RUÍDOS, ASSIMETRIAS E DIÁLOGOS POSSÍVEIS NA TRAJETÓRIA MIDIÁTICA DO POP/ROCK LUSO-BRASILEIRO

Tiago José Lemos MONTEIRO (Mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Doutorando em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense) Rio de Janeiro/RJ

Resumo: Este paper, marco inicial da minha futura pesquisa de doutorado junto à Universidade Federal Fluminense, se propõe a elaborar uma breve trajetória historiográfica comparada dos gêneros populares massivos vinculados ao universo do pop/rock no Brasil e em , com vistas ao levantamento de hipóteses para a ocorrência de um intercâmbio assimétrico entre os dois países na atualidade. A despeito de Brasil e Portugal possuírem trajetórias bastante semelhantes no que diz respeito ao surgimento e à consolidação destes gêneros, a produção de bandas veteranas na cena pop/rock lusa, bem como dos novos nomes que surgiram na década de 90, alcançam uma penetração próxima de zero junto ao mercado fonográfico brasileiro, sobretudo se comparada ao prestígio de artistas mais vinculados à “tradição musical portuguesa”, consagrada entre nós, ou mesmo à popularidade desfrutada pela nossa música em Portugal. A partir dessa cartografia, confronto alguns argumentos que atribuem esta assimetria tanto a uma suposta dificuldade que nós, brasileiros, teríamos em compreender o português tal e qual falado (e cantado) em Portugal, quanto à inadequação entre a língua portuguesa e a matriz cultural anglo-americana do pop/rock – afirmações da esfera do senso comum que meu projeto de pesquisa tem a intenção de problematizar.

Palavras-chave: História da Mídia Sonora; Música Popular Massiva; Relações Brasil- Portugal; Consumo Cultural

Introdução

As primeiras trocas sonoras sistemáticas entre Brasil e Portugal datam do século XVIII. Estas se davam graças ao intercâmbio de escravos entre a colônia e a metrópole: os negros que partiam do Brasil para servir nas casas de seus “donos” em Portugal levavam na bagagem todo um repertório de danças e ritmos que caíam no gosto das classes populares em Portugal e, posteriormente, eram “suavizados” e assimilados pela aristocracia. O fado, que nos habituamos a considerar apenas em seu formato canção, por exemplo, surgiu como uma dessas danças “lascivas” protagonizadas por escravos (Tinhorão, 2006).

1 Atualmente, em virtude do escasseamento ou da precariedade dos canais de comunicação que coloquem em contato a comunidade portuguesa do outro lado do Atlântico e os emigrados residentes no Brasil (Monteiro, 2007), as chances de sobrevivência destas formas musicais parecem residir apenas no seio de determinadas instituições que se dedicam à preservação de formas tradicionais da cultura lusa, voltadas, sobretudo, à vasta comunidade de migrantes residente no país. As atividades desenvolvidas por essas Casas (do Minho, das Beiras, de Viseu) se enquadram no cenário descrito por Setti (1992), que destaca o caráter endógeno de tais manifestações.

Existem, no Brasil, núcleos e bairros de emigrantes portugueses que (...) promovem festas, danças, apresentações de grupos de música tradicional e, simultaneamente, se constituem na principal clientela desses eventos – ou seja, a um tempo, produzem e consomem o produto cultural. O repasse desse produto é pouco representativo para a sociedade brasileira global. (...) Além disso, esses repertórios aqui repassados concentram-se em modelos musicais e coreográficos de formas conhecidas e sempre repetidas, como a “caninha verde”, o “corridinho”, “o rei de gaio”, a “chamarrita” e outros, além do indispensável fado, de aceitação sempre garantida (Setti, 1992, p. 113-122).

Em outras palavras, para além dessa circularidade que caracteriza a produção e o consumo de música portuguesa no Brasil, verifica-se também a reprodução quase automática de modelos consagrados pelo senso comum1 sobre o que vem a ser a cultura de Portugal na contemporaneidade. Artistas como Amália Rodrigues e Roberto Leal se converteram, assim, em estereótipos de uma certa cultura portuguesa, tida por muitos como a única existente – a mesma cultura das piadas do humorista Raul Solnado, das danças folclóricas e da melancolia do fado.

Para muitos(...), a Música Portuguesa resume-se a Emanuel, Saúl, Agatha ou outros grandes filósofos da música Pimba. Uma música fortemente machista e saturada de mediocridade: o cúmulo do mau gosto e da ignorância. (...) Nas programações (...) onde é difundida a música portuguesa, aparentemente ninguém tem conhecimentos para comentar a música moderna portuguesa, como os Da Waesel, Mind Da Gap, Né Ladeiras, Marta Dias, João Afonso, Ithaka (...).Contrariamente ao que se pensa, o Fado não é o único estilo musical português reconhecido internacionalmente. Em 1999 o semanário musical inglês New Musical Express escolheu os grupos portugueses Belle

1 Santos (2006) define o senso comum como “as crenças sociais (...) aceitas como pensamento rigoroso de uma forma de pensar sem rigor”, possíveis de serem desmistificadas pelas diversas ciências sociais. Ainda segundo o autor, a valorização desse senso comum é tanto maior em determinada sociedade quanto menos consolidado foi o seu processo de transição efetiva para a modernidade. A recorrência de regimes totalitários ou de fundo conservador, bem como a predominância de uma elite literária e cultural distante tanto do povo quanto da instâncias de poder político tendem a fomentar a reprodução desses discursos, como parece ter sido o caso de Portugal.

