Verso e Reverso, XXVIII(69):230-236, setembro-dezembro 2014 © 2014 by – doi: 10.4013/ver.2014.28.69.09 ISSN 1806-6925

A filosofia do cotidiano na crônica brasileira

The daily philosophy in the Brazilian chronicle

Luis Eduardo Veloso Garcia Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Rod. Araraquara-Jaú Km 1, Machados, 14800-901, Araraquara, SP, Brasil. [email protected]

Resumo. O artigo em questão procurará levantar Abstract. This paper will seek to raise a refl ection uma refl exão sobre a capacidade da crônica brasi- on the capacity of Brazilian chronicle in portraying leira em retratar as dinâmicas próprias do dia a dia the dynamics of daily life through the ideas in the através das ideias presentes na fi losofi a do cotidia- philosophy of everyday life theorized by Michel de no teorizada por Michel de Certeau em A Invenção Certeau in A Invenção do Cotidiano and Michel Ma- do Cotidiano e Michel Maff esoli em A Conquista do ff esoli in A Conquista do Presente, and also the re- Presente, além da refl exão de textos fundamentais fl ection of fundamental texts by Antonio Candido, de nomes como Antonio Candido, Afrânio Couti- Afrânio Coutinho, and Davi Ar- nho, Eduardo Portella e Davi Arrigucci Jr. sobre o rigucci Jr. about the value of the chronicle as a text valor da crônica como um texto que torna a “cidade which makes the “city done lett er”. Therefore, our feita letra”. Portanto, nosso intuito é representar o intention is to represent how much a chronicler can quanto um cronista pode transmitir a movimen- transmit the movement and the local voice through tação e a voz local de seu espaço através de suas his chronicles. crônicas.

Palavras-chave: crônica brasileira, cotidiano, fi loso- Keywords: Brazilian chronicle, daily life, philoso- fi a do cotidiano. phy of daily life.

Em que outro documento será possível encontrar sileiraram”, tornando-se um espaço essencial o cotidiano monumentalizado como na crônica? do registro dos acontecimentos da cidade, no (Margarida de Souza Neves) qual se pode encontrar tanto a fala quanto as histórias do dia a dia em toda sua plenitude. Neste trabalho, através da abordagem da Sendo, então, um espaço capaz de refl etir o fi losofi a do cotidiano exposta nos livros A In- cotidiano urbano de forma leve e natural, mas, venção do Cotidiano, de Michel de Certeau, e em nenhum momento supérfl uo, veremos, em A Conquista do Presente, de Michel Maff esoli, todos os teóricos que escreveram sobre a crô- pretendemos demonstrar o quanto a dinâmica nica, o caminho da “cidade feita letra” – nas própria inerente do miúdo do cotidiano que palavras de Eduardo Portella no ensaio A Ci- escapa de uma força controladora encontra-se dade e a Letra – como a chave do entendimento presente no gênero crônica, refl etindo esta desse gênero. ideia dentro do pensamento de outros grandes Em auxílio de nosso trabalho, a defi nição nomes que teorizaram o papel da crônica. de cotidiano que abordaremos como ponto A crônica, em nosso país, é um dos gêneros central encontra-se nas ideias levantadas por que – como nos chama a atenção Afrânio Cou- dois teóricos importantes do assunto: o pensa- tinho no texto Ensaio e Crônica – “mais se abra- mento de Michel de Certeau no livro A Inven- A filosofia do cotidiano na crônica brasileira

ção do Cotidiano e de Michel Maff esoli na obra nem captados pelos sistemas onde se desen- A Conquista do Presente. volvem” (Certeau, 1998, p. 45). Em Michel de Certeau, temos a ideia de um No caso das crônicas, o que vemos é a so- cotidiano que é gerado sempre na relação dos ciabilidade do presente que o cerca e que con- indivíduos e não na imposição de uma força fronta julgamentos de uma ordem que escapa- controladora maior, pois, como aponta o au- ria à noção de politicamente correto, pois tal tor, “a relação (sempre social) determina seus noção não sobrevive ao contraste de um coti- termos, e não o inverso, e que cada individua- diano visto em sua miudeza. Nas palavras de lidade é o lugar onde atua uma pluralidade in- Certeau, são as “trajetórias indeterminadas” coerente (e