos e rotinas cotidianas da diáspora Africana. O argumento que aqui sustento endossa a força e a relevância deste fenômeno que é o ritmo, entendido como prática cultural produtora de significado e ferramenta cognitiva na diáspora africana. (TAVARES, 2012, p. 3 apud SIMÕES, 2017, p. 190)

No Brasil o grupo Gumboot Dance Brasil cria seus espetáculos a partir de pesquisas feitas com a dança Gumboot da África do Sul, e desenvolve suas coreografias e oficinas em São Paulo. No Gumboot Dance sul-africano encontramos conceitos que interessam ao trabalho do ator com máscaras e à pesquisa que vem se desenvolvendo no doutorado “A máscara Mapiko: entre identidades e alteridades”. Identifica-se conceitos tais como a polirritmia e a articulação corporal, além do próprio desenho das danças culturais de trabalho e com a utilização de objetos cotidianos. Por ser uma dança percussiva trabalha necessariamente com o domínio rítmico de seus dançarinos que não só dançam, mas também tocam a própria música dançada. O instrumento tocado são os objetos da vida cotidiana, nesse caso as galochas/botas, e seu próprio corpo. Acredita-se para a atual pesquisa que a possibilidade do contato com tal dança durante o Estágio de Pesquisa no Exterior desenvolve para além do já descrito, o trabalho com a percepção, atenção e estado presente, assim como a improvisação e a construção rítmica de sentido. A seguir, apresenta-se imagens coletadas a partir do trabalho de campo na África do Sul, especificamente grupos em Johanesburgo e Cape Town e imagens de aulas de dança, onde tive a oportunidade de experienciar tais movimentos, células rítmicas e expressões em meu próprio corpo.

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256Imagens do grupo Isizwe gumboots dancers. África do Sul. Fonte: Foto da autora, 2018.

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Aulas de Dança Gumboot / Dança de Botas

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257 Aula de Gumboot Dance/ Dança de botas, com professora Maria José. Companhia Nacional de Canto e Dança. Moçambique. Fonte: Fotos da autora, 2018.

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258 Aula de Goombot Dance, com professora Maria José. Companhia Nacional de Canto e Dança. Moçambique. Fonte: Fotos da autora, 2018.

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Entrevistas realizadas

Foram entrevistados artistas da cidade de Maputo (atores/atrizes, dançarinos/dançarinas, coreógrafos/coreógrafas, professores/professora, cenógrafos/mascareiros, produtoras, diretores/diretoras e estudantes de artes) de distintos grupos de teatro e dança da cidade entre eles Mutumbela Gogo, Gungu, grupo Massacre de Mueda, Associação Cultural Wuchene, Companhia Nacional de Canto e Dança, Escola de Arte da Universidade Eduardo Mondlane, Associação Cultural Hodi, Grupo de Teatro Girassol, Centro do Teatro do Oprimido Maputo, Teatro em Casa e Fundação Fernando Leite Couto. As entrevistas geraram um material de audiovisual (Documentário Ka Mimbangu – A Cena Moçambicana: entre Tradições e Contemporaneidades, co- produção com Rafael Augusto – Simbiose Films) que acompanha a tese. Tais entrevistas e o curto documentário visam abordar o estado da arte em Maputo no que diz respeito principalmente Teatro e Dança, sua história, suas produções atuais e a relação de tais artes com a contemporaneidade e a tradição. Tais materiais contaram com as vozes de Alfredo Semo e Adelino Branquinho do Mutumbela Gogo, Armenio Matavele do Teatro Gungu, Assane Cassimo do Teatro em Casa, Atanásio Nhussi, Moises Abel e Mauricio Nangonga do Grupo Massacre de Mueda, Dawa Mafunga, Lindo Cuna, Boaventura Machavele e Tomás Melisse da Companhia Nacional de Canto e Dança, Helio Atmanne, Maria Clotilde, Vitor Gonçalves, Arminda Reis e Dadivo José da Escola de Comunicações e Artes da Universidade Eduardo Mondlane, Joaquim Matavel do Grupo de Teatro Girassol, Judith Novela e Eugenio Joaquim da Associação Cultural Hodi, Mario Macuvele da Associação Cultiral Wuchene, Rita Couto da Fundação Fernando Leite Couto, Venancio Calixto do grupo de teatro Khuhlanganyeta e Zainá Rajá e Alvim Cossa do Grupo de Teatro do Oprimido de Maputo. David Abilio Mondlane, Estreanty, Mariana Tembe e Felix Mambucho. Vale ressaltar a pluralidade de entrevistados desde estudantes de teatro e dança, grupos jovens a grupos renomados e conhecidos em Maputo, buscando grupos sediados em Maputo cidade e eu suas zonas periféricas.

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Oficinas ministradas

As oficinas oferecidas durante o Estágio de Pesquisa no Exterior foram elaboradas a partir de exercícios e procedimentos desenvolvidos ao longo da pesquisa. Os exercícios buscam explorar formas do ‘mascaramento decolonial’, levando como referência para o ato de mascarar-se experiências populares brasileiras e danças e máscaras africanas, sobretudo o Mapiko, principal referência para o desenvolvimento de tal pesquisa. Anteriormente ao Estágio de Pesquisa no Exterior a autora já havia experienciado tais exercícios e a elaboração e desenvolvimento deles vem se desenrolando no fluxo de pesquisas com grupo de pesquisa, com ensaios solos, e oficinas ministradas no Brasil. O ponto de partida para tal provocação de desenvolvimento do ‘mascaramento decolonial’ para atores, veio do contato e pesquisa que realizei em 2014 durante o mestrado em Moçambique com o projeto intitulado “A Máscara Mapiko: apropriação técnica, simbólica e criativa da máscara.” (Financiado pela FAPESP). Portanto um dos objetivos de tal estágio de pesquisa era estabelecer uma troca e poder experienciar os exercícios e procedimentos com atores e dançarinos moçambicanos. Para tal troca Brasil-Moçambique, a autora confeccionou, ainda no Brasil, máscaras específicas para a realização dessas oficinas. Tais máscaras buscavam uma pesquisa de confecção que foi nomeada confecção do ‘entre-lugares’, buscando dialogar referências e materiais tanto brasileiros como africanos.

Confecção do entre – lugares

O intuito da pesquisa era buscar referências africanas, provindas tanto das máscaras trazidas pela autora quando realizou pesquisa em Moçambique e no Senegal, assim como imagens de máscaras, tendo como referências livros de arte africana ou de máscaras pelo mundo, assim como imagens de máscaras de Mapiko, dialogando tais imagens com máscaras provenientes das festas populares brasileiras, tais como o Cazumbá do Bumba-Meu-Boi, Cavalo Marinho, Folia de Reis e máscaras indígenas. Especificamente para tais máscaras, foram utilizados tecidos, linhas e

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arames, buscando material com aparência rústicas, resistência e facilidade para transporte. Tais máscaras utilizadas nas oficinas realizadas em Moçambique foram realizadas juntamente com a artista plástica Roselene Scarpelli e auxiliada por Carolina Portella. As imagens a seguir mostram partes desse processo de produção das máscaras que foram levadas ao Estágio de Pesquisa no Exterior. O processo de confecção apropriou-se durante tal Estágio e a pesquisa de confecção do entre- lugares continua.

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259 Máscaras. Fonte: Foto da autora, 2018.

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260 Máscaras, processo de confecção. Fonte: Montagem da autora, 2018.

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261 Máscaras, processo de confecção. Montagem da autora, 2018.

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Máscaras de Linha

Tais máscaras foram confeccionadas para o solo mascarar-se apresentado na qualificação de doutorado da atual pesquisa “A Máscara Mapiko: entre identidades e alteridades”. Foram levadas para serem experienciadas nas oficinas “Máscaras e ancestralidade” promovidas no presente Estágio de Pesquisa no Exterior em Maputo - Moçambique. Foram confeccionadas buscando não definir bem as formas do rosto, mas sim sugeri-las. Os modos de confecção buscavam uma transparência, onde o rosto do ator/dançarino possa ser visto também como sugestão. Elas foram confeccionadas com estrutura de arame e preenchida com linhas.

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262 Máscaras, processo de confecção. Fonte: Montagem da autora, 2018.

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Descrição das oficinas

A OFICINA COM GRUPO DE DANÇA DA ASSOCIAÇÃO CULTURAL HODI aconteceu no dia 7 de novembro de 2018 às 15h e tínhamos até às 17h, na Universidade Politécnica em Maputo, Moçambique. Ao fundo da universidade, um palco e uma grande sala onde o grupo de dança da Associação ensaia todos os dias nesse mesmo horário. Lá chegamos, dançarines, como de costume, se trocam e começam a alongar o corpo, os músicos se posicionam no palco com os instrumentos e ligam luz de cena para afinar os tambores. Tambores e corpos ligeiramente aquecidos, começamos. Após nos apresentarmos, introduzo a proposta do encontro: experimentar juntes com máscaras. Propus exercícios específicos até chegarmos a utilizá-las. Iniciamos com AQUECIMENTO DO PÉ AO PÉ. Durante esse início conduzi uma narrativa a partir dos nossos pés, enquanto uma ligação entre a terra e o nosso corpo, que fosse subindo pela perna indo passando pela coluna até a cabeça e depois voltando ao chão pelo caminho inverso sendo devolvida a terra, agora energia transformada. A ação variava em tempo, ritmo, intensidade, formas e planos. A exploração começava por um pé e terminar por outro, percorrendo todo o corpo nesse trajeto. Depois, com várias capulanas ao centro, era pedido que cada integrante escolhesse uma e que dançasse com ela. DANÇA PESSOAL, CAPULANA263, IDENTIDADE. Para se apropriarem e improvisar com o corpo a partir de cores, formas, texturas, tamanhos, volume e etc. Conforme fomos entendendo a dinâmica, propus comandos com objetivo de exploração do tecido no próprio corpo. Durante todo o processo pesquisaram as improvisações ao som de Barbatuques Barbapapa’s Groove264, músicos e bailarinos improvisaram simultaneamente. Contagiados pelas séries rítmicas de improvisações que havíamos acabado explorar, avançamos para NGOMA DA CORDA, que consistia em pular ritmicamente a corda. Podíamos saltar quantas vezes e pessoas quisessem, mas devíamos acompanhar a musicalidade que era composta a partir da batida da corda, dos pés no

263 Capulana é uma palavra de origem Tsonga e é o nome que se dá ao tecido em Moçambique. Tecido utilizado pelas mulheres para amarrar na cintura e colocar na cabeça, mas também, para muitas outras funções. Tecido que acompanha tradições, impregnando memórias ao serem oferecidos em datas comemorativas. 264 Grupo brasileiro que trabalha com percussão corporal.

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chão, a percussão corporal, a vocalização dos participantes e claramente, com os músicos que estiveram conosco muito atenciosos as propostas. Depois dessa livre pesquisa, convidei-os a uma escuta sensível para fazermos uma espécie de “espetáculo” ou “composição musical”, todos(as) juntos(as) partindo dos estímulos encontrados. Era preciso atenção para que houvesse um ápice no início e um fim onde fosse reconhecido coletivamente como um final. Nesse momento a atenção e a escuta melhoraram, talvez por uma dinâmica que o grupo está acostumado a trabalhar e por termos uma discreta liderança na improvisação, vinda do coreógrafo da companhia que também é dançarino e estava mergulhado na proposta da oficina junto com os atores.

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Terminado esse momento propus dividir uma dança brasileira. A proposta dessa partilhar tinha por intuito descentralizar minhas referências (Brasil) em troca com outro corpo (Moçambique) e tentar assim se aproximar do que estou chamando dessa mistura e entre lugares que as máscaras trazidas para a oficina exploram, escolhi compartilhar o MACULELÊ como proposta. Comecei contando a história do Maculelê266. Compartilhei também como se toca os tambores e um canto para que pudemos cantar e dançar juntos.

265 Fonte: Foto da autora, 2018. 266 Tradição popular brasileira que através da dança, canto e música narra a lenda de um jovem guerreiro, que sozinho e utilizando apenas dois pedaços de pau, consegue se defender uma tribo toda do ataque de uma tribo rival.

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O Sr dono da casa Nós viemo aqui lhe ver Nós viemos perguntar como passa vosmicê Como é seu nome? É maculelê De onde veio? É maculelê De santo amaro É maculelê Como é o nome? É maculelê De onde vem? É maculelê (Domínio Público)

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Em seguida, expliquei um passo base do Maculelê para entenderem a dinâmica e podermos brincar depois, improvisando e jogando com essas bases. A criação e as improvisações apareceriam sem dificuldade. Era guerra, era forte ao mesmo tempo em que nos divertimos sem deixar a energia pesar.

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Quando chegamos na MIMESE DOS BATIQUES269 os corpos encontravam- se aquecidos, conectados consigo e entre eles. Propus para que fizéssemos um círculo com alguns batiques trazidos de Moçambique em 2014 e já utilizados por atores e dançarinos brasileiros em experimentos dos exercícios antes de tal estágio. Batiques que já viajaram de Moçambique para o Brasil e agora do Brasil para

267 Partitura rítmica Maculelê. Fonte: COLARES; PAIVA, 2016. 268 Batiques. Fonte: Foto da autora, 2018. 269 Batique - Técnica de estampa em tecido com aplicação de cera derretida e tingimento. Muito comum em moçambique, trazendo imagens, em sua maioria, de ações cotidianas.

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Moçambique. Andamos pelo espaço interior do grande círculo de batiques e foi pedido para que cada um escolhesse 1 imagem, consequentemente, a figura representada nela. Então que se esculpisse tal figura no corpo, experimentando seu formato de coluna, a posição das mãos e pés daquela fotografia. Após desenhados era necessário agora projetar o peso, adivinhar e/ou inventar onde eram as tensões da figura e depois buscar seu deslocamento pelo espaço. Como ela anda? Qual seu ritmo? Como olha o mundo? O que vem antes de tal foto e depois de tal foto? Assim criamos uma sequência de três momentos (antes e o depois da foto). Explorados isso fizemos duplas e mostramos aos demais participantes nossa figura e a sequência de momentos. Fizemos tal mostra com máscaras de capulana cobrindo nosso rosto. A ideia é que MÁSCARA DE CAPULANA exija do corpo maior expressividade, apesar de que com o grupo em questão ter percebido corpos já com essa qualidade exteriorizada. Cada mascarado tinha um “salva-vidas” ou “segurança”, como chamávamos o participante que fica no auxílio e proteção do artista pesquisador, com o intuito de evitar que se machucassem já que a visão é limitada dentro da máscara de tecido. Aos músicos foi pedido que buscassem explorar a sincronia com a máscara, buscando seguir seus movimentos como no Mapiko.

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270 Fonte: Foto da autora, 2018.

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271 Fonte: Foto da autora, 2018.

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Passei algumas indicações técnicas das MÁSCARAS com relação ao ajuste no rosto, o uso de espumas e capulanas nas costas da cabeça. Disse ainda que ela precisa de mais movimento para olhar já que não é o mesmo que do o nosso, também sobre o cuidado com a inclinação pois às vezes a máscara pode parecer ficar olhando o céu enquanto o pesquisador acha que está olhando para a frente. Sugeri que cada um escolhesse e fosse escolhido por uma máscara, que a olhasse como num espelho se questionando: que corpo que tem, seu peso e ritmo. Após uma breve exploração propus que 4 dançarinos fossem ao fundo e entrassem um por um enquanto os demais estavam na plateia para assistir. Aos músicos foi pedido parecido com o trabalho anterior das máscaras de capulana, mas agora que tentassem criar uma ambiência e outros que tocassem juntamente com cada movimento da máscara, criando com ela o sentido de cada movimento.

272 Fonte: Foto da autora.

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273 A exploração foi muito interessante, brincamos de contratar figuras e suas atuações para uma entrevista de emprego. Desta forma estabelecemos a dinâmica de que a máscara deveria andar e mostrar algo que soubesse fazer. A maioria se identificou com dança e combinavam o andar com a figura explorada. Muitos dançavam, fazia a tal pirueta ou salto e eram poucos os que saiam da figura para dançar e depois voltavam.

A plateia me ajudava com perguntas e colocações, principalmente o coreógrafo. Tentei passar essa possibilidade de intervenção aos outros perguntando o que achavam e isso atingiu o encontro com trocas e orientações entre eles. Detalhe para a máscara amarela e marrom que num momento parecia mais desconfiado com movimento mais sinuosos e com outro corpo parecia mais simpático e tolo com o corpo forte e solto.

A máscara azul, que trazia em sua estrutura de confecção uma máscara de Kwele explorada com o grupo de pesquisa, mesmo com essa nova pintura e traços propunha para os que a vestiam como primeira exploração, intuitivamente, um corpo pesado e com as mãos soltas a balançar, do mesmo modo que as máscaras de Kwele sugeriam aos atores no Brasil. Nas explorações iniciais, vi uma menina até bater nos peitos como um gorila, abordagem que também acontecia ao explorarmos a máscara que tal figura foi inspirada.

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273 Fonte: Foto da autora, 2018. 274 Fonte: Foto da autora, 2018.

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Para finalizar, uma CIRANDA com tradições e as musicalidades brasileiras. Compartilhei um pouco de sua cultura276, do coletivo e do sentido da roda. Mostrei o passo simples da ciranda em grande roda, aprendemos a cantar e tocar juntos.

O cirandeiro! cirandeiro oh! A pedra do teu anel brilha mais do que o sol (Domínio Público)

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275 Fonte: Foto da autora, 2018. 276 Ciranda é um coletivo em roda, sendo ela em sentido anti-horário aquela que volta ao passado, aos ancestrai. E a ciranda em sentido horário a que caminha para o futuro. 277 Partitura rítmica da Ciranda. Fonte: (COLARES; PAIVA, 2016)

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Então improvisamos a partir da música ‘Cirandeiro’ em uma versão de Edu Lobo e Maria Bethânia, onde há o refrão e depois três trechos de canto solo. Durante o refrão, estávamos todos a dançar ciranda e cantar. Durante os trechos solos foi pedido que 3, depois 3 novamente, depois os 2 dançarinos entrassem na roda e improvisassem mascarados, podendo resgatar a dança pessoal com tecido capulana identidade, os passos e jogo do Maculelê, as ações dos batiques e/ou as ações cotidianas das máscaras. A roda no momento da improvisação abaixava e voltava todo em pé, dançando ciranda no momento dos refrãos. A improvisação livre em pequenos grupos ao centro ficou uma pouco confusa. Talvez pelo espaço pequeno para três máscaras, talvez pela pouca visibilidade de um para com o outro, talvez por não definirmos uma frente. Talvez se tivéssemos definido uma frente e entrado um de cada vez a jogar com o outro, estivesse sido melhor. Entretanto foi de suma importância observar que na improvisação livre os participantes utilizaram diferentes estímulos. Máscaras dançaram Maculelê, outras com tecido, outras fizeram ações. A maioria dançou com elas. E o mais importante: estavam livres, explorando, vivendo suas criações e se divertindo com elas. Acredito que ao divertir-se com elas, cria-se um campo maior de conexão e escuta de ambas. Um fluxo é permitido. Os comentários finais foram positivos. O interesse em especial pelo Maculelê foi tamanho que um dos meninos ficou apelidado de “Maculelê Moçambicano”. Também foi dito que a condução foi como uma aula, onde aprenderam coisas novas e esperam usar nos próximos trabalhos. O diretor da Companhia que não participou praticamente mas assistiu e registrou, me perguntar se as conversas com as máscaras fazem parte de um espetáculo. Expliquei era tudo um jogo de improvisação. As perguntas e provocações são feitas para auxiliar a exploração de cada máscara e cada uma é uma surpresa, pois não sabemos que corpo vai vir. Tudo depende do encontro de quem vesti e da própria máscara. Qual conversa e caminhos vão traçar juntos. O coreógrafo gostou da experiência, pois o que tem de experiência com máscaras vem do Mapiko que é o único a dançar, normalmente quem pode dançar é um músico que é Maconde. Revela que ele se aventurou com o Mapiko, mas que muitos nunca tinham tido a experiência de experimentar o ato de mascarar-se e vivê- las, e por uma abordagem diferente e criativa.

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Ao final, encerramos nossa oficina sem muito mais tempo para conversar, mas com muito material e reflexões. Foi uma ótima e proveitosa troca.

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278 Fonte: Foto da autora, 2018.

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Dia 8 de novembro de 2018 ministrei a OFICINA COM CTO - GRUPO TEATRO DO OPRIMIDO DE MAPUTO na feira de Hulene. Cheguei mais cedo para conhecer o espaço e conversar com a produção. Está localizado em uma zona periférica de Maputo e dispõem de uma ótima estrutura para trabalho. Um grande palco no meio da praça e ao lado um grande espaço do grupo CTO, salas de escritório, uma sala menor de ensaio e um grande salão com arquibancadas. Um espaço em obras para outras salas de ensaios e aulas. Sou muito bem recebida e me apresentam todo ambiente, em seguida vamos para a grande sala com arquibancadas, território destinado para a realização da oficina. Os participantes da oficina aos poucos vão chegando. Há quem vem de longe e avisam que demoram um pouco a chegar. Enquanto aguardamos conversamos e o diretor a tocar Djembe279. Uma mãe com um bebê chega para participar da oficina, amarra-o nas costas antes de começarmos e segue para o círculo ao centro para darmos início quando todos chegam. Apenas eu estranho tal ação de fazer a oficina com o bebê nas costas, os outros agem com naturalidade. Penso que talvez ela não imagine que a oficina seja muito física, enfim... começamos. Eu não comento e deixo que ela dose seus limites, mas daria a oficina que havia planejado com os exercícios com muita fisicalidade. Nos apresentamos e proponho uma série de exercícios. Digo para realizarmos o AQUECIMENTO DO PÉ AO PÉ encaminho como fio condutor a relação energética entre chão e corpo, da terra tudo sai e para ela tudo volta - começando por um pé e finalizando no outro. Cada um à sua maneira, seu corpo e suas necessidades realizam-o forma tímida, ao constatar como um alongamento de cada articulação e sem pensamento estético (como os bailarinos do grupo Hodi apresentavam), mas como mergulho de percepção em cada parte do corpo. Em seguida, com as capulanas postas no centro pedi que cada um pegasse a sua IDENTIDADE CAPULANA e dançasse suas formas e cores. Se relacionaram livremente com as capulanas, cada a sua maneira. Vesti-la, abraçar e ser abraçado, girá-la no espaço, mexendo seu corpo e explorando níveis. Estavam todos(as) super disponíveis para a descoberta de possibilidade com o tecido. A investigação era feita ao som do Barbatuques Barbapapa’s groove. Influenciados pela música que

279 Também chamado de djimbe, jembe, jenbe, yembe e sanbanyi é originário de Guiné na África ocidental.O djembê é um instrumento musical de percussão (membranofone) que possui o corpo em forma de cálice e a pele tensionada na parte mais larga, que pode variar de 30 a 40 cm de diâmetro.

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acabávamos de escutar, propus a prática da NGOMA DA CORDA. Tendo como base a percussão corporal, pedi que fizessem uma composição musical. Os mais ligados no som, começam a pular a corda e realizá-los, entre muitas palmas e vocalizações. Os sons eram nossa comunicação e como de costume, levou um tempo para afinar o coletivo. Primeiramente, muitas propostas e o caos sonoro, depois ajustamos as ideias, deixando sons mais uniforme e a escuta ativo de um ao outro. Buscando um final para a composição musical, todos entram na corda que estava em movimento até então e agora se encontra como uma ‘cobra’ ao chão, pulando de diferentes maneiras como amarelinha e com pés cruzados. O fim se dava em movimento coletivo-individualizado, cada um à sua maneira e no silêncio.

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Compartilho a história de MACULELÊ, ensino os passos básicos e a música para que pudéssemos cantar e dançar juntos.

O Sr dono da casa Nós viemo aqui lhe ver Nós viemos perguntar como passa vosmicê Como é seu nome? É maculelê De onde veio? É maculelê De santo amaro É maculelê

280 Fonte: Foto da autora, 2018.

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Como é o nome? É maculelê De onde vem? É maculelê (Domínio Público)

Dançamos, jogamos e brincamos um pouco de Maculelê. Todos jogavam e se divertiam com muita disponibilidade. A todo momento os participantes iam até as suas folhas desenhar e/ou escrever anotações, registrando principalmente entre um exercício e outro. Andamos ao centro do círculo formado pelos BATIQUES com a orientação de passagem entre outros dois participantes. Cada um escolhe seu batique e propõe-se que criem uma MIMESE ao vestir com o corpo sua forma, seu deslocamento, seu peso, ritmo, modo de andar e olhar, etc. Exploram personagens como de costume, pois o grupo é formado por fazedores de teatro. Então, peço que pensem uma pequena sequência, de um momento antes e outro depois daquela foto, cada um cria o seu.

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281 Fonte: Fotos da autora, 2018.

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Em duplas cada com sua capulana e a sua dupla para acompanhar caso fosse necessário, assistindo o que a figura fazia. Cada qual realizou 1 sequência de ações com máscaras de capulana. As duplas trocam e todos tem a experiência de vivenciar e assistir aos corpos dilatados no tempo e espaço.

A sensação que dá ao ver as imagens em movimento ao cobrimos o rosto é que há dilatação do espaço ao expandirem o corpo, ao se comunicarem sem expressão facial e no tempo que produz um estado de calma, que pode ser gerado pela máscara de capulana, pelo fato de não traços expressivos, por receber de menos estímulos, pela dificuldade de visão (que também gera um dilatar do corpo) e pela dificuldade de respiração. 282

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282 Fonte: Foto da autora, 2018. 283 Fonte: Foto da autora, 2018.

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Em seguida, apresentei AS MÁSCARAS. Indiquei que olhassem como nossos olhos através da máscara para que percebessem que estariam escondidos, sendo assim, era necessário mexer todo o rosto (sempre dou essa indicação depois de ver uma máscara em cena no espetáculo Mar Me Quer do Grupo de Teatro Girassol que estava posta a cabeça do ator, mas sem a preocupação de para onde ela olhava).

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Expliquei a utilização das capulanas como suporte para a máscara e as espumas caso necessário. Então, duplas são formamos e enquanto 1 vestia e o outro auxiliava em uma primeira exploração. Como esse rosto se move? Como anda? Como age e reage? Então, separamos as figuras e preparou-se as entradas. Uma por uma entrava e íamos conduzindo como em uma entrevista de emprego, estabelecendo um diálogo com ela, que sem produzir som ou fala, conversava e respondia nossas perguntas.

284 Fonte: Fotos da autora, 2018.

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Os participantes rapidamente começam a provocar o jogo com impressões, perguntas e provocações muito úteis para a investigação da máscara. Seguimos conhecendo cada figura, algumas tinham necessidade de responder com mímica, depois pedíamos para passar para o corpo o que queriam dizer e faziam. Outras ficam mais no estado presente do adereço mesmo sem muitas ações. Outras ainda, estavam tão vivas que podíamos até saber sem dúvidas o que estavam pensando ou querendo dizer. Foi uma exploração extremamente divertida.

Voltamos as duplas e cada dupla deveria explorar livremente as MÁSCARAS, SUAS AÇÕES E SONS. Realizam uma ação simples e o outro da dupla tenta sonorizar, onde pontua os movimentos e acompanhando os silêncios.

Exercício do CORO foi realizado coletivamente com intuito de entrarmos em sintonia para realizar a dança coletiva com as máscaras. Primeiro compartilhei sua lógica, onde todos deviam realizar movimentos juntos, sendo guiados por quem está a frente e trocando o líder. Entretanto a liderança deveria realizar movimentos suaves para ser imperceptível quem estava comandando. Depois coloquei uma música e os deixei explorarem livremente.

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285 Fonte: Foto da autora.

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286 Fonte: Fotos da autora, 2018.

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Nos dividimos em 3 grupos e cada 1 criou uma sequência COREOGRÁFICA PARA A CIRANDA. Cada grupo teve que criar uma série de movimentos coletivos para realização do próximo exercício. Compartilhei sobre a dança popular brasileira, seu passo básico e a canção.

O cirandeiro! cirandeiro oh! A pedra do teu anel brilha mais do que o sol” (Domínio Público)

Expliquei o sentido da roda que vai para o futuro (sentido horário) e a roda que vai ao passado (sentido anti-horário). Depois, dançamos e deixei livre para saber se íamos ao futuro ou passado. Fomos coletivamente ao passado (sentido anti- horário). Lobo e Maria Bethânia, onde há o refrão e depois três trechos de canto solo. Durante o refrão, todos dançam e cantam. Durante os trechos com solos de cada grupo foi solicitado, realizando a coreografia, enquanto quem estava na roda ajudava com a percussão pontuando movimentos de quem dançava. A maior problemática foi a visão limitada com máscaras que dificultavam a realização da coreografia. O corpo, a visão e a lógica mudam e a coreografia pensada consequentemente se altera também, interessante notar as modificações.

287 Fonte: Foto da autora, 2018.

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A gravação era mais lenta do que a coreografia que cada grupo pedia, assim sendo o ritmo da roda ajuda para a coreografia acontecer. Finalizamos com o último refrão de mãos dadas, dançando e cantando a ciranda. A mãe com o bebê participou de toda a oficina, mesmo ao pular corda, na exploração com as máscaras, no Maculelê e no exercício do coro. O bebê estava amarrado e realizava todas as ações junto a ela. Às vezes olhando tudo, às vezes mamando outra hora dormiu e ela o colocou deitado, mas logo acordou e voltou aos exercícios. Quando a mãe ia apresentar a cena de forma mais individual ele ficou na plateia a assistir atento. Com apenas oito meses, acompanhou toda a oficina. Grande incentivo à mãe que estava nascendo dentro de mim. Eu com um bebê na barriga e ela com um bebê no colo. A oficina e as trocas foram muito interessantes e com grande disponibilidade e entrega. A maioria atores que trabalham como formadores de grupos de Teatro do Oprimido. Pessoas que se conhecem, porém, não tenham um coletivo com atuação constante, por esse motivo, era necessário ter paciência nos exercícios com escuta, até que afinados se entenderam coletivamente. Finalizamos com uma conversa onde tomou a voz sensações, debates, perguntas, entendimentos e etc.

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288 Fonte: Foto da autora, 2018.

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A oficina com GRUPO TEATRO GIRASSOL aconteceu no dia 9 de novembro de 2018, das 17:00 às 19:30 no espaço Teatro Cine Gil Vicente. Antes de ministrar a oficina tive a oportunidade de entrevistar o encenador do grupo, Joaquim Matavel. A oficina estava prevista para acontecer no palco do Teatro Gil Vicente. Porém, ao chegarmos no espaço fomos surpreendidos por um ensaio. Tivemos, então, que alterar os planos e realizarmos no espaço externo ao teatro.

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Adaptamos com luzes cênicas, visto que estava para anoitecer, com espaço cênico preparado esperamos os participantes chegarem e demos início ao trabalho. O grupo era composto por um grupo de jovens e pelo elenco do Teatro Girassol. Os jovens com muita energia e disponibilidade em contrapartida, muito dispersos. O excesso de conversa exigiu que a todo momento lhes pedisse foco e buscasse estratégia para que não dispersassem. Entretanto acredito que o caráter de brincadeira de jogo no melhor sentido que aconteceu durante os exercícios, principalmente no MACULELÊ e na GNOMA DA CORDA que foram frutos da jovialidade, vontade excessiva de fazer as práticas, a curiosidade ao aprender algo novo e aproveitar cada proposta. Nos apresentamos brevemente, falando nome cada integrante em seguida explico o AQUECIMENTO DO PÉ AO PÉ. Construo em seus imaginários o caminho

289 Fonte: Foto da autora, 2018.

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para visualização da terra com o pé, da ancestralidade presente enquanto vamos acionando nosso instrumento de trabalho com energia cíclica. Com foco em dissolver a ansiedade do curto tempo, percebo que interrompi o exercício brevemente, sem dar tempo o suficiente para a experimentação do fluxo de energia. Tomada tal consciência nas próximas oficinas, darei mais tempo para o desenvolvimento do exercício. Proponho também iniciar de forma mais coletiva, para que se sintam mais à vontade antes da pesquisa individual. Talvez por serem fazedores de teatro ficaram mais concentrados nos seus próprios corpos e no trajeto introspectivo da energia, num fluxo completamente contrário o que difere de dançarinos, que dão maior ênfase na proposta estética. No exercício TECIDO, IDENTIDADE e CAPULANA, o número de participantes excedeu o de tecidos disponíveis, o que acarretou em novas possibilidades de dança, agora em dupla. Assim trabalhamos não apenas as diversas características do tecido, como também propostas de jogo. Inicialmente, espelhando um ao outro e em seguida propondo e reagindo.

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290 Fonte: Foto da autora, 2018.

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A proposta de comunicação com a CORDA primeiramente virou uma grande brincadeira e levou certo tempo para se transformar em outra coisa. A diversão fez com que se sentissem mais à vontade à livre exploração. Partindo da brincadeira, introduzo o conceito da composição cênica e musical entre os corpos e a corda. Com isso, houve maior escuta entre ritmo proposto corporalmente e os diferentes modos de bater a corda. Solicitei que encontrassem um final juntos e que o correu em alta energia, com pequena liderança boa escuta coletiva. Apresento aos integrantes o MACULELÊ, que acontece sem muita precisão de movimentos. Foi dada maior importância a vivência da história, a energia, a dinâmica da roda e o jogo entre as duplas ao centro. A canção (descritas nas oficinas anteriores) foi compartilhada e não houve exigência com relação aos passos e as habilidades de dança dos integrantes. Primeiramente, construímos o círculo de BATIQUES. Depois nos concentramos e colocamos a energia dentro do círculo. Silenciando os comentários e a dispersão da atenção. Solicitei que caminhassem pelo espaço. Em seguida era preciso que observassem os batiques e os imprimissem em seu corpo, buscando expressar seu movimento, peso, tensões, comportamentos, ritmos, etc. Feito isto, fui cobrindo os rostos de alguns participantes com um tecido fino, onde podiam enxergar razoavelmente. Os outros, com rostos descobertos, pararam para observar. Com rostos cobertos, os corpos se dilatam. O mascaramento com tecidos gerou um estado

291 Fonte: Foto da autora, 2018.

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de calma, aumentando a percepção tanto em quem vestia como em quem observava. Realizaram então uma pequena continuação da foto. Em seguida, invertemos os participantes para que todos experimentassem o vestir e o observar, construindo propostas livres de MIMESE.

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Influenciada pelas conversas do dia anterior nos debates pós oficina ao CTO, resolvi testar e propor um novo exercício MÁSCARAS SURPRESAS A DANÇAR. Solicitei que se dividissem em três grupos e criassem uma pequena coreografia, podendo ser composta por de passos de dança e ações ritmadas. Determinei um tempo para a criação e no momento da apresentação mascarei cada integrante do grupo. Eles vestiram sem olhar o próprio rosto que teriam. Realizam a coreografia aos sons de pandeiro e flauta, tocados por dois atores da oficina. Foi interessante notar que mesmo sem o estudo anterior da máscara. Elas se encaixaram com ritmo, que a dança expande os movimentos e assim, ocasiona em um corpo projetado no espaço. Após a apresentação, os integrantes puderam olhar a máscara que haviam vestido e esse contato e a seguido de risadas e comentários, sempre surpresos.

292 Fonte: Foto da autora, 2018.

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Em seguida ao primeiro contato com AS MÁSCARAS. Explicação sobre a posição no rosto e o eixo dos olhos, pontuei que são técnicas para cada pessoa, assim como cada mascarado, tem seu modo de andar e seu corpo. A partir disso exploramos como cada máscara se move e como é para cada corpo as diferentes possibilidades que cada máscara traz em si. Depois de explorarmos, fizemos um exercício em que cada mascarado entra no espaço cênico. Um por vez em cena, conversamos com quem surge e pouco a pouco os participantes passaram a ter ideias e propostas também. Conhecemos as máscaras ao mesmo tempo em que auxiliamos mascarados

293 Fonte: Fotos da autora, 2018.

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a conhecê-las. Inicialmente tiveram o impulso de falar com as mãos, como mímica. Intervi pedindo que falassem com o corpo. Foi uma exploração interessante, porém de difícil diálogo. As condições eram adversas devido a dispersão dos jovens, pelo espaço adaptado, horário e o vento que já estava forte e fazia frio. Em seguida, por falta de tempo, fizemos somente a CIRANDA a cantar, sem estrutura com três improvisações.

O cirandeiro! cirandeiro oh! A pedra do teu anel brilha mais do que o sol (Domínio Público)

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Na conversa FINAL os jovens disseram que se sentiram à vontade para jogar, criar e descobrir coisas novas devido à simplicidade da condução. O elenco do Teatro Girassol disse que a simplicidade e generosidade ajudam na didática. Que o teatro em Moçambique explora as expressões e a fala, diferentemente do trabalho que fizera naquela tarde. Uma participante comentou gostar de conhecer as danças e músicas brasileiras pois se sentiu um pouco no Brasil. O que indica a aproximação entre- lugares.

294 Fonte: Foto da autora, 2018.

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Outro participante já havia dançado Nhyau e comentou que as máscaras eram diferentes. Por estar acostumado com Nhyau se impressionou com a leveza das máscaras ao vesti-las e também comentou, de suas aparências estéticas que segundo ele eram muito “feias” (palavra utilizada pelo participante).

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295 Fonte: Foto da autora, 2018.

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A oficina com o GRUPO DE TEATRO KHUHLANGANYETA aconteceu no dia 11 de novembro de 2018, das 14 horas às 17 horas. Em um domingo de sol e muito calor, utilizo uma txopela296, até o encontro com o ator Venâncio Calisto. Pegamos um chapa até a zona T3 e depois outro até Khongolete297. Chegamos em Khongolote e encontramos um espaço amplo e aberto com grandes pedaços de terra, casas distantes umas das outras. Andamos pela beira da estrada até um grande aparentemente infinito terreno. Andamos e continuamos debaixo do sol quente e o clima seco. Chegamos a um grande portão que levava a um grande espaço: espaço da igreja Santa Maria de Khongolote. No centro, uma árvore. À direita uma igreja, à esquerda pequenas salas e ao fundo um galpão, onde a oficina aconteceria. Antes do início e debaixo da árvore central, entrevisto o ator Venâncio Calisto. Enquanto os participantes chegavam e se preparavam. O grupo é composto majoritariamente por jovens entre 20 e 25 anos. Distribuo no início folhas em branco e canetas para cada integrante e explico que teriam o papel disponível para traçarem o que quisessem no decorrer da oficina, registrar ideias, imagens, sensações, etc. Tais relatos me disponibilizaram maior percepção do alcance dos exercícios propostos, uma vez que traziam sensações e pensamentos dos integrantes no decorrer do processo. Esse recurso fluiu bem especialmente nessa turma, acredito que pelo perfil de pesquisa dos integrantes. Com base nas reflexões que fiz sobre as outras oficinas, a condução do encontro foi maleável ao ser mais resiliente com a ordem dos exercícios apresentados. Demos início com o compartilhar do COCO298. Explico o passo, sua origem, compartilho a variação de três tipos de passos e ensino uma canção.

296 Txopela - triciclo motorizado com cabine para transporte de passageiros. Utilizado como táxi em Moçambique. 297 Kongolothe é um bairro da cidade e município moçambicano de Matola. 298 O coco é uma dança de roda e ritmo da região Nordeste do Brasil. De origem remota, surgiu nos engenhos de açúcar da antiga Capitania de Pernambuco (atuais estados de Pernambuco, Alagoas e Paraíba), com influências dos batuques africanos e dos bailados indígenas. A primeira referência que se tem sobre o coco data da segunda metade do século XVIII.

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No mar tem areia Areia Areia do mar Areia Areia boa Areia Para peneirar Areia Quando eu achava que era um Era um babado só Quando eu achava que eram dois Era um babado só Quando eu achava que eram quatro Era um babado só Quando eu achava que eram mil Era um babado só... (Domínio público)

299 Fonte: Foto da autora, 2018.

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Jogamos todos juntos. Por ser um grupo grande, cada integrante entra na roda apenas uma vez. Aparentemente não tinham vontade de sair do jogo. A canção, a brincadeira e o universo lúdico foram acessados rapidamente. Acredito que iniciar com a dança brasileira e não diretamente com o AQUECIMENTO DO PÉ AO PÉ ativou o corpo mais preparado para o jogo e consequentemente mais descontraído para experimentar os exercícios de aquecimento.

A transição do aquecimento para o exercício propriamente dito foi realizada de modo contínuo. Num mesmo fluxo, instrui a proposta de DANÇA CAPULANA IDENTIDADE e ao se relacionar com suas cores, formas, texturas, etc. Duas meninas que haviam escolhido a mesma capulana, já que os tecidos foram trazidos por eles de casa. Disse a elas que jogassem juntas como tinham o mesmo tecido, eram integrantes gêmeas. 300

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300 Fonte: Foto da autora, 2018. 301 Fonte: Foto da autora, 2018.

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Finalizada a dança é a vez de trabalharmos com os BATIQUES que já estavam posicionados em ordem para possibilitar que seguisse o fluxo da prática. Com o grupo focado após o mergulho, iniciamos a exploração dos batiques. Pedi para que desenhassem as figuras com o corpo para trabalharmos as variações, o peso, tensões, deslocamento, com ritmos pessoais, etc. Após o primeiro contato, criaram uma sequência de ações para ela passando necessariamente, pelo momento retratado na imagem do batique.

Notei que criar ações que dão sequência a imagem torna o exercício mais fluido. Diferentemente das oficinas anteriores em que propus criar 1 ação anterior e 1 posterior a imagem. As conduções anteriores eram inevitavelmente, criadas de forma lógica ao sugerir que criassem e seguissem em ação, o exercício passa a ser corporal e não racional. 302

Em seguida, ainda no estado de calmaria, 1 vestia a MÁSCARA DE CAPULANA no outro e partir disso, exploravam a sequência de ações, agora mascarados.

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302 Fonte: Foto da autora, 2018. 303 Fonte: Foto da autora, 2018.

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A prática potencializa a atenção e calma, acredito que devido o silêncio e a dificuldade para respirar com a capulana, o corpo se acalma para então se expandir. A ausência de visão gera dificuldade, entretanto amplia a percepção e consequentemente a expressão. Terminados os experimentos propus o jogo NGOMA DA CORDA.