2 Chase Hotel e Cool Hipnoise como sendo uns dos melhores de Portugal e da Europa. A música Hip Hop Portuguesa, ou até mesmo a música electrónica portuguesa é muito mais importante e de qualidade em Portugal, do que se pensa aqui (Costa, 2007).

Isso se torna evidente quando observamos os únicos casos de artistas portugueses contemporâneos que conseguem penetrar no mercado fonográfico brasileiro. Grupos como o Madredeus, de Teresa Salgueiro e Pedro Ayres Magalhães, e cantoras como Dulce Pontes ou a moçambicana Mariza, ao realizarem releituras de um ritmo tão tradicional como o Fado de Lisboa, afirmam sua contemporaneidade mediante o diálogo que mantêm com essa tradição2 consagrada entre nós, e talvez em virtude da familiaridade estabelecida, sejam os únicos artistas da recente cena musical portuguesa a serem lançados comercialmente com regularidade no Brasil. Já o interesse dos artistas portugueses em estreitar contatos com o imaginário musical brasileiro e absorver influências parece se configurar numa proporção inversa, haja vista o recém-lançado CD de bossa nova gravado por Teresa Salgueiro (Você e eu, 2007); as parcerias entre o astro pop português e os brasileiros Lenine e Sandra de Sá no álbum Momento (2003); entre Sergio Godinho, , Milton Nascimento e Gabriel o Pensador no disco O irmão do meio (2001); entre os mineiros do Pato Fu e Manuela Azevedo, vocalista do Clã, na faixa “Boa noite Brasil” do disco Toda cura para todo mal (2005) ou mesmo o êxito da baiana Ivete Sangalo junto ao público português3. Um outro exemplo desse interesse é a escalação do Festival Lisboa (cuja última edição aconteceu em 2006), quando artistas vinculados do cenário pop/rock4 brasileiro como Marcelo D2, Pitty e Jota Quest dividiam espaço com

2 Tradição, aqui, sendo concebida como sinônimo dos diversos modos de articulação e associação entre vários elementos de uma dada cultura ao longo do tempo, e não apenas como a persistência de “velhas formas” (Hall, 2003). 3 “Em turnê por Portugal, no começo de novembro, a cantora reuniu 30 mil pessoas nos shows que fez em Lisboa e no . Os ingressos se esgotaram com duas semanas de antecedência. O (...) CD MTV ao Vivo já é disco de ouro, com mais de 20 mil cópias vendidas, e o DVD, lançado há menos de um mês, está na lista dos mais procurados”. CAMARGO, Carolina. “Ivete Sangalo: vira, virou”. Disponível em http://revistaquem.globo.com/Quem/0,6993,EQG860621-2157,00.html. Acesso em 10 jul. 2007. 4 Utilizo a expressão “pop/rock” e não “pop-rock”, como de costume, por uma razão conceitual: o termo “pop” em pop-rock pode denotar a ocorrência de uma variação dentro do rock, motivada pelo flerte deste último com discursos e sonoridades próprias da música pop, que tendem a ser vistas como diluições banais, inautênticas e meramente comercialistas dos valores que o discurso da música rock costuma celebrar. A expressão “pop/rock” abrange, indistintamente, tanto artistas totalmente associados ao rock e ao pop quanto aqueles que transitam pelos dois universos, e está de acordo com perspectivas teóricas contemporâneas que postulam a dissolução das fronteiras entre os gêneros e a transformação da Ideologia do Rock numa Ideologia da Música Popular Massiva (Hesmondalgh, 1998; Monteiro, 2006).

3 veteranos da cena lusa, como e Xutos & Pontapés, e novos nomes como os rappers do Da Weasel5. A partir desse cenário, é possível que uma vasta parcela da juventude urbana portuguesa conheça de cor e salteado os versos de Máscara, de Pitty – mas será que uma parcela reduzida da juventude urbana brasileira seria capaz de recitar dois versos que sejam de qualquer canção dos Xutos? Este paper, marco inicial da minha futura pesquisa de doutorado junto à Universidade Federal Fluminense, se propõe a elaborar uma breve trajetória historiográfica comparada dos gêneros populares massivos vinculados ao universo do pop/rock no Brasil e em Portugal, com vistas ao levantamento de hipóteses para a ocorrência de um intercâmbio assimétrico entre os dois países na atualidade. A partir dessa cartografia, confronto alguns argumentos que atribuem esta assimetria tanto a uma suposta dificuldade que nós, brasileiros, teríamos em compreender o português tal e qual falado (e cantado) em Portugal, quanto à inadequação entre a língua portuguesa e a matriz cultural anglo-americana do pop/rock – afirmações da esfera do senso comum que meu projeto de pesquisa tem a intenção de problematizar.

