LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 1 12/06/20 17:18 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 2 12/06/20 17:18 literatura­­‑mundo comparada: perspectivas em português

­‑ i i i ­­‑ pelo tejo vai­­‑se para o mundo (volume 6)

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 3 12/06/20 17:18 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 4 12/06/20 17:18 literatura­­‑mundo comparada perspectivas em português

coordenação geral: helena carvalhão buescu

PARTE III

coordenação científica: helena carvalhão buescu simão valente

lisboa tinta­­‑da­­‑china MMXX

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 5 12/06/20 17:18 Parceiros institucionais: Apoios:

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT — Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto HUIDB/00509/2020.

© 2020, Centro de Estudos Comparatistas Este volume reproduz da Universidade de Lisboa os textos fixados nas edições e Edições tinta­‑da­‑china, Lda. consultadas, identificadas Rua Francisco Ferrer, 6 A | 1500­‑461 Lisboa junto a cada texto. 21 726 90 28/29 | [email protected]

www.tintadachina.pt

Título: Literatura­‑Mundo Comparada: Perspectivas em português III — Pelo Tejo Vai­‑se para o Mundo (Volume 6)

Coordenação Geral: Helena Carvalhão Buescu

Coordenação Científica de III — Pelo Tejo Vai­‑se para 0 Mundo: Helena Carvalhão Buescu e Simão Valente

Coordenação Executiva de III — Pelo Tejo Vai­‑se para 0 Mundo: Amândio Reis, Bernardo Diniz Ferreira, Camila Seixas e Sousa, Francisco Carlos Marques, Gonçalo Cordeiro, João M.P. Gabriel, Marta Rosa, Rafael Esteves Martins

Composição: Tinta­‑da­‑china Capa: Tinta­‑da­‑china

1.ª edição: Maio de 2020

isbn 978­‑989­‑671­‑548-9 Depósito Legal n.º 467787/20

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 6 12/06/20 17:18 PARTE III PELO TEJO VAI­­‑SE PARA O MUNDO

(VOLUME 6)

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 7 12/06/20 17:18 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 8 12/06/20 17:18 ÍNDICE GERAL

SÉCULO XX: O MUNDO EM VIRAGEM

(1) CRIOULOS DE BASE LEXICAL PORTUGUESA

ADÉ «Toca música, vem cantar» e «Casarão antigo», in Antologia de Poetas de Macau 31

ANÓNIMO «Passarinho verde», in Dialecto Português de Malaca e Outros Escritos 33

José BRUÊTE «Estou­­‑me nas tintas para aquelas que trocam intestinos por palhas», in Butá Kloson Ba Lonji: Cancioneiro da Música São­­‑tomense 34

May HENRIQUEZ «Nostalgia», in Liña, koló i ritmo: trabou di palu: piedra klei i pèn [Linha, Cor e Ritmo. Trabalho de madeira, pedra barro e pena] 35

Maria Odete SEMEDO «Em que língua escrever», in Entre o Ser e o Amar 36

Eugénio TAVARES «Força de Cretcheu», in Mornas — Cantigas Crioulas 38

Olívio TINY «Tubarão», in Butá Kloson Ba Lonji: Cancioneiro da Música São­­‑tomense 39

(2) REALIDADE E DESASSOSSEGO

S.Y. AGNON «Amizade», in Ficções — Revista de Contos 43

Unsi­ AL­‑HAJJ «Rapariga Borboleta Rapariga», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 48

BEI DAO «Mapa negro», in Quinhentos Poemas Chineses 49

Saul BELLOW Herzog 50

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 9 12/06/20 17:18 Roberto BOLAÑO 2666 53

Jibanananda DAS «Cidade», in Inefável: Antologia 2007­­‑2013 55

Osamu DAZAI «Prólogo», in Não­­‑Humano «Primeiro caderno de memórias», in Não­­‑Humano 56

John DOS PASSOS «Capítulo I — A Festa da Cidade Descuidada», in Manhattan Transfer, Viagem por Nova Iorque 62

Shūsaku ENDŌ Silêncio 66

F. Scott FITZGERALD «Capítulo VIII», in O Grande Gatsby 70

GAO XINGJIAN «Capítulo I», in Líng Shān [A Montanha da Alma] 76

Aurobindo Akroyd GHOSH «O chamamento de prata», in Collected Poems 78

Allen GINSBERG «América», in Collected Poems, 1947­­‑1980 79

HA JIN «Aquela promessa não pronunciada», in lìng yī gè­kōng ji ān : hā jīn shī jí [Outro Espaço — Antologia Poética de Ha Jin] 82

Langston HUGHES «Harlem», in The Collected Poems of Langston Hughes 83

Muhammad IQBAL «O melhor país do mundo inteiro é o nosso Hindustão», in Lokpriya Shaayar aur Unkee Shaayaree [O Poeta Favorito e os Seus Poemas] 84

LAO SHE «Cena 1», in Chá guǎn [Casa de Chá] 85

José LEZAMA LIMA Paradiso 88

LIN YUTANG «Capítulo 24», in Wú guó­yǔ wú mín [O Meu País e a Minha Gente] 91

Leopoldo LUGONES «Os Cavalos de Abdera», in Os Cavalos de Abdera 96

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 10 12/06/20 17:18 Sami MAHDÎ «Os extremos da ilusão», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 102

Jim MORRISON «O Fim», in Uma Oração Americana e Outros Escritos 103

Shiga NAOYA «O crime de Han», in Os Melhores Contos Japoneses 105

David RUBADIRI «Morte em Mulago», in Poems from East Africa 110

Philip ROTH A Pastoral Americanao 111

Rabindranath TAGORE «Um dia», in Rabindra Rachanabali [Obras Completas] 115

William Carlos WILLIAMS «O carrinho de mão vermelho», in Antologia Breve 116

(3) LITERATURA E CONDIÇÃO HUMANA

ADONIS «Um espelho para o século vinte», in Victims of a Map 119

Alaa AL­ ­‑ASWANY «As tristezas de Hagg Ahmed», in Nirān Sadīqah [Fogo Amigo] 120

Nâzik­ AL­‑MALÂ’IKA «A noite pergunta quem eu sou», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 125

Harivansh Rai BACHCHAN «O que passou, já passou», in Satringini 127

Haiim Nahman BIALIK «O mar de silêncio salpica», in benyehuda.org 129

Peter CAREY «Confissão», in Oscar e Lucinda 130

Jibanananda DAS «Uma estranha escuridão…», in Inefável: Antologia 2007­­‑2013 135

Bob DYLAN «Como uma pedra rolante», in Highway 61 Revisited 136

William FAULKNER O Som e a Fúria 138

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 11 12/06/20 17:18 HA JIN «Equívoco», in lìng yī gè­kōng ji ān : hā jīn shī jí [Outro Espaço — Antologia Poética de Ha Jin] 142

Joy HARJO «Canção da manhã», in The New Anthology of American Poetry 143

HU SHIH «Sonho e poesia», in A Selective Guide to Chinese Literature 144

Leonard Z. IRIARTE «O princípio», in Indigenous Literatures from Micronesia 145

Abe KŌBŌ «Capítulo 1», in Susa no Ona [A Mulher da Areia] 148

LAO SHE Quatro Gerações sob o Mesmo Tecto 158

Taban LO LIYONG «O Job de Usumbura», in Fixions 164

Adib MAZHAR «Canto do silêncio», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 169

Marianne MOORE «O que são anos?», in Complete Poems 170

Kenzaburō ŌE Não Matem o Bebé 171

Marjorie OLUDHE­­‑MACGOYE «Uma canção de liberdade», in Poems from East Africa 175

Amrita PRITAM «Sombras de Rassidi», in Raseedee Ticket 177

Atiq RAHIMI Terra e Cinzas 178

Dalia RAVICOVICH «A boneca mecânica», in The Penguin Book of Hebrew Verse 180

Arundhati ROY «1. Pickles e Conservas Paraíso», in O Deus das Pequenas Coisas 181

Avraham SHLONSKI «Três velhas», in The Penguin Book of Hebrew Verse 184

David VOGEL «Espadas cravadas no cobertor», in Col haShirim [Toda a Poesia] 185

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 12 12/06/20 17:18 Edith WHARTON A Casa da Alegria 186

(4) MEMÓRIAS E RELEITURAS

ANÓNIMO «A história do homem e da mulher», in Antologia do Conto Africano de Transmissão Oral 193

John BARTH Ópera Flutuante 195

Jorge Luis BORGES «As ruínas circulares», in Ficções 197

Aimé CÉSAIRE «Acto I, cena 2», in Une tempête 202

Maryse CONDÉ «O domínio das Belles­­‑Feuilles», in La Migration des coeurs 208

Julio CORTÁZAR «Casa ocupada», in Bestiário 211

Hart CRANE «No túmulo de Melville», in Poesia do Século XX (De Thomas Hardy a C.V. Cattaneo) 216

Assia DJEBAR «3. Primeiro monólogo de Zoulikha, por sobre os terraços de Cesareia»,­ in A Mulher sem Sepultura. 217

José DONOSO Casa de Campo 221

Güneli GÜN «Vida no reino das ficções», in Na Estrada para Bagdad 224

Taha HUSSEIN Os Dias 227

Elias KHOURY A Porta do Sol 233

LAO SHE «Cena 1», in Chá guǎn [Casa de Chá] 236

Camara LAYE «Capítulo II», in O Menino Negro 238

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 13 12/06/20 17:18 Amin MAALOUF «Prólogo», in As Cruzadas Vistas pelos Árabes 241

V.S. NAIPAUL «Capítulo 2», in A Curva no Rio 245

Octavio PAZ «Madrugada», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 249

Ezra POUND «Canto XXX», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 250

E.J. PRATT «Silêncios», in Complete Poems 252

Jean RHYS Vasto Mar de Sargaços 254

Ronny SOMECK «Carta a Fernando Pessoa», in Carta a Fernando Pessoa 258

Wallace STEVENS «Treze maneiras de contemplar um melro», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 259

César VALLEJO «Ágape», in Antologia 262

David VOGEL «Lentamente meus cavalos sobem», in Col haShirim [Toda a Poesia] 263

Sa’di YUSUF «O balcão das nove da tarde», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 264

(5) AFECTOS E EMOÇÕES

Ilya ABÛ MADI [Morri contigo, em parte, quando, de mim, a terra te levou], in Treinta poemas árabes en su contexto 267

‘Abd al­­‑Wahhab AL­­‑BAYATI [penetro nos teus olhos. Brotas da minha boca], in A Phala 268

Muhammad Miftâh Rajab AL­­‑FAITURÎ «Voz de África», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 269

Salma AL­­‑JAYUSSÎ [quando a morte chamar, como direi a meu coração: vem], in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 270

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 14 12/06/20 17:18 Ahmed ‘Abd AL­‑MU’TI HIJAZÎ «Morte súbita», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 272

Salah ‘Abd AL­‑SABUR «Fêmea», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 274

Yusuf­ AL­‑SAIGH «a minha tristeza sai da alcova dela», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 275

ANÓNIMO [Pergunta: O que é a soleira da porta?], in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 276

Sa’id AQL «Nayanâr», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 277

Badr Shâkir AS­ ­‑SAYYÂB «Canção da chuva», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 278

Ahmed BARAKÂT «Uma palavrinha», in Dafâtir al­­‑Khusrân [Cadernos Perdidos] 279

BIN WEI «Içar a bandeira nacional», in zhōng guó­gù shì [Contos da China] 280

Okot p’BITEK «A mulher com quem partilho o meu marido», in Song of Lawino & Song of Okol 286

Anne CARSON «X. DANÇA DO ENVELOPE DA WESTERN UNION COMO SALTA O CORAÇÃO MAIS DESEJOSO DO QUE PLANTA OU ANIMAL», in A Beleza do Marido 295

Leonard COHEN «Toma esta valsa», in I’m Your Man 296

e.e. CUMMINGS «soneto­­‑irrealidades [xi]», in Tulips and Chimneys 298

Jibanananda DAS «Banalata Sen de Natore», in Inefável: Antologia 2007­­‑2013 299

Mohammed DIB «Contraluz», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 300

Nuruddin FARAH «Capítulo primeiro», in Maps 301

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 15 12/06/20 17:18 Bishr FÂRIS «A uma visitante», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 305

Nadine GORDIMER «Um gelado para a minha menina querida», in Um Capricho da Natureza 306

David GROSSMAN Ver: Amor 309

Takuboku ISHIKAWA «O vento nos pinheiros», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 314

Yasunari KAWABATA «A lua na água», in Bungei shunjū 28 315

Irving LAYTON [Eu seria, por ti, gentil], in Selected Poems 327

Fatiha MORCHID «Navegação», in ’Îmâ’ât [Gestos] 328

Pablo NERUDA «Poema XX», in Antologia 329

Horácio QUIROGA «O Solitário», in Cuentos de amor, de locura y de muerte 331

Rabindranath TAGORE «Se é que assim desejas» , in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 336

Jun’ichirō TANIZAKI «A tatuagem», in Shinshichō 43 337

David VOGEL [Perante teus portais, de branco vestida], in Col haShirim [Toda a Poesia] 347

(6) LITERATURA COMO ARTE

Yûsuf AL­­‑KHÂL [basta! disse ela], in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 351

Bishara ‘Abdallâh AL­­‑KÛRI «Como esquecer», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 352

Abû Al­­‑Qâsim ASH­­‑SHÂBBÎ «O coração do poeta», in A Phala 354

John ASHBERY [E Ut Pictura Poesis é o seu nome], in Houseboat Days 355

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 16 12/06/20 17:18 ‘Abd Al­­‑Karim AT­­TABBAL‑ «Canção de um Março triste», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 357

BEI DAO «A resposta», in Tradterm 18 358

Adolfo BIOY CASARES A Invenção de Morel 360

Elizabeth BISHOP «Uma arte», in Poems 364

Anne CARSON «IX. MAS QUE PALAVRA ERA», in A Beleza do Marido 365

Raquel CHALFI «Carta aberta aos leitores de poesia», in Caravela Portuguesa 367

Jibanananda DAS «A laranja», in Inefável: Antologia 2007­­‑2013 369

HA JIN «Um milagre depende da crença de alguém», in lìng yī gè kōng ji ān: hā jīn shī jí [Outro Espaço — Antologia Poética de Ha Jin] 370

HU SHIH «Discussão prévia sobre a reforma literária» [Sugestões para uma Reforma Literária], in Wenxue gailiang chuyi 371

Hafiz IBRAHIM [para erigir a sua obra­­‑prima], in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 372

Okakura KAKUZO «A chávena da humanidade», in O Livro do Chá 373

Augusto MONTERROSO «O Dinossauro», in El paraíso imperfecto 375

Vladimir NABOKOV «Canto primeiro», in Fogo Pálido 376

Gabriel OKARA A Voz 380

Munshi PREMCHAND «Eidgah», in Premchand Ki Lokpriya Kahaniyan [Contos Populares de Premchand] 382

Fu’ad RIFQA «Uma elegia para Hölderlin», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 398

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 17 12/06/20 17:18 Léopold Sédar SENGHOR «Carta a um poeta», in Poèmes 399

Ronny SOMECK «Jasmim. Poema sobre a lixa», in Carta a Fernando Pessoa 401

Rabindranath TAGORE «Um olhar», in Rabindra Rachanabali [Obras Completas] 402

Yona WOLLACH [Deixa que as palavras façam em ti], in Yona e o Andrógino — Notas sobre poesia e cabala 403

ZHONGSHI CHEN «Capítulo 2», in Bái Lù Yuán [Planície do Veado Branco] 404

(7) CONFLITOS

Buland AL­­‑HAIDARI «O carteiro», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 409

Yehuda AMICHAI «Jerusalém», in Terra e Paz 410

BA JIN «Capítulo XI» e «Capítulo XIV», in Jiã [Família] 411

Haiim Nahman BIALIK «Sobre a matança», in Col haShirim [Toda a Poesia] 416

Mahmûd DARWÎSH [(para um guarda:) vou­­‑te ensinar a esperar], in adab.com 417

Nicolás GUILLÉN «Responde tu...», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 418

Khalîl HÂWÎ «Na obscuridade das entranhas», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 419

Masuji IBUSE «O lírio louco», in Os Melhores Contos Japoneses 420

Yusuf IDRĪS Casa de Carne 425

Muhammad ‘Afifi MATAR «O visitante nocturno», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 428

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 18 12/06/20 17:18 Yukio MISHIMA «Patriotismo», in Morte no Verão e Outras Histórias 429

Toni MORRISON Beloved 433

MO YAN «Capítulo um», in Peito Grande, Ancas Largas 437

Meja MWANGI Carcaça para cães 440

David RUBADIRI «Sem dote», in No Bride, No Price 446

Sahle SELLASSIE «1. Fogo na aldeia», in The Afersata 452

Fadwa TUQÂN «Na torrente», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 456

David VOGEL «No sótão», in Col haShirim [Toda a Poesia] 457

YUAN YI «Formosa rival», in zhōng guó­gù shì [Contos da China] 458

YU HUA Crónica de um Vendedor de Sangue 465

(8) EMANCIPAÇÃO, LIBERDADE E RESISTÊNCIA

Nawāl AL­­‑SAADĀWI ’Imra’a ’inda Nuqtat al­­‑Sifr [Mulher no Ponto Zero] 471

Hanan AL­­‑SHAYKH Só­em Londres 474

Maya ANGELOU «Mulher Fenomenal», in The Complete Collected Poems of Maya Angelou 477

Miguel Ángel ASTÚRIAS Homens de Milho 479

Margaret ATWOOD A História de Uma Serva 483

Tahar BEN JELLOUN De Olhos Baixos 489

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 19 12/06/20 17:18 Mu’in BESSEISSO «A Rimbaud», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 492

CHUAH Guat Eng «Demokratikus», in Petals of Hibiscus 493

Sandra CISNEROS «O meu nome», in A Casa da Rua das Mangas 494

Michael CUNNINGHAM «Mrs. Brown», in As Horas 495

Mahmûd DARWÎSH [toma nota], in ’Awraq az­­‑zaytûn [Folhas de Oliveira] 499

Anita DESAI A Luz Brilhante do Dia 502

Ananda DEVI Tango Indiano 506

Ramón LÓPEZ VELARDE «A suave pátria», in Novedad de la Patria 510

Claude MCKAY «Exilado», Complete Poems 516

Flannery O’CONNOR «Um bom homem é difícil de encontrar», in Um Bom Homem É Difícil de Encontrar 517

Sylvia PLATH «Colosso», in Pela Água 523

Adrienne RICH «Que espécie de tempos são estes?», in Collected Poems: 1950­­‑2012 525

YI MUN­­‑YOL O Nosso Herói Perverso 526

YU HUA China em Dez Palavras 529

(9) EXISTÊNCIAS PÓS­‑COLONIAIS

Chinua ACHEBE Quando Tudo se Desmorona 533

Okot p’BITEK «A língua do meu marido amargou», in Song of Lawino & Song of Okol 535

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 20 12/06/20 17:18 Alejo CARPENTIER Os Passos Perdidos 540

Louise ERDRICH «Caro John Wayne», in Jacklight 545

Gabriel GARCÍA MARQUEZ Cem Anos de Solidão 547

Langston HUGHES «O negro fala de rios», in The Collected Poems of Langston Hughes 551

Alain MABANCKOU O Pimentinha 552

Saadat Hasan MANTO «Toba Tek Singh», in 25 Sarvashresth Kahaniyan [25 Melhores Contos] 555

Claude MCKAY «Os trópicos em Nova Iorque», in Complete Poems 562

Cynthia MCLEOD «Capítulo 1», in Hoe duur was de suiker? 563

Al­­‑Tayyeb SALIH Época da Migração para Norte 572

Wole SOYINKA Os Intérpretes 575

Pramoedya Ananta TOER A Rapariga de Java 578

Ngũgĩ wa THIONG’O Um Grão de Trigo 583

(10) LITERATURA E COSMOPOLITISMO

Samih AL­­‑QASIM «Assim», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 589

Sharadindu BANDYOPADHYAY Oitihasik Kahini Samagra [A Noite Sangrenta] 590

J.M. COETZEE O Mestre de Petersburgo 593

Rúben DARÍO «Caracol», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 597

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 21 12/06/20 17:18 Carlos FUENTES «O prisioneiro de Las Lomas», in Constância e Outras Novelas para Virgens 598

Édouard GLISSANT Todo­­‑o­­‑Mundo 601

Alex La GUMA «Um passeio na noite», in Um Passeio na Noite e Outros Contos 605

HU SHIH A Renascença na China 609

Taban LO LIYONG «Casamento a branco e preto», in Poems from East Africa 613

Naguib MAHFOUZ O Palácio do Desejo 615

Katherine MANSFIELD «A Stanislaw Wyspiansky», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 620

Silvio Alberto (Tip) MARUGG «A manhã volta a rugir», in De helem is van korte duur 622

Michael ONDAATJE O Doente Inglês 629

Amos OZ Uma História de Amor e Trevas 633

Orhan PAMUK «10. Hüzün­­‑Mélancolie­­‑Tristesse», in Istambul: Memórias de uma cidade 640

Edogawa RANPO «A cadeira humana», in Contos Japoneses de Mistério e Imaginação 643

Salman RUSHDIE «O lençol furado», in Os Filhos da Meia­­‑Noite 646

(11) NATUREZA E TECNOLOGIA

Shukrallah AL­­‑JURR [como em sua primavera o prado], in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 653

Muhammad AL­­‑MAGHÛT «Inverno», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro 654

Amitav GHOSH «Terra da maré», in The Hungry Tide 655

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 22 12/06/20 17:18 William GIBSON Neuromante 658

Ernest HEMINGWAY «O grande rio de Dois Corações», in Contos de Nick Adams 661

Rigoberta MENCHÚ e Dante LLANO O Pote de Mel: A História do Mundo numa Fábula Maia 665

Haruki MURAKAMI «Os homens da TV», in O Elefante Evapora­­‑se: Os Homens da TV 667

Juan RULFO «Luvina», in A Planície em Chamas 677

Indra SINHA Eu Animal 682

Gary SNYDER «Por sobre o Vale de Pate», in Riprap and Cold Mountain Poems 686

Mario VARGAS LLOSA O Falador 687

(12) HUMOR, SÁTIRA E IRONIA

Ryūnosuke AKUTAGAWA «O nariz», in Shinshichō 5 693

ANÓNIMO «O Senhor resolve­­‑de­­‑uma­­‑só­­‑vez», in Antologia do Conto Africano de Transmissão Oral 702

BIN WEI «Um milhão de Yuans», in zhōng guó­gù shì [Contos da China] 704

Etgar KERET «A matéria de que são feitos os sonhos», in O Motorista de Autocarro que Queria Ser Deus 709

Dorothy PARKER «Curriculum Vitae», in The Portable Dorothy Parker 711

Ousmane SEMBÈNE Xala 712

Notas críticas 715 Índices remissivos 753

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 23 12/06/20 17:18 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 24 12/06/20 17:18 século xx: O MUNDO EM VIRAGEM

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 25 12/06/20 17:18 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 26 12/06/20 17:18 (1) CRIOULOS DE BASE LEXICAL PORTUGUESA:

Dulce Pereira

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 27 12/06/20 17:18 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 28 12/06/20 17:18 E havia o crioulo, essa língua que faz dos portugueses uns seres an‑ siosos, porque tão depressa parece entregar­­‑se à nossa compreen‑ são como logo se escapa, ritmo de cobra e água viva que afinal o nosso corpo difícil não foi capaz de acompanhar. —José Saramago, ‘Caboverdiando’, JL, 11.05.86

Na sua viagem do Tejo para o Mundo, nos séculos xv e xvi, o português, em contacto com outras línguas e culturas, contribuiu para a criação de formas novas de linguagem, entre as quais os crioulos de base portuguesa, muitos deles ainda hoje falados em África, na Ásia e na América, outros já desapa‑ recidos, como o de Bombaim ou o de Mangalore, na Índia, e alguns em via de extinção, como o da ilha do Príncipe. Embora com gramáticas próprias e diferenciadas, estas línguas mantêm com o português uma relação de proxi‑ midade que lhes é dada pelo léxico, na sua maioria de origem portuguesa, ou portuguesa e espanhola, no caso do Papiamento, nas Antilhas. Essa proximidade e aparente semelhança, associada a uma real diver‑ gência em relação à gramática do português e a um estatuto sociolinguístico quase sempre marcado por uma história de dominação e desprestígio, fa‑ voreceu no senso comum e em alguns estudiosos a percepção dos crioulos como português mal falado ou como dialectos do português, percepção essa que a comunidade científica vem contrariando, sobretudo desde os finais dos anos 50 do século passado. À margem das línguas oficiais, os crioulos, tantas vezes reprimidos e proibidos no espaço público, foram tradicionalmente abandonados à sua sorte de línguas orais, sem direito a regras próprias de representação escrita nem a um lugar no sistema de ensino. Isso contribuiu em muitos casos para a sua morte, quase sempre por perda de funcionalidade e de falantes ou por assimilação às línguas dominantes em contacto, deixando apenas vestígios da anterior vitalidade em manifestações de tradições orais que vão passando de geração em geração, como ecos cada vez mais longínquos de si próprios. Noutras situações, por razões de reforço simbólico da identidade de grupo (veja­­‑se o crioulo de Casamansa, no Senegal, e a sua relação com a religião cristã) ou por razões históricas, como a independência política (em Cabo Verde e na Guiné­­‑Bissau, nomeadamente), os crioulos não só resistem como se represtigiam, encetando o caminho para a assunção plena do seu estatuto de línguas, com literatura própria.

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Em qualquer caso, nunca a ausência de normas impediu os falantes de crioulos de criar e escrever espontaneamente na sua língua, fosse ela materna ou não. Bastava para isso terem ao dispor um qualquer sistema gráfico que lhes permitisse a sua representação. É assim que nos chegam muitos textos escritos nos diferentes crioulos, desde o século xix: letras de canções, cartas, traduções da Bíblia, textos de opinião, notas e descrições gramaticais, registos de tradições orais, como histórias, provérbios, adivinhas, e também produções literárias originais, em geral poemas, mas também textos dramáticos, contos e romances. São textos marcados pela relação umbilical com as regras e os modelos de escrita da língua a que recorrem, quase sempre a língua de base, o por‑ tuguês, quando ainda não dispõem das suas normas próprias, nem de uma análise gramatical que oriente a forma e a separação gráfica das palavras. O poema do cabo­­‑verdiano Eugénio Tavares, que nesta antologia se inclui, e de que aqui se transcrevem alguns versos, na grafia original e na gra‑ fia actual, adoptada oficialmente em Cabo Verde, é um bom testemunho dessa relação umbilical e do caminho da sua libertação:

Oh! força de crecheu, Oh! Forsa di kretxeu,

Abrim nha alma em flôr Abri­­‑m nha alma en flor Dixam alcançâ céu, Dixa­­‑m alkansa séu, Pa’m bá ojâ Nôs Senhor! Pa N ba odja Nos Senhor!

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ADÉ. «Toca música, vem cantar» e «Casarão antigo», in Antologia de Poetas de Macau. Tradução de Maria Antónia Espadinha. 1999. Macau: Instituto Camões, Instituto Cultural de Macau, Instituto Português do Oriente. 63, 65 ­­‑67.

Texto sujeito a direitos de autor.

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ANÓNIMO. «Passarinho verde», in Dialecto Português de Malaca e Outros Escritos. Tradução de António da Silva Rêgo. [1942] 1998. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. 89, 116.

Passarinho verde, Pastorinho berde, Mais verde do que a rica flor; Más bêrde di rico flor; Leva este recado, Bai lebá êste chito, E dá­­‑o ao meu amor. Dá com eu sa amor.

Passarinhos verdes, Pastorinho berde, Sentam­­‑se num ramo aos pares; Um ramo santá dôs dôs; Eu não morrerei longe, Eu nádi morrê lonzi, Eu morrerei perto de ti. Eu logo more perto bôs.

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José BRUÊTE. «Estou­­‑me nas tintas para aquelas que trocam intestinos por palhas», in Butá Kloson Ba Lonji: Cancioneiro da Música São­­‑tomense. Tradução inédita de Luís Viegas. Revisão da tradução de Inocência Mata. 2019. Lisboa: Edição de autor. 127.

Estou­­‑me nas tintas para aquelas N gôgô d’inen san ku ka txilá tlipa fô pê Que trocam intestinos por palhas. paya. E que, pousadas sobre as pedras, Bilá ka mundjá liba budu, Maldizem, por ambição, as águas Da mali d’awa, do rio. Punda kwa nganhá.

Quando chegar a aflição, Ola ku tlabe ka nganhá. Irão correr segurando os seios. A ka kôlê ku mama têdu. Quando lhes faltar o pão, Ola ku npon ka kabá, As mães darão água às crianças. Men di mina ka jê awa d’inen. Então, não te venhas vangloriar Soso, na batê pêtu da mu Que não comes sardinha. Kuma bô na ka kume sandja fa. Para que, em dias de chuva, Pa dja ku suba ka sôbê Não busques baratas na parede P’ô na bi goló­blata ni palêdê para o manjar.

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May HENRIQUEZ. «Nostalgia», in Liña, koló i ritmo: trabou di palu: piedra klei i pèn [Linha, Cor e Ritmo. Trabalho de madeira, pedra barro e pena]. Tradução inédita de Dulce Maria Pereira. 2001. Curaçao: Port’i Heru Publications. 9.

Ama preta embalando o filho branco Yaya pretu zoyando yu blanku Ama querida, de pele de cetim Yaya stima, ku kueru di satin Ama que cantas velhas cantigas Yaya ku ta kanta kantika di bieu Ama de peito grande e macio Yaya ku pechu grandi I moli De braços fortes e frescos Ku brasa gordo I fresku Recordo o teu cheiro agridoce Mi ta kòrda bo holó dushi marga A pó de sabão Di puiru di habon Recordo o teu andar Mi ta kòrda bo kanamentu Ritmado e cadente Ku ritmo i kandansa A tua cadeira de baloiço Mi ta kòrda bu stul di zoya De canas bravias. Di kabana di kunuku

Criaste­­‑me contando estórias B’a lantami riba kuenta­ de Nanzi di Nanzi Embalaste­­‑me B’a zoyami Amaste­­‑me B’a stimami Cuidaste de mim B’a yayami Mas ai, minha mamã preta Pero ai, mi mama pretu Tu estragaste­­‑me com mimos. B’a malkriámi

Hoje, nos caminhos tempestuosos Awe riba kaminda boraskoso­ da vida di bida A cada contrariedade, Kada bes ku mi hañami kontraria Sinto uma nostalgia imensa do teu colo Mi ta sinti un nostalgia pa bo skochi Um desejo de chorar nos teus braços Mi ta sinti gana di yora pa bo brasa E aí correr a esconder­­‑me, Kaminda mi por kore bai skonde E aí buscar consolo kaminda mi por buska un konsuelo Para a minha alma atormentada. Pa mi alma tormenta.

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Maria Odete SEMEDO. «Em que língua escrever», in Entre o Ser e o Amar. Tradução de Maria Odete Semedo. 1996. Bissau: Instituto Nacional de Estudo e Pesquisa. 10­‑12.

Texto sujeito a direitos de autor.

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Eugénio TAVARES. «Força de Cretcheu», in Mornas — Cantigas Crioulas. Tradução inédita de Dulce Maria Pereira a partir do manuscrito autógrafo online [disponível em https://www.eugeniotavares.org/docs/pt/obra/ mornas.html: acedido a 15 de Janeiro de 2020]. 1932. Lisboa: J. Rodrigues & Ca. — Editores.

FORÇA DE CRECHEU

Nada há nesta vida Cá tem nada na ês bida maior que o amor. Más grande que amor! Se Deus não tem medida, Se Deus cá tem medida, o amor ainda é maior. Amor inda é maior! O amor ainda é maior, Amor inda é maior, maior que o mar, que o céu, Maior que mar, que céu, mas de todos os amores, Mas entre otos crecheu, maior ainda é o meu. De meu inda é maior!

O amor mais doce Crecheu más sabe é aquele que é meu. É quel que é de meu! É ele a chave El é que é chabe que me abriu o céu. Que abrim nha céu! O amor mais doce Crecheu más sabe é o que me quer bem. É quel que crem... Se eu o perder, e S jam perdel, Logo a morte vem. Morte já bem!

Ó força do meu desejo Oh! força de crecheu, abre a minha alma em flor! Abrim nha alma em flôr Deixa­­‑me alcançar o céu Dixam alcançâ céu, para ver Nosso Senhor. Pa’m bá ojâ Nôs Senhor! Para­ pedir­‑lhe a semente Pa’m bá pedil semente de um amor igual ao meu, De amor cumâ és de meu, depois dá­­‑la a toda a gente Pa’m bem da tudo gente e a todos ser dado o céu. Pâ tudo conchê céu!

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Olívio TINY. «Tubarão», in Butá Kloson Ba Lonji: Cancioneiro da Música São­­‑tomense. Tradução inédita de Luís Viegas. Revisão da tradução de Inocência Mata. 2019. Lisboa: Edição de autor. 36.

NGANDU

Deus criou o mar e aos peixes ofereceu. Dêsu fe omali patxí da pixi, ê! O tubarão, que é famoso, Ngandu ku tê fama Teimou e dele se apoderou. So fe wê lizu tomá kwa d’ê!

Oh, Tubarão! Tu que és o Rei do mar, Ngandu ê, bô Alê d’Omali De anzol na boca, gritando Ni boka (di) nzolo xka glitá Para que todos os peixes te acudam, Pa tudu pixi valê bô, Te acudam para que não morras! Valê bô pa bô na môlê, an! Oh, Tubarão! É hoje um dia de trabalho, Ngandu ê, oze sa dja tlabe, ô, Por isso, vens saudar o ódio. Mandá bô fl’ojo mantxan, ô.

Oh, Tubarão! É hoje um dia de trabalho, Ngandu ê, oze sa dja tlabe, ô, E só por isso cumprimentaste o ódio. Mandá bô fl’ojo mantxan, ô. *

* Letra de uma música do Conjunto Leonino (anos 50­‑60).

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 41 12/06/20 17:18 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 42 12/06/20 17:18 (2) realidade e desassossego 43

S.Y. AGNON. «Amizade», in Ficções — Revista de Contos, n.º 3. Tradução de Lúcia Liba Mucznik. [1970] 2001. Ponta Delgada: Tinta Permanente. 5­­‑62.

A minha mulher regressara de viagem e eu sentia‑me­­ muito feliz. Mas à mi‑ nha alegria misturava­­‑se uma ponta de tristeza, porque receava que os vizi‑ nhos viessem incomodar­­‑nos. Vamos a casa de fulano ou fulana, disse à mi‑ nha mulher, se eles vierem a nossa casa, não será fácil vermo‑nos­­ livres deles tão depressa, enquanto que se formos nós a casa deles podemos levantar­­‑nos e despedir­­‑nos quando quisermos. Apressámo‑nos­­ a ir a casa da Senhora Klingel. Como era costume dela vir a nossa casa, fomos nós lá primeiro. A Senhora Klingel fora uma mulher famosa; antes da guerra dirigira uma escola. Desde que a ordem do mundo se alterara, caíra do seu pedestal, como simples professora; mas ainda se dava ares de grande importância, falava às pessoas com modos de patroa e procurava aproximar­­‑se e frequentar a casa de qualquer pessoa célebre. A minha mulher conhecera­­‑a na época em que fora diretora, o que levava a Senhora Klingel a procurá­­‑la, da mesma forma que se agarrava a todas as testemunhas da sua glória. Tratava a minha mulher com uma amizade especial e chamava­­‑a pelo nome próprio. Eu também conheci a Senhora Klingel na época da sua glória, mas duvido que alguma vez tenha falado com ela. Antes da guerra, quando as pessoas ainda não se hostilizavam, se alguém encontrava um vizinho a quem considerava amigo, não tinha necessidade de lhe falar. A Senhora Klingel estava estendida na cama. Um pouco afastadas, sen‑ tadas num sofá de veludo, estavam três amigas dela que eu não conhecia. Quando entrei cumprimentei cada uma delas sem lhes dizer o meu nome, nem me preocupar em ouvir o delas. A Senhora Klingel sorriu­­‑nos afetuosamente e continuou a tagarelar como era seu costume. Não abri a boca e pensei para mim, não tenho nada contra ela, mas aborrece‑me,­­ pois quando ando na rua e quero passar desper‑ cebido, ela vem ter comigo subitamente, tenho de cumprimentá‑la­­ e perco o fio dos meus pensamentos. Lá porque a conheci há muitos anos terei de me sujeitar a ela para sempre?

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Estava zangado e não disse a mim próprio: se encontrares uma pessoa e não souberes o que vos une, tal significa que não cumpriste o teu dever para com ela numa vida anterior. Por isso regressaram ambos ao mundo a fim de reparar a tua falta noutra encarnação. Estava eu às voltas com a minha cólera, quando a Senhora Klingel disse à minha mulher, tu, minha querida, foste viajar e entretanto o teu marido andou a divertir­­‑se à noite. Ao falar, apontava um dedo na minha direção e acrescentou rindo, eu não conto à sua mulher sobre as raparigas bonitas que vieram a sua casa. Como eu estava longe dos prazeres nessa altura! Nem os sonhos me davam prazer. E vem aquela contar à minha mulher que o marido tinha rece‑ bido a visita de raparigas bonitas! E que se tinha divertido com elas! Fiquei tão cheio de raiva que todo eu tremia. Saltei e cobri‑a­­ de insultos. Lancei­­‑lhe à cara todas as injúrias que conhecia. A minha mulher e ela olharam para mim espantadas. Eu próprio fiquei espantado com a minha reação, pois a Senhora Klingel só quisera dizer uma piada. Qual a razão daquela cólera e dos insul‑ tos? Mas eu estava furioso e da minha boca só saíam injúrias e pragas. Por fim agarrei a minha mulher pelo braço e saí sem me despedir. À saída deparei com as três amigas da Senhora Klingel e pareceu­­‑me ouvir uma delas dizer à outra, que estranha a piada da Senhora Klingel. A minha mulher seguia­­‑me arrastando­­‑se. Pelo seu silêncio era óbvio que estava triste. Mais do que a vergonha por que eu fizera passar a Senhora Klingel, entristecia­­‑a o facto de eu me ter encolerizado, mas calava­­‑se por amor e não dizia nada. Continuámos a andar assim, em silêncio. Cruzámo‑nos­­ com três pessoas. Eu conhecia uma delas, mas não as outras duas. Aquele que eu conhecia era professor de hebraico, viajara muito e voltara rico. E agora enchia os jornais com o seu palavreado. Estes professores continuam a tratar os alunos como crianças, embora eles já sejam crescidos, e a ensinar­­‑lhes ninharias. Mas num dos seus artigos encontrara uma observação justa e, como se apresentou a oca‑ sião, elogiei­­‑o. O rosto iluminou­­‑se­­‑lhe e apresentou­­‑me aos amigos, um dos quais era senador na Polónia e o outro irmão de uma das três amigas da Senho‑ ra Klingel, ou talvez me engane e ela não tenha irmão nenhum. Devia ter perguntado àqueles visitantes ilustres se a cidade lhes agrada‑ va e outras coisas do género, mas como a minha mulher estava cansada da viagem e triste, não queria demorar­­‑me. Abreviei pois a conversa e afastei­­ ‑me. A minha mulher já fora andando sem esperar por mim. Não fiquei zan‑ gado com ela por não ter esperado: é penoso para uma mulher jovem que as pessoas a vejam quando está cansada e triste.

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Enquanto ia andando, meti a mão no bolso do peito e tirei um envelope ou uma carta. Parei e li: «A maior provação de Job, não foi de Job mas do Santo, Bendito seja Ele, que entregou o seu servo Job ao poder do Demónio. Quer dizer que a provação do Santíssimo, Bendito seja Ele, foi maior que a de Job: Ele tinha um homem simples e reto e entregou‑o­­ nas mãos do Demó‑ nio.» Depois de ler as minhas palavras, rasguei o envelope e a carta e espalhei os pedaços ao vento, como geralmente faço com todas as cartas, umas vezes antes mesmo de as ler, e outras durante a leitura. Tendo feito isto disse para mim, tenho de encontrar a minha mulher. Os meus pensamentos tinham­­‑me preocupado, desviara­­‑me do meu cami‑ nho e encontrei­­‑me de repente numa rua onde nunca tinha estado. Não era uma rua diferente das outras ruas da cidade, mas sabia que tinha ido parar a um lugar que não conhecia. Àquela hora as lojas já estavam todas fechadas e nas montras, entre toda a espécie de mercadoria, brilhavam pequenas lâm‑ padas. Vi que me tinha afastado de casa e que tinha de tomar outra direção, mas não sabia qual. Olhei para uma escadaria com um corrimão de ferro de cada lado, subi os degraus e cheguei a uma loja de flores. Aí deparei com um pequeno grupo de pessoas, de costas para as flores, e entre elas o Dr. Rishel que lhes expunha as suas novas ideias gramaticais e linguísticas. Cumprimentei­­‑o e perguntei­­‑lhe onde é…, mas não consegui dizer o nome da rua e comecei a gaguejar. Não esquecera o nome da rua, mas as pala‑ vras ficavam presas na garganta. Compreende­­‑se facilmente o estado de espírito de alguém que procura o lugar onde vive e que, quando vai para perguntar, não consegue pronunciar o nome. Mas dominei­­‑me e fiz de conta que estava a brincar. Fiquei subita‑ mente coberto de suores frios. Fora obrigado a revelar o que queria encobrir. Quando voltei a perguntar onde ficava a rua, aconteceu o mesmo que da pri‑ meira vez. O Dr. Rishel parou atónito. Estava no meio da exposição das suas ideias quando eu cheguei e o interrompi. Entretanto, os amigos despediram­­‑se dele lançando­­‑me um olhar de troça. Olhei para todos os lados. Procurava lembrar­­‑me do nome da minha rua e não conseguia. Umas vezes parecia‑me­­ que era Humboldt e outras Ocidente. Mas mal abri a boca para perguntar soube que não era Humboldt nem Ocidente. Meti a mão no bolso na espe‑ rança de encontrar uma carta com o meu endereço. Encontrei duas cartas que ainda não tinha aberto, mas uma fora­­‑me enviada para o meu antigo apartamento, que deixara, e a outra era endereçada à posta‑restante.­­ Só rece‑ bera uma única carta no apartamento em que vivo agora e acabara de a ras‑ gar momentos antes. Comecei a recitar nomes de cidades e vilas, de reis e

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nobres, sábios e poetas, árvores e flores… todo o tipo de nomes de ruas, na esperança de me lembrar da minha, mas em vão. A paciência do Dr. Rishel esgotou­­‑se e começou a bater com os pés no chão. Eu estou aflito e ele quer deixar­­‑me, pensei. Não somos amigos? Não somos ambos seres humanos? E abandona­­‑se um homem numa aflição des‑ tas? A minha mulher regressou hoje de viagem e eu não consigo ir ter com ela pela simples razão de que me esqueci de onde morava. Suba para a carruagem e venha comigo, disse o Dr. Rishel. Perguntei­­‑me qual a razão daquele con‑ selho que não me convinha, mas ele agarrou­­‑me pelo braço e subiu comigo. Segui‑o­­ contra vontade perguntando­­‑me porque é que o Dr. Rishel me arrastara para aquele elétrico que não só não me levava para casa como me afastava da minha rua. Lembrei­­‑me de ter visto em sonhos Rishel a lutar comigo. Saltei do elétrico e deixei­­‑o. Quando saltei, encontrei­­‑me diante dos correios. Veio­­‑me ao espírito a ideia de perguntar aí o meu endereço. Mas o meu espírito advertiu, cuidado, não vá o empregado pensar que sou maluco, pois um homem assisado sabe geralmente onde mora. Estava lá um homem a quem pedi que perguntasse ele ao empregado. Entrou um homem gordo, bem vestido. Era agente de uma companhia de seguros e esfregava as mãos de prazer e satisfação. Dirigiu­­‑se ao meu interlocutor e cortou­­‑lhe a palavra. Subiu­­‑me o sangue à cabeça e disse, que mal­­‑educado que você é. Estão duas pessoas a conversar, porque é que se mete na conversa? Tinha consciência de que não estava a proceder bem, mas tinha muita pressa e não quis saber de boas educações. O agente de seguros olhou para mim espantado, como se dissesse, que mal lhe fiz eu para que você me insulte? Sabia que se me calasse, ele levaria a melhor, e então gritei de novo, tenho de voltar para casa, procuro a minha morada, esqueci­­‑me do nome da rua e não sei como ir ter com a minha mulher. Ele começou a rir acompanhado por todos os que tinham acorrido à minha voz. Entretanto, o funcionário fechou o guichet e foi­­‑se embora e eu fiquei sem saber o meu endereço. Em frente dos correios havia um café e lá dentro vi o Sr. Jacob Tzorev. O Sr. Jacob Tzorev tinha sido banqueiro noutra cidade e eu conhecera­­‑o antes da guerra. Quando eu saí do país, ele teve conhecimento de que eu estava com dificuldades e mandou­­‑me dinheiro. Depois de lhe pagar a dívida nunca mais lhe escrevi. Costumava dizer, hei de voltar a Israel mais tarde ou mais cedo e apaziguá­­‑lo‑ei.­­ Entretanto tinham passado vinte anos sem nos vermos. Ao vê­­‑lo agora, corri para o café, agarrei­­‑lhe os braços por trás e abracei­­‑o com alegria, chamando‑o­­ pelo nome próprio. Ele voltou‑se­­ para

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mim e não disse nada. Interroguei­­‑o sobre o seu silêncio e porque não me dava qualquer sinal de amizade. Não via como me era caro, como gostava dele? Um jovem aproximou­­‑se e sussurrou, o meu pai é cego. Olhei‑o­­ e vi que era cego dos dois olhos. Era difícil não me regozijar com o meu amigo e difícil regozijar­­‑me por ele, pois quando o deixara e saíra do país, os olhos dele bri‑ lhavam e agora estavam cegos. Queria perguntar pela saúde dele e pela da mulher. Mas, mal abri a boca, falei da minha casa. Formaram‑se­­ ­­‑lhe duas rugas debaixo dos olhos e parecia que era por ali que ele espreitava. De repente começou a tatear com as mãos, inclinou­­‑se para o filho e disse, este senhor era meu amigo. É verdade, disse eu acenando com a cabeça, era seu amigo e seu amigo sou. Mas nem as pala‑ vras do pai, nem as minhas, tiveram qualquer efeito sobre o filho, que não me prestou atenção. Após uma breve pausa, o senhor Tzorev disse ao filho, acompanha­­‑o e ajuda‑o­­ a encontrar a casa dele. O rapaz quedou‑se­­ um momento. Via­­‑se bem que lhe era difícil deixar o pai só. Por fim abriu os olhos e olhou para mim. Iluminaram‑se­­ ­­‑lhe os belos olhos e vi‑me­­ diante da minha casa.

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Unsi­ AL­‑HAJJ. «Rapariga borboleta rapariga», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1765­­‑1766.

a rapariga sonhou que era borboleta levantou ­­‑se e não soube quem era uma rapariga sonhando que era borboleta ou uma borboleta que era rapariga depois de centenas de anos o ar à noite, meus filhos, era um rapaz e uma rapariga brincando como uma borboleta que sonhava ser um rapaz e uma rapariga

ou um rapaz e uma rapariga sonhando ser borboleta o vento soprou forte uma borboleta meus filhos caiu lá fora em pedaços

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BEI DAO. «Mapa negro», in Quinhentos Poemas Chineses. Tradução de Régis Bonvicino. [2008] 2014. Lisboa: Nova Vega. 349.

Ao cabo, corvos frios juntam a noite: um mapa negro voltei para casa — pelo caminho avesso mais longo do que o errado longo como a vida traga o coração do Inverno quando a água mineral e as anfetaminas tornam‑se­­ as palavras da noite quando a memória late um arco­­‑íris assombra um mercado negro meu pai, vida‑faísca:­­ mínima como um grão sou seu eco virando a esquina dos encontros uma ex­­‑amante esconde­­‑se numa lufada de cartas revoltas Pequim, deixe­­‑me erguer um brinde às suas luzes deixe que meu cabelo branco aponte o caminho pelo mapa negro como se uma tormenta a fizesse voar espero na fila até que a pequena janela se feche: Ó o brilho da lua voltei para casa — reuniões significam menos do que adeuses ao menos

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Saul BELLOW. Herzog. Tradução de Luísa Ducla Soares. [1964] 1966. Lisboa: Edições Cor. 7­‑10.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 50 12/06/20 17:18 (2) realidade e desassossego 53

Roberto BOLAÑO. 2666. Tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra. [2004] 2015. Lisboa: Quetzal. 439­­‑440.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 53 12/06/20 17:18 56 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Osamu DAZAI. «Prólogo» e «Primeiro caderno de memórias», in Não­­ ‑Humano. Tradução de Ana Neto. [1948] 2016. Lisboa: Cavalo de Ferro. 3­‑6, 7 ­­‑ 1 5 .

Texto sujeito a direitos de autor.

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John DOS PASSOS. «Capítulo I — A Festa da Cidade Descuidada», in Manhattan Transfer, Viagem por Nova Iorque. Tradução de Clarisse Tavares. [1925] 1994. Lisboa: Europa‑América.­­ 9­­‑12.

Havia bandeiras em todos os postes da Quinta Avenida. Desfraldadas ao vento forte da história, as grandes bandeiras adejavam e esticavam as suas cordas nos postes rangentes, encimados por maçanetas douradas, na Quin‑ ta Avenida. As estrelas bamboleiam­­‑se tranquilamente contra o céu azul de ardósia, as riscas vermelhas e brancas ondulam contra as nuvens. No furacão das bandas de instrumentos de metal e do tropel dos cava‑ los e do clamoroso troar dos canhões, as sombras como sombras de gar ‑ ras cravam­­‑se nas bandeiras desfraldadas, e as bandeiras são como línguas esfaimadas, a lamber, a contorcer­­‑se, a encurvar­­‑se. «Oh ‘inda falta muito para chegar a Tipperary… Além! Além!» O porto está cheio de vapores com riscas como zebras, como cavalos de tiro, como cavalos malhados, o Estreito está entupido com ouro em barras, estão a empilhar soberanos de ouro até ao tecto na Casa do Tesouro. Os dóla‑ res tilintam pela rádio, todos os cabos debitam dólares. «A pista é longa, toda cheia de curvas… Além! Além!» No metropolitano os olhos esbugalham­­‑se ao ler APOCALIPSE, tifo, cólera, metralha, insurreição, morte pelo fogo, morte por afogamento, morte pela fome, morte na lama. Oh, falta muito pra chegar à Madimuasele de Armenteers, além! Os ianques vêm aí, os ianques vêm aí. Ao longo da Quinta Avenida, as bandas clamam pelo Empréstimo da Liberdade, pela Cruz Vermelha. Os navios­­ ‑hospital esgueiram­­‑se pelo porto e descarregam furtivamente, durante a noite, nas velhas docas de Jersey. Pela Quinta Avenida acima, as bandeiras dos dezassete Estados adejam e desfraldam‑se­­ ao vento forte e esfaimado. «Oh, o carvalho e o freixo E as ervas que crescem neste país de Deus.» As grandes bandeiras adejam e esticam as suas cordas, nos rangentes postes com maçanetas douradas da Quinta Avenida. O capitão James Merivale, D.S.C., estava estendido na cadeira, com os olhos fechados, enquanto os dedos macios do barbeiro lhe acariciavam sua‑

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vemente o queixo. A espuma fazia­­‑lhe cócegas nas narinas; sentia o cheiro da loção aromática de rum, ouvia o zumbido de um vibrador eléctrico, o ruído das tesouras a cortar. — Uma pequena massagem ao rosto, senhor capitão, para se livrar des‑ ses pontos negros — ronronou o barbeiro ao seu ouvido. O barbeiro era calvo e tinha um queixo redondo e azulado. — Está bem — disse Merivale com voz arrastada —, faça o que quiser. É a primeira vez que me barbeio decentemente desde que foi declarada a guerra. — Acabou de voltar do ultramar, capitão? — Isso mesmo… volto de tornar o mundo seguro para a democracia. O barbeiro abafou‑lhe­­ as palavras com uma toalha quente. — Um pouco de água­­‑de­­‑lilás, capitão? — Não, não me ponha essas malditas loções, só um pouco de hamamé‑ lis, ou qualquer coisa anti­­‑séptica. A manicura loura tinha as pestanas levemente recurvadas; fitava­­‑o de forma fascinante, com os lábios de botão de rosa entreabertos. — Aposto que acaba de desembarcar, capitão… Meu Deus, que belo bronzeado. — Ele entregou­­‑lhe a mão, pousando­­‑a sobre a pequena mesa branca. — Capitão, há muito tempo que ninguém cuida destas mãos. — Como é que sabe? — Veja como as cutículas cresceram. — Estávamos demasiado ocupados para pensar em coisas dessas. Sou um homem livre desde as oito horas, só isso. — Deve ter sido terrí… vel. — Oh, foi uma bela guerra, enquanto durou. — Penso que sim… E agora está completamente livre, capitão? — É claro que mantenho a minha comissão na reserva. Ela deu uma última palmadinha na sua mão, por brincadeira, e ele pôs­­‑se de pé. Depositou as gorjetas na palma da mão macia do barbeiro e na palma dura do rapaz de cor que lhe estendeu o boné, e subiu lentamente os degraus de mármore branco. Na entrada havia um espelho. O capitão James Merivale deteve­­‑se a olhar para o capitão James Merivale. Era um jovem alto, de fei‑ ções correctas, com um pouco de carne a mais por debaixo do queixo. Usava um uniforme de lã que lhe assentava perfeitamente, escolhido pelo prestígio da Divisão Arco­­‑íris, todo enfeitado com fitas e distintivos de comissões. A luz do espelho reflectia‑se,­­ prateada, de ambos os lados das suas polainas. Pigarreou, observando‑se­­ de alto a baixo. Um jovem com roupas civis apare‑ ceu por detrás dele.

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— Viva, James, já te limpaste todo? — Podes apostar… Não achas que é uma regra estúpida não se poderem usar cinturões Sam Browne? Estraga completamente o uniforme… — Por mim, podem ficar com os cinturões Sam Browne todos e pendurá­­ ‑los no rabo do general em comando, que eu estou­­‑me nas tintas… Sou um civil. — Continuas a ser um oficial na reserva, não te esqueças disso. — Podem pegar no corpo de reserva deles e ir enterrá‑lo­­ a dez mil milhas da enseada. Vamos beber um copo. — Tenho de ir ver os meus pais. — Tinham chegado à Rua 42. — Então até à vista, James. Vou apanhar uma piela das grandes… Só de pensar que estou livre… — Adeus, Jerry, não faças nada que eu não fizesse. Merivale continuou a caminhar para oeste, ao longo da 42. Ainda havia bandeiras penduradas nas janelas, adejando preguiçosamente nos postes, à brisa de Setembro. Olhou para as lojas, enquanto caminhava; flores, meias de mulher, caramelos, camisas e gravatas, vestidos, tecidos colori ‑ dos entre os vidros brilhantes, para além de uma torrente de rostos, faces barbeadas dos homens, faces de raparigas com os lábios pintados e narizes empoados. Sentia­­‑se afogueado e excitado. Estava inquieto ao entrar no metropolitano. — Olha para as divisas daquele… É um D.S.C. — ouviu uma rapariga dizer a outra. Saiu na 72 e caminhou, com o peito espetado, pela rua de casas de arenito que conhecia tão bem, em direcção do rio. — Como está, capitão Merivale? — disse o homem do elevador. — Já estás livre, James? — exclamou a mãe, correndo a abraçá­­‑lo. Ele acenou afirmativamente com a cabeça e beijou­­‑a. Parecia pálida e murcha, no seu vestido preto. Maisie, também de preto, correu para ele, num ruge­­‑ruge de saias, alta e de faces rosadas. — É maravilhoso encontrar ambas com tão bom aspecto. — É claro que tu estás… tão bem como seria de esperar. Meu querido, passámos uma época terrível… Agora és tu o chefe da família, James. — Pobre papá… partir daquela maneira. — Foi uma coisa de que escapaste… Só em Nova Iorque morreram milhares de pessoas. James abraçou Maisie com um braço e a mãe com o outro. Nenhum deles falou. — Bom — disse Marivale dirigindo­­‑se à sala —, foi uma grande guerra enquanto durou. — A mãe e a irmã seguiram­­‑no. Ele sentou­­‑se no sofá de

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cabedal e estendeu as pernas brilhantes. — Não sabem como é bom estar em casa. A Sr.ª Merivale puxou a cadeira para junto dele. — Agora, querido, conta‑me­­ tudo o que se passou.

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Shūsaku ENDŌ. Silêncio. Tradução de José David Antunes. [1966] 1990. Lisboa: D. Quixote. 194­­‑201.

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F. Scott FITZGERALD. «Capítulo VIII», in O Grande Gatsby. Tradução de José Rodrigues Miguéis. [1925] 2011. Lisboa: Presença. 146­­‑152.

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GAO XINGJIAN. «Capítulo I», in Líng Shān [A Montanha da Alma]. Tradução inédita de Wong Chang Chi. 1990. Taipei: Lianjing Chubanshe / Linking Publishing Company. 12­­‑13.

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Aurobindo Akroyd GHOSH. «O chamamento de prata», in Collected Poems. Tradução inédita de José Carlos Calazans. 1938. Pondichérry: Sri Aurobindo Ashram. 135.

Divinas coisas há não realizadas Em sublimes ganhos de tempo acumulado; Um grito parece próximo, um bater de asas prateado Chamando alegrias celestes pela terra arruinadas. Todos os olhos viram e todo o ouvido escutou É uma pálida ilusão por alguma voz elevada Nenhum som ou doce palavra e visão tão empossada Nem paixão de cores no coração se alegrou. Podem estes divinos êxtases igualar. Uma Mente além da nossa com o único saber Dessas harmonias ainda por ver, O destino e privilégio dos que estão por se formar. Enquanto a chuva se esbate na esplêndida rosa A terra espera aquela longínqua maravilha para revelar.

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Allen GINSBERG. «América», in Collected Poems, 1947­­‑1980. Tradução inédita de Margarida Vale de Gato a partir de versão online [disponível em https://www.poetryfoundation.org/poems/49305/america­­‑56d22b41f119f: acedido a 27 de Maio de 2019]. [1956] 2001. Nova Iorque: HarperCollins.

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HA JIN. «Aquela promessa não pronunciada», in lìng yī gè­kōng ji ān : hā jīn shī jí [Outro Espaço — Antologia Poética de Ha Jin]. Tradução inédita de Lu Ziliang. 2015. Taipé: Linking Publishing. 18.

Deve acreditar naquela promessa não pronunciada Talvez seja ela a contemplação da compreensão Talvez seja um sorriso distante Talvez seja um encontro predestinado Talvez seja um aniversário nesse dia Talvez seja alguém antigo entrando no seu sonho Talvez seja um murmúrio pelo qual chora Talvez seja uma casa onde um sábio tenha morado Para onde se muda trazido pelo destino Talvez seja um nome brilhante Que constantemente o faz recordar­­‑se de si.

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Langston HUGHES. «Harlem», in The Collected Poems of Langston Hughes. Tradução inédita de Amândio Reis. [1951] 1995. Nova Iorque: Vintage Books. 426.

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Muhammad IQBAL. «O melhor país do mundo inteiro é o nosso Hindustão», in Lokpriya Shaayar aur Unkee Shaayaree [O Poeta Favorito e os Seus Poemas]. Tradução inédita de Shiv­‑Kumar Sing. [2004] 2019. Nova Deli: Rajpal and Sons. 26.

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LAO SHE. «Cena 1», in Chá guǎn [Casa de Chá]. Tradução inédita de Sofia Chan Weng Tim. 1957. Beijing: Zhongguo dui wai fan yi chu ban gong si. 7 ­­‑ 8 .

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José LEZAMA LIMA. Paradiso. Tradução de José Carlos Gonçalves. [1966] 1991. Lisboa: Vega / Porto: Edições Afrontamento. 94­­‑96.