muitas vezes contraditória) de suas que fazem parte do nosso dia a dia, das quais a determinações relacionais” (Certeau, 1998, capitalização de um sentido não pode ser exi- p. 38). Em suas palavras, “a presença e a circula- gida em relação ao presente. ção de uma representação (ensinada como có- Em Michel Maff esoli, veremos também um digo da promoção sócio-econômica por prega- cotidiano que escapa dos poderes controlado- dores, por educadores ou por vulgarizadores) res, retirando da astúcia do seu miúdo e apa- não indicam de modo algum o que ela é para rentemente banal uma sociabilidade original e seus usuários” (Certeau, 1998, p. 39), pois a dinâmica, da qual o homem do dia a dia que forma que esses indivíduos irão “consumi-las” compreende nosso cotidiano, “sem levar em é sempre imprevisível. consideração o moralismo inquisidor e fora As “mil práticas pelas quais usuários se das convulsões tetânicas de uma pseudolibe- reapropriam do espaço organizado pelas téc- ração, joga e efetivamente arrisca a sua vida de nicas da produção sócio-cultural” Certeau todo dia” (Maff esoli, 1979, p. 129). chama de “artes de fazer”, e a forma astuciosa No miúdo desse cotidiano – ou, como ve- que estas são construídas através dos “proce- remos na teoria de Antônio Candido mais a dimentos populares (também minúsculos e frente neste trabalho, na “vida ao rés-do-chão” cotidianos) que jogam com os mecanismos da – quem acaba se fundando através de diversas disciplina e não se conformam com ela a não situações do dia a dia são as características ine- ser para alterá-los”, formando “a contraparti- rentes ao trágico, sendo este um material pri- da, do lado dos consumidores (ou “domina- mordial não só para a construção das relações dos”?), dos processos mudos que organizam sociais, mas também para a criação literária a ordenação sócio-política” (Certeau, 1998, que se alimenta desses elementos. p. 41), podemos percebê-las nos métodos de Outras noções importantes são colocadas consumos “combinatórios e utilitários” que em jogo nas relações construídas no cotidiano, “colocam em jogo uma maneira de pensar entre elas, a teatralidade e as bases dos rituais, investida numa maneira de agir, uma arte de porém, todas essas acabam por destacar ainda combinar indissociável de uma arte de utili- mais a presença do trágico pelo seu afronta- zar” (Certeau, 1998, p. 42). mento da fi nitude, sendo sempre um jogo con- Tal produção, determinantemente mergu- tra a própria morte, como destaca o autor. lhada no presente, não consegue adquirir a Mais uma vez, o que temos aqui é um con- capitalização concreta de seus modos de agir – fronto de afi rmação do sujeito perante o presen- “artes de fazer” –, pois esta joga, muitas vezes, te, assim como também apontava Certeau. Situ- com a noção de improviso e de decisões que ações que realçam “essa comunhão de emoções não abrem espaço para uma refl exão maior do ou sensações” aparecem “difundidas nos atos que o ato em si. mais cotidianos ou cristalizadas nos grandes Entre os exemplos usados pelo autor para acontecimentos pontuais ou comemorativos descrever “essas práticas cotidianas que pro- (aniversários, revoluções, movimentos de mas- duzem sem capitalizar, isto é, sem dominar o sa, greves, agrupamentos etc.)”, deixando claro tempo” (Certeau, 1998, p. 49), o que melhor o que “funda a vida social ou que faz lembrar traduz tais ideias e que também mais nos inte- sua fundação” (Maff esoli, 1979, p. 44-45). ressará nesse trabalho é o processo de constru- Segundo Maff esoli, “o afeto que instala a ção da fala presente em nosso dia a dia. Como ligação ao território é uma maneira de viver ressalta Certeau, “embora sejam compostas no presente”, e esse viver no presente é cons- com os vocabulários de línguas recebidas e truído através dos menores gestos da vida continuem submetidas a sintaxes prescritas, cotidiana – entre eles, “o aperitivo ao fi nal da elas desenham as astúcias de interesses outros tarde, os rituais do vestuário, os passeios à noi- e de desejos que não são nem determinados te na praça pública, as conversas de bar e os