Guitarras, bermudas e tamancos: breve história comparada do pop/rock luso- brasileiro

A consolidação dos gêneros musicais populares massivos vinculados ao universo do pop/rock se verificou de forma bastante semelhante no Brasil e em Portugal. Essa semelhança reside não apenas na coincidência entre ciclos e movimentos, mas também na relação por vezes tensa, por vezes simbiótica, entre essa produção vinculada ao pop/rock e aquela costumeiramente agregada sob o “guarda-chuva” mercadológico (e ideológico) conhecido por música popular (seja ela brasileira ou portuguesa - MPB/MPP, daqui pra frente)6. É certo que a tentativa de definir com precisão, e de acordo com critérios puramente musicológicos, o que viria a ser essa MPB/MPP, se revela, no mais das vezes, infrutífera – em parte, porque dependendo do lugar de fala ocupado por quem

5 Disponível em http://rockinrio-lisboa.sapo.pt/programacao.html?lang=pt. Acesso em 28 jun. 2007. 6 Os exemplos fornecidos por este paper tendem a priorizar nomes, fatos e álbuns referentes ao pop/rock português em detrimento do Brock. A razão para tal “assimetria às avessas” está na probabilidade de as informações relacionadas à produção brasileira serem, muito provavelmente, mais familiares (e acessíveis) a um eventual leitor deste paper do que aquelas que dizem respeito ao cenário pop/rock lusitano.

4 efetua a classificação, e das circunstâncias em que essa classificação é feita, artistas inicialmente vinculados a um universo mais próximo da MPB/MPP podem, em outro contexto de enunciação, serem rotulados como pertencentes ao universo do pop/rock. Nesse processo, não apenas a indústria fonográfica como também (e sobretudo) a imprensa especializada desempenham um papel fundamental. Isso sem mencionar os debates e contradições acerca da palavra popular, que tanto pode se referir ao que é popular por ser consumido por um vasto número de pessoas (sendo, por isso, e de acordo com o senso comum, sujeito às interferências e manipulações engendradas pela Indústria Cultural) quanto o que é popular por ter sido feito pelo povo e para o povo (sendo, por sua vez, e de acordo com o mesmo senso comum, mais genuíno e autêntico). Tomemos como exemplo a música portuguesa. Quem seria mais popular? O fado de Amália Rodrigues e , durante décadas promovido pelo regime salazarista como expressão máxima da “identidade musical portuguesa”? As danças tradicionais da região do Minho e arredores, compiladas pelo etnomusicólogo francês Michel Giacometti nos anos 607? As trovas de José Afonso, Sérgio Godinho e demais “cantautores” da Geração de Coimbra, com suas canções politicamente engajadas contra a ditadura do Estado Novo de Salazar? Os duplos sentidos do sanfoneiro Quim Barreiros, muito popular entre a juventude universitária graças a versos como ‘Mariazinha/ Deixa-me ir à cozinha pra cheirar teu bacalhau”? Ou o rock dos Xutos & Pontapés, banda surgida em finais dos anos 70 e em atividade até hoje? O que dizer de um artista de formação blueseira como Rui Veloso, cujas canções parecem mais nitidamente influenciadas pela estética trovadoresca dos “Cantautores” dos anos 60 do que pelo rock anglo-americano (Cardoso, 2003, p. 185- 189), e que, no entanto, costuma ser saudado como o “pai” do rock português? Estaria Rui Veloso mais vinculado à música popular portuguesa ou ao rock português? O que alguns autores definem (pejorativamente) como “música ligeira” (Correia, 1984) outros vão conceber (de maneira elogiosa) como “música moderna” (Duarte, 2006), razão pela qual adotarei o conceito de “popular massivo” 8 quando estiver me referindo à produção

7 Antologia da Música Popular Portuguesa (1963, em cinco volumes). 8 O conceito de popular massivo se refere, em linhas gerais, a uma determinada configuração das dinâmicas de produção, circulação e consumo musical no mundo capitalista do pós-guerra. Num país de reduzidas dimensões territoriais e eminentemente agrário, como é o caso de Portugal, por exemplo, o alto custo e a baixa qualidade dos instrumentos musicais à disposição no mercado contribuiu para que o rock português produzido nos anos 60 fosse tecnicamente precário e, de certa forma, mais “submisso” à matriz

5 musical portuguesa vinculada à seara do pop/rock posterior à Revolução dos Cravos de 1974 (Janotti Jr. & Cardoso Filho, 2006). Da mesma forma que a MPB começa a se configurar como categoria taxionômica a partir dos anos 60 (num contexto que compreende, não necessariamente em ordem de importância, os efeitos da consagração internacional da Bossa Nova, os Festivais da Canção e o início do Governo Militar), em Portugal é a partir da geração dos “cantautores” que a expressão música popular portuguesa se consagra. Enquanto Brasil e Portugal, vivenciando momentos históricos menos ou mais semelhantes, testemunhavam o recrudescimento de regimes políticos marcados pelo autoritarismo, e a MPB/MPP desempenhava um papel ora combativo, ora celebratório desse estado de coisas, o rock ocupava uma posição secundária e relativamente marginal – “marginal” não no sentido de oposição ao status quo, mas sim no que concerne ao destaque dado pelos veículos de mídia e, notadamente, na compreensão de sua relevância sociocultural. Tanto a Jovem Guarda brasileira quanto o rock português dos anos 60 compartilhavam as mesmas fontes de inspiração: no caso, a música de Elvis Presley e dos Beatles fase “iê-iê-iê”, que podia ser apropriada sob a forma de precárias versões em português ou então em seu idioma original (ocasião em que o sotaque acabava por “denunciar” as origens do performer). A despeito do eventual sucesso midiático experimentado por alguns artistas e bandas, e do entusiasmo com que foram recebidos por uma ampla parcela da juventude9, as críticas e acusações que tais iniciativas recebiam também eram, grosso modo, as mesmas - basicamente, a de estimular a subserviência a um modelo musical anglo-americano, desprezando as referências culturais locais e, conseqüentemente, semeando a alienação entre os jovens (Motta, 2000).

