Paulo Amador

Do retrato de Vargas à Carta de Brasília:

50 anos de Fenaseg

Grupiara Comunicação

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Apresentação

Dentre as comemorações previstas para marcar o Cinqüentenário da Fenaseg, a edição deste livro - “Do retrato de Vargas à Carta de Brasília” - reveste-se de significado especial. Além de historiar a evolução da entidade, que temos tido a honra de Presidir desde 1992, enseja uma reflexão muito positiva sobre a laboriosa dedicação de dirigentes, conselheiros, técnicos e servidores da Fenaseg, e seu empenho no esforço corporativo no sentido do aprimoramento regulamentar e institucional do mercado de seguros, capita- lização e previdência privada.

Para escrevê-lo, convocamos o jornalista Paulo Amador, credenciado para a tarefa por um currículo que inclui mais de uma dezena de obras pu- blicadas e vários prêmios literários, mas particularmente, pela demonstração de um indisfarçável entusiasmo por tudo quanto diga respeito à cultura da atividade seguradora em nosso País.

Nesta oportunidade, em que se presta uma homenagem tão justa ao passado da Fenaseg, e quando nos voltamos tão esperançosamente para o futuro de nossa atividade, eu me permitiria lembrar um nome. Conforme declarado pelo próprio autor deste livro, a nitidez do registro da história de nossa Federação, coligida em milhares de páginas e documentos consulta- dos, deve muito a pessoas tão excepcionalmente dedicadas como foi Luiz Mendonça.

João Elisio Ferraz de Campos Presidente da Fenaseg

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Antelóquio e Agradecimento

Para realizar este livro, premido pelo tempo (três meses desde o iní- cio da pesquisa até sua entrega à gráfica) e pela perspectiva do desafio de não cansar a paciência do leitor, fui obrigado a fazer algumas escolhas. Em primeiro lugar, a estruturação do texto, a que dei o tônus próprio de uma narrativa, evitando a sensaboria da dissertação puramente histórica, o amon- toado cronologicamente disposto de números, nomes e fatos administrati- vos. Para costurá-lo, usei as linhas da história contemporânea do Brasil, e procurei acrescentar à insuficiência da frase o colorido emocionado, a viva- cidade da movimentação de nosso povo e de nossa cultura. Nessa condição, o texto pediu uma segunda escolha. Pediu o ponto- de-vista que mais me aproximasse dos protagonistas da história, os Presi- dentes da Fenaseg, a cujo campo de conhecimento, ação e palavra, procurei me ater com o máximo de fidelidade que me foi possível. Adotada essa perspectiva, entende-se que este livro deverá ser lido como história de uma instituição, a Fenaseg, e sua atuação no contexto mais amplo da história geral do seguro no Brasil nos últimos 50 anos. As estatísticas são citadas textualmente, tais como se encontram nas fontes históricas pesquisadas, sem a preocupação de ajustamento a moeda ou novos modos de apresentação de matrizes de dados. As citações, coloca- das entre aspas, também reproduzem, literalmente, as passagens dos discur- sos, entrevistas e relatórios pesquisados, o que pode resultar em algumas especificidades de ortografia, pela qual tentei manter e reproduzir com fide- dignidade o pensamento e modo em que seus autores se expressavam.

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Devo consignar que a realização deste livro em tempo tão curto só se tornou possível graças à boa vontade de algumas pessoas, a quem sou pro- fundamente grato. Em primeiro lugar, Suzana Munhoz da Rocha, autora e estimuladora da idéia do livro, que o acompanhou com sugestões em todas as fases de sua elaboração. Devo também muito a Nilton Ribeiro e José Ar- naldo Rossi, pela atenção de sua leitura e pela qualidade de suas observa- ções. Ronaldo Mendonça Vilela, do Sindicato das Seguradoras do ; Austérnio Bolorini, da Fenaseg; e Veigan Marsal Sant’Ana, da I- mobiliária Seguradoras Reunidas, que me subsidiaram com o devotamento de seu trabalho, na coleta de documentos e material de ilustração. Finalmente, um agradecimento especial às funcionárias da Biblioteca da Fenaseg, Juscenira de Freitas Leite Oliveira, coordenadora, e Rosana Regina Figueiredo de Sousa; e Lilia Maria de Oliveira Gouvêa, Gerente de Documentação e Informação do IRB - Brasil Resseguros, que muito me auxiliaram na localização e reprodução de documentos de época. Não se faz livro algum de história se não se pode contar com a paciente colaboração das bibliotecárias.

Rio de Janeiro, março-maio de 2001

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Capítulo um

Um retrato na parede e vários sindicatos: a fundação.

Naquela tarde - quarta feira, 25 de junho de 1951 - delegados de sin- dicatos de empresas de seguros e de capitalização achavam-se reunidos em assembléia, no décimo terceiro andar do Edifício das Seguradoras, situado na esquina da Rua Senador Dantas com Evaristo da Veiga, no Centro do Rio de Janeiro, Capital Federal da República dos Estados Unidos do Brasil. Pode-se imaginar o instante e a cena. São quinze horas e trinta minutos. A tarde, que entra em sua segunda metade, deve ter sido uma dessas tardes luminosas e de temperatura amena, tão características do inverno ca- rioca, nessa hora em que atmosfera começa a se impregnar do cheiro salitro- so da maresia, carregada no vento que sopra do oceano, da Ponta do Cala- bouço e Avenida Beira-Mar. O sol, um tímido sol de junho, mais luz que calor, suspenso em cima dos morros de Santa Teresa e sem qualquer obstá- culo em sua trajetória, devia bater de chapa na face ocidental do prédio. E- xatamente onde se localiza o salão em que se reúnem aqueles dez homens, trajados com ternos provavelmente escuros, de casimira inglesa, tal como pedia a relevância da ocasião e a estação mais fria do ano. Chico Alves, o Rei da Voz, numa surdina muito distante, canta no rádio a marchinha que saudava o retorno de Getúlio Vargas ao Governo, “Bota o retrato do Velho”, de autoria de Marino Pionto e Haroldo Lobo, o grande sucesso do carnaval daquele ano. Mas a música que vem da rua qua- se não é ouvida quarenta metros acima do nível do asfalto. Ali dentro, no salão emprestado pelo Sindicato, a voz que se ouve é a de Odilon de Beau-

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clair, um dos delegados do Rio. Ele pede a palavra para sugerir que se esco- lha um presidente para os trabalhos da assembléia e tem como resposta sua própria aclamação para o cargo, proposta pelos delegados paulistas. Cinco sindicatos estão presentes através de seus delegados. De Mi- nas vieram Carlos Coimbra da Luz e Lafayette de Miranda Valverde. São Paulo é representado por Issa Abrão e Otávio Pedreschi, em substituição a Antônio Alves Braga e Ricardo Xavier da Silveira, que não compareceram por impossibilidade ou renúncia. Pelo Rio Grande do Sul estão presentes Sebastian Lafuente e Arthur Autran Franco de Sá, no lugar de Raul Mário Toschi, que renunciou ao mandato. Arnaldo Gross e Franco Cecchini Bruni representam a Bahia. E o Rio de Janeiro tem como outro representante, além de Odilon de Beauclair, Durval Lopes Reis. Depois de duas assembléias preparatórias, ia ter início a sessão histó- rica em que seria aprovado o estatuto de uma entidade sindical de nível su- perior, a Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados e de Capi- talização, que a partir dali, e até o registro da marca emblemática - Fenaseg - , vinte e três anos depois, atenderia pela sigla de pronúncia quase impossível por escassez de vogais: FNESPC. Instalada pontualmente às quinze horas e trinta, tal como previa o e- dital de convocação publicado no Diário Oficial, essa assembléia daria pros- seguimento a trabalhos iniciados em uma outra, realizada dez dias antes, e interrompida “em razão do adiantado da hora”, conforme meticulosamente anotado na ata de fundação. Na preparação desse dia histórico, algumas providências tinham si- do previamente tomadas pelo Sindicato do Rio, que patrocinava o surgimen- to da nova entidade. No dia 9 de abril, em obediência ao Artigo 16 da Porta- ria 39, de 2 de agosto de 1944, encaminhara oficialmente ao Diretor Geral do Departamento Nacional do Trabalho, Lauro Sodré Viveiros de Castro, o pedido para a constituição da Federação. Despachado favoravelmente por ele, e acompanhado de parecer, constante do Processo MTIC 943-341, rece- beria a aprovação de Danton Coelho, Ministro do Trabalho, Indústria e Co-

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mércio, e sairia estampada na página 62090 do Diário Oficial da União, de segunda-feira, 23 de abril de 1951. Beauclair, então, já aclamado para a presidência dos trabalhos, sabia que pisava em terreno burocraticamente seguro ao pedir a palavra para de- clarar que estavam “definitivamente” aprovados os Estatutos da Federação, discutidos e votados naquela reunião interrompida no dia 15. Parecia ter pressa em dar início aos trabalhos. - Portanto, cabe-me a honra de declarar, como efetivamente declaro, definitivamente constituída e fundada a Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados e de Capitalização - ele afirma, com uma ênfase formal e entusiasmada. E prosseguindo, diz que a Federação que acabava de ser fundada “era uma antiga aspiração de todos aqueles que participam das ca- tegorias econômicas do seguro privado e da capitalização”. Em seguida, em cumprimento ao artigo 55 das disposições transitó- rias do estatuto aprovado segundos antes, conclama os companheiros a pro- cederem logo às eleições do Conselho de Representantes, Conselho Fiscal e Diretoria. Aos eleitos, caberia o encargo de administrar provisoriamente a entidade e acompanhar, por mais de dois anos seguintes, a lenta e paciente tramitação burocrática do processo de reconhecimento da entidade no Mi- nistério da Indústria e Comércio. Por escrutínio secreto, em “cabine indevassável existente no recin- to”, uma urna fechada e lacrada na presença de todos recebeu os votos, um por delegação. Os escrutinadores, Lafayette de Miranda Valverde e Sebasti- an Lafuente, declararam que haviam sido colocadas cinco cédulas na urna. E o resultado da eleição foi imediatamente declarado. Os dez homens ali presentes pareciam dispostos a não perder tempo. Queriam arregaçar as mangas, para realizar o mais rapidamente possível o sonho de uma categoria de empresas e profissionais, que andava às voltas com um osso antigo, que lhes fora atravessado na garganta desde a década de 30, no primeiro Governo de Vargas: a ameaça e o risco da estatização da atividade seguradora. Ou melhor, “estadização”, como insistentemente re-

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petia na “Revista de Seguros” um jovem cronista de 26 anos, Luiz Furtado de Mendonça, em artigos cuja consistência técnica e repertório enciclopédi- co sobre a atividade seguradora eram surpreendentes para sua pouca idade. Além de antigo, esse osso na garganta dos seguradores tinha voltado a incomodar. Vargas retornara ao Governo, depois de derrotar Eduardo Gomes nas eleições de outubro de 1950. Ex-ditador, acusado por muitos de praticar um populismo de vezo fascista, obtivera 3.849.040 votos, 49% do total de sufrágios válidos, deixando o austero brigadeiro, que se apresentara ao elei- tor envolvido por uma justa aura de santidade, com 2.343.384 votos, que representavam 30% do total, acompanhado não muito de longe por Cristiano Machado, que obtivera 1.697.193 votos (22%). Empossado em janeiro, Vargas tinha sido o tema predileto nos bailes de carnaval daquele ano. Mas os representantes dos seguradores reunidos naquele momento, ainda que simpatizassem com algumas das idéias e reali- zações do Presidente, que em seu currículo de democrata apresentava o pas- sado de uma ditadura populista, não se sentiam muito dispostos a fazer coro e acompanhar a marchinha tão badalada pelo Rei da Voz. Para muitos deles, que haviam respirado mais aliviadamente os ares de prosperidade e de tran- qüilidade do pós-guerra, no Governo do Marechal Dutra, a voz de Chico Alves, que entrava pelas janelas abertas, quase nem era percebida. Achariam muito mais confortável que não se tivesse recolocado no lugar “o retrato do Velho”. Não se pode descartar que o retorno de Vargas tenha muito a ver com a urgência e objetividade do discurso de Beauclair na condução dos trabalhos dos fundadores. Era preciso imediatamente dar voz à atividade seguradora, e defendê-la da emocionalidade às vezes contraditória dos con- dutores de povo que, providencialmente ou não, sempre aparecem na histó- ria dos países em fase de formação. Segundo a “Revista de Seguros”, em uma de suas edições de 1951, havia outra razão para a urgência dos fundadores. O verdadeiro estímulo ao

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surgimento da Federação viera, não do retrato na parede, mas dos trabalhos da Comissão Nacional para o Fomento e Desenvolvimento do Seguro Pri- vado, constituída por indicação dos sindicatos, em razão da Resolução III da Terceira Conferência Hemisférica de Seguros, realizada no Chile, em outu- bro de 1950. Na verdade, a criação de uma entidade que combatesse o bom com- bate corporativo contra o excesso de intervencionismo do governo já existia desde fins do século XIX, quando Vargas era ainda apenas um aplicado es- tudante gaúcho em Ouro Preto. Em 1895, revoltados contra o que consideravam uma ação desneces- sariamente intervencionista do governo em suas atividades, algumas segura- doras andaram procurando se ajustar numa ação conjunta. E em 1920, ao chegar ao Brasil a notícia de que em Portugal havia sido criado um “Centro de Seguradores” para a defesa dos interesses das companhias, em especial nas situações que envolviam a cobrança abusiva de tributos, decidiu-se criar, também aqui, uma entidade com características próximas daquilo que seria uma Federação. A partir de outubro desse ano, a “Revista de Seguros”, repercutindo a importância da criação do Centro português, passaria a ser usada como instrumento de uma facção da comunidade seguradora, e dá início a uma campanha verbal, em artigos assinados sob o pseudônimo de Mercúrio, pe- dindo uma união mais formal das companhias. União, se possível, em torno de duas bandeiras, que passariam a tremular por algumas décadas no céu de anil da pouca pressa com que se processavam as grandes transformações no País: a uniformização das taxas e uma certa regulamentação para a profissão de corretores. Caberia a Mercúrio, o semi-deus das boas notícias, anunciar em de- zembro daquele ano que algumas companhias tinham resolvido passar do discurso à ação, e pretendiam criar uma Liga, cujo principal mentor seria Roberto Cardoso, diretor da Companhia Lloyd Sul Americano.

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Mas, como a articulação não apresenta qualquer resultado prático de imediato, Mercúrio decide tomar para si a tarefa messiânica da união das companhias. Em abril de 1921 defende a elevação das taxas de seguros e a regulamentação da profissão de corretor. Em junho insurge-se contra notí- cias publicadas na imprensa, que considerava prejudiciais à indústria de seguros. Em agosto, em editorial assinado pela direção da “Revista de Segu- ros”, apresenta um programa de ação para a pretendida Liga que incluía, entre outras propostas, a uniformização das apólices, a organização de um corpo de peritos contra incêndios e a criação de um fundo para a divulgação e defesa dos interesses das seguradoras. Finalmente, em outubro a revista publica documento dirigido a todos os diretores e agentes gerais das seguradoras, nacionais e estrangeiras. In- forma também sobre os trabalhos de uma comissão eleita no ano anterior para estudar a organização da entidade tão sonhada, e que um mês depois apresentaria as 17 disposições dos “Estatutos da Liga das Companhias de Seguros Terrestres e Marítimos”. Ainda nessa edição de outubro de 1921, a revista comunicava que ti- nha sido fundada uma Associação das Companhias de Seguros - nome que acabaria por ser o da Liga pretendida - ressalvando que podiam fazer parte dela todas as companhias de seguros que não pertenciam a uma organização inglesa congênere já existente e com representação no Brasil. Referia-se à Fire Offices Commiteee (FOC), órgão criado em Londres para acompanhar e unificar a ação de todas as seguradoras inglesas que operavam em várias partes do mundo. No ano seguinte, quando o Brasil comemorava o primeiro centenário de sua Independência, a Associação das Companhias de Seguros parecia disposta a mostrar serviço. Enviou representantes ao Congresso Nacional, onde montaram uma trincheira de argumentos jurídicos e econômicos, para combater e derrubar a proposta de cobrança de um novo “imposto do selo” proporcional ao valor dos contratos. Em outra frente de combate, arrostava uma onda de incêndios que assolava cidades brasileiras, enviando represen-

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tações e ofícios aos prefeitos, chefes de polícia e corpo de bombeiros, aos quais pedia a uniformização das tarifas de incêndios e a organização de um serviço de informações relativas a incendiários. E, em dezembro, decide filiar-se à Associação Comercial, ao mesmo tempo em que adota a “Revista de Seguros” como seu órgão oficial. Em pouco mais de um ano de vida, a Associação tinha dado mostras de seu potencial de luta. Contava com 41 companhias afiliadas em todo o Brasil, entre as quais figuravam cinco empresas alemãs, três portuguesas e uma argentina. Mas, enquanto sua ação mais ostensivamente visível concen- trava-se nos limites da Capital Federal, por todo o País consolidavam-se os centros de intensa atividade seguradora. Assim, em janeiro de 1923, decidi- da a expandir sua influência e a marca de sua presença federativa, parte para a criação de sub-comitês regionais. Para tanto, aprova o texto de uma carta- modelo, dirigida a todas as seguradoras, na qual era evidenciada a preocu- pação de se distinguir da inglesa FOC. Essa carta-convocação, assinada por representantes de dezessete se- guradoras, teve como resultados concretos as primeiras adesões. Em maio, por telegrama, todas as seguradoras do Estado do Rio Grande do Sul comu- nicavam sua adesão e a eleição do Comitê Misto Rio-grandense. Em julho surge o comitê de São Paulo. Em 1925, o comitê Paraná-Santa Catarina. E em 1928, o Comitê Misto Paranaense. A mobilização política e reivindicatória da categoria dos seguradores pedia mais. Pedia uma organização que tivesse a cara da época que se se- guiu à Revolução de 30, quando sopram da Itália fascista e das velhas de- mocracias européias os ventos de uma nova realidade nas relações do traba- lho: o sindicalismo. O Estado, para escapar à morte por afogamento nas on- das revoltas da maré socialista, ensaia um novo modo de se relacionar com as grandes corporações de trabalho, tirando-as da marginalidade e das som- bras ameaçadoras da repressão, trazendo-as para a luz da organização sindi- cal tutelada.

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Nesse contexto, que estimulava tanto a formação de sindicatos de trabalhadores quanto das próprias empresas, que também precisavam de mobilização política e reivindicatória, no dia 16 de maio de 1933 a Associa- ção constitui o Sindicato dos Seguradores do Rio de Janeiro, aprova seu estatuto e elege sua primeira diretoria. Estava institucionalmente oficializada a representação de classe, lo- go reconhecida pelo Governo, e que receberia a adesão das seguradoras bra- sileiras e de algumas estrangeiras. Mesmo aquelas que ainda se filiavam ao Fire Office, que havia mudado de nome para Federação de Seguradores Ter- restres, e aos poucos ia perdendo importância. O Sindicato, buscando imediata legitimidade para a atuação corpora- tiva dos seguradores, um mês após sua fundação já integrava a comitiva que iria a Getúlio Vargas, juntamente com o representante da Associação Co- mercial de Porto Alegre, para reclamar contra a obrigatoriedade de registro das apólices marítimas de seguros. Começava aí uma história de veneração e desconfiança, promessas e ameaças, conquistas e perdas, que se arrastaria por longos anos. Um dos componentes emocionais dessa relação contraditória era a situação das seguradoras estrangeiras, cuja presença e poder no Brasil vi- nham sendo colocados sob a berlinda exaltada dos ardores patrióticos do Governo de Vargas. Começava-se a acreditar que, numa conjuntura mani- festamente protecionista, seria possível às seguradoras brasileiras ocupar o espaço que o nacionalismo poderia tomar às companhias estrangeiras. Havia um dado de conjuntura econômica mundial apontando nesse sentido, desde o crack da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, quando as segu- radoras estrangeiras achavam-se descapitalizadas em seus países de origem. Enfraquecidas, portanto, e mais facilmente enfrentáveis num mercado que gradativamente abandonava a perspectiva liberal clássica, em favor de uma crescente interferência do Estado na condução da política econômica. Essa proposta intervencionista de Vargas não era fato isolado nas políticas nacionais do continente. Quadro semelhante ocorria no Chile, E-

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quador, Peru e Argentina. Mesmo na Europa, o mundo parecia muito distan- te do laissez faire da economia clássica liberal. Das cinzas mal apagadas da Alemanha, derrotada em 1919 e ainda não reconstruída em 1930, um certo cabo austríaco procurava soprar o fogo que incendiaria o Terceiro Reich numa fogueira centralizadora e totalitária. E ainda havia a Itália, às voltas com um sentimento passadista de poder, que julgava poder recuperar sua verdadeira unidade em torno de um feixe de varas (fasces) que dois mil anos antes havia sido o símbolo do Estado no antigo Império Romano. A França, que baixaria uma lei no dia 14 de julho de 1938, centralizando o controle do mercado em mãos do Governo. Ou a Irlanda, que em 1942 criaria a corpora- ção pública Irish Shipping Ltd. Em meio à crise da liberal democracia, o mundo pareceu avançar no sentido de uma modernização conservadora. No Brasil, o intervencionismo confunde-se nesse momento, no mer- cado de seguros, com a regulamentação que deveria estabelecer condições para a superação do regime de exceção, no qual operavam muitas das segu- radoras estrangeiras. Até então, permitia-se a elas uma certa elasticidade na remessa de lucros para o exterior, sem que se estabelecessem limites claros para a retenção de riscos por parte dessas companhias. Como conseqüência, até 95% da poupança das seguradoras estrangeiras eram colocados no exte- rior, criando visíveis problemas para o equilíbrio dos negócios no mercado interno. Vargas sinaliza com uma política de fortalecimento do mercado de seguros. A bandeira da nacionalização é hasteada logo após o trabalho da Constituinte de 37, quando o Ministro da Justiça Agamenon Magalhães as- sume o compromisso de elaborar anteprojeto de lei que regulamentaria o processo de nacionalização do mercado segurador, e nasce o IRB - Instituto de Resseguros do Brasil, pela edição do Decreto-lei nº 1186, de 3 de abril de 1939. Monopolista, o IRB assume a contratação dos resseguros de todas as empresas seguradoras atuantes no Brasil, e utiliza esse instrumento - e o

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poder econômico decorrente - para fortalecer as empresas nacionais, e redu- zir, pelo aproveitamento de sua capacidade, a necessidade de comprar ga- rantias no mercado internacional de seguros. Com algum atraso, o mercado começa a perceber, timidamente, um ensaio de transformação institucional quase invisível, em conseqüência des- sa proposta de Vargas. O número de seguradoras nacionais, que em 1939 eram 70 contra 33 estrangeiras, mantém-se praticamente estável, sendo alte- rado apenas em 1942, quando de um total de 106 seguradoras operando no País, 81 já são nacionais, e cai para 25 o número de estrangeiras. Do ponto de vista econômico, é inquestionável que alguma coisa a- contecia e podia ser notada pela atenção dos analistas. Enquanto os ativos totais declarados pelas seguradoras brasileiras passavam de CR$ 333,526 milhões em 1939 para CR$ 547,956 milhões em 1942, essa mesma rubrica, nas contas das companhias estrangeiras, apresentava queda de CR$ 183,879 milhões para CR$ 168,558 milhões no período. As reservas técnicas apre- sentavam performance parecida, subindo de CR$ 70,103 milhões para CR$ 155,237 milhões nas seguradoras brasileiras nesse período, enquanto que, nas companhias estrangeiras, uma forte retração acontecia, com as reservas caindo de CR$ 64,201 milhões para CR$ 38,991 milhões. Para o mercado, esquecidos os atropelos do intervencionismo, e con- siderado apenas o indicador da produção agregada de companhias nacionais e estrangeiras, não haveria motivo para lamentação. Nessa época, a relação entre o volume dos prêmios auferidos e o montante do PIB subiria, de um patamar de 0,79% em 1938, para 0,82% em 1939, chegando a 1,10% em 1942, subindo mais, para 1,23% em 1943, e oscilando próximo de 1% até o ano de 1951. Vargas, portanto, podia ser engolido como um osso bom, que descia suavemente pela garganta de muitos dos seguradores nacionais, embora ar- ranhasse com assumida aspereza o esôfago de algumas outras companhias. Dividem-se os ânimos, entre rancor e simpatia em relação ao Presi- dente da República e sua política de nacionalização.

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Capítulo dois

O Marechal proíbe o jogo, e Café Filho visita o Clube dos Seguradores.

Mas não há nada como a trágica emoção da guerra, declarada a um país estrangeiro – mesmo a eventuais aliados e parceiros de velhas aventu- ras, como alemães, italianos e japoneses – para que rancores intestinos se- jam imediatamente esquecidos. E foi isto que, provisoriamente, aconteceu a partir de 14 de fevereiro de 1942, quando o torpedeamento do navio Cabe- delo, por submarinos alemães, deu início a uma série de ataques a navios brasileiros, como o Olinda e o Cairu, provocando imediatamente duas con- seqüências. A primeira, no coração do povo, onde a partir de então palpitou um forte sentimento de nacionalidade, que se espraiou do Palácio do Catete até o mais humilde barraco sobre palafita às margens do Amazonas, levando o País ao rompimento de suas tradicionais e excelentes relações com os países do Eixo, e à cassação da licença das seguradoras italianas e alemãs. A se- gunda, de natureza comercial, no porta-fólio das companhias de seguros, o aparecimento da apólice contra riscos de guerra, bastante difundida na Eu- ropa, e mais ainda nos Estados Unidos, onde o montante de suas vendas ascendera a US$ 94 bilhões em 1941. Algumas seguradoras começam a ofe- recer ao mercado brasileiro os riscos marítimos de guerra, que entre 1943 e 1944 auferiram mais de 160 milhões de cruzeiros em prêmios líquidos. Melhor ainda que essa temida economia de guerra, foi a suavidade da paz e a euforia boa que nos foi soprada das cinzas do velho mundo a par- tir do fim das hostilidades em 1945. A onda incontrastável de redemocrati-

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zação que varreu o planeta, refluindo apenas daqueles países onde novos muros de autoritarismo já estavam sendo construídos. O povo brasileiro viveu no pós-guerra alguns dos anos mais felizes da história de nossa República. Em janeiro de 1946 o Marechal Eurico Gaspar Dutra tomou posse como Presidente, eleito pela coligação PSD/PTB. Em fevereiro instalou-se a Assembléia Nacional Constituinte, para a qual foram eleitos 320 parlamen- tares. No carnaval da democracia cantou-se o “Cordão dos Puxa-sacos”, de Roberto Martins e Frazão. O jogo foi proibido e os cassinos fechados em todo o País. No cinema, com roteiro e direção de Gilda de Abreu, foi lança- do o filme “O ébrio”, que fez chorar muita gente com o sentimentalismo humilde e o vozeirão de Vicente Celestino. E , que democrati- camente se elegera Deputado Federal pelo Partido Comunista, incitou a e- moção ideologizada de milhares de leitores, com o lançamento de uma obra máscula e que trazia em suas páginas o perfume áspero da terra nordestina: a “Seara Vermelha”. Na Constituinte, os velhos temas do intervencionismo e nacionaliza- ção estavam de volta aos debates, rebatizados com os novos nomes da mo- dernidade: falava-se agora em soberania nacional. No que dizia respeito à atividade seguradora, o Deputado Adroaldo Mesquita, que viria a ser Minis- tro da Justiça, fazendo coro com a OAB, pleiteava que se fixasse um prazo rígido para a nacionalização das companhias estrangeiras, cujo capital deve- ria ser vendido a acionistas nacionais. Embora muitas vozes se levantassem para a defesa desse projeto, lá mesmo, na Constituinte, não eram poucos os adversários. E combatentes de peso, como Benedito Valadares, ex-Governador de Minas, que se manifes- tava contra o projeto de Adroaldo Mesquita, com um argumento que era, no mínimo, engraçado: a seu ver o projeto, se transformado em lei, impediria o desenvolvimento da indústria nacional de seguros, que “dependia de insu- mos importados”.

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Do lado de fora do velho Palácio Tiradentes, onde se abrigava a Câ- mara dos Deputados, a sociedade brasileira, animada pela abertura da dis- cussão provocada pela Constituinte, se dividia em facções que se manifesta- vam através do rádio, dos jornais, das revistas. Como a “Revista de Segu- ros”, onde o mesmo Beauclair, que futuramente abriria os trabalhos de fun- dação da Federação dos Seguradores, apresentava a questão técnica do cará- ter internacional da atividade, para reivindicar o abandono dos projetos na- cionalizadores. Segundo ele, não seria sensato que o Brasil levantasse bar- reiras protecionistas, numa fase em que o intercâmbio internacional de expe- riências e negócios com o seguro crescia no mundo inteiro. Na mesma “Revista de Seguros”, David Campista Filho apontava os riscos da nacionalização, que segundo ele manteria ilimitados poderes de intervenção em mãos do Estado. “Nacionalizar é restringir “ - escreveria - “quando o seguro exige expansão pois, como atividade que negocia com garantias reparadoras, está presente em todo o ciclo da economia política, na produção, circulação e consumo das riquezas. Nacionalizar é ainda repelir o concurso estrangeiro, hostilizar a cooperação que se reputa imprescindível na convivência dos povos... “ - afirmava. E concluía, com um argumento que certamente não era consensual entre os seguradores nacionais: “Não há como negar que as companhias estrangeiras de seguros, longe de prejudicar, só trouxeram benefícios à indústria seguradora no Brasil.” O País gostava dessa democracia, que possibilitava a discussão aber- ta de temas como esse. E se modernizava, procurando abrir espaço no mapa cultural do mundo à medida em que caminhava para a década de 50. Em fevereiro de 1948 Cesar Lattes isola em laboratório uma nova partícula do átomo, o méson. No mesmo ano Chico Landi vence o circuito de Bari, e o Brasil conquista a medalha de bronze em basquete, nos Jogos Olímpicos de Londres. Em 1949, ano em que Emilinha é derrotada por Marlene no con- curso “Rainha do Rádio”, o Brasil conquista no Rio o campeonato sul- americano de futebol. E em novembro desse mesmo ano, uma convenção

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estadual do PTB da Paraíba lança o nome de Getúlio Vargas para as eleições presidenciais que seriam realizadas em outubro de 1950. Aqui, um intermezzo. Os extremos da felicidade absoluta e a dor universal dos brasileiros nesse inesquecível ano de 1950. Em junho, o coração verde-amarelo tinha batido forte, gritado aos quatro cantos do mundo o orgulho nacional. E nada parecia nos dividir. Nem as velhas disputas entre liberais e intervencionistas, nem os jacobinis- mos que nos faziam ver que há fronteiras no mundo. A pátria de nacionais e estrangeiros tinha calçado chuteiras para a inauguração do Maracanã. E ali dentro, no colossal anfiteatro, a multidão gritava num delírio de sotaques que as ondas do rádio levaram aos mais distantes confins do planeta. Assim como na guerra, na paz emocionada do futebol a única ideo- logia do povo brasileiro naquele momento era a religião do escrete nacional, que ia de Barbosa a Zizinho e Ademir. Uma goleada sobre o México. E mais cinco jogos invictos. Já nos coçava a garganta o grito de campeão, quando Gighia resolve nos estragar a festa. Uruguai 2, Brasil 1. De nada nos valeram algumas importantes conquistas da modernida- de nesse ano. A inauguração da primeira emissora de televisão da América Latina, a TV Tupi, PRF 3, na cidade de São Paulo. A chegada do Pato Do- nald ao Brasil, na revistinha lançada pela Editora Abril. A novela “O Direito de Nascer”, mãe de toda a teledramaturgia brasileira, que em anos mais re- centes se tornaria produto de exportação. A publicação de “Sobrados e Mo- cambos”, de Gilberto Freyre, que nos fazia ver que há vida inteligentíssima neste lado do planeta. E a realização da I Bienal Internacional de Artes Plás- ticas, em São Paulo, onde vinte e um países se apresentaram com quase duas mil obras da arte mais avançada que se produzia nessa metade de século. Nada consolava dessa derrota. Mergulhado na dor que somente a paixão do futebol é capaz de ge- rar, o Brasil não se cansou de indagar onde é que tínhamos errado.