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rumores do mercado” (Maff esoli, 1979, p. 58) o signifi cado de retratar a cidade em diversas – que são capazes de materializar a existência proporções, ser o “registro dos acontecimen- inscrevendo os “fatores de socialidade” como tos da cidade, a história da vida da cidade, a ci- produtores de intensidade. dade feita letra” (Portella, 1958, p. 115). Como Como destaca o autor, “esse presente banal ressalta o autor, o tal cosmopolitismo presente e talvez monótono não é vazio e homogêneo, na crônica refl ete em si o veículo do qual nasce mas, ao contrário, é carregado de intensidade o gênero, o jornal. que jorra da própria textura do que constitui o Porém, diferentemente dos jornalistas, a cotidiano”. É neste presente, então, construí- sensibilidade do cronista torna-se um ele- do entre os “ruídos da rua, as cantorias popu- mento imprescindível para que ela transcen- lares na mesa do bar, os rumores e explosões da o “seu destino de notícia para construir o de cólera vindos de um apartamento com ja- seu destino de obra literária” (Portella, 1958, nelas abertas, os odores das castanhas quen- p. 114). Nessa relação, Portella elenca alguns tes no inverno, de amendoins e sorvetes nos cronistas, destacando as características com as dias bonitos” que veremos a constituição des- quais eles se armam para driblar a transitorie- ses “nadas” que “perfazem toda a existência” dade inerente ao espaço jornalístico: (Maff esoli, 1979, p. 153). Um dos melhores exemplos que Maff esoli O Sr. Carlos Drummond de Andrade, por ex- encontra para ilustrar um espaço de sociabi- emplo, enriquece a notícia com elementos de tipo lidade no qual a comunicação, o afeto e a tro- psicológico, metafísico, e, sobretudo, utiliza o ca de sentimentos e sensações acontecem com humor para outorgar transcendência à crônica. No Sr. o autobiográfi co se alia à precisão é o bar. notícia (ou soluciona a ausência de noticia): é a O autor também aponta o importante papel personalidade, é o seu universo interior, são os dos provérbios populares como colaboradores seus problemas, o mundo da sua crônica. Daí o de uma unidade afetiva local pelo rico com- timbre intimista, subjetivo, que por vezes carac- partilhamento de discursos feitos nessa troca teriza a sua arte. É quando o subjetivismo do ar- de frases que ganham signifi cação a partir de tista se sobrepõe à preocupação objetiva do croni- uma aproximação existente entre os espaços. sta. Aliás, algo semelhante se repete na arte do Sr. Tais informações são extremamente válidas Lêdo Ivo. Daí que, em A Cidade e os Dias, o seu em nossa análise, pois as crônicas projetam segredo de cronista seja exatamente a reconstitu- ição da atmosfera que faz a cidade e não apenas tanto esse compartilhamento de discursos ine- das notícias que agitam, momentaneamente, a rentes aos provérbios populares daquele local, vida da cidade. E assim foge ele, com admirável quanto a linguagem intensamente presente sabedoria, ao que na crônica pode gastar-se com o em ambientes de socialização como os bares tempo, ao que na crônica pode caducar (Portella, que fazem parte desses bairros. 1958, p. 115-116). Também é perceptível, nas crônicas, a for- ma com que o trágico participa do cotidiano, Como Portella defi ne apontando para Lêdo pois elas se constroem através da descrição Ivo e que se pode estender para qualquer ou- das relações interpessoais que confl itam com tro autor do gênero, o segredo de cronista o espaço coletivo daquele dia a dia observado encontra-se “na reconstituição da atmosfera atentamente pelos olhos do cronista, caracte- que faz a cidade e não apenas das notícias que rística primordial desse gênero. agitam, momentaneamente, a vida da cidade” Podemos observar, então, a ideia do coti- (Portella, 1958, p. 116). Tal afi rmação torna- diano retratado nas páginas das crônicas atra- -se importante para entendermos o cotidiano vés do pensamento exposto em textos dos já defi nido por Certeau e Maff esoli dentro do citados Afrânio Coutinho em Ensaio e Crônica gênero, pois a cumplicidade