Nº 510 | Ano XVII | 4/9/2017

PraA crise do Rio Grande onde do Sul vai além da questão econômicair Luís Augusto Fischer Róber Iturriet Avila Marcos Rolim Francisco Marshall Pedro Osório Giba Assis Brasil Cecilia Hoff Jaime Betts

Leia também Carlos D. Paz ■ ■ Bruno Lima Rocha Riccardo Cristiano ■ ■ Fernando Del Corona Maria Augusta Maturana ■ ■ Perfil - Maura Corcini Lopes EDITORIAL

Pra onde ir – A crise do Rio Grande do Sul vai além da questão econômica

m 1984, na 14ª edição da Califórnia da montador de cinema e professor Giba Assis Canção Nativa, festival de música realiza- Brasil afirma que as atitudes de Sartori de- do no Rio Grande do Sul, um jovem cantor nunciam que a crise de identidade não é ape- Ese destacou com os versos de uma canção com- nas do governo, mas de todos. E encerrando posta por Dilan Camargo e Celso Bastos: “Pra a sequência de textos que tratam do tema de onde ir, pra onde ir / Quem do campo empobre- capa, o psicanalista Jaime Betts apresenta ceu / Pra onde ir, pra onde ir / Quem na cidade quatro sintomas sociais dos gaúchos. se perdeu”. A voz era de Victor Hugo, atual secre- A revista apresenta outros assuntos nesta edi- tário da Cultura do Rio Grande do Sul. ção. O doutor em História Carlos D. Paz parte Para se saber aonde ir, para se discutir o cami- do filme O Silêncio (2016), de Martin Scorse- nho que deve seguir um estado fraturado, mas se, para, na experiência jesuíta, refletir sobre notório por sua empáfia e presunção de supe- a necessidade de se inserir e relacionar com rioridade, antes é importante aprofundar o en- “o diferente”. O jornalista italiano Riccardo tendimento acerca das diversas crises que o Rio Cristiano recorda o desaparecimento de Paolo Grande vive. Dall’Oglio e discute as diferenças entre Ocidente No momento em que o estado atravessa a pior e Oriente. E a médica Maria Augusta Matu- crise econômica de sua história e o governador rana aborda, em artigo, o espaço da mulher no 2 José Ivo Sartori demonstra pouca habilidade campo da ciência. para enfrentar a situação, e no mês em que os No perfil que apresenta a decana da Escola gaúchos costumam celebrar de maneira ufanís- de Humanidades da , Maura Corci- tica a Guerra dos Farrapos (1835-1845), a revista ni Lopes, a professora revela que valoriza os IHU On-Line debate algumas das crises que os momentos de ócio como atos de resistência do gaúchos vivem, além da derrocada econômica. pensamento. O professor de Literatura Luís Augusto Fis- O crítico de cinema Fernando Del Corona cher parte da ruína financeira para pensar a si- analisa dois filmes: Eva não dorme, de Pablo tuação, mas vai além: a crise também é fruto do Agüero, e Corpo elétrico, de Marcelo Caetano. desprezo dos governantes pela cultura letrada. Leia ainda a crítica internacional de Bruno Para o doutor em Sociologia Marcos Rolim, Lima Rocha, professor da Unisinos, sobre a “toda noção de supremacia é tradução da igno- capacidade investigativa global do Departamen- rância”, e “a cultura tradicionalista transforma to de Justiça dos Estados Unidos. a estupidez em virtude”. O jornalista e professor A todas e a todos uma boa leitura e uma exce- Pedro Osório, ao analisar o papel da imprensa, lente semana. afirma que ela “é a maior responsável pela ma- nutenção da ideia de superioridade do gaúcho”. A economista e professora Cecilia Hoff, ao analisar o colapso econômico do estado, projeta que a tendência é que o atraso se amplie, com efeitos a longo prazo. O também economista e professor Róber Iturriet Avila observa que o Rio Grande do Sul vive estagnado desde 2014 e que a complexidade da situação não comporta repostas simplistas como “gastou demais”. O historiador e arqueólogo Francisco Mar- shall diz que o eleitor gaúcho hoje elege de- mentes; também acusa o governador e o pre- feito de de não saberem governar, além de não terem capacidade de estudo. O Foto: Eduardo Amorin/ Flickr CC

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE

Sumário

4 ■ Temas em destaque 6 ■ Agenda 8 ■ Carlos D. Paz | O desafio de ser-outro numa sociedade majoritária 16 ■ Riccardo Cristiano | Os sírios romperam o muro do medo e não voltarão atrás 20 ■ Maria Augusta Maturana | Mulheres na ciência: há equidade de sexo? 24 ■ Tema de Capa | Luís Augusto Fischer: Crise do Rio Grande também é fruto do desprezo dos governantes pela cultura letrada 33 ■ Tema de Capa | Marcos Rolim: Toda noção de supremacia é tradução da ignorância 37 ■ Tema de Capa | Pedro Luiz da Silveira Osório: Imprensa é a maior responsável pela manutenção da ideia de superioridade do gaúcho 44 ■ Tema de Capa | Cecilia Hoff: A tendência é que o atraso do Rio Grande do Sul se amplie 48 ■ Tema de Capa | Róber Iturriet Avila: Rio Grande do Sul vive estagnação desde 2014 52 ■ Tema de Capa | Francisco Marshall: O eleitor gaúcho hoje elege dementes 58 ■ Tema de Capa | Giba Assis Brasil: Atitudes de Sartori denunciam crise de identidade que não é apenas do governo, mas de todos 63 ■ Tema de Capa | Jaime Betts: Quatro sintomas sociais dos gaúchos 66 ■ Perfil | Maura Corcini Lopes: Elogio ao tempo perdido 70 ■ Cinema | Fernando Del Corona: A Argentina não dorme 74 ■ Cinema | Fernando Del Corona: O corpo e a cidade 3 78 ■ Crítica Internacional | Bruno Lima Rocha: O FCPA e a capacidade investigativa global do Departamento de Justiça dos EUA 80 ■ Publicações | Fabio Luis Barbosa dos Santos: Seis hipóteses para ler a conjuntura brasileira 81 ■ Publicações | Edward F. Mooney: A sensibilidade religiosa de Thoreau 83 ■ Outras edições

Diretor de Redação Atualização diária do sítio Inácio Neutzling Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia ([email protected]) Fachin, Cristina Guerini, Evlyn Zilch, Anielle Silva, Victor Thiesen e William Coordenador de Comunicação - IHU Gonçalves. Ricardo Machado – MTB 15.598/RS ([email protected]) Jornalistas João Vitor Santos – MTB 13.051/RS ([email protected]) ISSN 1981-8769 (impresso) Lara Ely – MTB 13.378/RS ISSN 1981-8793 (on-line) ([email protected]) Patricia Fachin – MTB 13.062/RS ([email protected]) A IHU On-Line é a revista do Institu- to Humanitas Unisinos - IHU. Esta Vitor Necchi – MTB 7.466/RS Instituto Humanitas Unisinos - IHU publicação pode ser acessada às segun- ([email protected]) das-feiras no sítio www.ihu.unisinos.br e Av. Unisinos, 950 | São Leopoldo / RS no endereço www.ihuonline.unisinos.br. Revisão CEP: 93022-000 Carla Bigliardi Telefone: 51 3591 1122 | Ramal 4128 e-mail: [email protected] Projeto Gráfico A versão impressa circula às terças-fei- Ricardo Machado ras, a partir das 8 horas, na Unisinos. O Diretor: Inácio Neutzling conteúdo da IHU On-Line é copyleft. Editoração Gerente Administrativo: Jacinto Schneider Gustavo Guedes Weber ([email protected])

EDIÇÃO 510 TEMAS EM DESTAQUE

Entrevistas completas em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias Confira algumas entrevistas publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU na última semana. A subordinação da esquerda brasileira ao neoliberalismo “Teorias da Dependência surgiram como crítica às teses nacionais-de- senvolvimentistas que apontavam que, com a industrialização, Brasil e América Latina superariam seus problemas de subdesenvolvimento, de- semprego, instabilidade política e falta de autonomia.” Carlos Eduardo Martins é graduado em Sociologia e Política, mestre em Administração e doutor em Sociologia.

A chaga da miséria volta a rondar o Brasil. Hoje, a situação brasileira é dramática “9,2% de famílias tinham o rendimento per capita inferior a um quarto de sa- lário mínimo, um dos indicadores de medição da fome. Em 2014, essa propor- ção era de 7,9%, o que corresponde a um aumento de 16% em apenas um ano.”

Nathalie Beghin, economista formada pela Université Libre de Bruxelles - ULB, mestra e doutora em Políticas Sociais pela Universidade de Brasília - UnB.

4 Estamos caminhando para o desaparecimento irreversível das florestas “A taxa de desmatamento no primeiro decênio deste século foi 62% maior que no último decênio do século passado, e desde 2011 constata-se uma aceleração dessa aceleração, sobretudo na Ásia e na Oceania.”

Luiz Marques, graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas e doutora- do em História da Arte pela École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS.

Revolução 4.0 e o risco de uma transição traumática “Até as últimas revoluções o mundo teve tempo de se adaptar e as transi- ções foram menos traumáticas. Nessa, pela velocidade, talvez a transição seja mais traumática e não permita a adaptação de muitas pessoas, aumen- tando o distanciamento cultural, financeiro e intelectual entre elas.” Eduardo Mario Dias é doutor, mestre e graduado em Engenharia Elétrica; Vidal Melo é graduado em Engenharia de Produção Mecânica e doutor em Automação.

Cisternas: exemplo de política pública que não pode ser interrompida “Nosso grande diferencial foi propor uma tecnologia simples, barata e familiar e que, para o contexto dessas famílias do Semiárido, é uma tecno- logia de ponta, efetiva, que realmente resolve o problema de abastecimen- to de água para o consumo humano.”

Valquíria Lima, integrante da coordenação executiva da ASA pelo estado de Minas Gerais.

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE

Textos na íntegra em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias Confira algumas notícias públicas recentemente no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Governo Temer recua Povos do rio Tapajós são Em defesa da Amazônia e suspende por 120 dias ‘atropelados’ por corredor e do Cerrado mineração em área da logístico para levar soja à Amazônia China, diz estudo

Alvo de críticas de um am- Impulsionada pela forte “A reação da sociedade a plo leque de atores políticos demanda do mercado chi- essa política de terra arra- e ambientais, o Governo Mi- nês, a expansão do corredor sada começa a se esboçar, chel Temer suspendeu no dia logístico para escoar grãos como disso dá mostras uma 31-8-2017 os efeitos do po- pelo Norte do país vem dei- petição da Avaaz que já con- lêmico decreto que permitia xando um rastro de impac- ta com muitos milhares de que mineradoras privadas tos negativos no entorno do assinaturas e cujas adesões explorassem área na Ama- rio Tapajós, na Amazônia, avançam a passos largos.” zônica até então reservada à de acordo com estudos de Artigo de Luiz Marques, professor livre- pesquisa estatal. O Ministé- ONGs sobre projetos de in- docente do Departamento de História rio das Minas e Energia dis- fraestrutura na região. do IFCH /Unicamp, reproduzido nas se, em nota, que a suspensão Notícia do Dia do sítio do IHU, disponí- A reportagem é de Júlia Dias Carneiro vel em http://bit.ly/2gsorIt. visa promover “um amplo” e publicada por BBC Brasil, repro- debate com a sociedade so- duzida nas Notícias do Dia do IHU, bre o tema por 120 dias. disponível em http://bit.ly/2epxzt9.

A notícia foi publicada por El País e re- produzida nas Notícias do Dia do IHU, 5 disponível em http://bit.ly/2ev6rwr.

Uma ponte para Amazônia. A Igreja Alto desemprego entre o passado: como no Brasil contra “a jovens produziu “geração chegamos até aqui? exploração inescrupulosa” desperdiçada” do governo Temer

“Não se pode dizer que o Os ataques que o governo Para entrar no mercado de Brasil não tem recursos: só brasileiro está realizando trabalho, o jovem precisa de de juros da dívida, são no mí- contra o patrimônio público experiência. Mas como ter ex- nimo 400 bilhões de dinheiro transformaram-se em tônica periência sem uma primeira público que é transferido por geral. O último capítulo des- chance? Em momentos de cri- ano para os mais ricos. Se os ta triste novela aconteceu na se como a atual, a questão se juros fossem 0% - como em semana que passou, com a acirra. Para além da frustra- vários países desenvolvidos promulgação do decreto que ção que atinge os jovens sem -, haveria 400 bilhões para libera exploração mineral emprego, desperdiçar essa investir em saúde, educação, em uma área de quase 47 mil força de trabalho traz efeitos transporte, saneamento e quilômetros quadrados entre negativos para o desenvol- ainda sobraria.” Pará e Amapá, com alegação vimento e gera um desalento de que as atividades contri- social que tem efeitos sobre a Artigo de Ivo Lesbaupin, sociólogo, professor da UFRJ, coordenador da buirão para recuperação eco- vida política do país. ONG Iser Assessoria, reproduzido nas nômica. Reportagem publicada por Carta- Notícias do Dia do sítio do IHU, dispo- Capital, reproduzida no sítio do IHU, nível em http://bit.ly/2et2I2t. Reportagem publicada por Religión Digital, reproduzida no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/2vvfOUb. disponível em http://bit.ly/2et38WB.

EDIÇÃO 510 AGENDA

Programação completa em ihu.unisinos.br/eventos

A contemporaneidade Ecofeira Unisinos Oficina: Usos em debate. Intérpretes tradicionais de e obras plantas medicinais

A razão populista, de Ernesto Laclau que auxiliam no (São Paulo: Três Estrelas) relaxamento

5/set 6 e 13/set 6/set

Horário Horário Horário 19h30min às 22h 10h às 18h 12h30min às 13h30min Apresentação Local Ministrante Prof. Dr. Carlos Gadea – Corredor central – em Bióloga Denise Schnorr UNISINOS frente ao IHU Campus Unisinos Local Local São Leopoldo Corredor Central da Uni- Sala Ignacio Ellacuría e sinos São Leopoldo - em Companheiros – IHU frente ao Instituto Humani- Campus Unisinos tas Unisinos - IHU São Leopoldo

6 Pré-evento Pré-evento Cine-Vídeo: Produção do IX Colóquio do IX Colóquio Orgânica Internacional IHU Internacional IHU

Bioética e a Nova (des)ordem Mun- O corpo é obsoleto? Reflexões feno- dial: entre a crítica e a legitimação menológicas sobre biotecnologias, Pós-humanismo e Arte Carnal

6/set 12/set 13/set

Horário Horário Horário 19h30min às 22h 19h30min às 22h 12h30min às 13h30min Conferencista Conferencista Ministrante Prof. Dr. Thiago Rocha da Prof. Dr. Francisco Ortega - Profa. MS Raquel Chesini – Cunha – Pontifícia Univer- Universidade do Estado do Cursos Nutrição e Gastro- sidade Católica do Paraná Rio de Janeiro - UERJ nomia – PUC-PR Local Local Local Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU Companheiros – IHU Companheiros – IHU Campus Unisinos Campus Unisinos Campus Unisinos São Leopoldo São Leopoldo São Leopoldo

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE

IHU Ideias Debate sobre o filme A contemporaneidade Francisco Suárez e O Silêncio (2016) em debate. Intérpretes a Escolástica Ibero- e obras

americana Mais informações A razão populista, de Ernesto Laclau http://bit.ly/2iJt95k (São Paulo: Três Estrelas)

14/set 15/set 18/set

Horário Horário Horário 17h30min às 19h 18h 19h30min às 22h Palestrantes Debatedores Apresentação da obra Prof. Dr. Alfredo Culleton Carlos Daniel Paz e Artur Prof. Dr. Daniel de Men- - UNISINOS e Prof. Dr. Barcelos donça - UFPel Gerson Neves Pinto - UNI- SINOS Local Local Sala Ignacio Ellacuría e Unisinos Campus Porto Local Companheiros – IHU Alegre Sala Ignacio Ellacuría e Campus Unisinos Companheiros – IHU São Leopoldo Campus Unisinos São Leopoldo

7 Seminário: Realidades IHU Ideias VIII Colóquio e Políticas Públicas Gaúcho – O que sabe Internacional IHU. para as Juventudes no que já foi valente Metafísica e Filosofia Vale do Sinos Prática. A atualidade do pensamento de Francisco Suárez, 400 anos depois 19/set 21/set 25 a 28/set

Horário Horário Local 14h às 18h 17h30min às 19h Unisinos Campus Porto Alegre Coordenação Palestrante Profa. Dra. Marilene Maia – Prof. Dr. Luís Augusto Fis- UNISINOS cher – UFRGS Local Local Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU Companheiros – IHU Campus Unisinos Campus Unisinos São Leopoldo São Leopoldo

EDIÇÃO 510 ENTREVISTA

O desafio de ser-outro numa sociedade majoritária Carlos D. Paz parte do filme O Silêncio para, na experiência jesuíta, refletir sobre a necessidade de se inserir e relacionar com “o diferente”

João Vitor Santos | Tradução: Henrique Denis Lucas

omo aceitar a cultura do outro desafios de nosso tempo, de sermos rece- sem subjugá-lo e sem perder bidos e receber esse outro. Um caminho nossa essência? Essa é uma que, para Paz, pode passar pelo diálogo dasC questões que surgem ao assistir O inter-religioso. “Um diálogo inter-religio- Silêncio (2016), de Martin Scorsese. so real deve partir da assimilação, pelas A película retrata o drama de jesuítas partes envolvidas no processo de con- que, chegando ao Oriente, são postos à versão, de traços culturais e religiosos de prova diante de um mundo cultural di- cada um”, adverte. “Apenas em um pos- ferente do seu. E mais: têm a missão de tulado que reconheça, discuta e incenti- promover a evangelização que, em al- ve a relevância das naturezas múltiplas guma medida, é levar uma perspectiva é provável que tenha sucesso em uma de mundo sobre outra. O historiador ar- aproximação entre os povos”, completa. gentino Carlos D. Paz vê na narrativa de Carlos D. Paz é argentino, doutor em 8 Scorsese uma oportunidade de pensar História pela Universidad Nacional del nos desafios que esse choque cultural Centro de la Provincia de Buenos Aires, na promove em ambos os lados. “O jesuíta Argentina. Realizou pós-doutorado em So- claramente é um outro que às vezes não ciologia, no Brasil, pesquisando os modos pode dispor de mais ferramentas para guaranis de administração da alteridade. tentar lidar com uma situação que lhe Atualmente, pesquisa as transformações é desfavorável”, destaca em entrevista cosmopolíticas dos grupos chaquenhos concedida por e-mail à IHU On-Line. e a construção e circulação de uma ideia Segundo o professor, “a universalidade de barbárie realizada pela Companhia de da Fé surge no horizonte desses jesuítas”, Jesus. Ainda está desenvolvendo uma in- mas também faz emergir “apostasia e a vestigação, com Eliane Fleck, da Unisinos, deserção da Fé Católica”, questionando sobre a censura de obras jesuítas. seus valores. Paz vê nesse ponto o desa- fio “de um ser-outro dentro de uma so- No próximo dia 15-9, o professor es- ciedade majoritária”. “O jesuíta vê, olha, tará no campus São Leopoldo da Uni- contempla, cheira os japoneses disputan- sinos, participando de um debate sobre do e/ou aceitando uma Fé que, desde o o filme O Silêncio (2016), dentro do II momento de sua chegada, gerou trans- Congresso Internacional de Estu- formações na comunidade local e em dos Históricos Latino-America- sua relação com os senhores feudais que nos – CI-EHILA. Saiba mais sobre o impunham suas regras”, analisa. A partir evento em http://bit.ly/2iJt95k . dessa experiência, é possível pensar nos Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que con- teiras de sua extensão territorial. O Populações foram identificadas, a texto se dá a expansão da Com- mundo europeu, naquela época, partir da concepção europeia e da panhia de Jesus para além da expande seus limites mediante as Companhia de Jesus, como pagãs. Europa, a partir do século XVI? descobertas de novas terras e po- O século XVI é o momento em que a Carlos D. Paz – Ocorre em um pulações tanto na América como expansão ultramarina, liderada por contexto em que se ampliam as fron- através de contatos com o Oriente. Espanha e Portugal, permite a vin-

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE

“A universalidade da Fé surge no horizonte desses jesuítas retratados pelo filme, também se fazem presentes a apostasia e a deserção da Fé Católica”

culação com espaços tão remotos humanos com os quais a Companhia – neste caso, os missionários envol- quanto surpreendentes para inte- de Jesus entrou em contato ao longo vidos no processo de expansão da Fé lectualidade europeia. de sua experiência. – que assiste como o sujeito evangeli- zador materializa a nova Fé. O jesuíta A América do Sul, com o Brasil Agora, a universalidade da Fé e vê, olha, contempla, cheira os japone- e o Peru, assim como na Ásia, com suas múltiplas manifestações e for- ses disputando e/ou aceitando uma o Japão e a China, se apresentam mas de ser concebida e manifestada Fé que, desde o momento de sua che- como dois lugares que mostravam por aqueles que se converteram em gada, gerou transformações na co- claramente diferenças com a Euro- ‘outros’ dos europeus, e neste caso munidade local e em sua relação com pa: dois espaços que necessitavam particular, o Japão – a posteriori da os senhores feudais que impunham conhecer-se e entrar em diálogo unificação de diferentes senhores suas regras. Tudo isso sem contar com as categorias que ordenavam feudais, por cerca da metade do sé- como o próprio jesuíta se questionou o mundo europeu daquela época. É culo XVI –, coloca a Companhia de constantemente sobre sua Fé. neste momento que a Companhia Jesus e seus missionários frente a 9 de Jesus decide se lançar para além um problema cuja inteligibilidade e Estas questões, retratadas a partir das fronteiras europeias não apenas resolução requer uma análise apro- do apelo a uma emotividade pensada para promover o cristianismo, mas fundada sobre o si-mesmo. Uma para um público ocidental e cristão, também para tentar conter os efeitos introspecção em que o missionário fazem parte das experiências que da expansão da Reforma Protestan- tenta se desfazer da maior quantida- os jesuítas enfrentaram no come- te, assim como posicionar-se frente de de preconceitos sobre os outros e ço das diferentes latitudes de onde a outras ordens como a dos francis- suas formas de relação com a Fé. E a empresa missionária se propôs canos, dos agostinianos etc., que já isso ao mesmo tempo em que deve a promover a Fé cristã. Os aspec- realizavam missões para além do tentar realizar um exercício de pro- tos sobre os quais o filme permite ‘Velho Mundo’. funda reflexão sobre a sua condição a reflexão são, em grande parte, os de outro. O jesuíta nessas porções mesmos temas que devem ser abor- IHU On-Line – Como compre- do território claramente é um outro dados quando realizamos estudos ender as questões de fundo pre- que às vezes não pode dispor de mais que questionam o estado da arte da sentes nas missões da Compa- ferramentas para tentar lidar com pesquisa sobre as realidades mis- nhia de Jesus, particularmente uma situação que lhe é desfavorável. sionárias jesuíticas. Entre eles, por no Oriente, como as retratadas Assim como a universalidade da Fé exemplo, posso mencionar, fazen- no filmeO Silêncio? surge no horizonte desses jesuítas do estrita referência a Silêncio: os retratados pelo filme, também se fa- problemas de comunicação, mesmo Carlos D. Paz – A questão que zem presentes a apostasia e a deser- consigo próprio. Essa é uma questão também está presente no filme Si- ção da Fé Católica. que está presente numa época con- lêncio, assim como na expansão turbada em que a própria Fé do mis- sobre o mundo concebido como to- Compreender estas questões, ou ao sionário parece questionável a partir talidade, e com o Oriente como um menos aproximar o máximo possí- do pragmatismo que a continuidade espaço de particular interesse para a vel à condição principalmente de um do esforço missionário requer. Companhia de Jesus, é o problema ser-outro dentro de uma sociedade da universalidade da Fé. A mesma Fé majoritária, que se apresenta como Junto com isso, não podemos es- que pode ser compreendida a partir estranha e pela qual se quer evange- quecer o papel desempenhado pelos da vinculação entre as formas de in- lizar, requer um exercício de reflexão conhecimentos prévios carregados tegração política, bem como a partir por parte do espectador do filme, pelo jesuíta consigo sobre uma so- de rituais, práticas sociais e costu- bem como para o leitor da obra, que é ciedade que se propõe ser a desafian- mes que deram sentido aos grupos baseada na proposição de um sujeito te do trabalho dos missionários, mas

EDIÇÃO 510 ENTREVISTA

que justifica, pelo mesmo esforço da Um diálogo inter-religioso real provável que tenha sucesso em uma empresa missionária, sua abnega- deve partir da assimilação, pelas aproximação entre os povos. ção e renúncia a certas práticas do partes envolvidas no processo de Junto com isto é necessário re-co- si-mesmo do jesuíta. Esta bagagem conversão, de traços culturais e reli- nhecer a pluralidade das formas de conceitual é essencial para tentar giosos de cada um. Se a assimilação ação dos sujeitos, deixando de lado não ocorrer, espera-se que seja pro- explicar tanto as primeiras ações as questões essencialistas que impo- duzido um descrédito, por qualquer missionárias e o forte componente nham à História um valor determi- razão, dos princípios explicativos do emocional carregados nos primeiros nante das ações dos homens – uma outro. Isto é um aspecto muito claro textos missionários. Os mesmos que espécie de Deus ex machina; isso se em grande medida condicionaram nessas duas gerações de jesuítas que apresenta hoje como a melhor e úni- as ações daquelas novas vontades fizeram missões no Japão e que o fil- ca saída. Isto pressupõe a necessida- que seguiram os passos daqueles me retrata. de de propor que os homens não são pró-homens que serviram como um Dado que as aproximações entre iguais entre si no decorrer do tempo posto avançado do cristianismo e Oriente e Ocidente, e vice-versa, e que é necessário levar em conside- como ideais reguladores do ser je- foram realizadas através do comér- ração o peso do conhecimento e da suíta. No caso de Silêncio, o padre cio – algo retratado parcialmente representação dos acontecimentos Cristóvão Ferreira. no filme – e pela expansão da Fé, o que foram experimentados durante diálogo não foi muito frutífero, pois o desenvolvimento de uma comuni- as condições exóticas de intercâm- dade. Portanto, a tradição que sus- bio prevaleceram no momento em tenta uma comunidade deve ser con- “O olhar jesuíta que o Ocidente tentou explicar suas cebida como uma questão maleável, formas de organização econômica, que se adapta às novas condições é inegavelmen- política e religiosa para o Oriente. sociais em virtude das exigências do te atraente, mas Neste sentido, cumpre-se aque- momento e com vista para o futuro. la máxima que propõe que todo o Enquanto a história se empenha não é o único” movimento de tradução implica em em encontrar explicações sobre os 10 uma traição para com os sentidos processos sociais do passado, não que são traduzidos. devemos pensar que o sujeito que IHU On-Line – De que forma abordamos age de acordo com um essas incursões contribuíram IHU On-Line – Quais os desa- sentido determinado e com plena para ampliar o entendimento fios para se pensar na -aproxi consciência desse sentido. O que do Oriente sobre o Ocidente? E mação entre povos ocidentais e nos leva a relativizar o alcance de qual a importância do diálogo orientais hoje? algumas investigações e propostas inter-religioso na aproximação de formulação de conhecimento, desses mundos? Carlos D. Paz – O maior dos de- que partem da denominada agência safios para alcançar esta aproxima- – agency. Durante o trânsito dessas Carlos D. Paz – Entender as ção parte de deixar de conceber os dúvidas, metodológicas por que não formas religiosas de determinado povos ocidentais e orientais como dizer, que atravessam o persona- conjunto de pessoas pode represen- um todo sistêmico e contrastante en- gem central da narrativa apresen- tar, demandar e enfrentar distintos tre si. Se partimos da ideia postulada tado no filme, a modo de uma lin- níveis e sentidos de dificuldade. A pela religião como uma forma de ex- guagem tridimensional, temos de maior delas é encontrar uma lógica plicar as relações e causalidades que encontrar as chaves para iniciar um que expresse seu sentido como tal, regem o mundo com o qual intera- novo diálogo com nossos objetos de sem entrar em contradição com as gimos, e a religiosidade como uma estudo, mas com a necessidade es- lógicas religiosas aceitas como váli- manifestação singular e própria de trita de re-pensar nossas suposições das pelo missionário. Desentranhar um tempo onde uma determinada sobre nós mesmos e, logo, como a lógica das formas religiosas cons- performance é interpretada, podere- elas influenciam na construção de tituiu-se num dos maiores desafios mos avançar na aproximação e com- uma ideia de alteridade. para aqueles membros da Compa- preensão das realidades sociais e os nhia de Jesus que deviam informar a problemas das relações particulares IHU On-Line – Que associa- seus superiores sobre os ritos daque- entre o Oriente e Ocidente. Apenas ções podemos fazer entre as les que transmitiam os ensinamen- em um postulado que reconheça, incursões da Companhia de Je- tos que sustentam o cristianismo. discuta e incentive a relevância das sus no Oriente com a chegada No entanto, o diálogo inter-religioso naturezas múltiplas – inclusive den- dos jesuítas na América? é um aspecto que requer ser ‘obser- tro de cada um dos conglomerados vado’ por aquele que é considerado o que nos referimos, e certamente Carlos D. Paz – A expansão da outro e submeter a própria Fé a di- com certa ingenuidade, como ocor- Companhia de Jesus sobre o Orien- versos questionamentos. re entre o Oriente e o Ocidente – é te e na América é um processo que

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE ocorre em paralelo. Os Andes e a Esta necessidade de notícias assim deve se acomodar constantemente Amazônia, bem como a China e o Ja- como as formas de registro das mes- para que a redução obtenha seus pão, são lugares onde a humanidade mas podem ser consideradas como frutos. No entanto, essa questão pa- mostrou sua diversidade à intelec- parte do momento fundacional da rece ter maior representatividade na tualidade jesuítica. Uma condição escrita institucionalizada da Compa- historiografia que se refere ao Orien- diversa que foi sistematizada como nhia de Jesus – aquela ‘escrita para te, ou ao menos existem poucas in- uma fronteira não apenas física, mas mostrar’ da qual Morales SJ4 se refe- vestigações, para o caso americano, também moral e teológica. Fron- re. A forte marca dessas obras, como a partir dessa perspectiva. Em con- teiras onde o problema religioso De Procuranda Indorum Salute5 ou trapartida desta linha de pesquisa, se constitui como o ponto nodal da Predicación del Evangelio en las In- e como uma excelente proposta me- ação evangélica. Nesse processo co- dias (1577) de Acosta, estará presen- todológica para a análise da escrita bram significação escritos como os te de modo constante nas escrituras jesuítica, contamos com a proposta de Matteo Ricci1 e José de Acosta2; sobre alteridade, que nos servem de de uma ‘escritura perturbada’. Gui- não esquecendo, obviamente, na for- matéria-prima para nossas indaga- lherme Galhegos Felippe (PUCRS)7 mação dessas fronteiras o parecer de ções. É por isso que temos de voltar está refletindo a respeito disso, in- Possevino3, em seu Il Soldato Chris- nossa atenção diversas vezes sobre dicando como é que os eventos que tiano (Roma, 1583), sobre a necessi- essas obras para avançar na formu- ocorreram nos contextos missioná- dade de incluir notícias edificantes, lação de investigações que já não rios geraram perturbações no desen- escritas pela própria Companhia de examinem tanto as populações nati- volvimento da redução e nas ações Jesus, que expuseram aos soldados vas em si. reflexivas do sacerdote. Aspectos notícias sobre as Índias Orientais ou que podem ser abordados através sobre o Peru, como forma de ilustrar A necessidade de se ques- de uma análise circunstancial sobre as terras recém-descobertas e sensi- tionar essas escrituras de reflexão – que bilizá-los para os desafios que esta- ocorre logo após a Expulsão – e que riam lá esperando. O eixo da investigação deve se con- obstrui os fatídicos momentos do je- centrar em um princípio básico da suíta, mas que não os tornam impos- A partir dessas obras, a Companhia pesquisa histórica. Voltar a questio- síveis de revelar. A partir da análise de Jesus foi emergindo no que se nar como foram construídas essas dessa escrita perturbada podemos transformou: um enorme disposi- 11 obras modulares – Acosta, Ricci, então avançar na historicização de tivo de poder cujo objetivo não era 6 Possevino, Valignano etc. – e como espaços e dinâmicas em que os jesu- somente catequizar as fronteiras da é que as temáticas das mesmas so- ítas atuaram. Orbe, mas que também se constitui- brevivem na forma em que os mis- ria, com o passar do tempo e o fluxo sionários refletiram sobre a melhor A chegada dos jesuítas a ambas as de escritos dirigidos para Roma, em maneira de promover suas ações; so- latitudes, América e Oriente, gerou um agente produtor de memória. bre como eles procederam com a es- um impacto notável em ambas as truturação de sua escrita a partir de extremidades da Orbe, produto de um trabalho de reflexão acerca dos momentos particulares que cada so- 1 Matteo Ricci [Mateus Ricci] (1552-1610): Mis- sionário que viveu já em sua época os princípios alcances e limitações experienciados ciedade passava: o Oriente em sua básicos do Vaticano II, especialmente a incultura- unificação política, assim como a ção e o diálogo inter-religioso. Depois de estudar durante o processo de evangelização direito em Roma, entrou na Companhia de Jesus, e como os problemas que estão pre- América, e o forte avanço colonial em 1571. Durante sua formação, interessou-se também por várias matérias científicas, como ma- sentes nestas notáveis obras da ação contra as populações nativas. Na- temática, cosmologia e astronomia. Em 1577, pe- queles interstícios da política é onde diu para ser enviado às missões no Leste da Ásia evangélica condicionam as agendas e, em 24 de março de 1578, embarcava em Lisboa, de pesquisa. devemos também despender nossa chegando a Goa, capital das Índias Portuguesas, em 13 de setembro do mesmo ano. Alguns meses atenção para que nossas pesquisas depois, foi destinado para Macao, a fim de prepa- O problema da accomodatio não é tornem a conectar os debates sobre rar sua entrada na China. Confira a entrevista re- só uma questão que se faça presen- alizada pela IHU On-Line com Nicolas Standaert, a política como capacidade huma- intitulada O “caminho chinês”. A contribuição da te no Oriente. O jesuíta na América China para o mundo, disponível em http://bit.ly/ na, assim como as ontologias pró- ihu281008. Confira a edição especial da IHU On prias do Oriente e da América que -Line intitulada Matteo Ricci no Império do Meio. Sob o signo da amizade, publicada em 18-10- 4 Tomás Morales (1908-1994): foi um padre jesu- apresentaram desafios para os mis- 2010, disponível em http://bit.ly/ihuon347. (Nota íta venezuelano. Ele foi notável por seu trabalho sionários. Isso sem deixar de lado a da IHU On-Line) apostólico, deixando como principais legados o 2 José de Acosta (1539-1600): foi um jesuíta, po- Instituto Secular de Santa Maria e o Instituto Se- eta, cosmógrafo e historiador espanhol que foi cular das Cruzadas de Santa Maria, o movimento para o Peru em 1571. Desempenhou trabalhos apostólico da jovem Milicia de Santa Maria e a 7 Guilherme Galhegos Felippe: possui gradu- missionários na América, regressando à Espanha associação pública de fiéis de Santa Maria. (Nota ação em Licenciatura em História pela Pontifí- em 1587. Escreveu História Natural e Moral das da IHU On-Line) cia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Índias, em 1590. (Nota da IHU On-Line) 5 Espanha: Consejo Superior de Investigaciones (2005), mestrado em História pela Pontifícia Uni- 3 Antonio Possevino [Antonius Possevinus] Cientificas, 1987. (Nota da IHU On-Line) versidade Católica do Rio Grande do Sul (2007) e (1533-1611): foi um padre jesuíta, com desta- 6 Alessandro Valignano (1539-1606): jesuíta ita- doutorado em História pela Universidade do Vale que na Contrarreforma como um diplomata pa- liano que ajudou na introdução do catolicismo, do Rio dos Sinos (2013). Tem experiência na área pal. Também foi enciclopedista e bibliotecário. É principalmente no Japão. Sobre as missões jesu- de História da América colonial, História Moderna, considerado o primeiro jesuíta a visitar Moscou, ítas na China e no Japão, confira a edição 347 da Teoria e Metodologia em História. Tem como foco também foi vigário geral da Suécia, Dinamarca IHU On-Line de 18-10-2010, intitulada Matteo de pesquisa História e Etno-história indígena. Re- e ilhas do norte, Muscovy, Livonia, Rus, Hungria, Ricci no Império do Meio. Sob o signo da amizade, cebeu o Prêmio Capes de Tese 2014. Atualmente, Pomerânia, Saxônia entre 1578 e 1586. (Nota da disponível para download em http://bit.ly/9oOler. cumpre estágio de Pós-Doutorado (PNPD/Capes) IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) na PUCRS. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 510 ENTREVISTA

necessidade de pensar sobre como de reflexão da Companhia de Jesus refletido na escrita realizada nesses os muçulmanos estão sempre pre- acerca das populações ameríndias, espaços ou é transmitida através da sentes no horizonte do pensamento que segue vigente com força e poten- reflexão que é produzida nos espaços jesuíta como um desafio emergente. cialidade que excedem, creio eu, a compartilhados pelos jesuítas já em própria intencionalidade daquela es- seu Exílio. crita. Ou seja, ainda estamos investi- IHU On-Line – Qual o papel gando sobre os aspectos que a Com- das missões e quais os impac- panhia de Jesus considerou como tos da Companhia de Jesus nodais e, além disso, levamos adian- na história dos povos originá- “O jesuíta vê, te as investigações seguindo aqueles rios, especialmente na Améri- jesuítas que escreveram etnografias ca Latina? olha, contem- culturais de relevância considerável. Carlos D. Paz – O maior impac- Trabalhos como os de Dobrizho- pla, cheira os to da Companhia de Jesus, a partir ffer10, Paucke11, Jolis, Sánchez La- de seu trabalho missionário redu- japoneses dis- brador12, Cardiel, e até mesmo Lo- cional e a partir da escrita acerca de zano13, são quase inevitáveis ​​em suas ações, tanto no tempo de per- putando e/ qualquer pesquisa histórica. Porém, manência na América, bem como os mesmos, e os tópicos que cada no exílio, logo após a Expulsão, é o ou aceitan- um aborda, são recorrentemente que, conjuntamente a Artur Barce- apresentados por uma ampla maio- los (FURG)8 e Eduardo Neumann do uma Fé” ria das pesquisas realizadas e em (UFRGS)9, denominamos como o curso. Enquanto continuamos dis- ‘Sequestro da Memória’. Esta ideia é cutindo aspectos que foram impor- IHU On-Line – De que forma a base e o resumo de um projeto de tantes para alguns missionários, a se poderia descrever a relação pesquisa – ainda em fase de constru- memória da Companhia – escrita no dos jesuítas com os povos ama- ção – que tem como objetivo refletir século XVIII – seguirá inalterada e zônicos e com as populações e dar conta da agenda de problemas em grande parte reproduzida por ameríndias mais ao Sul, por 12 nós mesmos. Um aspecto que não se exemplo nas reduções locali- 8 Artur Henrique Franco Barcelos: possui gra- duação em bacharelado em história pela Uni- apresenta como errado, mas que em zadas no Paraguai, Argentina versidade Federal do Rio Grande do Sul (2000), boa medida evita a possibilidade de e Brasil? graduação em Licenciatura em História pela Uni- desenvolvimento de novas perspec- versidade Federal do Rio Grande do Sul (1995), Carlos D. Paz – A relação dos mis- mestrado em História pela Pontifícia Universidade tivas de pesquisa começa por consi- Católica do Rio Grande do Sul (1997) e doutorado sionários com as populações nativas, em História pela Pontifícia Universidade Católica derar a Companhia de Jesus como seja na Amazônia, assim como nas re- do Rio Grande do Sul (2005). Atualmente é pro- ator histórico global de relevância, fessor da Universidade Federal do Rio Grande - duções localizadas no atual Paraguai, FURG, Curso de Arqueologia, e do Programa de como demonstrado tanto na Amé- Pós-Graduação em História - Mestrado Profissio- Brasil e Argentina, poderia ser des- nal PPGH-FURG. Tem experiência na área de His- rica quanto no Velho mundo, com crita como uma relação harmonio- tória, com ênfase em História da América, História seus debates sobre o Novo mundo e da Região Platina e Patrimônio Histórico atuando sa com os nativos, embora não sem principalmente nos seguintes temas: evangeli- o caráter de seus habitantes. zação na América Colonial, Missões Jesuíticas, críticas ao sistema colonial, como no Geo-história, Cartografia Histórica, Espaço, Patri- 14 mônio, Arqueologia Histórica e Cultura Material. Novas perspectivas de pesquisa caso de Vieira . Uma relação em que, (Nota da IHU On-Line) que, sem dúvida, necessitam das es- embora os sacerdotes tivessem de 9 Eduardo Santos Neumann: professor do De- partamento de História e do Programa de Pós- crituras jesuíticas, mas que precisam enfrentar alguns momentos difíceis Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGHIS/UFRGS). É mestre postular reflexões sobre o cotidiano durante a entrada nos territórios ou em História pelo PPGHIS (UFRGS), período no da vida missionária não sustentam durante o curso da vida reducional, qual foi contemplado com uma bolsa de estudos do Instituto de Cooperação Ibero-americana/Es- que a vida reducional é algo que está panha (1994) para a realização de pesquisa em arquivos. É doutor em História Social pelo Progra- 14 Antônio Vieira (1608-1697): padre jesuíta, ma de Pós-Graduação em História Social/ UFRJ diplomata e escritor português. Desenvolveu ex- (2005), tendo realizado pesquisas em arquivos da 10 Martin Dobrizhoffer (1717-1791): jesuíta aus- pressiva atividade missionária entre os indígenas península Ibérica entre 2003/2004, com uma bol- tríaco, enviado ao Paraguai em 1749, onde traba- do Brasil procurando combater a sua escravidão sa “sanduíche”. Entre maio e dezembro de 2015 lhou com os guarani. Foi encarregado de fundar pelos senhores de engenho. Em 1641 voltou a desenvolveu estudos de pós-doutorado, com uma nova redução entre os abipones, sobre o Rio Portugal onde exerceu funções políticas como bolsa da CAPES junto a Universidade de Alcala/ Paraguai onde hoje é a Província de Formosa. conselheiro da Corte e embaixador de D. João IV Espanha. É representante da UFRGS no Comitê (Nota da IHU On-Line) principalmente no que se referia às invasões ho- “ Historia, regiones y fronteras” da AUGM (Aso- 11 Florian Paucke (1719-1780): Padre jesuíta, landesas do Brasil. Retornou ao Brasil em 1652, ciacion de Universidades del Grupo Montevideo). missionário, apicultor, compositor e naturalista da tendo estado no Maranhão, onde fez acusações Entre suas publicações figuram livros, capítulos de Boêmia - atual República Tcheca. Chegou a Bue- aos senhores de engenho escravocratas na defesa libros, além de artigos em periódicos nacionais nos Aires em 01 de janeiro de 1749, e foi enviado da liberdade dos índios. Foi expulso do país, jun- e internacionais. Temas de investigação: história para a região do Chaco para evangelizar os indí- tamente com outros jesuítas. Voltou ao Brasil em social da escrita, história da América espanhola e genas Mocobi. (Nota da IHU On-Line) 1681. Entre suas obras estão: Sermões, composto história indígena. Desenvolve suas pesquisas no 12 José Sánchez Labrador (1717-1798): natura- por 16 volumes que foram escritos entre 1699 âmbito da história da América colonial, privile- lista, filólogo e jesuíta ordenado em Córdoba em e 1748; História do Futuro (1718); Cartas (1735- giando a sociedade rio-platense e sua condição 1739. Atuou especialmente entre os Guarani na 1746), em três volumes; Defesa perante o tribunal de fronteira. Atualmente investiga as práticas le- região do rio Paraná-Paraguai e com os Mbaya do do Santo Ofício (1957), composto por dois volu- tradas no rio da Prata, especialmente o impacto norte - com quem fundou a redução de Nossa Se- mes. Confira a edição 244 da IHU On-Line, de da alfabetização nas reduções jesuítico-guaranis nhora de Belém, em 1760. (Nota da IHU On-Line) 19-11-2007, Antônio Vieira. Imperador da língua e a apropriação da escrita pelos indígenas. (Nota 13 Pedro Lozano (1697-1752): padre jesuíta, et- portuguesa, disponível em http://bit.ly/ihuon244. da IHU On-Line) nógrafo e historiador. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE o que prevaleceu foi uma tentativa denam o parentesco sofreram altera- a história com uma limitação im- de compreensão mútua e uma hábil ções. Junto a isso, o que é necessário posta pela própria constituição do subversão, por parte dos nativos, dos investigar em maior profundidade, corpo documental, mas as chaves interesses missionários. e esta é uma das linhas de pesquisa para poder avançar neste processo que estou levando adiante, é como estão dentro dos mesmos escritos Os sacerdotes, como consequência todas essas alterações impactaram que fazem um esforço considerável da redução dos grupos nativos em no que podemos chamar, grosso para dar conta da diligência jesuíti- missões, permitiram algumas prá- modo, como normas jurídicas. A ca em solo americano. Se a escrita se ticas sociais que não estavam em move pela ausência, como propõe de flagrante contradição com os prin- transformação exercida sobre o es- Certeau15, então questionemos como cípios doutrinários que queriam paço, concebida a partir da presença essa ausência foi construída. impor. Substituir algumas práticas jesuítica, seja por novas formas de sociais nativas por algumas aceitas residência incentivadas, assim como pela capacidade de acessar merca- pelo ideal que motivava a conversão IHU On-Line – Quais os maio- – como por exemplo o consumo de dos coloniais com a conivência dos missionários, ao mesmo tempo que res desafios para preservação erva-mate nas reduções de Chaco da cultura e de formas de vida se pretendia controlar os impulsos com a finalidade de estabelecer limi- de povos originários hoje? E guerreiros daquelas sociedades, é tes para as sessões de bebidas deno- como os missionários jesuítas um dos principais pontos sobre os minadas como juntas e borrachei- se atualizam acerca desses no- quais se construiu aquela ‘nova’ re- ras – se apresentou não como uma vos desafios? forma de expor o catecismo e tentar lação social que se identifica pelos que os grupos nativos vissem no sa- cacicados no século XVIII. Carlos D. Paz – A Companhia cerdote um possível aliado de alguns de Jesus foi constituída como um setores da política nativa se não que, Missionários e autoridades dispositivo de poder portador do por outro lado, apresentou-se como espirituais que poderíamos denominar de uma uma forma lenta, gradual e progres- forte potencialidade gravitacional. É Merece especial menção a relação siva de gerar algumas mudanças, muito difícil poder mergulhar além estabelecida entre missionários e tanto na organização política, bem do conhecimento construído e san- as autoridades espirituais nativas. 13 como em ritualidades que expressa- cionado a partir do corpo documen- É bem conhecida a discussão sobre vam uma sanção sobre ditas formas tal elaborado pelos jesuítas. Seus como os sacerdotes encontraram políticas. Talvez a mais importante escritos parecem dar conta de todos delas seja o processo instaurado pe- oposição de parte dos nativos res- os aspectos relevantes da vida social los jesuítas para promover a geração ponsáveis ​​pela administração da dos nativos, tanto no que diz respei- de novas posições de prestígio, que comunicação com o que poderíamos to à materialidade quanto à imate- derivaram na formação de caciques chamar de sensorial ou extraterrena. rialidade e sua relação com os donos em sociedades onde já havia posi- Os xamãs se constituíram em um tutelares metafísicos das espécies ções de privilégio, mas não como lu- setor crítico da política jesuítica de –metafísicos a partir de nossa con- gares sociais diferenciados do resto imposição de uma nova Fé, assim cepção – assim como os arquétipos da comunidade. como suas novas práticas religio- de certas práticas sociais que forne- sas. Ainda mais quando os inacianos ciam sustento para as comunidades Uma análise de longo prazo que começaram a mostrar um interesse como tal. parta por analisar a incidência da que pretendia sistematizar o conhe- No entanto, devemos colocar em política jesuítica no surgimento de cimento médico-botânico dos povos nossas agendas de discussão, como líderes aglutinantes, que foram ma- indígenas. nipulando o papel do cacique até primeiro ponto, a necessidade de transformá-lo em hereditário – tal No entanto, isso não se aplica a escapar do ‘Sequestro da Memória’ como sucedeu em algumas das re- toda a população nas reduções. Al- que a Companhia promoveu a partir duções de Chaco, obviamente, sem guns sujeitos viram no jesuíta uma das etnografias culturais que se tor- contar as destinadas aos Guarani – e nova potência – no sentido proposto pela antropologia amazonista – ca- 15 Michel de Certeau (1925-1986): foi um histo- ponderar até que ponto essa política riador, jesuita e erudito francês que se dedicou ao teve expressão em novas formas de paz de influenciar nos destinos da estudo da psicanálise, filosofia, e ciências sociais. Intelectual jesuíta é autor de inúmeras obras fun- apropriação do território e na gera- comunidade. Este novo poder não damentais sobre a religião, a história e o misti- cismo dos séculos XVI e XVII. O IHU publica re- ção de novas formas performativas gerou disputas internas no setor dos gularmente textos sobre Certau. Entre eles, Michel de expressão da singularidade de um xamãs? Se as chefias ameríndias ex- De Certeau, o pensador jesuíta citado pelo papa no seu discurso sobre a liberdade religiosa, publicada determinado grupo – as quais po- perimentaram alterações pela pre- nas Notícias do Dia de 28-9-2015, disponível em http://bit.ly/2elkzm7; Há 30 anos, a morte do je- demos qualificar como espacialida- sença jesuítica, é um pouco ingênuo suíta francês Michel De Certeau, “excitateur de la de – apresenta-se como necessário supor que algum processo de índo- pensée”, publicado nas Notícias do Dia de 11-1- 2016, disponível em http://bit.ly/2eciMRY; e De para investigar não apenas sobre as le semelhante não ocorresse entre Certeau, um “sujeito de inquietação verdadeira”, publicado nas Notícias do Dia de 12-1-2016, dis- transformações na organização nati- os xamãs. Obviamente que aqui, e ponível em http://bit.ly/2e0GBjw. (Nota da IHU va, mas também se as regras que or- para as suas indagações, contamos On-Line)

