Salazar a Silva Pais: “Nem uma palavra sobre o assunto”

[A operação de cerco e aniquilamento do general ]

1.Remodelação qualitativa da PIDE em 1962

…Com o início da guerra colonial, ultrapassado o sobressalto das eleições de 1958 e da candidatura do general Humberto Delgado, o regime passa à ofensiva, fortalecido pelo esmagamento das tentativas de golpes militares da Sé, de Botelho Moniz e de Beja, e pela desarticulação das manobras conspirativas em redor do anterior presidente da República, marechal Craveiro Lopes. …É assim que, em 1962, ascende ao poder na PIDE uma nova estrutura dirigente: o major Silva Pais, nomeado director em Abril, leva consigo Barbieri Cardoso, que abandonara temporariamente a polícia por divergências com o anterior director. Reorganizam os serviços de informações, que passam a ser dirigidos por Pereira de Carvalho – e para os quais chamam três elementos que em, em 65, farão parte da brigada que assassina Delgado: Rosa Casaco, Tienza e Lopes Ramos. …A reorganização visa estancar as incapacidades demonstradas pela PIDE e é marcada pela introdução de métodos “modernos”, importados da colaboração com serviços estrangeiros congéneres. Data também dos inícios dos anos 60 o relacionamento da PIDE com elementos estrangeiros da extrema-direita (oriundos da OAS [Organisation de l’Armée Secrete]), dando lugar à criação da Voz do Ocidente na Emissora Nacional e à instalação em Lisboa, mais tarde, da Aginter Press, para além do recrutamento e envio de mercenários para diversos países africanos.

2.A operação contra Delgado – uma prioridade

…Instalados na António Maria Cardoso, os novos chefes da PIDE lançam logo em moldes renovados as operações contra o general Humberto

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Delgado, recorrendo ao recrutamento de informadores que o pudessem vigiar e, se possível, influenciar. É o caso de Ernesto Bisogno, médico italiano de conhecido passado fascista, que oferece os seus serviços em Junho de 1962, e do seu amigo Mário de Carvalho, português que vivia em Roma há vários anos e se fazia passar, nos meios de exilados, por refugiado político. …É precisamente com este último – a que a PIDE atribui o pseudónimo de “Oliveira” – que será minuciosamente construída a operação de cerco e aniquilamento de Humberto Delgado, com o conhecimento das mais altas instâncias governamentais e abarcando a realização de inúmeras diligências em países estrangeiros, com a colaboração dos serviço congéneres. …Mais: essa operação permaneceu activa muito para além da eliminação de Humberto Delgado e da sua secretária, Arajaryr de Campos, dedicando- se não só à recolha de informações sobre exilados políticos portugueses (Mário Soares foi um objectivo prioritário, a partir de 1968), mas, em especial, aos assuntos africanos (recolhendo fotos da residência de Amílcar Cabral em Rabat, de Conacri, ou apoiando Tschombé no Katanga e Foulbert Youlou no Congo Brazaville…).

3.A documentação

…A operação contra o general Delgado é marcada também pela quantidade e qualidade da documentação produzida, cuja sofisticação contrasta significativamente com a rotina da PIDE. …Foram identificados, até ao momento, nos arquivos da PIDE-DGS, os seguintes conjuntos documentais directamente relacionados com a operação de cerco e aniquilamento do general Delgado: as pastas especificamente referentes a Humberto Delgado, com relevo para o processo nº 31 do CI(2); as pastas encontradas na sede da PIDE-DGS com a designação “Operação Outono” (referidas apenas aos anos 1962 e 1963); e a correspondência e outros documentos arquivados nas pastas relativas

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ao informador “Oliveira” (cobrindo, de modo irregular, os anos de 1966 a 1974). …Faltam nestes dois últimos conjuntos documentais precisamente 1964 e 1965, os anos cruciais da operação de cerco e aniquilamento de Humberto Delgado, embora a própria PIDE justificasse uma sua circular “secreta” de 4 de Novembro de 1964 com a seguinte nota: “Baseado numa carta de “Oliveira.” …Tudo leva assim a crer que, também no aspecto documental, foi comprida a directiva dada por Salazar a Silva Pais, após o assassínio do general: “Olhe, se quiser evitar ao país uns tempos difíceis, nem uma palavra sobre o assunto.”

4 Humberto Delgado – uma ameaça

…O espólio documental que agora começa a ser estudado dá uma imagem nova de Humberto Delgado nesses anos de 1964-65. …Ao contrário da versão sucessivamente veiculada pelo regime, e também quase sempre aceite sem crítica pelas oposições, a correspondência aí existente aponta, em crescendo, para o perigo que as actividades do general podiam representar para o flanco sul da Europa – até pelo apoio político e logístico que a Argélia de Bem Bella prestava às acções contra as ditaduras peninsulares. …É neste quadro que ganha maior significado a sucessiva invocação por Lisboa da “ameaça argelina” – no que é acolitada pelas estruturas político- militares de Espanha, França e Itália: tratar-se-ia do cumprimento de uma estratégia soviética de envolvimento e cerco da Europa pelo sul. (Os representantes diplomáticos de Espanha e Itália alertam para o próximo lançamento, por Humberto Delgado, da guerra de guerrilhas em …) …A verdade é que Delgado assumira, definitivamente, que o poder instituído em Portugal só cairia às mãos dos que haviam instalado, isto é, dos militares. Mas, isolado das principais forças da oposição portuguesa no exílio, deixa-se enredar nas promessas de acção com que lhe acenavam