entre o autor e o e Eduardo Portella em A Cidade e Letra, além leitor só ocorre quando ele escapa do elemen- das produções de outros nomes, como Antô- to jornalístico, quando quem lê consegue reco- nio Candido em A Vida ao Rés-do-Chão, Jorge nhecer uma dinâmica própria do espaço que o de Sá em A Crônica, Davi Arrigucci Jr. em autor faz parte. Fragmentos Sobre a Crônica, e Joaquim Ferreira Outro importante traço da crônica presente dos Santos, na introdução das Cem Melhores neste ensaio é a construção de sua linguagem, Crônicas Brasileiras. que, ao intencionar ser “um registro da cida- No primeiro apontamento, vemos, em de”, buscará, em “suas expressões” e “suas Eduardo Portella, no ensaio A Cidade e a Letra, falas”, o modelo linguístico necessário, encon- a crônica como um objeto urbano, pois carrega trando na oralidade um caminho interessante

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tanto para refl etir o cotidiano, quanto para Semana de Arte Moderna, em 1922, para que, aproximar o leitor: inaugurando o Modernismo, pudesse a crôni- ca adquirir feição correspondente às solicita- Porque a língua da crônica é a língua da cidade. ções e ao ritmo do momento”, e é justamente E a língua da cidade, ou das cidades, é a que mais na valorização dos temas ligados ao cotidiano se aproxima, do que se quer que seja a língua bra- e na busca de uma linguagem coloquial que sileira. Muito mais do que a língua do interior, tanto prezavam os modernistas de 22 que a em certas regiões ainda num estágio primitivo, agarradas a formas arcaizantes, é a língua da ci- obra de Alcântara Machado se constrói. dade a língua brasileira. E a língua da cidade é Passada a formulação do gênero, encontra- dinâmica, é movimento: é a própria vida da ci- mos também a preocupação com a linguagem dade (Portella, 1958, p. 116). constituinte da crônica, e, mais uma vez, o em- prego da fala cotidiana – a “língua da cidade”, Temos aqui, então, a defi nição da língua exigida também no pensamento de Eduardo da cidade complementando o raciocínio de Portella – aparece como exigência do estilo: Michel de Certeau sobre o modo que a língua é reapropriada pelos seus usuários, transfor- A crônica deve empregar de preferência a lin- mando-a como um objeto legitimamente vivo, guagem da atualidade, não evitando de maneira sem a capacidade de captar o nível dessa trans- sistemática os idiomatismos, epítetos circunstan- formação pelo peso do presente. Novamente, ciais e certos jogos de palavras que se formam o segredo da crônica refl ete como seu autor eventualmente para desaparecer algum tempo depois. Sem essa prática, a crônica deixaria de é capaz de retratar a comunicação do espaço refl etir o espírito da época, uma vez que a língua que o defi ne, sendo este também um ponto da corrente constitui a mais viva expressão da so- sua individualidade que indiretamente trans- ciedade humana, no tempo. A linguagem e, mais mite a pluralidade local. expressivamente a gíria social, é um tempero O texto seguinte em que buscamos guiar importantíssimo na confecção de uma crônica. nosso raciocínio é Ensaio e Crônica, de Afrânio Lembre-se que nisto consiste em grande parte Coutinho, que também aproxima a crônica do o êxito incontestável das reportagens sociais ou papel de espelho do cotidiano nacional, que, mundanas de certos cronistas em nossos dias como destaca o autor, é um dos “gêneros que (Coutinho, 1986, p. 134). mais se abrasileiraram, no estilo, na língua, nos assuntos, na técnica, ganhando propor- Tal busca de João do Rio para os temas lo- ções inéditas na literatura brasileira” (Couti- cais, mais precisamente o que nho, 1986, p. 135). Para Coutinho, dois escri- não aparece nos cartões-postais, e a preocu- tores tornam-se os verdadeiros responsáveis pação de retratar a voz local de São Paulo nos pela transformação do gênero: João do Rio e anos de 1926 a 1935 de Antônio de Alcânta- Antônio de Alcântara Machado. ra Machado, conseguindo inclusive colocar Em João do Rio, pseudônimo do jornalista dentro de seus textos a fala dos imigrantes Paulo Barreto, o “dinamismo de um