EDIÇÃO 510 ENTREVISTA

naram fontes modulares. Esta ideia maior risco para a sobrevivência de ativos com plena consciência do seu de Sequestro da memória, como já suas culturas são as políticas de Es- ser-nativo. Um ser que surge não havia mencionado, é uma formula- tado-nação que avançam sobre eles como uma tipologia ideal, mas que ção que estamos desenvolvendo jun- sem a menor hesitação. não se posiciona e se define a partir to a Artur Barcelos (FURG) e Edu- da ação. Processo onde a comunida- ardo Neumann (UFRGS), tentando de possui um lugar prioritário. explicar a necessidade de desviar a IHU On-Line – Como as ex- nossa atenção daquilo que foi signi- periências de resistência e re- ficativo para mostrar para a Compa- belião indígenas latino-ameri- IHU On-Line – De que forma nhia. Aspectos sobre os quais houve canas podem contribuir para o pensamento colonialista, pre- uma especial ênfase na construção a preservação das culturas sente nos séculos XVI e XVIII, de suas obras, sobretudo aquelas re- originais? se atualiza hoje na política de digidas após a Expulsão dos jesuítas Carlos D. Paz – Todas as formas governos latino-americanos, dos domínios americanos. de resistência e rebelião contra uma essencialmente na relação com Nesses trabalhos é possível identi- ordem que tenta desarticular formas povos indígenas? ficar um index de problemas como o de organização que se apresentam Carlos D. Paz – O pensamento caráter dos nativos, suas ideias reli- como dissonantes apresentam para colonialista do século XVI, e inclu- giosas, suas formas parentais, suas o historiador, seja aquela pessoa in- sive o do século XVIII, sobrevive de formas econômicas e comporta- serida na vida acadêmica que rege uma maneira notável em boa parte mentos políticos, mas sempre apre- as universidades ou aqueles histo- das sociedades americanas e seus sentados a partir dos interesses da riadores nativos – que certamente governos. A primeira manifestação evangelização e em uma chave lau- existem e necessitam de uma maior é apresentar os índios como um ser datória dos missionários elevados à visibilidade, reconhecimento e di- exótico; uma pessoa que discrimina categoria de ‘ilustres’ pela qualidade álogo de nossa parte – , uma exce- de forma positiva apresentando-o, lente oportunidade para conhecer protoetnográfica de seus escritos. É em muitas ocasiões, como um re- até que ponto as reivindicações que necessário nos distanciar dessa guia flexo daquele ‘bom selvagem’ das estão presentes iluminam aspectos preconcebida de problemas para crônicas que, tais como as de Mon- 14 de um passado nativo que é consi- investigar fortemente como foi re- tesquieu16 ou Rousseau17, preten- derado relevante pelos sujeitos que alizada a evangelização e como os diam construir uma argumentação realizam a manifestação que retorna nativos a foram transformando des- em que o nativo tinha uma clara in- de os seus primórdios, em 1609, no a visibilizá-los como sujeitos politi- tencionalidade argumentativa, mas Paraguai, até a expulsão dos jesuítas camente ativos – um aspecto que em onde ele não detinha o lugar central dos domínios espanhóis, em 1767. muitas ocasiões parece esquecido da cena. Um exemplo disso é quan- Esse é um desafio para a preservação nas construções históricas que povo- do, certamente em vozes bem-in- da cultura dos povos nativos hoje. O am o senso comum das pessoas. tencionadas, apresentam-nos como olhar jesuíta é inegavelmente atra- A resistência e rebelião, portanto, guardiões imemoriais das tradições ente, mas não é o único. são instâncias em que a maquina- ancestrais, esquecendo claramente Nos que diz respeito aos desafios ria da memória indígena é ativada que as tradições, apesar de serem para preservar a cultura indígena, dando passagem para a apresenta- ancestrais, experimentam transfor- com relação aos historiadores, esti- ção de características de sua própria mações e acomodações que em mui- mo que o maior destes desafios surge história que são consideradas cen- tas ocasiões permitem dar conta dos não só do aprendizado da língua de trais como agentes dinamizadores processos políticos que existem nos cada grupo, mas que também temos que permitem alcançar o êxito do de pesquisar mais sobre as noções de projeto político em andamento. O 16 Barão de Montesquieu (Charles-Louis de Se- condat, 1689-1755): político, filósofo e escritor corpo e pessoa dos nativos na época resgate das línguas, a execução de francês. Ficou famoso por sua Teoria da Sepa- em que se desenvolveram as ações formas performativas como a dan- ração dos poderes, atualmente consagrada em muitas das modernas constituições nacionais. Sua missionárias – e neste ponto deve- ça com suas respectivas vestimentas obra mais famosa é O espírito das leis. (Nota da IHU On-Line) mos pedir o auxílio de antropólogos e objetos destinados a cada ocasião 17 Jean Jacques Rousseau (1712-1778): filóso- que, especialmente no Brasil, têm por sua significação ou a oratória são fo franco-suíço, escritor, teórico político e com- positor musical autodidata. Uma das figuras desenvolvido um trabalho louvável. manifestações que não só mostram marcantes do Iluminismo francês, é também um precursor do romantismo. As ideias iluministas de Além disso, é necessário nos per- a comunidade ‘para fora’, mas que Rousseau, Montesquieu e Diderot, que defendiam guntarmos mais sobre as noções de fazem com que a mesma comunida- a igualdade de todos perante a lei, a tolerância religiosa e a livre expressão do pensamento, temporalidade dos grupos indígenas de se ressignifique como tal. A ideia influenciaram a Revolução Francesa. Contra a sociedade de ordens e de privilégios do Antigo e como eles dialogaram com uma de originalidade, então, é resgatada Regime, os iluministas sugeriam um governo mo- ideia e prática de tempo própria do pelas mesmas comunidades nativas nárquico ou republicano, constitucional e parla- mentar. Sobre esse pensador, confira a edição 415 Ocidente. Paradoxalmente, a Histó- como uma pretensão de futuro; um da IHU On-Line, de 22-4-2013, intitulada Somos condenados a viver em sociedade? As contribuições ria deixou de refletir sobre o tempo. verdadeiro exercício de dinâmica de Rousseau à modernidade política, disponível No que diz respeito aos nativos, o política que mostra aos indígenas em http://bit.ly/ihuon415. (Nota da IHU On-Line)

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE bastidores da própria religião. Essa ticas como a agricultura familiar, o Deve-se assinalar que uma educação ideia de ancestralidade que está as- que gera um claro impacto no solo. intercultural verdadeira implicaria sociada a espiritualidades propicia- Neste sentido, o que continua sem que aqueles que não são indígenas tórias de certas formas rituais para ser compreendido é a importância aprendessem não apenas a sua lín- alcançar unidade com a Terra e com que a Terra possui para as popula- gua, mas também os seus principais o Cosmos em geral – formas pró- ções nativas. Assim o saque conti- filósofos, matemáticos, botânicos, prias de difusão de ideias de indiani- nua, mas com formas rejuvenesci- médicos etc., não ministrados sob dade vinculadas com posturas new das que se apresentam como menos nosso sistema educacional, mas a age – para assim conseguir alcançar violentas, mas que estão conduzin- partir de sua maneira de conceber a a calma espiritual, em alguns casos, do os povos nativos a uma encruzi- Humanidade. O que, por extensão, está causando um sério prejuízo às lhada de difícil resolução. nos conduziria a re-pensar a forma, comunidades nativas. as funções e as atribuições do Esta- Papel de governo do. Um debate que excede o objetivo A grande afluência de turismo desta entrevista. ‘espiritual’ a Tiwanaku18 está de- No que concerne claramente às gradando o meio devido à enorme ações governamentais, é necessário quantidade de poluição gerada pela enfatizar que a terra que os grupos IHU On-Line – Deseja acres- participação maciça de público. O nativos reclamam é o objeto cen- centar algo? mesmo acontece em Machu Picchu, tral do conflito entre comunidades Carlos D. Paz – Gostaria de onde a degradação ambiental está indígenas e os Estados-nação. Por agradecer pelo espaço fornecido começando a ser sentida. Na Puna mais que constitucionalmente se para discutir as implicações do ci- argentina, parte deste movimento reconheça o direito à terra por par- nema e sua relação com a chamada tenta resgatar certas práticas an- te dos nativos, os ataques sobre eles História Pública, tomando neste cestrais, promovendo o consumo de não cessam. Aqui é preciso sermos caso a significação do filme Silên- incensos para o desenvolvimento de claros. Em tais ataques, a violência cio. Especialmente pela necessida- certas ritualidades, o que está pro- armada só cresce, cobrando vidas de, como historiadores, de fornecer vocando que algumas espécies de indígenas. O que é um enorme retro- chaves que permitam remediar uma cesso. O direito espanhol do século plantas com propriedades aromáti- crescente falta de leitura de livros 15 XVIII concebia os grupos indígenas cas, com as quais tais incensos são de História produzidos por historia- como nações, de segundo grau, ali- produzidos, comecem a apresentar dores e um apelo cada vez maior a ás, mas com determinados direitos uma diminuição em suas popula- outras formas de narrativa e conhe- que os amparavam. Hoje isso já não ções. Outro exemplo claro disso é a cimento histórico. Cada linguagem acontece mais. forma em que o mal-afamado, mas tem a sua estrutura e sentido, as- demasiadamente promovido, turis- Um segundo ponto que deve ser sim como cada forma comunicacio- mo ‘étnico’ está acabando com prá- assinalado é que nos programas nal tem a sua intencionalidade. Se, de educação da maioria dos níveis como historiadores, podemos expor 18 Tiwanaku: é um importante sítio arqueoló- gico pré-colombiano situado próximo à mar- – pelo menos na Argentina – as algumas chaves para o debate e des- gem sudeste do lago Titicaca, no município de Tiahuanaco, na província de Ingavi, no departa- populações indígenas ocupam um pertar o interesse pela história na mento de La Paz, na Bolívia, cerca de 72 quilô- lugar insignificante nos planos de comunidade em geral, tentando es- metros a oeste de La Paz. Estudiosos das culturas andinas classificam esta civilização como os mais educação e o escasso espaço com clarecer os processos históricos sem importantes precursores do império Inca, flores- cendo como a capital administrativa e ritualística que contam os apresenta seguindo canonizar versões do passado, te- de um grande poder regional por mais de cinco esquemas culturalistas onde se man- mos avançado de forma significati- séculos. O primeiro europeu a registrar a exis- tência do sítio foi o conquistador espanhol Pedro tém uma certa estirpe evolucionista. va sobre a deterioração da educação Cieza de León. León deparou-se com os restos A educação intercultural simples- pública, bem como sobre a perda do de Tiwanaku em 1549 enquanto buscava Colla- suyo. (Nota da IHU On-Line) mente não tem a menor presença. gosto e da paixão pela leitura.■

Leia mais

- O Instituto Humanitas Unisinos – IHU publicou um Medium, O avassalador Silêncio de Scorsese, reunindo diversos textos que publicou em seu sítio acerca do filme O Silêncio. Acesse em http://bit.ly/2glSPjK . - A paixão de Scorsese. Artigo de Fernando Del Corona, publicado na revista IHU On-Line número 501, de 27-3-2017, disponível em http://bit.ly/2wV3Raz .

EDIÇÃO 510 ENTREVISTA

Os sírios romperam o muro do medo e não voltarão atrás Riccardo Cristiano recorda o desaparecimento de Paolo Dall’Oglio e reflete sobre as diferenças entre ocidente e oriente

João Vitor Santos; Patricia Fachin | Tradução: Moisés Sbardelotto

presença de Paolo na Síria, na mi- tos que ocorrem na Síria hoje e afirma nha opinião, foi percebida como que “o principal problema é que os sí- um desafio para aqueles que con- rios romperam o muro do medo e não Asideravam que podiam fazer dela um voltarão atrás. Assim, decidiu-se de- autodenominado Estado confessional portá-los do seu país. Nesse evento sem ou familiar. Era um desafio que, eviden- precedentes na história das relações temente, deve ter parecido intolerável, entre um povo e o seu governo, a inação também por causa do enorme consen- da comunidade internacional permitiu “so que a sua mensagem de unidade e o ingresso de outros problemas gigan- democracia madura, respeitosa das di- tescos: terrorismo, jihadismo, imperia- ferenças étnicas e religiosas, e de supe- lismos regionais opostos”. ração do ‘estado napoleônico’ repercutia Riccardo Cristiano é jornalista e 16 em todos os ambientes”, diz o presidente escritor italiano. É autor de Síria. L’Ul- da Associação de Jornalistas Amigos do timo genocídio (Castelvecchi, 2017). Padre Paolo Dall’Oglio, Riccardo Cris- Quem é Paolo Dall’Oglio? tiano, à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail. Jesuíta italiano, Dall’Oglio é conheci- Na avaliação de Cristiano, Dall’Oglio, do por ter restabelecido na Síria, na dé- que está desaparecido há quatro anos, cada de 1980, a comunidade monástica desde que retornou à Síria, “estava con- católica-siríaca de Mar Musa (mosteiro vencido de que podia haver um futuro de Saint Moses the Abyssinus), herdei- pluralista na Síria, porque o Islã sírio ra de uma tradição cenobítica e hermi- tem uma peculiaridade própria, é o Islã tica que remonta ao século VI. O mos- do Levante, aquele que soube encontrar teiro, localizado no deserto ao norte de nada menos do que duas vezes o caminho Damasco, também acolhe membros da da democracia consensual no Líbano”. religião ortodoxa. Entretanto, adverte, “se deixarmos que Paolo Dall’Oglio está fortemente en- toda a liderança iluminada sunita seja volvido no diálogo inter-religioso com assassinada impunemente, não é difícil o mundo islâmico. Foi ameaçado de ex- imaginar com quem nos encontraremos pulsão por seu ativismo durante os pro- dialogando. Além disso, constatado o testos populares em 2011. O decreto de fracasso dos métodos usuais de “tortura deportação não foi inicialmente imple- preventiva” para reprimir a demanda de mentado, pois houve um acordo com as liberdade, cumpre-se a opção-Pinochet, autoridades sírias no qual o jesuíta teve internando um país, e, fracassada tam- que manter um “perfil discreto”. Ele foi bém esta, escolhe-se a opção-Sansão, obrigado a abster-se de se expressar destruindo cidades inteiras sobre a ca- publicamente sobre a situação política beça dos seus habitantes. Os fatores que do país. Em 12 de junho de 2012 foi ex- impediram a liberdade e a democracia e pulso da Síria, quando se mudou para deram impulso a esse terrorismo obsce- Sulaymanya, Kurdistão. no parecem evidentes”. Em 2013, Dall’Oglio retornou ao nor- Na entrevista a seguir, o jornalista te Sírio controlado por rebeldes, onde também comenta brevemente os confli- estava envolvido em negociações difí-

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE

ceis para a libertação de um grupo de mistas islâmicos perto de Al Qaeda. reféns em Raqqa. Como ele estava na Em 12 de agosto de 2013, um site capital síria da Raqqa, tentou conciliar árabe espalhou a notícia de seu assas- as relações entre os grupos curdos e os sinato, que a ministra do Exterior da jihadistas árabes, com vistas à liber- Itália, Emma Bonino, não confirmou. tarção de um grupo de reféns na par- Desde então, não se tem mais notícias te oriental do país, suas faixas foram perdidas. Em 29 de julho de 2013, ele do religioso. foi sequestrado por um grupo de extre- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as para entender a relação entre essas como eleitos de amanhã. Uma peça questões-chave do livro Paolo duas datas, a de chegada e a de par- fundamental da teologia dos pobres Dall’Oglio, la profezia messa a tida, a data da sua expulsão, é a des- do papa Francisco. tacere? truição feroz, total, indiscriminada e IHU On-Line – Qual era a re- absoluta. Antes, de uma cidade, de- Riccardo Cristiano – O livro1 lação ou a posição de Dall’Oglio pois, de um país. procura reconstruir a sua história sobre o regime de Assad, na Sí- humana, espiritual e cultural. O seu ria, e como era sua relação com amor pela Síria e o amor dos sírios IHU On-Line – Quais você di- os grupos islamitas? Pode nos por ele, o seu grandíssimo papel no ria que são hoje os principais contar como se deu a aproxi- mação dele com o regime? e pelo diálogo, na revolução não vio- problemas e conflitos da Síria? lenta e democrática que ele viu nas- Riccardo Cristiano – É ele mes- Riccardo Cristiano – O princi- cer e buscou acompanhar até pôr em mo quem conta, dizendo que era pal problema é que os sírios rompe- 17 jogo, conscientemente, a sua própria evidente a intenção de usar os vis- ram o muro do medo e não voltarão vida. Há testemunhos jornalísticos e tos para estabelecer uma relação de atrás. Assim, decidiu-se deportá-los reconstruções de grandes intelectu- “aliança” com as hierarquias eclesi- do seu país. Nesse evento sem prece- ais, não apenas italianos, não apenas ásticas. Mas Paolo foi oferecer um dentes na história das relações entre cristãos e muçulmanos, de grandes serviço, ouviu o seu chamado naque- um povo e o seu governo, a inação estudiosos, para entender o que ele la fronteira e esperou o seu rebanho. ofereceu. E, entre essas duas partes, da comunidade internacional permi- uma seleção das suas contribuições tiu o ingresso de outros problemas para a revista jesuíta Popoli2, com a gigantescos: terrorismo, jihadismo, IHU On-Line – Pode nos con- qual ele colaborou durante anos. imperialismos regionais opostos. tar como foi o episódio em que Dall’Oglio foi expulso da Síria

IHU On-Line – Qual era o con- e como se deu seu retorno ao IHU On-Line – O que é e como texto político da Síria na déca- país em 2013? da de 1980, quando Dall’Oglio funciona a comunidade inter chegou ao país? Que relações -religiosa de Deir Mar Musa Riccardo Cristiano – Ele tinha é possível estabelecer entre al-Habashi, na Síria, fundada aceitado o pedido de silêncio impos- aquele e o atual momento polí- por Dall’Oglio? E qual foi seu to pelo regime sírio. Mas, quando o tico do país? Ainda nesse senti- objetivo com o mosteiro de São plano de Kofi Annan reconheceu o do, pode nos contar sobre a tra- Moisés, o Abissínio, no deserto direito à livre expressão crítica, ele jetória e a missão de Dall’Oglio ao norte de Damasco? tomou para si aquele direito reco- na Síria ao longo desses anos? nhecido. Mas o governo de Damasco Riccardo Cristiano – É uma acreditava que, ao fazer isso, Paolo Riccardo Cristiano – Era um flor no gramado do diálogo. Uma tinha violado o compromisso ao si- momento dramático. O massacre de comunidade de monges e monjas, lêncio. Não renovou a sua autoriza- Hama tinha acontecido recentemen- não apenas católicos, que vivem em ção de residência e pediu ao seu bis- te quando Paolo descobriu o mostei- diálogo e no diálogo cotidiano, hu- po que o convencesse a deixar o país. ro de Mar Musa. O melhor símbolo mano, factual, espiritual, vital com os muçulmanos. O nosso futuro é 1 CRISTIANO, Rcicardo. Paolo Dall’Oglio, la pro- juntos, ou não temos futuro, dizia IHU On-Line – Alguns ativis- fezia messa a tacere. (Milão: San Paolo Edizioni, 2017). (Nota da IHU On-Line) Paolo. E ele começou a construir tas dizem que Dall’Oglio havia 2 Popoli é a revista internacional dos jesuítas ita- também uma hermenêutica dos tex- lianos. Fundada em 1915, hoje é publicada em agendado um encontro com Milão. (Nota da IHU On-Line) tos sagrados baseada nos excluídos, Abu Bakr Al Baghdadi, chefe

EDIÇÃO 510 ENTREVISTA

do “Estado Islâmico do Iraque IHU On-Line – Muitos dizem Riccardo Cristiano – Nós não nos e do Levante”, para discutir a que Dall’Oglio acreditava na ocupamos com investigações e não libertação de sequestrados e a possibilidade de construir uma acreditamos que seja oportuno fazê-lo. sempre mais difícil convivên- Síria livre, democrática, pluri- Observamos as reações sociais, muitas cia entre grupos e confissões na confessional. Que informações das quais consideramos inquietantes. região. Que informações você e memórias você tem sobre os A mensagem de Paolo é menos conhe- tem sobre esse encontro? Ele relatos dele acerca desse objeti- cida do que a da rede Voltaire, que vê de fato aconteceu? vo? Segundo ele, quais eram os complôs estadunidenses ou sionistas Riccardo Cristiano – O que fatores que impediam a liber- por toda a parte, chegando a desejar Paolo pedira ou pretendia fazer, eu dade e a democracia na Síria? que Idlib acabe logo com Aleppo. Mas não sei, e acho que nenhuma das re- Riccardo Cristiano – É claro, ele as palavras do papa Francisco e do pre- 3 construções que circulam tampouco estava convencido de que podia haver sidente [italiano] Mattarella chama- saibam. Também não tenho certeza um futuro pluralista na Síria, porque ram a atenção para o testemunho de de que ele foi capturado enquanto o Islã sírio tem uma peculiaridade Paolo, que ofereceu a vida, não as es- estava sozinho diante do tétrico pa- própria, é o Islã do Levante, aquele peculações escritas na própria casa [na lácio do ISIS. Outros estiveram lá que soube encontrar nada menos do Itália], para salvar a paz, a dignidade e sozinhos, até mesmo protestando, e que duas vezes o caminho da demo- a categoria de “bem comum”. voltaram para casa. cracia consensual no Líbano. Mas,

se deixarmos que toda a liderança IHU On-Line – Como, na sua iluminada sunita seja assassinada IHU On-Line – Em que contex- avaliação, a comunidade inter- impunemente, não é difícil imaginar to político se deu o sequestro de nacional, especialmente a eu- com quem nos encontraremos dialo- Dall’Oglio na Síria? Como você gando. Além disso, constatado o fra- ropeia, tem lidado ou respon- compreende o sequestro dele? casso dos métodos usuais de “tortura dido aos conflitos existentes na Que notícias e informações tem preventiva” para reprimir a demanda Síria? Que questões de fundo, sobre o sequestro? de liberdade, cumpre-se a opção-Pi- políticas e de relações interna- cionais, estão em jogo no trata- 18 Riccardo Cristiano – A presença nochet, internando um país, e, fra- de Paolo na Síria, na minha opinião, cassada também esta, escolhe-se a mento desse caso? foi percebida como um desafio para opção-Sansão, destruindo cidades Riccardo Cristiano – Está em aqueles que consideravam que po- inteiras sobre a cabeça dos seus ha- jogo o futuro do Mediterrâneo, do diam fazer dela um autodenominado bitantes. Os fatores que impediram viver juntos, do cosmopolitismo. Es- Estado confessional ou familiar. Era a liberdade e a democracia e deram tamos no retorno de formas de paz um desafio que, evidentemente, deve impulso a esse terrorismo obsceno distantes, aquelas que impunham o ter parecido intolerável, também por parecem evidentes. “cuius regio eius religio”4. O corredor causa do enorme consenso que a sua buscado por Teerã para trazer de volta

mensagem de unidade e democracia os persas até o Mediterrâneo tem gos- IHU On-Line – Quais são os madura, respeitosa das diferenças to de vingança histórica contra Ale- órgãos que atualmente estão étnicas e religiosas, e de superação xandre Magno5. do “estado napoleônico” repercutia investigando o sequestro dele e em todos os ambientes. que informações eles fornecem sobre o caso? Que informa- IHU On-Line – Como vem sen- ções vocês obtiveram sobre ele

IHU On-Line – Há muitos ca- ao longo desses quatro anos, 3 Sergio Mattarella (1941): é um jurista e políti- sos de desaparecimento como o co italiano, eleito em 31 de janeiro de 2015 para desde o sequestro do padre o cargo de presidente da República Italiana. Foi de Dall’Oglio? Pode nos falar um Dall’Oglio? membro da Câmara dos Deputados entre 1983 e 2008 e teve vários mandatos de ministro. De 2011 pouco sobre alguns desses casos? e 2015 foi juiz Corte Constitucional. Mattarella é o Riccardo Cristiano – Nenhuma. primeiro siciliano a chegar à presidência do país, Riccardo Cristiano – Há o caso com atuação de combate à máfia. (Nota da IHU On-Line) muito conhecido e doloroso dos 4 Frase latina que significa literalmente “De quem dois bispos ortodoxos, por exem- IHU On-Line – Qual é a re- [é] a região, dele [se siga] a religião”, ou seja, os súditos seguem a religião do governante. Trata-se plo, também eles sequestrados, nos percussão do sequestro dele na de um princípio tão antigo como o Cristianismo de Estado, estabelecido na Arménia e no Império arredores de Aleppo, em circuns- Itália, especialmente no Vatica- Romano pelo imperador Constantino. (Nota da tâncias obscuras, com uma suces- no? Ainda nesse sentido, como IHU On-Line) 5 Alexandre III da Macedônia ou Alexandre são de rumores que duram há anos o governo italiano e o Vaticano o Grande ou Magno (356 a.C.-323 a.C.): foi um príncipe e rei da Macedônia, e um dos três filhos e que indicam como iminente, por têm atuado para obter infor- do rei Filipe II e de Olímpia do Épiro – uma fiel meio de fontes autorizadas, a liber- mações sobre Dall’Oglio? Que mística e ardente do deus grego Dioniso. Alexan- dre foi o mais célebre conquistador do mundo tação mediante o pagamento do notícias se têm na Itália sobre o antigo. Em sua juventude, teve como preceptor o filósofo Aristóteles. Tornou-se o rei aos vinte anos, resgate, que nunca chega. Somos desaparecimento de padre Pa- na sequência do assassinato do seu pai. (Nota da levados a pensar em despistagens. olo desde 29 de julho de 2013? IHU On-Line)

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE do a atuação de religiosos na Sí- feito é imenso. Não acho que haja ou- é para todos nós muito previsível. Anti- ria depois do desaparecimento tro mais importante. O recente con- gamente, alguns diziam “socialismo ou de Dall’Oglio? Como seu desa- gresso de al-Ahzar sobre a cidadania, barbárie”, já que o Estado sírio foi au- parecimento impactou ou vem que falou oficialmente de “ummah torizadamente definido, décadas atrás, impactando na missão de reli- geográfica”, isto é, de comunidades de “Estado bárbaro”. Eu acho oportuno giosos no país? de habitantes de um espaço que se falar de “direitos humanos ou barbá- autodeterminam com base em uma Riccardo Cristiano – Sobre rie”. E todos sabemos de que lado As- isso, seria preciso perguntar a eles. constituição compartilhada, é um sad7, ISIS8 e os pasdaran estão. ■ Certamente, a estima pelo núncio marco que deveria ser aprendido de cor, e não apagado do debate público. apostólico na Síria, o cardeal Zena- 7 Bashar Hafez al-Assad‎ (1965): é um político ri6, é enorme. E a sua nomeação ao sírio e o atual presidente de seu país e Secretário Geral do Partido Baath desde 17 de julho de 2000. Colégio Cardinalício é um sinal im- Sucedeu a seu pai, Hafez al-Assad, que governou IHU On-Line – Que relações portantíssimo, decisivo, para todo o por 30 anos até sua morte. Inicialmente visto pela estabelece entre o terrorismo comunidade nacional e internacional como um cristianismo oriental. potencial reformador, essas expectativas cessaram e o islamismo jihadista? Diria quando ele ordenou uma repressão em massa e cercos militares contra manifestantes pró-rebel- que a chamada “guerra ao ter- des em meio a uma guerra civil recente, descrito por alguns comentaristas como relacionados ao IHU On-Line – Como a pers- rorismo” criminaliza a cultura amplo movimento da “Primavera Árabe”. A gran- islâmica e que há uma pers- de parte da oposição doméstica sunita do país, os pectiva da religião, especial- Estados Unidos, Canadá, a União Europeia e os Es- mente a promoção do diálogo pectiva ocidentalizada na rea- tados membros da Liga Árabe, que posteriormen- te pediram a renúncia de al-Assad da presidência. inter-religioso, pode contribuir lidade dos conflitos da Síria de Ele pertence à seita minoritária alauita e seu go- hoje? Sim ou não e por quê? verno tem sido descrito como secular. (Nota da para dirimir os conflitos no IHU On-Line) país? E quais os seus limites? 8 Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL) Riccardo Cristiano – Franca- ou Estado Islâmico do Iraque e da Síria (EIIS): é uma organização jihadista islamita de orientação Riccardo Cristiano – Por que mente, hoje, eu vejo a hipótese de uma Wahhabita que opera majoritariamente no Orien- os cristãos estão na mira dos terro- Santa Aliança contra a Guerra Santa. te Médio. Também é conhecido pelos acrônimos na língua inglesa ISIS ou ISIL. Em 29 de junho de rismos, de grupos jihadistas e, às ve- É uma perspectiva que abrange alvos 2014, o grupo passou a se autointitular simples- mente “Estado Islâmico”. Um califado foi pro- zes, de aparatos? Porque são a carne políticos e pretensas hegemonias. A clamado, com Abu Bakr al-Baghdadi como seu macia do vasto corpo moderado, ilu- nossa associação não tem uma posição califa, ainda que sem o reconhecimento pela co- munidade internacional. O EIIL afirma autoridade 19 minado do Levante. O trabalho a ser definida sobre isso, mas eu considero religiosa sobre todos os muçulmanos do mundo e aspira tomar o controle de muitas outras regiões que a geopolítica da misericórdia do de maioria islâmica, a começar pelo território da 6 Mario Zenari (1946): é um arcebispo católico, papa Bergoglio, que rejeita dar paten- região do Levante, que inclui Jordânia, Israel, Pa- atual núncio apostólico na Síria. (Nota da IHU lestina, Líbano, Chipre e Hatay, uma área no sul da On-Line) tes a priori de bondade e de maldade, Turquia. (Nota da IHU On-Line)

Leia mais

- Síria, a esperança “combativa” de Paolo Dall’Oglio. Artigo de Federico Lombardi, publi- cado nas Notícias do Dia de 2-6-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dispo- nível em http://bit.ly/2w8odtN - Paolo Dall’Oglio, ‘símbolo do diálogo entre as religiões’. A declaração de Sergio Matta- rella, presidente da Itália, reproduzida nas Notícias do Dia de 31-7-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2iuOFdF. - Paolo Dall´Oglio: o monge cristão enamorado do Islã. Artigo de Faustino Teixeira, pro- fessor e pesquisador do PPCIR-UFJF, publicado nas Notícias do Dia de 31-7-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2wK5Xt3. - “Sonhem a Síria livre”: as últimas palavras do padre Paolo Dall’Oglio. Reportagem pu- blicada por La Repubblica e reproduzida nas Notícias do Dia de 28-7-2017, no sítio do Insti- tuto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2w1JQgF. - Após quatro anos a mensagem do Padre Paolo Dall’Oglio é mais forte do que nunca. Reportagem publicada por Huffington Post e reproduzida nas Notícias do Dia de 28-7-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2vaqAz6. - Dall’Oglio: a comunidade de Mar Musa ainda espera. Reportagem publicada por La Repubblica e reproduzida nas Notícias do Dia de 28-7-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2wrH4mb.

EDIÇÃO 510 ARTIGO

Mulheres na ciência: há equidade de sexo?

Maria Augusta Maturana

pesar de alguns progressos alcançados, em pleno sé- culo XXI eloquentes indicadores demonstram que a ciência permanece institucionalmente sexista”, es- Acreve Maria Augusta Maturana. A médica e pesquisadora ainda destaca que “embora um número crescente de mu- lheres estejam se matriculando nas universidades e em cur- sos de pós-graduação, poucas permanecem nas carreiras científicas”. E conclui: “O acesso à educação não é em si a “resolução das inequidades de sexo na ciência. São necessá- rias políticas que entendam e trabalhem este fenômeno e mecanismos propulsores de equidade de sexo em todas as instâncias da esfera acadêmica e científica”. Maria Augusta Maturana é médica, professora da Es- 20 cola de Saúde da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, pesquisadora e docente no Programa de Pós- Graduação em Ciências da Saúde: Cardiologia, Fundação Universitária de Cardiologia, Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul. Eis o artigo.

Historicamente a ciência tem sido vista como uma atividade realizada por homens e, durante séculos, poucas mulheres tiveram papéis descritos na atividade científica. A mudança nesse qua- dro iniciou-se somente após a segunda metade do século XX, quando necessidades estratégicas e movimentos feministas de luta por igualdade de direitos permitiram às mulheres um aumento na escolaridade e o acesso à carreira científica, considerada até então como exclusivamente mas- culina. Entretanto, apesar de alguns progressos alcançados, em pleno século XXI – o vigésimo primeiro século da Era Cristã – eloquentes indicadores demonstram que a ciência permanece institucionalmente sexista. A tendência mais marcante da educação nas últimas duas ou três décadas tem sido o rápido aumento do nível de escolaridade do sexo feminino. Atualmente, na maioria dos países de renda alta e em muitos países de baixa renda, mais mulheres do que homens concluem a educação ter- ciária. De forma semelhante acontece no Brasil, onde dados demonstram ascendentes propor- ções na escolarização entre as mulheres, com superioridade na proporção feminina no ensino superior, e também nos cursos de pós-graduação. Da mesma forma, a proporção de mulheres que publicam artigos científicos – a principal mé- trica de avaliação na carreira acadêmica – cresceu 11% no Brasil nos últimos 20 anos. Atual- mente, as mulheres são responsáveis por quase a metade das publicações brasileiras – 49%, demonstram os resultados do relatório Gender in Global Research Landscape publicado pela Fundação Elsevier. Este estudo fez um levantamento da publicação acadêmica realizada em 11 países e na União Europeia em dois períodos: de 1996 a 2000 e de 2011 a 2015. Dados deste es-

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE

“Apesar de alguns progressos alcançados, em pleno século XXI eloquentes indicadores demonstram que a ciência permanece institucionalmente sexista”

tudo demonstraram, ainda, uma substancial variabilidade na proporção de mulheres cientistas, por países e especialmente por áreas, onde a proporção de sexo feminino foi melhor represen- tada nas Ciências da Vida e da Saúde. Nas áreas conhecidas pela sigla em inglês STEM (Science, Technology, Engineering, Mathematicas and Computer Science), a maior desigualdade de sexo em relação às carreiras e produção científica foi observada. De acordo com este estudo, publica- ções de áreas como ciências de computação e matemática têm mais do que 75% de homens na autoria dos trabalhos na maior parte dos países pesquisados. Tomados juntos, os dados demonstram o importante aumento na escolarização entre o sexo feminino e a crescente proporção de produção científica realizada por pesquisadoras. O fato intrigante, no entanto, é o de que embora um número crescente de mulheres estejam se matri- culando nas universidades e em cursos de pós-graduação, poucas permanecem nas carreiras científicas. Dados do relatório do Instituto de Estatística da Unesco, “Statistics on Women in Science”, demonstram que ainda hoje não mais que uma parcela de 30% dos pesquisadores do mundo são mulheres. 21 Mulheres demonstram maior propensão a abandonar a carreira científica do que homens com qualificações semelhantes. Como que por “passe de mágica”, as pesquisadoras vão sumindo ao longo da carreira científica. A esse fenômeno de evasão, estudiosos de gênero têm denominado “teto de vidro”, ou seja, um bloqueio invisível o qual as mulheres não conseguem quebrar para alcançar o topo. No Brasil, ao considerarmos os dados referentes às bolsas de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, destinadas aos pesqui- sadores que possuem doutorado, uma minoria de mulheres conquistam bolsa de produtividade 1A, a de maior prestígio científico no Brasil e considerada um marcador de excelência científica. Neste contexto, chamam ainda a atenção os dados do artigo publicado por Guedes e colabo- radores em 2015, que endossam a maior proporção de bolsistas de produtividade científica do sexo masculino em muitas áreas de conhecimento científico. Na publicação, os autores enfati- zam, ainda, o conhecido como “fenômeno de jovialização da ciência”, onde cientistas alcançam a excelência científica cada vez mais jovens, mas que favorece especialmente o sexo masculino. Ou seja, uma minoria feminina alcança a excelência acadêmica, e as que alcançam necessitam de um espaço de tempo maior para fazê-lo. Processos de socialização que atribuem papéis distintos de acordo com o sexo, e resultam em uma maior responsabilização doméstica às mulheres, podem explicar em parte as desigualdades de sexo observadas na ciência. Também o papel familiar, onde cumprir o exigente cronograma da pesquisa acadêmica pode parecer assustador tanto para as mães como para os pais. Mas escolhas familiares parecem pesar mais fortemente sobre os objetivos de carreira das mulheres. No entanto, outros fatores parecem de peso. Muitos especialistas dizem que um grande fator a produzir esta tendência para o abandono feminino da carreira científica seja a falta de modelos do sexo feminino em divisões superiores da academia para que pesquisadoras mais jovens pos- sam se espelhar e se sentir como “parte do sistema”. Da mesma forma, as posições desiguais de poder e mando onde cargos científicos e de liderança, como reitores, chefes de departamento e coordenadores de linhas de pesquisa, são ainda, em sua maioria, exercidos por homens podem também ser impulsores desta desigualdade. Ainda, não podemos deixar de considerar que a discriminação de gênero possa ser, sim, uma significante parte do problema.

EDIÇÃO 510 ARTIGO

O acesso à educação não é em si a resolução das inequidades de sexo na ciência. A escolarização é apenas uma parte do que deveria ser uma abordagem de formulação de políticas multidimen- sionais. Não existe uma solução simples. São necessárias políticas que entendam e trabalhem este fenômeno e mecanismos propulsores de equidade de sexo em todas as instâncias da esfera acadêmica e científica. Não podemos ver isso como algo dado e natural.■

Referências

• Elsevier Foundation. Gender in Global Research Landscape. Disponível em http://bit. ly/2wSQvvg. • Gary S. Becker, William H. J. Hubbard, and Kevin M. Murphy. Journal of Human Capital 2010 4:3, 203-241. • Grossi MGR, Borja SDBB, Lopes AM, Andalécio AML. As mulheres praticando ciência no Brasil. Rev Estud Fem 2016. Avaliable, disponível em http://bit.ly/2iIINOk. • Guarino CM & Borden V MH. Faculty Service Loads and Gender: Are Women Taking Care of the Academic Family? High Educ 2017. Disponível em http://bit.ly/2x5nb4h. • Guedes MCG, Azevedo N, Ferreira LO. A. A produtividade cientifica tem sexo? Cad Pagu 2015. Avaliable. Disponível em http://bit.ly/2gqez1K. • Hango DW. Gender differences in science, technology, engineering, mathematics and computer science (STEM) programs at university. Ottawa: Statistics Canada, 2013. • Instituto Nacional De Estudos E Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP, 2011. 22 Censo da Educação Superior 2010. 2011. Disponível em http://bit.ly/2wIjSQQ. • Lerbacl J & Hanson B. Journals invite too few women to referee. Nature. Avaliable. Dispo- nível em http://go.nature.com/2xMxQxS. • Leta J. As mulheres na ciência brasileira: crescimento, contrastes e um perfil de sucesso. Estudos Avançados 2003. Disponível em http://bit.ly/2vEyug3. • Just 30% of the world’s researchers are women. What’s the situation in your country? Unesco, disponível em http://bit.ly/2vs9q00.

Leia mais

- Hannah Arendt e Simone Weil - Duas mulheres que marcaram a Filosofia e a Política do século XX. Cadernos IHU em Formação, número 17, disponível em http://bit.ly/2sGPZhP. - Mulheres em movimento na contemporaneidade. Cadernos IHU em Formação, número 37, disponível em http://bit.ly/2sjfS4u. - Políticas públicas para as mulheres: uma conquista brasileira em debate. Revista IHU On-Line número 387, de 26-3-2012, disponível em http://bit.ly/2tvaFWM.