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Em todos os setores da vida nacional eram descobertas cicatrizes an- tigas, ainda não suturadas. A situação de algumas seguradoras estrangeiras, por exemplo, duramente impedidas de funcionar no País em conseqüência da guerra. No dia 12 de julho de 1950 o Diário Oficial da União publicaria o Decreto 28.369, pelo qual era promulgado um acordo Brasil-Itália, que tinha sido assinado no Rio em outubro do ano anterior. Por ele, eram restituídas às companhias italianas de seguros as patentes originais, direitos e obrigações, antigas carteiras de seguros, haveres para abrir reservas matemáticas provi- soriamente geridas pelo Ipase e IRB, e um prédio inteiro na Avenida Rio Branco 128. Mesmo anacronicamente, pelo menos essa ferida estava cicatrizada. Mas outros espinhos fustigavam a carne dos seguradores. Por exem- plo, a inexpressividade de certas carteiras, que não decolavam para patama- res mais honrosos. Como a carteira de Auto, que mereceu matéria da “Con- juntura Econômica” (Ano IV, nº 7) e um comentário altamente provocativo: “É muito pequeno o número de veículos a motor, segurados no Brasil, sendo a percentagem das despesas com esse item a mais baixa no conjunto de to- das as referentes a custeio e serviço de oficinas de toda a frota de automó- veis em tráfego no país: 0,3%.” Em seguida, uma conclusão que mais parece exercício de futurologia: “Dir-se-á – e a observação é verdadeira – que o seguro no Brasil, principalmente o de automóveis, é muito caro. E ficamos, assim, no círculo vicioso de que é caro porque é raro, e é raro porque é ca- ro!” Assim, num País de crista abaixada, quando se falou na convenção da Paraíba que Getúlio podia vir a ser de novo o Presidente da República, muita gente sonhou com um retorno aos já saudosos “bons velhos tempos”. E também muita gente voltou a ter pesadelos, pois já pairavam no ar alguns ectoplasmas de velhos sustos, que a modernidade e o liberalismo do pós- guerra pareciam ter enterrado definitivamente. A discussão em torno da “estadização” do seguro voltava à cena.

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Com a simples possibilidade do retorno de Vargas, e conseqüente- mente sua proposta nacionalista e centralizadora, David Campista Filho, o combativo e bem articulado editorialista da “Revista de Seguros”, já havia levantado a lebre dessa idéia recorrente, que a seu ver devia ser abatida a tiros de outras idéias que a contraditassem. “A estadização do seguro” - es- crevera ele - “é uma idéia indissimulável nas cogitações da política brasilei- ra. De sentido totalitário, surge durante o período de usurpações e alarga- mentos das funções do Estado.” Depois de historiar a gênese da cabeça da hidra nacionalizante, a que não dava nome mas identificava com o IRB, ele prossegue defendendo a privatização do Seguro de Acidente do Trabalho: “A política social, sensibi- lizada ante a sorte do trabalhador, entendeu que a assistência que lhe presta- va a Previdência Social abrangia também o seguro de acidente do trabalho. Cumpria, pois, arrancá-lo das empresas que o exploravam e ainda o explo- ram por autorização do Governo, para incluí-lo como mais uma das modali- dades de assistência entre os benefícios que prodigalizam os institutos de aposentadorias e pensões.” E concluía, nomeando seu mais forte aliado nessa batalha anunciada: “O Sindicato das Empresas de Seguros Privados e de Capitalização é, sem dúvida, o órgão exclusivo capaz de gerar a força de resistência à ava- lancha do seguro público. Continua ainda a captar a áurea que nos vem das Conferências Hemisféricas, que sustentam a prevalência e superioridade do seguro em heróica insistência, como se pressentissem os acontecimentos que se armam no Brasil. Possa esse refúgio das prerrogativas dos segurado- res ameaçados esclarecer, enfim, os legisladores brasileiros para que a pos- teridade não os venha perdoar, sob alegação de não saber o que fizeram e, pela solidariedade e apoio que recebem, conceder aos seguradores no Brasil a esperança, em breve futuro, do direito de sobreviver.” A citação da Conferência Hemisférica vinha a propósito. Reunida em Santiago do Chile, em outubro daquele ano, esse importante fórum in- ternacional em que se debatiam as idéias e propostas para o desenvolvimen-

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to dos seguros nas Américas, tinha tornado pública uma declaração de prin- cípios que se encaixava como luva à mão visível da atividade das compa- nhias brasileiras. “As atividades de seguros” - diz o Artigo Primeiro dessa Declaração de Princípios - “devem continuar sendo exercidas por entidades de caráter privado, desenvolvendo-se sem entraves ou restrições, já que está compro- vado que o que melhor serve para as crescentes necessidades de previsão das populações americanas tem sido, e será, o de livre empresa em seguro.” Ao Estado, cuja soberania deve ser mantida no estrito limite da vontade individual de segurado e segurador quando estabelecem suas rela- ções negociais, a Conferência reconhece a legitimidade de uma função: “fis- calizador das operações de seguros”, que presta serviços úteis, na medida em que sua “ação de fiscalização dá garantias ao público, em relação à efici- ência técnica e solvência financeira das entidades seguradoras, diminui os efeitos da desigualdade econômica entre as partes contratantes e garante o cumprimento fiel das obrigações recíprocas do segurado e segurador.” Mantidas as reservas com que a Conferência Hemisférica aceita essa fiscalização, que “deve ser discreta, exercida por repartições especializadas, servidas por funcionários tecnicamente adestrados, competentes e comple- tamente desligados da política”, passa a definir os campos de atuação do Estado e das seguradoras. Nesse momento, parece agir quase que por encomenda do zeloso David Campista, ao estatuir que o “Seguro Social, operado pelo Estado, e o Seguro Individual, exercido pelas empresas privadas, se complementam e não se contrapõem. Compete ao primeiro segurar contra perdas de rendas individuais o mínimo de subsistência às classes incapazes de comprar, por meios próprios, sua previsão. Além desses limites fica o campo exclusivo do Seguro Privado.” Presente à Conferência, um dos membros da delegação brasileira, Alcindo Brito, vai ainda mais longe nessa delimitação de campos, ao afastar,

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na companhia sempre indesejada do Governo, banqueiros e comerciantes de uma atividade que deve ser exclusividade de seguradores. Em seu discurso, de frases muito longas e fôlego curto, ele diz que é “necessário que os governos deixem de ser comerciantes, banqueiros e in- dustriais, que não entrem no mercado seja fazendo seguros, seja comprando ou vendendo utilidades e concorrendo assim com o comércio e a indústria, que mantêm esses mesmos governos com taxas e impostos cada dia mais elevados.” No embalo da toada orquestrada pela Conferência, o delegado brasi- leiro acrescenta que é necessário que “cessem todas essas formas de diri- gismo e outros métodos de expansão do estatismo, que tão somente oneram os orçamentos, restringem a produção, anulam as iniciativas, reduzem a eficiência e elevam os preços”. E recomenda, com uma ênfase que parece repercutir o entusiasmo e os textos de David Campista: “Em nossa opinião, todas as questões que nos afetam estão na dependência de uma solução pré- via de um problema maior, que é a meta que devemos primeiramente atingir se quisermos solver com brevidade, como é nosso empenho, as nossas tare- fas. Este problema é convencer os Governos de que melhor será, não apenas para a indústria do Seguro, como principalmente para o Estado e para o po- vo, que o Seguro, em todas as suas formas, fique circunscrito à órbita da iniciativa privada”. Essas eram as idéias, o contexto e os temores do mercado em 1950, quando se anunciou na Paraíba que o “retrato do Velho” podia voltar à pa- rede. Ao lado de uma dor não esquecida pelo povo, desde aquela catastró- fica tarde no Maracanã, havia a nostalgia do “Velho”. A nostalgia de uma época, e o risco de uma volta ao passado, que para os adversários da nacio- nalização podia significar uma recaída intervencionista. Por isso, do mesmo modo que o País calçara chuteiras para a inauguração do Maracanã e a Copa do Mundo, os seguradores descobrem que era hora de vestir a camisa corpo-

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rativa. Hora de passar por cima de seus interesses puramente comerciais, para afastar a espada que lhes pendia coletivamente sobre as cabeças. No início, além das idéias que os unia, houve um clube. Uma agre- miação informal, de profissionais que se reuniam em torno de uma certa “Mesa da Amizade”, no Clube dos Seguradores, onde pontificava a simpatia e o bom papo. Aos poucos, e à medida em que arregimentavam novos co- mensais - entre eles chegou a figurar nessa mesa o próprio Café Filho, que viria a ser Presidente da República - ampliaram a temática dos papos, abrin- do espaço para discussões que iam além do futebol e dos folclóricos assun- tos masculinos, sempre que dois ou mais amigos se encontram. Partiram para uma pauta mais séria: os interesses da categoria, o futuro da atividade seguradora, se o país entrasse mesmo na máquina do tempo, para voltar aos tempos do intervencionismo de Vargas. Dessa conversa, que já não era apenas um bate-papo, mas um pro- grama ainda informal de pensamento e ação da categoria, o passo seguinte foi a institucionalização da roda de almoço. Em São Paulo, por iniciativa de Dimas de Camargo Maia, havia aparecido um “Clube da Bolinha”, alusão a sorteios que não eram estranhos a essa confraria, cuja direção assumia a pompa das congregações universtiárias, e cujo líder era aclamado como “Reitor”. Nesse clube, que se reproduziria em congêneres no Rio e depois Minas Gerais, e na “Mesa da Amizade”, começava a se desenhar a idéia de organismo ainda mais formal, espécie de super sindicato, que desse voz e forma às aspirações, anseios e temores das empresas e profissionais da capi- talização e do Seguro. Estava lançada a semente que germinaria naquela célebre reunião do dia 25 de junho de 1951, no momento em que Odilon Beauclair declarasse “definitivamente constituída e fundada a Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados e de Capitalização. E da eleição para a diretoria provi- sória, cujos resultados foram imediatamente comunicados, constavam os nomes de Otávio Tedeschi, Arthur Autran Franco de Sá, Arnaldo Gross, Beauclair e mais um, Carlos Coimbra da Luz, representante de Minas Ge-

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rais, que seria o primeiro Presidente da Federação, e a quem a história reser- varia uma dessas situações surpreendentemente curiosas, que sibila alguma é capaz de prever. Por três dias, entre 9 e 11 de novembro de 1955, Carlos Luz viria a ocupar a Presidência da República, como um dos sucessores constitucionais do mesmo Vargas, cujo retrato na parede tanto assustava na canção do Rei da Voz. Mas, antes que os fados teçam essa trama com fios tão inéditos, é preciso dar à Federação uma sede. O lugar de onde, nos cinqüenta anos a seguir, ela comandará a representação e a defesa da categoria e da atividade seguradora no Brasil. Entremos na sede da entidade. Quem nos acompanha e faz as honras da casa é o Presidente provisó- rio da FNESPC, que acaba de ser eleito.

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Capítulo três

Das venezianas coloniais ao brise-soleil: a modernidade da sede.

A diretoria provisória da Federação tinha experiência suficiente para enfrentar os dois desafios iniciais de sua administração: a lentidão com que a burocracia examinava o processo de reconhecimento e a ocupação do pré- dio da sede, no Edifício das Seguradoras. Para enfrentar a máquina do Estado, em cujo ventre a burocracia ruminava com preguiçoso desinteresse o processo de reconhecimento, Luz e seus diretores tiveram que desenvolver, num grau acentuado de perfeição, a virtude evangélica da paciência. Logo de saída, uma primeira armadilha e uma exigência lhes foram interpostas: as leis de organização sindical no Brasil falavam da necessidade de seis sindicatos para que se pudesse consti- tuir uma Federação, e apenas cinco tinham participado dos atos de fundação. Foi preciso que se fundasse o Sindicato de Pernambuco, a partir daí o sexto signatário do pedido, para que o Processo nº 144926/51, rebatizado como 1-1/53, 2, fosse devidamente anotado por Carlos Frederico Pìnto da Silva, datilógrafo da classe “d”, e selado com 500 réis. No dia 31 de novem- bro de 1953, os fundadores receberam a tão esperada autorização. Com as bênçãos do Estado e a assinatura e carimbo de João Goulart, Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, a Federação pôde funcionar. Na verdade, já vinha funcionando provisoriamente, no Edifício das Seguradoras, considerado nessa época um dos prédios mais bonitos do Rio, e cuja construção tinha uma história um tanto emblemática. Alguns anos antes, durante a guerra, e depois do afundamento de vá- rios navios mercantes brasileiros por submarinos do Eixo, tinha-se discutido

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a quem caberia aceitar os riscos de apólices de guerra, cuja sinistralidade era mais que previsível. Muita gente achava que cabia ao Estado, pois havia sido ele que, soberanamente, assinara a declaração de guerra. A outros, pa- recia mais acertada a aceitação privada e distribuída dos riscos, sob quais- quer circunstâncias, por entenderem que a soberania que servira para a de- claração da guerra tanto como a defesa do País eram exercidas em nome de todos. Ao IRB, que tinha cara de Estado e corpo de empresa, coube desem- patar a discussão e orientar que se constituísse um “pool” de guerra, no qual todas as companhias, nacionais ou estrangeiras, deveriam assumir tais ris- cos, proporcionalmente a seu capital e reservas. A partir desse momento, muito segurador deve ter rezado no altar do patriotismo estimulado pelo IRB, pois a guerra, vista pelo olhar da pura a- preensão comercial, tomou rumos ao largo do Atlântico e na costa brasileira que os mais otimistas não poderiam sonhar. O seguro de guerra tornou-se um bom negócio, e a paz trouxe consigo um excelente balanço de lucros. Entre 1943 e 1944 os riscos marítimos de guerra tinham propiciado uma receita superior a 160 milhões de cruzeiros em prêmios líquidos, e os resul- tados financeiros do pool tinham sido mais que compensadores. Havia dinheiro sobrando. E foi então que Álvaro da Silva Lima Pe- reira, ex-Procurador da República, Diretor-Presidente da Sul América Ter- restres, Marítimos e Acidentes, que exercia o cargo de Conselheiro Técnico do IRB, sugeriu que se reservasse uma parte dos resultados de cada compa- nhia para a construção de um prédio, que celebraria a atitude solidária dos seguradores diante da ameaça que lhes fora comum. Inaugurado no dia 25 de setembro de 1950, o Edifício das Segurado- ras era propriedade da Imobiliária Seguradoras Reunidas, que tinha como acionistas companhias de seguros brasileiras e estrangeiras e o IRB. Fora construído pela Ecisa Engenharia Comércio e Indústria, entre os anos de 1946 e 1949, e obedecia a uma tendência da arquitetura de inspiração mo- dernista, que vinha transformando o centro do Rio de Janeiro.

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Nessa época, a Capital Federal do Brasil vinha perdendo sua cara eu- ropéia, ao substituir o requinte caprichoso dos palacetes de frontões e plati- bandas da Avenida Central, profusamente adornados pelos artesãos portu- gueses dos últimos anos do Império e do início da República, por um modo novo de construir que vinha despertando o entusiasmo de jovens arquitetos e a desconfiança da população. Falava-se e cometia-se a modernização ar- quitetônica da cidade desde a década de 30, quando o Prefeito Antônio Pra- do Jr. contratou um urbanista francês, Alfred Agache, para a criação de um plano (1927/1930) que rearticulasse e revitalizasse o Centro. A população do Rio, que acompanhara com interesse e desconfiança as grandes transformações da cidade, no início do século, durante a adminis- tração de Pereira Passos, esperava pelo milagre da metropolização. Que a qualquer momento, por iniciativa de algum alcaide tocador de obras, essa área central mudasse de cara, substituindo as construções baixas, elegante- mente alinhadas às margens da Avenida Central, por edifícios de muitos andares como os que já se viam em Nova Iorque ou Chicago. Mas, essa esperada entrada no Século XX das vias tentaculares teria que esperar algum tempo. Copacabana dos morros verdes e das areias bran- cas já se insinuava aos grandes investidores imobiliários como um novo fenômeno, e atraía para a Zona Sul muitas das atividades até então localiza- das no Centro. Seu charme de “Princesinha do Mar”, e sobretudo o cresci- mento populacional, arrastavam para a orla marítima grande parte dos servi- ços, comércio de luxo e lazer, afetando o dinamismo das áreas centrais da cidade. O Plano Agache considerava todos esses fatos. Falava em revitaliza- ção do Centro e recomendava que se construísse ali uma “grande avenida de continuação do Canal do Mangue”, que exigiria a demolição de todos os prédios situados entre as antigas ruas General Câmara e São Pedro, desem- baraçando a visão da igreja da Candelária. Revogado em 1934 sob argumen- to de que levaria 50 anos para ser implantado, esse plano seria retomado em

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1938, pelo Estado Novo, através da Comissão do Plano da Cidade, restabe- lecida na administração do Prefeito Henrique Dodsworth (1937-1945). Assim, com ligeiras modificações, pedidas pelo estilo monumental do Estado Novo, as recomendações mais espetaculares de Agache foram cumpridas, o que resultou no desmonte do Morro do Castelo, Morro de San- to Antônio, Ponta do Calabouço e praias do Flamengo e Botafogo, onde seriam abertas avenidas. Em 1942 foi iniciada a construção da Getúlio Vargas. Margeada por prédios de vinte e dois andares, sobre pilotis que for- mariam galerias abertas para o trânsito da população, essa grande avenida atendia a um propósito de campanha dos revolucionários de 30, que preten- diam fazer desaparecer tudo que lembrasse a República Velha. Ironicamen- te, entretanto, sua construção acabaria por realizar exatamente uma antiga aspiração das elites da República deposta: expulsar a população pobre do centro do Rio. Entre 1942 e 1944 o povo assistiu, sem qualquer argumento ou força para reagir, à demolição de 525 prédios e à desapropriação de áreas ocupa- das na Praça 11, cujos restos nostálgicos seriam eternizados nos lamentos e na evocação dos sambistas. Mas não se pense que na modernização do Centro do Rio houve a- penas choro e vela. A jovem arquitetura brasileira vivia naquela época o momento mais feliz e mais criativo de sua história. Alguns gênios andavam trabalhando em horário integral, para mostrar ao mundo que não éramos simplistamente uma cultura periférica, de imitação das vanguardas e dos artistas europeus. Niemeyer, Lúcio Costa, Burle Marx, Portinari, Paulo Werneck ou os irmãos MMM. Toda uma geração de arquitetos, urbanistas e artistas plásticos vinha “apontando rumos alternativos à burocracia estética que rondava o moder- nismo internacional”, conforme diz muito eruditamente Lauro Cavalcanti ao prefaciar a edição brasileira do “Arquitetura Moderna no Brasil”, de Henri- que E. Mindlin.

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Aos trancos e contradições, o Brasil ensaiava sua modernidade. Pro- curava retratar o ímpeto dos futurismos, refletidos na industrialização de um país que sonhava com a metropolização, mas que ainda vivia e dependia do campo, da vida rural, dos pequenos burgos podres perdidos na imensidão do território. O Estado Novo, espelhando esse traço meio barroco de nossa forma- ção nacional, feito de aproximação de contrários, de claro e escuro, de razão e sentimento, falava em democracia e flertava abertamente com o nazi- fascismo. Abrigava seus principais ministérios, Fazenda e Trabalho, em palácios cuja monumentalidade mais parecia obra do passadista Reich ale- mão. Ao mesmo tempo, não resistia aos apelos de uma arquitetura de van- guarda, preocupada com a felicidade do povo, e construía o Palácio da Cul- tura, primeiro arranha-céu modernista do mundo. O país vivia a agitação do talento. Procurava construir uma literatu- ra, uma pintura e música fortemente tocadas pelas cores, pelos sons e pela alma tupiniquim. E enquanto Lúcio Costa reinventa as velhas formas da arquitetura colonial, ninguém menos que Frank Lloyd Wright, o arquiteto americano, lidera uma passeata de estudantes na Avenida Rio Branco, em protesto contra a presença, na Escola de Belas Artes, de outro ícone da mo- dernidade, Gregori Warchavchik. O país que aos poucos vai mergulhar numa ditadura civil discute a estética dos espaços livres, das fachadas independentes, da curva, das assi- metrias, da utilização de elementos arquitetônicos inspirados pelos excessos de luz e calor dos trópicos. Nesse contexto, em 1946, quando se falava tanto em futuro e moder- nidade, os triplamente talentosos MMM foram chamados para projetar um prédio. O Edifício das Seguradoras. Construção que, numa definição muito pragmática dos dirigentes do Sindicato dos Seguradores do Rio de Janeiro, donos do empreendimento, deveria consistir em prédio para renda, sede para seu funcionamento, e clube social, por onde deveriam circular os nomes mais destacados nas altas finanças da época.

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Para João Carlos Vital, ex-Presidente do IRB, a cujo escritório de engenharia seria contratada a administração da obra, além de paredes e pilo- tis, esse prédio devia abrigar uma idéia. Representar “um marco na vida das seguradoras, ao iniciar-se a segunda metade do Século XX” e, para tanto, incorporar as conquistas da “moderna arquitetura brasileira, considerada mundialmente”. Com as reservas do seguro de guerra no banco e esse conceito na ca- beça dos seguradores, foram chamados os irmãos MMM Roberto - Marcelo (1908-1964), Milton (1914-1953) e Maurício (1921). Pontas-de-lança da arquitetura modernista, eles se credenciavam com um currículo imbatível. Tinham projetado o Edifício Herbert Moses, sede da ABI (1936-1938), pri- meira realização de grandes proporções da arquitetura moderna no Brasil (o Palácio da Cultura, projetado por Lúcio Costa e Le Corbusier, seria constru- ído entre 1937-1943). Também era deles o projeto do Aeroporto Santos Dumont, construído na Ponta do Calabouço (1937), e que foi considerado na época o mais belo aeroporto do mundo. O prédio do IRB (1942-1944), na Avenida Marechal Câmara. Construído em pleno centro comercial, numa esquina formada em ângulo desfavorável, onde o elevado preço dos terrenos exigia o melhor aproveitamento possível, e submetido a limitações de altura pelo Plano de Remembramento do Centro do Rio, o Edifício das Seguradoras desafiou a experiência dos MMM. Havia um excesso de sol, na fachada ao longo da Senador Dantas, e havia a natureza, os morros de Santa Teresa a ocidente e uma nesga de mar no fim da rua. E havia mais a Cinelândia, cuja vista não podia ser sacrificada. O terreno, arenoso e sob lençol de águas superficiais, foi enfrentado pelo Professor Odair Grilo, uma das maiores autoridades brasileiras em me- cânica de solos, que executou na obra as mais profundas fundações até então vistas no Rio. A estrutura foi projetada pelo Engenheiro Feliciano Chaves, especialista em cálculo de concreto armado, que morreria na fase final da

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construção, vítima de acidente de automóvel. E os projetos de instalações elétricas e hidráulicas foram confiados a Júlio de Barros Barreto. O sol da tarde na Senador Dantas foi enfrentado com a utilização, pela primeira vez no Brasil, das placas móveis dos brise-soleis. Destinados a resolver problemas de insolação, esses elementos ar- quitetônicos, geralmente armados no formato de lâminas ou colméias, repre- sentam uma evolução das venezianas, rótulas, treliças e muxarabis da arqui- tetura colonial brasileira. No Edifício das Seguradoras, onde foram constru- ídos em madeira e ajustados sobre ferragens móveis para acompanhar o des- locamento do sol e das sombras nas várias horas do dia, eles não só resolve- ram o problema da luz e radiação infra-vermelha, como acabaram por se constituir numa solução que, daí por diante, seria aplicada a inúmeras outras obras modernistas. Na fachada da Rua Evaristo da Veiga, onde o sol é mais raro e oblí- quo, foram utilizados amplos panos de vidro, que garantem vista desimpe- dida e boa ventilação. No ângulo formado pelos alinhamentos das ruas os arquitetos introduziram o “pano cego”, desenvolvidos em delicadas curvas de concordância, revestidas com mosaicos de Paulo Werneck. A idéia de enfrentar os rigores de um clima excessivamente quente e úmido, os ventos fortes e as chuvas que no Rio chegam a médias de 1200 milímetros por ano, havia inspirado Le Corbusier a buscar na tradição colo- nial a utilização dos azulejos para a proteção externa de paredes. Com o modernismo, além dessa função puramente utilitária, passaram a servir para realçar a beleza estrutural de superfícies, onde eram aplicadas composições figurativas, abstratas, com painéis de mosaico de vidro ou porcelana. Paulo Werneck, mais um talento de pioneiro presente à construção do Edifício das Seguradoras, foi o primeiro artista que, nessa passagem da arquitetura para a pintura, utilizou mosaicos de porcelana. Autor do mosaico de pastilhas cerâmicas que recobrem o exterior da nave da Igreja de São Francisco na Pampulha (1943), e dos murais nos jardins do prédio do IRB, é dele a parede curva que liga a fachada envidraçada à fachada protegida, e o

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mural do saguão de entrada, onde foram aplicados painéis de vidrotil nas dimensões de dezesseis metros por dois e trinta. Nesse mural Paulo Wer- neck fez intensa utilização de cores, numa combinação de rosa, cinza, verde, ocre, marrom, que produziu o efeito de contrastes até então inéditos na ar- quitetura brasileira. No dia 25 de setembro de 1950, na cerimônia formal de inauguração do Edifício das Seguradoras, João Carlos Vital pediu a palavra. Enalteceu as maravilhas da modernidade da obra, que utilizava materiais que refletiam a técnica da época: aço inoxidável, alumínio anodizado, fórmica, asfaltite, alvenaria translúcida e vidrotil. Falou sobre os métodos de trabalho empre- gados por engenheiros, arquitetos e técnicos. Sobre o sol, a luz, a “alegria do trabalho”. E finalmente, num arroubo de orgulhoso contentamento, arrema- tou seu discurso afirmando que o prédio devia proporcionar, a quem dele se servisse, um “ambiente digno de nossos dias e dos avanços da dinâmica e operosa geração a que servimos”. Seis meses depois, em março de 1951, começaria a ocupação do prédio, quando para lá se transferiu o Sindicato de Empresas de Seguros Privados e de Capitalização, onde desde então passou a ocupar o 13º andar. Dia 27 de agosto de 51, às 17h, inaugurado o Clube de Seguradores e Ban- queiros, 17º e 18º andares. Idéia de João Carlos Vital. Aberto diariamente, exceto aos domingos, de 10 às 20h. Chá, manicure e barbearia. O Sindicato dos Corretores de Seguros e de Capitalização do Rio de Janeiro instala sua sede no 14º andar, sala 1404, no mês de outubro de 1951. A Federação só viria definitivamente para o mesmo endereço quan- do, já devidamente autorizada a funcionar, tomasse posse a primeira direto- ria definitiva.

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Capítulo quatro

A flor do jacobinismo e a euforia desenvolvimentista dos anos JK.