Naquele primeiro dia de aulas José Eugénio iria inaugurar o primeiro dia de contemplação da maldade na sua mais pura gratuidade; a primeira demons‑ tração que iria ver, para além da dificuldade conciliar do quod erat demons‑ trandum, da indesmentível existência do pecado original em cada criatura. Desde a entrada na aula, as indecisões, a distribuição dos bancos, a voz suave que procurava orientá­­‑los e tornar­­‑lhes familiar um momento já reconhe‑ cido como doloroso, reparou noutro aluno que demonstrava uma agilida‑ de humorística no meio daqueles rapazes perplexos, substituindo através duma ironia medrosa a melancolia daquela primeira manhã passada fora de casa, com um pequeno­­‑almoço muito apressado, e um certo receio por parte da Avó Munda ao despedi­­‑lo. Observou um colega muito enxuto de carnes, duma secura tornada elegância mais do que em proeminências de ser esquálido, com olheiras paradoxais para a sua infância. Olheiras e lábios roxos, revelando o cruzamento de raças, com maior predomínio de ante‑ passados brancos. O cabelo excessivamente preto e martelado como metal, sem distinção de cada um dos cabelos no casco que o cingia, que formava uma espécie de pasta nocturna, como uma massa de mosto fermentado e enegrecido. Parecia não sentir a surpresa dos novos ecos na paisagem que continuava a avançar em sua direcção. Naquele inferninho, nos seus rios terrenos, parecia tripular simiescamente uma nave que ostentasse um pavi‑ lhão desconhecido e maldito. Fibo era o aluno que empunhava uma pena de fios coloridos, produto único e engenho satânico do barroco penitenciário. Acabava num ponto cruel, ansioso por afundar­­‑se nos areais mais brandos do corpo. As suas mudanças de lugar eram justificadas pela ausência de livro de leitura. Chegava a um banco, fingindo o alvoroço da apetência escriba e metia a pena de tocoloro infernal pela fenda do banco anterior, electrizando a nalga com a penetração daquele ponto tangido da energia do anjo da cor da uva. No parceirinho da frente polarizava‑se­­ uma simultaneidade perante a lança com as cores duma barbearia. Chegava a surpresa em ponta de lança rompente, esquartejando e rasgando com dor, com a resposta do fingimento

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marmóreo para que o professorzeco não interrompesse aquela natural reabsorção da energia com a massa dos «caloiros» adolescentes. Fibo, sur‑ preendido com a própria impunidade das suas descargas de energia atra‑ vés da vareta arco­­‑íris, chegava a ficar frenético, mudando de objectivo, metendo mais fundo no ponto electro­­‑imane, saltando como uma rã que lesse ordens na lâmina de ouro do carreto de um electrólito. Desse modo impedia que o baleote, o monstro de pele prateada, adormecesse ao res‑ valar nos líquenes ou no labirinto do bolbo raquideano. Uma ponta afiada comunicava­­‑lhe as irradiações de cada vez que a massa recebia uma lança‑ da daquele São Jorge simiesco, arrastado, onde o dragão se metamorfosea‑ va na forma côncava e cândida da nádega. Quase conseguida a indiferente estabilidade do monstro, diminuíram as farpas do chicote tocoloro. Fibo, como um chefe de orquestra abandonado ao êxtase, saltava sem prelúdios nem observação da curva final do seu endemo‑ ninhado ballet, mudava de banco com uma simultaneidade especializada; ao saltar para o novo assento, fulminava de novo com a ponta da pena, e ao salto correspondia o trespasse. E a cara daquele que recebia a farpa continuava a simular as formas mais clássicas da atenção, repetindo com um desolado balbuciamento as divisões das sílabas ou estralejando os sons pela abóbada palatina. Separado do conjunto da turma, para aproveitar o espaço da porta que separava a sala de aulas do refeitório, incrustava‑se­­ um banco de escola babi‑ lónico, que se separava do resto dos alunos, dos seus movimentos corais, ostentando indiferença quando se erguia turbulenta alguma risada do con‑ junto, ou sorrindo com certo diabolismo infantil, quando a atenção num moscardo cúprico se pousava no quadro preto, coalhado de quebrados mis‑ tos e de fieiras de verbos irregulares ingleses. Fibo prolongava uma pausa na louca prodigalidade dos seus golpes de farpa. Tinha traçado o plano do assal‑ to mortal de uma nova meta: aquele que se tinha sentado num trono de orgu‑ lho, resguardando as suas potestades da ondulante massa coral, que se emba‑ lava na sua indiferença, como se a distância que o separava dos outros servos da escola formasse uma fortaleza contra a procacidade da arlequinesca pena colorida. A branda corpulência de Enrique Aredo, a leitosa provocação da sua pele, terminava numa breve mecha em remoinho sobre a testa, fazia­­ ‑o parecer um pavão real branco que tivesse a crista dourada de um faisão, e colocava­­‑o na posição de um desprezo ancestral face à cor morena suada e o descompassado gesticular de Fibo. Aredo, sentado à margem do resto da turma, com a tampa do banco irisada de lapiseiras vidradas, réguas de marfim e compassos de prata com as iniciais, arvorada, ao menor sinal do professor,

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os livros de texto de encadernações flexíveis, cadernos de papel de linho, extraindo­­‑os de uma pasta tão bojuda como o queixo de uma pastora de por‑ celana. Fibo, ao contrário, imerso na massa da classe, parecia ser o chamado a comunicar a essa pastosidade a descarga transversal de energia, a vibração que, em ondas sucessivas, impede os adormecimentos e fermentações da zona liberta pela irradiação central. Fez uma pausa, como um pequeno leo‑ pardo numa ramagem inquietante. O professor, de costas para a turma, orde‑ nava no quadro as variantes dos verbos irregulares das conjugações inglesas. Soletrou com lentos impulsos: freeze, froze, frozen. Aquela alusão à neve pare‑ ceu fazer arquear­­‑se como uma síntese instantânea o mais frenético e auda‑ cioso diabrete de Fibo. Cauteloso e fulminante, atravessou metade da aula, protegido pela lustrosa indiferença de Enrique Aredo, dobrou os joelhos com a rapidez dum bailarino numa feira russa e espetou a pena coruscante de cores na nádega do ocupante do trono da indolência. Retrocedeu com a rapidez de um endiabrado que salta para o seu cavalo depois de ter cumpri‑ do a sua incompreensível vingança, quando ouviu, estalando o filão da sua escandalosa indiferença, o grito do supliciado, mas, como que entrecruzou no mesmo galope, a campainha do fim de aula obstruiu a vacuidade aberta pelo grito. As divindades da energia e do raio, incarnadas na intempestiva campainha, tinham coberto a retirada de Fibo, dando a ordem de dispersar e decapitando instantaneamente a cerúlea cabeça que tinha emitido aquele amargo fardo de sons.

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LIN YUTANG. «Capítulo 24», in Wú guó­yǔ wú mín [O Meu País e a Minha Gente]. Tradução inédita de Humberto U Long Io. 1936. Hong Kong: Cosmos Books Ltd. 136­­‑139.

Nada é impossível na China. O autor fez uma viagem até uma aldeia de Suzhou, onde foi levado para a montanha por mulheres num meio de trans‑ porte chinês antigo chamado qiao. Quando essas portadoras levavam, ardua‑ mente, para a montanha um homem, que ainda por cima cheirava mal, esse homem era eu. Sentia um pouco de vergonha e ficava sem jeito. Naquele momento, eu só podia ficar tímido por serem elas a transportar­­‑me num tal percurso, pois eu pensava que elas eram descendentes do antigo patriarca feminista chinês, sendo, por isso, boas irmãs das mulheres do sul de Fujian. As mulheres de Fujian têm corpos direitos e peitos verticais. Carregam car‑ vão, cultivam campos, levantam­­‑se ao amanhecer, tomam banho, lavam os cabelos, vestem‑se­­ bem, têm penteados limpos e vão para o trabalho. Às ve‑ zes, durante o trabalho, quando têm tempo livre voltam a casa para ama‑ mentar os bebés. São elas também as figuras poderosas que dominam as famílias, incluindo os seus maridos. As mulheres na China sofreram realmente opressões? Esta questão está sempre na minha cabeça. A sombra da imperatriz Cixi da Dinastia Qing, sempre com o seu poder muito elevado, emergiu imediatamente no meu coração. As mulheres chinesas não são fáceis quando sofrem opres ‑ sões. Embora tivessem sofrido muitos maus tratos, já que não podiam ser oficiais ou mandarins, elas podiam deitar mão das suas múltiplas capa ‑ cidades para governarem o país. Todas elas, excepto as mulheres que se casassem com maridos muito sensuais e eróticos. Nesses casos, eram tra ‑ tadas como brinquedos. Embora vivessem naquelas famílias, as concubi‑ nas podiam sempre controlar os seus maridos. É necessário perceber que as mulheres eram exploradas em todos os seus direitos, mas nunca foram exploradas no direito a um casamento. Cada menina que nascia na China teria uma «família» própria para a sua futura preparação. Mesmo que fosse uma criada, a sociedade impunha­­‑lhe o dever de escolher um parceiro quando chegasse a idade adequada. O casamento era o único direito ina ‑ balável das mulheres na China. Dado que gozavam da oportunidade que

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este direito lhes proporcionava, aproveitavam os estatutos de esposas e de mães como uma arma excelente para o poder. Há duas perspectivas sobre esta situação: uma é, sem dúvida, a de que os homens tinham uma atitude injusta para com as mulheres, daí que, evidentemente, muitas mulheres encontravam formas de se vingarem. As mulheres ficavam numa posição subordinada, porque se achava que, no geral, eram estúpidas. Ao mesmo tempo, por terem um forte complexo de inferioridade, não terem direitos sociais iguais aos dos homens, possuírem menos formação e saber, além de se guiarem por valores baixos, por terem de enfrentar muitas dificuldades nas suas vidas sem liberdade, e até por estarem entre os dois estatutos de esposas e concubinas, por tudo isto, as mulheres eram consideradas simplesmente estúpidas. A dor de mulher era quase uma dor invisível. Se nos casais não havia amor verdadeiro, ou os mari‑ dos eram cruéis e repressivos, nesses casos, as mulheres não tinham outro remédio senão a resignação. As mulheres toleravam a opressão de famílias autoritárias, tal como a maioria do povo chinês tinha paciência para tolerar a opressão de decisões políticas autoritárias. No entanto, ninguém afirmava corajosamente que a maioria dos maridos era autoritária e que eram muito poucos os casamentos felizes na China. As razões para este facto eram as seguintes: as virtudes das mulheres eram baseadas no recato e no controlo da fala, além de ficarem em casa e não deverem olhar para os homens na rua nem nunca levantar a cabeça. Porém, muitas mulheres eram bastante fala‑ doras, quase logo desde nascença, e muitas delas gostavam sempre de pas‑ sear por todo o lado e também de olhar para os homens nas ruas, e faziam­­‑no sem qualquer vergonha. Esperava‑­­ se sempre que as mulheres conservassem a virgindade, mas o mesmo não era esperado dos homens. Em relação a este aspecto, não era muito difícil, já que a maioria das mulheres tinha natural‑ mente respeito pelo conceito de virgindade. Além disso, era­­‑lhes interdito o acesso à comunicação social, de que as mulheres ocidentais já faziam uso desde há muito. O certo, porém, é que as mulheres chinesas já se tinham acostumado a ter este tipo de vida e não se importavam com esta posição social. Havia muitos festivais ao longo do ano, em que elas deviam tomar parte para poderem apreciar o ambiente feliz das actividades sociais. Ou, por iniciativa própria, realizavam banquetes de família e, assim, podiam divertir­ ­‑se. Em suma, além das actividades familiares, estavam arredadas de quaisquer outras. Dentro da família tinham liberdade e encontravam uma alegria muito peculiar, essencial para as suas vidas e acções. Por outro lado, a responsabilidade de pegar em armas para defender o país e a sociedade não eram preocupações suas.

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No entanto, nas obras de Shakespeare aparecem figuras femininas, como a filha do Rei Lear e Cleópatra, que representam mulheres que são voluntariosas e determinadas em decidir os seus destinos. Dentro de casa, as mulheres eram chefes. É possível que os homens desta era não acreditassem em uma única das seguintes palavras de Shakes‑ peare: «Deslealdade ao amor! O teu nome é mulher.» No entanto, Shakes ‑ peare, quando descreve a filha do Rei Lear e Cleópatra, aponta para um certo ideal de mulher que nega este ponto de vista. Se se observar com mais deta‑ lhe e mais de perto a vida chinesa, quase se pode negar a ideia enraizada na consciência popular de que as mulheres são seres dependentes. Um exem‑ plo: a imperatriz chinesa Cixi, que tinha capacidade de dominar um país tão grande, e que, inclusivamente, antes e depois da sua ascensão ao trono impe‑ rial, controlava a vida do imperador Xianfeng. Até ao momento presente, há ainda muitíssimas «imperatrizes Cixi» que vivem em famílias da classe polí‑ tica, ou em famílias com responsabilidades civis, ou seja, todas as famílias são como um trono de imperador para elas. Bem assentes na sua cadeira de poder, podem emitir ordens ou julgar os vários assuntos relacionados com os seus filhos e netos. Quem conhecer em profundidade a vida do povo chinês, por certo ficará convencido de que a chamada opressão das mulheres é um falso julgamento do ocidente, e de que é uma ideia concebida por quem tem pouco conheci‑ mento sobre a China. O próprio termo «mulheres oprimidas» não é realmen‑ te adequado para descrever a identidade das mães chinesas e muito menos para designar as mulheres que são chefes superiores das grandes famílias chi‑ nesas. Se alguém não acreditar em mim, poderá ler o livro Sonho do Pavilhão Vermelho (que é como que um bloco de notas das famílias chinesas, no qual se pode verificar o estatuto da avó Jia Mu, as relações entre a irmã Feng e o seu marido, e as vidas dos outros casais como o pai Jia Zheng e a sua mulher, apre‑ sentados como tendo um relacionamento típico e mais normal). Então, vai aperceber­­‑se de que a pessoa que realmente governa a família não é o homem, mas sim a mulher. Várias leitoras europeias e americanas talvez possam vir a sentir inveja pelo estatuto da avó velha, a senhora Jia, que é uma persona‑ gem venerada como a figura suprema de toda a família, sendo totalmente respeitada e completamente educada em cortesia. Todas as manhãs, as várias noras tinham de, apressadamente, deslocar­‑se ao quarto da avó Jia, para lhe desejar um bom dia, fazer um cumprimento e consultá­­‑la sobre os assuntos mais importantes da família. Ou seja, apesar de ela ter «pés de lótus» e, por causa disso, ter de ficar sempre em casa, esse facto não lhe causava qualquer problema. Pelo contrário, os serventes que vigiavam a porta e tratavam dos

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assuntos da família tinham de sair e voltar para casa muitas vezes por dia, não se podendo comparar com a velha senhora Jia. Também se pode observar a característica da Dona Shui no romance Yesou Puyan, pois é uma personagem central mas profundamente afectada pela educação confucionista. Recebeu boa formação e pode ser um modelo representativo do confucionismo. Será, sem dúvida, uma das figuras mais elevadas da ficção dentro dos parâmetros morais tradicionais. Apenas uma palavra dela faz com que o seu filho oficial, igual a um primeiro‑ministro­­ na actualidade, se ajoelhe à sua frente. Ela usa uma inteligência infinita para cuidar adequadamente dos assuntos familia‑ res, como uma galinha guarda a sua ninhada de pintos. O meio de tratar dos assuntos é um poder de decisão rápido e misericordioso, e, assim, todas as noras lhe ficam sempre subordinadas. Tal personagem talvez seja descrita de forma um tanto exagerada, mas não pode ser considerada completamente fictícia. Exactamente, dentro de casa, as mulheres são donas, enquanto, fora de casa, são os homens os chefes. Confúcio estabeleceu esta regra na divisão dos trabalhos. As mulheres percebem bem este ponto. Ainda agora, as pequenas ven‑ dedoras das lojas dos grandes armazéns de Xangai sentem uma grande inve‑ ja daquelas mulheres casadas que levam as malas cheias de dinheiro e o seu grande desejo é tornarem‑se­­ clientes e deixarem de ser vendedoras. Às vezes, elas prefeririam simplesmente tricotar roupas de lã para os bebés, sem precisarem de contar o dinheiro, e sem terem de estar oito horas em cima de um par de sapatos de salto alto. Este é um trabalho muito cansa‑ tivo e que toma muito tempo. A maioria das mulheres sabe bem qual é a con‑ dição que é melhor para si. Algumas delas querem ser independentes. Mas a chamada independência das mulheres tem poucos exemplos numa socie‑ dade onde a governação é levado a cabo pelos homens. É inevitável que esta «independência» venha a ser objecto de zombaria por parte dos humoristas, que andam sempre à cata dos ridículos da sociedade. O natural desejo de maternidade, que é um desejo invisível e silencio‑ so, invade todo o corpo delas, promovendo a necessidade de recorrerem à maquilhagem. Tudo isto se relaciona naturalmente e é como que produzi‑ do pelo instinto. Elas economizam sacrificadamente algum do dinheiro que só lhes daria para comer, para poderem comprar um par de meias de seda que outras delas lhes vendem. Esperam vir a ter um namorado que lhes ofe‑ reça alguns presentes, de cuja necessidade elas timidamente farão a devida insinuação. Se, afinal, lhes é requerido que mantenham a sua identidade e elegância próprias, então, por que razão não podem pedir aos homens que lhes ofereçam presentes? Que outras maneiras têm elas para comprar meias

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de seda? O instinto próprio diz­­‑lhes que isso é uma necessidade ligada ao amor. A vida é um grande mistério! A compreensão delas é muito clara. Elas querem arranjar uma pessoa que lhes dê prendas durante toda a vida. Elas querem casar­­‑se, e as suas intuições estão certas. Então, o que está errado no casamento? E o que está errado na protecção da maternidade?

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Leopoldo LUGONES. «Os Cavalos de Abdera», in Os Cavalos de Abdera. Tradução de Luís Alves da Costa. [1906] 1988. Lisboa: Vega. 55­­‑65.

Abdera, a cidade trácia do Egeu, que actualmente é Balastra e que não deve ser confundida com a sua homónima bética, era célebre pelos seus cavalos. Destacar­­‑se na Trácia pelos seus cavalos, não era pouco; e ela destacava­­ ‑se até ser única. Todos os habitantes tomavam com garbo a educação de tão nobre animal, e esta paixão cultivada à porfia durante largos anos, até fazer parte das tradições fundamentais, havia produzido efeitos maravilhosos. Os cavalos de Abdera gozavam de fama excepcional, e todas as populações trácias, desde os Cicões até aos Bisaltos, eram nisto tributários dos Bistões, povoadores da mencionada cidade. Deve acrescentar­­‑se que semelhante indústria, unindo a utilidade ao prazer, ocupava desde o rei até ao último cidadão. Estas circunstâncias tinham contribuído também para tornar ínti‑ mas as relações entre o bruto e os seus donos, muito mais do que era habitual no resto das nações, chegando a considerar­­‑se as cavalariças como um pro‑ longamento do lar, e extremando­­‑se os naturais exageros de toda a paixão até admitir cavalos à mesa. Eram verdadeiramente notáveis corcéis, mas bestas afinal. Uns dor‑ miam em cobertores de pêlo; alguns pesebres tinham frescos singelos, pois não poucos veterinários sustentavam o gosto artístico da raça cavalar, e o cemitério equino ostentava entre pompas burguesas, seguramente sobrecar‑ regadas, duas ou três obras mestras. O templo mais formoso da cidade estava consagrado a Arion, o cavalo que Neptuno fez sair da terra com um golpe do seu tridente; e creio que a moda de rematar as proas com cabeças de cavalo, tem igual proveniência: seguro é, em todo o caso, que os baixos relevos hípi‑ cos foram o ornamento mais comum de toda aquela arquitectura. O monar‑ ca era quem se mostrava mais decidido pelos corcéis, chegando a tolerar aos seus verdadeiros crimes que os tornaram singularmente bravios; de tal modo que os nomes de Podargos e de Lampão figuravam em fábulas sombrias; pois é oportuno dizer que os cavalos tinham nomes como as pessoas. Tão amestrados estavam aqueles animais, que as rédeas eram desne‑ cessárias, conservando­­‑se unicamente como adornos, desde logo muito

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apreciados pelos mesmos cavalos. A palavra era o meu usual de comunicação com eles; e observando­­‑se que a liberdade favorecia o desenvolver das suas boas condições, deixavam­­‑nos todo o tempo não requerido pela albarda ou pelo arnês em liberdade de cruzar na sua amplidão as magníficas pradarias formadas no subúrbio, à beira do Kossinites, para seu recreio e alimentação. A som de trompa os convocavam quando era mister, e assim para o tra‑ balho como para o penso eram exactíssimos. Raiava o incrível a sua habilida‑ de para toda a classe de jogos de circo e até de salão, a sua bravura nos com‑ bates, a sua discrição nas cerimónias solenes. Assim, o hipódromo de Abdera tanto como as suas companhias de malabarismo, a sua cavalaria couraçada de bronze e as suas cargas mortais tinham alcançado tal renome que de todas as partes acudia gente a admirá­­‑los: mérito compartido por igual entre doma‑ dores e corcéis. Aquela educação persistente, aquele forçado desenvolver de condições, e para dizê­­‑lo numa só palavra, aquela humanização da raça equi‑ na iam engendrando um fenómeno que os Bistões festejavam como outra glória nacional. A inteligência dos cavalos começava a desenvolver­­‑se parale‑ lamente à sua consciência, produzindo casos anormais que forneciam pasto ao comentário geral. Uma égua havia exigido espelhos no seu pesebre, arrancando‑os­­ com os dentes da própria alcova patronal e destruindo a coices os de três painéis, quando não lhes fizeram o gosto. Concedido o capricho dava mostras de coqueteria perfeitamente visível. Balios, o mais belo potro da comarca, um branco elegante e sentimen‑ tal que tinha duas campanhas militares e manifestava regozijo ante o recitar de hexâmetros heróicos, acabava de morrer de amor por uma dama. Era a mulher de um general, dono da enamorada besta, e por certo não ocultava o sucedido. Até se cria que adulava a sua vaidade, sendo isso muito natural, por outro lado, na equestre metrópole. Assinalavam‑se­­ igualmente casos de infanticídio que, aumentando de forma alarmante, foi necessário corrigir com a presença de velhas mulas adoptivas; um gosto crescente pelo pecado e pelo cânhamo, cujas plantações saqueavam os animais; e várias rebeliões isoladas que houve de corrigir­­‑se, sendo insuficiente o chicote, por meio do ferro incandescente. Este último foi­­‑se insinuando, pois o instinto de rebelião progredia apesar de tudo. Os Bistões, cada vez mais encantados com os seus cavalos, não presta‑ vam atenção a isso. Outros factos mais significativos produziram­­‑se daí a pouco. Duas ou três equipagens tinham feito causa comum contra um car‑ roceiro que açoitava a sua égua rebelde. Os cavalos resistiam cada vez mais ao engate e ao jugo, de tal modo que começou a preferir­­‑se o asno. Havia

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animais que não aceitavam determinada alfaia; mas como pertenciam aos ricos, condescendia­­‑se com a sua rebelião comentando­­‑a carinhosamente a título de capricho. Um dia os cavalos não vieram ao som da trompa, e foi necessário constrangê­­‑los pela força; mas nos subsequentes não se reproduziu a rebelião. Por fim esta ocorreu certa vez que a maré cobriu a praia de pescado morto, como costumava suceder. Os cavalos fartaram­­‑se disso, e viram­­‑nos regressar ao campo suburbano com lentidão sombria. Meia­­‑noite era quando estalou o singular conflito. Prontamente um ribombo surdo e persistente perturbou o recinto da cidade. Acontecera que todos os cavalos se tinham posto em movimento à vez para assaltá­­‑la, mas isto se soube logo, desapercebido ao princípio na sombra da noite e na surpresa do inesperado. Como os prados de pastoreio ficavam entre as muralhas, nada pôde conter a agressão; e acrescido a isto o conhecimento minucioso que os animais tinham dos domicílios, ambas as coisas acrescentaram a catástrofe. Noite memorável entre todas, os seus horrores só apareceram quando o dia veio pô‑los­­ em evidência, multiplicando‑os­­ ainda. As portas rebentadas a coices jaziam por terra dando lugar a ferozes manadas que se sucediam quase sem interrupção. Havia corrido sangue, pois não poucos vizinhos caíram esmagados debaixo do casco e dos dentes do bando, em cujas filas causaram estragos também as armas humanas. Alvoroçada de tropéis, a cidade obscurecia­­‑se com a poeirada que engendravam; e um estranho tumulto formado por gritos de cólera ou de dor, relinchos variados como palavras aos quais se mesclava um que outro zurrar, e estampidos de coices sobre as portas atacadas, unia o seu espan‑ to ao pavor visível da catástrofe. Uma espécie de terremoto incessante fazia vibrar o chão com o trote da massa rebelde, exaltado por vezes como uma rajada tempestuosa por frenéticos tropéis sem direcção e sem objecto; pois havendo saqueado todos os campos de cânhamo, e até algumas adegas que cobiçavam aqueles corcéis pervertidos pelos refinamentos da mesa, grupos de animais ébrios aceleravam a obra de destruição. E pelo lado do mar era impossível fugir. Os cavalos, conhecendo a missão das naves, cerravam o acesso do porto. Só a fortaleza permanecia incólume e começava a organizar­­‑se nela a resistência. De imediato se cobria de dardos a todo o cavalo que por ali cru‑ zava, e quando caía perto era arrastado para o interior como vitualha. Entre os vizinhos refugiados circulavam os mais estranhos rumores. O primeiro ataque não foi senão um saque. Derrubadas as portas, as manadas

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introduziam‑se­­ nas habitações, só atentas às colgaduras sumptuosas com que intentavam revestir­­‑se, às jóias e objectos brilhantes. A oposição aos seus desígnios foi o que suscitou a sua fúria. Outros falavam de monstruosos amo‑ res, de mulheres assaltadas e esmagadas nos seus próprios leitos com ímpeto bestial; e até se assinalava uma nobre donzela que soluçando narrava entre duas crises o seu percalço: o despertar na alcova à média luz da lâmpada, roçados seus lábios pela ignóbil beiçada de um potro negro que respingava de prazer, o beiço expondo a sua dentadura asquerosa; o seu grito de pavor ante aquela besta convertida em fera, com o resplendor humano e malévolo dos seus olhos incendiados de lubricidade; o mar de sangue com que a inun‑ dara ao cair atravessada pela espada de um servidor… Mencionavam­­‑se vários assassinatos em que as éguas se tinham diverti‑ do com sanha feminil, despedaçando com mordidelas as vítimas. Os asnos haviam sido exterminados, e as mulas sublevaram‑se­­ também, mas com tor‑ peza inconsciente, destruindo por destruir, e particularmente encarniçadas contra os cães. O troar das correrias loucas continuava estremecendo a cidade, e o fra‑ gor dos desmoronamentos ia aumentando. Era urgente organizar uma saída, por mais que o número e a força dos assaltantes a fizesse singularmente peri‑ gosa, se não se queria abandonar a cidade à mais insensata destruição. Os homens começaram a armar­­‑se; mas passado o primeiro momento de desvario, os cavalos tinham­­‑se decidido a atacar também. Um brusco silêncio precedeu o assalto. Da fortaleza distinguia‑se­ o ter‑ rível exército que se congregava, não sem trabalho, no hipódromo. Aquilo durou várias horas, pois quando tudo parecia disposto, súbitos arqueios e agudíssimos relinchos cuja causa era impossível de discernir, desordenavam profundamente as fileiras. O sol declinava já, quando se produziu a primeira carga. Não foi, se se permite a frase, mais do que uma demonstração, pois os animais limitaram­­ ‑se a passar correndo frente à fortaleza. Em contrapartida, ficaram criva‑ dos pelas setas dos defensores. Desde o mais remoto extremo da cidade, lançaram­­‑se outra vez, e o seu choque contra as defesas foi formidável. A fortaleza retumbou inteira sob aquela tempestade de cascos, e as suas rijas muralhas dóricas ficaram, a falar verdade, profundamente danificadas. Sobreveio um refluxo, ao qual se sucedeu desde logo um novo ataque. Os que demoliam eram cavalos e mulos ferrados que caíam às dúzias; mas as suas fileiras cerravam­­‑se com um encarniçamento furioso, sem que a massa parecesse diminuir. O pior era que alguns haviam conseguido vestir as suas bardas de combate em cuja de aço se embotavam os dardos.

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Outros levavam estandartes de tela vistoso, outros, colares, e pueris no seu próprio furor, ensaiavam inesperadas traquinices. Das muralhas conheciam­­ ‑nos. Dinos, Aethon, Ameteo, Xanthos! E eles saudavam, recarregando em seguida com fogosos respingos. Um, um chefe certamente, ergueu‑se­­ sobre os seus jarretes, caminhou assim um pouco gesticulando galhardamente no ar como se dançasse um marcial bailete, contorcendo o pescoço com serpen‑ tina elegância, até que um dardo se lhe cravou a meio do peito… Entretanto, o ataque ia triunfando. As muralhas começavam a ceder. Subitamente um alarme paralisou as bestas. Umas sobre as outras, apoiando­­‑se em ancas e lombos, esticaram os seus pescoços até à alameda que bordejava a margem do Kossinites; e os defensores, voltando­­‑se na mesma direcção, contemplaram um tremendo espectáculo. Dominando o arvoredo negro, espantosa sobre o céu da tarde, uma colossal cabeça de leão olhava para a cidade. Era uma dessas feras antedi‑ luvianas cujos exemplares, cada vez mais raros, devastavam de tempos em tempos os Montes Ródopes. Mas nunca se tinha visto nada tão monstruoso, pois aquela cabeça dominava as mais altas árvores, misturando com as folhas tingidas de crepúsculo as grenhas da sua melena. Brilhavam claramente as suas enormes presas, percebiam‑se­­ os seus olhos franzidos ante a luz, chegava no hálito da brisa o seu odor bravio. Imóvel entre a palpitação da folhagem, enferrujada pelo sol quase até dourar­­‑se a sua gigan‑ tesca juba, alçava­­‑se diante do horizonte como um desses blocos em que o pelasgo, contemporâneo das montanhas, esculpiu as suas bárbaras divindades. E de repente começou a andar, lento como o oceano. Ouvia‑se­­ o rumor da fronde que o seu peito afastava, seu alento de frágua, que ia sem dúvida estremecer a cidade, tornando‑se­­ em rugido. Apesar da sua força prodigiosa e do seu número, os cavalos sublevados não resistiram a semelhante aproximação. Um só ímpeto os arrastou pela praia, em direcção à Macedónia, levantando um verdadeiro furacão de areia e de espuma, pois não poucos se arrojavam através das ondas. Na fortaleza reinava o pânico. Que poderiam contra semelhante inimigo? Que gonzo de bronze resistiria às suas mandíbulas? Que muro às suas garras?... Começavam já a preferir o passado risco (afinal uma luta contra bestas civilizadas), sem alento nem para enflechar os arcos, quando o monstro saiu da alameda. Não foi um rugido que brotou das suas fauces, mas um grito de guerra humano, o bélico «alalé!» dos combates, ao que responderam com regozijo triunfal os «hoyohei» e os «hoyotohó» da fortaleza.

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Glorioso prodígio! Debaixo da cabeça do felino, irradiava luz superior o rosto de um nume; e mesclados soberbamente com a fulva pele, ressaltavam o seu peito marmó‑ reo, os seus braços de azinho, os seus músculos estupendos. E um grito, um só grito de liberdade, de reconhecimento, de orgulho, encheu a tarde: — Hércules, é Hércules que chega!

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Sami MAHDÎ. «Os extremos da ilusão», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1784.

vossa foi esta formosa noite. vossa foi esta longa charla. e dela manava contínua a ilusão — que a ilusão não se origina de um absurdo.

falaste ­­‑nos de outra nuvem de outra estrela e só nos reservamos este pouco. e chamais segredo ao que entre nós existe?

se quereis que cantemos juntos e juntos gracejemos reconheçamos que o cantar está cansado invertamos os termos e comecemos pela última das penas.

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Jim MORRISON. «O Fim», in Uma Oração Americana e Outros Escritos. Tradução de Manuel João Gomes. [1967] 1992. Lisboa: Assírio & Alvim. 23­. ­‑25

Texto sujeito a direitos de autor.

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Shiga NAOYA. «O crime de Han», in Os Melhores Contos Japoneses. Tradução de Anabela Monteiro e Carlos Alberto Nunes. [1913] 1967. Lisboa: Arcádia Limitada. 98­­‑104.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 105 12/06/20 17:18 110 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

David RUBADIRI. «Morte em Mulago», in Poems from East Africa. Tradução inédita de Flávia Ba. [1971] 2009. Nairobi: East African Educational Publishers. 137.

Texto sujeito a direitos de autor.

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Philip ROTH. A Pastoral Americana. Tradução de Maria João Delgado e Luísa Feijó. [1997] 1999. Lisboa: D. Quixote. 266­­‑269.

Telefona ao irmão. Não é o melhor irmão para uma pessoa procurar consolo mas que pode ele fazer? Quando se trata de procurar consolo é sempre o irmão errado, o pai errado, a mãe errada, a mulher errada e é por isso que temos de nos consolar a nós próprios, ser fortes e continuar a consolar os outros. Mas ele precisa de esquecer aquela violação, precisa de tirar aquela violação de dentro dele, que o está a matar, não consegue aguentar mais, e assim telefona ao único irmão que tem. Se tivesse outro irmão, ter­­‑lhe­­ ‑ia telefonado. Mas ele só tem o Jerry como irmão e o Jerry só o tem a ele. Como filha, só tem a Merry. Ela só o tem a ele como pai. Não há outra saída. Nada se pode fazer para mudar a realidade. É sexta­­‑feira e são cinco e meia da tarde. O Jerry está no consultório a atender doentes recém‑operados.­­ Mas pode falar, diz ele. Os doentes podem esperar. — O que é? Que se passa? Basta­­‑lhe ouvir a voz do Jerry, a impaciência na sua voz, a severa presun‑ ção daquela voz, para pensar, Não me vai servir de nada. — Encontrei­­‑a. Vim agora mesmo de estar com a Merry. Encontrei­­‑a em Newark. Está cá. Num quarto. Estive com ela. Não podes imaginar o que ela passou, como está, onde vive. Nem te passa pela cabeça. — E con ‑ tinua a contar a história dela, aguentando­­‑se bem, tentando repetir o que ela lhe contou sobre onde tinha estado, como tinha vivido e o que lhe acon ‑ tecera, tentando que aquilo lhe entrasse na cabeça, na sua própria cabeça, tentando encontrar, dentro da sua cabeça, espaço para tudo aquilo quando ele nem sequer conseguia arranjar espaço suficiente para o espaço em que ela vivia. Quase rebenta em lágrimas quando conta ao irmão que ela fora violada duas vezes. — Já acabaste? — pergunta o Jerry. — O quê? — Se já acabaste, se é isso, diz‑me­­ o que vais fazer agora. Que vais fazer, Seymour?

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— Não sei o que deva fazer. Foi ela. Foi ela que fez o Hamlin ir pelos ares. Que matou o Conlon. — Não consegue contar­­‑lhe de Oregon e dos outros três. — Fez tudo sozinha. — Claro que fez. Santo Deus. Quem é que pensavas que tivesse feito isso? Onde é que ela está agora, nesse quarto? — Está. É horrível. — Então volta lá e trá­­‑la. — Não posso. Ela não vem. Ela quer que eu a deixe lá. — Que se lixe o que ela quer. Vai lá no teu carro e arrasta­­‑a pelos cabelos daquele quarto para fora. Dá‑lhe­­ uma droga qualquer. Amarra‑a.­­ Mas trá‑la.­­ Ouve. Estás paralisado. Não sou eu quem acha que manter a família unida é o mais importante que há. — Tu, sim. Pega no carro e vai buscá­­‑la! — Não vai dar. Não a posso trazer à força. Há coisas que não compreen‑ des. Quando se chega ao ponto de forçar alguém a voltar para casa... que se faz depois? É muito bonito... mas, e depois? É complicado, muito complica‑ do. Assim não dá. — Só dá mesmo assim. — Ela matou mais três pessoas. Matou quatro pessoas. — Que se lixem as quatro pessoas. Que se passa contigo? Estás a ceder­­ ‑lhe tal como cedias ao teu pai, tal como sempre cedeste a tudo na vida. — Ela foi violada. Está louca, enlouqueceu. Basta olhar para ela e vê­­‑se logo. Foi violada duas vezes. — O que é que pensavas que ia acontecer? Pareces surpreendido. Claro que foi violada. Ou te mexes e fazes qualquer coisa ou ela ainda é violada uma terceira vez. Gostas dela ou não? — Como é que podes perguntar isso? — Tu é que me forças a isso. — Por favor, agora não. Não me chateies, não me deites abaixo. Eu amo a minha filha. Nunca amei mais nada na vida. — Como uma coisa. — O quê? Que disseste? — Como uma coisa... amaste­­‑a como uma coisa. Tal como amas a tua mulher. Oh, se um dia conseguisses perceber por que estás a fazer o que estás a fazer. Sabes porquê? Tens alguma ideia? Porque tens medo de provocar uma cena! Tens medo de deixar sair a fera cá para fora! — Do que é que tu estás a falar? Que fera? Que fera? — Não, ele não está à espera de encontrar consolo, mas aquele ataque... por que é que ele está a atacá­­ ‑lo assim sem sequer fingir consolá‑lo?­­ Porquê, quando ele acabou de explicar ao Jerry como as coisas eram mil vezes piores do que aquilo que eles esperavam?

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— O que é que tu és? Sabes? Estás sempre a tentar amaciar as coisas. Sempre a tentar ser moderado. Nunca dizes a verdade se achares que isso vai magoar alguém. Estás sempre a entrar em compromissos. Sempre compla‑ cente. Sempre a tentar ver o lado bom das coisas. Sempre com boas manei‑ ras. O tipo que aguenta tudo pacientemente. O tipo que se mostra com o máximo decoro possível. O tipo que nunca infringe os códigos. O que a sociedade mandar fazer, tu fazes. Decoro. Decoro é o que tu cospes na cara de... Bem, a tua filha cuspiu por ti, não foi? Quatro pessoas? Foi cá uma críti‑ ca ao decoro! Se desligar, ficará sozinho naquele saguão atrás do homem que está à espera, atrás do homem que está lá em baixo a rasgar a Merry, e verá tudo o que não quer ver, ficará a saber tudo o que não aguenta saber. Não pode ficar ali sentado, a imaginar o resto da história. Se desligar, nunca há­­‑de saber o que é que o Jerry tem a dizer depois de lhe ter dito tudo aquilo que, por uma razão qualquer, lhe quer dizer sobre a besta. Que besta? Todas as relações dele com as pessoas são assim... não é um ataque a mim, é o Jerry que é mesmo assim. Ninguém o consegue controlar. Nasceu assim. Sabia disso antes de lhe ter telefonado. Sempre o soube. Não vivemos da mesma maneira. Um irmão que não é um irmão. Entrei em pânico. Estou em pânico. O pânico é isto. Fui logo telefonar à pessoa pior do mundo para se telefonar. Este tipo só sabe brandir facas. Trata tudo à facada. O que está podre, retalha. Estou lixado, estou perante uma situação sem saída e para ele isto é normal… continua a avançar de faca em riste. — Eu não sou o renegado — diz o Sueco. — Não sou o renegado, tu é que és. — Não, não és. Tu és aquele que faz tudo direitinho. — Não percebo. Dizes isso como se fosse um insulto. — Diz ele furioso. — Que mal tem fazer as coisas bem? — Nenhum, nenhum. Só que foi contra isso que a tua filha sempre se revoltou. Não te revelas aos outros, Seymour. Manténs­­‑te dentro da concha. Ninguém sabe quem tu és. De certeza que nunca a deixaste saber quem tu eras. É contra isso que ela se tem revoltado, contrai... essa fachada. Todas as tuas normas lixadas. Olha o que ela fez às tuas normas. — Não sei o que queres de mim. Sempre foste demasiado esperto para mim. É essa a tua resposta? É? — És tu quem ganha sempre a taça. Fazes sempre tudo certinho. Toda a gente gosta de ti. Casaste com a Miss New Jersey, c’um raio! Dá que pensar. Por que é que casaste com ela? Para parecer bem. Para que é que fazes as coi‑ sas? Para parecer bem.

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— Eu amava‑a!­­ Fui contra a vontade do meu pai porque a amava muito! Jerry ri­­‑se. — Acreditas nisso? Achas realmente que lhe fizeste frente? Casaste com ela porque não te conseguiste safar. O pai deu­­‑lhe uma desanda no escritório e tu ficaste ali sentado sem abrir bico. É ou não é verdade? — A minha filha está naquele quarto, Jerry. Que estás para aí a dizer? Mas o Jerry não o ouve. Só se ouve a si próprio. Por que é que o Jerry escolheu aquela ocasião para dizer a verdade ao irmão? Por que é que uma pessoa, no meio do pior sofrimento, decide que chegou a altura de deitar cá para fora, sob o pretexto de uma análise de personalidade, todo o desprezo que alimentou contra nós durante todos aqueles anos? O que é que, no meio do nosso sofrimento, faz com que a superioridade deles seja tão excessiva, tão vasta, faz com que se exprima de uma maneira tão prazenteira? Porquê escolher aquela altura para lançar o seu protesto por ter vivido sempre na sombra do irmão? Por que é que, se é que tinha de me dizer tudo aquilo, não o tinha dito quando eu me vangloriava? Por que é que ele pensa, inclusive, que vive na minha sombra? O cirurgião cardíaco mais famoso de Miami? O Dr. Levov, o salvador de corações?

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 114 12/06/20 17:18 (2) realidade e desassossego 115

Rabindranath TAGORE. «Um dia», in Rabindra Rachanabali [Obras Completas], vol. 7. Tradução inédita de Rita Ray. [1922] 1961. Kolkata: Vishwabharati. 790.

Lembro­­‑me daquela tarde. De vez em quando as chuvas parecem ficar can‑ sadas, mas depois uma rajada estimula­­‑as. O quarto está escuro, não me apetece trabalhar. Peguei no instrumento e comecei uma canção das chuvas na raga mallar. Do quarto ao lado ela veio só até à porta uma vez. Voltou outra vez. E mais uma vez saiu. Depois veio sentar­­‑se, devagar, cá dentro. Na mão tinha um bordado que continuou a fazer, cabisbaixa. Depois, parando de bordar, ficou a olhar para as árvores nebulosas fora da janela. A chuva diminuiu, a minha canção parou. Ela foi pentear­­‑se. Só isso, nada mais. Só uma tarde entrelaçada com a chuva, a canção, a inutilidade e a escuridão. A história está repleta de relatos de reis, narrações de guerras. Porém, um pedaço de uma palavrinha de uma tarde ficou escondido como uma jóia preciosa na pequena caixa do tempo. Duas pessoas sabem disso.

Outono de 1919 In Lipika (1922)

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 115 12/06/20 17:18 116 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

William Carlos WILLIAMS. «O carrinho de mão vermelho», in Antologia Breve. Tradução de José Agostinho Baptista. [1923] 1995. Lisboa: Assírio & Alvim. 31.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 116 12/06/20 17:18 (3) LITERATURA E CONDIÇÃO HUMANA

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 117 12/06/20 17:18 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 118 12/06/20 17:18 (3) literatura e condição humana 119

ADONIS. «Um espelho para o século vinte», in Victims of a Map. A Bilingual Anthology of Arabic Poetry. Tradução inédita de André Simões. Revisão da tradução de Nadia Bentahar. 2005. Londres: Saqi Books. 91.

um caixão vestido com a cara de um menino um livro escrito no ventre de um corvo uma fera que avança, trazendo uma flor

uma pedra respirando nos pulmões de um louco

é este é este o século vinte

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 119 12/06/20 17:18 120 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Alaa AL­­‑ASWANY. «As tristezas de hagg Ahmed», in Nirān Sadīqah [Fogo Amigo]. Tradução inédita de Raquel Carapinha. [2004] 2009. Cairo: Dar el­­‑Shorouk. 181­‑186.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 120 12/06/20 17:18 (3) literatura e condição humana 125

Nâzik AL­­‑MALÂ’IKA. «A noite pergunta quem eu sou», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1655­­‑1656.

a noite pergunta quem eu sou. sou o seu profundo segredo, inquieto e negro, seu rebelde segredo. meu ser escondi dentro do silêncio. meu coração envolvi em conjecturas para aqui fiquei, pálida, inerte, a ver os séculos que se interrogam: quem sou eu?

vento pergunta: quem sou eu? sou o seu assombrado sopro, renegada do tempo, tal como ele, não tenho lugar. sem fim seguimos caminhando, eternamente passando e, lá no cume, encontramos apenas o limite da miséria e então o vazio.

tempo interroga­­‑se: quem sou eu? como ele, sou uma altiva que devora os tempos e lhes confere vida novamente. retrato o longínquo passado como esperança fácil, sedutora, e volto eu própria a sepultá­­‑lo. assim posso forjar­­‑me um ontem diferente e um futuro perplexo.

meu ser pergunta‑se:­­ quem sou eu? como ele caminho, fixa nas trevas sem nada receber da paz. e vou sempre perguntando

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 125 12/06/20 17:18 126 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

mas a resposta é ela também uma miragem, e embora a creia próxima — como sempre — ao aproximar­­‑se, dissolve­­‑se. desaparece. morre.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 126 12/06/20 17:18 (3) literatura e condição humana 127

Harivansh Rai BACHCHAN. «O que passou, já passou», in Satringini. Tradução inédita de Singh, Shiv­‑Kumar. Revisão da tradução de Camila Seixas e Sousa e Helena Carvalhão Buescu. [1967] 2019. Deli: Rajpal and Sons.­ 92­‑95.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 127 12/06/20 17:18 (3) literatura e condição humana 129

Haiim Nahman BIALIK. «O mar de silêncio salpica». Tradução inédita de Moacir Amâncio a partir de versão online [disponível em https://benyehuda. org/bialik/bia052.html: acedido a 23 de Fevereiro de 2020]. [1901].

O mar de silêncio salpica Segredos, o orbe silencia Enquanto por detrás das mós O rumor do rio se anuncia.

O escuro da noite se fecha Põe sombra sobre sombra e dobra: Quieto no mar de escuro cai Astro após astro, estranha obra.

E no que o mundo se aquieta, O coração põe‑se­­ a falar. Sinto uma fonte pura e única Que lenta murmura, é sem par.

Diz­­‑me o coração em segredo: «Meu filho, teus sonhos virão; Caiu uma estrela do céu — Mas acredite — ainda não.

A estrela tua firme e presa Em seu encaixe resplandece; Ergue os olhos, ei‑la­­ brilhante Como o consolo de uma prece.»

No que se cala todo o mundo Volto e admiro meu astro não: Somente um mundo em mim existe, Este mundo o meu coração.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 129 12/06/20 17:18 130 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Peter CAREY. «Confissão», in Oscar e Lucinda. Tradução de J. Teixeira de Aguilar. [1988] 1990. Lisboa: D. Quixote. 269­‑273.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 130 12/06/20 17:18 (3) literatura e condição humana 135

Jibanananda DAS. «Uma estranha escuridão…», in Inefável: Antologia 2007­ ‑2013. Tradução de Rita Ray. [1954] 2014. Lisboa: Seda Publicações. 31.

Uma estranha escuridão desceu hoje nesta terra Os cegos vêem mais claramente; Os que não são movidos por amor, amizade, ou misericórdia Fica o mundo desamparado sem o seu bom conselho. Os que ainda têm fé na humanidade Os que ainda consideram como natural A grande verdade ou os costumes, ou as artes, ou a entrega Faz hoje o coração deles alimento dos abutres e das raposas.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 135 12/06/20 17:18 136 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Bob DYLAN. «Como uma pedra rolante», in Highway 61 Revisited (CD). Tradução inédita de João M.P. Gabriel. [1965]. Nova Iorque: Sony Music Entertainment Inc.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 136 12/06/20 17:18 138 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

William FAULKNER. O Som e a Fúria. Tradução de Ana Maria Chaves. [1929] 1994. Lisboa: D. Quixote. 128­‑133.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 138 12/06/20 17:18 142 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

HA JIN. «Equívoco», in lìng yī gè­kōng ji ān : hā jīn shī jí [Outro Espaço — Antologia Poética de Ha Jin]. Tradução inédita de Lu Ziliang. 2015. Taipé: Linking Publishing. 52.

Deixe que o equívoco alastre O certo e o incerto ditos Desvelam claramente o seu sortilégio No mundo, muitas coisas, Quanto mais faladas, mais confusas Deixe que o silêncio e o labor porfiem por si.

Não precisa de fazer muitos amigos Não precisa de namorar com a mulher pela qual se apaixonou Não precisa de compartilhar o bom vinho da festa Pois que, por ser só, pronto está para em silêncio sair

O ribombo distante trar­­‑lhe­­‑á genuína surpresa Os pássaros no céu ensinar­­‑lhe­­‑ão uma outra sabedoria Nascerão asas no seu coração Desaparecerão da sua linguagem palavras como: Fronteira, lamúria, timidez, esgotamento…

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 142 12/06/20 17:18 (3) literatura e condição humana 143

Joy HARJO. «Canção da manhã», in The New Anthology of American Poetry, volume 3. Tradução inédita de Simão Valente. [2000] 2012. New Brunswick: Rutgers University Press. 435.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 143 12/06/20 17:18 144 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

HU SHIH. «Sonho e poesia», in A Selective Guide to Chinese Literature: 1900–1949. The Poem, Volume 3. Tradução inédita de Carlos Botão Alves. [1920] 1989. Leiden: EJ Brill. 137.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 144 12/06/20 17:18 (3) literatura e condição humana 145

Leonard Z. IRIARTE. «O princípio», in Indigenous Literatures from Micronesia. Tradução inédita de Camila Seixas e Sousa e João M.P. Gabriel. 2019. Honolulu: University of Hawai‘i Press. 9­‑13.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 145 12/06/20 17:18 148 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Abe KŌBŌ. «Capítulo 1», in Susa no Ona [A Mulher da Areia]. Tradução inédita de Inês Rocha Silva. 1962. Tóquio: Shinchosha. 5­­‑22.

Texto sujeito a direitos de autor.

o funcionário da estação S lembrava­­‑se de ter visto de relance um homem, tipo montanhista, com uma caixa de madeira similar a uma lata de tinta, um cantil, uma cruz dependurada, e sozinho. Este testemunho desmoronou a teoria de uma fuga amorosa. Também se falou de um possível suicídio. Era um colega dele, armado em psicólogo, que achava isso. O facto de um adulto ainda adorar coleccio‑

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 148 12/06/20 17:18 158 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

LAO SHE. Quatro Gerações sob o Mesmo Tecto. Tradução inédita de Licínia Jorge e Sónia Jorge a partir de versão online [disponível em https://www. kanunu8.com/book3/8021/175496.html: acedido a 21 de Maio de 2019]. 1944.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 158 12/06/20 17:18 164 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Taban LO LIYONG. «O Job de Usumbura», in Fixions. Tradução inédita de Flávia Ba. 1969. Londres: Heinemann Educational. 1­­‑9.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 164 12/06/20 17:18 (3) literatura e condição humana 169

Adib MAZHAR. «Canto do silêncio», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1377.

repete à minha alma o canto do silêncio tão doce como o sopro da brisa negra, troca os suspiros por lágrimas e transe, sob meu dorso desperta um desespero dolente e olha pela minha vida, ó meu cantor! porque aqui está sobre mim a noite, tomada de embriaguez, de pálpebras ardidas, em meus sonhos entro. desfolham­­‑se de suspiros em tristezas, portadoras do sudário dos meus dias. possam das sombras os ritmos acompanhar os sangrentos restos dos meus amores. no poço da minh’alma gira o eco subtil Qual morte próxima vertida entre as pestanas.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 169 12/06/20 17:18 170 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Marianne MOORE. «O que são anos?», in Complete Poems. Tradução inédita de João M.P. Gabriel. [1941] 1951. Londres: Penguin. 95.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 170 12/06/20 17:18 (3) literatura e condição humana 171

Kenzaburō ŌE. Não Matem o Bebé. Tradução de Daniel Gonçalves. [1964] 2018. Porto: Livros do Brasil. 33­‑37.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 171 12/06/20 17:18 (3) literatura e condição humana 175

Marjorie OLUDHE­‑MACGOYE. «Uma canção de liberdade», in Poems from East Africa. Tradução inédita de Flávia Ba. [1971] 2009. Nairobi: East African Educational Publishers. 134.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 175 12/06/20 17:18 (3) literatura e condição humana 177

Amrita PRITAM. «Sombras de Rassidi», in Raseedee Ticket. Tradução inédita de Singh, Shiv­‑Kumar. Revisão da tradução de Camila Seixas e Sousa e Helena Carvalhão Buescu. [1976] 2010. Nova Deli: Hindi Pocket Books.­ 10­‑12.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 177 12/06/20 17:18 178 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Atiq RAHIMI. Terra e Cinzas. Tradução de Carlos Correia Monteiro de Oliveira. [1999] 2009. Lisboa: Teorema. 17­‑20.

Texto sujeito a direitos de autor.

Põe a caixa no seu lugar! Pensa noutra coisa, olha para outro lado.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 178 12/06/20 17:18 180 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Dalia RAVICOVICH. «A boneca mecânica», in The Penguin Book of Hebrew Verse. Tradução inédita de Moacir Amâncio. [1959] 1981. Londres / Nova Iorque: Penguin. 578.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 180 12/06/20 17:18 (3) literatura e condição humana 181

Arundhati ROY. «1. Pickles e Conservas Paraíso», in O Deus das Pequenas Coisas. Tradução de Teresa Casal. [1997] 2017. Lisboa: Asa. 13­‑15.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 181 12/06/20 17:18 184 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Avraham SHLONSKI. «Três velhas», in The Penguin Book of Hebrew Verse. Tradução inédita de Moacir Amâncio . [1934] 1981. Londres / Nova Iorque: Penguin. 578.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 184 12/06/20 17:18 (3) literatura e condição humana 185

David VOGEL. «Espadas cravadas no cobertor», in Col haShirim [Toda a Poesia]. Tradução inédita de Moacir Amâncio. [1966] 1998. Tel Aviv: Hakibbutz Hameuchad. 280.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 185 12/06/20 17:18 186 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Edith WHARTON. A Casa da Alegria. Tradução de Wanda Ramos. [1905] 1987. Lisboa: Presença. 145­­‑148.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 186 12/06/20 17:18 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 190 12/06/20 17:18 (4) MEMÓRIAS E RELEITURAS

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 191 12/06/20 17:18 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 192 12/06/20 17:18 (4) memórias e releituras 193

ANÓNIMO. «A história do homem e da mulher», in Antologia do Conto Africano de Transmissão Oral. Tradução de Lourenço do Rosário. 2009. Alfragide: Gailivro. 351­­‑352.

No princípio, o céu e a terra estavam juntos. Não havia nem nuvens, nem trovoadas, nem chuva, nem noites, nem dias. A Cobra Grande reinava nas profundezas das águas e os bichos temiam­­ ‑na e respeitavam‑na.­­ O Sol e a Lua pairavam na junção entre o céu e a terra. Eles eram marido e mulher. Viviam sempre juntinhos, abraçados, e os seus brilhos afugenta‑ vam eternamente qualquer escuridão. O tempo não podia ser medido, por isso não se sabe por quanto tempo durou aquilo tudo. Um dia, a Lua pediu ao Sol um filho. O Sol disse que não, temendo per‑ der as atenções da sua amada. A Lua começou a entristecer­­‑se aos poucos e a chorar lágrimas amargas, que, aos poucos, a foram tornando fria, fria. A Cobra da Água soube das desgraças da Lua, consolou‑a­­ e brincou com ela às escondidas. Das brincadeiras da Cobra da Água com a Lua resultou uma gravidez que pôs o Sol muito furioso. A Lua teve que pedir protecção à Cobra da Água até que nasceram dois seres muito estranhos. Eles não eram parecidos com qualquer outro bicho até ali existente no reino da Cobra da Água: eram o homem e a mulher. A Lua deixou­­‑os sobre a protecção da Cobra da Água e regressou para junto do Sol. O homem e a mulher começaram a dizimar os outros bichos. Uns para comer, outros por prazer. Todos os seres vivos juntaram­­‑se e insistiram junto da Cobra Grande para que expulsasse o homem e a mulher da água. A Cobra construiu uma almadia bem grande e nela colocou o homem e a mulher. Foi assim que o homem e a mulher foram expulsos das águas donde vieram e nasceram. O homem e a mulher sentiram fome e não tinham que comer. Andaram e a almadia foi ter a um rochedo. A mulher colheu alguns grãos e começou a pilar, pilar. Quando pilava, o pilão batia na cara do céu. O céu e a terra esta‑ vam juntos, mas o céu começou a sentir imensas dores e foi­­‑se afastando, afastando da terra. O Sol e a Lua foram com o céu.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 193 12/06/20 17:18 194 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Lá em cima, a Lua começou a chorar, chorar porque estava longe dos seus filhos. O Sol não gostou, fez muito barulho, partiu pratos, panelas e par‑ tiu todo o mobiliário. Foi assim que surgiu a trovoada. O Sol não estava contente, queria castigar a Lua. Era um pensamento que trazia guardado, desde há muito tempo, quando soube que a Lua tinha brincado com a Cobra Grande para ter filhos. Resolveu, então, pegar numa manta velha e esburacada e pô­­‑la na cabeça da Lua, que ficou na completa escuridão. Foi assim que surgiu a noite. Mas como a manta era esburacada, é por isso que vemos uns pequenos pontos brancos no céu, a que toda a gente chama de estrelas. O Sol e a Lua separaram­­‑se de uma vez para sempre. Procuraram sempre não se cruzarem. É por causa dessa separação que nós, hoje, chamamos noite quando a Lua aparece com a manta na cabeça e chamamos dia quando o Sol se apresenta com todo o seu brilho. O Sol jurou vingar­‑se e matar todos os homens se os apanhasse a dormir. É por isso que os homens procuram não dormir de dia, fazendo­­‑o apenas à noite, porque sabem que têm a protecção da Lua.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 194 12/06/20 17:18 (4) memórias e releituras 195

John BARTH. Ópera Flutuante. Tradução de José Freitas e Silva. [1967] 2013. Porto: Sextante. 65­­‑67.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 195 12/06/20 17:18 (4) memórias e releituras 197

Jorge Luis BORGES. «As ruínas circulares», in Ficções. Tradução de José Colaço Barreiros. [1941] 2013. Lisboa: Quetzal. 49­­‑57.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 197 12/06/20 17:18 202 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Aimé CÉSAIRE. «Acto I, cena 2», in Une tempête. Tradução inédita de Helena Carvalhão Buescu. 1969. Paris: Éd. du Seuil. 22­‑28.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 202 12/06/20 17:18 208 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Maryse CONDÉ. «O domínio das Belles­‑Feuilles», in La Migration des coeurs. Tradução inédita de Helena Carvalhão Buescu. 1995. Paris: Éd. Robert Laffont. 64­­‑67.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 208 12/06/20 17:18 (4) memórias e releituras 211

Julio CORTÁZAR. «Casa ocupada», in Bestiário. Tradução de Miguel Mochila. [1951] 2015. Lisboa: Cavalo de Ferro. 9­‑15.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 211 12/06/20 17:18 216 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Hart CRANE. «No túmulo de Melville», in Poesia do Século XX (De Thomas Hardy a C.V. Cattaneo). Tradução de Jorge de Sena. [1933] 1978. Porto: Editorial Inova. 392.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 216 12/06/20 17:18 (4) memórias e releituras 217

Assia DJEBAR. «3. Primeiro monólogo de Zoulikha, por sobre os terraços de Cesareia», in A Mulher sem Sepultura. Tradução de Gabriela Corte­­‑Real. [2002] 2008. Lisboa: Círculo de Leitores. 55­­‑59.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 217 12/06/20 17:18 (4) memórias e releituras 221

José DONOSO. Casa de Campo. Tradução de Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tenreiro Viseu. [1979] 2008. Lisboa: Cavalo de Ferro. 28­‑31.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 221 12/06/20 17:18 224 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Güneli GÜN. «Vida no reino das ficções», in Na Estrada para Bagdad. Tradução de José Vieira Lima. [1991] 1996. Porto: Asa. 272­‑274.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 224 12/06/20 17:18 (4) memórias e releituras 227

Taha HUSSEIN. Os Dias, volume I. Tradução inédita de Raquel Carapinha. [1926­ ­‑1927] 2004. Cairo: al­­‑Ahram. 15­­‑23

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 227 12/06/20 17:18 (4) memórias e releituras 233

Elias KHOURY. A Porta do Sol. Tradução de Ana Cristina Leonardo. [2000] 2012. Lisboa: Quetzal. 15­­‑17.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 233 12/06/20 17:18 236 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

LAO SHE. «Cena 1», in Chá guǎn [Casa de Chá]. Tradução inédita de Sofia Chan Weng Tim. 1957. Beijing: Zhongguo dui wai fan yi chu ban gong si. 7 ­­‑ 8 .