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE

23

EDIÇÃO 510 TEMA 01

TEMA DE CAPA

Crise do Rio Grande também é fruto do desprezo dos governantes pela cultura letrada Luís Augusto Fischer parte do colapso financeiro, mas vai além e aponta várias dificuldades pelas quais o estado atravessa

Vitor Necchi

uito se comenta sobre a grave uma amálgama muito potente, capaz de crise econômica que há déca- engendrar literatura, música, toda uma das assola o Rio Grande do Sul simbolização enfim, que está na base da eM que atingiu seu ápice na atualidade. O nossa disciplina e, antes dela, na reali- professor de literatura Luís Augusto Fis- dade empírica”, afirma Fischer. cher, atento observador do que se passa O professor, ao pensar sobre o gover- em terras gaúchas, parte do colapso fi- nador do estado e o prefeito de Porto nanceiro, mas vai além e aponta várias Alegre, manifesta que a desesperança crises pelas quais o estado atravessa. se mantém e faz uma provocação: “Con- “Tem a crise brasileira, que é nossa tam- vido o leitor a pensar no Sartori e no bém, na economia e na política. Tem a Marchezan e imaginar qualquer deles crise social, com violência para todo abrindo um livro culto, de qualquer ma- lado. [...] Tem a crise mais sutil do fim téria ou especialidade, que não seja um 24 das ilusões sobre o Mercosul e o papel manual de qualquer coisa. Impossível”. estratégico que o estado teria nele. Tem uma crise de autoestima”, apresenta. Luís Augusto Fischer é doutor, mestre e graduado em Letras pela Uni- Ao aprofundar sua leitura, dispara versidade Federal do Rio Grande do contra o governo: “Tem uma outra cri- Sul – UFRGS, onde leciona. É autor se de autoestima relativa ao governo do de vários livros, entre eles Dicionário estado, que é muito ruim, sem capaci- de porto-alegrês (Porto Alegre: L&PM dade de expor com clareza as variáveis da crise de financiamento da máquina Editores), Literatura gaúcha – Histó- pública e, ao que parece, sem vontade ria, formação e atualidade (Porto Ale- política de enfrentar essa crise de modo gre: Leitura XXI) e Inteligência com democrático e esclarecido”. Em entre- dor – ensaísta (Por- vista concedida por e-mail à IHU On to Alegre: Arquipélago Editorial). Fez a -Line, Fischer se espanta: “É crise que edição anotada de Contos gauchescos não acaba mais”. e Lendas do Sul (Porto Alegre: L&PM Editores), de Simões Lopes Neto, e de A mistura histórica dos elementos que Antônio Chimango (Caxias do Sul: Edi- constituíram a formação do Rio Gran- tora Belas Letras), de Amaro Juvenal. de do Sul – “fronteiras, afastamento e alijamento do centro de decisões, cons- A entrevista foi publicada em Notícias ciência aguda de ser algo distinto dos do Dia, 26-8-2017, no sítio do Instituto vizinhos, estância senhorial, a figura do Humanitas Unisinos – IHU, disponível gaúcho como um sujeito altivo e inde- em http://bit.ly/2vZcFXV. pendente, num país escravagista – deu Confira a entrevista.

IHU On-Line – Muito se fala estado vive e por quê? crise social, com violência para todo em crise no Rio Grande do Sul, Luís Augusto Fischer – Tem a lado, assassinatos e brigas entre para além da questão econômi- crise brasileira, que é nossa também, gangues que controlam o mundo das ca. Na sua leitura, quais crises o na economia e na política. Tem a drogas e do sistema prisional, coisas

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE

“Fico realmente pasmo de não termos conseguido fazer publicações e veículos (até mesmo digitais) com eco, até agora.”

que até pouco tempo pareciam não está generalizado no estado? dariedade social, que tinha também existir aqui. Tem a crise mais sutil do desdobramentos educacionais, inte- Luís Augusto Fischer – Não sei fim das ilusões sobre o Mercosul1 e lectuais, políticos etc. dizer por experiência própria, mas o papel estratégico que o estado su- talvez seja assim: as cidades do Rio lino teria nele, sonho que vem dos Grande do Sul, em geral, parecem anos 1990. Tem uma crise de auto- IHU On-Line – Que obras li- viver na mesma batida da capital, ao estima, que para os sulinos sempre terárias podem ajudar a com- menos no sentido de se verem pri- é uma dimensão importante em nos- preender o Rio Grande do Sul vadas de esperança para o futuro e sa ciclotimia, de muitos de nós nos e por quê? de segurança no presente, por exem- considerarmos ou muito melhores plo. Mas a letra dessa canção falava Luís Augusto Fischer – A lista ou muito piores do que o conjun- de voltar a Porto Alegre desde o Rio é imensa! No romance, se poderia to do Brasil (ou ao menos do que o de Janeiro, creio: era uma forma de mencionar autores que ajudam a en- centro político e econômico do país). dizer que a velha e boa província tender essas formações sociais, esses Tem uma outra crise de autoestima 2 25 mantinha condições de aconchegar tecidos a que me referi acima. Erico relativa ao governo do estado, que é os que haviam partido. Nem isso me [Verissimo] alcançou uma síntese muito ruim, sem capacidade de ex- parece que seja verdade, ao menos notável, naturalmente com suas li- por com clareza as variáveis da crise naquela visão anterior, de que o Rio mitações, em O tempo e o vento, que de financiamento da máquina públi- Grande do Sul se destacava por índi- dá um mapa do estado entre 1750 e ca e, ao que parece, sem vontade po- ces menores de violência cotidiana, 1950, mais ou menos, envolvendo lítica de enfrentar essa crise de modo mercê de um padrão de educação especialmente a estância antiga, com democrático e esclarecido, uma vez supostamente superior, ou mais seus braços urbanos (a vida social) e que prefere ações sem conversa, sem políticos (os quadros diretivos nasci- mediação com a opinião pública, enraizado etc. De fato, nosso esta- dos neste mundo), mas dando notí- atropeladamente. Putz, é crise que do desenvolveu, em muitas de suas cia das principais guerras em que o não acaba mais. regiões, especialmente onde houve colonização germânica e italiana (e Rio Grande do Sul esteve envolvido polaca), um padrão de vida social nesses 200 anos. Chega a registrar IHU On-Line – Na canção Deu muito orgânico, em que se via soli- a chegada dos germânicos e outros pra ti, Kleiton e Kledir dizem dariedade social nas pessoas e nas imigrantes, especialmente aqueles que, quando estavam de baixo instituições, isso tudo muitas vezes que foram para as cidades. astral, iam para Porto Alegre e mediado pelas instituições religio- O mundo da fronteira sul está mais era como se tudo se resolvesse. sas (cristãs em especial). Não quero claro em Cyro Martins3, autor que Nos últimos anos, adiantaria ir dizer que noutras regiões do estado para a capital? O baixo astral não não houvesse solidariedade, mas 2 Erico Verissimo (1905-1975): um dos mais im- portantes escritores brasileiros. Em 1932, o autor sim que nessas regiões havia uma publica uma coletânea de contos, Fantoche, sua 1 Mercado Comum do Sul (Mercosul): é uma extensa e intensa rede nesse sentido. estreia na literatura. Recebeu o Prêmio Machado organização intergovernamental fundada a partir de Assis, com Música ao Longe, e o Prêmio Graça do Tratado de Assunção de 1991. Estabelece uma Fico com o exemplo das caixas de so- Aranha, com Caminhos Cruzados. Integra o Se- integração inicialmente econômica, configurada gundo Tempo Modernista (1930-1940), período atualmente em uma união aduaneira, na qual corro e assistência mútua, que tanto em que a literatura brasileira refletiu os proble- há livre-comércio intrazona e política comercial fizeram pelo desenvolvimento social mas sociais do país. A obra de Erico costuma ser comum entre seus membros. Situados todos na dividida em três fases: Romance urbano; Romance América do Sul, são atualmente cinco membros no Vale do Sinos e arredores. Hoje, histórico e Romance político. Na segunda, encon- plenos. Em sua formação original, o bloco era também isso foi engolido, creio, pela tra-se o épico O tempo e o vento, trilogia (O Con- composto por Argentina, Brasil, Paraguai e Uru- tinente, O Retrato e O Arquipélago) que cobre 200 guai; mais tarde, a ele aderiu a Venezuela, que hegemonia dos grandes bancos. O anos da história do Rio Grande do Sul, de 1745 a está suspensa do bloco a partir de dezembro de 1945. (Nota da IHU On-Line) 2016. Há ainda cinco países associados (Chile, Rio Grande também entrou na roti- 3 Cyro Martins (1908-1995): escritor e psica- Bolívia, Colômbia, Equador e Peru) e dois obser- na das grandes corporações globais, nalista que fez parte do grupo dos romancistas vadores (Nova Zelândia e México). (Nota da IHU da chamada Geração de 30. Na literatura do Rio On-Line) o que enfraqueceu essa rede de soli- Grande do Sul, introduziu personagens gaúchos

EDIÇÃO 510 TEMA DE CAPA

hoje se lê com algum peso, por sua Tabajara Ruas7. Gosto muito do tra- Luís Augusto Fischer – Esse cos- voz narrativa um tanto didática, mas balho do Paulo Ribeiro8, por exem- tume tinha a ver com as gerações dos também com ganhos, porque seu plo, em Vitrola dos ausentes, que romancistas de grande fôlego, gente romance dá a ver aquele mundo de mostra ativamente, num romance como o Erico, o Cyro, e depois menos gente solitária, sejam os pobres ou experimental, a vida dos miseráveis talvez. Nunca pensei no caso, nem sei os ricos, gente em geral sem horizon- (sociais e mentais) das pequenas ci- se a tua pergunta tem toda a consis- te positivo algum. Josué Guimarães4 dades, no caso dele as serranas. Isso tência do mundo, mas me ocorre que nos dá um mapa muito vivo do mun- tudo falando apenas de narrativas esses eram os romancistas com a vo- do germânico inicial, no século 19, diretamente empenhadas na descri- cação e o desejo da totalidade social, em A ferro e fogo, romance com de- ção do mundo interiorano gaúcho gente que queria mesmo dar conta da feitos, mas com a grande virtude de — deixei de fora uma penca de gente sua sociedade e de seu tempo na nar- fluência. José Clemente Pozenato5 boa e ótima que se dedicou ao mundo rativa que escrevia. Faz já uns 20 ou segue sendo modelar para vermos o urbano, que por isso mesmo produz 30 anos que tal desejo, tal missão, tal mundo colonial italiano, como em O uma arte mais desmarcada, quer di- pretensão, saiu do horizonte dos es- quatrilho, aquela ética familiar es- zer, menos dependente das variáveis critores, que, por motivos compreen- trita, ligada ao trabalho, que contém locais para sua intelecção. E nem fa- síveis, mas não fatais, têm preferido o problemas os mais diversos, como lamos de poesia, que também mos- tiro curto, o relato de episódios mais em qualquer outra gente. tra coisas recônditas da vida — por tópicos, menos abrangentes, mesmo exemplo, as notas trágicas da poesia em romances de tamanho grande, Entre os que vieram a partir dos gauchesca do Aureliano de Figueire- como, digamos, o Daniel Galera10, anos 1970 e 1980, além do Pozenato, do Pinto9, um antibravateiro. excelente escritor da geração sub-40. há o vasto mundo do Luiz Antonio Será? Pode ser também que simples- de Assis Brasil6, que nos dá notícia mente os meios de comunicação mas- do mundo mental dos fazendeiros IHU On-Line – Escritores cos- sivos tenham desistido de perguntar, bem-sucedidos entre 1830 e 1930, tumavam ser chamados para se também… digamos. Há a reconstituição positi- manifestar sobre diversos te- va, algo apologética e épica, que faz mas, como se fossem especialis- Tem esse lado terrível da crise dos antigos meios, né? Quem assis- 26 tas de tudo. Isso ocorre com me- nos frequência, talvez se possa te a tevê aberta? Quem ouve rádio? influenciados por novos costumes. Sua estreia dizer que nem ocorra mais. Os Quem lê jornal? Não sabemos direi- foi com Campo Fora (1934). Suas obras mais im- to. Todo mundo, ou melhor, “todo portantes são Sem rumo (1937), Porteira fecha- autores eram superestimados da (1944) e Estrada nova (1954), que integram a ou perderam a capacidade de mundo” está na internet, que não Trilogia do gaúcho a pé, que apresenta o gaúcho do ambiente rural empobrecido a partir da indus- refletir sobre a realidade? pergunta nada para ninguém, mas trialização e concentração urbana. (Nota da IHU permite que todos falem. A voz da- On-Line) 4 Josué Guimarães (1921-1986): escritor e jorna- queles escritores modelares, suge- lista nascido no Rio Grande do Sul. Trabalhou em 7 Tabajara Ruas (1942): escritor e cineasta gaú- ridos na tua pergunta, dependia de jornais como Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil, cho. Além de se pautar na memória e na história Zero Hora e Correio do Povo. Cobriu a Revolu- local, sua obra também é fortemente marcada perguntas para se fazerem ouvir. ção dos Cravos, em Portugal, e as independências por sua própria memória e história pessoal, vivi- na África. Entre suas obras, destacam-se A ferro e da em parte na cidade fronteiriça de Uruguaiana, fogo 1 – Tempo de solidão (1972), A ferro e fogo separada da Argentina pelo rio Uruguai. É lá que 2 – Tempo de guerra(1975), Depois do último trem ambienta a novela Perseguição e cerco a Juvên- (1973), Os tambores silenciosos (1977), Dona Anja cio Gutierrez (Porto Alegre: Mercado Aberto), que IHU On-Line – O Rio Gran- (1978) e Camilo Mortágua (1980). (Nota da IHU lembra Crônica de uma morte anunciada (Rio de de do Sul tinha um sistema On-Line) Janeiro: Record), do colombiano Gabriel Garcia 5 José Clemente Pozenato (1938): escritor, tradu- Márquez. Escreveu o romance Neto perde sua literário peculiar e próprio, tor e professor nascido no Rio Grande do Sul. Pu- alma (Rio de Janeiro: Record), sobre a trajetória blicou diversos livros de crônica, poesia e ficção. do herói farroupilha Antônio de Souza Netto, par- envolvendo autores, editoras, Em suas obras, aborda o cenário e as tradições da ticipante de todas as revoluções ocorridas no sul livrarias e leitores. No curso região de colonização italiana no sul do Brasil. É o do Brasil no século 19. Esse romance inspirou um caso de seu livro mais conhecido, o romance his- filme homônimo que Tabajara dirigiu com Beto de Letras da UFRGS, até hoje é tórico O Quatrilho, que recebeu versão cinemato- Souza. (Nota da IHU On-Line) gráfica dirigida por Fábio Barreto e indicada para 8 Paulo Ribeiro (1960): escritor nascido no Rio mantida uma disciplina criada o Oscar. (Nota da IHU On-Line) Grande do Sul. É jornalista, mestre e doutor em por Guilhermino César, cha- 6 Luiz Antonio de Assis Brasil (1945): escritor e Letras. Publicou mais de dez livros. Seu romance professor nascido em Porto Alegre. É bacharel em de estreia, Glaucha, é de 1989. Com Vitrola dos mada Literatura Gaúcha. Esse Direito e doutor em Literatura pela PUCRS, onde ausentes (1993), venceu o Prêmio Henrique Ber- coordena a célebre Oficina de Criação Literária. taso de Narrativa Longa e a indicação da obra ao Foi músico da Orquetra Sinfônica de Porto Ale- Açorianos de Literatura. Outras obras: Valsa dos 10 Daniel Galera (1979): escritor nascido em São gre – OSPA e administrador cultural, participando Aparados (contos, 2000), Missa para Kardec (no- Paulo, mas criado em Porto Alegre. Publicou con- da implantação do Centro Municipal de Cultura vela, 2002). (Nota da IHU On-Line) tos e textos diversos na internet de 1996 a 2001, de Porto Alegre. Publicou vários livros, entre no- 9 Aureliano de Figueiredo Pinto (1898-1959): com destaque para os três anos como colunista velas e romances. Preferindo as narrativas longas, médico, jornalista, poeta, historiador e escritor do mailzine Cardosonline (COL). Seus dois primei- seus textos desenvolvem temáticas relacionadas nascido no Rio Grande do Sul. Fez os dois pri- ros livros foram lançados pelo selo independente à construção da identidade gaúcha. Sua obra é meiros anos de medicina, no Rio de Janeiro, mas Livros do Mal, criado em 2001 pelo autor, mais reconhecida pela crítica literária brasileira, servin- formou-se na Faculdade de Medicina de Porto Daniel Pellizzari e Guilherme Pilla. Traduz autores do de tema para abordagens acadêmicas em uni- Alegre, em 1931. Tomou parte ativa na Revolução de língua inglesa. Livros publicados: os romances versidades do país. Destacam-se: Bacia das Almas, de 1930, acompanhando como capitão-médico o Meia-Noite e Vinte (2016), Barba ensopada de As virtudes da casa, Cães da Província (Prêmio do primeiro piquete a entrar em Itararé. Publicou po- sangue (2012), Cordilheira (2008), Mãos de Cava- Instituto Nacional do Livro, 1988) e a série Um esias líricas e simbolistas na revista Kodak. Assina- lo (2006), Até o dia em que o cão morreu (origi- castelo no pampa, constituída pelos romances va suas obras com o pseudônimo Júlio Sérgio de nalmente pela Livros do Mal, 2003) – todos pela Perversas famílias, Pedra da memória e Os Senho- Castro ou J.S. de C. Livros publicados: Romances Companhia das Letras –, os contos Dentes Guar- res do Século. Por esta última obra, obteve o Prê- de estância e querência, Memórias de Coronel Fal- dados (Livros do Mal, 2001), e a HQ Cachalote, mio Açorianos da Prefeitura Municipal de Porto cão e Itinerário – Poemas de Cada Instante. (Nota com Rafael Coutinho (Quadrinhos na Cia, 2010). Alegre, em 1995. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE fenômeno ocorre em outros jamin14 e Theodor Adorno15, entre são “uma expressão espacial da re- estados? outros grandes pensadores) e era lação unitária entre dois vizinhos”, um heterodoxo, um pensador sem implicando “um estado de tensão Luís Augusto Fischer – Sim, sistema fechado, um ensaísta no em que defesa e ataque são laten- continua. Fui aluno da última tur- melhor sentido da palavra. Num en- tes e podem explodir” a qualquer ma para quem o Guilhermino11 le- saio chamado O espaço e as orga- momento. (Tradução minha apres- cionou essa disciplina, em 1978, nizações espaciais da sociedade, de sada, para trecho da p. 606 de So- quando ele completou seus 70 e 1908, há uma linda seção dedicada ciologia – Études sur les formes de se aposentou. De fato, é invenção à noção de fronteira, tema que ele socialisation, trad. do alemão por dele, e por muitos anos foi a única devia conhecer vivamente, por ser Lilyane D. Gurcel e Subylle Muler, em seu gênero (um recorte provin- de Estrasburgo, que pertenceu ao Paris, PUF, 1999.) cial) no Brasil. Creio que hoje em mundo alemão e depois passou para dia já se vê isso em outras provín- Essa sombra ocorreu unicamen- a França. A certa altura, ele faz uma cias, tive notícias disso, mas não te com o Rio Grande do Sul ao lon- distinção entre fronteiras naturais e acompanho o tema diretamente. go do tempo, desde o século 18: o fronteiras políticas (estas meramen- Em todo caso, a criação desse cur- tratado de Madrid16, de 1750, é um te convencionais, como as que acon- so faz sentido muito forte no Rio marco desse problema, ao haver tecem entre o Rio Grande do Sul e o Grande do Sul, não por vontade do determinado a posse portuguesa do Uruguai): “a consciência de ser, no Guilhermino, mas pelos fatos. Era território do que hoje chamamos de interior de fronteiras, não é talvez uma província afastada do centro, Sete Povos das Missões17, povoado tão aguda no caso de fronteiras ditas primeiro do Império Português e de indígenas guaranis e adminis- ‘naturais’ (montanhas, rios, mares, depois do Império Brasileiro (sim, trado por jesuítas espanhóis até en- desertos) quanto no caso de frontei- os dois eram impérios, com esse tão. Essa sombra é determinante do ras puramente políticas, que traçam nome!), e já por isso marcada por tão somente uma linha geométrica um sentimento de abandono. Mas 16 Tratado de Madrid: foi um tratado firmado na entre dois vizinhos”, motivo por que capital espanhola entre os reis João V de Portugal era também província de frontei- e Fernando VI de Espanha, em 13 de Janeiro de essas “fronteiras vivas”, que podem ra, o que conferiu ao estado uma 1750, para definir os limites entre as respectivas se alterar, são mais eficazes psiqui- colônias sul-americanas, pondo fim assim às dis- marca talvez única em todo o país, putas. O objetivo do tratado era substituir o Trata- camente, porque não engendram do Tordesilhas, o qual já não era mais respeitado a de ser obrigada a pensar sobre o 27 apenas uma “resistência passiva, na prática. Pelo tratado, ambas as partes reco- que era, sobre sua identidade, no nheciam ter violado o Tratado de Tordesilhas na mas também uma repulsão muito América e concordavam que, a partir de então, os cotidiano da vida de fronteira, que limites deste tratado se sobreporiam aos limites ativa”. Enfim, essas fronteiras vivas anteriores. As negociações basearam-se no cha- é o local histórico em que a cons- mado Mapa das Cortes, privilegiando a utilização de rios e montanhas para demarcação dos limi- ciência de pertencimento aparece, 14 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo alemão. tes. O diploma consagrou o princípio do direito obrigatoriamente. Foi refugiado judeu e, diante da perspectiva de ser privado romano do uti possidetis, ita possideatis capturado pelos nazistas, preferiu o suicídio. As- (quem possui de fato, deve possuir de direito), de- sociado à Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica, foi lineando os contornos aproximados do Brasil de Vou dar uma de acadêmico: cito fortemente inspirado tanto por autores marxistas, hoje. (Nota da IHU On-Line) o grande sociólogo Georg Simmel12 como Bertolt Brecht, como pelo místico judaico 17 Missões Jesuíticas ou Reduções Jesuíticas: Gershom Scholem. Conhecedor profundo da lín- simplificação da expressão Território dos Sete Po- (1858-1918), que foi um dos inven- gua e cultura francesas, traduziu para o alemão vos das Missões, que designa a região situada a importantes obras como Quadros parisienses, de noroeste do atual estado do Rio Grande do Sul, tores de sua disciplina (e influen- Charles Baudelaire, e Em busca do tempo perdido, na atual fronteira entre o Brasil e a Argentina, a ciou Goerg Lukács13, Walter Ben- de Marcel Proust. O seu trabalho, combinando leste do vale do Rio Uruguai. As missões jesuíticas ideias aparentemente antagônicas do idealismo tiveram grande importância histórica para todo o alemão, do materialismo dialético e do misticismo Brasil. O Tratado de Madrid estabeleceu limites judaico, constitui um contributo original para a te- entre territórios espanhóis e portugueses, e os 11 Guilhermino César (1908-1993); escritor, jor- oria estética. Entre as suas obras mais conhecidas, Sete Povos das Missões passaram a pertencer à nalista, professor e historiador nascido em Minas estão A obra de arte na era da sua reprodutibilida- Espanha, o que obrigaria os índios a mudarem-se Gerais. Aos 19 anos, em Cataguases, foi um dos de técnica (1936), Teses sobre o conceito de história para a outra banda do rio Uruguai. Esse foi um fundadores da Revista Verde, de caráter moder- (1940) e a monumental e inacabada Paris, capital dos motivos que determinaram a Guerra Guaraní- nista. Mudou-se para o Rio Grande do Sul, onde do século XIX, enquanto A tarefa do tradutor cons- tica, uma guerra que colocou os jesuítas, aliados tornou-se cronista e crítico literário do Correio do titui referência incontornável dos estudos literá- aos índios Guaranis, contra os exércitos dos países Povo. Foi chefe do gabinete do governo de Ernes- rios. Sobre Benjamin, confira a entrevista Walter ibéricos, marco da derrocada das povoações mis- to Dorneles, professor da UFRGS, ministro do Tri- Benjamin e o império do instante, concedida sioneiras. No Seminário Internacional A Globali- bunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul pelo filósofo espanhol José Antonio Zamora à zação e os Jesuítas: origens, história e impactos, e secretário da Fazenda. Foi também presidente IHU On-Line nº 313, disponível em http://bit.ly/ realizado em setembro de 2006 na Unisinos, os do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Gran- zamora313. (Nota da IHU On-Line) sete povos foram tema de inúmeros mini-cursos de do Sul. Atuou na dramaturgia como diretor de 15 Theodor Adorno (1903-1969): sociólogo, filó- e oficinas. Mais informações sobre as missões je- algumas peças de teatro na década de 1940. Foi sofo, musicólogo e compositor, definiu o perfil do suíticas podem ser obtidas nas edições da IHU escolhido patrono da Feira do Livro de Porto Ale- pensamento alemão das últimas décadas. Adorno On-Line 156, de 19 de setembro de 2005, intitu- gre em 1990. (Nota da IHU On-Line) ficou conhecido no mundo intelectual, em todos lada Essa terra tem dono, nós a recebemos de Deus 12 Georg Simmel (1858-1918): sociólogo alemão os países, em especial pelo seu clássico Dialética e de São Miguel, e 186, de 26 de junho de 2006, que desenvolveu o que ficou conhecido como do Iluminismo, escrito junto com Max Horkhei- Jesuítas. Quem são? Confira no site do IHU: em micro-sociologia, uma análise dos fenômenos no mer, primeiro diretor do Instituto de Pesquisa 17-9-2006, a entrevista A música nos sete povos nível micro da sociedade. Foi um dos responsáveis Social, que deu origem ao movimento de idéias das missões, com Décio Andriotti; em 3-8-2006, por criar a Sociologia na Alemanha, juntamente em filosofia e sociologia que conhecemos hoje os historiadores Beatriz Franzen e Alcy Cheuiche com Max Weber e Karl Marx. Escreveu, entre ou- como Escola de Frankfurt. Sobre Adorno, confira concederam os seguintes depoimentos, respecti- tros, Schopenhauer und Nietzsche (Leipzig: Dun- a entrevista concedida pelo filósofo Bruno Pucci vamente, Em absoluto posso aceitar a tese de que cker & Humblot, 1907). (Nota da IHU On-Line) à edição 386 da Revista IHU On-Line, intitulada uma teocracia estava se formando nas missões 13 Georg Lukács (György Lukács, 1885-1971): Ser autônomo não é apenas saber dominar bem as jesuíticas e Jornal Nacional das Missões Guaranis: filósofo húngaro, de grande importância no ce- tecnologias, disponível para download em http:// entre tapas e beijos. Outras entrevistas importan- nário intelectual do século 20. Em sua trajetória bit.ly/ihuon386. A conversa foi motivada pelo tes foram concedidas pelo irmão Antonio Cechin procurou refazer o percurso da filosofia clássica palestra Theodor Adorno e a frieza burguesa em em 23-2-2007, sob o título A utopia da terra sem alemã, inicialmente como crítico influenciado por tempos de tecnologias digitais, proferida por Pucci males, e por Edison Hüttner, O retorno do repicar Kant, depois Hegel e, finalmente, aderindo ao dentro da programação do Ciclo Filosofias da In- do Sino de São Miguel, em 22-4-2006. (Nota da marxismo. (Nota da IHU On-Line) tersubjetividade. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

EDIÇÃO 510 TEMA DE CAPA

modo como o Rio Grande do Sul se deve ser somado com a crise atual, Bensimon20 e Luísa Geisler21, entre compreende, desde então até agora, que já dura uns três anos, com baixa outros. mesmo passada a hegemonia eco- forte de vendas e tal. nômica e política dos estancieiros Mas isso não significa que não exis- fronteiriços, que por muitos cami- IHU On-Line – Há poucas bi- tam as locais, e mesmo algumas têm nhos foram, mentalmente, o berço, bliotecas públicas no Rio Gran- crescido a olhos vistos, como a Não a forja de símbolos identitários com de do Sul, não existe uma políti- Editora, que se está operando com força suficiente para permanecer até ca oficial para compra de livros muita força e visibilidade, pelo que agora por aqui. A mistura histórica e as escolas públicas estão em vejo. E há as pequenas, de escala lo- desses elementos — fronteiras, afas- situação precária, justamente cal mesmo, mas de ótima qualidade, tamento e alijamento do centro de em um estado que desde a Pri- que mantêm boa performance, sabe- decisões, consciência aguda de ser meira República era referência se lá com que fôlego, como a Libretos algo distinto dos vizinhos, estância em educação. Em Porto Alegre, e a Arquipélago, talvez a Movimen- senhorial, a figura do gaúcho como o prefeito ameaça um progra- to, que anunciou uma série de lan- um sujeito altivo e independente, ma bem-sucedido e elogiado çamentos há pouco, sem esquecer num país escravagista — deu uma como o Adote um Escritor. O o caso muito auspicioso da Besouro amálgama muito potente, capaz de que dizer deste quadro? Box, que parece ir muito bem, com engendrar literatura, música, toda uma seção ousada e inédita em seu Luís Augusto Fischer – Isso é uma simbolização enfim, que está catálogo, o de livros ligados ao mun- uma tristeza sem fim… Governantes na base da nossa disciplina e, antes do afro-brasileiro, inclusive religio- principais sem qualquer apreço pela dela, na realidade empírica. so. E há editoras de serviço, que têm cultura letrada, mesmo que contem catálogo próprio, mas trabalham por com secretários gente boa, resultam encomenda também, com boa saú- nisso, nesse quadro. Convido o lei- 22 “É crise que não de, ao que parece, como a AGE. tor a pensar no [José Ivo] Sartori e Não chegou o apocalipse total, ain- teratura com o livro de contos Ainda orangotan- gos, adaptado para o cinema por Gustavo Spoli- acaba mais.” da, embora tenha havido uma infle- doro. Em 2005, publicou o romance Voláteis. Em 28 xão forte do mercado. Isso tudo se 2010, foi contemplado com a Bolsa Petrobras de Criação Literária para conclusão do romance Ha- combina com outro vetor, a saber, o bitante irreal, lançado no final de 2011 (livro ven- cedor do Prêmio da Fundação Biblioteca Nacional IHU On-Line – O que aconte- fato de que essa era da comunicação 2012). Seu romance Ithaca Road faz parte do pro- imediata, internet mais smartphone jeto Amores Expressos, realizado pela RT Featu- ceu com as editoras gaúchas, res e pela Companhia das Letras, que o levou a que décadas atrás tinham ex- etc., deu visibilidade e trânsito mui- Sydney, na Austrália, em 2008. Em 2014, lançou o livro de poesias Mesmo sem dinheiro comprei um pressão e nomes importantes to maiores do que jamais antes para esqueite novo (livro vencedor do Prêmio da Asso- escritores de toda parte, incluindo ciação Paulista de Críticos de Arte - APCA 2014). em seus catálogos? Em 2015, lançou O ano em que vivi de literatura os gaúchos, muitos dos quais, na ge- (livro vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura Luís Augusto Fischer – Com ração mais recente, já começam sua 2016). (Nota da IHU On-Line) 20 Carol Bensimon (1982): escritora e tradutora elas ocorreu o que tem ocorrido vida editorial em “majors” do setor nascida em Porto Alegre. Formou-se em Comu- nicação Social na Universidade Federal do Rio nos mercados todos, a saber, um ou nelas ingressam em pouco tem- Grande do Sul (UFRGS). Mestrado em Teoria Li- processo de internacionalização e po, como foi o caso de Daniel Galera, terária pela PUCRS. Seu primeiro livro foi Pó de Parede (Não Editora, 2008), reunindo três novelas. oligopolização. Assim como as gran- Michel Laub18, Paulo Scott19, Carol Em 2009, depois de receber uma bolsa de estímu- des brasileiras foram, talvez em sua lo à criação literária da Funarte, escreveu Sinuca embaixo d’água (Companhia das Letras). O livro maioria, compradas por empresas 18 Michel Laub (1973): escritor e jornalista, nas- foi um dos finalistas do Prêmio São Paulo de Li- ceu em Porto Alegre e vive em São Paulo. Foi teratura na categoria Autor Estreante e do Prêmio estrangeiras, mantendo a operação editor-chefe da revista Bravo, coordenador de Jabuti de 2010 na categoria Romance. Lançou o brasileira como parte de uma cor- publicações e internet do Instituto Moreira Sal- romance Todos nós adorávamos caubóis em 2013 les e colunista da Folha de S. Paulo e do Globo. (Companhia das Letras). (Nota da IHU On-Line) poração mundial, ocorreu com as Hoje é colaborador de diversas editoras e veícu- 21 Luisa Geisler (1991): escritora nascida em Ca- los no Brasil e exterior. Publicou sete romances, noas (RS). Publicou Contos de mentira (finalista do pequenas e médias, entre as quais todos pela Companhia das Letras: Música Anterior Jabuti, vencedor do Prêmio SESC de Literatura), muitas das gaúchas, um processo de (2001), Longe da água (2004), O segundo tempo Quiçá (finalista do Prêmio Jabuti, do Prêmio São (2006), O gato diz adeus (2009), Diário da queda Paulo de Literatura e do Prêmio Machado de As- estiolamento, de perda de força. Não (2011), A maçã envenenada (2013) e O Tribunal da sis, vencedor do Prêmio SESC de Literatura). Seu Quinta-Feira (2016). Seus livros saíram em 13 pa- último livro, Luzes de emergência se acenderão au- sou especialista no tema das finan- íses e 10 idiomas. Recebeu os prêmios JQ – Win- tomaticamente, foi publicado pela Alfaguara em ças das editoras, mas creio que ape- gate (Inglaterra, 2015), Transfuge (França, 2014), 2014. (Nota da IHU On-Line) Jabuti (segundo lugar, 2014), Copa de Literatura 22 José Ivo Sartori (1948): é professor de filoso- nas uma se mantém como grande Brasileira (2013), Bravo Prime (2011), Bienal de fia e político nascido em Farroupilha (RS). Filiado Brasília (2012) e Erico Verissimo (2001), além de ao PMDB. Exerceu cinco mandatos consecutivos nacional, a ArtMed, e a outra grande ter sido finalista dos prêmios Dublin International como deputado estadual e presidiu a Assembleia gaúcha, a L&PM, está passando por Literary Award (Irlanda, 2016), APCA (2016), Cor- Legislativa entre 1998 a 1999. Durante o governo rentes de Escrita (Portugal, 2014), São Paulo de de Pedro Simon, foi secretário estadual do Traba- processos complexos — procurou in- Literatura (2012 e 2014), Portugal Telecom (2005, lho e Bem-Estar Social entre 1987 a 1988. Concor- 2007 e 2012) e Zaffari&Bourbon (2005 e 2011). reu, sem sucesso, ao cargo de prefeito de Caxias serção maior no mercado duro bra- (Nota do IHU On-Line) do Sul em 1992 e 2000. Em 2002, elegeu-se depu- sileiro, que é São Paulo, depois fe- 19 Paulo Scott (1966): poeta e escritor nascido tado federal com quase cem mil votos. Em 2004, em Porto Alegre. Seu livro de estreia, Histórias elegeu-se prefeito de Caxias do Sul no segundo chou um acordo de venda com uma curtas para domesticar as paixões dos anjos e ate- turno, com 52,4% dos votos. Quatro anos depois, nuar os sofrimentos dos monstros, foi lançado em reelegeu-se no primeiro turno com 54,3% dos vo- grande brasileira, mas consta que foi 2001 sob o pseudônimo de Elrodris. Em 2004, foi tos. Em outubro de 2014, elegeu-se governador revertida essa operação. E tudo isso um dos três finalistas do Prêmio Açorianos de Li- do Rio Grande do Sul, com 61,2% dos votos, sen-

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE no [Nélson] Marchezan23 [Júnior] e expressa pelos gaúchos. Há muito Temer28), bem ao contrário, não ti- imaginar qualquer deles abrindo um mais nordestinos vivendo no centro nham a manha, nem a vontade, de livro culto, de qualquer matéria ou do país do que gaúchos, e há muito praticar acordos por baixo do pano, especialidade, que não seja um ma- mais tempo, e já por isso o som até e bem ao contrário só chegavam nual de qualquer coisa. Impossível. da fala de um artista nordestino é ao poder se mandassem sozinhos, (E o Sartori é formado em Filoso- mais compreensível e fala mais à quase sempre com vezo autoritário. fia…) O que posso dizer é isso: uma alma do grande público do que o Isso tudo forma um caldo de cul- gente que despreza a cultura letrada, som da nossa fala. Aliás, o nosso so- tura que tende a colocar o artista a cultura exigente, e não percebe que taque e o nosso vocabulário, sendo gaúcho como um diferente do esti- ela é importante não apenas para imediatamente reconhecidos fora lo manhoso, malemolente, acomo- nós, de classe social confortável, mas daqui, nos diferenciam das falas datício, muitas vezes até fazendo o para todo mundo, pelo poder que a brasileiras correntes (chiado nos s, papel do subordinado engraçadinho cultura tem de expressar a vida em r aspirado, curvas melódicas mais e piadista, do artista nordestino ou níveis sutis, que permanecem soan- amenas, tudo junto ou em parte) e nortista. Sei que estou generalizan- do pelos tempos afora e funcionam colocam os ouvintes em situação de do, e por favor, não estou me refe- como horizontes para todos, como atenção e talvez de tensão — qual é a rindo a imensos artistas criadores, possibilidade, sendo tarefa da edu- briga que esses gaúchos estão com- que podem provir de qualquer parte cação abrir as portas, oferecer as es- prando desta vez? porque fazem arte exigente; estou cadas, enfim dar acesso a esse patri- pensando em casos escrachados, Outra razão: o Nordeste, compre- mônio. Uma lástima. até ao nível da caricatura — pensan- endido como coisa única (que não é), do num plano praça-da-alegria, ou se compõe de estados relativamente escolinha-do-professor-raimundo, pequenos, em sua maioria, e que IHU On-Line – No cenário cul- nordestinos, nortistas, caipiras são têm uma tradição bem mais antiga tural nacional, prevalecem pro- retratados como esse subordinado do que a nossa em matéria de elites duções do Rio de Janeiro e de alegrinho, que não apenas aceita o que sabem se acomodar no poder, São Paulo. Há também expres- papel ridículo como de certo modo em acordos que vêm do tempo co- sões importantes de estados extrai prazer dele, ao passo que o lonial, passam por [José] 24Sarney nordestinos, como Pernam- gaúcho de caricatura é visto como e o finado ACM25 [Antônio Carlos 29 buco. Por outro lado, artistas veado (o Millôr29 preferia “viado”), Magalhães] e chegam aos gedéis de que trabalham no Rio Grande quer dizer, é alguém que é preciso hoje. As nossas elites tradicionais do Sul costumam apontar que simbolicamente emascular, profa- (não falo dessa geração atual, que suas obras têm pouca aceitação nar, derrubar, tratar como alguém em sua talvez maioria podia ter nas- nacional. Isso procede? Deve- que precisa aprender a ser posto cido em qualquer parte, tido qual- se ao quê? para baixo. quer educação, que daria no mes- Luís Augusto Fischer – Imagi- mo, por exemplo, aquele deputado no que estejas falando mais de ar- federal [Sérgio] Moraes26, de Santa Tramandaí de 1989 a 1992. Foi deputado federal tes de performance, dança, teatro, de 1995 a 2011. Nas eleições de 2010, ficou como Cruz do Sul, ou o inefável [Eliseu] primeiro suplente e retornou ao cargo em 2013, cinema, canção, shows, e concordo Padilha27, braço direito de [Michel] com a nomeação do deputado Mendes Ribeiro Fi- lho para o Ministério da Agricultura. Permaneceu com o diagnóstico: artistas nordes- no cargo até janeiro de 2015. Ocupou o Ministério tinos aparecem mais na mídia he- dos Transportes no governo Fernando Henrique 24 José Sarney [José Sarney de Araújo Costa] Cardoso, de 1997 a 2001. Em dezembro de 2014, gemônica de Rio e São Paulo do que (1930): político nascido no Maranhã, 31º presi- foi anunciado oficialmente ministro-chefe da Se- dente do Brasil (1985-1990). Foi governador do cretaria de Aviação Civil da Presidência da Repú- gaúchos. Há uma razão sociológica Maranhão e presidente do Senado Federal por blica para o segundo mandato do Governo Dilma forte e bem elementar para tal: a ex- quatro vezes. (Nota da IHU On-Line). Rousseff. Em dezembro de 2015, pediu demissão 25 Antonio Carlos Magalhães: (1927-2007): mé- um dia antes do então presidente da Câmara dos periência que os artistas nordestinos dico, empresário e político baiano. Governador da Deputados, Eduardo Cunha, acatar o pedido de Bahia por três vezes (duas nomeado pelo regime impeachment da presidente Dilma Rousseff. É o expressam é muito mais próxima do militar) e senador entre 1994 e 2002. Egresso de ministro-chefe da Casa Civil do presidente Michel grande público do que a experiência partidos como UDN, ARENA, PDS, PFL e DEM, Temer. (Nota da IHU On-Line) ACM, era tido como um dos grandes “coronéis” 28 Michel Temer [Michel Miguel Elias Temer Lulia] da política brasileira, iniciando sua derrocada a (1940): político e advogado nascido em Tietê (SP), partir de 2004. (Nota da IHU On-Line) ex-presidente do Partido do Movimento Demo- do empossado em 1º de janeiro de 2015. (Nota 26 Sérgio Moraes (1958): político nascido em crático Brasileiro (PMDB). É o atual presidente do da IHU On-Line) Santa Cruz do Sul. Foi vereador de Santa Cruz Brasil, após a deposição por impeachment da pre- 23 Nelson Marchezan Júnior (1971): advogado, do Sul, pelo PMDB, de 1982 a 1988 e de 1989 a sidenta Dilma Rousseff naquilo que inúmeros se- administrador e político nascido em Porto Alegre. 1990; deputado estadual por duas legislaturas, de tores nacionais e internacionais denunciam como Não tinha maiores pretensões na política até a 1991 até 1995 e de 1995 até 1996, pelo mesmo golpe parlamentar. Foi deputado federal por seis morte do pai, em 2002. No mesmo ano, concorreu partido. Elegeu-se duas vezes prefeito de Santa legislaturas e presidente da Câmara dos Deputa- e foi eleito deputado federal, mas a Justiça Eleito- Cruz do Sul, de 1997 até 2004. Em 2006, foi eleito dos por duas vezes. (Nota da IHU On-Line) ral impediu sua diplomação por falta de filiação pela primeira vez para a Câmara dos Deputados e 29 Millôr Fernandes (1923-2012): desenhista, hu- partidária válida. Ele não apresentou provas que reelegeu-se em 2010 e em 2014. Em 14 de junho morista, dramaturgo, escritor e tradutor nascido era filiado ao PSDB um ano antes das eleições. de 2016, apoiou o deputado Eduardo Cunha, vo- no Rio de Janeiro. Em 1968, começou a trabalhar Iniciou na vida pública em 2003, como diretor tando contra a sua cassação no comitê de ética da na revista Veja, e em 1969 tornou-se um dos fun- de Desenvolvimento, Agronegócios e Governos Câmara dos Deputados. Em agosto de 2017, vo- dadores do jornal O Pasquim. Sobre Millôr, confira do Banrisul durante o mandato do governador tou pelo arquivamento da denúncia de corrupção as seguintes entrevistas, concedidas por Henrique Germano Rigotto. Abandonou o cargo em 2006, passiva contra o presidente Michel Temer. (Nota Rodrigues à IHU On-Line: O riso como arma e li- quando elegeu-se deputado estadual. Em 2010, da IHU On-Line) bertação, na edição 367, de 27-6-2011, disponível foi eleito deputado federal. Em 2016, elegeu-se 27 Eliseu Padilha (1945): advogado e político nas- em http://bit.ly/kKlnso, e Um humorista icono- no segundo turno prefeito de Porto Alegre, pelo cido em Canela (RS). Filiado ao PMDB, então MDB, clasta, na edição 388, de 9-4-2012, disponível em PSDB. (Nota da IHU On-Line) desde 1966. Formado em direito, foi prefeito de https://goo.gl/ZrDM7K. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 510 TEMA DE CAPA