Carlos Coimbra da Luz, Deputado Federal por Minas e Diretor da Companhia de Seguros Minas-Brasil, semanas depois de tomar posse como Presidente provisório da Federação, para um mandato de três anos (1951- 1954), tinha a noção exata da natureza e das possibilidades futuras da insti- tuição. Em entrevista concedida à “Revista de Seguros”, demonstrava um conhecimento muito racional em relação à atividade das companhias e aos produtos que ofereciam à população brasileira. Sabia que, embora a capitali- zação fosse conhecida do povo, o seguro era produto estranho a nossa gente, que vivia predominantemente no campo, dependia da enxada e da terra, e só indagava do futuro e dos azares da sorte quando uma safra já plantada de- pendia do humor da natureza. O sol, a chuva, os ventos e a temperatura: essas eram as únicas cartas no jogo da imprevisibilidade bancado pela maio- ria da população brasileira. Carlos Luz, natural de Três Corações, originário de uma região de atividade agropastoril como a maioria dos seguradores brasileiros na época, sabia que uma das primeiras batalhas da Federação ia ser travada exatamen- te no pano verde dessa cultura e do inconsciente popular, que pragmatica- mente gostava da capitalização, mas desconhecia a atividade seguradora. Havia uma tendência muito mais forte e arraigada de se confiar na boa von- tade da natureza, na compreensão dos santos - como São José, senhor das chuvas de março, ou Santa Bárbara, senhora das fortes tempestades e dos

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raios - que na pouco difundida e escassamente conhecida apólice das segu- radoras. Entre os santos e a cártula de um contrato de seguros, o costume consagrava a confiança nos primeiros. Em sua entrevista, concedida poucas semanas depois da posse, Car- los Luz, com a cautela e os cuidados tão típicos dos mineiros, reconhece que uma das primeiras batalhas da Federação deveria ser travada no campo do preconceito e da cultura. Segundo a revista, era aí onde se devia esperar uma progressiva mudança de comportamento do cidadão em relação ao produto. “Esta Federação” - diria Luz - “é uma entidade de grau superior, cri- ada com o importante objetivo de coordenar a atividade sindical do seguro, de recolher e representar a opinião dominante do meio segurador nacional, a respeito dos problemas que afetam os superiores e legítimos interesses da classe. É, não há dúvida, um órgão que tem sobre si uma tarefa que tem tan- to de espinhosa e difícil, quanto de importante e benéfica para o seguro na- cional.” Quanto à natureza dessa tarefa e o papel da Federação, o experiente Carlos Luz parecia não ter qualquer dúvida: “Será elemento poderoso de defesa de nossa classe em todos os sentidos e em todos os setores. Poderá exercer funções importantes nessa emergência, encaminhando os nossos problemas, esclarecendo a opinião pública e os legisladores sobre a organi- zação do seguro no Brasil, que não é ainda devidamente compreendida. Por outro lado, proporcionará ensejo para maior aproximação e entendimento entre os que se entregam a este penoso ramo de negócio.” Pode-se dizer que estão aí, nesse discurso de político, mas também de homem de negócios, uma síntese profética sobre os futuros cinqüenta anos de atividades da Federação. Havia um problema emergente, e um pen- samento estrutural sobre a missão da entidade. Nessa época em que o “retra- to do Velho” tinha sido novamente dependurado na parede com tamanha expectativa por parte de uns e apreensão por parte dos seguradores, a “e-

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mergência” a que Luz se referia estava alarmantemente flagrada nos acalo- rados artigos de David Campista Filho, na “Revista de Seguros”. No apagar das luzes de 1952 - ano de tão boas recordações para um País que ingenuamente cantava o “Tico-tico no fubá”, de Zequinha de A- breu, e assistia deliciado ao primeiro filme de Mazzaropi - “Sai da Frente” - Vargas havia marcado as comemorações da Revolução de 30, em 3 de outu- bro, com a assinatura de decreto que criava, no IAPI, a carteira de Seguro contra Acidente de Trabalho. Essa matéria, que acicatava a alma assustada de alguns seguradores, que viam nessa modalidade de seguro um primeiro ensaio à estatização de toda a atividade, provocaria reação imediatamente irada de Campista Filho. Em artigo publicado na edição de fevereiro de 1953 na “Revista de Seguros”, Campista haveria de disparar sua metralhadora verbal contra o intervencionismo de Vargas, que segundo ele estaria camuflado no progra- ma trabalhista que “inequivocamente revela seu menosprezo à iniciativa privada”. E trazendo para a luz da opinião pública a verdade que, segundo ele, vinha mascarada no programa trabalhista, afirma que “a primeira mani- festação de hostilidade partiu do Instituto da Previdência, insaciáveis (sic) no exercício do seguro social, que lhes é pertinente, quiseram mais apropri- ar-se da carteira de que as empresas de seguros privados têm legítima prer- rogativa. O seguro de acidente do trabalho estava no ponto de amadureci- mento capaz de bastar a colheita pretendida, cujo surto provável, tão bem iluminado pela demagogia, ensejava a outras pretensões sobre outras moda- lidades de seguros...” Prosseguindo, não deixava por menos ao afirmar que “os Institutos de Previdência mantiveram-se no mesmo élan de expropriação dos seguros de acidentes do trabalho do âmbito da atividade privada, ostentando a dupla face do açambarcador totalitário. Não querem lealmente operar em seguros de acidentes de trabalho, porém, principalmente, cassar o direito das com- panhias privadas ao exercício de uma atividade legitimamente conquistada em longa experiência e que hoje representa um patrimônio considerável!“

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Na edição de abril, mais veneno destilado por Campista Filho contra aquilo que insistia em chamar de “crise no seguro”, provocada pela naciona- lização da atividade, balaio de gatos onde miava um dos filhotes mais ama- dos do programa estatizante de Vargas, o seguro de acidente do trabalho. Destilando pólvora, mas também uma adjetivação de colorido clássico, ele volta a atacar: “A nacionalização de seguros, flor de jacobinismo que brotando da facúndia de um Parecer, desabrochou viçosa numa portaria administrativa, vem ultimamente revelando sinais de fenecimento. Vai-se estiolando ao sol das decisões judiciárias, não sendo de se acreditar que chegue a resistir por absoluta ausência de base substancial, por seu estado de fluidez, em torno do qual giram razões artificiosas que ofendem a Constituição.” E conclui, mais uma vez cutucando com vara curta a onça de Vargas, e enfiando mais uma farpa na pele já assustada dos seguradores, ao afirmar que o “princípio nacionalista não oferecer ao menos qualquer promessa de utilidade e vantagens para a economia brasileira, seu elevado alcance está, apenas, em perturbar a vida das empresas, quando dentre os acionistas hou- ver um estrangeiro; deste, então, poder-se-á tirar toda a força malsã da na- cionalização de seguros”. Tanto barulho e tamanha apreensão repercutiriam ruidosamente na Primeira Conferência Brasileira de Seguros Privados, que seria realizada no Rio, entre 11 e 15 de maio daquele ano. Presentes o próprio Getúlio Vargas e o presidente da Federação, Carlos Luz, alguns temas crepitantes para a atividade seguradora foram levados a debate. Entre eles, “Incêndio e Lucros Cessantes”, “Transportes e Cascos”, “Vida”, “Roubo”, “Fidelidade”, o e- mergente mas ainda invisível “Seguro de Saúde” e a vedetíssima aparição do “Seguro de Acidentes do Trabalho”. Conseqüência ou não daquilo que Vargas e alguns parlamentares presentes ouviram nessa Primeira Conferência, a verdade é que, dois meses depois, em sessão realizada no dia 30 de julho, a Câmara dos Deputados aprovou, por 124 contra 46 votos, o projeto de lei nº 1.138/50. “Resultante

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de substitutivo apresentado ao projeto oriundo do Senado, deste diverge a proposição legislativa agora aprovada pelo fato de não restaurar, em toda sua plenitude, o princípio constitucional da livre iniciativa. Reconhecendo, entretanto, a superioridade do Seguro Privado, ao menos impede a consu- mação, em 1/1/1954, do malsinado monopólio estatal do seguro de aciden- tes do trabalho.” Vargas acabava de sofrer uma primeira derrota em sua campanha pela estatização. Mas, o que nem mesmo o exaltado Campista podia imagi- nar é que essa batalha, travada sob a metralha ainda tímida de pouco mais de cem votos no Congresso e uns tantos editoriais na imprensa, era a mensa- gem criptografada de alguma sibila que profetizava, para o segundo semes- tre daquele ano, uma derrota ainda maior para o Presidente e sua política trabalhista. A batalha final. Quando Getúlio perderia mais que uma simples votação. Perderia a própria vida. A 5 de agosto daquele ano de 1954 um pistoleiro atira contra Carlos Lacerda e mata o Major Rubens Vaz. Quatro dias depois Afonso Arinos pede, na Tribuna da Câmara, com seus pudores de udenista, que Getúlio renuncie diante da suspeita de envolvimento de Gregório Fortunato, o anjo negro do Presidente, nesse crime da Rua Toneleros. Treze dias depois esse discurso é repercutido numa reunião de briga- deiros, no Clube da Aeronáutica, de onde sai uma nota mais contundente que o discurso de Arinos: agora já não se pede; exige-se a renúncia de Var- gas. E no dia 24 de agosto, pelas oito da manhã, vestido num pijama de seda zebrada, na solidão imensa do poder, em seu quarto no Palácio do Catete, o Presidente se mata. O país mergulha na dor das massas, a cujo desamparo Getúlio deixa o lenitivo de uma belíssima carta-testamento. E ao povo brasileiro, que antes de perder seu Presidente já havia sofrido a perda de um título mundial de beleza, por duas polegadas a mais na escultural Marta Rocha, estava reser- vado um outro cálice tinto de sangue e de lágrimas: no dia 27 de setembro, Chico Alves, o Rei da Voz, o amado das multidões que havia saudado o

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retorno do retrato do “Velho” à parede da história, morre num acidente de carro na Via Dutra. Mas, antes que acabe esse ano, pelo menos ali, na Rua Senador Dan- tas, no Edifício das Seguradoras, haveria um motivo, longamente esperado, para que os freqüentadores do Clube da Bolinha regassem a bom champag- ne uma comemoração quase natalina. No dia 15 de novembro, quase um ano depois de ter sido oficialmente autorizada a funcionar, a Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados e de Capitalização instala-se definitiva- mente. A “Revista de Seguros”, em sua edição desse mês, destacava com grande júbilo a realização dessa “antiga aspiração da classe seguradora”, finalmente tornada “realidade, uma brilhante e promissora realidade”. E na linguagem solenemente adjetivada da época noticiava que, num “clima de perfeito entendimento e compreensão, o que marca um auspicioso início das atividades daquele órgão, tiveram lugar, no dia 15 deste mês, as eleições para a composição da diretoria e do Conselho Fiscal.” Para Presidente foi escolhido Vicente de Paulo Galliez, e Augusto Xavier de Lima no cargo de Vice; Arnaldo Gross, como Primeiro Secretá- rio; Ângelo Mário Cerne, Segundo Secretário;. Sebastian Lafuente, Tesou- reiro. Na suplência da diretoria, Humberto Roncarati, Arthur Autran Franco de Sá, Odilon de Beauclair, Lafayette de Miranda Valverde e Franco Cec- chini Bruni. Para o Conselho Fiscal foram eleitos Carlos Coimbra da Luz, Ricardo Xavier da Silveira e Edison Pinto do Nascimento, que tiveram co- mo suplentes Paulo Pimentel Portugal, Walter Arthur Grimmer e Cristóvão de Moura. “Como vemos, estão de parabéns as empresas de seguros e de capita- lização, pela acertada escolha dos nomes aos quais vão ser entregues os des- tinos da Federação” - prossegue a notícia. “Seu primeiro presidente, para só falar, nestas rápidas notas, daquele a que caberá maior parcela de responsa- bilidade na sorte da novel entidade, é o Dr. Vicente de Paulo Galliez. Jul- gamos desnecessária qualquer referência a esse ilustre nome, sobejamente

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conhecido no meio segurador nacional, como também nos círculos da capi- talização, pela sua dinâmica, firme e proveitosa atuação nos mais importan- tes mandatos que lhe têm sido conferidos pela classe. Os serviços valiosís- simos que ele tem prestado às duas instituições grangearam-lhe justo e me- recido renome e os louvores unânimes daqueles que militam naqueles dois campos de atividade econômica.” Esse tom maior de euforia, com que a revista saudava o que parecia ser o advento de uma nova era na vida dos seguradores, deve ter encontrado eco em alguma quebrada da história, pois naquele mesmo novembro, no dia 25, o diretório nacional do PSD faria a indicação de seu candidato às elei- ções para Presidente da República, a serem realizadas em 1956. Juscelino Kubitschek de Oliveira, o nome indicado pelo partido, ia mudar radicalmente a história da economia do País, e dar à atividade segu- radora um novo status no quadro da riqueza nacional: a formação de reser- vas que a partir daí, seriam vinculadas a projetos de desenvolvimento do País. Vargas deixara ao País muito mais que o testemunho do sangue der- ramado e o primor literário de sua carta-testamento. Por proposta de João Goulart, Ministro do Trabalho, deixou aos trabalhadores um salário mínimo aumentado em cem por cento no mês de maio. Deixou aos nacionalistas uma política que restringia a livre circulação dos capitais internacionais. À memória de Monteiro Lobato e aos militares, comunistas e estudantes da UNE, irmanados na campanha “O Petróleo é nosso”, deixou o monopólio estatal, a Petrobrás e a Fronape. Deixou também a mãe de todos os progra- mas de implantação de hidrelétricas, no Plano Nacional de Eletrificação, em cujo berço normativo cresceu a Eletrobrás. Deixou, enfim, uma das molas mestras do desenvolvimentismo do futuro governo de Juscelino Kubitschek, ao criar o BNDE - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico. Seguiu-se à morte de Vargas um entreato de nervosismo constitucio- nalista.

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Café Filho, o sucessor, passou a faixa presidencial a ninguém menos que o segurador Carlos Luz, que um ano antes havia deixado uma outra pre- sidência, a da Federação Nacional das Empresas de Seguros e Capitalização. Luz, no segundo dia de seu Governo, ao tentar derrubar o Ministro da Guer- ra, General Lott, comprou uma feia briga com o Exército, e juntamente com ministros e colaboradores foi obrigado a deixar o Catete antes que ali che- gassem as companhias motorizadas. Recebendo o apoio da Aeronáutica e da Marinha, que o ampararam no Cruzador Tamandaré, rumou para Santos enquanto ainda tentava resistir. Mas o Congresso Nacional já havia colocado em seu lugar o 1º Vice- Presidente do Senado, Nereu Ramos, que quase perde o mandato para o já restabelecido de saúde Café Filho, desta vez barrado em suas pretensões pelo Exército e pelo Congresso Nacional, que decidiram manter exatamente as coisas no pé em que estavam. Para acalmar os ânimos, Nereu Ramos decreta Estado de Sítio por 30 dias, enquanto espera a posse de Juscelino Kubitschek de Oliveira, acon- tecida no dia 31 de janeiro de 1956. Decidido a modernizar o Brasil, e dotá-lo de indústrias de base e de consumo de bens duráveis, JK inventariou o espólio administrativo de Var- gas, descobriu nele as sementes do desenvolvimento que pretendia realizar, e firmou um Programa de Metas, que compreendia 30 grandes objetivos, agrupados em cinco setores. Por meio dele seriam canalizados 43,4% dos investimentos do País para um ambicioso programa de produção de energia elétrica. Seriam destinados 29,6% ao reequipamento e ampliação dos vários meios de transportes. Investidos mais 20,4% em indústrias de base, outros 3,2% na produção agropecuária, armazenamento e circulação de bens e, finalmente, 4,3% em Educação. Tratava-se de uma mudança quantitativa, que tinha significados mui- to profundos. Significava o fim de quase quatrocentos anos de prática de um modelo econômico fundamentalmente voltado para a produção primária de gêneros alimentícios, matérias-primas e metais preciosos, destinados ao

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consumo interno ou exigidos pelo mercado internacional. Mudança que ti- nha, também, um caráter estrutural, qualitativo, de cunho social, pois o Bra- sil deixava de ser um País predominantemente rural, para iniciar uma cami- nhada no rumo da modernidade e da urbanização. Como os capitais nacionais eram insuficientes para esse grande em- preendimento, promoveu-se a abertura da economia ao capital externo, atra- vés da importação de indústrias e tecnologias, e JK voltou seu olhar otimista para cima das seguradoras e empresas de capitalização. Reconheceu que havia ali, nas cento e poucas companhias que operavam no País, a mina po- tencial de geração de poupança, pela utilização de reservas técnicas que po- deriam ser canalizadas para investimentos em infraestrutura. O País precisava de obras. As seguradoras precisavam de sossego. E nem tinham respirado direito, aliviadas daquela espada nacionalista e estati- zante que lhes pendera sobre as cabeças no Governo de Vargas, viam-se agora às voltas com a euforia desenvolvimentista de JK, de onde esperanço- samente já se podia antever um futuro melhor para o Brasil, mas também de onde as seguradoras podiam vislumbrar a corporificação de uma ameaça e o recrudescimento de outra: a obrigatoriedade de recolhimento de parte de suas reservas ao BNDE e a inflação. Em 1953 Getúlio Vargas tinha submetido as seguradoras e empresas de capitalização a um regime de recolhimento compulsório de 25% das re- servas técnicas ao BNDE, que as convertia em Obrigações do Reaparelha- mento Econômico, títulos com prazo de cinco anos e rendimento de 5% em todo esse período. As seguradoras viam nesse recolhimento um modo pouco escrupuloso de expropriação pois os títulos, quando venciam, em lugar do resgate eram simplesmente substituídos por outros, e havia uma agravante: as empresas do Governo não estavam submetidas à compulsoriedade do recolhimento. Juntamente com as queixas das empresas de capitalização e segura- doras, aumentavam os volumes de reservas aplicados nos projetos de inves- timento do Governo JK. Em 1953 haviam sido CR$ 185 milhões, que repre-

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sentavam 7% do total dos recursos disponíveis no BNDE. Em 1956, primei- ro ano do Governo de JK, esse volume aumentava ligeiramente para para CR$ 196 milhões, mas sua participação relativa no montante de capitais do Banco de Desenvolvimento caía para 1%. E nos anos seguintes os valores cresciam para CR$ 247 milhões em 1957, CR$ 375 milhões em 1958, e CR$ 500 milhões em 1959. Mesmo reconhecendo que a participação relativa dos volumes de su- as reservas agregadas ao bolo de investimentos do BNDE tinha sido bastan- te reduzido em relação aos tempos de Getúlio, os seguradores procuraram negociar com o Governo. O Ministro José Maria Alkimim acatou o pedido de que o investi- mento das reservas pudesse ser feito mais livremente, desde que constasse de uma carteira definida pelo BNDE. Embora ainda não fossem necessaria- mente as opções mais rentáveis, os seguradores entenderam que ali havia alguma conquista, pois já podiam orientar o investimento de suas reservas. E foi assim que, em 1958, a Sul América tornou-se acionista (20% do capi- tal) da Mecânica Pesada, viabilizando a vinda dessa empresa (Schneider- Coseau) para o Brasil. Quanto à inflação, desde o Governo de Vargas vinha resultando em problemas técnicos que abalavam a estrutura operacional de alguns ramos do mercado. Os aumentos de preços e a expansão do meio circulante esti- mulavam algumas seguradoras a realizar pesquisas e estudos conjunturais que pudessem fornecer subsídios para o enfrentamento da questão do au- mento dos encargos administrativos, os carregamentos que reduziam as ta- xas de lucros e interferiam na constituição das reservas técnicas e de sinis- tros não liquidados. Como não havia mecanismos de proteção monetária nos valores con- tratados numa apólice, o consumidor se retraía e o mercado experimentava uma perda na participação relativa do volume de prêmios auferidos e o PIB nacional.

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Esse emparelhamento entre os dois indicadores fica evidenciado em estatísticas recentemente levantadas pela Funenseg - Fundação Escola Na- cional de Seguros, que apontou, para o período de 1948-1957, em que a in- flação média anual era de 13,3%, uma participação dos seguros no PIB da ordem de 0,97%, enquanto que, para o período de 1958-1963, quando a in- flação anual média sobe para 39,8%, a participação da atividade seguradora no PIB cai para 0,88.

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Capítulo cinco

Luiz Mendonça na CPI do Seguro: onde estão os outros?

A gestão de Vicente de Paulo Galliez, que se estenderia de 1954 a 1956, parecia destinada a transitar como um pássaro em liberdade num céu de brigadeiros. Tirante o mau humor crônico de Carlos Lacerda e dos jornais que fa- ziam sistemática e siderúrgica oposição a tudo que ainda lembrasse Getúlio, ou que de alguma forma já manifestasse a marca da bonomia do estilo pes- soal de JK, o País trocara parte de seu vocabulário político. Relegara a um passado, que nem era tão distante, o grosso do linguajar que lembrava fuzil, pólvora, quartelada, cavalos amarrados no obelisco da Cinelândia, golpe de estado, prisão. Só se pensava em desenvolvimento, nessa fase da história em que o vigor democrático de nossas instituições fora reinaugurado por Juscelino em janeiro de 1956, depois do anacronismo de mais uma tentativa de insurrei- ção em Jacareacanga, abortada pela habilidosa e firme simpatia do novo Presidente. O que se assistiu, então, por cinco anos, foi um País contaminado pela esperança e acreditando em suas próprias peculiaridades, abrindo espa- ço no mundo. Em 1958, a USP instala o primeiro reator nuclear na América Latina. Surge a bossa-nova, liderada por João Gilberto, Roberto Menescal, Chico Feitosa, Tom Jobim e Nara Leão. Ademar Ferreira da Silva, nas O- limpíadas de Melbourne, tinha saltado 16,35 metros para se tornar o primei- ro brasileiro bicampeão olímpico. Em Paris, as seleções de vôlei participa- vam pela primeira vez de um campeonato mundial, iniciando a história de

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uma longa e persistente preparação de futuros campeões. Ainda em 1958, na Suécia, com uma vitória de 5 a 2 sobre o time da casa, e com o banho de bola e de arte proporcionados pelo anjo das pernas tortas, Garrincha, o Bra- sil conquistava o título de Campeão Mundial de Futebol. No tênis, esporte então reconhecidamente de elite, a elegante Maria Ester Bueno conquista o primeiro título brasileiro de expressão mundial, ao vencer em Wimbledon. No basquete, em Santiago do Chile, a seleção nacional conquista seu pri- meiro Campeonato Mundial, e de quebra ainda tem o cestinha da competi- ção, Wlamir Marques. E em mais um ano viria um novo título do mundo, no boxe, com o peso galo Eder Jofre. Tudo parecia correr tão bem e no melhor dos mundos possíveis, que a Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados e de Capitalização encontrava espaço e tempo em sua agenda de combate, para tratar de pro- gramações mais amenas. Em setembro de 1956 apoiava o Sindicato de São Paulo que pela primeira vez no País utilizava a televisão para fazer propa- ganda do seguro. Campanha de esclarecimento sobre atualização dos valores segurados no ramo incêndio, em conexão com o seguro geral, e que segun- do seus promotores era “restrita a projeções pela televisão, veículo este de acesso particularmente recomendável hoje em dia à categoria do público a que ela precipuamente se destinou”. Dentro dessa mesma idéia, de dar mais transparência a um produto que parecia descansar de tempos mais difíceis, a Federação, que atendia pelo seu apelido quase impronunciável - FNESPC, promovia também um prêmio, patrocinado pela Companhia Internacional de Seguros, destinado a “difundir o seguro, resseguro e capitalização em seus variados aspectos”. Prometendo CR$ 20 mil a quem apresentasse o melhor trabalho sobre as- pectos jurídicos do contrato de seguros, resseguro ou capitalização, home- nageava o advogado Sebastião Cardoso Cerne, que havia morrido em plena sessão no Tribunal. Em colaboração com a Sociedade Fluminense de Fotografia, e com o patrocínio da Atlântica de Seguros, lançou um outro prêmio, de CR$

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7.000,00, extensivo a todos os fotógrafos do País, profissionais ou amado- res, com um tema livre e um tema sobre o “alcance social do seguro priva- do e da prevenção de sinistros, em quaisquer de seus ramos”, e uma home- nagem a Irineu Marinho. E ainda uma terceira promoção, o “Prêmio Fran- cisco Paes Leme de Monlevade”, em engenharia de seguros, patrocinado pela Piratininga. Mas, em meio à euforia desenvolvimentista e à aparência de paz no front dos seguros, de repente levantam-se duas assombrações, filhas serô- dias do getulismo, que saem de seus túmulos para povoar os pesadelos e os discursos dos seguradores. O primeiro, o sempre assustador fantasma da nacionalização, que ficara órfão de Vargas, seu pai legítimo, que o concebe- ra em pleno Estado Novo e o educara pela cartilha da Constituição de 37. Vivendo em estado larvar, meio zonzo e meio descaracterizado, perdido no admirável mundo novo do bem humorado desenvolvimentismo de JK, tinha reaparecido no Congresso Nacional, pedindo para ser ouvido. Queria uma CPI para saber quem o sepultara. Presidida pelo Deputado Francisco Pereira da Silva, fora instalada com o objetivo de apurar, pela ordem: a) quem é ou quem são os autores de um movimento contra a nacionalização da atividade seguradora; b) quem é ou quem são contra a implantação de um monopólio de seguros do Banco do Brasil. Nesse teatro meio absurdo é chamado a depor, no dia 17 de outubro de 1956, ninguém menos que o cronista da “Revista de Seguros” Luiz Men- donça. Falou durante três horas. Teve que suportar uma proposta de acarea- ção, feita pelos deputados Frota Aguiar e Abguar Bastos. E, depois de anali- sar dispositivos das Constituições Federais de 1934, 1937 e 1946, desceu a considerações sobre as leis ordinárias. Lembrou um parecer do Ministro da Justiça, Adroaldo Mesquita, que nos tempos da Constituinte de 46 tinha sido autor de uma emenda, rejeitada, que restabelecia o nacionalismo das cartas constitucionais de Getúlio, e que agora afirmava, com toda convicção, que o

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seguro repelia o nacionalismo por seu caráter cosmopolita. Em seguida, evi- tando qualquer comentário ou opinião pessoal sobre o assunto, traçou um histórico da presença dos assuntos relacionados com o seguro e a capitaliza- ção na atividade legislativa no Congresso Brasileiro. Por fim, pede vênia para dizer que uma CPI apenas para investigar razões e fatos relacionados com o seguro era muito pouco e não se justifica- va. E fulmina seus inquisidores com uma pergunta que certamente não lhe queria calar na garganta: onde estão os outros? Por que não se faz também uma CPI sobre a atividade bancária? Esse bem educado atrevimento de Luiz Mendonça mereceu um repi- que na edição de dezembro da “Revista de Seguros”, na pena bem menos comportada de David Campista Filho, que não havia sido convidado para depor, mas decidira fazer coro com seu companheiro de redação, e sapecou mais lenha na fogueira da CPI: “O inquérito parlamentar anda em moda no sistema político brasi- leiro”- escreveria Campista. “Entretanto, de muitos já concluídos, nenhuma apuração proveitosa, objetiva, resultou, e se fatos de maior gravidade acon- teceram chegar ao conhecimento da nação, sob a forma de escândalo públi- co, foram mandados arquivar os inquéritos que os despertaram por envolver personalidades dignas de acatamento nacional. Entendeu-se, nesse prurido de investigação, da necessidade de que fossem apuradas umas tantas coisas sobre a nacionalização de seguros e, num requinte de espírito policial, ficas- sem conhecidos quais os autores de movimento contrário à dita nacionaliza- ção.” Outro fantasma, irmão gêmeo da proposta de monopólio do seguro no Banco do Brasil, vinha travestido de bom moço nesses novos tempos de euforia e desenvolvimentismo: o excesso normativo, que mascarava a inter- venção do Estado em negócios privados de seguros e capitalização. Sua ca- ra, depois de uma boa plástica para espichar os nervos expostos e roídos por alguns anos de sepultamento, tinha um aspecto ainda medonho, mas bem menos assustador.