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 236 12/06/20 17:18 238 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Camara LAYE. «Capítulo II», in O Menino Negro. Tradução de Emanuel Godinho. [1959] 1979. Lisboa: Edições 70. 23­‑27.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 238 12/06/20 17:18 (4) memórias e releituras 241

Amin MAALOUF. «Prólogo», in As Cruzadas Vistas pelos Árabes. Tradução de G. Cascais Franco. [1983] 1990. Lisboa: Difel. 9­‑13.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 241 12/06/20 17:18 (4) memórias e releituras 245

V.S. NAIPAUL. «Capítulo 2», in A Curva no Rio. Tradução de José Vieira Lima. [1979] 1990. Lisboa: D. Quixote. 23­‑26.

Texto sujeito a direitos de autor.

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Octavio PAZ. «Madrugada», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de José Bento. [1958] 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1543­‑1544.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 249 12/06/20 17:18 250 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Ezra POUND. «Canto XXX», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Jorge de Sena. [1930] 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1260 ‑1262.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 250 12/06/20 17:18 252 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

E.J. PRATT. «Silêncios», in Complete Poems, vol. 2. Tradução inédita de Amândio Reis. [1937] 1989. Toronto: University of Toronto Press. 3­‑4.

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 252 12/06/20 17:18 254 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Jean RHYS. Vasto Mar de Sargaços. Tradução de José Carlos Costa Marques. [1966] 2009. Lisboa: Bertrand. 159­‑163.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 254 12/06/20 17:18 258 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Ronny SOMECK. «Carta a Fernando Pessoa», in Carta a Fernando Pessoa. Tradução de Moacir Amâncio. [1994] 2017. São Paulo: Annablume. 15.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 258 12/06/20 17:18 (4) memórias e releituras 259

Wallace STEVENS. «Treze maneiras de contemplar um melro», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Jorge de Sena. [1954] 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1226­‑1228.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 259 12/06/20 17:18 262 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

César VALLEJO. «Ágape», in Antologia. Tradução de José Bento. [1918] 1981. Porto: Limiar. 19.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 262 12/06/20 17:18 (4) memórias e releituras 263

David VOGEL. «Lentamente meus cavalos sobem», in Col haShirim [Toda a Poesia]. Tradução inédita de Moacir Amâncio. [1966] 1998. Telavive: Habkibutz Hameuhad. 15.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 263 12/06/20 17:18 264 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Sa’di YUSUF. «O balcão das nove da tarde», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1734. ­­‑1735

do teu vivo desejo quase não sabes que dizer se os passos se encurtam ou alargam na ferida quase não sabes que alcançar seus seios é um primeiro sonho que morre se não murmura o rouxinol. a quem podes, então, tu perguntar senão a essas ignaras lonjuras? e quem pode saber qual é a senda até esse rouxinol calado das nove se o seu balcão perdido se fechou entre a sombra e as palmeiras?

oh balcão enverdecido, extraviado e enigmático pelas nove! não ficarão as flores, não estarão o amante e a guitarra, não ficarão os versos perguntando pela princesa totalmente adormecida. no balcão que se desmorona ainda que sejam nove da tarde

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 264 12/06/20 17:18 (5) AFECTOS E EMOÇÕES

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 265 12/06/20 17:18 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 266 12/06/20 17:18 (5) afectos e emoções 267

Ilya ABÛ MADI. [morri contigo, em parte, quando, de mim, a terra te levou], in Treinta poemas árabes en su contexto. Tradução inédita de Adalberto Alves. 1998. Madrid: Ediciones Hiperion. 222­‑227.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 267 12/06/20 17:18 268 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

‘Abd al­­‑Wahhab AL­ ­‑BAYATI. [penetro nos teus olhos. Brotas da minha boca], in A Phala, n.º 56. Tradução de Adalberto Alves. 1997. Lisboa: Assírio & Alvim. 235.

penetro nos teus olhos. Brotas da minha boca E acordo no teu rosto, dormitas­‑me no sangue sobre o leito de chuvas de tártaros desertos rubros. chamo‑­­te enlouquecido em todos os bárbaros gritos negros do mundo, em todas as línguas, em todos os sofrimentos do amante no fundo do inferno das cidades: do amante, do mártir, do asceta, dormitas­‑me no sangue, penetro nos teus olhos e caio morto sobre o leito de fogo. Sonhando deixo ­­‑me repousar em teu peito. dormes nas pestanas. chamo‑­­te enlouquecido. estendo­­‑me em teu peito, sobre o grito do galo da aurora no reino de Deus, o reino do encantamento. pelas suas frias paragens caminhando vou...

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Muhammad Miftâh Rajab AL­ ­‑FAITURÎ. «Voz de África», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. [1953] 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1690­‑1691.

esta é acaso a tua voz? quase posso tocá‑la,­­ quase vê­­‑la. quase posso aspirar os seus ramos o odor da terra e o suor das testas; ouvir, em seu vibrar o curso do Congo caudaloso.

esta é, África, a tua voz. a tua voz, que me sacode como se fosse um ciclone. a tua voz de eco dourado, apaixonada, fervendo como sangue, revolução de lábios comprimidos. a tua amada voz, brilho de uns olhos que apertam vida e desejo. tua amada voz, que com desnudos pés vai cavando a tumba aos invasores. tua amada voz… a minha voz. a tua voz África minha a tua voz, oh voz de Allâh!

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Salma­ AL­‑JAYUSSÎ. [quando a morte chamar, como direi a meu coração: vem], in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1604­­‑1606.

quando a morte chamar, como direi a meu coração: vem! Como pelo túmulo, o seduzirei? Como atar à sua volta cordas tão fortes

que o possam arrancar ao seu sonho impossível? dir­ ­‑lhe­­‑ei: o sol dissolveu­­‑se no mar. há que partir.

como direi ao meu coração que, com a morte, reside: a nossa história acabou!

em nós, morte e beleza uniram­­‑se o desejo das fontes toma­­‑nos em nostalgia as sombras, sobre nós, estendem seu império. é isso a morte? todavia meu coração traz nele a violência da vida. tem saudade dos amigos na bruma. entre os dons vindos dos tempos deixa ­­‑lhes uma oração, a dádiva de uma oração.

quem são eles, esses que passam no ecrã da recordação, vestidos do incenso do nosso amor pela plenitude de um coração que conheceu a obra da alegria? os vinhos provámo‑los­­ com aqueles que penetram na nossa vinha, que levam os nossos votos até aos cumes. esses chamámo­­‑los; satisfizemos nossas promessas.

oferecemos, entre os dons do coração, mil orações e súplicas

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a todo o poema que nos visitou e alimentou nossas visões do mistério da beleza e lembrou também que o nosso amor caminha para a impossível estrada.

nem uma vez, nos olhos dos deuses, fugimos do desejo, nem uma vez, em consciência,

na fonte bebemos sem nunca matar a sede. do instante d’amor nos alimentámos. nem uma vez os feiticeiros nos renegaram, nossa viagem não tem fim. como os génios, somos livres. com o vento vamos ao sabor do vento num barco de mercúrio errante dirigindo os mais altos cumes do nosso amor, e nosso desespero, para um ponto de consciência do universo onde a nossa morte espreita. o que subsiste é o nosso amor para eles nostalgia e saudade.

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Ahmed ‘Abd AL­‑MU’TI HIJAZÎ. «Morte súbita», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim.­ 1762­‑1763.

trago comigo o meu número de telefone o meu nome e endereço e assim se de súbito cair morto podereis identificar­‑me e meus amigos virão

Fancy, aconteça o que acontecer não venhas. ficarei na morgue duas longas noites frios fios de telefone agitar­‑se­­‑ão na noite. a campainha começará. sem resposta... uma vez... duas.

alguém irá ter com a minha mãe e lhe dirá que eu morri

minha mãe essa triste camponesa como caminhará só pela cidade levando o meu endereço! como passará a noite a meu lado no átrio completamente mudo subjugada pela solidão confortada pelo seu recolhimento em dor quando pondera só por sobre as suas penas secretas em tecer a minha mortalha das suas negras lágrimas

quem dera que a minha mãe tivesse tatuado o meu braço de rapaz assim não me perderia

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assim não trairia meu pai assim o meu primeiro rosto não se perderia sob o meu segundo rosto.

quando vejo homens e mulheres saindo em silêncio depois de terem passado duas horas diante de mim durante as quais não trocámos olhares ou vimos diferentes cenários quando vi que a vida não tem loucura e o pássaro da quietude se alvoroça sobre todos sinto como se estivesse realmente morto jazendo silenciosamente contemplando este mundo agonizante.

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Salah ‘Abd AL­‑SABUR. «Fêmea», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1712 ‑1713.

o meu amado apagou o candeeiro E apagou a sua amargura no meu corpo e me despertou a sua tristeza, derramou os seus olhos no meu sonho estendeu sua asa destroçada à minha volta e abraçou­­‑me.

murmurou sua voz melodiosa ao meu ouvido, embalando­­‑me sobre a ramaria das suas lágrimas misturadas, e quando conseguiu de mim o que desejava soltou­­‑me e, a meu lado, adormeceu, enquanto a tarde seu manto recolhia para que, de manhã, nascesse outra amargura e nascesse um desejo na noite que impelisse o peito do meu amado a apagá­­‑lo sobre o meu corpo.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 274 12/06/20 17:18 (5) afectos e emoções 275

Yusuf AL­­‑SAIGH. «a minha tristeza sai da alcova dela», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1689.

quando regresso a casa, cada tarde, a minha tristeza sai da alcova dela, com a sua capa, e começa a seguir­­‑me: se caminho, caminha, se me sento, senta‑se,­­ se choro, chora com o meu pranto até à meia‑noite.­­ e nos cansamos. então, vejo que a minha tristeza entra na cozinha, abre a porta da geleira tira um pedaço escuro de carne e prepara­­‑me o jantar.

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ANÓNIMO. [Pergunta: O que é a soleira da porta?], in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Mário Cesariny. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 187­­‑188.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 276 12/06/20 17:18 (5) afectos e emoções 277

Sa’id AQL. «Nayanâr», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1527­­‑1528.

ao mais suave do perfume, mais ornada que a sedução, pura, mais que o dia no seu imo ela foi. a beleza foi. ramos subitamente abertos arpejo de um lenço ao correr do talhe seu nome é fruto do jasmim. ó borboleta, borboleta, acalma as tuas asas! Naya é filha do espírito. Que orgulhosa chispa a proferiu para humilhação do sol! em plenitude, aqui está. Colina de rosas sua anca? colina de espadas nuas? furtiva, ela tocou sua anca, brevemente, com medo que ela se evada sobre o odor das flores. tocada, de seus dedos de aurora talhados que fazem ciumentas as beldades em volta e impacientes, os malmequeres por desfolhar. tanto pior para os jardins desertos! no indizível dorme uma cor. ela dorme. Ninguém esboçou o seu nome laranja ou branco. Não, é uma canção pura, mais do que a transparência nas formas de um rosto. Ela toma esse rosto. ele aparece e a brisa enche­­‑se de graça e depois, enfim e sobretudo, dos teus olhos, tu viste a nossa terra! oh cascata, oh flamejante, oh vida manifesta!

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Badr Shâkir AS­ ­‑SAYYÂB. «Canção da chuva», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim.­ 1642­‑1643.

teus olhos dois palmares à hora antes­‑da­­‑alvorada ou duas janelas de que a lua se afastou... quando sorriem eis que brotam as folhas do vergel e dançam as luzes como luas sobre um rio que a ramaria agita docemente à hora de antes­‑da­­‑alvorada e nas suas profundezas palpitam as estrelas.

perdem ­­‑se numa bruma de diáfana amargura como o mar da noite descansa as suas mãos sobre ela a tepidez do outono mistura­­‑se com o arrepio da primavera a morte com o nascimento, a treva com a luz.

então desperta­­‑me um calafrio de choros uma feroz embriaguez estreita o sol no auge da minh’alma semelhante à da criança assustada pela lua como um arco‑íris­­ que bebe as nuvens e gota a gota se funde em chuva. e eis as crianças palrando sob as latadas do vergel e que atormenta o silêncio dos pássaros nas árvores a canção da chuva chuva, chuva, chuva...

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 278 12/06/20 17:18 (5) afectos e emoções 279

Ahmed BARAKÂT. «Uma palavrinha», in Dafâtir al­­‑Khusrân [Cadernos Perdidos]. Tradução inédita de André Simões. Revisão da tradução de Nadia Bentahar. 1998. Rabat: Manshourat Ittihah Kuttab al­­‑Maghreb. 164.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 279 12/06/20 17:18 280 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

BIN WEI. «Içar a bandeira nacional», in zhōng guó­gù shì [Contos da China]. Tradução inédita de Carlos Botão Alves e Li Fei. 2009. Xangai: shǎng hǎi jǐn xiù wén zhāng chū bǎn shè. 379­­‑383.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 280 12/06/20 17:18 286 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Okot p’BITEK. «A mulher com quem partilho o meu marido», in Song of Lawino & Song of Okol. Tradução inédita de Flávia Ba. 1984. Londres: Heinemann. 36­‑41.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 286 12/06/20 17:18 (5) afectos e emoções 295

Anne CARSON. «X. DANÇA DO ENVELOPE DA WESTERN UNION COMO SALTA O CORAÇÃO MAIS DESEJOSO DO QUE PLANTA OU ANIMAL», in A Beleza do Marido. Tradução de Tatiana Faia. [2001] 2019. Lisboa: não (edições). 57­‑60.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 295 12/06/20 17:18 296 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Leonard COHEN. «Toma esta valsa», in I’m Your Man (CD). Tradução inédita de João M.P. Gabriel. [1986]. Montmartre: CBS Records.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 296 12/06/20 17:18 298 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

e.e. CUMMINGS. «soneto­­‑irrealidades [xi]», in Tulips and Chimneys. Tradução inédita de Francisco C. Marques. [1923] 1976. Nova Iorque: Liveright. 140.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 298 12/06/20 17:18 (5) afectos e emoções 299

Jibanananda DAS. «Banalata Sen de Natore», in Inefável: Antologia 2007­ ‑2013. Tradução de Rita Ray. [1942] 2014. Lisboa: Seda Publicações. 29.

Por milhares de anos passeio pelas ruas da terra, Desde o mar do Ceilão até ao mar de Malaia na escuridão da noite Percorri muito; no mundo obscuro de Bimbisara e de Axocá* Ali estava eu; na escuridão mais longínqua da cidade de Bidarva†; Sou uma alma cansada, rodeada pelo mar espumante da vida, A única paz que conheci foi com Banalata Sen de Natore‡. O seu cabelo é escuro como a noite antiquíssima de Bidixá, A sua cara a escultura de Sravasti; o marinheiro que Está desviado no mar alto com o leme quebrado Quando ele vê uma terra de erva verde no meio da ilha de canela Foi assim que a vi na escuridão; ela disse «onde esteve este tempo todo?» Levantando os olhos como o ninho de aves, Banalata Sen de Natore. Ao fim do dia vem a noite como o som de orvalho; a águia apaga o cheiro do sol das suas asas Quando se apagam as cores todas da terra então se forja um manuscrito de contos reluzentes com as cores de pirilampos; Os pássaros todos voltam a casa — desaguam os rios todos no mar — acabam os negócios todos desta vida Resta apenas a escuridão para ficar frente a frente com Banalata Sen.

* Bimbisara e Axocá são reis (muito conhecidos) da história indiana. † Bidarva, Bidixá e Sravasti (referidas adiante) são cidades famosas da Índia histórica. ‡ Banalata é um nome feminino muito comum. Sen (Chen) é um sobrenome bengali de casta alta. Natore é uma cidade no actual Bangladesh.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 299 12/06/20 17:18 300 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Mohammed DIB. «Contraluz», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1577­‑1578.

as aves surgem, acende ­­‑se uma chama eis a mulher.

sem nomes nem laços, nem véu errando de olhos fechados a mulher sob a frescura do mar.

mas bruscamente voltam as aves e alonga­­‑se esta chama mais do que entreapercebida no fundo do quarto.

e é o mar o mar de braços adormecidos transportando o sol, nem oriente nem norte, nem obstáculo nem barra, o mar.

nada, a não ser o mar tenebroso e doce caído das estrelas, testemunha das mutilações do céu, solidão, pressentimentos, sussurros.

nada a não ser o mar. os olhos extintos sem vaga, nem vento, nem vela.

bruscamente de novo as aves, e eis a mulher nem estrela nem sonho, nem géiser, nem as aves voltam e nada mais que o mar.

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Nuruddin FARAH. «Capítulo primeiro», in Maps. Tradução inédita de Flávia Ba. 1986. Nova Iorque: Arcade Publisher. 3­‑6.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 301 12/06/20 17:18 (5) afectos e emoções 305

Bishr FÂRIS. «A uma visitante», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1471.

mesmo se a neve estrelasse a tua fronte eu­ far­‑te­­‑ia, minha querida, mercês e visitas. de onde nasce a beleza da linguagem límpida? o sortilégio está nas sandálias da frase. veludo sombrio sobre seda de nostalgia, contorno miraculoso do sinal, linha encurvada como em desespero ela abafa o ritmo pela sua simples presença, segredo do mais secreto mistério. ao invés dos biombos, vozes dos paraísos perdidos. no maravilhoso escondido profundo, eis o brilho das significações primeiras, pérolas escapadas dos enfiadores de rimas. eis que disso me ofereces os mares, com este percurso longo d’intenções desejadas oferenda velada sob um rosto puro.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 305 12/06/20 17:18 306 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Nadine GORDIMER. «Um gelado para a minha menina querida», in Um Capricho da Natureza. Tradução de Miguel Serras Pereira. [1987] 1989. Lisboa: D. Quixote. 9­‑11.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 306 12/06/20 17:18 (5) afectos e emoções 309

David GROSSMAN. Ver: Amor. Tradução de Lúcia Liba Mucznik. [1986] 2014. Amadora: D. Quixote. 90­­‑95.

Dia após dia. Na sala de leitura de adultos da biblioteca pública, sentava­­ ‑se numa cadeira muito alta para ele, com as pernas a abanar. Tinha dito ao bibliotecário Hillel que estava a preparar um trabalho para a aula sobre o Holocausto, e ninguém mais lhe fez perguntas. Leu livros de história sobre as coisas que os nazis tinham feito, e esbarrou com palavras e expressões que já não se usavam. Ficou horas a olhar para fotografias estranhas sem conseguir minimamente perceber o que lá estava, o que lá se passava ou de quê ou de quem se tratava, mas sentia que aquelas fotos lhe podiam reve‑ lar o princípio do segredo que todos lhe escondiam. Viu fotografias de pais obrigados a escolher entre dois filhos qual dos dois ficaria com eles e qual o que partiria para sempre, e procurou compreender como é que eles tinham podido escolher, viu um soldado a obrigar um velho a montar sobre outro velho como se fosse um cavalo, fotografias de execuções capitais de toda a espécie que nunca pensou poderem existir, e de túmulos nos quais estavam enterrados imensos cadáveres que jaziam nas posições mais estranhas, uns sobre os outros, ou uns com os pés nas caras dos outros, ou com as cabeças de tal maneira torcidas que, por mais que quisesse, Momik não conseguia torcer a sua assim, e então, a pouco e pouco, Momik começou a perceber uma data de coisas novas, tais como, por exemplo, quão frágil é o corpo e como basta querer para ele poder ser quebrado e dobrado em todos os sentidos e de muitas formas, e quão fraca pode ser uma família para quem quiser destruí‑la,­­ pode acontecer de um momento para o outro e para sem‑ pre. Momik saía da biblioteca às seis da tarde morto de cansaço e sem pio. No autocarro que o levava a casa não via nem ouvia nada. Quase todas as manhãs, fugia da escola durante o grande intervalo, e, evitando a rua do quiosque da lotaria, corria até à leitaria de Bela; chega ‑ va lá completamente sem fôlego, puxava­­‑a pelo braço para um canto (para o caso de haver algum cliente) e desatava a fazer­­‑lhe perguntas num sopro que era quase um grito: Os comboios da morte eram o quê, Bela? Porque é que eles também matavam crianças? O que é que sentiam as pessoas quando

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tinham que cavar a sua própria sepultura? Hitler tinha mãe? Eles lavavam‑se­­ mesmo com sabão feito de seres humanos? Onde é que eles matam pessoas, hoje? O que é um «jude»? O que são as experiências sobre seres humanos? E o que é, e como, e porquê, Bela? E Bela, que percebia o quanto aquilo era sério, respondia­­‑lhe a todas as perguntas sem esconder nada, e apenas o seu rosto exprimia tristeza e desespero total. Momik também já estava um pouco inquieto. Não realmente nervoso, mas inquieto. A situação estava a tornar­­‑se cada vez pior de dia para dia, a Besta estava a ganhar, era eviden‑ te, e mesmo que ele já soubesse tudo sobre ela, e que já não fosse o miúdo palerma de nove anos e um quarto que pensava que ela podia sair de dentro de um ouriço ou de um gatinho, ou até de um corvo, o facto é que estava metido numa complicação dos diabos; tinha chegado ao sítio onde a Besta se encontrava, sem compreender como, ou como é que uma coisa daquelas podia acontecer só por pensar e imaginar, mas era óbvio que a Besta existia mesmo, pois ele sentia­­‑a nos ossos, do mesmo modo que Bela sentia que ia chover, e era igualmente claro que fora ele quem estupidamente a acordara do longo sono, e a desafiara a manifestar­­‑se, tal como Yehuda Ken‑Dror­­ pro‑ vocara os egípcios em Mitlé para os incitar a dispararem e a exporem­­‑se, mas Yehuda Ken­­‑Dror tinha amigos que lhe protegiam a retaguarda, e Momik está sozinho, e agora tem que continuar a lutar até ao fim, embora ninguém lhe pergunte se quer ou não, pois sabe muito bem que, se fizer a menor ten‑ tativa para fugir, ela persegui‑lo­­ ­­‑á até ao fim do mundo (tem amigos e espiões em todo o lado), e aí, aos poucos, far­­‑lhe­­‑á o que fez aos outros, mas de uma forma muito mais maquiavélica, e sabe­­‑se lá por quanto tempo ainda ela o vai torturar e qual será o fim de tudo. Mas a verdade é que foi sem a ajuda de ninguém que Momik conseguiu descobrir como fazer sair a Besta de dentro dos animais que estavam na cave, e foi tão simples que até custa a acreditar como é que a ideia não lhe passou antes pela cabeça, pois até a tartaruga sonolenta se lembra logo de que é uma tartaruga quando sente o cheiro das cascas verdes de pepino, e o corvo fica com as penas espetadas quando Momik lhe traz uma perna de galinha, e por‑ tanto é fácil de compreender que a única coisa que Momik tem que fazer agora é mostrar à Besta a comida que ela prefere — um judeu. Começou então a elaborar um plano com cabeça e muita prudência. Em primeiro lugar, copiou as fotografias dos livros da biblioteca para o Cader‑ no e tomou apontamentos que lhe permitiam lembrar­­‑se do aspecto de um judeu, de como é que um judeu olha para os soldados, qual o seu aspecto quando tem medo, quando está num vagão, quando cava uma sepultura. Tomou igualmente apontamentos da sua grande experiência com judeus,

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tais como, de que maneira é que suspiram, como gritam durante o sono, como comem uma perna de galinha e coisas do género. Trabalhou ao mesmo tempo como investigador científico e detective. Eis, por exemplo, o miúdo que está aqui nesta fotografia, com o boné e de braços levantados: Momik tenta adivinhar coisas pelo olhar dele, como por exemplo, qual era o aspec‑ to da Besta quando ele a viu diante de si naquele instante, se sabia assobiar com dois dedos, e se já tinha ouvido dizer que Chodorov não era apenas uma aldeia, mas também um célebre guarda­­‑redes, e o que tinham feito os pais dele para ele estar assim de braços levantados, e o que estavam eles a fazer em vez de o proteger, se era religioso e se coleccionava os selos verdadeiros do país de Lá, e se fazia alguma ideia de que no Estado de Israel, em Beit­­‑Mazmil, havia um miúdo chamado Momik Neuman. Eram tantas as coisas que havia que aprender para se ser um verdadeiro judeu, para ter uma expressão de judeu, e exactamente o mesmo cheiro, como o avô, ou Munine ou Max e Moritz, que, como se sabe é um cheiro ao qual a Besta não consegue resistir, e assim, dia após dia, Momik fica sentado na cave, no escuro, em frente das jaulas, sem fazer quase nada, só a olhar em frente sem ver, e a tentar não ador‑ mecer, porque ultimamente, não sabe bem porquê, anda muito cansado, tem dificuldade em mexer­­‑se e em concentrar­­‑se, e às vezes chega a ter pensa‑ mentos maus, tais como que necessidade tem ele de fazer aquilo tudo, e por‑ que é que precisa de lutar daquela maneira por eles todos, sozinho, e porque é que ninguém o ajuda nem se apercebe do que está a acontecer, nem a mãe nem o pai, nem Bela, nem os colegas de classe, nem a professora Neta, que a única coisa que sabe fazer é gritar com ele e dizer que as notas estão a des‑ cer, a descer, nem Dag Hammarskjöld das Nações Unidas que chegou hoje a Israel e foi ao kibutz Sde Boker para jantar com Ben­­‑Gurion, pois foi este mesmo Dag Hammarskjöld quem criou a Unicef em defesa da criança e que se preocupa em salvar da malária e de toda a espécie de porcarias as crianças da África e da Índia, tem tempo para tudo, menos para a guerra contra a Besta. A verdade se diga que há dias em que Momik está lá sentado na cave meio acordado meio a dormir, e tem inveja da Besta. Sim, sim, inveja­­‑a por ela ser tão forte que nunca se deixa atormentar pela piedade, e porque con‑ segue dormir descansada à noite depois de tudo o que fez, e até parece ter prazer na maldade, como o tio Schimek quando lhe coçam as costas, e talvez ela até tenha razão e não seja tão mau ser­­‑se cruel, muito cruel, a verdade é que, ultimamente, Momik sente por vezes um certo prazer em fazer alguma maldade, e isso acontece­­‑lhe especialmente quando começa a escurecer e ele fica ainda mais apavorado e com mais ódio à Besta e ao mundo inteiro, e de repente sente um calor invadir­­‑lhe o corpo todo, sobretudo o coração e a

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cabeça, e é tanta a força e a crueldade que quase explode, e nesse momento podia atirar­­‑se às jaulas e desfazê­­‑las em pedaços, e rebentar sem piedade com todas as cabeças da Besta, mesmo deixando­­‑se arranhar pelas garras e os dentes dela e todos os seus bicos, e atirar­­‑se a ela com todas as forças para que ela perceba de uma vez por todas o que ele sente, mas se calhar é melhor não, se calhar é melhor matá­­‑la sem se envolver com ela, esmagá­­‑la, desancá­­ ‑la, pisá­­‑la e enchê­­‑la de pontapés, torturá­­‑la, e desfazê­­‑la em mil pedaços, e agora até é possível lançar­­‑lhe uma bomba atómica em cheio no focinho, veio finalmente no jornal o artigo sobre o nosso reactor atómico — esse gigante de aparência aterradora que se ergue nas dunas douradas do areal de Nahal Rubin, perto de Rishon­­‑le‑Zion,­­ e domina orgulhosamente a costa e as tumultuosas vagas azuis, enquanto sobre a sua magnífica cúpula batem alegremente os martelos dos construtores —, é o que vem no jornal Yediot, e embora esteja escrito que é apenas «para fins pacíficos», Momik sabe muito bem ler entre as linhas, como se costuma dizer, e compreende perfeitamente certos sorrisos de Bela, cujo filho é um major de alta patente no exército, fins pacíficos, claro, tudo bem, mas deixem‑nos­­ primeiro mandar pelos ares todos os árabes, psia krew. Apesar daquilo tudo, tem que reconhecer que a Besta não parece muito afectada com as ameaças dele, e às vezes até tem a impressão de que quando fica assim, violento e cheio de ódio, a Besta come‑ ça a sorrir maliciosamente, no escuro, e então ele fica ainda mais assustado e sem saber o que fazer e diz para si, acalma­­‑te, mas por quanto tempo ainda é que terá forças para se manter calmo, e então assusta­­‑se e acorda do seu sonho, olha à sua volta, o cheiro fétido dos animais está tão colado a si que às vezes parece que lhe sai pela boca, e não se levanta do lugar embora se dê conta de que já está completamente escuro, e os pais devem estar mortos de inquietação sem saber do paradeiro dele, por favor, meu Deus, oxalá não tenham a ideia de o vir procurar aqui, era o que mais faltava, é melhor que não venham, e fica ali mais algum tempo, sentado no chão frio, a cair de sono, embrulhado no velho casaco grande do pai, no qual pregou com alfinetes imensas estrelas amarelas em cartão, e quando acorda, volta­­‑lhe a memória e estende em direcção aos animais os dois braços e mostra­­‑lhes os números recortados de bilhetes de lotaria velhos que apanhou à volta do quiosque e colou nos braços, e se aquilo não basta, Momik endireita­­‑se, tosse e suspira e, antes de se levantar e ir para casa, ainda desafia uma última vez a Besta de uma forma mesmo nojenta, virando­­‑lhe as costas e sentando­­‑se mais uns minutos no escuro total, a copiar no seu quarto caderno de geografia algumas linhas do Diário de Anne Frank, que também se escondia da Besta, e sempre que acaba de copiar um desses fragmentos comoventes do livro

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(que roubou da biblioteca pública), a caneta começa a tremer­­‑lhe um pouco na mão e então tem que acrescentar mais umas linhas sobre um menino que se chama Momik Neuman, que também se esconde, luta e tem medo, e o mais curioso é que aquelas linhas soam tal e qual como as dela, como as de Anne, quer dizer.

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Takuboku ISHIKAWA. «O vento nos pinheiros», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de José Alberto Oliveira. [1910] 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1274.

O vento nos pinheiros Sussurra noite e dia Nas orelhas do cavalo de pedra No templo da montanha Onde ninguém reza.

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Yasunari KAWABATA. «A lua na água», in Bungei shunjū, shōwa 28. Tradução inédita de António Barrento. 1953.

Um certo dia, ocorreu a Kyōko mostrar a sua horta ao marido, que estava na cama no segundo andar*, reflectindo‑a­­ no seu espelho de mão. Com isto apenas, pareceu abrir­‑se ao marido acamado uma nova vida. De forma algu‑ ma se podia falar de «isto apenas». O espelho de mão pertencia ao toucador do enxoval de Kyōko. O touca‑ dor não era tão grande quanto isso, mas era de amoreira, e o espelho de mão também o era. Ela lembrou‑­­se do acanhamento do seu tempo de noiva quan‑ do, ao fazer combinar os espelhos, para olhar para a parte de trás do cabelo, a manga da camisa deslizara e o braço ficara exposto até ao cotovelo. Era este o espelho de mão que utilizara. Depois de tomar banho e em outras alturas, o seu marido acostumara­­‑se a­ sacar­‑lhe o espelho de mão, dizendo: «Que desastrada! Agora seguro eu.» Tinha também havido momentos em que ele parecera estar a experimen‑ tar ver reflectida a nuca de Kyōko no toucador a partir de variados ângulos. Parecera ainda por vezes estar a fazer descobertas, pela primeira vez, com o reflexo no espelho. Não se dava efectivamente o caso de Kyōko ser desastra‑ da, mas a verdade é que ela, ao ser observada pelo marido a partir da nuca, tinha ficado tensa. Desde essa altura que não se passara ainda o tempo suficiente para que a cor da madeira de amoreira do espelho de mão, que era mantido dentro de uma gaveta, se tivesse modificado. No entanto, na sequência da guerra, da evacuação† e do estado grave do marido, na altura em que pela primeira vez ocorreu a Kyōko mostrar a horta reflectida, já a superfície do espelho de mão ficara baça e a moldura suja com restos de pó de arroz e com pó. Claro que, como este não estava ao ponto de necessitar de substituição para reflectir os objectos, Kyōko não ficou preocupada. Não ficou também sequer pro‑ priamente apreensiva, não tendo chegado a ter a percepção de como estava.

* No Japão, andar imediatamente superior ao piso térreo. † Dos grandes centros urbanos para as zonas rurais, para escapar aos bombardeamentos, promo‑ vida durante a Segunda Guerra Mundial a partir de Dezembro de 1943.

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No entanto, desde essa altura que o marido, que não largava o espelho de mão da sua cabeceira, o polia, assim como a sua moldura, na perfeição, com um nervosismo de doente que não tinha nada com que se ocupar. Embora o espelho já não estivesse baço, Kyōko via frequentemente o marido a limpá­ ‑lo, soprando‑lhe­­ com o seu bafo. Por vezes pensava que uns bacilos da tuber‑ culose já deveriam ter entrado por umas fendas, imperceptíveis à vista, da moldura que encaixava o espelho. Por vezes também acontecia que, depois de ter aplicado um pouco de óleo de camélia ao cabelo do marido e de o ter penteado, este passava com a palma da mão pelo cabelo e depois esfregava a madeira de amoreira do espelho de mão. Embora a madeira de amoreira do toucador se mostrasse vagamente turva, a do espelho de mão brilhava cada vez mais, de uma forma resplandecente. Quando Kyōko casou novamente, levou consigo o toucador. Contudo, o espelho de mão fora colocado no interior do caixão do seu anterior marido e fora queimado. Em sua substituição, Kyōko acrescentara ao toucador um espelho de mão em kamakura­­‑bori *. Nunca falou sobre este facto ao seu actual marido. Logo a seguir a ter morrido o anterior marido, foram­­‑lhe unidas as mãos e foram‑lhe­­ cruzados os dedos, de acordo com o costume, pelo que, mesmo depois de o guardarem no caixão, não houve possibilidade de fazê­­‑lo segurar o espelho de mão. Este foi colocado sobre o peito. Kyōko murmurou em voz baixa: «Por muito que te tenha doído o peito, mesmo com isto apenas deve ser pesado.» Mudou‑o­­ de posição, colocando‑o­­ por cima da barriga. Como pensava que o espelho de mão tinha sido uma coisa importante na vida de casados dos dois, tinha­­‑o colocado, ao início, por cima do peito. Ao pô­­‑lo no interior do caixão, quis fazer com que, na medida do possível, este não fosse avistado sequer pelos pais e irmãos do marido. Amontoou uma pilha de crisântemos brancos por cima do espelho de mão. Ninguém reparou. Na altura do honea‑ ge†, com o calor do fogo, houve uma pessoa que viu que o vidro do espelho tinha derretido consideravelmente e tinha ficado distorcido numa massa informe, grossa e irregular, que em partes tinha fuligem e em partes estava amarelecida, e disse: «É vidro. O que é que será?»

* Estilo de madeira trabalhada, com aplicação de camadas de laca vermelha ou preta. Originário da cidade de Kamakura, na qual foi estabelecido o primeiro xogunato (1192­‑1333), constitui uma imitação de uma técnica chinesa. † Cerimónia do levantamento dos ossos e fragmentos de ossos dos restos cremados de uma pessoa, através de pauzinhos, e da sua colocação numa urna funerária.

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Na verdade, ela tinha colocado mais um espelho pequeno por cima do espelho de mão. Este era um espelho integrante de um estojo de toilette. Tinha a forma de um pequeno tanzaku* e estava transformado num espelho com os dois lados em vidro. Kyōko tinha tido o sonho de o poder usar na sua viagem de núpcias. No entanto, durante a guerra não tinha sido possível sair em lua de mel. Em vida do seu anterior marido, não tinha sido possível usá‑lo­­ em viagem uma única vez. Foi em viagem de núpcias com o seu posterior marido. Como a pele do estojo de toilette tinha ganhado muito bolor, comprou um novo. Claro que este também incluía um espelho. No primeiro dia da viagem, o marido experimentou tocar em Kyōko e disse: «Pareces uma menina. Pobre pequena!» O tom não era sarcástico, mas antes parecia conter um júbilo imprevis‑ to. Considerando que era um segundo marido, era talvez bom Kyōko estar perto de ser uma menina. No entanto, ao ouvir estas curtas palavras, Kyōko foi assomada de repente por uma violenta tristeza. Transbordaram­­‑lhe dos olhos lágrimas de uma tristeza indescritível e ela encolheu­­‑se. O seu mari‑ do terá talvez pensado que também isto parecia um comportamento de menina. Kyōko estava num estado em que não sabia se tinha chorado por sua própria causa ou por causa do seu anterior marido. Também não era possível saber, com um grau de certeza, por qual destas razões tinha chorado. Ao pen‑ sar nisto, sentiu­­‑se muito mal pelo seu novo marido e pensou que tinha de o namoriscar. De seguida, disse: «Sou diferente... Serei uma coisa assim tão diferente?» Tendo acabado de dizer isto, ficou atrapalhada e um sentimento de ver‑ gonha tomou conta dela como um incêndio que tivesse deflagrado, mas o marido pareceu satisfeito: «Parece que nunca ficaste grávida, não é assim?» Estas palavras, uma vez mais, desferiram um golpe sobre o coração dela. Kyōko deparava­­‑se com a força de um homem diferente do seu anterior marido, mas, mais do que tudo, sentiu uma humilhação, como se estivesse a ser ridicularizada. Teve ainda a intenção de oferecer resistência, mas apenas disse isto:

* Cartão longo e estreito utilizado tradicionalmente para a escrita, no sentido vertical, de poemas japoneses.

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«No entanto, foi como se tivesse estado a tratar de uma criança!» Era como se o seu marido, que tinha tido uma doença prolongada, tives‑ se sido uma criança que tivesse estado dentro dela, isto mesmo depois de ter morrido. No entanto, se era para ele morrer de qualquer forma, que papel teria afinal desempenhado a rigorosa austeridade que ela tinha seguido? «Só cheguei a ver Mori a partir da janela do comboio na linha Jōetsu.»* O novo marido puxou Kyōko novamente para si, abraçando­­‑a ao pro‑ nunciar o nome da cidade natal dela. «Pelo nome, parece ser uma cidade bonita no meio de uma floresta. Até que idade lá estiveste?» «Foi até sair da escola para raparigas. Fui destacada para a fábrica de guerra em Sanjō.» «Estou a ver que era perto de Sanjō. Fala­­‑se das mulheres bonitas de Sanjō, da zona de Echigo, mas é então por isso que o teu corpo é bonito também.» «Não é bonito.» Kyōko levou as mãos ao peito, junto do coração. «Como as tuas mãos e os teus pés são bonitos, pensei que o corpo tam‑ bém seria.» «Não.» Kyōko, para quem as mãos ao peito se haviam afinal tornado um incó‑ modo, retirou­­‑as suavemente. O marido disse­­‑lhe, junto ao ouvido: «Penso que teria casado contigo, Kyōko, mesmo que tivesses tido uma criança. Tê­­‑la‑ia­­ adoptado e tê­­‑la‑ia­­ amado. Se tivesse sido uma menina, melhor.» Teria sido porque ele próprio tinha um filho que o dissera, mas, mesmo que fosse como expressão do seu amor que o fizera, isto soou de forma estra‑ nha aos ouvidos de Kyōko. E, no entanto, o facto de ele ter feito o favor de estender a viagem de núpcias até um longo período de dez dias teria sido até possivelmente por consideração, uma vez que ele tinha um filho em casa. O marido tinha um estojo de toilette para viagem, em pele, que parecia de primeira qualidade. O de Kyōko não se lhe comparava. O dele era grande e tinha um ar sólido. Isto por muito que não fosse novo. Fosse isto porque o marido viajava muito ou porque tomava bem conta dele, a verdade é que irra‑ diava um lustro envelhecido. Kyōko lembrou­­‑se do seu próprio, velhinho,

* Linha de comboio que liga as regiões de Kantō e Chūbu na ilha de Honshū, cuja designação remete para o nome de uma das regiões servidas pela linha, sendo que o mesmo identifica simulta‑ neamente uma cidade próxima de Niigata.

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que afinal nunca tinha utilizado e que tinha deixado apanhar bolor terrivel‑ mente. Só tinha permitido ao anterior marido utilizar o espelho que havia no seu interior, dando‑lhe­­ este para o acompanhar para o outro mundo. O pequeno vidro que continha tinha­­‑se fundido, nas chamas, por cima do espelho de mão e tinha‑se­­ juntado ao vidro deste formando um só, de tal forma que não havia ninguém para além de Kyōko que parecesse ter perce‑ bido que se tinha tratado de duas coisas. Como Kyōko não tinha sequer dito que a estranha massa de vidro tinham sido espelhos, como poderiam alguma vez ter existido familiares que o tivessem suspeitado? No entanto, Kyōko sentia que os múltiplos mundos projectados nos dois espelhos os tinham impiedosamente acompanhado no fogo. Sentia a mesma perda de quando o corpo do seu marido havia sido reduzido a cinzas. Aquilo através do qual Kyōko mostrara reflectida a horta pela primeira vez fora o espelho de mão que acompanhava o toucador, e o seu marido não o largara da sua cabeceira. Mas até o espelho de mão tinha parecido demasiado pesado para o doente e Kyōko tinha tido de massajar os braços e os ombros do seu marido. Tinha‑lhe­­ passado para as mãos um espelho leve e pequeno. Aquilo que o marido, enquanto em vida, tinha observado reflectido nos dois espelhos não tinha sido apenas a horta de Kyōko. Estes também tinham reflectido o céu, as nuvens, a neve, as montanhas distantes e as florestas pró‑ ximas. E ainda a lua. E ele tinha também observado no interior dos espelhos as flores selvagens e as aves em migração. Havia pessoas que tinham atraves‑ sado os caminhos no interior dos espelhos e crianças que tinham brincado nos jardins no interior dos espelhos. Kyōko surpreendia­­‑se com a vastidão e a riqueza do mundo visível no interior do pequeno espelho. Embora o espelho tivesse tido apenas a função de instrumento de maquilhagem, de uma coisa para recompor a aparência — isto já para não falar que era um espelho de mão —, de uma coisa que mais não servira do que para reflectir a parte de trás da cabeça e do pescoço, tinha‑se­­ tornado numa nova natureza e humanidade para o doente. Kyōko sentava­­‑se à cabeceira do marido e, enquanto espreitava para o espelho, em conjunto com ele, conversavam sobre o mundo reflectido neste. Num breve espaço de tempo, a própria Kyōko passou a não distinguir o mundo que via directamente com os seus olhos e o mundo que via reflectido no espelho. Passaram a existir dois mundos separados. Kyōko passou a pensar até que um novo mundo tinha sido criado dentro do espelho e que era esse, dentro do espelho, que era o mundo real. «No espelho, o céu brilha com cor prateada», disse Kyōko. Depois, levan‑ tando os olhos e observando o exterior pela janela, acrescentou:

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«Embora esteja um céu enublado, de cor cinzenta…» O céu do espelho não tinha o aspecto opaco e carregado deste. Brilhava verdadeiramente. «Será por estares tão frequentemente a polir o espelho?» O marido, mantendo‑se­­ deitado tal como estava, moveu a cabeça e con‑ seguiu ver o céu. «Pois é. É de um cinzento baço. No entanto, a cor do céu não é vista necessariamente de igual forma pelos olhos dos humanos e, por exemplo, pelos olhos dos cães ou dos pardais. E não se sabe que olhos viram aquilo que é verdadeiro.» «Aquilo que está dentro do espelho… é o olho do espelho…?» Kyōko quis chamar a isso o olho do amor dos dois. O verde das árvores de dentro do espelho parecia mais viçoso até do que o real e o branco dos lírios parecia mais vivo até do que o real. O marido chamou a atenção para a ponta do espelho: «Esta é a impressão digital do teu polegar, Ky ōko, do teu polegar direito…» Kyōko ficou algo admirada. Soprou sobre o espelho e nisto fez desapare‑ cer a impressão digital. «Não há problema. Mesmo da primeira vez em que me mostraste a horta, Kyōko, a tua impressão digital ficou no espelho.» «Não dei por isso.» «Não terias dado por isso, Kyōko. Graças a este espelho, acabei por com‑ pletamente memorizar as impressões digitais do teu polegar e do teu indi‑ cador. Só ao nível de um doente que sofra de uma longa enfermidade é que alguém fará uma coisa tal como seja a de memorizar as impressões digitais da própria esposa.» Não tinha havido altura nenhuma, depois de o marido casar com Kyōko, em que tivesse sido possível dizer­­‑se que ele tinha feito alguma coisa além de estar doente. No tempo da guerra, nem sequer tinha combatido. Quando já se aproximava o fim da guerra, tinha sido mobilizado, mas, apenas no espaço de alguns dias em que tinha trabalhado na construção de um campo de aviação, tinha ficado doente e, em altura coincidente com o fim da guerra, tinha voltado para casa. Como não conseguia andar, Kyōko tinha ido recebê‑lo­­ com o irmão mais velho dele. Depois de ter sido destacado como soldado, Kyōko tinha ido viver, ao abrigo do plano de evacuação, para junto dos seus pais. As bagagens do marido e dela tinham, na sua maior parte, sido previamente transportadas para esse local. A casa onde estes tinham iniciado a sua vida de casados tinha sido destruída pelo fogo. Eles tinham então arrendado uma divisão na casa de

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uma pessoa amiga de Kyōko e o marido deslocava‑se­­ todos os dias para o traba‑ lho. Um mês e pouco na casa de núpcias e depois cerca de dois meses, não mais, na casa da pessoa amiga: tinha sido este apenas o período de tempo durante o qual Kyōko tinha vivido com o marido sem ele estar doente. Decidiu­­‑se que o marido arrendaria uma pequena casa localizada numa zona de altitude e aí convalesceria. Nessa casa tinham também estado famí‑ lias evacuadas, mas, como tinha acabado a guerra, tinham regressado para Tóquio. Kyōko tomou conta da horta dos refugiados. Era um quintal de ervas daninhas onde apenas se cavava a terra num quadrado de três por três ken*. Sendo esta uma zona de campo, estava posta de parte a hipótese de eles não poderem comprar os seus próprios vegetais, mas, numa altura em que dificilmente se deixava de lado os preciosos terrenos, Kyōko ia para o quin‑ tal e dedicava­­‑se ao trabalho. Desenvolveu um interesse pelos vegetais que tinha passado a cultivar com as próprias mãos. Não que se quisesse afastar das redondezas do marido doente. No entanto, coisas como costurar ou tri‑ cotar deprimiam­­‑na. Enquanto estava a trabalhar no campo, por muito que nele pensasse à mesma, ficava com esperanças mais radiosas. Ia para a horta para, livre de outros pensamentos, se submergir no amor que tinha para com o seu marido. Mesmo a leitura era só em voz alta à cabeceira do marido. Kyōko também pensou que na horta poderia recuperar uma parte de si pró‑ pria que parecia estar a perder de várias formas em virtude do cansaço com a assistência na doença. A mudança para a zona de altitude foi em meados de Setembro mas, depois de os veraneantes se terem retirado, abateram­­‑se, de modo continua‑ do, umas longas chuvadas de início de Outono, ligeiramente frias e melancóli‑ cas. Antes do pôr­­‑do‑sol­­ de um certo dia, o céu clareou por entre o piar límpi‑ do de um passarinho. Quando Kyōko foi para a horta, que estava trespassada por uma forte luz do sol, os vegetais verdes resplandeciam. Ela ficou extasiada com umas nuvens cor de pêssego nos cumes das montanhas. Desconcertou­­ ‑se, entretanto, ao ouvir a voz do marido, e, ao subir ao segundo andar, com as mãos ainda cheias de terra, o marido largou um suspiro doloroso. «Chamei tanto. E, mesmo assim, não conseguias ouvir?» «Desculpa. Não conseguia!» «Faz­­‑me um favor e deixa a horta. Bastam cinco dias em que te chame desta maneira e acabo por morrer. E a primeira coisa que se passa, Kyōko, é que não consigo ver onde e o que estás a fazer.»

* Medida tradicional japonesa correspondente a seis shaku, ou seja, aproximadamente 1,808 metros.

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«Estava no jardim. Mas já vou desistir da horta.» O marido acalmou‑­­se. «Ouviste o chapim‑car­­ voeiro a piar?» A razão pela qual o marido tinha chamado tinha sido só para isso. E jus‑ tamente enquanto estava a contar isto, o chapim‑car­­ voeiro piou novamen‑ te num bosque próximo. Esse bosque sobressaía no crepúsculo vespertino. Kyōko lembrou­­‑se do pio do pássaro chamado chapim­­‑carvoeiro. «Se houvesse uma coisa que tocasse como uma campainha, era um des‑ canso, não achas? Até eu comprar uma campainha, que tal se eu colocar na cabeceira alguma coisa para atirares?» «Atiro uma chávena do segundo andar? Isso parece interessante, que dizes?» Ficou então estabelecido que Kyōko poderia continuar a trabalhar no campo. Porém, a ideia de mostrar ao marido a horta reflectida no espelho já ocorreu depois de ultrapassado o longo Inverno rigoroso da zona de altitude e da chegada da Primavera. Através de um espelho, o doente vivia uma alegria que era como se um mundo de folhagem fresca tivesse ressuscitado. Kyōko retirava os insectos dos vegetais e estes não apareciam reflectidos no espelho, como seria de esperar. Kyōko tinha então de agarrar neles e ir mostrar­‑lhos ao segundo andar, mas, enquanto ela cavava a terra, o marido dizia: «Também consigo ver as minhocas no espelho, sabias?» Nas alturas de inclinação da luz do sol, acontecia por vezes a Kyōko ficar iluminada na horta de repente e, quando esta erguia os olhos para o segundo andar, via o marido a fazer reflectir a luz do sol com o espelho. O marido tinha dito a Kyōko para converter o kasuri* azul­­‑escuro dos seus tempos de estudante num monpe† para ela. Ele parecia ter prazer em vê‑la­­ aparecer no interior do espelho vestida com este e a trabalhar laboriosamente no campo. Kyōko sabia que era vista pelo marido no interior do espelho e, enquan‑ to uma metade sua pensava nisto e a outra se esquecia deste facto, trabalhava na horta. O coração de Kyōko acalorou‑­­se com o quanto parecia ter mudado desde o seu tempo de noiva, altura em que se tinha acanhado com o facto de o cotovelo ter ficado exposto nos espelhos colocados um frente ao outro. No entanto, independentemente desta referência à maquilhagem rea‑ lizada com espelhos combinados, a verdade é que, como se estava em plena

* Tecido tradicional japonês com fibras tingidas especificamente para criarem padrões geométri‑ cos e imagens. † Calças folgadas, usadas tradicionalmente pelas mulheres camponesas japonesas, que se tornou um dos estilos aprovados pelo governo como roupa padrão durante a Segunda Guerra Mundial.

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altura da derrota na guerra, também não parecia haver situações que justi‑ ficassem que Kyōko aplicasse cosméticos à vontade. Após este período, no contexto de uma vida restrita à assistência na doença e ainda ao luto pelo marido, só depois de voltar a casar é que Kyōko passara a utilizar maquilha‑ gem à sua vontade. A própria Kyōko percebia que estava a ficar visivelmente bonita. Veio a pensar que era verdade aquilo que o actual marido tinha dito no primeiro dia, sobre o corpo dela ser bonito. Depois de tomar banho, por exemplo, Kyōko já não ficava envergonha‑ da com o reflexo da sua pele no toucador. Via a sua própria beleza. Todavia, também não tinha desaparecido até agora o sentimento distintivo da bele‑ za dentro do espelho que o seu anterior marido lhe tinha incutido. Isto não queria dizer que ela não confiasse na beleza que via dentro do espelho. Muito pelo contrário, não duvidava de que existisse um mundo diferente dentro do espelho. Contudo, não havia entre a pele que via directamente e a pele que via reflectida no espelho do toucador com os próprios olhos a diferença que existia entre o céu cinzento e aquele que chegava a brilhar com uma cor pra‑ teada dentro do espelho de mão. Não era talvez só a diferença da distância. Eram talvez a saudade e a felicidade associadas ao anterior marido acamado que estavam a exercer o seu efeito. Sendo esse o caso, quão bonita teria pare‑ cido Kyōko na horta dentro do espelho de mão do marido no segundo andar? Isso agora já não havia forma de ela saber. A verdade é que, mesmo em vida do anterior marido, ela não tinha sabido. Kyōko, mais do que ter uma lembrança, sentia uma ânsia pela imagem de si própria dedicada ao trabalho na horta, dentro do espelho que o mari‑ do, antes de morrer, tinha segurado na mão — e, por exemplo, pelo anil das comelináceas ou pelo branco dos lírios dentro deste espelho, e pelos ban‑ dos de crianças das aldeias nas suas brincadeiras pelos campos, e pelo sol da manhã a erguer­­‑se nas longínquas montanhas com neve, em suma, por coisas de um mundo separado que tinha partilhado com o seu anterior mari‑ do. Kyōko, em atenção ao seu actual marido, reprimia este sentimento, que parecia estar a transformar­­‑se num desejo ardente, e fazia um esforço por pensar que se tratava até de uma visão distante do mundo dos kami *. Uma certa manhã de Maio, Kyōko ouviu o canto de pássaros selvagens na rádio. Era uma transmissão a partir de uma montanha próxima da zona de altitude onde tinha vivido até o marido anterior morrer. Depois de acom‑ panhar até à porta o actual marido que ia para o trabalho, Kyōko extraiu do

* Entidades do mundo sobrenatural associadas a seres humanos, animais, plantas e outras reali‑ dades, tais como montanhas e rios, integrantes do xintoísmo, termo cujo significado literal é o de caminho dos kami.

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toucador o espelho de mão e experimentou reflectir o céu completamente limpo. De novo observou a sua própria cara dentro do espelho de mão. Des‑ cobriu uma coisa enigmática. Não era capaz de ver a sua própria cara a não ser que a reflectisse no espelho. Só a sua própria cara é que não era capaz de ver por si própria. Confiava em que fosse a sua própria cara aquela que via, directamente com os seus olhos, a cara reflectida no espelho, e em que todos os dias tocava. Esteve algum tempo absorta a pensar por que razão os kami teriam criado as pessoas de forma a que não fossem capazes de ver por si pró‑ prias as suas próprias caras. «Se fosse capaz de ver a minha própria cara, pergunto­­‑me se não enlou‑ queceria. Pergunto­­‑me se não deixaria de ser capaz de fazer fosse o que fosse.» No entanto, talvez os seres humanos tivessem vindo a evoluir no sentido de serem incapazes de verem as próprias caras. Kyōko pensou que talvez os pirilampos, os louva­­‑a­­‑deus e outros fossem capazes de ver as próprias caras por si próprios. A própria cara, que era aquilo que havia de mais próprio, parecia, de alguma forma, ser uma coisa para mostrar aos outros. Não se pareceria isto com o amor? Enquanto Kyōko arrumava o espelho de mão no toucador, saltou­­‑lhe à vista, ainda agora, a incongruência da combinação do kamakura­­‑bori com a amoreira. Como o espelho de mão se tinha sacrificado pelo anterior marido, talvez se pudesse comparar o toucador a uma viúva. Porém, o facto de ter transmiti‑ do ao marido acamado esse espelho de mão, que era além do mais um pequeno espelho, tinha na verdade os seus benefícios e malefícios. Isto porque o marido via continuamente reflectida a sua cara. Será que o facto de continuamente se surpreender com a deterioração da sua doença, que via na cara dentro do espelho, não seria algo de semelhante a deparar­­‑se com a cara de um kami da morte? Se isto fosse um suicídio psicológico por meio de um espelho, significa‑ va então que Kyōko estava a perpetrar um assassínio psicológico. Houve uma altura em que esse malefício veio à mente de Kyōko e em que fez então tenções de retirar o espelho ao marido, mas era já impossível ele deixá‑lo­­ ir. «Então vais fazer com que eu não possa ver nada? Durante o tempo em que eu for vivo, quero ir continuando a amar toda e qualquer coisa que for capaz de ver!», disse o marido. O marido teria possivelmente sacrificado a sua vida para fazer existir o mundo dentro do espelho. Depois de grandes chuvadas, uma das coisas que faziam era contemplar a lua projectada nas poças de água do jardim, através do seu reflexo no espelho. No entanto, esta

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lua, que estava longe de se poder sequer chamar uma sombra de uma sombra, flutuava ainda agora claramente no coração de Kyōko. Quando o segundo marido disse que «um amor saudável não reside senão numa pessoa saudável», naturalmente que Kyōko acenou com a cabeça de forma tímida, mas, no fundo do seu coração, também havia um elemento de discordância. Na altura em que o marido doente havia morrido, tinha pen‑ sado sobre que tipo de papel tinha desempenhado a sua rigorosa austeridade com ele. Porém, passado algum tempo, a austeridade tinha­­‑se tornado uma dolorosa memória de amor, ela tinha passado a pensar que os dias e os meses dessa memória tinham sido repletos de amor, e os arrependimentos tinham desaparecido. Será que o segundo marido não via o amor das mulheres de uma forma demasiadamente simples? Kyōko perguntou‑lhe:­­ «Sendo tu uma pessoa de bom coração, porque é que te separaste da tua mulher?» O marido não respondeu. Ela tinha‑se­­ casa‑ do com ele porque tinha sido insistentemente aconselhada a tal pelo irmão mais velho do seu anterior marido. Havia pouco mais de quatro meses que se davam. Tinham uma diferença de 15 anos de idade. Quando Kyōko ficou grávida, ficou de tal forma assustada que a sua fisionomia se alterou. «Tenho medo, tenho medo», dizia, agarrando‑se­­ ao marido. Sofrendo de terríveis náuseas matinais por causa da gravidez, chegou mesmo a ficar per‑ turbada mentalmente. Fazia coisas como sair descalça para o jardim e arran‑ car agulhas dos pinheiros, e ainda entregar ao enteado duas caixas bentō *, ambas com porções de arroz, para levar para a escola. Pensava que de repente tinha passado a ver através do espelho de mão com kamakura­­‑bori no inte‑ rior do toucador e ficava a contemplá­­‑lo. Levantando‑se­­ uma vez durante a noite, sentou­­‑se no futon† e olhou para baixo para a cara do marido adorme‑ cido. Enquanto se atormentava com pavores, como por exemplo o relativo ao facto de a vida humana ser uma coisa trivial, desapertou o cinto do seu roupão de dormir. Pelos seus gestos, parecia ir estrangular o marido. Mas, de repente, soltou um ai e desfez­­‑se convulsivamente em lágrimas. O marido acordou e atou­­‑lhe gentilmente o cinto. Era uma noite de pleno Verão mas Kyōko tremia como se fosse de frio.

* Termo que significa «conveniente» e que designa um tipo de refeição destinada a consumo fora do local de origem e disposta num tabuleiro compartimentado. Com origem numa prática dis‑ seminada durante a dinastia Song na China, da qual se difundiu para o Japão durante o xogunato de Kamakura, inclui tradicionalmente arroz ou massa, peixe ou carne, vegetais cozidos e pickles. † Conjunto composto por um colchão e uma coberta, que servem tradicionalmente de cama no Japão.

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«Kyōko, confia na criança que tens dentro do ventre», disse o marido, embalando os ombros de Kyōko. O médico aconselhou a que ela desse entrada no hospital. Kyōko estava relutante, mas foi convencida a isso. «Já que vou ficar no hospital, deixe­­‑me ir por favor, antes disso, à minha terra natal, só uns dois ou três dias!» O marido foi acompanhá­­‑la até à casa dos pais. No dia seguinte, Kyōko fugiu e foi para a zona de altitude onde tinha vivido com o anterior marido. Era no princípio de Setembro, dez dias mais cedo do que a data em que se tinha para ali mudado com ele. Ainda no comboio, Kyōko sentiu uma náu‑ sea, uma tontura e um impulso de saltar do comboio mas, ao sair da estação na zona de altitude e sentir na pele o ar fresco, ficou agradavelmente alivia‑ da. Voltou a si, como se uns espíritos malignos se tivessem apossado dela e a tivessem agora largado. Estacou, maravilhada, e olhou ao seu redor para as montanhas que circundavam o planalto. Os contornos no céu das monta‑ nhas azuis, cuja cor se estava a transformar num azul escuro, estavam vibran‑ tes e sentiu neles um mundo vivo. Enquanto limpava os olhos, que se tinham enchido de lágrimas mornas, foi caminhando em direcção à casa que tinha sido a base da vida deles. Da floresta, que surgia suspensa numa projecção de noite cor de pêssego de certos dias, ouvia­­‑se também hoje o piar de um chapim­­‑carvoeiro. Alguém vivia na casa e via­­‑se uma cortina de renda branca na janela do segundo andar. Kyōko observava, sem se aproximar demasiado. Murmurou de repente algo que provavelmente a surpreendeu a ela pró‑ pria: «E o que fazer, se a criança for parecida contigo?» Contudo, voltou para trás, com um sentimento caloroso e tranquilo.

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Irving LAYTON. [Eu seria, por ti, gentil], in Selected Poems. Traduço inedita de Francisco C. Marques. [1955] 1977. Nova Iorque: New Directions. 39.