Uma terceira ordem de motivos Luís Augusto Fischer – Tam- avisando que se tratava dos pais de também elementares, quero dizer, bém há muitas razões para isso. Pri- uma debutante, e então eles pude- básicos, tem a ver com a geografia: meiro talvez a gente deva pensar em ram entrar. de fato o Rio Grande do Sul (e os ou- dividir o público que aderiu e adere Para gente como nós, que não vive tros dois estados da região também, ao tradicionalismo segundo sua ex- esse mundo cotidianamente, pare- ao menos em parte) tem diferenças periência sociológica, coisa que faço ce um absurdo, certo? O leitor e eu climáticas com o mundo tropical. aqui de modo tentativo, meio intui- nunca mais poríamos os pés lá, e tal- Para nós “frio” quer dizer um mon- tivo e meio baseado em experiência vez procurássemos meios de encher te de coisas que não significam nada pessoal. Para as classes médias e o saco do CTG racista. Mas isso so- para a experiência tópica dos habi- baixas da Metade Sul em geral, com mos nós, que não precisamos daque- tantes do Brasil quente. Se temos exceção apenas de grandes cidades la instituição… coisas em comum, como temos, tam- cosmopolitas como Pelotas e Rio bém temos essa paisagem diferente. Grande, o CTG [centro de tradições Outra coisa é o mundo da região colonial com passado e/ou presente Se formos pensar na experiência gaúchas] é um importante clube so- ligado à pequena propriedade fami- social, também temos marcantes cial cuja ética e cuja estética combi- liar. Há alguns palpites de que para especificidades: embora comparti- nam muito bem com a vida cotidia- esse pessoal, antes do nosso tempo lhemos com o conjunto do país uma na, ao menos a do passado, uma ou (digamos, antes da década de 1990), história de escravidão e patriar- duas gerações atrás, ou seja, até o calismo rural, temos uma extensa tempo dos avós, gente que a gen- a imagem do gaúcho se revestia de história de imigração para peque- te conheceu ao vivo. Num CTG de pelo menos dois valores muito fortes na propriedade tocada com mão de Caçapava ou de Quaraí, digamos, o — o fato de andar a cavalo, para os obra familiar, um tipo de experiên- cara veste a bombacha mais nova colonos originais e as primeiras ge- cia social que marca a fundo nossa e bonita, mas é bem possível que, rações de descendentes, revestia o cultura cotidiana — pensa, para dar se ele tiver algum campo, ele use gaúcho de uma aura de superiorida- um exemplo atual, nos pequenos ar- sempre bombacha, ou, se ele já vive de, relativamente à sua condição de mazéns, bares e restaurantes toca- na cidade, então é quase certo que camponeses; e o fato de o gauchismo seu pai ou seu avô usavam bom- como movimento ter vinculação com 30 dos por famílias de gente dessa ori- gem, espalhados pela geografia do bacha para trabalhar. Neste caso, a terra, com o mundo rural, o fazia Rio Grande do Sul. Não é? É quase o mundo do CTG tem realmente um irmão no apreço pela terra dos tão típico da nossa experiência coti- uma relação de continuidade com a pais, a Vaterland dos germânicos. diana quanto era, duas ou três gera- vida real. E, neste caso, os aspectos Também para esse pessoal, aderir ções atrás, no Rio, o português dono machista, homofóbico etc. não são aos símbolos e valores e práticas de padaria e boteco. uma coisa repentina, uma imposi- gauchescas seria, talvez, uma forma ção, mas um costume. de ao mesmo tempo integrar-se com Enfim, há todo um conjunto de o novo mundo, em que agora viviam. coisas que, muito antes de nossas (Coisa curiosa é que ouvi relatos Nesse universo, talvez seja e tenha idiossincrasias momentâneas, são pessoais, de homens gays com essa sido menor o patriarcalismo e todos substantivas razões de diferença na origem social e geográfica, dando os demais traços do CTG, de forma experiência, que não nos tornam conta de que viviam dentro de CTGs que o Centro funcionava como um melhores, ou piores, mas para e sim- a vida toda antes da idade adulta, ponto de encontro social, coisa aliás plesmente diferentes da experiência dançando nos grupos folclóricos, essencial, ao menos para os germâ- rotineira ao menos da imensa região com muita gente sabendo dessa con- nicos, em geral, que adoram uma litorânea e do espaço da “plantation” dição sem sobressalto algum. Só não coisa associativa. brasileira, desde o século 16. podiam “dar pinta”. Assunto para um estudo, esse, quero crer.) Já para o pessoal de cidades gran- des o tradicionalismo tem outro sen- IHU On-Line – Os gaúchos Conheci de perto um exemplo, re- tido, creio: ele tenderia a ser mais acalentam uma nostalgia pelo centemente, relativo às cidades de claramente associado a uma rejeição passado que tem bases idealiza- São Gabriel e de Caçapava, de uma ao mundo tecnológico, impessoal das e míticas, gerando posturas moça negra que havia debutado e frio que era a rotina vivida. Num que podem ser consideradas num CTG (sim, exatamente isso) e CTG, o cara vai para dançar, ver atrasadas e retrógradas. Por foi convidada para debutar em ou- gente da vizinhança, e, é claro, viver que o tradicionalismo, um mo- tro, com o detalhe de que este ou- uma fantasia de integração com os vimento nitidamente reacio- tro não costumava aceitar negros; a outros e com um passado imaginá- nário, machista, homofóbico e menina aceitou o convite da amiga e rio que proporciona, creio, quase a fechado para o que destoe dos foi, mas seus pais, quando tentaram mesma coisa que o Freud chamou seus postulados, se expandiu e entrar nesse outro CTG, tiveram al- de sentimento oceânico, que a reli- fortaleceu ao longo de cerca de guma dificuldade, o porteiro causou gião oferece. Seria neste caso menos sete décadas? embaraço, até que apareceu alguém preconceituoso este ambiente? Se-

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE ria de averiguar. Aliás, outro palpi- a bravata. O que caracteriza disputantes se xingam ou procuram te: a ascensão dos CTGs ocorre na essa decadência? se superar até o infinito — a payada, proporção do enfraquecimento dos muito mais que o repente (acho eu, Luís Augusto Fischer – O co- laços antes garantidos pela vida co- sem ser especialista nesses dois gê- meço dessa minha percepção veio munitária, via religião, rede familiar neros discursivos tão aparentados), de um palpite do colega e amigo Ho- (família extensa e convivente) ou vi- é uma luta simbólica que tende ao mero Araújo30. Uma vez, conversan- zinhança. agônico, quer dizer, mistura o gozo do sobre, se não me engano, o filme do jogo com o sofrimento da vítima. O Tradicionalismo, por mais que feito sobre o romance do Tabajara A decadência objetiva da estância nos pareça algo conservador e reacio- Ruas, Netto perde sua alma, ele dis- tradicional como matriz social e/ou nário, tenho impressão de que é um se que ali, como em outros escritores mental da classe dirigente (pense- refrigério para a alma de milhares. gaúchos (Sérgio Faraco31 era outro), mos na família de Getúlio Vargas34, o que sempre se tinha era um duelo. por exemplo) não impede que o ges- A ética do duelo, disse ele, era o ne- to de aceitar o desafio permaneça gócio. Isso me ajudou a ver a presen- vivo e atuante. “Creio que es- ça da bravata como um traço muito recorrente entre nós — a bravata é Sempre lembro de uma historinha tamos todos um estilo e uma ética de quem due- que me foi contada por um queri- la: eu não vou te deixar dizer a últi- do colega, já falecido, professor de sem saber o ma palavra, não importa nem se eu Filosofia no Anchieta 30 e tantos precisar morrer para garantir. Isso anos atrás, João Carlos Barbosa, que fazer.” pode ser visto na bravata do nosso cuja família tinha esse passado. A hino, “Sirvam nossas façanhas de historinha dava conta de um estan- modelo a toda a Terra” (que o Hique cieiro rico, do que hoje chamamos 32 IHU On-Line – Não é curioso Gomez disse que deveria ser muda- Metade Sul – como era de esperar que a cultura tradicionalista, do para “Sirvam nossas modelos de –, que um dia passou pela casa de de uma maneira geral, valori- façanha em toda a Terra”, pensando um posteiro seu, um funcionário nas Giseles Bündchens e tal), assim ze como atributo dos gaúchos que vivia num dos limites extremos 31 traços rústicos, chulos e gros- como numa miríade de situações. De da grande propriedade, cuidando seiros? onde vem isso? Acho que se enraí- de tudo, inclusive dos limites. O za na luta (e na fantasia de luta) de peão naturalmente era reservado, e Luís Augusto Fischer – Mas ao fronteira, em que há um lá e um cá a conversa foi breve. Quando patrão lado desses traços há outros, que os nítidos, e um dos dois pode morrer. ia saindo, o peão disse que tinha acompanham de modo orgânico, e Isso se perpetua em centenas de ca- algo a dizer, e o patrão esperou, e que são positivos (não importa aqui sos, que a gente conhece bem, como o peão não sabia como dizer… Até que sejam realmente existentes ou a lente grenalizada de ver o mundo, que o estancieiro disse que o cara praticados): lealdade, apreço pela assim como na payada33, em que dois devia falar logo, e então o posteiro verdade, constância, fidelidade, co- nhecimento da vida difícil etc. Se 30 Homero Araújo: graduado em Letras pela UFRGS, mestre em Letras pela Universidade Fe- praticada no sul da América desde uma época em colocarmos estes outros na balan- deral Fluminense, doutor em Letras pela UFRGS, que não havia muita clareza quanto ao traçado ça, a coisa fica diferente. Eu mesmo com estágio pós-doutoral na Sorbonne Nouvel- das fronteiras. (Nota da IHU On-Line) le-Paris III. É professor da UFRGS. (Nota da IHU 34 Getúlio Vargas [Getúlio Dornelles Vargas] acho admirável, por exemplo, a des- On-Line) (1882-1954): político gaúcho, nascido em São 31 Sergio Faraco (1940): escritor nascido em Ale- Borja. Foi presidente da República nos seguin- treza manual implicada no mundo grete (RS). Antes de estrear na literatura, viveu tes períodos: 1930 a 1934 (Governo Provisório), gauchesco, o saber fazer coisas, o na União Soviética (1963-1965), quando estudou 1934 a 1937 (Governo Constitucional), 1937 a Ciências Sociais no Instituto Internacional de Ci- 1945 (Regime de Exceção) e de 1951 a 1954 (Go- conhecimento feito de experiên- ências Sociais, em Moscou. No retorno ao Brasil, verno eleito popularmente). Recentemente a IHU cia direta da vida rude e também graduou-se em Direito. Desde a publicação de On-Line publicou o Dossiê Vargas, por ocasião seu primeiro livro de contos, Sergio Faraco tem dos 60 anos da morte do ex-presidente, dispo- transmitido através das gerações, recebido boa recepção da crítica literária. Tido nível em http://bit.ly/1na0ZMX. A IHU On-Line como rigoroso com sua produção, Faraco publi- dedicou duas edições ao tema Vargas, a 111, de por exemplo. Essa dimensão de cou, nos primeiros 25 anos de atividade literária, 16-08-2004, intitulada A Era Vargas em Questão – continuidade, num mundo feito de uma média de dois contos por ano. Alguns de 1954-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon111, seus livros: Idolatria (1970), Noite de matar um e a 112, de 23-08-2004, chamada Getúlio, dispo- fragmentos, provisoriedade, obso- homem (1986), Doce paraíso (1987), A dama do nível em http://bit.ly/ihuon112. Na edição 114, Bar Nevada (1987), Majestic Hotel (1991), Contos de 06-09-2004, em http://bit.ly/ihuon114, Daniel lescência programada, não tem um completos (1995), Dançar Tango em Porto Alegre Aarão Reis Filho concedeu a entrevista O desa- grande atrativo? (1998), Rondas de escárnio e loucura (2000). (Nota fio da esquerda: articular os valores democráticos da IHU On-Line) com a tradição estatista-desenvolvimentista, que 32 Hique Gomez (1959): violinista, compositor e também abordou aspectos do político gaúcho. humorista nascido em Porto Alegre. Em 1984, for- Em 26-08-2004, Juremir Machado da Silva, da PU- mou dupla com Nico Nicolaiewsky e montaram a C-RS, apresentou o IHU Ideias Getúlio, 50 anos IHU On-Line – O senhor disse peça musical Tangos & Tragédias, um dos grandes depois. O evento gerou a publicação do número sucessos do teatro do Rio Grande do Sul. (Nota 30 dos Cadernos IHU Ideias, chamado Getúlio, que a combinação de decadên- da IHU On-Line) romance ou biografia?, disponível em http://bit. cia com arrogância tem uma 33 Pajada ou Payada: forma de poesia improvi- ly/ihuid30. Ainda a primeira edição dos Cadernos sada produzida na Argentina, no Uruguai, no sul IHU em formação, publicada pelo IHU em 2004, forma de se expressar própria do Brasil e no Chile (onde é conhecida por Paya). era dedicada ao tema, recebendo o título Popu- Assemelha-se a um repente em estrofes de dez lismo e Trabalho. Getúlio Vargas e Leonel Brizola, do Rio Grande do Sul, a partir versos, de redondilha maior e rima ABBAACCDDC, disponível em http://bit.ly/ihuem01. (Nota da IHU de suas raízes no mundo rural: interpretada com acompanhamento deviolão. É On-Line)

EDIÇÃO 510 TEMA DE CAPA

desembuchou: era um aviso para rau Elétrico36, e o contemporâneo tempo da ditadura civil-militar en- que o patrão não retornasse à sede (negativo) de uma geração de políti- tre 1964 e 1989) vínhamos viven- da fazenda por um determinado ca- cos horrorosa, igualzinha ao que se do uma onda ascensional de mais minho, que era o seu habitual. Mas encontra em toda parte, com ban- cidadania (mesmo durante a dita- por que, quis saber o patrão; e o cada evangélica capaz de sacrificar dura, a partir de meados dos anos posteiro remanchou um pouco, mas conquistas iluministas como a laici- 1970). Creio que é esta onda que finalmente revelou: soube que ha- dade da escola em nome de divulgar agora está sendo revertida, ao me- viam preparado uma tocaia contra a suposta palavra revelada, ou com nos temporariamente, com essas o patrão. Ele corria então risco de políticos claramente regressivos malas como o [Donald] Trump38, o vida, indo pelo tal caminho. Qual a como os dois citados acima. Temer, e em escala local o Sartori. reação do patrão? Ficou meio brabo Um alinhamento que nos leva para com o seu funcionário e disse algo baixo em tantos sentidos. Vamos assim: “Mas e por que tu me con- IHU On-Line – De que ma- percebendo, sem muita novidade, tou isso? Agora é claro que eu tenho neira artistas, escritores e que a força da cultura é fraca con- que ir por esse caminho, se não vai pesquisadores que atuam no tra o mal, a covardia, a regressão parecer que eu tenho medo”. E foi, Rio Grande do Sul se compor- no curto prazo. Nosso negócio é no e morreu. É uma bravata, numa si- tam em relação ao desânimo, à longo prazo... tuação extrema, com componentes apatia e à crise que se verifica trágicos admiráveis. no estado? IHU On-Line – E a imprensa? Luís Augusto Fischer – Creio que estamos todos sem saber o que Luís Augusto Fischer – Fico re- IHU On-Line – E a arrogância, fazer, não apenas pelo que vemos almente pasmo de não termos con- o que explica ou sustenta esse aqui ou pelo que queremos mudar seguido fazer publicações e veículos traço dos gaúchos? aqui no estado, mas porque nosso (até mesmo digitais) com eco, até Luís Augusto Fischer – Cos- tempo atual é jogo duro — excesso agora. Como pode? O que nos falta, tuma ser o oposto complementar de palavra para todo mundo, nas se sabemos que incontáveis amigos do sentimento de inferioridade que ditas redes, e falta de eco para as nossos gostariam muito de dispor 32 também nos acompanha: ora acha- melhores coisas. Nosso momento de veículos assim? Será que estamos mos que ninguém gosta de nós, que histórico é claramente um ponto enganados? ■ não nos valorizam ou nos levam a sé- numa curva para baixo: no Brasil

rio, ora achamos que somos os me- e no Ocidente em geral, desde a Eixo (Alemanha, Itália e Japão). O líder alemão lhores do mundo. Essa desmedida Segunda Guerra37 (com exceção do Adolf Hitler pretendia criar uma “nova ordem” na Europa, baseada nos princípios nazistas da supe- oscilante faz parte da nossa relação rioridade alemã, na exclusão – eliminação física incluída – de minorias étnicas e religiosas, como com o centro do Brasil. cultural que traz ao Brasil conferencistas interna- judeus e ciganos, além de homossexuais, na su- cionais para abordar a temática da contempora- pressão das liberdades e dos direitos individuais e neidade. Para democratizar o acesso ao conheci- na perseguição de ideologias liberais, socialistas e mento e revisitar as ideias dos conferencistas, os comunistas. Essa ideologia culminou com o Holo- IHU On-Line – O que há de ar- canais digitais do projeto oferecem centenas de causto. (Nota da IHU On-Line) vídeos – com legendas em português, espanhol 38 Donald Trump (1946): Donald John Trump é caico e de contemporâneo no e inglês –, além de artigos, notícias e entrevistas um empresário, ex-apresentador de reality show estado? para refletir, comentar e compartilhar. Para saber e atual presidente dos Estados Unidos. Na eleição mais, acesse o site do projeto em fronteiras.com. de 2016, Trump foi eleito o 45º presidente norte (Nota da IHU On-Line) -americano pelo Partido Republicano, ao derrotar Luís Augusto Fischer – Puxa 36 Sarau Elétrico: atividade cultural tradicional a candidata democrata Hillary Clinton no número da cidade de Porto Alegre, que ocorre sempre de delegados do colégio eleitoral; no entanto, vida, muita coisa. Fico em duas coi- no Bar Ociente, no bairro Bom Fim, às terças-fei- perdeu no voto popular. Entre suas bandeiras es- sas: o arcaico (positivo) de prestigiar ras, reunindo nomes do círculo cultural da capi- tão o protecionismo norte-americano, por onde tal gaúcha para discutir diversos temas. (Nota da passam questões econômicas e sociais, como a conversa e a leitura, como se pode IHU On-Line) a relação com imigrantes nos Estados Unidos. ver pelo sucesso de eventos como o 37 Segunda Guerra Mundial: conflito inicia- Trump é presidente do conglomerado The Trump do em 1939 e encerrado em 1945. Mais de 100 Organization e fundador da Trump Entertainment Fronteiras do Pensamento35 e o Sa- milhões de pessoas, entre militares e civis, mor- Resorts. Sua carreira, exposição de marcas, vida reram em decorrência de seus desdobramentos. pessoal, riqueza e modo de se pronunciar con- Opôs os Aliados (Grã-Bretanha, Estados Unidos, tribuíram para torná-lo famoso. (Nota da IHU 35 Fronteiras do Pensamento: é um projeto China, França e União Soviética) às Potências do On-Line)

Leia mais

Gauchismo – A tradição inventada e as disputas pela memória. Revista IHU On-Line, N. 493. Disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/493. Bravata é a mais legítima expressão do gaúcho. Entrevista especial com Luís Augusto Fischer. Disponível em https://goo.gl/q7BDt4.

4 DE SETEMBRO | 2017 TEMA 02

REVISTA IHU ON-LINE

Toda noção de supremacia é tradução da ignorância Para Marcos Rolim, a cultura tradicionalista transforma a estupidez em virtude,

Vitor Necchi

á processos e características do especialmente capacitados, intelectual Rio Grande do Sul que reme- e moralmente”, afirma em entrevista tem à obscuridade de tempos concedida por e-mail à IHU On-Line. remotos, conforme o doutor em Socio- H Conforme Rolim, há uma tradição logia Marcos Rolim. “O provincianismo cultural sustentada em uma série de é arcaico, assim como o machismo, a mitos sobre o Rio Grande do Sul segun- misoginia, o racismo e a homofobia. do a qual os gaúchos teriam façanhas a O desprezo pelos ideais republicanos e servir de modelo a toda a Terra. Esse pela democracia, a facilidade com que imaginário estabelece uma espécie de o preconceito se transforma em paisa- “supremacia gaudéria”. Rolim especula gem; a opção pela mitologia e pelo dog- que os gaúchos talvez tenham sido afe- matismo em todas as frentes, à direita e tados por isso. à esquerda, isso também é arcaico”, des- creve. Rolim amplia a análise: “O gosto As ideologias, enfatiza, “se alimentam 33 pelas cerimônias e pelos discursos que de dogmas e mitos que servem, exa- nada dizem; a opção pela formalidade, tamente, para proteger determinadas pelos rituais e o desprezo pela ciência, ideias da dura realidade”. No seu en- tudo isso respira Idade Média”. tendimento, “toda noção de suprema- A crise se agrava porque a intolerância cia entre grupos humanos, seja étnica, “passou a se reproduzir também pela histórica, racial, política ou religiosa, é ação de agentes do Estado, que tratam sempre uma tradução da ignorância”. A as garantias individuais como amea- cultura tradicionalista que vige “trans- ças e que zombam dos direitos huma- forma a estupidez em virtude”. nos, nos aproximam perigosamente da Marcos Rolim é doutor e mestre em mentalidade fascista que é profunda- Sociologia (UFRGS), especialista em mente arcaica”. Segurança Pública (Oxford), jornalista Na política, o cenário é desalentador, (UFSM) e membro do Centro Internacio- tanto que nas últimas décadas o estado nal para Promoção dos Direitos Humanos teve sua influência reduzida. “O motivo – CIPDH. Em 1999, recebeu o Prêmio mais forte para esse resultado é que não Unesco em Direitos Humanos no Brasil. produzimos novas gerações de políticos Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor es- Marcos Rolim – Fiz referência a simbolizar o problema da constru- creveu em um artigo que tal- uma determinada tradição cultural ção de um imaginário popular que vez se tenha construído no Rio construída em torno de uma série é mais forte que o bairrismo. Nes- Grande do Sul uma subcultura de mitos sobre o Rio Grande do Sul. se imaginário, tudo no Rio Grande em torno de uma ideia genérica Para essa tradição, nós, os gaúchos, do Sul seria melhor; uma espécie de supremacia gaúcha. Como teríamos façanhas a servir de exem- de “supremacia gaudéria”. Talvez se traduz esta idealização de plo a toda a Terra. Essa passagem tenhamos todos sido afetados por supremacia? do hino sul-rio-grandense parece isso, de uma forma ou de outra. Se

EDIÇÃO 510 TEMA DE CAPA

a hipótese for verdadeira, por certo característica dos “homens de ver- desprezo pela ciência, tudo isso res- teríamos aí uma contribuição desta- dade”, aqueles que se impõem pela pira Idade Média. Sobretudo, pen- cada para o atraso e para a situação força, não pela inteligência. Não por so que a intolerância que passou a atual no estado onde as coisas não só acaso, essa é uma vertente cultural se reproduzir também pela ação de não são melhores do que em outros bastante intolerante e que reproduz agentes do Estado, que tratam as ga- lugares, mas, com muita frequência, com naturalidade a homofobia e o rantias individuais como ameaças e claramente bem piores. racismo. que zombam dos direitos humanos, nos aproximam perigosamente da mentalidade fascista que é profun- IHU On-Line – A hipervalori- damente arcaica. zação do que é local não trans- “As ideologias forma os limites do estado em Há eventos, programas, institui- desprezam in- muralhas, estabelecendo uma ções e pessoas que expressam a visão refratária ao que é de contemporaneidade no Rio Gran- dicadores e fora, à ampliação das perspec- de do Sul. O Fronteiras do Pen- tivas? samento, o Porto Alegre em Cena e a Fundação Iberê Camargo são diagnósticos.” Marcos Rolim – Entendo que contemporâneos. A Reforma Psi- o nome disso é provincianismo. O quiátrica, a Nau da liberdade e a Rio Grande do Sul é extremamen- Parada Gaúcha do Orgulho Louco IHU On-Line – O que alimenta te provinciano, outra marca do também. Nei Lisboa2, Vitor Ramil3, esta sensação de superiorida- atraso de nossa cultura hegemô- Zorávia Bettiol4, Dione Martins de? E como ela é mantida, mes- nica. Não nos preocupamos com mo havendo uma série de indi- o que ocorre no resto do mundo, 2 Nei Lisboa (1959): cantor, compositor e escritor cadores e diagnósticos que não tampouco com o destino da Amé- brasileiro nascido em Caxias do Sul (RS). Reside em Porto Alegre desde a infância. É irmão mais corroboram esta perspectiva? rica do Sul ou mesmo dos demais jovem – entre sete – de Luiz Eurico Tejera Lisbôa, estados brasileiros. O espírito é o primeiro desaparecido político brasileiro cujo cor- Marcos Rolim – As ideologias po pôde ser localizado, no final dos anos 1970. do verso de Marco Aurélio Cam- Tem 11 discos lançados ao longo de mais de três desprezam indicadores e diagnós- 34 pos1: “Sou o pó que se levanta / décadas, além de dois livros: uma coletânea de ticos. Elas se alimentam de dogmas crônicas e um romance, este editado no Brasil e sou terra, sangue, sou verso/ sou na França. Sua carreira inicia-se em 1979, com e mitos que servem, exatamente, os espetáculos Lado a lado e Deu pra ti anos 70, maior que a história grega/ eu sou para proteger determinadas ideias em parceria constante com o guitarrista Augusto gaúcho e me chega prá ser feliz no Licks. Gravou mais de 10 discos. O primeiro, Pra da dura realidade. Toda noção de viajar no cosmos não precisa gasolina, é uma pro- universo”. Nossa tragédia é a de dução independente de 1983. As músicas de Nei supremacia entre grupos humanos, sequer suspeitar o que perdemos participam da trilha de vários filmes da cinema- seja étnica, histórica, racial, política tografia gaúcha, como Deu pra ti anos 70, Verdes ao repetir coisas do tipo. anos e Houve uma vez dois verões. Em Meu tio ma- ou religiosa, é sempre uma tradução tou um cara, de Jorge Furtado, um dos principais temas é a canção Pra te lembrar, na interpretação da ignorância. Onde há supremacis- de , música que também faz parte tas, entretanto, a ignorância se per- do CD Relógios de Sol – lançado em julho de 2003 IHU On-Line – O que há de ar- pelo selo Antídoto. Em junho de 2015, grava ao petua, porque as chances de percebê vivo em Porto Alegre “Telas, tramas & trapaças do caico e de contemporâneo no novo mundo”, com patrocínio do projeto Natura -la diminuem. estado? Musical. O CD chegou às lojas no último mês de novembro, com shows de lançamento em Porto Alegre, Florianópolis e Curitiba, entre outras cida- Marcos Rolim – O provincia- des do sul do país, e segue sua trajetória neste IHU On-Line – A cultura tra- nismo é arcaico, assim como o ma- ano de 2016. (Nota da IHU On-Line) 3 Vitor Ramil (1962): um músico, cantor, compo- dicionalista que se formou no chismo, a misoginia, o racismo e a sitor e escritor brasileiro. Começou sua carreira ar- tística ainda adolescente, no começo dos anos 80. estado valoriza, de maneira homofobia. O desprezo pelos ideais Membro de uma família de músicos - com dois geral, traços que poderiam ser republicanos e pela democracia, a irmãos também cantores, Kleiton e Kledir, e um primo músico, Pery Souza - aos 18 anos de idade chamados de rústicos, chulos facilidade com que o preconceito gravou seu primeiro disco Estrela, Estrela, com a presença de músicos e arranjadores que voltaria e grosseiros. Isso não dá sub- se transforma em paisagem; a op- a encontrar em trabalhos futuros, como Egberto sídios para que a identidade ção pela mitologia e pelo dogmatis- Gismonti, Wagner Tiso e Luis Avellar, além de par- ticipações das cantoras Zizi Possi e Tetê Espíndola. do gaúcho seja caricatural e mo em todas as frentes, à direita e Neste período Zizi gravou algumas canções de Vitor, e deu sua versão para Estrela, Es- machista? à esquerda, isso também é arcaico. trela no disco Fantasia. Seu último álbum foi lan- O gosto pelas cerimônias e pelos çado em 2013, com o título ‘Foi no Mês que Vem’. Marcos Rolim – Por certo que (Nota da IHU On-Line) discursos que nada dizem; a opção sim. Trata-se de uma tradição que 4 Zoravia Bettiol (1935): artista plástica, desig- pela formalidade, pelos rituais e o ner e arte-educadora nascida em Porto Alegre. transforma a estupidez em virtude. Trabalha com artes gráficas, arte têxtil, pintura, murais, instalações e performances. Participou de O “espírito objetivo” do gauchis- 135 exposições individuais entre 1959 e 2014 na 1 Marco Aurélio Campos (1942-1997): poeta, América do Sul, na Europa, nos Estados Unidos e mo se estrutura a partir de um uni- músico e declamador nascido em Uruguaiana no Japão. Ministrou cursos de arte têxtil, design verso profundamente hierárquico, (RS). Integrou o grupo Os Teatinos, deixando de joias, headdress e instalações no Brasil e EUA. registrado no disco Telurismo a sua interpreta- Suas obras estão em acervos dos principais mu- masculino e misógino. Os valores ção para o poema de sua autoria intitulado Eis o seus do mundo como o Metropolitan Museum homem. Gravou este e mais dez poemas no seu e o Brooklyn Museum, ambos de Nova Iorque; dessa tradição legitimam a violên- primeiro LP solo, Poesia gaúchas. (Nota da IHU o Kunstindustriemuseet, de Oslo e o Museum of cia, apresentada sempre como uma On-Line) Modern Art, de Kyoto. (Nota da IHU On-Line)

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE

(Xadalu)5, Jorge Furtado6, Esther porâneos, assim como a Themis, o berto Noll14 eram contemporâneos Grossi7 e Eva Sopher8 são contem- Nuances e a Frente por uma Nova e morreram sem que os gaúchos se Política Prisional. Eliane Brum9 e enlutassem. Os exemplos de pers-

5 Dione Martins da Luz (Xadalu, 1985): nascido Michel Laub são contemporâneos pectiva contemporânea existem em Alegrete (RS), vive e trabalha em Porto Alegre. e, talvez por isso, tenham saído e são muitos. O problema é que, O personagem Xadalu surge pela primeira vez em 2004, como uma forma de manifestação artística, do Rio Grande do Sul. Caio Fer- entre nós, a contemporaneidade trazendo luz ao tema da destruição da cultura in- 10 11 dígena, abordando essa e outras causas sociais e nando Abreu , Sérgio Metz , Giba rema contra a correnteza. ambientais. Xadalu está presente em mais de 60 Giba12, Moacyr Scliar13 e João Gil- países, atingindo os quatro continentes, fazen- do parte de um cenário mundial da arte urbana contemporânea, participando de exposições e di- versos festivais de arte, com obras em acervos de nho e escultura no Instituto Mackenzie. Em 1975, museus do Rio Grande do Sul, sempre com foco assumiu a direção do Theatro São Pedro, para ge- “O provincianis- na informação e conscientização dos temas abor- renciar as obras de sua restauração, continuando dados. Dione tem fortalecido sua relação com a dirigi-lo depois de sua reabertura em 1984, ora comunidades indígenas do estado do Rio Grande como Presidente da Fundação Theatro São Pedro. mo é arcaico, do Sul, sempre buscando formas de contribuição (Nota da IHU On-Line) e apoio aos moradores das aldeias. (Nota da IHU 9 Eliane Brum (1966): jornalista, escritora e docu- On-Line) mentarista nascida em Ijuí (RS). Ganhou mais de assim como 6 Jorge Furtado (1959): cineasta nascido em Por- 40 prêmios nacionais e internacionais de reporta- to Alegre, um dos fundadores da Casa de Cinema gem. Trabalhou 11 anos como repórter do jornal de Porto Alegre. Destacou-se inicialmente como Zero Hora, de Porto Alegre, e 10 como repórter autor de curtas-metragens, em especial Ilha das especial da Revista Época, em São Paulo. Des- o machismo, flores (1989), que ganhou vários prêmios interna- de 2010, atua como freelancer. De 2009 a 2013 cionais. Diretor e roteirista de longas como Houve manteve uma coluna no site da Revista Época, e uma vez dois verões (2002), O homem que copiava desde outubro de 2013 no jornal El País. É autora a misoginia, (2003), Meu tio matou um cara (2005), Saneamen- do romance Uma Duas (LeYa), dos livros de repor- to básico, o filme (2007), O mercado de notícias tagem Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e (2014), além de vários curtas-metragens premia- Ofícios), A vida que ninguém vê (Arquipélago Edi- o racismo e a dos no Brasil e no exterior, como O dia em que torial), ganhador do Prêmio Jabuti de Reportagem dorival encarou a guarda (1986), Barbosa (1988), em 2007, e O Olho da Rua (Arquipélago Editorial), Esta não é a sua vida (1991), Angelo anda sumido de A Menina Quebrada (Arquipélago Editorial, homofobia.” (1997) e O sanduíche (2000). Roteirista e diretor Prêmio Açorianos 2013), que reúne 64 de suas co- do episódio Estrada, do longa-metragem Felicida- lunas escritas no site da revista Época, além de ter de é... (1995). Para a TV Globo, dirigiu a série Cena participado da compilação de reportagens espe- aberta (2003), a minissérie Luna caliente (1998) e ciais sobre os Médicos sem Fronteiras Dignidade!, História do amor (2011), e escreveu dezenas de que incluiu também autores como Mario Vargas IHU On-Line – Segurança e roteiros: Agosto (1993), Memorial de Maria Moura Llosa. É codiretora de três documentários: Uma (1994), A invenção do Brasil (2000), além da série História Severina, Gretchen Filme Estrada e - direitos humanos são áreas às Comédias da vida privada, da qual também diri- se. (Nota da IHU On-Line) quais o senhor se dedica. Por giu o episódio Anchietanos (1997). Vários países 10 Caio Fernando Abreu (1948- 1996): jornalista, 35 já realizaram mostras e retrospectivas da obra de dramaturgo e escritor nascido em Santiago (RS). que o Rio Grande do Sul vive Furtado, entre eles, Hamburgo, Alemanha (1994), Apontado como um dos expoentes de sua gera- Rotterdam, Holanda (1995), Tóquio, Japão (1995), ção, a obra de Caio, escrita num estilo econômico em permanente estado de inse- São Paulo, Brasil (1997), Santa Maria da Feira, Por- e bem pessoal, fala de sexo, de medo, de morte gurança? tugal (1998), Toulouse, França (2004), Paris, França e, principalmente, de angustiante solidão. Apre- (2005), Londres, Inglaterra, (2006), Lisboa, Portu- senta uma visão dramática do mundo moderno gal (2007) e Harvard, Estados Unidos (2008). (Nota e é considerado um “fotógrafo da fragmentação Marcos Rolim – Vários fatores IHU On-Line) contemporânea”. Recebeu os prêmios Jabuti de se combinam para esse resultado. 7 Esther Pillar Grossi (1936): educadora nascida Literatura por Ovelhas Negras, Os Dragões não em Santa Maria. Em 1955, foi para Porto Alegre, Conhecem o Paraíso e O Triângulo das Águas. Os mais importantes, me parece, onde estudou Matemática, campo em que mais Publicou, entre outros títulos, Morangos mofados, tarde fez mestrado e doutorado na Sorbonne, em Pequenas epifanias, O ovo apunhalado e Mel & gi- estão vinculados ao papel desem- Paris. Em 1970, com mais 49 professores de Porto rassóis. (Nota da IHU On-Line) penhado pelo encarceramento des- Alegre, fundou o GEEMPA (Grupo de Estudos So- 11 Luiz Sérgio Metz (1952-1996): jornalista e es- bre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação), critor nascido em Santo Ângelo (RS). Também foi criterioso e em massa que pratica- tornando-se uma liderança na busca de soluções letrista do grupo Tambo do Bando. Jacaré, como aos grandes problemas da escola pública brasi- era conhecido, lançou em vida três livros: o com- mos – o que tem sido extremamente leira. Como responsável pela área de pesquisa pêndio de contos O Primeiro e o Segundo Homem funcional para a formação, fortale- do GEEMPA, coordenou a realização de inúmeras (Martins Livreiro, 1981), a biografia Aureliano de pesquisas sobre questões do Ensino e da Apren- Figueiredo Pinto (Tchê, 1986) e o romance Assim cimento e ampliação de facções cri- dizagem, incluindo especialmente a construção na Terra (Artes & Ofícios, 1995 e Cosac Naify, minais – e à absoluta ausência de de atividades didáticas que produzissem efeitos 2013). Esse último, segundo Luís Augusto Fischer, reais de rendimento escolar em alunos provenien- é “uma das 10 mais importantes obras de ficção políticas sérias de Segurança, am- tes de famílias de classes populares. Foi professo- do Rio Grande do Sul de todos os tempos e cer- ra alfabetizadora na vila Santo Operário, na peri- tamente uma das 10 melhores coisas escritas no paradas em diagnósticos com base feria de Porto Alegre, em sua primeira experiência país na última década” – (Zero Hora, 29 de junho científica, orientadas por evidências de aplicação da proposta baseada em novíssimas de 1996). Postumamente, teve publicado o vo- ideias sobre o aprender. Em abril de 1997, Esther lume Terra adentro (Arquipélago Editorial, 2006), e por boas práticas e que apostem coordenou, em Porto Alegre, o projeto “O pra- relato de uma viagem a cavalo pelo interior do zer de ler e escrever de verdade”, realizado pelas estado, ao lado dos amigos Pedro Luiz Osório e no papel que pode ser desempenha- ONGs GEEMPA e THEMIS, com recursos do Minis- Tau Golin. (Nota da IHU On-Line) do pelo poder público e pela socie- tério da Educação, e que objetiva a alfabetização 12 Giba Giba (Gilberto Amaro do Nascimento, de mil mulheres em três meses. Por sua proposta 1940-2014): cantor, compositor, percussionista e dade civil quanto à prevenção. inovadora, a realização do projeto foi especial- ativista cultural nascido em Pelotas (RS). Além de mente acompanhada pela Unesco e pelo Unicef. uma carreira de mais de 40 anos, foi ligado dire- IHU On-Line – Por que os pre- Foi secretária municipal de Educação de Porto tamente aos movimentos negros. Um dos funda- Alegre de 1989 a 1992 e deputada federal pelo dores e primeiro presidente da escola de samba sídios gaúchos estão entre os PT de 1995 a 2002, tendo atuado prioritariamente Praiana. A Unidos do Fragata de Pelotas, em 2002, nas áreas da educação, da cultura e da ciência e fez uma homenagem a ele com o enredo No to- tecnologia. (Nota da IHU On-Line) que do tambor, Ogum mandou Giba Giba aqui. em 22 de outubro de 2003 pelo acadêmico Carlos 8 Eva Sopher (1923): nascida em Frankfurt am (Nota da IHU On-Line) Nejar. (Nota da IHU On-Line) Main (Alemanha), é uma empreendedora cultural 13 (1937-2011): escritor nascido 14 João Gilberto Noll (1946-2017): escritor nas- teuto-brasileira. Tornou-se conhecida por seu tra- em Porto Alegre. Formado em medicina, traba- cido em Porto Alegre. Venceu o Prêmio Jabuti por balho bem-sucedido para a recuperação do The- lhou como médico especialista em saúde pública cinco vezes. Autor de, entre outros, O Cego e a atro São Pedro, um dos marcos mais importantes e professor universitário. Sua prolífica obra con- Dançarina (1980), A Fúria do Corpo (1981), Bando- da cidade de Porto Alegre, após um longo perío- siste de contos, romances, ensaios e literatura leiros (1985), Rastros de Verão (1986), Hotel Atlân- do de decadência. De família de origem judaica, infanto-juvenil. Também ficou conhecido por suas tico (1989), O Quieto Animal da Esquina (1991), emigrou para o Brasil em 1936, em razão da per- crônicas nos principais jornais do país. Sétimo Harmada (1993), A Céu Aberto (1996), Berkeley em seguição nazista. Ligou-se ao grupo Pro Arte de ocupante da cadeira 31 da Academia Brasileira Bellagio (2002), Mínimos Múltiplos Comuns (2003), Theodor Heuberger, no Rio de Janeiro, e depois de Letras. Foi eleito em 31 de julho de 2003, na Lorde (2004) e Solidão Continental (2012). (Nota se fixou em São Paulo, onde estudou arte, dese- sucessão de Geraldo França de Lima, e recebido da IHU On-Line)

EDIÇÃO 510 TEMA DE CAPA

piores do país? pessoas são mais vulneráveis no Rio há muito. O que restou dele é uma Grande do Sul às violações quando caricatura cínica. Marcos Rolim – Porque os go- comparadas às realidades vividas vernantes que já tivemos, todos nos demais estados. Desconheço, eles, nunca trataram efetivamente pelo menos, evidências que ampa- IHU On-Line – Há políticos de mudar esse quadro, um desleixo rem essa conclusão. Podemos dizer, gaúchos que tiveram projeção que, assinale-se, sempre foi ampa- entretanto, que estamos mais vulne- nacional ao longo da histó- rado pela opinião pública. Assim, ráveis hoje, no Rio Grande do Sul, do ria republicana. Nos últimos não devemos apenas responsabi- que no passado, o que expressa um anos, que peso o Rio Grande lizar os gestores pela inação, pela grave retrocesso. do Sul tem no cenário político incúria e pela incompetência. O fato brasileiro? é que as condutas omissivas dos go- Marcos Rolim – Nas últimas dé- vernantes foram a tradução política IHU On-Line – O senhor exer- cadas, o Rio Grande do Sul viu sua dos valores presentes no senso co- ceu mandatos como vereador, influência política ser reduzida. O mum; no Rio Grande do Sul, mais deputado estadual e federal. motivo mais forte para esse resulta- que em outros estados. Por que se afastou do universo do é que não produzimos novas ge- político-partidário? rações de políticos especialmente ca- IHU On-Line – No que tange Marcos Rolim – Porque perce- pacitados, intelectual e moralmente. aos direitos humanos, que pes- bi que o partido no qual militei por Quando me dizem que políticos gaú- mais de 20 anos havia se transfor- chos como Eliseu Padilha e Darcísio soas são mais vulneráveis no mado em uma máquina burocrática Perondi seriam muito influentes no Rio Grande do Sul em função e arrogante, conivente com práticas governo federal, fico pensando, in- das características próprias do de corrupção, e vocacionada apenas clusive, que, talvez, tenha sido me- estado e por qual razão? para as disputas pelo poder. O PT lhor para o Brasil que tenhamos re- Marcos Rolim – Não sei se as em que eu militei deixou de existir duzido nossa influência. ■

36

4 DE SETEMBRO | 2017 TEMA 03

REVISTA IHU ON-LINE

Imprensa é a maior responsável pela manutenção da ideia de superioridade do gaúcho Pedro Osório avalia que os sucessivos governos, por estimularem o tradicionalismo, ajudam a insuflar a arrogância própria do estado

Vitor Necchi

exaltação do gaúcho e suas fa- tivo – leia-se futebol – sobre todos os çanhas insufla uma ideia de su- outros assuntos chamados nas capas.” perioridade, procurando apagar O jornalista reconhece as diversas crises Aas injustiças cometidas e a barbárie que o Rio Grande do Sul atravessa, como que nos caracterizou”, e “essa postu- a de segurança, mas considera que “a cri- ra é estimulada pela imprensa, que é se efetiva manifesta no estado é gerada a maior responsável pela sua manu- pela mediocridade e incompetência”. Ao tenção”, avalia o jornalista e professor tratar do governo Sartori, dispara: “A sua Pedro Osório. No entanto, ela não age “ totalidade, sem exceções, uniu mediocri- sozinha: “Teve e tem a contribuição dade e incompetência. Algo nunca visto. decisiva do estado, sob cujas asas o É um terreno fértil para a arrogância, a 37 tradicionalismo floresceu e se mantém presunção e o autoritarismo”. prestigiado”. Pedro Luiz da Silveira Osório é Na construção da pretensa superiori- jornalista (UFSM), mestre em Comuni- dade, parece que nada mais relevante cação e Informação e doutor em Ciência existiu na formação identitária do gaú- cho além da figura mítica do monarca Política (UFRGS). Leciona na Unisinos. das coxilhas. “Certamente a imprensa Presidiu a Fundação Piratini (2011- foi decisiva para que as demais contri- 2014) e a Associação Brasileira das buições fossem secundarizadas”, criti- Emissoras Públicas, Educativas e Cultu- ca Osório em entrevista concedida por rais (2012-2014). Foi secretário de Co- e-mail à IHU On-Line. No seu enten- municação de Porto Alegre (1993-1996). dimento, o jornalismo praticado no Rio Trabalhou nos jornais O Interior, Gazeta Grande do Sul tem uma distinção re- Mercantil, Diário do Sul, na Companhia gional: “Tendência para a infantilização Jornalística Caldas Júnior e na revista e para a supremacia dos colunistas”. O IHU On-Line. Integrou a Comissão principal grupo de comunicação do esta- Nacional de Ética da Federação Nacio- do, destaca Osório, orgulha-se de contar nal dos Jornalistas – Fenaj. É dirigente com mais de cem colunistas. “A isso se do Sindicato dos Jornalistas do RS. soma o predomínio do noticiário espor- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Entre as medi- sidiu. Qual sua análise dessa não sabia o que fazer com o estado. das que o governo de José Ivo proposta, em particular no que Isso ficou mais do que evidente nos Sartori elaborou para comba- tange às emissoras públicas? debates eleitorais e é fato admitido ter a crise financeira do estado, Pedro Osório – É notória e re- pelos quadros históricos do PMDB. está a extinção de fundações, conhecida a inépcia do governa- Quando ele passou para o segundo entre elas a Piratini (TVE e FM dor para governar. Sabidamente, turno das eleições, um arremedo de Cultura), que o senhor já pre- ele não tinha um plano de governo, plano foi montado às pressas, em