304 Fonte: Fotos da autora, 2018.

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Notei que no decorrer das oficinas, este exercício específico evoca a infância por habitar o território da brincadeira. Percebo que sua composição musical através da comunicação rítmica, é dificultada por conta da relação entre tensão no ator, por ter que pular e lidar com o tempo da corda. Entretanto, em seu decorrer o grupo vai entrando em sintonia. Assim o exercício inicialmente evoca a ludicidade com a brincadeira e depois prende a atenção para a comunicação interno do grupo. Propus o seguinte contexto: de sermos um Grupo de música que tem essa composição há muitos anos e viajamos para mostrar nossa música, a qual já estamos habituados a apresentar.

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305 Fonte: Foto da autora, 2018. 306 Fonte: Foto da autora, 2018.

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Em grupos de três, quatro e dois, criaram pequenas coreografias que poderiam ter ações, mas que fossem ritmadas/dançadas. Indiquei que criassem algo simples que pudessem fazer juntos de olhos fechados. Na explicação do exercício utilizo a palavra ‘Coreografia’ para estimular o dançar nos integrantes. MÁSCARAS SURPRESAS. Após o momento de criação, visto os integrantes sem que vejam o rosto que recebem. Realizam a coreografia coletivamente, as peculiaridades, inevitavelmente, aparecem. A máscara movimentada se potencializa e os modos de dançar revelam seu caráter.

Com o intuito de desenvolvimento do exercício, proponho que dancem a coreografia sem usá-las e depois mascarados para ver se as individualidades já estão apontadas antes ou se surgem com as máscaras ou ainda se são ressaltadas por elas. Terminado o exercício os integrantes olham quais máscaras haviam vestido. O revelar traz o frescor da surpresa. 307

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307 Fonte: Fotos da autora, 2018. 308 Fonte: Foto da autora, 2018.

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Peço, então, que cada participante escolha uma MÁSCARA e em uma breve EXPLORAÇÃO, experimentando corporalmente esse rosto, investigar principalmente o andar. Em seguida, organizados em palco e plateia, chamamos a máscara para CONVERSAR, fazendo propostas que se transformam de acordo com a necessidade de cada uma, respeitando cada individualidade ao se revelar, se conhecendo e fazendo com que nós a conhecemos também. É interessante observar as energias que funcionam em determinadas figuras e que se repetem nas diferentes oficinas. Pela segunda vez, a máscara com cabelos ao simplesmente virar-se foi chamada em gritos de Razanga (que significa ‘piriguete’ em Changana). As pessoas nunca tinham a visto e a chamaram de modo igual em diferentes ocasiões. A máscara azul mais uma vez funcionou com duas expressões, sendo simpático com quem gosta dele e bravo com quem não gosta dele. A máscara de cabelos também se revelou bem dramática e em outro corpo gripada ou bem preguiçosa, e tais distintas propostas funcionaram.

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309 Fonte: Fotos da autora, 2018.

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Pela terceira vez, a máscara de cor marrom aparece querendo lutar ou no intuito de gerar segurança. Essa energia oscilante entre militar e super-herói associada a energia masculina ligada a guerra vem aparecendo na utilização dela que normalmente, é experimentada por meninos com corpos magros e finos. A máscara amarela como em outras aparições das oficinas, aparece de modo jocoso e cômico. Novamente, as outras duas máscaras beges são extremamente cômicas.

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Para finalizar, fizemos a CIRANDA acompanhada de história, canto e passos. Explicado sobre o sentido da roda, disse que eles podiam escolher agora para onde iríamos, fomos ao futuro e seguimos a ciranda no sentido horário. Ao FINAL da oficina, haviam preparado de surpresa um banquete. Trouxeram arroz, feijão com linguiça e banana, além de Sumo de Maeu311 e refrigerantes. Disseram ser tradição sividir comida enquanto compartilham ideias e o que descobriram também. Depois de comermos, interagimos com conversas sobre o trabalho feito. O debate trouxe falas interessantes sobre o não conhecimento do Mapiko, sobre a distância que se tem das

310 Fonte: Foto da autora, 2018. 311 Bebida tradicional feita à base de farinha de milho e açúcar.

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máscaras apesar de estarem na historicidade da África. Refletiram sobre o não conhecimento de segredo ao ponto de alguém de fora vir abrir os olhos a isso: tais fatos são justificados pela distância geográfica do local onde se trabalha com o Mapiko e o Nyuau, além de serem manifestações fechadas. Disseram que sempre veem máscaras pela TV, todos conhecem e sabem o que é o Mapiko mas muitos nunca viram. Maria, uma das integrantes, disse que nunca tinha chegado perto de uma figura mascarada, que havia sido seu primeiro contato. Disseram que a troca foi boa e produtiva e que eu, a pesquisadora, não voltarei inteira ao Brasil, pois um pedaço meu ficaria com eles. Respondi que com certeza eles também não ficariam inteiros, pois parte deles também seguia comigo. Viva as trocas!312 .

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312 As fotos utilizadas no relatório dessa oficina foram tiradas por Venâncio Calisto e Adelium Castelo, que acompanharam a oficina, ora registrando, ora participando dos exercícios. 313 Fonte: Foto da autora, 2018.

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Oficina com GRUPO DE DANÇA DA ASSOCIAÇÃO CULTURAL WUCHENE dia 12 de novembro de 2018. O dia estava mais quente do que os outros. Cheguei ao local combinado, feira de Xiquelene. Lugar muito movimentado. Fiquei esperando nas bombas (posto de gasolina) depois segui com o coreógrafo do grupo até o centro cultural, um lugar mais afastado e periférico. Os jovens estavam começando o ensaio dentro da sala do centro cultural.

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Então assisti ao ensaio de dança que antecedeu a oficina. Dançaram três danças: Makway, Xigubo e Ngalanga. Xigubo era dançado apenas pelos homens e as outras eram mistas entre os dois gêneros. Os corpos dançantes me impressionaram com suas energias, precisões e coletividade. Músicos presentes com tambores e timbila intensificavam a conexão de passos dos dançarinos com a batida dos tambores. Quando a prática acabou, a organização para início da oficina foi confusa. Não sabíamos se começávamos diretamente, quanto tempo tínhamos, quem continuaria e etc. Talvez a dispersão contínua dos participantes também possa ter se dado por essa dinâmica do anterior ao iniciarmos.

314 Entrada do Centro Cultural Wuchene. Fonte: Foto da autora, 2018.

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Enfim começamos, o grupo composto por jovens em sua maioria de 16 a 25 anos. Optei por um início brasileiro com o COCO, já que estavam dispostos a dançar, jogar, improvisar e com sede de aprender.

No mar tem areia Areia Areia do mar Areia Areia boa Areia Para peneirar Areia Quando eu achava que era um Era um babado só Quando eu achava que eram dois Era um babado só...” (Domínio público)

Em seguida fizemos o AQUECIMENTO DO PÉ AO PÉ. Pontuei a troca com a terra (retirar energia e devolver à ela) e cada qual explorou tais dinâmicas com seu próprio corpo. Quando comecei a explicar eles me perguntaram – “seria como dança contemporânea?” Falamos um pouco sobre dança contemporânea e cheguei a perceber que naquele contexto queriam dizer “movimentos pessoais”, “sem um padrão ou passos pré-estabelecidos”. Então respondi que se era isso que estamos chamando de dança contemporânea a resposta era sim. E foi assim que nos entendemos. Após o aquecimento percebo que as capulanas que esperava ter no espaço não estavam, portanto, nós dividimos em pequenos grupos para explorar coletivamente os tecidos que havia. Acredito que porque foi realizada em pequenos grupos, não conseguimos chegar a executar uma relação ou partitura como DANÇAR COM A CAPULANA, talvez exploramos o exercício a partir do trabalho com uma IDENTIDADE coletiva naquele momento. A conexão do grupo entre a dança de cada indivíduo partindo de sua ligação com o tecido. A sala era quente e tinha um eco forte o que dificultava o falar, mesmo porque, às vezes, havia muita desconcentração entre os exercícios e a explicação para o próximo. A indicação de ir ao papel anotar suas impressões entre exercícios ficou dispersa. Era um grupo muito concentrado quando estava em ação. Ao dar uma atividade e ligar a música estavam todos extremamente conectados naquilo que

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faziam. Entretanto, quando acabada a coreografia, conversavam e relaxavam a atenção construída, não atingia o corpo no espaço mas dispersava a concentração do coletivo. Acredito também, que possa ser a forma com que a dinâmica atue com o grupo ali presente, mesmo porque trabalham com coreografias de dança fortes e de muita exigência física, portanto no intervalo da prática devem precisar relaxar a energia para se entregar a próxima. No caso dos ensaios isso não parece atrapalhar a dinâmica, então, tentei lidar com esse fluxo também. Notei também uma ‘sede de ação’, um desejo de compreender a proposta do exercício rapidamente para já realizá- lo, ocasionando em uma ansiedade de certa forma. Depois de explicar o trabalho dos Barbatuques315 e a música utilizada no último exercício, passamos então, para a IMPROVISAÇÃO RÍTMICA. Como tive a ideia na oficina anterior, primeiramente propus que durante a improvisação compuséssemos em círculo uma música utilizando percussão corporal e vocalizações, primeiro livremente, depois cada um entrando de uma vez. Tal proposta trouxe bons resultados para serem aproveitados. Feito isso, fomos para o jogo do NGOMA DA CORDA. A conexão e habilidades tanto do pular como das propostas musicalizadas aconteceu de maneira mais fluida. Nesse caso, os participantes eram bastante habilidosos no salto e com dança simultaneamente e de formas diferentes. Em certa altura da prática, acabaram esquecendo o ritmo e se preocuparem mais com as habilidades. Conduzi a memória para a proposta inicial: a composição de 1 música. A proposição de um final, sempre é uma tarefa difícil. Mas eis que surge um integrante com proposta clara. Às vezes, tive a impressão que não me entendiam muito bem. Não sei se todos compreendiam bem português, se era o sotaque ou ainda o eco da sala, ou quem sabe todas essas possibilidades somadas. Quando fomos fazer a MIMESE DOS BATIQUES teve que ser uma exploração curta em silêncio, como forma de acalmar os ânimos. A duração da exploração foi encurtada, já que não tínhamos instrumentais para todos os participantes, por isso íamos precisar revezar mais vezes, o que tomaria mais nosso tempo. Mesmo assim a exploração pode ser feita e cada participante fez sua célula de ação.

315 Fundado em 1995, o grupo musical paulistano desenvolveu ao longo de sua trajetória uma abordagem única da música corporal através de suas composições, técnicas, exploração de timbres e procedimentos criativos.

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A investigação com a MÁSCARA DE CAPULANA e sua identidade não houve nesse grupo devido a quantidade pequena de tecidos disponíveis. Então, cada um experimentou a relação com tranquilidade desde o batique até ao mascarado com capulana, sendo posteriormente revezadas. A música ajudou a concentrar no trabalho, mas mesmo assim, eram muitos sem fazer o exercício enquanto outros exploravam o mascaramento. Por esse motivo acontecia conversas paralelas e desconcentração, pude perceber que os corpos queriam ir para o conhecido e ao que estavam habituados a fazer, no caso a dança tradicional moçambicana. Dança com muita energia que dificultava o estado de calma e lentidão que esse trabalho pede e proporciona. Os corpos queriam ganhar o espaço e isso era interessante nos corpos que conseguiam conter essa energia, mas faltava controlar a respiração. Dividimos os integrantes em grupos e pedi uma coreografia curta. Tarefa que realizaram de forma concentrada e sem nenhuma dificuldade. Em pouco tempo tinham várias coreografias se utilizando de possibilidades que os corpos sabem, principalmente danças nacionais, o faziam com máscaras e surgiram coisas muito interessantes. Corpos potenciais, consciente do seu fazer e boa relação o objeto funcionaram muito bem, contudo ao colocar a máscara se perdiam no tempo da coreografia e a conexão com o outro, deixando o personagem se relacionar com apenas uma personalidade. Uma das integrantes com a máscara de cabelo realizou uma coreografia com muita energia e bem executada mas quis sair imediatamente quando acabou a coreografia para não conversar nem receber provocações externas. Disse que não estava se sentindo bem. Mais tarde fui conversar com ela e perguntei o que se passava? Os outros diziam que ela estava sem ar, que ela estava doente ou que ela tinha medo. Ela me disse que não sabia, mas que havia se sentido mal com a máscara. Então propus para que ela pegasse as máscaras de linhas que tendiam ser mais confortáveis, caso ela quisesse voltar para o trabalho. Sem impor ou insistir, deixei-a pensar. Quando vi, ela explorava a máscara de linha amarela e realizou boa cena com energia e disponibilidade.

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Então cada um realizou sua EXPLORAÇÃO DE MÁSCARAS, DOS CORPOS E FIGURAS escolhidas. Interessante acompanhar que nas ações investigativas dos dançarinos como que eram automaticamente pontuadas e alguns meninos assume os batuques e pontuava as propostas precisas com tambores. Não foi preciso falar de ações pontuadas já que era o costume ali presente, tal exploração funcionou bem com as máscaras. Fizemos as entradas por vez, com perguntas que as estimulem a responder externamente, partindo do que cada corpo compartilha como proposta. Grande parte das máscaras que entravam diziam que sabiam dançar, então perguntei o que mais sabia fazer e solicitamos para que essa máscara devolvesse com ações cotidianas e dança ao mesmo tempo. A máscara de linha marrom apareceu, mais uma vez, como espião e no outro momento como lutador. Tais explorações foram feitas mais uma vez por meninos longilíneos (magros e altos). Propus um caráter romântico para tal máscara que havia sido apontado em uma das explorações e funcionou também. A máscara de cabelo surgiu e novamente foi chamada de Razanga.. A de cor amarela surgiu como segurança e a azul como percussionista a dançar e tocar tambor ao mesmo tempo.

316 Fonte: Foto da autora, 2018.

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Tal proposta de fazer a ação cotidiana e dançar ao mesmo tempo funcionava muito bem tanto para objetivos como para a exploração e particularmente esses corpos. Muito interessante ver como funciona a agir cotidianamente e a realização mimeticamente da coreografia de Mapiko, as máscaras criam vida com suas ações e movimentação pontuada também.

317 Estavam ali, artefatos presentes através de suas figuras que comecei a perceber aos poucos e a cada oficina. Tento auxiliá-las com provocação para abrir um caminho para que suas personalidades consigam chegar.

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317 Fonte: Foto da autora, 2018. 318 Fonte: Foto da autora, 2018.

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A máscara do nariz grande ficou varrendo e cozinhando como mais velha. A que foi inspirada na nigeriana, foi capinar como também um velho. Ambas realizam 1 ação cotidiana juntamente a ação dançante, o entendo por ação mimética como Mapiko. Encerramos com a CIRANDA após explicada seus saberes. Eles escolheram ir para o futuro e dançamos juntos um pouco de ciranda.

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O cirandeiro! cirandeiro oh! A pedra do teu anel brilha mais do que o sol (Domínio Público)

319 Fonte: Foto da autora, 2018.

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Oficina com a COMPANHIA NACIONAL DE CANTO E DANÇA DE MOÇAMBIQUE foi em uma quinta feira dia 15 de novembro de 2018. Cheguei ao espaço que seria o encontro e este já estava preparado com instrumentos a postos para usarmos. Os integrantes estavam no centro de convivências, nas mesas de uma lanchonete, fui chamá-los. De volta a sala - ótima com piso de linóleo, excelente estrutura para o trabalho - os participantes se preparam, enquanto terminam de organizar as coisas para a oficina. Éramos dez dançarinos, e um músico a nos acompanhar. Contávamos também com a ajuda de um técnico de som para sons gravados. Sentados em círculo, falamos a meu respeito de nós e apresentamos nossos nomes. Feito isto, começamos a parte prática através do COCO que inicialmente mostro três passos bases incluindo a umbigada e a estrutura da roda: com 2 ao centro a jogar. Compartilho também uma canção para que possamos jogar.

No mar tem areia Areia Areia do mar Areia Areia boa Areia Para peneirar Areia Quando eu achava que era um Era um babado só Quando eu achava que eram dois Era um babado só... (Domínio público)

E então, jogamos. Os dançarinos possuem em sua maioria mais de 30 anos, possuem muitos anos com dança e de experiência em cena. Improvisam, brincam e atingem outro nível da técnica. Notei que o grupo o jogou com maior maturidade. Damos continuidade por intermédio do AQUECIMENTO DO PÉS a cabeça, trocando de energia com a terra, percorrendo todo o corpo, fizemos com sons de Barbapapas Groove interagindo ao fundo. Mesmo o tempo restrito, busquei dar o suficiente para o aquecimento. Estavam concentrados e possuíam experiência corporal, exploraram com facilidade a energia passando pelo corpo. A transição entre os exercícios foi feita de forma fluida.

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Em a DANÇA DA CAPULANA-IDENTIDADE cada 1 escolhe e é escolhido e convida o tal tecido para bailar junto, explorando possibilidades ali representadas, memória, cheiro, cores, textura e etc. Em seguida, mas sem perder o fluxo, pedi que andassem pelo espaço com o exercício “PASSAR ENTRE”, enquanto nos organizamos e outros terminam de as amarrar ao corpo. Essa prática foi importante para mudar a energia anterior para o próximo ainda mantendo o fluxo.

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320 Fonte: Foto da autora, 2018. 321 Fonte: Foto da autora, 2018.

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Circulando entre os BATIQUES, solicitei para que escolhessem e também fossem escolhidos por 1. Quando escolhido que parassem em frente e criasse sua MIMESE. Curiosamente existem figuras que se repetem, figuras que sempre são escolhidas. Exploramos primeiramente a mimese corpórea com sua forma, peso e só então por a imagem em movimento. Pensar de onde a figura veio e para onde irá desenvolver tais movimentos. A prática da MÁSCARA DE CAPULANA foi realizado em duplas, tínhamos o ‘salva-vidas’ e o que seria mascarado. O mascarado deveria realizar ações a partir de sua proposta imagética inspirada no batique, depois invertemos para que todos experimentassem ambas as situações. Como nas dinâmicas anteriores, foram distribuídas folhas e canetas coloridas para registrar suas percepções a respeito dos exercícios.

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322 Fonte: Fotos da autora, 2018.

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Propus, então, o exercício NGOMA DA CORDA para criarmos a composição musical com percussão corporal relacionadas ao bater e pular da corda. Além de mim, havia outra gestante no grupo e decidimos que bateríamos a corda. Levou tempo até o grupo entrar no jogo, contudo depois de afinados, o jogo assumiu um bom fluxo. Eles pareciam precisar desse tempo para afinação, para então tocarem juntos. Noto, novamente, que a preocupação com o saltar antecede a composição rítmica, por isso acredito ser necessário deixá-los experimentar o simples pular de corda e pontuar que não necessariamente ele precisa acontecer, pode-se também deixar a corda mais livre. No fim disse a eles que havia uma dança que explora a musicalidade trabalhada nos exercícios, que era o Nshope323. Haviam 5 integrantes que sabiam dançar, nos mostraram e depois passamos a experimentá-la. Brincamos / dançamos um pouco de Nshope.

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323 Dança tradicional do norte de Moçambique. Realizadas por mulheres e com corda. 324 Fonte: Fotos da autora, 2018.

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Os dividi em grupos de 3 ou 2 e pedi que criassem uma coreografia pensando uma DANÇA DAS MÁSCARAS. Houve dupla que criou partitura com os passos do coco que haviam aprendido há minutos atrás. Então os separo e coloco as máscaras de forma surpresa em cada um deles. Tento explorar novos conjuntos de máscaras, colocando-as misturadas em cena, mas ainda mantinho a escolha de colocar as 2 máscaras beges juntas e as 2 máscaras de linha também. Almejo explorar a máscara com e sem cabelo e em situação/corpos diferentes. Tal artefato assumiu outra força sem cabelos (nunca experimentada antes). Primeiro a vi num corpo feminino por causa da volumosa aparência capilar, depois no corpo masculino sem cabelos, novamente em no corpo feminino sem cabelos e ela sem usá-los, tornou-se forte e guerreira. As coreografias despertam as individualidades. A de cor azul, muitas vezes ficava atrasada na coreografia e mais uma vez ficou bem brava com tal situação. A partitura, que foi anteriormente sincronizada no momento de apresentação com as máscaras, se perdeu, e imagino que possa ter sido pela dificuldade em enxergar. Havia diferenças entre as figuras, onde 1 acabava com grande convicção e outra com dúvida e essas nuances tornam o coro mais dinâmico e vivo. Uma integrante que vestia a máscara amarela ria muito e isso quebrava a imagem da figura. Logo ela precisou sair rapidamente da máscara por não respirar. Se não controlamos a energia ou se a deixamos escapar, ela nos falta depois. 325 Para dar início a EXPLORAÇÃO DAS MÁSCARAS, fiz uma breve EXPLICAÇÃO sobre o eixo do olhar e a forma de andar. Dito isto, os participantes escolhem uma máscara e damos início a pesquisa ação. Durante os exercícios a de cor bege e nariz grande recebeu o nome de Zacarias. Até que enfim uma foi batizada! Nos organizamos em palco plateia e as figuras aparecem ao serem solicitadas, uma por uma ocupa o espaço cênico. Enquanto

325 Fonte: Foto da autora, 2018.

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isso, os outros integrantes assistem e assumem os instrumentos, como no exercício anterior. Não foi necessário fazer perguntas, já que tinham a pequena cena, com passos, danças e sabiam o que fazer. Cada figura apresenta suas habilidades e retira- se de cena. Noto que muitos integrantes se apropriaram do que aprenderam no encontro e usam as novas ferramentas, aproveitam os passos do coco e as percepções da dança da capulana, por exemplo. A máscara de pintura indígena e sem cabelo aparece como uma heroína, mulher guerreira e forte. A com linha marrom, novamente, vem como galã no corpo masculino longilíneo, um conquistador. A de cor azul trazia mais uma vez sua braveza. A máscara do atual Zacarias aparece como um super herói, não mais vista como velho, mas como jovem com muita atitude, prestativa e ativa. A máscara com referência da Nigéria, vem mais lenta do que de costume, ao dançar se diverte e não quer parar mesmo quando sua dupla Zacarias termina a coreografia e fica a esperá-la As duas beges surgem novamente como uma dupla cômica clássica. A sincronia de movimentos e as sonoridades traz qualidade na ação, como se encaixasse o corpo à figura. Com isso, há um transitar de lugares, entre dança e teatro; semelhante ao Mapiko. A pontuação musical nos movimentos ocorreu naturalmente, já havia atitude particular no trabalho dos dançarinos, principalmente de danças tradicionais. Isso faz com que esta exploração se aprofunde durante o exercício. Movimentações precisas e pontuadas, acompanhada de ações e movimentos de dança. Para encerrar, falei um pouco sobre a roda, coletividade e seu fluxo, oscilando entre passado (anti-horário) e presente (horário). Ensinei alguns passos da CIRANDA e a canção para brincamos/jogamos. Giramos em direção ao futuro. Finalizamos ao som da música ‘Cirandeiro’ em uma versão de Edu Lobo e Maria Bethânia.

O cirandeiro! cirandeiro oh! A pedra do teu anel brilha mais do que o sol” (Domínio Público)

Durante os solos peço que três, depois que os dois dançarinos entrem na roda e improvisem mascarados. Foi uma gostosa finalização, mas penso ser melhor para aproveitamento do exercício, entrarem para improvisação um número menor de máscaras ou estimular o preparo de algum roteiro anteriormente. Na conversa de

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encerramento, perguntei aos integrantes se já haviam dançado com máscaras, e apenas um dançarino tinha tal experiência.

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326 Fonte: Foto da autora, 2018.

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A oficina no CENTRO CULTURAL BRASIL MOÇAMBIQUE aconteceu entre os dias 14 à 16 de novembro, às 17 horas em 2018.

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PRIMEIRO DIA Chego ao Centro Cultural Brasil-Moçambique e arrumamos a sala pequena e com ar condicionado. Organizo o material e objetos que seram utilizados nas mesas de canto que haviam. A professora Maria Clotilde acompanha e me ajuda na organização. Os participantes chegam e se preparam para o início a oficina que durará três dias. Começo explicando minha pesquisa, apresento de onde vim e por que estou ali, falamos nossos nomes e começamos. O grupo é formado por 15 jovens e 2 professores um pouco mais velhos. Todos parecem já ter certa intimidade com o fazer teatral e nem todos se conheciam. Por termos 2 dias a mais de oficina, opto por dar maior tempo para a experimentação de cada exercício. Começamos jogando MACULELÊ - após ser contextualizada sua história, o passo base e ensinada a música. Brincamos e fomos nos sentindo mais à vontade e conhecendo uns aos outros 2 integrantes chegam nesse momento da oficina e integram o coletivo. Para nos APRESENTARMOS é preciso dizer DE ONDE EU VIM, de quem viemos. Fazemos as apresentações de nossos ancestrais e mestres. Na

327 Flyer de divulgação da oficina. Fonte: Acervo da autora, 2018.

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apresentação conhecemos ainda mais uns aos outros. Os ancestrais e mestres nos mostram mais sobre quem os apresenta; além disso, as escolhas de quem os evoca também diz sobre a pessoa. Falam de seus pais, a origem dos nomes; outros de seus professores; das estruturas familiares; do que viam em si; e em quem buscam espelhar. Nesse momento do exercício, mais 1 integrante chega e o coletivo o acolhe. Entrego folhas em branco para todos os participantes e explico a proposta como um diário de bordo, para anotar sensações e percepções durante a oficina. Os participantes exploraram o fluxo de energia que vem da terra e entra no corpo por um pé, percorrendo todo o corpo, até chegar ao outro pé e retornar a terra. O grupo tinha boa concentração durante o AQUECIMENTO DO PÉ AO PÉ, talvez por estarem acostumados com aulas de exploração. Com maior tempo de exercício, pudemos pesquisar diferentes formas e intensidades do fluxo da energia. A transição entre os exercícios se deu de forma fluida. Com a mesma concentração em que pesquisavam a troca de energia com a terra, mergulharam na exploração pessoal e criativa com o tecido. Escolhidos os tecidos, passaram a dança- los, experimentando seus traços, pesos, movimento, cores… diferentes tipos de exploração durante a DANÇA DA CAPULANA-IDENTIDADE.

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328 Fonte: Fotos da autora, 2018.

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Depois de mergulharem nas possibilidades que as capulanas traziam, amarravam-nas ao corpo. Enquanto isso, organizei o círculo de BATIQUES em volta do espaço cênico, de forma a observá-los e poderem escolher e ser escolhidos por 1. Após pararam na frente deles, partem para observação, indico que imprimam as imagens, desenhos, formas, pesos e tensões em seus corpos. Experimentadas tais figuras, peço para que desloquem pelo espaço, criando um fluxo. Haviam pequenos grupos explorando diferentes figuras do mesmo batique, então peço para que jogassem juntos, posteriormente, sentamos para assistir a exploração de cada dupla ou trio. Nesse momento chega 1 participante da oficina no teatro Girassol na sexta feira anterior, peço para que assista e depois entre. No fluxo da prática anterior, mascaro os integrantes com suas capulanas e em duplas apresentaram sua exploração corporal agora, mascarados. As MÁSCARAS DE CAPULANA utilizadas eram novas e grossas, exigindo mais controle energético. Os corpos que pouparam ar, eram mais lentos e precisos logo se engrandeciam. Separados em grupos de 3 ou 2 peço que façam uma COREOGRAFIA que pode ter ações mas que soubessem serem feitas de olhos fechados ou com pouca visão. Mesmo com a instrução, os movimentos não tinham um caráter rítmico muito preciso. O grupo era formado por atores e não haviam dançarinos. A DANÇA DAS MÁSCARAS SURPRESAS e sua repetição trouxeram ritmo e a relação entre figuras que iam surgindo através do jogo das máscaras. Corpos presentes, (a maioria) máscaras vivas, com raras exceções de atores querendo seguir os passos. Mesmo quando pareciam perder a sequência de movimentos, a figura mascarada revelava seu caráter e, por vezes, cômico. As máscaras são generosas, encontram pessoas acessíveis e abertas a escuta e descobertas. 329

329 Fonte: Foto da autora, 2018.

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Finalizamos o primeiro dia de oficina com uma CIRANDA. Ensino a dança, os passos base e a música. Expliquei Sobre o fluxo da roda e relação com o passado (anti-horário) e ao futuro (horário). Cantamos e brincamos juntos, sabendo que na manhã seguinte continuaremos as pesquisas e descobertas. Perguntam se novos atores poderiam vir e digo que sim.

SEGUNDO DIA

Quinta-feira, dia 15 de novembro de 2018. Chego mais cedo para combinar a experiência com o público que seria realizada ao final da oficina. Após a oficina aconteceria um evento “A caminho do Festival Mozbrasil” onde nos foi proposto a apresentação de algo. Imaginava e havia me programado para experimentarmos junto ao público o exercício da ‘Ciranda’, entretanto ao chegar percebi que se tratava de um grande evento com transmissão ao vivo para a TV de Moçambique e o espaço físico que teríamos era praticamente uma passarela estreita. O fato era que não queria dedicar o segundo dia da oficina apenas a uma apresentação pois isso não seria lógico e justo, nem com a pesquisa nem com os atores que estavam em processo criativo. Devíamos seguir o rumo da oficina e já havia aceitado a saída e experimentação com o público, pensei ser uma boa experiência pedagógica com

330 Fonte: Foto da autora, 2018.

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contribuição para com a oficina. Colocá-los diante do público seria como experimentar uma lógica não do ator e sim da máscara, ao lidar com a escuta do público. Seguindo esse pensamento propus aos participantes que quisessem ficar após a oficina e organizaríamos algo no final com o que já estávamos realizado. O organizador do evento, ao saber de nossa participação propôs um poema e a seguir descrevo o que preparamos e apresentamos. Isto posto, iniciamos a oficina. Havia novos integrantes que pediram para participar, explico o percurso que trilhamos no dia anterior e começamos. Compartilho da história da popular dança brasileira COCO, assim como o passo base, o trupé e a umbigada, o jogo com sua estrutura e a canção. E então jogamos/brincamos/dançamos.

No mar tem areia Areia Areia do mar Areia Areia boa Areia Para peneirar Areia Quando eu achava que era um Era um babado só Quando eu achava que eram dois Era um babado só (Domínio público)

Então, passamos para nosso aquecimento LANÇAR MEMÓRIAS, começando por imaginar uma bolinha de energia que, primeiro, deve ser lançada e, depois, recebida. Era sugerido explorar diferentes formas de lançamento, podendo, por exemplo, projetá-la com outras partes do corpo; de forma leve, com determinado peso, rapidamente, lentamente, enfim. Trabalhamos com a ideia de estarmos lançando memórias. Como as lançar memórias? É fácil mandar e fácil recebê-las de volta? Existem as lembranças fáceis, existem as difíceis? Como receber? Ao fim, escolher se deseja ficar com elas ou dispensa-las. Antes de começarmos os trabalhos fiz uma breve EXPLICAÇÃO DAS MÁSCARAS sobre a perspectiva do eixo e o seu olhar, como podem mudar de sentimento, de atitude, pois mesmo tendo uma imagem fixa, tudo está no corpo de quem a veste. Elas podem tudo, basta escutá-la. Cada um explorou a sua experimentando seu andar, seu ritmo. Aproximando-se da

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EXPLORAÇÃO feita com o batique, cada um buscou andares, estados e ações. Começam a surgir também relações. Fizemos a dinâmica experimentada nas oficinas anteriores da ‘entrevista’ FALARMOS COM CADA MÁSCARA. Percebo a dificuldade da não fala, muitos tentam me responder com mímica ou quase falando, mesmo quando não é necessariamente necessário, e alguns percebem isso. Acredito que assistir os outros participantes fazerem os exercícios traz essa percepção. Durante a exploração notamos a máscara azul novamente como um personagem “malandro”. A amarela em certo momento fez dupla com a azul, formando um casal da malandragem. A máscara de linha e o velho ‘Zacarias’ funcionaram muito bem em um jogo onde a de linha era uma grande diva e ele, velho e seu servente, ao final desse jogo revelaram-se apaixonados, máscaras que até então não haviam dialogado. As de linha apareceram novamente juntas e como dono da companhia de dança, a de cor bege inspirada na escultura da Nigéria. Quanto mais tempo para exploração é dado, mais proposta em cena. Muitas são propostas da própria escuta e exploração. Às vezes criações dos atores e tentamos quebrá-las logo que entram em cena, priorizando a escuta da máscara.

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331 Fonte: Foto da autora, 2018.

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Ao fim da oficina, fiz algumas REFLEXÕES para pensar as propostas para o terceiro e último dia. Talvez conversar sobre a dificuldade da não fala, como assistir também é aprendizado e sobre como lidar com o vazio e deixar o material te propor coisas. Acredito que desenvolver mais exercícios com máscara de capulana sejam bons para processos longos, pois eles tendem a encontrar concentração, controle de ansiedade e aguçar a escuta e calma, para o trabalho com elas proposto depois. Propondo na EXPERIMENTAÇÃO COM O PÚBLICO exercícios já realizados durante a oficina. Pensamos em explorar o caráter das máscaras dançando. O dramático e o rítmico. Para tal improvisação eram 8 participantes. Propus organizar as coisas de forma simples e com o que já tínhamos. Começamos de forma lenta e poética com a cena do barco - realizada no dia anterior com as máscaras de capulana. Depois os velhos poderiam dançar coco e fazer ações, em seguida as coloridas entravam dançando Maculelê. Tudo desconsiderando a roda, pois estaremos em linha. Eles propuseram que eu lesse o poema enquanto acontecia a cena do barco, já haviam se dividido com as máscaras. Assim se deu a apresentação, estando eu e um menino a tocando flauta doce. Três pessoas fizeram o barco enquanto eu lia o poema “Volte Águia Negra” de Augusto Savata. E era assim:

Voas alto águia negra. Esqueces teus limites nativos. Perdes-te em ruas não negras, Corres pintada de emoções. Lá ainda, Vais recordada, Das más guias, Da além do teu pátio sombrio. Água Negra vais indo, Recordada ou esquecida mas, Só deixando teus limites nativos. Águia Negra volte está tarde, Tem mundo teu rosto aqui, Sentem tua falta ruas negras.

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Então, saía o barco ficando do meu lado e do flautista, começamos a cantar o coco (em português e changana). Toco pandeiro e todos nós a cantar, entram as 2 máscaras de linha dançando e depois os 2 velhos. Cantamos um pouco e eles fizeram o passo base e a umbigada em fila e depois saem, enquanto saímos atrás diminuindo o som até parar. Letra “Areia” traduzida para Changana, “Missava”:

A lwandhe a kuni missava, Missava Missava ya lwandhe, Missava Missava yinene Missava Yita ihuelivewa

A loko niko i unwe Ali tindzava tsem A loko niko timbini Ali tindzava tsem A loko niko tinarho Ali tindzava tsem Missava yinene

332 Fonte: Foto da autora, 2018.

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Foi interessante a exploração, pois estavam seguros e jogando. Entretanto, não houve o jogo com o público, mesmo assim tiveram que lidar com eles e a cena, com sua situação e contexto e com a máscara. Tudo ao mesmo tempo.

TERCEIRO DIA

Sexta-feira, dia 16 de novembro de 2018. Chegamos no local e tivemos problemas com a sala devido a outros eventos. Começamos em uma sala menor (onde fizemos a oficina no 1° dia), depois fomos para a sala maior (onde estivemos no 2° dia). Como tínhamos pouco tempo na primeira sala, resolvi começar conversando sobre os pontos levantados nas reflexões do dia anterior. Comento sobre a proposta do 3° dia ser o vazio, ao contrário do dia anterior que foi de muitas informações, ações e propostas. “Hoje lidaremos com o vazio e com a simplicidade.” Descemos para a sala grande e começamos com o AQUECIMENTO DO PÉ AO PÉ E DANÇA DA CAPULANA IDENTIDADE. Com fluxo e sem parada passamos

333 Fonte: Foto da autora, 2018.

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para a DANÇA COM CAPULANA. Movimentamos e fomos movimentados pela capulana, que seguia como uma identidade, a mesma escolhida no 1 dia era a utilizada no 2 e no 3 encontro. Para buscar um maior fluxo para o exercício do NGOMA DA CORDA peço para que no final da música do Barbatuque todos começassem a propor ritmos corporais com a música, compondo com ela. Então, fui abaixando o volume e a composição rítmica continuava. Ainda em fluxo sem explicar muito, peguei a corda e começamos a brincar ainda com os ritmos e alguns a pular. Mantendo o ritmo corporal com o tempo, o ato de pular puxava o foco dos atores e era preciso lembrá-los da composição com percussão corporal. Os que estavam fora da corda, principalmente, continuavam a música. A questão é que principalmente o ritmo e a improvisação eram executados por quem estava fora da corda. A pessoa que estava pulando, normalmente, se preocupava mais com o salto de fato. Em duplas um devia vestir a MÁSCARA DE CAPULANA e ser manipulado pelo outro, que conduz e ESTIMULA a exploração de diferentes sensações de movimentos, diferentes dinâmicas, a confiança, ativa a ampliação da escuta e a sensibilização. Acredito que essa máscara funciona como um estado de calma, controle de respiração e consequentemente de ansiedade. Em seguida, trocamos as posições. Uma cadeira no palco. Era pedido que cada MÁSCARA experimentasse possibilidades de VARIAÇÕES RÍTMICAS, sentasse, olhasse algo a frente e saísse com outro ritmo. O intuito era trabalhar a simplicidade, para notarmos como ela por si só já conta muitas histórias. O exercício foi fluido. Alguns ao pensar ritmo pensaram dinâmicas de andar ou estados. Trabalho no silêncio e deixo que o exercício fosse desenvolvido sozinho, sem intervenções ou provocações minhas. E sem comentários entre eles para não influenciar o próximo.

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Em seguida peço que pensem uma ação simples para uma máscara, e compartilhe a ação com outro integrante para que ele possa pontua-la ritmicamente com o pandeiro ou flauta. Apresentamos as série de ações. Tal exercício não foi criado para trabalhar o carácter da máscara, mas no terceiro dia, foram para se experimentar a calma e a simplicidade. Saber que ‘menos e é mais’ e lidar com o vazio. Para encerrarmos, falei sobre a roda de CIRANDA, sua coletividade e seu fluxo, explicando o sentido anti-horário do passado ou horário do presente. Ensinei alguns passos e a canção parar brincamos/jogamos juntos. Giramos em direção ao futuro. Finalizamos ao som da música ‘Cirandeiro’.

O cirandeiro! cirandeiro oh! A pedra do teu anel brilha mais do que o sol” (Domínio Público)

Durante o refrão, estávamos todos a dançar e cantar. Durante os trechos solos foi proposto que três entrassem na roda mascarados e improvisassem. Como FINALIZAÇÃO fizemos um bate papo, onde alguns pontos foram levantados. Disseram sobre como o trabalho com máscara traz diversas sensações, como ela

334 Fonte: Fotos da autora, 2018.

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liberta e potencializa a não fala. Falaram sobre ser um exercício da respiração, e como o corpo se coloca ao seu serviço. Comentaram sobre fazer alguma expressão facial por trás da máscara, mesmo inconscientemente. Então para encerrar eles me ensinam uma música e dança, só depois de fazermos um pouco o coco em changana e português. Dançamos várias danças e músicas, sem e com as máscaras. Uma grande brincadeira, dança, confraternização. E assim encerrou-se não só o terceiro dia da oficina do Centro Cultural Brasil Moçambique como o ciclo de oficinas em Moçambique 2018.

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ALGUNS RELATOS DOS PARTICIPANTES

A cada oficina, os papéis e canetas deixados à disposição para que quem quisesse anotar, desenhar, escrever algo durante a oficina. Compartilho alguns dos relatos divulgados através das anotações.

335 Fonte: Foto da autora, 2018.

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336 Fonte: Foto da autora, 2018.

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337 Entre encontros e reencontros.

Terras entre passado presente e futuro. Entre lugares.

Piso em terras que me alimentam.

Vento poesia e arte e encontro raízes que me fortalecem.

Germino.

Fim de uma jornada.

Parto. Renasço.

Kanimambo.

337 Bairro de Kongolothe. Fonte: Foto da autora, 2018.

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BRASIL

Grupo de estudos

Com o objetivo de vivenciar metodologias decoloniais e explorar uma abordagem e um caminho para mascarar-se, foi criado um grupo de pesquisa prática. Os exercícios propostos provinham de atividades experimentadas, aprendidas e criadas pela autora. Em um primeiro momento o intuito era mergulhar no universo moçambicano, ao qual as máscaras de Mapiko (campo de investigação inicial da atual pesquisa) fazem parte. Para isso utilizamos músicas, jogos e danças moçambicanas. As raízes musicais africanas revelam uma composição rítmica e melódica da qual nós brasileiros não estamos tão habituados, apesar do contato próximo com as tradições afrodescendentes. A frequente utilização de contratempos e cantos semitonais são práticas musicais que agregam o ator brasileiro (não só, mas a todos os brasileiros, sobretudo aos artistas). Os jogos lúdicos e as brincadeiras populares, são atuantes em formações e trabalho criador do ator há muito tempo. A importância do contato lúdico, a concentração, disponibilidade, atenção e adequação às regras do jogo são explorados por atores através dessas vertentes, muitas vezes inspirados em dinâmicas do universo infantil. Entrar em contato com jogos e brincadeiras de outra cultura, no caso Moçambique, é ser apresentado a outras possibilidades de inspiração muito bem- vinda para o universo das máscaras africanas. É também uma forma de dialogar com a cultura não só tecnicamente. Dançar coreografias moçambicanas traz tônus físico específico com relação à postura, movimentos e estados que o corpo não cria sozinho, mas sim se levado a produzir exteriormente e preenchendo a composição com o pessoal. Isso faz com que o dançarino entre em contato com deslocamentos e posicionamento que o forçam a sair do habitual e sempre encontrando sua pessoalidade no fazer. No ofício ele descobre como se adaptar e apropriar de tais ações, movimentos e coreografia, podendo assim, dançá-la e ser dançado por ela. Em um segundo momento, passamos ao experimento de narrar com o corpo, tal como o Mapiko. Estimulados a partir de dois estímulos distintos (células rítmicas e contos moçambicanos) criamos pequenas cênicas com a utilização das máscaras de

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Mapiko trazidas de Moçambique em 2014. Tais estímulos propunham um trabalho musical para com a cena mascarada, sendo ele rítmico (ações desenvolvidas a partir de células rítmicas) e/ou melódico (imagens criadas a partir de contos moçambicanos). Para tais partículas cênicas, três tipos de utilização do mascaramento foram utilizados: a máscara de madeira vestida (semelhante Mapiko), a máscara de madeira não vestida (manipulada com as mãos e parte do corpo, se aproximando da técnica de bonecos) e a máscara de tecido (como utilizadas por grupos de Mapiko Lingundumbwe de mulheres). Transcrevo abaixo alguns trechos do diário escrito durante as experimentações práticas, onde despontam problemáticas, dificuldades, reflexões e caminhos trilhados.