Texto sujeito a direitos de autor.

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Fatiha MORCHID. «Navegação», in ’Îmâ’ât [Gestos]. Tradução inédita de André Simões. Revisão da tradução de Nadia Bentahar. A partir de versão online [disponível em https://www.poetryinternational.org/pi/poem/3908/ auto/0/0/Fatiha­­‑Morchid/Sailing/en/tile: acedido a 24 de Fevereiro de 2020]. 2002. Casablanca: Dar ath­­‑thaqâfah.

Texto sujeito a direitos de autor.

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Pablo NERUDA. «Poema XX», in Antologia. Tradução de José Bento. [1924] 1973. Porto: Inova. 19­‑20.

Texto sujeito a direitos de autor.

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Horácio QUIROGA. «O Solitário», in Cuentos de amor, de locura y de muerte. Tradução inédita de Mitzi Guerrero. [1917] 2010. Buenos Aires: Turmalina. 32­ ­‑36.

Kassim era um homem enfermiço, joalheiro de profissão, ainda que não tives‑ se loja estabelecida. Trabalhava para as grandes casas, sendo a sua especiali‑ dade a montagem de pedras preciosas. Havia poucas mãos como as suas para os engastes delicados. Com mais rasgo e habilidade comercial, teria sido rico. Mas aos trinta e cinco anos prosseguia na sua sala, montada em ateliê sob a janela. Kassim, de corpo franzino, rosto exangue ensombrado pela rala barba preta, tinha uma mulher formosa e passional. A jovem, criada na rua, tinha aspirado com a sua formosura a um enlace mais alto. Esperou até aos vinte anos, a provocar os homens e as suas vizinhas com o seu corpo. Temerosa, enfim, aceitou nervosamente Kassim. Acabaram os sonhos de luxo, no entanto. O seu marido, ainda que hábil artista, carecia completamente de carácter para fazer fortuna. Por esta razão, enquanto o joalheiro trabalhava dobrado sobre as suas pinças, ela, de cotovelos pousados, mantinha sobre o seu marido um lento e pesado olhar, para logo despertar bruscamente e seguir com a vista, por detrás dos vidros, o transeunte distinto que poderia ter sido o seu marido. Tudo quanto Kassim ganhava, porém, era para ela. Aos domingos tra‑ balhava também, com o fim de poder oferecer­‑lhe um suplemento. Quando Maria desejava uma jóia — e com quanta paixão desejava ela! — trabalhava de noite. Depois ficava com tosse e pontadas nas costas; mas Maria tinha os seus brilhantes. Pouco a pouco o trato diário com as gemas chegou a fazer­‑lhe amar as tarefas do artífice, e seguia com ardor as íntimas delicadezas do engaste. Mas quando a jóia estava concluída — tinha de partir, não era para ela — caía mais profundamente na decepção do seu matrimónio. Experimentava a jóia, detendo ­­‑se diante do espelho. No fim, deixava­­‑a por ali, e ia para o quarto. Kassim levantava­‑se ao ouvir os seus soluços e achava­‑a na cama, sem querer escutá ‑lo.­­ — Faço, porém, tudo o que posso por ti — dizia ele no fim, tristemente.

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Os soluços aumentavam com isto, e o joalheiro reinstalava‑se­­ lentamen‑ te no seu banco. Isto repetiu‑se tanto que Kassim não se levantava já para a consolar. Consolá­­‑la! Do quê? O que não impedia que Kassim prolongasse mais as suas vigílias, com vista a um maior suplemento. Era um homem indeciso, irresoluto e calado. Os olhares da sua mulher detinham­­‑se agora com mais pesada fixidez sobre aquela muda tranquilidade. — E és um homem, tu! — murmurava. Kassim, sobre os seus engastes, não cessava de mover os dedos. — Não és feliz comigo, Maria — dizia por vezes. — Feliz! E tens a coragem de dizê‑lo!­­ Quem pode ser feliz contigo? Nem a última das mulheres!… Pobre diabo! — concluía com riso nervoso, indo‑se.­­ Kassim trabalhou essa noite até às três da manhã, e a sua mulher rece‑ beu logo novos brilhantes, que considerava por um instante com os lábios apertados. — Sim… é um diadema surpreendente!… quando o fizeste? — Desde terça­­‑feira — olhava­­‑a ele com descorada ternura — dormias de noite… — Oh, podias ter­­‑te deitado!… Imensos, os brilhantes! A sua paixão eram as volumosas pedras que Kassim montava. Seguia o trabalho com louca fome que este concluísse de uma vez, e mal colocava a jóia, corria com ela ao espelho. E, depois, um ataque de choro. — Todos, qualquer marido, o pior, faria um sacrifício para adular a sua mulher! E tu… e tu… nem um miserável vestido para usar tenho! Quando se franqueia certo limite de respeito pelo homem, a mulher pode chegar a dizer ao seu marido coisas incríveis. A mulher de Kassim franqueou esse limite com uma paixão igual pelo menos à que sentia pelos brilhantes. Uma tarde, ao guardar as suas jóias, Kas‑ sim notou a falta de um alfinete — cinco mil pesos em dois solitários. Procu‑ rou nas suas gavetas de novo. — Não viste o alfinete, Maria? Deixei‑o­­ aqui. — Sim, vi‑o.­­ — Onde está? — virou­­‑se espantado. — Aqui! A sua mulher, os olhos acesos e a boca zombeteira, erguia‑se­­ com o alfi‑ nete posto. — Fica­­‑te muito bem — disse Kassim aos poucos —. Guardemo­­‑lo. Maria riu­­‑se. — Oh, não! É meu. — Piada?…

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— Sim, é piada! É piada, sim! Como te dói pensar que poderia ser meu…! Amanhã dou­­‑to. Hoje vou ao teatro com ele. Kassim calou­­‑se. — Fazes mal… Poderiam ver­­‑te. Perderiam toda a confiança em mim. — Oh! — concluiu ela com fúria, batendo violentamente a porta. Ao regressar do teatro do teatro, colocou a jóia sobre a mesa de cabe‑ ceira. Kassim levantou­­‑se e trancou‑a no seu ateliê. Ao voltar, a sua mulher estava sentada na cama. — Quer dizer, temes que ta roube! Que seja uma ladra! — Não olhes assim para mim… Foste imprudente, nada mais. — Ah! E a ti confiam­­‑to! A ti, a ti! E quando a tua mulher te pede um pouco de elogios, e quer… Chamas ladra a mim! Infame! Dormiu, por fim. Mas Kassim não adormeceu. Entregaram depois a Kassim, para montar, um solitário, o brilhante mais admirável que já tinha passado pelas suas mãos. — Olha, Maria, que pedra. Nunca vi outra igual. A sua mulher não disse nada; mas Kassim sentiu­­‑a respirar profunda‑ mente sobre o solitário. — Uma água admirável… — prosseguiu ele. — Deve custar nove ou dez mil pesos. — Um anel! — murmurou Maria no fim. — Não, é de homem… Um alfinete. À medida que ia montando o solitário, Kassim sentia sobre as suas cos‑ tas trabalhadoras como ardia de rancor e atracção frustrada a sua mulher. Dez vezes por dia interrompia o seu marido para ir com o brilhante ao espe‑ lho. A seguir, experimentava­­‑o com diferentes vestidos. — Se pudesses fazê‑lo­­ depois… — atreveu‑se­­ Kassim. — É um trabalho urgente. Esperou resposta em vão; a sua mulher abria a varanda. — Maria, podem ver­­‑te! — Toma! Aí está a tua pedra! O solitário, violentamente arrancado, rolou pelo chão. Kassim, lívido, recolheu­­‑o e examinou­­‑o, e levantou imediatamente o olhar do chão para a sua mulher. — E então, porque olhas assim para mim? Aconteceu algo à tua pedra? — Não — repôs Kassim. E retomou logo a sua tarefa, ainda que as mãos lhe tremessem até dar pena. Mas teve de se levantar por fim, ao ver a sua mulher no quarto de dormir, em plena crise de nervos. O cabelo tinha‑se­­ soltado e os olhos saiam‑lhe­­ das órbitas.

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— Dá­­‑me o brilhante! — clamou. — Dá­­‑mo. Escaparemos! Para mim! Dá­­‑mo! — Maria… — tartamudeou Kassim, tentando soltar­­‑se. — Ah! — rugiu a sua mulher enlouquecida. — Tu é que és um ladrão, mise‑ rável! Tens­­‑me roubado a minha vida, ladrão, ladrão! E achavas que não me ia soltar… Cornudo! Ah, ah! Olha para mim… Não se te tinha ocorrido nunca, eh? Ah! — E levou as duas mãos à garganta afogueada. Mas quando Kassim se ia embora, saltou da cama e caiu, conseguindo apanhá­­‑lo por um botim. — Não interessa! O brilhante, dá­­‑mo! Não quero mais do que isso! É meu, Kassim miserável! Kassim ajudou­­‑a a levantar­­‑se, lívido. — Estás doente, Maria. Depois falaremos… deita‑te.­­ — O meu brilhante! — Bom, vamos ver, se for possível… deita­­‑te. — Dá­­‑mo! A bola subiu-lhe de novo à garganta. Kassim voltou a trabalhar no seu solitário. Como as suas mãos tinham uma precisão matemática, faltavam poucas horas já. Maria levantou­­‑se para comer, e Kassim teve a solicitude de sempre para com ela. No fim do jantar, a sua mulher olhou‑o­­ de frente. — É mentira, Kassim — disse­­‑lhe. — Oh! — retornou Kassim a sorrir — não é nada. — Juro­­‑te que é mentira! — insistiu ela. Kassim sorriu de novo, tocando­­‑lhe a mão com um tosco carinho. — Louca! Digo‑te­­ que não me lembro de nada. E levantou‑se­­ para prosseguir com a sua tarefa. A sua mulher, com a cara entre as mãos, seguiu‑o­­ com o olhar. — E não me diz mais do que isso… — murmurou. Sentindo uma profun‑ da náusea pela coisa pegajosa, mole e inerte que era o seu marido, foi para o quarto. Não dormiu bem. Acordou, tarde já, e viu luz no ateliê; o seu marido continuava a trabalhar. Uma hora depois, este ouviu um alarido. — Dá­­‑mo! — Sim, é para ti; falta pouco, Maria — replicou impetuoso, levantando­­ ‑se. Mas a sua mulher, depois desse grito de pesadelo, adormeceu de novo. Às duas da manhã, Kassim conseguiu dar por terminada a sua tarefa; o bri‑ lhante resplandecia, firme e varonil no seu engaste. Com andar silencioso foi ao quarto e acendeu a vela. Maria dormia de costas, na brancura gelada da sua camisola e do lençol.

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Foi ao ateliê e voltou de novo. Contemplou por um momento o seio quase descoberto, e com um descolorado sorriso afastou um pouco mais a camisola desprendida. A sua mulher não o sentiu. Não havia muita luz. O rosto de Kassim adquiriu de repente uma dura imobilidade, e após suspender por um instante a jóia à flor do seio nu, afun‑ dou, firme e perpendicular como um cravo, o alfinete inteiro no coração da sua mulher. Houve uma brusca abertura de olhos, seguida de um lento descair de pálpebras. Os dedos arquearam­­‑se, e mais nada. A jóia, sacudida pela convulsão do gânglio ferido, tremeu um instante desequilibrada. Kassim esperou um momento; e, quando o solitário ficou por fim perfeitamente imóvel, conseguiu então retirar­­‑se, fechando atrás de si a porta sem fazer barulho.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 335 12/06/20 17:18 336 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Rabindranath TAGORE. «Se é que assim desejas», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Victor de Sá Coelho. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1152­­‑1153.

Se é que assim desejas, se for assim do teu gosto, cessarei de cantar! Se com isso agitar teu coração, do meu olhar o triste brilho desviarei do teu rosto E se eu, de súbito, te assustar no teu passeio despreocupado, afastar­­‑me­­‑ei do teu lado e tomarei outro brilho…

Se eu te embaraçar — ai de mim — quando teceres as tuas flores, flor encantada, esquivar­­‑me­­‑ei do teu solitário jardim e da tua doce imagem... E se eu tornar a água turva e agitada, jamais remarei a minha barca para a tua margem…

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Jun’ichiro TANIZAKI. «A tatuagem», in Shinshichō 43. Tradução inédita de António Hawthorne Barrento. 1910.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 337 12/06/20 17:18 (5) afectos e emoções 347

David VOGEL. [Perante teus portais, de branco vestida], in Col haShirim [Toda a Poesia]. Tradução inédita de Moacir Amâncio. [1966] 1998. Tel Aviv: Hakibbutz Hameuchad. 17.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 347 12/06/20 17:18 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 348 12/06/20 17:18 (6) LITERATURA COMO ARTE

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 349 12/06/20 17:18 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 350 12/06/20 17:18 (6) literatura como arte 351

Yûsuf­ AL­‑KHÂL. [basta! disse ela], in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1565.

basta! disse ela a dor está nos meus lábios a dor está em meu peito estou todo dorido basta! fecha a luz e dorme, pontos negros mancham a luz da aurora.

dormirei e o mundo dormirá comigo. nada de sonhos que nos acordem. a morte de sonhos acorda­­‑nos

vigilante está uma floresta que arde até às cinzas.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 351 12/06/20 17:18 352 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Bishara ‘Abdallâh AL­ ­‑KÛRI. «Como esquecer», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa. Assírio & Alvim. 1304­­‑1305.

como esquecer o odor do passado recordações de infância sonhos da minh’alma e esses dias transparentes qual pura chama como esquecer? lembrar­ ­‑te­­‑ás, May, desses anos? que sonho perderia esse sonho em teu coração sonho: a terra e o céu eram em flor como esquecer?

havia antes de mais o lago amado com seus ramos à volta, na primavera e as andorinhas de loucos gritos como esquecer?

houve uma noite, Salma, ao sol poente para nós qual pássaro estranho houve, através dela dez sóis poentes como esquecer? e depois, esses passeios nos prados com Salma, com Hind e Salwa qual de nós, mais cedo, será colhido... como esquecer? e quando aprendíamos o alfabeto e Salma apagava cada linha e a substituía por um terno sinal como esquecer?

e quando brincávamos aos casamentos Salma era a mim que queria para marido beijámo­­‑nos, e quanto rimos como esquecer?

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como esquecer: nós crescemos a vida cresceu em nós, humilhada cultivámos todas as nostalgias e quando esquecer?

esquecerei, diz­­‑me, o dia do adeus a ferida rubra no fundo dos nossos olhos esses suspiros, essas queixas: «tu vais esquecer» Salma! Esquecer!

ah, quem me trará o odor do passado que depois, Salma, minha infanta e rainha veja, oh que ela veja, ai de mim, por quem é que eu chorei.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 353 12/06/20 17:18 354 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Abû Al­­‑Qâsim ASH‑­­ SHÂBBÎ. «O coração do poeta», in A Phala, n.º 56. Tradução de Adalberto Alves. 1997. Lisboa: Assírio & Alvim. 235.

tudo o que voa, trepa, se alça e plana sobre o Universo aves, flores, perfumes, fontes, ramos dobrados, mares, grutas, cumes, lugares habitados, vulcões, desertos sombra e luz, noite e estações, nuvens, trovões, neve e bruma passageira, furacões, chuvas generosas, religião e ensinamentos, visões, sensações, silêncio e canto, tudo isso vive e mexe em meu coração: uma liberdade irmã da subtil magia dos filhos da eternidade. no meu coração, aqui sem fundo nem medida, a morte dança com os espectros da vida. aqui sopram os terrores da noite, treme o sofrimento das rosas e, ao seu eco, ergue­­‑se a arte.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 354 12/06/20 17:18 (6) literatura como arte 355

John ASHBERY. [E Ut Pictura Poesis é o seu nome], in Houseboat Days. Tradução inédita de João M.P. Gabriel a partir de versão online [disponível em https://www.poetryfoundation.org/poems/47769/and­­‑ut­‑pictura­­ ‑poesis­ ­‑is­‑her­‑name: acedido a 27 de Novembro de 2019]. [1977] 1987. Nova Iorque: Farrar and Giroux.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 355 12/06/20 17:18 (6) literatura como arte 357

‘Abd Al­­‑Karim AT‑­­TABBAL. «Canção de um Março triste», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1708.

cuidado! meus queridos forasteiros em vossa própria casa, e na pátria, entre as gentes e na rua, com o escreverdes com a vossa pena nas folhas brancas já que as palavras detestam o vazio e com o lerdes nos livros à beira do desespero, porque o sangue dos rostos se transforma em água, e com usardes albornozes cor de neve já que vos aprisionam. ou turbantes de açucena porque vos enlouquecem.

cuidado! meus queridos forasteiros com o branco, porque o branco é uma boa mortalha, ornamento dos cavaleiros nas batalhas das romarias, e armadilha da tinta sobre as casas e a pátria.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 357 12/06/20 17:18 358 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

BEI DAO. «A resposta», in Tradterm 18. Tradução de António José Bezerra de Menezes Júnior [disponível online em https://doi.org/10.11606/ issn.2317­ ­‑9511.tradterm.2011.36756: acedido a 8 de Fevereiro de 2020]. 1988. São Paulo: Universidade de São Paulo. 95.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 358 12/06/20 17:18 360 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Adolfo BIOY CASARES. A Invenção de Morel. Tradução de Miguel Serras Pereira e Maria Teresa Sá. [1940] 2003. Lisboa: Antígona. 95­­‑101.

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 360 12/06/20 17:18 364 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Elizabeth BISHOP. «Uma arte», in Poems. Tradução inédita de Ana Luísa Amaral. 1976. Nova Iorque: Farrar, Straus & Giroux. 198.

A arte de perder não custa quase nada; tantas coisas parecem desejar ser deixadas que a sua perda não chega a ser desgraça.

Perde algo em cada dia. Aceita o sobressalto de uma chave perdida, de uma hora mal gasta. A arte de perder não custa quase nada.

Tenta então perder mais, cada vez mais depressa: lugares, nomes, e sítios aonde desejaste viajar. Nenhum deles trará qualquer desgraça.

O relógio de minha mãe, perdi­­‑o. E, vê, perdi também várias das casas que amei. A arte de perder não custa quase nada.

Perdi duas cidades, belas. E, mais vastos, alguns reinos que tive, dois rios, um continente. Fazem ­­‑me falta, mas não chega a ser desgraça.

Até de te perder (a voz que me sorria, o gesto que eu amei) nada direi. É mais do que evidente que a arte de perder não custa quase nada, embora ela pareça (Escreve!) uma desgraça.

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Anne CARSON. «IX. MAS QUE PALAVRA ERA», in A Beleza do Marido. Tradução de Tatiana Faia. [2001] 2019. Lisboa: não (edições). 51­­‑55.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 365 12/06/20 17:18 (6) literatura como arte 367

Raquel CHALFI. «Carta aberta aos leitores de poesia», in Caravela Portuguesa. Tradução de Lúcia Liba Mucznik. [1986] 2017. Lisboa: Glaciar. 30­ ­‑31.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 367 12/06/20 17:18 (6) literatura como arte 369

Jibanananda DAS. «A laranja», in Inefável: Antologia 2007­­‑2013. Tradução de Rita Ray. [1942] 2014. Lisboa: Seda Publicações. 32.

Uma vez que eu saia deste corpo Nunca hei­­‑de voltar a esta terra? Oxalá eu volte Numa noite de Inverno Como a polpa gelada e lastimável duma laranja Na mesa de cabeceira dalgum doente que eu tenha conhecido.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 369 12/06/20 17:18 370 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

HA JIN. «Um milagre depende da crença de alguém», in lìng yī gè­kōng ji ān: hā jīn shī jí [Outro Espaço — Antologia Poética de Ha Jin]. Tradução inédita de Lu Ziliang. 2015. Taipé: Linking Publishing. 73.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 370 12/06/20 17:18 (6) literatura como arte 371

HU SHIH. «Discussão prévia sobre a reforma literária» [Sugestões para uma Reforma Literária], in Wenxue gailiang chuyi. Tradução inédita de Carlos Botão Alves. [1917] 1994. Taipé: Yuan Liu. 138­‑140.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 371 12/06/20 17:18 372 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Hafiz IBRAHIM. [para erigir a sua obra­­‑prima], in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1181­­‑1182.

para erigir a sua obra­­‑prima subjugou a ciência; assentou a sua obra‑prima­­ à beira do Nilo imensa como a montanha. memorial eterno, sim, e todavia, mesmo ao sorrir da recordação, seu rosto permanece sombrio. ele é único, sim, mas é o rosto de um gigante abatido. ah, se esse gigante tivesse pensado e querido agrupar as grandes forças do tempo, para a vida, e não para adorar a morte! forças da arte, mais altas que nós, ciências impondo silêncio ao nosso espírito dedos que criam o rosto da desculpa para os adoradores do ídolo. oh dedos de onde nascem as maravilhas, uma vez que elas se inclinem e tombem em poeira, o tempo selou vosso segredo.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 372 12/06/20 17:18 (6) literatura como arte 373

Okakura KAKUZO. «A chávena da humanidade», in O Livro do Chá. Tradução de Sandra César. [1906] 2002. Queluz: Coisas de Ler Edições. 9­ ­‑13.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 373 12/06/20 17:18 (6) literatura como arte 375

Augusto MONTERROSO. «O Dinossauro», in «Anotaciones a ‘El Dinosaurio’ de Lauro Zavala», in Archipiélago. Tradução inédita de Simão Valente [1959] 2005. México: Uiversidad Nacional Autónoma de México. 42.

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 375 12/06/20 17:18 376 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Vladimir NABOKOV. «Canto primeiro», in Fogo Pálido. Tradução de Telma Costa. [1962] 1996 Lisboa: Teorema. 29, 65­­‑68.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 376 12/06/20 17:18 380 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Gabriel OKARA. A Voz. Tradução de Cristina Rocha. [1964] 1980. Lisboa: Edições 70. 117­‑119.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 380 12/06/20 17:18 382 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Munshi PREMCHAND. «Eidgah», in Premchand Ki Lokpriya Kahaniyan [Contos Populares de Premchand]. Tradução inédita de Singh, Shiv­­ ‑Kumar. [1933] 2015. Nova Deli: Pratibha Pratishthan. 128­­‑141.

Após os 30 dias de jejum do Ramadão, chegou o Eid. Quão alegre e prazenteiro é o seu efeito. Nas árvores, nos campos e no céu, vê­­‑se um verde e um vermelho peculiares. Olhem para o sol de hoje, tão lindo e confortante, como se felicitasse o mundo pelo Eid. Há tanta vivacidade na aldeia. Fazem­­‑se os preparativos para se ir à Eidgah. Há quem não tenha botões na sua túnica e vá a correr para casa dos vizi‑ nhos para ir buscar agulha e linha. Há quem tenha ficado com os sapatos de couro ressequidos e vá a correr ao vendedor de óleo para os hidratar. É preciso dar rapidamente a ração aos bois. Quando se estiver de volta da Eidgah, já será tarde. No caminho, que são dez quilómetros a pé, cruzam‑se­­ com centenas de pessoas, pelo que é impossível regressar antes da tarde. Os rapazes são os que estão mais entusiasmados. Alguns jejuaram apenas durante um dia e só até à tarde e outros nem isso fizeram, mas são principalmente eles que sentem a alegria de ir à Eidgah. Os dias de jejum são para os mais velhos. Para os mais novos, o que interessa é o Eid. Todos falavam no Eid e hoje, finalmente, este chegou. Agora estão impacientes por verem que as pessoas ainda não estão a ir para a Eidgah. Porque é que se hão­­‑de preocupar com as tarefas domésticas? Tanto faz se há ou não leite e açúcar para o doce de aletria, pois eles quererão comê­­‑lo de certeza. Duvido que saibam por que razão o seu pai está a correr tão aflito para casa do Chaudhri Káyamali. Eles sabem lá se, caso Chaudhri decida mudar de ideias, o Eid não se irá tornar num Muharram.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 382 12/06/20 17:18 (6) literatura como arte 383

Os seus bolsos estão cheios do dinheiro de Kubêra, o guardião da riqueza. Várias são as vezes em que retiram esse seu tesouro dos bolsos e o con‑ tam, felizes, arrumando‑o­­ depois novamente. Mahamud conta: — Um, dois, dez, doze. — Tem doze paisse. Mohassíne tem um, dois, três, oito, nove, quinze paisse. Com este dinheiro incontável, eles comprarão incontáveis coisas: brin‑ quedos, doces, cornetas, bolas e sabe‑se­­ lá o que mais… E o mais alegre de todos é Hámíd. É um rapaz com cerca de quatro anos com um aspecto pobre e escanze‑ lado. No ano passado, o seu pai morreu de cólera e, pouco depois, sem que se se saiba porquê, a pele da mãe começou a ficar amarela e ela acabou por morrer. Ninguém sabe que doença seria. Mas se ela tivesse dito, que diferença faria? O que quer que tenha recaí‑ do sobre si, ela aguentou­­‑o e, quando não o conseguiu mais, acabou por par‑ tir deste mundo. Agora Hámíd dorme no colo da sua avó Amíná e está muito feliz. Para Hámíd, o pai não morreu, foi apenas trabalhar, e trará sacadas de rupias. Do mesmo modo, a mãe foi apenas a casa de Alá, para trazer muitas coisas boas. É por isso que Hámíd está feliz. A esperança é mesmo algo de extraordinário, ainda para mais a esperan‑ ça das crianças! A sua imaginação é capaz de transformar um grão de mostarda numa montanha. Hámíd não tem sapatos nos pés e na cabeça tem um velho chapéu cuja aba já está preta, mas mesmo assim ele está satisfeito. Assim que os seus pais regressarem com as sacadas de dinheiro e bên‑ çãos, ele satisfará os seus desejos mais profundos. Nesse momento, ele irá querer ver onde é que Mohassíne, Nurê e Sammi arranjarão tanto dinheiro assim. A pobre Amíná está sentada a chorar no seu quarto. Hoje é o dia do Eid e na casa dela nem sequer há uma migalha! Se Ábid estivesse ali, será que o Eid seria assim? Está a cair cada vez mais na escuridão e no desespero. «Quem é que mandou vir este maldito Eid? Este Eid não tem lugar nesta casa.» Mas e quanto a Hámíd? O que é que ele tem a ver com a vida e a morte? Dentro de si há luz e por fora há esperança.

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Podem aparecer todas as desgraças, mas a sua personalidade plena de alegria irá acabar com elas. Após entrar, Hámíd diz à avó: — Não tenhas medo, avó. Eu vou ser o primeiro a voltar. Não vale mesmo a pena preocupares­­‑te. O coração de Amíná está a amargurar. Cada menino da aldeia está a ir com o seu pai menos Hámíd. Quem além de Amíná é como um pai para Hámíd? Como é que ela pode permitir que ele vá sozinho? O que lhe aconte‑ ceria se ele se perdesse no meio da multidão? Não, Amíná não permitirá que ele vá assim sozinho! É um miúdo! Como é que conseguiria andar dez quilómetros? Ficaria com bolhas nos pés. E nem sequer tem sapatos! Poderia levá­­‑lo um pouco ao colo, mas quem ficaria em casa a cozinhar seveiyan? Se tivesse dinheiro, no caminho de volta, juntava todos os ingredientes e faria tudo rapidamente. Iria demorar muitas horas para juntar os ingredien‑ tes. Restaria apenas pedir aos vizinhos. Naquele dia, costurou a roupa da Faheeman. Recebeu cinquenta paisse. «Tinha guardado tão bem aqueles cinquenta paisse para este Eid, mas ontem a leiteira perdeu as estribeiras e não me deu escolha. Que mais poderia eu fazer? Para Hámíd não há nada! Preciso de pelo menos dois paisse para o leite. Agora só me restam doze paisse e meio.» Hámíd tem três paisse no bolso e Amíná cinco na carteira. É esta a sua situação. E logo no dia da festa do Eid. Só Alá é que ajuda. A lavadeira, a cabeleireira, a faxineira e a vendedora de pulseiras, todas elas virão. Todos querem seveiyan e ainda choram por mais. De quem é que a Amíná esconderá o rosto? E por que há­­‑de escondê­­‑lo? É uma festa que se realiza só uma vez por ano. A vida vai de vento em popa, e a sorte deles também está consigo. Deus toma conta do menino; estes dias vão passar! A multidão parte da aldeia. E Hámíd também vai com as outras crianças. Às vezes, todas elas correm e ficam mais à frente. Depois esperam pelos familiares debaixo de uma árvore. Porque é que as pessoas iam andando tão devagarinho? Parece até que Hámíd tem asas nos pés. Será que alguma vez se cansa? Já chegou às portas da cidade. Os ricos têm jardins em ambos os lados da rua.

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Têm muros à volta. Nas árvores há mangas e líchias. Por vezes um dos meninos atira pedras à mangueira. O jardineiro sai da quinta a insultá‑los.­­ Os meninos estão a uma distância segura. Riem­­‑se muito. Fizeram com que o jardineiro parecesse um palhaço. Os grandes edifícios estão já à vista. Isto é o tribunal, isto é o colégio, isto é o clube. — Quantos jovens estarão a estudar neste colégio tão grande? — Ouve, não são apenas jovens! De certeza que também há adultos! Têm grandes bigodes. — Já são tão crescidos e mesmo assim continuam a estudar. Sabe‑se­­ lá até quando estudarão e o que farão depois de estudarem tanto. Na madraça do Hámíd há dois ou três rapazes mais velhos, que não valem nada. São castigados todos os dias e arranjam sempre desculpas para não trabalharem. Pois, aqui também haverá esse tipo de pessoas. No clube costuma haver espectáculos de magia. Diz­­‑se que o mágico faz dançar crânios de mortos. E embora haja os maiores espectáculos, nenhum de nós pode lá entrar. E os senhores jogam ali ao final da tarde. Até os adultos de barba e bigode jogam. — A sério, até as senhoras jogam! Se deres isto, como dizer, o taco, à minha mãe, então ela nem o conseguiria segurar. Assim que girar o taco, ela poderá cair. Mahamud disse: — Juro por Alá que as mãos da minha mãe começariam a tremer. Mohassíne disse: — Acreditem, a minha mãe tritura toneladas de farinha, mas começa a tremer por ter o bastão na mão. Ela tira centenas de baldes de água todos os dias: só o boi bebe cinco baldes. Se uma menina da cidade tirasse um só balde de água, ficaria tonta. Mahamud: — Mas não consegue correr, nem consegue pular! Mohassíne: — Sim, não consegue pular, mas outro dia a minha vaca escapou e entrou numa plantação de choudhary. A mãe correu tão depressa que eu nem consegui apanhá­­‑la, verdade!

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Mais à frente, começam as lojas de doces. Nesse dia, as lojas estão bem decoradas. — Quem come tantos doces? — Olha, cada loja tem toneladas de doces. Ouvi dizer, à noite chegam os génios para comprar. O pai dizia que à meia­­‑noite um senhor passava por cada loja e que ele pedia para pesar os doces, pagava em dinheiro e era dinhei‑ ro de verdade. Hámíd não acredita: «Como é que os génios conseguirão arranjar o dinheiro de verdade?» Hámíd diz: — Será que os génios têm falta de dinheiro? Eles têm o tesouro que quiserem. Nem portas de ferro conseguem bloqueá­­‑los. Vivem em que mundo? Até diamantes e jóias eles têm. Se ficam felizes com alguém dar­­‑lhe­­‑ão mui‑ tas jóias. Num momento estão aqui sentados e no momento seguinte já estão em Calcutá! Hámíd pergunta outra vez: — Os génios são muito grandes? — Sim! Cada cabeça é tão grande como o céu! — responde Mohassíne. — Se tivessem os pés no chão, a sua cabeça chegaria ao céu, mas se quises‑ sem, também poderiam entrar num cântaro. — E como é que as pessoas fazem para lhes agradar? — pergunta Hámíd. — Se alguém mo explicar, então tentaria agradar a um génio. — Isso eu já não sei, mas o senhor Chaudhri controla imensos génios. — continua Mohassíne. — Se houvesse algum assalto, ele poderia descobri­­‑lo e dizer o nome do ladrão. Um dia, o vitelo de Jumaráti perdeu­­‑se. Procuraram­­‑no em todo o lado durante três dias, mas não o encontraram e, após tantos esforços em vão, viram­­‑se obrigados a ir ter com o Chaudhri. O Chaudhri disse subita‑ mente que ele estava no estábulo e aí o encontrou. Os génios surgem para lhe dar todas as informações do universo. Agora é que o Hámíd percebe porque é que o Chaudhri tem tanto dinheiro e é tão respeitado. Continuemos. Esta é a linha da polícia. Aqui todos os polícias fazem exercícios. À direita! Cinco, quatro! Se não andarem de vigia durante toda a noite, poderá haver assaltos. Mohassíne protesta: — Estes polícias ficam de vigia? Ouve lá, ó sabichão, os polícias é que andam a roubar! Todos os criminosos da cidade são amigos deles. À noite,

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dizem aos assaltantes para roubarem enquanto eles vão para outro bairro gritar: «Fiquem alerta! Fiquem alerta!» É por isso que eles têm muito dinhei‑ ro. O meu tio materno é polícia numa esquadra. Ganha só vinte rupias por mês, mas envia cinquenta para casa. Juro por Alá! Uma vez perguntei ao meu tio como é que ele ganhava tanto dinheiro. Ele riu­­‑se e disse­­‑me que era Alá quem lho dava. Depois ele mesmo disse que, caso quiséssemos, poderíamos arranjar milhões num dia. Tiramos apenas o suficiente para que o nosso nome não fique manchado e para que não percamos o emprego. Hámíd pergunta: — Esta gente é que manda roubar? Então e ninguém os prende? Com pena da sua ignorância, Mohassíne diz: — Ó, seu tonto! E quem é que os prenderia? São eles mesmos que pren‑ dem os outros, mas Alá também os castiga bem. O que vem facilmente, tam‑ bém vai facilmente. Passados alguns dias, houve um fogo na casa do meu tio materno. Todo o património dele ardeu. Nem sequer uma panela se salvou. Durante vários dias, dormiu debaixo de uma árvore, juro por Alá, mesmo debaixo de uma árvore! Sabe‑se­­ lá como é que arranjou cem rupias para com‑ prar panelas e outros bens domésticos. Hámíd diz: — Cem é mais do que cinquenta? — Claro! Não há comparação entre cem e cinquenta. Cinquenta enchem um saco todo. Mas cem nem cabem em dois sacos. O bairro começa a ser denso. Podem ser vistos grupos de pessoas que estão a ir para o Eidgah. Cada um tem um vestuário mais brilhante do que o outro. Alguns vão de carroça, outros de carro, todos encharcados em perfume e nos corações de todos há entusiasmo. E este pequeno grupo de aldeãos vai­­‑se movendo absorvido na satisfa‑ ção e na paciência, despreocupado com a sua miséria. Todas as coisas da cidade parecem extraordinárias para as crianças. Para qualquer coisa que olhem ficam fixadas nela e nem reparam nas buzinadelas repetidas. Hámíd é quase atropelado por um veículo. De repente, vê‑se­­ o Eidgah. Lá em cima há árvores densas de tamarindo. Debaixo está um piso pavimentado, que é coberto por uma alcatifa. As filas dos jejuadores estendem­­‑se uma atrás de outra, não se sabe até onde. Até debaixo do pavimento onde nem há alcatifa. Os recém­­‑chegados vão ficando na fila de trás.

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Não há espaço à frente. Aqui ninguém dá atenção ao estatuto e à riqueza. São todos iguais no Islão. Os aldeãos também fazem a ablução e ficam na fila de trás. É tão bem coordenado, que sistema tão organizado! Centenas de milha‑ res de cabeças juntam­­‑se em oração e a seguir levantam­­‑se. Eles curvam­­‑se ao mesmo tempo para a frente e ajoelham‑se­­ juntos no chão. Esta sequência é repetida muitas vezes, como milhões de lâmpadas eléc‑ tricas que se iluminam e depois se apagam simultaneamente. Esta ordem repete­­‑se várias vezes. Que vista extraordinária, que enche o coração de orgulho, devoção e felicidade através deste grande acto em grupo, como se o espírito de frater‑ nidade tivesse amarrado todas as almas num único fio! O namaz termina. As pessoas estão a abraçar­­‑se. Em seguida, as lojas de doces e de brinquedos são invadidas. A este respeito, o grupo de aldeãos não está menos entusiasmado do que as crianças. — Olha, é o carrossel, para andar nele paga­­‑se um paissa. Às vezes parecerá que se está a ir até ao céu e outras vezes que se está a cair no chão. — Isto é a roda, os elefantes, cavalos e camelos de madeira estão pendu‑ rados em barras de ferro. «Sente­­‑se por um paissa e divirta­­‑se dando vinte e cinco voltas.» Mahamud, Mohassíne, Nurê e Sammi sentam­­‑se nestes cavalos e camelos. Hámíd fica afastado. Ele tem apenas três paisse. Não pode perder um terço do seu tesouro apenas pela diversão de dar umas voltas. Todos descem do carrossel. Agora comprarão os brinquedos. Aqui há um conjunto de lojas. Há vários brinquedos — bonecos de polícia e aldeãos, reis e advogados, aguadeiros e lavadeiras e sadhus. Uau! Os bonecos são tão bonitos. Até parece que vão falar. Mahamud compra um polícia que tem uma farda caqui e um turbante vermelho e carrega uma espingarda ao ombro — parece que se está a aproxi‑ mar, marchando. Mohassíne gostou do aguadeiro. A cintura está dobrada e em cima car‑

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rega o odre de água. E segura a boca do odre com uma mão. E parece tão feliz! Como se estivesse a cantar. Pronto, dá a ideia que vai atirar a água do odre. Nurê gosta do advogado. Que ar de intelectual mostra a sua cara! Capa preta e uma achkan branca por baixo, um relógio no bolso da frente do achkan, uma corrente de ouro e numa mão carrega um enorme livro do código penal. Parece que está a sair do tribunal depois de um interrogatório ou de ter defendido um caso. Cada um destes brinquedos vale dois paisse. O Hámíd tem apenas três paisse; como é que ele pode comprar esses brinquedos tão caros? E se os brinquedos caíssem das suas mãos? Iriam desfazer­­‑se em pedaços. Se caísse um bocadinho da água, sairia a cor. O que faria ele com tais brinquedos? Para que serviriam? Mohassíne diz: — O meu aguadeiro trará água todos os dias, de manhã e à tarde. Mahamud diz: — E o meu polícia irá proteger a minha casa. Se vier algum ladrão, ele irá atirar com a espingarda. Nurê: — O meu advogado defenderá muitos casos. Sammi: — E a minha lavadeira lavará a roupa diariamente. Hámíd desvaloriza os brinquedos. São apenas feitos de barro e se eles caírem irão quebrar­­‑se em pedaços, embora ele continue a olhar para eles com cobiça e queira tê­­‑los nas suas mãos. De repente, as suas mãos vão para eles, mas as crianças não são tão gene‑ rosas, especialmente quando têm um brinquedo novo. Hámíd fica cheio de desejo de os ter. Depois dos brinquedos, aparecem as lojas dos doces. Um deles comprou reworiyan, outro gulabjamun e outro sohan halwa. Estão a comer divertidamente. Hámíd está fora deste grupo. O pobre tem apenas três paisse. Porque é que ele não compra alguma coisa para comer? Olha para todos com olhos de desejo. Mohassíne diz: — Hámíd, anda, toma reworiyan. Está tão cheiroso! Hámíd desconfia que é apenas uma piada cruel, Mohassíne não é tão generoso, mas ainda assim vai ter com ele. Mohassíne tira um reworiyan da dóná e mostra­­‑lhe.

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Hámíd estende a mão. Mohassíne imediatamente põe o doce na sua boca. Mahamud, Nurê e Sammi riem, batendo palmas. Hámíd fica chateado. Mohassíne: — Bem, desta vez eu vou­­‑te dar, juro por Alá, toma lá. Hámíd: — Guarda aí! Achas que não tenho dinheiro? Sammi: — Tens apenas três paisse. O que comprarás com três paisse? Mahamud diz: — Anda, Hámíd, eu dou­­‑te gulabjamun. O Mohassíne é malandro. Hámíd diz: — Os doces não são assim tão grande coisa. No livro sagrado, estão escritas muitas coisas más sobre eles. Mohassíne diz: — Mas lá no fundo estás a dizer que se te derem, vais comer. Porque não tiras o teu dinheiro? Mahamud: — Nós percebemos o truque dele. Quando nós gastarmos o nosso dinheiro, ele comerá fazendo‑nos­­ inveja. Depois das lojas de doces estão algumas lojas que vendem coisas de ferro, algumas vendem coisas de níquel e outras jóias falsas. Para os rapazes aqui não há qualquer interesse. Eles seguem e o Hámíd pára numa loja de ferragens. Havia muitas pinças de ferro para o fogo. Lembrou-se de que a sua Dádí, avó, não tem pinças. As suas mãos ficam queimadas quando vira os pães no fogareiro. Se ele levar uma pinça, ela ficará tão feliz! Os dedos dela não voltarão a ficar queimados. E será uma ferramen‑ ta útil em casa. Qual é vantagem dos brinquedos? Gasta­­‑se o dinheiro em vão. Ape‑ nas dão felicidade por pouco tempo. Depois ninguém dá importância aos brinquedos. Até chegar a casa poderão ficar em pedaços ou as crianças pequenas que não foram à feira irão fazer birra para terem o brinquedo e depois poderão parti‑los.­­ A pinça é uma coisa tão útil. Pode tirar os pães da tavá ou pode cozer no fogareiro. E se alguém vier para buscar uma brasa, pode‑se­­ dar­­‑lha imediatamente tirando do fogareiro.

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Coitada da Amíná, nunca tem folga para ir ao mercado comprar uma pinça. E onde arranjaria tanto dinheiro? Todos os dias ela queima as suas mãos. Os amigos do Hámíd já seguiram. Todos estão a beber sumo na banca. «Olha! São tão gulosos. Compraram tantos doces mas ninguém me ofe‑ receu nem um. E pedem­­‑me que brinque com eles. E ‘faz­­‑me esta tarefa’. Se alguém me pedir para fazer alguma tarefa, aí vou dizer: ‘Comam os doces, as vossas bocas apodrecerão, aparecerão bolhas e borbulhas e a língua auto‑ maticamente ficará glutona. Depois roubarão dinheiro de casa e levarão palmadas.’ Claro que não estão escritas mentiras nos livros. Porque ficará a minha língua infectada? Ao ver as pinças, a avó correrá na minha direcção e recebê­­‑las­­‑á e dirá: ‘O meu filho trouxe as pinças para a sua avó. Que bom menino!’ Se tivesse comprado brinquedos, quem lhe daria as bênçãos? As bên ‑ çãos dos mais velhos chegam directamente no reino de Alá e ouvem ­­‑se imediatamente. Eu não tenho dinheiro. É por isso que Mohassíne e Mahamud se exibem. Também lhes mostrarei o meu estatuto um dia. Brinquem com os brinquedos e comam os doces. Eu não brinco com os brinquedos, porque deverei importar­­‑me com eles? Eu sou pobre, mas não peço nada a ninguém. Afinal, o meu pai voltará um dia. A mãe também. Aí perguntar­­‑lhes­­‑ei quantos brinquedos gostariam de ter. Darei um cesto cheio de brinquedos a cada um e mostrarei como se devem tratar os amigos. Não é comprando doces reworiyan de um paissa e comê­­‑los fazendo pouco dos outros.» Todos irão rir porque o Hámíd comprou um par de pinças. «Riam, não me importo.» Ele pergunta ao lojista: «Qual é o preço destas pinças?» O lojista olha e vê que não há nenhum adulto com ele e diz: «Isto não te serve para nada.» «É para vender ou não?» «Porque é que não estaria à venda? Porque é que a trouxemos para cá?» «Então porque não me está a dizer quantos paisse custa?» «São seis paisse.» O coração de Hámíd sobressaltou­­‑se.

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«O último preço é cinco paisse. Se quiseres, toma, se não põe­­‑te andar.» Hámíd diz com valentia: «Aceita três paisse?» Ao dizer isto, seguiu para não ouvir a repreensão do lojista. Mas o lojista não o repreende. Chama‑o­­ e entrega‑lhe­­ as pinças. Hámíd coloca­­‑as aos ombros como se fossem uma arma e junta­­‑se aos seus companheiros com muito orgulho. «Vamos ouvir que críticas fazem!» Mohassíne diz, rindo: — Ó tolo, porque é que compraste as pinças? O que farás com isso? Hámíd atira as pinças para o chão e diz: — Vá lá, atira o teu aguadeiro para o chão. Todas as suas costelas fica‑ riam em estilhaços. Mahamud diz: — Estas pinças são algum brinquedo? Hámíd: — Porque é que não hão­­‑de ser? Agora ponho‑as­­ aos ombros e tornam­­ ‑se numa espingarda. Se puser nas mãos, as pinças tornam­­‑se as pinças de faquir. Se quiser posso fazer com elas o barulho de um guizo. Se bater com elas nos vossos brinquedos, eles morrerão todos. Pouco importa o que façam com os vossos brinquedos, eles nada conseguirão contra as minhas pinças. As minhas pinças são um leão corajoso! Sammi comprou uma pandeireta. Influenciado por Hámíd, diz: — Queres trocá‑las­­ pela minha pandeireta? Custou dois áná. Hámíd olha para a pandeireta com desprezo: — Se as minhas pinças quiserem, conseguem rasgar a tua pandeireta. Coloca­­‑se um bocadinho de couro e, pronto, a pandeireta começa a fazer pam­­‑pam. Mas se estiver em contacto com água, acabou­­‑se. As minhas cora‑ josas pinças sairiam ilesas mesmo em contacto com o fogo, a água, em tem‑ pestades ou tufões. Agora as pinças despertam o interesse de todos, mas quem tinha dinhei‑ ro para as comprar? Além disso, estão longe da feira. Já há muito que tinha passado das nove e o sol estava a ficar cada vez mais forte. Todos estão com pressa para voltar para casa. — Mesmo que façamos birra, não conseguiremos as pinças. — É mesmo muito esperto, o Hámíd. — É por isso que o malandro foi guardando o dinheiro. Agora o grupo de crianças transforma­­‑se em dois. Mohassíne, Mahamud, Sammi e Nurê estão de um lado e Hámíd está sozinho do outro.

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Decorre entre eles um concílio ecuménico. Sammi torna­­‑se num apóstata. Junta‑se­­ ao outro grupo, mas Mohassíne, Mahamud e Nurê, também por serem um ou dois anos mais velhos do que Hámíd, ficaram aterrorizados com a sua lógica. Ele tem a força da justiça e poder de juízo? Num lado há o barro, enquanto no outro há o ferro, que agora se procla‑ ma como o aço. Ele é invencível, é mortífero. Se algum leão surgir, o senhor aguadeiro morrerá de medo, o senhor polícia largará a sua espingarda de barro e fugirá, o senhor advogado ficará sem palavras, esconderá o rosto debaixo da sua toga e deitar­­‑se­­‑á no chão. Mas com estas pinças, este valente, este herói da Índia vai saltar ao pes‑ coço do leão e arrancar os seus olhos. Mohassíne reúne todas as suas forças e diz: — Bem, não se podem encher com água. Após erguer as pinças, o Hámíd diz: — Elas vão repreender o lavadeiro, e então, após correr para ir buscar água, irá aspergi‑la­­ pela soleira da porta. Mohassíne fica derrotado, mas Mahamud dá‑lhe­­ uma mãozinha: — Se o rapaz for apanhado, então andará algemado pelo tribunal. E então ficará à mercê do senhor advogado. Hámíd não consegue arranjar um argumento mais forte do que o de Mohassíne. Pergunta: — Quem é que virá para nos apanhar? Nurê diz com ar de superioridade: — Este polícia que tem uma espingarda. Hámíd diz num tom escarninho: — Este coitado vai apanhar o corajoso herói da Índia? Bem, trá­­‑lo. E agora organizemos uma briga! Assim que vir o seu rosto, fugirá para longe. Coitado, vai apanhá‑lo!­­ Mohassíne lembra­­‑se de um novo golpe: — As bocas das tuas pinças hão‑de­­ arder todos os dias. Pensa que Hámíd fica sem palavras, mas não é bem assim. Hámíd responde imediatamente: — Os corajosos saltam para dentro do fogo. Senhor, estes seus advoga‑ do, polícia e lavadeiro vão correr para casa como meninas. Saltar para dentro do fogo é o tipo de trabalho que só este herói da Índia é capaz de realizar. Mahamud esforça­­‑se outra vez: — O senhor advogado sentar­­‑se‑á­­ à secretária, enquanto as tuas pinças permanecerão caídas no chão da cozinha.

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Com esta lógica, a esperança de Sammi e Nurê volta a nascer. «Que grande lógica tem o rapaz! Além de ficarem caídas pelo chão, que mais é que as pinças podem fazer?» Nenhuma resposta inteligente ocorre a Hámíd, por isso ele começa a insistir teimosamente: — As minhas pinças não ficarão na cozinha. O senhor advogado sentar­­ ‑se­­‑á à secretária, por isso as pinças aproximar­­‑se­­‑ão dele e darão cabo dele e fá­­‑lo­­‑ão engolir a sua própria lei. O discurso de Hámíd não deu em nada. É uma conversa inútil. No entan‑ to, a ameaça de fazer engolir a própria lei surte efeito. Surte efeito de tal forma que os três destemidos ficam boquiabertos, como se um corvo fraco tivesse mordido um corvo forte. A lei é algo que sai da boca? A ideia de metê­­‑la dentro do estômago, apesar de ser uma ninharia, acaba por ter alguma lógica. Hámíd sai vitorioso. As suas pinças são do herói da Índia. Agora Mohassíne, Mahamud, Nurê e Sammi não podem opor­­‑se a isso. O respeito que o vencedor merece dos derrotados é também dado a Hámíd. Os outros gastaram três, quatro áná, mas não puderam comprar nada de jeito. Com os três paisse, o Hámíd tornou­­‑se importante. É mesmo verdade! Porquê ter confiança nos brinquedos? Eles irão partir­­‑se. As pinças do Hámíd irão durar anos! Começam a decidir as condições do acordo. Mohassíne diz: — Dá­­‑me um bocadinho da pinça, deixa­­‑nos ver. Toma, vê o meu aguadeiro. Mahamud e Nurê também ofereceram os seus brinquedos. Hámíd não teve nenhum problema em aceitar estas propostas. As pinças passaram pelas mãos de todos e os brinquedos deles passaram pelas mãos de Hámíd. Que bonitos são os brinquedos! Hámíd limpou as suas lágrimas e disse: — Estava só a brincar com vocês, a sério! Estas pobres pinças, não podem ser iguais a estes brinquedos, parece que vão falar já, já. Mas o grupo de Mohassíne não se conforma com as palavras de Hámíd. As pinças surtiram o seu efeito.

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O bilhete colado não sai nem com água. Mohassíne: — Mas ninguém nos abençoará por estes brinquedos. Mahamud: — Andas a divagar com a bênção. Pelo contrário, até hás­­‑de apanhar! De certeza que a mamã irá perguntar se na feira apenas encontraste estes brinquedos de barro. Hámíd teve de concordar que, após ver os brinquedos, nenhuma das mães ficaria tão contente como ficará a sua avó paterna. Hámíd tinha de fazer tudo com apenas três paisse e não havia necessida‑ de de se arrepender por ter usado assim esse dinheiro. Por isso, agora são as pinças que são o herói do Hindustão e o rei de todos os brinquedos. Durante o caminho, Mahamud fica com fome. O seu pai deu‑lhe­­ bananas para comer. Mahamud apenas as partilha com Hámíd. Os seus outros amigos ficam boquiabertos. É este o poder das pinças. Às onze horas, a aldeia fica muito agitada. Os feirantes regressam. A irmã mais nova do Mohassíne corre, arranca­­‑lhe o aguadeiro das mãos e dá pulos de alegria, então o senhor aguadeiro cai e atinge o paraíso. Isso leva a uma briga entre irmão e irmã. Ambos choram muito. Ao ouvir este barulho, a mãe deles aborrece‑se­­ e dá‑lhes­­ duas palmadas. O fim do advogado do senhor Nurê, conforme o seu estatuto, é mais ilus‑ tre do que isto. O advogado não se pode sentar no chão nem na cama. Temos de prestar atenção ao seu estatuto. Pregaram‑se­­ os pregos na parede. Sobre eles, colocou‑se­­ uma estante de madeira. Sobre a estante, estendeu‑se­­ um tapete de papel. O senhor advogado é sentado no trono como o rei Bhoj. O Nurê começa a agitar o leque para ele. No tribunal há paredes de contraplacado e ventoinhas eléctricas. Aqui não oferecem nem um pequeno leque? Não subirá o calor da lei pela cabeça acima? A ventoinha de bambu chega e o Nurê começa a abanar. Não se sabe se pelo vento ou pelo batimento do leque, o senhor advo‑ gado chega ao inferno vindo do paraíso e a sua toga de barro mistura­­‑se no próprio barro! Há uma grande choradeira e os ossos do senhor advogado são deitados na esterqueira. Agora falta o polícia de Mahamud. É­­‑lhe dado o cargo de vigiar a aldeia, mas os agentes da polícia não são simplórios, que andem pelos seus próprios pés. Ele andará de palanquim.

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Chega um cesto, no qual são colocados alguns farrapos velhos, de cor ver‑ melha, onde o senhor polícia se deita confortavelmente. Mahamud agarra o cesto e começa a dar voltas à sua porta. Os seus dois irmãos mais novos gritam como polícias: «Fiquem acordados os que estão para dormir!» Mas a noite não é escura? De repente Mahamud tropeça. Após­ soltar­‑se da sua mão, o cesto cai e o senhor polícia cai no chão com a sua espingarda e sofre uma fractura num dos pés. Mahamud fica então a saber que é um bom médico. Encontra um unguento com o qual rapida ‑ mente cura a perna partida. Só é preciso leite de figo. O leite de figo chega. A perna não responde à cura. A cirurgia fracassa e a outra perna também tem de ser arrancada. Agora, pelo menos, pode sentar­‑se sem problemas em qual‑ quer lugar. Com apenas uma perna, ele não podia nem andar nem sentar­‑se. Actualmente este soldado é um eremita. Sentado no seu lugar fica de vigia. Às vezes, também se torna uma divindade. Foi raspado o turbante fran‑ zido da sua cabeça. Presentemente pode transformar­‑se no que se quiser. Às vezes é utilizado como um peso. Agora oiçam o caso do senhor Hámíd. Assim que ouve a voz dele, a Amíná corre, toma­­‑o no seu colo e acaricia­­‑o. De repente, vendo as pinças nas suas mãos, fica surpreendida. — Onde estavam estas pinças? — Comprei­­‑as. — Quanto custaram? — Foram três paisse. A Amíná leva a mão ao peito. «Mas que estúpido que é este rapaz, que já era hora do almoço e não comeu nem bebeu nada. E vejam o que ele trouxe: pinças! Não encontrou mais nada para si em toda a feira além de umas pinças de ferro.» Hámíd diz com sentimento de culpa: — Os teus dedos queimavam ­­‑se na chapa de fazer pão, por isso comprei ­­‑as. A raiva da velhota logo se torna em afecto, e um afecto em que toda a emoção não se exprime por palavras. É um afecto mudo, muito sólido e como cheio de sumo e sabor. «Quanto sacrifício, que bom comportamento e quanta prudência! Quanta inveja ele terá tido ao ver os outros comprarem os brinquedos e comerem doces? Como é que conseguiu ter tanto controle?», interrogou­­‑se a sua velha avó. O coração de Amíná fica muito comovido.

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E acontece uma coisa muito estranha. Mais estranha do que as pinças de Hámíd: o miúdo Hámíd desempenha o papel de velho Hámíd e a velha Amíná torna­­‑se uma Amíná criança e começa a chorar. Abençoa Hámíd estendendo o manto e deixa cair gotas grandes das suas lágrimas. Perceberá Hámíd a razão disto tudo?

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Fu’ad RIFQA. «Uma elegia para Hölderlin», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1738.

és tu. sabemos dos gritos no vento que nuvens estão a trazer salmos do templo

a porta está fechada sacerdotisas da fertilidade deslizaram dos queimadores de incenso para os funerais deixando a agonia do templo nos braseiros dos velhos recantos

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Léopold Sédar SENGHOR. «Carta a um poeta», in Poèmes. Tradução inédita de Amândio Reis. [1945] 1973. Paris: Éditions du Seuil. 9­­‑11.

Texto sujeito a direitos de autor.

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Ronny SOMECK. «Jasmim. Poema sobre a lixa», in Carta a Fernando Pessoa. Tradução de Moacir Amâncio. [1994] 2017. São Paulo: Annablume. 44.

Texto sujeito a direitos de autor.

* Fairuz, cantora libanesa. † Sefarad, a Península Ibérica.

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Rabindranath TAGORE. «Um olhar», in Rabindra Rachanabali [Obras Completas], vol. 7. Tradução inédita de Rita Ray. [1922] 1961. Kolkata: Vishwabharati. 790.

Ao entrar no carro ela ofereceu­­‑me o seu último olhar virando para mim a sua cara. Onde é que posso pousar aquela coisita neste mundo tão grande? Como posso eu arranjar um lugar onde as horas, minutos e segundos não pisem incessantemente? Vai este olhar dissolver­‑se naquela tarde em que se dissolvem todas as cores douradas das nuvens? Isto também vai desaparecer naquelas chuvas em que desaparecem todos os pólenes da flor nagkeshar? Pode isto existir se ficar disperso entre milhares de coisas do mundo — entre o lixo de milhares de palavras, no monte de milhares de mágoas? Aquela dádiva sua de um instante veio parar na minha mão ultrapassan‑ do todas as coisas deste mundo. Vou guardá­­‑la numa canção, num ritmo; vou pousá ­­‑la na moradia celestial da beleza. Na terra, o poder do rei e a fortuna do rico fenecerão. Mas as lágrimas não contêm aquela ambrósia que é capaz de imortalizar o olhar de um instante? A melodia da canção disse, «Está bem, dá‑mo.­­ Não toco no poder do rei, nem na fortuna do rico, mas aquelas coisinhas são as minhas riquezas eter‑ nas; a partir delas faço um colar para a eternidade».

Outono de 1919 In Lipika (1922)

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Yona WOLLACH. [Deixa que as palavras façam em ti], in Yona e o Andrógino — Notas sobre poesia e cabala. Tradução de Moacir Amâncio. 2010. São Paulo: Nankin / Edusp. 37.

Texto sujeito a direitos de autor.

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ZHONGSHI CHEN. «Capítulo 2», in Bái Lù Yuán [Planície do Veado Branco]. Tradução inédita de Daniela Guerreiro. 1995. Pequim: Ren Min Wen Xue Chu Ban She. 24­­‑25.

