CAETÂNICAS NOITES DO NORTE

LEONARDO DAVINO DE OLIVEIRA

“A escravidão permanecerá, por muito tempo, como a característica nacional, do Brasil” (Joaquim Nabuco)

Considerações Iniciais

O neobarroco, segundo Chiampi (1998), é o barroco reciclado e atualizado nos dias atuais. Tal termo tem sido freqüentemente usa- do para referir-se aos exercícios verbais de alguns notáveis romancis- tas latino-americanos como Miguel Angel Astúrias, Alejo Carpenti- er, José Lezama Lima, Guillermo Cabrera Infante, Severo Sarduy, Luiz Rafael Sánchez, Carlos Fuentes, Fernando Del Paso, além dos poetas como Carlos Germán Belli e Haroldo de Campos, entre ou- tros. Sarduy (1979) recolheu essa tradição e desenvolveu sua própria teorização no quadro das mudanças culturais dos anos 60, isto é, quando a crise do moderno começava a despejar o entulho autoritário produzido pelos pesadelos da Razão. A música popular brasileira vem ganhando, desde a década de 60, espaço cada vez maior dentro das universidades graças às quali- dades estéticas de suas letras e melodias. Livros acadêmicos, ou não, estudam o fenômeno música popular/poesia, propondo novas abor- dagens tanto da cultura de massa como da cultura erudita. Livros e discos habitam à mancheia o dia-a-dia de sociólogos, antropólogos, filósofos, psicanalistas, lingüistas, críticos literários, semioticistas, etc. A produção musical de reflete estruturalmente a desarmonia, seja através do lírico, seja através do social. O lirismo da obra caetânica acata, em primeiríssimo plano, a desarmonia - principalmente pela associação de elementos díspares, tradicional- mente discordantes e, muitas vezes, paradoxais. Tais observações nos levaram a perguntar sobre a presença de elementos Neobarrocos na produção musical de Caetano Veloso. Em seu ensaio “O Barroco e o Neobarroco”, Sarduy aponta três mecanismos de artifícios barrocos, a saber: a substituição , a pro- liferação e a condensação . A substituição é a troca do objeto-foco, por um outro que faz referência àquele, ou seja, na literatura é a per- muta do termo que designa o objeto de referência por outro termo, ou mesmo outra expressão, que no contexto adquire o significado do objeto-foco. Neste artifício, fica evidente o desejo do artista em des- viar a atenção do público, o que gera um estranhamento (Chklovski, 1973) e, conseqüentemente, leva à dificuldade de apreensão da men- sagem. Já a proliferação é a multiplicação de metonímias do objeto de referência através da repetição de termos e/ou seqüências de signifi- cantes, que façam referência ao objeto-foco. Este procedimento é um paradigma e uma referência crítica, em suas buscas de inovação, opondo-se ao simplismo de certa poesia então acomodada na expres- são direta e banal, ou nos surrados exemplos do modernismo (Chi-

2 ampi, op . cit .). Nas palavras de Sarduy, “É obliterar o significante de um determinado significado por uma cadeia de significantes que progride metonimicamente e que termina circunscrevendo o signifi- cante ausente, traçando uma órbita em torno dele, órbita de cuja lei- tura podemos inferi-lo”. É o exagero, a profusão, gerando a lingua- gem adensada, típica do estilo barroco, na busca do prazer artístico. E a condensação é a “fusão de dois dos termos de uma cadeia de significantes, choque e condensação dos quais um terceiro termo resume semanticamente os dois primeiros.” (Sarduy, op . cit ., p. 167). Importante lembrar também a definição de Affonso Ávila para o artista barroco: “o poeta é um jogador”, que certamente ganha refor- ço, se aliada às investigações de Sarduy.