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Na 2ª Conferência Brasileira de Seguros Privados e de Capitalização, realizada em São Paulo, entre 12 e 16 de setembro de 1955, tinha sido feito o alerta. Esse e outros monstros que povoavam os pesadelos dos segurado- res não estavam mortos. Viviam e continuavam a se reproduzir no canteiro fértil do excesso normativo. “Certamente, uma visão panorâmica da legislação de seguros o Bra- sil há de se ressentir de falhas e conter omissões” - advertia, em artigo de fundo a “Revista de Seguros” - “tantas são as leis que continuadamente sur- gem, como aquelas em expectativa de promulgação. A atualidade do seguro caracteriza-se, entre nós, pelo extraordinário pendor em legislar sobre tudo que o respeite. E se, no imenso fervedoiro de leis, portarias, decisões, en- contram-se as de sincera finalidade e honestas intenções, outras falseiam os interesses que as inspiram e revelam a suspeição de seus objetivos.” Para esse mal o mercado parecia ter encontrado um remédio. Dispu- nha-se agora de uma robusta organização sindical de seguradores, que soli- dariamente haviam aprendido a se defender. “Se é certo que o mal gera tam- bém o remédio “ - prossegue o articulista - “este se encontrou no princípio de associação que anima as sociedades de Seguros e de capitalização. Indu- zidas pelo espírito de solidariedade, sentiram as sociedades que a idéia se concretizava através da associação de classes e, assim, comitês associações de seguradores ou seus representantes organizaram-se em diversos estados da União, como no Amazonas, Pará, Maranhão, Ceará, Pernambuco, Minas Gerais, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio grande do Sul e Rio de Janei- ro.” Depois de historiar a gênese e desenvolvimento da organização sin- dical da classe seguradora, articula uma verdadeira declaração de princípios e da importância da FNESPC nesse novo contexto: “A organização sindical de classe é, por fim, complementada pela fundação, em 1951, da Federação Nacional das Empresas de Seguros Priva- dos e de Capitalização, com sede no Rio de Janeiro e que, como órgão de grau superior, congrega os seis sindicatos estaduais. Aperfeiçoou-se, deste

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modo, à luz da legislação, a representação do Seguro Privado e Capitaliza- ção no País... Constitui a Federação, a defensora da instituição do seguro privado em permanente vigilância (e do advogado nato das empresas), quando em risco a comunidade de interesses da classe que representa, atri- buição esta que se confirma pelos trabalhos que desenvolve no opor resis- tência à invasão de pretensões de toda espécie sob a aparência de memori- ais, representações, projetos, portarias e leis que ameaçam o seguro privado e a capitalização.” Esse era o molho de idéias aplicado à salada multicolorida e suculen- ta da vida social e econômica do País, no contexto em que Vicente de Paulo Galliez concluiu seu mandato (ele retornaria para nova gestão entre 1964- 1966), passando o comando da FNESPC a Ângelo Mário Cerne, eleito no dia 31 de outubro de 1956. Em seu discurso de posse, num justo elogio a seu antecessor, Cerne lembraria o empenho com que a Federação havia batalhado contra a estati- zação do seguro de acidente do trabalho. E aplaudiria, sobretudo, a vitória conseguida, no Supremo Tribunal Federal, em luta travada pela Federação contra uma investida estatizante do IPASE - Instituto de Pensão e Aposen- tadoria do Servidor, “na seara dos Ramos Elementares do seguro privado, motivou reação que dá bem a medida da combatividade imprimida pelo Dr. Galliez à sua gestão”. Ângelo Cerne, que teria vida longa na Federação, inicialmente ocu- paria a presidência por três gestões sucessivas (1956-1962). Depois ele retornaria, em 1966, para novo mandato que deveria ter-se estendido até 1968, mas seria interrompido em 1967, para ser concluído pelo Vice- Presidente Humberto Roncarati. Já nos primeiros meses de seu mandato assistiria a uma sagaz mani- festação do prestígio com que o Presidente Kubitschek pretendia distinguir a categoria dos seguradores, e o lugar que pretendia reservar para a atividade dentro de sua política econômica voltada ao desenvolvimento do País. No dia 22 de janeiro de 1957 seria inaugurada a Bolsa de Seguros, criada pelo

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IRB, nos moldes do Lloyd inglês, destinada a movimentar mais de US$ 10 milhões ao ano. Com essa inauguração, JK acenava para os seguradores com o forta- lecimento da capacidade de absorção do seguro nacional, e acenava para seu próprio Governo com o aparecimento de um novo instrumento de política cambial, que aliviaria a Balança de Pagamentos das pressões exercidas pelos numerosos negócios contratados no exterior. Em seu discurso, verdadeira confissão de fé nos valores da iniciativa privada, o Presidente da República historiou os principais momentos de seu primeiro ano de Governo e acentuou o apreço e estímulo que pretendia “le- var a toda iniciativa particular, sem o que não é possível o desenvolvimento de nenhuma nação.” E em seguida, para alívio geral, e com uma ênfase que deve ter agradado muito aos ouvidos já tantas vezes castigados dos segura- dores, falou sobre os limites e os termos de um pacto administrativo, entre Governo e iniciativa privada, “para a grande obra comum do desenvolvi- mento do País”. “O que nós assistíamos e acompanhávamos no Brasil” - frisou o Pre- sidente - “era o povo trabalhando, as iniciativas privadas cada dia avançando mais, e o Governo sempre ficando para trás. O que estamos tentando, numa revolução de processos administrativos, é que o Governo acompanhe a ini- ciativa particular, não para travá-la nas suas atividades mas, ao contrário, para estimulá-la e fazer com que, da soma das iniciativas públicas e particu- lares, possa o Brasil romper as suas dificuldades e cada dia se impor mais, no seu progresso e no seu enriquecimento...” Ângelo Cerne, Presidente da Federação, não fez por menos. Cum- prindo à risca o cerimonial da cordialidade, aceitou a promessa, no sentido de que a iniciativa teria espaço para ajudar a desenvolver o País, com um discurso que afagava o ego e a simpatia de JK, mas ao mesmo tempo devia ser entendido como um compromisso aceito em nome da classe seguradora. “Estamos na presença de um Presidente da República que tem sabi- do compreender o papel da economia privada no desenvolvimento do Brasil,

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e tem procurado encaminhar esse desenvolvimento a tal ponto que o nosso País se torne, realmente, uma grande potência no concerto das nações. Quanto ao relevante papel que o seguro privado vem desempenhando no Brasil, como amparo à arrojada iniciativa dos homens que constroem a sua grandeza econômica, contamos com uma valiosa folha de serviços, que se traduz em volumosa cifra de indenizações pagas, prontamente, para restau- ração da riqueza nacional” - disse Ângelo Cerne. E em seguida, por via transversa, espanejou muito de leve o pó de duas velhas bandeiras, a estatização e a nacionalização, em torno das quais nem os seguradores, e nem o próprio governo, conseguiam unanimidade de discurso e de engajamento. “A economia privada” - concluiu Ângelo Cerne - “que tanto tem feito pelo Brasil, é também a propulsora do Seguro Privado em nosso País, e agora, com este novo organismo, coloca o seguro em i- gualdade com as organizações assecuratórias de todo o mundo, por lhe ser facilitada a aceitação de toda e qualquer espécie de seguro, dentro da capa- cidade do mercado nacional, em igualdade de condições com quaisquer concorrentes, pelas facilidades que são agora, depois de muitos anos de luta, conferidas às Companhias que operam no Brasil. “ Nada mais protocolar para um início de relacionamento entre a FNESPC e o Governo. Até o pirronismo jornalístico de David Campista rende-se à novidade da Bolsa de Seguros, com as reservas e o temperamento de praxe: “No Brasil” - diz ele, em artigo publicado na época - “a Bolsa surge do progresso e desenvolvimento já realizado do seguro privado em plena expansão, como uma necessidade de conservar no mercado segurador do País coberturas que se lançavam alhures. Não veio dos usos e dos enten- dimentos das praças de comércio, como a inglesa, que se forrava de empi- rismo, porém da experiência de uma grande organização técnica, de largo âmbito, como é o IRB, cujo conselho técnico lhe presidiu o nascimento na- quele prestígio de signo dos destinos felizes.” Depois da teoria, a restrição: “Não constitui a Bolsa, propriamente, o aparelho de retenção de valores na economia nacional, porém o instrumento

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que promove essa retenção, porque a função das Bolsas é de movimentação de valores, insuflação à circulação de riquezas... significa, ainda mais, o autêntico atestado da potencialidade econômica do seguro, e legítimo regis- tro do grau de poder de ressarcimento do mercado segurador.” De qualquer modo, aquela oportunidade de contato público entre os seguradores e o Presidente da República tinha servido para levantar o moral da categoria. E uma vez mais, naquele ano de 1957, ao depor na CPI do Se- guro - a mesma Comissão Parlamentar de Inquérito em que Luiz Mendonça havia chamado o sistema bancário às falas - Ângelo Cerne voltaria ao tema da nacionalização. Assumindo uma postura mal compartilhada com muitos dos seguradores brasileiros, alinhavou os melhores argumentos que pôde para se colocar frontalmente contra o regime nacionalista. Começou afirmando que o mercado brasileiro, e não apenas ele ou alguns seguradores, era contrário à nacionalização das companhias de segu- ros. E justificou dizendo que, nos tempos de Getúlio, “quando funcionou o princípio da nacionalização progressiva, esta não se tornou efetiva”. Além disso, segundo ele, a Constituição de 46 “não contém princípios nacionalis- tas de atividades econômicas a não ser para as atividades jornalísticas”. E, argumento maior, “as seguradoras não se manifestaram, por seus órgãos de classe, em momento algum pedindo a nacionalização” e, segundo ele, “não foi apresentada qualquer queixa de estarem as estrangeiras exercendo suas atividades contrárias aos interesses das companhias nacionais”. Pede a verdade da história que se faça um registro. Nessa época de democracia oficialmente bancada pelo Governo, a bandeira nacionalista drapejava aos ventos das contradições brasileiras. Uma hora era empunhada pelos militares, radicalmente contra os internacio- nalismos, sobretudo o que era pregado pelos comunistas. No momento se- guinte era desfraldada pelos comunistas, que viam na bandeira um pálio contra a presença internacionalista do capitalismo ianque no Brasil. No meio desse contraditório fogo cruzado, o povo, os seguradores, os estudantes da UNE...

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Capítulo Seis:

O Brasil avança: às vésperas de nova revolução.

Cerne haveria de inaugurar, em 1958, o hábito de prestação pública de contas da Federação, através dos relatórios anuais de atividades publica- dos pela “Revista de Seguros”. E no primeiro da série histórica desses tex- tos, que permitem rastrear os principais acontecimentos de sua administra- ção, ele fala sobre o péssimo e velho tema recorrente da inflação. Segundo ele, combustível para duas fogueiras que, a seu ver (e não necessariamente de todo o mercado), podiam fazer arder as melhores intenções dos segurado- res: o intervencionismo do Estado e a emocionalidade da doutrina naciona- lista. Esse relatório permite conhecer quais eram as outras grandes preo- cupações da categoria nesse remoto 1958. Ano eleitoral, em que se gastou muito tempo e discurso dos parlamentares, nas campanhas para a renovação do Congresso. O que não impediu que tivesse uma tramitação corriqueira o projeto de Lei Orgânica da Previdência Social, onde se incluíam dispositi- vos que previam o monopólio autárquico do seguro de acidentes do traba- lho. Um outro projeto de interesse da categoria, o de regulamentação da profissão de corretor, nem chegou a plenário. A Federação, preocupada com a saúde financeira de suas afiliadas, manteve sua função de órgão coordenador dos investimentos anuais das empresas de seguros e de capitalização, na célebre carteira de recolhimento compulsório de 25% das reservas técnicas ao BNDE. Mas, preocupada tam- bém com sua própria saúde financeira, apresentou contas desse ano, em que o total de suas receitas montou a CR$ 882.950,30, com despesa em CR$

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736.198,20, e um superávit de CR$ 146.752,10. Entre os itens mais eleva- dos de gastos estava o de despesas judiciárias, do atendimento dado pela Fenaseg em vários municípios brasileiros na defesa judicial da classe contra alteração na cobrança de Imposto de Indústrias e Profissões. No relatório do ano seguinte, 1959, o nariz de cera da inflação, agora pomposamente apresentada como “matriz, centro de gravidade de tantas vicissitudes enfrentadas pelas atividades econômicas de modo geral”. Entre os problemas gerados pela grande vilã do desenvolvimentismo de JK (anos depois ela seria transformada em dragão, fantasia que vestiria até o advento do Plano Real, em 1994), Ângelo Cerne aponta o do reajustamento dos va- lores contratuais. E dá uma sugestão que o futuro haveria de acatar: a inde- xação dos contratos, “ reajustamento, por assim dizer, automático”, contra o qual, segundo ele, “numerosas dificuldades de ordem prática se opõem.” Essa indexação, como se verá, só aconteceria em meados da década de 80, quase trinta anos depois da manifestação futurista de Cerne. Numa época em que raríssimos empresários se atreviam a levantar seus olhos de caranguejo das praias do litoral para o chapadão de terras vermelhas de Brasília, Ângelo Cerne mais uma vez mostrou que conseguia ver o futuro. Colocou a FNESPC, como articuladora e arregimentadora, à frente de empresas interessadas em construir na futura capital o Edifício das Seguradoras. Com habilidade, e uma insistente esperteza, pediu ao Depar- tamento Nacional de Seguros Privados e de Capitalização que autorizasse a utilização das famosas reservas recolhidas ao BNDE, para aplicação nesse investimento. O pedido, escorado em circunstanciado memorial, seria aten- dido no ano seguinte. Paralelamente a esse fortalecimento institucional da FNESPC, a ati- vidade seguradora também vai encontrando seu caminho. Um novo perfil de consumidor ia apontando no horizonte desenvolvimentista do País, que aos poucos ia começando a dispor de mais automóveis, caminhões e estradas. A classe média ensaiava entrar nesse mundo até então fechado aos ricos, o dos possuidores de bens de consumo durável.

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Por ocasião da implantação da indústria automobilística, o sistema financeiro nacional era descapitalizado. Era frágil, pequeno para o desafio de financiar o novo mercado que surgia. As famílias não dispunham, ainda, de superavits suficientes para sustentar uma indústria que, entre 1957 e 1960, colocaria no mercado mais de 320.000 veículos produzidos no País, o que praticamente dobrava a frota nacional. Paralelamente, o número de fá- bricas de auto-peças aumentaria de 700 para mais de 1.200 entre 1955 e 1961 e, nesse mesmo período, mais de 13.000 quilômetros de rodovias fede- rais seriam construídas, e mais de 7.200 quilômetros seriam asfaltados, ex- pandindo a rede pavimentada em mais de 300% em apenas dois anos. Mudava-se o perfil do consumo no Brasil, mas a aquisição de alguns bens, sobretudo os de consumo durável, como os automóveis, ainda esbar- rava no preço elevado dos produtos e na baixa capacidade financeira das famílias e até mesmo das empresas que surgiam. Como financiar, por exem- plo, a frota de caminhões, indispensáveis para transportar a riqueza que de- via circular por nossas estradas? As seguradoras acompanhavam atentamente essa mudança de cená- rio. Duas delas, Atlântica e Ajax, chegaram a comercializar com sucesso uma Duplicata Azul, título que, a partir de então, acoplado a um Seguro de Crédito, seria usado para financiar os caminhões produzidos pela Mercedes Benz. Foi uma descoberta providencial. Para a indústria de veículos, que encontrou um meio de financiar sua produção. Para o consumidor, que po- dia ter um veículo financiado e segurado. E para as próprias seguradoras, que acabariam por ganhar um bom dinheiro com a Duplicata Azul pois, no caso de retomada dos veículos, por inadimplência, passariam a ter em mãos um ativo diariamente valorizado, num período em que a inflação alavancava a valorização de bens que entrassem como garantia de negócios. Sabe-se que a inflação normalmente inibe a atividade seguradora. Mas não determina tudo, isoladamente. No teatro de formação de preço e mercado para as seguradoras, outros atores podem entrar em cena, contribu-

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indo para um efeito geral menos dramático. O nível de crescimento da ren- da, por exemplo, pode afetar positivamente o comportamento das segurado- ras, dependendo da forma e intensidade em que se dá a formação e acumu- lação de capital no país. Mais renda em nível familiar significa maior afluxo de bens e serviços, e em nível nacional pode representar um aumento na demanda aos seguros de capital físico, equipamentos, instalações, imóveis. Isto foi exatamente o que se deu, em dois períodos em que se pôde visualizar os efeitos da aceleração do processo de industrialização, de for- mação de capital no Brasil. O primeiro, entre 1942, ano em que o País entra- ria na Guerra, a troco de algumas vantagens industriais que a história regis- tra, e 1950, quando, depois da queda de Vargas, já vivíamos, desde 1946, o processo de democratização iniciado no rescaldo da Guerra. O segundo pe- ríodo seria esse, do Governo desenvolvimentista de JK, entre 1956 e 1961. Assim, não obstante o fato de que a participação relativa da atividade seguradora no PIB brasileiro tenha sofrido retração nesse período de infla- ção mais elevada (cai de 0,97% entre 1948-57, com inflação média anual de 13,3%, para 0,88% do PIB entre 1958-63, com inflação média anual de 39,8%) aumentam os volumes de prêmios. Nominalmente, de CR$ 1,2 bi- lhão registrado em 1949, sobem para CR$ 3,1 bilhões em 1954 e CR$ 7,2 bilhões em 1958. Em valores deflacionados, CR$ 4,8 bilhões em 1949, CR$ 6,2 bilhões em 1954 e CR$ 7,2 bilhões em 1958. Além disso, o número de seguradoras que operavam no Brasil, e que eram 132 em 1954, sobe para 137 em 1955, 150 no ano seguinte, chegando a 173 em 1961, quando é en- cerrado o Governo JK. No Relatório de Atividades da FNESPC de 1960, Cerne registraria que o próprio Presidente da República, alertado para esse repentino alarga- mento institucional do mercado, suspenderia “a concessão de novas cartas- patentes para seguradoras, para evitar a saturação do mercado.” E nesse ano, teve tramitação normal o projeto de Reforma Administrativa da Previdência Social, que cuidava do monopólio do seguro de acidente do trabalho, sem conter qualquer disposição que pudesse representar, ao pé-da-letra, a estati-

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zação do setor. Ano bom para o mercado, e nem tão confortável para as fi- nanças da Federação, que registrou receita de CR$ 774.159,30 e despesas de CR$ 1.004.834,30. Na contagem global, um ano bom para o País e os seguradores. JK, ao mesmo tempo em que propunha aos Estados Unidos um pro- grama de desenvolvimento econômico a longo prazo - a Operação Pan- Americana - era aplaudido no Clube Militar ao anunciar o rompimento com o FMI. Norma Benguel, a Brigite Bardot brasileira, aparece no cinema como estrela de “O homem do Sputnik”, de Carlos Manga. Antônio Cândido lança a “Formação Histórica da Literatura Brasileira”, lança a “Formação Econômica do Brasil”, Gilberto Freyre lança “Ordem e Progres- so” e Sérgio Buarque de Holanda lança “Visão do Paraíso”. Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir visitam o Brasil, e na Capital Federal, inaugurada no dia 21 de abril de 1960, aparecem a TV Alvorada e a TV Brasília. Villa- Lobos morre. E a revista “Manchete” publica nota sobre um seguro de CR$ 7 milhões feito para cobrir o nariz do cantor Juca Chaves contra a eventuali- dade de um acidente. O menestrel, que havia cantado o próprio apêndice nasal (“Nariz, ai meu nariz, como falam mal de meu nasal, que é tão normal!”) explicaria sua atitude: “Meu nariz já era o maior. Agora é também o mais caro do País.” O Brasil tocava o barco do futebol, do humor, da cultura e do desen- volvimento, e entrava em novo ciclo eleitoral. Preocupados com a sucessão presidencial que se aproxima, alguns seguradores levam ao General Lott, candidato apoiado pela situação, um “Programa de governo no setor de seguros”. Tem como ponto central a na- cionalização da atividade nos termos da legislação de Vargas, e desperta a curiosidade dos demais seguradores. Para esclarecer a uns e a outros, a “Revista de Seguros”, em sua edi- ção de setembro de 1960, entrevista os três principais candidatos, o General Lott, Jânio Quadros e Ademar de Barros. E centra suas indagações em um

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ponto único: a questão sempre revisitada da previdência oficial e do mono- pólio do Estado sobre a atividade seguradora. O General Lott, lacônico, marcial e preciso, responde: “O projeto de reforma da previdência social merece a aprovação tal como foi enviado pela Câmara ao Senado.” Isto é, o General, cujo símbolo de campanha era uma espada, pela ordem e pelo progresso democraticamente tutelados, era a favor do monopó- lio. Jânio Quadros, prolixo e professoral, responde: “A aprovação da fu- tura Lei Orgânica encerrou a controvérsia sobre a conveniência ou não do monopólio dos Institutos, quanto ao Seguro de Acidentes do Trabalho. Res- ta, agora, confiar em que as empresas seguradoras, que triunfaram na cam- panha contra aquele monopólio, procurem esmerar-se nos serviços garanti- dos pelo seguro, a fim de que seu caráter competitivo resulte numa assistên- cia cada vez mais eficaz para o trabalhador acidentado. Trata-se, realmente, de ramo de seguro em que, sobre todos os demais, a finalidade social é mar- cante e deverá estar sempre presente no espírito do segurador, a conter quaisquer excessos no espírito do lucro.” Isto é, Jânio, cujo símbolo de campanha era uma vassoura, sempre disposta a ver sujeira em todo canto, era contra o monopólio, mas cobrava às seguradoras o preço da liberdade do mercado. Ademar de Barros, sempre simpático, muito gordo, bonachão, popu- lista e jamais inclinado a grosserias ou a desagradar os seus e os eleitores dos outros candidatos: “Acho que não só os Institutos, após terem suas fi- nanças equilibradas, como as companhias particulares, poderão explorar o seguro de acidentes sem prejuízo para a economia do País”. Isto é, Ademar, cujo lema de campanha era “Desta vez vamos”, es- tava em cima do muro. Jânio venceu as eleições com 5.636.623 votos, 48%, contra 3.846.825 votos, 32% do total apurado, dados ao General Lott, e 2.195.709 votos, 20% ao sempre esperançoso Ademar, que “ainda não foi dessa vez”.

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Tomou posse no dia 31 de janeiro de 1961. Fez um discurso injurio- so a JK, que chegou a pensar em devolver os insultos no braço. Vasculhou os cantos da República procurando sujeira que pudesse varrer. Mandou mi- lhares de bilhetes a seus auxiliares mais próximos. Assumiu uma política externa independente, criticando os Estados Unidos. Condecorou Che Gue- vara com a medalha da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. E finalmente caiu. No dia 25 de agosto Jânio da Silva Quadros renunciou, alegando dificuldades de entendimento com as “forças ocultas”, e mergulhou o País numa crise institucional. Ranieri Mazzili, Presidente da Câmara, assumiu a Presidência enquanto o Vice, João Goulart, viajava pela China. A 27 de a- gosto Leonel Brizola, jovem e impetuoso Governador do Rio Grande do Sul, garante que defenderá à bala a posse de Goulart, seu cunhado. A 28 de agosto o General Machado Lopes, comandante do III Exército, recusa-se a cumprir ordens do Ministro da Guerra para depor Brizola, e pipocam por todo o País as manifestações em defesa de Goulart, cuja posse seria contes- tada em manifesto dos ministros militares no dia 30 de agosto. O Brasil apela para um traço barroco de nossa gênese nacional: a ca- pacidade de conciliação de contrários. Dá-se um “jeitinho” em Brasília, e no dia 2 de setembro é votada e aprovada a Emenda Constitucional que institui o parlamentarismo no Brasil. Jango, a pedido da legalidade e de grande parte do povo brasileiro, toma posse como Presidente da República no dia 7 de dezembro. Mas aten- dendo igualmente aos insistentes e bem armados pedidos de outras facções da opinião nacional, quem assume verdadeiramente o Poder é o Primeiro Ministro Tancredo Neves. No Relatório de Atividades desse tão movimentado ano de 1961, Cerne usa, pela primeira vez num documento da FNESPC, uma expressão - “reforma de base” - que vai se tornar a recorrência daquela época. “As re- formas de base” - ele diz - “hoje tão insistentemente reclamadas, visam à

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modificação de nossas estruturas institucionais (...) porque assim possamos vir a ser dotados de instrumental capaz de acelerar a expansão econômica...” Aparentemente aceitando esse discurso, que era próprio do governo reformista de Goulart, o Relatório de Ângelo Cerne alinhava alguns temas que podiam significar riscos para o regime de livre empresa e, conseqüen- temente, à atividade das empresas de capitalização e seguradoras: operação de autarquias (várias delas pretendiam instalar carteiras de seguros de ramos elementares); Art. 68 da Lei Orgânica da Previdência, onde era cogitada a criação de um esquema institucional de proteção, através de seguros faculta- tivos, “que tenham por fim ampliar os benefícios da previdência social”; e o sempre presente monopólio de acidentes do trabalho, que havia sido votado e aprovado em agosto de 1960. Como sinal dos tempos, Cerne fala também das dificuldades de rela- cionamento com o BNDE, cujos quadros de direção vinham passando por repetidas mudanças, em razão de “de ter havido duas sucessões presidenci- ais em um só exercício.” De qualquer modo, ao prestar contas de seu último ano desse manda- to, Cerne passa ao próximo presidente da Federação, Claudio Almeida Rossi ( gestão de 1962-1964), uma entidade financeiramente superavitária: receita de CR$ 1.488.991,10 e despesas de CR$ 913.130,10 (saldo de CR$ 575.861,00). Com dinheiro em caixa, Cláudio Rossi inicia seu mandato num con- texto político meio apimentado. Em maio, uma Frente de Libertação Nacional lança manifesto, assi- nado por cinco governadores (Leonel Brizola, Rio Grande do Sul; Mauro Borges, Goiás; Aurélio do Carmo, Pará; Chagas Rodrigues, Piauí; e Celso Peçanha, Estado do Rio), conclamando o povo a cerrar fileira em torno de um programa de cinco pontos, condenando como “abusiva a dominação econômica estrangeira, inclusive em setores fundamentais como os de ener- gia, transportes marítimos, seguros e comunicações”. Em julho estoura uma greve geral da CGT, cujo resultado é a conquista do 13º salário para todos

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os trabalhadores do País. Em setembro, greve geral pela antecipação de ple- biscito sobre o parlamentarismo, que acabaria marcado para 6 de janeiro de 1963. A conquista da Palma de Ouro, no Festival de Cannes, com o filme “O Pagador de Promessas”, ou o bi-campeonato mundial de futebol, no Chi- le, não são bastantes para acalmar os ânimos patrióticos, exaltados em meio a contradições verdadeiramente curiosas. Num jantar realizado em março, em homenagem a Ângelo Cerne, Odilon de Beauclair alerta os seguradores para “a natureza e a gravidade dos fenômenos políticos da hora presente”. Afirma que, nesse contexto, o “re- gime de liberdade, de dignificação da pessoa humana, vem sendo, a pouco e a pouco, solapado. Agitações de toda sorte, como que abrem brechas enor- mes na estrutura social. Idéias chamadas “nacionalistas” procuram afastar o país de seus tradicionais amigos e aliados, aproximando-o, todavia, da Rús- sia comunista e de seus satélites.” Em seguida, fala da passividade e da “displicência quase criminosa” de muitos, e que “a cupidez e a desonestidade de outros, bem como a in- compreensão de certos empregadores, forneceram e fornecem ainda alimen- to fácil para essa fogueira em que querem lançar nosso país”. E conclama os seguradores presentes à luta, “não tanto por nós mesmos, mas por nossos filhos e netos, para que possam respirar um ar de liberdade, liberdade de pensar, falar e escrever; liberdade de estudar e escolher sua profissão; liber- dade de locomover-se, coisas há muito abolidas nos países da cortina de ferro.” Com uma boa retórica, indaga sobre o “que fazer? Que armas possu- ímos para essa luta? Como poderemos opor uma barreira a tudo isso?” E depois de enfatizar a necessidade do apoio a “movimentos tendentes a corri- gir imperfeições em nossa vida político-administrativa”, recomenda a ade- são ao Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais - IPES, instituição que era reconhecidamente uma das fomentadoras do pensamento de resistência ao Governo de Goulart.

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Não obstante esse apoio, no mesmo número da revista em que sai publicado o discurso de Beauclair, noticia-se também que a Federação “subscreveu o manifesto das classes produtoras, saudando o Presidente da República, no seu regresso ao País, dada a maneira por que, nos Estados Unidos e no México, desempenhou a tarefa de interpretar o pensamento do povo brasileiro, essencialmente democrática”. Essas contradições retratam bem uma época em que a história do Brasil se precipita num vórtice de acontecimentos, sem muito tempo para a reflexão. A 6 de janeiro o País volta ao presidencialismo, que conquistara quase 10 milhões de votos de um total de 12.773.260 deixados nas urnas. A 4 de agosto o Congresso rejeita o Estatuto da Terra. A 12 de setembro eclo- de em Brasília um levante de sargentos da Marinha e Aeronáutica, logo su- focado. A 18 de setembro, greve dos bancários. A 6 de outubro o IV Exérci- to ocupa a cidade do Recife, reprimindo manifestação de 30.000 campone- ses. A 29 de outubro, greve geral em São Paulo, onde cerca de 700.000 ope- rários de 78 sindicatos conseguem 80% de aumento. No mundo dos seguros, uma ilusória aparência de tranqüilidade, sob o disfarce de notícias de tempos de paz. Amarildo, que deixou o Botafogo para jogar na Itália, faz um seguro de acidentes pessoais no valor de CR$ 10 milhões. Carlos Frederico da Motta, que futuramente viria a presidir a Fede- ração, é designado pelo Ministro da Indústria e Comércio para representar a classe dos corretores na Comissão de Revisão da Legislação dos Seguros. Goulart aprova parecer do Consultor Geral da República, concluindo que somente por ato do Legislativo, e depois de competente processo, seria pos- sível liberar o patrimônio das sociedades de seguros alemãs incorporadas ao Patrimônio Nacional pela legislação de guerra (ainda, e sempre, a Segunda Guerra Mundial, que não tinha ainda acabado no Brasil!). E a FNESPC lan- ça uma campanha para colher informações, em todo o País, para o reajusta- mento dos valores do ramo Incêndio. Assunto que preocupava, diante da ameaça de criação de um imposto de 10% sobre as apólices de incêndio para o Corpo de Bombeiros da Guanabara.

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No balanço das atividades desse ano, o Presidente da Federação, Claudio Almeida Rossi, tem motivos de sobra para se preocupar. O volume total da produção de prêmios, que subiu de CR$ 53,6 bilhões em 1962 para CR$ 75,2 bilhões em 1963, tinha sido menor que a inflação, e um novo tipo de estatização tinha sido testado em Goiás: a incorporação de uma segurado- ra, sociedade anônima, que passara ao controle do Estado. Uma vez mais os velhos fantasmas deixavam a paz silenciosa dos jazigos, e vinham azucrinar os nervos dos já politicamente assustados segu- radores. Pelo noticiário da imprensa, que repercutia nas ruas, nos púlpitos das igrejas, nas empresas e sobretudo nos quartéis, já se podia sentir no ar o cheiro de pólvora. O Brasil estava às vésperas de nova revolução.

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Capítulo Sete

Os idos de março: da perplexidade à transformação.

Na edição de março de 1964, a “Revista de Seguros” tinha feito um alerta aos seguradores sobre a falsidade de notícia que circulava, dando con- ta de que a Assessoria da Presidência da República estaria minutando o de- creto de estatização do seguro. Num tom de firme convicção o redator des- cartava essa possibilidade ao afirmar que a “estatização do seguro seria me- dida violentamente anticonstitucional feita através de simples decreto.” A intenção da revista era clara: tranqüilizar o mercado segurador e acalmar os ânimos, que andavam assustados em meio a informações desen- contradas sobre as reais intenções do Governo Goulart em relação à econo- mia. Na FNESPC, no início daquele mês, ao discursar e dar posse a Vi- cente Galliez, que o substituiria na Presidência da Federação, Claudio Rossi tinha rememorado as turbulências que haviam sido enfrentadas em sua ges- tão, e as perturbações “nas lides cotidianas das empresas seguradoras, as quais a muito custo e esforço, e sob a direta orientação destas entidades de classe conseguiram chegar, então, a um resultado satisfatório no exame e encaminhamento desse problema social, que é a provocada e dirigida parali- sação total dos trabalhos.” Concluindo seu discurso, advertira para a necessidade de “redobrada vigilância e permanente atenção para os novos dirigentes que, confiamos, igualmente não poupem esforços no sentido de preservar, a todo custo, a mais perfeita união para a intransigente defesa dos interesses comuns da classe...”

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Tamanha apreensão e tão sérios cuidados tinham razão de ser. Aquele era um ano atípico. Em plena terça-feira de carnaval, por uma triste ironia do destino, quando o Brasil inteiro devia rir e cantar, morre . Algumas se- manas antes, no dia 29 de janeiro, o Presidente João Goulart tinha açulado a ira do capitalismo internacional, ao regulamentar a Lei 1131, que dispunha sobre as condições de presença do capital estrangeiro no País. Um mês de- pois, no dia 27 de fevereiro, mulheres da Limde - Liga da Mulher Democrá- tica, tumultuam um comício da Frente de Mobilização Popular em Belo Ho- rizonte. No dia 13 de março, no célebre comício da Central do Brasil, Gou- lart defende as reformas de base que pretendia implantar e, diante do povo, assina o decreto da reforma agrária e o da encampação das refinarias parti- culares. Três dias depois o CGT - Comando Geral dos Trabalhadores, amea- ça paralisar o País se o Congresso não as aprovasse, e como reação, no dia 19, em São Paulo, realiza-se a Marcha da Família, com Deus, pela Liberda- de. No dia 20, o General Castelo Branco, chefe do Estado-Maior do Exérci- to, envia circular aos colegas de oficialato, em que mostra que o papel das Forças Armadas seria o de “defender o funcionamento integral dos três Po- deres... contra a revolução para a ditadura”. A partir da circular de Castelo tudo se precipita. No dia 24, oficiais da Marinha, reunidos no Clube Naval, pedem demissão coletiva de suas funções de comando. No dia 27, protestando contra a prisão de diretores de sua associação, cerca de dois mil marinheiros se reúnem na sede do Sindica- to dos Metalúrgicos, e uma tropa de fuzileiros, comandada pelo Almirante Cândido Aragão, enviada para cercar o prédio e prender os amotinados, de- põe suas armas e adere à insurreição. A 28 de março, em Juiz de Fora, em reunião a que estavam presentes o Governador de Minas Magalhães Pinto, e os generais Olímpio Mourão e Odylio Denys, marca-se a data para um le- vante contra o Governo Federal. Pela manhã, tropas de Minas começam a se deslocar para o Rio.