Os dois estavam sentados nas cadeiras de ambos os lados da mesa, no meio havia um braseiro de carvão. O fogo ardia calma e silenciosamente, não havia fumo, não havia chamas; na camada de cinzas brancas, restos do que já tinha ardido, ainda se notavam claramente as linhas da madeira; não se via nem o fogo nem o fumo, mas sentia‑­­ se bem o calor. O seu cunhado ia acrescentando mais pedaços ao fogo ao mesmo tempo que levantava o tripé para ferver a água e para fazer a infusão do chá. Ele começou, então, a contar tudo detalhadamente: como fora procurar o mestre de ying yang, como urinara na terra coberta de neve, como descobrira na pequena encos‑ ta uma porção de terreno que não fora coberta pela neve, como escavara a terra e descobrira uma coisa estranha e como defecara naquele lugar para encobrir a cena. Depois, perguntou: «Já ouviste falar de uma coisa seme‑ lhante?» O seu cunhado, o senhor Zhu, escutou tudo silenciosamente, ha‑ via nos seus olhos um brilho de surpresa e, sem responder à pergunta dele, pegou numa folha de papel e pô‑la­­ em cima da mesa, passando um pincel a Jiaxuan e dizendo‑lhe:­­ «Desenha aí o formato dessa coisa estranha e branca que viste.» Jiaxuan segurou o pincel, molhou a ponta no tinteiro e come‑ çou a desenhar com um ar um pouco idiota, mas deveras sério. Desenhou cinco folhas e depois desenhou um caule, unindo‑a­­ s. Por fim, devolveu o pincel ao cunhado, um pouco arrependido e rindo aparvalhadamente: «Eu não sei desenhar.» O senhor Zhu agarrou no papel e olhou para ele, parecia que estava a tentar decifrar uma imagem dos Oito Trigramas quando, de repente, num estalar de língua, disse em tom de mistério: «Meu irmão, vê lá outra vez o que desenhaste.» Jiaxuan tomou o papel de volta e examinou‑o­­ mais uma vez, continuando a sorrir de forma tola, dizendo: «Na verdade, é o aspecto da coisa estranha e branca que escavei cá para fora.» O cunhado riu ‑­­ se, agarrou de volta o papel e disse a Jiaxuan: «O que tu desenhaste é um veado branco!» Jiaxuan ouviu e ficou surpreso, sem palavras; quanto mais olhava para o desenho estúpido que acabara de fazer, mais o desenho se parecia com um veado branco. Há muito, muito tempo (as lendas quase não

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dão importância à exactidão dos anos), surgiu nesta planície um veado bran‑ co, de pêlo branco, pernas brancas e patas brancas, os seus chifres eram mais brancos ainda, resplandecentes como jade, límpidos. O veado branco salta‑ va e pulava, ora parecia que corria, ora parecia que flutuava, e correu do leste até ao oeste da planície, desaparecendo depois, num ápice. Os camponeses daquela terra descobriram, de repente, que após a aparição do veado bran‑ co, os rebentos de trigo tinham crescido, de forma súbita; os frouxos e ex‑ tremamente amarelos tinham‑­­se transformado em verdes e viçosos; toda a planície e todo o rio eram um manto verde de rebentos de trigo. Depois de o veado branco ter corrido pelas terras, houve gente que descobriu, por entre os cumes, lobos mortos, raposas a darem o último suspiro, um monte de rãs mortas, umas escondidas em buracos, na terra, outras expostas, à superfície; todos os insectos venenosos e animais perigosos tinham morrido, em silên‑ cio. O que deixou as pessoas ainda mais surpreendidas foi o facto de terem descoberto, subitamente, que a velha avó, que estava paralisada e deitada na cama, pegara num rolo e estava a estender massa em cima da mesa, de forma natural e descontraída; que o velho, cego durante metade da sua vida, se en‑ contrava com os olhos bem abertos e brilhantes, carregando nas mãos uma peneira, de onde estava a retirar os grãos de areia que se tinham misturado com o trigo; que na cabeça tinhosa do segundo filho, calvo, crescera cabelo preto e luzidio; que a filha feia, estrábica e de boca torta, se tornara tão bela como uma flor de pessegueiro... Assim era a planície do veado branco. Mal Jiaxuan começou a entender as conversas mais simples dos adultos, ouviu a avó,o a mãe, pai e as várias pessoas da aldeia a repetirem inúmeras vezes a lenda misteriosa do veado branco; havia pequenas diferenças na história que cada um contava, mas não havia dúvida alguma quanto à aparição do vea‑ do branco. As pessoas, de geração em geração, saboreavam com gosto e de forma repetida essa história. Especialmente em alturas de sofrimento insu‑ portável causado por guerras, perda de colheitas, pestes e fomes, as pessoas esperavam que o veado branco pudesse milagrosamente aparecer de novo; o resultado, claro está, foi que tal nunca mais voltou a acontecer. No en‑ tanto, as pessoas continuavam a deleitar­‑se com a história. Era, na verda‑ de, uma história que resistia aos tempos. Um veado mágico, branco como a neve, tão flexível que parecia não ter ossos, alegre e saltitante, que dançava ali e acolá, vindo, à deriva, da Montanha do Sul, divertindo­­‑se, desmedido, na planície vasta e livre. Qualquer lugar por onde passasse, as plantas cres‑ ciam e multiplicavam­­‑se, os rebentos de cereais cresciam fortes e viçosos, as colheitas eram grandes e ricas, a criação do gado e das aves prosperava, as pragas desapareciam por completo, extinguiam­­‑se os insectos venenosos,

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todas as famílias viviam felizes e saudáveis. Que tempos maravilhosos eram aqueles, de paz e abundância! Um veado branco, deste género, assim que penetrava no coração das pessoas, quando estas começavam a entender a linguagem humana, nunca mais devia ser esquecido. Jiaxuan pegava agora no papel onde acabara de desenhar aquele veado branco e na sua mente já galopava um veado mágico, vívido, de cor branca. Enraizava­­‑se nele, ainda mais, a convicção de que ele era um entre os mortais e o cunhado um sá‑ bio. Tinha visto com os seus próprios olhos aquela coisa estranha e bizarra que estava por debaixo da terra coberta de neve e desenhou com as suas próprias mãos o seu formato, mas com uma frase: «O que desenhaste é um veado!» Nesse momento, levantou‑­­se o pano que cobre os olhos dos mortais e tudo se tornou claro como a água. A diferença entre o comum dos mortais e o sábio reside nesse pano; o comum dos mortais, quando reencarna, traz consigo o pano que lhe tapava a cara no momento em que morrera, na vida anterior; somente o sábio, que desvendou os deuses, é capaz de retirar o pano ao reencarnar. O comum dos mortais nunca entenderá por completo os afazeres dos homens que se apresentam à frente dos seus olhos; porém, o sábio compreende perfeitamente as contradições e a diversidade dos as‑ suntos humanos. O comum dos mortais só se apercebe, por um instante, da realidade, no momento em que o sábio lhe levanta o pano e o esclarece; depois, o pano cai novamente e tudo volta a ficar escuro e confuso. Depois de ter dito «Isso é um veado», o cunhado sábio não proferiu nem mais uma palavra; aliás, baixou a cabeça e virou a cara. Jiaxuan percebeu que essa era a forma de um sábio mandar alguém embora, por isso, despediu­­‑se do cunha‑ do e voltou para casa.

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 407 12/06/20 17:19 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 408 12/06/20 17:19 (7) conflitos 409

Buland AL­ ­‑HAIDARI. «O carteiro», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1647 ‑1648.

que queres tu carteiro? estou longe do mundo sem dúvida estás equivocado... já que nada de novo há que o mundo possa trazer a este fugitivo. o que era é ainda o que é costume: sonhar ou enterrar ou evocar enquanto a gente tem ainda seus festejos e seus funerais juntando festa com festa seus olhos desenterrados em suas mentes outro osso para uma nova fome. a China ainda tem a sua muralha um mito apagado e um destino em repetição a Terra tem ainda o seu Sísifo e uma pedra que não sabe o que quer.

carteiro sem dúvida estás equivocado... já que nada é novidade volta à estrada já que a estrada tanta vez te trouxe. e que queremos nós?

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 409 12/06/20 17:19 410 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Yehuda AMICHAI. «Jerusalém», in Terra e Paz. Tradução de Moacir Amâncio. [1999] 2018. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. 21.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 410 12/06/20 17:19 (7) conflitos 411

BA JIN. «Capítulo XI» e «Capítulo XIV», in Jiã [Família]. Tradução inédita de Humberto U Long Io e Sofia de Sousa Kou. [1933] 2010. Hong Kong: Cosmos Books Limited. 27­‑29 e 63­‑65.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 411 12/06/20 17:19 416 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Haiim Nahman BIALIK. «Sobre a matança», in Col haShirim [Toda a Poesia]. Tradução inédita e adaptação de Moacir Amâncio a partir de versão online [disponível em https://benyehuda.org/bialik/bia061_no_ nikkud.html: acedido a 5 de Dezembro de 2019]. [1934].

Céus, implorai piedade por mim! Se há um Deus em vós e se em vós há um caminho até Ele — E eu não O encontrei — Orai por mim! Eu — meu coração morreu e não há mais prece em meus lábios, E já me abandonaram as forças e a esperança se foi — Até quando, por quanto tempo, até quando?

Carrasco! Eis o pescoço — vem e mata! Degola­­‑me como a um cão, teu é o braço e teu é o machado, E para mim toda a terra é um patíbulo — E nós — nós somos a parte fraca! Meu sangue é nada — golpeia o crânio, e o sangue da chacina, Sangue dos que ainda são de peito e dos velhos, estará em tuas vestes — E jamais sairá, jamais.

E se há justiça — que apareça agora! Porém se vier após minha destruição Sob os céus — Por favor, que seu trono seja violado! E que o mal eterno corrompa os céus; E vós, perversos, nesta agressão E no vosso sangue vivei e vos purificai. E maldito seja quem diga: vingança! Vingança como esta, vingança do sangue de uma criança, Ainda não foi criada por Satã. E que o sangue penetre as profundas! Que o sangue penetre até o fundo da treva, E devore na escuridão e seja cárie De todas as fundações desta terra podre.

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Mahmûd DARWÎSH. [(para um guarda:) vou­­‑te ensinar a esperar]. Tradução inédita de André Simões. Revisão da tradução de Nadia Bentahar. A partir de versão online [disponível em http://www.adab.com/ modules.php?name=Sh3er&doWhat=lsq&shid=328&r=&start=0: acedido a 24 de Fevereiro de 2020].

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 417 12/06/20 17:19 418 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Nicolás GUILLÉN. «Responde tu...», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de José Bento. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1439.

Tu, que partiste de Cuba, responde tu, — onde acharás verde e verde, azul e azul, palmeiras e palmeiras sob o céu? Responde tu.

Tu, que tua língua esqueceste, responde tu, e em língua estrangeira mastigas o well e o you, — como podes viver mudo? Responde tu.

Tu, que deixaste a terra, responde tu, onde teu pai repousa sob uma cruz, — onde deixarás teus ossos? Responde tu.

Ah, infeliz, responde, responde tu, — onde acharás verde e verde, azul e azul, palmeiras e palmeiras sob o céu? Responde tu.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 418 12/06/20 17:19 (7) conflitos 419

Khalîl HÂWÎ. «Na obscuridade das entranhas», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1649.

passai mais docemente sobre nossos nervos, caminhantes. não, nós não estamos mortos. apenas fatigados por um nevoeiro sujo de rosto apodrecido e falso que se estira e faz serpente, polvo, enigmas. antes o ventre da terra que este ar sem ar.

passai mais docemente sobre nossos nervos, caminhantes. estamos no negro de um subsolo calmo. apagando a febre, recuperando o espírito, cantamos. escondemo­­‑nos. escondemos nossa vida longe das sendas do tempo viandantes, sobre nossos nervos passai mais docemente.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 419 12/06/20 17:19 420 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Masuji IBUSE. «O lírio louco», in Os Melhores Contos Japoneses. Tradução de Anabela Monteiro e Carlos Alberto Nunes. [1951] 1967. Lisboa: Arcádia. 71 ­­‑93.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 420 12/06/20 17:19 (7) conflitos 425

Yusuf IDRĪS. Bait min Lahm [Casa de Carne]. Tradução inédita de Raquel Carapinha. [1971] s.d. Cairo: Maktaba Misr. 8­‑11.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 425 12/06/20 17:19 428 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Muhammad ‘Afîfî MATAR. «O visitante nocturno», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1755­­‑1756.

eram seus olhos verdes um sonho que chorava no asfalto da rua e os versículos da sua inocência uma sede no homem enterrada

desatou o cavalo verde da chuva dos cravos do raio e deslizou através das nuvens para visitar o sonho adormecido nas camas das crianças e alimentá­­‑las, ou dar­‑lhes de beber, da fonte do verde mel.

seus pés bons e seu corpo trémulo e nu esfolavam ­­‑se nos mastros da noite. e nos seus dorsos fundiam­­‑se colunas de granito. foi enterrado sobre os beirados dos tectos e das torres crucificado, sangrando, mordido nas trevas pelos gatos.

o peixe negro salta na corrente do sangue e escapa: comboios de gente surda trombetas que ressoam, génios que gritam dentro de uma garrafa vozes que clamam na garganta do asfalto

quem, no ventre tenebroso, morreu e quando secará o sangue?

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 428 12/06/20 17:19 (7) conflitos 429

Yukio MISHIMA. «Patriotismo», in Morte no Verão e Outras Histórias. Tradução de Maria José Figueiredo. [1961] 1991. Lisboa: Estampa. 137­‑147.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 429 12/06/20 17:19 (7) conflitos 433

Toni MORRISON. Beloved. Tradução de Maria João Freire de Andrade. [1987] 2009. Lisboa: D. Quixote. 200­‑206.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 433 12/06/20 17:19 (7) conflitos 437

MO YAN. «Capítulo um», in Peito Grande, Ancas Largas. Tradução de João Martins. [1996] 2007. Lisboa: Ulisseia. 15­­‑21.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 437 12/06/20 17:19 440 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Meja MWANGI. Carcaça para Cães. Tradução de Fernanda Tomé Silva. [1974] 1980. Lisboa: Edições 70. 152­‑160.

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 440 12/06/20 17:19 446 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

David RUBADIRI. «Sem dote», in No Bride, No Price. Tradução inédita de Flávia Ba. [1967] 1971. Nairobi: East African Publishing House. 7­‑17.

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 446 12/06/20 17:19 452 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Sahle SELLASSIE. «1. Fogo na aldeia», in The Afersata. Tradução inédita de Flávia Ba. 1969. Londres: Heinemann. 1­­‑10.

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 452 12/06/20 17:19 456 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Fadwa TUQÂN. «Na torrente», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1541.

apagaram-se os rostos à nossa volta e desapareceram as coisas nessa noite salvo o brilho azul radioso dos teus olhos e o apelo. pelo azul radioso navegava, em busca dele, meu coração qual barca que a torrente deseja. e a ele me amarrou essa torrente mar sem margens infinito e irresistível no qual contam as ondas a história da vida e da eternidade. congela aqui contida num só olhar, já a terra se funde ao impulso do barro, dos ventos e da chuva.

aquela noite despertou o meu jardim os dedos da ventania agitaram-se sob a dança dos ventos e da chuva a relva do jardim as flores e os frutos menos o brilho radioso que navegava em busca dele meu coração como barca que a torrente deseja.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 456 12/06/20 17:19 (7) conflitos 457

David VOGEL. «No sótão», in Col haShirim [Toda a Poesia]. Tradução inédita de Moacir Amâncio. [1966] 1998. Tel Aviv: Hakibbutz Hameuchad. 57.

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 457 12/06/20 17:19 458 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

YUAN YI. «Formosa rival», in zhōng guó­gù shì [Contos da China]. Tradução inédita de Carlos Botão Alves e Li Fei. 2008. Xangai: shǎng hǎi jǐn xiù wén zhāng chū bǎn­ shè. 326­‑330.

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 458 12/06/20 17:19 (7) conflitos 465

YU HUA. Crónica de um Vendedor de Sangue. Tradução inédita de Chan Hoi Kei. [1995] 2011. Taiwan, Taipé: Rye Field Publishing Co. 54­­‑57.

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 465 12/06/20 17:19 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 468 12/06/20 17:19 (8) EMANCIPAÇÃO, LIBERDADE E RESISTÊNCIA

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 469 12/06/20 17:19 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 470 12/06/20 17:19 (8) emancipação, liberdade e resistência 471

Nawāl AL­ ­‑SAADĀWI. ’Imra’a ’inda Nuqtat al­­‑Sifr [Mulher no Ponto Zero]. Tradução inédita de Raquel Carapinha. [1975] 2002. Cairo­­‑Alexandria­­ ‑Beirute: al­­‑Mustaqbal. 15‑19.­­

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 471 12/06/20 17:19 474 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Hanan AL­ ­‑SHAYKH. Só­em Londres. Tradução de Rute Rosa Silva. [2001] 2002. Lisboa: Difel. 30­‑32.

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 474 12/06/20 17:19 (8) emancipação, liberdade e resistência 477

Maya ANGELOU. «Mulher Fenomenal», in The Complete Collected Poems of Maya Angelous. Tradução inedita de João M.P. Gabriel. [1978] 1994. Nova Iorque: Random House. 130­‑131.

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 477 12/06/20 17:19 (8) emancipação, liberdade e resistência 479

Miguel Ángel ASTÚRIAS. Homens de Milho. Tradução de Maria Helena da Graça Lima Gomes. [1949] 1986. Lisboa: Edições 70. 80­‑83.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 479 12/06/20 17:19 (8) emancipação, liberdade e resistência 483

Margaret ATWOOD. A História de Uma Serva. Tradução de Rosa Amorim. [1985] 2013. Lisboa: Bertrand. 156­‑162.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 483 12/06/20 17:19 (8) emancipação, liberdade e resistência 489

Tahar BEN JELLOUN. De Olhos Baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares Guerra. [1991] 1992. Lisboa: Bertrand. 84­­‑86.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 489 12/06/20 17:19 492 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Mu’in BESSEISSO. «A Rimbaud», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução inédita de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1645.

quando Rimbaud se tornou negreiro, e lançou a sua rede sobre a Etiópia, para caçar leões pretos, cisnes pretos abandonou a poesia... como era honesto aquele rapazinho... mas muitos poetas se tornaram traficantes de escravos, usurários e não abandonaram a poesia. no palácio do sultão os seus poemas viraram portas e janelas e não abandonaram a poesia... elogiaram, receberam medalhas e títulos, ouro, e prata e taças de pedra e não abandonaram a poesia... a marca do gendarme a pegada do gendarme estava nos seus poemas e não abandonaram a poesia... como era honesto Rimbaud como era honesto aquele rapazinho.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 492 12/06/20 17:19 (8) emancipação, liberdade e resistência 493

CHUAH Guat Eng. «Demokratikus», in Petals of Hibiscus: A Representative Anthology of Malaysian Literature in English. Tradução inédita de Simão Valente. 2003. Petaling Jaya: Pearson Malaysia. 101.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 493 12/06/20 17:19 494 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Sandra CISNEROS. «O meu nome», in A Casa da Rua das Mangas. Tradução de Fernanda O’Brien. [1983] 2010. Lisboa: Arcádia. 43­‑44.

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 494 12/06/20 17:19 (8) emancipação, liberdade e resistência 495

Michael CUNNINGHAM. «Mrs. Brown», in As Horas. Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues. [1998]. 2002. Porto: Público Comunicação Social SA. 39­‑44.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 495 12/06/20 17:19 (8) emancipação, liberdade e resistência 499

Mahmûd DARWÎSH. [toma nota], in ’Awraq az­­‑zaytûn [Folhas de Oliveira]. Tradução inédita de André Simões. Revisão da tradução de Nadia Bentahar. A partir de versão online [disponível em http://www.adab. com/modules.php?name=Sh3er&doWhat=lsq&shid=328&r=&start=0: acedido a 24 de Fevereiro de 2020].

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o meu pai é da família do arado, não de grandes senhores,

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 499 12/06/20 17:19 502 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Anita DESAI. A Luz Brilhante do Dia. Tradução de Carmo Vasconcelos Romão. [1980] 2000. Lisboa: Gradiva. 54­­‑58.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 502 12/06/20 17:19 506 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Ananda DEVI. Tango Indiano. Tradução de Joana Marques de Andrade. [2007] 2008. Lisboa: Europress. 7­‑12.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 506 12/06/20 17:19 510 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Ramón LÓPEZ VELARDE. «A suave pátria», in Novedad de la Patria. Tradução inédita de Mitzi Guerrero. 1923. Cidade do México: Imprenta de Murguía. 39­­‑43.

PROÉMIO

Eu que só cantei da requintada partitura do íntimo decoro, alço hoje a voz para a metade do foro, à maneira do tenor que imita a gutural modulação do baixo para cortar para a epopeia um gomo.

Navegarei pelas ondas civis com remos que não pesam, porque vão como os braços do correio chouan que remava a Mancha com fuzis.

Direi com uma épica surdina: a Pátria é impecável e diamantina.

Suave Pátria: permite que te embrulhe na mais funda música de selva com a que me modelaste por inteiro ao golpe cadenciado dos machados, entre risos e gritos de moças e pássaros de ofício carpinteiro.

PRIMEIRO ACTO

Pátria: a tua superfície é o milho, as tuas minas o palácio do Rei de Ouros, e o teu céu as garças deslizantes e o relâmpago verde dos papagaios.

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O Menino Deus escriturou‑­­te um estábulo e os poços de petróleo o diabo.

Sobre a tua Capital, cada hora voa arregalada e pintada, em carroça; e na tua província, do relógio em claro que rondam os pombos cauda­­‑de­­‑leque, as badaladas caem como centavos.

Pátria: o teu mutilado território veste ­­‑se de percal e missanga.

Suave Pátria: a tua casa ainda é tão grande, que o comboio vai pela via como presente de loja de brinquedos.

E no barulho das estações, com o teu olhar de mestiça, pões a imensidade sobre os corações.

Quem, na noite que assusta o sapo, não olhou, antes de saber do vício, do braço da sua noiva, a galante pólvora dos jogos de artifício?

Suave Pátria: no teu tórrido festim luzes policromias de golfinho, e com o teu cabelo loiro desposa‑­­se a alma, equilibrista beija‑flor­­ , e para as tuas duas tranças de tabaco sabe oferendar hidromel toda a minha briosa raça de dançarinos de jarabe.

O teu barro soa à prata, e no teu punho sua sonora miséria é cofrezinho; e pelas madrugadas do torrão, em ruas como espelhos, esvazia­­‑se o santo cheiro da padaria.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 511 12/06/20 17:19 512 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Quando nascemos, dás­‑nos notas, depois, um paraíso de compotas, e a seguir dás­‑te toda inteira suave Pátria, despensa e passareira.

Ao triste e ao feliz dizes que sim, que na tua língua de amor provem em ti a picada de gergelim.

E o teu céu nupcial, que quando troveja de deleites frenéticos nos enche!

Trovão das nossas nuvens, que nos banha de loucura, enlouquece à montanha, requebra à mulher, sana ao lunático, encarna aos mortos, pede o Viático, e no final derriba as madeireiras de Deus, sobre as terras lavradias.

Trovão da tempestade: ouço nas tuas queixas ranger os esqueletos em casais; ouço o que se foi, o que ainda não toco, e a hora actual com o seu ventre de coco, e ouço no salto da tua ida e vinda, ó, trovão!, a roleta da minha vida.

INTERMÉDIO

Cuauhtémoc Jovem avó: escuta‑me­­ louvar­‑te, único herói à altura da arte.

Anacronicamente, absurdamente, ao teu nopal inclina‑­­se o roseiral; o idioma do branco tu magnetizas e és fornecedora de católica fonte que de responsos enche o vitorioso rossio de cinzas das tuas plantas.

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Não como a César o rubor patrício cobre ­­‑te o rosto no meio do suplício: a tua cabeça nua fica em nós, hemisfericamente, de moeda.

Moeda espiritual em que se forja tudo o que sofreste: a piroga prisioneira, o açoramento das tuas crias, o soluçar das tuas mitologias, a Malinche, os ídolos a nado, e, ainda mais, ter­‑te desatado do teu peito curvo de imperatriz como do peito de uma codorniz.

SEGUNDO ACTO

Suave Pátria: tu vales pelo rio das virtudes das tuas mulheres; as tuas filhas atravessam como fadas, ou a destilar um invisível álcool, vestidas com as redes do teu sol, cruzam ­­‑se como garrafas de arame.

Suave Pátria: amo‑­­te não qual mito, senão pela tua verdade de pão bendito; como a menina que assoma pela grade com a camisa corrida até à orelha e a saia descida até ao ossinho.

Inacessível à desonra, floresces; crerei em ti enquanto uma mexicana no seu xaile‑manta­­ leve as dobras da loja, às seis da manhã, e ao estrear o seu luxo, fique cheio o país do cheiro do estreio.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 513 12/06/20 17:19 514 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Como a astuciosa moça, Pátria minha, no chão de metal, vives dia a dia, de milagre, como a lotaria.

A tua imagem, o Palácio Nacional, com a tua mesma grandeza e com a tua igual estatura de criança e de dedal.

Dar­ ­‑te­­‑á, diante à fome e ao obus, um figo São Filipe de Jesus.

Suave Pátria, vendedora de chia: quero ­­‑te raptar na quaresma opaca, sobre um garanhão, e com matraca, e entre os tiros da polícia.

As tuas entranhas não rejeitam um asilo para a ave que o párvulo sepulta numa caixa de carretos de fio, e a nossa juventude, a chorar, oculta dentro de ti o cadáver feito pomo de aves que falam o nosso mesmo idioma.

Se eu me afogar nos teus julhos, para mim desce desde o vergel do teu penteado denso frescura de mantilha e de talha: e se eu tiritar, deixa que eu me envolva na tua respiração azul de incenso e nos teus carnudos lábios de rompope.

Pela tua varanda de palmas abençoadas o Domingo de Ramos, eu desfilo cheio de sombra, porque tu trepidas.

Querem morrer a tua alma e o teu estilo, qual morrendo vão as cantoras que nas feiras, com o bravio peito escornando a camisa, têm feito a luxúria e o ritmo das horas.

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Pátria, dou­­‑te da tua fortuna a chave: sê sempre igual, fiel ao teu espelho diário; cinquenta vezes é igual o Ave furado no fio do rosário, e é mais feliz que tu, Pátria suave.

Sê igual e fiel; pupilas de abandono; sedenta voz, a trigarante faixa nos teus peitos ao vapor; e um trono à intempérie, qual um chocalho: a carreta alegórica de palha!

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 515 12/06/20 17:19 516 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Claude MCKAY. «Exilado», Complete Poems. Tradução inédita de Amândio Reis. [1922] 2004. Urbana e Chicago: University of Illinois Press. 173.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 516 12/06/20 17:19 (8) emancipação, liberdade e resistência 517

Flannery O’CONNOR. «Um bom homem é difícil de encontrar», in Um Bom Homem É Difícil de Encontrar. Tradução de Clara Pinto Correia. [1953] 2006. Lisboa: Cavalo de Ferro. 7­‑13.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 517 12/06/20 17:19 (8) emancipação, liberdade e resistência 523

Sylvia PLATH. «Colosso», in Pela Água. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. [1960] 2000. Lisboa: Assírio & Alvim. 11­­‑13.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 523 12/06/20 17:19 (8) emancipação, liberdade e resistência 525

Adrienne RICH. «Que espécie de tempos são estes?», in Collected Poems: 1950­­‑2012. Tradução inédita de João M.P. Gabriel [disponível online em https://www.poetryfoundation.org/poems/51092/what­‑kind­­‑of­­‑times­‑are­­ ‑these: acedido a 15 de Novembro de 2019]. [1991] 2016. Nova Iorque: W.W. Norton & Company.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 525 12/06/20 17:19 526 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

YI MUN ­­‑YOL. O Nosso Herói Perverso. Tradução inédita de Amândio Reis. [1987] 1995. Seul: Minumsa. 24­­‑28.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 526 12/06/20 17:19 (8) emancipação, liberdade e resistência 529

YU HUA. China em Dez Palavras. Tradução inédita de Rui Manuel Gomes Vieira. [2011] 2016.Taiwan, Taipé: Rye Field Publishing Co. 189­‑190.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 529 12/06/20 17:19 (9) EXISTÊNCIAS PÓS ­­‑COLONIAIS

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 531 12/06/20 17:19 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 532 12/06/20 17:19 (9) existências pós­­‑coloniais 533

Chinua ACHEBE. Quando Tudo se Desmorona. Tradução de Eugénia Antunes e Paulo Rêgo. [1958] 2008. Lisboa: Mercado de Letras. 51­­‑52.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 533 12/06/20 17:19 (9) existências pós­­‑coloniais 535

Okot p’BITEK. «A língua do meu marido amargou», in Song of Lawino & Song of Okol. Tradução inédita de Flávia Ba. [1966] 1984. Joanesburgo: Heinemann. 34­­‑36

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 535 12/06/20 17:19 540 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Alejo CARPENTIER. Os Passos Perdidos. Tradução de António Santos. [1953] 1981. Lisboa: Edições 70. 47­‑51.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 540 12/06/20 17:19 (9) existências pós­­‑coloniais 545

Louise ERDRICH. «Caro John Wayne», in Jacklight. Tradução inédita de Amândio Reis. 1984. Nova Iorque: Holt, Rinehart, and Winston. 17­‑19.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 545 12/06/20 17:19 (9) existências pós­­‑coloniais 547

Gabriel GARCÍA MARQUEZ. Cem Anos de Solidão. Tradução de Margarida Santiago. [1967] 1988. Lisboa: D. Quixote. 9­‑12.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 547 12/06/20 17:19 (9) existências pós­­‑coloniais 551

Langston HUGHES. «O negro fala de rios», in The Collected Poems of Langston Hughes. Tradução inédita de Amândio Reis. [1920] 1995. Nova Iorque: Vintage Books. 23.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 551 12/06/20 17:19 552 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Alain MABANCKOU. O Pimentinha. Tradução inédita de Miriam de Sousa. 2015. Paris: Éditions du Seuil. 21­­‑24.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 552 12/06/20 17:19 (9) existências pós­­‑coloniais 555

Saadat Hasan MANTO. «Toba Tek Singh», in 25 Sarvashresth Kahaniyan [25 Melhores Contos]. Tradução inédita de Rita Ray. [1955] 2018. Noida: Maple Press.­ 120­‑127.

Texto sujeito a direitos de autor.

* Viva.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 555 12/06/20 17:19 562 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Claude MCKAY. «Os trópicos em Nova Iorque», in Complete Poems. Tradução inédita de Amândio Reis. [1922] 2004. Urbana e Chicago: University of Illinois Press. 154.

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 562 12/06/20 17:19 (9) existências pós­­‑coloniais 563

Cynthia MCLEOD. «Capítulo 1», in Hoe duur was de suiker?. Tradução inédita de Patrícia Couto [disponível online em http://www.dbnl.org/tekst/ mcle001hoed01_01/: acedido a 20 de Janeiro de 2020]. 1987. Paramaribo: Vaco.

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 563 12/06/20 17:19 572 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Al ­­‑Tayyeb SALIH. Época da Migração para Norte. Tradução de Raquel Carapinha. [1966] 2006. Lisboa: Cavalo de Ferro. 58­‑61.

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 572 12/06/20 17:19 (9) existências pós­­‑coloniais 575

Wole SOYINKA. Os Intérpretes. Tradução de Maria Helena Morbey. [1965] 2018. Coimbra: Almedina. 157­‑160.

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 575 12/06/20 17:19 578 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Pramoedya Ananta TOER. A Rapariga de Java. Tradução de Maria José Miranda Mendes. [1987] 2002. Lisboa: Quetzal. 9­‑15.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 578 12/06/20 17:19 (9) existências pós­­‑coloniais 583

Ngũgĩ wa THIONG’O. Um Grão de Trigo. Tradução de Maria Alexandra de Carvalho. [1967] 1980. Lisboa: Edições 70. 17­‑23.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 583 12/06/20 17:19 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 586 12/06/20 17:19 (10) LITERATURA E COSMOPOLITISMO

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 587 12/06/20 17:19 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 588 12/06/20 17:19 (10) literatura e cosmopolitismo 589

Samih AL­­‑QASIM. «Assim», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1782­­‑1783.

como se planta uma palmeira no deserto como minha mãe dispõe, sobre a minha cara dura, um beijo como meu pai tira a capa beduína e soletra as letras ao meu irmão como arrasta os cascos de guerra um pelotão como a haste de trigo se levanta na terra estéril como uma estrela sorri ao namorado como seca uma brisa o rosto fatigado do trabalhador como entre nuvens espessas se levanta uma soberba fábrica como um grupo de amigos começa a cantar como um estranho para outro sorri afectuosamente como uma ave volta ao ninho do amado como um rapaz leva a sua sacola como o deserto adverte da fertilidade assim pulsa em minh’alma a arabidade.

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Sharadindu BANDYOPADHYAY. Oitihasik Kahini Samagra [A Noite Sangrenta]. Tradução inédita de Rita Ray. [1939] 1998. Calcutá: Ananda. 275­­‑282.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 590 12/06/20 17:19 (10) literatura e cosmopolitismo 593

J.M. COETZEE. O Mestre de Petersburgo. Tradução de J. Teixeira de Aguilar. [1994] 2004. Lisboa: D. Quixote. 99­‑102.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 593 12/06/20 17:19 (10) literatura e cosmopolitismo 597

Rubén DARÍO. «Caracol», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de José Bento. [1905] 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1167.

A Antonio Machado

Numa praia encontrei um caracol de ouro, maciço e recamado das pérolas mais finas; tocou­­‑o Europa com suas mãos divinas quando foi pelas ondas sobre o celeste touro.

A meus lábios ergui o caracol sonoro e suscitei o eco das dianas marinas; levei­­‑o a meus ouvidos e tantas azuis minas contaram­­‑me em voz baixa seu secreto tesouro.

Assim me chega o sal dos ventos tão amargos que em suas veias plenas sentiu a nave de Argos quando amaram os astros o sonho de Jasão;

e oiço um rumor de ondas e um incógnito acento, um ondular profundo e um misterioso vento... (O caracol a forma possui de um coração.)

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Carlos FUENTES. «O prisioneiro de Las Lomas», in Constância e Outras Novelas para Virgens. Tradução de Victor Filipe. [1990] 1992. Lisboa: D. Quixote. 139­­‑142.

Deu­­‑me para calçar sapatos com atacadores; era o pretexto para pedir ao criado Marco Aurélio que subisse para me ajudar, conversar, e informar­­‑me: toda essa gente que estava no jardim era família do recluso Dimas Palme‑ ro? Sim, contou Marco Aurélio, uma família mexicana muito bonita, muito grande, ajudando‑se­­ todos entre si, conforme já lhe disse. E que mais?, insis‑ ti, e ele riu­­‑se ao ouvir­­‑me; todos católicos, nada de pílulas, nada de preser‑ vativos, os filhos que Deus mandar... Donde eram? Do Estado de Morelos, camponeses todos eles, trabalhadores nos campos de açúcar; não, os cam‑ pos não estavam abandonados, pois não lhe estou a dizer?, don Nico, nós somos aos magotes, ha ha, isto não é só uma delegação, nós somos muito bons, em Morelos, a organizar delegações e enviá‑las­­ para a capital a pedir justiça, o senhor lembre‑se­­ apenas do general Emiliano Zapata; assim verá que temos aprendido alguma coisa. Já não pedimos justiça. Agora fazemos nós a justiça. Mas eu sou inocente, disse a Marco Aurélio ajoelhado à minha frente, eu perdi a Lala, eu sou... Ergueu o olhar negro e amarelo como a ban‑ deira duma nação invisível e rancorosa: — Dimas Palmero é nosso irmão. Não o tirava daí! Que gente teimosa! Nosso irmão: di­­‑lo­­‑ia literalmente ou por solidariedade? (Teimosos zapatistas do caraças!) Um advogado sabe que tudo neste mundo (a palavra, a lei, o amor...) pode interpretar­­‑se no sen‑ tido estrito ou no sentido lato. A irmandade do meu insólito criado Marco Aurélio e de Dimas, o meu criado encarcerado, era de sangue, ou era figura‑ da? Estreita ou lata? Eu tinha que o saber para saber com que contava: Marco Aurélio, disse­­‑lhe um dia, mesmo que eu retire a queixa contra o teu irmão, como tu lhe chamas (olhar velhaco, verrinoso, silêncio) o procurador vai mantê­­‑la porque houve muitas testemunhas da altercação entre a Lala e o teu irmão ao pé da piscina, não depende de mim, vão persegui­­‑lo ex­­‑officio, compreendes­­‑me?, não se trata de vingar a morte de Lala... — Nossa irmã... puta não, isso é que não. Tinha‑o­­ ajoelhado à minha frente a atar­­‑me os atacadores dos sapatos e ao ouvi­­‑lo dizer isto dei­­‑lhe um pontapé na cara, garanto­­‑lhes que não foi

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intencional, foi um reflexo brutal perante uma afirmação brutal, dei‑lhe­­ um pontapé brutal no maxilar, deixei­­‑o K.O., caiu de costas e eu segui o meu instinto cego, abandonei a razão (já por si bastante adormecida) e corri esca‑ das abaixo para o hall, no momento em que uma criada desconhecida varria a ombreira e a porta aberta me convidava a sair para a manhã de Las Lomas, o ar picante do pólen, o assobio distante de um vendedor de balões e a fuga das esferas vermelhas, azuis, amarelas, libertas, longe do vazio do barranco que nos circunda, dos seus altos eucaliptos descascados lutando contra o cheiro de merda refugiada nas bisagras do monte: balões de cores saudaram­­ ‑me ao sair, ao respirar veneno, ao esfregar os olhos. O meu jardim era o sítio duma romaria. O cheiro a fritos impunha‑se­­ ao da merda e ao do eucalipto; o fumo dos braseiros, gritos de crianças, tanger de violas, click de caricas, dois gendarmes a namorar as raparigas de tranças e avental através da grade trabalhada da minha mansão, um velho de cabelo azulado e boca desdentada com calças remendadas e sandálias, com o cha‑ péu de palha envernizada na mão e o convite — aproximou­­‑se de mim —, deseja alguma coisinha, senhor, há boas guloseimas, senhor: eu olhei para os polícias que não olharam para mim, estavam a rir­­‑se maliciosamente com as raparigas do campo e eu via­­‑as, grandes cabras, já grávidas, como putas, não?, parindo no campo os filhos dos chuis, as crianças a aumentar a família de, de, deste velho patriarca que me oferecia guloseimas, em vez de proteger as duas raparigas seduzidas por um par de sinistros bandidos fardados, sorridentes, indiferentes à minha presença nos degraus da minha casa. Também iria pro‑ teger essas da mesma maneira como protegeu Lala? Põe­­‑me louco. Olhei­­‑o de frente tentando compreendê‑lo.­­ Que podia fazer? Agradeci­­‑lhe e sentei­­‑me no meu próprio jardim com ele, e uma mulher ofereceu­­‑nos tortilhas quentes num cestinho. O velho pediu­­‑me que me servisse primeiro e eu repeti o gesto atávico de tirar o pão dos deuses de baixo do seu guardanapo encarnado, ligeiramente humede‑ cido, suado, como se a própria terra se tivesse aberto para me oferecer a madalena proustiana dos mexicanos: a tortilhita bem quentinha. (Os que me escutam recordar­­‑se­­‑ão que eu lancei toda uma geração de miúdas leitoras de Marcel Proust, e quem lê Proust, dizia um amigo meu muito nacionalista, proustitui­­‑se!) Que fantástico!: a realidade é que, sentado ali com o velho patriarca comendo tortilhas quentes com sal, me senti tão bem, tão como tendo regressado ao abraço da minha mãezinha ou coisa parecida, que disse para comigo não há remédio, venham as tortilhas, vamos lá ver essas barri‑ quinhas de pinga que vi entrar no outro dia na garagem, trouxeram­­‑nos os copos transbordantes de espesso licor de ananás, e Marco Aurélio de certeza

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que continuava bem K.O., porque dele nem sombra: eu com as pernas cru‑ zadas na minha própria relva, o velho a dar­­‑me de comer, eu a perguntar, até quando vão estar aqui, não se aborrecem, não têm que regressar a Morelos, isto pode durar anos, já pensou nisso, senhor? Olhou­­‑me com o seu olhar imortal, o velho cabrão, e disse­­‑me que eles iam fazendo turnos, não repara‑ va eu nisso?, iam e vinham, não eram duas vezes os mesmos, todos os dias uns regressavam e outros chegavam, porque se tratava de fazer um sacrifício por Dimas Palmero e também pela Eduardita, coitadinha, não me tinha eu aper‑ cebido disso? Julgava então que era sempre a mesma gente que cá estava fora? Riu­­‑se um pouco, tapando com a mão a enfarinhada: o que realmente acon‑ tecia é que eu não reparava neles, eram todos completamente iguaizinhos... Mas cada um é diferente, disse o velho de repente, com uma seriedade opaca que me encheu de medo, cada um vem ao mundo para ajudar a sua gente, e ainda que a maior parte morra em pequeno, o que teve a sorte de crescer, esse, senhor, é um tesouro para um velho como eu, esse vai ocupar­­ ‑se da terra, esse vai trabalhar lá para cima, para o norte, com os gringos, esse vem para a capital para servi‑lo­­ a si, todos eles vão mandar dinheiro para os velhos, diga‑me­­ lá o senhor (voltou à sua amabilidade habitual), se nós os velhos não vamos saber quem é, como se chama, o que anda a fazer, a quem se parece cada um dos nossos filhos, se dependemos deles para não morrer‑ mos de fome quando nos tornamos velhos! Apenas com uma condição, disse pausadamente: — Pobres mas dignos, senhor, Olhou por cima do meu ombro e cumprimentou. Eu segui­­‑lhe o olhar. Marco Aurélio com a sua camisa branca e as suas calças pretas acariciava o queixo, parado à saída de casa. Eu levantei­­‑me, agradeci ao velho, sacudi as ervas das nádegas e fui em direcção a Marco Aurélio. Sabia que de agora em diante eu iria andar sempre de simples mocassins.

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Édouard GLISSANT. Todo­­‑o­­‑Mundo. Tradução inédita de Ana Paula Coutinho. 1996. Paris: Folio / Gallimard. 17­‑23.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 601 12/06/20 17:19 (10) literatura e cosmopolitismo 605

Alex La GUMA. «Um passeio na noite», in Um Passeio na Noite e Outros Contos. Tradução de Paula Cunha Matos. [1962] 1979. Lisboa: Edições 70. 18­ ­‑22.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 605 12/06/20 17:19 (10) literatura e cosmopolitismo 609

HU SHIH. A Renascença na China. Tradução inédita de Carlos Botão Alves. [1926] 1934. Chicago: The University of Chicago Press. 12­‑14.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 609 12/06/20 17:19 (10) literatura e cosmopolitismo 613

Taban LO LIYONG. «Casamento a branco e preto», in Poems from East Africa. Tradução inédita de Flávia Ba. [1971] 2009. Nairobi: East African Educational Publishers. 86­‑87.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 613 12/06/20 17:19 (10) literatura e cosmopolitismo 615

Naguib MAHFOUZ. O Palácio do Desejo, 2.º volume de «Trilogia do Cairo». Tradução de Badr Hassanein. [1957] 2008. Porto: Civilização. 188­‑191.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 615 12/06/20 17:19 620 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Katherine MANSFIELD. «A Stanislaw Wyspiansky», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de José Alberto Oliveira. [1910] 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1294­­‑1295.

Do outro lado do mundo, De uma pequena ilha embalada no grande regaço do mar, De uma pequena ilha sem história, (Fazendo a sua própria história, lenta e desajeitadamente, Juntando isto e aquilo, encontrando o padrão, resolvendo o problema, Como uma criança com uma caixa de tabuinhas), Eu, uma mulher, com a marca do pioneiro no meu sangue, Cheio de uma força juvenil que consigo guerreia e ignora leis, Canto em teu louvor, guerreiro magnífico; Eu proclamo a tua batalha triunfante.

O meu povo não teve contra que lutar; Trabalharam à luz clara do dia e manipularam o barco com dedos rudes; A Vida — uma coisa de sangue e músculo; a Morte — um enterro de desperdícios.

Que poderiam saber de fantasmas e presenças invisíveis, De sombras que obscurecem a realidade, da escuridão que nega a manhã? Límpida e suave é a água que escorre das suas montanhas; Como poderiam conhecer ervas venenosas, gavinhas podres que estorvam? A tapeçaria tecida com os sonhos da tua infância trágica Eles rasgariam com as suas mãos inábeis, A luz triste e pálida da tua alma apagariam com o seu riso infantil. Mas os mortos — os velhos — Oh Mestre, aí te pertencemos; Oh Mestre, somos crianças e aterrados pela força de um gigante; Como saltaste vivo para o túmulo e lutaste com a Morte E encontraste nas veias da Morte o sangue vermelho E ergueste a Morte nos teus braços e a mostraste a todo o povo. A tua foi uma tarefa mais pessoal que os milagres do Nazareno, O teu um encontro mais estrénuo que as ordens amáveis do Nazareno.

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Stanislaw Wyspiansky — oh homem com o nome de um combatente, Através destes milhares de quilómetros estilhaçados de mar, em alta voz te proclamam; Dizemos «Ele jaz na Polónia, e a Polónia pensa que ele morreu; Mas ele disse não à Morte — ele jaz ali, acordado; O sangue do seu grande coração pulsa vermelho nas suas veias.»

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Silvio Alberto (Tip) MARUGG. «A manhã volta a rugir», in De helem is van korte duur. Verzameld Werk 1945­­‑1995 [O Paraíso é de Breve Duração. Obra Reunida 1945­­‑1995]. Tradução inédita de Patrícia Couto. [1988] 2009. Amesterdão: De Bezige Bij. 410­‑420.

Texto sujeito a direitos de autor.

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Michael ONDAATJE. O Doente Inglês. Tradução de Ana Luísa Faria. [1992] 1996. Lisboa: D. Quixote. 250­‑254.

Texto sujeito a direitos de autor.

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Amos OZ. Uma História de Amor e Trevas. Tradução de Lúcia Liba Mucznik. [2002] 2016. Lisboa: D. Quixote. 7­­‑15.

1

Nasci e cresci num rés­­‑do‑chão­­ muito pequeno, de cerca de trinta metros quadrados, com um pé‑direito­­ baixo. Os meus pais dormiam num sofá‑cama­­ que, aberto, ocupava quase completamente o quarto deles. De manhãzinha cedo fechavam­­‑no, escondiam a roupa de cama na escuridão da gaveta infe‑ rior, viravam o colchão, comprimiam‑no­­ e tapavam tudo com uma coberta cinzento claro. Depois espalhavam em cima do sofá umas quantas almo‑ fadas orientais bordadas para apagar os vestígios da noite. O quarto deles servia de quarto de dormir, de escritório, de biblioteca, de sala de jantar e igualmente de sala de visitas. Em frente ficava o meu quartinho, um cubículo esverdeado, meio ocu‑ pado por um roupeiro bojudo. Um corredor sombrio, estreito e baixo, um pouco tortuoso, semelhante a um túnel cavado por fugitivos da prisão, ligava a minúscula cozinha e a casa de banho aos dois quartinhos. Uma lâmpada fraca, encerrada dentro de uma gaiola de ferro, projectava no corredor um simulacro de luz turva, mesmo durante o dia. À frente havia apenas duas janelas — uma no quarto dos meus pais e outra no meu — protegidas por estores metálicos através dos quais, olhando em direcção ao oriente, se con‑ seguia ver apenas alguns ciprestes empoeirados e um muro de pedras secas. A cozinha e a casa de banho davam, através de frestas gradeadas, para um pequeno pátio de prisão cimentado e cercado por muros altos, um pátio onde não entrava um raio de sol e onde definhava uma sardinheira pálida plantada numa lata de azeitonas enferrujada. Os rebordos das frestas esta‑ vam sempre enfeitados por frascos com pepinos hermeticamente fechados, e algum infeliz cacto enfiado na terra de um bacio rachado que fazia as vezes de vaso. Na verdade, aquilo era mais uma cave: o rés ­­‑do­­‑chão do prédio fora escavado na encosta do monte. O monte era o nosso vizinho ­­— um vizinho pesado, introvertido e severo, um monte velho e melancólico, com costumes de solteirão empedernido, fechado num silêncio total, sonolento e invernal, que nunca arrastava móveis nem recebia convidados, não fazia barulho nem

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chateava mas, através das duas paredes comuns, infiltrava‑se­­ sempre, como um persistente cheiro a mofo, o frio, a escuridão, o mutismo e a humidade daquele vizinho triste. De maneira que durante todo o Verão conservávamos um pouco de Inverno connosco. As visitas diziam: que agradável é a vossa casa nos dias de sharav*, tão fresca e calma, está mesmo fresca, mas como e que fazem no Inverno? As paredes não criam humidade? Não é um pouco deprimente?

Os dois quartos, o buraco da cozinha, a casa de banho e, em particular, o corredor, eram escuros. Os livros enchiam a casa toda: o meu pai lia em dezasseis ou dezassete línguas e falava onze (todas com pronúncia russa). A minha mãe falava quatro ou cinco línguas e lia umas sete ou oito. Fala‑ vam entre eles russo ou polaco, quando não queriam que eu compreendesse (que era a maioria das vezes). Uma vez em que a mãe se enganou e disse na minha presença em hebraico a palavra «garanhão», o pai ralhou com ela em russo: «Chto s taboï? I Videsh maltchik ryadom s namï!» Por razões culturais, liam sobretudo em alemão e inglês, mas de noite sonhavam naturalmente em iídiche. Mas a mim ensinaram‑me­­ apenas hebraico: deviam recear que o conhecimento das línguas me fizesse sucumbir ao encanto da bela e fatal Europa.

Na escala de valores dos meus pais, quanto mais ocidental, mais cultural: Tolstoi e Dostoievski estavam muito próximos da sua alma russa, mas penso que consideravam a Alemanha — apesar de Hitler — mais cultural do que a Rússia e a Polónia, a França mais do que a Alemanha, e a Inglaterra mais do que a França. Quanto à América, não estavam assim tão certos: um sítio onde se massacravam os índios, atacavam carruagens, procurava ouro e ca‑ çavam raparigas. Para eles a Europa era a terra prometida e proibida, o lugar nostálgico dos campanários e das velhas praças empedradas, dos eléctricos, das pontes e das torres das catedrais, das aldeias isoladas, das fontes termais, das flores‑ tas e dos prados cobertos de neve. As palavras «cabana», «prado», «guardadora de gansos», fascinaram‑me­­ e emocionaram­­‑me durante toda a infância. Tinham o perfume sensual de um mundo autêntico, tranquilo, afastado dos telhados de zinco cheios de pó, dos descampados invadidos pela sucata e as silvas, e dos declives áridos de

* Vento quente e seco do deserto.

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Jerusalém, abafada pela crueldade do Verão incandescente. Bastava­­‑me mur‑ murar a palavra «prado» para ouvir logo o mugido das vacas com chocalhos ao pescoço e o som dos riachos. Quando fechava os olhos via a guardadora de gansos descalça, tão sexy que me dava vontade de chorar, antes mesmo de eu perceber o que quer que fosse.

Anos mais tarde, constatei que a Jerusalém do mandato britânico, nos anos vinte, trinta e quarenta, era uma cidade extraordinariamente civilizada, com grandes comerciantes, músicos, intelectuais e escritores: Martin Buber, Ger‑ shom Scholem, Agnon, e muitos outros sábios e artistas notáveis. Às vezes, quando passávamos pela rua Ben Yehuda ou na alameda Ben Mairnon, o pai segredava­­‑me: «Lá vai aquele intelectual de renome mundial.» Não percebia o que é que ele queria dizer com aquilo. Pensava que renome mundial signifi‑ cava ter pernas doentes, porque eram frequentemente velhos com bengalas, que coxeavam um pouco e andavam vestidos de fatos de lã grossa mesmo no Verão. A Jerusalém que os meus pais cobiçavam situava‑se­­ longe do nosso bair‑ ro: em , imersa em verdura e sons de piano, nos três ou quatro cafés com lustres dourados da rua de ou Ben Yehuda, nos salões do YMCA e no Hotel King David, onde judeus e árabes amantes de cultura se cruzavam com britânicos cultos e afáveis, onde damas sonhadoras de pescoços com‑ pridos e vestidos de baile esvoaçavam nos braços de homens de fato escuro, onde ingleses de espírito aberto encontravam judeus cultos e árabes educa‑ dos, onde se realizavam recitais, bailes, serões de leitura, chás­ dançantes e debates artísticos elegantes. É possível que essa Jerusalém dos lustres e dos chás­­‑dançantes só existisse nos sonhos dos habitantes de Kerem Avraham, bibliotecários, professores, empregados e encadernadores. Seja como for, não existia no nosso bairro. O nosso bairro, Kerem Avraham, pertencia a Chekov. Anos mais tarde, quando li Tchekhov (em tradução hebraica), tive a impressão que ele era um de nós: o tio Vânia era o nosso vizinho de cima, o doutor Samoïlenko, que se inclinava por cima de mim para me apalpar com as suas mãos largas e fortes quando eu tinha uma angina ou difteria, Laïevski com a sua enxaqueca crónica era o primo segundo da minha mãe, e íamos ouvir Trigurin no salão da Casa do Povo no final do Shabat. Com efeito, havia entre nós russos de todos os tipos, entre os quais mui‑ tos tolstoianos. Alguns eram o retrato chapado de Tolstoi. Quando vi uma imagem de Tolstoi na gravura sépia da capa de um livro, tive a certeza de já o ter visto entre nós muitas vezes: a passear na rua Malaquias ou a descer a

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Abdias de cabeça descoberta, com as barbas brancas ao vento, o porte majes‑ toso do nosso pai Abraão, os olhos a faiscarem, um ramo na mão a servir de pau, vestido com uma ampla túnica de camponês presa na cintura por uma corda que pendia sobre as calças largas. Os tolstoianos do bairro (os meus pais chamavam­­‑lhes «tolstoischkis») eram todos vegetarianos inveterados, reformadores do mundo, moralistas, profundamente imbuídos de amor da natureza e da humanidade, que ama‑ vam todas as criaturas vivas sem distinção, animados de sentimentos pacifis‑ tas e nostálgicos da vida de trabalho simples e pura, que aspiravam ao regres‑ so ao campo, ao trabalho da terra nos campos e pomares. Mas nem da planta mais modesta eram capazes de cuidar: ou a regavam tanto que ela se afogava, ou se esqueciam de a regar, a menos que fosse por culpa do mandato britâni‑ co hostil que deitava cloro na nossa água.

Alguns eram tolstoianos directamente saídos de um romance de Dostoie‑ vski: torturados, faladores, que reprimiam as suas tendências, idealistas atormentados. Mas quer os tolstoianos quer os dostoievskianos de Kerem Avraham trabalhavam efectivamente para Chekov. No nosso bairro o mundo era geralmente chamado «o grande mundo», mas tinha também outros apelidos: Esclarecido; Exterior; Livre; Hipócri‑ ta. Eu conhecia­­‑o quase só da coleção de selos: Danzig; Boémia e Morávia; Bósnia e Herzegovina; Ubangui­­‑Chari; Trindade e Tobago; Quénia‑Uganda­­ ­­ ‑Tanganika. O mundinteiro era distante, atraente, maravilhoso, mas muito perigoso e hostil: não gostam dos judeus por eles serem particularmente inteligentes e dotados, mas igualmente barulhentos e arrivistas. Não gostam do que nós empreendemos aqui em Eretz‑Israel­­ * e até nos invejam esta faixa de terra pantanosa, desértica e rochosa. Lá, no mundo, os muros estavam cobertos de palavras de ódio, «Judeu, vai para a Palestina», e agora que aqui estamos o mundinteiro grita «Judeu, sai da Palestina». Não era apenas o mundinteiro, mas Eretz­­‑lsrael também era longe: algu‑ res, para lá das montanhas, vivia uma nova espécie de heróis judeus, uma raça bronzeada, vigorosa, activa e de poucas falas, o oposto do judeu da Diáspora e dos moradores de Kerem Avraham. Rapazes e raparigas pioneiros, deter‑ minados, bronzeados, silenciosos, capazes de afrontar a escuridão da noite e de libertar as relações entre os homens e as mulheres de todos os tabus. Que não tinham vergonha de nada. «Acham que no futuro será tudo muito simples», disse uma vez o avô Alexandre, «O rapaz dirige‑se­­ à rapariga e pede­­

* Terra de Israel.

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‑lhe aquilo, ou talvez elas nem sequer esperem que os rapazes lhes peçam e tomem a iniciativa, como se fosse um copo de água.» «Mas não será um bolchevismo puro e simples destruir assim o mistério e o pudor?!», insurgiu­­ ‑se polidamente o tio Bezalel, que era míope. «Não fazer caso dos sentimen‑ tos?! Reduzir toda a nossa vida a um copo de água morna?!» Do seu canto, o tio Nehemia começou a rosnar as palavras de uma canção — pareciam­­ ‑me os rugidos de um animal desesperado: «Ói, o cami­­‑nho é tão com­­‑pri­­‑do, a estrada tão sinuo‑sa­­ e fugi‑dia,­­ ói mame, eu bem avanço mas tu estás longe, mais longe do que a lua!...» E a tia Tsipora, em russo: «Nu, já chega. Vocês enlouqueceram todos? O menino está a ouvir tudo!», e passaram para o russo.

Os tais pioneiros viviam para lá dos nossos horizontes, na Galileia, no Sha‑ ron, ou nas planícies. Eram rapazes robustos e calorosos, apesar de tacitur‑ nos e pensativos, e raparigas bem constituídas, directas e reservadas, como se já conhecessem e percebessem tudo, como se já soubessem tudo sobre nós e sobre as nossas dúvidas, mas se relacionassem connosco com afecto, serie‑ dade e respeito, não como com uma criança, mas como com um homem, por muito jovens que fôssemos. Para mim, aqueles pioneiros eram fortes, sérios e de poucas falas, capa‑ zes de cantar em círculo canções românticas e cheias de nostalgia, cantigas cómicas ou tão eróticas que nos faziam corar, de dançar loucamente até se libertarem do seu invólucro corporal, de se isolar e de pensar, de viver ao ar livre e em tendas, de fazer os trabalhos mais pesados, «estamos sempre a postos», «os teus rapazes fizeram a paz do arado, agora é a vez da paz na ponta das me­tra­­‑lha‑do­­ ­­‑ras!», «vamos para onde nos mandarem», capazes de mon‑ tar cavalos selvagens e de conduzir tractores de lagartas, que sabiam árabe, conheciam todas as grutas e wadis*, sabiam servir­­‑se de pistolas e granadas de mão, mas também liam poesia e livros de filosofia, eram inteligentes, reser‑ vados, discutiam em voz baixa nas tendas, à luz das velas, até altas horas da noite, sobre o sentido da vida e sobre a difícil escolha entre o amor e o dever e entre o interesse nacional e a justiça. Às vezes ia com os amigos para o pátio da cooperativa de lacticínios Tnuva, para os ver chegar do lado de lá das montanhas escuras numa camio‑ neta carregada de produtos agrícolas, «com as suas roupas simples, cinturão e botas pesadas», e andava à roda deles a aspirar o cheiro do feno e a inebriar­­ ‑me com o aroma das distâncias: era lá onde eles estavam que as coisas real‑ mente grandes aconteciam. Era lá que eles construíam o país, reformavam o

* Curso ou leito de água em árabe.

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mundo, edificavam uma nova sociedade, marcavam a paisagem e a história do seu cunho, aravam os campos e plantavam as vinhas, compunham uma poesia nova, montavam a cavalo armados até aos dentes e respondiam com fogo ao fogo dos provocadores árabes, era lá que do miserável pó humano se fazia uma nação combatente. Eu sonhava em segredo que eles me levariam um dia com eles e me trans‑ formariam em nação combatente. Que a minha vida se tornaria um poema novo, uma vida pura, recta e simples como um copo de água fria num dia de calor tórrido.

Para lá dos montes escuros situava‑se­­ igualmente Telavive, a cidade efer‑ vescente de onde nos chegavam os jornais, os ecos do teatro e da ópera, do ballet, dos cabarés, da nova arte, dos partidos políticos, os rumores das discussões apaixonadas e também de alguma maledicência. Havia grandes desportistas em Telavive. E o mar. E as praias de lá estavam cheias de judeus bronzeados que sabiam nadar. Quem sabia nadar em Jerusalém? Quem ouvi‑ ra jamais falar de judeus que nadam? Eram genes completamente diferentes. Mutantes. «Como o milagre da transformação da lagarta em borboleta.» Telavive era tão longe! Durante toda a minha infância não fui a Telavive mais de cinco ou seis vezes: íamos passar os feriados com as tias, irmãs da minha mãe. Não era apenas a luz de Telavive que diferia da de Jerusalém mais do que hoje, mas as próprias leis da gravidade também não eram as mes‑ mas. Em Telavive as pessoas andavam de maneira diferente: saltavam e pla‑ navam como Neil Armstrong na Lua. Em Jerusalém andava­­‑se como num funeral, ou como os espectadores atrasados num concerto: primeiro apalpava­­‑se o terreno com a ponta do pé. Em seguida, depois de pousar o pé, não havia pressa em mexê‑lo:­­ se tínhamos levado dois mil anos a conseguir pôr o pé em Jerusalém, não íamos renunciar tão rapidamente. Porque se levantássemos o pé, podiam tirar­­‑nos o pedaço de chão, «a ovelhinha do pobre»*. Por outro lado, se já estava no ar, também não havia pressa em pousá‑lo:­­ sabe­­‑se lá que ninho de víboras lá podia estar, que intrigas e maquinações. Durante dois mil anos tínhamos pago com san‑ gue a nossa imprudência, caindo constantemente nas mãos dos nossos ini‑ migos porque pousávamos o pé sem medir bem as consequências. Era mais ou menos assim que se andava em Jerusalém. Mas em Telavive, qual quê! A cidade inteira parecia um gafanhoto. As pessoas, as casas, as ruas, as pra‑ ças, o vento marítimo, as areias, as avenidas e até as nuvens corriam.

* II Samuel, 12­­‑4.

