Articulações possíveis entre classe e gênero nos estudos de

Camila Marques1

Ao refletirmos em nossa tese de doutorado sobre classe social e estudos de telenovela, através do contato com outras pesquisas que se dedicaram sobre o tema e após um olhar exploratório sobre nosso objeto de estudo, defendemos que a desigualdade entre homens e mulheres não é natural, mas própria da vida em sociedade (SCOTT, 1990), o que nos faz problematizar empiricamente as formas com que a mídia atua na reprodução das desigualades não apenas de classe, mas também de gênero. Mostrou-se, assim, a necessidade de pensarmos em articulações possíveis entre gênero e classe social, pois acreditamos que os “processos de dominação são relacionais”, sejam eles entre classes sociais diferentes, ou entre homens e mulheres (MATTOS, 2006a). Sabe-se que o viés da classe social perpassado pela noção de gênero, ainda tem merecido pouca evidência entre os Estudos de Recepção de Telenovela (SIFUENTES; RONSINI, 2011): “o que se verifica com frequência é que a mulher aparece em estudos de recepção apenas como uma variável sociodemográfica, e não como uma categoria teórica e explicativa” (SIFUENTES; RONSINI, 2011, p. 132). Acreditamos que não apenas as desigualdades de classe, mas também as de gênero são estruturantes da textura da experiência porque são formas primárias de dar sentido às relações de poder baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos (RONSINI et al., 2015), pois mesmo quando pertencentes a uma mesma classe social, a dominação masculina (BOURDIEU, 2012), construída culturalmente, acaba presente sob diversas formas: tanto no que se refere às formas de ser, quanto no que concerne aos modos de se apresentar. É o que defende também Saffioti (1992, 2013), que em estudo pioneiro no Brasil analisa a situação das mulheres como um “efeito” da sociedade de classes: para a autora, a inferiorização social feminina interfere de forma positiva para a reprodução da

1 Doutora em Comunicação pela Universidade Federal de Santa Maria, com doutorado sanduíche (PDSE/CAPES) na Universidade Católica Portuguesa - Lisboa. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Comunicação, Gênero e Desigualdades (UFSM/CNPq) e produtora audiovisual. [email protected]. 1

sociedade capitalista. A desigualdade, nos termos de Saffioti (1992), vem do entendimento das relações de gênero também como relações de poder por esse motivo, se dedicando mais ao conceito de patriarcado -, em que a dominação e a exploração são faces de um mesmo fenômeno. Davis (2016) vai além e defende que é preciso se considerar a intersecção entre classe, gênero e raça para que se alcance um novo modelo de sociedade: é preciso perceber que entre essas três categorias existem relações que são mútuas e outras que são cruzadas (DAVIS, 2016). Essa articulação entre classe e gênero se mostra pertinente por percebermos que a ideologia dominante é aquela em que a identidade feminina, assim como a classe popular, é submissa: nas relações entre classe e gênero há sempre uma “’classe’ desmerecida” (ESCOSTEGUY; SIFUENTES, 2011, p. 3). Nos vinculamos então aos argumentos de que o gênero não é simplesmente uma diferenciação sexual, mas sim “um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos” (SCOTT, 1990, p.86) e “forma primeira de significar as relações de poder” (SCOTT, 1990, p.86). Para Connel e Pearse, gênero pode ser entendido como “a estrutura de relações sociais que se centra sobre a arena reprodutiva e o conjunto de práticas que trazem as distinções reprodutivas sobre os corpos para o seio dos processos sociais” (CONNELL; PEARSE, 2015, p. 48). As autoras complementam o entendimento de Bourdieu (2012, p. 20) de que as diferenças biológicas entre o corpo masculino e o feminino são vistas como justificativas naturais para a disparidade socialmente construída entre os gêneros. Os termos “trabalho de mulher” e “trabalho de homem” por exemplo, “estão ligados às supostas condições biológicas” e ao corpo “de cada sexo, como a capacidade de gestar feminina e a de acumular músculos com maior facilidade apresentada pelo homem” (MATTHAEI, 1993 apud FIORIN; OLIVEIRA; DIAS, 2014, p. 26). Bourdieu (2007, p.3) igualmente entende que “se o masculino representaria a cultura, o superior, a mente, o raciocínio; o feminino estaria relacionado à natureza, ao inferior, ao corpo, à emoção”. Dessa forma, a dominação masculina converte as mulheres em objetos simbólicos e as coloca em um permanente estado de insegurança também corporal: elas existem primeiro pelo - e para