novo espíri- italianos e japoneses que demarcavam aque- to jornalístico” que viria marcar o gênero encon- le cotidiano (até nos dias atuais tamanha a tra um dos representantes fundamentais, que força dessa imigração em São Paulo), não só partia da “impressão de que a crônica podia ser reafi rma o projeto modernista em seu princi- “o espelho capaz de guardar imagens para o his- pio de valorizar os temas ligados ao cotidiano toriador futuro”” (Coutinho, 1986, p. 128), reper- e à coloquialidade na escrita como também cutindo costumes, hábitos e ideais de um Rio de facilitam a ponte com a teoria de Certeau e Janeiro que não pertencia aos “cartões-postais”. Maff esoli, pois tais intenções são o modo mais Em Antônio de Alcântara Machado, o estilo claro de compreender em texto a dinâmica ine- antiacadêmico que ele introduz nas crônicas, rente do cotidiano que escapa de uma relação cuja voz da rua, especifi camente a rua da ci- imposta por um modelo de comportamento. dade de São Paulo entre 1926 e 1935 – trans- No terceiro texto escolhido para ilustrar a formando-se em seus conhecidos textos inti- participação da crônica como um texto do co- tulados Solos de Cavaquinho e Saxofone (1941), tidiano, “A Vida ao Rés-do-chão”, de Antônio publicados postumamente com esse expressi- Candido, vemos assinalada a forte assimilação vo título –, torna-se um passo complementar da crônica em nosso país, cuja “naturalidade para o gênero. com que se aclimatou aqui e a originalidade Como salienta Coutinho (1986), “após a re- com que aqui se desenvolveu” (Candido, 1980, volução de João do Rio foi preciso que viesse a p. 6) colocou-a, sobre vários aspectos, como

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“um gênero brasileiro”. O próprio título desse Outra obra que usamos como apoio é o li- texto é uma referência clara da proximidade vro A Crônica (1997), que é considerado o pri- que a crônica adquire com nosso cotidiano, meiro livro inteiramente dedicado ao gênero, pois, na escolha “dos assuntos, da composição onde Jorge de Sá defi ne a crônica historica- solta, do ar de coisa sem necessidade que cos- mente, colocando-a como o pontapé inicial da tuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de literatura brasileira, pois considera a carta de todo o dia” (Candido, 1980, p. 5). Pero Vaz de Caminha ao Rei D. Manuel como o É na relação dessa proximidade que ca- primeiro registro dessa prática em nosso país. racterísticas tão marcantes da crônica, como Assim como os outros teóricos aqui aborda- a leveza e a naturalidade, ganham destaque, dos, o autor também compreende a base do gê- levando a aparentemente “conversa fi ada” a nero vinda de um “narrador-repórter” que re- outro patamar: gistra o circunstancial, uma soma de jornalismo e literatura, e, para a compreensão mais com- Deixando de ser comentário mais ou menos ar- pleta, elenca alguns cronistas que traduzem as gumentativo e expositivo para virar conversa principais características do gênero, entre eles, aparentemente fi ada, foi como se a crônica Rubem Braga, denominado sabiamente como pusesse de lado qualquer seriedade nos prob- o espião da vida; Sérgio Porto, o retratista do lemas. É curioso como elas mantêm o ar despreo- cupado, de quem está falando coisas sem maior cotidiano visto com humor de seu pseudônimo conseqüência; e, no entanto, não apenas entram Stanislaw Ponte Preta; Lourenço Diaféria e seu fundo no signifi cado dos atos e sentimentos do humor dos gatos pardos, o qual sabe encon- homem, mas podem levar longe a crítica social trar material no aparentemente banal; Carlos (Candido, 1980, p. 9). Drummond de Andrade, como o cronista do Rio – assim também como foi conhecido Paulo Mais uma vez, portanto, o cotidiano em Barreto, o João do Rio; e seu seus mínimos detalhes aparece retratado, e exercício do cotidiano, entre outros. a escolha da linguagem ganha uma função Para Sá, a opção pela linguagem coloquial primordial, pois esta “se tornou mais leve, dentro da crônica é também uma fonte com- mais descompromissada e (fato decisivo) se plementar do diálogo entre o cronista