EDIÇÃO 510 TEMA DE CAPA

um final de semana. Quem conhece – da mídia hegemônica. Em con- resses – isso espalha-se pelo estado e os bastidores da disputa sabe disso. trapartida, foram e são incontáveis se manifesta em todas as suas regi- Sem propostas e ideias para gover- as manifestações de apoio à TVE e ões. Grupos musicais, teatrais, lite- nar, Sartori1 passa a administrar o à FM Cultura, veiculadas em todos rários, religiosos, esportivos, políti- estado – palavras dele – como quem os meios, plataformas e eventos. Por cos, educacionais, organizações da administra o orçamento familiar, que o governo persiste? Porque as sociedade civil que atuam nas mais cortando despesas. Mas o corte, ob- emissoras detêm um valor simbóli- diversas áreas, anseiam por um es- viamente, atinge predominantemen- co extraordinário e são reconheci- paço midiático para além dos limites te os membros mais pobres da “fa- das pela comunidade rio-grandense locais, de modo que possam projetar mília”, agravando a situação social e como um patrimônio cultural, social suas inquietações e indagações, suas econômica e, também obviamente, e político. Como presidente da fun- angústias e propostas, suas visões de não constitui uma política pública. dação, percorri os 40 municípios mundo. Um espaço cujos critérios Incapaz de propor alternativas, seu onde há retransmissoras da TVE e de atenção não estejam condiciona- governo buscou reforço no ideá- fui recebido calorosamente nas pre- dos basicamente pelo lucro, ou pela rio neoliberal e nas ideias políticas feituras municipais dirigidas por abertura para determinados interes- conservadoras que o justificam. Daí quaisquer partidos, nas associações ses privados, ou restritos a grupos de que a ideia de extinguir as funda- culturais, comunitárias, universi- poder ligados àqueles. Que não per- ções segue uma lógica exacerbada de dades, sindicatos, grupos musicais. mitam o cultivo da intolerância e da implantar um estado mínimo, mas Busquei parcerias e, especialmente, visão única do mundo. levei informações sobre as políticas Sartori não consegue justificá-la. Daí porque a mídia privada hege- estadual e nacional para a produção Simples, escandalosa e inacredita- mônica aplaudiu – ainda que tenha audiovisual independente, estimu- velmente porque ele não conhece aceito a divergência de alguns dos lando a produção local e regional. Do nem compreende a estrutura estatal, seus colunistas – a ideia de extinguir mesmo modo agimos na capital e na seus propósitos, sua complexidade e a Fundação Piratini. A TVE e a FM Região Metropolitana. possibilidades. O professor Cláudio Cultura representam o oposto das Accurso, decano dos economistas do Não vou discorrer aqui sobre as suas práticas e, horror dos horrores, 38 estado e originário do antigo MDB, realizações da gestão que presidi, custeadas basicamente com dinheiro indagou pessoalmente ao governa- sobre as possibilidades das políticas público. Elas podem limitar os seus dor quais as razões das extinções e – audiovisuais então praticadas em poderes, sua área de influência, po- como declarou publicamente – não âmbito regional e nacional. O que dem disseminar novas percepções, obteve resposta. Disso concluiu que desejo destacar é que a TVE repre- abordagens; podem levar às comuni- “o Palácio Piratini está deserto”. senta para as comunidades gaúchas, dades o debate sobre, por exemplo, O desejo de extinguir a Fundação suas regiões e seus diversos grupos as políticas públicas de comunicação Piratini enquadra-se nessa lógica, sociais, provavelmente a única pos- e os critérios de concessões das ou- torgas de rádio e tv. Podem alertar com especificidades muito próprias. sibilidade de elas contarem suas his- tórias, firmarem suas identidades, sobre o monopólio midiático. Podem Justificou a extinção sob a ótica da se reconhecerem e se posicionarem produzir um jornalismo que atenda economia, desconhecendo que os frente aos fatos do mundo, de re- ao contexto e à diversidade de opi- custos das fundações pouco afetam ceberem um tratamento noticioso niões, estabelecendo nexos que não o orçamento estadual. Enfrentou e compreensivo e respeitoso. A títu- são aparentes entre fatos e gerando enfrenta um extraordinário desgaste lo de exemplo, lembro do prefeito conhecimento. Podem demonstrar no meio cultural, comunitário, aca- de um município da região colonial que existe algo para além da indús- dêmico, na sociedade. Não se tomou que, referindo-se orgulhosamente tria cultural. Podem valorizar a polí- conhecimento de uma só manifes- ao extraordinário e histórico en- tica e a participação. Por essas, entre tação apoiando a extinção, salvo de volvimento da comunidade em um muitas outras razões, a radiodifusão alguns apoiadores do governo, todos festival local, cuja organização e de- pública é combatida, e no Rio Gran- da área política. E salvo – note-se dicação independia do partido que de o foi desde os seus primórdios,

1 José Ivo Sartori (1948): é professor de filoso- estivesse na prefeitura, queixava-se como atestam pesquisas sobre o fia e político nascido em Farroupilha (RS). Filiado da postura das emissoras privadas tema. A mídia hegemônica nunca ti- ao PMDB. Exerceu cinco mandatos consecutivos como deputado estadual e presidiu a Assembleia de televisão: “Elas vêm aqui, cobram vera coragem, no passado, de reivin- Legislativa entre 1998 a 1999. Durante o governo de Pedro Simon, foi secretário estadual do Traba- uma fortuna pela cobertura e nos dicar o fechamento das emissoras, lho e Bem-Estar Social entre 1987 a 1988. Concor- reduzem todos a comedores de cuca mas sempre trabalhou para mantê reu, sem sucesso, ao cargo de prefeito de Caxias do Sul em 1992 e 2000. Em 2002, elegeu-se depu- e de linguiça!”. Esse sentimento de -las sufocadas. A Fundação Piratini tado federal com quase cem mil votos. Em 2004, cresceu na pobreza. Mesmo assim, o elegeu-se prefeito de Caxias do Sul no segundo impotência frente aos interesses e turno, com 52,4% dos votos. Quatro anos depois, propósitos da mídia, essa percepção extraordinário prestígio que obteve e reelegeu-se no primeiro turno com 54,3% dos vo- tos. Em outubro de 2014, elegeu-se governador de que a mídia privada raramente seus inúmeros prêmios demonstram do Rio Grande do Sul, com 61,2% dos votos, sen- percebe e reflete a vida comunitária, que, malgrado suas enormes dificul- do empossado em 1º de janeiro de 2015. (Nota da IHU On-Line) seus méritos, nuances e efetivos inte- dades e suas oscilações editoriais e

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE administrativas, vinha cumprindo os dirigentes da gestão Rigotto des- dando questões como a negritude, suas finalidades. truíram a rede de rádios que a FM o regionalismo, a crítica da mídia, Cultura montara e expandia, com o debate das políticas públicas. A A rigor, em apenas duas ocasiões a instalação de antenas receptoras cultura, via jornalismo cultural, recebeu investimentos significati- em várias emissoras do interior, que recebeu uma abordagem antropo- vos: na gestão de José Roberto Gar- transmitiam alguns dos seus pro- lógica, superando a mera prestação 2 cez, sob o governo de Olívio Dutra gramas. É fato reconhecido e narra- de serviços e resenhas. É compre- (1999-2002), e na gestão que pre- do por servidores da fundação, aos ensível que a mídia privada deseje 3 sidi, sob o governo de Tarso Genro quais coube visitar as rádios e reti- livrar-se do convívio com emisso- (2011-2014). Ambos, como se sabe, rar as antenas, sob o protesto dos ras com programações assemelha- governos do PT. Na gestão do Gar- concessionários das referidas emis- das. Por isso considero trágica a cez, foram adquiridos equipamentos soras. Muitas dessas antenas ainda possibilidade de extinção. Além do transmissores da última versão ana- estavam abandonadas no pátio da que já mencionei, deve-se também lógica, que deixariam as emissoras fundação, quando assumi a presi- considerar o acervo extraordinário em condições superiores às emisso- dência. Aquela rede de rádios, ainda mantido pela TVE. Aliás, os arqui- ras privadas, no aspecto tecnológico. timidamente, começava a concorrer vos mantidos pelas emissoras pri- Parte deles não chegou a ser instala- com a rede Gaúcha SAT, liderada vadas são limitadíssimos, mesmo da pelos gestores que o sucederam, pela Rádio Gaúcha, do Grupo RBS. nas mais poderosas. sob os governos de Germano Rigot- Sob o comando dos gestores do Percebendo isso, somado à im- to4 (2003-2006) e de Yeda Crusius5 governo de Yeda Crusius, foram portância que a sociedade atribui (2007-2011). Tamanha foi a desa- destinados à fundação apenas R$ às duas emissoras, o discurso do tenção deles para com a fundação 500 mil. Sem manutenção e reno- governo mudou. Passou-se a afir- que o novo transmissor da TVE pas- vação dos equipamentos, em 2011 mar que a extinção ocorrerá, mas sou oito anos à espera da instalação, as emissoras estavam praticamente as emissoras serão mantidas. Uma tendo sido finalmente instalado sob parando. Seja pelos equipamentos, vez extinta a fundação, as outorgas a minha gestão. Além do descaso, todos já também ultrapassados de- dos canais, que a ela estão vincu- vido ao advento da digitalização, ladas, retornam automaticamente 2 Olívio Dutra (1941): sindicalita e político nasci- 39 do em Bossoroca (RS). Foi prefeito de Porto Ale- seja pela falta de pessoal e de in- ao Ministério das Comunicações. gre, governador do Rio Grande do Sule ministro das Cidades. Formado em Letras, Olívio foi fun- vestimentos em todas as áreas. Ha- Então será preciso fazer um mo- cionário concursado do Banrisul, a partir de 1961. via apenas dois repórteres. Das 40 vimento de transferência das ou- Nesta condição, começou a militar no Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e chegou à presi- retransmissoras, apenas três fun- torgas para o governo do estado. dência da entidade em 1975. Comandou a greve geral do funcionarismo público de setembro de cionavam. Praticamente não havia Em tempos normais, isso exigiria 1979, motivo pelo qual foi preso durante a di- carros, nem motoristas. Nem ar- uma engenharia jurídica, admi- tadura militar e perdeu seu mandto sindical. Foi presidente do PT de 1980 à 1986. (Nota da IHU condicionado. Nem internet. Para nistrativa e política considerável. On-Line) retirar a fundação daquele aban- 3 Tarso Genro (1947): advogado, jornalista e polí- Hoje, nestes tempos, tudo é possí- tico nascido em São Borja (RS). Filiado ao Partido dono deliberado, investimos R$ 14 vel, podendo ocorrer um canetaço. dos Trabalhadores (PT). Foi duas vezes prefeito de Porto Alegre, ministro da Educação, das Relações milhões de reais, com a aquisição Ainda que permaneçam operando, Institucionais e da Justiça durante o governo de de equipamentos de captação, edi- Luiz Inácio Lula da Silva. Em 3 de outubro de 2010, sem o quadro de pessoal (que será elegeu-se governador do Rio Grande do Sul no ção, transmissão e irradiação para extinto com a fundação), a TVE e a primeiro turno, com mais de 54% dos votos váli- dos. (Nota da IHU On-Line) as duas emissoras. No caso da TV, FM Cultura tenderão a ser usadas 4 Germano Antônio Rigotto (1949): é um médi- havia um prazo nacional para a sua como alto-falantes do governo. co odontologista, advogado e político brasileiro filiado ao Partido do Movimento Democrático digitalização, que cumprimos. Foi Provavelmente a rede de retrans- Brasileiro (PMDB). Foi o 35º Governador do Esta- do do Rio Grande do Sul, cargo que ocupou entre feito um concurso para o quadro de missoras não será digitalizada e as 2003 e 2006. Além disso, foi deputado estadual e pessoal. Mudanças administrativas outorgas serão extintas, por força federal, por 2 e 3 mandatos consecutivos, respec- tivamente. (Nota da IHU On-Line) e editoriais foram implementadas. de lei. O alcance da TVE ficará li- 5 Yeda Rorato Crusius (1944): é uma economista e política brasileira. Foi governadora do Estado As instalações foram reformadas, mitado à Região Metropolitana. do Rio Grande do Sul entre 2007 e 2011, sendo incluindo estúdios. As retransmis- A mídia hegemônica ficará muito filiada ao Partido da Social Democracia Brasilei- ra (PSDB). Entre janeiro e maio de 1993, durante soras foram recuperadas e mais 20 feliz, os grupos conservadores que o governo de Itamar Franco, ocupou o cargo de Ministra do Planejamento. Um ano depois da re- delas estavam em via de serem libe- a apoiam, também. Estando fe- núncia como ministra, foi eleita deputada federal radas pelo Ministério das Comuni- lizes a mídia e os conservadores, pelo Rio Grande do Sul, sendo reeleita em 1998 e 2002 - período em que lançou-se por duas vezes cações, reivindicadas que foram. Sartori ficará felicíssimo. Quanto candidata a prefeita de Porto Alegre, em 1996 e ao povo, bem, esse terá aprendido 2000, ambas sem sucesso. Como governadora, A TVE, que com suas 40 retrans- zerou o déficit do Estado e foi alvo de críticas por que a radiodifusão pública é coisa sua conduta no chamado Escândalo do DETRAN. missoras já era a segunda maior Nas eleições de 2010, quando tentava a reeleição, de país atrasado. chegou ao final do pleito na terceira colocação. rede de TV aberta do estado, pre- Nas eleições de 2014, candidatou-se a deputada parava-se para avançar. Nova rede IHU On-Line – Vige no esta- federal, classificando-se na primeira suplência. Em janeiro de 2017, com a renúncia de Nelson Mar- de rádios estava sendo implantada. do uma ideia de superiorida- chezan Júnior, que assume a Prefeitura de Porto Alegre, Yeda retornou à Câmara dos Deputados Sua programação foi aperfeiçoada, de, como se os gaúchos fossem após uma década. (Nota da IHU On-Line) com a inclusão de programas abor- melhor do que os outros brasi-

EDIÇÃO 510 TEMA DE CAPA

leiros. A imprensa local insufla sarmado pelos chefes farroupilhas do Estado, sob cujas asas o tra- este fenômeno? e massacrado pelas tropas impe- dicionalismo floresceu e se man- riais. Foi uma condição imposta tém prestigiado. Como se, além Pedro Osório – Sim, mas não pelo Império para aceitar a paz e do idealizado “monarca”, nada só ela. Se considerarmos que até indenizar os líderes farrapos. Os mais relevante tenha existido na instituições universitárias costu- negros, que lutavam pela promes- origem da nossa formação identi- mam encerrar seus eventos can- sa de liberdade, precisavam ser tária. Certamente a imprensa foi tando o Hino Rio-grandense... aniquilados, pois o Império temia decisiva para que as demais con- A ideia da superioridade gaúcha que a libertação deles reforçasse tribuições fossem secundarizadas, tem sabidamente origens comple- o movimento abolicionista. As in- como é o caso dos colonos em suas xas e reais, que vêm do Tratado denizações pagas pelo Império ge- múltiplas origens, ou aniquiladas, de Tordesilhas6, de um território raram desentendimentos e ódios como no caso dos povos originais, posteriormente conquistado com entre os líderes farrapos e seus dos negros, do gaúcho a pé, entre fronteiras definidas e defendidas descendentes que, matizados por outros. a ferro e fogo durante séculos. concepções políticas outras, ex- Além da postura acrítica da mí- Vivemos episódios de heroísmo e plodiram na Revolução Federalis- dia, sua ação amplia-se nas carac- resistência, por certo. Abrangem, ta10, a chamada Revolução da De- terísticas da indústria cultural. por exemplo, a Revolução Farrou- gola. Nela ocorreram castrações, 7 Assim, ambas naturalizam um pilha . Ela decorreu do desprestí- saques, degolas, estupros. Fatos cancioneiro regional que, salvo gio regional evidenciado pela de- que desconhecemos ou dos quais exceções, exaustiva e incansavel- cisão imperial de adquirir charque não queremos lembrar. uruguaio, mais barato, para favo- mente repete bordões que reificam recer a oligarquia paulista na ma- Creio que bastam essas evoca- os traços da suposta superioridade nutenção dos seus escravos. Essa ções para compreender como a gaúcha. Daí que, com uma assom- revolução esconde, até hoje, o exaltação do gaúcho e suas faça- brosa arrogância, também reivin- massacre de Porongos8, quando o nhas insufla uma ideia de supe- dicamos “sirvam nossas façanhas Corpo de Lanceiros Negros9 foi de- rioridade, procurando apagar as de modelo a toda terra”, como 40 injustiças cometidas e a barbárie está no hino. Como se pode, em 6 Tratado de Tordesilhas: assinado na povoação que nos caracterizou. Passamos a sã consciência, sustentar tamanha castelhana de Tordesilhas em 7 de Junho de 1494, foi um tratado celebrado entre o Reino de Por- exaltar “nossas façanhas” heroicas pretensão? Em muito boa medida tugal e o recém-formado Reino da Espanha para e a disseminar a ideia de igualdade dividir as terras “descobertas e por descobrir” pela ação da imprensa, ao impedir por ambas as Coroas fora da Europa. Este tratado entre patrões e peões, consagrada que nos reconheçamos como um surgiu na sequência da contestação portuguesa às pretensões da Coroa espanhola resultantes da pelo Movimento Tradicionalista. povo no mundo, que reconheça- viagem de Cristóvão Colombo, que ano e meio Daí para cantarmos nos estádios mos o outro. Pois, afinal, a impor- antes chegara ao chamado Novo Mundo, recla- mando-o oficialmente para Isabel a Católica. O “Eu sou gaúcho com muito orgu- tância de ser gaúcho está acima de tratado definia como linha de demarcação o me- ridiano 370 léguas a oeste da ilha de Santo Antão lho...” é um passo. E essa postura é tudo. A começar pelo outro. no arquipélago de Cabo Verde. Esta linha estava estimulada pela imprensa, que é a situada a meio-caminho entre estas ilhas (então portuguesas) e as ilhas das Caraíbas descobertas maior responsável pela sua manu- por Colombo, no tratado referidas como “Cipan- IHU On-Line – Se comparado go” e Antília. Os territórios a leste deste meridiano tenção. Salvo raras exceções, ela pertenceriam a Portugal e os territórios a oeste, à não contribui para o debate sobre com o restante do país, como Espanha. O tratado foi ratificado pela Espanha a 2 de Julho e por Portugal a 5 de Setembro de 1494. uma identidade alternativa, que pode ser avaliado o jornalis- (Nota da IHU On-Line) não se apoie na figura do monar- mo praticado no Rio Grande 7 Revolução Farroupilha: também conhecida como Guerra dos Farrapos. Conflito separatista ca das coxilhas e na exaltação de do Sul? ocorrido entre 1835 e 1845 na então Província do Rio Grande do Sul, alcançando a região de San- supostas qualidades dele decor- Pedro Osório – Em linhas ge- ta Catarina, na região Sul do Brasil. À época do rentes. Mas ela não age sozinha. período regencial brasileiro, o termo farrapo era rais, o jornalismo aqui praticado pejorativamente imputado aos liberais pelos con- Teve e tem a contribuição decisiva servadores (chimangos) e com o tempo adquiriu está aprisionado pelo ideário neoli- uma significação elogiosa, sendo adotado com beral e a serviço dele. Como, tam- orgulho pelos revolucionários, de forma seme- do, inicialmente, pelo coronel Joaquim Pedro, an- lhante à que ocorreu com os sans-cullotes à épo- tigo capitão do Exército Imperial, que participara bém em linhas gerais, ocorre no ca da Revolução Francesa. (Nota da IHU On-Line) da Guerra Peninsular e se destacara nas guerras 8 Batalha de Porongos ou Traição dos Poron- platinas. Ajudou, nesta tarefa, o major Joaquim país. Igualmente, aqui também o gos: foi o último confronto da Revolução Far- Teixeira Nunes, veterano e com ação destacada na contraditório inexiste. Entretanto, roupilha. Persistem suspeitas que teria sido uma Guerra Cisplatina. Este bravo, à frente deste Corpo batalha combinada entre o general farroupilha de Lanceiros Negros, libertos, prestaria relevantes creio haver componentes regionais David Canabarro e o exército imperial. Resultou serviços militares à República Rio-Grandense. no massacre do Corpo de Lanceiros Negros de (Nota da IHU On-Line) que o distinguem: uma tendência Teixeira Nunes, que estavam acampados na curva 10 Revolução Federalista (1893-1895): conflito para a infantilização e para a supre- do arroio Porongos, no atual município de Pinhei- ocorrido nos três estados do sul do Brasil após a ro Machado quando foram atacados pelos impe- Proclamação da República, devido à instabilidade macia dos colunistas. No caso do riais. (Nota da IHU On-Line) política gerada pelos federalistas. Eles pretendiam 9 Lanceiros Negros: é o nome dado a dois cor- acabar com o poder de Júlio de Castilhos, então jornal Zero Hora, especificamente, pos de lanceiros constituídos, basicamente, de presidente do Rio Grande do Sul, e conquistar por vezes encontramos páginas que negros livres ou de libertos pela República Rio- mais autonomia do estado em relação ao poder Grandense que lutaram na Revolução Farroupilha. da recém proclamada República. Os seguidores mais parecem murais destinados Possuíam 8 companhias de 51 homens cada, to- de Castilhos saíram vencedores. Uma das marcas talizando 426 lanceiros . Tornou-se célebre o 1.º do conflito foi a prática da degola. (Nota da IHU a chamar a atenção de alunos do Corpo de Lanceiros Negros organizado e instruí- On-Line) ensino fundamental inicial. Ainda

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE que as transformações no jornalis- noticiário internacional ou de outras mo estejam apontando alterações regiões, oferecido pelos grandes por- no conceito de notícia e recomen- tais, gerando, em parte, a dispersão “O perfil bair- dando o uso de determinados ape- da audiência. Tais notícias tendiam rista contribui, los editoriais inéditos, há exageros a sobrepujar os fatos próximos aos que já vêm se tornando uma marca leitores. O mercado voltou-se, então, em boa me- da publicação, como o uso de tro- a buscar fatos noticiosos nos quais a cadilhos. É uma prática assumida. figura do gaúcho estivesse presente, dida, para re- Quanto aos colunistas, a RBS – nos quais ela pudesse ser incluída. principal grupo sulino – orgulha-se Foi uma manobra mercadológica forçar o traço de contar com mais de cem. Mui- para manter a fidelidade do público tos são jornalistas da empresa, re- e de ocupar um espaço editorial. Mas provinciano, a forçando no jornalismo diário um os marqueteiros perderam a medida “achismo” típico do senso comum e dessa ação, que descambou para o incapacidade beira a irresponsabilidade, quando ridículo e ainda reverbera. não a ultrapassa. Tais característi- de colocar-se cas não são exclusivas do jornalis- mo rio-grandense, mas considero IHU On-Line – A imprensa no mundo.” que aqui elas beiram o paroxismo. gaúcha é bairrista, provinciana? IHU On-Line – Alguns dos A isso se soma o predomínio do no- Pedro Osório – Creio que sim. principais comentaristas e co- ticiário esportivo – leia-se futebol Aliás, o esforço de marketing refe- lunistas da imprensa gaúcha – sobre todos os outros assuntos rido na resposta anterior fortale- são ligados ao futebol. Nas últi- chamados nas capas. Estas obser- ceu o bairrismo de tal modo que, mas décadas, poucos nomes se vações – infantilização, predomínio cabe lembrar, gerou uma publica- destacaram em áreas como po- da opinião e do futebol – se aplicam ção de humor chamada “O bairris- lítica e economia. Este cenário ao jornalismo de todos os veículos, ta”, que se divertia apresentando deve-se ao perfil do público ou praticamente. o gaúcho e o Rio Grande como o tem mais a ver com a proposta 41 centro do mundo. Noticiava, por editorial das empresas de co- 11 IHU On-Line – Há alguns exemplo, que Obama ligara para municação? Fortunati12 pedindo dicas para ser anos, circulava pela internet Pedro Osório – Em 1991, o jorna- uma relação de manchetes so- reeleito... A publicação tornou-se lista e historiador Tau Golin13 publi- bre o fim do mundo. Um veículo muito popular e crescia. Foi ad- cou um interessante artigo sobre este focado em economia anuncia- quirida pela RBS e desapareceu assunto na revista Porto&Vírgula, da ria que a destruição do planeta nas suas entranhas corporativas. qual eu era o jornalista responsável, quebrou a bolsa de valores. Um Esse perfil bairrista contribui, em editada pela Secretaria Municipal de jornal gaúcho informaria que boa medida, para reforçar o traço Cultura de Porto Alegre. Intitulado o Rio Grande acabou. O que provinciano, a incapacidade de co- Hegemonia da “Escola do Futebol”, esta brincadeira sugere sobre locar-se no mundo e de levar seus o texto chamava a atenção para o uso os critérios de noticiabilidade leitores à reflexão sobre as mu- recorrente na imprensa de analogias adotados pela imprensa gaúcha danças e tendências globais. Essa futebolísticas aplicadas à política e à no que se refere a fatos e perso- limitação é vencida, em parte, em cultura, por exemplo. Sugeria que a nagens ligados ao estado? alguns cadernos culturais ou vol- comunicação rio-grandense estava tados para as reportagens. No caso prisioneira de um modelo cujas nor- Pedro Osório – Como se sabe, o das tevês, rádios e portais noticio- mas fundamentais eram dadas pelo humor pode conter algumas facetas sos, a mentalidade provinciana é “universo do futebol”, marcado pela do conhecimento. A manchete, para soberana. Mas é justo dizer que passionalidade, por vezes por um além de brincar com o gauchismo a imprensa gaúcha não está só: a ódio irracional ou pelo orgulho arri- exacerbado, também indica convi- imprensa brasileira é provinciana, vista triunfal, pela ausência de uma vência com uma imprensa focada ressalvados dois ou três grandes cultura reflexiva, pela simplorieda- nos limites da região, que reflete e jornais. Refiro-me à mídia hege- de, pela obsessão por resultados ime- produz um ambiente autocentrado. mônica. diatos. Segundo o autor, apenas uma Por outro lado, os critérios de noti- minoria de jornalistas e comunica- ciabilidade que, especialmente em 11 Barack Obama [Barack Hussein Obama II] dores esforçava-se para distinguir determinado período, orientaram (1961): advogado e político estadunidense. Foi o 44º presidente dos Estados Unidos, tendo go- as particularidades componentes fortemente a construção das notícias vernado o país entre 2009 e 2017. (Nota da IHU On-Line) em torno de fontes ou referências 12 José Fortunati (1955): bancário e político 13 Tau Golin: historiador e jornalista. Doutor em nascido em Flores da Cunha (RS). Foi prefeito de História (UFRGS), com estágio pós-doutoral na gaúchas, expressaram uma visão de Porto Alegre entre 2010 e 2016. (Nota da IHU Universidade de Lisboa. Professor da Universida- mercado. Foi uma reação à oferta do On-Line) de de Passo Fundo. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 510 TEMA DE CAPA

de uma totalidade e então apreen- nar-se frente a elas se limitarmos sendo substituído por programas de dê-la. Escrevia ele que “a notícia as nossas fontes de informação ao comentaristas que em tudo lembram fica refém de uma técnica que não noticiário dos principais meios de os programas da capital. Na soma de permite a universalização a partir comunicação. Ele é raso, descon- tudo, consolida-se o discurso único. dos desdobramentos do fenômeno textualizado e tendencioso. Fal- abordado ‘em si’, o fato corre sem- ta-lhes cultura – e ser culto é uma pre o risco de ser episódico, con- condição da profissão jornalística. IHU On-Line – Para além da clusivo e finalista (como o gol)”. crise econômica, que outras De modo predominante, fosse o crises o senhor identifica no es- assunto “energia nuclear, direitos “O jornalismo tado? humanos, cirurgia plástica”, as Pedro Osório – Obviamente mediações tendiam para exemplos aqui praticado há uma crise na área de segurança. buscados no “mundo do jogo” e Inédita, assustadora. Os números especialmente para conduzir a en- está aprisiona- revelam isso. Há também dificulda- trevista sob a sua lógica – tal como des em outras áreas, que contribuem o entrevistador a entendia. Essa do pelo ideário para o seu agravamento. Mas consi- “escola” tornou-se hegemônica, dero que a crise efetiva manifesta no sustentada por “apresentadores, neoliberal e a estado é gerada pela mediocridade articulistas, comentaristas, edito- e incompetência. Tivemos dirigen- res, redatores, repórteres” – todos serviço dele.” tes, em alguns casos, mais ou menos advindos da “escola do futebol”, medíocres, mais ou menos incompe- cuja mentalidade predominava. tentes. Independentemente da linha IHU On-Line – Durante déca- adotada pelos seus governos, eles Penso que as considerações for- das, a partir do final do século sempre estiveram apoiados por qua- muladas por Tau Golin continuam 19 até o final dos anos 1970, a dros de razoável competência nesta válidas, sendo que nas últimas dé- Caldas Júnior dominava a co- ou naquela área e próximos de medí- cadas a hegemonia da “escola do municação do estado. Com a ocres sem grande relevância. No caso futebol” ampliou-se. São muitos debacle da companhia, a RBS 42 do governo Sartori, a sua totalidade, os exemplos de jornalistas e ra- assumiu a liderança do mer- sem exceções, uniu mediocridade e dialistas esportivos que conduzem cado. A prevalência de uma incompetência. Algo nunca visto. É programas ou entrevistas de outras empresa gera que efeito para o um terreno fértil para a arrogância, áreas, da música à política. E suas jornalismo? intervenções, de modo geral, tor- a presunção e o autoritarismo. naram-se ainda mais superficiais e Pedro Osório – É extraordinaria- inadequadas. Refletem as caracte- mente danosa. Impõe um determi- IHU On-Line – De que manei- rísticas contemporâneas do cená- nado modo de fazer jornalismo, com ra a imprensa se comporta em rio futebolístico, agora dominado características, algumas delas, aqui relação a esse contexto de crise? totalmente pela lógica do mercado, mencionadas. Esse modelo espraia- sendo que o sucesso depende basi- se pelo estado e torna-se referência Pedro Osório – O governo é camente da realização de bons ne- no jornalismo interiorano, potencia- apoiado pela mídia hegemônica, gócios. O predomínio dessa opção lizando seus danos e naturalizando que se refere aos crescentes proble- neoliberal vai reforçar as decisões práticas equivocadas ou discutíveis, mas do estado sem creditá-los aos das empresas de comunicação na ou inadequadas para determinadas dirigentes atuais, praticamente os modelagem das suas editorias e regiões. Por outro lado, sua preva- desresponsabilizando. De modo ge- programas. Assim, caminhamos lência reduz, em proporções igual- ral, as dificuldades são apresentadas para a infantilização e o colunismo mente extraordinárias, o mercado como preexistentes, o que muitas mencionados anteriormente, com de trabalho. São vários os jornais vezes é verdade, mas creditadas aos forte reflexo na retração de mate- do interior que encerraram suas ati- governos anteriores. Especialmen- riais reflexivos em todas as áreas. vidades com a abertura de jornais te o último. Além disso, a imprensa Não há, por exemplo, um editor locais de propriedade da RBS. No ataca as estruturas estatais, pregan- ou editora de política ou economia âmbito do rádio, as vagas também do em favor do estado mínimo e da capaz de explicar as suas áreas de vão sendo eliminadas com a vigên- livre iniciativa. Em alguns casos, trabalho à luz da nossa história cia de uma rede dirigida pela Rádio frequentemente patrocinados pela política ou econômica e daí inferir Gaúcha, principal emissora do gru- RBS, apresenta-se como portadora e interpretar efetivamente o que po. As rádios de mais de cem muni- de soluções, sugerindo medidas fa- nelas ocorre ou poderá ocorrer. cípios transmitem os noticiários da voráveis a interesses privados. A no- Diversamente do que deveria ser, emissora sediada em Porto Alegre. tícia da reestruturação do Instituto não é possível compreender o que Desse modo, o jornalismo radiofô- de Previdência do Estado - IPE, por se passa nessas áreas e posicio- nico local praticamente desaparece, exemplo, foi antecedida por longas

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE matérias sobre a acessibilidade e be- está submetida a determinados cri- odos. Isto é uma dedução baseada nefícios da previdência privada, pu- térios técnicos, geográficos e outros. na minha experiência e informações. blicadas pelo jornal Zero Hora. Esses critérios concentram as tensões O impacto é evidente e se revela nas que costumam caracterizar as relações formas que acima descrevi. governo-mídia. Quando eles desagra- IHU On-Line – Deseja acres- dam as empresas de comunicação, o “O governo é centar algo? aspecto implícito da relação desapare- apoiado pela mí- ce. As negociações deixam de ser feitas Pedro Osório – Estou convencido pelos executivos polidos e perfumados de que a realidade da imprensa gaúcha dia hegemônica, e passam a ser feitas por verdadeiros (e nacional), tal como a descrevi, pode jagunços. Aí, as ameaças são explíci- ser mudada. E deve. “Não haverá de- que se refere tas: sem a veiculação de anúncios, o mocracia no Brasil sem a democratiza- governo passará a ser atacado – pouco ção da comunicação”, escreveu Daniel aos crescentes importando o que está fazendo ou dei- Herz14, falecido há 11 anos, fundador do xando de fazer. O comportamento das Fórum Nacional pela Democratização problemas do empresas é o mesmo com todos os go- da Comunicação - FNDC. Ela pode ser vernos estaduais. O que muda é o grau alterada a partir da adoção de políticas estado sem cre- de “compreensão” dos seus represen- públicas de comunicação, eliminando tantes, que muitas vezes é influenciado os monopólios, regulando as atividades ditá-los aos di- pela presença deste ou daquele partido das empresas, estabelecendo formas de no governo. participação da sociedade, fomentando rigentes atuais, as pequenas empresas, garantindo a praticamente A segunda fase consiste no seguinte: diversidade, fortalecendo a comuni- as empresas, segundo as próprias, não cação pública – entre muitas outras os desrespon- vendem apoio. Por essa razão, inde- diretrizes. De modo que a imprensa e pendentemente de anúncios já com- a comunicação em geral sejam direcio- sabilizando.” prados, elas não poderão deixar de nadas ao desenvolvimento da cultura e destacar aspectos do governo que jul- da nação brasileira. ■ 43 garem discutíveis ou negativos. Natu- ralmente, a avaliação do que é “discu- 14 Daniel Herz (1954-2006): jornalista nascido em IHU On-Line – Como a im- Porto Alegre, que ficou nacionalmente conhecido tível” ou “negativo” pode estar balizada após escrever o livro A História Secreta da Rede prensa gaúcha costuma se re- pela opinião pública, mas geralmente Globo, publicado originalmente em 1987, no qual lacionar com os sucessivos relata os procedimentos ilegais que levaram à es- está orientada por nova busca de re- truturação da Rede Globo e as relações do dono governos estaduais? E com os desta, , com o poder político cursos governamentais. Essa segunda nacional. Este livro, que teve 14 edições em duas diferentes partidos que elege- fase tem outra face: a empresa estaria editoras, foi uma das fontes de inspiração para ram governadores? o documentário Muito Além do Cidadão Kane, valorizando as realizações do governo, do diretor britânico Simon Hartog. Participou da fundação do Curso de Jornalismo da Universida- Pedro Osório – A relação impren- por isso espera receber mais anúncios. de Federal de Santa Catarina, onde foi professor e As formas de relacionamento dos go- chefe de departamento. Fundou ainda o Instituto sa-governo se dá em duas fases. Inicial- de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom). mente, as empresas oferecem apoio em vernos com a mídia dependem da ca- Seu trabalho no Epcom incentivaria a criação do projeto Donos da Mídia, em 2002. Foi secretário troca de anúncios. Isso está implícito pacidade de interesse de cada um deles de Comunição do governo Olívio Dutra em Porto movimentar-se nesse cenário. Alegre. Militante do movimento pela democra- – quase sempre. Como os governos tização da comunicação durante os anos 1980, efetivamente precisam dar publicidade quando foi coordenador da Frente Nacional de Luta por Políticas Democráticas de Comunica- às suas realizações, obras e iniciativas, ção (1984-85). Também liderou a campanha da IHU On-Line – A verba publi- Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) pela precisam anunciá-las. É preciso tornar citária do governo estadual im- democratização das comunicações durante a público aquilo que é do público. Não Assembleia Nacional Constituinte de 1988. Herz pacta a cobertura jornalística? foi ainda um dos fundadores e, posteriormente, se trata, portanto, de comprar apoio, coordenador do Fórum Nacional pela Democrati- zação das Comunicações (FNDC) e membro da di- mas de imperiosamente anunciar. Na- Pedro Osório – Pelo que sei, ela retoria da Fenaj por várias gestões nos anos 1990. turalmente, a destinação de recursos Participou ativamente como mentor e defensor chega a representar 30% do mercado da Lei da Cabodifusão (Lei 8.977 de 1995). (Nota públicos para anúncios e campanhas publicitário, em determinados perí- da IHU On-Line)

EDIÇÃO 510 TEMA 04

TEMA DE CAPA

A tendência é que o atraso do Rio Grande do Sul se amplie Para Cecilia Hoff, o colapso econômico do estado afeta investimentos, com efeitos a longo prazo

Vitor Necchi

colapso econômico do Rio nas questões federativas. “O governo Grande do Sul não é exclusivo federal vem centralizando cada vez do estado. “Nos últimos dois ou mais as receitas, enquanto a ausência Otrês anos, o que se vê é uma crise genera- de uma política de desenvolvimento lizada na economia brasileira”, avalia a regional induz os estados a entrarem economista Cecilia Hoff. No entanto, há no jogo da guerra fiscal”, avalia. A con- fatores que aprofundaram esse processo sequência é que os serviços que cabem nas finanças locais. Os setores automo- aos estados, entre eles segurança públi- tivos e de máquinas e equipamentos, ca e ensino, estão em crise. que tiveram maior expansão no ciclo de O Rio Grande do Sul não tem mais crescimento dos anos 2000, com parti- espaço para endividamento, a ponto de cipação relevante na economia gaúcha, precisar “receber as receitas do mês para foram duramente afetados. “Além disso, 44 fazer frente às suas obrigações”, mas os a crise atingiu o estado numa situação ingressos são insuficientes. Hoff projeta de deterioração fiscal, sem espaço de que, no curto prazo, a solução passa por endividamento para fazer frente à queda renegociar a dívida com a União. A mé- das receitas e preservar a normalidade dio e longo prazos, é necessário ampliar na prestação dos serviços públicos.” O receitas por meio da recuperação da eco- colapso afeta investimentos, com efeitos nomia, da revisão dos incentivos fiscais a longo prazo. “A infraestrutura é cla- e da “negociação, cada vez mais urgente, ramente insuficiente, os indicadores de de um novo pacto federativo”. educação não são satisfatórios e a ten- dência é que o atraso se amplie”, projeta Cecilia Hoff é doutora e mestra em Hoff em entrevista concedida por e-mail Economia pela Universidade Federal do à IHU On-Line. Rio de Janeiro – UFRJ e graduada em Economia pela Universidade Federal do A crise fiscal é um dos principais pro- Rio Grande do Sul – UFRGS. É pesqui- blemas pelo qual o estado passa. “No sadora em economia na Fundação de lado das despesas, os maiores proble- Economia e Estatística – FEE e profes- mas são a previdência e a dívida. Em- sora da Pontifícia Universidade Católica bora não houvesse clareza na época, a renegociação da dívida de 1998 estabe- do Rio Grande do Sul – PUCRS. leceu condições que acabaram tornan- A entrevista foi publicada em Notícias do a dívida do Rio Grande do Sul impa- do Dia, 29-7-2017, no sítio do Instituto gável”, pondera. Para agravar o quadro, Humanitas Unisinos – IHU, disponível o estado acumula perda de receitas. em http://bit.ly/2wB6XgX. Hoff entende que há um desequilíbrio Confira a entrevista.

IHU On-Line – Do ponto de Cecilia Hoff – Tenho dúvidas se vê é uma crise generalizada na eco- vista econômico, o que carac- de fato há uma crise econômica es- nomia brasileira, que atingiu todas teriza a crise do Rio Grande do pecífica no Rio Grande do Sul. Nos as regiões do país. Esta crise con- Sul e como ela foi gerada? últimos dois ou três anos, o que se juga elementos de esgotamento do

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE

“A situação fiscal não é fácil em vários Estados, mas os casos mais graves são os do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul.”

ciclo econômico e do sistema políti- sive em áreas fundamentais, suficiente para pagar sequer os ju- co brasileiro, em um cenário de in- como ensino, saúde e seguran- ros, que se tornaram muito elevados tensas transformações na sociedade ça. O alcance dessa crise será devido à utilização do IGP-DI como mundial, e ainda precisa ser enten- sentido por muito tempo? indexador. A dívida passou então a dida em toda a sua complexidade. acumular os chamados “resíduos”, Cecilia Hoff – Sim, a falta de No aspecto econômico, o modelo de que esgotaram o espaço de endivi- investimentos hoje provavelmente crescimento que caracterizou o Go- damento do Estado, a despeito dos terá efeitos de longo prazo. A infra- verno Lula parece ter se esgotado a recursos volumosos – e que fizeram estrutura é claramente insuficiente, partir de 2012, tanto por motivos ex- falta em outras áreas – despendidos os indicadores de educação não são ternos (fim do ciclo de expansão dos para o seu pagamento. Por outro satisfatórios e a tendência é que o preços das commodities e início da lado, o estado vem perdendo recei- atraso se amplie. É grave também reversão dos estímulos monetários tas, seja por decisões fundamenta- o desperdício de recursos nos in- nos EUA), quanto internos (limites das na política econômica nacional, vestimentos em infraestrutura que da expansão do crescimento puxa- como a Lei Kandir e, mais recen- 45 foram iniciados e que hoje estão se do pelo crédito). No Governo Dilma, temente, as desonerações, seja em depreciando. Veja-se, por exemplo, houve uma tentativa de mudança do função das renúncias fiscais. as obras paralisadas da nova ponte modelo, com uma maior ênfase ao do Guaíba e a duplicação da BR-116 investimento, mas as medidas ado- no trecho Porto Alegre–Pelotas. Os tadas não surtiram os efeitos espe- IHU On-Line – O déficit da investimentos não serão retomados rados e acabaram ampliando os de- Previdência estadual é fator do ponto em que pararam, haverá sequilíbrios nos fundamentos macro que agrava a situação? Qual o perdas no caminho. – inflação represada e aumento dos alcance desse problema? déficits público e externo. A corre- Cecilia Hoff – A Previdência não ção desses desequilíbrios, iniciada foi um problema no passado, quan- em 2015, jogou a economia brasi- IHU On-Line – O elevado nível do a proporção de aposentados nas leira na maior crise das últimas três de endividamento é explicado receitas fiscais era menor, e talvez décadas. Alguns dos setores que pelos sucessivos déficits orça- também não seja um problema no apresentaram maior expansão no mentários praticados em mais futuro, visto que houve alteração ciclo de crescimento dos anos 2000, de quatro décadas, ou seja, nas regras de aposentadoria, com como o automotivo e o de máquinas receitas orçamentárias insufi- o aumento das contribuições e a e equipamentos, têm participação cientes para suprir os gastos. constituição de um fundo previden- relevante na economia gaúcha e Por que isso ocorreu? ciário para os servidores estaduais. foram duramente afetados. Além Cecilia Hoff – A crise fiscal tem Mas é um problema no presente. disso, a crise atingiu o Estado numa origens tanto no lado das despesas Hoje, o número de matrículas de situação de deterioração fiscal, sem quanto das receitas. No lado das inativos é maior do que o de ativos, espaço de endividamento para fazer despesas, os maiores problemas são e o resultado disso é que o governo frente à queda das receitas e preser- a previdência e a dívida. Embora não gasta uma parcela grande das suas var a normalidade na prestação dos houvesse clareza na época, a renego- receitas com pessoal, ao mesmo serviços públicos. ciação da dívida de 1998 estabeleceu tempo em que há escassez de servi- condições que acabaram tornando a dores para a prestação de serviços dívida do Rio Grande do Sul impagá- públicos essenciais. Ou seja, o gasto IHU On-Line – O colapso nas vel. Isto é, o serviço da dívida, fixado com pessoal dá a impressão de um finanças afeta investimentos como uma proporção máxima das Estado inchado, mas há carências em todos os segmentos, inclu- receitas estaduais, não se mostrou em diversas áreas.

