LAURINDO LEAL FILHO

Quarenta anos depois, a TV brasileira ainda guarda as marcas da ditadura

LAURINDO LEAL FILHOAtrás é jornalista, professor da ECA-USP e autor de das Câmeras – Relações entre Cultura, (Summus). Estado e Televisão

40 REVISTA USP, São Paulo, n.61, p. 40-47, março/maio 2004 A televisão que temos hoje está

fortemente marcada pela ditadura

militar brasileira (1964-85). Duran-

te aquele período a TV se consoli-

dou como o principal meio de co-

municação de massa do país, su-

plantando o rádio e deixando muito

para trás os jornais e as revistas.

Como de resto, na definição de es-

tratégias políticas mais gerais, a

comunicação eletrônica passou a

ser pautada pelo novo modelo de

desenvolvimento adotado a partir

do golpe de Estado de 1o de abril

de 1964. Rompeu-se com a idéia

de uma política nacional-desenvol-

vimentista independente, assina-

lando, no dizer de Octavio Ianni, o

início efetivo da transição para o

modelo de desenvolvimento eco-

nômico associado. No clássico O

Colapso do Populismo no Brasil o

sociólogo mostra como esse mode-

lo impõe “a combinação e o reagru-

pamento de empresas brasileiras

e estrangeiras, com a formulação

de uma nova concepção de interde-

pendência econômica, política, cul-

1Octavio Ianni, O Colapso do tural e militar, na América Latina e Populismo no Brasil, Rio de Ja- neiro, Civilização Brasileira, com os Estados Unidos” (1). 1968, p. 11.

REVISTA USP, São Paulo, n.61, p. 40-47, março/maio 2004 41 O exemplo mais emblemático dessa concretos no setor de radiodifusão)” (2). mudança de rumos na radiodifusão foi dado Está aí a genêse das promíscuas relações pelo célebre acordo firmado entre a Rede Estado-televisão presentes até hoje na cena Globo de Televisão e o grupo norte-ameri- política brasileira e consolidadas durante cano Time-Life, quando cinco milhões de os governos da ditadura militar. dólares foram transferidos para a empre- sa brasileira a título de cooperação técni- “Em relação à utilização política dos meios ca. O que ocorreu na verdade foi, ao ar- de comunicação de massa, pode-se dizer repio da Constituição, a entrada ilegal de que 1964 completa o processo iniciado em capital estrangeiro necessário para ala- 1930. Se Vargas soube usar com eficiência vancar a Rede Globo, tornando-a hege- o rádio e o cinema para subordinar as oli- mônica no mercado nacional. Os investi- garquias regionais ao seu projeto, os gene- dores estrangeiros se viam diante de duas rais de 64 vão montar uma sofisticada rede opções: fortalecer o já combalido impé- de telecomunicações capaz de servir como rio Associado, montado juridicamente sob um dos principais sustentáculos para sua uma forma de condomínio, ou investir numa política autoritária e centralizadora” (3). empresa jornalística consolidada e admi- nistrada dentro da racionalidade capitalis- ta. A aposta na segunda opção tornou-se uma escolha natural. AS BENESSES OFICIAIS Esse marco da definição de rumos da radiodifusão brasileira nada mais foi do que A herança da ditadura militar foi trági- a consolidação de uma tendência que, sob ca para o Brasil. Até hoje pagamos pelo o regime nacional-desenvolvimentista an- estrago feito na vida política, social e cul- terior ao golpe, se esboçava mas não en- tural do país. Mas se formos procurar al- contrava o espaço político necessário para gum saldo positivo desse período podemos se firmar. A radiodifusão no Brasil surge encontrá-lo na mencionada rede de tele- nos anos 20 sob o ideal do serviço público, comunicações. Foi ela que integrou o ter- longe do Estado e da iniciativa privada. ritório nacional através de um sistema de Clubes de ouvintes se formavam para microondas tornando possível a realiza- manter o rádio, daí a existência até hoje de ção de transmissões ao vivo para qual- emissoras espalhadas pelo país com nomes quer parte do país. Cabe lembrar que os de rádio clube ou rádio sociedade. No en- militares argentinos nem isso deixaram. tanto, a visão de que estava surgindo no Ainda sob o regime militar brasileiro a mundo uma tecnologia capaz de dinamizar rede terrestre foi integrada ao sistema de o mercado capitalista acelerando o ritmo transmissões por satélites e inaugurou-se de sua produção e consumo e, ao mesmo a televisão em cores, fato amplamente tempo, tornando-se ela própria uma fonte explorado pelo governo. geradora de riquezas, empurrou rapidamen- Em decorrência dessa política, apro- te o rádio para os braços do comércio. E fundou-se no início da ditadura a articula- isso se fez com o apoio direto do Estado, ção do governo com a empresa que ia se que assumiu para si o papel de poder tornando a principal concessionária de ser- concedente das freqüências, mas abriu es- viços de rádio e televisão no país. De um paço para que os concessionários as usas- lado, o general-presidente Arthur Costa e sem como fonte de capitalização privada. Silva considerava legal o acordo firmado Na segunda década de existência do entre a Globo e o grupo norte-americano 2Renato Ortiz, A Moderna Tra- rádio no Brasil, o país passa a viver sob a Time-Life, apesar de uma Comissão Parla- dição Brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 53. ditadura Vargas que, “apesar de sua ten- mentar de Inquérito instalada no Congres- 3Laurindo Leal Filho, Atrás das dência centralizadora, tinha que compor so Nacional ter concluído que tal acordo Câmeras – Relações entre Cul- com as forças sociais existentes (neste caso feria o artigo 160 da Constituição Federal tura, Estado e Televisão, São Paulo, Summus, 1988, p. 31. o capital privado, que possuía interesses cujo teor impedia empresas estrangeiras de