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Uma vez fomos a Telavive para a noite do Seder* , e de manhãzinha cedo, quando ainda estavam todos a dormir, vesti­­‑me, saí de casa e fui brincar sozi‑ nho para uma praceta onde havia um banco ou dois, um baloiço, uma caixa de areia, três ou quatro árvores novas onde os passarinhos já cantavam. Pas‑ sados alguns meses, em Rosh Hashana†, voltámos a Telavive e a praceta já lá não estava. Tinham­­‑na transferido, com as árvores, o baloiço, o banco, os pássaros e a caixa de areia para o outro canto da rua. Fiquei pasmado: não conseguia entender como é que Ben Gurion e as autoridades competentes permitiam uma coisa daquelas. Então, como é? Chega ali uma pessoa e, sem mais nem menos, muda a praceta? E se um dia der na cabeça de alguém mudar o Monte das Oliveiras? Ou a Torre de David? Ou o Muro das Lamentações? Entre nós, falava­­‑se de Telavive com inveja, orgulho, veneração e uma pontinha de mistério: como se Telavive fosse um projecto secreto e vital do povo judeu, um projecto sobre o qual mais valia não falar demasiado, pois as paredes têm ouvidos, e havia inimigos e agentes secretos em todo o lado. Telavive: o mar. A luz. O azul do céu, as dunas, os andaimes, o teatro Ohel Shem, os quiosques nas alamedas, uma cidade hebraica branca, de linhas simples, erguendo­­‑se entre os laranjais e as dunas. Não era apenas um sítio onde, para se ir, bastava comprar um bilhete de autocarro, não, era outro continente.

* Do hebraico «ordem, série, arranjo, ou ordem da liturgia». Cerimonial da primeira noite (e se‑ gunda na Diáspora) da Páscoa judaica, que comemora o Êxodo, o fim da escravidão dos Hebreus no Egipto e o seu regresso à terra de Israel. † Literalmente «cabeça do ano», início do ano. Primeira festa do calendário civil judaico, conside‑ rada o Ano Novo, e que se celebra na lua nova de Setembro.

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Orhan PAMUK. «10. Hüzün­­‑Mélancolie­­‑Tristesse», in Istambul: Memórias de uma cidade. Tradução de Filipe Guerra. [2003] 2008. Lisboa: Bertrand. 97­. ­‑100

Texto sujeito a direitos de autor.

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Edogawa RANPO. «A cadeira humana», in Contos Japoneses de Mistério e Imaginação. Tradução de Raul Correia. [1925] 1977. Lisboa: Portugal Press. 17­ ­‑42.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 643 12/06/20 17:19 646 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Salman RUSHDIE. «O lençol furado», in Os Filhos da Meia­­‑Noite. Tradução de Manuel João Gomes. [1981] 2013. Lisboa: D. Quixote. 13­‑17.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 646 12/06/20 17:19 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 650 12/06/20 17:19 (11) NATUREZA E TECNOLOGIA

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 651 12/06/20 17:19 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 652 12/06/20 17:19 (11) natureza e tecnologia 653

Shukrallah AL­­‑JURR. [como em sua primavera o prado], in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1449.

como em sua primavera o prado o ribeiro entrega‑se­­ às vagas da brisa. corre como a tristeza, muito calada no segredo de um nobre coração. no alto eis o apelo do muezin que, pé ante pé, alarga o Seu Império. é que o apelo é o mesmo venha ele da mesquita ou da igreja. no vale, sobre a colina a prece da ave é para sempre um cântico o perfume das flores eternamente aquele incenso nos ares se eleva. de onde quer que a oração se eleve Allâh a entende. procurais o seu templo? olhai os mares, as montanhas e o céu inteiro!

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Muhammad AL­­‑MAGHÛT. «Inverno», in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Tradução de Adalberto Alves. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 1743.

como lobos em períodos de seca crescemos por toda a parte amámos a chuva amámos o outono um dia até pensámos em enviar uma carta de agradecimento ao céu com uma folha de outono como selo de correio acreditávamos que as montanhas desapareceriam os mares se dissipariam apenas o amor seria eterno de súbito separámo‑nos­­ ela gostava de sofás compridos e eu de longos navios ela gostava de sussurrar e suspirar nos cafés eu gostava de saltar e gritar nas ruas e, apesar de tudo, os meus braços vastos como o universo estão à espera dela…

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Amitav GHOSH. «Terra da maré», in The Hungry Tide. Tradução inédita de Simão Valente. [2004] 2011. Nova Deli: HarperCollins. 6­‑8.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 655 12/06/20 17:19 658 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

William GIBSON. Neuromante. Tradução de Fernando Correia Marques. [1984] 1988. Lisboa: Gradiva. 64­­‑66.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 658 12/06/20 17:19 (11) natureza e tecnologia 661

Ernest HEMINGWAY. «O grande rio de Dois Corações», in Contos de Nick Adams. Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues e Alexandre Pinheiro Torres. [1925] 2006. Lisboa: Livros do Brasil. 183­‑187.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 661 12/06/20 17:19 (11) natureza e tecnologia 665

Rigoberta MENCHÚ e Dante LLANO. O Pote de Mel: A História do Mundo numa Fábula Maia. Tradução de Carlos Aboim de Brito. [2002] 2006. Porto: Campo das Letras. 24­­‑26.

Texto sujeito a direitos de autor.

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Haruki MURAKAMI. «Os homens da TV», in O Elefante Evapora­­‑se: Os Homens da TV. Tradução inédita de Inês Rocha Silva. 2005. Tóquio: Kodansha. 262­‑275.

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Juan RULFO. «Luvina», in A Planície em Chamas. Tradução de Ana Santos. [1953] 2003. Lisboa: Cavalo de Ferro. 89­‑94.

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 677 12/06/20 17:19 682 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Indra SINHA. Eu Animal. Tradução de Joana Chaves. [2007] 2008. Lisboa: Difel. 31­­‑34.

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LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 682 12/06/20 17:19 686 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Gary SNYDER. «Por sobre o Vale de Pate», in Riprap and Cold Mountain Poems. Tradução inédita de João M.P. Gabriel a partir de versão online [disponível em https://www.poetryfoundation.org/poems/47179/above­­ ‑pate ­­‑valley: acedido a 10 de Dezembro de 2019]. [1959] 2003.

Texto sujeito a direitos de autor.

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Mario VARGAS LLOSA. O Falador. Tradução de António José Massano. [1987] 1989. Lisboa: D. Quixote. 22­‑25.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 687 12/06/20 17:19 (12) HUMOR, SÁTIRA E IRONIA

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 691 12/06/20 17:19 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 692 12/06/20 17:19 (12) humor, sátira e ironia 693

Ryūnosuke AKUTAGAWA. «O nariz», in Shinshichō 5. Tradução inédita de António Hawthorne Barrento. 1916. Tóquio.

Não havia ninguém em Ike‑no ‑O* que não soubesse do nariz de Zenchi† Naigu‡. Este tinha cinco ou seis sun§ de comprimento e descaía desde a parte de cima do lábio superior até abaixo do queixo. Em termos de forma, tanto a base como a ponta eram grossas e eram ‑no por igual. Era como se uma coisa semelhante a uma fina e alongada salsicha estivesse pendurada no meio da cara. Naigu, que já ultrapassara os 50 anos, sempre sofrera intimamente por causa do seu nariz, desde os velhos tempos em que fora noviço até agora, altu‑ ra em que havia ascendido a monge superior do dōjō¶ estabelecido no interior do palácio imperial. Claro que, ao nível das aparências, ele ainda agora trata‑ va da questão assumindo um ar de que isso não o preocupava assim tanto. Tal não era apenas porque pensasse que, na sua posição de monge, que implicava dirigir intensamente a sua devoção para o renascimento numa Terra Pura**, fosse errado preocupar‑se com o seu nariz. Mais do que isso, era porque não suportava que as pessoas soubessem que ele se preocupava com o seu nariz. Aquilo que Naigu temia, mais do que qualquer outra coisa, era que a palavra «nariz» surgisse no meio da conversa do dia‑a ‑dia. Havia duas razões pelas quais Naigu se desconcertava tanto em relação ao seu nariz. Uma era a de que, na realidade, o comprimento do nariz era inconveniente. Para começar, ele não era sequer capaz de tomar uma refeição sozinho. Se comia sozinho, a ponta do nariz acabava por atingir a comida no meio da tigela de metal. Por causa disso, decidiu fazer com que um discípulo

* Povoação que actualmente se encontra integrada na cidade de Uji, situada entre Quioto e Nara. † Nome indicativo do conhecimento obtido a partir da meditação. ‡ Título honorífico significativo da capacidade de participação em actividades religiosas no inte‑ rior do palácio imperial, utilizado como parte do nome. § edida tradicional japonesa correspondente a aproximadamente 3,03 centímetros. ¶ Local para treino meditativo no âmbito do budismo. ** Local da cosmologia budista caracterizado por uma perfeita existência e presidido por um buda ou bodhisattva, no qual se renasce em virtude da acumulação de um nível elevado de mérito e onde necessariamente se atinge o nirvana e se extingue o ciclo de reencarnação.

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seu se sentasse em frente ao seu tabuleiro e, enquanto tomava as refeições, lhe sustivesse o nariz com uma tábua com cerca de um sun de largura e dois shaku* de comprimento. No entanto, esta maneira de tomar as refeições não era de forma alguma fácil nem para o discípulo que sustinha o nariz nem para Naigu, cujo nariz era sustido. A história de como uma vez um rapaz, que era ajudante no templo e se encontrava a substituir este discípulo, tremeu a mão ao espirrar e deixou cair o nariz no meio da papa de arroz provocou na altura um rumor que se fez ouvir até Quioto. Esta, porém, não era para Naigu, de todo, a razão principal para o sofrimento que lhe infligia o seu nariz. Na ver‑ dade, era por causa das feridas que o nariz provocava na sua auto‑estima­­ que Naigu sofria. As pessoas da povoação de Ike­­‑no­­‑O diziam que, com um tal nariz, era uma sorte Zenchi Naigu não ser leigo. Isto porque pensavam que, com esse nariz, não existia nenhuma mulher que se pudesse tornar esposa dele. Entre essas pessoas havia até algumas que opinavam que seria provavelmente por causa desse nariz que ele se tinha tornado monge. No entanto, Naigu não pensava que a aflição que o seu nariz lhe causava tivesse de algum modo dimi‑ nuído por ser monge. A verdade é que a auto­­‑estima de Naigu era demasiado delicada para ser influenciada por factos consequentes, tais como o casa‑ mento. Por isso, Naigu tentava reparar os danos à sua auto‑estima­­ por meios tanto activos como passivos. Aquilo em que Naigu pensou em primeiro lugar foi em maneiras de fazer o seu nariz parecer mais curto do que era na realidade. Quando não estava ninguém à volta, virava‑­­ se para o espelho e, enquanto fazia a cara aparecer reflectida a partir de variados ângulos, ia fervorosamente tentando elaborar os seus planos. Por vezes, só por alterar a posição da cara, deixava de conse‑ guir estar tranquilo, e havia também ocasiões em que apoiava a cabeça na palma das mãos ou aplicava um dedo à ponta do queixo, e olhava para o espe‑ lho de uma forma persistente. Contudo, até agora, nem sequer uma vez lhe havia parecido que o nariz tivesse ficado curto ao ponto de ficar ele próprio satisfeito. Em alguns casos, quanto mais se esforçava, mais até tinha a sensa‑ ção de que parecia, pelo contrário, ter ficado mais comprido. Em tais alturas, a verdade é que Naigu fechava o espelho numa caixa e, enquanto isso, ainda suspirava mais e voltava relutantemente à escrivaninha de leitura dos sutras para ler o Sutra de Kannon†, tal como estivera a fazer antes disso.

* Medida tradicional japonesa correspondente a aproximadamente 30,3 centímetros. † Título popular japonês para o vigésimo quinto capítulo do Sutra do Lótus, focado na figura de Kannon (termo utilizado em japonês para a figura do bodhisattva Avalokiteśvara).

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Além disso, Naigu estava sempre a prestar atenção aos narizes das pes‑ soas. O templo de Ike­­‑no­­‑O era um templo onde frequentemente decorriam oferendas a monges, sermões sobre os sutras e outras actividades. No inte‑ rior do templo, as células dos monges estavam construídas lado a lado sem nenhum intervalo entre elas, e os monges aqueciam água todos os dias no bal‑ neário. Em consequência, eram extremamente numerosos os tipos de mon‑ ges e leigos que ali entravam e dali saíam. Naigu examinava pacientemente as caras de todas estas pessoas. Era assim porque queria tranquilizar­‑se com a descoberta de que pelo menos uma pessoa tivesse um nariz como o dele. Por isso, nem os suikan* azuis escuros nem os katabira† brancos lhe saltavam à vista. Isto sem falar dos chapéus cor de laranja, das vestes monásticas pretas e de outras coisas do mesmo género, pelo simples facto de a eles estar acos‑ tumado: era como se não existissem. Naigu só olhava para os narizes, sem olhar para as pessoas. No entanto, muito embora houvesse narizes curvos, nunca encontrou sequer uma vez um nariz como o seu. Como consequência do repetido facto de não encontrar um tal nariz, Naigu foi ficando cada vez mais infeliz. Enquanto falava com as pessoas, ia experimentando beliscar a ponta do nariz pendente, coisa que fazia sem pensar. Depois corava, de uma forma que não era própria para a sua idade, facto esse que era impulsionado por esta sua total infelicidade. Por fim, Naigu chegou a pensar que, se viesse a detectar uma pessoa com um nariz igual ao seu em textos budistas e de outras tradições, isso pelo menos lhe serviria de consolação. No entanto, não estava escrito em quais‑ quer sutras que os narizes de Mahāmaudgalyāyana‡ ou Śāriputra§ fossem compridos. Naturalmente, tanto Nāgārjuna¶ como Aśvaghoṣa** eram sábios iluminados dotados de narizes comuns. Quando Naigu, por ocasião de uma conversa sobre a China, ouviu falar sobre o facto de Liu Xuande†† do Estado

* Túnica informal com um colarinho redondo e mangas largas, com origem na nobreza do período Heian (794­­‑1185). † Túnica informal e leve, sem forro, usada no Verão, com origem na nobreza do período Heian. ‡ Nome em sânscrito de um dos dois discípulos proeminentes de Buda (agraśrāvaka), referido como Mulian em chinês e Mokuren em japonês, cuja importância foi enfatizada, no contexto de forte relevância da ideia de piedade filial na Ásia Oriental, através de uma tradição centrada na sua actuação para salvar a mãe da sua condição de reencarnação no inferno. § Nome em sânscrito de um dos dois discípulos proeminentes de Buda, referido como Sharihotsu em japonês. ¶ Monge (activo: 50­‑120 d.C.?), fundador da escola madhyamaka e figura proeminente do budismo mahayana. ** Proeminente autor de literatura budista (80­‑150 d.C.?), incluindo do poema épico Buddhacarita sobre a vida de Buda. †† Liu Bei (131­­‑223 d.C), fundador do Estado de Shu­­‑Han, considerado como um modelo de virtude, que foi popularizado através dos Registos dos Três Reinos, texto histórico do século iii d.C.

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de Shu‑H­­ an* ter tido orelhas compridas, pensou em como teria sido anima‑ dor para si se tivesse sido o nariz. Enquanto Naigu se ia dando a este tipo de trabalhos de carácter nega‑ tivo, nem é preciso explicitamente dizer o quanto ia também tentando métodos para encurtar de forma positiva o nariz. Neste aspecto até, fez quase tudo o que era possível fazer. Experimentou preparar uma infusão de abóbora ‑­­serpente e bebê‑la­­ e experimentou esfregar urina de rato no nariz. No entanto, por mais que fizesse, não é que o nariz, tal como dantes, conti‑ nuava a pender por cima dos lábios com um comprimento de cinco ou seis sun? Em todo o caso, no Outono de um certo ano, um monge que era dis ‑ cípulo de Naigu e que tinha ido à capital para tratar de vários assuntos res‑ peitantes a Naigu, veio a saber, através de um médico seu conhecido, de um método para encurtar narizes longos. Esse médico era um homem que tinha originariamente vindo da China e que, por essa altura, já se havia tornado monge no Chōrakuji†. Naigu, dando ares, como sempre, de que não estava preocupado com o seu nariz, absteve­­‑se propositadamente de dizer que se tentasse aplicar imediatamente este método. Disse depois, por outro lado, num tom casual, que sentia pena por incomodar o seu discípulo a todas as refeições. No seu íntimo, claro, estava à espera de que este o viesse convencer a experimen‑ tar aquele método. Não era provável que este não tivesse percebido o seu estratagema. No entanto, a maneira de pensar de Naigu, que o impelia a recorrer a este tipo de estratagema, terá provocado junto do seu discípulo, não tanto uma repulsa relativamente ao mesmo, quanto uma empatia ainda mais forte. O discípulo, tal como Naigu previra, falou de forma muito per‑ suasiva, lançando­­‑se numa recomendação de que se tentasse este método. Então, e mais uma vez como previsto, chegou‑­­se a um ponto em que o pró‑ prio Naigu — por fim — se submeteu a este entusiástico conselho. Quanto a esse método, era na verdade extremamente simples, consis‑ tindo apenas em cozer o nariz em água quente e em fazer alguém pisá‑lo.­­ A água quente era fervida todos os dias no balneário do templo. Logo de seguida, o monge discípulo enchia um balde com a água, tão quente que nela não se conseguia sequer mergulhar um dedo, e transportava‑a­­ para fora do balneário. No entanto, caso se enfiasse o nariz directamente no balde, havia

* Estado constituído no Sudoeste da China (221‑263­­ d.C.) durante o período dos Três Reinos (220 ‑280 d.C.). † Templo em Quioto, possivelmente fundado em 806 d.C., que constituiu um centro de ordenação importante para monges do budismo esotérico e zen na região de Kantō.

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o perigo de se apanhar com o vapor e de se ficar com a cara queimada. Então, fizeram um buraco num tabuleiro de madeira lacada, fizeram do tabuleiro uma tampa para o balde, e decidiram fazer entrar o nariz na água quente a partir do buraco. Por muito que o nariz nela tivesse mergulhado, a verda‑ de é que não ficou minimamente quente. Passado algum tempo, o discípulo monge disse: «Neste momento, já deve ter cozido.» Naigu fez um sorriso amargo. Isto porque pensou que ninguém que ape‑ nas tivesse ouvido isto se teria apercebido de que se tratava de uma conversa sobre um nariz. O nariz tinha cozido na água quente e dava comichão como se tivesse sido mordido por pulgas. Após Naigu ter retirado o nariz do buraco do tabuleiro, o monge discí‑ pulo, fazendo força com as pernas, começou a pisar­‑lhe o nariz do qual ainda se soltava vapor. Naigu tinha­­‑se deitado e, com o nariz estendido por cima das tábuas do soalho, olhava em frente para o movimento para cima e para baixo das pernas do monge discípulo. Este, de vez em quando, fazia uma cara de desalento e, olhando para baixo, para a careca de Naigu, dizia coisas do género: «Espero que não esteja a doer. O médico disse­­‑me para pisar de forma insistente. Espero que não esteja a doer.» Naigu tentou abanar a cabeça para manifestar o sentido de que não esta‑ va a doer. Porém, uma vez que tinha o nariz a ser pisado, a cabeça não se mexia no sentido do seu pensamento. Por isso, olhou para cima sem levantar a cabeça e, contemplando as gretas nos pés do monge discípulo, respondeu em voz zangada: «Não está a doer.» A verdade é que, como os locais do nariz onde tinha comichão estavam a ser pisados, a situação tinha chegado ao ponto de estar a sentir, não dor, mas, pelo contrário, uma sensação agradável. Depois de o discípulo ter estado a pisar durante algum tempo, umas coisas parecidas com grãos de painço começaram a aparecer no nariz. Este estava com uma forma exactamente igual à de, por assim dizer, uma pequena ave depenada e assada inteira. Quando o monge discípulo viu isto, parou de mexer as pernas e disse assim, como se estivesse a falar sozinho: «O facto é que ele disse para remover estas coisas com uma pinça.» Naigu, parecendo insatisfeito, encheu as bochechas de ar e manteve­­‑se calado, confiando ao monge discípulo a liberdade para agir de acordo com a sua vontade. Isto não quer dizer, claro, que não entendesse a simpatia dele. Por muito que a entendesse, considerava, no entanto, desagradável o facto

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de ele tratar o seu próprio nariz como um objecto. Fez a cara de doente que ia submeter­ ­‑se a uma operação por parte de um médico em quem não confiava e, com relutância, ficou a olhar fixamente para a remoção, pelo monge discí‑ pulo, através de uma pinça, da gordura a partir dos poros do nariz. A gordura tinha uma forma semelhante ao cálamo da pena de uma ave e era extraída em bocados com um comprimento de aproximadamente quatro bu*. Quando isto finalmente terminou, o monge discípulo fez uma expressão como que de um suspiro de alívio e disse: «Era bom que o cozêssemos mais uma vez.» Naigu, como já seria de esperar, fez uma cara demonstrativa de descon‑ tentamento, mantendo o sobrolho franzido, mas seguiu as ordens do monge discípulo. Então, quando experimentou retirar o nariz que tinha cozido pela segunda vez, de facto tinha ficado mais curto do que alguma vez estivera. Tal como estava, não diferia significativamente de um nariz curvo normal. Pas‑ sando a mão pelo seu nariz encurtado, Naigu espreitou, de forma envergo‑ nhada e com nervosismo, para o espelho que lhe estendia o monge discípulo. O nariz — aquele nariz que descaía até abaixo do queixo — tinha enco‑ lhido de tal forma que quase parecia mentira e agora mantinha uma existên‑ cia diminuída, pendendo apenas debilmente sobre o lábio superior. O facto de estar agora avermelhado em manchas distribuídas aqui e ali seria pro ‑ vavelmente um vestígio do momento em que tinha sido pisado. «Com esta mudança, não há dúvida de que já ninguém irá fazer troça dele.» A cara de Naigu que estava ao centro do espelho olhava para a cara de Naigu que estava fora do espelho e piscava os olhos de satisfação. Esteve, porém, todo o dia ansioso, não fosse dar­‑se o caso de o nariz vol‑ tar a crescer. Portanto, enquanto recitava sutras ou tomava as refeições — bastava que tivesse tempo livre —, estendia a mão e discretamente tentava tocar na ponta do nariz. Contudo, o nariz ocupava o seu lugar, de forma bem­­ ‑comportada, por cima dos lábios e, o que era ainda mais notável, não dava quaisquer sinais de vir a descair. Depois disso, Naigu dormiu pela noite fora e no dia seguinte, ao acordar cedo, a primeira coisa que fez foi experimentar tocar no próprio nariz. O nariz estava curto, tal como antes. Então, depois de um intervalo de muitos anos, Naigu sentiu‑­­se descontraído, tal como na altura em que acumulara mérito por ter feito uma cópia do Sutra do Lótus†.

* Medida tradicional japonesa correspondente a aproximadamente 3,03 milímetros. † Texto do budismo mahayana com grande impacto na Ásia Oriental, onde a devoção ao texto frequentemente se concentrava na sua cópia, recitação e pregação, consideradas conducentes a benefícios tais como a iluminação e a reencarnação numa Terra Pura.

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No entanto, passados dois ou três dias, Naigu fez a descoberta de uma realidade inesperada. Um samurai, que estava exactamente nessa altura de visita ao templo de Ike­­‑no­­‑O para tratar de um assunto, dava ares de estar ainda mais divertido do que alguma vez antes tivesse estado e, sem chegar a dizer uma palavra, olhava fixamente para o nariz de Naigu. Além disso, o próprio rapaz ajudante no templo, que tinha deixado cair o nariz de Naigu na papa de arroz, na altura em que se tinha cruzado com Naigu à saída do auditório, tinha contido o riso ao início, mas por fim tinha­­‑se mostrado inca‑ paz de o conter e tinha acabado por, de repente e de uma vez só, desatar a rir. Os monges de menor escalão, que recebiam ordens de Naigu para tratar de questões suas, embora o ouvissem recatadamente quando estavam cara a cara, começavam a dar as suas risadinhas logo que este virava costas. Isto não aconteceu só uma ou duas, mas mais vezes. Ao princípio, Naigu interpretou estes desenvolvimentos como sendo resultado da sua mudança de aspecto. No entanto, de alguma forma lhe pare‑ ceu que esta interpretação só por si não era explicação suficiente. É claro que esta era a razão para os risos do ajudante do templo e dos monges de menor escalão, disso não havia dúvidas. Contudo, embora rissem por igual, havia de alguma forma uma diferença na maneira de rirem relativamente ao tempo anterior em que o nariz havia sido longo. Poderia ser apenas isto: que o nariz curto que não estavam habituados a ver parecesse mais ridículo do que o nariz comprido que se tinham habituado a ver. No entanto, parecia haver ainda alguma coisa para além disso. «Antes não riam com esta frontalidade.» Naigu de vez em quando murmurava estas palavras, enquanto interrom‑ pia o sutra que tinha começado a recitar e inclinava a careca. Nessas alturas, o adorável Naigu, olhando sem falta e distraidamente para uma imagem de Fugen* pendurada por perto, lembrava­­‑se de como o seu nariz fora compri‑ do quatro ou cinco dias antes e ficava tristemente abatido: «Tal e qual como aquele que agora é reduzido à miséria se lembra dos velhos tempos em que prosperava.» Infelizmente, faltava a Naigu nessa altura o discernimento que lhe fornecesse uma resposta. Nos seres humanos há duas emoções que são contraditórias entre si. Claro que não é possível que alguém não se compadeça com o infortúnio de outra pessoa. No entanto, se essa outra pessoa for capaz de superar esse infor‑ túnio dando o seu melhor, esta pessoa, na vez seguinte, fica, por alguma razão,

* Termo utilizado em japonês para a figura do bodhisattva Samantabhadra, protector dos crentes no Sutra do Lótus, elemento de culto atestada desde o século xii no Japão.

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com uma sensação de insatisfação. Falando com um pouco de exagero, esta tem até uma vontade de tentar colocar aquela pessoa mais uma vez no estado de infortúnio em que estava. Então, sem dar por isso, acaba por vir a nutrir face a essa pessoa uma certa hostilidade, embora passiva. O incómodo que Naigu de alguma forma sentia, por muito que lhe desconhecesse o motivo, devia­­‑se, sem dúvida, à intuição que indirectamente tinha da presença deste egoísmo de espectador nas atitudes dos monges e leigos de Ike‑no­­ ­­‑O. Portanto, Naigu ia ficando cada dia mais mal‑humorado.­­ Sempre que abria a boca era para repreender de forma violenta e maliciosa alguém. Por fim, chegou­­‑se ao ponto em que até mesmo o monge seu discípulo, que lhe havia tratado o nariz, falava mal dele nas costas, dizendo: «Naigu irá sofrer pelo crime da ganância da Lei do Buda.»* Quem, no entanto, enfurecia espe‑ cialmente Naigu era o endiabrado ajudante do templo acima referido. Certo dia, por causa dos latidos ensurdecedores de um cão, Naigu tinha saído à rua casualmente para ir ver. O ajudante do templo, brandindo um pedaço de madeira com o comprimento de cerca de dois shaku, estava a perseguir um cão magro e felpudo, de pêlo comprido. Mais do que isso, não estava só a persegui­­‑lo. Estava a persegui­­‑lo enquanto gritava: «Não me consegues atin‑ gir o nariz! Hehe! Não me consegues atingir o nariz!» Naigu, arrancando da mão do ajudante do templo o pedaço de madeira, bateu­­‑lhe na cara com toda a força. Acontece que o pedaço de madeira era a madeira que havia servido de suporte para o seu nariz previamente. Naigu começava a arrepender­‑se, contrariamente ao que seria de pensar, de ter encurtado o nariz de uma forma precipitada. Então, certa noite, algo aconteceu. Depois de escurecer, pareceu de repente levantar­‑se vento e o som dos espanta‑espírit­­ os do pagode, forte ao ponto de ser incomodativo, estendeu­­‑se até ao travesseiro. Acresce que, como tinha arrefecido substancialmente, Naigu, que era de avançada idade, não conseguia adormecer, por mais que tentasse. Então, ao virar­‑se para um lado e para o outro na cama, apercebeu‑­­se de repente de que tinha uma comi‑ chão fora do comum no nariz. Quando experimentou pôr a mão, este estava inchado como se tivesse aparecido um edema. Parecia até haver febre, e era aparentemente só ali. «Ao encurtá­­‑lo desta forma artificial, possivelmente apareceu uma doença.»

* Pelo seu não ensino aos outros e associada tentativa de manutenção exclusiva para si.

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Assim murmurou Naigu, enquanto segurava no nariz com um gesto de reverência, semelhante ao utilizado para a oferta de flores e incenso no altar budista. Na manhã seguinte, quando Naigu acordou, cedo como de costume, os gingko biloba e os castanheiros­­‑da­­‑índia no interior do templo tinham per‑ dido as folhas durante a noite, pelo que o jardim estava brilhante, como se se tivesse espalhado ouro. Talvez porque tinha caído geada no telhado do pagode. Os kurin* brilhavam radiosos ao sol ainda pálido da manhã. De pé na varanda onde os shitomi † estavam levantados, Zenchi Naigu respirou fundo. Foi nessa altura que lhe voltou uma certa sensação da qual estava quase à beira de se esquecer. Naigu perdeu a calma e meteu a mão ao nariz. Aquilo que estava a tocar com a mão não era o nariz curto da noite de véspera. Era o nariz comprido de antigamente, com um pouco mais de cinco ou seis sun de comprimento, que descaía desde a parte de cima do lábio superior até abaixo do queixo. Naigu soube então que, no decurso daquela noite, o seu nariz se alongara até ficar de novo com a sua forma original. Então, ao mesmo tempo, sentiu estar a regressar­­‑lhe, vinda sabe‑se­­ lá de onde, uma sensação de alegria, semelhante à da altura em que o nariz se encurtara. «Com esta mudança, não há dúvida de que já ninguém irá fazer troça dele.» Assim murmurou para si Naigu, no seu íntimo. Enquanto passeava o seu longo nariz pela brisa outonal da madrugada.

* Conjunto de nove anéis circundantes do pináculo de um pagode e sobrepostos verticalmente, representativos dos nove céus da cosmologia budista. † Painel de madeira amovível, com função de isolamento do exterior e com decoração quadricu‑ lada.

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ANÓNIMO. «O Senhor Resolve­­‑de­­‑uma­­‑só­­‑vez», in Antologia do Conto Africano de Transmissão Oral *. Tradução de Lourenço do Rosário. 2009. Alfragide: Galivro. 353­‑354.

Texto sujeito a direitos de autor.

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BIN WEI. «Um milhão de yuans», in zhōng guó­gù shì [Contos da China]. Tradução inédita de Carlos Botão Alves e Li Fei. 2009. Xangai: shǎng hǎi jǐn xiù wén zhāng chū bǎn shè. 355­­‑358.

Texto sujeito a direitos de autor.

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Etgar KERET. «A matéria de que são feitos os sonhos», in O Motorista de Autocarro que Queria Ser Deus. Tradução de Lúcia Liba Mucznik. [2001] 2017. Lisboa: Sextante. 115-117.

Texto sujeito a direitos de autor.

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Dorothy PARKER. «Curriculum Vitae», in The Portable Dorothy Parker. Tradução inédita de João M.P. Gabriel a partir de versão online [disponível em https://www.poetryfoundation.org/poems/44835/resume­­ ‑56d2241505225: acedido a 31 de Janeiro de 2020]. [1926] 2006. Londres: Penguin.

Texto sujeito a direitos de autor.

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Ousmane SEMBÈNE. Xala. Tradução de Maria de Santa Cruz. [1973] 1979. Lisboa: Edições 70. 37­‑41.

Texto sujeito a direitos de autor.

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 712 12/06/20 17:19 NOTAS CRÍTICAS

‘ABD AL‑KARIM­ AT‑­ TABBAL (1931). Poeta e professor. Diplomado pela Universidade Al­‑Qarawiyyin, de Fez, em Estudos Islâmicos, publicou os seus primeiros poemas na re‑ vista Al‑Ams­ . Ganhou diversos prémios literários e foi fundador e animador do Festival de Poesia de Xauen. Os seus textos poéticos distinguem‑se­ pela preocupação da forma e pela qualidade das suas ousadas metáforas. Tem numerosa obra publicada. A essência da sua oficina de poeta, tentado pelo esoterismo, encontra­‑se numa equilibrada articulação entre a palavra e o real servindo­‑se, para tanto, dos seus profundos e vastos conhecimen‑ tos da língua árabe. Embora convicto partidário da «arte pela arte», isso não o impediu de ser um escritor profundamente engajado e atento aos problemas da sociedade do seu tempo. (Adalberto Alves)

‘ABD AL‑WAHHAB­ AL­‑BAYATI (1926­‑1999). A obra de estreia deste poeta foi Anjos e Demónios, tendo sido editor da importante revista literária A Nova Cultura. Viveu exilado durante quatro anos na Síria, no Líbano e no Egipto, deixando a família no Iraque, mas regressou em 1958, para assumir o cargo de Ministro da Educação. Todavia, o seu espíri‑ to irrequieto não tardaria a levá‑lo­ a deambular por diversos países europeus. Foi um dos mais importantes cultores do verso livre e uma das figuras fundadoras da modernidade poética árabe. (Adalberto Alves)

ABE KŌBŌ (1924‑1993).­ Dramaturgo, músico, compositor e grande escritor japonês. Teve um contacto amplo com a cultura ocidental, através do qual se interessou pela ma‑ temática e pela filosofia. Inspirado pela estética surrealista e pela ideologia marxista, as suas obras destacam situações bizarras, o isolamento individual e a identidade japonesa no pós­‑guerra. Nos anos 50 dedica­‑se também à ficção científica e, nos anos 60, à dra‑ maturgia e ao tema da máscara, com uma tonalidade pessimista. A sua obra mais signifi‑ cativa é A Mulher da Areia (1962), traduzida em 20 línguas e considerada pela UNESCO uma obra representativa do património universal. Vanguardista e mundialmente reco‑ nhecido, deixou textos com temas insólitos e penetrantes, como a alienação e a perda de identidade. (Inês Rocha Silva)

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ABÛ AL‑­­ QÂSIM ASH‑SHÂBBέ­ (1909­‑1934). Notável poeta tunisino, precocemente falecido. Estudou Direito na Universidade de Az­‑Zaituna. Em seus versos, servidos por um extraordinário domínio da língua árabe, ecoa um inegável desejo de transcendência que coroou a sua breve e frustre vida. Se o tom é melancólico e de cariz romântico, não faltam, todavia, os momentos de apaixonada crítica e intervenção política — os seus ver‑ sos foram utilizados como palavras de ordem nas manifestações da chamada Primavera Árabe e figuram no hino nacional da Tunísia. (Adalberto Alves)

ADÉ (pseudónimo de José Inocêncio dos Santos Ferreira, 1919­‑1993), escritor de origem portuguesa que nasceu e viveu em Macau e aí foi popular, sobretudo como escritor de patuá, língua maquista ou «dóci papiaçám», língua de uso informal dos macaenses «filhos da terra». Nos poemas «Toca música, vem cantar» e «Casarão antigo», representativos da obra do poeta, encontram­‑se a exortação à alegria de viver e a descrição melancólica da realidade macaense, neste caso a fachada típica das casas, em formas métricas e estrófi‑ cas simples e vocabulário quotidiano. (Fernanda Gil Costa)

ADIB MAZHAR (1898­‑1928). Notável poeta libanês. Tendo começado por escrever versos de cariz tradicionalista, em breve, principalmente sob a influência de Baudelaire, se tornou o primeiro poeta árabe cultor do simbolismo. Apesar da sua breve vida, con‑ seguiu deixar um notável legado literário. A sua oficina poética recorre a procedimentos típicos do simbolismo, tais como sinestesias e oxímoros. Tal poesia, complexa e profun‑ da, revela ainda o fascínio, quase místico, perante a experiência da morte, através de um oblíquo olhar sobre a angústia da condição humana. (Adalberto Alves)

ADOLFO BIOY CASARES (1914­‑1999), argentino, foi autor de contos e romances que cruzam questões filosóficas com um gosto pelo fantástico, o policial e outros géneros tradicionalmente vistos como menores. A sua obra é frequentemente associada à de Borges, seu amigo e frequente parceiro de escrita. (Simão Valente)

ADONIS (1930). Nascido Ali Ahamed Said Esber, na cidade síria de Al Qassabin, é uma referência na literatura árabe moderna, sendo o representante máximo do seu movi‑ mento modernista. Além de poeta, é crítico literário e artista plástico. (André Simões)

ADRIENNE RICH (1929­‑2002). Poeta norte­‑americana, marcou a poesia da segunda metade do século xx, sobretudo dada a sua abordagem particular ao feminismo. A sua obra poética tem um pendor marcadamente revisionista, sem por isso deixar de questio‑ nar acerrimamente a contemporaneidade em que Rich escrevia. Exemplo disso é «Que espécie de tempos são estes?», que pode também ser lido como um exemplo de poesia eco­‑feminista. (João M.P. Gabriel)

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AHMED ‘ABD AL‑MU’TI­ HIJAZÎ (1935). Notável poeta egípcio. Um dos inspiradores da chamada Primavera Árabe no Egipto. Trabalhou na imprensa cairota, tendo sido edi‑ tor de várias revistas literárias. Como professor, trabalhou na Universidade de Paris­‑8 e na Sorbonne, depois de nesta ter obtido um bacharelato. Entre os admirados títulos que publicou, contam‑se­ Cidade sem Coração e Árvores de Cimento. Foi um dos pioneiros da renovação da poesia árabe contemporânea. A sua oficina poética foi sofrendo contínuas mutações, acompanhando a evolução da sociedade do seu tempo. (Adalberto Alves)

AHMED BARAKAT (1960-1994). Cultor máximo da poesia em prosa marroquina, nasceu em Casablanca. Foi jornalista do Bayan al-Yawm, diário sediado nessa cidade. Morreu prematuramente, em 1994. (André Simões)

AIMÉ CÉSAIRE (1913­‑2001) é um dos escritores mais conhecidos pela reavaliação das literaturas africanas, bem como das Caraíbas, Martinica (de onde, aliás, provinha). Foi poeta e dramaturgo e, em colaboração com Senghor, um dos proponentes do conceito de negritude. Teve um papel fundamental na afirmação das literaturas pós­‑coloniais. Em La tempête, elabora uma reescrita da peça de Shakespeare com o mesmo título, explicitando e revendo temas e motivos de uma perspectiva pós­‑colonial. (Helena Carvalhão Buescu)

AKUTAGAWA RYŪNOSUKE (1892­‑1927). Escritor japonês, foi um leitor ávido de histórias populares de fantasmas e de autores como Guy de Maupassant, Anatole Fran‑ ce, Rudyard Kipling e Edgar Allan Poe, constituindo umas e outros aparentes influências nos seus escritos. Na sequência da publicação deste conto, «O nariz», em 1916, o escritor Natsume Sōseki viria a elogiar Akutagawa pelo seu recurso ao absurdo de forma não forçada e pelo estilo conciso e controlado que revelava, e encorajá‑lo­ ­‑ia a escrever outras 20 ou 30 obras semelhantes, para que obtivesse para si um nicho no mundo das letras. Akutagawa viria e escrever mais do que 150, tendo vindo a ser reconhecido como o «pai do conto japonês». (António Barrento)

AL‑TAYYEB­ SALIH (1929­‑2009) foi o mais importante escritor sudanês do século xx. O seu romance mais lido, Época de Migração para Norte (1966), em parte autobiográfico, conta a história do regresso ao Sudão de um jovem depois de anos de estudo em Ingla‑ terra, contrastando a vida rural e tradicional com a experiência das grandes cidades e da modernidade. (Simão Valente)

ALAA AL­‑ASWANY (1957) contribuiu desde muito jovem para jornais e revistas egípcias. É conhecido por romances como o best­‑seller The Yacoubian Building (2002), em que se baseia o filme homónimo. Outras obras sãoFogo Amigo (2004) e Chicago (2007). A sua obra, traduzida para várias línguas, traça um retrato da sociedade egípcia

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contemporânea com as suas contradições, os seus anseios de modernidade tantas vezes abafados pelo peso da tradição e pela corrupção do poder. (Raquel Carapinha)

ALAIN MABANCKOU (1966) nasceu e cresceu na cidade costeira de Pointe­‑Noire, na República do Congo. Veio a obter também nacionalidade francesa na sequência de uma vida académica que, depois de um bacharelato em letras e filosofia, ainda em Pointe­ ‑Noire, passou pelos estudos de Direito em Brazzaville e, depois, Nantes e Paris. O au‑ tor franco­‑congolês consagrou‑se­ com o seu romance de estreia, Bleu­‑Blanc­‑Rouge (1998), com o qual deu início a uma carreira literária que acompanha o seu percurso como aca‑ démico e professor de literatura francófona e escrita criativa, cargo que desempenha actualmente nos Estados Unidos, na UCLA. (Amândio Reis)

ALEJO CARPENTIER (1904‑1980)­ foi, junto com Lezama Lima, um dos autores cuba‑ nos mais emblemáticos do boom da literatura latino­‑americana dos anos 60. Nos seus romances há frequentes referências à música, um dos seus principais interesses, seja através da representação de músicos seja na incorporação de elementos de teoria musi‑ cal na escrita. (Simão Valente)

ALEX LA GUMA (1924‑1985)­ foi um romancista sul­‑africano empenhado na luta contra o Apartheid. Foi um dos condenados no mesmo processo que levou à prisão de Mandela, em 1956, tendo La Guma, na sequência da sua pena, partido para o exílio no Reino Uni‑ do, onde passou o resto da sua vida fora da África do Sul. (Simão Valente)

ALLEN GINSBERG (1926­‑1997) é o mais influente poeta da Geração Beat, ainda que a sua produção se estenda além das décadas de 50­‑60, quando esse grupo, com vultos como Jack Kerouac, William S. Burroughs ou Gregory Corso, surpreendeu a literatura mundial. Escolheu­‑se um poema do livro­‑marco de 1956, Howl and Other Poems, que faz jus a uma reaproximação da escrita ao pulsar (beat) da vida, justapondo imagens e explo‑ dindo fronteiras, revolucionando uma América «batida» pelo apaziguamento normaliza‑ dor. (Margarida Vale de Gato)

AMIN MAALOUF (1949) é um escritor franco-libanês, autor de romances e ensaios, entre os quais se destacam As Cruzadas vistas pelos Árabes (1983), reproduzido nesta an‑ tologia, e O Rochedo de Tanios (1993), com o qual Maalouf venceu o Prémio Goncourt. O ex- certo recolhido indica já a tónica da obra de onde provém: o contraste entre a elaborada civilização islâmica e a barbárie do cruzado invasor na Idade Média. (Simão Valente)

AMITAV GHOSH (1956) é um autor indiano de língua inglesa, sobretudo de romances, cuja obra tem frequentemente uma dimensão histórica, explorando vida em comunida‑

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des rurais no subcontinente indiano. Maré Voraz é um livro particularmente urgente no século xxi, pelo modo como o tratamento dado a problemas ambientais molda a expe‑ riência das personagens. (Simão Valente)

AMOS OZ (1939­‑2018). É o escritor israelita mais conhecido e lido em todo o mun‑ do. Escritor, jornalista e professor universitário, é autor de uma vasta obra traduzida em mais de 40 línguas, que inclui romances, contos, ensaios e literatura infantil e juvenil. Co­‑fundador do movimento Peace Now, escreveu numerosos artigos sobre o conflito israelo­‑palestiniano. Autobiografia em forma de romance, saga familiar e epopeia de um povo, Uma História de Amor e Trevas cruza a história pessoal e familiar de Amos Oz com a própria história do Estado de Israel. O filme de Natalie Portman,A Tale of Love and Darkness (2015), é uma adaptação deste livro. (Lúcia Mucznik)

AMRITA KAUR PRITAM (1919­‑2005). Escritora indiana, escreveu extensivamente em punjabi e hindi e a sua escrita ficou marcada para sempre pelos acontecimentos trági‑ cos da partição da Índia em 1947. Os seus poemas falam da dor das mulheres que sofrem por causa das normas sociais. Recebeu vários prémios nacionais e internacionais. Rassidi Ticket [Selo do Imposto] é a sua autobiografia, que mostra os vários ângulos do amor. (Shiv‑Kumar­ Singh)

ANANDA DEVI (1957) é uma escritora francófona de origem indiana, autora de contos e romances, tendo estudado no Reino Unido e actualmente residindo em França. Explo‑ ra nas sua obras a realidade social de um país frequentemente pensado apenas do ponto de vista do turismo internacional. (Simão Valente)

ANNE CARSON (1950) é uma poeta canadiana e um dos nomes maiores da poesia con‑ temporânea. Professora de estudos clássicos, Carson recupera mitos e configurações da cultura grega, adaptando­‑os e modernizando­‑os na sua escrita. Do ponto de vista for‑ mal, a sua poesia é caracterizada por um experimentalismo que mistura várias tradições de versificação com outros géneros literários, como é o caso do ensaio. (Simão Valente)

ANITA DESAI (1937), escritora indiana, tem uma obra que é em alguma medida reflexo da sua experiência multicultural: filha de mãe alemã e pai indiano, tendo passado parte da sua vida nos Estados Unidos, os romance de Desai frequentemente exploram temas que dizem respeito à multiculturalidade. (Simão Valente)

ARUNDHATI ROY (1962). A sua primeira obra, o romance O Deus das Pequenas Coi‑ sas (1997), do qual reproduzimos um excerto, foi o evento literário do ano em que foi publicado. Roy leva a cabo uma crítica do sistema de castas da sociedade indiana, com

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particular atenção à situação da mulher, integrando essa crítica numa análise das profun‑ das desigualdades económicas do seu país. (Simão Valente)

ASSIA DJEBAR (1936­‑2015) foi uma escritora e cineasta argelina que se notabilizou por uma escrita em que recupera as vidas e escritos das mulheres do seu país, frequentemen‑ te suprimidas por sociedades patriarcais e pela colonização. Foi a primeira escritora do Magrebe a ingressar na Academia Francesa. O romance A Mulher sem Sepultura (2002) é representativo da sua obra. (Simão Valente)

ATIQ RAHIMI (1962) é um escritor e realizador franco­‑afegão cuja família sai de Cabul na sequência da invasão soviética em 1979, exilando­‑se em França. A sua novela Terra e Cinzas (2000), escrita na variante afegã do persa, dari, explora precisamente a guerra dos anos 80 e os traumas por ela causados. A característica visual da obra aponta para o trabalho que Rahimi fará cada vez mais no âmbito do cinema. (Simão Valente)

AUGUSTO MONTERROSO (1921­‑2003) foi um autor de origem hondurenha e cida‑ dania guatemalteca, parte da geração do boom da literatura latino­‑americana e, à seme‑ lhança de outros escritores do período, viveu grande parte da sua vida no exílio. O seu conto «O dinossauro» (1959), aqui transcrito integralmente, sem quaisquer cortes, é a sua obra mais conhecida e testemunho do sentido de humor do contista. (Simão Valente)

AUROBINDO AKROYD GHOSH (1872­‑1950), ao contrário de vários escritores e poetas de renome e da academia indiana, teve uma educação britânica. Traduziu e inter‑ pretou uma parte dos Vedas e das Upanishade e deixou um contributo enorme quer para a interpretação contemporânea das escrituras sagradas quer para o pensamento social e político. O seu poema «O chamamento de prata» é um testemunho da sua vivência com os estados elevados de consciência, que tentou transmitir de forma poética. (José Carlos Calazans)

AVRAHAM SHLONSKI (1900­‑1973). Um dos grandes inovadores da poesia hebraica escrita na Palestina e depois em Israel, opondo­‑se aos modelos criados por Bialik. Mi‑ litante de esquerda e imbuído do espírito de pioneirismo vibrante do início do século passado, foi trabalhador braçal, tradutor e ensaísta. Envolvido integralmente com a cria‑ ção do novo país, a sua obra literária (também enquanto tradutor) é um dos marcos da reconstrução do idioma literário hebraico no seu tempo. Foi também notável autor de textos dirigidos ao público infantil. (Moacir Amâncio)

BA JIN (PA KIN) (1904­‑2005). Com uma educação em línguas estrangeiras, na sua es‑ crita é claro um apelo a uma cultura aberta e reformadora de mentalidades, ao serviço

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da qual coloca o seu génio literário. O ambiente revolucionário da China no século xx, é, para ele, um facto central e incontornável, ao qual consagra a escrita tanto ficcional, como reflexiva. As narrativas têm a força e a fugacidade dos acontecimentos do tempo, e, tanto por elas, como pelos poemas, o autor pretende ter uma voz nos destinos da co‑ munidade. (Carlos Botão Alves)

BADR SHÂKIR AS­‑SAYYÂB (1926­‑1964). Prestigiado poeta iraquiano. De origens modestas, estudou em Bagdade e iniciou uma carreira de docente, da qual foi demiti‑ do quando aderiu ao Partido Comunista Iraquiano. Depois disso, para sobreviver, teve empregos como os de provador de tâmaras e guarda numa empresa de construção de estradas. Perante a ameaça de prisão iminente, viu­‑se forçado a fugir do país a caminho do exílio de onde voltou. Mais tarde, indignado com o Massacre de Kirkuk, renunciou publicamente ao comunismo. Foi um dos poetas árabes mais influenciados pela literatu‑ ra europeia. (Adalberto Alves)

BEI DAO (1949) é considerado um dos maiores escritores chineses contemporâneos, repetidas vezes apontado para o Prémio Nobel. É conhecido em particular pela sua poe‑ sia, embora seja também ficcionista e ensaísta de renome. Exilado da China desde 1989, acabou por se tornar cidadão norte­‑americano. O seu poema «A resposta» é um claro exemplo, não apenas da sua crítica política, mas, e talvez sobretudo, de um inconfor‑ mismo fundador, que ele transpõe através de formas complexas e paradoxais. (Helena Carvalhão Buescu)

BIN WEI (1976). Tal como dezenas de milhões de seus compatriotas, Bin Wei viu as condições da sua família mudarem na era pós­‑Mao, tendo passado por inúmeras dificul‑ dades e humilhações. Enraizadas nesta «matéria social» e na análise do poder regenera‑ dor da vontade individual face à multidão, como expressão de regras irracionais impos‑ tas por um poder cego e longínquo, as suas narrativas são a expressão das contradições da nova mentalidade chinesa. (Carlos Botão Alves)

BISHARA ‘ABDALLÂH AL­‑KHÛRI (c. 1890­‑1968). Poeta libanês que escrevia sob o pseudónimo Al‑Akhtal­ as­‑Saghir. Foi também jornalista, tendo estudado língua e litera‑ tura francesas. Só começou a publicar relativamente tarde (1952). Em 1961, uma recolha de poemas seus valeu­‑lhe o título, entre os seus pares, de Príncipe dos Poetas, apesar de a sua obra não integrar a corrente principal do modernismo literário árabe. Ainda assim, a força do seu lirismo e a melodia dos seus versos são realmente únicas entre os poetas árabes neoclássicos ou de feição romântica. (Adalberto Alves)

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BISHR FÂRIS (c. 1906­‑1963). Poeta e dramaturgo egípcio de escrita muito original. Defendeu a sua tese, na Sorbonne, subordinada ao tema «L’honneur chez les Arabes». (Adalberto Alves)

BOB DYLAN (1941). Figura central da cultura popular norte‑americana­ a partir da se‑ gunda metade do século xx, foi, em 2016, galardoado com o Prémio Nobel da Litera‑ tura. As suas canções, muito celebradas pela sua componente intervencionista e lírica, foram adoptadas como hinos dos movimentos pelos direitos civis americanos, nos anos 60. «Like a Rolling Stone» é, porventura, uma escolha menos usual, exemplo de um lado mais emotivo da poesia de Dylan. (João M.P. Gabriel)

BULAND AL­‑HAIDARI (1926­‑1996). Eminente poeta iraquiano de origem curda, também crítico literário e desenhador, foi uma voz singular no âmbito da moderna poesia árabe e um dos mais destacados cultores do verso branco. Criado no ambiente urbano de Bagdade, cedo se tornou um dos opositores ao regime de Saddam Hussein, que o perseguiu, forçando­‑o a seguir o caminho do exílio, primeiro em Beirute e depois, a partir de 1982, em Londres, onde veio a falecer. (Adalberto Alves)

CAMARA LAYE (1928­‑1980). As obras deste autor, nascido na Guiné Francesa, figuram entre os textos pioneiros da então emergente literatura francófona africana. Tendo vin‑ do a assinar quatro romances, Camara Laye obteve reconhecimento imediato com o seu livro de estreia, L’Enfant noir (1953), relato parcialmente autobiográfico da infância de um autor que, após os estudos em Paris, acabou por abandonar o país natal por razões políticas, falecendo no Senegal. (Amândio Reis)

CARLOS FUENTES (1928­‑2012) foi porventura o mais importante romancista me‑ xicano do século xx, sendo enquadrado na geração do boom latino­‑americano. Os seus romances e contos procuram reflectir a composição e tensões da sociedade mexicana, integrando­‑a contudo no domínio mais vasto da América Latina. «O prisioneiro de Las Lomas» é disso exemplo. (Simão Valente)

CÉSAR VALLEJO (1892­‑1938), escritor peruano, teve actividade literária em vários gé‑ neros, sendo, contudo, a poesia aquele em que mais se destacou. A sua inventividade for‑ mal e linguística em grande medida antecipou o modernismo europeu, acompanhando­ ‑o num desenvolvimento paralelo que viria a influenciar gerações de poetas em todo o mundo. (Simão Valente)

CHEN ZHONGSHI (1942­‑2016). Interessado pelas profundas mudanças sociocul‑ turais da China desde o final da dinastia Qing até aos anos 80, os seus textos são uma

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reflexão polifacetada sobre a viabilidade dos princípios da ética confuciana, num país em modernização acelerada. A escrita possui uma tessitura complexa, para a qual convo‑ ca tanto a sabedoria popular, como a história e ainda a filosofia chinesas. Tão polémico como reconhecido, alcançou fama internacional, ganhando vários prémios dentro e fora do país. (Carlos Botão Alves)

CHINUA ACHEBE (1930­‑2013) é um dos escritores africanos mais significativos do século xx, estando ligado à génese do renovado interesse nas literatura pós­‑coloniais na sequência dos movimentos de independência depois da Segunda Guerra Mundial. O romance Things Fall Apart (1958), do qual transcrevemos um excerto, é a sua obra mais importante, emblemática de todo um período. (Simão Valente)

CHUAH GUAT ENG (1943) é uma escritora em língua inglesa da etnia peranakan, a histórica comunidade chinesa do estreito de Malaca, e nacionalidade malaia. É a pri‑ meira mulher a publicar romances em inglês no seu país. O poema aqui seleccionado insere­‑se num contexto de oposição e crítica a um sistema político em desagregação. (Simão Valente)

CLAUDE MCKAY (1889­‑1948). Tendo nascido na Jamaica e falecido nos EUA, foi umas das figuras proeminentes do Harlem Renaissance. ComSongs of Jamaica (1912), McKay publicou o primeiro livro de poesia escrito em patuá jamaicano. Posteriormente, o autor adoptou o inglês como língua de criação, através da qual exprimiu sempre, porém, como em «Os trópicos em Nova Iorque», intersecções linguísticas e geoculturais que se afigu‑ ram irresolúveis. (Amândio Reis)

CYNTHIA MCLEOD (1936) estreou­‑se com Hoe duur was de suiker? [Quanto Custou o Açúcar?, 1987]. Neste romance recorre frequentemente ao nengre, língua dos escravos no Suriname, que surgiu a partir do contacto com línguas africanas, português e inglês. Os escravos eram proibidos de falar ou saber neerlandês. Com a passagem do tempo, o nome «nengre» transformou‑se­ em sranan. Presentemente, o sranan é a língua nacional, língua franca e a única língua que praticamente todos sabem falar no Suriname. (Patrícia Couto)

DALIA RAVICOVICH (1936­‑2005). Uma das pioneiras na literatura hebraica israelen‑ se escrita por mulheres nascidas em território israelense e falantes do hebraico desde a infância. Destacou‑se­ em 1959 ao publicar o seu primeiro livro de poemas, incentivada por Avraham Shlonsky. Actuou como jornalista e professora. Foi influenciada pela poe‑ sia mais formal, embora permeável às inovações temáticas e estilísticas do seu tempo. (Moacir Amâncio)

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DAVID GROSSMAN (1954). Estudou filosofia e drama na Universidade Hebraica de Jerusalém. A sua extensa obra publicada em mais de trinta línguas inclui romances, con‑ tos, peças de teatro e livros infantis e juvenis. Entre os numerosos prémios que recebeu, conta‑se,­ em 2017, o Man Booker Internacional atribuído por Um Cavalo Entra num Bar. Narrado a várias vozes, fundindo géneros e estilos, o romance Ver: Amor (1986) percorre de modo não­‑linear praticamente todo o século xx, tendo como núcleo central a expe‑ riência indizível do Holocausto. (Lúcia Mucznik)

DAVID RUBADIRI (1930­‑2018). A musicalidade de No Bride Price (1967), para a qual concorre uma pontuação ritmada, constitui a pedra de toque inicial do romance, pon‑ tuando uma narrativa de tom irónico e de denúncia das fragilidades do regime pós­ ‑independência de Hastings Banda. «Morte em Mulago», poema incisivo e cortante, submerge o leitor no torpor da morte. As paredes frias de Mulago (hospital em Kampala) encerram um epitáfio, à semelhança da «bata branca», mortalha do óbito pronunciado pelo «ponto final». (Flávia Ba)

DAVID VOGEL (1891­‑1944). Deixou a cidade natal, na Ucrânia, ainda jovem, transferindo­‑se para Vilna e depois para a Áustria, onde desenvolveu a sua carreira de escritor. Viveu também em Paris, Berlim e Telavive, retornando a Paris, onde mais tarde cairia nas mãos dos nazis, sendo levado para Auschwitz, onde foi morto. Deixou uma obra tardiamente redescoberta como inovadora, repercutindo profundamente na poe‑ sia escrita em Israel. (Moacir Amâncio)

DOROTHY PARKER (1893­‑1967). Personalidade incontornável da sociedade ameri‑ cana da primeira metade do século xx, é lembrada pelo seu humor característico, muito mordaz e crítico do zeitgeist, que encontra a sua expressão máxima no seu trabalho lite‑ rário. «Resumé», que aqui apresentamos, é um exemplo do humor negro característico da autora, desconstruindo e satirizando um tema potencialmente sombrio. (João M.P. Gabriel)

EDITH WHARTON (1862­‑1937) foi a primeira mulher a ser galardoada com o Prémio Pulitzer, em 1921. Em 1905, com a publicação do seu primeiro romance (House of Mirth, que aqui apresentamos), Wharton regressava à sua incessante interrogação do lugar da mulher na alta sociedade nova‑iorquina,­ crescentemente hedonista, que já tinha traba‑ lhado na sua ficção curta. Através de Lily Bart, personagem central do romance, o leitor encontra­‑se perante uma crítica de costumes mordaz, que salienta a frivolidade das rela‑ ções interpessoais naquele contexto. (João M.P. Gabriel)

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E.E. CUMMINGS (1894­‑1962). Edward Estlin Cummings foi um profícuo poeta, en‑ saísta e pintor norte­‑americano. Autor de duas autobiografias, várias peças e de nume‑ rosos poemas. Cummings cedo se interessou pelo modernismo, interesse amplamente reflectido nos seus escritos, em particular na sua poesia, cuja sintaxe é muitas vezes dis‑ ruptiva e experimental. (Francisco C. Marques)

EDOGAWA RANPO (1894‑1965).­ Distinguiu‑se­ no domínio do fantástico e mistério e foi pioneiro no cultivo da ficção policial no Japão. Os seus primeiros contos saíram em 1923, tendo então criado o detective Kogoro Akechi, decalcado de Sherlock Holmes. O absurdo e o terror psicológico marcam a sua obra e figuram no conto «Ningen» [A cadei‑ ra humana], publicado no periódico Kuraku (1925), que surge numa época de crescente militarismo e prima por uma inquietante estranheza decorrente quer da auto­‑anulação do protagonista como sujeito quer de um grotesco voyeurismo. (Marta Pacheco Pinto)

ÉDOUARD GLISSANT (1928-2011). Nascido na Martinica, onde foi aluno do poe‑ ta Aimé Césaire, viria depois a estudar Filosofia em Paris, e a estrear-se como poeta e ensaísta na década de 50, tendo o seu primeiro romance, La Lézarde (1958), recebido o Prémio Renaudot. Autor de uma vasta obra, onde se cruzam e articulam a poesia, o ciclo romanesco e o teatro, foram sobretudo os ensaios a fazer dele um dos pensadores contemporâneos mais importantes e estimulantes da diversidade cultural e da criouli‑ zação. Empenhado numa reapropriação da «antilhanidade» e numa «poética da relação» com a alteridade como antídotos da falsa universalidade, da cristalização identitária e da globalização hegemónica, Glissant desenvolveu a noção de «Todo-o-mundo» tanto em romance (Tout-Monde, 1993), como em ensaio (Traité du Tout-Monde, 1997), gravando nela o fulgor de uma nova co-presença dos seres e das coisas, uma forma de mundialidade sob o signo da Relação. (Ana Paula Coutinho)

