A Filosofia Do Cotidiano Na Crônica Brasileira
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Verso e Reverso, XXVIII(69):230-236, setembro-dezembro 2014 © 2014 by Unisinos – doi: 10.4013/ver.2014.28.69.09 ISSN 1806-6925 A filosofia do cotidiano na crônica brasileira The daily philosophy in the Brazilian chronicle Luis Eduardo Veloso Garcia Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Rod. Araraquara-Jaú Km 1, Machados, 14800-901, Araraquara, SP, Brasil. [email protected] Resumo. O artigo em questão procurará levantar Abstract. This paper will seek to raise a refl ection uma refl exão sobre a capacidade da crônica brasi- on the capacity of Brazilian chronicle in portraying leira em retratar as dinâmicas próprias do dia a dia the dynamics of daily life through the ideas in the através das ideias presentes na fi losofi a do cotidia- philosophy of everyday life theorized by Michel de no teorizada por Michel de Certeau em A Invenção Certeau in A Invenção do Cotidiano and Michel Ma- do Cotidiano e Michel Maff esoli em A Conquista do ff esoli in A Conquista do Presente, and also the re- Presente, além da refl exão de textos fundamentais fl ection of fundamental texts by Antonio Candido, de nomes como Antonio Candido, Afrânio Couti- Afrânio Coutinho, Eduardo Portella and Davi Ar- nho, Eduardo Portella e Davi Arrigucci Jr. sobre o rigucci Jr. about the value of the chronicle as a text valor da crônica como um texto que torna a “cidade which makes the “city done lett er”. Therefore, our feita letra”. Portanto, nosso intuito é representar o intention is to represent how much a chronicler can quanto um cronista pode transmitir a movimen- transmit the movement and the local voice through tação e a voz local de seu espaço através de suas his chronicles. crônicas. Palavras-chave: crônica brasileira, cotidiano, fi loso- Keywords: Brazilian chronicle, daily life, philoso- fi a do cotidiano. phy of daily life. Em que outro documento será possível encontrar sileiraram”, tornando-se um espaço essencial o cotidiano monumentalizado como na crônica? do registro dos acontecimentos da cidade, no (Margarida de Souza Neves) qual se pode encontrar tanto a fala quanto as histórias do dia a dia em toda sua plenitude. Neste trabalho, através da abordagem da Sendo, então, um espaço capaz de refl etir o fi losofi a do cotidiano exposta nos livros A In- cotidiano urbano de forma leve e natural, mas, venção do Cotidiano, de Michel de Certeau, e em nenhum momento supérfl uo, veremos, em A Conquista do Presente, de Michel Maff esoli, todos os teóricos que escreveram sobre a crô- pretendemos demonstrar o quanto a dinâmica nica, o caminho da “cidade feita letra” – nas própria inerente do miúdo do cotidiano que palavras de Eduardo Portella no ensaio A Ci- escapa de uma força controladora encontra-se dade e a Letra – como a chave do entendimento presente no gênero crônica, refl etindo esta desse gênero. ideia dentro do pensamento de outros grandes Em auxílio de nosso trabalho, a defi nição nomes que teorizaram o papel da crônica. de cotidiano que abordaremos como ponto A crônica, em nosso país, é um dos gêneros central encontra-se nas ideias levantadas por que – como nos chama a atenção Afrânio Cou- dois teóricos importantes do assunto: o pensa- tinho no texto Ensaio e Crônica – “mais se abra- mento de Michel de Certeau no livro A Inven- A filosofia do cotidiano na crônica brasileira ção do Cotidiano e de Michel Maff esoli na obra nem captados pelos sistemas onde se desen- A Conquista do Presente. volvem” (Certeau, 1998, p. 45). Em Michel de Certeau, temos a ideia de um No caso das crônicas, o que vemos é a so- cotidiano que é gerado sempre na relação dos ciabilidade do presente que o cerca e que con- indivíduos e não na imposição de uma força fronta julgamentos de uma ordem que escapa- controladora maior, pois, como aponta o au- ria à noção de politicamente correto, pois tal tor, “a relação (sempre social) determina seus noção não sobrevive ao contraste de um coti- termos, e não o inverso, e que cada individua- diano visto em sua miudeza. Nas palavras de lidade é o lugar onde atua uma pluralidade in- Certeau, são as “trajetórias indeterminadas” coerente (e muitas vezes contraditória) de suas que fazem parte do nosso dia a dia, das quais a determinações relacionais” (Certeau, 1998, capitalização de um sentido não pode ser exi- p. 38). Em suas palavras, “a presença e a circula- gida em relação ao presente. ção de uma representação (ensinada como có- Em Michel Maff esoli, veremos também um digo da promoção sócio-econômica por prega- cotidiano que escapa dos poderes controlado- dores, por educadores ou por vulgarizadores) res, retirando da astúcia do seu miúdo e apa- não indicam de modo algum o que ela é para rentemente banal uma sociabilidade original e seus usuários” (Certeau, 1998, p. 39), pois a dinâmica, da qual o homem do dia a dia que forma que esses