42 REVISTA USP, São Paulo, n.61, p. 40-47, março/maio 2004 participar na orientação intelectual e admi- regime. O poder de barganha da emissora nistrativa de uma sociedade concessioná- tornava-se potencialmente perigoso para ria de um canal de televisão. De outro lado, uma ditadura que, ao final da década de 70, investia recursos públicos em larga escala mostrava sinais de enfraquecimento. Por para montar um sistema de telecomunica- isso a concessão da Rede Tupi, cassada pelo ções a ser utilizado por empresas privadas. governo, foi repartida entre Sílvio Santos Tal política se consubstancia na implanta- (SBT) e Adolfo Bloch (Manchete), consi- ção do chamado Sistema Nacional de Co- derados mais dóceis e submissos ao regime municações, um projeto prioritário do Es- do que os concorrentes Jornal do Brasil e tado visando a oferecer “serviços de tele- Editora Abril. Saía de cena um conglomera- comunicações de alta qualidade e elevada do administrado sob a forma de condo- confiabilidade, abrangendo telefonia, tele- mínio, absolutamente incompatível com grafia, telex, fac-símile, transmissão de da- a racionalidade capitalista, dando lugar a dos, de programas de alta-fidelidade e de duas empresas frágeis economicamente, programas de televisão” (4). Esse sistema mas talvez por isso mesmo mais contro- será operado, em grande parte, pela então láveis pelo governo. O SBT deslanchou estatal Embratel, a Empresa Brasileira de muito mais graças aos empreendimentos Telecomunicações, responsável pela ins- paralelos desenvolvidos com o apoio da talação de 24 Centros de TV em cidades TV, como a realização em larga escala de grandes e médias do país, com a tarefa de diversas formas de concursos e jogos. Já a controlar, comutar e distribuir transmissões Manchete, de Bloch, repetiu em escala de televisão. menor e mais rápida a trajetória da Tupi, de A essas benesses do Estado, cabe acres- Chateaubriand: sucumbiu enredada em suas centar mais duas práticas até hoje presen- próprias deficiências administrativas, in- tes e altamente desenvolvidas: as isenções capaz de enfrentar a Globo na disputa das fiscais e os patrocínios publicitários. É de reduzidas fatias do mercado publicitário 1968 o Decreto-Lei 486 que isentou de brasileiro, insuficiente para um número tão impostos de importação os equipamentos, grande de concessionários de emissoras de peças e sobressalentes destinados à insta- rádio e televisão. lação e manutenção de emissoras de rádio e televisão quando importados diretamen- te pelas concessionárias. E é de hoje, mas tem origem lá nos anos 70, o vultoso volu- AS CONTRAPARTIDAS me de recursos aplicados pelo governo nas emissoras a título de propaganda. Estatais O quadro traçado até aqui procurou como Banco do Brasil, Petrobras, Correios, mostrar como o Estado contribuiu para o Caixa Econômica Federal e os próprios desenvolvimento das empresas privadas de ministérios são anunciantes importantes da rádio e televisão, especialmente no perío- televisão brasileira. Essa prática não foi do da ditadura militar, oferecendo suporte inaugurada na ditadura, mas cresceu du- tecnológico, fazendo vista grossa à entrada rante sua vigência com as campanhas pu- ilegal de capital estrangeiro, renunciando blicitárias de louvação ao regime. É por impostos, bancando anúncios publicitários isso que muitos críticos do atual modelo e outorgando concessões a aliados políti- institucional de televisão existente no Bra- cos. Esses benefícios permitiram à Rede sil dizem, não sem forte dose de ironia, que Globo, por exemplo, saltar de 3 emissoras é preciso privatizar urgentemente a TV em em 1969 (, São Paulo e Belo 4Metas e Bases para a Ação do Governo, Presidência da Repú- nosso país. Horizonte) para 11 em 1973 (5). Em troca, blica, setembro de 1970, cita- do em: Sérgio Miceli, A Noite Ao longo dessa história, houve um o que os governos militares conseguiam? da Madrinha, São Paulo, Pers- momento em que o poder da Globo a colo- Basicamente a docilidade das empresas pectiva, 1972, p. 182. cava cada vez mais próxima de uma situa- concessionárias diante de toda e qualquer 5Elio Gaspari, A Ditadura Escan- carada, São Paulo, Companhia ção monopolista, o que não convinha ao política de todo e qualquer governo. Não das Letras, 2002, p. 217.