e o lei- afastou da lógica argumentativa ou da crítica tor, o que valoriza ainda mais a proximidade política, para penetrar poesia adentro” (Can- relativa do gênero com o espaço cotidiano e dido, 1980, p. 7), fato este de grande refl exo das pessoas que fazem parte dele, mas sempre na cultura brasileira: tomando o devido cuidado de não confundir oralidade com a construção de frases frouxas e Num país como o Brasil, onde se costumava iden- simplifi cadas, afi nal, a cumplicidade do leitor tifi car superioridade intelectual e literária com está em jogo: grandiloquência e requinte gramatical, a crônica operou milagres de simplifi cação e naturalidade, Dessa forma, há uma proximidade maior en- que atingiram o ponto máximo nos nossos dias. tre as normas da língua escrita e da oralidade, O seu grande prestígio atual é um bom sintoma sem que o narrador caia no equivoco de compor do progresso de busca de oralidade na escrita, frases frouxas, sem a magicidade da elaboração, isto é, de quebra do artifício e aproximação com pois ele não perde de vista o fato de que o real o que há de mais natural no modo de ser do nosso não é meramente copiado, mas recriado. O co- tempo (Candido, 1980, p. 7-8). loquialismo, portanto, deixa de ser a transcrição exata de uma frase ouvida na rua, para ser a A proximidade da crônica exposta por elaboração de um diálogo entre o cronista e o lei- Candido a tal ponto de ela conseguir soar tor, a partir do qual a aparência simplória ganha como “conversa fi ada” aproxima-se da ideia sua dimensão exata. de Michel Maff esoli, pois nos discursos divi- O dialogismo, assim, equilibra o coloquial e didos em espaço de socialização como o bar literário, permitindo que o lado espontâneo e que é destacado por ele, através da força afe- sensível permaneça como elemento provocador tiva dos compartilhamentos ocorridos nesses de outras visões do tema e subtemas que estão locais, temos os “nadas” que “perfazem toda sendo tratados numa determinada crônica, tal como acontece em nossas conversas diárias e em a existência” (Maff esoli, 1979, p. 153). Quan- nossas refl exões, quando também conversamos to mais próximo da intenção de uma conversa com um interlocutor que nada mais é do que o que se ouve no nosso dia a dia, mais o autor da nosso outro lado, nossa outra metade, sempre crônica vai transcender o espaço jornalístico e numa determinada circunstância (Sá, 1997, p. criar cumplicidade com seu leitor. 10-11).

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Novamente, temos o ideal de Certeau e amente: ela pode se confundir com o conto, a nar- Maff esoli em suas fi losofi as do cotidiano ex- rativa satírica, a confi ssão (Arrigucci Jr., 1987, posto na teoria da crônica de Sá, pois tanto o p. 55-56). modo como a língua local são retratados quan- to o registro dos temas do espaço escolhido Esta fuga do efêmero e descartável que se vão ser fundamentais para o elo entre o autor encontra na noticia só pode ocorrer na crônica, e o leitor. portanto, na leitura aprofundada da dinâmica Mais um texto teórico essencial sobre o gê- inerente do cotidiano, levando em conside- nero que segue o caminho que buscamos nessa ração a força da individualidade construída análise é Fragmentos Sobre a Crônica, de Davi por uma pluralidade na teoria de Certeau, e Arrigucci Jr., no qual retoma-se a ideia da crô- o compartilhamento de afetos locais da teoria nica como “próxima da conversa e da vida de de Maff esoli. todo o dia” (Arrigucci Jr., 1987, p. 51), elemen- Novamente, a linguagem ganha papel de to do “miúdo do cotidiano”, situada “bem per- destaque na compreensão do gênero, sendo to do chão, no cotidiano da cidade moderna” esta concretizada através da confi guração cal- (Arrigucci Jr., 1987, p. 55). O autor destaca a cada na fala coloquial brasileira, para então se transformação fundamental que a crônica so- ajustar “perfeitamente à observação dos fatos fre no Rio de Janeiro como um dos principais da vida cotidiana”, e tornar-se em sua “expe- modelos formadores do que ela veio se tornar: rimentação de uma linguagem mais desativa- da, fl