Análise do corpus

Neste trabalho utilizamos as letras das canções compostas por Caetano Veloso e interpretadas no disco 1 (um) de Noites do Norte ao vivo (2001), que é a gravação em áudio do show do disco Noites do Norte (2000), inspirado pelo pensamento do abolicionista Joa- quim Nabuco, tendo o tema da escravidão fortemente impresso nas canções, seja nas letras, seja na percussão melódica, levando o leitor- ouvinte a uma reflexão, sobre vários pontos de vista, a cerca do perí- odo escravocrata do Brasil, além de incutir a mestiçagem como ca- racterística brasileira.

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Two Naira fifty Kobo

Regravação do disco Bicho (1977), encontramos aqui um eu- lírico exaltando as raízes negras e indígenas do Brasil e, ao mesmo tempo, incorporando-se a essas raízes. A letra é dividida em quatro estrofes formadas por dísticos. A primeira estrofe, “No meu coração da mata gritou Pelé, Pelé / Faz força com o pé na África”, remete-nos à origem do Brasil, com os negros trazidos da África, pois ao evocar Pelé, o rei do futebol brasileiro e negro, o eu-lírico faz-nos refletir sobre a presença dessa raça na cultura brasileira, pela importância representativa do futebol nesta cultura. Já na segunda estrofe, “O certo é ser gente linda e dançar, dan- çar, dançar / O certo é fazendo música”, temos uma direta intertextu- alidade com a canção Gente , também do disco Bicho , pois nessa canção temos o verso “Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”, ou seja, muito se fala que o Brasil tem um povo lindo e rico cultu- ralmente, certamente por causa das miscigenações, o eu-lírico joga (Ávila, 1994) com isto e diz que “O certo é ser gente linda e dançar, dançar, dançar”, pois mais importante do que TER uma gente linda, é SER gente linda. Para Sarduy, a intertextualidade é, em primeiro lugar “a incor- poração de um texto ao texto”, sendo este um elemento destacado por Sarduy, para a semiologia do barroco latino- americano. Nas palavras de Sarduy, “o texto estrangeiro se funde com o primeiro, indistinguível, sem implantar suas marcas, sua auto-

4 ridade de corpo estranho na superfície”, levando o leitor-ouvinte a lembrar-se do texto parodiado através da reminiscência , pela sutileza com que o artista faz esse processo intratextual. A terceira estrofe, “A força vem dessa pedra que canta Itapuã / Fala tupi, fala iorubá”, tematiza a cultura indígena e negra. Itapuã, que significa literalmente “pedra que canta”, é também uma praia de Salvador que servirá mais tarde de tema para a canção homônima, de Caetano Veloso, no disco Circuladô (1991). Nesta letra o eu-lírico cria uma cadeia de significações subjetivas para Itapuã. Uma obser- vação essencial para nossa argumentação é termos Itapuã como “fru- to do futuro”, ou seja, “a força vem dessa pedra que canta”. Assim, Itapuã em Two Naira fifty Kobo substitui e representa a cultura indí- gena, base e princípio da cultura brasileira. E na quarta estrofe, “É lindo vê-lo bailando ele é tão pierrô, pierrô, / Ali no meio da rua lá”, temos o eu-lírico tematizando a tão propagada “melancolia brasileira”, através da figura do pierrô, per- sonagem carnavalesco que sofre pelo amor da colombina, apesar de estar numa festa de carnaval ele se senti triste. Importante atentarmos para a prosódia de Caetano Veloso, principalmente ao dizer “vê-lo bailando”, pois podemos inferir, no mínimo, dois sentidos para a expressão: vê-lo, de o verbo ver, isto é, o eu-lírico chamando a aten- ção para a beleza do bailar do pierrô no carnaval e mesmo a beleza do “bailar” de Pelé no campo de futebol; mas também podemos ter vê-lo, como velô, redução de Veloso, com o autor-intérprete inse- rindo-se na canção.