EDWIN JOHN DOVE PRATT (1882-1964) afirmou-se como o mais destacado poeta canadiano do seu tempo, a partir de Newfoundland Verse (1923). Passando a maior parte da vida em Toronto, onde desempenhou funções como professor universitário e minis‑ tro na igreja metodista, Pratt explora a inspiração muitas vezes implícita da Terra Nova (Newfoundland), de onde é natural, encontrando-se a centralidade temática do mar e da insularidade em muita da sua poesia. (Amândio Reis)

ELIAS KHOURY (1936) é um romancista e jornalista libanês nascido no seio da comu‑ nidade grega ortodoxa naquele país. A sua obra maior é A Porta do Sol (2002), um épico da experiência dos refugiados palestinianos no Líbano desde a fundação do Estado de Israel. A forma como representa palestinianos e israelitas revela uma particular urgência de ultrapassar barreiras culturais e ideológicas. (Simão Valente)

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ELIZABETH BISHOP (1911‑1979).­ Agraciada com os mais prestigiados prémios e dis‑ tinções, como o Prémio Pulitzer, o National Book Award ou o Prémio Internacional de Literatura Neustadt, Elizabeth Bishop é justamente considerada uma das mais impor‑ tantes poetas norte­‑americanas do século xx. Bishop dividiu­‑se entre os Estados Unidos e o Brasil, onde viveu, desde 1951 e durante quase vinte anos, com Lota de Macedo Soa‑ res, arquitecta e urbanista do Rio de Janeiro. «Uma arte», um dos seus mais belos poemas tematizando o amor e a perda, com fina ironia e notável imagética, foi escrito para Alice Methfessel, a segunda companheira de Bishop desde o seu regresso aos Estados Unidos, em 1970, até à sua morte. (Ana Luísa Amaral)

ERNEST HEMINGWAY (1899­‑1961). Laureado com o Prémio Nobel da Literatura, este escritor norte­‑americano presenciou as duas Guerras Mundiais que marcaram a consciência de todo o século e, no intervalo entre as duas, tornou­‑se parte central do grupo de expatriados que frequentavam a casa de Gertrude Stein em Paris, integrando assim a chamada Geração Perdida. O conto que aqui apresentamos, «O grande rio de Dois Corações», regressa a um tema recorrente do autor – a guerra – pondo­‑o em diálogo estreito com a força reparadora da natureza. (João M.P. Gabriel)

ETGAR KERET (1967) é um dos mais populares escritores israelitas da sua geração e as suas histórias minimalistas, fantásticas, provocadoras, estão traduzidas em todo o mundo com enorme êxito. É ainda autor de filmes e de histórias gráficas. «A matéria de que são feitos os sonhos» mergulha‑nos­ de imediato no universo literário singular de Etgar Keret, onde o absurdo, o surreal, o humor, a ternura e a crueldade estão presentes. (Lúcia Mucznik)

EZRA POUND (1885‑1972)­ foi um norte‑americano­ expatriado e um dos nomes mais importantes da poesia modernista, tendo influenciado um número incontável de auto‑ res. A par do experimentalismo formal da sua escrita, o facto de Pound se ter alinhado politicamente com o fascismo e ter colaborado com o regime de Mussolini tornou‑o­ uma figura controversa na história literária. O excerto que reproduzimos provém dos Cantos (1917­‑1969), nexo central da sua obra. (Simão Valente)

F. SCOTT FITZGERALD (1896­‑1940) foi um dos mais importantes autores norte­ ‑americanos do século xx, retratando nos seus romances os excessos das classes privi‑ legiadas no seu país natal durante os anos 20. O livro O Grande Gatsby (1925) é a sua obra mais marcante, tendo contribuído para a construção – e crítica – do mito americano do self­‑made man. (Simão Valente)

FADWA TUQÂN (1914­‑2003). Esta grande poeta da resistência palestina alcançou, no domínio literário, um lugar comparável ao de Mahmud Darwish. A sua educação inicial

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deveu­‑se, em boa parte, à orientação de seu irmão, Ibrahim Tuqân, também ele um no‑ tável poeta. Mais tarde, estudou língua e literatura inglesas na Universidade de Oxford. A sua poesia, erguendo uma voz de protesto, sofrimento, angústia e desespero perante a ocupação sionista, não perde nunca graça, elegância e beleza, tendo­‑lhe granjeado au‑ diência internacional e diversos prémios. (Adalberto Alves)

FATIHA MORCHID (1958). Médica pediatra de formação, nasceu na cidade marroquina de Benslimane. Além da poesia, dedica-se à divulgação científica, tendo apresentado du‑ rante alguns anos um programa sobre medicina no canal de televisão 2M. (André Simões)

FLANNERY O’CONNOR (1925‑1964)­ foi uma escritora norte­‑americana. Autora de romances, notabilizou­‑se sobretudo no género do conto, sendo que «Um bom homem é difícil de encontrar», que transcrevemos em parte, é uma das suas obras mais conhe‑ cidas. O’Connor retrata a sociedade do Sul dos EUA, com particular atenção aos seus aspectos mais violentos. (Simão Valente)

FU’AD RIFQA (1930­‑2011). Poeta sírio, ainda estudante entrou em contacto com a lite‑ ratura alemã, que haveria de influenciar a sua produção literária e motivar a continuação dos seus estudos na Alemanha. Começou a publicar em 1967, na revista Shi’r [Poesia], vindo a publicar um total de 22 livros de poemas. O tema central da sua obra, que não desdenha do recurso à mitologia ou do enfoque metafísico, é a experiência do homem solitário no meio da Natureza selvagem, seja na perspectiva de um lenhador, seja na de um sufi, mostrando pontos de contacto com Emerson ou Thoreau. (Adalberto Alves)

GABRIEL GARCÍA MARQUEZ (1927­‑2014) é porventura o nome mais reconhecível do boom da literatura latino­‑americana dos anos 60 do século passado. A sua obra está intimamente ligada ao Realismo Mágico, um estilo literário que cruza a crítica social do realismo tradicional com elementos sobrenaturais. Venceu o Prémio Nobel em 1982. (Simão Valente)

GABRIEL OKARA (1921­‑2019), autor nigeriano, foi um dos primeiros escritores em África a trabalhar na tradição do experimentalismo formal do modernismo. A sua obra divide­‑se entre a poesia e o romance, sendo a este último género que pertence A Vo z (1964), texto escrito num inglês articulado com a sintaxe do ijo, como forma de comen‑ tar e ilustrar a experiência pós­‑colonial. (Simão Valente)

GAO XINGJIAN (1940). Marcado pelo período conturbado do final da invasão japo‑ nesa e das guerras subsequentes, o seu universo ficcional explora a vida errante de mul‑ tidões desenraizadas pelas decisões políticas. A experiência da incerteza do futuro e da

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instabilidade do presente, são uma constante na sua obra, cujas personagens procuram no passado um refúgio possível para uma refundação da consciência do país. Recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 2000. (Carlos Botão Alves)

GARY SNYDER (1930). Poeta norte­‑americano pioneiro da poesia ecologista, que lhe valeu um Prémio Pulitzer, é um dos últimos membros da Geração Beat ainda vivos. Fortemente influenciada pela espiritualidade budista, a sua poesia exprime uma preo‑ cupação central com a natureza. Exemplo disto é «Por sobre o Vale de Pate», onde o sujeito poético percorre uma paisagem natural, descrevendo­‑a também de acordo com o impacto que a humanidade exerceu sobre ela ao longo dos tempos. (João M.P. Gabriel)

GÜNELI GÜN (1939) é uma romancista turca, autora de dois romances em inglês ‑ca racterizados pela influência do realismo mágico, a partir de um dos quais,Na Estrada para Bagdad (1991), transcrevemos o excerto seleccionado. Tendo dividido a sua vida entre a Turquia e os Estados Unidos da América, é também a tradutora de Orhan Pamuk para língua inglesa, autor igualmente representado nesta nossa antologia. (Simão Valente)

HA JIN (1956). Ex­‑membro do Exército de Libertação Popular durante a Revolução Cultural, cresceu no caos das três primeiras décadas de governação comunista. Da sua escrita perpassa uma muito detalhada análise dos traços de comportamento humano sob pressão e exprime assim os anseios e as contradições da alma chinesa. Radicado nos EUA após 1989, recebeu inúmeros prémios, tanto pela sua obra narrativa como pela poé‑ tica. (Carlos Botão Alves)

HAFIZ IBRAHIM (1871‑1932).­ Poeta egípcio, com origens turcas pelo lado materno. Alcançou, em vida, uma grande nomeada, não apenas pelo valor intrínseco dos seus ver‑ sos, mas também pelas temáticas sociais neles abordadas, a ponto de ser chamado «o Poeta dos pobres» e o «Poeta do Nilo». Fez os seus estudos na Academia Militar egípcia, seguindo uma carreira militar. Foi um dos poetas que procurou utilizar os metros e as rimas do período clássico da Poesia Árabe para exprimir novos ideais, de pendor huma‑ nístico. (Adalberto Alves)

HAIIM NAKHMAN BIALIK (1873­‑1934). Publicou o seu primeiro livro em Varsóvia, no ano de 1901, e seria considerado o poeta do renascimento nacional judaico, pela te‑ mática que abrangeu do lirismo actualizado até às denúncias da violência dos pogroms movidos contra seu povo na Rússia czarista. Somente saiu da então União Soviética, transferindo­‑se para a Alemanha, em 1921, de lá seguindo para Telavive três anos depois. Foi também folclorista e prosador, mas a sua obra poética destaca‑se­ como um modelo permanente de maestria estilística. (Moacir Amâncio)

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HANAN AL­‑SHAYKH (1945) é uma romancista libanesa cuja obra se caracteriza pela representação da experiência feminina, com particular ênfase na sexualidade, no mundo islâmico, onde os seus livros têm frequentemente sido alvo de censura. Residindo em Londres ao longo dos últimos anos, a obra da qual transcrevemos um excerto reflecte a experiência árabe na capital britânica. (Simão Valente)

HARIVANSH RAI BACHCHAN (1907-2003) é um dos poetas mais aclamados do sé‑ culo xx do hindi. O seu longo poema lírico Madhushala [A Casa do Vinho], publicado em 1935, tornou-o muito famoso. «Jo Beet Gayee So Baat Gayee» [O que já passou, passou] é um poema que faz parte do livro Satrangini [Arco-íris], que nos ensina a livrarmo-nos das dores e angústias do passado utilizando os exemplos da natureza. (Shiv Kumar-Singh)

HART CRANE (1899­‑1932). Poeta maior do modernismo norte­‑americano, destacou­ ‑se por uma obra poética breve, por vezes hermética e obscura, tendo em vista a recu‑ peração e reescrita tanto da preconização fatalista da era em que se insere (anunciada por autores como T.S. Eliot), como da narrativa fundacional americana em geral. «No túmulo de Melville» serve como exemplo da poética do autor, articulando­‑a de forma assumida com o seu antepassado literário titular. (João M.P. Gabriel)

HARUKI MURAKAMI (1949) é um dos grandes nomes da literatura japonesa contem‑ porânea. Iniciou a sua vida de escritor em 1978, mas só em 1985 passou a ser um sucesso, com Norwegian Wood. Como forma de escapar ao conformismo japonês, viveu na Euro‑ pa e nos EUA, tendo escrito várias obras, traduzidas para cerca de 50 línguas. Recebeu inúmeros prémios nacionais e internacionais. Influenciado por grandes autores ociden‑ tais e russos, a sua obra, recorrentemente acerca da solidão e do isolamento, é marcada por surrealismo, melancolia e fatalismo, a que acrescenta toques de experimentalismo, visível num simbolismo bizarro, em reflexões intrigantes e em universos alternativos. Tornou­‑se um autor de culto, um dos grandes romancistas vivos, repetidamente aponta‑ do ao Nobel. (Inês Rocha Silva)

HORACIO QUIROGA (1878­‑1937). Contista e poeta modernista da literatura uruguaia. Influenciado por Poe, Maupassant e Conrad, Quiroga é considerado um dos mestres do conto latino­‑americano. As suas compilações mais destacadas são Contos de Amor, Loucura e Morte (1917), Contos da Selva (1918) e El desierto (1924). Com um estilo directo e um ritmo subtil, Quiroga apresenta as tensões entre violência, loucura e conflito interno entre dese‑ jo e razão – no quadro das reflexões sobre a condição humana. (Mitzi Guerrero)

HU SHIH (1891‑1962).­ Figura maior do Movimento 4 de Maio, advoga o recurso a te‑ mas e a formas de expressão correntes na literatura, apontando mesmo princípios de

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reforma da língua chinesa. Equaciona formas de uma vida colectiva democrática pelo uso das liberdades individuais baseadas na tolerância. Preocupado com a viabilidade mo‑ derna da cultura chinesa, da sua escrita ensaística e narrativa emana um apelo à refunda‑ ção da literatura nas liberdades individuais. (Carlos Botão Alves)

ILYA ABÛ MADI (1889­‑1957) é um poeta libanês. De pendor filosófico, embora de tom optimista e, por vezes, enigmático, é um dos expoentes máximos daqueles poetas que seguiram o caminho do exílio. Desenvolveu intensa actividade cultural, quer no mun‑ do árabe, quer nos EUA, onde veio a fazer parte do círculo literário de Khalil Gibran. Deixou uma imensa obra poética, recompilada postumamente num volume de mais de oitocentas páginas. (Adalberto Alves)

INDRA SINHA (1950) é um romancista britânico de origem indiana. O seu roman‑ ce Eu, Animal (2007) conta a história de uma criança afectada pela explosão na fábrica de pesticidas em Bhopal, Índia, em 1984, crescendo com um problema na coluna que o obriga a andar de pés e mãos no chão. O texto é um comentário às fronteiras entre hu‑ mano e animal, bem como ao impacto ambiental da actividade humana. (Simão Valente)

IRVING LAYTON (1912­‑2006). Foi um poeta de origem romena naturalizado canadia‑ no, país para onde a família emigrou em 1913. Começou a publicar em 1945, tendo ganha‑ do particular fama a partir dos anos 70. A sua poesia revela uma aguda consciência cívica, antipuritana e disruptiva, características indissociáveis da vocação profética que o autor assumidamente via como base de todo o trabalho poético. (Francisco C. Marques)

ISHIKAWA TAKUBOKU (1886­‑1912). Escritor japonês do período Meiji. Cultivou uma forma associada à escrita feminina, o tanka, e imprimiu‑lhe­ um ritmo próprio, rom‑ pendo com as suas regras, misturando níveis de língua e aproximando­‑se, por vezes, da prosa. As suas duas maiores obras poéticas são Kanashiki gangu [Brinquedos Tristes, 1912] e Ichiaku no suna [Um Punhado de Areia, 1910]. Esteve ligado ao círculo romântico myōjō e, mais tarde, virou‑se­ para o naturalismo. Apesar de algumas incursões na ficção, foi na poesia que se notabilizou. «O vento nos pinheiros» dá conta do seu estilo sincero e introspectivo. (Marta Pacheco Pinto)

J.M. COETZEE (1940) é um escritor sul‑africano­ de língua inglesa, tendo obtido a cida‑ dania australiana em 2006. Os seus romances exploram vários temas, desde questões de violência racial e de género no contexto colonial, até à reescrita da vida de Dostoievski, com O Mestre de Petersburgo (1994), seleccionado para esta antologia. Venceu o Booker duas vezes e o Prémio Nobel em 2003. (Simão Valente)

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JEAN RHYS (1890­‑1979) foi uma autora de língua inglesa, nascida e criada em Domini‑ ca. Com o seu romance mais conhecido, Vasto Mar de Sargaços, de 1966, a autora revisitou a narrativa de Jane Eyre, sob a forma de uma prequela que, segundo uma óptica feminista e anticolonialista, narra o casamento de Mr. Rochester com a mulher que anos mais tar‑ de enclausuraria no sótão, Antoinette Cosway. (João M.P. Gabriel)

JIBANANANDA DAS (1899­‑1954), um dos maiores poetas do subcontinente indiano, ensinou em universidades em Calcutá, Deli e Barisal, sua cidade natal. A sua primeira colectânea poética, Jhara Palak [Penas Caídas], surgiu em 1927. As obras mais conhecidas são Banalata Sen (1942) e Rupasi Bangla (Linda Bengala, escrita em 1934 e publicada pos‑ tumamente em 1957). Jibanananda pertencia a um grupo de poetas ansiosos por quebrar com a herança poética de Tagore. O seu lirismo não tem paralelo na literatura bengali. Enquanto os primeiros poemas evocam a beleza natural e rural de Bengala, os posterio‑ res reflectem a depressão, a frustração e a solidão da vida urbana. Mestre de palavras­ ‑imagens, escreveu ainda ficção, onde analisa as complexidades dos relacionamentos amorosos, bem como a sociedade e a política da época. (Rita Ray)

JIM MORRISON (1943­‑1971). Vocalista da banda The Doors, Jim Morrison foi um au‑ tor, compositor e cineasta norte­‑americano. Publica em vida dois volumes de poesia, ainda que grave alguns dos seus poemas, em 1969, na colectânea The Lost Paris Tapes. Após a sua morte precoce em Paris, Morrison tornou­‑se um dos símbolos maiores da cultura popular norte­‑americana da segunda metade do século xx. (Francisco C. Marques)

JOHN ASHBERY (1917­‑2017) é tido como um dos grandes poetas do século passado. Dotada de uma perspectiva constantemente auto­‑reflexiva, grande parte da obra poéti‑ ca de Ashbery pode também ser lida como uma ars poetica em sentido estrito, categoria aplicável de igual forma ao poema que aqui apresentamos, que exemplifica de forma cla‑ ra a influência exercida pela cultura visual na poesia de Ashbery que, por outro lado, tam‑ bém lhe permite explorar a relação entre linguagem e significação. (João M.P. Gabriel)

JOHN BARTH (1930) é um romancista norte‑americano­ cuja obra está ligada à estética do pós­‑modernismo, explorando nos seus textos questões metaficcionais, colocando a própria escrita do romance como uma das suas questões principais. Ópera Flutuante, con‑ tudo, é um texto onde esses aspectos estão menos evidentes, lidando com preocupações filosóficas e existenciais em torno do suicídio. (Simão Valente)

JOHN DOS PASSOS (1896­‑1970). Natural de Chicago, filho de madeirenses, John Ro‑ derigo dos Passos foi um influente escritor norte­‑americano. A trilogia USA (1930‑1936),­ bem como a obra Manhattan Transfer, de 1925, são exemplos cimeiros da sua escrita,

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evidenciando o estilo narrativo não­‑linear característico do seu trabalho enquanto fic‑ cionista. (Francisco C. Marques)

JORGE LUIS BORGES (1899­‑1986). Precursor do realismo mágico na literatura latino­ ‑americana do século xx, foi um autor argentino, figura central também da literatura mundial, celebrado sobretudo pela sua ficção curta. Parte da colectânea Ficções, o conto «As ruínas circulares», que aqui apresentamos, explora os limites do pensamento por‑ quanto este possa influenciar o mundo material. As possibilidades do sonho, em particu‑ lar, são, aqui, especialmente relevantes. (João M.P. Gabriel)

JOSÉ DONOSO (1924‑1996)­ foi um romancista chileno que, à semelhança de outros intelectuais do seu país, viveu anos no exílio na sequência do golpe de Pinochet. A sua obra alinha‑se­ com a explosão de actividade literária na América Latina, que ficou para a história como o boom, termo utilizado pela primeira vez por Donoso. A sua obra Casa de Campo (1978) insere­‑se nesse movimento. (Simão Valente)

JOSÉ LEZAMA LIMA (1910­‑1976) é um escritor cubano que, na sua obra Paradiso (1966), leva a cabo uma revolução no uso do castelhano, recuperando a sintaxe do sé‑ culo xvi e associando­‑a a estruturas linguísticas e alegorias provenientes de diferen‑ tes culturas e períodos históricos. A extensão e alcance do romance em causa, do qual reproduzimos um excerto, em que o tema da maturação do artista tem lugar privile‑ giado, levaram a que frequentemente seja recordado como o «Proust cubano». (Simão Valente)

JOY HARJO (1962) é uma poeta nativo­‑americana, a primeira a ser nomeada Poeta Laureada dos Estados Unidos em 2019. É um nome central da segunda vaga de auto‑ res nativo­‑americanos em língua inglesa, no seguimento de N. Scott Momaday e Leslie Marmon Silko. O poema aqui seleccionado compara a tranquilidade do amanhecer ao processo de nascimento e morte. (Simão Valente)

JUAN RULFO (1917­‑1986) foi um autor mexicano que antecipou os temas e técnicas do realismo mágico que caracterizam a literatura latino­‑americana do anos 60 do século xx. Publicou em vida duas obras que bastaram para lhe cimentar a fama: a recolha de contos O Chão em Chamas (1953) e a novela Pedro Páramo (1955). (Simão Valente)

JULIO CORTÁZAR (1914‑1984)­ é um dos autores argentinos mais lidos e traduzidos em todo o mundo, tendo sobretudo escrito na forma do conto, de que é exemplo «A casa tomada» (1946), aqui transcrito. O seu estilo combina a inovação formal modernista com um pendor por enredos e personagens próximos do surrealismo. À semelhança de

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outros escritores sul‑americanos­ da segunda metade do século xx, viveu longos anos no exílio. (Simão Valente)

OKAKURA KAKUZŌ (1862­‑1913). Nascido no Japão, crítico de arte, professor, escri‑ tor, Okakura escreveu, originalmente em inglês, O Livro do Chá, publicado em 1906. A obra mostra‑nos­ a harmonia, beleza e simplicidade que caracterizam a cerimónia do chá (chanoyu). Numa crítica à ignorância, procura­‑se elucidar o ocidente a respeito da cultura nipónica e, por extensão, asiática. Discute‑se­ o taoismo e o zen na sua relação com toda a estética da cultura do chá. Antes de Okakura, em 1905, Wenceslau de Moraes escrevera O Culto do Chá. (Camila Seixas e Sousa)

KATHERINE MANSFIELD (1888­‑1923) tornou­‑se a escritora mais proeminente da literatura neozelandesa, bem como um dos nomes incontornáveis do modernismo, em particular, no que toca à narrativa breve, onde se insere uma das suas obras mais célebres, The Garden Party (1922). Influenciada sobretudo por Tchékhov, a sua obra caracteriza­ ‑se pela escrita precisa, pelo tom subtilmente lírico e por uma psicologia penetrante. (Amândio Reis)

YASUNARI KAWABATA (1899­‑1972) era um entusiasta da tradição e do carácter su‑ cinto e sugestivo da poesia japonesa e, em matéria de estética, comentava sobre a afini‑ dade existente no Japão entre beleza e tristeza. O seu conto «A lua na água» (1953) remete para temas estabelecidos no budismo, tais como a transitoriedade, o vazio e o entendi‑ mento da realidade. Nota‑se­ a própria imagem da lua reflectida na água, referência da tradição budista evocativa da ilusão da percepção e da ausência de substância da reali‑ dade, a qual viria a ser utilizada pelo budismo zen, de forma distinta, como alerta para a necessidade de não diferenciação dos opostos aparentes da realidade e da não realidade enquanto partes (equivalentes) do mesmo. (António Barrento)

KENZABURŌ ŌE (1935). Prémio Nobel da Literatura em 1994. Educado no período do pós­‑guerra, palco de movimentos ultranacionalistas vários, que o seu universo lite‑ rário traz à memória, foi na Universidade de Tóquio que contactou com as literaturas francesa e norte‑americana­ e começou a escrever. Kojinteki na taiken [Não Matem o Bebé, 1964] é a sua obra mais importante, profundamente marcada pelo trauma de o seu primogénito ser portador de deficiência, o que influenciaria indelevelmente a sua obra. Conhecido pelo seu activismo político, conta com romances como Jinsei no shinseki [Um Eco do Céu, 1989], Shizuka­‑na seikatsu [Dias Tranquilos, 1990] ou Torikaeko [As Regras do Tagame, 2001], este último fazendo parte de uma trilogia concluída em 2005. (Marta Pacheco Pinto)

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KHALÎL HÂWÎ (1919­‑1982). Poeta libanês. De origens modestas, trabalhou como ope‑ rário na Síria e foi professor universitário. Quando o exército de Israel invadiu o seu país, não conseguindo conter o seu desgosto, suicida‑se­ com um tiro. No seu estilo expansivo, onde mitologia e simbolismo se aliam, tenta alertar as novas gerações para a necessida‑ de da sobrevivência através de movimentos insurreccionais libertadores. A sua poesia é fruto da emoção. Nos seus dois últimos livros, a sua inspiração vai­‑se apagando, em simultâneo com o seu desencanto final. (Adalberto Alves)

LANGSTON HUGHES (1902­‑1967). De nome completo James Mercer Langston Hughes, foi um nome incontornável da jazz poetry e do movimento designado Harlem Renaissance e destacou‑se­ como poeta múltiplo no seio das letras norte‑americanas.­ Poemas como «The negro speaks of rivers» (1920) mostram a centralidade da condição afro­‑americana no seio da obra de um poeta que viveu, a partir de dentro, o movimen‑ to dos direitos civis que revolucionaria a sociedade americana ao longo do século xx. (Amândio Reis)

LAO SHE (1899­‑1966). Na escrita de Lao She, entramos nos ambientes concêntricos da vida social chinesa. Os universos ficcionais do autor fazem projectar as convulsões da grande história do país, no seio dos pequenos mundos dos hutong de Pequim, onde se cruzam vidas cosmopolitas com as pequenas preocupações egoístas. A história, em Lao She, faz‑se­ de dentro para fora, e o leitor é levado a vibrar com as grandezas e a mesqui‑ nhez da cidade e da existência humana. (Carlos Botão Alves)

LEONARD COHEN (1934‑2016).­ Embora reconhecido sobretudo enquanto cantor, tinha inicialmente a ambição de escrever, publicando poemas e vários romances durante os anos 50 e início dos anos 60, muito antes do lançamento do seu primeiro disco, em 1967. «Toma esta valsa» é, na verdade, a tradução de uma tradução. Integrada num disco de homenagem ao poeta Federico García Lorca, lançado em 1986 e intitulado Poet in New York, a letra desta canção é uma tradução de Cohen do poema «Pequeño vals vienês» da autoria do próprio Lorca, por quem o cantor nutria imensa admiração. (João M.P. Gabriel)

LEONARD Z. IRIARTE (1960). O texto «O princípio» é baseado na canção «I Tini‑ tuhon» que, por sua vez, é baseada no mito da criação dos matao, ou chamoru, os habi‑ tantes das Ilhas Marianas, no Oceano Pacífico. É fundamental compreender este texto como algo que respeita à tradição oral. A vocalização de «Hui!», «Hå!» e «Hoi»! é uma for‑ ma ritualística de estabelecer uma ponte com a esfera sobrenatural. De notar que, nesta história, é a mulher a responsável pela criação das primeiras pessoas, do céu, da terra, da água. (Camila Seixas e Sousa)

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LEÓPOLD SÉDAR SENGHOR (1906­‑2001). Primeiro presidente da República do Senegal imediatamente depois da independência do país, entre 1960 e 1980, Senghor foi igualmente um inovador no âmbito literário e internacional, afirmando­‑se no seio da francofonia como o primeiro escritor africano a integrar a Académie Française, em 1983. Poemas como «Carta a um poeta», dedicado a Aimé Césaire, com quem desenvolveu o conceito de negritude, dão conta desta indissociabilidade entre a sua actividade literária e a sua vivência política. (Amândio Reis)

LEOPOLDO LUGONES (1874‑1938)­ foi um autor argentino multifacetado com uma obra que abarca a poesia, o conto, o romance, o ensaio e outros géneros. Com os seus contos inaugurou a tradição do fantástico e da ficção científica na literatura em língua espanhola, como é exemplo o texto «Os cavalos de Abdera», aqui parcialmente reprodu‑ zido. (Simão Valente)

LIN YUTANG (1895-1976). Inventor, linguista, escritor e tradutor, destaca-se desde logo pelas suas traduções e compilações em inglês dos clássicos chineses. Aproveitou as longas estadias nos EUA para divulgar as suas análises do modo de vida, da cultura e do pensamento chineses, recorrendo para isso à narrativa e ao ensaio. Da sua análise dos acontecimentos do tempo, interessa-lhe sobretudo a luta do indivíduo face à constante ameaça do totalitarismo. (Carlos Botão Alves)

LOUISE ERDRICH (1965) insere‑se­ no movimento conhecido como Native American Renaissance. A autora, membro de uma tribo da etnia ojíbua, tem merecido prémios e galardões em diversas categorias da literatura, o que reflecte o domínio da sua expressão numa grande variedade de géneros, desde a primeira colecção de poesia, Jacklight (repu‑ blicado em 1984), ao mais recente romance, LaRose (2016). (Amândio Reis)

MARGARET ATWOOD (1921) é a escritora canadiana mais lida e traduzida da actuali‑ dade. A sua vasta obra passa por vários géneros, mas foi no romance onde ganhou maior notoriedade, do qual é exemplo o excerto aqui reproduzido. A História de uma Serva é uma distopia feminista onde a autora leva a cabo simultaneamente uma reflexão sobre o uso da linguagem e a função da narrativa. (Simão Valente)

MARIANNE MOORE (1887­‑1972) foi uma das mais importantes poetas norte­ ‑americanas do século xx. O seu estilo é caracterizado por uma linguagem precisa, onde a criação do significado frequentemente opera através da ironia. No caso do poema transcrito, a contenção formal e sobriedade de expressão sublinham a profundidade dos temas explorados, nomeadamente a mortalidade. (Simão Valente)

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MARIO VARGAS LLOSA (1936) é o mais conhecido escritor peruano, tendo vencido o Prémio Nobel em 2010. Apesar da sua obra mais lida ser A Cidade e os Cães (1963), reflexo das influência modernistas na literatura latino­‑americana, trazemos aqui um excerto de O Falador (1987), em que o autor combina preocupações ambientais com a ironia pós­ ‑moderna. (Simão Valente)

MARJORIE OLUDHE­‑MACGOYE (1928­‑2015). Contemporânea de Okot p’Bitek, Oludhe­‑Macgoye é autora de um poema clássico na literatura da África Oriental, «A freedom song» [Uma canção de liberdade]. O poema recai sobre a complexidade de de‑ terminadas relações familiares no Quénia, a partir da breve história de Atieno. O tom pueril do início do poema, em paralelo às diferentes fases de crescimento de Atieno, a que se juntam a gravidez indesejada, culmina de forma cruel, num tom fúnebre («Atieno yo» – com a expressão «yo» a simbolizar lamento). (Flávia Ba)

MARYSE CONDÉ (1937). Oriunda das Caraíbas, obteve o doutoramento na Universi‑ dade Sorbonne, e viveu em vários países africanos. Ensinou nas mais prestigiadas uni‑ versidades americanas. Recebeu inúmeros prémios relativos à sua produção ficcional, centrada nas questões de género e de identidade étnica, com destaque para o Nobel alternativo atribuído em 2018. La migration des coeurs é uma reescrita, em francês, de Wu ‑ thering Heights, de Emily Brontë, cujo cenário passional é transportado para as Caraíbas. (Helena Carvalhão Buescu)

MASUJI IBUSE (1898­‑1993). Importante romancista japonês do pós­‑guerra, publicou diversos contos na década de 1920. A consagração chegou após a Segunda Guerra Mun‑ dial, ficando conhecido tanto pelo retrato da fraqueza humana como pela sua capacida‑ de satírica. «Kakitsubata» [O lírio louco, 1951] aborda a experiência do bombardeamento atómico de Hiroxima, de que o seu romance mais emblemático, Kuroi ame [Chuva Ne‑ gra, 1966], é uma versão burilada. O conto constitui­‑se como um testemunho ficcionado da queda da bomba, centrando­‑se no estado de negação, quase loucura, do quotidiano face à tragédia iminente. (Marta Pacheco Pinto)

MAYA ANGELOU (1928­‑2014) tem lugar cativo na consciência nacional dos Estados Unidos da América, na qualidade não só de activista de direitos civis e direitos das mu‑ lheres, mas, primeiramente, enquanto poeta – afro­‑americana, sim, mas, sobretudo, da humanidade – dotada de uma voz de força inegável, que lhe rendeu inúmeros galardões em vida. «Mulher Fenomenal» proporciona ao leitor a descrição de uma mulher que, não correspondendo a eventuais padrões de beleza, não deixa de ser fenomenalmente ela mesma e, por isso, de deter uma beleza inalienável. (João M.P. Gabriel)

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MEJA MWANGI (1948), pseudónimo de David Dominic Mwangi, é um romancista queniano. Educado na Universidade de Kenyatta, em Nairobi, e na Universidade de Leeds, em Inglaterra, viria a concluir os seus estudos enquanto bolseiro no conceituado programa de escrita da Universidade de Iowa, nos EUA. «Carcaça para cães», que aqui apresentamos, articula a tensão entre os movimentos independentistas do Quénia e o poder colonial Britânico, preocupações recorrentes na obra do autor. Este mesmo ro‑ mance foi adaptado ao cinema, em 1981. (João M.P. Gabriel)

MICHAEL CUNNINGHAM (1952) é um romancista celebrado sobretudo pelo ro‑ mance As Horas, publicado em 1998, que lhe valeu a atribuição de um Prémio Pulitzer. Muito em linha com os topoi recorrentes do autor, esta narrativa apropria­‑se do romance Mrs. Dalloway, recriando­‑o em três contextos históricos diferentes, da perspectiva de três mulheres: Mrs. Woolf (uma Virginia Woolf ficcional que está a escrever o romance), Mrs. Brown (que, na Los Angeles do fim dos anos 40, o lê) e Mrs. Dalloway (Clarice, que, prestes a entrar no novo milénio, o vive, em Nova Iorque). (João M.P. Gabriel)

MICHAEL ONDAATJE (1943) é de ascendência holandesa e cingalesa, tendo emigra‑ do para Inglaterra na sua infância e logo para o Canadá, país do qual é cidadão, na idade adulta. É autor de contos e romances e também cineasta. A sua obra mais conhecida, da qual transcrevemos um excerto, é O Doente Inglês (1992), romance cujas personagens principais retratam a multiculturalidade do teatro africano da Segunda Guerra Mundial. (Simão Valente)

MIGUEL ÁNGEL ASTÚRIAS (1899­‑1974) foi um autor guatemalteco responsável pelo cruzamento de tradições literárias latino­‑americanas e nativas americanas com o modernismo europeu. Em grande medida preparou e antecipou o boom dos anos 60. O seu romance Homens de Milho (1967), parte do qual aqui transcrito, é exemplificativo da sua obra. Venceu o Prémio Nobel em 1967. (Simão Valente)

MO YAN (pseudónimo de Guan Moye, 1955) significa «não fales» em mandarim. É autor de ensaios, contos e romances. Laureado com o Prémio Nobel da Literatura em 2012, a sua escrita é frequentemente comparada ao realismo mágico de Gabriel García Már‑ quez, combinando também elementos contemporâneos com a história, a literatura an‑ tiga e a tradição oral chinesas. Em Peito Grande, Ancas Largas (1996), Mo Yan rescreve o passado recente do seu país, afastando­‑se da perspectiva apresentada pelo Partido Co‑ munista Chinês. (Maria Inês Almeida)

MOHAMMED DIB (1920­‑2003). Importante poeta e escritor argelino, ao longo da vida teve de desempenhar diversas profissões, antes de se poder dedicar por inteiro à

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literatura. Em 1959, foi expulso do seu país pelas autoridades coloniais francesas, por denunciar as iniquidades da colonização e pelo apoio dado à causa da independência. Os seus poemas percorrem as paisagens do erotismo, do desencanto e da interrogação metafísica sobre a condição humana. (Adalberto Alves)

MU’IN BESSEISSO (1926­‑1984). Notável poeta palestino, muito culto, teve uma acti‑ vidade literária multifacetada, nomeadamente no campo da poesia, da dramaturgia e do ensaio biográfico. Levou a cabo os seus estudos no Egipto, mas acabou por morrer de ataque cardíaco, aos 58 anos de idade, quando se encontrava em Londres. A sua poesia sofisticada revela frequentemente uma fina ironia, como mostra o poema aqui apresen‑ tado. (Adalberto Alves)

MUHAMMAD ‘AFÎFÎ MATAR (1935­‑2010). Poeta egípcio de muito prestígio, profes‑ sor, editor e jornalista literário. No início da sua carreira como poeta, foi hostilizado no seu próprio país, vendo recusada a publicação da sua primeira obra. A sua obra poética da maturidade é intimista e de grande densidade, quando não mesmo hermética, com frequentes alusões obscuras de pendor místico. (Adalberto Alves)

MUHAMMAD AL­‑MAGHÛT (1934‑2006).­ Poeta, ficcionista, dramaturgo, ensaísta e guionista sírio. A sua militância no Partido Sírio Nacionalista Socialista valer­‑lhe­‑ia per‑ seguições, diversos períodos de prisão e o exílio no Líbano. Só em 1961 pôde regressar em definitivo ao seu país e aí criar a sua obra em liberdade. Foi um dos precursores da moderna poesia árabe. Os seus versos, ora sombrios, ora selvagens, ora plenos de humor, perseguiam sempre a liberdade criativa, alcançando, muitas vezes, tonalidades surrea‑ listas. O seu percurso foi sempre estimulado por outros poetas, entre os quais Adonis. (Adalberto Alves)

MUHAMMAD IQBAL (1877­‑1938) é um dos escritores proeminentes do subconti‑ nente indiano. Embora a sua reputação principal seja a de um poeta, há muitos que o admiram pelo seu pensamento filosófico. Escreveu o poema «Saare Jahaan se achchhaa Hindustaan Hamaara» [O nosso Hindustão é o melhor do mundo] para destacar as qua‑ lidades intrínsecas do Hindustão, antes da independência da Índia e a formação do Pa‑ quistão. (Shiv Kumar­‑Singh)

MUHAMMAD MIFTÂH RAJAB AL­‑FAITURÎ (1930­‑2015). Poeta e diplomata de origem sudanesa e ancestralidade beduína líbia. Embora exprimindo­‑se em árabe, pre‑ feriu dar de si a imagem de um africano, rejeitando a sua ancestralidade árabe. Desse conflito interior dá conta na sua primeira recolha de poemasAghânî Ifrîqiyya [Canções de África]. Publicou várias obras, sendo de notar que, em muitas delas, perpassa uma

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espiritualidade sufi à qual não terá sido estranha a influência do seu pai, xeque de uma confraria. (Adalberto Alves)

MUNSHI PREMCHAND (pseudónimo de Dhanpat Rai, Varanasi, 1880­‑1936). Pai do realismo indiano, as obras deste prolífico autor mostram a realidade sociopolítica da Ín‑ dia do seu tempo. Produziu mais de uma dúzia de romances, 250 contos e vários ensaios. Um dos contos mais lidos do autor é «Eidgah», que narra a vida de uma aldeia do início do século xx e mostra como a pobreza leva a que um menino se torne maduro antes do tempo. (Shiv Kumar­‑Singh)

MUN‑YOL­ YI (1948). Professor catedrático na Universidade de Estudos Estrangeiros de Hankuk e autor de uma obra vasta que se estende à narrativa breve e ao comentário político e social, tem­‑se afirmado como um dos mais proeminentes romancistas de hoje. Publicado em 1987, o romance O Nosso Herói Perverso oferece, a partir das memórias da escola primária do narrador e protagonista, uma recriação ficcional dos sistemas de po‑ der e das revoluções sociopolíticas em jogo na transição democrática da Coreia do Sul. (Amândio Reis)

NADINE GORDIMER (1923­‑2014) foi uma escritora sul­‑africana cujas obras retratam as injustiças do Apartheid. Nascida numa família de origem judia, Gordimer viveu toda a sua vida no seu país natal, participando activamente na luta contra o regime. É autora sobretudo de contos e romances, tendo vencido o Prémio Booker em 1974 com o ro‑ mance The Conservationist. Foi galardoada com o Prémio Nobel em 1991. (Simão Valente)

NAGUIB MAHFOUZ (1911‑2006)­ é o mais conhecido autor egípcio do século xx, ten‑ do vencido o Prémio Nobel em 1988. Nome maior da literatura árabe, os seus roman‑ ces, particularmente a «Trilogia do Cairo» (1956­‑1957), são influenciados por temáticas existencialistas, além do seu empenho político pela independência do Egipto, a par do socialismo e a da oposição ao fundamentalismo islâmico. (Simão Valente)

NAOYA SHIGA (1883­‑1971). Co­‑fundador da revista Shirakaba, nela publicou, em 1913, o conto aqui apresentado. Integrando a vanguarda de 1920, juntamente com Akutagawa, Tanizaki e Kawabata, deixou obra curta mas notável: três novelas, contos e o romance An’ya Kōro [Passagem por uma Noite Escura], que concluiu em 1937, abandonando então a escrita. A sua obra, de cariz autobiográfico, no génerowatakushi shōsetsu, retrata confli‑ tos familiares. «Han no hanzai» [«O crime de Han»] mostra a sua capacidade de sugestão e de criar dúvida, interrogando a premeditação e intencionalidade do autor do crime, a distinção entre culpa e inocência. (Marta Pacheco Pinto)

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NAWĀL AL­‑SAADĀWI (1931). Escritora feminista egípcia, destaca­‑se por uma im‑ portante obra literária, bem como por uma pertinaz oposição crítica a uma sociedade marcada por valores conservadores e patriarcais. Publicou obras de teor autobiográ‑ fico, comoAs Minhas Memórias na Prisão das Mulheres. Autora de romances, contos, peças de teatro e obras de teor científico, viu parte da sua obra banida, oficial ou tacita‑ mente, no Egipto. Imra’ ’inda Nuqtat al­‑Sifr [Mulher no Ponto Zero, 1974] é a biografia ficcionada de uma mulher de origens humildes, estudante que aspira ao conhecimento enquanto jovem, e que é conduzida à prostituição. Firdaus é condenada à morte, após ter matado um dos homens que sobre si exerceram actos de violência e de opressão. (Raquel Carapinha)

NÂZIK SÂDIQ AL­‑MALÂ’IKA (1923­‑2007). Poetisa, ensaísta e crítica literária ira‑ quiana de renome. Estudante de latim, inglês e francês, passou pelas universidades de Princeton e Wisconsin. Muito influenciada pela literatura romântica ocidental, inicia a sua frutífera carreira poética com a obra A’shiqat al­‑layla [Amante da Noite]. Poeta da sensibilidade, da emoção e do idealismo, seus versos revelam toda a sua frustração pe‑ rante uma sociedade alienante em que se não reconhece. Foi grande activista a favor dos direitos da mulher. (Adalberto Alves)

NGŨGĨ WA THIONG’O (1938) é um escritor queniano dedicado particularmente ao romance e ao teatro. Politicamente empenhado na luta contra o colonialismo, opôs­‑se ao regime autoritário que se impôs no Quénia depois da independência, tendo vivido longos anos no exílio. Apesar de ter começado por escrever em inglês, decide a partir dos anos 70 escrever exclusivamente em gikuiu, a sua primeira língua. (Simão Valente)

NICOLÁS GUILLÉN (1902­‑1989) foi um poeta cubano, cuja obra marcou todo o sé‑ culo xx. Quer antes quer depois da revolução cubana (1959), o seu activismo político levou­‑o primeiro ao exílio e, depois, a desempenhar um importante lugar como presi‑ dente da União de Escritores Cubanos. A sua poesia revela uma dicção interessante en‑ tre empenhamento político, imagens literárias de grande intensidade e ritmos musicais afro­‑americanos, como no poema «Responde tu». (Helena Carvalhão Buescu)

NURUDDIN FARAH (1945). Galardoado com vários prémios, entre os quais o English­‑Speaking Union Literary Award (1980) e o Nuestadt International Prize for Literature (1991). Do conjunto da sua obra destacam‑se­ o primeiro romance, From a Crooked Rib (1970), e a trilogia «Blood in the Sun», da qual Maps (1986) faz parte. Numa tónica existencialista e melancólica, narrativa histórica e socialmente problematizante, Mapas (1986) narra as buscas identitárias de Askar e Misra, respectivamente, no meio do conflito de Ogaden no final dos anos 70. (Flávia Ba)

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OCTAVIO PAZ (1914‑1998)­ foi um poeta e ensaísta mexicano e um dos autores mais representativos da América Latina no século xx. Diplomata, viveu grande parte da sua vida fora do seu país natal, conjugando uma reflexão sobre a identidade mexicana e latino­‑americana com preocupações e referências cosmopolitas. Venceu o Prémio No‑ bel em 1990. (Simão Valente)

OKOT P’BITEK (1931‑1982).­ «Canção de Lawino» («Wer Pa Lawino», na língua acoli) é considerado um clássico poético da África Oriental. À semelhança da temática do seu primeiro romance escrito na língua luo e publicado em 1953, Lak Tar Miyo Kinyero Wi Lobo [Dentes Brancos], «Canção de Lawino» recai sobre as questões da aculturação, di‑ cotomia campo/cidade, e afirmação dos valores tradicionais. A referida dicotomia pare‑ ce visível na estrutura formal do poema, respeitada integralmente na tradução do texto. (Flávia Ba)

ORHAN PAMUK (1952) é um dos maiores escritores contemporâneos. De origem turca, e fundos laços com o cruzamento entre Ocidente e Oriente, emblematizado no seu país natal, Pamuk viria a ganhar o Prémio Nobel em 2006, pelo conjunto da sua ficção de imen‑ sa qualidade e imersão, quer pessoal quer comunitária. Os seus romances, que combinam narrativa, descrição e reflexão, muitas vezes de cariz filosófico, exprimem uma mescla de realidade e fantasia que o fez ter um enorme sucesso, nacional e internacional. Está tra‑ duzido em mais de 50 línguas. Istambul, um dos seus romances mais conhecidos, dá bem conta da sua ligação afectiva à sua cidade e à sua cultura, ao mesmo tempo que atravessa o universo cosmopolita próprio da sua inserção geo­‑simbólica. (Helena Carvalhão Buescu)

OSAMU DAZAI (1909­‑1948). Foi um dos principais cultores do género japonês de ins‑ piração autobiográfica, watakushi shōsetsu, ou romance do Eu. As suas quatro tentativas falhadas de suicídio são retratadas na obra‑prima­ Ningen shikkaku [Não­‑Humano], publi‑ cada em 1947, um ano depois de outro grande romance, Shayō [Pôr‑do­ ‑sol].­ Não­‑Humano oferece o retrato de uma figura desajustada, que usa uma máscara cómica para evitar que a verdade a seu respeito seja descoberta. Aí se encontram os seus temas característicos: estranhamento social, decadência, crise existencial, autodestruição, niilismo. (Marta Pacheco Pinto)

OUSMANE SEMBÈNE (1923­‑2007) foi um escritor e cineasta senegalês conhecido como o pai do cinema africano devido ao impacto que os seus filmes vieram a ter em todo o continente. O romance Xala (1973), base do filme do autor com o mesmo título, é uma feroz sátira à elite do seu país, em que são postas a nu as periclitantes bases do aparente poder e riqueza que a caracterizam. (Simão Valente)

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PABLO NERUDA (1904-1973), poeta, é o nome maior da literatura chilena, tendo-se notabilizado, a par da poesia, pela sua actividade política, pela qual foi perseguido e exilado do seu país natal. A sua obra maior é Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desespe‑ rada (1924), do qual extraímos o «Poema XX». A escrita de Neruda caracteriza-se pela oscilação entre a temática amorosa e o empenho político. Ganhou o Prémio Nobel em 1971. (Simão Valente)

PETER CAREY (1925) é um romancista australiano e um dos nomes maiores da ficção em língua inglesa, tendo vencido o Booker Prize duas vezes. Os seus livros cruzam um interesse pelo romance histórico, como é o caso de Oscar e Lucinda (1988), seleccionado para esta antologia, com um sentido de humor cáustico, negro e frequentemente absur‑ dista. (Simão Valente)

PHILIP ROTH (1933­‑2018). Em Pastoral Americana, publicado em 1997 e que valeu ao autor a atribuição de um Prémio Pulitzer, Roth regressa ao seu alter ego Nathan Zu‑ ckerman, para, mais uma vez, explorar a estranheza da identidade americana, neste caso através da observação da vida de Seymour «Swede» Levov, judeu e empresário de sucesso, que vê a sua estabilidade quotidiana posta em causa pela instabilidade política vivida durante os anos 60 do século xx. (João M.P. Gabriel)

PRAMOEDYA ANANTA TOER (1925­‑2006) foi um autor indonésio que nos seus ro‑ mances e ensaios fez a crónica dos tempos conturbados da luta pela independência e dos regimes autoritários de Sukarno e Suharto. O seu romance A Rapariga de Java (1962), do qual reproduzimos uma parte, expõe a precária situação das mulheres na sociedade indonésia. (Simão Valente)

RABINDRANATH TAGORE (1861­‑1941) foi um escritor bengali. Como poeta, ro‑ mancista, músico e dramaturgo, reformulou a literatura e a música bengali. Foi o primei‑ ro não­‑europeu a conquistar, em 1913, o Nobel de Literatura. Modernizou a arte bengali desprezando as rígidas formas clássicas. Os seus versos, contos e romances foram acla‑ mados pelo seu lirismo, coloquialismo, naturalismo e contemplação. Gitânjali [Oferen‑ da Lírica], Gora [Enfrentamento Justo] e Ghare­‑Baire [A Casa e o Mundo] são as suas obras mais conhecidas. Tagore foi talvez o único literato a escrever hinos de dois países: Bangladesh e Índia, respectivamente. (Rita Ray)

RAMÓN LÓPEZ VELARDE (1888­‑1921). Poeta e cronista mexicano, a sua obra abriu as portas da vanguarda e da modernidade à literatura mexicana. Além de poemas, artigos e crónicas surgidos em várias revistas, publicou dois livros de poesia: La sangre devota (1916) e Zozobra (1919) e, já postumamente, El son del corazón (1923). Elementos distintivos

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são o cruzamento entre uma linguagem poética inovadora, a religiosidade e o erotismo, bem como o espírito patriótico, em vias de transformação. (Mitzi Guerrero)

RAQUEL CHALFI (1939). O seu primeiro livro, Poemas Subaquáticos e Outros, saiu em 1975. Desde então publicou mais de 17 livros de poesia e um de prosa. Trabalhou como editora e locutora de rádio e como realizadora de documentários para a televisão israe‑ lita. Estudou cinema no American Film Institute em Hollywood e realizou documentá‑ rios, filmes experimentais e peças de teatro. A sua poesia recebeu vários prémios, entre os quais o Prémio Bialik (2006), o Prémio Brenner (2013) e o Prémio Dalia Rabikovitch (2016), e foi traduzida para várias línguas. (Lúcia Mucznik)

RIGOBERTA MENCHÚ (1959) é uma activista pelos direitos dos povos indígenas da América Latina, em particular na Guatemala, tendo adquirido visibilidade a nível inter‑ nacional durante a guerra civil nesse país, em parte através da publicação da sua auto‑ biografia Eu, Rigoberta Menchú (1983). Venceu o Prémio Nobel da Paz em 1992 pelo seu activismo. (Simão Valente)

ROBERTO BOLAÑO (1953­‑2003) apareceu no panorama literário internacional na viragem do século, tendo imediatamente adquirido um estatuto de culto. Ainda que concebendo­‑se primeiramente como poeta, foram os seus romances que maior impacto tiveram, particularmente Os Detectives Selvagens (1998) e, sobretudo, 2666 (2004, obra publicada postumamente da qual se reproduz uma passagem). (Simão Valente)

RONNY SOMECK (1951) nasceu no Iraque e, em 1953, foi levado pela família para Is‑ rael quando os judeus deixavam aquele país por causa das pressões do governo, aliado a Hitler. É um dos poetas mais populares de Israel e dos mais traduzidos. A sua poesia fala do dia-a-dia israelita, sintonizando-se com a cultura literária, poética e musical inter‑ nacional, inclusive o mundo árabe, do qual é originário. Nestes poemas, Someck presta homenagem a Fernando Pessoa, traduzido no seu país, fala sobre o multiculturalismo da sociedade israelita e de amor. (Moacir Amâncio)

RUBÉN DARÍO (1867­‑1916). Escritor nicaraguense, é uma das vozes mais importan‑ tes na literatura modernista latino­‑americana. Com Azul (1888) e Prosas Profanas (1896) consagrou­‑se como cabeça daquele movimento. Em «O triunfo de Calibã», utiliza ele‑ mentos modernistas para analisar a contemporaneidade. Baseando­‑se em Shakespea‑ re, propõe a divisão entre o selvagem Calibã (o pragmatismo e materialismo norte­ ‑americano) e Ariel, espírito etéreo e erudito, que Darío identifica com a cultura hispâ‑ nica. (Sebastián Patrón)

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S.Y. AGNON (1888­‑1970). Prémio Nobel da Literatura em 1966, é uma das figuras prin‑ cipais da literatura hebraica moderna. Nascido em Buczacz, na Ucrânia, com o nome de Shmuel Yosef Czaczes, recebeu uma educação judaica tradicional e começou muito cedo a escrever em hebraico e iídiche. Após uma estada na Palestina durante a juventude, vi‑ veu na Alemanha entre 1913 e 1924, ano em que se instalou em Jerusalém. A referência a textos bíblicos, rabínicos e místicos da tradição judaica é um dos aspectos importantes dos contos, novelas e romances em que S.Y. Agnon nos dá, ao mesmo tempo, uma visão do mundo perdido do judaísmo da Europa oriental e da sociedade emergente do moder‑ no Israel. Escrito em 1932, «Amizade» faz parte do Livro dos Feitos, volume VI das Obras Completas de Samuel Joseph Agnon. Neste conto de ressonâncias talmúdicas, estão pre‑ sentes algumas características da escrita de Agnon, como o conflito entre o mundo ju‑ daico tradicional e o mundo moderno. (Lúcia Mucznik)

SA’DI YUSUF (1934). Poeta e novelista iraquiano, refugiado no exílio, e também notá‑ vel tradutor, ausentou­‑se cedo do seu país. Influenciado porAs ­‑Sayyâb, começou a sua carreira literária cultivando o verso livre e a prosa poética. Nessa fase, a sua obra reflecte pungentemente, através das imagens fortes que emprega, as perseguições e os constran‑ gimentos então sofridos pelos intelectuais e trabalhadores progressistas no seu país. É considerado um dos mais importantes árabes contemporâneos. (Adalberto Alves)

SA’ID AQL (1912­‑2014). Original e controverso poeta libanês, liderou o movimento simbolista na literatura árabe, sob a influência de Mallarmé e Paul Valéry. Professava o cristianismo, não deixando de estudar o Alcorão. A sua obra mais importante e perene, quase místico canto sobre a beleza e o amor, é Al­‑madjdaliyya, baseado no episódio bíbli‑ co do encontro entre Jesus e Maria Madalena. Voz marcante na defesa do nacionalismo libanês, levado ao extremo do repúdio da identidade e da língua árabes, chegando a ten‑ tar criar uma escrita latina que substituísse o alifato. (Adalberto Alves)

SAADAT HASAN MANTO (1912­‑1955) era um escritor indo­‑paquistanês que escreveu em urdu. Os seus contos muitas vezes geraram polémicas e Manto foi julgado seis vezes por obscenidade, mas nunca foi condenado. Na sua escrita, Manto relatou o caos que prevaleceu durante e depois da partição da Índia em 1947. É muitas vezes comparado com D.H. Lawrence e escrevia sobre os temas considerados tabus na sociedade indo­ ‑paquistanesa. «TobaTek Singh», publicado em 1955, é um dos seus contos mais conhe‑ cidos. (Rita Ray)

SAHLE SELLASSIE (1936). O sistema judicial tradicional «afersata» (amárico) intitula uma narrativa que reflecte o quotidiano dos gurage (etnia do sudoeste da Etiópia). Depois da publicação do primeiro romance Shinega’s Villages: Scenes of Ethiopian Life (1964), segue­‑se

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O Afersata, inserindo­‑se na mesma linha temática do primeiro romance. O ritmo impres‑ so ao texto pela pontuação, semelhante ao de um relato oral, remetem o leitor para for‑ mas tradicionais de resolução de actos criminosos na época de Haile Selassie. (Flávia Ba)

SALAH ‘ABD AS‑­ SABUR (1931‑1981).­ Notável poeta egípcio, deixou uma importante obra, enquanto jornalista, editor literário, ensaísta, dramaturgo e tradutor. Foi um dos introdutores do verso livre na moderna poesia egípcia. Publicou o seu primeiro livro de poemas, An­‑nas fî biladi [O Povo da Minha Terra], em 1956. Desempenhou várias fun‑ ções no Ministério da Cultura do seu país e foi adido de imprensa (1977­‑1978) junto da embaixada do Egipto na União Indiana. (Adalberto Alves)

SALMA AL‑­ JAYUSSÎ (1925). Notável intelectual, ensaísta e poetisa palestina, a sua poesia e estudos críticos encontram­‑se publicados em obras tão seminais como, por exemplo, Return from the Dreamy Fountain (poesia, 1960) ou An Anthology of Modern Pales‑ tinian Literature (1992). Os seus poemas, sempre intimistas e comoventes, mostram uma magoada reflexão sobre os sentimentos e a condição humana, no quadro dos problemas da sociedade contemporânea. Foi editora da importante obra colectiva The Legacy of Muslim Spain (1992). (Adalberto Alves)

SALMAN RUSHDIE (1947) é um escritor indiano de cidadanias britânica e norte­ ‑americana, tendo­‑se tornado mundialmente famoso em 1988 com a publicação de Os Versículos Satânicos e a sucessiva condenação à morte proclamada pelo líder do Irão, o aiatola Khomeini. Transcreve­‑se aqui, contudo, um excerto do seu romance mais exem‑ plificativo do cosmopolitismo do autor a par da atenção que manteve pela sua Índia na‑ tal: Os Filhos da Meia­‑Noite (1981), um romance sobre as consequência da divisão da Índia colonial entre Índia e Paquistão. (Simão Valente)

SAMI MAHDÎ (1940). Romancista, tradutor e influente poeta iraquiano. Fez os seus estudos na Faculdade de Artes da Universidade de Bagdade. Desempenhou vários car‑ gos no Ministério da Cultura, na rádio e na televisão do seu país. Foi um activo editor de vários jornais e revistas literárias. Entre a sua extensa obra, contam‑se­ títulos como As Cinzas do Compassivo (1966) e o seu Cancioneiro (1987). (Adalberto Alves)

SAMIH AL­‑QASIM (1939­‑2014). Poeta curdo­‑palestiniano, também dramaturgo, pro‑ fessor, jornalista e editor. Embora não tendo nunca renunciado à nacionalidade israelita, foi uma das figuras mais em destaque entre os escritores da resistência palestiniana, o que lhe valeu perseguições várias. Deixou uma obra abundante, composta por mais de 40 livros, dos quais uma vintena são de poesia. Os seus poemas cultivam uma forma des‑ pojada. (Adalberto Alves)

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SANDRA CISNEROS (1954) é uma autora mexicano­‑americana, muito celebrada pelo romance A Casa da Rua das Mangas, que aqui incluímos. Este romance de formação acompanha a protagonista Esperanza Cordero, uma rapariga chicana com 12 anos, en‑ quanto esta se esforça por se adaptar às dificuldades de viver numa sociedade patriar‑ cal, mapeando a sua existência pelos bairros hispânicos de Chicago. (João M.P. Gabriel)

SAUL BELLOW (1915­‑2005). Várias vezes apontado como um dos grandes mestres da prosa americana, foi laureado com o Nobel da Literatura e o Prémio Pulitzer, entre ou‑ tros galardões. Na sua ficção, exprime uma preocupação central com a natureza humana e as consequências e condicionantes das relações interpessoais. Herzog explora um dos seus topoi recorrentes: a relação entre o génio e a loucura. (João M.P. Gabriel)

SAYAT-NOVA (1712-1795) foi um autor arménio nascido na actual Geórgia; escreveu poesia nas principais línguas do Cáucaso, incluindo georgiano, persa, azeri e arménio. Cortesão e logo monge, os seus versos prendem-se sobretudo com a experiência amoro‑ sa. A sua vida e obra será mais familiar a um público internacional graças ao filme A Cor da Romã (1969), de Sergei Parajanov. Ver volume 5. (Simão Valente)

SHARADINDU BANDYOPADHYAY (1899­‑1970) foi um escritor bengali. Apesar de se ter formado em Direito tornou‑se­ escritor a tempo inteiro. Foi convidado por Himan‑ gshu Roy, cineasta pioneiro de Bollywood, para escrever argumentos para filmes hindis. O seu repertório era variadíssimo. O esplendor literário da sua ficção histórica ainda hoje não tem paralelo. Os seus romances históricos, situados em diferentes períodos da história da Índia, são uma mistura única de brilhantes peripécias. Estes destacam­‑se pelo uso de um idioma e de um vocabulário únicos aos períodos sobre os quais escreveu. A sua mais famosa criação literária foi o detective Byomkesh Bakshi. (Rita Ray)

SHUKR ALLÂH AL­‑JURR (1903­‑1963). Importante e influente poeta libanês da emi‑ gração, foi igualmente um jornalista e ensaísta marcante. Emigrou para o Brasil, em 1923 e, quatro anos depois, decidiu regressar ao Líbano. Desejando superar as divisões e riva‑ lidades, sem sentido, existentes no Brasil, entre as comunidades libanesa e síria, fundou, em 1933, em São Paulo, uma tertúlia literária a que chamou Al‑’usba­ al andalusiyya [A Liga Andalusina] para congregar poetas e escritores de ambas as comunidades. Em 1963, regressou definitivamente ao seu país, aí acabando por falecer. (Adalberto Alves)

SHŪSAKU ENDŌ (1923­‑1996). Escritor japonês convertido aos 12 anos ao catolicismo, Endo viveu dilacerado por conflitos interiores incompatíveis, resultantes desta condição. É considerado um dos maiores escritores contemporâneos, sobretudo com obras como O Samurai (1980) e O Silêncio (1966). Escritor premiado e polémico, retrata neste último

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romance, através do protagonista, missionário jesuíta português no Japão do século xvii, depois da ruptura com o Ocidente, as escolhas dilaceradas entre a fidelidade à sua fé e a apostasia, configuradas no romance por terríveis torturas e pela final abjuração, pisando a representação do rosto de Cristo. O «silêncio de Deus», tema central, é um dos pontos nodais da reflexão sobre a injustiça do sofrimento humano. (Helena Carvalhão Buescu)

SYLVIA PLATH (1932­‑1963). Tendo nascido em Boston, a poeta americana frequentou o Newnham College, em Cambridge, e veio a falecer em Londres, com a idade precoce de trinta anos, na sequência de uma depressão prolongada. Foi também em Inglaterra que a jovem escritora conheceu o poeta inglês Ted Hughes, com quem veio a casar em 1956 e a estabelecer uma importante troca intelectual e poética. The Colossus and Other Poems (1960) é a única colecção de poemas publicada integralmente durante o tempo de vida da autora, antecedendo o romance semiautobiográficoA Campânula de Vidro (1963), publicado apenas um mês antes do seu falecimento, e uma segunda colecção de poesia, Ariel (1965), que, tendo sido organizada por Ted Hughes, catapultou a autora para a fama após a sua morte. Em 2004, publicou­‑se uma versão restaurada de Ariel, em conformida‑ de com a selecção e os planos originais da autora. (Amândio Reis)

TABAN LO LIYONG (1939). O autor de Fixions e de Casamento a Branco e Preto celebrizou­‑se pela crítica ao sistema de ensino pós­‑independência na África Oriental. A tradução do título, a partir de The Old Man of Usumbra and His Misery procurou reflectir o tom bíblico do Livro de Job, na medida do aspecto moralizante e escatológico da nar‑ rativa. Casamento a Branco e Preto desmistifica e desconstrói o conceito de pureza racial, elegendo a miscigenação como origem e fim último da existência humana. (Flávia Ba)

TAHA HUSSEIN (1889­‑1973). Nascido numa família modesta, veio a doutorar­‑se, na Universidade do Cairo, sobre o poeta e filósofo Abu al­‑’Alaa al‑Ma’arri,­ poeta do século xi que, cego como o próprio Taha Hussein, constituiria importante referên‑ cia ao longo do seu percurso, sendo mencionado na autobiografia al­‑Ayyām [Os Dias] como uma figura em que espelhava a sua própria condição. Um dos mais eminentes autores do modernismo árabe, explorou os géneros narrativos então considerados de inscrição ocidental, no mais perfeito e límpido árabe clássico. A sua obra dá conta de preocupações de ordem social, retratando os elementos mais desfavorecidos da so‑ ciedade egípcia, a quem era vedado o acesso ao ensino. Os Dias, em que se refere a si próprio na terceira pessoa, como «o nosso amigo», ou «o jovem rapaz», é um testemu‑ nho portentoso de perseverança e de avidez de conhecimento. (Raquel Carapinha)

TAHAR BEN JELLOUN (1944) é um escritor marroquino em língua francesa, tendo sido o primeiro autor do Magrebe a vencer o Prémio Goncourt com A Noite Sagrada em 1987.