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Tinha começado a Revolução de 31 de março de 1964. Nas primeiras semanas que se seguiram à movimentação de tropas, a perplexidade inicial do cidadão comum vinha sendo paulatinamente substi- tuída pela cautela, pelo receio de que se pudesse, com uma única frase dita em lugar ou momento inadequados, despertar a ira cega e disposta a mostrar serviço à causa revolucionária. Havia no país uma radical mudança de comportamentos e de voca- bulário, que se mostrava mais evidente nos pronunciamentos públicos, em que o insistente apelo aos clichês do discurso patriótico muitas vezes batia mal nos ouvidos, soando a puro exercício do instinto de sobrevivência ou matreirice política. Pisava-se agora num campo minado pela suspeita, pela delação fácil e pelo oportunismo sem escrúpulo. Toda cautela era pouca ao se abrir a boca publicamente, e o mercado segurador, nos primeiros meses que se seguiram ao movimento revolucionário, optou por dialogar com o Governo em nível quase que de sondagem em relação àquilo que podia ser dialogado. Foi assim que, através de um editorial da “Revista de Seguros”, ma- nifestou sua confiança na democracia moderna, que deixava “para trás o conceito de estado-gendarme”, intervencionista, cuja atuação podia ser e- xemplificada “na legislação que autorizou o BNDE engajar em seus pro- gramas boa soma de recursos constituídos pelas companhias de seguros sob a forma de reservas.” Como essas águas passadas do intervencionismo vinham dos tempos de Getúlio, Juscelino e Jango, pareciam boas para tocar o moinho em que se começaria a moer o duro grão do diálogo com o novo Governo. Feito esse primeiro teste, e procurando pisar num terreno que já sen- tia mais firme sob os pés, no mês de maio a Federação renova apelo que já fizera repetidas vezes ao BNDE, no sentido de que as empresas de capitali- zação e seguradoras fossem autorizadas a fazer investimentos de suas reser- vas técnicas em indústrias de base do setor privado. Até então, o banco prio-

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rizava a canalização dessas reservas para investimentos públicos, em detri- mento da expansão industrial do setor privado. Em junho, quando já são mais nítidos os contornos da ação revolu- cionária do movimento eclodido em março, nas comemorações do Dia Con- tinental do Seguro, Humberto Roncarati, Presidente do Sindicato das Em- presas de Seguros do Estado do Paraná, faz um pronunciamento que vale por uma proposta de trabalho. “A data que hoje nós, seguradores, reverenciamos “ - afirma ele - “coincide com acontecimentos políticos pátrios da maior transcendência. Retoma, agora, o nosso País, o caminho de uma vida normal, de respeito à legalidade e de observância aos princípios democráticos e cristãos. Cabe também aos seguradores solidarizarem-se com a restauração do clima de paz e de trabalho que ora se inaugura, e consignar um voto de confiança às auto- ridades supremas do País...” Apesar de tão boa expectativa, os seguradores seriam surpreendidos, ainda naquele ano, pelo projeto de lei que criaria o BNH. Entre suas atribui- ções, figurava a exploração dos seguros privados para cobrir créditos resul- tantes da venda ou construção de casas a prazo e empréstimos para aquisi- ção da habitação, depósitos feitos nas entidades integradas do sistema de habitação, e renda (seguros de vida) do adquirente financiado pelo Sistema Financeiro de Habitação. Vicente Galliez contra-ataca numa entrevista à imprensa, usando de um argumento que, naquela maré baixa de constitucionalismo pós- revolucionário, não andava sensibilizando muito o Governo de Castelo Branco. “O projeto do Governo” - diz o Presidente da FNESPC - “entra em antagonismo com as normas programáticas da Constituição em vigor, pois esta fixa na ordem econômica o primado da iniciativa privada - regime em que o seguro, desde a abertura dos portos em 1808, tem sempre funcionado no País, com plena satisfação dos interesses coletivos e do bem estar soci- al.”

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Concomitantemente, Galliez envia memorial ao Presidente da Câma- ra Federal, abordando alguns temas que insistiam em não sair nunca do car- dápio de sustos com que o Governo, fosse ele de civil, ditatorial ou militar, de tempos em tempos resolvia impor às gargantas e ao estômago já tão cas- tigados do mercado. O memorial falava sobre projeto de nacionalização de seguros, de autoria de Juarez Távora, que nessa época tinha circulação e presença bem mais fortes que em tempos de Goulart, Juscelino ou Getúlio. Representava um risco, portanto, o projeto do General que, além de suas virtudes milita- res, aliava um acendrado ímpeto nacionalista e uma inteligência e um co- nhecimento de Brasil muito superiores à de outros adversários já enfrenta- dos pelos defensores da livre iniciativa nos seguros. Juarez Távora, portanto, exigia de seus adversários a utilização de armas e argumentos menos emocionais e mais consistentes. E a “Revista de Seguros” se colocou em linha de frente de combate, reproduzindo um edito- rial que havia sido publicado no “Jornal do Brasil” no dia 30 de agosto, e que havia merecido os aplausos e a recitação, repetida e entusiasmada, dos seguradores contrários à estatização. “Não constitui novidade que o seguro privado vem sendo” - afirma o editorialista - “de longa data, alvo predileto da linha política estatizante. No governo deposto pela Revolução a moda socializante nunca deixou de ame- açar o mercado; algumas ameaças vingaram (quase todas demagógicas), como as companhias estaduais e os Sasses; outras foram superadas com o passar do tempo. Em abril ressurgiu a tranqüilidade, e o mercado segurador respirou com alívio, dadas as afirmações de alto nível sobre o papel reserva- do à iniciativa privada na reconstrução do País. Constituindo-se as empresas de seguros em um dos poucos setores de acumulação obrigatória de capitais, lógico que lhes deveria ser consignado importante papel na evolução eco- nômica do país. Nos Estados Unidos, por exemplo, cerca de 10% dos inves- timentos anuais saem do campo do seguro. Ora, num país carente de capitais

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como o Brasil, faz-se necessária, portanto, a competência do mercado, a solidez, a pujança.” Esse editorial ensaiava uma série quase completa de afagos à Revo- lução. Inventariava as ameaças levantadas contra a livre iniciativa no Go- verno deposto, falava sobre o alívio que sob esse aspecto o movimento revo- lucionário tinha trazido aos empresários e, como se não bastasse, apresenta- va ao Governo um argumento final de dupla face. Falava sobre a vantagem potencial da livre atividade seguradora na formação de poupança para inves- timento e aplicava o fecho de ouro com um exemplo tirado da economia americana. Em seguida a essa argumentação quase emocional, a razão técnica: “Ninguém ignora que, com a elevação dos níveis salariais, o ramo de aci- dentes de trabalho deve atingir, neste exercício, o índice de 33% do total dos prêmios que serão produzidos...Por outro lado, é sabido que a carteira de Automóveis, significando 12% dos ingressos, é uma carteira que vive em função do acidente do trabalho. Só esse ramo pode suportar os grandes de- sencaixes que o seguro de automóvel exige. Pode-se dizer, portanto, que o desaparecimento de uma carteira implicará na extinção da outra. Cerca de 45% da receita das seguradoras brasileiras ficarão, assim, comprometidas, a vingar, é claro, a tese do monopólio.” De certo modo, a resposta aos apelos da Federação já tinha sido an- tecipada no mês de julho, por via transversa, ao ser divulgado que o novo Presidente do DNSP - Departamento Nacional de Seguros Privados, Claudio Luiz Pinto, estaria trabalhando em anteprojeto que pretendia enfeixar todas as diretrizes fundamentais da política oficial dos seguros, e que contava com a colaboração da classe seguradora, à qual fizera pedido de ajuda. Para comentar esse projeto de estrutura legal do mercado, que tinha por autores os juristas Themistocles Brandão Cavalcanti e Theofilo de Aze- redo Santos, fora criada uma comissão integrada pela nata da representação da FNESPC: Odilon de Beauclair, Cláudio Almeida Rossi e Nelson Ghislain Collart. Tecnicamente, apresentavam-se escorados em parecer de José A-

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cioly de Sá, economista do Ministério da Indústria e Comércio, e do Profes- sor de Direito Constitucional Paulino Jacques. Com sua autoridade de catedrático e autor de um dos manuais de Di- reito Constitucional mais lidos e estudados nas universidades brasileiras na época, Paulino Jacques se manifestaria de modo bastante corajoso para o contexto de rescaldo pós-revolucionário: “Se o precedente vingar, teremos rasgado nossa Carta democrática e estabelecido à revelia da soberania popu- lar, que não foi ouvida, um Estado de fato, com embasamento totalitário e que é a negação do Direito, em que deve assentar, consoante a tradição polí- tica brasileira.” Aciolly de Sá condenaria a pretendida criação do CNSP- Conselho Nacional de Seguros Privados, por considerá-la “em inteiro desacordo com as necessidades do sistema segurador, não havendo entre este e o sistema bancário, que serviu de inspiração aos autores do anteprojeto, qualquer se- melhança possível”. Segundo ele, “do ponto de vista econômico o antepro- jeto importa na revogação da lei da oferta e da procura, atentando, além do mais, contra características básicas do Seguro.” Em síntese, a adoção desse projeto, embrião e primeira forma do fu- turo Decreto-lei 73, foi desaconselhada pela Comissão, por achar que não seria bem recebido pela classe. Mas não deixa de reconhecer que “a legisla- ção de seguros em alguns pontos envelheceu e que, em relação a certos pro- blemas da atualidade, é omissa ou inadequada. Cumpre, por isso, submetê-la a revisão, harmonizá-la com a nova realidade nacional.” Nesse ano de transformações, a FNESPC descobre o que poderia ser um novo flanco de agressão aberta à atividade seguradora. Em setembro, Galliez envia memorial ao Ministro da Fazenda sobre o Decreto 54.145, regulamento da Lei 4357, em que se trata do conceito de ativo imobilizado adotado para efeito de correção monetária. “Veio esta Federação a saber, por informações oficiosas, que tam- bém entrara em jogo, na elaboração do preceito regulamentar, a tese de que seriam de propriedade dos segurados as reservas técnicas das companhias de

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seguros” - diz o Presidente da Federação. E em seguida, procurando locali- zar mais topicamente o problema: “A dúvida que gera a controvérsia é ads- trita ao seguro de vida e à capitalização. Nos demais ramos de seguros, a propriedade das reservas técnicas constitui direito sempre exercido, pacifi- camente, pelas companhias seguradoras.” Galliez prossegue dizendo que a Federação “não aceita a tese que contempla os segurados com a propriedade das reservas do seguro de vida”, que tem como característica um risco crescente e a cobertura de um aconte- cimento certo e fatal. “Em todos os demais ramos” - argumenta o Presidente da FNESPC - “o risco é invariável, constante, e a cobertura proporcionada pelo segurador prende-se a um acontecimento incerto, aleatório, que nada tem de fatal, com probabilidade de ocorrer e, também, de não ocorrer. Os contratos são celebrados por prazo certo, e com seu vencimento extingue-se o vínculo obrigacional entre segurador e segurado.” Nos meandros da burocracia, a história costuma ganhar ritmo e rumo inteiramente imprevisíveis. A Segunda Guerra Mundial, por exemplo. Terminada havia quase dez anos na Europa, entre nós a guerra ainda vinha sendo mantida em pouca brasa no borralho aceso do serviço público. E somente no último trimestre de 1964 o Brasil, através do IRB, mediante lei aprovada no Congresso, devolveria CR$ 34 milhões em bens a cinco seguradoras alemãs, cujas cartas-patentes haviam sido cassadas pela legisla- ção de guerra. Mas nem tudo era passado na preocupação dos seguradores. Espora- dicamente, o futuro costumava mostrar sua cara. Como fez na edição de novembro da “Revista de Seguros”, num artigo em que o mercado era aler- tado para uma intensa onda publicitária, que estaria “pondo em evidência o súbito e curioso fenômeno da proliferação, entre nós, de iniciativas na esfera do seguro de saúde.” O redator, alarmado pela “carência que denota em matéria de recur- sos disponíveis para a preservação de razoáveis índices de saúde coletiva”, e achando perigosa “a desordenada multiplicação de organizações que se pro-

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ponham a explorar o seguro de saúde”, termina por se dizer surpreso pelo fato de que “não são empresas seguradoras que estão realizando os seguros em apreço.” Mas esse ano de 1964, um dos mais longos da história brasileira, ainda não tinha acabado. No dia 29 de dezembro é editada a Lei 4594, que regulamentava a profissão de corretor, saudada com aplausos e desconfian- ça. “De longa data a regulamentação do exercício da profissão de corretor de seguros tornou-se uma idéia em constante procura de concretização” - diz a “Revista de Seguros”, sem grande entusiasmo. “Agora, afinal, surgiu a lei específica do corretor de seguros, cujas disposições equacionam em termos de futuro o problema do aprimoramento profissional, cuidando no presente de assegurar melhores condições, inclusive no plano financeiro, ao exercício da atividade do corretor” - acrescenta. E, com reservas, conclui: “Na opinião de muitos, a regulamentação da profissão de corretor de seguros não é um produto natural dos fatos ou da evolução da prática da angariação de negócios, mas uma construção artifici- al que tem a pretensão vã de servir de modelo ao qual a realidade, feita de outro material e dotada de maior força, deve passar a ajustar-se. Uma regu- lamentação, portanto, destinada ao malogro, ao fracasso, vindo apenas enri- quecer o acervo nacional, já bem volumoso, de legislação de letra morta.” A Federação, no Relatório de Atividades apresentado por Galliez, parecia ter um motivo mais forte para se preocupar. A inflação. Eterno ini- migo da atividade seguradora, tinha subido de 55% em 1962 para 81% em 1963, e segundo estimativas devia situar-se em 150% naquele ano de 1964. Além disso, “A essa desordem financeira” - dizia o texto do relatório - “veio juntar-se a crise político-social dos anos de 1962 e 1963, de tudo resultando, nessa fase, o retrocesso econômico. A este, nada melhor espelha do que o declínio, para 1,4% em 1963, da taxa de crescimento do PIB, antes situada ao nível de 5,8% no largo período compreendido entre 1940 e 1961. A pro- dução industrial, que vinha crescendo à razão de 9,7% caiu para 1%, ficando abaixo da expansão demográfica.”

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Preocupações estatísticas à parte, segundo Galliez, nesse ano “o se- guro brasileiro pôde reagir à conjuntura, atravessando-a sem maiores danos e sem perturbações mais profundas, que lhe chegassem a comprometer em forma séria a estrutura econômica”. O futuro também já vinha sendo pensado, nas discussões das linhas gerais de um projeto que dois anos depois (novembro de 1966) seria trans- formado em decreto-lei (nº 73), para regular todas as operações de seguros e resseguros no Brasil. A Federação via nesse anteprojeto de lei “o alargamento da atividade controladora do Estado, servindo-lhe de premissa a idéia de que os proble- mas do seguro possuíam soluções pendentes de uma fiscalização mais vigo- rosa na organização e funcionamento das empresas. Essa é uma perspectiva que resulta de erro de apreciação do analista, posto num ângulo de observa- ção onde dificilmente reconhecerá a realidade dos fatos. Os problemas do seguro derivam do próprio comportamento da economia nacional. Portanto, não podem ser resolvidos por uma terapêutica que ignora essa etiologia.” Colocado em discussão no Conselho de Representantes da Federa- ção, o projeto havia sido rejeitado por cinco votos contra dois.

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Capítulo oito

Liberdade, liberdade: os seguradores atacam o intervencionismo

Realizada em setembro de 1965, no Centro de Convenções do Hotel Glória, no Rio, a 5ª Conferência Brasileira de Seguros Privados anunciava- se como uma reunião histórica. O mercado de seguros, decorrido o primeiro ano da Revolução de 64, continuava a aguardar os bons frutos da prometida reforma institucional do País, e já andava meio desconfiado de que a dose de alguns remédios, com que se pretendia curar males antigos, vinha sendo mais forte que o recomendável, e vinha pondo em risco as mais caras con- quistas da democracia. Entre as mudanças desejadas estava a da economia nacional, que parecia caminhar para uma etapa de estabilização monetária, que podia abrir para as seguradoras uma perspectiva de recuperação das graves perturbações que lhes haviam sido causadas pelo processo inflacionário, uma das justifi- cativas para a Revolução de 1964. Na abertura da Conferência, o Ministro da Indústria e Comércio Da- niel Faraco, num discurso brilhante, que beirava à coragem suicida, reafirma a crença nos valores da livre iniciativa, e condena, com veemência, a radica- lização em matéria econômica. Os empresários, segundo ele, deveriam con- siderar a intervenção do Estado sempre como um mal, e o Governo devia ser menos reservado em relação aos negócios privados e, em determinado mo- mento, dá a impressão de resvalar para o campo tantas vezes minado pela desconfiança dos empresários, ao perguntar com uma tirada de retórica: “Pode-se negar ao Estado o direito de fazer seus próprios seguros?”

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Era uma referência paradoxalmente favorável a tudo aquilo que ele próprio, Daniel Faraco, parecia condenar. Quase que em resposta, o Presidente da FNESPC, Vicente Galliez, de modo contundente golpeia o intervencionismo do Estado no domínio econômico. “Pode surpreender que, em pleno desenvolvimento e consolida- ção de uma revolução democrática, a ameaça de estatização continue sendo uma espada de Dâmocles sobre as nossas cabeças. Isso é surpreendente, mas é verdadeiro, em que pese a notória e sempre proclamada linha política do atual Governo em matéria econômica, cuja ação programática se inspira no primado da iniciativa privada!.” - ele diz, com uma firmeza que deve ter feito gelar muita espinha presente à Conferência. “O intervencionismo, porém, não é um fenômeno que esteja restrito ao setor de acidentes do trabalho” - prossegue, já começando a dar nome aos bois dessa tão detestada falange estatal. “Nos últimos anos evoluiu a largos passos em outras áreas da atividade seguradora. Além dos órgãos autárqui- cos que buscaram ingresso nessa área, surgiu também como fórmula nova de intervencionismo no campo econômico a idéia da criação de falsas socie- dades anônimas, sobre o controle acionário do Poder Público. Por fim, hou- ve o caso mais recente do BNH, consubstanciando a presença do Estado também na esfera de corretagem de seguros”. Nesse discurso histórico, o Presidente da FNESPC parecia mesmo iluminado pela coragem cívica ao declarar que, em “todas essas formas de intervenção, o que se identifica na ação estatal é tão somente o propósito ou o pretexto de fazer do exercício da atividade econômica uma fonte de receita pública, um manancial de recursos para o financiamento de obras e serviços apresentados como de interesse social. Nada mais falso, entretanto, que esse conceito de intervenção estatal. Nada mais distorsivo dos termos em que os preceitos constitucionais e a melhor doutrina democrática colocam a questão da presença do Estado no domínio econômico.” Na segunda sessão plenária, dois expoentes do mercado, João José de Sousa Mendes, Delegado substituto do IRB, e Luiz Mendonça, apresen-

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tariam uma “Análise do Mercado Segurador Brasileiro 1940-1963” que se constituiria num dos pontos altos dos trabalhos da Conferência. Depois de historiar o comportamento de Ramos Elementares, Aci- dentes do Trabalho e Vida, considerados do ponto de vista da gestão de ris- co, fazem uma projeção de tendências para o quadriênio 64-67, e apresen- tam sugestões: reduzir o custo de aquisição do seguro em 25%, reduzir a sinistralidade para um nível de 85%, promover um incremento real da arre- cadação em 2,75%, ajustar a cobrança de todas as apólices a um prazo má- ximo de 45 dias, melhorar o nível da renda proporcionada por investimen- tos, cujo nível ideal para as condições inflacionárias da época seria de 9,34%. E concluem com a recomendação: “para alcançar essas linhas de o- timização, deve o mercado empreender um sério e ingente esforço. Um es- forço que requer planejamento, mas que sobretudo exige uma intensa e ex- tensa campanha de motivação, capaz de mobilizar todas as forças do merca- do para uma ação conjugada e harmônica com vistas à realização dos objeti- vos comuns que serão visados”. Sem esperar para saber até que ponto a força dessa conclamação de Galliez teria repercutido entre os seguradores ou ecoado em Brasília, em janeiro de 1966 a FNESPC dirige ao Governo um apelo direto. Em memori- al encaminhado ao Conselho Monetário Nacional, comenta a crescente e- missão de letras de câmbio em circulação no mercado, que se utiliza desse título de crédito por ressentir “uma acentuada falta de capital de giro para um adequado financiamento do volume atual de suas operações”. Pede, en- tão, que o CMN autorize que as empresas de capitalização e seguradoras possam valer-se do que é previsto no Artigo 76 da Lei 4728/65, e utilizem parte de suas reservas técnicas para lastro de letras de câmbio, ações de so- ciedades anônimas de capital aberto, quotas de fundos em condomínio em títulos ou valores mobiliários. Esse pedido tem endereço certo: permitir o deslocamento de parte das reservas até então recolhidas ao BNDE, e canalizadas para investimen-

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tos compulsoriamente dirigidos, cujos resultados vinham sendo historica- mente negativos para as seguradoras e empresas de capitalização. Embora não se possa falar em um atendimento direto ao pleito da Federação, dois meses depois, em março, o recém-criado Banco Nacional de Habitação prepara projeto de lei que parecia derivar - ainda a favor do Go- verno - da proposta das seguradoras relacionada com as Letras de Câmbio. Pelo projeto do BNH, as Companhias poderiam desvincular parte dos inves- timentos compulsórios de suas reservas nos programas do BNDE, para apli- cação em letras imobiliárias que se destinariam a financiar um outro tipo de mercado, nessa época entusiasticamente turbinado pelo Governo, para a construção de moradias. O mercado vê com expectativa e bons olhos essa proposta, e no dia 12 de março entra em consórcio com o BNH, para atuação nos programas habitacionais. Cria, então, um sistema de seguro de dupla garantia, tanto para a quitação da dívida assumida no financiamento de moradia própria, em caso de morte ou invalidez do devedor, como para indenização de danos resultantes de riscos aos imóveis. Galliez, Presidente da Federação, aplaude a iniciativa. “Além do suporte financeiro para o Plano Habitacional do Governo, o Seguro é tam- bém um fator de tranqüilidade para o trabalhador que adquire casa própria, pois o liberta inclusive do problema de legar à família, não o imóvel, mas a dívida do financiamento respectivo” - ele afirma, em artigo publicado na “Revista de Seguros”. E acrescenta que o alto sentido social dessa iniciativa favorecerá não apenas o Programa Habitacional do Governo, mas a própria “disseminação do seguro entre as camadas mais favorecidas da população brasileira.” Aos poucos, o país ia tentando aprender a conviver com os novos tempos, e alternando momentos de expectativa, como a oficialização da candidatura de Costa e Silva à Presidência, anunciada no dia 4 de janeiro, com os sustos provocados pela promulgação do Ato Institucional nº3, que estabelecia eleições indiretas para governadores e vices, e momentos em que

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o povo inteiro cantava nos festivais de música. O da Excelsior, onde “Arras- tão” consagrou a parceria iluminada de Vinicius de Morais e . O da Record, em que o lirismo já engajado de “A banda” de divide o prêmio com a “Disparada” de Theo de Barros e Geraldo Vandré. E num diapasão menos politizado e mais ingênuo, a Jovem Guarda de Erasmo e Roberto Carlos movimenta as matinês musicais do iê-iê-iê. Havia um cheiro de modernidade no ar. No início do ano, com aplauso, discurso, e muita fotografia, o IRB havia inaugurado um “computador eletrônico”, IBM 1401, modelo B.03. Seja lá o que esse apelido cibernético signifique para os dias de hoje, na época foi saudado como a transformação que faltava “para o IRB continuar a fielmente cumprir seus superiores objetivos”. Sua instalação, concluída em prazo recorde de sete meses, viria substituir “parte do seu equipamento con- vencional pelo conjunto eletrônico que acaba de ser inaugurado, o IRB está em condições de ampliar os serviços que presta ao mercado segurador brasi- leiro, especialmente no campo da informação estatística” - segundo noticiá- rio da época. Mas havia também um cheiro de truculência no ar. Em maio, a Federação reclama pública e destemidamente das cassa- ções de autorização para funcionamento do País de duas seguradoras tradi- cionais, a Eqüitativa dos Estados Unidos do Brasil Sociedade Anônima de Seguros Gerais, e a Segurança Industrial Companhia Nacional de Seguros. Cancelados os contratos celebrados por elas, determinou-se que os prêmios deveriam ser restituídos. A “Revista de Seguros” comenta em editorial a atitude do Presidente da FNESPC, que minimizara as conseqüências das cassações, que “não de- nunciavam a existência de uma crise no mercado, representando apenas a ocorrência de casos isolados”. Mas lembra, em tom de prudência, que “se a situação não é realmente de crise, nem por isso devem os seguradores des- cuidar-se, continuando fagueiros no ritmo crescente de uma concorrência que mais adiante pode oferecer em bandejas as cabeças de mais alguns. É

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tempo, diríamos, de por as barbas de molho, quando as de alguns já arde- ram.” É nesse clima de apreensão, manifestado nas cores alarmistas de edi- toriais como esse, que fala de cabeças cortadas e barbas em chamas que, em julho, o mercado recebe, com suspeita bem avisada, novas notícias sobre o projeto de lei do futuro DL-73/66, que viria a se tornar regulamento das ope- rações de seguros e resseguros no Brasil. Em editorial, a “Revista de Segu- ros” dá o tom exato desse pé atrás com que o mercado espera o famoso de- creto-lei, nessa época já em estado avançado de gestação: “Acreditamos que os problemas fundamentais da atividade segura- dora nacional não se resolvam através de uma simples mudança de sistema legal. Sabemos que na legislação vigente alguns dispositivos concorrem, na verdade, para tolher ou dificultar a evolução desembaraçada das operações de mercado. São dessa natureza, por exemplo, os dispositivos que estabele- cem procedimentos inculcados ou presos a valores monetários fixos, todos eles fartamente superados pela inflação” - escreve o editorialista. Desconfiado da eficácia da prometida reforma por decreto, aponta o que considera mais técnico e mais aceitável para essa mudança institucional do mercado: “Parece-nos que os problemas mais sérios não decorrem de falhas ou deficiências da estrutura legal em vigor; resultam, isto sim, de transgressões às leis econômicas, que não fazem parte do direito positivo elaborado pelo homem. Se o nosso ponto de vista, que é também o de muitos líderes e téc- nicos da classe seguradora, é realmente correto, então a reforma de que ca- rece o mercado de seguros não depende dos juristas, mas dos administrado- res que contem com boa assessoria econômica.” No dia 8 de setembro de 1966, quando é editado o Decreto 59.195, que instituiu a obrigatoriedade da cobrança bancária dos prêmios de segu- ros, o mercado finalmente teve um motivo para esquecer momentaneamente suas desconfianças e comemorar.

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O arcaico sistema de cobrança, que em linguagem jurídica é sofisti- cadamente chamado de “quérable”, isto é, buscável, na linguagem dos te- soureiros das seguradoras significava mandar um cobrador à casa do segu- rado, para a tentativa de buscar e receber um prêmio na data que a este, de- vedor, bem lhe aprouvesse pagar. Ruim para as seguradoras, cujo fluxo de caixa ficava na dependência dos humores do devedor e da eficiência de quem lhe batia à porta para cobrar, esse sistema tornava o processamento da cobrança oneroso e imprevisível. Adotada a cobrança bancária dos prêmios, o mercado evoluía para o sistema que os advogados chamam de “portable”, galicismo que os tesourei- ros preferiam ao “quérable”, pois significava que, daí por diante caberia ao devedor “procurar” a dívida, em agência de banco escolhida pela segurado- ra, e pagá-la, dentro de um prazo máximo de trinta dias da emissão da apóli- ce. Cai o custo da cobrança, o processamento é mais fácil e racional, e o ritmo do encaixe dos prêmios, além de previsível, mais estável Até então, as seguradoras sofriam um duplo trauma na cobrança dos prêmios: o demorado recebimento, feito através de notas promissórias emi- tidas pelo segurado ou pelo corretor, e a obrigação do imediato pagamento de sinistros, feito em moeda. Esse sistema, de um lado fazia com que as seguradoras nunca tivessem dinheiro vivo em seus cofres, mas títulos de crédito de liquidação nem sempre garantida e certa. De outro, a obrigação de pagar à vista os sinistros, o que dificultava a vida das empresas, que não tinham liquidez. Durante um congresso, realizado em Curitiba, os seguradores tinham pensado muito sobre o assunto, e tinham aprovado um modelo de letra de câmbio que se prestaria ao pagamento dos prêmios. Levaram a novidade ao Ministro da Fazenda, Octávio Gouveia de Bulhões, e foram indagados por ele, ao final de uma longa conversa: “Por que, em lugar de se criar um novo título de crédito, que iria apenas substituir as promissórias, mas não criaria liquidez para o mercado, vocês não passam a fazer a cobrança dos prêmios por via bancária?”