anglo-americana – situação que muda radicalmente a partir do final dos anos 70, com a abertura de Portugal para a Europa. 9 No Brasil, artistas e bandas vinculados à Jovem Guarda aglutinavam-se em torno do programa homônimo exibido pela Rede Record de Televisão a partir de 1965. Ainda assim, outros dois programas musicais da mesma emissora gozavam de maior prestígio junto ao público, como “O fino” (da bossa) e “Bossaudade”. Em Portugal desfrutaram de ampla popularidade as bandas Os Sheiks, Quarteto 1111 e incontáveis conjuntos oriundos do meio estudantil universitário que, por essa razão, atendiam pelos nomes de Conjunto Acadêmico João Paulo ou Conjunto Acadêmico Os Espaciais (Dapieve, 1995; Duarte, 2006).

6 Na década de 70, essa trajetória em paralelo10 da música popular massiva luso- brasileira sofre um relativo desvio. Afinal, se em 1974, com a Revolução dos Cravos, Portugal se liberta do jugo da repressão salazarista, na mesma época o Brasil vivencia aquele que talvez seja o período mais repressor de sua Ditadura Militar. É provável que a década de 70 assinale o momento em que as trocas simbólicas entre as duas nações, até então freqüentes em virtude de seu passado comum e dos recorrentes fluxos migratórios, começam a se tornar escassas ou assimétricas. A abertura política também derruba as fronteiras musicais que isolavam Portugal do restante da Europa. Ao mesmo tempo em que a música dos Cantautores finalmente chega às rádios, numa espécie de euforia pós-revolução, o ideário pop/rock em vigência no contexto anglo-americano também “contamina” a produção musical lusa, razão pela qual a segunda metade dos anos 70 testemunha o surgimento de bandas de rock cada vez mais influenciadas pela vertente progressiva do rock setentista (Friedlander, 2004)11. No Brasil, por sua vez, essa incorporação parece ter cedido um espaço mais generoso aos elementos locais/regionais: ainda que grupos “ortodoxos” de hard rock, heavy metal e progressivo tenham despontado aqui e ali12, é sob o signo da mistura e dos hibridismos que as bandas e artistas mais expressivos do período vão surgir (aqui, pensemos na formação inicial dos Mutantes e nos Novos Baianos, bem como no fenômeno de público representado pelos Secos & Molhados). O decênio compreendido entre 1975 e 1985 instaura aquele que talvez seja o ponto de virada deste roteiro musical. É sob os efeitos colaterais do do-it-yourself punk que tanto Brasil quanto Portugal irão formatar um modelo de rock que, diferentemente das tentativas anteriores, de fato irá se consolidar como hegemônico em termos de visibilidade midiática e repercussão mercadológica.

10 “Trajetória em paralelo”, portanto, não apenas pelo fato de a história do pop/rock luso-brasileiro ser constituída de manifestações tributárias às mesmas matrizes culturais anglo-americanas, como também por terem sido raros os momentos em que os contatos e as trocas no sentido Portugal-Brasil foram além de execuções esporádicas em emissoras radiofônicas de perfil mais alternativo durante os anos 80. Há registros, por exemplo, de que a hoje veterana banda UHF tenha freqüentado o set list do programa Guitarras para o povo, apresentado por Paulo Sisino na Fluminense FM durante os anos 80 (Melo, 1992, p. 126) O conceito de matriz cultural, proposto por Martín-Barbero (1995), nos permite pensar as diferentes configurações que uma mesma forma cultural pode assumir quando assimilada e transformada de acordo com as particularidades locais. 11 Os exemplos mais expressivos dessa corrente talvez sejam as bandas Tantra, Arte & Ofício e Petrus Castrus. 12 Veja-se o caso das bandas O Terço, Barca do Sol, Made in ou mesmo os Mutantes, após a saída de Rita Lee (em 1972).