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Naira é o nome da moeda nigeriana e Kobo é a fração. Esta mistura de nigeriano e inglês do título, Two Naira fifty Kobo , de- monstra a miscigenação, mas também a antropofagia de um povo, por “deglutir” na sua cultura a do outro. Percebemos o ludismo (Ávi- la, op . cit .) a partir do título que tem quatro palavras e na letra for- mada por quatro estrofes. Também porque em cada estrofe temos verbos exprimindo uma ação que pede uma reação: na primeira há o “grito” e na segunda a “dança”, na terceira o “canto” e na quarta o “bailar”. Os elementos indígenas e negros, proliferados ao longo da letra, dão significado ao título por se referirem à mistura cultural da origem do Brasil. A letra é acompanhada por uma melodia com a presença constante de tambores, em determinado momento a voz do intérprete desaparece, ficando apenas a apresentação desses tambores, reme- tendo-nos aos sons tanto indígenas quanto africanos, mas também do baixo e quitarra elétrica, intensificando a antropofagia cultural.

Sugar cane fields forever

Canção do disco Araçá Azul (1972) Sugar cane fields forever tem clara referência paródica a Strawberry Fields Forever , de John Lennon e Paul McCarthney, com ambas as canções fazendo referên- cias à infância de seus autores. A canção de Caetano tem uma letra bem mais longa, repleta de citações e colagens (Sarduy, op . cit .), outros elementos que incorporam a voz de um outro texto sem alterar

6 a voz do texto sob feitura, de canções de domínio público, no entan- to, para o disco Noites do Norte ao vivo , o compositor optou por cantar apenas os versos “Sou um mulato nato / No sentido lato / Mu- lato democrático do litoral”. O eu-lírico faz aqui uma reverência, mais que isso, ele incor- pora em si o hibridismo do mulato, que condensa em si a mestiçagem resultante da mistura entre o negro e o branco, apontando também para a formação do povo brasileiro. Temos a repetição dos fonemas /l/ e /m/, fortemente marcados nas línguas Tupi e Iorubá, como resgate e representação das línguas da origem do mulato. O mulato pode ser tomado como ícone neobarroco, pois ele nem é negro, nem é branco, ele é e não é. Há, certamente, uma ironia quando o eu-lírico diz que é um “mulato nato”. Nato significa con- gênito, ou seja, é de nascença, então como ser nato se ele surge de uma mistura, ou mesmo se sua “raça” passeia entre duas outras ra- ças? Ele é nato sim, mas não no sentido lato, étnico. No entanto, podemos ainda entender tais afirmações, isto porque o eu-lírico não tem dúvidas quanto ao que ele é, como mais um jogo de Caetano Veloso, pois assim ele acaba instituindo o nascimento do mulato, nato e brasileiro no encontro do branco – senhores de engenho, por exemplo, que chegaram nas embarcações – do litoral com o negro – os escravos, que também vieram por meio de embarcações – do lito- ral. O eu-lírico parece orgulhar-se desta origem dúbia e é esta origem que impõe nele a democracia, intensificada pelo acompanhamento melódico de tamborins e de baixo elétrico.

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Haiti

O Rap , estilo musical em que a presença da fala está bastante evidente, com as letras visivelmente relacionadas ao quadro sócio- político, é o canto-falado como define Luiz Tatit (1996), gerando o processo de figurativização, com as características entoativas da fala se aproximando da entonação coloquial da canção quebrada, porém num refrão que revela a passionalização, outro modo de executar a canção, apresentado por Tatit. Esta canção abre o disco Tropicália 2 (1993), marcando os vinte e cinco anos do Movimento Tropicalista. A canção expõe situações que incomodam a sociedade e que por isso deveriam ficar escondidas. Caetano retoma aqui o caráter híbrido do mulato “quase brancos quase pretos”, acentuando porém a questão da miséria “E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados”. A exposição começa numa visão que o eu-lírico tem, estando ele no adro da Fundação Casa de Jorge Amado. Ele vê uma “fila de soldados, quase todos pretos / dando porrada na nuca de malandros pretos / de ladrões mulatos”. Isto acontece sob a apresentação do Olodum, “meninos uniformizados”, banda de percussão formada por componentes pretos e pobres de Salvador-BA, ou seja, a festa e o mercado do turismo, “olhos do mundo inteiro voltados para o largo”, escondem a realidade em que pretos agridem pretos.