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Essa teria sido, pelo menos oficialmente, a origem o Decreto 59.195, que criou a cobrança bancária para os seguros. Na verdade, entretanto, essa idéia nascera no gabinete de José Luiz de Magalhães Lins, na Atlântica Bo- avista, e fora levada ao conhecimento da 5ª Conferência Brasileira de Segu- ros Privados e Capitalização, realizada no Rio, no ano anterior. Oriundo do Banco Nacional, Magalhães Lins ficara assustado ao se transferir para o lado dos seguradores, e assumir seu cargo na Atlântica. Por isso, depois de discutir sua idéia, tecnicamente, com Claudio Almeida Rossi, diretor- executivo da Boa Vista, recebera o aval de Thales José de Campos, Presi- dente do IRB, para levar adiante e apresentar à Conferência a proposta da cobrança bancária. Assim, com as bênçãos do IRB, a cautelosa abonação de Claudio Rossi e o desembaraço de José Luis de Magalhães Lins, a idéia salvadora da cobrança bancária ganhava corpo, e o passo a seguir, a parceria sempre guerreira da FNESPC. Na Federação, cujo Presidente, Vicente Galliez, havia trabalhado pe- la implantação do novo sistema, entendeu-se que a transição de um regime de cobrança para outro implicaria em “radical modificação de rotinas tradi- cionais” e que certamente sobreviriam dificuldades. Mas, ao se manifestar através da “Revista de Seguros”, reconheceu que o processo de cobrança bancária poderia ser uma “eficiente arma de defesa contra inflações”(sic), e que sua principal vantagem “é a solução de um grave problema financeiro, criado pela contínua redução do ritmo de encaixe dos prêmios.” Com a co- brança imediatizada através dos bancos, a cobertura de riscos ficava suspen- sa, e passava a depender do prévio pagamento dos prêmios da apólice. As companhias, que viviam às voltas com dificuldades de caixa, pas- saram a ter liquidez. Esse bom acontecimento ajudou a criar uma expectativa mais favo- rável à chegada do já prometido, elaborado e badalado Decreto-Lei 73, e fez mudar as tonalidades sempre cáusticas e desconfiadas da imprensa especia- lizada na época.

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A própria “Revista de Seguros”, barômetro com que se podia medir o pensamento oficial do mercado com margem de erro que em determinados momentos se aproximava do zero, já admite as virtudes da reforma do sis- tema nacional de seguros prometida e esperada para dezembro. Em matéria publicada na edição de outubro, aponta vantagens no famoso decreto-lei e sua superioridade sobre a legislação vigente: “Embora ainda insepulto, o DL 2063 entrou para o nosso obituário legislativo” - diz, numa referência ao já ineficaz regulamento da atividade seguradora no Brasil. “Agonizante há alguns anos, aquele diploma legal padecia de grave enfermidade: anacronite. Surge agora em seu lugar, com o vigor e o ímpeto peculiares à vida que desabrocha, o DL 73. Obra inspirada no alto objetivo de promover a expansão do seguro privado, toma a livre empresa como sustentáculo dessa expansão “ - acrescenta. E com renovado entusiasmo, a revista deixa de lado as velhas des- confianças para ver na promessa de reforma o atendimento a duas aspira- ções do mercado: “Essa diretriz fundamental, extraída de uma concepção econômica de índole liberal, explica e justifica, entre outras, duas vigas-mestras do no- vo regime jurídico: a privatização do mercado, onde somente as pessoas jurídicas de direito privado têm vez, e a enfatização do embasamento ético da atividade seguradora.” Para concluir, tempera com um grão de sal o capítulo das responsa- bilidades das seguradoras em face do prometido regulamento, que ao “dar instrumentos de expansão ao mercado e condições de fortalecimento à inici- ativa privada, situa em níveis mais altos a responsabilidade empresarial, tornando-se severo no regime repressivo adotado para os desvios de nature- za ética. Começa agora uma vida nova para o seguro brasileiro. Que o regi- me estabelecido possa alcançar seus objetivos, esse é o desejo, sem dúvida, da classe seguradora.” Á medida em que se caminha para a edição do famoso Decreto-lei, que é do dia 21 de novembro de 1966, os seguradores já começam a admiti-

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lo como “estatuto voltado para o desenvolvimento do mercado.” E querem ver nele o princípio do fim de uma espécie de mercado paralelo, onde vi- nham proliferando nos últimos anos iniciativas de entidades do próprio setor público. Um mercado que não chegava a ser negro ou ilegal, mas que se colocava desembaraçadamente à margem das normas e restrições impostas às seguradoras de direito privado.” Os sempre cautelosos comentadores da época insistem na reafirma- ção de um ponto, que parece lançar uma pá de cal à sepultura onde, espe- ram, devem a partir daí jazer no sossego da terra os fantasmas da estatização e dos avanços institucionais do Estado no domínio econômico. Para eles, o DL-73 teria vindo para organizar o mercado segurador em bases essencial- mente privatistas, impedindo que se realizasse qualquer tipo de seguro fora dessa órbita operacional, aberta a única exceção para a caridade. As institui- ções de beneficência e socorro mútuo. O DL-73 viria desatar, entre outros nós, que a critério dos segurado- res amarravam sua atividade, a questão das reservas técnicas. A partir daí, passavam a ser retidas pelas próprias seguradoras, e sua aplicação se regula- va por diretrizes baixadas pelo Conselho Monetário Nacional. Por essa vir- tude, e outras que se revelariam com o passar dos anos, o Decreto-Lei 73, antes mesmo de ser editado, foi aos poucos superando as desconfianças e receios com que inicialmente havia sido visto. Ainda assim, num governo forte e centralizador, como o da época e como foram todos os governos mi- litares que se seguiram à revolução de 1964, continuava a parecer ilusionis- mo falar em organização privatista do mercado. A reforma da previdência, ocorrida em 1966 com a unificação de to- dos os Institutos de Aposentadoria e Pensões - IAPs, revela as verdadeiras intenções do Estado, que preparava o advento de uma previdência única. Provisoriamente, a estatização do Seguro de Acidente do Trabalho só não acontecia porque, maior que as desconfianças do Governo de Castelo Bran- co na livre atividade empresarial eram os rancores dos militares, no Poder, contra o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). E a insistência dos políticos

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desse partido, perseguidos pela Revolução, em estatizar o Seguro de Aci- dentes do Trabalho, era monitorada pelos empresários que, confiando no mau humor do Governo em relação ao PTB, tinham recebido do Presidente da República a promessa de que nada seria modificado. De fato, no Governo de Castelo, o Seguro de Acidente do Trabalho voltaria para as carteiras da iniciativa privada, através do Decreto 293, de 28 de fevereiro de 1967. Em seu último dia de governo, ele decidira dar esse presente aos seguradores. Presente puramente virtual, pois o Decreto 293 jamais seria regula- mentado. No Governo Costa e Silva um novo projeto seria elaborado, que transformaria a virtualidade dessa concessão em verdadeiro presente de gre- go. Pela futura Lei 5.136, de 14 de setembro de 1967, o seguro seria trazido de volta ao colo do Estado, e criaria um auxílio-acidente nas situações em que o trabalhador perdia mais de 25% da capacidade de trabalho. Aos em- presários cabia apenas pagar a conta: os prêmios seriam bancados pela inici- ativa privada. De qualquer modo, por acreditar nas boas intenções do Governo de Castelo que, pelo menos provisoriamente, manifestava essa ilusória intenção de retirar sua cara ostensiva dos negócios com seguros, o mercado retribuiu com uma demonstração de boa-vontade. Fez ver ao Governo que os seguros obrigatórios, criados pelo DL 73, podiam ser, efetivamente, instrumento de desenvolvimento econômico nacional. Que a expansão das receitas de prê- mios das seguradoras, correlacionada à expansão do mercado desses seguros obrigatórios, poderia levar a uma crescente acumulação de reservas técnicas, canalizáveis para o mercado de capitais e o investimento em setores produ- tivos. A sagaz expectativa dos seguradores era que o Governo, e não ape- nas o mercado, entendesse as coisas nesses termos. E assim, mais um fan- tasma ia poder abandonar o mundo dos vivos e voltar ao pó e ao sossego das sepulturas: a velha questão das reservas canalizadas para investimentos poli- ticamente escolhidos, desde os tempos de Getúlio, pelo BNDE.

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Por todos esses bons fluidos, que pareciam assegurar ao mercado di- as sempre melhores, a solenidade ocorrida em 29 de dezembro de 1966, para Instalação do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) e Superin- tendência de Seguros Privados (Susep), criados pelo Dl-73, foi ponteada por discursos abundantemente adjetivados. O Ministro da Indústria e Comércio, Paulo Egydio Martins, ao dar posse a Raul de Sousa Silveira, historicamente o primeiro superintendente da Susep, falou em modernização e dinamização do mercado. E sobre a cri- ação do CNSP, enfatizou que “uma das causas do processo de enfraqueci- mento do mercado residia em sua sub-divisão em áreas distintas e autôno- mas, cada qual sujeita a regime e comando próprios. A essa descoordenação acrescentava-se, para agravar quadro tão desfavorável, a dispersão desarmo- niosa das leis e regulamentos e das fontes de decisão. Integrando todas as operações de seguros privados em um só sistema, a nova lei dá ao mercado a unidade indispensável à sua boa ordenação e, portanto, essencial a seu progresso”. Ângelo Cerne, que em novembro retornara à Presidência da FNESPC, em substituição a Galliez, não fez por menos. Ressaltou que o Dl- 73 consagrava “uma das maiores aspirações dos seguradores privados, qual seja o de atualizar as leis de seguros e prover os instrumentos adequados para a expansão da atividade do seguro privado no país”. E pragmaticamen- te lembrou a modernidade da lei, que permitia “o seguro com correção mo- netária, abrindo horizontes para o estudo da contratação de garantias contra riscos catastróficos, que sempre têm sido objeto de preocupações por parte daqueles que se interessam pelo estudo do seguro.” Para não dizer que só se falou de apreensão e flores em 1966, e para azedar ainda mais os humores de grande parte do mercado, no dia 26 de outubro o Governo baixaria o Decreto 59.417, que mudaria as regras de con- tratação de seguros pelos órgãos do Poder Público, fossem da administração direta ou indireta, aí estando incluídas as autarquias e sociedades de econo- mia mista.

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Supostamente destinado a acabar com a corrupção na negociação dos seguros das estatais, esse decreto criaria o sistema de contratação por meio de sorteios ou concorrência pública, entre as seguradoras nacionais autori- zadas a operar no País, o que implicava, de saída, no afastamento das em- presas estrangeiras desse mercado. Instituído pelo Decreto 59.417, de 26 de outubro de 1966, o sistema de sorteio aproveitava a onda revanchista de alguns segmentos da sociedade brasileira nesses tempos bicudos, e foi uma espécie de vingança de grande parte do mercado contra a corretora Ajax, de Celso da Rocha Miranda. Consistia em processo artificial de escolha de seguradora, a ser feita a cada dois anos, para fazer os seguros dos bens estatais. Por não obedecer a critérios técnicos, mas ao sorteio de bolinhas, o sistema revelou-se um de- sastre. Deixava de aproveitar as vantagens da livre competição, e já que a sorte nem sempre favorecia às melhores seguradoras, recaindo a escolha em companhias desestruturadas para o gerenciamento de grandes riscos, a con- tratação de seguros passou a ser feita em condições técnicas inferiores ao que seria de se desejar para o Estado. Os preços podiam ser formados no puro azar. Criticado por uma boa parte dos empresários, o sistema de sorteio contabiliza, a favor das razões para que foi criado, o único fato de ter fron- talmente atingido Celso da Rocha Miranda, amigo de Juscelino Kubits- check, um dos alvos prediletos da temporada de caça às bruxas que vinha sendo patrocinada pelo governo militar, com os aplausos desconfiados de alguns setores da sociedade brasileira.

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Capítulo nove

Com a cara do Brasil: Os milagres da economia em tempos de ditadura

A década de sessenta havia terminado em choro, MPB e ranger de algemas. O Governo de Costa e Silva, iniciado no dia 15 de março de 1967, sob o signo de uma nova constituição em que a debilidade dos direitos e garantias individuais submetia-se à vontade incontrastável de um Estado forte, enfrentaria, logo nas primeiras semanas, a reação armada. Apesar da mordaça imposta ao País por uma nova Lei de Imprensa, no início de abril espalha-se a notícia de que oito guerrilheiros do MR8- Movimento Revolu- cionário 8 de Outubro haviam sido presos na Serra do Caparaó. À dureza crescente do regime, a mocidade brasileira responde com a firme suavidade do talento de compositores e intérpretes, revelados no Ter- ceiro Festival de Música da Record, vencido por com o “Ponteio”, de Edu Lobo e José Carlos Capinam. , em segundo lugar com “Domingo no parque”, acrescenta um sotaque novo e baianamen- te palavroso à MPB. Chico Buarque, optando por uma linha de contestação política aberta, fica em terceiro com “Roda Viva”. E o enciclopédico e des- concertante dá a senha de paz e disponibilidade a toda uma geração tropicalista, com o quarto lugar de “Alegria, Alegria”. Mas em meio a tanta música, a tragédia espreitava a passagem da história na Ponta do Calabouço, onde o estudante Edson Luis seria morto por forças da repressão.

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Em resposta, dois dias depois, a 30 de março de 1968, manifestações estudantis agitam o Brasil, pedindo a queda da ditadura que aos poucos vai mostrando sua cara nada democrática. Livros e jornais são apreendidos com base na feroz Portaria 177, baixada pelo Presidente Costa e Silva. Em abril, 68 municípios são considerados área de segurança nacional, decretando-se o fim das eleições diretas para seus prefeitos. Em junho, no Rio, intelectuais, padres e personalidades do mundo político marcham com a população na Passeata dos Cem Mil. Reagindo, o Governo proíbe manifestações de rua em todo o País. Os bispos protestam. Márcio Moreira Alves, Deputado Federal, bate firme em um discurso em que responsabiliza os militares pela violência cometida contra os estudantes. Em setembro é aprovado o texto de uma reforma uni- versitária, que fecha os diretórios acadêmicos, proíbe as manifestações polí- ticas nas escolas, e determina a prisão de 1240 estudantes, reunidos em Ibi- úna, para o 30º Congresso da UNE. Essa maré de repressão, resistência e mal-estar generalizado espraia- se por todos os setores da sociedade brasileira, e de certo modo chega à FNESPC, onde Ângelo Cerne, eleito para o triênio 1966-1968, de repente interrompe seu mandato em agosto de 1967. As razões, que jamais seriam explicitadas em pronunciamento ofici- al, residiriam na indisfarçável resistência de Cerne, e com ele a comunidade de corretores, à instituição da cobrança bancária, contra a qual jamais deixa- ra de se manifestar. Há também quem possa colocar, na raiz dessa atitude, a mal digerida perseguição aberta contra a Companhia Internacional de Segu- ros, de que Cerne era Vice-Presidente Executivo, e que vinha sendo tritura- da pelo Governo através de uma legislação inteiramente ad hominem. Isto é, voltada para atingir pessoalmente os interesses de Celso da Rocha Miranda, controlador dessa companhia, e que fora transformado pelo Governo de Castelo em bode expiatório de rancores e mágoas revanchistas contra alia- dos históricos de Juscelino Kubitscheck. Entre esses, a fidelidade resistente de Rocha Miranda.

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Um dos modos de atingi-lo havia sido o malfadado Decreto 59.417, de 26 de outubro de 1966, que criara o sistema de sorteio na contratação dos seguros do Governo. Cerne, com melancólica elegância, deixaria transparecer sua tristeza e seu desapontamento pelos rumos da interferência do Governo Revolucio- nário na atividade seguradora, ao discursar em almoço de homenagem que lhe foi prestada pela diretoria da FNESPC. Dizendo-se surpreso e emocio- nado com a atitude corajosa dos companheiros presentes, disse que vaido- samente recebia essa manifestação que, “apesar de ser expressão de amiza- de, supera a muitas, porque não é prestada numa hora das mais felizes da minha carreira de segurador...” O texto desse discurso é eloqüentemente auto-explicativo. Para sucedê-lo tomou posse, no mês de setembro de 1967, o até en- tão vice-Presidente Humberto Roncarati. Dirigiu-se aos seguradores falando sobre a “consciência das responsabilidades na delicada conjuntura”, e mani- festou sua confiança na instituição “cujos destinos estarão preservados pela força na unidade da classe”. Falou em intolerância, que além de certos limi- tes “cria prevenções nos espíritos e fomenta a dissociação”. Fez uma defesa aberta da livre iniciativa, com o argumento de que “a experiência não pro- vou que a intervenção do Estado seja mais responsável socialmente, e do ponto de vista humano mais satisfatório”. A contrário, disse que a “iniciati- va pública torna mais gravosos os custos sociais e mais onerosos os custos econômicos.” E deu início a uma gestão que seria marcada, logo de saída, por um pleito encaminhado pela FNESPC ao Conselho Nacional de Seguros Priva- dos, no sentido de que os capitais das seguradoras, traduzidos monetaria- mente em valores que a inflação tornava inexpressivos, deviam ser atualiza- dos por decreto. Com tanta bola fora nesse jogo de intervenção crescente do Estado no domínio econômico, já quase no apagar das luzes do ano de 1967 os se- guradores tiveram pelo menos um motivo para acreditar em dias melhores.

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O Decreto 61.867, de 7 de dezembro, determinava que a partir de 1º de ja- neiro de 1968 nenhum veículo poderia ser licenciado, sem que ficasse com- provada a efetivação de um seguro obrigatório de responsabilidade civil. Luiz Mendonça, diretor de redação da “Revista de Seguros”, saúda essa conquista do mercado com um editorial cuja leitura faz acreditar que se vivia no melhor dos mundos possíveis. Otimisticamente ele diz que “a im- plantação desse seguro obrigatório veio encontrar o mercado segurador nu- ma fase de saudáveis transformações, na raiz das quais se encontra a trans- formação fundamental, que é a de mentalidade”. Sua sempre bem informada expectativa devia abarcar a esperança de que outras onze modalidades de seguros obrigatórios, criados pelo mesmo decreto, deviam trazer “uma pro- gressiva renovação de métodos na conquista de clientes e na conquista de mercados”. Esse otimismo esclarecido de Mendonça ajudava a tocar o barco da atividade seguradora no mar revolto da vida nacional, encapelado por ondas de ameaças às instituições cada vez menos democráticas. E é nesse contexto que no dia 28 de março de 1968, Carlos Washington Vaz de Mello assume a Presidência da Federação, para o triênio que se estenderia até 1971. Ao transmitir o cargo, Humberto Roncarati analisa em discurso a “excepcional conjuntura” vivida pelo seguro privado no Brasil nesse ano. Fala sobre “o mais sensível e mais agudo episódio já registrado em relató- rios da Federação - o da integração do seguro de acidentes do trabalho na Previdência Social”. Lembra a importância dos seguros obrigatórios, inicia- tiva que “dá ao mercado segurador do País conseqüentes condições para imprimir um ulterior desenvolvimento a suas operações”. Faz a apologia do Decreto-Lei 73, que se constituiria em “ratificação solene de uma política governamental nacional visando explicitamente a fortalecer a economia do seguro privado no País”. E como pede a praxe e a educação, conclui com um pedido de “incondicional apoio moral e material” à nova diretoria. Vaz de Mello, historiando os avanços e recuos históricos da ativida- de seguradora nos quarenta anos antecedentes, fala das potencialidades do

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mercado, de acordo com estudo feito Fundação Getúlio Vargas: enquanto o volume de prêmios dos ramos elementares no Brasil oscila “em torno de 0,6% do PIB e os seguros de vida tendem para 0,3% da Renda Pessoal Dis- ponível”, em outros países analisados essas taxas ascendiam a 4,1% e 3%. Fala também sobre as possibilidades do seguro obrigatório de responsabili- dade civil dos proprietários de veículos automotores, e de sua natureza emi- nentemente privada. E conclui, conclamando seguradoras e órgãos de classe à coesão em torno de objetivos comuns. Esses objetivos a que se referia, e em torno dos quais pedia a atenção dos seguradores, seriam discutidos pelas seguradoras durante a 6ª Conferên- cia Brasileira de Seguros Privados e Capitalização, realizada em Curitiba, entre 16 e 20 de setembro de 1968. Vaz de Mello, na sessão solene de insta- lação, fala sobre a “substancial transformação” determinada pelas “próprias circunstâncias e imposições da conjuntura vivida pelo mercado segurador”. Enfatiza a “necessidade de uma nova estruturação do sistema sindical do seguro brasileiro”. E lembra que, na “elaboração da nova política financeira do seguro privado” a Federação teve que agir, “para fazer-se ouvir e para fazer com que fosse ouvida a classe seguradora.” Nessa 6ª Conferência, organizada e presidida pelo Presidente do Sindicato das Empresas de Seguros Privados e de Capitalização do Paraná, Mário José Gonzaga Petrelli, os trabalhos de relações públicas seriam diri- gidos por um jovem de 26 anos, representante da seguradora paranaense União do Comércio e Indústria, João Elisio Ferraz de Campos. Diante de uma platéia que até então representava um recorde absoluto de inscrições à Conferência, e registrando pela primeira vez a presença de delegados da Câmara e do Senado Federais, discutiram-se alguns temas de modernidade: o seguro saúde (que nascia do Dl-73), os seguros obrigatórios, os seguros de crédito e outros produtos tradicionais. Mas um dos pontos cimeiros da Conferência estaria marcado para a 5ª Sessão Plenária, realizada no dia 19 de setembro, e na qual o sociológo e ex-Governador do Paraná Bento Munhoz da Rocha Netto, autor de um clás-

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sico de interpretação do Brasil (“A presença do Brasil”, publicado pela Edi- tora José Olympio), daria uma serena e brilhante demonstração de seu ta- lento para as grandes sínteses. Retrataria o facies sociológico do Estado do Paraná, desde a geografia de um meio físico “que não é o convencional do Brasil”, e onde a praia, a palmeira e o calor, se modificam para o planalto, o pinheiro, o frio, o que determinaria, segundo ele, o aparecimento de um tipo humano que apresenta forte propensão a assimilar e incorporar o “que cultu- ralmente lhe é estranho, em seu modo de agir”. Segundo Munhoz da Rocha, essa propensão estaria na raiz do “estí- mulo ao pioneirismo, do homem que descruza os braços mostrando como a capacidade de assimilação cultural e comportamental está presente na evo- lução do povo paranaense, determinando sua propensão ao trabalho. Assim, abre para si e para a comunidade de que faça parte as possibilidades do de- senvolvimento econômico, que “depende de um comportamento interior, de um desejo, de uma ambição de melhorar de nível de vida, de uma ambição de transmitir herança melhor aos filhos, de dar, por exemplo - e isso é co- mum - aos filhos uma educação que não teve”. Em abonação ao que afirma, cita o grande número de professores ca- tedráticos da Universidade do Paraná, filhos e netos de operários, “o que provavelmente daria ao Estado a maior taxa de mobilidade vertical social no Brasil “ - conclui Bento Munhoz. Mobilidade, visibilidade e voz coletiva eram exatamente alguns dos assuntos expostos na vitrine da política brasileira naquele fim de ano de 1968, e em especial a partir de 13 de dezembro de 1968, quando a Câmara Federal, por diferença de 75 votos, rejeita pedido de autorização para pro- cessar o Deputado Moreira Alves. As forças armadas entram de prontidão, e Costa e Silva decreta o Ato Institucional nº 5, sob cuja sombra o país assiste a mais um capítulo da novela de imposição de silêncio e caça às bruxas. No Relatório de Atividades desse ano, Vaz de Mello registra a “im- portante conquista da política do Governo Federal que foi a acentuada desa- celeração do ritmo inflacionário”, e comemora a arrecadação global do mer-

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cado segurador, NCR$ 900 milhões, contra NCR$ 551 milhões no ano ante- rior. Parte substancial desse crescimento, entretanto, é atribuída por ele ao início das operações com o seguro obrigatório de responsabilidade civil dos proprietários de veículos, não refletindo “a evolução das carteiras anterior- mente exploradas”. Internamente, destacou a criação de uma Assessoria Geral que se desdobrava em assessorias especializadas, e que se constituiria a partir daí em órgão de planejamento e coordenação geral da Política do Seguro Privado em seus aspectos técnicos. Vaz de Mello mostrar-se-ia sensível à necessidade dessa reestrutura- ção interna da Federação e a ampliaria em 1969. Reduziria o número de Comissões Técnicas e sua composição. Externamente, preocupado com a imagem da atividade seguradora junto à opinião pública, promoveria a cria- ção de uma comissão Permanente de Comunicação Social, “em condições de eficiência para promover o amplo e perfeito entendimento com o públi- co.” Conseqüência dessa reformulação procedida por ele é a mudança do próprio nome da Federação: no mês de abril de 1969, pela primeira vez a entidade passa a ser conhecida pela sigla que a identifica até hoje: FENA- SEG. Essa troca de nome fazia parte da preocupação geral de se comunicar bem com o mercado. E o esforço da Fenaseg, em se mostrar claramente e dar cada vez mais transparência e presença a suas atividades, era tanto mais justificado quando o País vivia um tempo de mudanças bruscas de tempera- tura política e seqüelas institucionais. Em maio deu início à publicação mensal do “Boletim Informativo”, idealizado como instrumento de comunicação da rede sindical com as segu- radoras, e destinado a “informar e esclarecer a classe seguradora sobre todas as matérias de seu interesse”. Quanto à forma, o Boletim devia prestar-se à organização em arquivo, útil e prático, distribuído por seções especializadas que permitissem a facilitação da pesquisa. Nos anos seguintes o Boletim

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assumiria caras diversas, até sua última edição (Nº 971), em dezembro de 1992, quando seria extinto. Em agosto, num episódio não inteiramente explicado à população brasileira, o Presidente Costa e Silva, acometido de trombose, tinha sido substituído interinamente na Presidência por uma junta militar. Em outubro, assume o comando da nação o General Emílio Garrastazu Médici, eleito indiretamente pelo Congresso, que havia sido provisoriamente reaberto para essa votação. É o início de mais um capítulo escrito em chumbo na vida política do País. Mas também um tempo de grandes transformações, que se abre com a promessa de um Brasil Potência, e é planejado num Programa de Me- tas cujos principais objetivos eram a expansão econômica a taxas anuais elevadas: 9,5% de crescimento em 1970, 11,3% em 1871, 10,4% em 1972, e 11,4% em 1973. Vive-se um autêntico Milagre Brasileiro. Modo inédito de desen- volvimento que, tutelado pelo sufoco da mão visível e antidemocrática da repressão, promove a expansão do mercado interno, a modernização do sis- tema de crédito e o estabelecimento de uma nova política mais favorável às exportações, aliada à entrada maciça de capital estrangeiro. O Estado, cen- tralizador, se fortalece e chega a dominar setenta por cento do lado real da economia, através das empresas já existentes ( Petrobrás, Vale do Rio Doce, Siderbrás), e da criação de inúmeras outras. Sobretudo nos setores de petro- química e siderurgia. Como resultados da programação da economia, a indústria de trans- formação ( extração e beneficiamento de matérias-primas) cresce 14% ao ano. A indústria de automóveis cresce 25,5% ao ano, entre 1970 e 1973, e a de eletrodomésticos cresce 28% no mesmo período. O setor de bens de pro- dução, máquinas e equipamentos, cresce aceleradamente, atingindo 22,5% ao ano, e bens intermediários (aço e cimento) têm crescimento de 13,2%. Surgem os canteiros de obras gigantes. A Ponte Rio-Niterói, onde trabalharam mais de 10.000 operários, e onde se emprega material que daria

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para construir 350 edifícios de 20 andares, uma verdadeira cidade de porte médio, cuja construção estaria coberta por seguros de NCR$ 96 milhões. A Hidrelétrica de Itaipu, a maior do mundo, para produzir 12,6 milhões de KW. Os pólos petroquímicos de Camaçari, na Bahia, em 1970; Copene, no Nordeste, em 1972, e Petroquímica União, em São Paulo, no mesmo ano. O Brasil entra na era do consumo pessoal, com o aparecimento dos primeiros shopping-centers e dos grandes supermercados, e um crescimen- to, no gasto com alimentos e vestuário, da ordem de 9,1% ao ano. Mais de 80% das famílias urbanas passam a dispor de rádio, geladeira, fogão a gás, ferro de passar roupa, televisão e liquidificador. O automóvel chega à classe média, e ao final de 1973 já se produzem mais de 750.000 veículos por ano. As exportações crescem de US$ 3 bilhões em 1969 para US$ 6,2 bilhões em 1973 (taxa anual de crescimento médio de 32%). No prazo de dez anos, o BNH construirá mais de 1.050.000 de mo- radias. Em meio a esse contexto de boa música, violência repressora e eufo- ria desenvolvimentista, em março de 1970, em jantar no Iate Clube do Rio de Janeiro, o mercado segurador apresentaria ao Ministro da Educação e Cultura Jarbas Passarinho o embrião do maior programa educacional a ser bancado pela iniciativa privada. Na presença de autoridades e pesos pesados da economia nacional, e de um ainda perplexo embaixador americano Charles Burke Elbrick, em sua primeira grande aparição pública depois de sua libertação do seqüestro de que fora vítima no ano anterior, o empresário Mário Petrelli relata o sucesso de sua experiência pioneira de massificação de seguros no Brasil, o Top Clube. Lançado seis anos antes, sob sua liderança, e contando com um pool de seguradoras e bancos que operavam no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, Petrelli conseguira, com o Top, mobilizar uma vasta rede de atendimento bancário, para a comercialização do seguro de acidentes pesso- ais em grupo.

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O Top Clube a acabaria por entrar para o livro dos recordes como a maior apólice do mundo em número de participantes: 1.650.000 segurados. Além da imediata simpatia e empolgação do Ministro Passarinho, a proposta de Mário Petrelli, de utilizar parte da receita de um seguro dessa natureza para o financiamento de projetos educacionais, foi imediatamente apadrinhado por Amador Aguiar, do Banco Bradesco. O banqueiro, depois de ouvir atentamente a exposição de Petrelli, mostra-se interessado, mas faz uma generosa emenda à proposta. Seu banco faria a comercialização do seguro desde que, de toda a receita, depois de deduzidos os custos da produção e comercialização, e não apenas de uma parte, se aplicasse a totalidade do resultado do Top Clube num grande pro- grama de educação da mocidade carente. Acabava de ser plantada por Amador Aguiar a semente hoje vasta- mente germinada e multiplicada da Fundação Bradesco, que através de 38 escolas espalhadas por todo o País, proporciona educação integral e assis- tência médico hospitalar a 101.500 crianças, e já formou 450.000 jovens ao longo de sua laboriosa atuação. Justificado, entre outros, por esse argumento da função social da ati- vidade seguradora, e de sua importância para o País, no mês de abril de 1970 Vaz de Mello faz chegar ao Ministro da Indústria e Comércio, Marcus Vinicius Pratini de Morais, um memorial de reivindicações. Expõe a situa- ção das seguradoras, abaladas por um prejuízo operacional de NCR$ 90 milhões no ano anterior, conseqüência do aumento de sinistralidade no se- guro de automóvel (96%) e três grandes incêndios (fábrica Marilu e duas emissoras de TV). E enumera dez pedidos, entre os quais a abolição do des- conto de 10% no pagamento de prêmios à vista, a reformulação da política de reservas técnicas, restituição dos depósitos ainda retidos pelo BNDE, e a revisão de tarifas. Como resposta, o Governo mantém a retenção dos depósitos no BNDE, e aprova um esquema de amortização, em vinte anos, com liquida- ção dos atrasados relativos a depósitos feitos a partir de 1958.