7 No caso português, por exemplo, foram decisivos os efeitos da contra- revolução de novembro de 1975, que novamente retirou de circulação os Cantautores, agora submetidos a uma censura mais econômica do que propriamente política. Como conseqüência, o espaço ocupado nas rádios e emissoras de TV pelo rock vindo dos Estados Unidos e da Inglaterra tornou-se mais representativo. No Brasil, por sua vez, foi a abertura “lenta, gradual e segura” conduzida pelo Presidente Geisel que, pouco a pouco, ampliou e autorizou a penetração cada vez maior desse imaginário musical anglo-americano (que veio na bagagem do exilados políticos, por exemplo), efetivada apenas na gestão de seu sucessor, o General João Batista Figueiredo, já na década de 80. Neste contexto, desempenharam um papel estratégico tanto veículos de mídia como a Rádio Fluminense FM13, a Revista Bizz14 e o programa de auditório Perdidos na Noite, apresentado por Fausto Silva na Rede Bandeirantes (que concedia um espaço generoso às novas bandas do rock nacional), quanto determinados indivíduos que funcionavam como pontos de contato entre o Brasil e o que acontecia lá fora (jornalistas como Ana Maria Bahiana e Maurício Kubrusly, mas também diplomatas cujos filhos inauguravam redes de troca e distribuição de discos até então lançados unicamente no exterior) e espaços de realização de shows15 como o Circo Voador, no Rio de Janeiro. É impossível, portanto, dissociar o intenso (e por vezes efêmero) sucesso midiático experimentado por inúmeras bandas brasileiras e portuguesas surgidas durante a década de 80 da infra-estrutura de produção, distribuição e consumo que possibilitava a essa música atingir um público vasto. Num curto intervalo de tempo, a partir de 1977, o aperfeiçoamento das tecnologias de gravação e o “boom” do chamado “rock português” levaram inúmeros Grupos de Baile (que animavam festas colegiais e

13 Destaca-se, aqui, o programa Rock alive, comandado pelo DJ Maurício Valladares, responsável por fazer a ponte entre o nascente rock brasileiro de inspiração pós-punk/ new wave (Paralamas do Sucesso, Legião Urbana) e as bandas internacionais nas quais o Brock se inspirava (The Smiths, Echo and The Bunnymen, The Cure). 14 Em Portugal, desempenham papel semelhante os jornais Musicalíssimo e Rock Week. Num contexto anterior ao “boom” dos anos 80, a revista Rock em Portugal já se dedicava à cobertura das cenas locais, organizando festivais e divulgando novas bandas. Curiosamente, a última edição circulou em 1979, antes mesmo do lançamento do célebre disco de Rui Veloso. Fez parte da equipe da revista o jornalista António Duarte, autor do livro A arte eléctrica de ser português – 25 anos de rock’n Portugal (Bertrand, 1984), a primeira obra a traçar uma historiografia do rock português, atualmente fora de catálogo. 15 Merece destaque especial, no caso português, a casa de espetáculos Rock Rendez Vous, situada em Lisboa. Inaugurada com uma apresentação de Rui Veloso em 1980, a partir de 1984 sediou diversos Concursos de Música Moderna. Apresentar-se no RRV tornou-se uma espécie de meta para as bandas recém-formadas. Depois de abrigar bandas de heavy metal durante a segunda metade dos anos 80, a casa fechou as portas no início da década seguinte.

8 universitárias) a se converterem em bandas de rock e assinarem contrato com alguma gravadora; até mesmo o veterano trovador Sergio Godinho foi aconselhado a se transformar num “músico de rock”. Narrativas de gênese são quase sempre problemáticas, haja vista que tendem a desconsiderar a importância do que veio antes em nome da celebração de um marco fundador capaz de alterar a configuração do que veio depois, a partir do qual uma nova história se constitui. A historiografia tradicional do rock português tende a considerar que o “boom” ocorreu após o lançamento (e posterior êxito de vendas) do álbum Ar de rock (1980), de Rui Veloso – cuja trajetória musical precede a gravação deste disco, aliás. A aceitação incondicional e acrítica deste discurso não apenas desconsidera a importância de grupos de rock anteriores ao disco de Rui Veloso, como também justifica (e justificou) o surgimento de incontáveis oportunistas atraídos pelo apelo eminentemente mercadológico do “boom”, que raramente conseguiam resistir ao lançamento de um segundo disco. De todas as bandas forjadas durante a explosão do rock português, apenas o Xutos & Pontapés, o GNR, o UHF, Rádio Macau e Rui Veloso continuam em atividade. Fenômeno semelhante pode ser verificado no caso brasileiro: o êxito mercadológico do Brock gerou bandas que, a despeito de eventuais consagrações nos anos 80 e esporádicos impulsos revivalistas, não conseguiram sobreviver à passagem do tempo. Algumas chegaram ao fim pela força das circunstâncias, embora continuem vivas na lembrança dos fãs e no imaginário afetivo do rock brasileiro (caso da Legião Urbana), mas no cômputo geral, da Primeira Geração dos anos 80, apenas os Paralamas do Sucesso persistem na ativa com a formação original. Nota-se que, tanto no caso do rock português quanto do brasileiro, é a projeção midiática e mercadológica experimentada nos anos 80 que vai fundamentar a adoção de um discurso de legitimação desse rock, principalmente se comparado à produção de ciclos anteriores – até aí, nenhuma surpresa, visto que a ocorrência de determinadas condições de produção e reconhecimento faz parte da constituição estrutural dos gêneros populares massivos. Ambos surgem, portanto, mais como construções de sentido operacionalizadas pela indústria fonográfica, promovidas por alguns setores da imprensa especializada e disseminadas junto aos consumidores através de canais de mídia selecionados, do que como movimentos dotados de unidade e coesão (embora tenham sido, muitas vezes, enxergados como tal).