Quais são as minhas corporeidades? Quais são as minhas máscaras? Trabalho sem máscara. Criar tudo sem máscara. A máscara vem só no final, na ‘apresentação’, na festa, para o outro. Máscara como canal e conexão. Talvez o caminho não seja a máscara, mas entrar em contato com essas corporeidades que ela esconde, os segredos por dentro da máscara. Diferentemente do jogo cênico com a máscara que eu estou acostumada, começar pela máscara, a máscara revela o caminho. A máscara é canal, é caminho, é o meio. A máscara Mapiko, nesse outro contexto, é canal, mas, para que esse encontro possa acontecer, algo deve ser trilhado antes. O caminho é para chegar à máscara. O corpo deve estar pronto, as corporeidades, os movimentos, as partituras, as musicalidades devem estar trabalhadas e só assim encontra a máscara e se revela “pronta”, e acontece. Acontece máscara e você sendo um só. A máscara que possibilita e intensifica tais corporeidades.

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Às vezes, e quando estou perdida com mais freqüência, sinto vontade de trabalhar com a metodologia que conheço e caminhar pela trilha mais conhecida e menos misteriosa. O mistério Cada vez estou mais certa de que o nos causa medo, mas também aguça nossa caminho não é o que estou curiosidade e desejos. Mapiko é segredo, Mapiko habituada a trabalhar (pedagogia é mistério. Devo respeitar o mistério. Não baseada na metodologia de Jaques escolher o caminho que conheço me faz trilhar o Lecoq). Talvez a máscara não seja misterioso e nebuloso caminho dos segredos. mesmo o caminho. Começar por sua Apesar da máscara não propor o caminho a fisicalidade e imprimi-la em seu partir de sua materialidade como nos trabalhos corpo não me parece ser o caminho. de Lecoq, ela aponta o caminho, nos chama, nos Sinto, talvez por saber de alguma convida a passear pela escuridão. forma intuitiva ou por temer Na máscara a visão é limitada. Olhar a desrespeitar a máscara ou ainda por escuridão por dentro da máscara. Apenas escutá-la assim como na pedagogia algumas pistas do mundo lá fora. proposta por Jaques Lecoq, que o caminho é diferente deste que estou habituada. Decido passear me sentindo mais perdida do que nunca, passeio por caminhos que nunca pisei antes. Trilhamos novas trilhas, desconhecidas por nós. Que

caminho é esse que começamos a seguir? Não sei. E quanto mais andamos, menos sei. Não sei para onde estamos indo. Como o Mapiko que sai do Quanto mais eu sigo, menos sei. mato misterioso e retorna a ele, me sinto entrando nessa mata fechada. Sei e sinto que a máscara foi Pego exercícios rítmicos que me dêem um apoio. Quais? andando por lá, de alguma Que tal fazermos ações ritmadas como as coreografias forma ela me chama e Nchakachas do Mapiko? Experimentamos... Parece funcionar... parece que encontramos um terreno de fato revela sem muitas indicações e detalhes sua palpável. direção. Sigo, quase cega, em mata densa esse misterioso caminho. Primeiramente busco Escolhemos primeiro um objeto e realizamos alguns apoios concretos ações com ele. Cada um recebe uma partitura que possam me ajudar rítmica (provinda de exercícios de teoria durante esse trilhar. Logo rítmica musical). Cada um cria uma ação no inicio do trajeto nessa partitura rítmica e a repete. encontro o ritmo, um Percebemos que realizando as ações em rastro evidente que o conjunto praticamente tocamos uma música. Mapiko me mostrou e Hora de experimentar com a máscara. A deixou. Sigo essas máscara vive. Aos sons, movimentos e ações pegadas... rítmicas a máscara se torna viva e

expressiva.

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338 Continuamos nesse percurso...

Ao trabalhar danças moçambicanas, como Marrabenta, N’shope e etc, com o objetivo de adentrar no universo moçambicano e propor diálogos dos pés com a terra, a energia e vibração das festas e das danças não surgia. Os atores preocupavam-se com acertar o passo da dança e não deixavam se contaminar por uma energia mais leve e divertida que a dança traz. Percebi que tal energia era semelhante à energia do samba de roda brasileiro. Começamos, portanto a mesclar o trabalho com danças e ritmos moçambicanos e brasileiros, trabalhando entre identidades e alteridades.

Agora com objetos grandes, buscando maiores dimensões de movimento. Cena – mulher costura grande tecido. Homem cavando. Ritmo de Roda de Samba.

338 Fonte: Foto da autora.

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Oficinas Brasil

As oficinas ministradas no Brasil foram realizadas no decorrer da pesquisa, antes das experiências do ‘lado de lá’, entre as experiências do ‘lado de lá’ e depois das experiências do ‘lado de lá’. Nas primeiras oficinas foi necessária uma primeira organização de procedimentos e exercícios experimentados no grupo de pesquisa e nos experimentos individuais. O ato do compartilhamento dos processos, procedimentos e questões da pesquisa a desenvolveram, amadureceram e aprofundaram tais saberes, descobertas e questionamentos da investigação até então desenvolvida. Pude a partir da organização e sistematização necessária para o compartilhamento de uma experiência em processo em poucas horas de oficinas,

339 Fonte: Foto da autora.

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revisitar minha trajetória, formação, referências, caminhos escolhidos ou seguidos intuitivamente. Deparei-me com duas linhas de técnicas e processos presentes no meu corpo e consequentemente nas minhas escolhas e formas de fazer. De um lado um treinamento para máscaras muito inspirado nos exercícios e metodologia desenvolvida pelo francês Jaques Lecoq, e pela Commedia Dell’arte italiana, compartilhada pelo olhar de professores e diretores brasileiros que utilizam tais referências em cursos, formações e direções no Brasil. Por outro lado, sabedorias aprendidas através do ‘imitar’, provindas das danças africanas, danças de matrizes africanas e das musicalidades de ritmos afro-brasileiros percussivos. A partir do diálogo dos saberes que coabitavam meu corpo, das experiências que foram se somando a ele, do mergulho nas raízes e ancestralidades, e do questionamento à formação eurocêntrica e necessidades de encontrar nosso/meu caminho para mascarar-se, as oficinas foram se desenvolvendo e proporcionando mais trocas e compartilhamentos em distintos ambientes e novos encontros preciosos ‘Abayomi’.

Danças de Moçambique

Em janeiro de 2016, a convite da moçambicana Lenna Bahule340, ministrei com ela a oficina ‘Danças de Moçambique’ no evento Moçambicando, realizado na Casa do Núcleo em São Paulo, onde pude compartilhar uma parte de minha pesquisa sobre dança Mapiko e dança N’shope.

340 Lenna Bahule iniciou sua formação em música aos cinco anos tendo ingressado na Escola Nacional de Música (ENM) em Maputo- Moçambique onde nasceu. Desde 2012, radicada em São Paulo, fundamentou sua pesquisa sobre a música vocal e diferentes caminhos para o uso da voz e do corpo como instrumento musical e de expressão artística

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341 Fonte: Fotos do acervo da autora.

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Oficina - Raízes e Ancestralidade: Teatro de máscaras africanas

Durante o ano de 2016, fui convidada pelo SESC Osasco a oferecer uma oficina com a temática central da minha pesquisa. No momento o SESC Osasco preparava projeto com a temática ‘Moçambique’ e, portanto, o convite foi feito. A oficina ‘Raízes e Ancestralidade: Teatro de máscaras africanas’ propôs um mergulho no universo africano a partir de máscaras, corporeidade e musicalidades. Com a utilização de máscaras africanas e explorando a ancestralidade de cada participante, pretendia-se aprimorar a consciência corporal e noções de identidade de cada integrante da oficina, assim como sua disponibilidade através da escuta, visão e percepção. O mergulho no universo africano foi dado a partir de máscaras, danças, músicas e sonoridades, ao explorar a música africana, seus jogos lúdicos e as dinâmicas coreográficas. Foi pedido que a oficina fosse voltada mais para mulheres, portanto ao separar os materiais tinha como foco investigar o feminino em diálogo com o Mapiko manifestação em sua origem realizada por homens. Nesse processo as danças femininas como o N’shope, do tecido capulana (elemento ligado ao feminino) começaram a serem mais explorados nos exercícios propostos.

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342 Divulgação da oficina no site do SESC SP. Fonte: www.sescsp.org.br

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Oficina – Mascarar-se: Raízes e Ancestralidade

Tal oficina foi oferecida durante o V Seminário de Pesquisa do PPGADC – UNICAMP. Com a carga horária de 2 horas e 30 minutos tive a oportunidade de organizar o material experimentado anteriormente no grupo de pesquisa e na oficina oferecida ao SESC (Raízes e Ancestralidade: Teatro de máscaras africanas) de forma mais sintética. Sinopse da oficina: A oficina propõe um mergulho no universo africano- moçambicano. Tal encontro será dado a partir do mascarar-se, de danças, de músicas e de sonoridades. Na oficina exploraremos a questão musical africana, seus jogos lúdicos e dinâmicas coreográficas, além do ato de mascarar-se. Cobrindo o nosso rosto percebemos nosso corpo, nossa história, nossas ancestralidades, nossas raízes. A memória que sobrevive em corpos está no corpo de cada um que carrega consigo uma longa trajetória.

Oficina de sensibilização ao Mapiko

Em 22 de junho de 2017 tive a oportunidade, a convite da Professora Marta Jardim, de ministrar a oficina de sensibilização ao Mapiko no Programa: Intervalo no Teatro na Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). A oficina com duração de 1 hora e 30 minutos foi realizada no Teatro Adamastor Pimentas, no campus Guarulhos, onde tive mais uma oportunidade de experienciar e compartilhar exercícios e caminhos para o mascarar- se que venho desenvolvendo com a atual pesquisa.

Oficina Da Capulana Máscara à Performance

Em parceria com a atriz e encenadora moçambicana Maria Clotilde, pude ministrar a oficina ‘Da Capulana Máscara à Performance’, nos dias 29 e 30 de março de 2019 no Espaço N de Arte e Cultura e no dia 05 de abril de 2019 no Ilú Obá de Min. Durante essa oficina pensada no ‘entre lugares’, lá e cá, dialogamos nossas pesquisas, a minha sobre o mascaramento e a dela sobre a capulana e organizamos

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exercícios que exploravam saberes tradicionais moçambicanos com relação a capulana, jogos, musicalidades, o mascara-se com a própria capulana e com as máscaras utilizadas nas oficinas realizadas em Maputo, Moçambique.

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343 Fonte: Foto da autora. 344 Cartaz de divulgação da oficina no Espaço N de Arte e Cultura, Suzano, SP. Fonte: Acervo pessoal da autora.

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345 Fonte: Fotos da autora.

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346 Fonte: Fotos da autora.

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347 Cartaz de divulgação da oficina realizada na sede do Ilú Obá de Min, São Paulo, SP. 348 Fonte: Foto da autora. 349 Fonte: Foto da autora.

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Experiência cênica

A criação pode elaborar-se por meio e ao termo de uma pesquisa, a qual não é separada de seu objeto artístico ou posterior a ele, mas é parte ativa e simultânea desse objeto. (PAVIS, 2015, p. 268)

Aqui serão abordadas práticas cênicas que são de grande valia para compreensão do todo pesquisado. Nesse capitulo tateia-se saberes, explorando conceitos na prática em cena, experimentando os exercícios, investigando diferentes formas de mascaramento, sistematizando o que se propôs estudar com tal pesquisa, simbolizando e dando contorno ao que foi experienciado, compartilhando a partir da prática cênica. “Essa prática é, ela também, um sistema estético, uma performance, uma performative writing (escritura performativa), quer dizer, uma maneira de escreve ativa e subjetiva”. (PAVIS, 2017, p. 271).

Experiências mascaradas

A partir do contato com a editora Kapulana passei a conhecer os livros a serem publicados no Brasil dos autores moçambicanos Ungulani Ba Ka Khosa, Lucílio Maniate e Sanrae Okapi. A partir desse contato, em colaboração com a editora, tive a oportunidade de experimentar as máscaras cenicamente, utilizando a trama contada nos livros a serem lançados.

O Rei Mocho de Ungulani Ba Ka Khosa

A primeira experimentação foi com o conto tradicional infantil “O Rei Mocho”, escrito por Ungulani Ba Ka Khosa e publicado em 2016 no Brasil pela editora Kapulana em São Paulo.

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Ainda me aproximando da máscara, optei por não vesti-la, mas dar vida a ela. Aproximando-me da técnica do boneco, pude acompanhar os movimentos e possibilidades durante o jogo cênico, além de poder utilizar a palavra.

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350 Capa do livro “O rei mocho”, Editora Kapulana. 351 Fonte: Foto da autora.

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II Jornada de Teoria Literária e Estudos Africanos – Unicamp – Campinas – SP

A segunda experimentação com as máscaras foi realizada em maio de 2017, na II Jornada de Teoria Literária e Estudos Africanos, na Unicamp em São Paulo, na presença dos autores Ungulani Ba Ka Khosa, Lucílio Maniate e Sanrae Okapi, após um debate sobre seus livros.

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A experimentação foi realizada com três atrizes: eu, Ana Pessoa e Thaiane Athanásio. A ideia da experimentação, desta vez, não foi contar toda a obra, mas realizar leituras de segmentos dos livros citados e construir imagens para tais trechos. Propondo experimentar diferentes formas de utilização da máscara, as imagens foram construídas de formas distintas. Com manipulação, mascaramento com tecido (onde a capulana cobre o rosto semelhante a utilização de certos grupos de Mapiko Lingundumbwe de mulheres) e cena com a máscara vestida.

352 Capa dos livros “A triste história de Barcolino – o homem que não sabia morrer”, Lucílio Manjate; “Mesmos barcos ou poemas de revisitação do corpo”, Sangare Okapi; “Orgia dos loucos”, Ungulani Ba Ka Khosa; todos lançados pela Editora Kapulana.

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353 Máscara vestida. Fonte: Acervo da Editora Kapulana. 354 Máscaras manipuladas. Fonte: Acervo da Editora Kapulana. 355 Máscara de tecido. Fonte: Acervo da Editora Kapulana.

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Ainda insegura com a abordagem da vestimenta da máscara em cena, sem saber de fato qual caminho seguir, com incertezas quanto à relação ética de respeito aos segredos do Mapiko, opto por usar apenas as que o mascareiro Eusébio Simão confeccionou para mim, sabendo que sou atriz, brasileira, mulher e branca, não utilizei máscaras que já foram dançadas por grupos de Mapiko. Mesmo com questões sobre a abordagem da utilização, resolvi arriscar e buscar, experimentando publicamente para moçambicanos e estudantes de África, respostas ou novas problematizações. A receptividade do público foi gratificante. Os autores elogiaram as imagens construídas a partir dos trechos de seus livros e parabenizaram a utilização das máscaras de Mapiko. Estudantes moçambicanos agradeceram o mergulho no universo e a tentativa de trazer um pouco de Moçambique ao evento, com danças, textos, máscaras e musicalidades. Entretanto, a insegurança de utilizá-la vestida em cena não se resolveu, pois no momento da imagem construída o tecido que a prende soltou. Tentamos utilizar a outra (que anteriormente havíamos utilizado como manipulação e havia funcionado), mas essa também teve o tecido solto no momento da amarração. O público não percebeu que ela havia soltado, pois se manteve apoiada na cabeça e logo saiu de cena. Mas para mim, que buscava respostas ou problematizações para questões que se debatiam dentro da minha prática, recebi o acontecimento recente como uma onda batendo no caminho que tenho percorrido. Uma inundação de questões ... E assim seguimos, experienciando o ato de mascarar- se, em ondas de questionamentos, problemáticas, caminhos e trilhas apontadas.

Dançando conceitos

A dança é impulso e expressão de força realizante. É transmissão de um saber, sim, mas um saber incomunicável em termos absolutos, pois não se reduz aos signos de uma língua, seja esta constituída de palavras, gestos imitativos ou escrita. É um saber colocado à experiência de um corpo próprio.(SODRÉ,1988, p. 137 apud ROSA, 2019, p.53)

Ao dialogar com um conceito, como fica nosso corpo? O que tal encontro com determinada ideia transforma-nos fisicamente? Respiramos diferente? O tônus se altera? O que acesso dentro de mim? Memórias? Heranças? Deveres? Saberes? Sonhos? Ideias? Quais?

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Compreensão pelo corpo. Como se dá o entendimento e explicação de um conceito pelo ato de criar imagens em cena? Como os movimentos retratam a compreensão de tal conceito? Quais imagens construímos para compartilhar tal compreensão? Quais referências presentes em meu corpo e minha história utilizo para tal compreensão, para tal dançar? Como minha lógica encontra tal termo/conceito/ideia? Como o amplia e o transforma assim como proposto no capitulo 1 ‘contando conceitos’ em um condensado de saberes? Como com meu corpo, ritmo, movimentos e imagens construídas dialogam e colocam em cena um emaranhado de saberes embutidos em um termo/conceito/ideia, compartilhando não somente seu entendimento racional, mas sensações, cores, cheiros, sabores, contexto, ritmos, respirações... Dialogando e podendo descobrir mais e mais com esse encontro precioso Corpo - Conceito.

Talvez uma das principais funções do pensamento teatral hoje seja a de colocar em cheque alguns termos recorrentes do nosso discurso artístico e teórico, cujo uso tende a se automatizar. [...] Faz-se necessário então o desmanche das palavras que se cristalizaram demais, que adquiriram uma espécie de crosta, perdendo algo de seu brilho e poder de nomeação. Para isso o pensamento tem que reinventar seus caminhos e defrontar-se com seus vazios. (QUILICI, 2010, p. 1)

Retomo aqui a citação de Cassiano e faço-me a provocação: como tirar as poeiras das palavras, trazê-las para o corpo, simbolizá-las, dançá-la? Segundo Bortolot (2007), os Macondes mantiveram durante anos um olhar bifurcado, olhando tanto para fora como para dentro. Para isso criam linguagens conceituais para compreender suas situações, olhar seus desejos e estruturar suas ações. A prática do Mapiko constitui um esquema onde os indivíduos Macondes exerciam essa prática de olhar dentro e fora, articulando fluidamente as questões sociais e identidades. O Mapiko ao dançar conta-nos histórias, traz ensinamentos, mas também explora conceitos e visões de vida. O diálogo e encontro com ideias, historias, ensinamento e conceitos não só é transmitido ao público mas passa também por aquele que dança e é dançado. O corpo do mascarado entra em contato sobretudo com tal conceito/ideia/termo. O Mapiko dança dialogando com o mundo e encontrando seu lugar dentro dele.

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A partir dessas provocações, discorro a seguir experimentações práticas que chamo de ‘Dançando Conceitos’, nas quais dialogo com termos, capítulos de livros, referências da própria pesquisa e citações, dançando-as.

É a partir do corpo, não da mente, que questões surgem e que respostas são investigadas. O que chama para pensar é o corpo, não a mente [...] Quais são as conexões entre seu corpo, bio-graficamente e geo-historicamente localizado na matriz colonial do poder, e as questões que você investiga? (MIGNOLO, 2011, p. xxiv apud BELÉM, 2016, p. 126).

Diáspora

Ao me aprofundar nos conceitos de identidade e alteridade, debrucei sobre as diásporas africanas e nossa identidade afro descendente como brasileiros. Para tal criação, diálogo o meu percurso, minha trajetória, permeando entre identidades e alteridades. Utilizo conhecimento sobre o Mapiko adquirido durante a pesquisa de mestrado; as oficinas de dança de Mapiko realizadas em Moçambique em 2014, as oficinas de dança afro, dança africana da guiné, danças brasileiras, oficinas de percussão-alfaia no Maracatú e oficina de percussão – djembé de toque dos orixás. A fim de explorar a dança conectada com o tambor e com uma narrativa, como no Mapiko, iniciei um trabalho de experimentação prática com o objetivo de dançar a ideia de Diáspora. Abaixo segue trechos do diário de tal experimentação prática até a data do relatório.

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356 Departamento de Artes Cênicas, Unicamp, Campinas, SP. Fonte: Foto da autora, 2018.

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357 Anotações pessoais. Fonte: Foto da autora, 2018.

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358 Departamento de Artes Cênicas, Unicamp, Campinas, SP. Fonte: Foto da autora, 2018. 359 Anotações pessoais. Fonte: Foto da autora, 2018.

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360 Anotações pessoais. Fonte: Foto da autora, 2018.

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361 Performance cênica realizada pela autora. Fonte: Foto da autora, 2018. 362 Performance cênica realizada pela autora, Fonte: Foto da autora, 2018.

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363 Anotações pessoais. Fonte: Foto da autora, 2018.

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364 Performance cênicas realizada pela autora. Fonte: Foto da autora, 2018. 365 Anotações pessoais. Fonte: Foto da autora, 2018.

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366 Anotações pessoais. Fonte: Foto da autora, 2018.

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367 Performance cênica realizada pela autora. Fonte: Foto da autora, 2018. 368 Anotações pessoais. Fonte: Foto da autora, 2018.

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Somos

Dando sequência a ideia dos saberes da prática e experimentando trabalhar cenicamente o conceito ‘Mascarar-se’ e o ‘Entre-lugares’ que a máscara proporciona, surge o experimento “Somos”.

Ato de mascarar-se. Vestir. Botar. Kugwala370

Ser você? Ser máscara? Ser espírito? Ser o vem a ser representado? Ser?

Somos?

Tal solo foi criado a partir das reflexões sobre o habitar o entre-lugares estando mascarado, sobre a relação entre a liminaridade e o mascaramento e sobre alguns relatos de entrevistas e trechos revisitados da dissertação do mestrado.

Ao tirar a máscara, o velho veio até ele, disse - Como é estar fora da máscara? Percebe que estar dentro da máscara é diferente, é outra coisa? Não é fácil estar dentro da máscara, mas que é bom - e riu. (Texto: Tchoti – Sobre um Menino)371

369 Performance cênica realizada pela autora. Fonte: Foto da autora, 2018. 370 Kugwala: Entrar ou vestir-se, em Shimakonde. 371 (RHORMENS, 2015)

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ATANÁSIO - Tu encarnas o Lihoka porque no momento que você entra dentro da máscara tu mudas de comportamento. Aquilo ali é automático. Você fica não você. Tu encarnas um espírito qualquer. E não sabes qual é esse se é feminino se é masculino, se é feio, se é bonito, nem tens ideia. Mas tu. Já não és tu.

MARIANA – Mas lembra das coisas.

ATANÁSIO – Lembras sim. É por isso que combina com o tamborista principal.

MARIANA – Mas o que sente para saber que não é mais você?

ATANÁSIO – A própria máscara te muda de ser. Você está preso já. É como se fosse um piloto militar. O avião do militar quem fecha está por fora. Não és tu que fechas. E na máscara é assim quem fecha é aquele que está por fora, não és tu. Então se alguém fechas por ti, estás preso. Só pode ser esse alguém a tirar. Tu não tiras. Eu desaparecia sabe? Quando soubesse que eles querem me amarrar eu não queria. Desaparecia.

MARIANA – Por que você não queria?

ATANÁSIO – Não. Você sabe que aquilo dói. Dançar? Dói.

MARIANA – Por quê?

ATANÁSIO – Você não pode tirar a máscara de qualquer maneira, vão te assassinar, porque você está a divulgar um segredo. E quanto mais tu danças estás a apanhar cada vez mais intoxicação lá dentro. O ar não circula. Estás a ver aqui no Sul, isso só tem uma única abertura, na boca. Mas tu não estás a respirar pela boca, estás a respirar no nariz e o nariz está em baixo de boca. A boca está aqui (mostra a altura dos olhos). Então o nariz está onde? Está no pescoço da máscara. Então você está a respirar com muita dificuldade. Assim (mostra respirações curtas). Tu vês isso levanta-se assim. (mostra o peito levantando ao respirar). O peito do gajo sobe e desce. Castigo. Grande. Grande castigo. Mas e agora compensas quando tu sais de lá dentro, as pessoas que te admiram vem ter consigo: Ya, você é louco, você é muito muito... Não sei o que que que..372

372 Entrevista realizada com Atanásio Cosme Nyusi em maio de 2014. Maputo, Moçambique.

370

Para tal dança, criou-se também um material audiográfico, composição feita de acordo com as questões e explorações sobre o conceito e criada juntamente com a dança, seus passos e coreografias. Composição criada pela autora Mariana Conde Rhormens Lopes em parceria com Emilio Lopes Junior e Felipe Matheus de Almeida Lopes.

Ficha técnica: Violão Cello – Emilio Lopes Junior Flauta Transversal - Mariana Rhormens Percussão geral – Felipe Matheus e Mariana Rhormens Máscaras – Criação e confecção – Rose Scarpelli e Mariana Rhormens

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373 Performance cênica realizada pela autora. Fonte: Foto da autora, 2018.

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374 Performance cênica realizada pela autora. Fonte: Fotos da autora, 2018.

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375 Performance cênica realizada pela autora. Fonte: Fotos da autora, 2018.

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Corpo-memória

Trabalhando e investigando em mim o conceito de Identidade, deparo-me com um emaranhado de raízes de aprendizados e de vivências dentro do mesmo corpo. Tal experimento “Corpo-Memória” explora o corpo como território de saberes.

Para melhor entender o conceito de corpo-memória precisei buscar no

meu instrumento, mergulhar e explorar meu corpo e minhas memórias,

ou seja, aquilo que me constitui. Eu entendi que a minha formação

está aqui (mostra o corpo). Fui formada pelo que li e pelas tardes de

bolinho de chuva com a minha vó. Este corpo se tornou memória ao

ser atravessado por Lecoq, Peter Brook, Linares, Alice K. Matteo

Bonfitto, Tiche Vianna, Achille Mbembe, Atanásio Nyussi, Mama

Germane, Soyani, Mia Couto, N`dey Seck, Ilu Obá de Min, Oroki,

Oxossi, e minha mãe Iansã, Irineu Nogueira, Paolo Israel, Reinata

Sadimba... Atravessada por Baobás, pelos mares e oceanos, pelos 4

ventos, pelos muitos tempos, por grãos de areias, por terras... Por Vó

Mariana, Dona Polita, Dandara, Seu Perseu, Dona Magdalena, Vó

Mina, por meninas guerreiras, por raízes...

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376

Quando cheguei em Moçambique, eu vi aquele colorido das capulanas nas saias, cabeças e por todos os lados nas ruas... percebi que a relação com o tecido capulana ia além de simplesmente uma roupa ou vestimenta. Essa vivência, ouvir algumas histórias e esse DVD “Na dobra da capulana”, produzido em Maputo, me fizeram perceber que havia algo a mais naquelas capulanas. Percebi que a memória ia além do que eu entendia por memória. Ela não se dá necessariamente no plano linear. Não precisa estar no passado, mas também está aqui e agora. É ela quem dá qualidade, significado. Ainda não sei ao certo qual palavra usar, mas a memória preenche, colore coisas, objetos e corpos. Pensando nisso, comecei a desenvolver exercícios que visavam a simbolização de objetos. Isso incluiu um vínculo afetivo. E o campo do afeto abre espaço para intimidade e mais do que isso, para uma história e memória em comum. Começamos nos grupos de pesquisa e oficinas, cada um escolhendo e sendo escolhido por uma capulana, se relacionando com ela, dançando ela, colocando-a em seu corpo, mascarando-se e se tornando ela. A partir desse encontro, essa capulana sempre estava com você, ela era você. A partir do Mapiko mulheres que é dançado por alguns grupos com a máscara de tecido e não madeira, a cada vez que íamos nos mascarar durantes as oficinas, usávamos o tecido-eu, como própria máscara ou como auxilio para vestir outras máscaras.

376 Fotos das avós da autora. Fonte: Acervo pessoal da autora.

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Foi a partir desse mascaramento que surgiu o solo “Corpo – Memória”. Mascarando-me com tecidos e ao som de um canto sem palavras (composição da autora) e percussão (Djembé tocando ritmos Yankadim, Ilu de Oyá, Aguere, Bumba- meu-boi, Adarum) dancei o que já atravessou meu corpo. Passeando por danças da guiné, de Moçambique, da Costa do Marfim e do Senegal, revelando diferentes máscaras e personagens que meu corpo já vivenciou, dançando a Commedia Dell’Arte, o Mapiko, o Toppeng de Bali e as danças brasileiras como coco, jongo e dança dos orixás, meu corpo memória se mostrava. Em seguida, ao som do djembé tocando o ritmo adarum e do texto colocado no início deste capítulo “Reflexões sobre Entre-lugares” eu ia tirando os tecidos que me mascaravam. Eram 4, um sobre o outro.

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377 Performance cênica realizada pela autora. Fonte: Fotos da autora, 2018.

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378 Performance cênica realizada pela autora. Fonte: Fotos da autora, 2018.

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379 Performance realizada pela autora. Fonte: Foto da autora, 2018.

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Fronteiras

Como estabelecer diálogo entre a cena e a leitura? Aqui, especificamente, a construção de imagens e sonoridades são decorrentes da leitura e diálogo com o capítulo II – O entrelugar do discurso africano, do livro Pós-Colonialismo, Identidade e Mestiçagem Cultural – A literatura de Wole Soyinka, de Eliane Reis. O solo desenvolvido a partir desse conceito é composto por um vídeo-dança gravado em diferentes locais do Senegal (École des Sables, Ilha de Goré, Dakar, Ilha de Fadioth, Toubab Dialaw). Durante o vídeo-dança que acontece em diferentes locais no tempo e espaço, eu, vestida com a mesma vestimenta utilizada em todo o vídeo, danço no presente em frente a projeção do vídeo. A música que acompanha o vídeo é Hima de Nawal, acompanhado de citações do livro Pós-Colonialismo, Identidad e Mestiçagem Cultural – A literatura de Wole Soyinka, de Eliane Reis.

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380 Performance cênica realizada pela autora. Fonte: Foto da autora, 2018.

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381 Senegal. Fonte: Fotos da autora, 2018.

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Espetáculo final

CENA 1

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CENA 2

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CENA 3

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CENA 4

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CENA 5

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CENA 6

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CENA 7

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CENA 8

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CENA 9

Ficha técnica

Atuação – Mariana Rhormens Direção – Heraldo Firmino Assistência de direção – Carolina Portella Dramaturgia – Mariana Rhormens e Marcial Macome Figurino e Objetos cênicos – Arôo Costuras Criativas Máscara – Toma Toma Produção - Amanda Schmitz

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PARTE B

METODOLOGIA DECOLONIAL

Caminho para Mascarar-se

“Não pergunte a ninguém qual é o teu caminho, pois você corre o risco de não conseguir mais se perder” (Rabi Nachman)

Em cima. Norte. Centro. – Relações de poder

Assim como comentado no capítulo 1, as narrativas que prevalecem em nosso imaginário tendem a ser eurocêntricas a partir da formação pautada em mitologias, histórias, formas teatrais e de dança provindas da Europa. O que podemos chamar de ‘colonização cultural’ interfere no pensamento pedagógico e nos fazeres artísticos.

Para Mignolo, a expansão ocidental após o século XVI não foi somente econômica e religiosa, mas também das formas hegemônicas de conhecimento, de um conceito de representação do conhecimento e cognição, impondo-se como hegemonia epistêmica, política e historiográfica, estabelecendo, assim, a colonialidade do saber. Se a colonialidade do poder criou uma espécie de fetichismo epistêmico (ou seja, a cultura, as ideias e os conhecimentos dos colonialistas aparecem de forma sedutora, que se busca imitar), impondo a colonialidade do saber sobre os não-europeus, evidenciou-se também uma geopolítica do conhecimento, ou seja, o poder, o saber e todas as dimensões da cultura definiam-se a partir de uma lógica de pensamento localizado na Europa. (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 21).

Reflitamos aqui sobre o que é valorizado. Muitas vezes, deparo-me com certa comparação entre metodologias/ técnicas/ epistemologias do Sul e do Norte. Referem-se ao método Acogny como “metodologia de dança como o Ballet”, ou escuto “Essas máscaras funcionam como a Commedia dell’arte”, “técnicas de abordar a máscara se assemelham aos exercícios de Lecoq”. Não quero questionar a importância de tais tradições, técnicas e métodos europeus (Ballet, Commedia Dell’Arte e metodologia proposta por Jacques Lecoq), apenas questiono o olhar com a intenção de aproximar manifestações ou referências do Sul a elas mesmas, buscando uma espécie de legitimação. De onde vem o valor?

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Soyinka aproxima-se do Dionísio de Nietzsche para uni-lo ao orixá iorubá, criando um herói cultural híbrido, o combativo deus das artes e da tecnologia, que canibaliza o que lhe interessa da cultura estrangeira para tornar-se mais forte. (...) a África híbrida de Soyinka marcada pela tensão entre a busca da africanidade e a inserção em um contexto globalizado. É essa África que se acha representada em Ogum- Dionísio, signo do “mau-selvagem”, “devorador de brancos, antropófago”, que através da “transculturação” ou “transvaloração”, se torna “capaz tanto de apropriação como de expropriação, desierarquização, desconstrução”, segundo Haroldo de Campos. (REIS, 2011, p.130).

Como vivemos em um mundo que apesar de globalizado é centralizado foram necessárias comparações como as deixadas por Soyinka, que relaciona Ogum e Dionísio, mitologias iorubás e gregas. Tais relações alicerçam novos passos, para que possamos trilhar novos caminhos. Um dos objetivos de Soyinka era “defender a existência de um sistema metafísico característico da África negra, em contraste com o sistema colonial” (REIS, 2011, p. 64) O autor coloca Ogum como paradigma do drama africano, assim como Nietzsche se refere a Dionísio e os rituais dionisíacos como modelo da tragédia ocidental. Em 1973, Soyinka escreve ‘As Bacantes de Eurípides’ sobre nova perspectiva.

Em As Bacantes, essa memória deixa de ser apenas grega para se tornar transcultural, já que Dionísio, originário da Ásia Menor, torna-se ainda mais híbrido ao incorporar “seu irmão gêmeo Ogum”, como Soyinka deixa claro na introdução à primeira edição de sua peça. (...) Tanto Dionísio quanto Ogum são deuses da fertilidade masculina cujo símbolo é o falo, representado respectivamente pelo tirso e pelo opa Ogun. Marido de Oyá (a Terra), Ogum representa a energia masculina e a força trazida pela natureza e através dela. (REIS, 2011, p. 164).

Acredito que comparações podem ser feitas para compreensão, assim como as fazemos entre métodos e manifestações entre hemisférios Sul-Sul. A questão é a aproximação buscando um valor, como se precisassem assemelhar a técnicas e metodologias do hemisfério Norte para serem legítimas ou terem importância e relevância. Tais referências do Norte têm significância para os caminhos das nossas tradições de teatro e dança. Eu mesma fui formada em cursos e universidades que levavam a escola europeia como modelo e, talvez, seja por isso nosso impulso de comparar o que quer que encontremos com tais referências para legitimá-las. Ou, talvez, seja por tentar

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aproximar a algo conhecido, o que no caso, revela dois problemas. O primeiro é que evidencia o fato de sermos corpos colonizados, pois precisamos relacionar uma manifestação brasileira, por exemplo, a uma forma europeia para aproximar a algo conhecido. Muitas vezes, conhecemos e somos mais próximos dessas formas do que as de nosso próprio país. A segunda problemática é a de reduzir o olhar, descontextualizar. As máscaras de Mapiko não são como os personagens da Commedia Dell’Arte. As máscaras de Mapiko são Mapiko, e reduzi-las a personagens de outra cultura é retirá- las do seu contexto ou olhar com olhos exteriores e afirmar classificações feitas por seu ponto de vista através de lentes eurocêntricas. Retomamos aqui as problemáticas apontadas no início desse capítulo, recitando Pavis e Khaznadar, que afirmam que tais práticas, como o Mapiko, “são a expressão particular de sua cultura, que não pertencem ao sistema codificado do teatro tradicional” (KHAZNADAR, 1999, p. 30). Devemos, portanto, ficar atentos à maneira com que observamos tais práticas. Busca-se questionar de tais comparações Sul – Norte e evitá-las. Faço a mim mesma essa provocação, e muitas vezes percebo dificuldades e “escorrego”, mas sigo praticando para não cair na armadilha do pensamento colonialista sob o qual fomos formados, onde os valores vêm DE CIMA (de quem está em um status superior nas hierarquias: os patrões, os ricos, os brancos, o norte). Sigo tentando realizar ao máximo comparações de referências Sul-Sul, sem hierarquia de valores entre elas, mas acreditando na possibilidade de diálogos. É uma tentativa de desconstrução das minhas bases e referências. Assim como defende Luciane da Silva, sigo “criticando os procedimentos que fortalecem as estruturas de poder existentes nas ordens sociais” (SILVA, 2017, p. 26). “O resultado é a desestabilização de hábitos de pensamento cristalizados ou considerados naturais e a percepção de que há outras maneiras de organizar a sociedade e de entender a existência” (REIS, 2011, p. 187). Voltemos à problemática apresentada no capítulo 1 “De onde vem o valor?”. Na Nigéria na década de 1950, artistas e intelectuais europeus instalaram-se no país iniciando um “trabalho de valorização de elementos nativos nas artes e de divulgação da produção artística africana” (REIS, 2011, p. 148). Cursos de extensão e aulas na Escola de Teatro e Instituto de Estudos Africanos foram criados e promovidos pela Universidade de Ibadan com o projeto de “revitalização cultural”. Soyinka afirma que

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“A influência ocidental retorna desta vez em direção oposta: o que os artistas europeus procuram reforçar [...] é a necessidade de uma volta às origens”. Esse movimento criou uma nova tendência no teatro nigeriano, introduzindo elementos tradicionais iorubá, e assumindo um papel importante no desenvolvimento do teatro na Nigéria. A questão aqui apontada é que a própria valorização, a importância e o olhar às formas artísticas do seu próprio país também são muitas vezes dados por olhares externos, olhares “de cima”. Segundo Mignolo (2017), atualmente o Terceiro Mundo deixa de ser um objeto a ser estudado e passa a ser visto como lugar de onde se fala. Aqui referimo-nos às epistemologias do Sul, onde o próprio Sul cria suas metodologias. Eliana Reis (2011) fala sobre a nigeriana Companhia de Kola Ogunmola que, mesmo tendo origem no sistema educacional europeu, passa a desenvolver uma metodologia de criação aos espetáculos embasando-se em sua cultura. O grupo começou em uma escola religiosa cristã, onde o professor sugeria encenações de temas bíblicos com adaptações de aproximação à cultura iorubá. Devido a rigidez da escola, o professor foi demitido, mas o grupo passou a se interessar cada vez mais pelo mergulho na cultura nacional. A companhia composta, então por ex-alunos da escola cristã, desenvolveu processos de criações onde abordavam o iorubá tanto nas temáticas (mitos, histórias, contos, problemas sociais), quanto na linguagem e estética (abordagem não mimética da realidade, coro feminino, uso de provérbios e canções tradicionais). Representam ao mesmo tempo, um movimento moderno e uma tradição ancestral, vistas como nomeia Reis (2011), uma ‘materialização atual de uma tradição antiga’. Segundo Reis, foi através de tal grupo que a Escola de Teatro da Universidade de Ibaden na Nigéria passou a trabalhar com a tradição dramática popular africana. “Nós tomamos as artes das mãos dos estrangeiros” (SOYINKA, 1960 apud REIS, 2011, p. 154) A École des Sables, no Senegal, também é referência quanto a tais metodologias. Dialogando experiências europeias e africanas, devido sua história e trajetória, Germaine Acogny cria uma metodologia em dança. Busca dialogar referências e a partir, sobretudo da observação da natureza e de danças tradicionais da região de Senegal e Mali, cunha sua sistematização. “coloca em relação pensamentos de dança oriundos de contextos europeus e dos contextos africanos de

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maneira horizontal, ao mesmo tempo que coloca em protagonismo e dignidade as técnicas, estéticas e poéticas africanas” (SILVA, 2017, p. 225-226).

A atitude de grupos teatrais brasileiros, ao assumirem a elaboração de treinamentos próprios e também a autoria de seus espetáculos, parece colaborar para inverter a posição “subalterna”. Suas práticas como um todo, ao cruzarem aspectos do local, com outros, nacionais e internacionais (intra e interculturais), valorizam as próprias sensibilidades e capacidades críticas de articulação de saberes. É recuperada uma liberdade, a qual a história primeiramente negou, atuando como uma forma de descolonização. (BELÉM, 2016, p. 121-122)

A dançarina Rosângela Silvestre, natural de Salvador-Bahia, formou-se por técnicas europeias e norte-americanas de dança tais como Martha Graham, Técnica Dunham e Ballet Clássico, bem como por experiências com danças e músicas tanto do Brasil como da Índia, Egito, Senegal e Cuba. Fundou o que chama de ‘Técnica Silvestre’, na qual dialoga sua experiência e desenvolve sua metodologia nos gestos e movimentos das danças dos orixás e nos elementos da natureza. Evaristo de Abreu, Maria Clotilde, Venâncio Calisto são encenadores teatrais moçambicanos citados anteriormente que estabelecem diálogo entre saberes da formação eurocêntrica com suas culturas e experiências, buscando desenvolver suas metodologias e processos próprios.