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Mais remotamente, três meses depois o mercado segurador passaria por uma rearrumação institucional. Com a edição do Decreto-Lei 1115, de 24 de julho de 1970, regulamentado pelo Decreto 67.447, de 27 de outubro de 1970, seriam suspensas as autorizações para que novas seguradoras fun- cionassem no País. Criam-se limites mínimos de capital para as seguradoras, que em um ano deverão ter CR$ 1 milhão para operar em ramos elementares e CR$ 1,5 milhão no ramo Vida. Por esse mesmo decreto são concedidos incentivos financeiros às fusões e incorporações de sociedades seguradoras, o que seria positivo para o fortalecimento das companhias, mas também, veladamente, o Estado pre- tendia uma volta passadista no tempo, e a retomada do nacionalismo inter- vencionista, nos moldes do que constava da Constituição de 1934. O decreto-lei previa que seguradoras e acionistas ficassem isentos de imposto de renda, na troca ou substituição de ações envolvidas em opera- ções de fusão e incorporação, e ampliava os limites de operação das segura- doras, dando a elas bases compatíveis com sua nova capacidade operativa. Como conseqüência, foi substancialmente aumentado o poder de retenção das seguradoras brasileiras, o que permitiu que fossem atingidos alguns dos objetivos do cunho marcadamente nacionalista dessa norma. As- sistiu-se, também, a partir daí, um processo de repatriação de seguros, do exterior para o Brasil, por empresas que antes os colocavam no exterior, e revisão dos termos em que se processava o relacionamento das empresas brasileiras com as seguradoras estrangeiras. Os incentivos concedidos às fusões e incorporações deram resultado visível. O número de seguradoras em operação no País, que na década ante- rior chegara a 189 companhias, em 1970 caía para 176, que serão 108 em 1973, e apenas 93 em 1978, número que se manteria como média, até a vi- rada da década de noventa. Com a participação de 350 seguradores, em outubro de 1970 realiza- se em Recife a 7ª Conferência Brasileira de Seguros Privados. Na pauta, obviamente, as grandes preocupações da categoria naquele momento: re-

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formulação do regime de aplicação de reservas técnicas, níveis de capital mínimo para operação de seguradoras, revisão das tarifas oficiais de segu- ros, e regulamentação e estímulo às fusões. É ainda na convivência de parte desse temário, que no dia 29 de março de 1971 toma posse o novo Presidente da Fenaseg, Raphael Hermeto de Almeida Magalhães. Saudado por seu antecessor Vaz de Mello como “um líder que reúne todas as condições para dar relevo e dinamismo ao importante papel que desempenha na evolução do seguro o órgão de cúpula de nosso sistema sin- dical”, ele se credenciava com um currículo nada comum para o cargo. Diferentemente de seus antecessores, todos oriundos de seguradoras, tratava-se de um político de carreira que exerceria, ao longo de sua vida, entre outros postos os de Deputado Federal, Secretário de Estado, Vice- Governador da Guanabara, Ministro da Previdência. E já em seu discurso de posse faz questão de sinalizar ao mercado que sua presença à frente da Fe- deração deveria representar uma tentativa de articulação conceitual do pú- blico e privado. Qual era o papel de um e de outro, e como essa articulação devia ser feita. Pregava que o privado tivesse um pouco a ver com as metas públicas, e não podia ser uma atividade descolada do contexto geral. E o setor público tinha que criar articulações com o setor privado, para não ope- rar no vácuo. Por isso declara que vinha, “seduzido pelo desafio a enfrentar, sensibilizado pela honra da escolha”, mas acima de tudo “atraído por uma vocação incoercível pela atividade pública”. Ele próprio, nesse discurso, via em sua escolha “um simbolismo”, que se explicava “no extraordinário e singular papel que tem a cumprir neste instante decisivo para o futuro do país, quando o setor lutará por uma maior participação no processo geral de transformação da sociedade brasileira, assumindo a posição de vanguarda que sempre lhe cabe nas economias de- senvolvidas”(sic.). E deixava mais ou menos explicitada qual seria sua mis- são: “encontrar um modelo adequado de participação, em que se conside- rem, de um lado, os legítimos interesses do mercado e, de outro, os deveres

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que temos como empresários, com a comunidade nacional, a cujo destino estamos vinculados”. E mais adiante, como entendia o verdadeiro papel que cabia ao empresário nessa comunidade, como “sujeito e objeto do processo político, econômico e social. É sujeito na criação e direção de suas empre- sas. É objeto quando subordina suas ações às regras emanadas do Estado”. Quanto às seguradoras, atribuía um papel de protetora de patrimônio e ga- rantia de renda das pessoas, ao mesmo tempo que uma fonte geradora de poupança interna. Essa insistência em falar da atividade seguradora como instrumento de transformação da sociedade brasileira, e compromisso com a comunidade nacional, tipicamente preocupações de político, estaria refletida num de seus primeiros atos públicos. Em abril, ao criar a Comissão Especial de Revisão do Sistema Na- cional de Seguros Privados, Raphael assume que “o mercado segurador está disposto a lutar por uma maior participação no processo geral de transfor- mação da sociedade brasileira e, em particular, na formulação do Sistema Nacional de Seguros Privados”. E, em complemento, que a “Federação não pode abdicar de sua condição de instrumento natural desta participação”. Almeida Magalhães é o primeiro Presidente da Fenaseg a usar um termo dessa época em que se lia muito Marshall McLuhan, o teórico da co- municação de massa, e a falar em massificação de seguros. E pensa na pos- sibilidade de tirar o seguro de seu nível histórico, 1% do PIB, e levá-lo a um volume de prêmios que chegue a 3% de participação no Produto Interno Bruto em 1974. Mas, a seu ver, essa pretendida massificação, que havia sido tentada com sucesso por Mário Petrelli e seu Top Clube, esbarrava agora em alguns obstáculos de transposição complicada. A criatividade e o marketing dos seguradores encontravam pela frente a padronização dos produtos, e uma legislação que tratava o mercado como desonesto, até que se provasse o contrário. Raphael então pensa em uma Lei Áurea para o seguro brasileiro, “inverter a preliminar do problema e considerar que o segurador é capaz e

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honesto, até prova em contrário” - declara, em entrevista concedida ao “Jor- nal do Brasil”. Segundo ele, além da lei que inibe, a atividade se prejudica pelo ex- cesso de seguradoras. Alguns grupos, nessa época, chegam a operar com dez ou mais empresa numa estrutura artificializada, somente para “conseguir um limite de retenção elevado.” Reduzir o número de companhias, por meio de fusões e concentra- ções, passa então a ser uma de suas metas prioritárias para desenvolver o mercado. Paralelamente, apresenta cinco outros pontos considerados fun- damentais: flexibilização de normas de constituição de reservas técnicas, flexibilização de normas de aplicação dessas reservas dentro de critérios de segurança e liquidez, revisão dos limites operacionais e de retenção; revisão de procedimentos administrativos na produção de seguros, inclusive pela utilização de computadores na emissão dos bilhetes, e máquinas para a co- mercialização em aeroportos; e revisão de rotinas de comercialização, o que implicaria até em mudança no sistema de corretagem. Com essa idéia de modernidade, Almeida Magalhães apoia entusias- ticamente a criação da Funenseg - Fundação Escola Nacional de Seguros, em julho de 1971, por iniciativa de José Lopes de Oliveira, Presidente do IRB Empossado em janeiro de 1970, para o mais longo mandato da histó- ria do IRB (1970-1979), José Lopes vinha promovendo uma verdadeira re- volução no mercado de seguros. Ao mesmo tempo em que induzia a refor- mulação de toda a estrutura de comercialização do seguro, enxugamento do mercado por meio de fusões e incorporações, ampliação dos negócios pela internalização de seguros que até então eram colocados no exterior, ele se preocupava com a formação de quadros técnicos para as seguradoras e in- termediários. Inspirado, então, no modelo francês de escola de seguros, José Lopes discutiu, com Almeida Magalhães e com o mercado, a criação da Funenseg.

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Resultante da necessidade de se dar ao Brasil as condições de surgi- mento de uma nova cultura para o mercado de seguros, essa entidade desde então vem-se aplicando ao esforço didático de preparação de profissionais, inclusive corretores, e contribuiu para a mudança de mentalidade do próprio empresariado. As idéias de Almeida Magalhães nem sempre deviam soar muito confortavelmente aos ouvidos privatistas dos seguradores. Por ser um estra- nho no ninho das idéias do senso comum, ele se sentia em “completa dispo- nibilidade mental para pensar o seguro”. E pensá-lo “sem qualquer amarra histórica, a não ser reconhecer que” tanto ele, Presidente da Fenaseg, como José Lopes de Oliveira, tinham que ter, em seus cargos, um desempenho diferente daquilo que vinha sendo praticado quase que por tradição. Em entrevista recente, ao falar sobre essas idéias divergentes, ele re- afirma que, naquela época, o “seguro de acidente de trabalho foi estatizado porque tinha mesmo que ser estatizado. O Estado estava no auge do prestí- gio, não só porque havia uma estrutura autoritária de governo, como tam- bém porque havia um fantástico desempenho do Estado na Economia. Foi o grande momento qualitativo do Estado brasileiro. O milagre brasileiro é o milagre da estatização da economia brasileira. Estatizou toda a infra- estrutura e gerou recursos para serem aí investidos. Deu um salto na energia, telefonia, rodovia. O que arrastou esse desenvolvimento foi o investimento público, em altíssimo grau, e com programas do chamado Brasil Grande. Pode dizer que houve uma preparação estrutural no Governo Castelo, um avanço considerável com Costa e Silva, e o Governo Médici pegou o dina- mismo aí acumulado.” Almeida Magalhães considerava que o mercado de seguros tinha que se revigorar, mas esquecendo esse velho trauma do acidente do trabalho. Segundo ele, aquilo “era coisa do passado, já tinha acontecido”. Por isso, trabalhando para que o mercado crescesse independentemente do que já estava estatizado, ele se valeu de suas boas relações com José Lopes de Oli- veira. Discutiu com ele o problema das reservas que eram constituídas com

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parte dos prêmios que as seguradoras repassavam para o IRB, que as geria, apropriando-se do resultado. Em cinco dias, graças à boa vontade do incansável José Lopes o as- sunto estava resolvido, e o mercado passou a ser creditado dos resultados dessas reservas, o que “gerou uma brutal retomada de renda para o setor privado” - afirma. Mesmo assim, o mercado ainda não se recuperara de todo do trauma da perda do seguro de acidente do trabalho, e já começava a ter um outro motivo para sustos: os bancos estavam chegando, entrando na atividade se- guradora. Nesse tema, as opiniões eram divididas. Algumas seguradoras, como a Sul-América, articulada com o Banco Bradesco na comercialização de uma carteira de vida em grupo, viam nessa parceria um bom canal de ven- das; outras, assustadas, atuando isoladamente, temiam a concorrência de um sistema dotado de alta capilaridade no mercado. Na Fenaseg, Almeida Magalhães continuava pensando na massifica- ção do seguro, e mesmo tendo que enfrentar essas opiniões divergentes, decidiu estimular os bancos a entrarem no mercado. Os corretores reagiram. Tentando vencer as resistências, procurou mostrar as vantagens da massifi- cação do seguro, a importância da utilização de qualquer instrumento que pudesse ajudar as vendas. De qualquer modo, ele manteve firme esse rumo que nem sempre lhe era cômodo, até o fim de sua gestão. Ao deixar a Fenaseg, em uma pauta de oito itens, legou ao mercado um verdadeiro “inventário das principais ques- tões em cujo exame e equacionamento” a Federação teria participado sob seu comando: consolidação das normas de constituição e aplicação de reser- vas técnicas, elaboração de projeto de tarifas comuns no ramo Incêndio, revisão do seguro de Responsabilidade Civil obrigatório de automóvel, aná- lise crítica da experiência e resultados do resseguro-incêndio, reformulação tarifária do seguro Auto, elaboração de projeto de implantação dos seguros de educação e complementação de aposentadoria, revisão do seguro para o

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Sistema Financeiro da Habitação, unificação dos fundos de garantia de si- nistros das retrocessões. O objetivo de todo esse trabalho pode ser sintetizado num argumen- to, que foi usado para convencer os corretores das vantagens da massifica- ção dos seguros, mesmo que para isso tivessem que admitir a presença dos bancos no mercado. Curto, direto e convincente: “Quanto mais simples e mais barato, mais massifica. Se eu puder vender seguro com um tambor de índio, na flo- resta amazônica, com sinal de fumaça, para mim serve. O meu dever é este.”

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Capítulo dez

Mudança de repertório: o mercado discute suas questões mais técnicas

Ao assumir a Presidência da Fenaseg (01/04/74), Raul Telles Rudge encontrava um mercado institucionalmente mais enxuto, depois dos proces- sos de fusões e incorporações (92 empresas em fins de 1973, contra 185 em 1970), e normativamente desenhado nas linhas gerais que se manteriam es- truturalmente definidas até a atualidade. Além disso, operado por segurado- ras cujo capital havia expandido 600% em quatro anos (passara de Cr$ 159 milhões em 1969 para Cr$ 1 bilhão em 1973), e robustecido por um volume anual de prêmios que havia crescido de Cr$ 1,2 bilhão em 1969 para Cr$ 5 bilhões em 1973 (expansão de 320% no período). Vistos assim, numa perspectiva panorâmica, os números do mercado eram realmente animadores. E embora já não se acreditasse que a meta fixa- da de uma produção agregada que representasse 3% do PIB, fixada para 1974, tivesse qualquer chance de ser atingida, já se faziam comparações do mercado brasileiro com os mais bem ranqueados do mundo. Na taxa real de expansão, por exemplo, que no Brasil chegava a 18%, tínhamos subido para o segundo lugar no mundo, perdendo apenas para o Japão. O tão decantado Japão, cujo milagre de desenvolvimento nos anos 60 e 70 desconcertava economistas do mundo inteiro, e que apresentava um crescimento anual de 22,5% em seu mercado de seguros. Amparado nesses números, que citava com relativa freqüência e boa desenvoltura, o Presidente da Fenaseg podia dar-se ao luxo de abandonar, provisoriamente, alguns velhos temas do repertório histórico (nacionaliza-

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ção, estatização, acidente do trabalho), e tratar de assuntos de natureza mais técnica que emocional. Assim, logo nos primeiros meses de sua gestão, apresenta um estudo sobre o seguro de lucros cessantes, que até então não conseguia romper a barreira de desinformação para chegar até o empresário. Faz estudo sobre perspectivas desenvolvimento do seguro de pessoas (vida e acidentes). Pro- testa contra a criação de um seguro de vida obrigatório para motoristas, cuja comercialização deveria gerar receita para a construção de edifícios- garagens. Através da Comissão Técnica de Seguro-Saúde, presidida por Hélio Bath Crespo, diretor do Grupo Atlântica-Boavista, defende a regula- mentação dessa modalidade de apólice, nos termos do Decreto-lei 73. E encaminha à Comissão de Estudos Legislativos, do Ministério da Justiça, proposta de texto para o Capítulo XVIII , que trata dos contratos de seguros, no anteprojeto de Código Civil. Nesse aparente mar de tranqüilidade, muda-se o tom e o vocabulário dos discursos. Telles Rudge, num almoço de confraternização no Sindicato de Seguradores da Guabanara, fala em nível de consumo de seguro como “o mais exato dos índices do grau de desenvolvimento a que haja chegado uma comunidade”. Fala em “campo fértil para lavrar” e “trabalho esclarecido e perseverante para se conseguir boa colheita”. Anuncia uma quase auto- suficiência da atividade seguradora no Brasil, que reforça “continuamente sua capacidade, não apenas para colocar-se sempre à altura das avantajadas necessidades de seguro que o amanhã nos trará, mas também para projetar- se fora de nossas fronteiras, tornando-se em fonte de exportação”. A mudança de retórica reflete exatamente o que ocorre na economia do seguro, que em 1974 apresenta uma performance que surpreende. O Bra- sil passa a ocupar o 15º lugar no ranking mundial da atividade seguradora, ao apresentar crescimento de 53,6% no volume de prêmios (Cr$ 7 bilhões no ano), e 40,4% no patrimônio líquido das companhias (Cr$2,5 bilhões). Reflete-se, também, no perfil das despesas da própria Fenaseg, que nesse ano aplicou 55,2% do total de suas receitas em publicidade. Voltada à mas-

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sificação do seguro, foi realizada campanha que envolveu um conjunto de emissoras de televisão, com potencial de audiência de vinte milhões de te- lespectadores, e em sete Estados foram editadas páginas especializadas em seguros. Consciente dessa realidade, ao discursar na 9ª Conferência Brasileira de Seguros Privados e Capitalização, realizada em Salvador, Telles Rudge permitiu-se descansar da racionalidade técnica dos números, para incensar o orgulho dos baianos com uma citação de Frei Vicente do Salvador: “o Rei criou a Bahia para que fosse como o coração no meio do corpo.“ Ainda nesse discurso, explicou o crescimento do mercado, que não representava “mera hipertrofia da receita, mas, antes e acima de tudo, o cau- teloso aproveitamento da oportunidade para seu considerável e indispensá- vel fortalecimento”. E apresentou uma razão para esse quadro geral de pros- peridade: “As seguradoras, nesta fase de expansão acelerada, adotaram a sadia política de investir, no seu próprio negócio, grande parte dos resulta- dos por este proporcionados”. Segundo ele, a mola-mestra do desenvolvimento vinha sendo “a uti- lização de várias formas de divulgação, inclusive páginas especializadas na imprensa”, na abertura de novos horizontes para as seguradoras. Motivadas e induzidas a realizar trabalhos de divulgação, vinham recuperando a ima- gem pública do seguro privado, embora “admitindo que há muito por fazer num país em que 50 milhões de jovens nenhum contato chegaram ainda a ter com a instituição do seguro” - acrescentou. Esse tom maior da tranqüilidade reinante no mercado seria resumido por Telles Rudge num outro discurso, pronunciado em junho de 1976, nas comemorações dos 25 Anos da Fenaseg. “Em todas as épocas, grandes e variados problemas tiveram que ser enfrentados, diversos em natureza mas igualando-se em importância. E em todas as ocasiões, cumpriu sempre a Federação seu papel com rigorosa exação à custa de trabalhos e esforços que não foram menores nem menos importantes que as dificuldades a serem

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cumpridas” - ele afirmou, com a certeza de um balanço historicamente posi- tivo das atividades da Fenaseg. E em seguida resumiu o que tinham sido os 25 anos em que a enti- dade, representando “o mercado segurador, composto de companhias de diversos portes, de diversas origens e diferentes características, conseguiu sempre representar igualmente bem a todas e, com vigilância e persistência, servir como sentinela contra as circunstâncias e acontecimentos capazes de ameaçar a instituição do seguro privado”. Telles Rudge sabia bem o que esse discurso poderia significar em números: em 25 anos o mercado crescera. Em valores corrigidos, a emissão de prêmios subira de Cr$ 1,6 bilhão em 1950 para Cr$ 10,8 bilhões em 1975, um crescimento de 575% no período, à elevada taxa real de 8% ao ano. O patrimônio líquido das seguradoras, igualmente em valores corrigi- dos, subira de Cr$ 667,6 milhões para Cr$ 3,5 bilhões, com incremento de 420%, que corresponde à taxa real de 7% ao ano. Em 1976, ao encerramento da gestão de Rudge Telles, o mercado apresentaria uma arrecadação global de prêmios da ordem de Cr$ 16,5 bilhões, com uma previsão de Cr$ 24 bi- lhões para o exercício seguinte. Além da situação de relativa prosperidade evidenciada nesses núme- ros, sob o governo do austero Presidente Ernesto Geisel o mercado de segu- ros vinha partilhando, com o restante do país, de um ambiente geral de res- peitabilidade. E no momento em que, na Fenaseg, Telles Rudge passava o bastão de comando a Carlos Frederico Lopes da Motta, seu sucessor no triê- nio de 1977-1980, toda a sociedade brasileira começava a acreditar mais firmemente na possibilidade de uma abertura democrática, visualizável nos primeiros sinais que já podiam ser distinguidos no horizonte da vida política nacional. Nesse contexto, ao discursar na solenidade de posse realizada no dia 31 de março de 1977, Telles Rudge afirma que a atividade do administrador ultrapassava “as estreitas fronteiras da simples gestão do próprio negócio, para estender-se à participação nos esforços coletivos”, e reconhece que “o

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segurador brasileiro, desde muitos anos vinha aceitando essa realidade”. Vinha dando sua colaboração às entidades de classe e aos demais compo- nentes do sistema nacional de seguros privados ou da sociedade em geral. E, o “convívio resultante desse trabalho conjunto derrubou barreiras, destruiu suspeitas, desmanchou reservas e, com o passar dos tempos, demonstrou não haver qualquer obstáculo a que concorrentes, na comercialização dos seguros, pudessem cooperar franca e continuadamente na expansão e aper- feiçoamento do mercado de seguros e na criação de condições favoráveis a esse objetivo”. Transparecia, nesse discurso, além da firme tranqüilidade da consci- ência de quem cumpriu um dever, uma certa cor nostálgica. Telles Rudge pareceu antecipar ao mercado e a seus parceiros de aventura sindical a nota triste de uma outra despedida: um ano e cinco meses depois, em agosto de 1978, o mercado de seguros prantearia sua morte. Carlos Motta, que o sucedia, chegava à Fenaseg com a visão ampla de quem sabia interpretar os sinais de fumaça das transformações políticas por que o País passaria a partir de então. Via o Estado manipular com mão intervencionista os cordéis que movimentavam os mais diversos agentes econômicos, e a necessidade de o mercado se unir para ganhar corpo e voz que o habilitassem a reivindicar seus direitos à liberdade de iniciativa. Esse direito, no entender de Carlos Motta, podia significar naquele momento “u- ma posição muito mais discordante das posições do IRB e da Susep.” Segundo ele, na Fenaseg não houve nada que marcasse melhor esse “momento que antecipa a democracia, que o primeiro acordo trabalhista feito com a Federação Nacional dos Securitários, sobre os reajustes salariais e as reivindicações dos funcionários das companhias de seguros.” Para rea- lizá-lo, chamou os presidentes de sindicatos estaduais de securitários para uma discussão na Fenaseg. E cometendo a ousadia de tratar de um assunto que naquela época ainda soava a desordem e anarquia nos ouvidos oficiais, realizou esse que pode ter sido o primeiro grande acordo trabalhista coletivo na ainda vigente ditadura.

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Além de permitir que fossem atendidas as corretas e justas reivindi- cações da classe trabalhadora do seguro, prontamente aceitas pelo mercado, essa conquista de natureza salarial abriu uma porta pela qual puderam passar novas discussões. A Fenaseg, a partir de então, passou a discutir com o IRB, ainda sob o comando patriótico e dedicado de José Lopes de Oliveira, e a Susep, dirigida por Alpheu do Amaral, num ambiente novo de muito mais liberdade, sobretudo aqueles princípios e regras que fossem nocivos ao mer- cado. A discussão mais aberta desses temas esteve presente na pauta da 10ª Conferência Brasileira de Seguros e Capitalização, realizada em São Paulo, no Parque do Anhembi, entre 3 e 7 de outubro de 1977. Contando com o apoio declarado do Governador Paulo Egydio Martins, que levou para o Palácio dos Bandeirantes a solenidade de abertura da Conferência, esse im- portante encontro de seguradores discutiu o crescimento do mercado (reser- vas e capital cresceram de Cr$ 1,595 bilhão para Cr$ 5,351 bilhões entre 1974-1976), a criação do Conselho Nacional de Seguros Privados, o regime de cobrança obrigatória de seguros por via bancária, e os novos canais de comercialização apoiados na Comunicação Social, na criação da boa ima- gem do seguro, além dos chamados “pacotes de produtos”. Num discurso bem a seu estilo, em que adicionava ao brilho do texto o atrevimento do exercício de futurologia e humanismo, Carlos Motta fala a mais de quinhentos seguradores sobre a realidade do mercado de seguros de pessoas. Mostra que nesse ano de 1977 essa modalidade de seguros repre- sentava 22% do total de prêmios auferidos pelas seguradoras, contra 46% no ano de 1950. E sugere o “imperativo de ser fomentada a expansão dessas carteiras, para que na próxima década a estrutura do seguro brasileiro retrate a preocupação maior, e mais humanista de nossa cultura e da nossa socieda- de, com a proteção da pessoa.” E ao concluir, fala de duas futuras estrelas na constelação do seguro: “A regulamentação do seguro-saúde e das entidades de previdência privada são, decerto, dois novos e grandes flancos abertos para o florescimento e a realização desse objetivo”.

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Em maio de 1978 Carlos Motta voltaria a falar de futuro e possibili- dades do mercado, ao propor a criação de um grupo de trabalho, com a su- sep e o IRB, para estudar a possibilidade da criação de um seguro de prote- ção do meio-ambiente. Havia doze anos que ele vinha insistindo na necessidade de que se- guradores latino-americanos se preocupassem com o seguro contra riscos ambientais. E toda sua argumentação a favor da criação desse novo produto era estribada em argumentos históricos. Citava a febre desenvolvimentista, que nas últimas décadas do Século XIX havia convulsionado a economia mundial, provocando o surgimento de seqüelas de agressão à natureza. “O crescimento do chamado Produto Nacional Bruto” - argumentava o Presi- dente da Fenaseg - “ganhou foros de obsessão e o grande problema é que a conquista desse objetivo sempre se faz acompanhar, invariavelmente, do aumento do Subproduto Nacional da Produção, isto é, da poluição”. Conclu- indo, enumerava os primeiros e mais fortes sintomas da degradação ambien- tal que, nessa época, já andava merecendo a atenção da engenharia: a polui- ção atmosférica da cidade de São Paulo, do Rio Tietê e da Baixada Santista; a contaminação da Bahia de Guanabara por óleo vazado; o Rio Capibaribe, em Recife, que chegara a índice zero de oxigenação; a contaminação das águas do Recôncavo baiano por mercúrio; e a maré vermelha, no Rio Gran- de do Sul. Tudo isso, de acordo com Carlos Motta, pedindo a urgente criação do seguro de proteção ambiental. Nesse mesmo ano de 1978, ele volta a falar publicamente sobre a a- tualidade de novos produtos e o futuro da atividade seguradora. Em entre- vista ao jornal “O Globo”, Carlos Motta propõe a criação de um novo tipo de Seguro Rural, que devia substituir “o fragmentado existente, em sistema único, orgânico e fortalecido, um sistema exigido pela própria magnitude dos riscos da agricultura”. Segundo Carlos Motta, tratava-se de um ovo de Colombo, cuja simplicidade permitiria enfrentar problemas decorrentes de quebras de safras por geadas ou secas, desde que os vários agentes do mer-

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cado concordassem na integração, em um mesmo projeto, os esforços do Sistema Nacional de Crédito Rural, o Proagro, administrado pelo Banco Central, as seguradoras, o IRB, o Fundo de Estabilidade do Seguro Rural existente. No ano de 1978 o mercado brasileiro de seguros havia contabilizado algumas conquistas significativas. A Hidrelétrica de Itaipu, cujas obras ti- nham sido iniciadas para conclusão prevista em 1988, tinha sido segurada por apólices que davam idéia do vigor da atividade seguradora. Para riscos de engenharia (obras civis, instalação e montagem de máquinas e equipa- mentos), US$ 30 milhões por evento. Para transportes nacionais de materi- ais no Brasil e no Paraguai, até US$ 3 milhões para cada carregamento. Responsabilidade civil dos danos materiais e pessoais causados a terceiros em virtude de acidentes ocorridos na obra, até US$ 5 milhões, e US$ 500 mil dólares em danos materiais em cada evento. Além desse bom pretexto para se acreditar na vitalidade do mercado, a “Conjuntura Econômica” tinha dado aos seguradores mais um motivo para a prática do ufanismo utilitarista. Segundo dados que publicara, embora o Brasil tivesse naquele ano de 1978 um déficit de US$ 989 mil em sua Ba- lança Comercial, a atividade seguradora, historicamente deficitária em suas relações de negócios internacionais, tinha registrado nesse ano um superávit de US$ 65,8 milhões. Com os olhos no futuro, e a atenção despertada para esse fato novo nos negócios internacionais com seguros, ao falar em “Seminário sobre transportes e Seguro de Crédito à Exportação”, realizado no Rio, com a pre- sença de empresários da América Latina e Caribe, Carlos Motta propõe a criação de uma associação internacional para intercâmbio de estudos e in- formações. Uma espécie de réplica regional da União de Berna, que congre- ga os países altamente industrializados para idêntico intercâmbio. E argu- menta que embora o Seguro de Crédito para Exportações já fosse explorado por mais de uma década, faltava ainda no Brasil uma empresa que, associ-

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ando capitais dos setores bancário e segurador, operasse exclusivamente essa modalidade de apólice. Passando da palavra à ação, Carlos Motta, na companhia de Leoní- dio Ribeiro, Presidente da Sul América, e Antônio Carlos de Almeida Bra- ga, da Atlântica vai ao Ministro do Planejamento João Paulo Reis Veloso, e consegue o apoio para a criação da Companhia Brasileira de Seguro de Cré- dito à Exportação, com base na Lei nº 6704, de 26 de outubro de 1979. Dis- pondo que essa modalidade de negócio só poderia ser operada por empresa especializada nesse ramo, e proibida de operar em qualquer outra espécie de seguro, a Lei especifica que o Tesouro Nacional, através do IRB, poderia conceder garantia de cobertura de riscos de natureza política e extraordiná- ria, bem como riscos de natureza comercial. Empresa que “surgia do nada”, no dizer de Carlos Motta, com um capital inicial de Cr$ 200 milhões (51% capital privado nacional), esperava- se que a Companhia de Seguros de Crédito à Exportação arrecadasse prê- mios da ordem de Cr$ 800 milhões em seu primeiro ano de funcionamento. Para tanto, coube à Fenaseg encaminhar à Presidência da República a minu- ta do decreto que regulamentava suas operações. Reservou-se ao Banco do Brasil e à Cacex a prerrogativa de continuar operando com a modalidade de seguro de crédito à exportação, até que a nova empresa começasse a operar em plena carga. Um outro fato que é sempre destacado por Carlos Motta, como uma das mais gratas lembranças de sua gestão à frente da Fenaseg, é a instituição da franquia obrigatória nos seguros de automóveis. Tratava-se de insistente reivindicação das seguradoras, tecnicamente articulada e justificada por E- duardo Baptista Viana, da Atlântica Boavista, que mostrava sua importância para a sobrevivência de um ramo de seguros que, na época, representava 30% do total de prêmios auferidos pelas companhias. Curiosamente, nessa época, a Sul América, solidária com os corretores que eram contra a institui- ção da franquia obrigatória, resistia em apoiar a idéia que era defendida pela Fenaseg.