exível e livre”, a tradução de uma prática No Rio se detém, abandonando o pano de fundo e “cada vez mais comunicativa e próxima do lei- o jeito de cronista antigo para se fi xar no cenário tor” (Arrigucci Jr., 1987, p. 62-63). E, para que presente e próximo que era a capital carioca. Ad- essas funções relacionadas à crônica se cum- ota então um tom coloquial de conversa amena e pram, Arrigucci defi ne o papel do cronista da bem humorada, escrita com grande naturalidade seguinte maneira – um tanto poética: em prosa limpa e enxuta, como se desenhasse a bico-de-pena partindo do natural, sem perder a graça e a precisão dos detalhes, um quadro vivo os olhos do cronista, treinados para o fl agrante do Rio de seu tempo. Através de fi guras singu- cotidiano, afeitos à experiência do choque in- lares de seu convívio, o cronista conta agora esperado em qualquer esquina, estão preparados, fragmentos de uma história menos, aquém dos em meio à vida fragmentária, aleatória e fugaz grandes acontecimentos, vivida no dia-a-dia da dos tempos modernos, para a caça de instantâ- Cidade Maravilhosa: o Rio dos meninos pobres neos (Arrigucci Jr., 1987, p. 35-36). do morro do Curvelo, do mundo noturno do sam- ba, das rodas boemias da Lapa, dos intelectuais Além desses estudos, abordamos também modernistas (Arrigucci Jr., 1987, p. 54-55). o texto da introdução da antologia As Cem Melhores Crônicas Brasileiras (2007), escrita Ao se concretizar, então, “muito próximo pelo organizador do livro, Joaquim Ferreira do evento miúdo do cotidiano”, o cronista dos Santos, que teoriza as principais caracte- deve buscar estratégias com as quais ele con- rísticas desse gênero, sobre sua “cara própria, siga fugir do efêmero e descartável que é ine- leve, bem humorada, amorosa, com pé na rua” rente à notícia, para alcançar o real valor que dentro de nossa cultura. Mais uma vez, vê-se o podem ter suas crônicas, como fala Arrigucci: pensamento de espelho do cotidiano nacional, do espaço urbano retratado com leveza, refl e- Muito próximo do evento miúdo do cotidiano, tindo, como nos diz o autor: o cronista deve de algum modo driblá-lo, se não quiser naufragar agarrado ao efêmero. Buscando O estilo, refi namento literário aparentemente uma saída literária, as margens de sua terra fi rme despretensioso, o que ia pelos costumes sociais. são bastante imprecisas: ele pode estender a am- Narrava o comportamento das tribos urbanas, biguidade à linguagem e às fronteiras do gênero, o crescimento das cidades, o duelo dos amantes sem perder o nível de estilo adequado às pequenas e tudo mais que se mexesse no caminhar da es- coisas de que trata. Com isso, às vezes a prosa da pécie sobre esse vale de lágrimas (Santos, 2007, crônica se torna lírica, como se estivesse tomada p. 14). pela subjetividade de um poeta do instantâneo, que, mesmo sem abandonar o ar de conversa fi ada, fosse capaz de tirar o difícil do simples, fa- A estrutura com que divide a escolha das zendo palavras banais alçarem vôo. Outras vezes, 100 melhores crônicas tem critérios cronológi- a tendência é para a prosa de fi cção, pela ênfase cos, destacando as principais mudanças que na objetivação de um mundo recriado imaginari- o gênero sofre em sua trajetória com o passar

Verso e Reverso, vol. XXVIII, n. 69, setembro-dezembro 2014 235 Luis Eduardo Veloso Garcia dos anos desde o seu pontapé inicial na déca- Considerações fi nais da de 1850 até o momento atual. Como defi ne o autor nessa introdução, o caminho da crôni- Essa preocupação em colocar as especifi ci- ca tem, em seu início, os seguintes marcos: dades do cotidiano em suas páginas, somada à subjetividade inerente dos cronistas, conse- A base de estilo plantada por Alencar e Machado gue fazer desse gênero um dos principais ca- passou pelo frenético andarilho de João do Rio- minhos para entendermos o raciocínio do que e-seus-blue-caps-da-belle-époque. Em seguida, seria o cotidiano na teorização de Maff esoli ganhou o formato que ainda se lê hoje com a aparição dos escritores-roqueiros de 22. Os mod- e Certeau, afi nal, a cumplicidade de tal