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O eu-lírico deixa perceber que o preconceito racial vem não só do branco, mas também do preto sobre o próprio preto e principal- mente sobre o pobre. Como diz o eu-lírico “Não importa nada / Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico / Nem o disco de Paul Simon / Ninguém, ninguém é cidadão”, isto é, o destaque da mídia à arquitetura, a música e a cultura baiana, reafirma na produção literá- ria de Jorge Amado, citado no início da letra, não favorece ao seu povo “quase todos pretos”. Os dualismos (afirmação e negação) do refrão, “O Haiti é aqui, o Haiti não é aqui”, une-se a branco/preto e rico/pobre, ampliando o caráter neobarroco da canção. A segunda parte da letra demonstra a indignação com a postu- ra inadequada dos políticos, representada pelo deputado “Em pânico mal dissimulado” com um plano de educação; da Igreja Católica, ironizada na expressão “E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto e nenhum no marginal”; e da sociedade em geral, com seu “silêncio sorridente” diante da chacina do Carandiru. Neste momento há um breve silêncio da voz do intérprete e da percussão, resultando numa perfeição demonstração entre o que é “di- to/cantado” e a forma de dizê-lo – o silêncio, depois disso o canto aproxima-se ainda mais da fala. Haiti dialoga intertextualmente com as canções Podres pode- res , do disco Velô (1984) e Vamo comer , do disco Caetano (1987), como tentaremos mostrar: O eu-lírico de Podres poderes chama a atenção para o fato de que “enquanto os homens (referindo-se aos falsos políticos) exercem

9 seus podres poderes / motos e fuscas avançam os sinais vermelhos / e perdem os verdes, / somos uns boçais”. O que da base semântica para o verso “E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual”, de Haiti . Este “sinal vermelho”, tomado na nossa leitura como as leis e as regras da sociedade, também é mencionado na canção Vamo co- mer , no verso “baiano burro nasce, cresce / e nunca pára no sinal / e quem pára e espera é chamado de boçal / quando é que em vez de rico / ou polícia ou mendigo ou pivete serei cidadão”. Esta pergunta final é sem dúvida o mote para Haiti , principalmente quando o eu- lírico desta canção reconhece que “Ninguém, ninguém é cidadão”. Ainda em Podres poderes há os versos “Será que nunca fare- mos senão confirmar / A incompetência da América Católica / que sempre precisará de ridículos tiranos”, incompetência confirmada quando em Haiti encontramos referências a um “venerável cardeal” dizendo que “vê tanto espírito no feto e nenhum no marginal”. Já em Vamo comer a relação intertextual é bem mais direta, pois temos os versos “O padre na televisão / diz que é contra a legalização do abor- to e a favor da pena de morte”, com o eu-lírico posicionando-se con- tra e criticando tal ideologia, “eu disse: não! / Que pensamento mais torto!”. Caetano apresenta em Haiti um retrato em branco e preto da realidade brasileira desnudando seu lado mais feio, daí o retrato ser em branco e preto, que expõe ainda mais os detalhes de que se fosse colorido, em que, na visão do seu eu-lírico, não importa o “cidadão” ser branco ou preto, mas sim rico ou pobre. O uso de termos como:

10 porrada , mijando e trepar , mostra a sátira, ao estilo gregoriano, com deboche e ironia, que Caetano Veloso faz sobre o comportamento da sociedade brasileira. Para a semioticista Lucia Santaella, em seu texto Produção de Linguagem e Ideologia (1996), arte alienada seria “aquela que não fala diretamente sobre algo, não faz discurso contra as injustiças sociais, a dominação de classes etc”, tais discursos, ainda para Santa- ella, longe de impulsionarem transformações, cooperam ingenuamente para a preservação do sistema, pois servem para arre- fecer os ânimos mais acirrados daqueles para quem o simples dizer as coisas seria uma maneira de fazer justiça”. Mas enfim por que Haiti? Inferimos que seja uma substituição para Brasil, pois, tanto no Haiti, como aqui, temos uma presença importante do negro como base fundadora da nacionalidade. Há tam- bém a questão turística. O Haiti é banhado pelo mar do Caribe, gran- de pólo turístico para os ricos, aqueles que tem muita grana. Já no Brasil temos a cidade de Salvador, tematizada na letra, que também funciona como pólo turístico. O Haiti é aqui e não é aqui, é enquanto representação da misé- ria do povo, apesar da riqueza cultural, e não é enquanto nação. Ao invés da sociedade ficar preocupada com os problemas da população do Haiti, ou Cuba, o eu-lírico deixa sugerido nas entrelinhas a neces- sidade de preocupar-se com os problemas do Brasil.