indivíduos irão “consumi-las” compreende nosso cotidiano, “sem levar em é sempre imprevisível. consideração o moralismo inquisidor e fora As “mil práticas pelas quais usuários se das convulsões tetânicas de uma pseudolibe- reapropriam do espaço organizado pelas téc- ração, joga e efetivamente arrisca a sua vida de nicas da produção sócio-cultural” Certeau todo dia” (Maff esoli, 1979, p. 129). chama de “artes de fazer”, e a forma astuciosa No miúdo desse cotidiano – ou, como ve- que estas são construídas através dos “proce- remos na teoria de Antônio Candido mais a dimentos populares (também minúsculos e frente neste trabalho, na “vida ao rés-do-chão” cotidianos) que jogam com os mecanismos da – quem acaba se fundando através de diversas disciplina e não se conformam com ela a não situações do dia a dia são as características ine- ser para alterá-los”, formando “a contraparti- rentes ao trágico, sendo este um material pri- da, do lado dos consumidores (ou “domina- mordial não só para a construção das relações dos”?), dos processos mudos que organizam sociais, mas também para a criação literária a ordenação sócio-política” (Certeau, 1998, que se alimenta desses elementos. p. 41), podemos percebê-las nos métodos de Outras noções importantes são colocadas consumos “combinatórios e utilitários” que em jogo nas relações construídas no cotidiano, “colocam em jogo uma maneira de pensar entre elas, a teatralidade e as bases dos rituais, investida numa maneira de agir, uma arte de porém, todas essas acabam por destacar ainda combinar indissociável de uma arte de utili- mais a presença do trágico pelo seu afronta- zar” (Certeau, 1998, p. 42). mento da fi nitude, sendo sempre um jogo con- Tal produção, determinantemente mergu- tra a própria morte, como destaca o autor. lhada no presente, não consegue adquirir a Mais uma vez, o que temos aqui é um con- capitalização concreta de seus modos de agir – fronto de afi rmação do sujeito perante o presen- “artes de fazer” –, pois esta joga, muitas vezes, te, assim como também apontava Certeau. Situ- com a noção de improviso e de decisões que ações que realçam “essa comunhão de emoções não abrem espaço para uma refl exão maior do ou sensações” aparecem “difundidas nos atos que o ato em si. mais cotidianos ou cristalizadas nos grandes Entre os exemplos usados pelo autor para acontecimentos pontuais ou comemorativos descrever “essas práticas cotidianas que pro- (aniversários, revoluções, movimentos de mas- duzem sem capitalizar, isto é, sem dominar o sa, greves, agrupamentos etc.)”, deixando claro tempo” (Certeau, 1998, p. 49), o que melhor o que “funda a vida social ou que faz lembrar traduz tais ideias e que também mais nos inte- sua fundação” (Maff esoli, 1979, p. 44-45). ressará nesse trabalho é o processo de constru- Segundo Maff esoli, “o afeto que instala a ção da fala presente em nosso dia a dia. Como ligação ao território é uma maneira de viver ressalta Certeau, “embora sejam compostas no presente”, e esse viver no presente é cons- com os vocabulários de línguas recebidas e truído através dos menores gestos da vida continuem submetidas a sintaxes prescritas, cotidiana – entre eles, “o aperitivo ao fi nal da elas desenham as astúcias de interesses outros tarde, os rituais do vestuário, os passeios à noi- e de desejos que não são nem determinados te na praça pública, as conversas de bar e os Verso e Reverso, vol. XXVIII, n. 69, setembro-dezembro 2014 231 Luis Eduardo Veloso Garcia rumores do mercado” (Maff esoli, 1979, p. 58) o signifi cado de retratar a cidade em diversas – que são capazes de materializar a existência proporções, ser o “registro dos acontecimen- inscrevendo os “fatores de socialidade” como tos da cidade, a história da vida da cidade, a ci- produtores de intensidade. dade feita letra” (Portella, 1958, p. 115). Como Como destaca o autor, “esse presente banal ressalta o autor, o tal cosmopolitismo presente e talvez monótono não é vazio e homogêneo, na crônica refl ete em si o veículo do qual nasce mas, ao contrário, é carregado de intensidade o gênero, o jornal. que jorra da própria textura do que constitui o Porém, diferentemente dos jornalistas, a cotidiano”. É neste presente, então, construí- sensibilidade do cronista torna-se um ele- do entre os “ruídos da rua, as cantorias popu- mento imprescindível para que ela transcen- lares na mesa do bar, os rumores e explosões da o “seu destino de notícia para construir o de cólera vindos de um apartamento com ja- seu destino de obra literária” (Portella, 1958, nelas abertas, os odores das castanhas quen- p. 114). Nessa relação, Portella elenca alguns tes no inverno, de amendoins e sorvetes nos cronistas, destacando as características com as dias bonitos” que veremos a constituição des- quais eles se armam para driblar a transitorie- ses “nadas” que “perfazem toda a existência” dade inerente ao espaço jornalístico: (Maff esoli, 1979, p.