Historiadores acadêmicos se apropriam das partes do passado africano transferindo-as para o interior de uma grande estrutura do conhecimento histórico que tem raízes europeias - a história do intercâmbio de mercadorias, por exemplo. Eles raramente pensam em utilizar partes da história europeia para ampliar as narrativas africanas, sobre a sucessão dos santuários akans ou a origem e segmentação das linhagens dos tivs. (FEIERMAN, 1993, p. 168)

A proposta é invertermos o jogo, desnortear. Utilizar alguns saberes, não como comparação para legitimação, mas para ampliar nosso entendimento. Entretanto, antes disso, é preciso se despir e desconstruir nosso corpo colonial, que logicamente não deixará de sê-lo devido à memória, mas procurar ressignificá-lo, desnorteando nosso fazer.

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Norteando a formação (de teatro) – Formação Eurocentrada

“As práticas artísticas estão associadas às relações de poder e como isso interfere no pensamento pedagógico e artístico” (SILVA, 2017, p. 19). Tradicionalmente em África o sistema de aprendizado se dava com os pais ou membros do mesmo clã, aprendendo uma profissão, costumes e cultura de seu povo. O método educacional trazido com a colonização gerou uma ruptura com sistema de aprendizado e o conceito de educação africano, retirando a autoridade do mais velho e das tradições e trazendo tal função às escolas. Desta forma, houve imposições de modelos europeus, onde línguas nativas foram vistas como inferiores; histórias e culturas foram trocadas por práticas estrangeiras. Isto trouxe a impressão de ser estrangeiro em sua própria terra. Atanásio Nyussi conta que quando regressou da Tanzânia a Moçambique após a libertação do país, foi recebido por centros de acolhimento e lá todos aprendiam português. Ele, nessa altura, deveria usar uma placa onde mostrava que não era falante do português. Atanásio conta que era como se na placa estivesse escrito “burro”. Segundo Allan da Rosa:

[...] a regência cultural de matrizes judaico-cristã, europeias ou estadunidenses em sua postura no contato com outras etnias vem sendo marcada há muito tempo por uma estrutura heroica, empenhada em lutar contra, em conquistar, em dominar e converter o diferente (ROSA, 2019, p. 33).

Essa postura colonial deixa marcas em diversas camadas nos países que foram colonizados. Podemos perceber tais heranças nas universidades em pleno 2019, nos currículos de formação em teatro no Brasil e Moçambique.

DADIVO - É preciso sublinhar a forma como as artes foram pensadas. Não só em Moçambique como na maior parte dos países africanos. O que acontece é que nós herdamos uma estrutura colonial. Ainda que tenhamos a independência, a estrutura sempre foi colonial, as organizações dos ministérios, as organizações das direções provinciais, tudo, tudo... foi estruturado como colonial. Havia no pensamento colonial europeu a ideia de existir um teatro profissional e existir um teatro amador. Dentro do teatro profissional [...] existir teatro de

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acadêmicos. E foi nesse contexto que muitas universidades foram criadas principalmente na África ocidental.

VENÂNCIO - A academia nos dá conhecimento, nos ampliam horizontes e nos inspira no fundo a investir na prática. Nós temos que praticar, nós temos que experimentar as coisas e é disso que vive a academia.

EVARISTO - Isso é uma das coisas que eu tento passar aqui na ECA. Por isso que se for assistir às minhas aulas nas salas de representação, vais dizer: “Ele dá aula diferente dos outros.” Por que eu tenho um programa. Eu sei o que eu tenho que fazer. Então pegamos um tema. Depois do tema eu digo: “Ok. Agora me deixa fazer as minhas experimentações.” Por que eu acho que o teatro cresce com isso. Se tu não tens pessoas aventureiras, pessoas que têm outra visão sobre as coisas, tu vais ficar no teu espaço. Perdes muito. Isso é extremamente importante. Dar o espaço aos atores para fazerem as coisas como eles acham que devem ser feitas. Isso é fundamental.

MARCIAL - Uma das coisas que me deixou um pouco inquietado é que a base teórica é a base teórica “universal”. “Universal”. É o Stanislavski, Grotowski, Meierhold, Tchekhov, Brecht... toda estrutura do “teatro universal”. Quer dizer, todos os autores, teórico do teatro universal e muito pouco de… Lembro uma disciplina que era história do Teatro Africano, mas muito pouco se explorou essa área específica. Talvez porque inclusive o próprio, mesmo em Moçambique, ainda buscava fontes de referência do próprio teatro moçambicano. Há uma grande lacuna que é preciso muito ser trabalhada. E também talvez porque em nível de graduação há um interesse de tentar colocar o estudante no plano do conhecimento universal básico, do universal do teatro. [...] Quando a gente fala de universal, é que no princípio universal era tudo o que é colonial. Então, partindo dessa lógica já desestrutura toda construção, toda construção local. É que, estando dentro de uma academia, se a própria academia não produziu um material que fosse capaz de dar um desdobramento diferente do colonial da arte, então isso só pode responder a essa necessidade. E isso é realmente tem uma lacuna que é muito complicada.

Assim como afirmam os atores moçambicanos entrevistados sobre a eurocentricidade dos currículos de ensino de cursos de teatro, o mesmo acontece no Brasil. Em geral pouco há, e o que se tem é recente, quanto a formas tradicionais brasileiras e referências teatrais e teóricas que fogem de formas europeias e norte americanas. Pode-se observar uma afirmação de Colonialidade nos currículos

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educacionais onde se afirma uma lógica estruturada desde a colonização de relações políticas e sociais. A herança colonial tanto no sistema educacional, como nos espaços físicos para apresentações dramáticas reflete no teatro Moçambicano, e também, na realidade brasileira. Entretanto, encontramos variedade de artistas que, assim como Soyinka, “não resulta propriamente da herança colonial, mas de sua apropriação e rearticulação criativa com as tradições nativas” (REIS, 2011, p.155).

O moderno teatro africano seria o resultado dos esforços de resistências às várias influências externas. No entanto, a formação cultural híbrida de Soyinka, a defesa que faz de um certo ecletismo cultural leva-nos a entender sua posição como um contradiscurso ou estratégia de resistência à visão da cultura europeia como a verdadeira origem de tudo – noção subjacente à afirmação de G. Axworthy. De certa forma, tanto Axworthy quanto Soyinka têm razão: o sistema educacional colonial realmente legou aos dramaturgos modernos da Nigéria toda a tradição dramática europeia e os espaços físicos para sua apresentação. (REIS, 2011, p.155).

As universidades e nossa formação são eurocêntricas em técnicas e formas artísticas provindas da Europa. As mitologias estudadas são mitologias gregas, as bases de estudos de criação de personagens partem normalmente dos trabalhos de Stanislavski, Grotowski, e mesmo quando existem formas de interculturalismo e diálogo com Sul, muitas das referências são diretores europeus que buscaram tal diálogo, como Ariane Mnouchkine, Peter Brook, Eugênio Barba entre outros.

Todos os grandes artistas pedagogos do século XX (Stanislavski, Meyerhold, Brecht, Grotowski, etc.) entendiam a formação do artista do palco como um caminho que implica a transformação mais ampla do sujeito, envolvendo a dimensão ética, política, existencial, corporal ou mesmo espiritual. Para tanto a construção de muitas pedagogias se fez também através do diálogo com diferentes campos de conhecimento, incluindo aí a releitura de informações advindas de outras tradições artísticas e culturais. (QUILICI, 2015, p. 174).

Vejo Europa, EUA e Oriente nos painéis de referências, mas onde estão a África e a América Latina?

Referências teatrais orientais foram estudadas e aprofundadas em trabalhos de muitos diretores europeus no século XX, como Peter Brook, Antonin Artaud,

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Eugênio Barba, Ariane Mnouchkine; tendo desdobramentos em trabalhos de pesquisas de brasileiros, como Matteo Bonfitto382, Cassiano Quilici383, Fabianna de Mello e Souza384, Toshiyuki Tanaka385, Alice Kiyomi386, entre outros. Entretanto, referências africanas, afrodescendentes ou afro orientada (termo utilizado por Luciane que abordaremos a seguir) parecem não encontrar o mesmo espaço.

Rasgando a parede de papel dos currículos quem mantêm novas faces de colonização e coisificação, revidando aos programas que constituem a cultura negra como pretensos lugares ocos (ou não lugares), resistem às vozes e os gestos, as heranças e sementes de entendimentos que assumem e portam uma africanidade diaspórica visceral, realizando caminhos e convívios que apresentam fundamentos e negam os desejos de esquecimentos operados de cima para baixo. Levando novamente ao centro das questões físicas e metafísicas uma alteridade que não aceita a sujeição total que lhes anularia valores corporais, étnicos, culturais, míticos. Enfrentando (com ginga) os pressupostos que, em nome de uma suposta universalidade, dão à luz “noções etnocêntricas de uma universalidade que, muitas vezes, discrimina, sem conseguir discernir. (MARTIN, 1995, p.66 apud ROSA, 2019, p. 36).

Entretanto, não basta dar foco e incluir as tradições africanas, afrodescendentes e afro-orientadas nos currículos. É preciso tomar cuidado em como fazer tal introdução. Precisamos cuidar de nossas lentes, discursos e modos operantes que guiam nosso fazer. Catherine Walsh (2009) critica as formas de aderir tais referências que chamamos do Sul ou incluir novos temas nos currículos, principalmente no campo educacional, quando partem de uma lógica epistêmica eurocentrada, pois tal forma de

382 Matteo Bonfitto Júnior é Ator-Performer, Diretor Teatral e Prof. Livre-Docente do Instituto de Artes da Unicamp. Autor de "O Ator Compositor" (Perspectiva, 2002), "A Cinética do Invisível" (Perspectiva, 2009), entre outros. Membro da International Federation for Theatre Research e do Performance Studies International. 383 Cassiano Sydow Quilici é professor livre-docente na área de Teorias do Teatro e da Performance pelo Instituto de Artes da UNICAMP. Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002). 384 Diretora da Cia dos Bondrés no Rio de Janeiro que pesquisa modos de integrar ao trabalho do ator princípios da tradição oriental balinesa das máscaras bondrés. 385 Tanaka, professor do curso de Comunicação e Artes do Corpo da PUC-SP, pesquisa o corpo japonês e teatro Nô no Brasil. Membro da Associação Brasileira de Nô Gaku, que difunde a arte do teatro Nô no Brasil. 386 Alice Kiyomi Yagyu é diretora, professora e pesquisadora de Artes Cênicas. Docente, do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, no curso de Graduação e no Programa de Pós-Graduação. Possui mestrado (1995) e doutorado (2009) pela mesma universidade. Especialização em Teatro e Literatura Comparada pela Musashino Women’s College (Tóquio,1991).

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abordagem pode reforçar estereótipos e potencializar processos coloniais. Segundo Walsh, muitas das políticas públicas no campo educacional no Brasil e em toda América Latina se utilizam do termo ‘interculturalidade’ quando na prática, apenas incorporam novos temas com padrões epistemológicos eurocêntricos e coloniais. Portanto, problematiza e questiona essas concepções meramente inclusivas.

A interculturalidade crítica [...] é uma construção de e a partir das pessoas que sofreram uma experiência histórica de submissão e subalternização. Uma proposta e um projeto político que também poderia expandir-se e abarcar uma aliança com pessoas que também buscam construir alternativas à globalização neoliberal e à racionalidade ocidental, e que lutam tanto pela transformação social como pela criação de condições de poder, saber e ser muito diferentes. Pensada desta maneira, a interculturalidade crítica não é um processo ou projeto étnico, nem um projeto da diferença em si. (...), é um projeto de existência, de vida. (WALSH, 2007, p. 8 apud CANDAU;OLIVEIRA, 2010, p. 28)

Segundo Steven Feierman (1993), a história da África não era considerada na história da humanidade e quando começamos a introduzi-la nos estudos, ela não preencheu uma lacuna, mas ao colocá-la e considerá-la, modificou-se o todo. É como se toda a história fosse recontada. Feierman diz: “As histórias excluídas anteriormente não apresentam somente novas informações para serem integradas as narrativas mais amplas; elas levantam questões sobre a validade da própria narrativa” (FEIERMAN, 1993, p. 168). O mesmo acontece com a história das artes, do teatro e da dança, com metodologias, tradições e criações do Sul não considerados durante muito tempo. Transformam toda a história da arte, as lógicas, metodologias e fazeres artísticos. O que acontece é um reflexo da esquecida África por conta de um pensamento eurocêntrico e colonialista e sobretudo, racista.

Quais máscaras? Pedagogia da máscara? Até onde podemos ir?

Luciane da Silva (2017), em sua tese “Corpo em Diáspora: Colonialidade, pedagogia de dança e técnica Germaine Acogny” afirma que “recolocar as danças afro-orientadas, em suas formas tradicionais e contemporâneas, no centro dos currículos de formação em dança é crucial para corrigir a eurocentricidade das estruturas acadêmicas”. (SILVA, 2017, p.19) O mesmo deve acontecer com as formas de mascarar-se. Conhecer mais sobre o Cavalo Marinho, a Folia de Reis, o Cazumbá

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do Bumba Meu Boi no Brasil, sobre as máscaras peruanas de Paucartambo e máscaras moçambicanas de Mapiko, têm impulsionado formações de atores com corpos críticos às epistemologias eurocêntricas. Entretanto, não são em todos os currículos de teatro que encontramos tais saberes compartilhados para além das técnicas muito popularizadas na pedagogia da máscara, tais como exercícios desenvolvidos por Jacques Lecoq e a Commedia Dell’Arte italiana. Pedagogia da máscara para atores provém basicamente de exercícios propostos pelo francês Jacques Lecoq, pela tradicional Commedia Dell’Arte italiana e suas atualizações. Mesmo quando buscamos os saberes das máscaras balinesas, nos deparamos com as aproximações e trabalhos da francesa Ariane Mnouchkine e do contato do Théâtre du Soleil com tal cultura.

Cabe considerar, no entanto, que mesmo tendo me aprofundado no universo das máscaras da Folia de Reis, a maneira como percebo o trabalho com a máscara teatral, está inevitavelmente influenciada pela metodologia de trabalho “Lecoquiana”, já que esta foi a base de formação dos profissionais com os quais fui iniciado no universo da máscara teatral. (PAULINO, 2011, p. 158).

Percebemos no Brasil alguns nomes que buscam caminhos próprios no que diz respeito ao mascarar-se, mesmo partindo da formação eurocêntrica, como Tiche Vianna e Ésio Magalhaes - do Barracão Teatro - que buscam uma comédia brasileira partindo do mergulho na Commedia Dell’Arte, trabalhando a aproximação de tal forma ao contexto brasileiro. A Cia dos Bondrés investiga máscaras balinesas, a princípio pelo contato do Théâtre du Soleil, e busca uma aproximação com mestres balineses e um diálogo maior Sul-Sul para desenvolver seu caminho de pesquisa e expressão artística. Rogério Lopes, que a partir de uma pesquisa com as máscaras da Folia de Reis, busca suas origens brasileiras e portuguesas desenvolvendo seu trabalho a partir dessa relação. A Cia. Mundu Rodá com mergulho e pesquisa de aproximação ao longo dos anos com o Cavalo Marinho pernambucano. Vilma Campos e sua pesquisa sobre as máscaras peruanas de Paucartambo. Podemos com essas referências notar diálogos Sul-Sul, com manifestações brasileiras, balinesas e peruanas que permeiam e adentram cada vez mais o contexto dos atores e da pedagogia da máscara. Entretanto, quando se refere a máscaras africanas, os estudos ainda são pautados principalmente nas artes plásticas, que disponibilizam uma pesquisa prioritariamente sobre a dimensão estética e sobre as

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formas de confecção; e também na área da história e ciências sociais, trazendo uma trajetória da manifestação e suas correlações políticas. Entretanto, há uma escassez quando se trata de analisar as simbologias e formas de utilização desse elemento cênico, a máscara, nas manifestações às quais pertencem. O trabalho realizado, portanto, visa dialogar com o mascarado Mapiko de Moçambique em sua dança, vestimenta, relação com os cantos, os tambores, o público e todo o universo simbólico e espiritual envolvido em tal manifestação. A problematização acerca da ligação direta do Mapiko e do Sagrado, não explica o fato das máscaras não serem estudadas. Vimos anteriormente, exemplos no Brasil de estudos de máscaras ligadas às manifestações religiosas como é o caso das máscaras balinesas e as pesquisas, cursos e workshops, grupos que as desenvolvem em cena e batalhas de improvisação com tais máscaras. Mesmo as chamadas “danças afro” e danças dos orixás, as quais têm suas ligações com o sagrado, alcançam um lugar no ensino de dança.

A dança afro é uma linguagem artística que está aberta ao diálogo com dimensões rituais. Nela podem ser congregados fluxos energéticos, gestos narrativos, estruturas de significado, traços culturais inscritos no corpo, estados de entusiasmo, extrema excitação e, acima de tudo, trânsito entre representações. Seus sentidos rituais e catárticos também servem aos criadores como materiais de criação cênica, o que não impede de fazê-los considerar nessa dança os aspectos formais de movimento e seus princípios de esforço muscular, diga-se de passagem, inclusive durante a própria manifestação corporal do transe religioso. (FERRAZ, 2012, p. 14).

Silva (2017) questiona as chamadas danças “Afro” problematizando suas generalizações, a partir do termo que engloba diversas formas estéticas e contextuais. Segundo Silva: “No curso dos últimos 50 anos o termo dança afro foi utilizado para nominar uma grande diversidade de propostas que tinham em comum a referência ou alusão às culturas e sociedades africanas - brasileiras. Entretanto, seus patrimônios coreográficos, simbólicos, técnicos e poéticos amplos agregam genealogias e trajetórias plurais, o que torna limitado o nome.” (SILVA, 2017, p. 89) A partir das colocações feitas, problematizamos também o termo Máscaras Africanas, que contém em si as máscaras tradicionais de diversas tradições de

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distintas culturas e diferentes países. O termo também deve incluir máscaras do teatro e dança contemporânea do continente, máscaras da cena artística africana. Quando me refiro à máscara utilizada no espetáculo “Nós não matamos o cão tinhoso”, ou “O dançarino” de Evaristo Abreu, ou no “(Des)mascarados” de Venâncio Calisto, não estamos falando de máscaras de Mapiko propriamente dita, mas sobre máscaras da cena contemporânea africana, especificamente moçambicana. As máscaras confeccionadas por Toma Toma, mascareiro da Companhia Nacional de Canto e Dança de Moçambique (CNCD) e utilizadas tanto em oficinas como em processos de criação da autora, também são máscaras africanas de uma cena contemporânea, confeccionadas por um mascareiro de Maputo para uma atriz brasileira.

Uma abordagem flexível sobre as fronteiras espaciais nos fornece ferramentas para destruir as limitadas definições de centro e periferia na história mundial. [...] Não precisamos ler a partir de um único mapa histórico que inevitavelmente separa os africanos dos habitantes do Oriente Médio. Podemos ler os mapas em paralelo: alguns para a língua, alguns para a economia, alguns para a religião. Similarmente, quando definimos as fronteiras das práticas de cura da África, não precisamos estancar nossa análise nos limites continentais; nossa história pode se estender para as Américas. Ao adotarmos uma compreensão especificamente flexível e situacional do espaço histórico... (FEIERMAN, 1993, p. 170)

Alargando a noção de fronteiras espaciais propõe-se também pensar sobre o termo máscara afro. Tendo em vista não apenas noção meramente espacial, mas tentando expandi-lo. Foi a partir de tais referências que as máscaras do entre-lugares descritas anteriormente neste capítulo, foram criadas, pensando nesses conceitos de fronteira, zona fronteiriça, conceito que será mais abordado no capítulo 4.

[...] campos múltiplos das danças afro-orientadas, tais como dança afro, dança afro contemporânea, dança negra, dança negra contemporânea, dança africana, entre outras – com suas devidas circunstâncias, especificidades, territorialidades conceituais, políticas e poéticas que carregam histórias e itinerários muito próprios de contextos e linguagens que extrapolam a proposta desta tese, mas que não nos escapam como universos correlatos. (SILVA, 2017, p. 87).

Pensemos no termo afro-orientada proposto por Silva (2017). O termo englobaria máscaras das tradições afro-brasileiras, máscaras provenientes de

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referências africanas, de referências afrodescendentes, além das máscaras de tradições africanas e das máscaras da cena de teatro e dança de todo um continente. Mas… até onde podemos ir? Qual é o limite do trabalho com máscaras?

Acredito que o limite não é dado por regras, ou leis, mas pelos sujeitos estudados, e nesse caso digo o povo Maconde, os grupos de Mapiko, os mascareiros, integrantes do grupo de pesquisa, atrizes, atores e dançarines que realizaram as oficinas. Também pelo meu próprio limite no fazer de minha prática e as próprias máscaras com as quais trabalhamos. Respeito aos encontros, aos diálogos, buscando trocas e não uma hierarquização do discurso. Parece-me óbvio quando me refiro ao respeito aos artistas que participaram de tal investigação, mas acredito que para alguns leitores pode parecer não palpável o limite dado pela máscara. Talvez soe como “misticismo”, mas nas experiências que tive e durante trabalhos com outros mascaramentos que realizei com mestres tais como Tiche Vianna, Fernando Linares, Ésio Magalhães, nota-se uma lógica própria da máscara, vontades e também limites impostos por elas (tópicos que serão aprofundados no capítulo 4). Basta ouvi-los e estarmos atentos a esse respeito para com elas. No conto “A casa da tradição” é levantada a questão de um espírito da máscara. O conto deságua por outras problemáticas, como a visão mercadológica das máscaras, as classificações de arte tradicional em museus dentre outras. Entretanto, aqui, trataremos da máscara como possuidora de um caráter, de uma lógica com vontades e limites e a problemática do respeito com um artefato mágico-religioso. Para os macondes é a máscara que permite que de fato um espírito ancestral lihoka venha para a terra dançar. Tal espírito tem lógicas e vontades próprias. Sendo assim, as máscaras de Mapiko são de fato mágico-religiosas, são pontes de conexão entre o mundo dos vivos e dos mortos. Por esse motivo, em todo o trabalho prático descrito não foram utilizadas máscaras de Mapiko confeccionadas para dança de Mapiko. Por respeito a uma tradição que não é vista como teatro ou dança, mas como Mapiko, com toda a complexidade que tal manifestação envolve, sendo ela espetacular, entretenimento, ensinamento, ligação espiritual e etc.

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MOISÉS - Mapiko é aquele Mapiko completo, usa aquela vestimenta toda. Aquilo chama-se Mapiko. Então se eu ponho uma máscara e vou ali dançar um contemporâneo, posso chamar um espetáculo de máscara. [...] não é porque ponho a máscara que temos um Mapiko. Mapiko é aquele que você conhece.

As máscaras de Mapiko utilizadas durante toda a pesquisa foram máscaras confeccionadas por mascareiros moçambicanos (Eusébio Simões e Tomás Melisse) feitas especificamente para a autora, tendo ciência de que a atriz e dançarina as utilizaria em suas pesquisas. Eusébio Simões é mascareiro e artesão maconde tendo confeccionado máscaras de madeira bem fiéis ao estilo de confecção de máscaras tradicionais de Mapiko, entretanto, sem o intuito da utilização em manifestações e rituais. Tomás Melisse, de Maputo, mascareiro e cenógrafo da Companhia Nacional de Canto e Dança confeccionou máscaras tendo como inspiração as máscaras de Mapiko, mas dialogando com o tecido moçambicano Capulana, criando assim algo especificamente para a cena. As máscaras utilizadas nas oficinas oferecidas em Maputo 2018 foram frutos da pesquisa da autora em ‘confecções do entre lugares’ no atual capítulo, que dialogam com referências africanas (Congo, Nigéria, Moçambique) e brasileiras. Como lidar com segredos e religiosidades sem desrespeitá-las é a questão que deve sempre vir à tona. Como lidar com segredos? Como entrar em contato com danças sagradas? Como vestir máscaras de outros ou mesmo de nosso próprio país não sendo elas de nossas vivências? Contextualizar? Descontextualizar? É de suma importância que tais pontos sejam questionados, mas não resolvidos, para que eles nunca desapareçam dos nossos caminhos e sempre nos sigam.

São raros mesmo os que admitem a expressão cultura afro-brasileira fora da categoria folclore brasileiro. E não faltam razões para isso, pois a cultura negra no Brasil se mantém, em grande parte, devido à sua possibilidade de se disfarçar e calar. Queremos dizer com isso que a cultura negra pode sobreviver, escapar ao extermínio, porque se guardou no recesso das comunidades religiosas (os terreiros), disfarçando-se quando queria, silenciando quando devia. (SODRÉ, 1974, p. 5 apud SILVA, 2017, p.96).

No que tange as epistemologias afro-orientadas, a principal pesquisa pedagógica em dança no contexto brasileiro está ligada, segundo Luciane da Silva,

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às movimentações e simbologias dos orixás. “Nessas investigações, as noções de técnica corporal e linguagem se inspiram e fundamentam nas formas de religiosidade afro-atlânticas, e configuram-se como tema para muitas das pesquisas cruciais no campo das danças afro-orientadas.” (SILVA, 2017, p. 95-96) Esse movimento está a se fortalecer e busco um olhar semelhante para o mascaramento africano, não entrando em questões religiosas, mas dialogando com esses saberes, assim como o diálogo é feito com as danças afro-religiosas, com máscaras balinesas e outras manifestações religiosas. O diálogo com a máscara de Mapiko na atual pesquisa é um encontro que se dá de forma particular, assim como cada um dos encontros acima mencionados.

Desnorteando nosso fazer – Pedagogia Decolonial das Máscaras

Locus de enunciação alternativo (colonial, pós-colonial e periférico) que não está situado fora do chamado centro, mas num outro centro. Assim, o “outro intelectual” não é alguém isolado do primeiro mundo, mas um igual no sentido de que o conhecimento está disseminado entre vários mundos. A questão básica seria, então, dar uma resposta à pergunta: a partir de qual lugar de enunciação o sujeito cultural percebe as situações coloniais? E, ainda: em quais das tradições culturais a que teve acesso o intelectual se coloca? Uma resposta possível, segundo Mignolo, seria procurar entender o discurso do escritor do terceiro mundo não em si mesmo, mas em relação a outros loci de enunciação com os quais dialoga, contestando-os, corrigindo- os ou ampliando-os. (REIS, 2011, p. 28).

Eu falo como alguém do sul, alguém das Américas, alguém do Brasil que segundo os livros foi colonizada em 1500 e “independente” em 1815. Falo de baixo da linha do Equador. Sou alguém que estudou em História a Grécia como berço da humanidade, o nascimento do teatro nos ritos gregos, mas que sempre escutou as histórias de Santos e Orixás, e que tinha o tio treinando capoeira em seu quintal. Falo do lugar de quem dançava Ballet na escola e ia à Umbanda às sextas-feiras com sua mãe. Falo de tradições e experiências vividas por mim, dentro da minha identidade como brasileira, e também a partir das tradições com as quais entrei em contato. Obviamente existem muitas visões do Sul. O sujeito que fala de uma ex- colônia da América Latina é diferente do sujeito que fala da ex-colônia Moçambique por exemplo. O artista moçambicano contemporâneo tem avós ou mestres que

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lutaram na guerra de libertação, que viveram a realidade das colônias. Já o atual artista brasileiro tem em sua história uma colonização distinta e distante da sua realidade. Entretanto, ambos foram formados por sistemas educacionais filhos do colonialismo e eurocêntricos, onde se aprende tanto nas escolas primárias e secundárias, como nas universidades de teatro, a história mundial do teatro e da humanidade tendo como centro, origem e referência principal a Europa. Gregos, suas mitologias, filosofias e seus teatros; Stanislavski, Grotowski, e Jacques Lecoq são as bases de pensamentos e formações de tantas escolas no Norte e no Sul. Não podemos negar nossa formação acadêmica e escolar eurocentrada, e reconheço seu valor em princípios, técnicas, importâncias e competências. A questão que é recorrente atualmente em diversas regiões do Sul é como dialogar nossa identidade dentro de nosso contexto.

Quais seriam nossas possibilidades de repensar os modelos europeus totalizadores, normatizadores e supostamente universais? Quais diálogos epistemológicos podemos fazer no sentido de abrir espaços para ideias, vozes e conceitos oriundos dos espaços apartados dos centros de poder? Responder a essas perguntas implica em considerar que a descolonização exige profundas transformações nas estruturas de saber e ser, ligadas às instituições, aos relacionamentos comunitários e ao próprio self. (SILVA, 2017 p. 84-85)

Não podemos negar nossa história e o contexto no qual fomos formados. Metodologias são formadas a partir desses corpos, corpos que mesmo querendo ressaltar suas formas e suas culturas também são corpos colonizados em suas formações, ideias, lógicas e pensamentos. Quando vou à sala de trabalho meu corpo tem como referência formações das escolas europeias e elas continuam no meu corpo fronteiriço (termo que será discutido no capítulo 4). Lido com elas e sei que vão continuar presentes. Entretanto, percebi no meio do processo que precisaria somar referências ao meu corpo, para que ele não conheça apenas esse caminho no qual foi formado. Então, uma mistura de práticas foi experimentada e fui desenvolvendo os exercícios que me deixam ainda, de certa forma, sem reconhecer o caminho a ser tomado.

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Nosso caminho desnorteado para mascarar-se – Pistas para se perder

A verdade é que eu não sistematizei uma metodologia ou uma pedagogia para mascarar-se. Não tenho um processo ou uma epistemologia a propor. Tenho pistas a partir de minhas experimentações. Um possível caminho... As oficinas ministradas, as vivências com grupo de pesquisa e as experimentações cênicas dialogaram com inúmeras práticas que formaram meu percurso. E é caminhando que se faz a trilha. Desta forma a metodologia se faz nos encontros múltiplos do trajeto: eu; eu-interno; eu-externo; eu-e-outro; eu-e-máscara.

Como o Mapiko que sai do mato misterioso e retorna a ele, me sinto entrando nessa mata fechada. Sei e sinto que a máscara foi andando por lá, de alguma forma ela me chama e revela sem muitas indicações e detalhes sua direção. Sigo quase cega, em mata densa esse misterioso caminho. Decido passear me sentindo mais perdida do que nunca. Passeio por caminhos que nunca pisei antes. Trilhas novas, desconhecidas por nós. Que caminho é esse que começamos a seguir? Não sei. E quanto mais andamos, menos sei. Não sei para onde estamos indo. Quanto mais eu sigo, menos sei.387

Durante tal processo, percebo que a experiência de estar perdido é tão importante quanto caminhos que guiam. A partir do encontrar-se no meio da mata sem saber aonde ir; do segredo que não alçamos, do frescor para o ato de pesquisar é que as descobertas surgem. Não trago, portanto, uma metodologia, mas pistas. Pistas não só de para onde seguir, mas pistas de por onde se perder, por onde mergulhar, por onde acessar o oceano. O oceano como entre lugares. Uma fronteira entre África e Brasil. Fronteira com histórias de suor, lágrimas de resistência e sangue de luta, de idas e vindas assim como o mar. Faz-se necessário continuar a pesquisa. Vejo pontes de contato com diversas outras manifestações, possíveis bons encontros e diálogos para com os

387 Relato descrito no Capítulo 3 - Grupo de estudos.

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procedimentos desenvolvidos. Entretanto, o doutorado é uma pesquisa com recorte no tempo e no espaço. Recorte num tempo linear e cronológico, mesmo possibilitando regressos e passeios por diversos tempos a partir de suas investigações e experiências. A questão é que o doutorado não é um fim. Pretendo continuar a busca de novos caminhos, novos encontros e novos diálogos. O que deixo com o compartilhamento dos exercícios proposto descritos a seguir são pistas, são algumas luzes na trajetória, ideias para se perderem, propostas e provocações ao artista da cena.

O leva e o traz das ondas.

As diásporas e os regressos.

O oceano como um mergulho. Mergulho em si.

Identidades e alteridades.

Mergulho na máscara em suas lógicas e seu poder de conexão, de canal.

Apesar dos seixos, dos cascalhos das margens, tentarem raivosamente travar o movimento das águas, elas correm, límpidas, belas [...] Adiante, sempre contumazes, os troncos atiram-se às águas tentando desviar o curso construído com suor. Em remoinhos sonoros, vibrantes, as águas transpõem e arrastam consigo os vários obstáculos com sorriso prateado, reluzindo à superfície. E o mar, sempre aberto, eis que a todos recebe: é o estuário que engolfa, é o delta que se atira desordenadamente (...) E nesse movimento contínuo, perene, nunca se alterou a cor das águas do mar, as suas ondas... (KHOSA, 2017, p.102).

Voltamos ao mar. O mar de questões volta a se movimentar em meus pensamentos e práticas. A tentativa de transformar tais problematizações em ondas para que transbordem para fora do meu corpo e inundem pesquisas semelhantes é proposital. Acredito ser importante questionar nosso fazer, questionar nossos diálogos, nos questionar se estamos sendo éticos, respeitosos, não hierárquicos ou se estamos pensando prática e teoricamente no decolonialismo e agindo dessa forma,

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não apenas em nossos discursos, mas em nossa metodologia de trabalhos práticos e processos artísticos e/ou pedagógicos.

Ele estava ali no seu lugar. No meio do alto do céu e do fundo do alto mar. Onde sabia muito bem estar. Mas a chuva engrossava. Chegava a parecer que não se sabia mais

onde acabava água doce e onde Altoc do começava água salgada. Este meio do alto e fundo confundiam-se. O lugar do menino

estava nebuloso. Os peixes, que desde é que se conhecem por peixes, sabem que Altomar. do u. mês de maio não há chuva. Começaram a confundir-se. Saltavam do mar como que pudessem nadar na água da chuva. Nadavam para fora aos montes. O menino, que tinha que pegar peixe, pegava. Pegava peixe com as mãos. Peixes vinham nadar no seu barco. Esticava a rede e os peixes se encantavam por ela sem ele nem afundá-la. Aquilo era fácil demais. (Conto Alto do céu. Alto do mar)

Odoyá! Yemanjá! E ntó òun gbà ará ní tó náà dò jé odò kàwa E ntó, ni tó ààyò náà dò jé odò kàwa, e ntó, Ni tó ààyò náà dò jé odò k’àwa, e ntó.

Ela conduz, ela salva (resgata) os corpos e guia no rio, É ao rio que nós cumprimentamos, ela conduz, nossa guia favorita, é ao rio que nós cumprimentamos, ela guia, é a nossa condutora favorita no rio, é ao rio que nós cumprimentamos. (OLIVEIRA, 2009, p. 143)

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Exercícios desenvolvidos

Descrevo a seguir alguns exercícios desenvolvidos e sistematizados para compartilhamento em oficinas ministradas e processos cênicos criativos. Os exercícios serão apresentados divididos em três categorias: Exercícios Raízes, Exercícios Tronco e Exercícios Folhas. As descrições serão acompanhadas de suas referências e em seguida de seus desdobramentos ou variações (quando houver). Os exercícios são apenas pistas para Desnortear nosso fazer. Deixo a proposta de a cada encontro ser árvore, buscando aprofundar raízes, crescer o tronco e criar folhagens. Antes de começarmos é importante falar de algumas lógicas que acompanham todos os encontros e ligam todas as partes dessa árvore descrita (Raízes, Tronco e Folhas). Uma espécie de seiva, conduzida por vasos lenhosos que perpassam toda a árvore do processo.

LÓGICA SEIVA

TERREIRO DE CRIAÇÃO

Terra. Dela a vida brota e para ela a vida volta.

Terreno. Espaço de terra.

Ser Terreno. Ser da terra.

Terreiro. Porção de terra larga e plana.

Também espaço sagrado da religião Candomblé no Brasil.

A ligação com a terra para brotar a árvore dos exercícios propostos é importante. Não digo que precisamos necessariamente de um chão de terra para ensaios e práticas artísticas, mas nos relacionar com nossa terra independente do local. A ligação com raízes, com ancestralidade é dada pela nossa relação com a terra em que pisamos. O espaço do terreiro de Candomblé é um recinto que segue regras ancestrais, é um lugar onde acontece a ligação do ser humano, com o outro, com os mundos e consigo mesmo. Lidando com energias originárias, alimenta o futuro. Rosa

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(2019) aponta o terreiro como outro exemplo de “lugar do entre”. “Um terreiro é um lugar dentro e à parte. Está no coração de suas ruas e é uma própria beira imaginária.” (ROSA, 2019, p. 41) Sacralizemos o nosso espaço de criação. Estejamos em um “lugar do entre” dispostos a diálogos e trocas em várias direções. Emprestemos o termo terreiro, longe de nos aproximar dos saberes e conhecimentos que ali habitam. Emprestemos o termo para nossa porção de terra, para não esquecer a sua importância e raiz. Chamaremos, então, nossa sala de ensaio, espaço de trabalho de TERREIRO DE CRIAÇÃO. Nossa porção de terra sagrada.

O FLUXO

Propõe-se não delimitar algumas barreiras, tais como, o início do encontro/ensaio com a vida lá fora. Experimentaremos, ao investigar o entre-lugares, alongar e chegar ao espaço aos poucos, ainda conversando sobre a vida cotidiana e criando ambiente para que a concentração na investigação e criação surja. Deixemos o espaço extracotidiano se criar… Isso vale para o início dos encontros, mas também para intervalos, ou idas ao banheiro e quaisquer possíveis acontecimentos. Propõe- se que tais pausas não sejam vistas como interrupções, e sim como parte do processo onde a relação de entradas e saídas, de extracotidiano e cotidiano é fluida.

Há uma pausa. O espaço cênico já não existe. Em um piscar de olhos o que era cena vira novamente rua, espaço amplo. Crianças a brincar pelo espaço, pessoas a andar e passar. A banca de músicos é retirada do local, pois vão todos ao pequeno fogo aquecer os tambores. Quase já não se reconhece o local onde a dança acontecia. O espaço vai se adaptando a necessidade: fecha-se um círculo quando o Lipiko dança no centro; forma-se um corredor quando precisa fazer um passo mais extenso; o coro canta e dança abrindo e fechando o espaço do Lipiko; as pessoas se ajeitam como podem para ver melhor a performance do mascarado; crianças sobem nas mangueiras para conseguir assistir bem; o círculo se desfaz quando o Lipiko sai; e durante os curtos intervalos entre uma dança e outra, crianças brincam pelo espaço aberto, antes espaço de dança. O espaço é vivo, fluído. (RHORMENS, 2015, p. 159-160)

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A COLHEITA

Ao finalizar os encontros fazemos uma roda. Segundo Rosa (2019), a roda é um “lugar do entre”. “É um território que é caminho e raiz. Pele vital que tem nos poros o ar e o sangue. Membrana que une e separa388” (ROSA,2019, p. 40). A roda é presente em diversas manifestações culturais. Mesmo o Mapiko muitas vezes em roda, cria esse entre-lugar para o mascarado dançar ao centro. Ela ainda prevê uma descentralização, uma desierarquização. Lugar onde todos os olhares se alcançam, onde as trocas são possíveis e bem-vindas. Circula também energia gerada pelo círculo que mantém o outro espaço-tempo criado ali. A relação com espaço e tempo se transforma. O Jongo, a Ciranda, o Coco, o Xirê, o Samba de Roda, a Roda de Samba, a Umbigada, o Mapiko, o Maculelê, a Capoeira, a dança Xavante Da-nho’re e outras danças circulares africanas guardam os ensinamentos da Roda. “Ninguém forma roda sozinho, e nela, com o coração e a face voltadas para o centro, encontros se dão” (ROSA, 2019, p. 84). Nessa roda os participantes, com olhos fechados, são convidados a deixar imagens virem à sua mente. Lembranças mesmo que fora de ordem do encontro que acabavam de ter podiam ser compartilhadas em voz alta preenchendo de imagens da memória a tela escura dos olhos dos companheiros. Após alguns minutos de livres compartilhamentos, que seguem um fluxo natural e não são impostos e nem cronológicos, abrem-se os olhos. E então, depois de compartilhar imagens, sensações, impressões vindas de lembranças recentes é o momento de se compartilhar o alimento. Ainda em roda, comemos algo trazido por alguém, lanches, frutas ou um chá ou café que seja, mas juntos, borrando os limites do terreiro de criação para o mundo cotidiano e a via que segue.

388 Retoma ideia-expressão de Santos (2004).

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REMEMORANDO

Ao começarmos propõe-se rememorar. Rememorar é reviver na memória. Andando pelo Terreiro de criação, cada um conta podendo usar o texto, mas, sobretudo, mostrando trechos do que foi realizado no encontro anterior. Como flashbacks, cada um vai lembrando passagens e as compartilhando.

MASCARAMENTO

A partir dessa alquimia entre referências e corpo-memória, desse contato e diálogo foram elaborados tais procedimentos e exercícios buscando o mascaramento. O caminho a ser descoberto é pautado no encontro das máscaras que me provocam e que eu as provoco.

MÁSCARA-CAPULANA

A Capulana é um pano retangular de algodão, misturado com fibras sintéticas, com motivos estampados e cores fortes. As estampas representam a flora e fauna das savanas do Moçambique e também desenhos geométricos pela forte influência árabe. (...) É oriunda da Índia e a da Ásia. (...) A Capulana, com os diferentes usos cotidianos e tornando-se um adereço tradicional moçambicano, adquiriu diversos significados que foram a ela atrelados ao longo do tempo e que de tal maneira tornou-se um elemento de representação da cultura local [Moçambique]. Ela representa hoje, através de suas cores, usos e estampas, a nação, grupos distintos e transmite os vários significados dos hábitos e costumes das populações locais. (CAMPO, 2017, p. 2- 6)

Com as capulanas exploradas no exercício ‘Identidade Eu-Capulana’ buscamos um mascaramento. Cobrimos o rosto dos participantes com o tecido- identidade. A referência principal para o mascaramento Máscara-Capulana é o Mapiko Lingundumbwe. Ele é conhecido como Mapiko de mulher. Determinados grupos utilizam máscaras feitas com capulanas. As mulheres dançam mascaradas e os

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homens tocam os tambores. Essa Máscara-Capulana consiste em apenas o tecido escondendo o seu rosto, sem a ideia de rosto, ou personagem proposto à priori. Aproveitamos esse momento para discutir e problematizar o conceito de Neutralidade. O que seria uma Máscara Neutra? Uma máscara sem uma expressão de sentimentos? Um rosto neutro?