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Araçá blue

Canção extraída do disco Araçá azul (1972) é executada ao estilo voz e violão, aumentando a passionalização (Tatit, op . cit .) do ouvinte com relação a letra. Aparentemente nesta canção não temos a presença das questões tematizadas nas anteriores. Porém, voltando ao verso “Sou um mulato nato / no sentido lato / mulato democrático do litoral”, temos um eu-lírico que, se em Sugar cane fields forever , assumi-se como sendo esse mulato, em Araçá blue tematiza questões por demais subjetivas, “um sonho-segredo” assustador. Caetano usa aqui, mais uma vez, a dualidade ser/não ser, pois “Araçá azul é so- nho-segredo / não é segredo”, ou seja, ele, o araçá azul, não é apenas uma coisa, ele é isto mas também é aquilo, híbrido como um mulato, típico da Bahia como um araçá. “Araçá azul fica sendo / O nome mais belo do medo”, remete- nos ao jogo lúdico neobarroco, isto é, algo que deve ser usado para brincar, apenas como fruição e deleite do receptor, assusta e causa medo. Isso é confirmado no último verso “Araçá azul é brinquedo”, quando o eu-lírico chama a atenção para a brincadeira, como se nada devesse ser levado tão a sério. Remetendo-se também a própria pro- dução do mulato que assustou à crítica pela inventividade e ousadia, talvez por isso Caetano, no Letra só , afirme que todas as suas canções são autobiográficas. Araçá blue se relaciona intertextualmente com a canção O conteúdo , do disco Temporada de verão (1974). Sendo, na realida-

12 de uma resposta a esta canção, pois nela temos o verso “aquele cara na Bahia me falou que eu morreria dentro de três anos”, e em Araçá blue temos o verso-resposta “com fé em Deus eu não vou morrer tão cedo”.

Zera a reza

Primeira letra do disco Noites do Norte (2000), Zera a reza surge como mais uma demonstração da arte neobarroca de Caetano Veloso. “As palavras da letra são uma brincadeira nada rigorosa com inversões e espelhamentos”, esta observação feita pelo autor refere- se aos quatro primeiros versos da letra, em que os anagramas vela- leva; seta-tesa; rema-maré; rima-mira; terça-certa; sera-reza, utiliza- dos aqui como ludismo, desviam a atenção do receptor para o texto sob a letra. Este refrão é cantado a quatro vozes e acompanhado por quatro instrumentos: O cello elétrico de Jaques Morelembaum; A bateria de Cesinha; as quitarras hip hop de Davi Moraes e Pedro Sá; e o violão bossa nova de Caetano. Já no início da canção propriamente dita, nos versos: “Zera a reza meu amor / canta o pagode do nosso viver” há um convite para que o receptor, evocado através da expressão “meu amor”, largue tudo, ou melhor, a reza, e saia para aproveitar a vida, que está substi- tuída, no texto, por vela, que está passando; portanto, urge curtir o momento de confraternização e liberdade proporcionado pelo carna- val. É “entre dor e prazer” que acontece o pagode, o samba, o carna-