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o - olhar dos outros. Há, também, uma relação entre corpo, classe e gênero quando o autor afirma que “[...] os modos de posicionar o corpo, de apresenta-lo aos outros, exprimem o sentido do próprio valor social da mulher na sociedade de classes” (BOURDIEU, 2007, p.339-440). Partindo do pressuposto de que disposições de gênero são indissociáveis das disposições de classe (RONSINI et al., 2017a, p. 4), buscamos neste artigo identificar, através da compilação de pesquisas anteriores e de uma pesquisa documental realizada no Guia Ilustrado TV Globo: novelas e minisséries (MEMÓRIA GLOBO, 2010), Entre tramas, rendas e fuxicos (MEMÓRIA GLOBO, 2008), No camarim das oito (CARNEIRO; MÜHLHAUS, 2003) e Figurino: uma experiência em televisão (LEITE; GUERRA, 2002), como as mulheres de diferentes classes têm sido representadas nas . Uma análise da representação das personagens femininas da telenovela (Rede Globo, 2015/2016), através da mediação da tecnicidade (MARTÍN-BARBERO, 2003) corporifica a parte empírica de nossas reflexões. A importância de um olhar para o “texto-visual” (ROMANO, 1999) da telenovela se justifica por acreditarmos que “as telenovelas do horário nobre são parte dos processos ideológicos e culturais que reproduzem e modificam os laços sociais no Brasil, ao incitarem reflexões das pessoas comuns sobre a formação social brasileira e sobre temas como as desigualdades de classe e de gênero” (RONSINI et al., 2017a, p. 1). Um dos primeiros pontos que damos destaque em nossos achados é o papel fundante que o figurino e a caracterização - importantes na representação das personagens de narrativas ficcionais - possuem na transição de diversos personagens de uma classe social para outra. Uma das marcas da ascensão de classe, talvez, por ser a mais visível, está nos modos de se apresentar através dos usos sociais do corpo. Segundo o Projeto Memória Globo, a “transformação de moça pobre e feia em mulher bela e poderosa” (2008, p. 22) é o mote de muitas telenovelas da emissora. Outras personagens como Júlia Matos (Dancin´Days), Maria do Carmo (Vale Tudo), Carminha (Avenida Brasil), Empreguetes () mudam seu visual assim que ascendem de classe. Algumas têm como marcação, inclusive, o momento de se fazer