Uma máscara sem expressão particular, nem personagem típico, que nem ri, nem chora, que não é triste nem alegre, e que se apoia no silêncio, no estado de calma. A figura deve ser simples, regular e não oferecer conflito. [...] é uma espécie de denominador comum dos homens e das mulheres. (LECOQ, 1987, p. 290)

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389 Máscara neutra de Amleto Sartori. Local: Teatro di Stato (Montreal, Canadá). Fonte: SCHEFFLER, 2018, p. 293.

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Mas o que é um rosto neutro? Mesmo que as máscaras não retratem, ou retratem o mínimo de expressão possível elas trazem fenótipos nos seus traços. Um rosto neutro tem um nariz fino? Não tem olhos muito puxados? Tem lábios não muito carnudos? A neutralidade depende de um referencial. O que é neutro? Aos olhos de quem? O que está fora da neutralidade proposta nas máscaras neutras de Amleto Sartori trabalhadas pelo francês Jacques Lecoq e tantos outros seus discípulos, professores e encenadores ao longo do mundo? Para entender a neutralidade é preciso um ponto de referência.

Para Lecoq, qualquer máscara neutra é “a máscara de todas as máscaras”, pelo sentido atribuído de neutralidade. No artigo Le jeu du masque [O jogo da máscara] (Lecoq, 1987), Lecoq deu indicações da confecção de uma máscara neutra e afirmou que cada um pode fazer a sua. Recomendou o exercício como uma excelente aproximação para saber atuar com ela. Mas ao reiterar inúmeras vezes esta afirmativa com a máscara de couro de Sartori em mãos, em aulas e conferências-demonstração em diferentes países, acabou, de certa maneira, por fundir a afirmação com um objeto específico. (SCHEFFLER, 2018, p. 287)

Segundo Scheffler, a máscara neutra já foi comparada a outras possibilidades que Lecoq via como neutralidades.

Lecoq comparou a máscara neutra de Sartori ao mesmo tipo de estado de calma existente em uma máscara da jovem moça do teatro Nô e em uma máscara da Costa do Marfim. Teriam elas inspirado Sartori na confecção ou foram apenas constatações posteriores? (SCHEFFLER, 2018, p. 290)

É fato que tal máscara foi feita na França tomando como base o rosto de Jacques Lecoq. A proposta da máscara neutra de Lecoq e Sartori busca um rosto com o mínimo de expressões possíveis, um “estado de neutralidade que precede a ação, um estado de receptividade ao que nos cerca, sem conflito interior.” (LECOQ, 2010, p. 69) É um “instrumento pedagógico” para trabalhar diversos fundamentos da cena e atuação. Entretanto, o fato de tal objeto percorrer o mundo com traços específicos em sua forma, trouxe tais problemáticas. Por que não seguir as indicações do próprio Lecoq em cada um fazer a sua? Quem sabe assim a neutralidade não fique sendo representada por um rosto aparentemente europeu.

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390

Como no presente trabalho a proposta é desnortear e não buscar um centro hierárquico, não definiremos ou buscaremos uma neutralidade. Com as Máscaras- Capulana podemos explorar a potencialização de suas expressões físicas, uma não verbalização, uma escritura física e sua precisão (aspectos trabalhados por Lecoq, mas também por diversas outras manifestações mascaradas como, por exemplo, o Mapiko).

MÁSCARAS DO ENTRE- LUGARES

Utiliza-se para os exercícios máscaras confeccionadas para a presente pesquisa. O exercício da confecção do entre-lugares descrito anteriormente neste capítulo é importante para dialogar os universos que se pretende explorar.

390 Da esquerda à direita: Máscara Nô, Ko-Omote (início do século XV);Máscara Dan, Costa do Marfim; Máscara neutra de Amleto Sartori.(SCHEFFLER: 2018, p. 290)

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OUTRAS MÁSCARAS

Utilizam-se também máscaras criadas por artistas moçambicanos como Eusébio Simões e Toma Toma. A ideia de confecção realizada pelo mascareiro Toma Toma mistura o universo masculino e feminino. Traz o formato inspirado em Mapiko, tradição masculina e cobri-la de Capulana, tecido normalmente visto como símbolo do feminino, da mulher moçambicana, traz esse diálogo entre os distintos universos.

Irôko Kissilé! Àgògbó mi ìrokò sé mi rò, òrò imonlè Àgògbó mi ìrokò sé mi rò, òrò imonlè

Dê-me licença, floresta, que Iroko me faça cultuar Dentro das tradições e costumes dos Irunmalé. (OLIVEIRA, 2009, p. 44)

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EXERCÍCIOS RAÍZES

Visam a ligação com a terra, com a ancestralidade, as histórias de família, as arqueologias pessoais, tradições. Criar é colocar suas memórias em algo.

AQUECIMENTO DO PÉ AO PÉ - ULUNGU MALI

EXPLICAÇÃO: O exercício consiste em aquecer o corpo, mexendo as articulações e acordando as musculaturas. Tais movimentos devem começar pelos pés, indo até a cabeça e retornar aos pés para finalizar. O exercício é realizado em pé. Durante o alongamento são introduzidos alguns conceitos sobre o porquê optamos por começar pelos pés e terminar com os pés. Começamos, na verdade pela terra. É da terra que saem as árvores que dão frutos e alimentam o povo. É com terra que se constroem casas e abrigos para noites frias. É do fundo do solo que retiramos água para beber. É da terra que surgem as flores, os aromas, os sabores e os amores. É na terra que dormimos quando já não existimos mais nela. É nela onde estão os nossos mortos. É por ali que andam seus espíritos. Ulungu Mali é uma expressão usada por macondes para dizer que da terra tudo sai e tudo retorna.

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Pensemos os pés, portanto, como portas que deixam entrar a energia da terra, que passeia pelo corpo e depois retorna à terra. Começar e terminar na terra, tendo os pés como orelhas voltadas para o solo. Os pés escutam a nossa ancestralidade. A intenção desse aquecimento é adentrar do racional ao lúdico, no universo que pretendemos trabalhar. Ao alongar podemos ouvir o nosso corpo e realizar movimentos que cada parte do corpo pede. Porque cada corpo é uma identidade, tem uma história ou mais histórias. Histórias recentes - de hoje, dessa noite (de como dormimos, do que dói no momento...). Histórias longas - história de vida, de onde viemos, o que já passamos desde nossa origem, o que nosso corpo já trabalhou, o que temos de machucados, feridas, limitações, facilidades, gostos e etc. Histórias mais longas ainda - aquelas que herdamos, genes, formas corporais, costumes, ancestralidades... Cada um no seu tempo, respeitando suas narrativas. 1°REFERÊNCIA: “Na África, por exemplo, o pé é o ponto de apoio do corpo no mundo. É um símbolo de poder. Os bambaras dizem que o pé é o primeiro sinal de que o embrião e o corpo brotam. O pé é começo do corpo assim como a cabeça é o final. Se os pés, começo do corpo, são esquecidos ou maltratados, também a cabeça funcionará mal. (...) Os bambaras dizem que se temos bons pés, temos bons olhos e nesta sabedoria africana nos é lembrado que a cabeça nada é sem os pés.” (LELOUP, 2014, p.33)

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2°REFERÊNCIA: Alongamento básico das articulações antes da realização da prática. 3°REFERÊNCIA: “Temos em nosso corpo três estruturas em forma de semente: os pés, os rins e as orelhas. E existe uma conexão entre eles. Os pés escutam a terra e nos enraízam na matéria. Os rins estão à escuta das nossas mensagens interiores (...) Quanto às orelhas, elas estão lá para aprender a escutar os dizeres, as informações”(LELOUP, 2014, p.32) 4°REFERÊNCIA : “como nos ensina a tradição hebraica, onde o pé tem o mesmo nome usado para festa, regalo (Reguel), os pés podem ser a porta de entrada da alegria em nosso corpo” (LELOUP, 2014, p. 32)

MEMÓRIAS (LANÇAR E GUARDAR)

EXPLICAÇÃO: Consiste em lançar memórias em uma roda, e ao fazê-la, perceber quais se apega e quais você deixa ir. Perceber memórias mais difíceis e/ou mais fáceis de lançar. Existem algumas que são leves ou mais pesadas? Em que parte do corpo encontro com elas? Com qual parte do corpo lanço-as? Os participantes estimulam a parte do corpo que está associada a essa memória e a partir da região, percebem os efeitos desse estímulo, notando a intensidade, seus deslocamentos e amplitudes no espaço.

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REFERÊNCIA - Onde está a memória? Como se dança a memória? Como ser a memória de alguém ou de alguma coisa? Para os Macondes a memória é materializada e representada a cada dança no corpo daquele que dança, que traz detalhes de ações com precisão e ritmo, que proporciona encontros, que bate os pés trazendo à tona as memórias que as terras avermelhadas tanto guardam.

IDENTIDADE EU – CAPULANA

EXPLICAÇÃO: A partir de tais mãos que lançavam e guardavam memórias escolhemos um tecido. Capulanas (tecidos moçambicanos) estão dispostos no chão da sala e cada um pode escolher ou ser escolhido por um tecido. Acontece uma escolha de “mão dupla”. É importante se permitir escutar e ser incitado por algum tecido, como se algum deles lhe chamasse a atenção e lhe escolhesse ao mesmo tempo em que você o escolhe. Então, é pedido que cada um perceba, explore e descubra seu tecido. As mãos pegam o tecido e o diálogo com ele é estabelecido. Quais cores e estampas são essas? Qual seu cheiro, sua espessura e som produzido? Como se relacionar com ele? Quais as possibilidades? Qual sua temperatura?

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O participante é convidado a Dançar o tecido e Ser Dançado por ele? Como ser também cada elemento da capulana? Esta exploração é o começo da história entre capulana e os investigadores. Se relacionando com ela, dançando ela, colocando-a em seu corpo, mascarando-se e tornando-se ela. Em seguida, cada um deve compartilhar com os outros o que descobriu com seu material. Uma dança pessoal com a capulana, a partir das referências propostas por ela. Sem palavras e apenas com movimentos, cada um dá sua leitura e constrói para o grupo o princípio de sua própria história ligada aquele pedaço de pano. O tecido escolhido será utilizado pela pessoa ao longo de todo o processo em grupo. Quando iniciado o processo, deve amarrá-lo na cintura ou em outra parte do corpo para realizar os demais exercícios. Quando vestir uma máscara, ele estará sobre sua cabeça para auxiliar o encaixe. Quando vestir a máscara-tecido, ele será a sua própria face, a sua máscara. Durante todo o trabalho, ao longo dos outros dias, ele sempre será seu, será você. Sua identidade. Desta forma trabalhamos a construção de história no, com e através do tecido. Depois de certo tempo associamos a pessoa ao tecido e o tecido à pessoa. Damos memória e identidade ao objeto criando também um vínculo entre humano e objeto, uma identificação.

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O pano representa você e você representa-o. Relação que será desenvolvida com máscaras no decorrer do trabalho através de mascaramentos. Esse exercício já é uma aproximação ao ato de mascarar-se. 1°REFERÊNCIA – Documentário: “Na dobra da capulana” Tal documentário mostra a história de muitos tecidos moçambicanos, as capulanas, sendo contadas um pouco sobre várias estampas e sobre o significado que assumem na vida, memória e história do povo moçambicano. Cada uma tem uma história e uma memória. 2°REFERÊNCIA - Quando cheguei a Moçambique, vi aquele colorido das capulanas nas saias, nas cabeças e por todos os lados nas ruas... Percebi que a relação com o tecido ia além de simplesmente uma roupa ou vestimenta. Essa vivência, ouvir algumas histórias e esse DVD, “Na dobra da capulana”, produzido em Maputo, me fizeram perceber que havia algo a mais naquelas peças. Percebi que a memória ia além do que entendia, ela não se dá necessariamente no plano linear. Não precisa estar no passado, mas também no aqui e agora. A memória dá qualidade e significado, ainda não sei ao certo qual palavra usar, mas ela preenche, colore coisas, objetos e corpos. Pensando nisso, comecei a desenvolver exercícios que visavam à simbolização de objetos, incluindo o vínculo afetivo.

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E o campo do afeto abre espaço não só para intimidade, mas para a história e memória em comum. 3°REFERÊNCIA: “Apesar de poder possuir certa fragilidade, o tecido é proteção, cobre e aquece, reveste e esconde. Protege desde o frio até o pudor. O tecido propõe-se, então, até mesmo como uma espécie de pele para o ser humano” (ROSA, 2019, p. 79)

APRESENTAÇÃO – EU VIM DE LÁ

EXPLICAÇÃO: Consiste em um exercício de apresentação. Normalmente é proposto após um aquecimento e o exercício da “Identidade: Eu-Capulana” e/ou outros exercícios práticos. A apresentação é feita em círculo, um por vez, verbalmente. Entretanto, é pedido que cada um, ao se apresentar, busque falar das referências de cada ponto que deseja compartilhar. A proposta é que a apresentação seja feita referindo-se aos mestres, familiares ou amigos que são/foram importantes e revelam quem você é hoje. Por exemplo, se quiser falar algo sobre como você é ou o que você faz deve-se lembrar de onde isso veio, a quem se refere, quem te ensinou, influenciou e etc. A investigação inevitavelmente trabalha com a percepção do passado. Ela inverte nossa lógica cotidiana e convida o participante a explorar outra relação com o tempo.

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1°REFERÊNCIA: Amadou Hampâté Bâ “O que a África tradicional mais preza é a herança tradicional (...) ‘Aprendi com meu mestre.’ ‘Aprendi com meu pai’. ‘Foi o que suguei no seio de minha mãe.” (HAMPATÉ BÂ, 2010, p. 174) Em respeito aos que vieram antes, os africanos, referindo- se a sua família e aos seus ancestrais, reconhecem a origem e a importância de todos que participaram da formação do indivíduo. Segundo Amadou Hampâté, “Para o africano, a invocação do nome de família é de grande poder. Ademais, é pela repetição do nome da linhagem que se saúda e se louva um africano” (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 205) 2°REFERÊNCIA: École des Sables Fala repetida muitas vezes durante professores na École des Sables. Ensinamento de Germaine Acogny. “Si tu ne sais pas où tu vas, regarde d'où tu viens”. “Se você não sabe para onde vai, olhe de onde veio”.

DIVERSOS PASSOS

EXPLICAÇÃO: Observar o seu corpo e sua forma de andar. O trabalho com os pés é significativo, pois revela a relação que cada identidade tem com as coisas (terra, céu, gravidade, corpo, morte).

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Pelos pés e pelo ato de andar define como se é, como se resiste à gravidade e ao mesmo tempo se entrega a ela. Reparar como os seus pés pisam a terra (o chão), como se relacionam com ela. A partir daí, explorar diferentes relações dos pés com a terra e como tais mudanças afetam todo o seu corpo e seu caminhar (ritmo, tônus, sensações…). Sugerir: Pés que se entregam à terra. Pés que fogem dela. Pés que rezam, pés que chamam, pés que contam, pés que gritam. Estar com a terra. Explorar a relação com a terra. Quais verbos podemos experimentar para trocar com ela? DESENVOLVIMENTO: Explorar diferentes solos. Como os pés se relacionam com terra seca, ou argilosa? Como trocam com a lama ou com o cimento? Quem sabe um asfalto quente, uma grama macia, a areia ou milhões de pedrinhas? 1°REFERÊNCIA: Na dança de Mapiko, a função dos pés vai além dos passos coreográficos: os pés entram em contato com a terra e falam ao bater no chão. O Lipiko conta histórias com o bater dos pés, “treme a terra” e faz terra aos olhos do público. A ligação e a conexão dos vivos com o mundo espiritual dos antepassados estão simbolizadas no diálogo com a terra. Os pés são nossa ligação com a terra e nos ligam a nossas raízes.

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2°REFERÊNCIA: “Os pés são nossas raízes na terra, os cabelos são nossas raízes no céu.“ (LELOUP, 2014, p.32)

LANÇAMENTOS

VARIAÇÃO DE ‘MEMÓRIAS (LANÇAR E GUARDAR)’: Acessamos a memória e ao alongar os lugares mais doloridos lembrarmo-nos do que fizemos ou do que fazemos para que tais dores tenham surgido. Após tal alongamento iniciamos o exercício de lançar partes do seu corpo. Explorando diversas partes do corpo lançamos e observamos o seu trajeto. Pode-se utilizar diferentes dinâmicas, velocidades, intensidades e planos, deixando imagens surgirem. Busca-se também jogar os nossos sentidos: visão, olfato, audição, tato e paladar. Como é jogá-los? Como é guardar algo com cada sentido? No fim concentramos os movimentos das mãos até ficarem pequenos, buscando um fim da movimentação.

BUSCA DO PASSADO

EXPLICAÇÃO: Correr para trás pelo espaço sem se bater. Posso espiar, posso tentar correr sem olhar. Perceber as costas e entendê-la como seu guia. Qual a sensação de voltar sem ver?

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Como a sua pisada fica? O que o passo muda quando vai para frente e quando vai para trás? Experimentar o mesmo em roda. Roda que gira sentido anti-horário, que volta ao passado. Experimentar girar para ambos os sentidos em diferentes ritmos e posturas. Quais as sensações para o corpo? REFERÊNCIA: Muitos grupos de Jongo (dança brasileira do Vale do Paraíba - SP) levam em consideração o sentido para onde a roda gira. Girando no sentido anti-horário estariam voltando ao passado, reencontrando os antigos. Ao girar no sentido horário vislumbra-se o futuro, o caminho adiante, o porvir.

HISTÓRIA ANTIGA DE FAMÍLIA – CONTAR PARA OUTRO

EXPLICAÇÃO: Exercício em dupla. Um conta uma história antiga de família (algo que ouviu ou que presenciou). Outro, dança o que ouviu (pode escolher algumas palavras ou a narrativa completa). Então, após assistirmos a dança, o primeiro conta a história representificando-a, narrando-a no presente e visualizando o que acontece.

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1°REFERÊNCIA: “O Mapiko revela fatos cotidianos, representifica o passado e acontecimentos históricos, retrata personagens conhecidos e importantes para tal comunidade, assim como figuras que transitam no dia-a-dia de tal povo. O Mapiko funciona assim como um espelho da sociedade, onde tal povo pode refletir sobre seu passado e observar a sua vida presente, trazendo reflexões, nostalgias, críticas e autoconhecimento” (RHORMENS, 2015, p.298) 2°REFERÊNCIA: “Não se trata de recordar, mas de trazer ao presente um evento passado do qual todos participam. (...) E o evento está lá, reconstituído. O passado se torna presente.” (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 215)

SER RAIZ

EXPLICAÇÃO: Nesse exercício é pedido que visitem imagens de raízes e, então, explorem como ser raiz? Como pisa o pé ao criar raiz no chão? Como anda? Como são grossas raízes, finas raízes, raízes superficiais, raízes profundas, rizomas? O que se escuta lá embaixo? Qual sua textura? Cheiro? Gosto? Força? 1°REFERÊNCIA: “Germaine Acogny, que traz em sua pedagogia a figura do baobá, com raízes profundas e galhos extensos, acionando a perspectiva de um corpo profundamente aterrado e, ao mesmo tempo, em constante expansão, com tronco e extensões em crescimento.” (SILVA, 2017, p. 152)

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2°REFERÊNCIA: Trabalho de enraizamento do LUME (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP).

MEMÓRIA E SUA CONEXÃO COM SENTIDOS

EXPLICAÇÃO: Explorar os sentidos e ativar memórias. Explorar o tato com olhos fechados. O que meu corpo quer dançar com isso? Sentir um cheiro... Como meu corpo dança esse cheiro? Pode ser algo que realmente sinto no início e depois posso imaginar e viajar nas imaginações. Se possível explorar distintos ambientes externos. 1°REFERÊNCIA: Exploração do sentido pela dança experienciada nas aulas de Alessandra S. na École des Sables. Experiências em dançar no mar e em uma floresta de Baobás, perceber os ambientes e as diferentes naturezas com diversos sentidos. 2°REFERÊNCIA: Exercícios sobre mascarar-se realizados com Fernando Linares e com Roberta Calza, provindos de formação lecoquiana. Exercício de máscara onde sou o que vejo, o que sinto ou ouço. O que recebo com sentidos. Desta forma, vejo mesmo buscando em lugares distintos exercícios que dialogam. Um entre-lugares de referências eurocêntricas e das chamadas epistemologias do sul. Segundo Soyinka, característica comum em “sujeitos híbridos culturais”, termo que será discutido no capítulo 4.

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JOGOS E BRINCADEIRAS ACESSAM RAÍZES

EXPLICAÇÃO: Perceber o jogo, a brincadeira como mergulho e diálogo, mas principalmente, como um condensado de saberes, assim como discutido no capítulo 1. O jogo ou a brincadeira, além de proporcionar comunicação e acesso ao universo lúdico, proporciona também, contato muitas vezes com a musicalidade, a disposição física (movimentos, posturas etc) e as relações culturais. Também funciona como lógica, como pensamento, um simbolismo de determinado grupo ao qual tal jogo pertence. Por isso, acredita-se que a brincadeira e os jogos são dispositivos para mergulhar no universo do outro ao dialogar identidades e alteridades.

BRINCANDO DE AMATUE

EXPLICAÇÃO: Amatue é uma brincadeira tradicional moçambicana. Um jogo infantil onde em roda canta-se e dois vão ao centro girar. A proposta é que primeiramente começa-se a cantar. Ama Tue. Aprendendo o canto, suas palavras, ritmos e melodia.

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Amatue tue / Tue tue / Tuela mwananga Tue

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A letra é um convite “Vamos girar meu (minha) filho (a)”. Brinca-se entre solo e coro com cada um do grupo para que todos tivessem confiança na letra, ritmo e melodia. Então, começa-se a jogar. O jogo consiste em uma roda onde dois participantes vão ao centro e com as mãos entrelaçadas giram. Então, um deles sai e o que fica escolhe outra dupla. Enquanto gira-se precisa-se deixar o peso para trás confiando que as mãos e o peso do outro o sustente. É preciso ter confiança e deixar seu peso. Quando salta-se para girar é preciso pensarmos em tocar com os pés no chão, produzindo som. O impulso nesse caso deve ser: ir para o chão e não para alto.

391 (PRISTA: 1992, p.17)

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DANÇA EM DIÁLOGO

EXPLICAÇÃO: Cada participante traz um movimento por vez e todos imitam tais movimentos. Uma dança formada coletivamente. É proposto que cada um traga segmentos de movimentos de danças que já teve algum tipo de contato. A pessoa repete o movimento e os demais o imitam. A ideia é tentar trazer para seu corpo tal movimento da forma mais fiel, tanto na sua estrutura, como na sua intensidade, pulso e energia interna. Exercício muito utilizado quando o grupo é composto por integrantes de diferentes etnias. Aprender coreografias de danças distintas, as quais você não domina, é uma forma de dialogar com outra cultura. Dialogar é comer, é provar e entender como seu corpo se comunica com tais movimentos e sonoridades. Esse é o mergulho proposto aqui. 1°REFERÊNCIA: Inspirada na minha experiência de aulas de dança com Mariama Camara392 (da Guiné) com Lenna Bahule393 e Judith Novela394 (de Moçambique) e todas as coreografias distintas (do Brasil, da Guiné, da Costa do Marfim, do Benin, Togo entre outros) que pude entrar em contato e colocar meu corpo em diálogo na École des Sables, a partir tanto das aulas oferecidas por

392 Mariama Camara é guineana e mora no Brasil há 7 anos. É dançarina, percussionista, cantora, coreógrafa e professora. Possui carreira artística consolidada internacionalmente desde 1999, compôs o Les Ballets Africains (1999-2007), e trabalhou com Youssou N’dour, Youssouf Koumbassa e Salif Keita. 393 Lenna Bahule iniciou sua formação em música aos cinco anos tendo ingressado na Escola Nacional de Música (ENM) em Maputo- Moçambique onde nasceu. Desde 2012, radicada em São Paulo, fundamentou sua pesquisa sobre a música vocal e diferentes caminhos para o uso da voz e do corpo como instrumento musical e de expressão artística. 394 Judith Novela é dançarina da Associação Cultural Hodi em Maputo. Ministra aulas de dança tradicionais na cidade. Já se apresentou com seu grupo em diversos países.

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professores de diversas regiões como pelos compartilhamento que cada aluno trazia de seu país. 2°REFERÊNCIA: “Dança é impulso e expressão de força realizante. É transmissão de um saber, mas um saber incomunicável em termos absolutos, pois não se reduz aos signos de uma língua, seja esta constituída por palavras, gestos imaginativos ou escrita. É um saber colocado à experiência de um corpo próprio” (SODRÉ, 1988, p. 137 apud ROSA, 2019, p. 53). 3°REFERÊNCIA: “As ações mecânicas do corpo (que se curva, se alonga, se torce) combinam-se à locomoção (andar, correr, pular, cair) e exaltam a vida trazendo gestos, inclinações, extensões, torções, giros. Tecnicamente, desenvolve reflexões e desmistifica conceitos. O dançarino, muito mais do que executar movimentos, espiritualiza sua técnica, atua enamorando a soberania do corpo no reino do espaço.(...) abre-se à troca, entende o espaço lacunar como possibilidade de transformação e de expressão.” (ROSA, 2019, p. 52)

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EXPERIMENTANDO N’SHOPE

DESCRIÇÃO: Nzope ou N’shope é uma dança tradicional do norte de Moçambique. Nzope, na língua Macua, significa ‘gafanhoto’. Tal dança é realizada apenas por mulheres e recebe esse nome pelo fato de dançarem e pularem corda ao mesmo tempo. Os homens participam da manifestação tocando os tambores. Essa dança normalmente é realizada antes de outra dança tradicional chamada Tufo. O N’shope envolve musicalidade e improvisação ao saltar a corda que é batida de distintas formas. As batedoras da corda normalmente são mulheres mais velhas, mais experientes e mais conhecedoras da tradição. Em 2014, em Moçambique, tive a oportunidade de entrar em contato com tal dança a partir de aulas realizadas com a dançarina Judith Novela. A princípio começamos pela música “E Mutoto”

LETRA DA MÚSICA E MUTOTO: E Mutoti (o último i tem som de o) E Mutoti / E Mutoti /A takuda a mama wanga / A piriri a takuda we E Mutoti / E Mutoti / E Mutoti / A takuda a mama wanga A niku / E Mutoti / A takuda a mama wanga

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Depois de todos os integrantes do grupo estarem seguros com a letra, foi ensinado como pular. É preciso pular três pulos na corda, abaixar durante três tempos, enquanto ela bate em cima de sua cabeça. Depois, mais três pulos na corda e esperar para que ela te deixe sair e inicie a batida com o próximo pulador. Passando algumas vezes pela sequência base, podíamos criar, sempre cantando e pulando o que o roteiro prevê. Colocam-se dentro do roteiro as criações próprias (seu próprio modo de pular, de abaixar, de sair, seus ritmos produzidos com os pés juntos, com o som da corda e o canto). Depois de explorar a dança, é experimentado como se bater a corda (tarefa difícil e de grande responsabilidade realizada pelas mulheres mais velhas na dança N’Shope). DESENVOLVIMENTO: Deixo aqui outra canção de N’shope.

MAMA JULIETA M'MUNHIE / MWANA / ETHAKA YE KAWE KA MUINZUELA UIRA / TEMPWELA E TEMPO Y YAKOTHO (Mama Julieta não deixe a criança andar sozinha. Não sabes que este tempo é o tempo de guerra)

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EXPERIMENTAR MARRABENTA

EXPLICAÇÃO: Marrabenta é música-dança típica de Moçambique. O nome vem da palavra portuguesa: "rebentar". Ela mistura ritmos folclóricos como os Magika, Xingombela e Zukuta, e influências ocidentais. A proposta é de dançar marrabenta com o foco nos pés. Uma dinâmica diferente. Perceber e trabalhar os pés e também ritmicamente seu corpo e o abdômen, sobretudo, mergulhando no universo moçambicano.

EXPERIMENTANDO MACULELÊ

EXPLICAÇÃO: O trabalho com o Maculelê vem do questionamento gerado pela observação de diversos cursos de atores fazendo jogos com bastões e muitas vezes tendo como referência a esgrima. A esgrima é um esporte tradicional que surgiu na Europa do século XVI, tendo sua primeira escola na França. Temos como referências culturais o Maculelê e, apesar de nunca em nenhum curso para atores ou dançarinos eu tenha feito aquecimento com tal dança. Acredito que a esgrima traz algumas qualidades que o Maculelê talvez não proporcione.

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Entretanto, o Maculelê também traz competências que são desenvolvidas, como o trabalho com ritmo, o entrosamento com o jogo, o canto, a percussão e a conexão com a dupla. Competências essas que por sua vez não são todas desenvolvidas pela esgrima. O Maculelê dança com jogo de bastões remanescente dos antigos índios cucumbis. Esta “dança de porrete”, originária da cultura Afro-indígena, foi trazida pelos negros da África para o Brasil e misturada com a cultura indígena local. Propõe-se primeiramente o contato com a canção e o ritmo.

“O Sr dono da casa / Nós viemo aqui lhe ver Nós viemos perguntar como passa vosmicê Como é seu nome? / É maculelê De onde veio? / É maculelê De santo amaro / É maculelê Como é o nome? / É maculelê De onde vem? / É maculelê”

Então, se começa por um ‘passo base’ da dança de Maculelê, já com os bastões na mão. Então, em roda, dois ao centro, jogam com os bastões hora batendo no chão, ora no bastão de sua dupla.

395

395 (COLARES; PAIVA, 2016, p. 102)

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EXPERIMENTANDO COCO

EXPLICAÇÃO: O Coco é uma dança tradicional do nordeste brasileiro. Tem sua origem na união da cultura negra com os povos indígenas no Brasil. Propõe-se dançar Coco e buscar a mesma observação dinâmica. Quando digo aqui observação, não é necessariamente uma observação de quem estuda e analisa racionalmente o movimento, mas estar aberto a possíveis ligações, observar talvez mais no sentido de escuta, de escutar o corpo, as sensações, perceber as imagens e, sobretudo às memórias que podem remeter. Poderíamos trocar a palavra de observação para ausculta (usada pelos doutores ao escutar o seu coração).

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396 (COLARES; PAIVA, 2016, p. 122)

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EXPERIMENTANDO CIRANDA

DESCRIÇÃO: A proposta é que em roda dance ciranda. Com o passo simples da ciranda, nos dois sentidos. Cantando a música e se possível acompanhados de percussão. “O cirandeiro! cirandeiro oh! A pedra do teu anel brilha mais do que o sol”

397 DESENVOLVIMENTO: Propõe-se então que divida a canção. Momentos de coro cantando o refrão e momentos sem canto, somente percussão para realizar pequenos improvisos. Nos momentos de canto em coro todos estão na roda dançando e cantando ciranda. Nos momentos de improviso, todos da roda se abaixam e dois ou três vão ao centro improvisar movimentos. Podem-se retomar movimentos trabalhados anteriormente ou propor uma dança nova. O improviso é livre. Depois de doze compassos volta à roda, levantam todos e começam a cantar e dançar até que vá a próxima dupla.

397 (COLARES, PAIVA: 2016, p. 106)

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EXERCÍCIOS TRONCO

Composto por propostas que visam o aprimoramento específico da linguagem, voltado para o corpo do pesquisar; metodologia de procedimento.

O CANTO COLETIVO - MÚSICAS MOÇAMBICANAS

O canto começa no interior. É gestado dentro do indivíduo e rompe para o mundo expandindo-se a alcançando ouvintes. Usemos o canto para sair da terra. As sementes brotam, criaram raízes e então rompem ao céu. Propõe-se com isso que a cada encontro, após exercícios raízes passe para um segundo momento, exercícios troncos. Para essa passagem o canto vibra interna e externamente, nos unindo em vibração e nos potencializando.

NHANHANA398

Nivo nile nhanhana na hi hahaha / Nivo nayona lhekelela Kambe yona hini lhamalicele / Nivona yona lhekelela399

MARIA (ritmo de Makuay – Província Beira) / música criada no sul – Changana)

Wani Lamba Maria.400 / Wani losa Maria.401 / A Maria.

398 Nhanhana: Pássaro. 399 A música diz: Vi um pássaro a voar. Vi ele a sorrir. Logo que o vi fiquei admirada. Por ver ele a sorrir 400 Tradução: Está me cobiçando Maria. 401 Tradução: Está sonhando comigo Maria.

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GRITO MAMBONI

E Mamboni E / (resposta) E / Va mamboni / Ioe Hiza voni / Vana varila mamboni402

GRITO MAIVAVO (DANÇA MUTXONGOIO)

Maivavo403 / Wchaia a xitende Tolo niku kumile a Wuchene404 a wchaia a xitende405.

NGOMA NA CORDA

EXPLICAÇÃO: O exercício é um procedimento de improvisação. Duas pessoas batem a corda propondo um pulso que pode ser alterado durante a improvisação. Os outros improvisadores sentem o pulso e improvisam células rítmicas ao pular a corda. Tais células, a princípio, podem ser produzidas a partir do contato dos pés com o chão ou com a utilização das mãos sendo palmas ou percussão corporal. O espaço da cena é sempre entre os dois batedores que tem a liberdade de alteração rítmica. Em um segundo momento, os batedores podem propor alterações espaciais, uma nova disposição para a corda no espaço (direções, qualidade de movimentos, localização e etc.). Os improvisadores podem entrar juntos ou não; podem passar; podem emitir sons de fora ou de dentro da cena; podem alterar as formas físicas para pular ou passar pela

402 Mamboni pode ter muitos significados. Pode ser entendido como curandeiros, soldados, guerreiros, pessoas boas, pessoas grandes ou os mais velhos da comunidade. A música é o choro de mães que pedem aos mais velhos da comunidade para irem ver seus filhos que brincam no rio perigoso. 403 Maivavo é a única palavra dita. Na canção explora-se a melodia com essa palavra. 404 Wuchene é um nome de um coletivo de dança. Nessa música o nome do grupo pode ser modificado e adaptado para o que o grupo quiser. 405 Tradução: Ontem eu te encontrei no Wuchene tocando berimbau.

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corda, compondo ritmicamente com todos os outros e o pulso dado pela corda. Todos se comunicam, contam uma história ritmicamente, trabalham com dinâmica e definem juntos um fim. O exercício busca trabalhar a percepção, atenção e estado presente, assim como a improvisação e a construção rítmica de sentido. 1°REFERÊNCIA: Dança moçambicana N’shope.(Explicada anteriormente) 2°REFERÊNCIA: Treinamento com corda realizado em cursos e formações com máscaras com os diretores e professores Fernando Linares406, Tiche Vianna407 e Ésio Magalhães408. Tais artistas desenvolvem um treinamento de percepção, atenção e precisão a partir do treinamento com a corda. Os atores devem realizar sequências lógicas com variações de pulso ou pequenas alterações lógicas das sequências. Tal procedimento também trabalha o coletivo, pois todos devem realizar a sequência juntos. 3°REFERÊNCIA: Gumboot Dance da África do Sul ou Dança de Botas. (Explicado anteriormente) 4°REFERÊNCIA: Ngoma - Comunicação pelos tambores Os tambores são em muitas culturas africanas e afrodescendentes uma comunicação com o sagrado. Os tambores, como agentes de comunicação, também são usados para a sociabilidade entre os homens. A questão de

406 Fernando Linares é ator, diretor, artista plástico e professor da Universidade Federal de Minas Gerais, no Teatro Universitário da UFMG. Dirigiu o Grupo Galpão, Real Fantasia, Cia Candongas e Outras Firulas e Oficina de Peripécias Teatrais, entre outros. Confecciona e dá oficinas com máscaras. 407 Tiche Vianna (1963) especializou-se na linguagem de máscaras pelo ALICE ATELIÊ e pela UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI BOLOGNA, na Itália. Fundou em parceria com o ator Esio Magalhães, o Barracão Teatro, onde pesquisam o teatro popular com base na linguagem das máscaras, da Commedia dell’arte, no palhaço e no ator como veículo da expressão teatral. 408 Ésio Magalhães é ator, Palhaço e Pesquisador Teatral - sócio fundador do Barracão Teatro. Participou das pesquisas Dramaturgia da Máscara e Dramaturgias Contemporâneas. Atuou em Freguesia da Fênix. Atua em "O Pintor", "A Julieta e o Romeu", "O Circo do Só Eu", entre outros. Ministra os Cursos Intensivos de fevereiro.

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ritmos e a musicalização como diálogo também está presente na história negra brasileira, pois durante o tráfico negreiro muitos africanos de distintas regiões, culturas e línguas, tinham que conviver, desenvolvendo tal comunicação.

Quando as famílias negras chegavam escravizadas ao Brasil, eram separadas pelos brancos, que temiam a organização e a revolta. Mas os sinhôs não entendiam que os tambores são nosso laço de união, de comunicação e de ajuntamento. (BATISTA apud SIMÕES, 2017, p. 187).

O tambor ou Ngoma em línguas de raízes Bantu, é um elemento essencial na comunicação e união dos negros da história do Brasil. Tal comunicação é feita ritmicamente, onde as células rítmicas, o pulso e os improvisos produzem significados.

(…) ritmo é visto como um meta-princípio, uma explanação pragmática todavia quase- transcendental daquilo que significaria ser negro e que transbordaria por narrativas, discursos e rotinas cotidianas da diáspora Africana. O argumento que aqui sustento endossa a força e a relevância deste fenômeno que é o ritmo, entendido como prática cultural produtora de significado e ferramenta cognitiva na diáspora africana. (TAVARES, 2012, p. 3 apud SIMÕES, 2017, p. 190).

EM QUE PÉ ESTAMOS?

DESDOBRAMENTO DE ‘DIVERSOS PÉS’: Se apresentar com o pé. Que pé é esse? Quem é esse? É possível diálogos entre pés? A proposta é apresentar uma cena apenas com os pés. Escondendo o resto do corpo, seja com tecidos, cortina ou biombos.

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DIÁLOGO: CORPO E SOM

EXPLICAÇÃO: O exercício começa em duplas, onde um assume o papel de músico e outro de ator/ dançarino. Ambos estão em cena. Inicialmente, um músico o acompanha desenvolvendo um som para cada ação realizada. A prática tem seu desenvolvimento. Em determinado momento, o jogo se inverte e o ‘ator/dançarino’ passa a desenvolver a ação para cada som realizado. Em um terceiro momento, depois de exploradas as duas primeiras possibilidades, os dois artistas seguem juntos. Quando há ação há som, quando há som, há ação. Não se sabe quem dá o estímulo e quem responde, pois os dois caminham juntos. A improvisação pode ser desenvolvida ainda com dois atores/dançarinos em cena e dois músicos. Cada um acompanhando sua respectiva dupla. A atividade atinge outra camada quando, além do diálogo das duas duplas de músicos e atores/dançarinos, surge outro músico para criar o ambiente ou o pulso da cena. Esse exercício pode ser feito com ou sem máscaras. 1°REFERÊNCIA: Estrutura e precisão rítmica do Mapiko. Quando o dançarino vem dançar Mapiko, o único amigo do mascarado é o batuque. A percussão tanto segue os passos realizados pelo mascarado como dirigem seus movimentos através de variações rítmicas, respondendo aos níveis de energia do Lipiko através de mudanças no andamento do batuque. A conexão das ações com o toque do tambor as torna cada vez mais precisa e limpa.

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2°REFERÊNCIA: View points View Points é uma estrutura de improvisação desenvolvida por Mary Olerline e Anne Bogart. Consiste em nove pontos de vista para explorar a improvisação, se relacionando com as informações do espaço e com experiências de tempo: Relação Espacial, Arquitetura, Forma, Gesto, Topografia, Repetição, Ritmo, Resposta Cinestésica, Duração, Tônus, Dinâmica, Aceleração/Desaceleração, Silêncio e Timbre. View Point Resposta Cinestésica. Em tal exercício, cada ator deve ficar em seu espaço delimitado anteriormente. Ampliando sua percepção devem responder a estímulos (visuais, táteis ou sonoros) se movimentando a partir deles. Nesse exercício, os atores poderão explorar a Resposta Cinestésica, trabalhando uma escuta sútil, a ampliação e o cruzamento das percepções dos atores presentes na improvisação. 3°REFERÊNCIA: “O tambor marca o ritmo do dia, da noite, dos encontros, das expressões e dos anseios, traz o vento para que a asa da dança faça seu voo, traz o sangue da vida propiciando a comunicação, a troca de sensações, a inventividade, a comunhão entre os que abrem vagas no tempo, nos braços do ritmo,” (ROSA, 2019, p. 82)

RITMO ESTRUTURA

EXPLICAÇÃO: Trabalho com ritmos. Pegar uma base rítmica que se repete (Ostinato). No campo musical, um ostinato consiste em uma frase musical que é continuamente repetida durante uma música. A repetição pode ser dada por um padrão rítmico, uma melodia ou parte dela. No caso do Mapiko o ostinato se dá por repetição de padrão rítmico. Propõe-se partituras simples de ostinatos e

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com isso os participantes devem criar uma cena com movimentos realizados nesse ritmo. Exemplos para utilizar neste exercício:

Ritmo básico do Samba de Roda:

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Ritmo básico do Maracatu:

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E os ritmos dos Mapiko apresentados nas referências abaixo. (normalmente utilizo apostilas para instrumentos de percussão e bateria) DESENVOLVIMENTO: Após a criação de uma sequência curta de ação com a sequência rítmica ostinato, explorar outra sequência rítmica. Realizar outra sequência de ação, com uma estrutura rítmica que funcionará como uma espécie de solo. Então, retorne a sequência do ostinato. Desta forma terá: ostinato - solo - ostinato. Pode-se aumentar solos, mas sempre voltar a sequência do ostinato. Tal exercício desenvolve uma aptidão de compreensão rítmica e precisão de movimentos para realizar as ações.