EDIÇÃO 510 TEMA DE CAPA

IHU On-Line – A participação Grande do Sul. Os três têm em co- gações na distribuição federativa dos do Estado na economia nacio- mum uma burocracia estatal antiga, serviços públicos permanecem. Não nal encolheu? Por quê? e, portanto, um alto endividamento é à toa que os serviços de responsa- e uma proporção relativamente ele- bilidade dos Estados, como seguran- Cecilia Hoff – A participação do vada de servidores aposentados no Estado na economia nacional vem ça pública e ensino, estão em crise total dos gastos com pessoal. Rio encolhendo desde meados dos anos em todo o Brasil. Os incentivos fis- Grande do Sul e Minas Gerais tam- 1950. Na FEE [Fundação de Econo- cais implicam na renúncia de recei- bém têm em comum a perda de re- mia e Estatística], temos uma série tas, mas, na lógica federativa atual, ceitas com a Lei Kandir. Nas estima- que vai de 1947 a 1994, que mostra é um dos poucos instrumentos que tivas do governo de Minas, a dívida uma redução de cerca de 9%, no podem ser usados pelos governos poderia ser zerada em um eventual início da série, para 8%, em 1994; para estimular o desenvolvimento encontro de contas com a União. No e outra, não totalmente compará- das suas regiões. Rio Grande do Sul, estima-se que vel com a anterior, porque houve os ressarcimentos atrasados corres- uma mudança metodológica que pondam a algo em torno de 80% da reestimou a participação dos seto- dívida estadual. Mas as semelhanças res no PIB, que mostra uma redu- “Como não há param por aí. Tanto o Rio de Janeiro ção da participação de cerca de 7% quanto Minas Gerais têm uma parte em 1995 para 6% em 2013. Devido mais espaço importante das suas receitas fiscais às limitações da estatística, não é vinculadas ao desempenho da indús- possível dizer que a participação da para o endivi- tria extrativa (petróleo e gás, no caso economia gaúcha se reduziu de 9% do Rio, minério de ferro, no caso de para 6% em todo o período, mas dá damento, con- Minas). Nos dois casos, a queda dos para dizer que há uma tendência de preços das commodities contribuiu sumido pela redução em ambas as séries. para ampliar a frustração de receitas De todo modo, esse não parece ser na crise. No Rio, a queda das com- trajetória insus- um bom indicador para avaliar o modities se somou a uma crise espe- 46 desempenho econômico, é cheio de cífica na Petrobras. No Rio Grande tentável da dí- armadilhas. Um crescimento abaixo do Sul, a indústria extrativa é pra- da média nacional não necessaria- ticamente ausente, e a indústria de vida, o Estado mente é um problema, se o todo está transformação é mais diversificada. em crescimento e o seu ritmo é sufi- precisa receber ciente para que a região se desenvol- as receitas do va. Além disso, é esperado que nos IHU On-Line – A guerra fis- ciclos de expansão as regiões relati- cal travada entre as unidades mês para fazer vamente mais atrasadas cresçam de federativas para atração de forma mais acelerada, o que ajuda a investimentos reduz a arreca- frente às suas reduzir as desigualdades regionais. dação, por conta da concessão A questão que parece relevante é se de incentivos. No Rio Grande obrigações” o Estado tem condições de se articu- do Sul, a estimativa é de que lar de forma dinâmica na divisão na- haja uma renúncia fiscal de R$ cional do trabalho, isto é, se o cres- 9 bilhões ao ano. Essa política cimento se dá em setores modernos, que se expandiu fortemente IHU On-Line – A falta de com capacidade de evolução e adap- nos anos 1990 é salutar para o transparência em relação às in- tação, ou em segmentos atrasados e Rio Grande do Sul ou ajudou a formações acerca da concessão de baixa produtividade. agravar a crise? de incentivos fiscais impede uma avaliação mais criteriosa Cecilia Hoff – Há um desequilí- sobre a eficácia dessa política? brio nas questões federativas, com IHU On-Line – A crise pela repercussões gerais, que não atin- Cecilia Hoff – Sem dúvida. A re- qual passa o Rio Grande do Sul gem apenas o Rio Grande do Sul. O núncia fiscal de R$ 9 bilhões parece tem que semelhanças e diferen- governo federal vem centralizando um exagero e escancara a necessida- ças com a situação dos outros cada vez mais as receitas, enquan- de de uma avaliação, mas a revisão Estados? to a ausência de uma política de precisa ser cuidadosa. As empresas Cecilia Hoff – A situação fiscal desenvolvimento regional induz os que recebem incentivos fiscais pa- não é fácil em vários Estados (e tam- Estados a entrarem no jogo da guer- gam impostos (mesmo que parcial- bém em alguns municípios), mas os ra fiscal. O resultado é a redução da mente) e geram empregos e renda, casos mais graves são os do Rio de parcela dos Estados no bolo tributá- que também têm os seus efeitos in- Janeiro, de Minas Gerais e do Rio rio nacional, enquanto as suas obri- diretos na arrecadação. Além disso,

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE muitos dos incentivos são concedi- gressos não são suficientes, e a conta papel estratégico desses órgãos dos para empresas que se instalam não fecha. A queda das receitas é tão em áreas de pesquisa e assesso- em regiões de baixo desenvolvimen- grave que a suspensão do pagamento ramento para o Estado? to. A possibilidade de perdas de em- das parcelas da dívida, enquanto são Cecilia Hoff – O governo fez uma presas e de empregos não pode ser conduzidas as negociações do acordo estimativa simples e equivocada de desconsiderada. Ou seja, a revisão é de recuperação fiscal dos Estados, economia com a extinção das fun- necessária, e pode vir a ser uma so- não foi suficiente para equilibrar a dações. Tomou a diferença entre as lução para os desequilíbrios fiscais situação fiscal. No curto prazo, a so- receitas e as despesas de cada uma do Estado a médio prazo, mas não é lução passa por uma renegociação da delas como o potencial de recursos trivial e precisa estar fundamentada dívida, que revise o seu estoque e per- que poderiam ser economizados, e em uma análise séria e transparente mita a tomada de novos recursos, seja não explicou como os serviços conti- de custo-benefício. para colocar as obrigações do Estado em dia, seja para substituir parcelas nuarão sendo prestados (mesmo que da dívida atual por contratos com ju- reduzidos aos que considera essen- ros mais baixos. O governo federal, ciais) e quanto isso vai custar, nem IHU On-Line – O Estado não porém, tem se mantido intransigente colocou esses valores entre as des- tem mais fontes de financia- e há o risco de que a renegociação, se pesas futuras. O plano era demitir mento. Conforme a FEE, o es- levada a cabo, seja conduzida nova- todos os funcionários concursados, toque de depósitos judiciais mente sob condições impraticáveis. com larga experiência em suas áreas, foi praticamente exaurido, e o A médio e longo prazos, o caminho é para depois buscar no mercado pro- limite de endividamento legal ampliação das receitas, seja pela re- fissionais para exercer as mesmas foi superado no primeiro qua- cuperação da economia e pela revisão atividades, mas sem concurso ou drimestre de 2015. O que resta dos incentivos fiscais, seja pela nego- experiência. Desconsiderou o cará- como estratégia de curto prazo? ciação, cada vez mais urgente, de um ter cumulativo da pesquisa e o patri- Cecilia Hoff – A queda conjun- novo pacto federativo. mônio científico que seria perdido. tural das receitas, provocada pela Atacou a pesquisa em suas diferen- recessão, pegou o estado de “calças tes áreas, da economia e estatística curtas”. As despesas são rígidas, IHU On-Line – Para justificar ao meio ambiente, da tecnologia à 47 concentradas em gastos com pesso- a extinção de nove fundações e gestão metropolitana, simultane- al, sobretudo na educação, na segu- a venda de três estatais como amente. De todos os ângulos, esse rança e na previdência. Como não há estratégia para combater a cri- projeto é um crime administrativo. mais espaço para o endividamento, se, o governador José Ivo Sar- É claro que as fundações precisam consumido pela trajetória insusten- tori apresentou uma economia ser modernizadas (assim como toda tável da dívida, o Estado precisa re- na casa dos milhões. Como essa a administração pública), mas a mo- ceber as receitas do mês para fazer medida pode ser avaliada, se dernização se faz com gestão, não frente às suas obrigações. Mas os in- for levado em conta também o com o desmonte das instituições. ■

EDIÇÃO 510 TEMA 05

TEMA DE CAPA

Rio Grande do Sul vive estagnação desde 2014 Róber Iturriet Avila afirma que a situação do estado é complexa, e repostas simplistas como “gastou demais” são limitadas

Vitor Necchi

Rio Grande do Sul criou um es- pouca transparência sobre essas deso- tado moderno e uma burocracia nerações e sobre o seu retorno”, pois o estatal antes das demais unida- estado alega sigilo fiscal. “Em um mo- Odes do Brasil. A lembrança é feita pelo mento grave como este, estudos sobre o economista Róber Iturriet Avila quando retorno dos incentivos fiscais são impe- começa a explicar o elevado grau de en- rativos.” Avila salienta que o combate à dividamento do estado. Além disso, os sonegação fiscal deve ser considerado gaúchos têm uma das maiores expectati- como medida para enfrentamento da vas de vida do país. “Isso quer dizer que crise. “A questão é complexa, e as re- o estado possui muitas pessoas aposen- postas simplistas como ‘gastou demais’ tadas e que vivem muito. Então, quando são limitadas”, critica. se observam as contas do estado, logo se percebe que os gastos com inativos são Nesta entrevista, Avila apresenta 48 superiores aos gastos com os servido- os distintos ciclos da economia do res ativos”, analisa Avila, em entrevista Rio Grande do Sul, desde a fase de concedida por e-mail à IHU On-Line. industrialização, entre 1930 e 1980, “Isso tem um custo alto.” quando houve elevadas taxas de cres- cimento neste setor, até a estagnação Outro fator lembrado por Avila é o iniciada em 2014 e que perdura até o fato de que, desde a década de 1990, momento. adotou-se a prática de concessão de elevados benefícios fiscais para atração Róber Iturriet Avila é doutor e mes- de investimento. As desonerações eram tre em Economia e graduado em Ciências 20% da arrecadação em 2003 e pula- Econômicas pela Universidade Federal ram para 30% em 2015. Nesse último do Rio Grande do Sul – UFRGS, onde ano, totalizaram R$ 8,98 bilhões. “De leciona no Departamento de Economia um lado, aumenta a despesa com ina- e Relações Internacionais. É colunista do tivos e, de outro, o estado abre mão de portal Brasil Debate. Foi analista pesqui- receitas de maneira crescente”, resume. sador da Fundação de Economia e Esta- A situação se torna mais nebulo- tística – FEE. sa porque, conforme o professor, “há Confira a entrevista.

IHU On-Line – Na primeira Róber Iturriet Avila – O desem- entra numa fase de menor cresci- metade do século 20, o Estado penho da economia gaúcha possui mento, o que encontra paralelo com mantinha uma base agropecuá- relação com o movimento geral da o ocorrido no mundo como um todo. ria forte, expandiu a indústria, economia brasileira. Entre 1930 e As taxas de crescimento caem glo- conseguia influenciar a política 1980, ocorreu o período de indus- balmente. Assim, entre 1948 e 1980, nacional e nasceram empresas trialização, com elevadas taxas de o crescimento econômico no Brasil do porte da Varig. Como foi a crescimento neste setor. Após a dé- e no Rio Grande do Sul foi liderado segunda metade? cada de 1980, a economia nacional pela indústria, com taxas de cresci-

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE

“O desempenho da economia gaúcha possui relação com o movimento geral da economia brasileira”

mento na ordem de 8,1% ao ano 21, houve maior expansão, em ali- ça. Alguns setores foram planejados, nesse setor da economia gaúcha. nhamento com a economia nacio- como o petroquímico, ou incentiva- No período do Plano de Metas, a nal e internacional. Nesse período, dos com políticas públicas, como o agropecuária gaúcha sofreu uma a indústria gaúcha passa a ter um metalomecânico e o naval, agora em crise, e por esse motivo a econo- desempenho muito fraco, e o cresci- decadência. Mas uma análise mais mia gaúcha cresceu três pontos mento é puxado pela agropecuária, ampla requer mais espaço para co- percentuais abaixo da economia no chamado período do superciclo mentar todo esse processo, suas con- brasileira entre 1956 e 1960. Reto- das commodities, a despeito de al- tradições e limites. mou o crescimento em 1961 e 1962 guns anos de forte estiagem, como e depois ficou estagnado novamen- em 2005 e 2012. É preciso notar que te até 1967. Todavia, no período a indústria gaúcha sofreu bastante IHU On-Line – De que manei- ra o Rio Grande do Sul chegou a do Milagre Econômico, de 1968 a com a apreciação cambial ocorrida um patamar tão grave de endi- 1973, a agropecuária gaúcha teve em grande parte do período. Desde vidamento, sem capacidade de um decisivo crescimento, a ponto 2014, temos uma fase de estagna- 49 investimento? de marcar uma inflexão, sobre- ção, seguida de dois anos de forte tudo pela ampliação da produção retração e, para este ano de 2017, se Róber Iturriet Avila – O Rio de soja (616,8% no período). Esse desenha um cenário de estagnação, Grande do Sul criou um estado mo- produto se torna o principal do se- em linha com o que ocorre no país. derno antes das demais unidades tor primário. Entre 1981 e 1994, o do Brasil. Getúlio Vargas1 inicia seu país passou por um período de ins- projeto de “modernização” do país IHU On-Line – Qual o perfil tabilidade macroeconômica, sendo a partir da experiência gaúcha, que da matriz econômica do esta- que entre 1981 e 1983 a economia vem com Júlio de Castilhos2. Então, do? É diversificada? Foi bem do estado decresceu consecutiva- planejada? 1 Getúlio Vargas [Getúlio Dornelles Vargas] mente. Recessão também em 1990 (1882-1954): político gaúcho, nascido em São e 1991. E então alguns setores tra- Róber Iturriet Avila – Mesmo Borja. Foi presidente da República nos seguintes períodos: 1930 a 1934 (Governo Provisório), 1934 dicionais da indústria gaúcha pas- que a indústria tenha sofrido, ela é a 1937 (Governo Constitucional), 1937 a 1945 (Regime de Exceção) e de 1951 a 1954 (Gover- sam por problemas, como couro bastante diversificada. Existem de- no eleito popularmente). Recentemente a IHU e calçados. A abertura econômica zenas de aglomerações industriais e On-Line publicou o Dossiê Vargas, por ocasião dos 60 anos da morte do ex-presidente, dispo- afetou o desempenho da indústria agroindustriais. Além dos tradicio- nível em http://bit.ly/1na0ZMX. A IHU On-Line dedicou duas edições ao tema Vargas, a 111, de a partir dos anos 1990, e mesmo nais setores de calçados, couro, ves- 16-08-2004, intitulada A Era Vargas em Questão – a produção agrícola não foi muito tuário, fumo, leite, móveis, madeira 1954-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon111, e a 112, de 23-08-2004, chamada Getúlio, dispo- positiva neste período, tendo os e alimentos agrícolas (como frutas, nível em http://bit.ly/ihuon112. Na edição 114, de 06-09-2004, em http://bit.ly/ihuon114, Daniel serviços puxado o crescimento. milho, trigo, soja e arroz) e da pecu- Aarão Reis Filho concedeu a entrevista O desa- ária (gado, suínos e frango), há tam- fio da esquerda: articular os valores democráticos com a tradição estatista-desenvolvimentista, que bém máquinas agrícolas, compo- também abordou aspectos do político gaúcho. IHU On-Line – E nessas pri- nentes eletrônicos, metalomecânico, Em 26-08-2004, Juremir Machado da Silva, da PU- meiras duas décadas do século C-RS, apresentou o IHU Ideias Getúlio, 50 anos automotivo, petroquímica, refino de depois. O evento gerou a publicação do número 21, qual a situação? 30 dos Cadernos IHU Ideias, chamado Getúlio, petróleo, fabricação de máquinas, romance ou biografia?, disponível em http://bit. ly/ihuid30. Ainda a primeira edição dos Cadernos Róber Iturriet Avila – O corte polos tecnológicos, pedras precio- IHU em formação, publicada pelo IHU em 2004, analítico mais adequado aqui é ini- sas, equipamentos médicos etc. É era dedicada ao tema, recebendo o título Popu- lismo e Trabalho. Getúlio Vargas e Leonel Brizola, ciar em 1995, com uma nova fase preciso considerar também polos de disponível em http://bit.ly/ihuem01. (Nota da IHU On-Line) da economia. No final do século serviços, como as cidades universitá- 2 Júlio de Castilhos (1860-1903): político gaúcho. 20, a economia cresceu de maneira rias, comerciais e mais militarizadas, Em 15 de julho de 1891, foi eleito presidente do estado do Rio Grande do Sul. Com a queda de De- moderada, mas, no início do século essa última por ser região fronteiri- odoro da Fonseca, foi deposto em 3 de novembro

EDIÇÃO 510 TEMA DE CAPA

constituímos uma burocracia estatal atual. O que a situação tem de em períodos recentes, as regiões antes dos demais. Além disso, o esta- mais agudo? menos desenvolvidas crescem mais, do figura entre as maiores expectati- o que faz as regiões mais desenvol- Róber Iturriet Avila – Entre vas de vida do país. Isso quer dizer vidas perderem participação. Um 1981 e 1983, as taxas de crescimento que o estado possui muitas pessoas fator relevante é a localização do foram negativas três anos consecuti- aposentadas e que vivem muito. En- estado, em um extremo do país. A vos, mas uma redução modesta, entre tão, quando se observam as contas localização de Minas Gerais e São 0,6% e 1,7%. Os anos de 1990 e 1991 Paulo é, sem dúvidas, mais vanta- do estado, logo se percebe que os foram também difíceis, com quedas josa. De outro lado, estamos mais gastos com inativos são superiores mais acentuadas. Entre 2014 e 2016, próximos de parceiros relevantes aos gastos com os servidores ativos. houve novamente três anos consecu- como o Uruguai e a Argentina, mas Isso tem um custo alto. tivos de queda, mas nos últimos dois que possuem uma estrutura produ- Paralelamente, desde a década de anos foram de -3,4% e -3,1%. Então, de fato, são expressivos. Quando o tiva semelhante à gaúcha, então são 1990, instalou-se uma cultura de também competidores e não apenas conceder benefícios fiscais expres- produto cai, as receitas tributárias mercados consumidores. sivos para atrair investimento. Des- caem em uma proporção maior. Isso sa forma, as desonerações fiscais em um quadro anterior já existente Temos um nível de escolarida- são consideráveis no estado do Rio de esgotamento do endividamento e de um pouco mais elevado do que Grande do Sul. Elas saem de um pa- elevado custo com servidores aposen- a média brasileira, o que faz a mão tamar de 20% da arrecadação, em tados. A situação é mesmo delicada. de obra ser um pouco mais custosa, 2003, para 30%, em 2015. Nesse úl- Mas essa crise ocorre em paralelo de um lado, e produtiva, de outro. timo ano, elas totalizaram R$ 8,98 com a crise brasileira, que encontra Adicionalmente, devido ao peso da bilhões. Então, de um lado, aumenta muitos determinantes, desde fatores agropecuária, as variações climáti- a despesa com inativos e, de outro, o externos, como a queda expressi- cas afetam a economia gaúcha com estado abre mão de receitas de ma- va dos termos de troca, ou seja, dos intensidade, sobretudo as estiagens. neira crescente. preços das nossas exportações com Temos uma fronteira agrícola prati- relação às importações, que se inicia camente esgotada, ao contrário do É preciso salientar que há pouca 50 em 2011 e se agrava a partir do últi- que ocorre em outros estados como transparência sobre essas desone- mo quadrimestre de 2014, mas passa Mato Grosso, por exemplo. rações e sobre o seu retorno. A cifra também pelo ajustamento fiscal des- não é insignificante, pelo contrário. de 2015, que puxa a economia para Sob outro aspecto, a economia gaú- A falta de transparência justiçou a re- baixo e, é claro, a crise política que cha tem potenciais relevantes, como presentação do Ministério Público do afeta a questão anímica dos agentes, o setor de grãos, veículos e bens de Estado, que solicitou as informações. deteriora as expectativas, traz incer- capital. Esse último, em particular, O Estado argumenta que é preciso res- teza e receios que fazem os investi- possui potencial de ser fornecedor à peitar o sigilo fiscal, mas quem paga a mentos e os gastos das famílias se re- economia brasileira e a países do en- desoneração é a sociedade. Em um traírem. Além disso, a Operação Lava torno. Com a desvalorização cambial momento grave como este, estudos Jato afeta a economia real, sobretudo nos anos recentes, pode haver recu- sobre o retorno dos incentivos fiscais no município de Rio Grande, que é peração das exportações, além de fa- são imperativos. De toda forma, não é atingida também pela revisão da po- tores relevantes como a revogação de possível revogar com facilidade essas lítica da Petrobras. subsídios das exportações agrícolas desonerações. O combate à sonegação nos países desenvolvidos, que estão fiscal é outro aspecto a considerar e ele em vigor desde janeiro de 2016. Isso tem crescido, sobretudo com a infor- IHU On-Line – O quanto o Rio tem potencial de favorecer a econo- matização. A questão é complexa e as Grande do Sul é competitivo, mia gaúcha e suas exportações. repostas simplistas como “gastou de- em comparação com os outros mais” são limitadas. Estados? Qual sua capacidade de atrair investimentos? IHU On-Line – O acordo da dívida pública com a União, Róber Iturriet Avila – O Rio assinado pelo ex-governador IHU On-Line – O governo gaú- Grande do Sul vem perdendo parti- Antônio Britto em 1998, é um cho considera que não há pre- cipação na economia nacional, o que dos fatores que mais elevam cedentes para a crise financeira não é uma surpresa. De um lado, es- o déficit do estado. Lidar com tamos em uma fase mais avançada do mesmo ano. Pouco mais de um ano depois, este tema é determinante para disputa uma eleição (sem concorrentes) e volta a de envelhecimento populacional do ocupar o antigo posto. Empossado em 1893, con- atenuar a crise financeira? tém a Revolução Federalista, de tendência parla- que o Brasil como um todo e, con- mentarista e liderada por Gaspar Silveira Martins. sequentemente, temos o mais baixo Róber Iturriet Avila – A repac- Sobre Júlio de Castilhos, confira a edição 14 dos Cadernos IHU Ideias, intitulado Júlio de Castilhos crescimento demográfico. Além dis- tuação firmada em 1997 tinha rela- e Borges de Medeiros: a prática política no RS, de ção com a restrição da emissão de autoria de Gunter Axt, e a IHU On-Line número 78, so, em um processo de desconcentra- de 6-10-2003. (Nota da IHU On-Line) ção do crescimento, como o ocorrido títulos estaduais, em aderência ao

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE projeto de estabilização originado na (IGP-DI) acrescido de uma taxa acordo político entre várias partes. no Plano Real. Ou seja, os estados de juros de 6% ao ano. Na época, O que está no horizonte é redução deixaram de emitir títulos e apenas parecia um bom negócio, mas o tem- de serviços públicos, corte de pes- a União ficou com essa prerrogativa, po mostrou que não foi. Ou seja, as soal, privatizações e manutenção a não ser que o Senado Federal e a taxas de juros são elevadas, há risco dos elevados incentivos fiscais no União autorizem. Assim, a União as- cambial e o comprometimento na estado. Ou seja, apenas partes da sumiu a dívida mobiliária dos esta- despesa mensal é considerável. sociedade pagarão a conta: aquela dos brasileiros. Imediatamente após que precisa dos serviços públicos Um novo acordo está em processo, a implementação do Plano Real, as e das empresas estatais, além dos exigindo a ampliação da contribui- taxas de juros se elevaram conside- próprios servidores. Não parece ção previdenciária, privatizações, ravelmente. Isso fez a dívida do es- uma saída equilibrada. Uma nova restrição de reajustes salariais e tado do Rio Grande do Sul crescer rodada de negociação deveria co- contratações, além de outros cortes muito entre 1994 e 1998. Além disso, locar em pauta um alinhamento de gastos. Medidas duras. Haveria tributário no país, para mitigar as receitas tributárias eram corrigi- também a revisão de 10% dos incen- das pela inflação (elevada) no perí- a guerra fiscal, a qual fragiliza as tivos fiscais. O governador José Ivo contas dos estados e que é respon- odo anterior, ao contrário das des- Sartori negocia a retirada dessa cláu- pesas; esse processo é chamado de sável por considerável perda de re- sula de revisão de incentivos fiscais, ceita do Rio Grande do Sul. Além, “imposto inflacionário”. Com a redu- o que me parece um erro. ção das taxas de inflação, os estados é claro, de um novo pacto federa- passaram a ter mais dificuldades em tivo, que clarifique o que é compe- tência de cada ente. Do contrário, um momento de taxas de juros altas. IHU On-Line – Deseja acres- será apenas um projeto neoliberal centar algo? O contrato firmado com a União de redução dos serviços públicos, previa pagamentos mensais até o li- Róber Iturriet Avila – A situa- privatizações, oneração financeira mite de 13% da Receita Líquida Real. ção das finanças públicas do estado pelos estados e manutenção de be- A dívida é reajustada pelo Índice Ge- é grave. As soluções não são fáceis, nesses fiscais. Esse é o novo “acor- ral de Preços-Disponibilidade Inter- mas precisam de um mínimo de do salvador” na mesa. ■ 51

EDIÇÃO 510 TEMA 06

TEMA DE CAPA

O eleitor gaúcho hoje elege dementes Para Francisco Marshall, o governador do estado e o prefeito de Porto Alegre não sabem governar e não têm capacidade de estudo

Vitor Necchi

professor Francisco Marshall estudo, diálogo, inovação, planejamen- é severo ao falar dos gaúchos: to, não conseguem formar equipes de “Não temos homogeneidade qualidade e liderá-las com inteligência Osuficiente para constituir um povo; e serenidade”. somos uma equação desequilibrada Para Marshall, “as autoridades não de segmentos sociais discordantes. percebem que as emanações culturais Há delicadeza e grossura, cultura e são a fonte mais virtuosa para o de- ignorância, lucidez e demência po- senvolvimento”. Reconhece o poder do líticas, mas creio que predomina a capital, mas agarra-se ao humanismo inconsistência cultural, sobretudo como perspectiva. “O capital alimen- nas classes afluentes”. O mesmo tom ta-se do humano para concentrar-se, se estende à análise das escolhas: “O tornar-se cada vez maior – e mais de- eleitor gaúcho hoje elege dementes e vastador. Seu limite e sua única chance 52 se aliena com cara de penico. Se não de têmpera é o humanismo”. está morta, a cultura política gaúcha hiberna pesadamente”. Francisco Marshall é historiador e arqueólogo. Licenciado em Histó- No seu entendimento, a demagogia é ria pela Universidade Federal do Rio o principal problema das democracias. Grande do Sul - UFRGS e doutor em “Os eleitores votam iludidos em can- História Social pela Universidade de didatos inconsistentes, enganados por São Paulo - USP, fez estágio pós-dou- imagens manipuladas. Estes candida- toral na Princeton University (EUA) e tos costumam não declarar ou detalhar na Ruprecht-Karls-Universität Heidel- programa, mas uma vez eleitos aplicam berg (Alemanha). Leciona na UFRGS. É pacotes ideológicos automatizados, fundador e curador cultural do Studio- como o caso atual do neoliberalismo Clio - Instituto de Arte & Humanismo, de sarjeta, hoje epidêmico”, avalia em em Porto Alegre. Publicou Édipo Tira- entrevista concedida por e-mail à IHU no, a tragédia do saber (EdUFRGS e On-Line. Sobre o governador do esta- EdUnB, 2000), que venceu o Prêmio do e o prefeito de Porto Alegre, utiliza o mesmo juízo: “Simplesmente não sa- Açorianos 2001. bem governar, não têm capacidade de Confira a entrevista.

IHU On-Line – É notória a cri- pensa ser o que não é, é o que samento acadêmico pela insen- se econômica pela qual passa o não pensa ser. satez de governantes desprepa- Rio Grande do Sul. Para além 2) Política: degradação da demo- rados. dela, que outras crises o estado cracia, vazio de articulação entre 3) Econômica e fiscal: com desin- vive e por quê? sociedade, partidos e lideranças, dustrialização e sem projeto de ausência de debate de alto nível desenvolvimento, incapaz de Francisco Marshall – Sete pon- para planejamento e determi- agregar valor à produção primá- tos: nação de metas, derrota da alta ria, incapaz de combinar pesqui- 1) Narcísica, ao modo lacaniano: burocracia de Estado e do pen- sa em C&T com desenvolvimen-

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE

“O eleitor gaúcho hoje elege dementes e se aliena com cara de penico”

to social e econômico, capacho to dos carros para facilitar o fluxo como das experiências do Orçamen- derrotado na guerra fiscal (com das motocicletas, autoridades pre- to Participativo3 e seu irmão cultu- a União e com os demais esta- ferem caçar multas fáceis a educar ral, o Fórum Social Mundial4; tudo dos), o Rio Grande do Sul cresce motoristas, há muitos acidentes e no passado, sucumbido, arquivado. como rabo de cavalo. mortes, as pessoas abrem a janela O eleitor gaúcho hoje elege demen- 4) Social: persistência e mesmo do carro e jogam lixo pela janela, tes e se aliena com cara de penico. expansão das favelas em cida- combate-se plano cicloviário como Se não está morta, a cultura política des médias e grandes, ausência se fora ideia de esquerdista; isto é gaúcha hiberna pesadamente. de recursos e projetos públicos espelho de uma sociedade incivili- para os fundamentos da cidada- zada e metáfora do que ocorre no nia (ciência, cultura, educação, restante da sociedade gaúcha, por- IHU On-Line – O que há de espaços públicos, saúde e segu- to-alegrense em particular. Quanto arcaico e de contemporâneo rança), desmotivação da juven- ao politizado, fica por conta de Ge- no estado? tude. 53 túlio Vargas1 e Leonel Brizola2, bem Francisco Marshall – A estrutu- 5) Educacional: escolas públicas ra produtiva básica é da era colonial e professorado historicamente 1 Getúlio Vargas [Getúlio Dornelles Vargas] (âncora na produção primária sem depreciados. (1882-1954): político gaúcho, nascido em São Borja. Foi presidente da República nos seguintes valor agregado – soja in natura); tal 6) Moral: safados atacam prin- períodos: 1930 a 1934 (Governo Provisório), 1934 a 1937 (Governo Constitucional), 1937 a 1945 como no Brasil, as lideranças em- cípios virtuosos movidos por (Regime de Exceção) e de 1951 a 1954 (Gover- fundamentalismo ideológico e no eleito popularmente). Recentemente a IHU presariais (agronegócio, comércio, On-Line publicou o Dossiê Vargas, por ocasião indústria e serviços) não assumem ganância, com aplauso de im- dos 60 anos da morte do ex-presidente, dispo- nível em http://bit.ly/1na0ZMX. A IHU On-Line seu potencial burguês e sufocam a prensa lacaia. dedicou duas edições ao tema Vargas, a 111, de 7) Histórica: começou faz tempo, 16-08-2004, intitulada A Era Vargas em Questão – transformação social possível pelo 1954-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon111, trabalho, o que bloqueia o futuro e não dá sinais de que será supe- e a 112, de 23-08-2004, chamada Getúlio, dispo- nível em http://bit.ly/ihuon112. Na edição 114, produz tensão social. Parte desse rada. de 06-09-2004, em http://bit.ly/ihuon114, Daniel Aarão Reis Filho concedeu a entrevista O desa- fio da esquerda: articular os valores democráticos 3 Orçamento Participativo (OP): mecanismo IHU On-Line – O senso co- com a tradição estatista-desenvolvimentista, que governamental de democracia participativa, por também abordou aspectos do político gaúcho. meio do qual cidadãos podem influenciar ou mum diz que o povo gaúcho Em 26-08-2004, Juremir Machado da Silva, da PU- decidir sobre a destinação dos investimentos de C-RS, apresentou o IHU Ideias Getúlio, 50 anos orçamentos públicos de prefeituras municipais. é educado, culto e politizado. depois. O evento gerou a publicação do número Uma experiência pioneira ocorreu em no municí- Onde está o acerto ou o exagero 30 dos Cadernos IHU Ideias, chamado Getúlio, pio de Porto Alegre (RS), em 1989, com o primeiro romance ou biografia?, disponível em http://bit. governo do Partido dos Trabalhadores (PT). A ex- dessa afirmação? Por quê? ly/ihuid30. Ainda a primeira edição dos Cadernos periência inspirou uma série de municípios, como IHU em formação, publicada pelo IHU em 2004, Saint-Denis (França), Rosário(Argentina), Mon- Francisco Marshall – Não te- era dedicada ao tema, recebendo o título Popu- tevidéu (Uruguai), Barcelona (Espanha), Toronto lismo e Trabalho. Getúlio Vargas e Leonel Brizola, (Canadá), Bruxelas (Bélgica), Belém (Pará), Santo mos homogeneidade suficiente disponível em http://bit.ly/ihuem01. (Nota da IHU André (SP), Aracaju (Sergipe), Blumenau (SC), Re- On-Line) cife (PE), Olinda (PE), Belo Horizonte (MG), Atibaia para constituir um povo; somos 2 Leonel Brizola (1922-2004): político brasileiro, (SP), Guarulhos (SP) e Mundo Novo (MS). (Nota uma equação desequilibrada de nascido em Carazinho, no Rio Grande do Sul. Foi da IHU On-Line) prefeito de Porto Alegre, governador do Rio Gran- 4 Fórum Social Mundial (FSM): é um evento segmentos sociais discordantes. de do Sul, deputado federal pelo extinto estado altermundialista organizado por movimentos da Guanabara e duas vezes governador do Rio sociais de muitos continentes, com objetivo de Há delicadeza e grossura, cultura e de Janeiro. Sua influência política no Brasil durou elaborar alternativas para uma transformação ignorância, lucidez e demência po- aproximadamente 50 anos, inclusive enquanto social global. Seu slogan é “Um outro mundo é exilado pelo Golpe de 1964, contra o qual foi possível”. O número de participantes cresceu nas líticas, mas creio que predomina a um dos líderes da resistência. Por várias vezes foi sucessivas edições do Fórum: de 10 mil a 15 mil candidato a presidente do Brasil, sem sucesso, e no primeiro fórum, em 2001, a cerca de 120 mil inconsistência cultural, sobretudo fundou um partido político, o PDT. Sobre Brizola, em 2009, com predominância de europeus, nor- nas classes afluentes. O trânsito é confira a primeira edição dos Cadernos IHU em te-americanos e latino-americanos, exceto em formação intitulado Populismo e trabalho. Getúlio 2004, quando o evento foi realizado na Índia. Os bom espelho da grossura hegemôni- Vargas e Leonel Brizola, disponível em http://bit. fóruns são realizados anualmente. Os dois primei- ly/ihuem01. Leia também a IHU On-Line intitulada ros foram em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. ca: não se respeita pedestre, poucos Leonel de Moura Brizola 1922-2004, disponível em A partir de então, decidiu-se que seria itinerante. cedem espaço, não há alinhamen- http://bit.ly/ihuon107. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 510 TEMA DE CAPA

atraso se reflete em lideranças de como o caso atual do neoliberalismo do Porto: trata-se de um projeto hor- péssima qualidade e de ideologias de sarjeta, hoje epidêmico, que hos- rendo, que quer shopping center em atrasadas e improdutivas. Mais que tiliza a palavra “público” e acalenta área vocacionada a parque, e baseia- arcaico (o princípio que pode se diversos compromissos com o que se em modelo de verticalização e modernizar), este lastro é de índole chama de “privado”: os interesses de economia concentrada, em lugar de retrógrada. Por incrível que pare- grandes corporações e mamatas para horizontalização e economia criativa ça, temos contemporaneidade em parceiros empresariais. Ademais, e cooperativa, recomendadas para alguns aspectos (não muitos): artes estes gestores (como, e.g., [Nelson] revitalizações urbanísticas. Repleto de excelente qualidade (especial- Marchezan Jr.5 e [José Ivo] Sartori6) de vícios e mesmo delitos, o projeto mente artes visuais, cinema, litera- simplesmente não sabem governar, é protegido por agentes muito sus- tura e música), ciência e cientistas não têm capacidade de estudo, diá- peitos na administração municipal de bom nível em vários campi, fes- logo, inovação, planejamento, não (Executivo e Legislativo) e estadual, tivais culturais muito interessantes conseguem formar equipes de quali- e conta com certa leniência e mo- (Fronteiras do pensamento, PoA dade e liderá-las com inteligência e rosidade judiciária, aparentemente em Cena, Virada sustentável, Noi- serenidade, não possuem qualquer refém do medo de onerar o poder te dos Museus, PoA Jazz Festival, virtude acadêmica ou conhecimento público com eventual indenização FantasPoa Literária, entre outros), contemporâneo, então sua sujeição rescisória. Enquanto isso, perdemos jovens com capacidade de inovação ideológica e seus erros, próximos da o tempo precioso para ali desenvol- e, sobretudo, um resíduo de gente demência, tornam-se ainda mais pa- ver um projeto realmente bom, bo- consciente, capaz de ao menos per- téticos e onerosos para a população. nito, eficiente e contemporâneo, o ceber e denunciar o rumo errado Para quem não sabe governar, a ide- qual nem requer recursos vultosos, de muitas decisões – resistência ologia de pacote pronto preconiza, e apenas inteligência, atualidade e es- iluminista em era de catástrofes. a mídia lacaia ratifica: privatiza! pírito público. Logo, enquanto a opi- Nos dois casos apontados, há uma nião pública não perceber os riscos erosão perversa da esfera pública de apoiar este tipo de políticos (de- e um solapamento da inteligência magogos inconsistentes e nocivos) e o alto preço de sua alienação social e 54 “Se não está contemporânea e de potenciais vir- tuosos. Mercado Público: o jovem política, estaremos expostos a muita morta, a cultu- prefeito tomou como alvo a palavra batalha para evitar catástrofes, que (público) e antes de diagnosticar podem ocorrer. ra política gaú- qualquer problema e de examinar como solucioná-lo, na condição de IHU On-Line – Não é curioso cha hiberna gestor, aperta um botão; simplório, que os integrantes do movi- ineficiente, possivelmente interes- mento tradicionalista, de ma- pesadamente” seiro (alguém lucrará, e isso pode neira geral, valorizem como bonificar o demagogo profissional, atributo dos gaúchos traços na forma de apoios e verbas). Cais rústicos, chulos e grosseiros? IHU On-Line – O atual pre- 5 Nelson Marchezan Júnior (1971): advogado, Francisco Marshall – Os regio- feito de Porto Alegre defende administrador e político nascido em Porto Alegre. Não tinha maiores pretensões na política até a nalistas defendem também valores a privatização do Mercado Pú- morte do pai, em 2002. No mesmo ano, concorreu positivos de autenticidade, lealdade blico. O projeto de revitaliza- e foi eleito deputado federal, mas a Justiça Eleito- ral impediu sua diplomação por falta de filiação e hospitalidade, gostam de poesia ção do Cais Mauá, preparado partidária válida. Ele não apresentou provas que era filiado ao PSDB um ano antes das eleições. (mesmo que de estilo antigo), va- em gestões anteriores, prevê a Iniciou na vida pública em 2003, como diretor lorizam a música e o folclore, têm construção de shopping center de Desenvolvimento, Agronegócios e Governos do Banrisul durante o mandato do governador uma certa noção de identidade e en- na orla do Guaíba. O que esses Germano Rigotto. Abandonou o cargo em 2006, quando elegeu-se deputado estadual. Em 2010, quanto tomam mate ou assam ove- fatos dizem sobre a visão de foi eleito deputado federal. Em 2016, elegeu-se lhas estão deixando de fazer outras futuro para a cidade por parte no segundo turno prefeito de Porto Alegre. (Nota da IHU On-Line) bobagens; então, não é perda total. das administrações? 6 José Ivo Sartori (1948): é professor de filoso- fia e político nascido em Farroupilha (RS). Filiado Paixão Côrtes7 foi um folclorista à ao PMDB. Exerceu cinco mandatos consecutivos Francisco Marshall – O prin- como deputado estadual e presidiu a Assembleia cipal problema de todas as demo- Legislativa entre 1998 a 1999. Durante o governo 7 Paixão Côrtes (1927): João Carlos D’Ávila Pai- de Pedro Simon, foi secretário estadual do Traba- xão Côrtes é folclorista, compositor, radialista e cracias é a demagogia. Os eleitores lho e Bem-Estar Social entre 1987 a 1988. Concor- pesquisador gaúcho. Trata-se de um dos perso- reu, sem sucesso, ao cargo de prefeito de Caxias nagens mais importantes da cultura gaúcha e, em votam iludidos em candidatos incon- do Sul em 1992 e 2000. Em 2002, elegeu-se depu- particular, do movimento tradicionalista. Era um sistentes, enganados por imagens tado federal com quase cem mil votos. Em 2004, dos alunos do Colégio Júlio de Castilhos, em Por- elegeu-se prefeito de Caxias do Sul no segundo to Alegre, que fundaram o primeiro centro de tra- manipuladas. Estes candidatos cos- turno, com 52,4% dos votos. Quatro anos depois, dições gaúchas (CTG), chamado de 35, em 1953. reelegeu-se no primeiro turno com 54,3% dos vo- Em 1954, serviu de modelo para o escultor Caringi tumam não declarar ou detalhar pro- tos. Em outubro de 2014, elegeu-se governador criar a estátua Laçador, fixada em uma das entra- grama, mas uma vez eleitos aplicam do Rio Grande do Sul, com 61,2% dos votos, sen- das de Porto Alegre. Formou-se em Agronomia, do empossado em 1º de janeiro de 2015. (Nota na UFRGS, e trabalhou na Secretaria da Agricul- pacotes ideológicos automatizados, da IHU On-Line) tura. Costuma dizer que o fato de ser folclorista

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE altura de Câmara Cascudo8, e a cul- privados. Qual a situação do e do fortalecimento das instituições tura regionalista, com seus festivais Rio Grande do Sul no que tange realizadoras (institutos, museus, e em seu circuito social, conseguiu aos incentivos culturais? bibliotecas, centros culturais) per- gestar artistas valiosos, como Bor- mite contornarem-se os vícios dos Francisco Marshall –O Stu- ghettinho9, Luiz Carlos Borges10, programas de incentivos fiscais, dioClio não recebe nem verba pú- Mário Barbará11, sem falar na fa- mas ainda predomina a grave escas- blica nem patrocínio privado; é mília Fagundes12, cheia de talentos, sez de recursos. uma experiência visando à susten- e outros bons valores. Creio que o tação unicamente pela produção e No Rio Grande do Sul, ademais, maior volume de grossura é mesmo consumo cultural. Como o gaúcho vivemos o escabroso quadro de um do arrogante urbano, um íncola sem tem pouco hábito de consumo cul- ataque do governo estadual (Sar- cosmopolitismo, indelicado, conser- tural e gosta de comprar em came- tori) a instituições de arte, ciência, vador e tolo. O médico racista que lô (mesmo os ricos), a situação lá cultura e conhecimento técnico lidera movimento de opinião contra é dificílima. A LIC-RS [Lei de In- aplicado (as fundações ameaçadas as cotas sociais, por exemplo, reve- centivo à Cultura] passou por revi- de extinção), em um programa de- la uma grossura muito mais grave, são recentemente, que a piorou um mente que atinge bases seguras do aquela de quem tem acesso a recur- tanto, pois os recursos autorizados desenvolvimento socioeconômico sos culturais e os desdenha em favor para grandes projetos são insufi- regional; uma insensatez mons- de interesses mesquinhos; este tipo é cientes e os para projetos menores, truosa. O Brasil e o Rio Grande do de uma rusticidade chula e grosseira inexistentes, aquém da capacidade Sul seguem à espera de um novo deplorável, muito pior que a de qual- de captação e realização. No Con- modelo de fomento à cultura, mais quer devoto de galpão-oratório. selho Estadual de Cultura, que eficiente e favorável ao desenvolvi- emite pareceres da LIC, nota-se mento dos valores necessários a to- das as civilizações – arte e cultura. IHU On-Line – O senhor é uma assombrosa falta de preparo técnico, pelo predomínio de indi- curador de uma instituição in- cações políticas na sua composi- serida na vida cultural do esta- ção. Atualmente (2017), ninguém do. Neste campo, as produções sabe onde anda ou o que faz a ge- costumam receber apoio de “Há delicade- 55 stão estadual, pois a decadência é verbas públicas ou patrocínios vertiginosa, sobretudo dos museus za e grossura, e “falar a mesma língua do homem do campo” e projetos de desenvolvimento cul- facilitou a comunicação e a implantação de novas tural. O fomento via Pronac-mece- cultura e igno- tecnologias. (Nota da IHU On-Line) 8 Luís da Câmara Cascudo (1898–1986): historia- nato [Programa Nacional de Apoio dor, folclorista, antropólogo, advogado e jorna- rância, lucidez e lista brasileiro. Passou toda a sua vida em Natal à Cultura] no MinC [Ministério da e dedicou-se ao estudo da cultura brasileira. Foi Cultura] é igualmente crítico, ain- professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Pesquisador das manifestações da mais neste momento recessivo, demência polí- culturais brasileiras, deixou uma extensa obra, in- clusive o Dicionário do Folclore Brasileiro. A edição em que as empresas não declaram 126 dos Cadernos IHU Ideias é intitulada Câmara lucro e não têm, portanto, de onde ticas, mas creio Cascudo: um historiador católico, e pode ser lida em https://goo.gl/ouiL34. (Nota da IHU On-Line) tirar recursos fiscais habilitados. 9 Renato Borghetti (1963): mais conhecido como que predomina Borghettinho, músico instrumentista e acordeo- nista nascido em Porto Alegre. Seu primeiro dis- Infelizmente a meta de Sérgio co, Gaita-Ponto, tornou-se o primeiro álbum de Paulo Rouanet13 não se realizou – a inconsistência música instrumental brasileira a ganhar um disco da ouro, vendendo cem mil cópias. Excursionou o desenvolvimento de uma cultura por todo o Brasil e por diversos países. Em 1991, cultural, sobre- ganhou o prêmio disco do ano, na categoria re- de mecenato. Atrelaram-se projetos gional, da Associação Paulista de Críticos de Arte. culturais a finalidades de marke- Mescla folclore e modernidade em suas compo- tudo nas clas- sições. Tem mais de uma quinzena de discos gra- ting, e nisso predominou a prefe- vados e dezenas de participações em gravações. rência por fenômenos de massa (Nota da IHU On-Line) ses afluentes” 10 Luiz Carlos Borges (1953): músico instrumen- com pouca ou nenhuma densidade tista, compositor e intérprete nascido em Santo Ângelo. É considerado um dos principais nomes cultural em detrimento do poder da música regional do Rio Grande do Sul. Partici- de inovação dos arte-criadores, do pou e venceu diversos festivais. Atuou, também, IHU On-Line – No cenário cul- como jurado, idealizador e organizador do Mu- estímulo ao florescimento pela arte tural nacional, prevalecem pro- sicanto Sul-Americano de nativismo na cidade e pela cultura e do desenvolvimen- de Santa Rosa. Tem mais de 32 discos gravados. duções do Rio de Janeiro e de (Nota da IHU On-Line) to das relações entre arte e educa- 11 Mário Barbará (1954): poeta, cantor e com- São Paulo. Há também expres- positor nascido em São Borja (RS). Sua música ção. O regime de editais temáticos de maior sucesso foi Desgarrados, escrita junto sões importantes de estados com Sérgio Napp, vencedora da 11ª Califórnia da nordestinos, como Pernam- Canção Nativa de 1981, em Uruguaiana. (Nota da 13 Sergio Paulo Rouanet (1934): diplomata, fi- IHU On-Line) lósofo e ensaísta nascido no Riuo de Janeiro. É buco. Por outro lado, artistas 12 Os Fagundes: é uma banda brasileira de mú- membro da Academia Brasileira de Letras desde sica nativista, formada em Porto Alegre, no Rio 1992. Exerceu o cargo de secretário de Cultura do que trabalham no Rio Grande Grande do Sul. O grupo leva esse nome por ser presidente Fernando Collor de Mello e foi respon- composto por integrantes de uma mesma família. sável pela criação da Lei Rouanet, de incentivos do Sul costumam apontar que (Nota da IHU On-Line) fiscais à cultura. (Nota da IHU On-Line) suas obras têm pouca aceitação