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compras e transformar o guarda-roupas em um explícito “antes e depois” que passa diretamente pelo gosto, corpo e estilo de vida. Em pesquisa anterior, Marques (2015) defende que a representação dos homens de classes populares segue um padrão com o uso de roupas mais básicas, salvo algumas exceções, como os bicheiros Tucão, de Bandeira 2 e Célio, de Partido Alto, ambos retratados com um estilo “carioca malandro”, ou os mecânicos Dorival de O Bofe e Raí, de . Outro ponto que chama a atenção é com relação à ascensão de classe por parte dos personagens masculinos. Dos que começam a trama pobres e passam a ser ricos, destaca Fernando, de Pigmalião 70 e Carlão, de . O primeiro, feirante, ascende socialmente pelo casamento com uma mulher rica - relação menos recorrente do que o contrário, como se pode observar em , Dancin´Days, e , por exemplo. Já no que concerne às representações femininas, se observa uma tentativa de tornar as mulheres pobres “menos visíveis” através do figurino. É o que acontece com Noeli, de Bandeira 2; Jussara, a manicure de Partido Alto; Rose, a faxineira de Cama de Gato e Nina, a cozinheira de Avenida Brasil. As quatro possuíam figurinos e estilos básicos, com roupas sem cores e estampas, e predominância de jeans, camisetas e sapatos de saltos baixos, sempre retratadas com “roupa de trabalho”, ausência de maquiagens ou roupas mais coloridas e decotadas. Em contrapartida à neutralidade, a sensualidade ligada às mulheres de classe popular pode ser percebida já em telenovelas da década de 1970 com Gabriela. Através de pesquisa anterior, (RONSINI et. al., 2013, p. 4) se conclui que “grande parte deste imaginário sobre a sensualidade, especialmente, o tom negativo típico da historiografia recai sobre a mulher de classe popular” e “se antes eram as índias, as caboclas ou as negras que simbolizavam a devassidão, hoje são as mulatas, as negras ou mesmo a “periguete” de classe popular” que tomam esse lugar. Desde 1975 são vários os exemplos que relacionam mulheres e sensualidade/mulheres e corpo à mostra: Dancin‟ Days, que trazia a personagem Júlia Matos com roupas curtas e coloridas; Babalu, de Quatro por Quatro, manicure traída pelo noivo constantemente, com figurino

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composto apenas por roupas muito curtas e justas e outras manicures de classe popular como Darlene, de , que buscava fama e ascensão social através do corpo e Rakelli, de , retratada como “burra” e inocente, vestida apenas com roupas curtíssimas que davam apelo sensual à personagem. Ainda sobre as repetições de representações nas novelas da Rede Globo, além da sexualização feminina, destacamos a associação entre novos ricos e “breguice” (MARQUES, 2015; RONSINI et. al, 2017b). Porcina, de Roque Santeiro, Maria do Carmo, de e Carminha, de Avenida Brasil, são alguns dos exemplos de mulheres que ascendem de classe, mas são retratadas como excêntricas e cafonas são alguns exemplos que reforçam a noção de que o acúmulo de capital econômico não é o suficiente para a conformação de um estilo de vida burguês àqueles que ascendem de classe. Marques (2015) complementa ao identificar que as mulheres de classes populares têm o corpo socialmente construído nas telenovelas para dar conta das seguintes representações mais recorrentes: a) vilãs que querem ascender socialmente; b) mulheres sensuais, que não tem emprego fixo e não possuem capital cultural e de forma “cômica” são retratadas como “burras” ou “ingênuas”, tendo como foco a mesma ascensão de classe, geralmente através do casamento com um homem rico, ou através da fama e de seu corpo; c) mulheres que sofrem abusos dos maridos; d) mulheres que possuem empregos basicamente de domésticas, manicures ou trabalhos manuais; d) prostitutas; e) mulheres que conseguiram ascender socialmente, porém, retratadas como “bregas” e “sem classe”. Logo, o esquema corporal identifica o sujeito-corpo, “dá vida” a sua postura e posição no mundo social e impõe relações complexas de poder e dominação (GOLDENBERG, 1995) - também no produto ficcional - seja entre classes distintas ou entre homens e mulheres. Sendo assim, podemos observar que as relações de classe social e gênero caminham paralelamente, pois a telenovela acaba produzindo uma sub-representação das mulheres de posições sociais destituídas mais do que em relação ao gênero masculino. Como destaca Ronsini (2017a, p.2), o “aprendizado moral pelo

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compartilhamento de um consenso acerca de um padrão de feminilidade de classe” se torna perceptível através de um discurso ainda predominantemente hegemônico heteronormativo, androcêntrico e patriarcal, e mesmo as tramas que trazem identidades femininas até então inovadoras para o horário nobre acabam, com raras exceções, reproduzindo o discurso hegemônico dominante vigente há meio século, principalmente através dos usos sociais do corpo feminino.

Palavras-chave

Telenovela, classe social, gênero, corpo.

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