13 val. O carnaval é a maior expressão dessa dor e desse prazer citados pelo texto, é preciso aproveitar, mesmo que seja preciso “pagar pra ver”, isto é, os componentes das escolas de samba, e mesmo os “foli- ões” dos blocos carnavalescos, economizam durante o ano todo para poder brincar o carnaval. É importante percebermos a crítica feita pelo eu-lírico à “turistização” do carnaval institucionalizado do Rio de Janeiro, tanto quanto do carnaval de Salvador. A expressão “o que pode e o que não pode ser” nos remete a canção-marchinha carnava- lesca de João Roberto Kelly, Cabeleira do Zezé -“Olha a cabeleira do Zezé / será que ele é / será que ele é. O verso “Zera a reza meu amor” inicia a discussão feita pelo eu-lírico sobre a devoção religiosa do receptor pelo Deus das religi- ões instituídas. O eu-lírico sugere que o verdadeiro Deus não é este para quem o receptor presta devoção, visto que este Senhor discrimi- na, separando católicos, protestantes, judeus etc. O samba seria, por- tanto, um deus mais original devido à união proporcionada por ele entre seus “fiéis”, permitindo a estes a felicidade, a libertação dos dogmas, dos sectarismos e preconceitos. O verso “E eu sou o que não morre nunca”, que parodia com outro, “o samba não vai morrer”, da canção Desde que o samba é samba (1993), que aliás tem outro ver- so importante para nossa análise “O samba é pai do prazer, o samba é filho da dor”, nos atenta para o fato de que o eu-lírico incorpora o próprio samba, ele é o samba e se imortaliza como um deus. Espalha-espelhos e cada-cara retomam a idéia inicial do jogo como recurso para desviar a atenção do leitor tal como observa Af-

14 fonso Ávila (1994), ao tratar do artista barroco. Ao fazer o jogo de espelhamentos com as palavras do refrão: vela-leva; seta-tesa; rema- maré; rima-mira; terça-certa; sera-reza, e ao dizer que “espalha espe- lhos” Caetano Veloso trabalha criando um processo de intratextuali- dade (Sarduy) na letra. A avenida, no texto substituída por “chão”, é o céu por onde as estrelas, que são os passistas, desfilam e brilham, no entanto, não podemos esquecer do turismo relacionado ao desfile, já citado acima. Há uma citação de um verso da letra Gente (1977), do mesmo autor, em que diz que “Gente é pra brilhar”. Encontramos referência a essa gente que faz o carnaval na canção Podres poderes , já citada anteriormente, em seu verso “Enquanto os homens exercem seus podres poderes índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes fazem o carnaval”. A intertextualidade com canções anteriores, principalmente do disco Muitos carnavais (1977), seja para gerar novas significações, no hipertexto, seja para reler o hipotexto, na produção neobarroca serve como desperdício de significantes, daí Sarduy (1979) afirmar que o texto barroco ou neobarroco é marcado pelo erotismo, pelo desperdício. Não é por acaso que Zera a reza fecha o disco 1 de Noi- tes do Norte ao vivo , pois Caetano o faz falando do samba, dança de origem africana, herança dos negros trazidos como escravos, e do carnaval, festa popular que, no Brasil, incorporou o samba, além do frevo e hoje do axé, como ritmos matrizes.

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Considerações Finais

Concluímos observando que a unidade temática – a escravidão – é tratada, neste disco, de várias maneiras, apresentando vários pon- tos de vista,ora o eu-lírico é personificado como um “mulato nato”, ora assiste a tudo, como um turista, do adro da Fundação Casa de Jorge Amado, ora personifica o samba, e convertendo todas as can- ções em exaltações, questionamentos e críticas a posição social do mulato brasileiro. Tudo isso sem cair no mero panfletarismo, pois para Ribeiro Neto ( op . cit .), Caetano “raramente se apresenta como um mero letrista coloquial. Vale-se pouquíssimo da linguagem funcional, irmã (pre)dileta da linguagem panfletagem”. Assim, seja através dos mecanismos de artificialização, seja pela paródia - “Gênero sério-cômico que se relaciona com o folclore carnavalesco e utiliza a fala com seriedade, mas também inventa livremente, joga com a pluralidade de tons” (Sarduy, 1979:169), as canções analisadas surgem como um elemento fundamental para mexer com a sobriedade e a ordem séria das convenções.

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Referências Bibliográficas

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