9 Ao sabor da quase sempre efêmera moda musical do momento, passada a euforia da década de 80 e atingida a saturação de alguns modelos na década posterior, restou ao tal rock “luso-brasileiro” a possibilidade de se reinventar no decênio seguinte. Não mais protegido pelo escudo de um “nacional” agregado à distinção genérico- musical, esse pop/rock contemporâneo foi buscar, no diálogo com os localismos e nas articulações entre o regional e o global (pensemos na “parabólica fincada na lama” proposta pela cena de Recife, da qual emergiram Chico Science & Nação Zumbi, Mundo Livre S/A e Fred 04), um vislumbre de renovação. Em Portugal, país de dimensões territoriais bastante reduzidas, foi no entrecruzamento dos fluxos migratórios (a maioria deles, ilegais) vindos das ex-colônias africanas de Angola, Moçambique e Cabo Verde, que uma nova dinâmica se constituiu. Tanto lá como cá, os ventos do indie rock e da música eletrônica que sopravam da Inglaterra e dos Estados Unidos via internet alimentaram o surgimento de várias cenas articuladas em torno do discurso da independência e do underground (Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, sim, mas também Lisboa e Coimbra). Paradoxalmente, num contexto em que a circulação de informações em escala planetária se dá de maneira cada vez mais intensa, muito pouco ou quase nada dessa produção musical lusa pós-década de 90 chega até nós. Em contrapartida, é nas trocas estabelecidas com músicos e bandas brasileiras que alguns artistas portugueses se projetam em seu próprio mercado fonográfico, conforme mencionado anteriormente nesse paper.

“Não se ama alguém que não ouve a mesma canção”16: variações em torno do “cantar em português”

O rock luso-brasileiro dos anos 80 marcou sua diferença em relação a ciclos e movimentos anteriores por ser capaz de articular questões referentes a uma suposta “identidade nacional” presente na produção desse período (Dapieve, 1995; Duarte, 2006). Quase todos os argumentos favoráveis a esse discurso apontam a questão do cantar em português como algo fundamental para o reforço desse sentido de nacionalidade – atribuição esta que decerto não é exclusiva do rock d’aqui e d’além-

16 Verso da canção “A paixão segundo Nicolau da Viola”, de Rui Veloso e Carlos Tê.

10 mar17. Sendo o rock and roll um gênero popular massivo cuja matriz cultural dominante é eminentemente anglo-estadunidense, é compreensível que, nas diversas apropriações dessa matriz por outras realidades socioculturais, o desejo de não soar como uma simples emulação do rock feito na Inglaterra e nos Estados Unidos assuma um lugar de destaque. Evidente que essa busca por uma especificidade local não se dá livre de contradições e conflitos: o fato de uma banda se expressar em português nas letras de suas canções não significa que ela vá, também nos aspectos referentes à sonoridade da música (harmonia, fraseados, melodia), romper com a influência da matriz hegemônica anglo-americana (o inverso, embora menos freqüente, também é passível de acontecer). Em última instância, o sentido de nacionalidade de determinada expressão musical é tão socialmente construído quanto a hegemonia de alguns imaginários simbólicos e midiáticos sobre outros. No entanto, é para os modos de articulação e uso desses discursos que nosso olhar crítico deve se dirigir. Recorro ao jornalista Miguel Esteves Cardoso para investigar de que forma o “boom” do rock português trouxe à tona algumas destas questões.

Nem se fala naqueles que, ingloriamente, tentam cantar em inglês, porque embora sejam inteligentes e tenham razão (o rock está para o inglês como o fado está para o português), vão-se meter, corajosamente, num mercado onde são soterrados por avalanches de músicos infinitamente superiores porque naturais. Compare-se com a idéia de um inglês bem intencionado e razoável pronúncia portuguesa a tentar competir no mercado de fadistas, e vê-se o desconsolo... (...) Aqueles que, corajosamente, tentam fazer rock com letras portuguesas – uma tarefa dificílima por razões lingüísticas, mas também culturais – continuam a imitar (quase sempre mal) os modelos estrangeiros, em vez de procurar raízes novas, como a música africana e, sobretudo, a caboverdiana (Cardoso, 2003, p. 185-189; grifos do autor).

Percebe-se como a percepção do autor sobre a baixa expressividade do rock feito em Portugal nos anos 80, conseqüência da inadequação entre a matriz cultural do pop/rock e a língua portuguesa, deriva para uma constatação a respeito da qualidade da produção portuguesa no âmbito desse gênero massivo, que deveria buscar referências em outras matrizes culturais que não as anglo-americanas em nome de uma maior sofisticação musical. O risco do não estabelecimento desse diálogo, para a música portuguesa, seria o de continuar refém das formas tradicionais como o fado, as danças

17 Para maiores detalhes acerca de outros contextos que, à semelhança de Brasil e Portugal, não possuem o inglês como idioma oficial, ver o artigo de Nercolini (2007) sobre o rock argentino.