EDIÇÃO 510 TEMA DE CAPA

nacional. Isso procede? Deve- mes Joyce17 e a Guimarães Rosa18, e A última derrota cultural do Rio se ao quê? uma certa dificuldade de assimilar Grande do Sul foi nos anos 80 e expoentes como Erico Verissimo19 início dos 90, quando uma geração Francisco Marshall – O moder- e Josué Guimarães20 (entre outros) muito talentosa foi colocar-se no Rio nismo brasileiro, patrono de nossas em sua verdadeira dimensão, má- de Janeiro, mas explodia, na época, noções e instituições de patrimônio, xima. Na música, porém, creio que um produto em compota, o assim orientou sua bússola para o patri- temos expressões mais bem acolhi- chamado rock nacional, que concen- mônio mineiro e para o Nordeste, das, em um arco que vai de Radamés trou e quase monopolizou mídia e efetivamente ricos em arte e folclore. Gnattali21 a Yamandu Costa22. produção. Ultimamente, o Brasil in- Mário de Andrade14 e Villa-Lobos15 teiro sucumbe a uma pavorosa leva são avatares desta tendência, per- 17 James Joyce (1882-1941): romancista, contista de mau gosto musical, que contami- petuada desde então. O Rio Grande e poeta irlandês que viveu boa parte de sua vida na também o Rio Grande do Sul. O do Sul era sentido mais como con- expatriado. É amplamente considerado um dos autores de maior relevância do século 20. Suas ônus dessas relações desequilibra- corrência, por possuir sua própria obras mais conhecidas são o volume de contos Dublinenses/Gente de Dublin (1914) e os roman- das é que artistas locais têm pouco cultura (e economia), do que como ces Retrato do artista quando jovem (1916), Ulis- acesso à rica economia concentrada assunto meritório; alinhava-se ao ses (1922) e Finnegans Wake (1939) – o que se poderia considerar um “cânone joyceano”. Tam- no Sudeste e ficam condenados a Pampa e às culturas castelhanas, bém participou dos primórdios do modernismo poético em língua inglesa, sendo considerado por atuar em um brejo com pouco vigor longe de um mundo de praias, co- Ezra Pound um dos mais eminentes poetas do econômico e cultural, insuficiente queiros, coloridos da flora tropical, imagismo. (Nota da IHU On-Line) 18 João Guimarães Rosa (1908-1967): escritor, para sustentar a produção efetiva lastros de lusitanidade castiça e afri- médico e diplomata brasileiro. Como escritor, criou uma técnica de linguagem narrativa e des- dos artistas e a renovação necessária canidades pulsantes. Nos anos 30, critiva pessoal. Sempre considerou as fontes vivas da cultura. ademais, especialmente depois de do falar erudito ou sertanejo, mas, sem reprodu- zi-las num realismo documental, reutilizou suas 1932, cresceu a hostilidade política estruturas e vocábulos, estilizando-os e reinven- tando-os num discurso musical e eficaz de grande de São Paulo contra o Rio Grande do beleza plástica. Sua obra parte do regionalismo IHU On-Line – Há poucas bi- Sul. Isto ajudou a construir a miopia mineiro para o universalismo, oscilando entre o realismo épico e o mágico, integrando o natural, o bliotecas públicas no estado, incapaz de ver Simões Lopes Neto16 místico, o fantástico e o infantil. Entre suas obras, citamos: Sagarana, Corpo de baile, Grande sertão: não existe uma política oficial em seu esquadro real, alinhado a Ja- veredas, considerada uma das principais obras da para compra de livros e as es- literatura brasileira, Primeiras estórias (1962), Tu- 56 taméia (1967). A edição 178 da IHU On-Line, de colas públicas estão em situ- 14 Mário de Andrade [Mário Raul de Morais An- 2-5-2006, dedicou ao autor a matéria de capa, ação precária, justamente em drade] (1893-1945): poeta, romancista, musicólo- sob o título “Sertão é do tamanho do mundo”. 50 go, historiador, crítico de arte e fotógrafo brasilei- anos da obra de João Guimarães Rosa, disponível um estado que desde a Primei- ro. Um dos fundadores do modernismo brasileiro, para download em http://www.ihuonline.unisinos. praticamente criou a poesia moderna brasileira br/edicao/178. Confira ainda a edição 275 da Re- ra República era referência com a publicação de seu livro Paulicéia Desvai- vista IHU On-Line, de 29-9-2008, intitulada Ma- em educação. O que dizer des- rada, em 1922. Exerceu uma influência enorme na chado de Assis e Guimarães Rosa: intérpretes do literatura moderna brasileira e, como ensaísta e Brasil, disponível em http://bit.ly/mBZOCe. (Nota te cenário? estudioso (foi um pioneiro do campo da etnomu- da IHU On-Line) sicologia) sua influência transcendeu as fronteiras 19 Erico Verissimo (1905-1975): um dos mais im- do Brasil. Andrade foi a figura central do movi- portantes escritores brasileiros. Em 1932, o autor Francisco Marshall – Pior: mento de vanguarda de São Paulo por vinte anos. publica uma coletânea de contos, Fantoche, sua um projeto da prefeitura de Porto (Nota da IHU On-Line) estreia na literatura. Recebeu o Prêmio Machado 15 Heitor Villa-Lobos (1887-1959): compositor de Assis, com Música ao Longe, e o Prêmio Graça Alegre, em parceria com a Câma- nascido no Rio de Janeirpo. Aprendeu as primei- Aranha, com Caminhos Cruzados. Integra o Se- ra Rio-grandense do Livro, o Adote ras lições de música com seu pai, Raul Villa-Lobos, gundo Tempo Modernista (1930-1940), período funcionário da Biblioteca Nacional. Ele lhe ensi- em que a literatura brasileira refletiu os proble- um escritor, que vitaliza ricamente nara a tocar violoncelo usando improvisadamente mas sociais do país. A obra de Erico costuma ser uma viola, devido ao tamanho de Tuhu (apelido dividida em três fases: Romance urbano; Romance literatura e produção editorial nas de origem indígena que Villa-Lobos tinha na in- histórico e Romance político. Na segunda, encon- escolas da cidade, foi recentemente fância). Sozinho, aprendeu violão na adolescên- tra-se o épico O tempo e o vento, trilogia (O Con- cia, em meio às rodas de choro cariocas, às quais tinente, O Retrato e O Arquipélago) que cobre 200 (gestão Marchezan Jr.) desfigurado, prestou tributo em sua série de obras mais im- anos da história do Rio Grande do Sul, de 1745 a portantes: Os Choros, escritos na década de 1920. 1945. (Nota da IHU On-Line) rumo ao colapso. A falta de biblio- Destaca-se por ter sido o principal responsável 20 Josué Guimarães (1921-1986): escritor e jor- tecas é homóloga à falta de teatros, pela descoberta de uma linguagem peculiar- nalista nascido no Rio Grande do Sul. Trabalhou mente brasileira em música, sendo considerado em jornais como Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil, auditórios, cineclubes e centros cul- o maior expoente da música do modernismo no Zero Hora e Correio do Povo. Cobriu a Revolução Brasil, compondo obras que contém nuances das dos Cravos, em Portugal, e as independências na turais; na periferia das cidades, onde culturas regionais brasileiras, com os elementos África. Entre suas obras, destacam-se A ferro e mais se necessita destes recursos, o das canções populares e indígenas. No Brasil, fogo 1 – Tempo de solidão (1972), A ferro e fogo sua data de nascimento (5 de março) é celebrada 2 – Tempo de guerra(1975), Depois do último trem vazio é total e trágico. As autoridades como Dia Nacional da Música Clássica. (Nota da (1973), Os tambores silenciosos (1977), Dona Anja IHU On-Line) (1978) e Camilo Mortágua (1980). (Nota da IHU não percebem que as emanações cul- 16 João Simões Lopes Neto (1865-1916): escritor On-Line) turais são a fonte mais virtuosa para nascido em Pelotas (RS). A ele a revista IHU On 21 Radamés Gnattali (1906-1988): arranjador, -Line dedicou a edição 73, chamada João Simões compositor e pianista nascido em Porto Alegre. o desenvolvimento: potencializam Lopes Neto: força da literatura brasileira e latino (Nota da IHU On-Line) destinos, fomentam a autoria e a -americana, disponível em http://www.ihuonline. 22 Yamandu Costa (1980): violonista e composi- unisinos.br/edicao/73. O oitavo número dos Ca- tor brasileiro. É considerado um dos maiores vio- construção de símbolos, identidades dernos IHU Ideias é intitulado Simões Lopes Neto lonistas do Brasil. Filho da cantora Clari Marcon e a Invenção do Gaúcho, de autoria da professora e do multi-instrumentista e professor de música e sujeitos, distribuem pensamentos Márcia Lopes Duarte, disponível em https://goo. Algacir Costa. Começou a estudar violão aos sete gl/STCqYG, tem como base a apresentação da anos de idade com o pai, Algacir Costa, líder do professora no IHU Ideias de 4 de setembro de grupo Os Fronteiriços e aprimorou-se com Lúcio 2003. É possível conferir sobre o autor uma entre- Yanel, argentino radicado no Brasil. Até os quinze diversos como choro, bossa nova, milonga, tango, vista concedida por Márcia na IHU On-Line núme- anos, sua única escola musical era a música folcló- jazz, samba e chamamé, difícil enquadrá-lo em ro 73, de 1º de setembro de 2003. Entre as prin- rica do Sul do Brasil, Argentina e Uruguai. Depois uma corrente musical principal, dado que mistura cipais obras do escritor, destaca-se Cancioneiro de ouvir Radamés Gnattali começou a procurar todos os estilos e cria interpretações de rara per- Guasca (1910), Contos Gauchescos (1912), Lendas por outros brasileiros como Baden Powell, Tom sonalidade no seu violão de sete cordas. (Nota da do Sul (1913). (Notas da IHU On-Line) Jobim e Raphael Rabello. Yamandu toca estilos IHU On-Line)

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE e sensibilidades elevadas, mobilizam dadão é que houvesse um StudioClio perversas ocultam e ameaçam. Tal- as comunidades em harmonia, ocu- público em cada distrito, bem como vez o mais grave conflito hoje seja pam o tempo com qualidade e, como mais espaços culturais, em formatos entre capital e humanismo. O ca- percebeu Aristóteles23, ajudam a ci- variados, junto aos parques, na pai- pital alimenta-se do humano para dade a purgar seus males (catarse). sagem urbana, para o florescimento concentrar-se, tornar-se cada vez Como efeito complementar, mas não de qualidades com as quais um mun- maior – e mais devastador. Seu li- menos relevante, a cultura incide rá- do melhor efetivamente se realiza. mite e sua única chance de têmpera pida e vigorosamente sobre os índi- é o humanismo. Não se trata apenas IHU On-Line – Deseja acres- ces de violência, hoje críticos. O livro de embate entre direita e esquerda, centar algo? e as bibliotecas são parte deste pro- mas de algo muito mais denso e gra- cesso; mesmo que o livro tenha uma Francisco Marshall –A huma- ve. Olhamos para trás e vemos um dimensão comercial, é um bem cul- nidade hoje vive diversos dilemas patrimônio de inteligência que nos tural precioso, que necessita fomen- graves; mais graves do que os preté- alimenta. É disso que vive o huma- to. A cultura é como a democracia: ritos, pois todas as forças se desen- nismo, e de onde provêm forças e sempre um bebê cheio de possibili- volveram nestes 5.000 anos como possibilidades que nos resgatam da dades, mas necessitando de alento vetores potentes, e hoje uns coope- adversidade e nos nutrem para criar e cuidados vários. O meu sonho ci- ram, muitos conspiram coligados, presente e futuros melhores para quase todos colidem. A agressivi- nós e para todos. Que este humanis- 23 Aristóteles de Estagira (384 a.C.–322 a.C.): filósofo nascido na Calcídica, Estagira. Suas refle- dade contra o ambiente degradou o mo, que inspira a esta bela edição e xões filosóficas – por um lado, originais; por outro, reformuladoras da tradição grega – acabaram por planeta e ameaça a todos. A polari- a quem deseja viver em harmonia, configurar um modo de pensar que se estenderia zação social cresceu, e o desenvolvi- seja também e sempre a razão para por séculos. Prestou significativas contribuições para o pensamento humano, destacando-se nos mento conquistado segue restrito a nos posicionarmos no mundo e co- campos da ética, política, física, metafísica, lógica, psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia e uma parcela pequena da população. operarmos. Eis o bem maior, possui história natural. É considerado, por muitos, o filó- Bens vitais e simbólicos são precio- graça inata e dá sentido a tudo o que sofo que mais influenciou o pensamento ociden- tal. (Nota da IHU On-Line) sos e escassos. Retóricas e imagens fazemos, humanistas. ■

57

EDIÇÃO 510 TEMA 07

TEMA DE CAPA

Atitudes de Sartori denunciam crise de identidade que não é apenas do governo, mas de todos Giba Assis Brasil afirma que a produção audiovisual depende da existência e da permanência de políticas públicas para o setor

Vitor Necchi

professor e montador de cine- che na área de Cultura, [...] mas ele já ma Giba Assis Brasil trabalha está acontecendo.” há 37 anos na área e afirma que Giba arrisca alguns palpites sobre as Oo audiovisual, assim como o teatro, a li- crises do Estado. A começar pelo fato teratura, a música, são ótimos espaços de os gaúchos estarem, desde 1982, para se discutir temas como educação, elegendo governantes de partidos dife- inclusão de minorias, distribuição de rentes a cada pleito. Isso “pode sugerir renda, direitos humanos, desmilitari- que estejamos numa séria crise de iden- zação da polícia, relações de trabalho e tidade”. Ele não questiona a alternân- meio ambiente. “De forma qualificada, cia de poder, “que como possibilidade aceitando as diferenças e sem promo- é essencial à democracia”, mas preten- 58 ver o ódio”, salienta. Nesta entrevista, de discutir o “fato de estarmos sempre concedida por e-mail à IHU On-Line, querendo começar do zero”. Giba discute o papel das políticas pú- blicas para a área cultural e o desenvol- Admite que não votou no atual governa- vimento do campo audiovisual no Rio dor, “mas ele foi eleito, faz parte de um Grande do Sul. governo legítimo, que no fim das contas me representa”. Ao analisar algumas “Momentos favoráveis, ou não, de- atitudes de José Ivo Sartori, diz que elas pendem da economia do estado e do “parecem denunciar esta crise de iden- país, como em qualquer atividade. Mas, tidade, que certamente não é apenas do no caso da produção audiovisual, de- governo, mas do estado, de nós todos”. pendem mais ainda da existência ou não de políticas públicas para o setor e Giba Assis Brasil é montador de ci- da permanência ou não dessas políticas nema e graduado em Jornalismo pela ao longo do tempo”, explicou. A postura UFRGS. Teve reconhecimento de No- dos governantes se revela determinante tório Saber, nível Mestrado, pela Unisi- para o desenvolvimento do setor cultu- nos. Foi presidente da Associação Pro- ral. Giba explica que a produção audio- fissional de Técnicos Cinematográficos visual tem um ciclo muito longo. “Por – APTC em dois períodos (1989-1991 e isso leva mais tempo para sair da crise, 2013-2015). Integrou o Conselho Supe- mas também demora para entrar nela”, rior de Cinema, do Ministério da Cultu- resume. “Nesse momento, ainda não ra (2004 e 2009). sabemos que tamanho terá o desman- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Há pelo me- de políticas públicas voltadas Giba Assis Brasil – Momentos nos 35 anos o senhor partici- à área. Neste período, quais favoráveis, ou não, dependem da pa da produção cinematográ- os momentos mais e menos economia do estado e do país, como fica do estado e do país como favoráveis à atividade nas em qualquer atividade. Mas, no caso realizador e como articulador duas esferas? da produção audiovisual, dependem

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE

“Leis de incentivo à cultura são importantes, podem e devem fazer parte de uma política cultural – mas não podem SER a política cultural”

mais ainda da existência ou não de Em termos nacionais, não há dú- Grande do Sul foi o único estado, políticas públicas para o setor e da vida de que nas últimas décadas além de Rio e São Paulo, que nun- permanência ou não dessas políticas nós vínhamos tendo cada vez mais ca parou de produzir entre os anos ao longo do tempo. É assim em qual- e melhores políticas públicas na 1960 e a virada do século. Mas hoje quer parte, não se trata de uma ca- área cultural. Mas foi com Gilberto o digital praticamente universalizou racterística brasileira ou mesmo do Gil4 no Ministério da Cultura que o que poderíamos chamar de “aces- sul do mundo. chegamos, pela primeira vez, a ter so ao primeiro filme”: em qualquer uma verdadeira política cultural lugar se pode produzir um filme de O Rio Grande do Sul tem uma par- para todo o país. Leis de incentivo estreia, aquele em que a necessida- ticularidade: é o único estado do à cultura são importantes, podem de de expressão e o fascínio pelo ci- Brasil em que nenhum governo se e devem fazer parte de uma políti- nema bastam para mobilizar os re- reelegeu desde a redemocratização. ca cultural – mas não podem SER a alizadores, em que equipe e elenco 59 Nesse cenário, as políticas públicas política cultural. raramente são pagos, em que mui- tendem a ser sempre reinventadas a tos serviços são obtidos por mobili- cada quatro anos. A LIC, Lei esta- zação da comunidade etc. A questão dual de Incentivo à Cultura, mesmo IHU On-Line – Em 2010, a é que a realização do segundo ou do com as suas limitações, foi um pon- Associação dos Técnicos Cine- terceiro filme em diante dependem to positivo do governo [Antônio] matográficos do Estado - APTC de muitos outros fatores: políticas Britto1, assim como o Prêmio RGE, coletou dados acerca do inves- públicas, financiamento, formação que infelizmente não teve conti- timento feito em cinema por de equipes, profissionalização das nuidade. O passo seguinte à LIC, 11 estados brasileiros. O Rio relações de trabalho e, claro, res- que seria o FAC, Fundo de Apoio à Grande do Sul apareceu em posta de público. Cultura, com sua política de editais, último lugar. No passado, cos- só foi aprovado no final do governo tumava ser lembrado como o Acredito que, hoje, o nível de pro- Olívio2 [Dutra] e só veio a ser real- terceiro polo cinematográfico dução do Rio Grande do Sul nos co- mente implantado no governo Tar- do Brasil. Qual a situação e a loque em quinto ou sexto lugar entre so [Genro]3, dez anos depois. relevância da produção audio- os estados do país. O que não é mau, visual do estado atualmente? considerando o pouco investimento 1 Antônio Britto Filho (1952): é um jornalista, realizado nos últimos 20 anos. executivo e político brasileiro, que exerceu os car- Giba Assis Brasil – O mito do gos de deputado federal, ministro da Previdência Social e governador do estado do Rio Grande do “terceiro polo” tem menos a ver com Sul. (Nota da IHU On-Line) quantidade de filmes, e mais com IHU On-Line – Os dados da 2 Olívio Dutra (1941): sindicalita e político nasci- do em Bossoroca (RS). Foi prefeito de Porto Ale- continuidade de produção: o Rio APTC revelaram que, des- gre, governador do Rio Grande do Sule ministro das Cidades. Formado em Letras, Olívio foi fun- de 2006, o governo estadual cionário concursado do Banrisul, a partir de 1961. primeiro turno, com mais de 54% dos votos váli- investiu no setor audiovisu- Nesta condição, começou a militar no Sindicato dos. (Nota da IHU On-Line) dos Bancários de Porto Alegre e chegou à presi- 4 (1942): é um político, cantor, com- al menos do que os recursos dência da entidade em 1975. Comandou a greve positor, multi-instrumentista, escritor, ambienta- geral do funcionarismo público de setembro de lista, empresário e intelectual brasileiro, também destinados pelo Fundo Mu- 1979, motivo pelo qual foi preso durante a di- conhecido por sua inovação musical e por ser nicipal de Apoio à Produção tadura militar e perdeu seu mandto sindical. Foi ganhador de prêmios Grammys e galardeado presidente do PT de 1980 à 1986. (Nota da IHU pelo governo francês, com a Ordem Nacional do Artística e Cultural (Fumpro- On-Line) Mérito (1997) e pela Unesco como “artista pela 3 Tarso Genro (1947): advogado, jornalista e polí- paz” (1999). Gil foi embaixador da ONU para arte), da prefeitura de Por- tico nascido em São Borja (RS). Filiado ao Partido agricultura e alimentação e ex-ministro da Cultu- to Alegre. Por que o pouco dos Trabalhadores (PT). Foi duas vezes prefeito de ra (2003–2008). Em mais de 50 álbuns lançados, Porto Alegre, ministro da Educação, das Relações ele incorpora a gama eclética de suas influências, interesse do estado por uma Institucionais e da Justiça durante o governo de incluindo rock, gêneros tipicamente brasileiros, Luiz Inácio Lula da Silva. Em 3 de outubro de 2010, música africana e reggae, por exemplo. (Nota da atividade que, para além da elegeu-se governador do Rio Grande do Sul no IHU On-Line) questão artística, movimenta

EDIÇÃO 510 TEMA DE CAPA

a economia local? do Prodecine 1, linha do FSA que é IHU On-Line – Como os re- analisada pelo Comitê de Investi- cursos de editais estão enco- Giba Assis Brasil – Este dado mentos do BRDE [Banco Regional lhendo, o cenário descrito na significa em primeiro lugar que o questão anterior deve mudar município de Porto Alegre conseguiu de Desenvolvimento do Extremo nos próximos anos? criar, ainda nos anos 1990, um meca- Sul]. Garoto neon e Mudança ga- nismo de financiamento à produção nharam o edital para filmes de bai- Giba Assis Brasil – A produção cultural que se consolidou, apesar de xo orçamento do MinC [Ministério audiovisual tem um ciclo muito lon- ter reduzido seu investimento nos da Cultura], em dezembro de 2015. go. Por isso leva mais tempo para últimos anos e de estar atualmente Mulher do pai ganhou o Prodecine sair da crise, mas também demora inadimplente com dezenas de pro- 5, edital específico para filmes com para entrar nela. Filmes seleciona- dutores culturais. O FAC, que seria o propostas de inovação de linguagem dos em um edital levam de um a equivalente ao Fumproarte no Esta- do FSA, no início de 2015, além de dois anos para serem finalizados, do, ainda sofre pela descontinuidade recursos internacionais do Fundo às vezes mais. Projetos em desen- das políticas. Ibermedia. Este mesmo Prodecine 5, volvimento, também apoiados por no ano seguinte, premiou Bio e Raia editais, podem levar quatro ou cin- No Festival de Cinema de Gramado 4. Mar inquieto, Desvios, Central e deste ano, o secretário [de Estado da co anos para chegar ao mercado. O Eles vieram e roubaram sua alma investimento do Fundo Setorial em Cultura] Victor Hugo garantiu pu- ganharam o edital de finalização de blicamente que vai lutar para que os Núcleos Criativos tem resultados longas do FAC, ainda no governo investimentos deste ano não sejam de prazo ainda mais longo. Nesse Tarso (junho de 2014). Rifle, Depois menores que os do ano passado, o momento, ainda não sabemos que de ser cinza, Yoñlu5, A vida extraor- que, no atual cenário, não deixa de tamanho terá o desmanche na área dinária de Tarso de Castro e Música ser uma boa notícia. de Cultura, nem quanto tempo ele para quando as luzes se apagam (e levará para chegar ao audiovisual (à mais cinco projetos ainda em pro- Ancine, ao Fundo Setorial), mas ele IHU On-Line – Nos últimos dução) foram contemplados no pri- já está acontecendo. anos, políticas públicas de fi- meiro edital conjunto FSA-FAC, em Também não sabemos em que me- nanciamento de projetos au- que o Estado banca 40% e a Ancine 60 dida vamos retroceder na universa- diovisuais impactaram positi- [Agência Nacional do Cinema], 60% lização da educação, nas políticas de vamente a produção no estado. dos recursos. Este edital também foi inclusão, na soberania nacional, no Neste ano, até agosto, foram negociado ainda no governo Tarso e combate ao trabalho escravo. Não lançados oito longas. Outros o resultado saiu em janeiro de 2015. sabemos em que medida estes retro- nove estão finalizados, cerca Ou seja, todos estes projetos exis- cessos serão provisórios ou perma- de 20, em finalização e 18, em tem por iniciativas de realizadores nentes, mas eles já estão acontecen- pré-produção. De uma manei- audiovisuais, individualmente ou do, e bem mais adiantados. ra geral, qual a procedência em grupo, mas nenhum deles teria desses recursos? De qualquer maneira, não me pa- chegado onde chegou sem algum rece que seja por acaso que a primei- Giba Assis Brasil – Cada pro- tipo de política pública. E podemos ra medida anunciada pelo governo jeto tem uma história, uma forma ver que, em sua grande maioria, se golpista tenha sido o fechamento do específica de composição do seu or- tratam de políticas públicas federais, Ministério da Cultura. (Se depois çamento, que às vezes muda entre eventualmente complementadas voltaram atrás, como em muitas ou- a concepção e a filmagem, entre a pelo estado. tras medidas tomadas desde então, montagem e a finalização. Se anali- parece mais um recuo tático que sarmos os filmes produzidos no Rio 5 Vinicius Gageiro Marques (1989-2006): conhe- cido como Yoñlu, foi um músico amador que se uma mudança de estratégia.) Aliás, Grande do Sul que foram ou serão suicidou em 2006, aos 16 anos de idade. Trata-se lançados em 2017, vamos encontrar de um dos primeiros casos de suicídio assistido a relação histórica que alguns co- via internet no Brasil. Com o pseudônimo Yoñlu, mentaristas insistem em ver entre uma diversidade de mecanismos de Vinicius deixou um legado de cerca de 60 canções, que revelaram uma intrigante produção artística, o atual processo e o governo Itamar financiamento. todas compostas e gravadas inteiramente por ele 6 em seu quarto. As faixas trazem letras reflexivas Franco talvez esteja justamente na Por exemplo, Cidades fantasmas e e melodias invariavelmente melancólicas, sendo inversão de atitudes: antes do Plano marcadas pela confluência de gêneros. Em 2007, a Quem é Primavera das Neves foram gravadora goiana Allegro Discos reuniu 23 dessas Real, antes mesmo de ser efetivado músicas no álbum Yoñlu. No ano seguinte, o selo coproduzidos em 2016 pela Globo Luaka Bop, criado por David Byrne, selecionou como presidente, Itamar reinstituiu News com recursos do artigo 3º-A 14 canções em um disco de caráter conceitual, A o Ministério da Cultura, que havia society in which no tear is shed is inconceivably da Lei do Audiovisual, sendo que um mediocre. “Gostamos das músicas antes de ouvir sido extinto por Collor7. É claro que, a história de seu autor”, disse à época Yale Evelev, deles virou série em parceria com um dos gestores da marca. Em 2016, começou a o Canal Brasil, através de recursos ser produzido um longa-metragem contando sua 6 Itamar Franco (1930-2011): político brasileiro, história. Em 2008, o pai do garoto, Luiz Marques, foi o 33º presidente da República do Brasil, entre do Fundo Setorial do Audiovisual concedeu uma entrevista à IHU On-Line, publica- 1992 e 1994, após o impeachment de Fernando – FSA. Baleia e Legalidade recebe- da nas Notícias do Dia de 26-5-2008, no sítio do Collor de Mello (Nota da IHU On-Line) IHU, disponível em http://bit.ly/2eV6iiO. (Nota da 7 Fernando Collor de Mello (1949): político, ram, em outubro de 2015, recursos IHU On-Line) jornalista, economista, empresário e escritor bra-

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE em outras circunstâncias, abrir ou ram políticas públicas contínuas, nantes de partidos diferentes pode fechar um ministério poderia ser mesmo com mudanças de governo sugerir que estejamos numa séria apenas uma ação administrativa, (casos de Pernambuco e Minas), crise de identidade. Não estou ques- sem grandes consequências reais. são os que mais produzem atual- tionando a alternância de poder, Mas a Política e a Cultura se fazem mente fora do “eixo” – e com evi- que como possibilidade é essencial também por atos simbólicos. dentes reflexos na qualidade desta à democracia; o que eu discuto é o produção. Quarto, que, apesar da fato de estarmos sempre querendo concentração de recursos, em par- começar do zero. IHU On-Line – O diretor ar- te inevitável pela natureza da ati- Não votei no governador [José tístico do Festival de Brasília vidade, a nacionalização da produ- Ivo] Sartori8 do Cinema Brasileiro, Eduar- ção audiovisual está acontecendo: , mas ele foi eleito, faz do Valente, apresentou recen- o levantamento mostra que, neste parte de um governo legítimo, que temente um levantamento que momento, há filmes produzidos no fim das contas me representa realizou acerca da procedên- em 18 estados brasileiros, algo im- – e não posso dizer o mesmo dos cia dos longas inscritos para pensável alguns anos atrás. sujeitos que estão hoje em volta do a edição deste ano: 51 do Rio Palácio do Planalto. Seja como for, Mas, aparentemente, duas unida- de Janeiro, 47 de São Paulo, algumas atitudes do governo Sar- des da federação apresentam aqui 13 de Pernambuco, 11 de Mi- tori parecem denunciar esta cri- números incoerentes com a trajetó- nas Gerais, 10 de Brasília e da se de identidade, que certamente ria de sua produção: Brasília para Bahia, cinco do Ceará, quatro não é apenas do governo, mas do mais e o Rio Grande do Sul para de Santa Catarina e do Pará, estado, de nós todos. O projeto de menos. A possível defasagem positi- três do Rio Grande do Sul, extinção das fundações, por exem- va do Distrito Federal deve ter a ver de Goiás e do Espírito Santo, plo, parecia um grande equívoco com a identificação entre os cineas- dois da Paraíba e um do Para- desde o princípio. A FEE [Funda- tas locais e o seu festival. E a nossa ná, de Mato Grosso, de Piauí, ção de Economia e Estatística] é defasagem negativa talvez revele de Alagoas e do Maranhão. O uma assessoria de alto nível que mais sobre Brasília do que sobre o que esses números sugerem, levou décadas para ser construída, Rio Grande do Sul. em relação ao cinema feito no e por cujos serviços o estado vai 61 Rio Grande do Sul? Outros dados já mencionados in- ter que comprar no mercado daqui dicam que há uma quantidade bem para frente. No caso da TVE e da Giba Assis Brasil – Antes de maior de filmes novos ou em - fina FM Cultura, já ficou evidente que mais nada, o que estes números lização no estado, mas que por al- os poucos funcionários que podem sugerem sobre o cinema brasi- gum motivo não se inscreveram no ser demitidos por não terem esta- leiro? Em primeiro lugar, que a festival de Brasília. Por quê? Porque bilidade são os mais jovens, com produção aumentou muito nos seus realizadores não os consideram salários menores e com mais domí- últimos anos, em função da exis- “filmes de festivais”? Porque não nio das novas tecnologias – ou seja, tência de fortes políticas públicas têm expectativa de ser selecionados, uma economia mínima para uma federais, mas também pelas faci- talvez em função de experiências enorme perda. A impressão que dá lidades trazidas pela tecnologia anteriores? Ou porque preferiram é que o governo já se deu conta do digital. Segundo, que Rio e São aguardar o resultado da seleção de erro, mas não quer voltar atrás. Paulo continuam produzindo mais Gramado – ou Recife, ou Tiradentes, IHU On-Line – O que há de ar- do que o restante do país inteiro. ou Fortaleza? Ou ainda porque estão Terceiro, que os estados que tive- caico e de contemporâneo no voltados para festivais internacio- estado? nais? Somente perguntando para o sileiro, prefeito de Maceió de 1979 a 1982, go- vernador de Alagoas de 1987 a 1989, deputado produtor ou realizador de cada filme. Giba Assis Brasil – Seria sim- federal de 1982 a 1986, 32º presidente do Brasil, plista associar o arcaísmo aos va- de 1990 a 1992, e senador por Alagoas de 2007 até a atualidade. Foi o presidente mais jovem da lores do campo e a contempora- história do Brasil e o presidente eleito por voto di- reto do povo, após o Regime Militar (1964/1985). IHU On-Line – É notória a cri- Seu governo foi marcado pela implementação do se econômica pela qual passa o 8 José Ivo Sartori (1948): é professor de filoso- Plano Collor e a abertura do mercado nacional às fia e político nascido em Farroupilha (RS). Filiado importações e pelo início de um programa nacio- Rio Grande do Sul. Para além ao PMDB. Exerceu cinco mandatos consecutivos nal de desestatização. Seu Plano, que no início como deputado estadual e presidiu a Assembleia teve uma boa aceitação, acabou por aprofundar dela, e na sua visão, que outras Legislativa entre 1998 a 1999. Durante o governo a recessão econômica, corroborada pela extinção, crises o Estado vive e por quê? de Pedro Simon, foi secretário estadual do Traba- em 1990, de mais de 920 mil postos de trabalho lho e Bem-Estar Social entre 1987 a 1988. Concor- e uma inflação na casa dos 1200% ao ano; junto a reu, sem sucesso, ao cargo de prefeito de Caxias isso, denúncias de corrupção política envolvendo Giba Assis Brasil – Não me do Sul em 1992 e 2000. Em 2002, elegeu-se depu- o tesoureiro de Collor, Paulo César Farias, feitas considero capacitado para este tipo tado federal com quase cem mil votos. Em 2004, por Pedro Collor de Mello, irmão de Fernando elegeu-se prefeito de Caxias do Sul no segundo Collor, culminaram com um processo de impug- de avaliação, mas posso arriscar turno, com 52,4% dos votos. Quatro anos depois, nação de mandato (Impeachment). Atualmente, reelegeu-se no primeiro turno com 54,3% dos vo- está entre os denunciados da Operação Lava Jato, alguns palpites. O próprio fato de tos. Em outubro de 2014, elegeu-se governador que investiga esquema de corrupção envolvendo o Rio Grande do Sul estar, desde do Rio Grande do Sul, com 61,2% dos votos, sen- agentes políticos e empresários. (Nota da IHU do empossado em 1º de janeiro de 2015. (Nota On-Line) 1982, elegendo a cada pleito gover- da IHU On-Line)

EDIÇÃO 510 TEMA DE CAPA

neidade à vida na cidade grande. Giba Assis Brasil – Nossas fa- cação, inclusão de minorias, distri- Arcaico é reler O tempo e o vento9 çanhas. Continuamos acreditando buição de renda, direitos humanos, e contemporâneo é o prefeito da no grito de Sepé Tiaraju11, na espa- desmilitarização da polícia, rela- capital se comunicar com a po- da erguida de Bento Gonçalves12, ções de trabalho, meio ambiente. O pulação através de piadinhas no na pose do Laçador13 ameaçando audiovisual, assim como o teatro, Twitter? pealar qualquer um que entre ou a literatura, a música, são ótimos saia da capital sem lhe prestar con- espaços para levantar esse tipo de Contemporâneo, pensando bem, tinência. Brincamos com tudo isso, discussão de forma qualificada – é o que faz parte do nosso tempo, mas muitos de nós ainda se entu- aceitando as diferenças, sem pro- ou seja: a eleição de Trump10 nos siasmam nos estádios de futebol, mover o ódio. Estados Unidos, a irrupção do Esta- quando a bandinha da Brigada Mi- do Islâmico, a Inglaterra saindo da Um bom personagem-símbolo litar14 executa o “Comorora”15 fren- União Europeia, a França restrin- da história recente brasileira é a te a alguns atônitos visitantes de gindo a entrada de imigrantes. Se Jéssica, do filme Que horas ela outros estados. for assim, talvez seja o caso de bus- volta?16: a filha da empregada car alguns valores bem “arcaicos”, Alguém deveria apresentar um que se tornou a primeira da famí- como a solidariedade ou os direitos projeto de emenda popular pro- lia, depois de séculos, a entrar na humanos, para tentar reconstruir pondo mudar um verso do Hino universidade, e que agora não res- um futuro. rio-grandense: em vez de “Povo peita mais limites: quer o sorvete que não tem virtude /acaba por do Fabinho, quer namorar, quer ser escravo”, ficaria “Povo que não entrar na piscina. A Dona Bárba- IHU On-Line – Embora a pre- tem virtude / COMEÇA POR TER ra, a patroa, pode gritar, pode ba- sunção de superioridade, em escravos”. Duvido que fosse apro- ter panela, pode fingir ou mesmo várias áreas decisivas para o vada, mas daria uma discussão pú- acreditar que está lutando contra futuro o Rio Grande do Sul vai blica interessante. a corrupção ou contra a dissolução de mal a pior. O que sustenta dos costumes, mas a Jéssica não a permanência da arrogância volta mais para a senzala, não. Ou que costuma ser atribuída aos IHU On-Line – Deseja acres- 62 pelo menos a gente que vê o filme gaúchos? centar algo? quer acreditar nisso. Giba Assis Brasil – Até aqui Desse ponto de vista, as políticas falamos basicamente de políticas públicas de Cultura nem são assim 9 O tempo e o vento: romance do escritor Eri- públicas para a área cultural. Mas co Verissimo. Dividido em tomos: O Continente tão importantes. Com elas ou sem (1949), O Retrato (1951) e O Arquipélago (1961), a podemos e devemos discutir edu- elas, a gente que faz filmes e peças obra conta uma parte da história do Brasil vista a partir do Sul – da ocupação do Continente de São e músicas e livros termina se vi- Pedro (1745) até 1945 (fim do Estado Novo), por meio da saga das famílias Terra e Cambará. (Nota 11 Sepé Tiaraju (s/data-1756): índio guerreiro rando. Eu defendo, claro, o Fundo da IHU On-Line) guarani, considerado um santo popular brasileiro. Setorial do Audiovisual com toda a 10 Donald Trump (1946): Donald John Trump é Sobre ele, confira a matéria de capa da IHU On um empresário, ex-apresentador de reality show -Line número 156, de 19-9-2005, intitulada Essa convicção dos meus 37 anos de tra- e atual presidente dos Estados Unidos. Na eleição terra tem dono, nós a recebemos de Deus e de São de 2016, Trump foi eleito o 45º presidente norte Miguel, disponível em http://www.ihuonline.unisi- balho na área. Mas, se for o caso, -americano pelo Partido Republicano, ao derrotar nos.br/edicao/156. (Nota da IHU On-Line) troco-o pelo direito de as Jéssicas a candidata democrata Hillary Clinton no número 12 Bento Gonçalves da Silva (1788-1847): militar de delegados do colégio eleitoral; no entanto, e político brasileiro, um dos líderes da Revolução entrarem na piscina, e ficarem lá o perdeu no voto popular. Entre suas bandeiras es- Farroupilha. (Nota da IHU On-Line) tão o protecionismo norte-americano, por onde 13 Laçador: estátua criada pelo escultor Caringi, tempo que quiserem. passam questões econômicas e sociais, como instalada em uma das entradas de Porto Alegre. O a relação com imigrantes nos Estados Unidos. folclorista João Carlos D’Ávila Paixão Côrtes serviu Por isso: Fora, Temer. A História Trump é presidente do conglomerado The Trump de modelo em 1954 para este trabalho. (Nota da Organization e fundador da Trump Entertainment IHU On-Line) cobra. ■ Resorts. Sua carreira, exposição de marcas, vida 14 Polícia Militar do Rio Grande do Sul. (Nota da pessoal, riqueza e modo de se pronunciar con- IHU On-Line) tribuíram para torná-lo famoso. (Nota da IHU 15 Referência ao verso “como aurora precursora”, 16 Filme brasileiro de 2015, escrito e dirigido On-Line) do Hino Rio-Grandense. (Nota da IHU On-Line) por . (Nota da IHU On-Line)

4 DE SETEMBRO | 2017 TEMA 08

REVISTA IHU ON-LINE

Quatro sintomas sociais dos gaúchos

Jaime Betts

psicanalista Jaime Betts, em parceria com a profes- sora Sinara Robin, foi um dos organizadores do se- minário NósOutros Gaúchos – as identidades dos gaúchosO em debate interdisciplinar, que deu origem a um livro homônimo (Editora da UFRGS). Os encontros, reali- zados em 2015, reuniram profissionais de diferentes áreas que apontaram questionamentos sobre quem são os gaú- chos e como se relacionam. No artigo aqui publicado, retoma alguns dos temas trata- dos no seminário. Afirma que, “levando em consideração que conflito é da condição humana, a questão que se põe para uma determinada comunidade cultural é a de como procura solucionar os mesmos”. O resultado, escreve, “são as melho- res ou piores soluções encontradas, soluções de compromis- so denominadas na psicanálise de sintomas sociais”. No caso específico do Rio Grande do Sul, os sintomas so- 63 ciais são muitos, mas o psicanalista destaca quatro: a dificul- dade histórica de se inserir e de se relacionar politicamente no contexto nacional e na geopolítica internacional; o com- plexo de caranguejo invejoso; um narcisismo galopante; um reducionismo identitário mitificante e conservador. Jaime Betts é psicanalista, membro da Associação Psi- canalítica de Porto Alegre – APPOA. Foi diretor executivo do Instituto APPOA – clínica, pesquisa e intervenção em psicanálise (2012-2016). Eis o artigo.

As questões de quem são os gaúchos e como se relacionam precisam necessariamente ser de- batidas em uma perspectiva interdisciplinar. É o que procuramos fazer no seminário NósOutros Gaúchos – as identidades dos gaúchos em debate interdisciplinar, que resultou no livro NósOu- tros Gaúchos – as identidades dos gaúchos em debate interdisciplinar (Editora da UFRGS)1. Buscar respostas no debate interdisciplinar levado a cabo ao longo do projeto implicou pautar o mesmo por quatro princípios: nenhuma disciplina da conta do todo; não há hierarquia entre as diferentes disciplinas; ninguém é dono da verdade; o real é impossível de simbolizar. Se estes são princípios necessários para a fecundidade do trabalho interdisciplinar, se caracterizam de especial importância quando o assunto é quem são os gaúchos e como se relacionam, como se pode depreender pelo que segue abaixo. Recomendo a leitura do livro, pois traz uma abordagem múltipla muito rica. Levando em consideração que conflito é da condição humana, a questão que se põe para uma determinada comunidade cultural é a de como procura solucionar os mesmos. O resultado são

1 A obra pode ser acessada em https://goo.gl/f9rbBn

EDIÇÃO 510 TEMA DE CAPA

as melhores ou piores soluções encontradas, soluções de compromisso denominadas na psica- nálise de sintomas sociais. Os sintomas sociais do Rio Grande do Sul são muitos, mas menciono aqui apenas quatro, que abordarei em seguida numa perspectiva histórico-psicanalítica: 1. a dificuldade histórica de se inserir e de se relacionar politicamente no contexto nacional e na geopolítica internacional; 2. o complexo de caranguejo invejoso; 3. um narcisismo galopante; 4. um reducionismo identitário mitificante e conservador.