409 (COLARES, PAIVA: 2016, p. 61) 410 (COLARES, PAIVA: 2016, p. 108)

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Exemplo para o Solo:

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DESENVOLVIMENTO 2: Com ações criadas a partir do Ostinato e Variação podemos experimentar unir pequenas sequências. Tendo a mesma Base (ostinato) podemos em duplas juntar as seguintes sequências:

1: base + variação + base + variação + base + base 2: base + base + variação + base + variação + base

Chamemos de Base a criação com ostinato e de variações improvisos (solos). Desta forma, a base se mantém e a variação passa de um para outro.

411 (CHESTER, 2016, p. 14) 412 (CHESTER, 2016, loc. cit.)

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1°REFERÊNCIA: Os Vinganga realizam uma espécie de ostinato. A repetição do padrão rítmico serve como pano de fundo onde os tambores Ligoma e Likute atuam como protagonistas. Em cada uma das formas (Nchakacha e Lishesho) os Vinganga tem sua especificidade rítmica. A seguir será apresentada a estrutura rítmica (padrão) realizada pelos Vinganga durante o Lishesho e o Nchakacha.

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414 2°REFERÊNCIA: “Ritmo é rito (que, por sua vez, é extensão corporal e emocional do mito) (...) E o corpo (...) é o próprio território do ritmo.” (ROSA, 2019, p. 50)

413 (RHORMENS, 2015, p. 78) 414 (RHORMENS, 2015, p. 79)

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3°REFERÊNCIA: Diversas manifestações culturais têm relação forte com a rítmica. No Cavalo Marinho de Pernambuco (Brasil), cada figura tem em geral, uma música para sua aparição, ritmo que acompanha sua cena e seus movimentos. A geometria de cada máscara Kwele (da região do Congo) guiam os ritmos que serão tocados. As máscaras balinesas inteiras dançam guiadas pelo pequeno instrumento de percussão.

CÓPIA OU INVERSO

EXPLICAÇÃO: Uma pessoa faz algo. O próximo copia ou faz algo que julga o inverso daquilo. O próximo faz algo e o próximo copia ou faz algo inverso e assim segue. Movimento de continuidade e ruptura. REFERÊNCIA: “A ideia de ruptura com tradições artísticas pós-renascentistas marca boa parte dos discursos das vanguardas históricas no começo do século XX. (...) De maneira geral, a tópica do rompimento com as amarras da tradição como ato fundador de novos paradigmas estéticos e culturais marcaram essas propostas, levando o poeta mexicano Octávio Paz a reuni-las sob nome de "tradição de rupturas".” (QUILICI, 2015, p. 43)

DESNORTEAR O CORPO

EXPLICAÇÃO: Contando histórias com partes do corpo. Propõe-se um entendimento não racional necessariamente. Como o cotovelo conta uma história? O que é importante para ele? Ele observa o mesmo que se o joelho contasse tal história? Eles falam ou contam de outra maneira? Trabalhar a importância de falar de outras partes

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do corpo. Cada tipo de posição das mãos ou gestos dos olhares comunicam ao público. O corpo todo que fala. Desnorteado, tirando o foco necessariamente da fala e da compreensão racional, busca-se outros pontos de vistas, novos lugares de fala, uma comunicação simbólica. 1°REFERÊNCIA: O Mapiko conta histórias com o corpo. Sua dança tende a isolar os movimentos dos pés, braços, ombros e cabeça. A polirritmia dos batuques, também está presente no corpo do dançarino. Em diversas danças moçambicanas as partes do corpo se movimentam com ritmos diferentes e no Mapiko essa característica também está presente. O corpo é uma espécie de banca de músicos, de orquestra que toca vários instrumentos harmonizando-os. 2°REFERÊNCIA: Danças indianas e Kathakali. As mãos têm importância de fala nas danças indianas, assim como os olhos tem importância no Kathakali.

DANÇAR HISTÓRIAS

DESCRIÇÃO: Deve-se primeiramente pensar uma narrativa. Pode-se utilizar contos como inspiração, histórias de familiares passados ou criar livremente. Pensar uma história. Propõe-se contar tal história com ações dançadas. Definir três ou quatro ações pontuais para compartilhar a narrativa. As ações podem ser realizadas de forma mimética ou simbólica. Propõe-se pensar na ambiência de tal ação e em sua rítmica, podendo convidar pessoas para realizar tanto sons rítmicos como melódicos em sua cena. Depois de criado e ligeiramente ensaiado veste a máscara e apresenta. A máscara só é vestida no momento da cena.

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REFERÊNCIA: A estrutura de dança realizada no Mapiko da Zona Militar conta com Nchakachas e Lisheshos. A referência principal para tal exercício são os Nchakachas que consistem em coreografias mais longas, danças que contam histórias.

SOMOS ÁRVORES

EXPLICAÇÃO: Trabalha com a concepção de que você é a sua árvore. Será preciso imprimir algumas imagens de árvores. Cada participante escolhe/é escolhido por uma árvore e tenta, a partir de sua imagem ser tal árvore. Como é seu troco? Largo, estreito, alto ou baixo? Como são suas folhas? Onde ela está? Ela está rodeada por outras ou está em um campo sozinha? Lembrar-se de sua raiz sem perder topo da cabeça e os galhos e a copa. Mesmo o participante sendo agora uma árvore, ele deve buscar um deslocamento. Buscar o diálogo entre seu corpo humano e seu corpo árvore. Como essa árvore se desloca? Como esse ser – árvore olha para os outros? Como se relaciona? DESENVOLVIMENTO: Voltar as imagens impressas. Deve-se escrever nela os nomes de familiares e antepassados. Depois incluir nos nomes a lembrança que se tem deles. Após observar sua arqueologia, os integrantes experimentam vivenciar na prática o histórico de sua existência. A partir dos dispositivos compartilhados, eles se tornaram seres-árvores e investigam as possibilidades partindo da sua base familiar. Terão como suporte os nomes escritos no papel e agora, traduzidos em seus corpos. Interessa-nos descobrir como as memórias dos

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antepassados podem alterar fisicamente e simbolicamente a região corpórea. Os integrantes improvisam uma cena a partir da pesquisa levantada, podendo criar em conjunto estruturas cênicas que possam ser posteriormente compartilhadas com os demais. REFERÊNCIA: “A árvore muitas vezes não é o que é, mas quem. Entidade venerada. A força das cabeceiras, gameleiras, jaqueiras, pitangueiras, dos bambuzais e taquarais, e de outras várias árvores sagradas, deve sempre ser respeitada.” (ROSA, 2019, p. 82) REFERÊNCIA: Atualmente, as pesquisas e produções artísticas realizadas pelo LUME vão além da mimese de ações físicas de uma pessoa, trazendo à tona a mimese de monumentos estáticos, a mimese da palavra e da poesia. Desta forma, existe uma abertura da percepção do ator e aprofundamento da observação. A mimese de monumentos estáticos exige uma observação da forma de tal monumento, sua estrutura cor, temperatura, etc. Entretanto, percebe-se com tal aprofundamento da observação, outras camadas do monumento, tal como a vida existente nele, os animais que o habitam ou que transitam por ele e a memória de sua estrutura. 1°REFERÊNCIA: Árvore da família. Genealogia. Mapa de ligações familiares de diferentes gerações.

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2°REFERÊNCIA: Eu aqui estou. Desde que me conheço por árvore sempre aqui estive. Nasci e cresci aqui durante centenas de anos. Minhas raízes foram descobrindo outras profundidades, mas aqui estavam. Meu tronco crescendo, se ramificando, acompanhando todos que por aqui passaram, tocaram, encostaram. Minhas folhas passam para renovar: surgem, ficam por um tempo, atualizam as ideias, e depois partem para dar espaço às novas. Eu aqui. Vendo gerações e gerações de várias outras espécies. (Trecho do conto Baobab)

Baobab

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EXERCÍCIOS FOLHAS

“folhas que alimentam, curam, são nutridas pela seiva que vem da energia retirada pelas raízes ocultas da terra, que lhe garantem a água mãe.” (ROSA, 2019, p. 77)

Tem por objetivo a criação artística. A investigação sensível e criadora.

FIGURAS EM AÇÃO

EXPLICAÇÃO: Prática feita a partir dos Batiques de Moçambique. O participante se inspira na arte moçambicana, e as reproduz em imagens com seu corpo. Partindo dos traços propostos pela coluna da figura, reproduza o desenho em sua coluna. Imagens estáticas se transformam em ações cotidianas sustentadas pelos propositores. Depois, essas figuras precisam decidir para onde seguir e o que fazer, a partir da postura criada com tensões e tônus. Então, refletir de onde veio. Cria-se uma sequência simples de ação, que depois pode ser explorada com pontuações musicais. Qual a história a ser contada

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por essa figura? Os participantes montam uma partitura. Então, são mascarados com Máscara-Capulana e compartilham com os demais a cena criada. 1°REFERÊNCIA: O Mapiko dança sobretudo ações rotineiras. Vem dançar e caçar animais com arcos e flechas. A mulher moçambicana vem plantar, colher, pilar, peneirar e oferecer ao público o alimento imaginário. Também podem representar outras danças tradicionais. 2°REFERÊNCIA: Os Batiques de Moçambique - “As ações observadas no dia-a-dia do povo são inspirações para diversas artes moçambicanas, como por exemplo os Batiques, tecidos tingidos artesanalmente. Tal técnica é tradicionalmente da Indonésia e ao longo dos anos de influência asiática na África, muitos artistas moçambicanos a realizam e a ensinam às gerações futuras. Em Moçambique os Batiques retratam, em sua maioria, ações cotidianas do povo moçambicano. Segundo o artista Gilberto Muzilene “Estas obras retratam o nosso dia-a-dia, o quotidiano.” (MUZILENE, 2015) 3°REFERÊNCIA: O trabalho de mimese corpórea proposto por Otávio Burnier junto ao LUME (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP) visa a

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representificação de uma pessoa através da mimese /imitação de suas ações e gestos observados.

Na mímesis corpórea, o ator, em hipótese alguma, deve se restringir apenas à imitação dos gestos, apesar desse mesmo trabalho de observação e imitação dos gestos ser importante, [...] Porém, o ser humano não é somente corpo físico, mas um corpo físico vivo que contém sensações, afetividades, impulsos, sentimentos, pensamentos, energias e vibrações. O ator-pesquisador tem que ter um corpo físico desenvolvido e preparado e além disso, e mais importante, ser conhecedor do seu universo humano e energético (FERRACINE, 2002, p.29).

3°REFERÊNCIA: Cosmologia do corpo proposta pela técnica Acogny. Coluna como serpente da vida.

RITMO E MELODIA

VARIAÇÃO DE ‘RITMO PULSO’: Aqui passamos a trabalhar com melodias também. Trabalhando em duplas propõe-se a criação de ritmo e de melodia. É preciso criar

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alguns compassos capazes de repeti-los e executá-los algumas vezes. Então, em grupos de quatro pessoas vamos à criação da cena. Os compositores da música vão executar sua criação e dois mascarados vão criar uma cena a partir dessa música. Uma das máscaras se guiará pela melodia e a outra pelo ritmo. Todos tocarão a mesma música com ações, movimentos, gestos, sons de pés, objetos, instrumentos, voz e percussão corporal.

MELHOR AMIGO DO MASCARADO

EXPLICAÇÃO: Exercício com máscara capulana. Em duplas, uma pessoa amarra o tecido, mascarando a outro. Aquele que o amarra e que está ao seu lado é sua ponte com o mundo cotidiano e o guiará explorando sons. A música como guia, como parceira e como seguidora. Explorar estas três possibilidades. Primeiro, só estímulos vocais (todas as duplas exploram ao mesmo tempo), depois cada uma com um instrumento (uma dupla por vez).

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DESENVOLVIMENTO: Com máscara capulana, realizar ações cotidianas com som (realizar uma sequência de uma ação cotidiana – pode ser inspirada em batiques - e depois realizá-la ao som da percussão tocada pela dupla). É preciso concentrar na conexão com o som. Dois atores, um realiza ações que vão contando uma história e outro toca o instrumento, o que age só age quando o som é tocado – não há quem coordene ambos tem que estar conectados – se o som toca o outro age, se o outro age o som toca. Então começamos a propor diálogos. Formam-se grupos de cinco. Cada grupo por vez. Dois atores e dois músicos – cada ator joga com um som produzido. Existe outro músico que dá o andamento da cena. Ele apenas toca o tambor grave e pode intensificar o andamento ou ralentar enquanto os outros músicos são “vozes” dos que estão em cena. REFERÊNCIA: Quando o dançarino vem dançar, o único amigo do Lipiko é o batuque. A percussão tanto segue os passos realizados pelo mascarado como dirigem seus movimentos através de variações rítmicas, respondendo aos níveis de energia do Lipiko através de mudanças no andamento do batuque. A Conexão das ações com o toque do tambor as torna cada vez mais precisa e limpa.

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Exercício tem inspiração principalmente nos tambores: Ligoma, Likute e o Neya. Ligoma (Batuque em Shimakonde) – Tambor médio e grave com membrana de pele animal em uma das extremidades, sendo a outra extremidade aberta, o Ligoma é feito a partir de um tronco cavado. É o tambor que coordena os passos de dança realizados pelo mascarado. As batidas dos pés do dançarino e seus movimentos devem estar coordenador diretamente com o ritmo proposto pelo Ligoma e pelo seu auxiliar Likute, um pouco menor e mais agudo. Neya ou Neha – É o mais alto e estreito dos tambores. Tocado com as mãos, orienta os Vinganga e dá o andamento do batuque, regulando a cadência de todos os tambores.

MÚSICA TEXTO

VARIAÇÃO DE ‘MELHOR AMIGO DO MASCARADO’: É pedido que o não-mascarado que antes realizava sons musicais agora produza sons com palavras. Esse texto pode ser uma poesia/conto que inspirou a ação, uma letra de canção ou texto de preferência simbólico. O som textual

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inspira e guia os movimentos do ator e o ator guia também a dinâmica do texto.

CRIATURA

EXPLICAÇÃO: Criar a partir do material que tiverem disponível (tecidos, madeiras, almofadas, máscaras, recicláveis e etc.) uma criatura coletiva. Primeiramente dois participantes devem se mascarar juntos, criando esse ser e explorando tal figura. Podemos dizer que é uma espécie de máscara de dois corpos. REFERÊNCIA: Na década de 50, criado por Shumu, o Mapiko Washilo trazia durante a noite muitas máscaras representando animais selvagens. Tais máscaras eram de madeira e grandes, às vezes precisando de dois homens para vesti-las. O mascaramento era feito no corpo também com a utilização de paus, folhas, gramas, tecidos, panelas de barro. Na escuridão noturna surgiam fazendo ruídos dos animais selvagens.

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O MASCARAR SURPRESA

EXPLICAÇÃO: Dividindo em grupos de três ou duplas, propõe-se criar uma pequena coreografia, podendo ser composta por de passos de dança e ações ritmadas. Determinar um tempo para a criação, onde cria-se e ensaia- se. No momento da apresentação, sem que saibam anteriormente, deve-se escolher uma máscara para cada integrante sem que eles vejam qual é e o mascarar. Vestem sem olhar o próprio rosto que tem. Realiza-se, então, a coreografia, se possível com músicos acompanhando. Após a apresentação, os integrantes podem olhar a máscara que haviam vestido. REFERÊNCIA: As caras no Cavalo Marinho podem ser iguais, o que comunica o personagem que entra são seus gestos e dança. O mesmo acontece com Mapiko. Muitas sequências coreográficas podem ser dançadas com quaisquer máscaras. E o aprendizado de coreografias e combinações com tamborista principal é feito sem mascarar-se.

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OS ENTRE-LUGARES

EXPLICAÇÃO: Dividir em grupos. Buscar distintas possibilidades de entre-lugares: físicos, emocionais, espirituais e etc. Exemplo em uma ponte. Entre a vida e a morte. Com sono quase dormindo (entre o acordado e o sonhando). Gestação e etc. Depois de criada a cena, realizá-la com Máscaras ou Máscara-Capulana, dependendo da escolha do grupo.

COLEÇÃO DE FIGURAS

EXPLICAÇÃO: Buscando desenvolvimento cênico, propõem- se uma coleção de figuras, as quais vão surgindo durante a prática de exercícios. Como sugestão para o desenvolvimento de cenas pode-se depois criar uma dramaturgia a partir das relações destas figuras.

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REFERÊNCIA: O cavalo marinho é uma brincadeira popular brasileira variante do Bumba-meu-boi. Realizado predominantemente por trabalhadores com corte de cana é situada na região da Zona da Mata em Pernambuco. A trama da brincadeira conta a história de um baile que o capitão Marinho irá oferecer aos Santos Reis do Oriente. O capitão Marinho também deseja comprar figuras para seu baile, então se inicia entradas e saídas das figuras geralmente representadas por máscaras. Seu Ambrósio representa um vendedor de figuras. As figuras representam o imaginário e a história de um coletivo, de uma comunidade. Não há uma ordem fixa para as aparições das figuras. Em cada apresentação, aparecem as figuras que foram escolhidas no momento.

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Capítulo 4 – TERRA: Conceitos em ação

Ogunhê! E oníbodè òrun ó e oníbodè òrun ó, Ni ònòn là ni ònòn là e mònrìwò.

Ele é o porteiro do céu ele é o porteiro do céu. Ele quem abre os caminhos, ele quem abre a passagem, e ele se veste com folhas novas de palmeiras.415

A FRONTEIRA

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As fronteiras demarcam e distinguem objetos reais. Como processo físico, pode-se dizer que as fronteiras, assim como traços em um papel, separam e definem objetos. Mas o que dizer dessa separação quando os objetos não têm existência física? O que dizer da distinção entre coisas, tais como objetos que se transformam,

415 Fonte: OLIVEIRA, 2009, p. 40. 416 Porta em Macaneta. Moçambique. Fonte: Foto da autora, 2018.

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ideias, pensamentos ou representações mentais do “eu”? Nesse sentido, o reconhecimento do “eu” vai além do processo de identificação do que está deste lado da fronteira. Vai além de separar o “eu” do “não eu”. Aqui, a fronteira apresenta-se como um espaço real de reflexão, investigação e diferenciação entre o “eu” que está de um lado e o “eu” que está do outro lado. Desta forma, a fronteira não se restringe à da identificação do objeto, mas experimenta e investiga a alteridade. Alteridade, do termo latino alter (outro), designa a característica de ser do outro, o outro em relação a mim. A relação entre identidades e alteridades demarca fronteiras eu-outro. “A(s) identidade(s) implica(m) uma busca de reconhecimento que se faz frente à alteridade, pois é no encontro ou no embate com o outro que buscamos nossa afirmação pelo reconhecimento daquilo que nos distingue” (HAESBAERT, 1999, p. 175)

Tanto a identidade quanto a alteridade encontram-se presentes na estrutura do espaço fronteiriço, e é por meio de ambos, que os sujeitos constroem sua cultura, seus costumes e formas de vida se diferenciando do “outro” que habita no outro lado da divisória, configurando as relações sociais perceptíveis na fronteira. (GONÇALVES, 2011, p. 1)

Fronteira é uma palavra que nos remete às questões geopolíticas, afinal elas dividem países, estados, cidades e municípios. Marcada por limites naturais, como rios e montanhas ou por construções humanas, físicas, muros, cercas ou linhas imaginárias, acordadas e compartilhadas. Emprestemos, portanto, pensamentos desse universo para explorá-los em diferentes meios. Pois a própria fronteira não tem limites e deságua na liminaridade de outros contextos. Falaremos de limites físicos, temporais e transcendentais.417 Muitas vezes essa separação/diferenciação ‘eu-outro’ pode ser imposta, como por exemplo, as fronteiras coloniais. O Acordo de Berlim em 1885 dividiu arbitrariamente o território africano entre as potências europeias, ignorando as alianças locais, tomavam como base critérios políticos, econômicos e geográficos. Vimos o caso do rio Rovuma e o povo que dividiu-se entre macondes tanzanianos e macondes moçambicanos. A partir dessa relação de diferenciação imposta, os

417 Transcendental – aquilo que transcende, que vai além dos limites, que ultrapassa ou excede, além do normal.

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indivíduos passam a assumir com o tempo identidades distintas que são construídas por diferentes processos históricos de colonização e independências.

A fronteira pode ser vista como algo gerador de raízes e identidades diferentes, devido fato de que nela a construção de “novas” identidades é perceptível (...). A partir do momento em que os sujeitos utilizam afirmações para distinguir o “eu” e o “outro”, surgem elementos para a construção e reconstrução de identidade na fronteira (GONÇALVES, 2011, p. 4).

A união africana estipulou seguir as fronteiras coloniais, mesmo após as independências dos países, com o objetivo de não criar conflitos com negociações. E as autoridades por razões políticas e econômicas controlam entradas e saídas, com a intenção de bloquear o livre-fluxo nas fronteiras, controlando assim o tráfico de drogas, abate de árvores, comércio ilegal de madeira e caça furtiva418 por exemplo. Mas o que acontece de fato nas fronteiras? Como narrado no capítulo 2, o fluxo migratório pelas águas do rio Rovuma ampliou com as condições repressivas no lado português e o aumento de oportunidades de trabalho no lado inglês. E isso se deu em diversas outras regiões. A migração para a África do Sul foi, durante quase um século, característica comum na vida de muitos moçambicanos em busca de melhores condições climáticas e depois de trabalho nas minas.

Mama Lutavi tem um único filho homem, já

moço, já criado. O ano passado havia ido lado outro Do trabalhar fora. Precisavam de homens fortes para um tal trabalho em minas, trabalhar embaixo da terra não é para qualquer homem. É preciso força e coragem para ir trabalhar embaixo da terra de outros mortos. (Trecho do conto ‘Do outro lado’)

418 Caça em busca de pontas de rinoceronte, marfim de elefantes, peles de cobras e de crocodilos e jacarés.

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No conto temos o exemplo do filho de Mama Lutavi que migra por razões econômicas, em busca de trabalho nas minas da África do Sul. Como notamos ao nos referirmos ao Gumboot Dance419, tal processo migratório aconteceu em grande escala em diversos países africanos da região. O fluxo permanece, pois a fronteira, além da diferenciação e a separação, gera áreas de negociações, de oportunidades. Como vimos o exemplo do povo maconde ao habitar a fronteira do rio Rovuma. As águas do rio deixaram correr também pessoas, ideias, comércio, cultura para ambos os lados de suas margens. Atravessar margens poderia representar uma libertadora fuga, a saída de um lado mais opressor. De um outro lado, pode-se gerar riquezas. Comércios de lá para cá. Ideias e ideologias de cá para lá. Máscaras, esculturas, armas, liberdade... Fluxo.

RAIMUNDO (2010) - Voltei a Moçambique depois da guerra civil, na época do repatriamento. No entanto, eu saí no Malawi deixando minha irmã e sobrinhos, porque eles não queriam voltar. Eu visito eles e ajudo minha irmã, porque ela faz parte da minha família. Eu tenho que cuidar dela e das crianças dela. É assim que vivemos aqui em Mandimba. Também, dentro Moçambique, eu tenho outros filhos e esposa que moram no Distrito de Ngauma. Estou aqui devido ao trabalho, mas eles estão lá. Já que estamos ainda casados, eles ainda fazem parte da minha família. Aqui em Mandimba eu tenho alguém que cuida de mim e também é minha esposa” (informação verbal)420

As fronteiras geopolíticas são vistas de maneiras diferentes: a população as veem como oportunidades, às vezes econômicas ou até de sobrevivência. As fronteiras nem sempre são fiscalizadas e o refúgio muitas vezes é uma saída para situações de guerra, como revelou Raimundo, referindo-se a guerra civil em Moçambique. Já as autoridades políticas devem impor e evitar a violação dos limites tendo em vista a proteção da economia nacional e dos recursos naturais contra suas importações ilegais. Acontece que tais barreiras, às vezes, são mais impermeáveis e, às vezes, mais porosas.

419 Capítulo 3. 420 Relato fornecido pela professora Inês Raimundo na Disciplina ‘Memória e deslocamentos populacionais’, oferecida na Universidade de São Paulo (USP), em 2016.

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421 Imagem da Fronteira Mandimba - Moçambique e Malawi. Imagem fornecida pela professora Inês Raimundo na Disciplina ‘Memória e deslocamentos populacionais’ oferecida na Universidade de São Paulo (USP) 2016. 422 Imagem da Fronteira Mussurizi - Moçambique e Zimbabue. Mussurizi - Imagem fornecida pela professora Inês Raimundo na Disciplina ‘Memória e deslocamentos populacionais’ oferecida na Universidade de São Paulo (USP) 2016. 423 Imagens do Rio Rovuma - Fronteira Moçambique Tanzânia. Imagem fornecida pela professora Inês Raimundo na Disciplina ‘Memória e deslocamentos populacionais’ oferecida na Universidade de São Paulo (USP) 2016.

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As fronteiras geopolíticas, como notamos nas figuras acima, normalmente trazem limites físicos (rios, montanha...), ou criações humanas (linhas imaginárias, estradas, pontes...). A fronteira vai além de separar territórios, é uma condição para a relação de diferenciação eu-outro. Martin (1994) distingue limite de fronteira ao defender que o limite é uma linha e por esse motivo não pode ser habitada, a fronteira seria, portanto, uma faixa, uma zona onde se habita. Nas chamadas ‘zonas fronteiriças’ há fluxo, comunicação, trocas, trânsito, intercâmbio.

A fronteira é ao mesmo tempo uma abertura e um fechamento. É na fronteira que acontece a distinção e a ligação com o meio ambiente. Todas as fronteiras, inclusive as membranas dos seres vivos, inclusive as fronteiras das nações, são, ao mesmo tempo, não só barreiras, mas também lugares de comunicação e de intercâmbio. Elas são o lugar de desassociação e associação de separação e articulação. (MORIN apud REIS, 2011, p. 61).

424 Fronteira Ressano Garcia. Moçambique - África do Sul. Disponível em Acesso em 20 de novembro de 2019.

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Monteiro (2004) reconhece a fronteira como lugar de acolhimento do outro. Martin (1994) percebe a fronteira como local de encontros e desencontros. Apesar dos desencontros, não significa que não haja convivência entre as partes e os encontros, contudo, não são simbioses definitivas. Todavia, é na tensão entre as diferenças que nasce o novo, o plural. E como vive-se nessa faixa, nem lá, nem cá?

IDENTIDADES FRONTEIRIÇAS

A professora moçambicana Inês Raimundo, na Disciplina ‘Memória e deslocamentos populacionais’ - oferecida na Universidade de São Paulo (USP) 2016 -, conta de exemplos onde se planta em um país e se vive em outro, fazendo com que tais pessoas realmente sejam de ambos os países, apesar da documentação afirmar sua nacionalidade, sua identidade é fronteiriça. Como é o caso de Mama Lutavi no conto “Do outro lado” (Capítulo 1). Isso define o que Inês chama de ‘fronteiras porosas’ e ‘famílias transnacionais’ (como no exemplo anterior de Raimundo). Segundo Bhabha425 (1998) esse entre-lugares da zona fronteiriça gera uma emergência de diferenciação que não necessariamente implica na alteridade, mas pode resultar novas propostas de ser e de se expressar no mundo, propostas híbridas. Podendo conter diferentes combinações sociais, culturais, étnicas e políticas. Tais formas híbridas desafiam a noção de identidade nacional (gerada/cunhada pelo espaço territorial) que conta uma única narrativa centrada em oposições entre dominante e subalterno, nacional estrangeiro, centro e periferia.

Dança da Fronteira

Tomemos como exemplo a dança Ng’odo. Uma dança mascarada e masculina de Nampanha, uma vila de macondes localizada em Moçambique próxima à fronteira com a Tanzânia. O Ng’odo é uma dança diferente, vista pela população local como ‘exótica’. Segundo Bortolot (2013), Ng’odo é um termo na língua Ndonde que é falada nas planícies do Rio Rovuma. Ng’odo significa negação, rejeição.

425 Homi Bhabha (1949) é indiano e professor doutor “Anne F. Rothenberg” de Humanidades, diretor do Centro de Humanidades Mahindra de Harvard, conselheiro sênior do presidente e reitor da Universidade de Harvard (EUA).

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Uma apresentação de Ng'odo dançou em Nampanha em 2004. Envolveu um único dançarino que realizou duas vinhetas usando máscaras diferentes. Pela primeira vez, ele usava calças folgadas e camisa por baixo de um espartilho de corda pendurado com trapos. Sua máscara era pintada de cinza, máscara facial humanóide com pequenos recursos e um bigode volumoso. Esse personagem palhaço deu cambalhotas e de forma incompetente tentou andar de bicicleta, dirigir um carro e operar um rifle, que terminou em desastres espetaculares. (BORTOLOT, 2013, p. 117)426

Os criadores de tal dança têm uma vida e história vivida na fronteira. Deixaram Moçambique em 1987 para trabalhar na Tanzânia e regressaram somente em 1999, vivendo, portanto, 12 anos como estrangeiros. Contam que essa experiência lhes trouxe conhecimento. Homens viajados que trazem tais experiências na dança criada.

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426 Texto original em inglês: A presentation of ng’odo danced in Nampanha in 2004 involved a single dancer who performed two vignettes wearing different masks. For the first, he wore baggy pants and shirt underneath a tight, braided rope corset hung with rags. His mask was a gray- painted, roughly humanoid facemask with tiny features and a voluptuous mustache. This clownish character performed somersaults and pantomimed incompetent attempts to ride a bicycle, drive a car, and operate a rifle, all of which ended in spectacular disasters. 427 Mapiko ng’odo. Foto de Bortolot tirada em Nampanha, Mozambique, 2004. (BORTOLOT, p. 117).

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Integrantes do grupo de Ng’odo contam que o mascarado "representa uma pessoa que nunca teve qualquer coisa em sua vida e recebe essas coisas - um carro, uma bicicleta, uma arma - por seu irmão ou pai, que diz: ‘Agora você tem que ser motorista de caminhão’. Então ele começa a dirigir o carro e destruí-lo, e então ele recebe um bicicleta e destrói isso também.”428 A dança continua com a entrada de outra máscara facial. Desta vez uma máscara feminina que estava com o corpo envolvido por um tecido. “À medida que a performance ganhou impulso, o dançarino começou a arquear sua coluna para frente e para trás, rolando pélvis enquanto agarra o manto com as mãos. De repente, ele puxou o pano completamente enquanto enganchando simultaneamente os polegares sob as bordas da uma máscara corporal muito grávida que foi escondida dentro, empurrando-o para fora nas faces do público atônito e encantado.” 429 A dança traz outras referências à Tanzânia como o uso da corda bamba430, a representação de Shetani431 (entidades sobrenaturais), máscaras faciais e corporais. Isso traz um caráter estrangeiro para o gênero. O grupo ressalta tais características ao valorizar o conhecimento por tais formas e zombar daqueles que nunca saíram de suas cidades natais.

Esses homens Makonde se viam como atores dentro de novos domínios de poder e novas estruturas de troca que transgrediram antigos limites da geografia, etnia e tradição. Como tal, eles se entendiam como representantes de um mundo distintamente cosmopolita, onde as fronteiras se estendiam muito além das do planalto dos Makonde e os habitantes não se limitavam a Makonde. A

428 Texto original em inglês: masker “represents a person who has never had anything in his life and is given these things—a car, a bicycle, a gun—by his brother or father, who says, ‘now you have to be a truck driver.’ So he starts to drive the car and wrecks it, and then he receives a bicycle and wrecks that too”. 429 Texto original em inglês: As the performance gained momentum, the dancer began to arch his spine back and forth, rolling his pelvis while grabbing at the mantle with his hands. Suddenly, he pulled the cloth back completely while simultaneously hooking his thumbs under the edges of a very pregnant body mask that had been concealed within, pushing it outward into the faces of the astonished and delighted audience. (BORTOLOT: 2013, p. 117) 430 A corda bamba é um recurso utilizado nas danças na Tanzânia desde os anos 1960, 1970. Muito raro em Moçambique. 431 Shetani são entidades sobrenaturais. O termo é em suaíli e é comum à crença das populações costeiras da Tanzânia. Shetani em Moçambique foi adotado como gênero de escultura, desenvolvido na Tanzânia e trazido ao sul do Rovuma. Muito raro utilizá-lo em máscaras.

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arte era um veículo através do qual eles comunicavam a auto-imagem. (BORTOLOT, 2013, p. 118).432

A identidade do ser da fronteira é construída por experiências, historicidades, políticas, economias, pelo intercâmbio entre línguas e costumes. Devemos, portanto, “imaginar milhares de fronteiras, não apenas uma (...) algumas políticas, algumas econômicas e outras culturais.”433 Soyinka nos conta que o continente africano é híbrido, referindo-se a multiplicidade étnica e cultural, que por anos foi interligadas por migrações e invasões internas e externas. Ressalto aqui que Soyinka refere-se não somente a invasões do processo de colonização europeia, mas também “das colônias romanas no norte do continente até a penetração do Império Islâmico, que, a partir do século XVI, conseguiu impor seu poder e religião a vastas regiões.”434 Entretanto é relevante que o processo de colonização europeia ocasionou transformações “tão profundas que a descolonização significou apenas uma etapa no processo de libertação.”435 Com o fim da Colônia e o respeito às divisões territoriais do Acordo de Berlim (1885), os atuais países africanos mantém um carácter multiétnico, plurilinguístico, multicultural por abarcar diversas etnias no mesmo território nacional. Em decorrência de tais processos apresenta-se uma África híbrida biológica e culturalmente. Tais identidades fronteiriças podem ser construídas em fronteiras étnicas como é o caso da Aldeia dos antigos combatentes em Umbeluze, Boane - Maputo. Como o próprio nome diz, a conhecia Aldeia foi formada por ex-militares moçambicanos que lutaram na guerra de libertação do país. Conquistada a independência, muitos deles, principalmente do norte do país, foram habitar o distrito de Maputo ao sul, onde se localizava a capital. A aldeia de Umbeluze, localizada a 35 km da cidade de Maputo, atualmente conta com uma ampla diversidade étnica, onde vivem Macuas, Yaos, Macondes, Machanganas, Tsonga e Chope. Tal diversidade gera uma identidade única do local, onde a mistura de tais elementos culturais torna-se o reconhecimento identitário.

432 Texto original em inglês: These Makonde men saw themselves as actors within new realms of power and new structures of exchange that transgressed former limits of geography, ethnicity, and tradition. As such, they understood themselves as representatives of a distinctly cosmopolitan world, where the boundaries stretched well beyond those of the Makonde Plateau and the inhabitants were not limited to Makonde. Art was a vehicle through which they communicated this self-image. (BORTOLOT, p. 118). 433 (BRAUDEL 1976, p. 170 apud FEIERMAN: 1993, p. 169) 434 (REIS: 2011, p. 22) 435 (REIS: 2011, p. 22)

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Ya! Aqui as coisas se misturam. Misturam o que falam em casa, misturam o que vem? onde De ouvem nas ruas, misturam o que aprendem na escola, misturam… misturam... e de tanta mistura surge novas formas de se comunicar ... novas palavras. (Trecho do conto ‘De onde vem?’).

Como comenta Atanásio, a tendência que está a acontecer em Boane é chegar em uma linguagem híbrida.

ATANÁSIO - Então aquela aldeia (Umbeluze) um dia, vai aprender uma língua homogênea. Vai ficar uma língua deles ali. Em que já, nós aqui chamamos criolo, onde tem Maconde, Macua, Ajauas, Nhanjas, tudo, tudo, tudo, tudo, vamos falar Shimakonde, Shironga, Yao, acaba sendo uma coisa que se tu não és daquela sociedade, não falas.

Portanto, a hibridez pode existir não necessariamente nas fronteiras geográficas, mas também nas culturais, por exemplo. Num contexto de urbanização crescente, de globalização, economias transnacionais e alto fluxo de trocas culturais devido o avanço da tecnologia, surgem o que Soyinka chama de “sociedades complexas moderno-contemporâneas”. Essas identidades híbridas acontecem também nas grandes metrópoles, que são marcadas pela diversidade social e heterogeneidade cultural. Ondaatje436 refletindo sobre, primeiramente, a expansão europeia e a subsequente, globalização irreversível, afirma “todas as culturas estão interligadas; nenhuma está isolada e pura, todas são híbridas, heterogêneas, extraordinariamente diferenciada senão monolíticas.”437

436 Philip Michael Ondaatje Nascido em Sri Lanka (1943) e naturalizado no Canadá (1962) o escritor que com 11 anos foi viver na Inglaterra, tem uma família de origens neerlandesas, tâmeis, cingalesas e portuguesas. Segundo Reis (2011), um sujeito híbrido. 437 (ONDAATJE apud REIS, 2011, p. 25).

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Os sujeitos globalizados, sejam eles artistas ou espectadores, se tornam seres de múltiplas e variáveis identidades: é preciso redefini- los e redesenhá-los incessantemente em função de seus diversos pertencimentos (cultural, étnico, sociológico, político, profissional, sexual etc.) (PAVIS, 2017, p. 145).

Catherine Walsh discorre sobre a identidade mestiça, falando do contexto equatoriano. Indígenas encontram sua identidade no valor ético e luta contra espanhóis. Os brancos têm suas raízes europeias. E os mestiços veem-se sem poder se identificar nem com indígenas nem com brancos. “Uma expressão dessa situação ambígua é a abordagem formulada pelos intelectuais sobre a existência de uma “nova nação”: a nação mestiça e uma nova cultura: a mestiçada, resultado da fusão das duas anteriores”438 Por conta desse caráter heterogêneo e multi das nações atualmente, Bhabha (1998) comenta ser inviável a ideia de identidade nacional. Entretanto, devemos tomar devido cuidado com a expressão multiculturalismo que, segundo Walsh, está associada às relações de poder e colonialidade, onde existem hierarquias entre as culturas presentes. “O multiculturalismo ainda exibe a síndrome colonialista que consiste em acreditar que existe uma supracultura superior a todas as outras, capaz de oferecer hospitalidade benigna e condescendente.439 “(PANIKKAR, 2002, p. 30 apud WALSH, 2009, p. 43). Hansbaert440 (1999) entende a identidade como movimento, processo e não como algo definido fixo e imutável. Acredita que o processo de identificar-se se dá no contato e relação com o outro, sendo assim relacional e dialógico. Desta forma, a identidade seria uma identificação processual. Um mundo plural em constante mudança gera o que Soyinka nomeia “identidade em metamorfose”, onde o “eu” é criado no diálogo entre temporalidades distintas e distintos lugares culturais.

438 (SILVA, 1989, p. 487 apud WALSH: 2009, p. 35) Texto original em espanhol - “Expresión de esta situación ambigua es el planteamiento que formulan estor intelectuales acerca de la existencia de una “nueva nación”: la nación mestiza y de una nueva cultura: la mestiza, fruto de la fusión de las dos anteriores”. 439 Texto original em espanhol - “El multiculturalismo exhibe todavía el síndrome colonialista que consiste en creer que existe una supracultura superior a todas las demás, capaz de ofrecerles una hospitalidad benigna y condescendiente.” 440 Rogério Haesbaert é um geógrafo humano Brasileiro focado nos conceitos de território e região. Doutor em Geografia Humana da USP, com "bolsa sanduíche" de um ano no Instituto de Ciências Políticas de Paris, com o geógrafo francês Jacques Lévy.

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O resultado é um caráter híbrido “que permite a cada um estar aqui e em outro lugar, enraizado e aberto”(1), fazendo com que a identidade se defina pela interação: “a identidade-relação está ligada não a uma criação do mundo, mas à vivência contraditória e consciente dos contatos da cultura”(2). (1-GLISSANT,1990, p. 46) (2-GLISSANT: 1990, p. 158) (REIS, 2011, p. 134)

Segundo Vera Candau e Fernandes Oliveira “o pensamento de fronteira significa tornar visíveis outras lógicas e formas de pensar, diferentes da lógica eurocêntrica dominante.”441 Propõe-se aqui estender a noção de fronteiras territoriais, políticas e culturais. Pensemos em fronteiras que separam alguns universos que entendemos como dicotômicos e reflitamos sobre tais zonas fronteiriças, áreas de ligações, de entre lugares dessas dicotomias.

AS FRONTEIRAS DA FRONTEIRAS

Pensemos sobre outras fronteiras. Existem aquelas entre a vida e morte, entre sono e despertar, visível e invisível, sagrado e profano, memória e esquecimento, entre margens, centro e periferia, o eu e o outro, entre fora e dentro…. Discorreremos sobre algumas dessas.

Entre Aye e Orum - Ancestralidade

Alan Rosa, tendo em vista ensinamentos de Oliveira442(2003) e Nei Lopes443 (1988), discorre sobre estruturas dinâmicas da cosmovisão bantu e fala sobre como “tudo participa da harmonia cósmica, havendo permanente troca de poder e apoio também entre os vivos e os mortos de uma mesma linhagem.”444

A ancestralidade aparece como alternativa de releitura da contemporaneidade e sua complexidade, como o traço, de que sou herdeiro, que é constitutivo do meu processo identitário e que permaneça para além da minha própria existência. (FERREIRA SANTOS, 2004, p. 19 apud ROSA, 2019, p. 60).

441 (CANDAU; OLIVEIRA, 2010, p. 25) 442 Eduardo David de Oliveira escritor do livro Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente (2003). 443 Nei Lopes escritor do livro ‘Bantos, Malês e identidade negra’ (1998) 444 (ROSA, 2019, p. 45)

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A busca por seu passado, raízes e ancestralidades são propostas por distintas vertentes. Segundo Hampâté Bâ, “O que a África tradicional mais preza é a herança tradicional (...) ‘Aprendi com meu mestre.’ ‘Aprendi com meu pai’. ‘Foi o que suguei no seio de minha mãe.”445 No Senegal, na École des Sables quase todos os dias ouvia o ensinamento dos professores “Se não sabes para onde ir, olhe de onde veio”. O polaco Grotowski (1987) afirma que “as descobertas estão atrás de nós e é preciso fazer uma viagem para trás a fim de chegar nelas”446 Nietzsche (1974) diz “O olhar ao passado os impele ao futuro, inflama seu ânimo.”447 O jogo de búzios remete a ensinamento e histórias de um passado original/ancestral para trazer possibilidades para ações presentes e futuras.