REVISTA USP, São Paulo, n.61, p. 40-47, março/maio 2004 43 foi outra a intenção de Getúlio Vargas ao outorgar concessões de rádio a grupos empresariais que, em contrapartida, lhe dariam apoio político. Graças a eles foi possível centralizar o poder e subordinar as oligarquias regionais ao seu projeto. Os generais de 64 aumentaram a dose das ofer- tas e receberam em troca apoio às políticas de inserção do país no modelo de capitalis- mo associado, cujas bandeiras internas fo- ram rotuladas com slogans massificados do tipo “Milagre brasileiro”, “Brasil gran- de” ou da louvação de obras gigantescas como a Rodovia Transamazônica ou a Ponte Rio-Niterói. No entanto só coerção ideológica não basta como forma de sustentação para um regime que tem na força sua base estrutu- ral. É aí que entra a censura oficial, ao mes- mo tempo uma violência contra a socieda- de e um poderoso álibi para aqueles que dela buscam se beneficiar. Com raras exce- ções, a imprensa apoiou a destituição do presidente João Goulart, chegando alguns de seus dirigentes a conspirar diretamente com os militares golpistas. No entanto, as liberdades democráticas do período anteri- or (1946-64) haviam deixado marcas posi- tivas na imprensa. As primeiras violências perpetradas pelos novos detentores do po- der, a partir de 1o de abril de 1964, recebe- ram críticas de jornais que dias antes apoia- vam abertamente o golpe, caso clássico do Correio da Manhã do Rio de Janeiro. Depois de encimar editoriais com tí- tulos de “Basta” e “Fora” exigindo a saí- da de Goulart, passados alguns meses da instalação da ditadura começava a denun- ciar a prática de tortura contra presos políticos (6). Como nos jornais, mas com muito mais comedimento, alguns programas de televi- são se arvoravam a abrir espaço para críti- cas ao novo regime. A TV Excelsior, fun- dada em 1960, manteve no ar o Jornal de Vanguarda, rompendo com a linguagem tradicional e introduzindo no estúdio vá- rios locutores e comentaristas especializa- dos em acrescentar ao “anódino tele- 6Idem,A Ditadura Envergonha- jornalismo brasileiro um enfoque inédito da, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, p. 143. na informação: o humor dos bonecos em