11 folclóricas e o neo-nacional-cançonetismo18, ou do péssimo hábito de reproduzir automaticamente as matrizes culturais transnacionais hegemônicas disponíveis no mercado. A necessidade que a música portuguesa possui de estreitar seu diálogo com o Brasil muitas vezes é legitimada pelo mesmo argumento, visto que nossa produção musical também seria, de acordo com um senso comum de orientação semelhante, naturalmente superior, tanto em número quanto em qualidade, por sua variedade rítmica e melódica e pela habilidade em flertar com gêneros considerados nobres, como o em relação à Bossa Nova, por exemplo. Esse discurso parte de um âmbito quantitativo (atribuindo o desequilíbrio existente a uma desvantagem numérica da produção musical portuguesa contemporânea em relação à brasileira, geralmente justificada em virtude das reduzidas dimensões territoriais de Portugal, se comparadas às do Brasil) para desembocar numa apreciação qualitativa, na qual esse desequilíbrio seria explicado pela riqueza e sofisticação que a música brasileira supostamente possuiria e a portuguesa não. Entretanto, da mesma forma que nenhuma produção musical nacional é, por essência, sofisticada ou simplória, nenhum gênero é essencialmente mais adequado a determinado idioma do que outro. O fato de artistas e bandas vinculados ao universo do pop/rock cantarem, em sua maioria, no idioma inglês, revela mais sobre uma determinada configuração de práticas desenvolvidas até o momento do que uma suposta essência deste ou daquele gênero musical. O surgimento repentino de fadistas nos Estados Unidos talvez seja um pouco improvável (embora não impossível), mas bandas de rock que cantam em português aparecem com bastante freqüência todos os anos, e ao fazerem isso, questionam o discurso socialmente construído segundo o qual a língua portuguesa não seria o veículo mais adequado para a expressão dos valores contidos na Ideologia do Rock.

18 A expressão “nacional-cançonetismo”, contra a qual se opunham o movimento do Fado de Coimbra e os “Cantautores” (ou Trovadores) da geração de José Afonso, define as canções e o tipo de música que o regime salazarista apoiava e cuja execução incentivava, nas emissoras de rádio e televisão. Coube ao nacional-cançonetismo ajudar a reproduzir uma série de estereótipos do nosso “senso comum mítico” sobre Portugal (Santos, 2006), entre eles a figura do português “pobre mas honrado” e da “casa portuguesa com certeza”, que se apoiavam na exaltação de banalidades e assim obscureciam a real situação política do país. Após a queda do regime, surge o neo-nacional cançonetismo, agora atendendo a disposições eminentemente mercadológicas, cujo exemplo mais representativo talvez seja o cantor Roberto Leal, muito popular no Brasil durante os anos 80 (Correia, 1984).

12 Apenas mediante uma análise das críticas e matérias veiculadas pela imprensa especializada à época do “boom” do rock português, é impossível mensurar em que medida esse discurso afetava o surgimento de bandas que, no final das contas, acabavam sendo criticadas quer por serem submissas à matriz anglo-americana no aspecto musicológico (embora cantassem em português), quer por renunciarem à própria nacionalidade (como se esse dado residisse única a exclusivamente na esfera lingüística) em nome da atração exercida pelo mercado europeu, certamente mais receptivo a artistas e bandas de rock se expressando em inglês19. Quando comparamos o cenário dos anos 80 com o atual, entretanto, a quantidade de bandas portuguesas que cantam em inglês é infinitamente maior hoje do que há 10 anos20. A atualidade de tais questões se reflete no depoimento de músicos contemporâneos portugueses que atuam fundindo o rock e a música tradicional portuguesa, como Jorge Cruz, vocalista e guitarrista da banda Superego:

Canto e escrevo em português porque sinto que me expresso com verdade e seria incapaz de me exprimir noutra língua. (...) O que nós estamos à procura, é fazer rock que só possa ser português, ou seja, continua a ser rock, mas ao mesmo tempo é uma música específica duma cultura que nos possa distinguir dos outros. Para que não sejamos meros papagaios de coisas que ouvimos de outros sítios21.

Se a maioria das bandas portuguesas contemporâneas opta por cantar em inglês com vistas ao mercado internacional, por que tais bandas continuam virtualmente desconhecidas no Brasil? E em relação às bandas que cantam em português, por que esse desconhecimento persiste, se pelo menos no que diz respeito à estrutura básica da língua, falamos o mesmo idioma? Nesse ponto, alguns argumentos se revelam freqüentes, como aqueles segundo os quais a razão da assimetria estaria na dificuldade que nós, brasileiros, possuiríamos para compreender o português tal e qual falado (e cantado) em Portugal22.

19 Caso da banda The gift, muito popular na Inglaterra e na Alemanha, cuja trajetória já ultrapassa os dez anos de carreira. 20 A adoção do inglês como idioma oficial do rock português contemporâneo fica evidente se compararmos as coletâneas O melhor do rock português – Volume I e Volume II (EMI/, 2003/2004), que cobre artistas surgidos durante o boom do gênero, entre 1979 e 1985, e o CD duplo Novo rock português (2007, Chiado Records/Farol Música). Enquanto na primeira coletânea todos os artistas cantam em português, na segunda, apenas 5 das 38 bandas reunidas não cantam em inglês. 21 Fonte: http://www.mondobizarre.com/e_oestadodanacao.html. Acesso em 9 jul. 2007. Grifo meu. 22 Em matéria publicada no jornal O Globo em 22 de março de 2006, a propósito de um show conjunto da banda carioca Los Hermanos e o grupo de rock português Toranja, o tecladista dos Hermanos, Bruno Medina, afirmou que “a MPB, em Portugal, é tratada pelo departamento de música nacional. Ou seja, não