tex- ernistas radicalizaram em suas propostas, em to joga com as dinâmicas diversifi cadas que romances e poesias, o que já havia nas crônicas caracterizam os momentos do dia a dia, pois desde o início: a vontade de deixar a língua “à aqui, o retrato que se vê é daquele cotidiano fresca”, coloquial, sem medo até, por que não?, que foge das soluções comuns que regem um de fazer piada. Valorizavam as pequenas cenas e, pensamento institucional – como o modelo mesmo em assuntos sérios, sempre passavam ao respeitado pelo jornalismo em si –, sendo jus- largo de qualquer pronunciamento tingido pela tamente esta a chave defi nitiva da funcionali- seriedade. Oswald e Mario de Andrade, mais Al- dade de tal texto. cântara Machado, , todos foram cronistas de jornal. Deixaram o gênero na medida Da teoria exposta em A Invenção do Coti- e nada mais, enxuto de beletrismos, orgulhoso de diano por Michel de Certeau, podemos enxer- suas bermudas, para que a partir dos anos 1930 gar dentro da crônica brasileira o quanto esta entrasse em cena o texto fundamental de Rubem projeta os compartilhamentos de discursos na Braga (Santos, 2007, p. 17). individualidade do autor e o modo que esse autor interage com seu espaço cotidiano. A linguagem “à fresca”, coloquial, assume, Na refl exão construída por Michel Maff e- mais uma vez, um aspecto importantíssimo na soli no livro A Conquista do Presente, consegui- construção da crônica, através de “autores que mos construir a ponte para o papel da crônica abusam da primeira pessoa, do comentário e brasileira na sua forma de se demonstrar como da liberdade de adotarem um idioma ora poé- um espaço de sociabilidade no qual a comuni- tico, ora jornalístico, ora irônico, ora perplexo, cação, o afeto e a troca de sentimentos e sensa- quase sempre bem-humorado”. Nesse idioma, ções ocorre. “o verbo não posa empáfi a”, e “a semântica joga com as palavras curtas, de uso comum” Referências (Santos, 2007, p. 18). Portanto, a confi guração do gênero passa ARRIGUCCI JR., D. 1987. Fragmentos sobre a crôni- pelo domínio da leveza, o respeito pela lingua- ca. In: D. ARRIGUCCI JR., Enigma e comentário. gem coloquial presente no dia a dia, e, conse- São Paulo, Companhia das Letras, p. 51-66. quentemente, pela preocupação de saber colo- CANDIDO, A. 1980. A Vida ao Rés-do-chão. São Pau- car de modo inteligente o cotidiano em suas lo, Ática, p. 7-13. (Para gostar de ler, vol. 5). CERTEAU, M. de. 1998. A invenção do cotidiano: páginas, atingindo outro nível de leitura, pois 1. Artes de fazer. Petrópolis, Vozes, 352 p. o cronista, como aponta Marlyse Meyer (1998) COUTINHO, A. 1986. Ensaio e crônica. In: A. COU- no texto Voláteis e versáteis – de variedades e folhe- TINHO, A literatura no Brasil. Rio de Janeiro, tins faz-se a chronica, nada mais é do que uma José Olympio, p.105-128. raça de “cães vadios, livres farejadores do co- MAFFESOLI, M. 1979. A conquista do presente. Rio tidiano”, capazes de, nas palavras, mais uma de Janeiro, Rocco, 231 p. vez, de Joaquim Ferreira dos Santos (2007), MEYER, M. 1998. Voláteis e versáteis. De varieda- des e folhetins se faz a chronica. In: M. MEYER, retratar personagens que “não vieram do fa- As mil faces de um herói canalha e outros ensaios. bulário grego nem das estátuas romanas, mas Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, p. 93-133. de alguma esquina do bairro”. PORTELLA, E. 1958. A cidade e a letra. In: E. POR- Todos esses pontos elencados acima reafi r- TELLA, Dimensões I. Rio de Janeiro, José Olym- mam as ideias expostas na dinâmica que cons- pio, p. 111-117. trói o cotidiano segundo Certeau e Maff esoli, SÁ, J. de. 1997. A crônica. São Paulo, Ática, 94 p. pois, é na preocupação com a proximidade de SANTOS, J.F. dos. 2007. Introdução. In: J.F. SAN- TOS (org.), As Cem Melhores Crônicas Brasileiras. um local que se marca não só o estilo do autor Rio de Janeiro, Objetiva, p. 13-21. na crônica, mas, principalmente, a cumplici- dade que ele irá construir com o consumidor Submetido: 01/02/2014 deste gênero. Aceito: 14/05/2014

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