Itã de ogum

Se a humanidade não existisse, os deuses não existiriam448 Provérbio Iorubá

As histórias vão além de simples histórias. Os iorubás contam que houve um tempo em que homens, animais e divindades viviam todos juntos. Por uma falha humana, as divindades voltaram ao seu mundo. Os mundos dos Orixás (Orum) e dos humanos (Ayê) foi, então, separado por uma floresta densa, formada de matéria e não matéria, barreira intransponível. A separação, com o tempo gerou uma sensação de incompletude entre as divindades, que angustiadas decidiram se ligar novamente ao mundo terreno. Ogum, o orixá da forja, usando o seu primeiro instrumento feito de ferro, conseguiu encontrar caminho na densa floresta, abrindo uma ligação para todas as divindades reestabelecerem o contato com os humanos. Entretanto, tal caminho deve ser aberto sempre e Ogum precisa repetir essa viagem anualmente para que o canal de comunicação entre os mundos seja reaberto. Ogum do ferro e da guerra. Orixá dos ferreiros dos escultores e dos que usam metal ou instrumentos de metal. “O fragmento da unidade original que continha a faísca criativa parece ter passado ao ser de Ogum, que manifesta uma disposição

445 (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 174) 446 (GROTOWSKI: 1987, p. 56 apud PAVIS, 2017, p. 27) 447 (NIETZSCHE: 1974, p. 67 apud QUILICI, 2015, p. 30) 448 (SOYINKA: 1976, p. 10 apud REIS, 2011, p. 65)

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para a criatividade artística combinada à habilidade tecnológica. Seu mundo é o mundo do artesanato, da música e da poesia.”449 Faz, portanto, a mediação entre a natureza e a cultura. Deus da estrada e da criatividade. Ogum, na cosmologia iorubá, é quem estabelece a ponte e media continuamente os mundos, atravessando o abismo que os separa. Em trânsito permanente, o caminho de Ogum é dado na transição, comunicação e interdependência. É quem une vários tipos de existência, transita em diferentes tradições, em culturas, em nações, no passado, presente, futuro, nos planos divinos e terrenos, nos mortos e nos vivos, no mundo visível e no invisível. A viagem periódica de Ogum traz a ideia de tempo cíclico, onde há uma eterna repetição e os ciclos são contínuos. Entretanto, Soyinka afirma que não seria neste caso um simples retorno, mas uma ‘repetição com diferenças’, sendo assim associa a periódica viagem de Ogum à imagem da Faixa de Möbius. A Faixa de Möbis traz algo que não tem começo nem fim e não possui um centro fixo. Representa uma periodicidade descentralizada, sem hierarquização, e privilegia o movimento. Os lados da faixa de Möbis podem representar também as relações entre fora-dentro, frente-verso, identidade-alteridade.

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449 (SOYINKA: 1976, p. 28) 450 Faixa de Möblis - Se (A1) e (B1) forem dobrados de modo que a seta aponte para a mesma direção, ter-se-ão um colar (A2) e uma cinta retorcida (B2). (A2) tem uma superfície interna e externa e duas bordas, mas (B2) tem somente uma de cada uma, justamente por causa da retorção. (B2) é chamada

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Idanre (poema de Wole Soyinka)

Multiform Evolution of the self-devouring snake to spatials New in symbol, banked loop the “Mobius Strip” And interlock of re-creative rings, one surface Yet full of angles, uni-plane, yet sensuous with Complexities of mind and motion.451

Entre tempos - Presente Passado Futuro

Falemos de noções diferentes de tempo. Eliade452 (1991) revela que em sociedades tradicionais, o tempo tinha uma imagem bidimensional onde era reconhecido um longo passado e o presente. O futuro nessa visão não existia, pois como não aconteceu, não constitui o tempo de fato. Os fatos futuros que inevitavelmente ocorrerão, como por exemplo, eventos da natureza, as folhas que cairão, o fruto que virá, o sol que aparecerá, eram considerados em um ‘tempo potencial’. Essa ideia se opõe a noção ocidental de tempo como flecha onde existe um passado indefinido, o presente e um futuro infinito. Octavio Paz453 (1976) e Bhabha (1998) trazem a ideia da simultaneidade de tempos, ou como define Paz “simultaneísmo”. Referem-se, portanto, a dialética de muitas temporalidades e espaços, como por exemplo, as instâncias de tempo: moderna, colonial, pós-colonial, nativa; e de espaço: nacional, regional, universal. Paz trabalha com o que chama de “poética do agora”. Nas concepções africanas de tempo, o passado é detentor de uma sabedoria ancestral, de identidade e referências primordiais que servem como “bússolas para

cinta de Möbius e, ao contrário de (A2), um caminho começando em (S) e traçado em redor da cinta, depois de uma revolução, terminará no outro “lado” da cinta (T). (Fonte: Enciclopédia Mirador Internacional, v. 9, p. 10.497 apud REIS, 2011, p. 63) 451 (SOYINKA, 1967, p. 83) Por se tratar de um poema, optou-se por deixar a versão original no texto e disponibilizar uma possível tradução realizada por Eliane Reis. “Multiforme / Evolução da serpente autodevoradora, traduzido para o espaço / Nova em símbolo, laçada aterrada, a ‘Faixa de Möbius’ / E entrelaçamento de anéis que se recriam, uma superfície / Porém cheia de ângulos, uni-plana, porém sensual com / Complexidades de mente e movimento”(REIS, 2011, p. 63). 452 Mircea Eliade é romeno, filósofo e historiador das religiões. 453 Octavio Paz Lozano (1914-1998) foi um poeta, ensaísta, tradutor e diplomata mexicano, notabilizado, principalmente, por seu trabalho prático e teórico no campo da poesia. Recebeu o Nobel de Literatura de 1990.

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orientar o presente.”454 A ideia de um passado que guia um presente está contida no caráter do jogo de búzios que através de histórias primordiais trazem referências a possíveis caminhos para seguir. É importante ressaltar que essa busca pelo passado que nos referimos anteriormente como o ensinamento “se não sabes para onde ir, olhe de onde veio”, não se trata de apenas uma repetição do passado, mas sim ao que Rosa (2019) chama de “trança entre repetição e inédito.” Ribeiro (1996) diz que “para o africano o tempo é dinâmico e o homem não é prisioneiro de um mecânico retorno cíclico, podendo lutar sempre pelo desenvolvimento de sua energia vital.”455 O tempo na concepção swahili456 tem duas instâncias: Sasa e Zamani. “Sasa é o microtempo, o tempo do indivíduo, presente e/ou lembrado. Zamani é o macrotempo, tempo dos mitos, tempo sagrado que envolve o tempo vivido.”457 Desta forma o tempo Sasa seria o tempo de uma vida, onde existe o passado, o presente e o futuro próximo. O tempo de uma vida se finda quando a memória desta deixa de existir. Enquanto uma pessoa é lembrada, seu tempo ainda é vivo. O tempo Zamani abarca o Sasa, não sobrepondo, mas se complementando. Zamani é o tempo acessado nos rituais, onde se instaura o mítico e o sagrado. “Quando um repicado do berimbau, uma melodia de ladainha, um gesto corporal de pernas pro ar ou uma folha, ou ainda” uma dança mascarada, um trupé, um banho de folhas no banheiro gelado de uma casa de axé, uma cantiga e toques para que alguém possa virar e revirar nos quintais, “te trazem o primordial e te levam ao antigo”, seu corpo não encontra espaço único no tempo que é “espiral que também vira para trás e para fora do tempo social.”458 O nigeriano Soyinka aborda a noção de tempo no mundo africano a partir da cosmologia iorubá. Em seu texto “Moralidade e estética no arquétipo ritual”459 (1976) discorre sobre uma visão não linear de sucessão de acontecimentos, mas de um presente constante que flui e que abrange todos os tempos. A ideia de que ‘a criança

454 (ROSA, 2019, p. 42) 455 (RIBEIRO, 1996, p. 63 apud ROSA, 2019, p. 43) 456 “A cultura suahíli é originária do contato entre povos nativos da região do Quênia e Tanzânia com populações árabes atraídas pelas atividades comerciais. Na dinâmica da região, a língua suahíli foi difundida pela África oriental, tornando-se presente no Quênia, Tanzânia e Uganda, com menos intensidade na parte leste do Zaire, sul da Somália, Ruanda, Burundi, Moçambique, Malauí e Zâmbia.” (MIRZA; STROBEL, 1989, p. 117 apud ROSA, 2019, p. 104). 457 (OLIVEIRA, 2003, p. 47 apud ROSA, 2019, p. 42) 458 Aqui misturam-se experiências e reflexões da autora Mariana Rhormens com Allan da Rosa (2019, p. 43). 459 Título original ‘Morality and Aesthetics in the Ritual Archetype’.

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é pai do homem’ traz uma noção tanto de desenvolvimento natural como de continuidade unidirecional. Desconsiderada a periodicidade, a cosmologia iorubá traz a simultaneidade de tempos. Desta forma, três realidades simultâneas como os ‘vivos’, os ‘mortos’ e os ‘não nascidos ainda’ podem coexistir com interdependência e interligação. Como exemplo de tal relação pode-se citar a personagem apresentada por Soyinka no seu livro Aké: The years of childhood (1981). Bukola, é uma criança que nasce e morre num ciclo sem fim. Uma menina abiku que habita o entre-lugares e trânsito entre o mundo dos vivos, dos mortos e dos não nascidos ainda, na fronteira do físico e do espiritual e na simultaneidade de tempos.

O ritual é uma metáfora do perene e o perene não está localizado em um evento determinado. O nascimento é um evento perene, assim como a morte. Da mesma forma o são a coragem, a covardia, o medo, o movimento, a chuva, a seca, a tempestade… O ritual é o agente formal irredutível de ações díspares no tempo e no espaço, feitas por seres humanos na sociedade humana. (SOYINKA, 1993, p. 120 apud REIS, 2011, p. 115-116).

A noção de tempo apresentada pela Historiografia traz, segundo Benjamin (1985), uma sucessão de fatos, onde o passado preenche uma lacuna de um tempo vazio e homogêneo. Ignora-se assim “os diferentes modos do presente se abrir aos influxos de um passado, que também é continuamente reconfigurado.”460 Feierman (1993) traz pensamentos semelhantes ao criticar a ideia de que ao introduzir o estudo da história do continente africano estariam preenchendo uma lacuna na Historiografia. Defende também que os conhecimentos somados/ desenvolvidos a partir da inclusão de tal passado africano acabam por transformar toda a história da humanidade e o modo como agimos no presente. O passado e o presente teriam, portanto, um fluxo. Benjamin propõe “uma ideia de tempo descontínuo, em que o passado obscurecido pode irromper no agora como reminiscência fulgurante, desfazendo o encadeamento que sustenta as representações habitais.”461 Traz a noção do ”agora” como o momento de ruptura do tempo, um tempo liminar, um encontro entre épocas. “O ‘agora’ como momento inaugural, que faz constelar em si diferentes épocas, se desdobrando numa promessa futura, traduz certa relação com o porvir.”462

460 (QUILICI, 2015, p. 34) 461 (QUILICI, 2015, p. 34) 462 (QUILICI, 2015, p. 37)

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Eliade diferencia o que chama de “tempo mágico-religioso”, do “tempo profano.” Em seu livro “Imagens e Símbolos: Ensaio Sobre o Simbolismo Mágico- religioso” (1991) afirma existir uma necessidade humana de um tempo extra-cotidiano, de uma ruptura do tempo, abolindo-o periodicamente. Carl Jung463 (1964) afirma que tais momentos têm duas funções: ao indivíduo, encontro e afirmação de identidade pessoal; e à sociedade, formação de identidade coletiva e sentimento de pertencimento. Percebemos nas reflexões e noções sobre o tempo tal necessidade de contato com o liminar. O mito e/ou o rito trazem tal ruptura com o tempo cotidiano em suas diversas tradições.

A recitação periódica dos mitos derruba os muros construídos pelas ilusões de existência profana. O mito reatualiza continuamente o Grande Tempo e dessa forma projeta quem ouve a um plano sobre- humano e sobre-histórico que, entre outras coisas, proporciona a abordagem de uma Realidade impossível de ser alcançada no plano da existência individual profana. (ELIADE, 1991, p. 56).

Tradição e contemporaneidade

A importância do contato com tradições vivas, que souberam cultivar um trabalho colaborativo no tempo, transmitindo experiências preciosas, nos faz refletir sobre capacidades que se encontram atrofiadas no homem da nossa época e sobre a necessidade de uma cultura equacionar processos de inovação e conservação, trabalhando com uma noção mais complexa do tempo. (QUILICI, 2015, p. 49).

Os dançantes moçambicanos Atanásio e Dawa, nos trazem noções para pensarmos o termo ‘contemporâneo’. Atanásio vê o termo contemporâneo como duas possibilidades. Primeiramente como uma forma que “está vindo da Europa para cá (...) O contemporâneo é deles”. Mas também como a arte que se produz no momento atual: “eles chamam de dança tradicional, mas esse é o nosso contemporâneo.” Segundo Cassiano Quilici (2015), o termo contemporâneo não diz respeito somente ao que é de sua época, mas sim à uma maneira particular de se relacionar com tempo. “Trata-se de uma sensibilidade aguda às condições vividas, uma capacidade e sofrer e perceber o próprio tempo e, ao mesmo tempo, responder a ele

463 Carl Jung (1875 - 1961) psiquiatra e psicoterapeuta suíço que fundou a psicologia analítica.

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com grandeza.”464 Atravessado pela afirmação de Giorgio Agamben465 (2009), “contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu próprio tempo”466 retira portanto a visão meramente de sucessão temporal do termo. A partir das reflexões de Quilici, pode-se pensar em uma não-dicotomia entre Tradição e Contemporaneidade. Muitas formas vistas como tradicionais podem trazer um diálogo e relação com seu próprio tempo com tamanha sensibilidade artística e olhar amplo para as vivências temporais. Nem toda produção artística atual seria contemporânea, ao levar em consideração o que defende Quilici. Entretanto, existe a possibilidade de tal “sensibilidade contemporânea” surgir em peças que inclusive se utilizam de artes tradicionais, problematizando ainda mais essa dicotomia muito presente nos discursos dos artistas moçambicanos entrevistados. Quilici acredita que o termo “contemporâneo” vem sendo utilizado de forma superficial pelo mercado e torna-se muitas vezes um indicador, uma espécie de “rótulo” para categorias de produção e consumo de arte. A ideia de fazer do contemporâneo um território meramente temporal cronológico e localizá-lo em uma esfera restrita no campo da cultura traz “a sedução do pertencimento e o temor da exclusão” e suscita debates sobre a mercantilização da cultura. Para Dawa o “contemporâneo é abstrato, é como se tu pensasse em fazer um quadro agora vendo uma ideia, isso é contemporâneo. E tradicional é quadrado, tudo quadrado (...) Se é marrabenta, é porque é marrabenta mesmo, se a mão é aqui é porque tudo é assim, é tudo quadrado” Entretanto, Dawa conta sobre a mistura do contemporâneo com o tradicional “hoje em dia é possível na dança tradicional você introduzir um pouco de contemporâneo. Um pouco de moderno dentro da dança tradicional. Vou dar exemplo do xigubo467 que montamos. Meteu lá alguns movimentos contemporâneos e aquilo ficou bonito. Fez uma junção. Havia parte que fazia passos tradicionais mesmo e partes que introduziu o contemporâneo. [...] Há certas obras que a gente monta que podemos misturar o tradicional com o

464 (QUILICI, 2015, p. 29) 465 Giorgio Agamben (1942) é filósofo italiano. Os trabalhos mais conhecidos incluem sua investigação sobre os conceitos de Estado de exceção e homo sacer. 466 (AGAMBEN, 2009, p. 64 apud QUILICI, 2015, p. 34) 467 Xigubo é uma dança tradicional moçambicana realizada principalmente na região de Gaza e Maputo. Representa a resistência colonial do país sobretudo na região sul com uma espécie de desfile guerreiro em que normalmente os homens dança alinhados em fileiras paralelas.

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contemporâneo e há certas obras contemporâneas também que a gente pode fazer como se fosse o tradicional. Depende de como você quer cuidar disso.” Atanásio defende o termo ‘Afro’ ou ‘Fusão’ para produções artísticas que misturam formas tradicionais com formas ocidentais. “O tradicional se misturar com outra coisa, prefiro chamar isso de afro, não contemporâneo. (...) Moçambique não é uma ilha é um país, tá dentro de um continente, logo, não estamos só nós com nossos valores. Nós assumimos os valores de fora e os de fora tem que assumir os nossos valores, por isso eu tô a chamar isso de fusão.” De fato, não são todos que acreditam e valorizam tais pensamentos. Discorremos anteriormente sobre grupos de Mapiko mais antigos que não validam a ideia de inovações. O mesmo acontece com Kolawole Ositola468 que defende em seu texto ‘Sobre a representação ritual: visão de um praticante’469 (1988) que o material religioso exposto em espetáculos perde seu mistério, sentido sagrado e sua eficácia a nível dos devotos. Entretanto, uma série de artistas relacionam-se com tradições e enfatizam aspectos teatrais dos rituais em suas obras. Os períodos pós-independências de muitos países, como vimos o exemplo de Moçambique, incentivaram tais movimentos, buscando uma valorização e construção de identidade nacional a partir de suas manifestações culturais e rituais tradicionais. Eliane Reis (2011) defende que o artista se constrói no diálogo com as tradições, suas e de outros que pôde ter acesso num mundo de “territórios que se sobrepõem, histórias que se entrelaçam”, como diz Edward Said (1994). Citamos alguns exemplos de diretores moçambicanos ao discutir a relação entre Terra e Palco no capítulo 2 (Evaristo Abreu, Venâncio Calisto e Maria Clotilde). Paz afirma que “aquele que sabe perceber uma tradição implicitamente, distingue-se dela; mais cedo ou mais tarde poderá usá-la livremente, questioná-la ou até mesmo negá-la.”470 Todavia, os diretores citados acima e outros tantos localizam-se como seres culturais que habitam o entre-lugares. Dialogam uma “perspectiva dupla”471, um “diálogo entre dois eus”472 de alguém que pronuncia um discurso de dentro e de fora

468 Kolawole Ositola sacerdote e adivinho de Ifá. 469 Título original em inglês: On ritual performance: A practitioner’s View 470 (PAZ, 1984, p. 25 apud REIS, 2011, p. 142). 471 Termo utilizado por Reis (2011). 472 Termo utilizado por Ezekiel Mphahlele (1974).

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da cultura ao mesmo tempo, coabitando a “consciência nativa e a consciência derivada da colonização ocidental.”473 Stuart Hall474 (2003) relaciona o termo tradição à diálogos e articulações de elementos simbólicos e não ao resgate e continuidade necessariamente de formas antigas. Retomando pensamentos de Cassiano Quilici sobre a tradição como um “trabalho colaborativo no tempo” percebemos a sua relação de fronteira, onde coexistem as noções de permanência e impermanência, de memória e evolução, de resistência e inovações.

ATANÁSIO - Qual é a tradição que vai ser uniforme? Todas as tradições devem chegar ao ponto de dizer o que? (…) É misturar. Eu estou a ter medo, se eu for fazer a minha própria tradição, a tua pode não gostar da minha. Onde é que eu vou te apanhar para dizer que aqui estás a começar admirar-me? Em nenhum sítio. Então eu pego brasileiro, ou brasiliano, chineses ou chinesiano, depois madagascariano, e faço uma coisa. Essa coisa vai nos juntar. Se eu fizer coisa só de Maconde você não há de gostar. Quem sabe se tu não gostas do povo Maconde?

Sérgio Ferreti475 (1995) percebe três tipos de relações sincréticas: a fusão ou mistura; a justaposição ou paralelismo e a adaptação. Aqui faço uma distinção entre ser múltiplo ou a hibridez com o sincretismo que é ação presente em muitos povos colonizados e subjugados. “O entrecruzamento das diferenças, a aproximação dos rios, não produz uma síntese histórica de dissolução das diferenças, mas um jogo de contatos”476 O sincretismo não se dá de forma indiferenciada e equilibrada seja na fusão, justaposição ou adaptação. É de suma importância não desconsiderarmos as relações de poder existentes nesses processos. Bhabha em “Sobre a mímica e o homem”477 (1997) discorre sobre técnicas e táticas de resistência não com a intenção de harmonia com o ambiente. Aproxima tal ação com a camuflagem. No sincretismo religioso, a mímica seria o que Bhabha chama de “conciliação irônica”. Soyinka

473 (MPHAHLELE, 1974, p. 281 apud REIS, 2011, p.29) 474 Stuart Hall (1932-2014) foi um teórico cultural jamaicano atuante no Reino Unido. Interessado nos estudos sobre cultura e seus meios de comunicação, e suas reverberações políticas. 475 Sérgio Figueiredo (1937-2018) antropólogo e docente da Universidade Federal do Maranhão, também foi membro da Comissão Maranhense de Folclore. Também coordenador do curso de graduação e do mestrado em Ciências Sociais e coordenador do conceituado curso de Política Públicas da UFMA. 476 (SODRÉ: 1988, p. 57 apud ROSA, 2019, p. 103) 477 Título original: Of Mimicry and Man

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acredita que muitos artistas se apropriam de outras tradições como formas de autopreservação em frente às dominações de outras culturas. Lutando contra um lugar e criando um lugar próprio, jogando dentro desse lugar com que se luta e onde se luta. Jogando com o envolvente. Jogar é territorializar, bola um recentramento, mas na condição de reconhecer outros centros, outras subjetividades, outras presenças simbólicas com que se conversa. (ROSA, 2019, p. 39-40).

No Peru, a Festa de Nuestra Señora del Carmen, dos mascarados de Paucartambo, incorpora elementos do sistema colonial espanhol “os dançarinos herdeiros dessa memória incorporaram ao traje e à coreografia elementos hispânicos proporcionados pelos intercâmbios culturais.”478 A princípio tal manifestação tinha caráter subversivo por sua ligação com ancestralidade local e negação à religião cristã. Entretanto, atualmente, ao mesmo tempo em que a cultura Inca aparece, notamos a forte presença da santa católica e da igreja como, inclusive, palco de um dos momentos da festa. Essas mudanças funcionam como estratégias de sobrevivência e camuflagem para que a festa pudesse continuar a acontecer. O mesmo acontece com diversas outras formas de manifestações que acabaram por transformar-se como estratégia de sobrevivência e adaptabilidade. É o caso da capoeira brasileira, do Gumboot Dance sul africano, dos orixás que no Brasil foram associados a santas e santos cristãos e ao Mapiko moçambicano. Percebe-se claramente uma relação de poder nesses sincretismos. Notamos que, a incorporação de elementos ou características podem se dar transformando a manifestação cultural por diversos fatores. Essas apropriações revelam o tempo histórico percorrido, as transformações na sociedade refletidas na manifestação, ou imposições externas que geraram apropriação de elementos como resistência e sobrevivência. Soyinka, em seu ensaio ‘Padrões de sobrevivência’479, discorre sobre a capacidade de adaptabilidade e transformações que as tradições têm para sobreviverem, não necessariamente como arma de combate político (embora isso aconteça também) ou tentando manter formas ‘puras’, mas dialogando com novos ambientes culturais e criando suas inovações como observado com o Mapiko. “A sobrevivência da arte dramática deveu-se mais a capacidade de absorver os novos

478 (SOUZA, 2013, p. 56) 479 Título original ‘Survival Patterns’

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elementos culturais, retirar deles o que fosse interessante e misturá-los criativamente à tradição” (REIS, 2011, p. 151).

ZONA FRONTEIRIÇA - O ENTRE-LUGARES

Propor uma discussão sobre entre-lugares nos remete a noção de liminaridade, que nada mais é do que o estado entre dois pontos de diferenciação. A liminaridade ou limen é um conceito cunhado a partir do Ritual de Passagem, o termo define o espaço “entre” o status anterior e posterior ao ritual. O momento do Rito é momento intermediário, onde aquele que está na passagem está em processo de deixar de ser o que era para se tornar outro. Portanto, já não é o que era, mas também, ainda não é o que será. É a morte e o renascimento simbólico. Essa fase intermediária, o meio do caminho, é chamado de ‘margem’ por Van Gennep480 (1909) ou ‘liminar’ por Victor Turner481 (1969). Gennep divide o Rito de Passagem em três momentos: a separação, a margem ou limen, e a agregação.

A separação

A primeira fase do Ritual de Passagem consiste no indivíduo se retirar ou ser distanciado de sua vida cotidiana, onde vivia na chamada Instância preliminar ou Estrutura Social Normativa que é definida pelo espaço-tempo cotidiano. Normalmente nessa fase existe um afastamento físico dos iniciando limiares482 de sua comunidade/casa.

A margem ou Limen

480 Van Gennep (1873-1957) foi antropólogo alemão mais conhecido pelas descobertas sobre os ritos de passagem. Também contribuinte do folclore europeu ao propor substituir a orientação histórica e buscar pelas origens, com abordagem etnográfica comparativa. 481 Victor Witter, Escócia (1920-1983) antropólogo britânico, conhecido por trabalhar com símbolos, rituais e ritos de passagem. Trabalhou com Clifford Geertz e Richard Schechner. 482 Termo utilizado por Turner (2015) ao se referir aqueles que passagem pelo ritual de iniciação e estão no chamado período Liminar.

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O período liminar (a segunda instância) se dá no que Turner chama de ‘Anti- estrutura’, onde o espaço-tempo não é cotidiano. Rompe-se com a ‘Estrutura Social Normativa’ que não reconhece a existência de alguém que está em transição. Passa a reger a ‘Anti-estrutura’, que permite que aquele que está no período liminar exista neste outro espaço-tempo. A esse período liminar Turner chama de ‘tempo ritual’, onde um intervalo é criado. O passado é momentaneamente suspenso e o futuro ainda não começou, portanto são unidos em um momento presente do tempo ritual. Durante o período liminar, anula-se provisoriamente a ordem social. Estão em sua matéria prima, condição humana original, onde segundo Soyinka “o homem é despido de suas excrescências”. Reinventa-se estruturas e simbolicamente a liminaridade traz, de acordo com Turner, o que ele chama de ‘apagamentos’ e ‘ambiguidades’. Apaga-se a identidade. Os iniciando liminares passam a ser invisíveis como uma Lua Nova. Já não têm nomes ou roupas que os distinguem entre eles ou mesmo de animais. Anonimato, invisibilidade, uniformidade. A perda de sua identidade faz com que haja uma fusão com a alteridade do grupo, com a natureza (não humano, mundo dos instintos), e com o mundo espiritual.

Passamos a viver ali, na fenda do tempo e espaço. Nessa ruptura, dormimos, comemos, nos banhamos, nos comunicamos, dançamos, cantamos, nos ligamos a terra, ao sol, as pedras, ao mar, às árvores, à chuva, uns aos outros... Passamos a comer do mesmo, a falar do mesmo, a andar como mesmos, a dançar em coro, a cantar em uníssono, a vestir mesmas roupas, a dormir e levantar em mesmas horas, a cultuar a natureza juntos, a nos sentir os mesmos. A imagem de identidade que tínhamos quando chegamos se dissolvia nos dias que passavam. Nosso novo modo de viver nos levava a correr juntos como um rio, com margens que nos separavam da vida, tempo e espaço comum. Já não éramos diferentes. E mergulhávamos nesse liminar passeando na margem e guiados por mestres. Mestres estes, que viviam

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conosco nessa dimensão “entre” e nos acompanhavam nos ensinando, nos questionando, nos explicando, nos mostrando, nos fazendo experimentar, olhar, sentir, ouvir, cantar, dançar, ser... nos transformando, ou permitindo que nós nos transformássemos.483

Os iniciando liminares vivem na ambiguidade, pois estão entre vida e morte. Morrem os indivíduos que existiam antes do rito para nascerem novos. Primeiro, com relação ao próprio sujeito tendo em vista seus gostos, sonhos, costumes etc. Em segundo lugar, às relações com os outros, o grupo de pessoas que está deixando e ao que está se unido. Ele “Não é nem isso, nem aquilo, e, no entanto, é ambos.”484 Os símbolos “conferem uma forma externa e visível a um processo interno e conceitual.”485 Victor Turner, ao falar sobre o período liminar nos Ritos de Passagem, refere-se aos símbolos para tal estado de transição de “não-mais-classificados” e “ainda-não-classificados”. Ao se referir a “não-mais-classificação” fala sobre o símbolo da morte e da decomposição. Referindo-se a “ainda-não-classificação” apresenta o símbolo do embrião, como processo de gestação. Isso se dá, pois o Rito de Passagem contém tal ambiguidade, pois é onde o estado 1 (estado em que a pessoa estava antes do Rito) deve morrer, para ser criado o estado 2 (estado em que a pessoa sai do Rito).

O ritual, seja de grupos tribais ou de sociedades mais complexas, insiste sempre nesse rito de morte e renascimento, isto é, um “rito de passagem” de uma fase da vida para a outra, seja durante o amadurecimento da infância ou do início para o final da adolescência e daí para a maturidade.” (JUNG, 2008, p. 169-170).

No liminar, se abole as diferenças sociais e inclui-se normalmente para entrar em contato com a cosmologia cultural, o canto, a dança e os mitos. O afastamento da instância normativa, que rege a vida cotidiana permite que os que estão no limiar se aproximem do sagrado.

Na liminaridade, as relações sociais profanas podem ser descontinuada, antigos direitos e obrigações são suspensos, a ordem

483 Trecho narrativo da experiência da autora no Senegal - École des Sables no capítulo 3. 484 (TURNER, 2005, p. 144) 485 (TURNER, 2005, p. 140)

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social pode parecer virada de cabeça para baixo, mas, em compensação, os sistemas cosmológicos (...) podem vir a ter importância central para os noviços, que, por meio do rito, mito, música, instrução numa língua secreta e vários gêneros simbólicos não verbais como dança, pintura, cerâmica, entalhamento em madeira, máscaras, etc. (TURNER, 2015, p. 34-35).

Turner nos conta que muitas vezes, associada a passagem de um status social para outro, está um movimento espacial, geográfico de um lugar para outro. Cita exemplos dos mais simples aos mais duradouros, desde abrir e atravessar uma porta, às peregrinações onde longas viagens atravessam muitas fronteiras até atingir sua meta. Podemos nos referir a tal movimento como a travessia por um rio, onde as Instâncias Sociais Normativas como chama Turner são as margens. No processo de separação de tais margens mergulha-se no rio, que como espaço liminar, confunde- se, nega a identidade e permite acessar com outra instância de tempo e espaço.

Misturou-se. Água doce, água salgada, Altoc do choro e o menino no meio. Já não estava no barco. Mergulhava nas águas. Já não

via nada e se batia em meio a tanta água. é u. Altomar. do u. Chorava e nadava dentro e fora do mar. Em meio à confusão, a chuva começou a diminuir e o menino alcançou uma madeira. Era seu barco. Nadou para cima dele e deitou-se. Respirou fundo. (Conto Alto do céu. Alto do mar).

Então finda-se a travessia, a passagem, o trânsito, chega-se a outra margem do rio.

Agregação

De volta a Estrutura-Social Normativa, voltam a valer as regras sociais e o tempo cronológico. A instância pós-liminar é um retorno ao que era, porém, mudado, pois o sujeito que fez a passagem já não é o mesmo. Aquele que foi separado para

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se submeter ao ritual já não existe e deu espaço ao novo indivíduo que (re)ingressa na sociedade e no novo-mesmo tempo- espaço cotidiano. Devolve-me ao meu tempo e espaço. Devolve-me a mim, ou inventa um novo eu. Volto transformada. Volto um novo eu.486

Turner percebeu que muitas funções dos rituais, com o advindo da modernidade, são retomadas nas artes e entretenimento. Ele utiliza o termo ‘liminoide’ para descrever ações simbólicas que assumem funções ritualísticas. “O ‘-oide’ vem do grego -eidos, ‘forma, contorno’, e significa ‘semelhante’; o ‘liminoide’ é semelhante ao ‘liminar’ sem ser idêntico a ele.”487 Tais ações trazem uma experiência de liminaridade, rompendo o tempo cotidiano e as normas e status estabelecidos no dia a dia. Dilui-se também identidades e sacraliza-se o espaço. Segundo Schechner488 (2012), é a partir da ludicidade do jogo, que pode estar presente nas brincadeiras, festas, produções artísticas ou entretenimentos que é possível atingir a experiência liminar fora do contexto do ritual. Segundo ele, tanto o jogo como o ritual “levam as pessoas a uma ‘segunda realidade’, separada da vida cotidiana”489 modificando-as de forma temporária ou permanente. Sutton-Smith490 (1972) ressalta a necessidade que temos de “fenômenos liminóides como carnavais, Halloween, mascaradas, etc. Porque temos umas sobrecargas de ordem e queremos espairecer.”491

Encontramo-nos no momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão. (BHABHA, 1998, p. 19).

486 Trecho narrativo da experiência da autora no Senegal - École des Sables no capítulo 3. 487 (TURNER, 2015, p. 43) 488 Richard Schechner (1934) professor de Estudos da Performance (Performance Studies) na Tisch School of the Arts da Universidade de Nova Iorque, também editor da TDR: The Drama Review e diretor da East Coast Artists. 489 (SCHECHNER, 2012, p. 50) 490 Sutton-Smith (1924-2015) teórico do jogo que investiu anos tentando descobrir seu significado na vida e relação humana, tanto para o público infantil quanto adulto. Autor de diversos livros sobre a temática. 491 (SUTTON-SMITH, 1972, p. 17)

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O Mapiko - Fenômeno Liminóide

O Mapiko. Que dança. Que flui do espaço sagrado ao profano e do profano ao sagrado. Que atento ao ritmo forte dos tambores traz ao seu corpo a polirritmia dos batuques. Que bate pés que batem a terra e voam ao ar. Que mascara sua identidade. Que assume outra identidade. IdentidadeS. Que é homem com respiração curta e calor intenso. Que é espírito chegando à terra para falar. Que é personagem espelho de seu povo. Que não é ninguém e é todos ao mesmo tempo. Que abre uma brecha no tempo. Que é limen, liminóide.

Habitando Fronteiras

As fronteiras se permeiam e o dançarino mascarado Mapiko habita um entre- lugares, criando outro espaço-tempo que permita que ele exista. Por estar entre esses dois mundos, o dos mortos e o dos vivos, é que o dançarino rompe limites e é capaz de estabelecer o canal de ligação, servindo como comunicação e contato entre ambos os mundos. O Lipiko torna visível o invisível mundo espiritual. É, portanto, a materialidade da possibilidade e do contato com ancestrais. Todo o universo simbólico construído pelo Lipiko é compartilhado com o cúmplice público que participa da festa de Mapiko. Mapiko é “pontifex, fazedor de pontes”492. Possibilita a experiência liminar à toda a comunidade e estabelece um elo de conexão com o público e entre os indivíduos do público. Fortalece-os como coletivo e pertencente à tais conjuntos de estruturas, históricas e signos culturais. Enfatiza o coletivo. Traz a representação em suas danças de espelho dessa sociedade, ao mesmo tempo em que traz Lihoka, o espírito ancestral coletivo desse povo, à terra. O Mapiko assume a ligação com a energia divina do mundo espiritual de seus antepassados. Entretanto, não deixa de ter como interlocutor as pessoas vivas da própria comunidade, pois como é a ponte, canal de ligação, entre esses dois mundos, comunica-se tanto com um, como com outro. É significativo observar o caráter de representificação de algumas ações. Quando o Lipiko realiza ações de um passado, sejam elas de um passado histórico-

492 Comparado com a noção de Performer defendida por Grotowski, “o Performer é pontifex, fazedor de pontes.” (GROTOWSKI, 1988, p. 2-3).

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político ou ações cotidianas realizadas no passado por seus ancestrais, não retrata ou representa tais ações, mas as traz à tona, representificando-as, revivendo-as no momento presente. Segundo Amadou Hampâté “Não se trata de recordar, mas de trazer ao presente um evento passado do qual todos participam. (...) E o evento está lá, reconstituído. O passado se torna presente.”493

Temos em nosso corpo três estruturas em forma de semente: os pés, os rins e as orelhas. E existe uma conexão entre eles. Os pés escutam a terra e nos enraízam na matéria. Os rins estão à escuta das nossas mensagens interiores [...] Quanto às orelhas, elas estão lá para aprender a escutar os dizeres, as informações… (LELOUP, 2014, p. 32).

Na dança de Mapiko a função dos pés vai além dos passos coreográficos: os pés entram em contato com a terra e falam ao bater no chão. O Lipiko conta histórias com o bater dos pés, “treme a terra” e faz terra aos olhos do público. A ligação e a conexão dos vivos com o mundo espiritual dos antepassados estão simbolizadas no diálogo com a terra. Os pés tocam o chão assim como as mãos do músico tocam a pele do tambor.

Andando por ruas passadas, seguindo as trilhas da memória, encontro esquinas mesmas mudadas, terras pisadas há tempos, aromas conhecidos e ao fundo meus ouvidos alcançam o som dos vinganga494 com seu agudo a anunciar a quem vem de longe que já há Mapiko. Passo a passo me aproximo, escuto os Neya com seus graves dando o pulso que me faz pulsar junto antes de chegar ao local da festa. Viro na rua de terra, caminho muito traçado há anos, ainda não pisado no presente. Presenteio-me. Representeio-me. Sigo andando e chego ao canto. Já escuto as vozes do coro. Likute e Ligoma ainda em silêncio. Vou me aproximando. Vejo pessoas. Guiada pelo som dos tambores, chego. O Lipiko está ao

493 (HAMPÂTÉ, 1980, p. 215) 494 O mascarado no Mapiko é acompanhado pelo coro e uma banca de tambores. Tal banca executa estrutura polirritmia e é formada por apenas um Ligoma, apenas um Likute, vários Vinganga (no singular Singanga), Neya ou Neha e Ntoji ou Ntonha.

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lado da árvore a respirar e os tambores Likute e Ligoma também respiram.495

O som dos tambores do Mapiko une músicos, coro, mascarado, quem assiste de perto, quem toma um sumo no bar ao lado e o transeunte que caminha distante. O ‘tarata tarata tarata’ dos Vinganga preenchem o corpo de todos aqueles e os fazem pulsar juntos. A repetição de um padrão musical executado pelos tambores Vinganga faz com que esse padrão rítmico esteja presente repetidamente no corpo daquele que dança. O dançarino produz coreografias onde movimentos da anca, bunda, agilidade dos braços, pernas e cabeça, dialogando com o bater dos pés no chão, compõem um trabalho de ritmo corporal expressivo.

A repetição do padrão-musical manifesta a energia que os fiéis estão invocando. A repetição dos movimentos produz o efeito de transe que leva ao encontro com a divindade, muito usado em rituais. O mesmo ato ou gesto é praticado num número infinito de vezes, para dar à ação um caráter de atemporalidade, de continuação e de criação contínua. (MOURA, 2009)

O mascarado Mapiko, por estabelecer essa ponte sendo ao mesmo tempo homem e espírito ancestral, dança e é dançado, age e é agido. Grotowski cita a necessidade de uma coexistência entre ação e contemplação, onde o sujeito é objeto, observa e é observado.

Nós somos dois. O pássaro que bica e o pássaro que olha. (...) Sentir- se olhado por essa outra parte de si (aquela que parece estar fora do tempo) traz outra dimensão. Existe um Eu-Eu. (...) Eu-Eu não significa estar cortado em dois, mas ser duplo. Trata-se de ser passivo ao agir e ativo ao olhar (ao contrário do habitual). Passivo: ser receptivo. Ativo: ser presente. (GROTOWSKI, 1988, p. 4).

Esse ato de ação e observação simultâneo acontece com o mascarado no momento da dança, pois atinge outro nível de consciência que pode ser comparada com o que Grotowski chama de Awareness que se refere “a consciência que não é ligada à linguagem (à máquina para pensar), mas à Presença.”496

495 Trecho da descrição de Mapiko realizada pela autora no capítulo 3 496 (GROTOWSKI, 2010, p. 235)

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O mascarado, ao mesmo tempo em que dança o que foi ensaiado e se observa, é dançado e agido pelo Lihoka. Está, portanto, em trânsito entre consciência e inconsciência: está em transe. A liminaridade, enquanto transe, permite outra dimensão da experiência. O transe é o estado onde o corpo intermedia o sagrado e o mundo profano, portanto o mundo dos espíritos e o mundo dos vivos, no caso do Mapiko. No transe o corpo do dançarino age e é agido. O corpo está no trânsito entre ser homem e ser espírito. Encontra-se em um período liminar, um entre-lugares, é homem, é espírito, é ambos e nenhum. Não há dualismo, a coexistência, o entre- lugares é dado em fluxo. “A pessoa não é uma, ou que ela não é nada, que eu é um outro, ou simplesmente camara de eco. (...) A instauração do inconsciente pode ser considerada como ponte culminante dessa descoberta do outro em si mesmo.”497

O rosto tatuado. Negro. Boca vermelha. Leve sorriso ou não. Às vezes parece sério, às vezes pode sorrir ou zangar-se rapidamente. É um velho Maconde que vem dançar. Abrindo o Mapiko do dia sete de abril, ele chega. Amarrado com tecido preto nas pernas e braços, cordas com chocalhos de metal, correntes em volta do tronco e pano branco envolvendo o quadril. Capulana colorida une o corpo à grande cabeça de madeira: a máscara. A máscara e o corpo em um só ser: Lipiko (RHORMENS, 2015, p. 157).

A máscara retira a identidade do homem, convida o espírito Lihoka e retrata personagens da sociedade. A máscara é segredo, é sagrada, é espelho. É o canal, o caminho por onde o Mapiko se faz ponte.

O Mascarar-se

Animada por aquele que a veste, a máscara transporta o deus sobre a terra, afirma sua realidade, mistura-o à sociedade dos homens; inversamente, mascarando-se, o homem atesta sua própria existência social, manifestando-a, codifica-a por meio de símbolos. A máscara é, ao mesmo tempo, o homem e algo diferente do homem: é mediadora por excelência entre a sociedade e a natureza, e a ordem sobrenatural habitualmente confundidas (LÉVI-STRAUSS, 2013, p. 30).