Começarei pelo último, o reducionismo identitário. O gentílico gaúcho – que identifica os nas- cidos no Rio Grande do Sul ou que o adotaram como sendo seu lugar – é um reducionismo metonímico que toma a parte pelo todo, ou seja, o todo é reduzido a uma de suas partes. As identidades dos gaúchos e das gaúchas são múltiplas, oriundas de muitas etnias e culturas que compuseram historicamente quem somos hoje. Elas não se reduzem à identidade do gaúcho pilchado da campanha ou das prendas e seus vestidos rodados, conforme defendido pelo fol- clorismo conservador dominante difundido pelos meios de comunicação. Esse reducionismo é empobrecedor, pois exclui a potencial riqueza de uma diversidade cultural em condições de um diálogo construtivo entre os diferentes interesses políticos em jogo no estado. Outro exemplo de mito reducionista de tomar a parte pelo todo é considerar que o Rio Grande do Sul é terra dos pampas. Não é! Tomamos de empréstimo dos hermanos argentinos a paisa- gem pampiana. A paisagem do estado se caracteriza pelo planalto sul-rio-grandense ao sul e o planalto meridional ao norte, com uma geodiversidade e biodiversidade maiores que a pampia- na, como o geólogo Rualdo Menegat expôs num dos encontros do projeto. O território que se as- semelha ao pampa argentino é uma estreita faixa de terra que se vê ao seguir pela BR-290 entre 64 Porto Alegre e Uruguaiana. Perguntas de psicanalista: por que tomar como nossa uma paisagem emprestada de outros? Por que reduzir nossas identidades culturais a uma apenas, idealizada e normatizada pelos manuais do movimento tradicionalista? E com que consequências sociais, políticas e econômicas? O terceiro dos sintomas sociais referidos acima é o do narcisismo gaúcho galopante, que tem várias manifestações. O Hino Rio-grandense, conhecido de cor e cantado em brados retumban- tes nos eventos públicos pela maioria dos gaúchos, comete a insensatez de propor que nossas façanhas sirvam de modelo a toda terra. Por que tanto orgulho de ser gaúcho? Para que tanto? E por que cantar o Hino Rio-grandense se sobrepondo ao Hino Nacional, como tem acontecido em eventos esportivos? A primeira leitura do fenômeno a ser considerada é que tanta exaltação narcísica procure ocultar um complexo de inferioridade, de exclusão e ressentimento pela falta de reconheci- mento pelos outros ‘de nossas façanhas servirem de modelo a toda terra’. Tomemos três as- pectos históricos mais ou menos esquecidos de nossas origens. Primeiro, mencionado acima, o que hoje é nosso gentílico ‘gaúcho’, no passado designava um personagem nômade, marginal, bandoleiro, sem-teto e sem-terra, que sobrevivia se alimentando de gado solto no campo e, posteriormente, trabalhando como peão e soldado para a oligarquia pecuarista dos senhores da terra e da guerra. Segunda leitura: outro fato histórico é que a oligarquia pecuarista gaúcha se ressentia de servir como economia subsidiária no fornecimento do charque à oligarquia paulista dominante no Império, que queria alimento barato para seus escravos nas fazendas cafeeiras. O Império, por sua vez, impunha altos impostos à importação dos insumos necessários à produção do charque, o que beneficiava os preços daquele produzido pelos nossos hermanos uruguaios e argentinos, que, além disso, era de carne de melhor qualidade. Foi este o contexto sócio-político-econômico que desencadeou a revolta farroupilha de 1835 a 1845. Guerra perdida para o Império, mas cuja história é contada pelos vencidos, ressaltan- do apenas seus feitos heroicos. Cabe lembrar que durante muitas décadas, após seu término, o conflito era motivo de chacota, pelo menos em Porto Alegre, que resistiu aos farroupilhas e ganhou por isso de dom Pedro II, em 1841, o título de mui leal e valerosa, em virtude do seu

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE posicionamento a favor do Império, expulsando a invasão dos rebeldes e resistindo a três cercos posteriores. Ironicamente, a Semana Farroupilha é comemorada anualmente em Porto Alegre, esquecida de seu lado da história. Terceira leitura: somado a isso, o ressentimento da oligarquia pecuarista pela falta de reconhe- cimento político e de atribuição de importância por parte do Império (sobretudo da oligarquia paulista dominante) de que a conquista da terra, definição e defesa das fronteiras do que hoje é o RS foi feita a ferro, fogo e sangue pelos senhores da guerra e seus peões. Abordamos aqui o contexto histórico do primeiro sintoma social mencionado acima – a difi- culdade histórica de se inserir e de se relacionar politicamente no contexto nacional e na geo- política internacional. Com a exceção do senador gaúcho José Gomes Pinheiro Machado (1851- 1915), que foi um dos mais influentes políticos no cenário da República Velha (1889-1930) e que morreu apunhalado pelas costas no Rio de Janeiro, pouco tivemos uma presença efetiva de articulação política de inserção dos interesses do estado no cenário nacional. Muitos gaúchos se tornaram políticos importantes, como Getúlio Vargas, mas este, contrariando as expectativas de seus conterrâneos, levou adiante uma política de modernização industrial do país e de inserção no cenário internacional. E o Rio Grande não subiu no trem desse projeto político com ele e ficou marcando passo, queixoso e ressentido. A tônica histórica do posicionamento político do estado gaúcho, seguindo a temática separa- tista farroupilha, é de um ensimesmamento, fechado em si mesmo, com a arrogância da ilusão de autossuficiência. Ou então, de procurar o poder federal com o chapéu na mão – como faz nosso atual governo estadual –, sem procurar decididamente construir uma articulação polí- tica com os demais governos estaduais para fazer valer a defesa dos interesses do Rio Grande do Sul em conjunto com os demais. Por exemplo, no combate à Lei Kandir, que sangra as divisas do estado oriundas das exportações. Nesse sentido, a miopia narcísica-política limita a visão do potencial que a atual posição geopolítica traz para o estado tanto no cenário nacional quanto no internacional. 65 Aqui temos o segundo dos sintomas sociais mencionado no início: o complexo de caranguejo invejoso. É comum ouvirmos a expressão de que a ‘caranguejada’ foi contra essa ou aquela ini- ciativa, mais por ser do contra que por outro motivo razoável. A anedota lembrada pela expres- são acima é de que por aqui a cesta com os caranguejos não precisa ser tampada para evitar que os mesmos saiam, pois, assim que um começa a subir, vem outro e o puxa para baixo. A inveja não tolera que o outro se realize, pois o ressentimento do invejoso do contra se origina em sua incapacidade de lutar positivamente pelo que deseja. A dificuldade de se chegar a um consenso por estas bandas, de fazer as coisas acontecerem, é um dos poucos consensos locais e nacionais. Fala-se do grenalismo, uma rivalidade muitas vezes passional e intolerante que facilmente descamba para a violência. Historicamente, disputas polí- ticas ou diferenças de opinião eram resolvidas na base da faca. No traumático episódio da guerra civil, chamada de Revolução da Degola – a Revolução Federalista de 1893 –, o solo gaúcho ficou encharcado de sangue, ódio e ranger de dentes. Trata-se de um ódio mal resolvido que é facilmente reativado pelos conflitos sociais, ge- rando mais ódio e intolerância. A violência de Estado se repete em nossa história recente com a brutal expulsão pela Brigada Militar da ocupação pelo movimento dos Lanceiros Negros de um edifício público estadual em Porto Alegre. O prédio estava desocupado e sem função há oito anos, e nele estavam morando muitas famílias. Uma total falta de di- álogo e de negociação política do Estado, e de visão histórica, pois repete com violência em outros termos o famigerado episódio de traição dos generais farroupilhas, que desar- maram os lanceiros negros – que haviam dado seu sangue pela revolução em troca de sua liberdade e foram chacinados. Logo se vê o tamanho do desafio que nossos sintomas sociais colocam. E, ao mesmo tempo, vislumbramos o potencial de crescimento que toma consciência da pluriculturalidade que carac- teriza quem somos e de como podemos nos relacionar melhor no Rio Grande do Sul, implemen- tando políticas públicas de inclusão, de disposição ao diálogo com as diferenças e de articulação efetiva com os demais estados da União. Recomendo novamente a leitura do livro para um de- bate interdisciplinar amplo de nossas questões e desafios.■

EDIÇÃO 510 PERFIL

Elogio ao tempo perdido Maura Corcini Lopes, professora e decana da Escola de Humanidades da Unisinos, valoriza os momentos de ócio como atos de resistência do pensamento

Lara Ely

valor do não dito tem um preço Os pupilos da decana são multiplicadores alto para quem dedicou a vida de uma bandeira levantada por ela desde a estudar a surdez. Pelo viés da 1998, quando entrou na universidade para Oeducação inclusiva, a decana da Escola de cursar o Mestrado. Naquela época, o grupo Humanidades Maura Corcini Lopes fecha atuava na informalidade, se dedicava à in- um semestre à frente do cargo e já sente clusão pelo olhar do cinema. A presença da na rotina o peso da responsabilidade. Na professora Eli Fabris, anos mais tarde, o in- pele de uma mulher que concilia os cargos tercâmbio com a Universidade Federal do de chefia, docência e pesquisa à vida pes- Rio Grande do Sul - UFRGS e os novos pro- soal, ela coloca em perspectiva a criação jetos deram sustância à produção do grupo. de espaços de ócio 66 na rotina para fazer a “resistência do pensamento”. Sem isso, não há inova- ção, defende. No seu caso, o desafio extra é cumprir as mil e uma tarefas e conseguir zelar pela sala de aula como templo do conheci- mento, da democra- cia e da relação de troca de saberes. Dez anos após con- ceder entrevista ao IHU1 pela primeira Foto: Juliana Borgmann / Unisinos vez, a professora se- gue lecionando com “Elas trazem seus olhares externos como a mesma devoção do início da carreira. À pesquisadoras em programas de pós-gra- frente do Grupo de Pesquisa em Inclusão, duação em vários locais do Brasil, e com criado por ela em 2002, mas formalizado isso, multiplicam a inclusão. Eu trabalho em 2006, ela vive rodeada de bolsistas de com a deficiência auditiva. Mas tem pesso- iniciação científica, mestres, doutores e as que pesquisam a pobreza, etnia, gênero. pós-doutores. Ao vivo ou por Skype, eles Tem uma variedade de desdobramentos se encontram todas as quintas-feiras e dis- que são típicos da contemporaneidade. É cutem sobre deficiência, gênero, raça e ou- um grupo de tentáculos que busca enten- tros tipos de preconceito. der como podemos qualificar a vida desses coletivos que acabaram, de alguma forma, 1 A referida entrevista está disponível em http://bit.ly/ 2gysXl0. (Nota da IHU On-Line) à margem da sociedade”.

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE

O tema não podia ser mais atual. Na pa- campo das Humanidades faz com que ela radoxal era da Revolução 4.0 e, ao mesmo consiga ser, em discurso e prática, o pró- tempo, da exclusão tecnológica, da fome e prio refúgio de acolhimento que propõe. dos repatriamentos, o tempo dedicado ao Para isso, seu dia começa cedo: às cinco outro é cada vez mais escasso. “Cada um da manhã está de pé revisando afazeres, tem que se ocupar do gerenciamento e da organizando a agenda, planejando as ati- promoção de si mesmo, atuando como su- vidades. Embora sua sala fique junto à jeito S.A., e pouco se dedica ao exercício Reitoria, passa a maior parte do tempo da empatia”. O problema disso, segundo interagindo com professores, alunos e Maura, é que nem todos possuem repertó- funcionários. rio para se afirmar no ringue cotidiano de “A mulher multitarefa não vem de hoje. nossas competitivas sociedades. Nós só agregamos tarefas a uma rotina Sala de aula: refúgio de acolhi- que é histórica. Quando vem para cá (uni- mento versidade) só soma. Essa ideia do cuidado faz parte do nosso jeito, e eu não gosta- À beira da máquina de costura da mãe, ria de perder isso. É típico do feminino, em Santiago do Boqueirão, cidade vizinha e para ganhar outros espaços eu não abro de Santa Maria, ela costumava conversar mão de manter esse cuidado – é o que nos com as clientes que encomendavam rou- diferencia.” pas. Certa vez, a filha de uma delas, que Esse olhar afetuoso que remete ao outro estudava Educação Especial na Univer- é um dos diferenciais de Maura no grupo sidade Federal de Santa Maria - UFSM, composto por seis decanos, todos entre 30 presenteou-lhe com uma coleção de livros, e 50 anos, metade homens, metade mu- que ela levaria como companhia de férias. lheres. Seu papel é garantir a interlocução entre professores e alunos e os gestores 67 da instituição, assim Ninguém mais tem tempo para como se integrar com as demais escolas da ler um livro, ir ao cinema, ca- universidade. Segun- minhar ao acaso. Com isso, as do ela, a escolha dos decanos não é asso- pessoas estão perdendo o tem- ciada ao tempo de vida ou de institui- po para pensar a vida. Acho ção, mas ao perfil. “Estou aqui para que devemos fazer um movi- garantir a melhor ex- periência de apren- mento de contraconduta, para dizagem, mas não aceito que nós, pro- proteger o direito ao ócio fessores, sejamos ta- xados de mediadores Aquele compilado de palavras sobre psico- do conhecimento. logia, psiquiatria nunca saíram do imagi- Professor é professor, mudar esse concei- nário da pequena Maura. Pelo contrário: to é diminuir a nossa tarefa”, argumenta a foram decisivos para ela optar pela Educa- professora de 45 anos. ção Especial, em vez da Pedagogia Clássi- ca. Mal sabia que se tratava apenas do ape- Ilhas de fruição para a vida ritivo para o que, anos depois, viria a ser o Em tempos utilitaristas, onde a produti- alimento do seu cotidiano. vidade e a necessidade de atualização cons- Passados 19 anos de Unisinos entre do- tante fazem com que os alunos cheguem à cência, gestão e pesquisa, Maura não se universidade com muita bagagem e pouca entregou ao conservadorismo de um pos- disposição para refletir, ela defende o lugar to acadêmico. Pelo contrário: a constante da sala de aula como um templo do apren- atualização e o contato com a pesquisa no dizado, o qual caracteriza como uma espé-

EDIÇÃO 510 PERFIL

cie de ilha para ancorar o conhecimento. livro, ir ao cinema, caminhar ao acaso. “Quando você recorda de ter feito algo Com isso, as pessoas estão perdendo o que não seja útil? Com esse sujeito tão ata- tempo para pensar a vida. Acho que deve- refado e digital, como eu vou mobilizar o mos fazer um movimento de contracondu- pensamento? Para mim, é na colaboração ta, para proteger o direito ao ócio. Daí vem e troca com o outro que se dá esse avanço.” o repertório para desempenhar o papel Subverter essa lógica cotidiana de corre- de improviso que é estar em sala de aula ria consiste em criar “ilhas de fruição para (...). Quanto mais saberes você tem, mais a vida”. São momentos que aumentam o preparado você está na sala de aula. Os sa- repertório, dão sentido ao que se faz no beres inúteis enriquecem nosso repertório mundo profissional, e mais: nutrem de for- para a intelectualidade. A filosofia não ser- ma criativa as ações no campo das ideias. ve para alguma coisa, mas instrumentaliza “Ninguém mais tem tempo para ler um para pensar a vida”, ensina. ■

68

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE

69

EDIÇÃO 510 CINEMA

Médico (Imanol Arias) prepara o corpo de Evita para o funeral em cena que adquire um ar de sonho – ou pesadelo

70 A Argentina não dorme História do roubo do corpo de Eva Perón traz memórias e fantasmas da ditadura

Fernando Del Corona1

Para todas as diferenças e rivalidades entre Brasil e Argentina, existem aproximações inegáveis na história dos dois países sul-americanos, especialmente no século 21. Ambas nações sofreram sob o jugo de governos populistas e regimes totalitários – quando não uma mistura dos dois, como durante o período do Estado Novo no Brasil – e de militares que desestabilizaram o país. Na Argentina, em particular, seis diferentes golpes de estado ocorreram em um período de 50 anos, enfraquecendo o que outrora fora a economia mais poderosa da América Latina. Uma pessoa em especial estava às voltas da política argentina durante 30 desses anos. Juan Perón, como fora Getúlio Vargas no Brasil, governou o país por dois mandatos entre 1946 e 1955, quando foi deposto por um golpe militar intitulado A Revolução Libertadora. Ele voltaria ainda a ser eleito democraticamente em 1973 e morreu no ano seguinte, deixando no seu lugar sua mulher e vice-presidente, Isabel Martínez de Perón, que, por sua vez, foi deposta por mais um golpe militar que perdurou até 1983.

1 Fernando Del Corona é mestrando em Comunicação e especialista em Televisão e Convergência Digital pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, graduado em Produção Audiovisual pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Em seu artigo de conclusão da especialização, pesquisou a relação de fãs da série Game of Thrones com spoilers no ambiente do site reddit. Em sua dissertação, em fase de desenvolvimento, investiga a presença da imagem-tempo na obra da diretora norte-americana Sofia Coppola.

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE

Depois disso, outra figura se manteve em voga como uma das mais emblemáticas da política Argentina moderna: a primeira mulher de Perón, Eva – ou Evita2. A primeira-dama mais fa- mosa do país esteve firmemente ao lado do marido até a sua morte prematura de câncer, em 1952, aos 33 anos – a mesma idade de Jesus, comenta o almirante Emilio Eduardo Massera3 (Gael García Bernal) na narração que pontua momentos chaves de Eva não dorme, novo filme de Pablo Agüero4. A comparação com Jesus não é em vão: Evita foi adorada pelo povo argentino, idolatrada pelos descamisados – a classe trabalhadora – por sua luta pelos interesses do povo. Antes de sua morte, ganhou do Congresso argentino o título de Líder Espiritual da Nação. É essa figura mística, mais do que uma personagem real e humanizada, que surge nas margens de Eva não dorme. Em tempo: Eva aparece no filme por meio de seu corpo morto, embalsamado, desejado, possivelmente violado, que é interpretado – ou pelo menos incorporado – pela atriz Sabrina Machi. Ela também aparece em inúmeras imagens de arquivo que separam os três capítulos do filme. Mas a verdadeira presença de Evita no longa não é física ou visível – seu corpo é quase uma materialização hipnótica de um ideal divino. Ela é sentida pelo efeito que gerou na nação, no medo que inseria no governo militar – até mesmo morta –, na raiva de Massera que a chama de vadia repetidamente, na devoção dos revolucionários que buscam seu corpo. Sua presença é etérea. A história de Eva não dorme se passa no período de 1952, quando o corpo de Evita é rou- bado pelos militares que proíbem o peronismo no país e temem o efeito que ela pode gerar sobre o povo, até 1974, quando finalmente retorna para o seu país, após ter sido enterrada em uma cripta em Milão. Detalhe curioso: depois que o corpo dela foi descoberto em 1971, permaneceu em uma sala climatizada na casa de Perón na Espanha, onde ele cumpriu seu exílio de 1955 a 1973. Ele voltou para a Argentina e se elegeu presidente, mas os restos mor- tais da ex-esposa permaneceram na Europa. Depois que o político morreu, Isabelita fez o traslado do corpo de Evita para a Argentina. Os detalhes do roubo e do retorno para casa, porém, são mantidos como pano de fundo do filme, que foca diretamente no efeito que a 71 “mãe dos pobres” tinha sobre os argentinos. Em certos momentos, parece mais um filme de fantasma do que histórico. Agüero separa o longa em três capítulos independentes e devidamente intitulados. O pri- meiro deles, “O embalsamador”, assume, ainda mais que os outros, um ar de sonho – ou pe- sadelo. Sob a luz de velas, um médico (Imanol Arias) prepara o corpo de Evita para o funeral. Ele a submerge em um líquido vermelho, as peças de roupa evolvendo-a como se fosse uma múmia. A maneira que ele toca nos pés e nas mãos é acentuada. O momento cronológico em que isso acontece é deixado em aberto. De todos os três capítulos, esse é o que mais se aproxima de um experimentalismo narrativo, e não avança o pouco que se pode chamar de trama do filme. O episódio seguinte, “O transportador”, é o único que sugere alguma ideia de como o corpo pode ter sido roubado e transferido para outro país, mas também foge de detalhes. O foco principal são os dois homens responsáveis por levar o cadáver, um coronel (Denis Lavant) e um jovem soldado escolhido para ajudá-lo (Nicolás Goldschmidt). Essa história se passa inteiramente dentro do caminhão no qual transportam o corpo. O soldado não sabe nada sobre a carga que carregam, e a disciplina militar o impede de perguntar – mas Evita parece exalar uma força que o chama, inconscientemente. Conforme ele se curva sobre o corpo azulado, Evita parece mais uma bela adormecida esperando pelo beijo que vai acordá-la. O momento central desse episódio é uma conversa entre os dois na traseira do caminhão, estando entre eles a caixa contendo o corpo. A cena é filmada em um impressionante plano único, em que a câmera se afasta lentamente conforme o dia clareia pela janela. A atmos-

2 María Eva Duarte de Perón (1919-1952): foi uma atriz e líder política argentina. Tornou-se primeira-dama da Argentina quando o general Juan Domingo Perón foi eleito presidente. (Nota da IHU On-Line) 3 Emilio Eduardo Massera (1925): militar argentino, anti-peronista convicto, participou do golpe que destituiu Juan Perón em 1955. Membro integrante da junta militar ao lado de Jorge Rafael Videla (Exército) e Orlando Ramón Agosti (Aeronáutica), Massera protagonizou através da Marinha Argentina uma repressão implacável aos opositores do regime, com um saldo de milhares de mortos. Comandou o centro de detenção clandestino da Marinha em Buenos Aires, conhecido como ESMA (Escola Superior de Mecânica da Armada). Neste local estima-se que passaram 5 mil presos e entre eles, uma centena sobreviveu. Massera foi julgado e condenado a prisão perpétua em 1985. Indultado pelo governo de Carlos Menem, Massera se tornou novamente alvo da justiça após Néstor Kirchner reabrir os processos contra os militares da última ditadura. (Nota da IHU On-Line) 4 Pablo Agüero: é um diretor argentino e roteirista. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 510 CINEMA

fera sexual que ronda o cadáver parece influenciar o ambiente, conforme os dois militares bebem, se desafiam e comparam seus corpos feridos. Apoiada por uma sólida performance dos atores, esse é o melhor capítulo da história, ainda que não tente explicar as minúcias de como ocorreu o transporte – novamente, o que importa é o efeito que o corpo de Evita gera no país e naqueles que o cercam. O segmento final, “O ditador”, conjectura sobre o possível desenrolar de um aconteci- mento real: o sequestro do general Pedro Eugenio Aramburu5 (Daniel Fanego) pelo grupo peronista Montoneros6– novamente, nomes e detalhes são deixados para familiarizados com a história argentina, nada é explicitado para desavisados. Mais uma vez a trama se passa em um único ambiente, o espaço subterrâneo onde o general foi mantido e interro- gado sobre o paradeiro do corpo de Evita. Ele escuta a notícia da própria morte anunciada no rádio que ouve através das tábuas do cativeiro. A única chance do seu próprio corpo ser descoberto é se ele revelar o que sabe sobre o roubo do cadáver da ex-primeira-dama, mas, como é de se imaginar em uma situação dessas, uma única pessoa nunca tem todas as repostas. Os três episódios funcionam bem independentemente e são intercalados com as cenas de ar- quivo que contrastam o clima de sonho do filme com a realidade bruta das filmagens. Ainda as- sim, o resultado final é insatisfatório para quem não conhece a história contada. O filme é eficaz em sua proposta experimental de recriar o efeito quase religioso que Evita – e o seu corpo – teve em sua nação, mas para quem busca algum tipo de aprofundamento na história do país e da própria Eva, não existe resposta no longa-metragem. O filme, no entanto, não precisa dar respostas para aqueles que desconhecem a história. A figura de Evita é muito importante para os argentinos, assim como a história dela. A arte de um país é uma das maneiras possíveis de lidar com seus fantasmas e seu passado, e isso Eva não dorme faz. Não à toa, a ditadura é tema recorrente no cinema argentino – em 72 1985, A história oficial, de Luiz Poenzo, ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, e, mais recentemente, filmes como O clã (2015), de Pablo Trapero, e O segredo de seus olhos (2009), de Juan José Campanella, ainda que não tratem diretamente sobre a ditadura, mostram o efeito que ela teve em sua popu- lação e como suas marcas perduram, mesmo depois de seu término. Apesar das semelhanças entre os dois países, a rela- ção da Argentina com o período da ditadura militar di- fere do que acontece no Brasil: não existe um virar de costas para a própria história. Claro que há brasileiros que denunciam a arbitrariedade e os crimes cometidos a partir do golpe de 1964, no entanto, a elucidação dos fatos relativos aos 21 anos de ditadura não foi tratada com determinação pelo país – basta ver que os arqui- vos do período seguem inacessíveis e que familiares dos desaparecidos não tiveram o direito de enterrar seus entes. De maneira distinta, o país vizinho vem en- frentando os horrores do passado. As avós e as mães da Praça de Maio incessantemente mantêm viva a me- mória dos mortos e desaparecidos – mais de 30 mil Eva não dorme (2015), de Pablo Agüero entre 1976 e 1983. Militares continuam sendo julgados

5 Pedro Eugenio Aramburu (1903-1970): militar e político argentino, ditador de 1955 a 1958 durante a autoproclamada Revolução Libertadora, autointitulado presidente. Em 1962, fundou a União do Povo Argentino (Udelpa), partido que sustentou sua candida- tura presidencial nas eleições de 1963, na qual ficou em terceiro lugar. Em 1970, foi sequestrado e assassinado pela organização guerrilheira Montoneros, no que a organização chamou de “julgamento revolucionário”. (Nota da IHU On-Line) 6 Montoneros: foi uma organização político-militar argentina e guerrilha urbana de esquerda, cujo propósito era o estabeleci- mento de um estado socialista na Argentina. Seus objetivos foram a desestabilização da ditadura militar governante, a autodeno- minada Revolución Argentina (“Revolução Argentina”) (Onganía, Levingston, Lanusse / 1966 - 1973); o retorno ao poder do Juan Domingo Perón, ea realização de eleições democráticas.Foi eficaz entre 1970 e 1979 (sendo que seu período de máximo poder se estendeu até 1976). lhes foi útil para pressionar e desestabilizar a ditadura militar que governava o país. Com o tempo, Montoneros passou a perder o apoio da população. Seu fim tornou-se claro com o chamado Processo de Reorganização Nacional, iniciado após que derrubou de Isabelita Perón, viúva de Perón, da presidência. Devido às estratégias de terrorismo de Estado e investigações ilegais, o grupo foi sistematicamente perseguido pelo regime militar de Jorge Videla, tendo hoje muitos de seus ex-integrantes nas listas de Desaparecidos durante a ditadura argentina. (Nota da IHU On-Line)

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE

e condenados. Existe um acerto de contas com o passado. Eva não dorme leva isso adian- te, honrando uma memória nacional e mostrando o fantasma que paira sobre o país, uma história que não permite ser esquecida.

Ficha técnica

Eva não dorme Título original: Eva no duerme Direção: Pablo Agüero Produção: Jacques Bidou, Marianne Dumoulin, Vanessa Ragone Elenco: Gael García Bernal, Imanol Arias, Denis Lavant, Nicolás Goldschmidt, Daniel Fanego Argentina, 2015, 85 min.

73

EDIÇÃO 510 CINEMA

Corpo elétrico é uma produção rara no cinema ao representar de maneira honesta e naturalizada a experiência queer

74 O corpo e a cidade Filme apresenta mundo gay da periferia de São Paulo com delicadeza e intimidade

Fernando Del Corona1

“Se o corpo não é a alma, o que é a alma?”, perguntou Walt Whitman no século 19 em seu poema Eu canto o corpo elétrico. O mineiro Marcelo Caetano, diretor de Corpo elétrico, parece fazer a pergunta: o que é a alma da cidade, se não o corpo das pessoas que a habitam? A cidade, no caso, é São Paulo, mas não a São Paulo que se vê no cinema, da Paulista e da Zona Sul. É a São Paulo dos imigrantes, dos operários, da periferia. A história se passa no bairro do Bom Retiro e gira em torno de um grupo de trabalhadores em uma confecção de roupas. O protagonista é o estilista gay Elias (Kelner Macêdo), que transita no limiar entre seus chefes que tiram férias na Europa e seus colegas que lidam com horários abusivos e condições de trabalho que beiram ao insalubre. Apesar do foco central em Elias, o filme toma um espectro muito mais amplo. O que aparece é um retrato da vida gay urbana no Brasil, de uma realidade proletária cujas histórias não são con- tadas. Na obra, o corpo queer não é violentado, vitimizado. Ele assume uma potência imagética

1 Fernando Del Corona é mestrando em Comunicação e especialista em Televisão e Convergência Digital pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, graduado em Produção Audiovisual pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Em seu artigo de conclusão da especialização, pesquisou a relação de fãs da série Game of Thrones com spoilers no ambiente do site reddit. Em sua dissertação, em fase de desenvolvimento, investiga a presença da imagem-tempo na obra da diretora norte-americana Sofia Coppola.

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE de liberação, controle próprio, protesto, coragem. Existe sem medo como forma de retomar e preencher a cidade. É esse corpo que transita pelas ruas, bares e campos de futebol, que trazem pulsão para o ambiente que transitam. Não são os corpos mecanizados tão populares na arte contemporânea: Caetano apresenta o afeto como arma política. Os personagens que povoam a fábrica encontram entre eles famílias substitutas para aquelas que tiveram que abandonar. O próprio Elias vem da Paraíba. O novo funcionário, Fernando (Welket Bungué), de Guiné-Bissau. Um deles, Wellington (Lucas Andrade), desenha roupas para uma família de drag queens. São essas ligações afetuosas que os permitem viver – e sobreviver. Em uma cena magistral, o grupo sai andando à noite por uma rua deserta, conversando entre si conforme a câmera avança com eles em um longo plano em que essas relações ficam visíveis, se formando e reconstituindo ao longo do tempo. A realidade deles é exposta através do diálogo casual, um dos pontos fortes do filme. Não existe aqui uma trama central, baseada em objetivos grandiosos ou em um encaminhamento romântico óbvio, é apenas uma fatia de vida desses personagens. Caetano trabalhou em alguns dos melhores filmes nacionais recentes. Foi co-roteirista de Mãe só há uma (2016), de Anna Muylaert, ator em Boi neon (2015) – que também tem como protagonista um estilista sonhador em um ambiente pouco favorecedor –, de Gabriel Mas- caro, assistente de direção em Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda, e produtor de elenco de Aquarius (2016), de Kleber Mendonça Filho, em que conheceu Macêdo em um teste de elenco. Seu primeiro longa-metragem é um grito de força como poucos. É raro no cinema se ver uma representação tão honesta e naturalizada da experiência queer em uma abordagem periférica – e, mais raro ainda, feliz. Não existe tragédia no filme, e isso não é uma maneira de negar esta realidade, mas de mostrar que não é a única, que há possibilidade de se viver assim e ter uma vida plena. Elias encontra afeto por onde passa, seja em relações antigas, em uma transa escondida com um segurança de shopping, em festas ou no trabalho. A vida, o sexo e o corpo gay não são 75 higienizados ou heteronormatizados, são reais e palpáveis e apresentados sem julgamento. Ainda mais, os corpos em tela são os da vida real: novos, velhos, negros, brancos, trans, cis, em forma ou não. A realidade no filme em momentos beira o documental, e algumas cenas levantam a questão de se realmente existe um roteiro ou até uma atuação por trás. Parece que são pessoas cuja existência antecede ao filme, interagindo entre si como o fariam caso a câmera não estivesse lá. Não existe muito a ser revelado sobre a história. Os personagens vivem suas vidas, cruzam ca- minhos e pulam de cama em cama, encontram momentos para compartilharem. As festas vêm em sucessão, assim como as conversas pós-sexo. A única maneira possível de contar a trama seria narrar os acontecimentos na ordem em que ocorrem, porque é assim que os fatos desses personagens se desenrolam, efêmera. É a experiência de observar a vida de outras pessoas, uma realidade táctil. Em um momento, Wellington leva Elias para conhecer a família drag para a qual ele desenha roupas, que inclui Márcia Pantera, ícone da cena nacional e pioneira da arte de bater cabelo, e Simplesmente Pantera, interpretada pela funkeira transexual Linn da Quebrada. Sua voz, assim como a de outras cantoras, como MC Carol, preenchem a trilha sonora ao lado de uma composi- ção de Villa-Lobos. É uma sequência de cenas incríveis. Percebe-se, através do diálogo, uma his- tória prévia entre essas pessoas da qual, assim como de Elias, vemos apenas uma parte. Existem desconfianças e desentendimentos, assim como em qualquer lugar, mas também um carinho e um cuidado imenso. O cinema gay brasileiro tem passado por uma safra notável nos últimos anos. Além de Tatuagem, filmes como Praia do futuro (2014), de Karim Aïnouz – que dirigiu em 2002 Madame Satã, outro que relata a vida queer periférica ao contar a história da famosa trans- formista dos anos 1920, ainda que sob uma abordagem notadamente diferente –, Beira-mar (2015), de Filipe Matzembacher e Márcio Reolon, e Hoje eu quero voltar sozinho (2014), de Daniel Ribeiro, assim como Divinas divas (2017), de Leandra Leal, e Castanha (2014), de Davi Pretto, são obras que refletem sobre performance e identidade de gênero. Esses filmes ajudam a criar um panorama da identidade LGBT nacional que começa a fugir de clichês e tragédias ao qual o gênero se acostumou por conta das representações de uma realidade sombria, marcada por medos, por violências e – figura típica na narrativa gay dos últimos

EDIÇÃO 510 CINEMA

30 anos – pelo HIV/aids. Corpo elétrico não esconde to- talmente a existência do preconceito, mas esse aparece na margem, como em um comentário maldoso do amigo de um deles ao ver o grupo reunido, e não como regra e ponto central na vida deles. Corpo elétrico é um filme necessário, fruto de uma ten- dência animadora para o cinema brasileiro e para a re- presentativa queer. É um filme que mistura atuações ex- celentes – há tempo não se via um elenco tão eclético e satisfatório em uma obra só – a uma narrativa original com visão aguçada para a linguagem cinematográfica. Ca- etano se revelou uma promessa importante para o cinema nacional, que passa por uma das suas melhores fases. Uma ode ao corpo e à cidade, Corpo elétrico mescla as duas em uma. Das ruas para a intimidade nua da cama, são as pessoas que povoam e dão alma para o mundo que habitam – um mundo que, por mais frio e indiferente que possa ser, ainda oferece o afeto para quem estiver disposto

a aceitá-lo. Corpo elétrico (2017), de Marcelo Caetano

Ficha técnica

Corpo elétrico 76 Direção: Marcelo Caetano Produção: Marcelo Caetano, Roberto Tibiriçá Elenco: Kelner Macêdo, Welket Bungué, Lucas Andrade, Márcia Pantera, MC Linn da Que- brada Brasil, 2017, 94 min.

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE

77

EDIÇÃO 510 CRÍTICA INTERNACIONAL

O FCPA e a capacidade investigativa global do Departamento de Justiça dos EUA

Bruno Lima Rocha

circulação de ativos com origens legais ou não, e a acumulação financeira do capital, é a forma superior de riquezas no capitalismo contemporâneo, em esca- Ala mundo. Logo, as vantagens irregulares transacionais são algo sempre presente, podendo gerar alvos de investigação em todos os países. Desta forma, os EUA têm a capacidade de intervir nos processos econômicos do planeta”, escreve Bruno Lima Rocha. “ Bruno Lima Rocha é professor de relações internacio- nais da Unisinos, doutor em ciência política pela UFRGS e jornalista graduado na UFRJ. Eis o artigo.

Desde o início da Operação Lava Jato vimos destacando a necessidade de interpretação da 78 Cooperação Judicial do Brasil com os Estados Unidos dentro da grande estratégia de projeção de poder da Superpotência. Através do Departamento de Justiça (DoJ, equivalente ao MJ nacio- nal) e em estreita coordenação com os departamentos de Estado e Defesa, além de integração interagências, o país que ainda é o mais rico do mundo exerce sua influência jurídico-criminal de forma seletiva e discricionária em escala planetária. Tomando por base a descrição de funcionamento de seus organismos especializados e de fonte direta (DoJ e FBI), neste texto podemos observar um demonstrativo de duas medidas punitivas permanentes: corrupção empresarial e desvios de verbas oficiais. No caso, são dois alvos, um ex- governante da Nigéria e uma empresa transnacional francesa, possível concorrente e rival das TNCs com base nos Estados Unidos. Trata-se de um exemplo de atuação dos EUA, de como qualquer pessoa jurídica ou física em sua jurisdição territorial ou a esta subordinada no estrangeiro, pode ser alvo de operações legais da Superpotência. Com a capacidade inequívoca de quebra de sinais e vigilância na movimenta- ção financeira, o Departamento de Justiça opera com capacidades extraterritoriais. Vejamos o caso do ex-ministro das Minas e da Geologia da República da Guiné, Mahmoud Thiam, conde- nado a sete anos de prisão dentro dos EUA por supostamente haver recebido propina e ganhos advindos de corrupção na assinatura de contratos com empresas chinesas, China Sonangol In- ternational Ltd. (China Sonangol) and China International Fund, SA (CIF). Thiam foi acusado de haver recebido 8,5 milhões de dólares entre ganhos ilegais e operações de lavagem de dinhei- ro (ver: https://goo.gl/VAP5TR) As operações de investigação foram levadas a cabo pelos escritórios do FBI em Nova York e Los Angeles, através da unidade de Esquadrões de Corrupção Internacional e em coordenação com a promotoria especializada na Seção de Fraudes, dentro da hierarquia direta do Depar- tamento de Justiça. Esta Seção é responsável por investigar e processar atos abarcados pela Unidade de Foreign Corrupt Practices Act (“FCPA”). O FCPA foi estabelecido em 1977 e tinha como alvo permanente pessoas físicas e jurídicas atuando em solo dos EUA e alguns enqua- dramentos do mercado de ações internacionais. A mudança de escopo se deu em 1998, quando os alvos potenciais se tornam quaisquer empresas ou pessoas físicas que utilizem em algum momento de um ato ilícito, alguma dependência física ou estrutura corporativa dentro da ju- risdição soberana dos EUA. Nesta descrição, vê-se que quaisquer empresas ou conglomerados

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE

“A expansão das redes telemáticas bancárias e da internet civil possibilitou a presença de vigilância estadunidense em tempo real no planeta” transnacionais que tenham ações negociadas na Bolsa de Valores de NYC, ou tenham acordos de auditoria e aval contábil de empresas estadunidenses pode ser foco de investigação federal (ver: https://goo.gl/hU3tmn). Como braço operacional do FCPA, o governo Obama criou em 2015 os Esquadrões Interna- cionais Anticorrupção do FBI. São três esquadrões baseados respectivamente nos escritórios de Los Angeles, NYC e Washington D.C. (na sede do Bureau) tendo como alvos permanentes “cor- rupção internacional ou no estrangeiro” e crimes de tipo “cleptocráticos”, semelhantes aos de colarinho branco, mas executados pelos super-ricos, a elite de altos executivos globalizados ou, especificamente, o alvo prioritário: operadores políticos corruptos de países subdesenvolvidos ou da Semiperiferia. Não por acaso, a operação tomada como base para o estabelecimento da Unidade dentro do FBI foram as investigações que levaram à admissão de culpa por parte da Alstom. A trans- nacional francesa dos setores de energia e transportes foi acusada de operar um esquema mundial de corrupção e favorecimentos, sendo condenada e feito acordo com a Justiça Fe- deral dos EUA na ordem de 772 milhões de dólares. Os exemplos tomados como evidências de “cleptocracia” são os desvios e condenação do ex-ditador da Nigéria Sani Abacha e o ex -presidente e golpista da Coreia do Sul, Chun Doo Hwan. A base legal – da lei soberana dos 79 EUA – para operar é o Kleptocracy Asset Recovery Initiative do Departamento de Justiça. Para abrir qualquer investigação, basta a suspeita de utilização de redes bancárias com ju- risdições nos EUA ou em territórios associados ou empresas conexas na transferência destes ativos. (ver: https://goo.gl/QYSvwv). Dentro da estrutura direta do Departamento de Justiça, não conformando uma agência independente, está o Money Laundering and Asset Recovery Section (MLARS). A Seção de Lavagem de Dinheiro e Recuperação de Ativos conta com sete unidades integradas: Bank Integrity Unit (fiscalização dos sistemas bancários); International Unit (atividades exter- nas); Money Laundering and Forfeiture Unit (lavagem de dinheiro e confisco); Policy Unit (de políticas integradas); Program Management and Training Unit (de gerência de pessoal e treinamento); Program Operations Unit (de logística de operações); e Special Financial Investigations Unit (aqui seriam os alvos destacados em escala mundo). O MLARS é o braço operacional do DoJ para recuperação de ativos e articulação interagências. (ver: https:// goo.gl/xSiwn2). A Superpotência aplica suas medidas legais sobre quaisquer alvos – físicos ou jurídicos – que utilizem redes bancárias, eletrônicas ou telemáticas sob a jurisdição estadunidense. A coorde- nação interagências implica em alinhar minimamente FBI e NSA em operações extraterrito- riais em concomitância com causas jurídicas abertas dentro do território estadunidense. Em sintonia ideológica com aparelhos Jurídicos de dezenas de países, os EUA atuam como uma força complementar tanto das lutas intestinas de territórios soberanos, como elegem seus alvos, projetando sua capacidade intervencionista através de uma modalidade de guerra híbrida, na modalidade irregular de 4ª geração.■

Expediente Coordenador do curso de Relações Internacionais da Unisinos: Prof. Ms. Álvaro Augusto Stumpf Paes Leme Editor: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha

EDIÇÃO 510 PUBLICAÇÕES

Seis hipóteses para ler a conjuntura brasileira

a edição de número 263, o Cadernos IHU ideias traz o artigo de Fa- bio Luis Barbosa dos Santos, doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo – USP, professor da Universidade Fe- deralN de São Paulo – Unifesp. O texto aborda a conjuntura brasileira após o impedimento da presidenta Dilma Rousseff em agosto de 2016. O autor ana- lisa as alternativas colocadas para o campo da esquerda. “O argumento central é que o movimento histórico da esquerda que teve como referên- cia nuclear o Partido dos Trabalha- dores, identificado com uma demo- cratização do capitalismo brasileiro, esgotou-se. Neste contexto, o campo popular enfrenta a disjuntiva entre 80 reciclar esta política, que ameaça repetir-se como farsa, ou construir o novo, que exigirá uma estratégia e instrumentos políticos para ir além do PT”, escreve Santos. Acesse a versão desse número em http://bit.ly/2wISdyR. Esta e outras edições do Cader- nos IHU ideias também podem ser obtidas diretamente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no campus São Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço humanitas@unisi- nos.br. Informações pelo telefone (51) 3590-8213.

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE

A sensibilidade religiosa de Thoreau

edição número 123 do Cadernos Teologia Pública traz o artigo de Edward F. Mooney, doutor em Filosofia pela University of California Santa Barbara, professor no departamento de Religião e Filosofia da ASyracuse University, no Estado de Nova Iorque, nos Estados Unidos. “A prá- tica religiosa de Thoreau é a reverência e devoção às coisas do espírito. Sua reverência é pelas coisas que estão impregnadas de espírito, encontra- das aqui, em todo canto ao nosso redor”, destaca. E completa: “ainda mais importante, sua prática é ser- vir aos outros, em especial àqueles escravizados, que necessitam de au- xílio ou são esquecidos. Ele vive os seus Paraísos e Infernos particula- res, seu jeito de meditar e de perma- 81 necer imóvel. Ele exulta na presença do sagrado por todos os lados – no rosto de um trabalhador, em revo- lucionários como John Brown, no chamado zombeteiro da mobelha no meio do lago, no sussurrar das árvores e nos campos desolados no topo do Monte Ktaadn”. Acesse a versão completa desse Ca- dernos Teologia Pública em http:// bit.ly/2wSLiDO. Esta e outras edições do Cadernos Teologia Pública também podem ser obtidas diretamente no Institu- to Humanitas Unisinos – IHU, no campus São Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço humanitas@unisi- nos.br. Informações pelo telefone (51) 3590-8213.

EDIÇÃO 510 82

4 DE SETEMBRO | 2017 REVISTA IHU ON-LINE

Outras edições em www.ihuonline.unisinos.br/edicoes-anteriores

Gauchismo - A tradição inventada e as disputas pela memória

Edição 493 | Ano XVI | 19-9-2016 “Uma data que anualmente rende debates e publicações acerca dela é o 20 de Setembro, quando se celebra a Revolução Farroupilha — ou Guer- ra dos Farrapos, como alguns preferem, já que os eventos ocorridos de 1835 a 1845 no extremo sul do Brasil não caracterizam uma revolução. A revista IHU On-Line desta semana se alinha à segunda perspectiva e propõe uma reflexão desde esse ponto.”

A invenção do gaúcho 83

Edição 75 | Ano III | 15-9-2003 “Por ocasião da Semana Farroupilha, a IHU On-Line debate o “ser gaúcho”. Em tempos de globalização, a identidade gaúcha existe ou não? Qual é a potencialidade e quais os seus limites? É nela que os brasileiros encontram sua inserção com a América Latina? Essas e outras questões orientam o debate desse número.”

Ser Gaúcho em tempos de globalização

Edição 35 | Ano II | 16-9-2002 “Iniciando a Semana Farroupilha, emerge a discussão sobre a possibili- dade e as formas de interação entre o tradicionalismo gaúcho e a global- ização. Esse é o tema que abre a revista, com uma entrevista do professor Gilson Lima, mestre em Ciência Política, que na época concluía o douto- rado em Sociologia Contemporânea.”

EDIÇÃO 510 ihu.unisinos.br | ihuonline.unisinos.br twitter.com/_ihu bit.ly/faceihu bit.ly/instaihu bit.ly/youtubeihu medium.com/@_ihu