13 Contra o argumento da “barreira lingüística”, entretanto, há três problematizações que devem ser feitas: em primeiro lugar, fosse o aspecto lingüístico a causa dessa assimetria e Portugal muito provavelmente seria um consumidor entusiasmado de música portuguesa contemporânea, já que apenas os portugueses seriam capazes de compreender e valorizar sua própria produção musical. Não é o que acontece, visto que o pop/rock luso cantado em português não parece ser bem aceito dentro do próprio país de origem23. Em segundo lugar, por mais carregada de particularismos que seja a língua portuguesa falada em Portugal, estruturalmente ela ainda nos é mais familiar (posto que derivada do Latim) do que o inglês, por exemplo – o que me permite concluir que a hegemonia no campo do simbólico talvez se constitua na periferia das particularidades lingüísticas, ainda que em última instância seja influenciada por ela. Por fim, e em consonância com Frith (1996), a apreciação musical não se dá, necessariamente, pela compreensão do que está sendo dito na música. Para além do aspecto textual das letras das músicas, existem uma série de elementos não-verbais em jogo (ritmo, harmonia, a maior ou menor granulação da voz do cantor, a performance), que podem ser tão ou mais importantes no estabelecimento de vínculos de afinidade por parte do ouvinte do que o conteúdo manifesto nos versos de uma determinada canção. Em texto posterior, o próprio Cardoso (2003 [1981], p. 312-323) admite que “(...) o jovem de Esposende ou de Paço de Arcos pode não saber falar inglês, mas sabe que gosta dos Joy Division ou dos Clash”. Sob o discurso da nossa dificuldade de compreensão do português falado em Portugal, podem se ocultar os construtos ideológicos, políticos, sociais e econômicos capazes de tornar determinados imaginários simbólicos hegemônicos e outros não, criando um mito acerca dessas produções, obstruindo a circulação de tantas outras e

é considerada estrangeira”. O vocalista do Toranja, Tiago Bettencourt, por sua vez, oferece uma perspectiva menos abonadora para a música lusa no Brasil: “quando fui aí, tive que falar brasileiro porque ninguém me entendia. Por vezes, achavam que eu era italiano. Tenho um pouco de receio que nos concertos não entendam as letras das músicas, sendo que é uma parte bastante importante do nosso trabalho”. 23 Nos bares, cafés e restaurantes de Lisboa ouve-se o mesmo pop internacional anglo-americano executado nas emissoras de rádio do Brasil; nas livrarias megastores e lojas de CD do Porto a seção de música portuguesa ocupa a metade do espaço dedicado à música brasileira, sendo que 50% desse espaço é composto por fados e música tradicional (gêneros mais vinculados ao universo do pop e do rock ocupam o reduzido espaço restante).

14 dispondo uma série de pré-conceitos que decerto irão influenciar o consumo das mesmas. Há, ainda, um outro fator a ser considerado, à guisa de conclusão. Sustento como hipótese que o imaginário simbólico referente à cultura portuguesa que circula entre nós não foi “alimentado” com dados novos, atualizado de forma a parecer atraente também para as gerações mais jovens, conservando-se tal e qual trazido d’além-mar por avós, pais e tios que acorreram para o território brasileiro sobretudo durante as décadas de 50 e 6024. A distância em relação à matriz, o bloqueio do tráfego de informações efetuado pelo regime salazarista e a ausência de canais de comunicação efetivos só contribuíram para a reprodução desse imaginário25. É um “Portugal do passado” (Setti, 1992, p. 114) esse que se consolidou entre nós: o mesmo da literatura de Camões e Pessoa, da arquitetura manuelina, das tradições populares, das aldeias remotas, em que a existência de bandas de rock com quase 30 anos de carreira, cantem elas em inglês ou em português, sempre há de parecer um corpo estranho.

Referências bibliográficas

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24 Os fluxos migratórios para o Brasil, intensos na década que precedeu a Revolução dos Cravos, podem ser entendidos no contexto da crise econômica que assolou Portugal a partir dos anos 50, quando todo o setor primário da economia sofreu as conseqüências de um processo de oligopolização que levou pequenos produtores agrícolas a verem a emigração como única saída. Depois do 25 de abril, a esperança nas reformas estruturais do país (logo frustrada com a contra-revolução de novembro de 1975), o clima de euforia política e a conseqüente entrada de Portugal na Comunidade Econômica Européia ajudaram a reduzir os supracitados fluxos, embora pelas mesmas razões o trânsito no sentido Brasil-Portugal tenha se intensificado (Secco, 2004). 25 Ainda segundo Costa (2007), em artigo de tom declaradamente ressentido, “o problema é que muitos emigrantes portugueses ficaram parados no tempo, e que para eles os Xutos e Pontapés ainda representam a Música Moderna Portuguesa! Portugal modernizou-se; os atrasados são os emigrantes!”

15 FRITH, Simon. Performing rites: on the value of popular music. Cambridge: Harvard University Press, 1996.

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16 TINHORÃO, José Ramos. Intercâmio Brasil-Portugal na área de cultura popular & De como o fado-dança virou canção. In: ______. Cultura popular: temas e questões. São Paulo: 34, 2006 (2 ed.). p. 27-58.

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