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A sua obra explora a construção de identidades individuais e colectivas no espaço pós­ ‑colonial, especificamente nas ex­‑colónias francesas do norte de África. (Simão Valente)

TANIZAKI JUN’ICHIRŌ (1886­‑1965). Fascinado desde cedo pelo Ocidente, demons‑ traria, nos escritos da sua fase inicial, entre os quais se inclui «A tatuagem» (1910), in‑ fluências de autores ocidentais, tais como Edgar Allan Poe, Charles Baudelaire e Oscar Wilde, sendo que viria a ser considerado, juntamente com Nagai Kafū, uma das figuras centrais da escola neo­‑romântica no Japão. Os seus primeiros contos são marcados por temas como a crueldade, a aberração sexual, o hedonismo e o sadomasoquismo, os quais continuarão no entanto a ressurgir mesmo na sua fase posterior, de características gra‑ dualmente mais conservadoras e nacionalistas. (António Barrento)

TIP MARUGG (1923­‑2006) escreveu prosa e poesia em papiamento e neerlandês. Cedo se reformou e desde então levou uma vida isolada na companhia de seus cães. Entre as suas obras, destaca‑se­ Weekendpelgrimage [Peregrinação no Fim‑de­ ­‑semana, 1957], In de straten van Tepalka [Nas Ruas de Tepalka, 1967], De morgen loeit weer aan [A Manhã Volta a Rugir, 1988). Segundo afirmava, bebia e escrevia para não se suicidar. (Patrícia Couto)

TONI MORRISON (1931­‑2019) continua a ser a única mulher afro­‑americana laureada com o Prémio Nobel da Literatura, que lhe valeu reconhecimento internacional, sendo que, antes disso, era já muito celebrada no seu país, os Estados Unidos da América. Belo‑ ved, publicado em 1987, narra a vida de uma escrava fugida, Margaret Garner, que, ao ser capturada, prefere matar a sua filha do que permitir que esta viva em escravatura. (João M.P. Gabriel)

UNSI AL­‑HAJJ (1937?‑2014).­ Poeta modernista libanês, também tradutor, crítico lite‑ rário e jornalista. Um dos fundadores, com Yusuf al­‑Khal e Adonis, da revista Shi’r. Acre‑ ditava no papel da poesia, e das artes em geral, na transformação cultural e política do mundo. Traduziu para árabe Shakespeare, Brecht e Camus. A sua obra poética está con‑ tida em seis recolhas. A sedução maior dos seus poemas está no conseguimento de uma depurada simplicidade de escrita e na postura de modéstia epistemológica que, com ela, assume. (Adalberto Alves)

V.S. NAIPAUL (1892­‑1938). Os seus romances são testemunho da sua experiência cos‑ mopolita: descendente de trabalhadores indianos nas plantações de açúcar nas Antilhas Britânicas, estudou em Oxford e repartiu a sua vida entre a escrita e as viagens. A sua caracterização de situações coloniais levantou polémica pela sua ambiguidade relativa‑ mente ao papel do colonizador. Ganhou o Prémio Nobel em 2001. (Simão Valente)

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VLADIMIR NABOKOV (1899­‑1977). De origem russa, exilado nos Estados Unidos, destacou­‑se enquanto poeta, ensaísta e, sobretudo, romancista, alcançando considerá‑ vel proeminência com os seus romances escritos em inglês, com destaque para Lolita e Fogo Pálido, que aqui se apresenta. Este romance é escrito sob a forma de um longo poema de título homónimo, da autoria de um poeta ficcional, John Shade, em constante diálogo com paratextos escritos por outro autor ficcional, o académico Charles Kinbo‑ te, sendo que ambos se tornam personagens centrais do romance. (João M.P. Gabriel)

WALLACE STEVENS (1879­‑1955). Nome maior do modernismo norte‑americano,­ foi galardoado com o Prémio Pulitzer de Poesia, no ano de 1955. De um ponto de vista for‑ mal, «Treze maneiras de contemplar um melro», aqui na tradução de Jorge de Sena, tem influências claras noshaikai japoneses, que conferem ao poema uma austeridade e eco‑ nomia de linguagem notáveis, enquanto articula, em treze cantos, a existência natural e quase voyeurista de um melro, com a paisagem em que este se insere, também muito marcada pela actividade humana. (João M.P. Gabriel)

WILLIAM CARLOS WILLIAMS (1883­‑1963). Foi um influente poeta norte­‑americano de ascendência porto­‑riquenha e francesa. Enquadrado no movimento modernista ame‑ ricano, Williams procurou fazer da sua poesia a expressão de um movimento poético puramente americano. Tematicamente, a generalidade dos seus poemas reflecte sobre temáticas quotidianas e sobre momentos concretos da sua contemporaneidade. For‑ malmente, a sua poesia expressa características muito singulares, principalmente no uso da quebra de linha como expressão da intensidade emocional do verso. (Francisco C. Marques)

WILLIAM FAULKNER (1897­‑1962) é um dos autores norte‑americanos­ mais emble‑ máticos do experimentalismo formal do modernismo, especificamente pelo uso que faz nos seus romances da técnica do fluxo de consciência. As obras de Faulkner centram‑se­ na sociedade do Sul dos Estados Unidos, cujas tensões sociais e raciais são exploradas de forma inovadora do ponto de vista formal. Ganhou o Prémio Nobel em 1949. (Simão Valente)

WILLIAM GIBSON (1948) é um autor de ficção científica, pioneiro do subgénero co‑ nhecido como cyberpunk. É em Neuromante que o autor atinge o eventual expoente máxi‑ mo do género, sendo que a influência exercida por este romance no imaginário popular é inegável, em particular no que diz respeito ao domínio da ficção científica: grandes marcos da cultura popular contemporânea são, de forma assumida, devedores do traba‑ lho de Gibson. (João M.P. Gabriel)

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WOLE SOYINKA (1934) é um escritor nigeriano, autor de teatro, ensaios e poesia. A par da sua actividade literária teve uma participação política na luta pela independência do seu país natal, tendo na sequência sido um feroz opositor dos regimes autoritários que aí se impuseram. Venceu o Prémio Nobel em 1986, tendo sido o primeiro autor afri‑ cano contemplado na categoria de literatura. (Simão Valente)

YEHUDA AMICHAI (1924-2000). Traduzido em dezenas de línguas, tornou-se o mais internacionalmente conhecido poeta israelita, além da grande popularidade no seu país. Nasceu Ludwig Pfeufer em Wurzburg, Alemanha, numa família ortodoxa, adoptou o nome de Yehuda Amichai em Israel, para onde a família conseguiu viajar em 1935, quan‑ do recrudesciam as perseguições nazis aos judeus. A sua poesia fala da vida de modo abrangente (da política ao erotismo), destacando-se a experiência judaica numa pers‑ pectiva histórica e individual, marcada pelas guerras, pela Shoá (Holocausto) e pela construção de um novo país. Amichai significa «meu povo vive». (Moacir Amâncio)

YONA WOLLACH (1944-1985). Musa da contracultura israelita nos anos 1970-1980, tornou-se conhecida pela irreverência poética e comportamental. No poema aqui apre‑ sentado, a autora retoma a temática bíblica da palavra como criadora do mundo e do homem, que tem nela a fonte da sua renovação, no espírito e, principalmente, no corpo. Em hebraico, o termo palavra, davar, também significa coisa, objecto, o que intensifica a expressividade do poema. (Moacir Amâncio)

YU HUA (1960) pertence a uma nova geração de autores chineses, em cuja ficção con‑ fluem, não somente os acontecimentos que povoam o ambiente mental da China nos anos 60 e 70, mas, sobretudo, o reflexo que os mesmos vão tendo na psicologia da sua geração. Atento às mudanças, a sua escrita é também muito diversa. Porém, é às conse‑ quências das «políticas de abertura» nas formas de vida e de pensar da geração de filhos únicos dos anos 90 a que se dedica mais a fundo. (Carlos Botão Alves)

YUAN YI (1981) é um autor de uma nova vaga, pertencente à geração dos filhos únicos, cuja situação representou um rude corte com as tradições ancestrais dos laços sociofa‑ miliares, e que, muito por esse facto, tem uma narrativa muito peculiar. Na sua escri‑ ta (narrativa e teatro) podemos encontrar o desamparo dos laços de sangue, a procura de alternativas sociais e o imperativo do sucesso do indivíduo num mundo cujo quadro axiológico lhe cabe reinventar. (Carlos Botão Alves)

YUKIO MISHIMA (1925­‑1970) é um dos autores japoneses mais traduzidos. Roman‑ cista, contista, dramaturgo e ensaísta, três vezes apontado para o Prémio Nobel da Lite‑ ratura, consagrou‑se,­ em 1949, com Confissões de uma Máscara. Interessou‑se­ tanto pela

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literatura clássica japonesa como pela literatura europeia. A representação nostálgica do Japão anterior à reabertura ao Ocidente (1854), a beleza da morte prematura, a dicoto‑ mia tradição/modernidade, o vazio espiritual e o culto imperial são temas frequentes na sua obra. O conto «Yūkoku» [Patriotismo, 1960) deu origem a uma curta­‑metragem di‑ rigida e protagonizada por Mishima em 1966. Cometeu suicídio durante uma tentativa falhada de golpe de Estado. (Marta Pacheco Pinto)

YÛSUF AL­‑KHÂL (1917­‑1987). Poeta sírio naturalizado libanês, é um dos nomes mais relevantes da contemporaneidade poética árabe. Dedicou­‑se ao estudo da filosofia e tra‑ balhou como jornalista, editor e docente. Trabalhou ainda, durante algum tempo, para as Nações Unidas, em Nova Iorque. Foi um dos fundadores da prestigiada revista libanesa Shi’r [Poesia]. Nos seus versos entrecruzam­‑se inspiração cristã, atitude contemplativa, mito e ritual, guindando­‑o a figura de proa do movimento modernista da literatura ára‑ be. (Adalberto Alves)

YUSUF AL‑­ SAIGH (1933­‑2006). Poeta de nacionalidade iraquiana mas nascido na Pa‑ lestina. De extrema sensibilidade, que se reflecte na sua poesia densa mas de depurada simplicidade, como se de autênticas miniaturas se tratasse, as quais, em meia dúzia de versos, retratam a nostalgia e a tristeza do quotidiano do exilado, face à ocupação pela força da sua pátria‑natal,­ sujeita à ocupação e ao vexame. É autor, nomeadamente, dos seguintes cancioneiros (diwan‑s):­ Malik ben ar­‑Raib (1967) e Confissões de Malik ben ar­ ‑Raib (1973). (Adalberto Alves)

YUSUF IDRĪS (1927­‑1991). Mestre do género do conto na literatura egípcia, além de importante romancista e dramaturgo, procurou desenvolver uma literatura nacional não submetida a uma mera imitação dos modelos ocidentais, nem às formas e temáticas do legado pré‑moderno,­ adoptando temáticas inerentes à sociedade egípcia, como a injus‑ tiça social, a hipocrisia e a rigidez dos costumes, e recorrendo ao dialecto egípcio sobre‑ tudo na composição dos diálogos. Daqui resulta um tecido textual em que se obvia ao fosso decorrente da diglossia que caracteriza a língua árabe, entre o árabe clássico, língua complexa e regrada, associada à erudição e à escrita, e o dialecto, língua ágil, vibrante e falada por todos. Temas como a pobreza, a injustiça social ou o conservadorismo religio‑ so são tratados pelo autor com uma apurada ironia e o frequente recurso ao implícito e ao não dito. (Raquel Carapinha)

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parte i — mundos em português (vol. 1)

Afonso X, Rei de Castela e Leão: 39 Caminha, Pêro Vaz de: 640 Agualusa, José Eduardo: 41 Camões, Luís de: 95, 170, 237, 240, 244, 385, 548, Alegre, Manuel: 47 553, 646; (cf. tb. vol. 2) Alencar, José de: 48; (cf. tb. vol. 2) Cardoso, António: 100 Almada Negreiros, José de: 434; (cf. tb. vol. 2) Cardoso, Luís: 245 Almeida, Germano: 195 Carvalho, Armando Silva: 248 Almeida, Onésimo Teotónio: 357 Carvalho, Bernardo: 648 Álvaro Velho: 729 Carvalho, Maria Judite de: 250 Alves, Castro: 64 Carvalho, Ruy Duarte de: 560, 650 Amado, Jorge: 364 Cassamo, Suleiman: 396 Amaral, Ana Luísa: 198 Castelo Branco, Camilo: 90, 233, 382 Andrade, Carlos Drummond de: 200; Castro, Ferreira de: 658 (cf. tb. vol. 2) Cesariny, Mário: 564 Andrade, Eugénio de: 202; (cf. tb. vol. 2) Chiziane, Paulina: 101 Andrade, Francisco de: 203 Correia, Natália: 570 Andrade, Mário de: 204; (cf. tb. vol. 2) Costa, Maria Velho da: 86, 571 Andrade, Oswald de: 531; (cf. tb. vol. 2) Couto, Mia: 256; (cf. tb. vol. 2) Andresen, Sophia de Mello Breyner: 536; Craveirinha, José: 398; (cf. tb. vol. 2) (cf. tb. vol. 2) Anjos, Augusto dos: 209 Devi, Vimala: 273 Antunes, António Lobo: 72, 210, 372 Dias, Fernanda: 662 Assis, Machado de: 537; (cf. tb. vol. 2) Dias, Gonçalves: 663; (cf. tb. vol. 2) Azevedo, Aluísio: 82 Dias, João: 108 Dinis, Rei de Portugal: 575; (cf. tb. vol. 2) Bandeira, Manuel: 212; Dionísio, Mário: 576 (cf. tb. vol. 2) Barreto, Lima: 215 Espanca, Florbela: 578 Barros, João de: 630 Belo, Ruy: 223; (cf. tb. vol. 2) Faria, Almeida: 276 Bocage, Manuel Maria Barbosa du: 377, 545 Fernandes, Henrique de Senna: 280 Botelho, Fernanda: 226 Ferreira, António: 111; (cf. tb. vol. 2) Bragança, Albertino: 228 Ferreira, José Gomes: 286 Bragança, Nuno: 378 Ferreira, Reinaldo: 399 Brandão, Fiama Hasse Pais: 546 Ferreira, Vergílio: 118, 288 Brandão, Raúl: 634; (cf. tb. vol. 2) Filipe, Daniel: 579 Brito, Bernardo Gomes de: 637 Fonseca, Rubem: 124 Fortes, Corsino: 664

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Fróis, Luís: 667 «Nau Catrineta»: 627 Frutuoso, Gaspar: 671 Neto, Agostinho: 159; (cf. tb. vol. 2) Neto, Carmo: 436 Gândavo, Pero de Magalhães: 675 Neto, João Cabral de Melo: 601; (cf. tb. vol. 2) Garrett, Almeida: 292, 580, 679; (cf. tb. vol. 2) Nobre, António: 322, 694 Gersão, Teolinda: 295 Gil Vicente: 505; (cf. tb. vol. 2) Oliveira, Alberto Estima de: 602 Gullar, Ferreira: 585 Oliveira, Carlos de: 161; (cf. tb. vol. 2) Gusmão, Manuel: 587 Oliveira, Manuel Botelho de: 704

Helder, Herberto: 130, 589; (cf. tb. vol. 2) Pascoaes, Teixeira de: 603 Herculano, Alexandre: 133, 137, 299; (cf. tb. vol. 2) Pessoa, Fernando: 614, 713; (cf. tb. vol. 2) Honwana, Luís Bernardo: 400; (cf. tb. vol. 2) Piñon, Nélida: 438 Horta, Maria Teresa: 86 Prado, Adélia: 615

Infante Dom Pedro e Frei João Verba: 611 Queirós, Eça de: 327, 450; (cf. tb. vol. 2) Quental, Antero de: 331; (cf. tb. vol. 2) Jacinto, António: 137; (cf. tb. vol. 2) Quevedo, Vasco Mousinho de: 332 Jorge, Lídia: 139 Jorge, Luiza Neto: 590; (cf. tb. vol. 2) Ramos, Graciliano: 166; (cf. tb. vol. 2) Júdice, Nuno: 591 Ramos, Manuel João: 714 Régio, José: 333 Kandjimbo, Luís: 683 Ribeiro, João Ubaldo: 456 Rodrigues, Nelson: 170 Lara, Alda: 301 Rosa, João Guimarães: 335; (cf. tb. vol. 2) Laranjeira, Manuel: 403 Ruffato, Luiz: 173 Leal, António Gomes: 684; (cf. tb. vol. 2) Rui, Manuel: 466 Lima, Ângelo de: 303 Lisboa, Irene: 304 Sá-Carneiro, Mário de: 471; (cf. tb. vol. 2) Lispector, Clarice: 592; (cf. tb. vol. 2) Salústio, Dina: 472 Lopes, Baltasar: 309 Santareno, Bernardo: 175 Lopes, Fernão: 147, 149; (cf. tb. vol. 2) Saramago, José: 479, 717 Lopes, José: 685 Scliar, Moacyr: 181 Semedo, Odete Costa: 616 Maimona, João: 687 Sena, Jorge de: 187; (cf. tb. vol. 2) Marquesa de Alorna: 197 Silva, António José da (o Judeu): 484 Matos, Gregório de: 317 Matta, Joaquim Dias Cordeiro da: 406; Vário, João: 726 (cf. tb. vol. 2) Vasconcelos, Jorge Ferreira de: 498 Melo, Francisco Manuel de: 407; (cf. tb. vol. 2) Verde, Cesário: 349, 620; (cf. tb. vol. 2) Mendes Pinto, Fernão: 444 Vieira, Arménio: 516 Mendes, Luís Filipe Castro: 688 Vieira, José Luandino: 351 Mendonça, José Luís: 433 Vieira, Padre António: 521; (cf. tb. vol. 2) Mesquinho, Nito: 153 Miguéis, José Rodrigues: 318 White, Eduardo: 731 Momplé, Lília: 154 Moraes, Wenceslau de: 689 Yao Feng: 279 Mourão-Ferreira, David: 600; (cf. tb. vol. 2) Zurara, Gomes Eanes de: 732

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parte 1 — mundos em português (vol. 2)

«A bela e a cobra»: 292 Couto, Diogo do: 163 Abelaira, Augusto: 23 Couto, Mia: 609; (cf. tb. vol. 1) Afonso II, Rei de Portugal: 593 Craveirinha, José: 170; (cf. tb. vol. 1) Aires, Matias: 26 Cruz, Gastão: 611 Al Berto: 119, 597 Cruz, Viriato da: 43 Alencar, José de: 283; (cf. tb. vol. 1) Cunha, José Anastácio da: 45 Almada Negreiros, José de: 531; (cf. tb. vol. 1) Deus, João de: 319 Álvares, Fernão (do Oriente): 213 Dias, Gonçalves: 46; (cf. tb. vol. 1) Andrade, Carlos Drummond de: 421, 598; Dinis, Júlio: 48 (cf. tb. vol. 1) Dinis, Rei de Portugal: 320; (cf. tb. vol. 1) Andrade, Eugénio de: 425; (cf. tb. vol. 1) «Donzela Guerreira»: 30 Andrade, Mário de: 285; (cf. tb. vol. 1) Duarte, Rei de Portugal: 483 Andrade, Oswald de: 599; (cf. tb. vol. 1) Duarte, Vera: 51 Andresen, Sophia de Mello Breyner: 289; (cf. tb. vol. 1) Elísio, Filinto: 52 Antonil, André João: 120 Espírito Santo, Alda: 563 António, Mário: 600 Assis, Machado de: 426, 602; (cf. tb. vol. 1) Faria, Daniel: 325, 487 Feijóo, Lopito: 53 Bacelar, António Barbosa: 431 Ferreira, António: 488; (cf. tb. vol. 1) Bandeira, Manuel: 432; (cf. tb. vol. 1) Ferreira, José da Silva Maia: 173 Barbeitos, Arlindo: 434 Ferreira, José dos Santos: 612 Barreto, Adeodato: 132 Fonseca, António: 326 Barros, Manoel de: 435 Fonseca, Manuel da: 328 Beja, Olinda: 33 Belo, Ruy: 294; (cf. tb. vol. 1) Gama, Basílio da: 335 Bernardes, Padre Manuel: 438 Garção, Pedro António Correia: 54, 343 Bessa Luís, Agustina: 300 Garrett, Almeida: 55, 179; (cf. tb. vol. 1) Bilac, Olavo: 603 Gedeão, António: 491 Borges, Maria Pacheco: 307 Gil Vicente: 78, 574 Braga, Maria Ondina: 440 (Gip) Costa, Francisco João da: 160 Brandão, Raul: 444; (cf. tb. vol. 1) Gomes, Francisco Luís: 493 Briteiros, Joam Mendes de: 36 Gomes, Luís Gonzaga: 186 Gonçalves, Egito: 189 Cabral, Vasco: 37, 138 Gonzaga, Tomás Antônio de: 56 Caeiro, Alberto: 82, 403 Graça Moura, Vasco: 346 Camões, Luís de: 38, 41, 139, 142, 312, 315, 448, Guilhade, Joam Garcia de: 61 454, 458; (cf. tb. vol. 1) Campos, Álvaro de: 238, 549 Hatherly, Ana: 617 Campos, Haroldo de: 604 Hatoum, Milton: 191 Cardoso, Boaventura: 606 Helder, Herberto: 62, 496; (cf. tb. vol. 1) Carvalho, Mário de: 146 Herculano, Alexandre: 347; (cf. tb. vol. 1) Castelo Branco, Joam Rodriguez: 35 Honwana, Luís Bernardo: 351; (cf. tb. vol. 1) Cinatti, Ruy: 149, 469 Cláudio, Mário: 150 Jacinto, António: 64; (cf. tb. vol. 1) Conceição, Deolinda da: 474 Jorge, Luiza Neto: 66; (cf. tb. vol. 1) Correia, Hélia: 155 Junqueiro, Guerra: 366 Costa, Cláudio Manuel da: 42 Costa, Orlando da: 316

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Khosa, Ungulani Ba Ka: 125 Quental, Antero de: 558; (cf. tb. vol. 1) Knopfli, Rui: 371 Ramos, Graciliano: 90; (cf. tb. vol. 1) Leal, António Gomes: 373; (cf. tb. vol. 1) Redol, Alves: 252 Letria, José Jorge: 498 Reis, Ricardo: 404, 554 Levy, Herculano: 374 Ribas, Óscar: 406 Lima, Conceição: 195 Ribeiro, Aquilino: 638 Lispector, Clarice: 70, 499; (cf. tb. vol. 1) Ribeiro, Bernardim: 98, 559 Llansol, Maria Gabriela: 618 Rio, João do: 261 Lobo, Francisco Rodrigues: 375 Rosa, António Ramos: 560 Lopes, Fernão: 197; (cf. tb. vol. 1) Rosa, João Guimarães: 643; (cf. tb. vol. 1)

Martins, Joaquim Pedro de Oliveira: 203 Sá de Miranda, Francisco de: : 207, 510, 628 Matta, Joaquim Dias Cordeiro da: 626; Sá­‑Carneiro, Mário de: 561, 651; (cf. tb. vol. 1) (cf. tb. vol. 1) Santa Rita Durão, José de: 322 Meendinho: 503 Sena, Jorge de: 566, 653; (cf. tb. vol. 1) Meireles, Cecília: 504 Soares, Bernardo: 555 Melo, Francisco Manuel de: 77, 506; (cf. tb. vol. 1) Solaz, Pedro Eanes de: 656 Mendonça, António de Nascimento: 507 Sousa, Noémia de: 265 Mesquita, Roberto: 509 Sylvan, Fernando: 569 Mourão Ferreira, David: 381; (cf. tb. vol. 1) Muianga, Aldino: 511 Tamagnini, Maria Anna: 408 Tavares, Paula: 104, 409 Nassar, Raduan: 522 Taveirós, Pai Soares: 105 Nemésio, Vitorino: 35, 633 Tcheka, Tony: 658 Neto, Agostinho: 538; (cf. tb. vol. 1) Tenreiro, Francisco José: 106, 267 Neto, João Cabral de Melo: 539; (cf. tb. vol. 1) Tolentino Mendonça, José: 380, 508 Torga, Miguel: 570; (cf. tb. vol. 1) O’Neill, Alexandre: 545 Torneol, Nuno Fernandes: 107 Oliveira, Carlos de: 541; (cf. tb. vol. 1) Trevisan, Dalton: 108

Pacavira, Manuel Pedro: 221 Usque, Samuel: 269 Patraquim, Luís Carlos: 382 Pepetela: 226, 383 Vasconcelos, Adriano Botelho de: 111 Pereir, Helder Moura: 78 Veiga, Marcelo da: 112 Pessanha, Camilo: 79, 80, 547 Verde, Cesário: 113, 410; (cf. tb. vol. 1) Pessoa, Fernando: 82, 237-8, 402-4, 548-9, 554, Vidal, Judeu de Elvas: 114 555; (cf. tb. vol. 1) Vieira, Padre António: 585, 662; (cf. tb. vol. 1) Pires, Benjamin Videira: 405 Pires, José Cardoso: 246 Zorro, Joam: 417

Queirós, Eça de: 83; (cf. tb. vol. 1)

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parte ii — o mundo lido: europa (vol. 3)

«A Canção Dos Nibelungos»: 48 Defoe, Daniel: 666 «A Vida de Lazarilho de Tormes e das Suas Dickens, Charles: 427; (cf. tb. vol. 4) Venturas e Adversidades»: 403 Diderot, Denis: 432 Agostinho de Hipona: 217 Dostoiévski, Fiódor: 239; (cf. tb. vol. 4) Alberti, Rafael: 515; (cf. tb. vol. 4) Andersen, Hans Christian: 43 «Edda. A criação dos mundos»: 50 Apollinaire, Guillaume: 225 Eliot, T.S.: 242; (cf. tb. vol. 4) Apuleio: 408 Eminescu, Mihai: 109 Arghezi, Tudor: 411 Esopo: 112, 435; (cf. tb. vol. 4) Aristóteles: 54, 517 Ésquilo: 113 Artaud, Antonin: 412 Estelan, Louis d’Espinay d’: 534

Baudelaire, Charles: 56, 226; (cf. tb. vol. 4) Fedro: 121, 436 Beckett, Samuel: 227; (cf. tb. vol. 4) Flamand, Dinu: 245; (cf. tb. vol. 4) Benn, Gottfried: 58 Fo, Dario: 122, 437 Bíblia: 59 Forster, E.M.: 670 Blaga, Lucian: 230, 526 Blake, William: 527 García Lorca, Federico: 124 Blixen, Karen : 231 Gide, André: 535 Broch, Hermann: 92 Goethe, J.W.: 127, 541, 675; (cf. tb. vol. 4) Browning, Robert: 528 Gógol, Nikolai: 439 Bulgakov, Mikhaíl: 416 Goldoni, Carlo: 446 Butor, Michel: 639 Gombrowicz, Witold: 543 Góngora, Luis de: 129; (cf. tb. vol. 4) Calvino, Italo: 645 Guillaume de Poitiers: 556 Carroll, Lewis: 647 Guillén, Jorge: 558 Castro, Rosalía de: 95; (cf. tb. vol. 4) Celan, Paul: 97; (cf. tb. vol. 4) Hamsun, Knut: 246 Cendrars, Blaise: 234 Hašek, Jaroslav: 451 Cervantes, Miguel de: 98, 421, 531, 651 Heaney, Seamus: 249, 559 Chateaubriand: 236 Heine, Heinrich: 250; (cf. tb. vol. 4) Chrétien de Troyes: 106 Herbert, Zbigniew: 456; (cf. tb. vol. 4) Cícero: 102 Herzog, Werner: 678 Coleridge, Samuel Taylor: 656 Hesse, Hermann: 681 Conrad, Joseph: 660 Hölderlin, Friedrich: 130, 254, 560; (cf. tb. vol. 4) Homero: 132, 141 Horácio: 154, 255, 561, 562

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 757 12/06/20 17:19 758 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Hughes, Ted: 563 Nijhoff, Martinus: 334 Humboldt, Alexander Von: 684 Nooteboom, Cees: 580, 714 Huxley, Aldous: 457 Núñez Cabeza de Vaca, Álvar: 718

Ionesco, Eugène: 461 «O Mabinogion»: 52 «O Marinheiro»: 637 Jacobsen, Jens Peter: 256 Ovídio: 168; (cf. tb. vol. 4) Jergović, Miljenko: 258 Joyce, James: 262; (cf. tb. vol. 4) Pardo Bazán, Emilia: 170 Pasolini, Pier Paolo: 335 Kafka, Franz: 468; (cf. tb. vol. 4) Pawlikowska‑Jasnorzewska, Maria: 173 «Kalevala»: 44 Perse, Saint‑John: 581 Kavafis, Konstantinos: 564, 269; (cf. tb. vol. 4) Petrarca, Francesco: 582; (cf. tb. vol. 4) Kavanagh, Patrick: 270 Petrónio: 493 Keats, John: 155, 271 Pirandello, Luigi: 496 Komrij, Gerrit: 473, 565 Platão: 583; (cf. tb. vol. 4) Kosztolányi, Dezső: 566 Polo, Marco: 722 Kross, Jaan: 274 Ponge, Francis: 595 Kundera, Milan: 277 Pop, Ioan Es: 596; (cf. tb. vol. 4) Pope, Alexander: 337 La Fontaine, Jean de: 157, 474; (cf. tb. vol. 4) Pound, Ezra: 174 Larbaud, Valéry: 158 Prelipceanu, Nicolae: 338, 598 Lawrence, D.H.: 567 Proust, Marcel: 340; (cf. tb. vol. 4) Leopardi, Giacomo: 279; (cf. tb. vol. 4) Púchkin, Aleksandr: 350; (cf. tb. vol. 4) Lermontov, Mikhail: 280 Lessing, Doris: 282; (cf. tb. vol. 4) Ramuz, C.F.: 356 Lívio, Tito: 160; (cf. tb. vol. 4) Rimbaud, Arthur: 361, 599; (cf. tb. vol. 4) Lucrécio: 287, 571 Ritsos, Giánnis: 177 Lundkvist, Artur: 301 Rodríguez de Montalvo, Garci: 178 Rojas, Fernando de: 500 Magris, Claudio: 687 Ronsard, Pierre de: 605; (cf. tb. vol. 4) Mallarmé, Stéphane: 574 Rousseau, Jean‑Jacques: 362 Mandelstam, Ossip: 578 Márai, Sándor: 302 Schulz, Bruno: 365 Marías, Javier: 476 Seféris, Giórgos: 184, 370, 606 Marlowe, Christopher: 163 Shakespeare, William: 725; (cf. tb. vol. 4) Martinson, Harry: 692 Shaw, George Bernard: 186 Maupassant, Guy de: 306 Shelley, Mary: 193 Mcewan, Ian: 313 Shelley, Percy Bysshe: 608 Michaux, Henri: 478 Slauerhoff, J.J.: 728 Miłosz, Czesław: 318, 579 Södergran, Edith: 733; (cf. tb. vol. 4) Modiano, Patrick: 321 Sterne, Laurence: 611 Molière: 481; (cf. tb. vol. 4) Stoker, Bram: 734 Montaigne, Michel de: 165, 694 Montale, Eugenio: 324; (cf. tb. vol. 4) Tabucchi, Antonio: 372 Montesquieu, Charles de: 486 Tasso, Torquato: 375, 615; (cf. tb. vol. 4) More, Thomas: 705; (cf. tb. vol. 4) Tchékhov, Anton: 378, 502 Mujičić, Tahir: 325; (cf. tb. vol. 4) Tennyson, Alfred: 195 Multatuli: 707 Teresa de Ávila: 197; (cf. tb. vol. 4) Murdoch, Iris: 328 Thomas, Dylan: 616; (cf. tb. vol. 4) Musil, Robert: 487 Tolkien, J.R.R.: 198 Mustapää, P.: 333; (cf. tb. vol. 4) Torrente Ballester, Gonzalo: 200

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Trakl, Georg: 380; (cf. tb. vol. 4) Villon, François: 388 Tsvetáeva, Marina: 618 Vogelweide, Walther Von Der: 389 Turguéniev, Ivan: 382 Voltaire: 508, 737 Tuwim, Julian: 505 Tzara, Tristan: 619 Wilde, Oscar: 510; (cf. tb. vol. 4) Woolf, Virginia: 391; (cf. tb. vol. 4) «Vagamundo»: 222 Wordsworth, William: 395, 628 Valéry, Paul: 620 Vega, Garcilaso de la: 624; (cf. tb. vol. 4) Yeats, W. B.: 632; (cf. tb. vol. 4) Vega, Lope de: 625; (cf. tb. vol. 4) Vergílio: 205; (cf. tb. vol. 4) Yourcenar, Marguerite: 211 Verlaine, Paul: 384, 626 Živković, Zoran: 633 Vian, Boris: 385 Zola, Émile: 396 Vilde, Eduard: 506

parte ii — o mundo lido: europa (vol. 4)

Ady, Endre: 163 «Cantar de Mio Cid»: 172 Akhmátova, Anna: 277 Caragiale, Ion Luca: 478 Alas «Clarín», Leopoldo: 278 Casas, Bartolomé de las: 311 Alberti, Rafael: 439; (cf. tb. vol. 3) Castiglione, Baldesar: 173 Aleixandre, Vicente: 440 Castro, Rosalía de: 179; (cf. tb. vol. 3) Andrić, Ivo: 164 Cela, Camilo José: 482 Aragon, Louis: 25 Celan, Paul: 313, 487; (cf. tb. vol. 3) Ariosto, Ludovico: 28, 292 Char, René: 488 Auden, W.H.: 295 Chaucer, Geoffrey: 60 Austen, Jane: 29 Claudel, Paul: 489 Claus, Hugo: 182 Balzac, Honoré de: 297, 442 Colonna, Vittoria: 65 Baudelaire, Charles: 34, 450; (cf. tb. vol. 3) Cristov, Boris: 66 Beauvoir, Simone de: 451 Beckett, Samuel: 455; (cf. tb. vol. 3) Dante Alighieri: 67, 491 «Beowulf»: 285 Desnos, Robert: 71 Bernard de Ventadour: 36 Dickens, Charles: 315; (cf. tb. vol. 3) Bernardo de Claraval: 460 Döblin, Alfred: 318 Bernhard, Thomas: 300 Donne, John: 495 Boccaccio, Giovanni: 38 Dostoiévski, Fiódor: 321, 496; (cf. tb. vol. 3) Boon, Louis Paul: 303 Du Bellay, Joachim: 184 Brecht, Bertolt: 305 Duras, Marguerite: 325 Breton, André: 43 Brontë, Charlotte: 46 Eco, Umberto: 185 Brontë, Emily: 52 Eliot, George: 327 Browning, Elizabeth Barrett: 461 Eliot, T.S.: 501; (cf. tb. vol. 3) Büchner, Georg: 309 Elytis, Odisséas: 193 Byron, Lord: 59 Erasmo: 502 Esopo: 504; (cf. tb. vol. 3) Calderón de la Barca, Pedro: 462 Eurípides: 505 Camus, Albert: 469 Canetti, Elias: 473

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 759 12/06/20 17:19 760 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Flamand, Dinu: 507; (cf. tb. vol. 3) Lessing, Doris: 369; (cf. tb. vol. 3) Flaubert, Gustave: 72, 509 Levi, Primo: 373 Fontane, Heinrich Theodor: 328 Lívio, Tito: 222; (cf. tb. vol. 3) Foscolo, Ugo: 79, 331 Lohman, Carl Johan: 565 Francisco de Assis: 80 Machado, Antonio: 377 Genet, Jean: 332 Machiavelli, Niccolò: 227 Goethe, J.W.: 81, 519; (cf. tb. vol. 3) Malraux, André: 566 Golding, William: 334 Mann, Thomas: 571 Góngora, Luis de: 86; (cf. tb. vol. 3) Manzoni, Alessandro: 230 Grass, Günter: 194 Marsman, Hendrik: 236 Greene, Graham: 338 Matvejevitć, Pedrag: 237 Mickiewicz, Adam: 239 Hadewijch: 87 Mihailova, Liliana: 378 Handke, Peter: 89 Milton, John: 583 Harsdörffer, Georg Philipp: 94 Mirandola, Pico della: 586 Heine, Heinrich: 95; (cf. tb. vol. 3) Molière: 588; (cf. tb. vol. 3) Herbert, Zbigniew: 524; (cf. tb. vol. 3) Montale, Eugenio: 240; (cf. tb. vol. 3) Hoffmann, E.T.A.: 527 More, Thomas: 241; (cf. tb. vol. 3) Hölderlin, Friedrich: 532; (cf. tb. vol. 3) Mujičić, Tahir: 104; (cf. tb. vol. 3) Hugo, Victor: 341, 534 Müller, Heiner: 382 Müller, Herta: 386 Ibsen, Henrik: 540 Mureşan, Ioan: 106 Ishiguro, Kazuo: 206 Musset, Alfred de: 593 Mustapää, P.: 107; (cf. tb. vol. 3) Jaufré Rudel: 96 Jesih, Milan: 545 Novak, Boris A.: 108 João da Cruz: 98 Novalis: 109 Joyce, James: 211, 546; (cf. tb. vol. 3) József, Attila: 345 Orwell, George: 388 Juknaité, Vanda: 215 Ovídio: 110; (cf. tb. vol. 3)

Kadaré, Ismail: 348 Pasternak, Boris: 391 Kafka, Franz: 351, 548; (cf. tb. vol. 3) Pavese, Cesare: 600 Kavafis, Konstantinos: 551; (cf. tb. vol. 3) Pavić, Milorad: 601 Kertész, Imre: 353 Petőfi, Sándor: 603 Kinsella, Thomas: 553 Petrarca, Francesco: 115, 116, 393, 394, 604, Kleist, Heinrich Von: 357 (cf. tb. vol. 3) Klopstock, Friedrich Gottlieb: 100 Pinter, Harold: 395 Korun, Barbara: 554 Platão: 119, 605; (cf. tb. vol. 3) Kraus, Karl: 359, 555 Pop, Ioan Es: 243; (cf. tb. vol. 3) Potocki, Jan: 607 «La Chanson de Roland»: 289 Prévert, Jacques: 398 La Fayette, Madame de: 101 Proust, Marcel: 613; (cf. tb. vol. 3) La Fontaine, Jean de: 556; (cf. tb. vol. 3) Púchkin, Aleksandr: 619; (cf. tb. vol. 3) Laclos, Choderlos de: 360 Lasker‑Schüler, Else: 103 Quasimodo, Salvatore: 124 Lautréamont: 367 Quevedo, Francisco de: 125, 620 Laxness, Halldór: 217 Lem, Stanisław: 557 Racine, Jean de: 126 Leopardi, Giacomo: 562; (cf. tb. vol. 3) Rilke, Rainer Maria: 621

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Rimbaud, Arthur: 624; (cf. tb. vol. 3) Tasso, Torquato: 144; (cf. tb. vol. 3) Ronsard, Pierre de: 131, 628; (cf. tb. vol. 3) Teresa de Ávila: 145; (cf. tb. vol. 3) Rossetti, Christina: 132 Thomas, Dylan: 423; (cf. tb. vol. 3) Timenova, Zlatka: 646 Saba, Umberto: 133, 629 Tolstói, Lev: 147, 424, 647 Sadoveanu, Mihail: 400 Trakl, Georg: 650; (cf. tb. vol. 3) Safo: 630 Tranströmer, Tomas: 431 Sartre, Jean‑Paul: 631 Tucídides: 264 Schiller, Friedrich: 244 Schnitzler, Arthur: 403 Unamuno, Miguel de: 156 Scott, Walter: 405 Ungaretti, Giuseppe: 652 Sebald, W.G.: 409 Séneca: 412 Vasilescu, Lucian: 432 Shakespeare, William: 136, 415, 635; (cf. tb. vol. 3) Vega, Garcilaso de la: 160; (cf. tb. vol. 3) Sienkiewicz, Henryk: 249 Vega, Lope de: 433, 655; (cf. tb. vol. 3) Simon, Claude: 638 Vergílio: 271; (cf. tb. vol. 3) Smith, Zadie: 253 Viau, Téophile de: 661 Södergran, Edith: 642; (cf. tb. vol. 3) Sófocles: 137, 258 Waugh, Evelyn: 662 Soljenítsin, Aleksandr: 418 Wilde, Oscar: 666; (cf. tb. vol. 3) Sólon: 260 Woolf, Virginia: 671; (cf. tb. vol. 3) Stendhal: 139 Stevenson, Robert Louis: 643 Yeats, W.B.: 274, 676; (cf. tb. vol. 3) Strindberg: 420 Szymborska, Wisława: 262 Zweig, Stefan: 435

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parte iii— pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 5) China e da Magna China»: 601 Abû Nuwâs: 351 Agátias Escolástico: 395, 417 Çelebi, Evliya: 606 Al-Absî, Antara Ibn Shadâd: 347 Chiyo­‑Ni (ou Chiyojo): 649 Alarcón y Mendoza, Juan Ruiz de: 692 Chopin, Kate: 777 Al­‑Hamadhani, Badi’ Al­‑Zaman: 326 «Código de Hammu‑rabi»: 73 Alharizi, Yehudah: 373 «Conto do camponês eloquente»: 124 Al­‑Khansa’: 329 «Conto do náufrago»: 142 Al­‑Ma’arrî: 357 «Contos do Papiro Westcar»: 102 Al­‑Mustakfi, Wallâda Bint: 359 Cooper, James Fenimor: 751 Al­‑Mutanabbî: 331 Amado Nervo: 739 Danilu: 228, 229, 230, 232, 233 Ana Comnena: 395, 406 «Dezanove poemas antigos»: 309 Anat: 200, 208, 216, 228, 231, 264 «Diálogo de um desesperado com o seu ba»: 149 Aqhatu: 205, 228, 230 Dickinson, Emily: 714, 735, 782, 789, 805 «As Mil e Uma Noites»: 333 «Digenis Akritis»: 395, 402 Atra‑Hasîs: 62 «Dolo»: 365 Attâr: 429 Douglass, Frederick : 749 «Ayvu Rapyta»: 583 «Drosila e Cáricles»: 396, 418 Ducas: 396, 402, 407 Baal: 199, 224, 233, 237, 240, 264 Du Fu: 456 Bai Juyi: 452 Bashō, Matsuo: 641 Emerson, Ralph Waldo: 715 «A Batalha de Kadech»: 99 «Enuma Elish»: 70, 211 Beecher Stowe, Harriet: 767 «Epopeia de Aqhatu»: 228 «Beltandro e Crisantza»: 396, 399 «Epopeia de Askia Mohammed»: 617 Bíblia: 197, 199, 207, 237, 250, 257, 263, 754, 772 «Epopeia de Gilgamesh»: 48, 55 «A brisa no alaúde»: 451 «Epopeia de Kirta»: 222 «Buč, buč, canta o sämürgük»: 507 «A Epopeia do Kajoor»: 533 Buson, Yosa: 647 Equiano, Olaudah: 686 «Estela poética de Tutmés III»: 112 «Canção de Tölös»: 508 «Etana»: 50 «Canção de Trabalho de Escravos Negros das Eugeniano, Nicetas : 396, 418 Ilhas Barbados»: 683 «Eu, rico Koča do Khan»: 815 «Canções de dragões em voo»: 477 «Canto de amor»: 182 «Falar ouvi»: 510 Cao Xueqin: 629 Ferdowsi: 430 «A carta que mandaram os Padres da Índia, da Franklin, Benjamin: 688

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Gilman, Charlotte Perkins: 783 Li Ho (ou Li He): 464 Li Qingzhao: 465 Hâfiz: 431 Liu Ling: 308, 316 Halevi, Yehudah: 379, 381, 382 Liu Zongyuan: 466 Hanaguid, Shmuel: 385, 386, 387 «O livro das odes»: 311 Han Shan: 459 «Livro dos Mortos»: 96, 190 Han Yu: 460 «Livro Tibetano dos Mortos»: 511 Hawthorne, Nathaniel: 719 «Hino a Aton»: 115 Macrembólites, Eustácio: 420 «Hino acróstico de Assurbanípal a Marduk e a Maia­‑Quiché: 551, 558 Zarpanitu»: 82 Mármol, José: 822 «Hino de Assurbanípal a Ashur»: 86 Martí, José: 759 «História de Sinuhe»: 156 Marubo: 551, 570 Hsü­‑Chên Ch’ing: 632 Maryam Al­‑Ansarî: 325 Maxakali: 551, 660 Ibn ‘Abbâd, Al­‑Mu’tamid: 358 Mbemba, Nzinga (Afonso do Congo): 620 Ibn (Al­‑)’Arabî: 360 Mbyá­‑Guarani: 583 Ibn Al­‑Fârid: 345 Melville, Herman: 793 Ibn’Ammâr: 344 Mirza Ghalib: 791 Ibn Ezra, Avraham: 388 Motu: 200, 214 Ibn Ezra, Moshê: 390 Muyaka: 737 Ibn Gabirol: 392 Ibn Quzmân, Abû Bakr Muhammad: 361 Nguyen Khuyen: 835 Ibn Sâra Ash­‑Shantarinî: 346 Nguyễn Trãi: 529 Ibn Sâra Ash­‑Shantarinî, Abû Muhammad: 346 Nizami: 434 Ibn Zaydûn: 349 Inao: 807 «Oito Elegias Chinesas»: 632 Inca Garcilaso de la Vega: 655 «Oráculos proféticos da Assíria»: 76 «Instrução de Kheti»: 172 Irving, Washington: 722 Pichuvy Cinta Larga: 653, 662 Issa, Kobayashi: 727, 736, 792 Poe, Edgar Allan: 797, 817 «Popol Vuh»: 552, 558 Jacobs, Harriet: 756 James, Henry: 728 Qu Yuan: 308, 317, 463 Jami: 432 Rama II: 807 Kabir: 441, 443 «Ramayana»: 275 Kadir, Abdul Abdullah (ou Munshi Abdullah): 821 «O Rei Naga» (Phya Khankhaak): 711, 713 Kalidasa: 441, 444 «Rig Veda»: 279, 290 Khalîl Jibrân, Jibrân: 806 Rudaki: 435 «Kharjât»: 367 Rûmi: 436 Khayyâm, Omar: 433 Kirta: 222 Sa’adi: 437 Komachi, Ono No: 488 Sanâ’i: 438 Kotharu: 205, 206, 211, 212, 213, 220, 228, 230, 231 Sarmiento, Domingo Faustino: 763 Krenak: 658 Sayat­‑Nova: 609 «O Segredo do Fogo Descoberto e Perdido»: 523 «As Lamentações de Khakheperréseneb»: 92 Shaka: 816 Lao Tse: 307, 314 Shawqi, Ahmad: 810 «Lenda de Sargão de Akkad»: 49 Shikibu, Izumi: 498 Li Bai (ou Li Po): 452, 461 Shikibu, Murasaki: 499

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 763 12/06/20 17:19 764 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Shiki, Masaoka: 743, 800 «Veio ter comigo um Uigur, pagão»: 514 Shōnagon, Sei: 503 «O Sonho do Pavilhão Vermelho»: 629 Wang Changling: 469 Sor Juana Inés de La Cruz: 699 Wang Wei: 456, 470 Stowe, Harriet Beecher: 767 Wang Yangming: 633 Su Dongbo (ou Su Dongpo, ou Su Shi): 467 Wheatley, Phillis: 702 Sunjata: 539 Whitman, Walt: 801 Sunthorn Phu: 811 Whittier, John Greenleaf: 744 Swami Svatmarama: 441 Winthrop, John: 704 Wu Li (ou Wu Yushan): 635 Tao Yuanming: 308, 319 «Textos do Mar Morto»: 252 Xacriabá: 677 «Textos proféticos de Mari»: 78 Xie Lingyun: 308, 320 Thoreau, Henry David: 770 Tlaltecatzin de Cuauhchinanco: 591 Yammu: 200, 217 «Tornei‑me o vosso Rei»: 513 «O Trágulo Vitorioso: O Duelo»: 860 Zeami, Motokiyo: 489 Tulsīdās, Goswāmī: 613 Zhang Jiuling: 474 Tupari: 674 Zhang Rulin: 637 Twain, Mark: 730 Zuni: 594

Uang­‑Iang­‑Ming: 633 Uang L’ing­‑Hsiang: 634 «Upanishad»: 283, 285, 287, 288

parte iii— pelo tejo vai-se para o mundo (vol. 6) Abe, Kōbō: 148 Angelou, Maya: 477 Abû Madi, Ilya: 267 Aql, Sa’id: 277 Achebe, Chinua: 533 Ashbery, John: 355 Adé (José Inocêncio dos Santos Ferreira): 31 Ash­‑Shâbbî, Abû Al­‑Qâsim: 354 Adonis: 119, 605 As­‑Sayyâb, Badr Shâkir: 278 Agnon, S.Y.: 43 Astúrias, Miguel Ángel: 479 Akutagawa, Ryūnosuke: 693 At­‑Tabbal, ‘Abd Al­‑Karim: 357 Al­‑Aswany, Alaa: 120 Atwood, Margaret: 483 Al­‑Bayati, ‘Abd al­‑Wahhab: 268 Al­‑Faiturî, Muhammad: 269 Bachchan, Harivansh Rai: 127 Al­‑Haidari, Buland: 409 Ba Jin (Pa Kin): 411 Al­‑Jayussî, Salma: 270 Bandyopadhyay, Sharadindu: 590 Al­‑Jurr, Shukrallah: 653 Barakât, Ahmed: 279 Al­‑Khâl, Yusuf: 275, 351 Barth, John: 195 Al­‑Kûri, Bishara ‘Abdallâh: 352 Bei Dao: 49, 358 Al­‑Maghut, Muhammad: 654 Bellow, Saul: 50 Al­‑Malâ’ika, Nazik: 125 Ben Jelloun, Tahar: 489 Al­‑Mu’tî Hijazî, Ahmed ‘Abd: 272 Besseisso, Muin: 492 Al­‑Qasim, Samih: 589 Bialik, Haiim Nahman: 18, 129, 416 Al­‑Saadāwi, Nawāl: 471 Bin Wei: 280, 704 Al­‑Sabur, Salah ‘Abd: 274 Bioy Casares, Adolfo: 360 Al­‑Saigh, Yusuf: 275 Bishop, Elizabeth: 364 Al­‑Shaykh, Hanan: 474 Bitek, Okot p’: 286, 535 Amichai, Yehuda: 410 Bolaño, Roberto: 53

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Borges, Jorge Luis: 197 Ha Jin: 142 Bruête, José: 29, 34 Harjo, Joy: 143 Hâwi, Khalîl: 419 Carey, Peter: 130 Hemingway, Ernest: 661 Carpentier, Alejo: 540 Henriquez, May: 29, 35 Carson, Anne: 295, 365 «A história do homem e da mulher»: 193 Césaire, Aimé: 202 Hughes, Langston: 83, 551 Chalfi, Raquel: 367 Hu Shih: 144, 609 Chen, Zhongshi: 404 Hussein, Taha: 227 Chuah Guat Eng: 493 Cisneros, Sandra: 494 Ibrahim, Hafiz: 372 Coetzee, J. M.: 593 Ibuse, Masuji: 420 Cohen, Leonard: 296 Idrīs, Yusuf: 425 Condé, Maryse: 208 Iqbal, Muhammad: 84, 503 Cortázar, Julio: 211 Iriarte, Leonard Z.: 145 Crane, Hart: 216 Ishikawa, Takuboku: 314 cummings, e.e.: 298 Cunningham, Michael: 495 Jin, Ha: 82, 142

Darío, Rúben: 597 Kakuzo, Okakura: 373 Darwîsh, Mahmûd: 417, 499 Kawabata, Yasunari: 315 Das, Jibanananda: 55, 135, 299, 369 Keret, Etgar: 709 Dazai, Osamu: 56 Khoury, Elias: 233 Desai, Anita: 502 Devi, Ananda: 506 La Guma, Alex: 605 Dib, Mohammed: 300 Lao She: 85, 158, 236 Djebar, Assia: 217 Laye, Camara: 238 Donoso, José: 221 Layton, Irving: 327 Dos Passos, John: 62 Lezama Lima, José: 88 Dylan, Bob: 136 Lin Yutang: 91 Lo Liyong, Taban: 164, 613 Endō, Shūsaku: 66 López Velarde, Ramón: 510 Erdrich, Louise: 545 Lugones, Leopoldo: 96

Farah, Nuruddin: 301 Maalouf, Amin: 241 Fâris, Bishr: 305 Mabanckou, Alain: 552 Faulkner, William: 138 Mahdî, Sami: 102 Fitzgerald, F. Scott: 70 Mahfouz, Naguib: 615 Fuentes, Carlos: 598 Mansfield, Katherine: 620 Manto, Saadat Hasan: 555 Gao Xingjian: 76 Marugg, Tip: 622 García Marquez, Gabriel: 547, 674, Matar, Muhammad ‘Afifi: 428 727 Mazhar, Adib: 169 Ghosh, Amitav: 655 McKay, Claude: 516, 562 Ghosh, Aurobindo Akroyd: 81 Mcleod, Cynthia: 563 Gibson, William: 658 Menchú, Rigoberta: 665 Ginsberg, Allen: 78 Mishima, Yukio: 429 Glissant, Édouard: 601 Monterroso, Augusto: 375 Gordimer, Nadine: 306 Moore, Marianne: 170 Grossman, David: 309 Morchid, Fatiha: 328 Guillén, Nicolás: 418 Morrison, Jim: 103 Gün, Güneli: 224 Morrison, Toni: 433

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 765 12/06/20 17:19 766 literatura-mundo iii: pelo tejo vai­‑se para o mundo (vol. 6)

Mo Yan: 437 Rubadiri, David: 110, 446 Mun­‑yol, Yi: 526 Rulfo, Juan: 677 Murakami, Haruki: 667 Rushdie, Salman: 646 Mwangi, Meja: 440 Salih, Al­‑Tayyeb: 572 Nabokov, Vladimir: 376 Sellassie, Sahle: 452 Naipaul, V. S.: 245 Sembéne, Ousmane : 712 Naoya, Shiga: 105 Semedo, Maria Odete: 36 Neruda, Pablo: 329 Senghor, Léopold Sédar: 399 «O Senhor Resolve‑de‑uma‑só‑vez»: 702 O’Connor, Flannery: 517 Shlonski, Avraham: 184 Ōe, Kenzaburō: 171 Sinha, Indra: 682 Okara, Gabriel: 380 Snyder, Gary: 686 Oludhe­‑Macgoye, Marjorie: 175 Someck, Ronny: 258, 401 Ondaatje, Michael: 629 Soyinka, Wole: 575 Oz, Amoz: 633 Stevens, Wallace: 259

Pamuk, Orhan: 640 Tagore, Rabindranath: 115, 336, 402 Parker, Dorothy: 711 Tanizaki Jun’ichirō: 337 «Passarinho verde»: 33 Tavares, Eugénio: 30, 38, 62 Paz, Octavio: 249 Thiongo, Ngugi wa: 583 [Pergunta: O que é a soleira da porta?]: 276 Tiny, Olívio: 29, 39 Plath, Sylvia : 523 Toer, Pramoedya Ananta: 578 Pound, Ezra: 250 Tuqân, Fadwa: 456 Pratt, E. J.: 252 Premchand, Munshi: 382 Unsi Al­‑Hajj: 48 Pritam, Amrita: 177 Vallejo, César: 262 Quiroga, Horácio: 331 Vargas Llosa, Mario: 687 Vogel, David: 185, 263, 347, 457 Rahimi, Atiq: 178 Ranpo, Edogawa: 643 Wharton, Edith: 186 Ravicovich, Dalia: 180 Williams, William Carlos: 116 Rhys, Jean: 254 Wollach, Yona: 403 Rich, Adrienne: 525 Rifqa, Fu’ad: 398 Yuan Yi: 458 Roth, Philip: 111 Yu Hua: 21, 465, 529 Roy, Arundhati: 181 Yusuf, Sa’Di: 264

LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 766 12/06/20 17:19 LITERATURA MUNDO-Tomo 6_PAGVALIDO.indd 767 12/06/20 17:19 foi composto em caracteres Hoefler Text e impresso em papel Coral Book de 70 g, na Eigal, Indústria Gráfica, no mês de Abril de 2020.

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