44 REVISTA USP, São Paulo, n.61, p. 40-47, março/maio 2004 movimento que Borjalo inventou à presen- ça do velho (sic) cronista carioca Stanislaw Ponte Preta” (7). Não havia como resistir. Não só o jornal acabou sucumbindo ao Ato Institucional no 5, de 13 de dezembro de 1968, como a própria emissora desapare- ceu em 1970, tragada pelas pressões do governo, com cuja política ela nunca havia se alinhado, desde muito antes do golpe. Controlada pela família Simonsen, de tra- dição nacionalista, a TV Excelsior estava fora da nova lógica de um capitalismo as- sociado imposto pela ditadura e ao qual a Globo docilmente aderiu. Em contraste com esse primeiro perío- do, em que vozes dissonantes ainda apa- reciam na TV, o pós-AI-5 é monocórdio, a ponto de levar o general-presidente de turno Emilio Garrastazu Médici a fazer, em 22 de março de 1973, a célebre afirma- ção: “Sinto-me feliz, todas as noites, quan- do ligo a televisão para assistir ao jornal. Enquanto as notícias dão conta de greves, agitações, atentados e conflitos em várias partes do mundo, o Brasil marcha em paz, rumo ao desenvolvimento. É como se eu tomasse um tranqüilizante, após um dia de trabalho” (8). Para dar esse tipo de conforto diário ao general a Globo valia-se de dois expedien- tes. O primeiro era de acatar com todo cui- dado as ordens emanadas da censura, e o segundo era complementar os cortes e va- zios do noticiário com uma censura pró- pria. O agentes federais transmitiam proi- bições praticamente diárias que, em algu- mas redações, eram afixadas no quadro de avisos. Por exemplo, “é proibido divulgar notícias contra autoridades do Paraguai e as autoridades em Ponta Porã – agente Dario” ou “proibido, até qualquer decisão em contrário, qualquer notícia ou nota so- bre a chegada ao Brasil do professor Darcy Ribeiro – agente Hugo”. A Globo por sua vez acrescentava suas próprias restrições ao praticamente ignorar a ampla vitória do MDB nas eleições para o Senado em 1974, 7Elizabeth Carvalho, “A Déca- com o noticiário começando sempre “com da do Jornal da Tranquilidade”, uma inexpressiva vitória da Arena numa in Anos 70 Televisão, Rio de Janeiro, Editora Europa, 1979- pequena cidade do interior” ou não infor- 1980, p. 32. mando que, ao morrer, o ex-presidente Jus- 8Idem, ibidem, p. 31.

REVISTA USP, São Paulo, n.61, p. 40-47, março/maio 2004 45 celino Kubitschek estava com seus direitos va o cacete” (10). Sintomático é que, passa- políticos cassados (9) . No final do regime, dos mais de vinte anos desse fato, o temor o comício pelas Diretas na Praça da Sé, em dos repórteres diante da população perma- São Paulo, foi anunciado como uma festa nece. Em 2001, numa pacífica manifestação em comemoração ao aniversário da cida- de estudantes contra a Alca (Área de Livre de, e a eleição de Leonel Brizola para o Comércio das Américas), na Avenida Pau- governo do Rio de Janeiro, em 1982, quase lista, em São Paulo, os únicos jornalistas e foi fraudada pelo conluio estabelecido en- operadores de câmera que escondiam seus tre a emissora e a empresa encarregada da crachás eram os da Globo. totalização eletrônica dos votos. A herança A passividade da emissora diante da da ditadura chegou até os anos 90 tendo ditadura não foi acompanhada por todas as como exemplos a edição fraudulenta do demais. Durante os anos 70, algumas tele- debate final entre os candidatos Collor e visões tentavam furar o cerco imposto pela Lula, nas eleições presidenciais de 1989, censura. Foi o que ocorreu com a TV Cul- ou a divulgação de pesquisas desatualizadas tura de São Paulo, cujo noticiário buscava para confundir os eleitores às vésperas do explicações mais abrangentes sobre pro- primeiro turno das eleições para o governo blemas do cotidiano. Na sua redação esta- de São Paulo, em 1998. Dados prelimina- va a lista de proibições da censura federal, res de pesquisa realizada sobre a cobertura mas não havia, como na Globo, um com- das eleições presidenciais de 2002, realiza- plemento próprio. Isso durou enquanto o da pelo Jornal Nacional da Rede Globo, telespectador não havia descoberto o jor- começam a indicar que a versão sobre o nalismo da Cultura. Quando a audiência propalado equilíbrio do noticiário, ao lon- aumentou, as pressões do Estado se fize- go da campanha, não se sustenta. ram sentir. Em 1976 a direção do jornalis- Se nos primeiros anos da ditadura algu- mo foi substituída e o novo diretor, Walter mas emissoras ainda se permitiam movi- Sampaio, chegou dizendo que a censura da mentos críticos em seus noticiários, com o Polícia Federal estava abolida e que a “cen- fim da censura oficial as empresas pratica- sura era ele mesmo” (11). A partir daquele mente mantiveram intactas suas próprias momento até a palavra “pobre” estava ve- restrições e estão na origem dos exemplos tada do noticiário porque, como todos sa- mais recentes acima citados. Basta lembrar biam, não havia pobre no Brasil. No inver- que em 1979 o Globo Repórter teve um no, cenas de pessoas passando frio nas ruas documentário sobre a greve dos metalúrgicos de São Paulo não iam nem para o arquivo, do ABC vetado pelo próprio presidente da o destino era mesmo a lata de lixo. empresa, Roberto Marinho. Assim como o Numa antecipação do processo de aber- Jornal Nacional cobria com nítida parciali- tura política ensaiado pela ditadura, o go- dade esse movimento a ponto de os persona- verno do Estado, particularmente a Secre- gens das manifestações dos metalúrgicos se taria de Cultura, caiu nas mãos de políti- insurgirem contra os repórteres da Globo. cos mais próximos do liberalismo e, com Afinal eles participavam de um aconteci- isso, por alguns meses a TV Cultura vol- mento durante o dia e, à noite, viam na tela tou a ser conduzida por jornalistas não algo completamente diferente. Foi nessa comprometidos com a ditadura. Um pro- época que se cunhou o refrão “o povo não é jeto que durou pouco e culminou com a bobo, fora Rede Globo”. Um repórter da prisão, tortura e morte do jornalista emissora deu seu testemunho na ocasião: Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da “Foi duro. Depois que as primeiras matérias emissora, numa unidade do Exército em