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grupos e indivíduos ao serviço da PIDE e de diversas outras agências congéneres. E o seu voluntarismo (e desespero?) leva-o a jogar tudo por tudo, ainda que prevendo os perigos que o esperavam, como indicam os múltiplos sinais e alertas que deixou atrás de si. …O tece-lhe sucessivas armadilhas: desde logo, a construção da “Operação Outono”, em volta de uma designada “Organização República” em cujas conspirações chegaram a estar indirectamente envolvidos o marechal Craveiro Lopes (entretanto falecido, em condições nunca cabalmente explicadas, a 2 de Setembro de 1964) e mesmo o general Santos Costa, momentaneamente descrente do rumo que o regime tomara. No mesmo sentido viria a ser também o engodo das reuniões de Delgado em Paris, nos últimos dias de Dezembro de 1964, em que participa, fazendo-se acreditar como “oposicionista”, o elemento da PIDE Ernesto Lopes Ramos, e onde, afinal, se consuma o caminho para a morte.

5.A consumação e os vestígios do crime

Em 27 de Dezembro de 1964, o sub-inspector da PIDE Ernesto Lopes Ramos, usando o nome de “Ernesto Castro e Sousa” e intitulando-se advogado oposicionista, encontrou-se, no Hotel Caumartin, em Paris, com o general Delgado e o informador Mário de Carvalho. Aí convenceu o general que, no dia 13 de Fevereiro de 1965, seria aguardado por militares conspiradores junto a Badajoz. …No dia aprazado, o general e Arajaryr de Campos estavam naquela cidade espanhola, provenientes de Ceuta e munidos ela do seu próprio passaporte e ele de um passaporte em nome Lorenzo Ibañez (sobejamente conhecido da PIDE e da Seguridad espanhola). Nesse mesmo dia, passou a fronteira, em duas viaturas com matrícula falsificada, uma brigada da PIDE, composta, pelo menos, por António Rosa Casaco, Ernesto Lopes Ramos, Agostinho Tienza e Casimiro Monteiro, usando passaportes falsos. Lopes Ramos - Castro e Sousa chegou à fala com o general e Arajaryr e conduziu-os às cercanias de Olivença, onde os restantes elementos da brigada da PIDE os aguardavam, em sítio ermo – testemunhas oculares

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referiram mais tarde ter visto aí dois automóveis do mesmo modo que nesse local foi encontrado um rasto de sangue e cápsulas de munições de pistola habitualmente utilizadas pela polícia portuguesa. …Os elementos da PIDE regressaram a Portugal no dia seguinte, por El Rosal.

6. O encobrimento do crime

…Os cadáveres do general e de Arajaryr vêm a aparecer, em 24 de Abril de 1965, em Villanueva del Fresno, junto ao caminho vicinal de Los Malos Pasos, que leva à fronteira. Mas só a 29 de Abril os jornais portugueses publicaram dois telegramas, datados de Madrid, 27, que davam conta do aparecimento dos cadáveres, fazendo crer que teriam sido assassinados por oposicionistas. …Entretanto, as autoridades espanholas lograram saber os números do motor e do quadro das viaturas em que aquela brigada se fez transportar e, através dos fabricantes, que elas haviam sido comercializadas em Portugal e, através da polícia inglesa, das circunstâncias em que o passaporte utilizado por Casimiro Monteiro fora retido pela PIDE a um cidadão britânico. As autoridades portuguesas, no entanto, asseveraram que os quatro passaportes eram falsos e que não conseguiam localizar os automóveis – tendo a hierarquia da PIDE ordenado a sua destruição e a falsificação de toda a documentação e registos a eles referidos. Na verdade, os automóveis pertenciam um a Tienza e outro a Lopes Ramos. …A par destas manobras de encobrimento, a postura geral adoptada pelo regime foi de silêncio, apenas entrecortado pela injecção criteriosa de notícias falsas ou deturpadas que visavam confundir a opinião pública. …A direcção da PIDE ordenou, aliás, a instrução de um processo de averiguações por morte do general Humberto Delgado, de que foi instrutor Abílio Pires. Nesse processo, a PIDE fazia recair suspeitas sobre diversos oposicionistas, que foram detidos nos últimos dias de Maio. …Mas em 8 de Março veio a Lisboa o capitão - general Muñoz Grande, vice – presidente

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Governo de Espanha, com o especial encargo de Franco de inquirir junto de Salazar sobre o envolvimento das autoridades portuguesas no desaparecimento/morte do general Delgado. Também o embaixador de Espanha em Lisboa reuniu, mais tarde, com Salazar, que se limitou a responder: “Vou ver, vou saber.” …A 7 de Maio, no entanto, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, numa conferência de imprensa, sublinhou não ter “qualquer informação concreta a esse respeito”, acrescentando que o “o Governo português não teria qualquer objecção à realização [de um] inquérito [internacional]”. Para inocentar as autoridades portuguesas, o ministro aceitava colocar o “caso Delgado” em termos internacionais, não cuidando de “proteger” o regime de Franco. …Curiosamente, nesse mesmo dia estava de visita à PIDE o então chefe do Serviço de Informação da Direcção – Geral de Segurança de Espanha, tenente – coronel Eduardo Blanco, que ali tratava de coordenar a intervenção das duas polícias políticas no assunto – sequência de missões idênticas em Espanha… de Rosa Casaco. …Face ao teor das declarações do ministro português, Barbieri Cardoso teve de seguir para Madrid para acalmar os seus colegas espanhóis, tanto mais que as conclusões do relatório da comissão de inquérito organizada no âmbito da Federação Internacional dos Direitos do Homem apontavam, precisamente, no sentido do comprometimento das autoridades espanholas.

Alfredo Caldeira e A.A. Santos Carvalho 13-Fevereiro-1995

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