497 (TODOROV, 1983, p. 244-245 apud REIS, 2011, p. 69)

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ATANÁSIO – Tu encarnas o Lihoka porque no momento que você entra dentro da máscara tu mudas de comportamento. Aquilo ali é automático. Você fica não você. Tu encarnas um espírito qualquer. E não sabes qual é esse, se é feminino, se é masculino, se é feio, se é bonito, nem tens ideia. Mas tu, já não és tu.

VENÂNCIO CALISTO - A máscara nos transforma sentimos que deixamos de ser nós mesmos (...) Vai mesmo para uma outra dimensão. Tu não está ali vendo um humano, aí depois tu podes ver que tem forma humana, mas parece um outro ser.

DAVID ABÍLIO - Uma das manifestações visíveis das origens do nosso teatro é exatamente a máscara. Portanto, a máscara confere ao bailarino o caráter de personagem a que representa. Portanto aquela máscara que usa representa qualquer coisa. Representa sei lá, um animal de estimação, sei lá um espírito que é guardião da família, representa não sei quê. Então a máscara é um elemento fundamental na cultura, sobretudo, africana. A máscara faz parte inclusive dos próprios rituais africanos, então aquilo é que tem ou acredita-se que o poder de máscara influencia bastante as crenças das pessoas. Se tu apareceres assim como estás para dizer coisas assim para a sociedade, pufh, é a Mariana. Se tu pores a máscara, já não és a Mariana é a figura que representa aquela máscara. E isso é estranho e não estranho ao mesmo tempo. Máscara não é para esconder para nós, mas máscara é para comunicar a nossa tradição. Máscara não esconde, máscara comunica, então as pessoas recebem as mensagens, a comunicação que transmitido através daquela máscara.

DAWA - Olha é assim, máscara às vezes dificulta os movimentos, mas é interessante há um prazer que a pessoa sente por dentro de fazer uma execução de dança sem que as pessoas vejam o seu rosto. Então, aquela curiosidade que a pessoa tem “aquela pessoa que está a fazer, quem é?”, aquela ansiedade, aquilo é um prazer enorme para aquela pessoa que está de máscara. Então, máscara é um prazer pra mim. Há muita gente que lutava nas obras, porque havia obras que tinha que se pôr máscara. A pessoas lutavam porque “eu quero fazer aquele papel, porque eu quero por aquela máscara”. Porque aquilo é um prazer. Aquilo é um prazer, né? É um prazer do artista pôr a máscara fazer uma execução, de fazer uma demonstração com a máscara. Vou dar exemplo de união. Ya! União. Se todo mundo quer ver quem é aquela pessoa que está a fazer aquela maravilha, aquela dança ali, quem? Mas você não vê a cara do Nyau, mesmo quando sai o Nyau vai se despir no mato e ninguém há de ver. O Mapiko quando tá ali a dançar, todo mundo quer ver a cara daquela pessoa que está ali a dançar. Então, a máscara é um prazer. É uma sensação que pra explicar

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só quem tem que explicar é a pessoa que faz. E também tirar tudo não é possível, porque também há coisas que não dá pra explicar.

MÁRIO - Ela por si pode unir vários povos sem nenhuma discrição. Para mim a máscara é um vetor muito importante para unificação dos povos. Eu quando estou dentro da máscara, tenho um outro sangue. Porque eu consigo me identificar com aquela figura, por exemplo eu agora trazia uma, uma, uma máscara aí de um velho, aquela imagem logo que eu peguei aquela máscara eu tornei um idoso, entende? Mas se eu tivesse uma máscara do cão, não me hesitaria, eu uh uh uh (latido). Exatamente. Porque a máscara busca a minha personalidade no mundo artístico, deixa de ser aquele Mário que está lá fora, sou um outro já no palco, é isso aí.

Dancei mais vezes a sequência com máscara do felino. Foi uma sensação outra. Não pode-se pensar muito, deve-se sentir o feeling da percussão. Os passos surgiam e eu me sentia um animal a dançar. O tambor parecia tocar dentro de mim. A conexão com ele, como já estava certa dos passos e tempos, acontecia sem precisar que o lado racional contasse os tempos. Ele batia dentro de mim e meus pés materializavam os sons dele ao tocar no chão. Não respirava direito e o cansaço físico era enorme. O calor intenso, a falta de respiração me deixava ainda mais cansada. Era necessário vencer e dançar. Depois que venci, me sentia verdadeiramente dançando. Os meus pés pareciam independentes de minha cabeça. Simplesmente dançavam. Eu era um animal, um predador. Mas também sabia lavar roupas. Tocava com meus pés no chão. Flutuava. Era leve e ágil. Pela primeira vez me senti dançando. Terminada a coreografia. Soltei as amarrações e tirei a máscara. Respirei. Respirei. Respirei. Estava cansada e plena. (Experiência da autora descrita na dissertação de mestrado) (RHORMENS, 2015, p 302)

É sim uma realidade de outra ordem. Esta outra ordem não é estranha às epistemologias do sul, acostumadas com a concomitância de planos: é Mateus – personagem do Cavalo Marinho – e é Seu Pedro, pescador que “brinca” com a ficção e tem com ela uma relação de duplo. (...) Mateus (o “personagem”) para Seu Pedro não é um ser ficcional, mas sim um outro nele, ou ainda, usando uma expressão de Bachelard, “um não-eu meu”. (...) Você assiste a ambos e os vê dançar, falar. São eles e não são eles. Você vê através deles, além deles e muito mais. (FABRINI, 2013, p. 23)

As pessoas da pessoa são numerosas no interior da pessoa” dizem as tradições bambara e peul. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p. 15)

A experiência de transformação vivida por performers e público tem muito a ver com uma relação entre máscaras e corpos capaz de produzir um estado liminar. (...) Corpos e máscaras se f(r)iccionam. Assim, despertam um mundo subjetivo (“como se”) de situar-se em relação ao mundo, provocando fissuras, iluminando as dimensões de ficção do real e subvertendo os efeitos de realidade de um mundo visto

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no modo indicativo, não como paisagem movente, carregada de possibilidades, mas simplesmente como é (DAWSEY, 2013, p. 194).

A atriz ou ator, assim como o dançante, performer, ou brincante, ao se mascarar entra em contato com a liminaridade. Assume características e lógicas de outro ao mesmo tempo em que é ele próprio. Habita em um “entre-lugares”. Pensemos sobre diálogo eu-outro na relação do(a) ator(atriz) e da máscara. Quando eu-ator(atriz) (identidade) me relaciono, em diálogo e escuta, com a máscara (alteridade) pode-se estabelecer um espaço de dupla vestimenta, de dupla apropriação. O Ator(atriz) veste a máscara e a máscara veste o ator(atriz). O sujeito se apropria da máscara e a máscara se apropria dele. Abrindo espaço para tal relação, pode-se experimentar uma experiência liminar. Alteridade, do termo latino alter (outro), designa a característica de ser do outro, o outro em relação a mim. A fronteira identidade-alteridade, eu-outro, na experiência liminar, torna-se porosa. A identidade do ser mascarado é diluída, criando esse outro espaço-tempo que permita que ele exista. O mascarado estaria, portanto, no trânsito entre duas figuras: o ser humano e o que veio representar. Ele é tanto as duas figuras, como não é nenhuma das duas. As fronteiras se permeiam e o mascarado habita um ‘entre-lugares’, lugar entre identidade e alteridade. A função primária da máscara é unir: aquele que a veste; seu observador; e um ser mítico, ou, como diria Carl Jung (1964), ‘uma força arquetípica’. É um canal de comunicação do sagrado e dos ancestrais com o mundo dos vivos. Situa-se no cruzamento entre os eixos horizontal e vertical. Entendemos aqui horizontalidade como as ações e relações que se dão no tempo e espaço cotidiano. A verticalidade seria, portanto, a ligação terra e céu (infinito e indefinido). Segundo Grotowski (2010), “A questão da verticalidade significa passar de um nível assim chamado grosseiro – em certo sentido poderíamos dizer “cotidiano” – para um nível energético mais sutil.”498 O ser humano tem em sua formação corpórea a verticalidade, portanto pode estabelecer a ponte entre as duas experiências: terra e céu, cotidiano e invisível, sagrado.

Quanto ao rosto, ele é a sede das funções socializadas, socializantes: em primeiro lugar, a linguagem, que a boca articula; e este outro sistema de signos que consiste na expressão dos sentimentos, de

498 (GROTOWSKI, 2010, p. 235)

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origem natural, sem dúvida, mas que cada cultura remodelou através de uma gama de estilos particulares. No âmbito do rosto, e por meio dele, o homem se comunica com o homem. É dissimulando ou transformando seu rosto que ele interrompe a comunicação ou a desvia buscando outros fins (LÉVI-STRAUSS, 2013, p. 29).

A comunicação social, cotidiana, no espaço-tempo profano é dada através do rosto humano. Definiremos tal comunicação como horizontal, pois acontece entre seres no mesmo plano, plano terreno, mundo dos vivos. Já a comunicação no eixo vertical será entendida como a ligação com o mundo espiritual, com o sagrado. Entende-se por muitas culturas mundo dos mortos ou dos deuses.

Uma cabeleira escorrida na frente, cobrindo o rosto, aí está, sem dúvida, o protótipo da máscara, tal como a encontramos em alguns rituais. Um gesto tão simples já tão pleno de significações. O microrganismo bem organizado, simbolizado pelos olhos, nariz, boca e sua disposição constante, abre espaço para um universo desordenado; os instrumentos sociais de expressão e comunicação cedem lugar a natureza invasora; o indivíduo identificado como pessoa torna-se um ser anônimo; escapa às determinações do grupo, não é mais um parente ou um aliado, um concidadão ou um estrangeiro, um patrão ou um empregado; torna-se disponível para estabelecer contato com outras forças, outros mundos, os do amor e da morte (LÉVI- STRAUSS, 2013, p. 29)

A comunicação vertical é algo que une a vida cotidiana a algo que está no céu ou abaixo da terra. As divindades e os ancestrais (mundo dos mortos) muitas vezes são situados para além do espaço que vivemos em direção ao céu, ou abaixo da terra onde são enterrados os mortos e de onde nascem as árvores, plantas e alimentos. “A máscara desvia a comunicação de sua função humana, social e profana, para estabelecê-la com um mundo sacro.”499 A máscara é uma materialidade que permite que o invisível se torne visível. É a partir do objeto concreto que o que não se pode ver, seja abstrato e/ou sagrado vem à tona. Ela não só apresenta o invisível como oferece condições para uma possível percepção deste. Segundo Brook (2008), “muitos espectadores afirmaram que já viram a face do invisível através de uma experiência proporcionada pelo teatro, uma experiência que transcende a própria vida.”500

499 (STRAUSS, 2013, p. 31) 500 (BROOK, 2008, p. 58)

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A máscara, assim como Ogum, busca os caminhos de ligação. Habita o não lugar, o não tempo, ampliando as possibilidades de ser multidimensional, múltiplo, multiplicador. A máscara é liminoide, é ponte que une as margens de um rio. Sendo a máscara ponte, nosso corpo, o que seria?

CORPO-FRONTEIRA

Seria o corpo o próprio rio? Seria o corpo o local onde se coabita ambas os lados das dicotomias, local da fronteira? Seria, portanto, nem lá nem cá, nenhuma das margens do rio?

UM RIO

Ora yê yê ô! Ìyá monra, ìyá mò ya, ìyá monra, ìyá mò ya, Omi s’àse ominí ibú ìyá monra ìyá mò ya.

Mãe de inteligência rápida, mãe de saber inundar (transbordar) Faz o axé das águas profundas, mãe de inteligência rápida que sabe transbordar.501

Um rio é a água que corre em seu leito e também as margens que o definem. O leito do rio. As margens do rio. As águas do rio, suas nuances, pedras, relevos, desvios. Águas fortes, enxurradas, cachoeiras e nascentes. Margens férteis, margens pedras, mapas, estradas, casas, plantação e cultivo. Rio com clareza nas águas ou águas turvas e poluída. Com peixes ou lixo. Frio ou quente. Um rio. O rio é tudo que o compõem e que pode compor... “Na travessia entre uma margem e outra percebe- se que se habita não só as duas margens, mas também o próprio rio que corre, um lugar-terceiro” (REIS, 2011, p. 59). Estar entre-margens é habitá-las. É falar “a partir de espaços intermediários entre culturas e nações, teorias e textos, passado e presente (...) entre o campo político e artístico.”502 Entre uma margem e outra encontra-se o terceiro-lugar, uma

501 (OLIVEIRA, 2009, p.126) 502 (REIS, 2011, p. 70)

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‘Terceira Margem do Rio’503 como nos presenteia Guimarães Rosa504 com suas palavras-imagens. “Percebe-se que se habita não só as duas margens, mas também o próprio rio que corre.”505

UM RIO DE MEMÓRIAS

O conceito de memória para diversos povos africanos não se trata de recordar, mas de trazer ao presente, reconstituir o acontecimento ou narrativa registrada em sua totalidade. O tempo verbal da narrativa é o presente, por isso torna- se uma representificação. Relembrar, nesse caso, tem características de um ato ritualístico. Afinal, “rituais são memórias em ação”506

No momento que a sacerdotisa dança para Oxum, ela está criando a água doce não só através do movimento, mas através de todo o aparelho sensorial. A memória é o aspeto ontológico da estética africana. É a memória da tradição, da ancestralidade e do antigo equilíbrio da natureza, da época na qual não existiam diferenças, nem separação entre o mundo dos seres humanos e os dos deuses. (MOURA, 2009).

SOMOS

Memórias vividas e/ou representificadas atravessam nosso corpo, constituem nossa identidade, nosso modo de estar e ser no mundo. Atravessada e habitada por memórias das mais longínquas as mais recentes, somos. Memórias vindas pelo tempo, em histórias ouvidas, genes, espiritualidades. Memórias vindas pelo físico, dores, afetos, odores, sabores… Memórias vindas do mergulho, com sensações, sentimentos, ideias e pensamentos. E memórias trazidas não se sabe de onde... Somos, portanto, “uma mistura, um aglomerado bem ou mal temperado, exatamente um temperamento.”507 Experiências e técnicas, metodologias e processos, nos atravessam também. Parte dessas experiências ficam em nossos corpos. Habitam-nos, mas podem se

503 A Terceira Margem do Rio - conto de Guimarães Rosa (1962) 504 João Guimarães Rosa (1908 - 1967) foi um escritor, diplomata, e médico brasileiro. Suas obras contam com inovações de linguagem e influência de dizeres populares e regionais. 505 (REIS, 2011, p. 59) 506 (SCHECHNER, 2012, p. 49) 507 (IYVES: 1993, p. 46 apud REIS, 2011, p. 24)

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transformar. São capazes de se modificar pelo passar dos tempos, pelo contato com outros atravessamentos e por outras formas que habitam o mesmo sujeito. “O corpo não tem memória. Ele é memória.”508 O corpo, portanto, é um local de coexistência de técnicas, formas, metodologias, procedimentos e experiências que estão em constante adaptação e transformação. Local de intensa coexistência e movimento.

CORPO – MEMÓRIA

Explorando a ideia de corpo-memória, busquei mergulhar e explorar meu corpo e minhas memórias, ou seja, aquilo que me constitui. Eu entendi que a minha formação está aqui (no corpo). Fui formada pelo que li e pelas tardes de bolinho de chuva com a minha vó. Este corpo se tornou memória ao ser atravessado por Lecoq, Peter Brook, Linares, Alice K. Matteo Bonfitto, Tiche Vianna, Achille Mbembe, Atanásio Nyussi, Mama Germane, Soyani, Mia Couto, N`dey Seck, Ilú Obá de Min, Oroki, Oxossi, minha mãe Iansã, Irineu Nogueira, Paolo Israel, Reinata Sadimba… Atravessada por Baobás, pelos mares e oceanos, pelos 4 ventos, pelos muitos tempos, por grãos de areias, por terras… Por Vó Mariana, Dona Polita, Dandara, Seu Perseu, Dona Magdalena, Vó Mina, por meninas guerreiras, por raízes… 509

MINHA IDEOLOGIA DO CORPO

Mon idéologie du corps vient d'un endroit de frontières. Je me sens à la frontière . La frontière entre l'art, le théâtre, la musique, les arts visuelles et la danse ... La frontière entre la pensée du corps et la pensée rationnelle . La frontière entre "d'où viennent mes ancêtres?" et "qui suis-je?". Toute la technique apprise et le stage que j'ai fait habitent mon corps. Toutes mes histoires et les choses que j'ai déjà vécu habitent mon corps. Toutes les influences de mes ancêtres (mes racines) habitent mon corps.

508 GROTOWSKI TEATRO LABORATÓRIO, p. 173. 509 Texto do solo Corpo-Memória descrito no capítulo 3.

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Mon corps raconte des histoires. Mon corps est l'histoire. Mon corps est un endroit de frontières. Mon corps.510

MANTO DE ARLEQUIM

Um eu definido a partir de memórias, como uma concha de retalhos que traz tecidos com diferentes texturas, tempos, cheios, estampas, lugares... A partir dessas reflexões, Michel Serres511 (1993) traz a imagem do “Manto de Arlequim”. Aquele mosaico colorido com peças de diversas origens e aspectos, uma “reunião de tempos e lugares diversos.”512 “Arlequim, já. (...) Partir. Sair. Deixar-se um dia seduzir. Tornar- se vários, desbravar o exterior, bifurcar em algum lugar. (...) Nunca mais saberei quem sou, onde estou, de onde venho, aonde vou, por onde passar.”513 Serres faz uma refere-se ao Arlequim, figura na Commedia Dell’arte italiana. Originalmente, Arlequim traz a história daquele que vindo das montanhas para a cidade sem dinheiro, bens e nem mesmo comida, remendava sua roupa com tecidos que diversos lugares por onde foi passando. Os remendos de tal figurino eram carregados de histórias. E o que são os remendos de uma roupa se não suas cicatrizes? As cicatrizes também no corpo são marcas de um acontecimento. Com o passar dos anos o figurino de tal personagem italiano assumiu diversos losangos coloridos, uma espécie de concha de retalhos. Serres traz a imagem de Arlequim para as questões do sujeito cultural contemporâneo que se constrói através do contato, conflitos, diálogo que se estabelece com a sua tradição e com as outras culturas. Usa tal alegoria do manto de retalhos e estende-o ao próprio corpo do personagem, trazendo a imagem de um Arlequim que se despe. Ao começar a se despir Arlequim percebe outras camadas de roupas, todas compostas por retalhos. Despe-se de

510 Resposta para questão durante as aulas na École des Sables - tradução: Minha ideologia do corpo vem de um lugar de fronteiras. Eu me sinto na fronteira. A fronteira entre a arte, o teatro, a música, as artes visuais e a dança ... A fronteira entre o pensamento do corpo e o pensamento racional. A fronteira entre "de onde vem meus ancestrais?" e "quem sou eu?" Toda técnica e cursos que eu já fiz habita meu corpo. Todas as minhas histórias e as coisas que eu já vivi habitam meu corpo. Todas as influências dos meus antepassados (minhas raízes) habitam meu corpo. Meu corpo conta histórias. Meu corpo é história. Meu corpo é lugar de fronteiras. Meu corpo. 511 Michel Serres Michel Serres (1930-2019) filósofo francês. Escreveu obras como "O terceiro instruído" (2003) e "O contrato natural" (1990). Professor visitante na Universidade de São Paulo. Desde 1990 ocupou a poltrona 18 da Academia francesa. 512 (REIS, 2011, p. 25 e 26). 513 (SERRES, 1993, p. 12).

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várias camadas de roupa até que se encontra nu. Ali, apenas corpo, Arlequim revela que repete na pele o padrão do manto. É feito de retalhos, “Hermafrodita, ambidestro, mestiço racial, Arlequim”514

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514 (REIS, 2011, p. 26). 515 Obra Arlequim e sua dama (1910) de Giovanni Domenico Ferretti.

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ESPAÇO entre margens e TEMPO que flui

Ser estranho ao outro, ou ao seu tempo é estar na fronteira da diferenciação?

Trinh T. Minh-ha516 (1991) afirma que a partir do momento em que a pessoa se afasta da sociedade na qual vivia, muda seu ponto de vista para com a tal. Passa a “olhar para dentro a partir de fora”, mas também, quando sai olha para esse fora com os olhares de quem é de dentro. “Nem completamente o Mesmo, nem completamente o Outro”. Situa-se, portanto, na liminaridade, num lugar indeterminado, não sendo de fora, mas já também não sendo de dentro, e ao mesmo tempo sendo dos dois. Trinh a chama de “Outro / Mesmo Impróprio” perambulando para dentro e para fora na fronteira da identificação com a diferenciação. Diz “eu sou como você”, enquanto mostra suas diferenças. E também diz “eu sou diferente”, enquanto persiste nas semelhanças. “Quer ela coloque para fora a parte de dentro ou para dentro a parte de fora, ela é como os dois lados de uma moeda, a mesma impura e dupla pessoa de dentro/fora.”517 A partir dessa posição dupla descrita por Trinh, apresenta-se um sujeito que Abdul JanMohamed518 (1992) chama de “intelectual fronteiriço”. Aqueles com familiaridade com duas ou mais culturas distintas. Para discorrer sobre seu conceito, JanMohamed distingue dois tipos de ‘intelectuais fronteiriços’: o espetacular e o sincrético. O Espetacular, não se sente pertencente à nenhuma das culturas com as quais se relaciona. Coloca-se ‘à margem’ delas, como um ‘exílio voluntário’. Já o Sincrético, sente-se à vontade nas culturas por onde transita, buscando relacionar elementos e articular suas formas artísticas e teóricas no diálogo de ambos territórios.

516 Trinh T. Minh-ha (1952) é cineasta, escritora, teórica da literatura, compositora e professora vietnamita. Ela faz filmes há mais de trinta anos e pode ser mais conhecida por seus filmes Reassemblage (1982) e Sobrenome Viet Name Name (1985). 517 (TRINH, 1991, p. 74-75, apud REIS, 2011, p. 73) 518 Abdul JanMohamed leciona no Departamento de Inglês da UC, Berkeley desde 1983. Suas publicações incluem Manichean Aesthetics: The Politics of Literature na África colonial; A natureza e o contexto do discurso das minorias (co-editado com David Lloyd). Editor fundador (junto com Donna Przybylowicz) da crítica cultural.

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“Quem acha doce a terra natal ainda é um terno principiante; Aquele para quem toda terra é natal já é forte; mas é perfeito aquele para quem o mundo inteiro é um lugar estrangeiro. A alma tenra fixou seu amor num único ponto do mundo; a pessoa forte estendeu seu amor à todos os lugares; o homem perfeito extinguiu o seu.”520

O escritor moçambicano Mia Couto521 acredita que a possibilidade criativa de perceber poesia no cotidiano vem do habitar ‘lugar-nenhum’. Mia diz que sempre esteve em um lugar ambíguo, sempre cruzando rios. É ateu, mas dá voz àqueles que já se foram. É cientista e poeta. Está sempre à procura de uma identidade e em contato com alteridades. Afirma que desde criança podia estar presente em um lugar físico, mas em outro lugar ao mesmo tempo, no reino das idéias. Estar fora do seu tempo. Conseguir viver aqui mas não estar de fato aqui e agora. Conseguir de certa forma observar o aqui agora de longe. Ser estrangeiro do seu tempo. Cassiano Quilici (2015) propõe que para uma experimentação real do presente faz-se necessário um deslocamento do tempo atual. É preciso sentir-se estrangeiro de seu próprio tempo. “Lanço-me para fora do círculo fechado do presente histórico e do atual, habitando as margens do meu tempo, para sondar aquilo que ora se apresenta apenas como possibilidade virtual aos meus contemporâneos.”522

519 Foto de página do livro O outro pé da sereia, Mia Couto. Fonte: Foto da autora, 2018. 520 Hugo de St. Victor, monge saxão do século XII, citado por Edward Said, em O outro pé da sereia, Mia Couto, 2006, p. 50. 521 Mia Couto é escrito e biólogo moçambicano. Já recebeu muitos prêmios literários tais como prêmio Camões e o Prêmio Neustadt. É o escritor moçambicano mais trazido em outras línguas. 522 (QUILICI, 2015, p. 29).

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Propõe uma visão de presente como campo de possibilidades, um presente instável. Para isso, diz ser necessária uma “Des-atualização”, em contrapondo a ideia de “atualização” que “já está realizado e presentificado, opondo-se às virtualidades e às potências que latejam no momento.”523 A partir desse “desenraizamento do próprio tempo”, descobre-se outros modos de relação com o tempo, permitindo atravessamentos e diálogos outros. Traz à tona a experiência de ser ‘Extemporâneo’ “rompendo com o presente histórico, sem necessariamente cair na nostalgia romântica de um passado já dado, nem na idealização de um futuro que se apresenta como formatação do porvir.”524 O termo ‘Extemporâneo’, a ideia de ser estrangeiro de seu tempo, mistura as noções de tempo e espaço. Ser estrangeiro remete àquele que não está em sua terra (espaço) e o sufixo ‘temporâneo’ é associado à noção de tempo. Traz-se, portanto, uma sensação de Ser no Tempo, Estar no Espaço concomitantemente a Estar no

Tempo e Ser no Espaço. Habitando fronteiras sou e estou no tempo-espaço. Para Bhabha (1998) “‘Estar no “além” é habitar um espaço intermédio (...) um retorno ao presente para descrever nossa contemporaneidade cultural; reinscrever nossa comunalidade humana, histórica; tocar o futuro em seu lado de cá.”525 Remete- se aqui a um ser que coabita os tempos em um “espaço intermediário” como o chama. “Retornando ao presente”, “tocando o futuro”, estando “do lado de cá”, passeia pelos tempos como um estrangeiro fazendo viagens. Segundo o autor “Estar estranho ao lar não é estar sem casa.”526 Portanto estar estranho ao seu tempo, também não seria não estar em tempo nenhum?

Não há centro e o tempo perdeu sua antiga coerência: leste e oeste, amanhã e ontem se confundem em cada um de nós. Os distintos tempos e os distintos espaços se combinam em um agora e um aqui que está em todas as partes e sucede a qualquer hora. (REIS, 2011, p. 71).

Retomamos aqui a ideia da Faixa de Möbis, e tal noção de tempo descrita anteriormente neste capítulo. O tempo não mais regido pela linearidade, segue guiado pela ideia de combinações, de diálogo, reuniões, coexistências. Com relação a

523 (QUILICI, 2015, p. 29). 524 (QUILICI, 2015, p. 33). 525 (BHABHA, 1998, p. 27). 526 (BHABHA, 1998, p. 29).

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dimensão espacial, o tempo passa a não possuir um centro privilegiado. Passado, presente e futuro dialogam criativamente sem constituir valores em si. Escorrega-se na Faixa Möbils proposta por Soyinka, desliza-se por ela. Torna-se o rio-eu, entre universos múltiplos, forma liminar de espaço e tempo, lugar da passagem, da mediação.

UM RIO FRONTEIRA

Ser o próprio rio. O local de coexistência de dicotomias. Ser suas margens e leito. Sua terra argilosa, suas pedras. Ser as enxurradas e secas e o vento que as acariciam. Ser fronteira, “habitada por ela. Não meio para chegar em algo, mas modo de ser.”527 Se somos o próprio rio, necessita-se movimento. As águas em rio não param de correr. Movimento é vida. Um corpo quando morre para.528 Diversos movimentos. O rio não para. “Marchez!!”529 “Cria centros e reelabora o espaço”530, deste espaço- tempo entre, permite-se trocas, expressão e transformação. Nada se mantém igual. “Atchatcha!’531. Ser tal rio é perceber seu(r) fluxo. Correr por entre suas margens é ser a água que se (auto)mergulha. Em seus mergulhos, lá embaixo nas profundezas do rio, descobre-se que as raízes de árvores de ambos os lados se juntam.

Uma raiz multiplicada, estendida em redes na terra ou no ar, sem que nenhum tronco se transforme em predador irremediável. A noção de rizoma manterá, portanto, o fato do enraizamento, mas recusa a ideia de uma raiz totalitária (GLISSANT, 1990, p. 23 apud REIS, 2011, p. 134).

Quando as barreiras se borram, as alteridades e identidades se misturam “Não há exterior nem interior e a outridade não está lá fora, mas sim aqui dentro: a outridade somos nós mesmos.”532 Um corpo fronteira, sem uma origem e sim várias. Sem um tempo e sim muitos. Sem espaços definidos. “Um rizoma não começa nem

527 (MERLEAU-PONTY apud CHAUÍ, 1994, p. 487 apud ROSA, 2019, p. 112) 528 Ensinamentos em aula de Patrick Acogny na École des Sables. 529 Ande em francês. Termo relacionado ao método Acogny. 530 (ROSA, 2019, p. 52) 531 Expressão utilizada na École des Sables entendida como “Vamos! Vamos!” 532 (PAZ apud REIS, 2011, p. 68).

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termina, ele está sempre no meio, entre as coisas, entre-ser, entremezzo.”533 Fronteiriço.

CORPO-FRONTEIRA

Nosso corpo é formado de matéria, de carne. De músculos que caminham, tensionam, relaxam, dançam. De ossos que sustentam. De sangue que circula fazendo o leva e traz de energia, de oxigênio, de anticorpos… de ligações nervosas que levam sensações, dores, odores, sabores, que instauram memórias. De consciência e de inconsciência. De pensamentos, vontade, desejos, imagens e imaginações. De sons internos. De sons que rompem para o exterior. De sons calados, presos, entalados. De pele que define interior-exterior. De matéria e de não matéria como também é a mata densa atravessada por Ogum. “Corpo como rede material e de energias, como perspectiva de mundo e lugar do conhecimento.”534 Pensemos o nosso corpo com tudo que é constituído como “um limiar ou um peitoril, uma fina faixa, nem dentro, nem fora de uma construção ou sala, ligando um espaço a outro. É mais uma passagem/corredor/via do que um espaço em si mesmo.”535 Schechner (2012) nos diz que “um espaço de teatro vazio (...) o terreno de dança de uma aldeia africana e a construção temporária de um biombo para a wayang kulit (teatro de sombra) javanesa são espaços liminares, preparados para serem habitados por realidades imaginadas.”536 O corpo fronteira não seria diferente. A partir de todas essas experiências se permite coabitar e ser atravessado, tornando- se fronteira. Quem sabe com esse corpo podemos criar e agir nas “fronteiras e rachaduras do sistema”537. Fazer um corpo fronteiriço, seria como intensificar e trazer a porosidade à ele e sua consciência artística. Ser um corpo fronteiriço como terreiro de criação, disponível ao diálogo, à comunicação, à troca em muitas instâncias.

533 (DELEUZE; GUATTARI, 1980, p. 36 apud REIS, 2011, p. 39). 534 (SILVA, 2017, p. 24). 535 (SCHECHNER, 2012, p. 64). 536 (SCHECHNER, 2012, p. 64). 537 (ROSA, 2019, p. 41).

512

Ser Corpo-fronteira. Rizomático, Liminar538, Múltiplo. “Corpo mesclado: constelado, zebrado, tigrado, ocelado, mouriço”539. Mais do que os retalhos como Arlequim540, um corpo manchado. Corpo fronteira que borra os limites. Corpo poroso. Ser da fronteira. Ser sujeito cultural híbrido541 estrangeiro. Corpo extemporâneo542. Intelectual fronteiriço543. Corpo “de abertura para o exterior de outra carne, de reciprocidade entre múltiplas carnes e os seus múltiplos nomes e lugares.”544 “Passa a ser ele mesmo um território que se adentra e se completa no cosmos.”545 Afinal, “as pessoas fortes não são as que ocupam um campo ou outro, é a fronteira que é potente.”546 Sejamos seres intermediários, liminares. Um mesmo corpo, muitos espaços, muitos tempos, santos, muitos lados, muitas linguagens, memórias, movimentos, cantos, muitas idas e vindas…

538 Victor Turner (1969) 539 (IYER, 1993, p. 46 apud REIS, 2011, p. 25). 540 Referindo-se aos remendos nas roupas de Arlequim descritos por Serres (1993) 541 Eliane Reis (2011) 542 Cassiano Sydow Quilici (2015) 543 Abdul JanMohamed (1992). 544 Achille Mbembe (2014). 545 (ROSA, 2019, p. 52). 546 (DELEUZE, 1992 p. 61 apud REIS, 2011, p. 60)

513

Epa Babá! Oní Sáà wúre Sáà wúr àse Oní Sáà wúre o bé rí o mó

Oní Sáà wúre Sáà wúr àse Bàbá Oní Sáà wúre o bé rí o mó Ese e Bàbá; Epà Bàbá!

Senhor do Tempo (Existência) Rogamos bênçãos e axé Senhor do Tempo assim novamente Senhor do Tempo Rogamos bênçãos ao Pai Senhor do Tempo assim novamente.

AXÉ!

514

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CAPÍTULO 1

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APÊNDICES

ENTREVISTAS REALIZADAS

VOZES

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PEDRO AMBONE SHULUMA. Entrevista realizada por Julio Silvia. Disponível em: . Acesso em: 02 set. 2017.

GERALDO MAOCHA. Entrevista realizada pela autora em Maputo maio de 2014.

ATANÁSIO COSME NYUSI. Entrevista realizada pela autora em Maputo abril de 2014 e novembro de 2018.

SHUNIKA FELIPE. Entrevista realizada por Bortolot no distrito de Muatide, em junho de 2004. In: BORTOLOT: 2007.

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MÚLTIPLAS VOZES

MARCIAL LOURENÇO MACOME. Sou de Moçambique e estou no Brasil a estudar. Eu fiz formação em teatro em Moçambique e agora estou fazendo mestrado em Artes Cênicas na USP. (Entrevista realizada pela autora em São Paulo em agosto de 2019).

VENÂNCIO CALISTO. Meu nome de registro é Venâncio Calisto. Mas tenho assinado com nome de Guilherme Rosa, eu tenho 25 anos. Nasci em Maputo, sou de Maputo. Eu sou de teatro, gosto de adaptar textos para o teatro. (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

MARIA CLOTILDE. Meu nome é Maria Clotilde, eu tenho 26 anos e, sou encenadora, quer dizer, recém-formada em encenação e direção teatral pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade Eduardo Mondlane (UEM). (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

ALFREDO SEMO. Cenógrafo da cia Mutumbela Gogo (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

ADELINO BRANQUINHO. Ator da cia Mutumbela gogo (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

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ARMENIO MATAVELE. Ator do Teatro Gungu (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

ASSANE CASSIMO. Ator, formado pela Universidade Eduardo Mondlane, criador e fundador do Teatro em Casa. (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

MAURICIO NANGONGA. Integrante do Grupo Massacre de Mueda (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

MAURICIO. Eu sou Mauricio Geraldo Felipe. Eu sou mecânico, profissão. E sou motorista, profissão. Sou também artista, músico, pintor ou cantor. Sou escultor. Faço instrumentos musicais, tradicionais. (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

DAWA MAFUNGA. Eu chamo Dawa e nome artístico Mama Mafunga. Nasci aqui em Maputo. Tenho 40 anos. Sou artista profissional, já há 25 anos, na companhia Nacional de Canto e Dança. E sou também coreógrafa de dança, sou vocalista, sou compositora. (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

LINDO CUNA. Bailarino da Companhia Nacional de Canto e Dança de Moçambique (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

BOAVENTURA MACHAVELE. Cenógrafo da Companhia Nacional de Canto e Dança. (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

TOMÁS MELISSE. Cenógrafo da Companhia Nacional de Canto e Dança. (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

HELIO ATMANNE. Ator formado na Universidade Eduardo Mondlane (UEM). (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

VITOR GONÇALVES. Nascido em portugal, ministra aulas de teatro na graduação de teatro da Universidade Eduardo Mondlane (UEM). (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

ARMINDA REIS. Professora de dança da Universidade Eduardo Mondlane (UEM). (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

DADIVO JOSÉ. Ator, encenador e professor de teatro da Escola de Comunicações e Artes da Universidade Eduardo Mondlane (UEM). (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

JOAQUIM MATAVEL. Diretor do Grupo de Teatro Girassol. Eu sou Joaquim Matavel. Tenho 44 anos de idade. Nasci em Maputo. Eu sou mais psicólogo, faço encenação e também escrevo. Escrevo para o teatro. Estou a coordenador há 15, 16 anos o único festival internacional de teatro, que é o Festival Internacional de Teatro de Inverno (FIT). (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

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JUDITH NOVELA. Sou Judith Olivia Novela. Nasci aqui mesmo e tenho. 26 anos de idade. Bailarina e professora de dança da Associação Cultural Hodi Maputo Afro Swing. (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

EUGÊNIO MACUVEL. Eu sou Eugênio Junior. Tenho 27 anos de idade. Sou de Maputo. Profissão: bailarino, coreógrafo e diretor artístico da associação Cultural Hodi Maputo Afro Swing. (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

MARIO MACUVELE. Eu sou Mario Macuvele, tenho 33 anos de idade. Eu nasci aqui mesmo em Maputo. Sou bailarino, presidente da Associação Cultural Wuchene. Como profissão, sou enfermeiro geral. (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

RITA COUTO. Atriz e coordenadora da Fundação Fernando Leite Couto. (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

ZAINÁ RAJÁ. Atriz do Centro do Teatro do Oprimido. Rajá, tenho 36 anos e sou atriz, sou gestora cultural e coringa de Teatro do Oprimido. Sou daqui mesmo da cidade de Maputo, num bairro chamado Chamampulo. (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

ALVIM COSSA. Fundador do Grupo de Teatro do Oprimido de Maputo. Eu sou Alvim Cossa, tenho 50 anos sou um quase ator de teatro. (risos). Eu nasci na província do Maputo, distrito de Makonde. (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

DAVID ABÍLIO MONDLANE. Eu sou David Abílio, sou consultor na área da cultura. Mas pela formação eu sou encenador e dramaturgo, e exerci durante muitos anos, como coreógrafo da Companhia Nacional de Canto e Dança, diretor artístico e depois diretor da própria companhia. Fui chamado para ser assessor do ministro da cultura e também trabalhei como coordenador dos grandes eventos nacionais e internacionais. (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

ESTREANTY. Ernesto Langa, em 2002 comecei a fazer teatro. Tenho 27 anos. Nasci na África do Sul (zona de petrólea) né, mas nos meus documentos está que nasci aqui em Moçambique, Maputo. Sou ator, faço rap, na base eu sou ator e rapper. (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

MARIANA TEMBE. Dançarina contemporânea de Maputo.(Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

FELIX MAMBUCHO. Nascido em Maputo. Ator e professor. Grupo Luarte de teatro. (Entrevista realizada pela autora em Maputo novembro de 2018).

DAOTE. Integrante do Grupo Jovem de Mapiko Boane. Sou Daote. Nasci no dia 20 de outubro de 1997. Hei de completar 17 anos esse ano, em outubro. (Entrevista realizada pela autora em Boane em maio de 2014).

DOMINGOS. Integrante do Grupo Jovem de Mapiko Boane.

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Chamo-me Domingos José. Sou de 11 de julho de 1993. Vou completar 21 anos. (Entrevista realizada pela autora em Boane em maio de 2014).

AUGUSTO MANIÇA. Músico e fundador da associação cultural hodi. Entrevista disponível em: . Acesso jan. 2018).

ALDA COSTA. Nasceu em Pemba, Moçambique. Coordenou as escolas de educação artística (1983-85), trabalhou como Museóloga (1986 e 2001) e presidiu à Comissão Instaladora do Instituto Superior de Artes e Cultura (2007-09). É Diretora de Cultura da Universidade Eduardo Mondlane em Maputo. É formada em História, Museologia e História da Arte, área em que se doutorou (2005) com uma tese sobre arte moderna e contemporânea de Moçambique. (COSTA: 2014)

KATARINA KUVAVA. Mestre da manifestação cultural do Lingundumbwe. Manifestação realizada por mulheres como demonstrações da versão feminina do Mapiko. (Entrevista realizada por Lia Laranjeira, em Mueda, junho de 2014. In: LARANJEIRA, 2016).

AUGUSTO CHILAVE. Chilave foi professor de catequese no período colonial, escultor, saldado e ainda ex-prisioneiro político. Participante da guerrilha durante a missão organizada por Frelimo. Chilave discorreu sobre sua experiência como artista enquanto esteve preso. (Entrevista realizada por Lia Laranjeira, em Pemba, em novembro de 2013. In: LARANJEIRA, 2016).

SIMONI NCHUCHA. Ex-integrante da “Sociedade dos Africanos de Moçambique”, fundada no Tanganyika, no final da década de 1950. (Entrevista realizada por Lia Laranjeira em Mueda em novembro de 2014. in LARANJEIRA: 2016).

MATIAS NTUNDO. 16 anos, refugiou-se para receber treinamento militar em Nachingwea (Tanzânia). (Entrevista realizada por Lia Laranjeira em Mueda em novembro de 2013. In: LARANJEIRA: 2016).

GERALDO PITAMWIU. 24 anos, refugiou-se para receber treinamento militar em Nachingwea (Tanzânia). (Entrevista realizada por Lia Laranjeira em Pemba em novembro de 2013. In: LARANJEIRA: 2016).

FRELIMO. Fundo: Departamento de Educação e Cultura, Resoluções da Conferência do Departamento de Educação e Cultura – setembro de 1970, Caixa 3. in LARANJEIRA p. 247 e Departamento de informação 1971 in BORTOLOT: 2007)

GRUPO LINGUNDUMBWE. Rufina Saide, Tereza Joaquim José, Tereza Paulo (Distrito de Muatide, Julho de 2004. In: BORTOLOT: 2007)

GRUPO DE MAPIKO MANG’ANYAMU. Martins Manjibula Jackson, Mauricio Chiminda Ngui, e Horacio Manuel Multa (Distrito de Matambalale, Julho de 2004 in BORTOLOT, 2007)

LUCAS NJASHI NANELO E JANUÁRIO JUDITH MATIAS NTUMAKE (Distrito de Mwambula Julho de 2004, In: BORTOLOT: 2007).

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SIMÃO ASHUSHÉ. Simão Ashushé (Distrito de Muatide, Novembro de 2004. in BORTOLOT, 2007)

CHINYENGA LIKAMBE. (Distrito de Mbau, maio de 2004 in BORTOLOT, 2007)