9Idem, ibidem, p. 34. sobre a greve foram para o ar pelo Jornal São Paulo. A campanha contra ele foi or- Nacional, fortalecendo a posição patronal, a questrada dentro e fora da emissora. Na 10 Idem, ibidem, p. 37. gente quase não consegue mais prosseguir Assembléia Legislativa, em alguns jornais 11 Laurindo Leal Filho, op. cit., p. 67. na cobertura. Tínhamos que esconder o e na própria redação onde ele trabalhava 12 Idem, ibidem, pp. 67-8. logotipo da Globo. Se não, o pessoal baixa- tramou-se a queda de Herzog (12).

46 REVISTA USP, São Paulo, n.61, p. 40-47, março/maio 2004 Esse talvez seja o episódio mais emble- ao largo das grandes questões nacionais e mático do que foram as relações da ditadu- longe das opiniões críticas. Se pelo aspecto ra militar com a televisão, em razão do seu tecnológico criou-se uma televisão de pon- trágico desfecho. No entanto, ao longo dos ta, capaz de se rivalizar com as melhores do 21 anos de poder nas mãos dos generais, mundo, com respeito ao conteúdo desceu- esmagaram-se projetos de um jornalismo se aos níveis mais baixos, particularmente de TV independente, capaz de contribuir no jornalismo, confundido muitas vezes para a elevação da qualidade da cidadania. com publicidade ou relações públicas a ser- A sociedade brasileira foi anestesiada por viço de interesses políticos e econômicos um padrão anódino de noticiário, passando subalternos. A herança da ditadura no noticiário está viva até hoje. A informação cedeu lugar ao espetáculo. E os grandes temas nacionais, muitas vezes vistos de forma conflituosa por diferentes atores sociais, estão excluí- dos da tela. Não há até hoje na televisão brasileira debates nacionais, sobre temas de interesse nacional, com a participação de representantes de correntes com posi- ções divergentes em relação ao mesmo assunto. Trata-se de prática comum em países democráticos, o que contribui dire- tamente para que a população possa, ela própria, tirar suas conclusões, formar opi- nião e se manifestar publicamente sobre o assunto. É dessa forma que o jornalismo de televisão se afasta da propaganda e se apro- xima do serviço público, algo infelizmente ainda distante no Brasil. A submissão vai além do noticiário, contaminando toda a programação. Durante a ditadura o SBT apresentava um quadro dentro do seu principal programa de entre- tenimento denominado “A semana do Pre- sidente”, louvando os atos do ditador do momento. Essa prática foi se perpetuando e hoje governantes ou candidatos a gover- nantes disputam aparições em programas de auditório de grande audiência. Outra vez a moeda de troca é a leniência dos gover- nos em regular o funcionamento das con- cessões de televisão e os aportes de recur- sos via propaganda estatal. Mas como nem isso está sendo suficiente para manter de pé as emissoras, trava-se agora a busca por recursos subsidiados de bancos públicos. Com isso o modelo institucional da televi- são brasileira, livre do jugo da ditadura, mantém-se intocado com respeito às rela- ções promíscuas aprofundadas há qua- renta anos e presentes até hoje.

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