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Carlos Motta, insistindo em apresentar sua proposta ao conselho da Sul America, procura evidenciar a importância, as vantagens, e sobretudo a consistência técnica da franquia única, tal como demonstrada por Eduardo Viana. “Apresentamos o assunto, mostrei sua importância, e Leonídio Ri- beiro não respondeu de imediato. Telefonou-me horas depois, dizendo que a Sul América estava de acordo. Pudemos então respirar aliviados” - lembra Carlos Motta. E conclui, com a certeza firmada na experiência de duas dé- cadas de observação prática da franquia obrigatória: “Jamais duvidei, em momento algum, que essa cláusula se transfor- maria em verdadeira salvaguarda de todo o sistema do seguro de auto. Se não tivéssemos insistido em sua criação, o mercado teria sido arrastado para o caos” A eventualidade desse “caos” a que se referia Carlos Motta podia ser um bom efeito de retórica, utilizável numa argumentação emocional. Mas à medida em que se caminhava para a década de 80, parecia um risco e uma possibilidade cada vez mais distante para o mercado de seguros, que apre- sentava um quadro geral de indicadores de performance mais que satisfató- ria, e para o País, que caminhava a passos cada vez mais livres em direção à abertura democrática. De acordo com dados divulgados pelo IRB, o patrimônio líquido das empresas seguradoras em operação no Brasil havia quintuplicado em dez anos, passando de Cr$ 434 milhões em 1969, em valores correntes, e Cr$ 23,158 bilhões em 1978. No mesmo período, o volume de prêmios arreca- dados tinha subido de Cr$ 1,021 bilhão para Cr$ 38,500 bilhões, com um índice de crescimento cuja base saltara de 100 para 3.769. E os volumes de reservas técnicas, pelas quais se podia aferir do grau de solidez do mercado, havia subido de Cr$ 380 milhões em 1969, para Cr$ 13,159 bilhões em 1978. Enquanto isso, no cenário mais amplo do País, no dia 15 de outubro de 1978 o General João Batista de Oliveira Figueiredo havia sido eleito no Congresso, 355 votos contra 266 dados à destemida oposição do General

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Euler Bentes Monteiro. E dois dias depois, o ainda Presidente Ernesto Gei- sel envia ao Congresso o texto de uma nova Lei de Segurança Nacional, que abole a pena de morte e a prisão perpétua. Em julho, o Papa João Paulo II visita o Brasil, cativa as multidões, e pede liberdade e justiça social. E nessa mesma toada de redemocratização à vista, no dia 27 de outubro a União Federal é corajosamente responsabilizada pela morte do jornalista Wladimir Herzog, encontrado morto, enforcado, em uma cela do Doi-Codi em São Paulo, em circunstâncias que lembravam muito uma outra “morte” política, a do poeta Claudio Manuel da Costa, ocorrida quase duzentos anos antes, no vão de uma escada em Ouro Preto. De qualquer modo, parecia mesmo que a liberdade ensaiava seu glo- rioso reaparecimento no horizonte do Brasil. O Presidente João Batista Figueiredo, empossado no dia 15 de março de 1979, sanciona a Lei da Anistia no dia 28 de agosto, e no dia seguinte, ele mesmo, ao repudiar a covardia de uma bomba do terrorismo da direita, que explodira na sede da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio, matando a funcionária Lyda Monteiro, pede que os criminosos direcionem “suas mãos assassinas sobre a minha pessoa, para que deixem de matar inocen- tes”. O País, que emocionado assiste ao desabafo de seu Presidente, também acolhe, com flores e lágrimas, a volta de seus filhos mantidos no exílio por tantos anos. Leonel Brizola, que desembarca em Foz do Iguaçu no dia 6 de setembro. Fernando Gabeira, que havia retornado no dia 1º de janeiro, lança um livro de geração, “O que é isso, companheiro”. E vão chegando outros exilados famosos. Márcio Moreira Alves. Miguel Arrais. Betinho, o irmão do . A emoção voltava em grande estilo à vida nacional. Os seguradores, reunidos em Belo Horizonte, na 11ª Conferência Brasileira de Seguros Privados, fazem coro com toda a comunidade nacio- nal, e pedem mais autonomia e liberdade para seus movimentos. Num do- cumento que sintetiza suas aspirações, a “Carta de Belo Horizonte”, enfati- zam a necessidade de se “abrir à iniciativa privada um espaço mais amplo,

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uma oportunidade mais efetiva de exercitar sua criatividade, na busca de novos negócios”. Clínio Silva, que em abril havia sido empossado como Presidente da Fenaseg para o triênio 1980-1983, ao discursar na cerimônia de encerramen- to da Conferência, faz uma defesa acalorada do sentido humanista do segu- ro: “A doença, a velhice, a invalidez e a morte, compõem terrível elenco de agentes de insegurança e inquietação” - ele diz. “Nas sociedades modernas, de tal modo proliferam e se diversificam as necessidades de garantias pro- vocadas por esses agentes, que os horizontes dos chamados seguros de pes- soas se ampliam e se descolam, a cada instante, no curso da evolução eco- nômica e social” - acrescenta. E conclui: “O homem moderno aprendeu a ver no emprego e na profissão, não somente a renda imediata, mas também a fonte de recursos para prover necessidades imediatas e imprevistas, isto é, uma fonte de garantias contra as incertezas do futuro e a certeza da velhice e da morte”. Clínio Silva, desde sua posse como Presidente da Fenaseg , além dessa visão das possibilidades humanas da atividade seguradora adotaria uma atitude de vigilante e incisiva reafirmação da importância do seguro na economia nacional. Em janeiro de 1981, em São Paulo, presente à solenida- de de posse da diretoria da Associação de Companhias de Seguros, ao co- mentar a queda na receita de prêmios, ocorrida no ano anterior, ele assumi- ria enfaticamente a missão de defensor das instituições. “No ano que acaba de findar” - ele comentaria - “o produto da eco- nomia brasileira cresceu 8,5%, de acordo com estimativa da Fundação Getú- lio Vargas. Todavia, e a taxa parecida, o seguro inversamente retrocedeu em termos de prêmios. É a primeira vez que isso acontece. O mercado segura- dor brasileiro desviou-se, portanto, da lei estatística extraída de longa expe- riência universal. Segundo essa lei, seguro e economia devem caminhar, sempre, no mesmo sentido. Os dois, progredindo ou regredindo, executam simultaneamente qualquer desses movimentos. Nós, porém, abrimos exce- ção à velha regra” - afirma.

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Procurando identificar as prováveis conseqüências desse retrocesso do seguro em relação ao quadro geral da economia, Clínio Silva parte da afirmação de que a arrecadação de prêmios é a fonte primária e principal dos recursos que o seguro mobiliza para a realização de suas finalidades institucionais. “Se essa fonte é atingida, diminuída em suas potencialidades de gerar recursos, evidentemente a atividade seguradora se enfraquece - e o desempenho do mercado, nessas condições, não se otimiza”. Conseqüentemente, segundo Clínio Silva, numa “época de inflação exacerbada, menor volume de prêmios significa menor índice de capitaliza- ção das empresas seguradoras. E isso termina significando menor capacida- de de o mercado absorver os valores crescentes dos riscos da economia na- cional, aumentando nossa dependência do resseguro internacional”. A preocupação com as variadas formas de dependência e relaciona- mento da atividade seguradora brasileira em relação ao mercado externo é novamente externada por Clínio Silva, pouco tempo depois, em ofício en- caminhado ao Presidente do IRB. Ernesto Albrecht. Ao solicitar que sejam adotadas normas que preservem a contratação, no Brasil, das apólices vincu- ladas às operações internacionais de leasing, o Presidente da Fenaseg lem- bra que, por força do Decreto-Lei 73/66, tal seguro deve ser colocado no mercado interno. “Se ao arrendatário convém” - argumenta Clínio Silva - “ou se é ne- cessário transferir a um segurador as responsabilidades pelos riscos decor- rentes do uso e guarda dos bens arrendados, é claro que o seguro corre por sua conta e, assim, só pode ser contratado dentro do País” Como o arrenda- tário tem obrigação de tomar as medidas e cautelas para preservar o bem, assumindo os riscos e desvantagens que daí decorrem - inclusive o dever de indenizar em caso de dano - , ele pode achar necessário transferir a um segu- rador as responsabilidades por tais riscos. Nesse caso, em que o seguro corre por conta do arrendatário, também “só pode ser contratado dentro do País” - conclui.

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Nos repetidos pronunciamentos públicos de Clínio Silva transpareci- a, maior que essa preocupação com a eventual dependência externa, a sem- pre recorrente e assustadora inflação. Ao discursar em Belo Horizonte, na posse do reeleito Presidente do sindicato das seguradoras de Minas, Alberto Oswaldo Continentino, ou nas comemorações do Dia Internacional do Segu- ro, em Brasília, ele voltaria ao tema dos estragos feitos pela inflação na ati- vidade seguradora. Nesta segunda solenidade, ele afirmaria que no “seg- mento da economia a nosso cargo vimos a inflação, em 1980, tolher o passo de nosso desenvolvimento, e quebrar uma performance que, ao longo de dez anos, nos colocara entre os vinte maiores mercados seguradores no ranking mundial”. Às voltas com essa macro preocupação, Clínio Silva decide enfrentar a guerra santa contra os efeitos inflacionários sobre o comportamento do mercado, atacando pelo flanco da opinião pública. Assim, em agosto de 1981, procurando fortalecer a imagem do seguro como sistema e como pro- duto de consumo, a Fenaseg dá início a uma campanha publicitária institu- cional, definida por sua Comissão de Mercadologia, a partir de uma tríplice fixação de objetivos: reafirmar a necessidade e utilidade do seguro, esclare- cer a opinião pública sobre o baixo custo e vantagens em sua contratação, e fortalecer a imagem do corretor, como intermediário preocupado na presta- ção do melhor serviço a seus clientes. Como se já não fosse bastante essa conjuntura adversa, em ambiente inflacionário, antes que chegasse ao fim o ano de 1981 a atividade segurado- ra ver-se-ia às voltas com mais uma dificuldade imposta a seu desejável desenvolvimento. Pelo Decreto-lei 1887/81 o governo acabava com o incentivo fiscal até então concedido na aquisição de seguros de vida e acidentes pessoais. Clínio Silva protesta em memorial entregue no dia 10 de novembro do Se- cretário da Receita Federal Francisco Dorneles, com endereço ao Ministro da Fazenda Ernane Galveas. Mostra a importância social dos seguros de pessoas, cuja compra “representa um claro e óbvio ato de poupança, pois

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implica a abstenção de consumo presente em favor da garantia de renda fu- tura (do indivíduo e da família)”, em face de eventos como a doença, a inva- lidez e a morte. “A doença e a invalidez” - prossegue em sua argumentação o Presi- dente da Fenaseg - “para o indivíduo, assim como a morte de um de seus membros, para a família, são ocorrências densamente carregadas de conse- qüências financeiras”. Segundo Clínio Silva, são “essas conseqüências que determinam a necessidade do seguro, por ser ele a forma mais apropriada e eficaz de poupança. Isso porque, ao invés de arrastar-se no tempo, a acumu- lação de capital tem caráter instantâneo no seguro, pois este alcança desde logo o montante final visado pelo processo de poupança”. A essa argumentação técnica, segue-se o apelo do social: “Não tem qualquer fundamento, hoje em dia, a antiga suposição de que os seguros de pessoas se limitam às classes sociais de níveis superiores de renda. A tais seguros habitualmente recorrem os que, por falta de recursos, não dispõem de meios para se resguardarem contra as incertezas do futuro. Assim, tais seguros estão na atualidade difundidos por todas as camadas sociais” - afir- ma Clínio Silva. Para concluir, uma tentativa de sensibilizar o Governo com uma boa frase de efeito e um susto: “Na medida em que, nesse contingente, ocorra abstenção de compra de seguros privados, é óbvio e certo que a solu- ção dos problemas daí resultantes serão transferidos à previdência social”. Infelizmente o apelo emocional dessa argumentação de Clínio Silva já não chegava com boa intensidade aos ouvidos oficiais. O Ministro da Fazenda andava às voltas com a inflação elevada (334% ao ano, em média, entre 1980 e 1991), e a queda nas taxas de crescimento, que deslizavam dos patamares históricos dos anos do “milagre” (até 13% ao ano) para taxas que seriam negativas naquele ano (-1,6% em 1981) e chegariam a -3,1% em 1983. A economia brasileira entre 1981-1983 já não estava conseguindo fazer mais o tipo de milagre que permitiria amenizar a angústia do Presiden- te da Fenaseg.

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Capítulo onze

O cruzado e a Constituição: o Brasil redescobre a democracia

Depois de amargar dois anos de forte retração, o mercado de seguros encerrara o exercício de 1982 em estado de cautelosa euforia. Para uma in- flação de 99,72% medida pela Fundação Getúlio Vargas, a produção das seguradoras havia apresentado um crescimento nominal de 107,12%, com um faturamento global de Cr$ 460,340 bilhões, contra Cr$ 230,129 bilhões registrados em 1981. A fermentar esse bolo, que o mercado partilhava com ótimo apetite e redobrada cautela, podia-se perceber nitidamente a boa performance do Se- guro de Vida, cujo montante de prêmios havia subido de Cr$ 37,029 bilhões para Cr$ 76,969 bilhões, uma expansão real de 7,42%. Assim, embora ainda evitasse comemorar a inversão de tendências, o mercado podia ao menos respirar com mais alívio, e acreditar que era possível existir uma luz no fim do túnel da recessão que desde 1980 vinha-se abatendo sobre sua atividade. Não obstante esses primeiros sinais localizados de felicidade à vista, o Brasil, nessa primeira metade da década de oitenta, ainda vivia sob o signo da crise. A fonte do dinheiro farto e fácil, que nos anos anteriores tinha sido usado para irrigar o canteiro do desenvolvimento e dos déficits das contas públicas, vinha dando mostras de esgotamento. Os juros disparavam. One- ravam contratos antigos, feitos a taxas cambiantes. Já não se repetiam mais os recordes de crescimento dos anos anteriores. Tinham despencado de 13%, seu ponto médio máximo, para taxas negativas de -1,6% em 1981, agravadas até chegar a -3,1% em 1983. Durante os anos do “milagre” o Brasil tinha usado dinheiro interna- cional para se tornar a oitava economia do mundo, mas a hora de pagar a conta havia chegado.

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No ramo de seguros, abrira-se a década de oitenta sem grandes novi- dades em termos institucionais. O número de seguradoras em operação man- tinha-se praticamente estável (93 em 1980 e 1981, 94 nos dois anos seguin- tes, 95 seguradoras em 1984, e 96 daí por diante, até o ano de 1989). Num período de inflação elevada (334% ao ano, em média, entre 1980 e 1991), a relação Prêmio/PIB seria mantida em torno de 0,94%. A divisão estrutural do mercado, entretanto, por ramos de seguros, vinha sendo modificada. Ramos elementares, que em 1980 respondiam por 84% do total de prêmios arrecadados, chegam a 85% em 1985. Os ramos de Vida caem de 16% em 1980 para 13% em 1985. Enquanto isso, os ramos de saúde, que inexistiam no início da década, já alcançavam 2% do bolo total da produção das seguradoras em 1985, de onde subiriam para 8% em 1990. Nesse contexto, de conforto econômico e preocupação e esperança, em fevereiro de 1983 Clínio Silva encerrou seu mandato à frente da Fena- seg, e deu posse a Victor Arthur Renault, para o triênio que se estenderia até 1986. Eleito em chapa única, por sete sindicatos, sua escolha obedecia a uma praxe historicamente observada, de se confiar o comando da Federação, por rodízio, a dirigentes das maiores companhias de mercado. Quebrada uma única vez, na gestão de Raphael de Almeida Magalhães, único dos pre- sidentes cuja origem não era o mercado de seguros, essa regra consensual- mente preservada tinha o sentido de incorporar um número maior de empre- sas na direção da Fenaseg. Victor Renault exercia até então o cargo de Pre- sidente da Nacional de Seguros, quarta maior companhia em operação no Brasil naquele ano. Logo no primeiro ano de sua gestão, Victor Renault se defrontaria com o assombramento de um daqueles velhos fantasmas, que pareciam apo- drecer no esquecimento de seus túmulos: a estatização. Por iniciativa do Governo do Estado de Goiás tinha sido criada uma estatal de corretagem de seguros cujos objetivos, politicamente aceitáveis, representavam uma amea-

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ça à atividade regulamentada dos corretores: captar recursos destinados a programas sociais. Renault protesta, lembrando que essa atitude entrava na contra-mão da história, desde o momento em que o Presidente João Figueiredo, em 1981, havia criado um programa de desestatização. Argumenta que essa idéia, “antes de ser inconstitucional e juridicamente condenável, é sobretudo retrógrada”. E conclui fulminando a iniciativa de Goiás com o raio da ilega- lidade: “O curioso é que a nova empresa pública idealizada se destina a um setor, o da corretagem de seguros, onde a Lei Federal 4594/65 proíbe até mesmo que o corretor tenha ou exerça função em organizações de Direito Público”. Além do susto que vinha de Goiás, juntaram-se às preocupações do Presidente da Fenaseg os números do mercado nesse ano de 1983. Embora a receita global das 94 seguradoras que operavam no País tivesse passado de Cr$ 460,340 bilhões no ano anterior para Cr$ 1,068 trilhão, isto é, cresci- mento nominal de 132%, registrava-se uma perda real de performance, dian- te de uma inflação de 156,31%. E em alguns ramos a sinistralidade havia alcançado índices alarmantes. No Seguro de Crédito à Exportação, cujo fa- turamento havia sido de Cr$1,275 bilhão, foram pagas indenizações num total de Cr$ 16,134 bilhões, registrando-se sinistralidade de 1.265,01%. E no Habitacional as indenizações tinham chegado a Cr$ 70,247 bilhões, para um faturamento de Cr$ 74,714 bilhões. Mas o mercado suportou bem esse tranco. O Brasil inteiro vinha sendo varrido pela suavidade dos ventos novos da abertura política, prome- tida e levada a cabo pelo impetuoso Presidente João Figueiredo. O ano de 1985 tinha começado numa contagem regressiva, de dias e horas em que o Poder seria devolvido aos civis. Mais que isto: o País antecipava o gozo da Democracia Plena, sacralizando os menores gestos e palavras públicas de Tancredo Neves, Presidente eleito por 480 votos contra 180 dados a Paulo Maluf, pelo sistema ainda indireto do Colégio Eleitoral.

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Na Fenaseg, em fevereiro, Victor Renault havia tomado uma inicia- tiva histórica. Pondo fim a uma agonia lenta, que vinha consumindo as for- ças e a dignidade gráfica da “Revista de Seguros”, decidira adquiri-la e tor- ná-la órgão oficial de divulgação da Fenaseg. Em editorial, ele explicaria os motivos da aquisição da revista, que chegara à edição nº 758 e entrara no 65º ano de sua fundação: “Hoje, quando o seguro privado tem forte e relevante presença na vida nacional, não mais se justifica a ausência de um veículo específico de comunicação com o público usuário. Este deve e precisa ser, não apenas amplamente informado, mas bem esclarecido sobre os fatos correntes da atividade seguradora, sobre o papel do seguro no contexto da economia e no processo social, bem como sobre o desempenho do mercado no atendimento das necessidades nacionais de segurança econômica” - declarou Victor Re- nault. E prometendo fazê-la voltar a sua importância antiga, anunciou que a revista seria editada “em novo plano editorial, de modo que a publicação deixe de ser um veículo confinado ao mercado segurador, transformando-se em instrumento de comunicação com o público usuário do seguro e com variados setores da opinião nacional”. Nesse primeiro número da nova fase, a “Revista de Seguros” publi- cava uma substanciosa matéria sobre o célebre e jamais abandonado tema recorrente do Seguro de Acidentes do Trabalho. Entrando no clima da tão esperada epifania de Tancredo Neves, cuja posse era prometida para 15 de março, a revista estamparia: “Na reforma do sistema previdenciário brasilei- ro, certamente será preciso separar com clareza o joio do trigo. Nela, não poderá deixar de figurar, por exemplo, a reprivatização do seguro de aciden- tes de trabalho, um dos pontos básicos de luta da Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados e de Capitalização (Fenaseg).” Essa expectativa de boas mudanças da “Nova República” prometida por Tancredo Neves era partilhada pelo mercado, e algumas personalidades, entrevistadas pela revista, falavam de suas esperanças. Luis Campos Salles, Diretor-superintendente da Itaú Seguros, esperava que o novo Governo ou-

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visse “”os homens que atuam no setor, de forma que ele possa se inteirar das suas principais aspirações e condições essenciais para o desenvolvimento”. Leonídio Ribeiro, Presidente do Grupo Sul-América, lembrava a importân- cia da reprivatização do seguro de acidentes do trabalho, e manifestava a expectativa “de todas as pessoas lúcidas do Brasil, de que o novo Governo tenha a coragem de devolver à iniciativa privada o espaço que foi ocupado indevidamente pelo Estado”. Antônio Carlos de Almeida Braga, Presidente do Grupo Bradesco Seguros, fazia um pedido curto, seco e consistente, bem a seu estilo: “Eu só quero que me deixem trabalhar, como venho fazendo ao longo desses anos”. Quaisquer que fossem essas expectativas, não seria com Tancredo Neves que o mercado as veria acontecer. Internado às pressas, na véspera de sua posse, o Presidente eleito viria a falecer dias depois, deixando o País inteiro mergulhado na perplexidade e na dor. José Sarney, seu vice, assumindo o cargo no dia 21 de abril de 1985, parecia disposto a encarnar a vocação messiânica de Tancredo Neves, e dá início ao complemento da abertura iniciada com João Figueiredo. Restabe- lece as eleições diretas para a Presidência da República, legaliza partidos políticos, promove eleições gerais para prefeitos, e cria uma comissão provi- sória de estudos constitucionais integrada, entre outros nomes, por Afonso Arinos de Mello Franco, e pelo ex-Presidente da Fenaseg e Ministro da Pre- vidência Raphael de Almeida Magalhães. No mercado de seguros, os reflexos da abertura são percebidos já nas primeiras semanas da Nova República. Jorge Hilário Gouveia Vieira, que assume a chefia do IRB, e João Régis Ricardo dos Santos, a Susep, sinali- zam o início de uma enfática abertura na até então fortemente tutelada ativi- dade seguradora. Sob esse duplo comando, o IRB pôde refluir de sua expan- são intervencionista para a legitimidade de seu papel de ressegurador, e a Susep, quase vinte anos depois de criada, finalmente assumiu mais plena- mente suas funções legais de reguladora e fiscalizadora do mercado.

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João Régis e Jorge Hilário traziam da CVM - Comissão de Valores Mobiliários, o passado e a experiência numa autarquia modelar dentro do serviço público brasileiro, sementeira de idéias novas como a da auto- regulação, a transparência no mercado, a prática do full-disclosure por parte das Companhias, e a utilização da audiência pública na discussão dos proje- tos de interesse institucional. E além da experiência, João Régis trouxera para integrar os quadros da Susep um especialista em regulação de mercado, o ex-Superintendente Jurídico da CVM, Luiz Tavares Pereira Filho, que o auxiliaria no esforço de modernização normativa. E a Susep então pôde dar início ao desmonte dos excessos do entulho de autoridade, acumulados no mercado desde o início da década de quarenta. Na Fenaseg, Victor Renault, que em janeiro daquele ano havia dado publicidade a um documento libertário - “Atualização da política de segu- ros. Subsídios da classe seguradora” -, está atento à maré de liberdade que se espraia por todos os setores da vida econômica do País. E pede espaço e participação dos seguradores no CNSP e IRB. Cobra o retorno do seguro de acidente do trabalho à iniciativa privada. Propõe a discussão em torno do monopólio do resseguro. E vai além, criando uma “Comissão dos 12”, coor- denada por Eduardo Viana, Vice-Presidente da Bradesco Seguros, para re- desenhar o mapa ideal da atividade seguradora no Brasil. Em julho desse ano de 1985, diante dos índices alarmantes de roubos e furtos de carros, e o crescente registro de fraudes contra a carteira de segu- ros de Auto, Victor Renault manifesta o apoio institucional da Fenaseg a um projeto do Detran de São Paulo, que objetiva interligar todos os cadastros de departamentos estaduais de trânsito, num grande banco de dados de nível nacional. Essa iniciativa da Fenaseg também foi o início de um movimento mais amplo que, provocado pelo Ministro da Justiça Fernando Lyra, desti- nava-se a moralizar a comercialização do DPVAT. Previsto como embrião no Art. 20 do Decreto-Lei 73/66, definido pela Lei 6194/74, como forma de assegurar indenização aos acidentados, e ressarcir o Inamps das despesas

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com acidentes de trânsito, através de rede hospitalar conveniada, e regula- mentado pela Resolução CNSP nº1/75, o DPVAT vinha-se transformando em caso de polícia. Era vendido como laranja na esquina, comercializado nas circunstâncias negociais mais estranhas e menos confiáveis, por uma espécie de inseto que proliferava rapidamente: os zangões, que atacavam em bando, nas portas dos detrans, nas garagens, nos escritórios. Convocados pelo Ministro da Justiça, os seguradores compareceram a Brasília e receberam um ultimato: ou punham fim à desordem com o DP- VAT, ou o Governo estatizaria essa modalidade de seguro. Fenaseg, IRB e Susep chamam o mercado, sindicatos, associações, corretores e seguradoras, para colocar ordem no caos. Fala-se na criação de um consórcio para administração do DPVAT, que embora previsto pelo Artigo 7º, § 1º da Lei 6194/74, até então ainda vegetava na zona cinzenta da imprecisão regulamentar. Fala-se exatamente na necessidade de se por fim à frouxidão normativa, que permitia abusos. Há protestos. Receio de um ex- cesso de fiscalização futura. Mas ante a razão mais forte - ou o consórcio ou a estatização - dá-se um passo atrás, engole-se o sapo colocado sobre a mesa das negociações, e finalmente, pela Resolução CNSP 6/86 é determinado às seguradoras que firmem convênio específico para operacionalização do DPVAT. A administração do Convênio, em nome de 96 seguradoras, é en- tregue aos cuidados da Fenaseg, os ânimos se acalmam, e finalmente pare- ceu que ia haver paz nesse campo até então minado pela falta de regras mais firmes. Já no apagar das luzes da gestão de Victor Renault, alguns números fazem o mercado perceber que ainda há muito oxigênio para se respirar. O Seguro Saúde, que havia crescido 1.000% no primeiro semestre de 1985 (inflação anualizada de 247,38% em junho), mantém uma boa trajetória de comercialização, e sua receita pula de Cr$ 10,1 bilhões para Cr$ 115,6 bi- lhões no período considerado. E ao fechar o ano, diante de uma inflação que chega a 233,65% em dezembro, a atividade seguradora cresce 20% em ter-

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mos reais, e registra um faturamento global de prêmios da ordem de Cr$ 12,5 trilhões. Além disso, em janeiro de 1986, pela Resolução do CNSP de nº 3, o capital estrangeiro é autorizado a participar do controle acionário de empre- sas seguradoras, entidades abertas de previdência privada, em companhias de capitalização e corretoras de seguros. Há limites para essa participação: até 50% do capital total das empresas, e um terço do capital com direito a voto. De qualquer maneira, uma boa notícia para o mercado, e um fecho de ouro à gestão de Victor Arthur Renault, que passaria o comando da Fena- seg a Sérgio Augusto Ribeiro, eleito no dia 6 de fevereiro daquele ano, e empossado no dia 6 de maio, no Pavilhão de Convenções do Centro Empre- sarial – Rio de Janeiro, em presença do Ministro da Fazenda Dilson Funaro e de Raphael de Almeida Magalhães, da Previdência e Assistência Social. Antes da posse, o novo Presidente da Fenaseg deixava transparecer um otimismo vigilante e preocupado, sobretudo em relação à falta de liber- dade para que o mercado pudesse encontrar os níveis reais de preços para os diversos seguros. Segundo Sérgio Ribeiro, a livre fixação das taxas seria o ideal. E embora o mercado vivesse dias de sufoco institucional e regulamen- tar, pelo excesso de preocupação normativa e fiscalizatória do Estado, o Presidente da Fenaseg acreditava firmemente que nesse ambiente de abertu- ra da Nova República seria possível escrever um novo tipo de história. IRB e Susep, a seu ver, evoluíam rapidamente para a prática de uma intervenção mais branda e mais flexível na atividade seguradora. Nas gestões de Jorge Hilário e João Régis, esses dois órgãos da administração federal vinham-se afastando aceleradamente do bizantinismo regulatório, e pareciam dispostos a substituir a firula rançosa da burocracia pela prática desenvolvimentista. Além da questão da liberdade, o novo Presidente da Fenaseg, eco- nomista que ostentava em seu currículo boa vivência e tirocínio em política monetária, preocupava-se com a inexistência de um ambiente de estabilida- de de preços, que vinha cronicamente prejudicando o desenvolvimento do

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mercado de seguros. Com uma arrecadação de prêmios que em trinta anos havia girado em torno de 0,9% do PIB, e que podia ser considerada muito distante das fronteiras de possibilidades de produção do País, e mais distante ainda dos índices (3,5% do PIB) ostentados por economias de igual porte e semelhante estrutura econômica, havia alguma coisa errada com o Brasil. No entender de Sérgio Ribeiro essa coisa errada parecia ser a infla- ção. Em face dela, e de suas conseqüências para o mercado, ao discursar na solenidade de posse ele expressaria uma opinião que se podia supor que fosse a da maioria dos seguradores, que tinham “predisposição antiga e im- perativa para o convívio com o clima de estabilidade monetária. Diria até mesmo que, mais que predisposição, temos necessidade vital do oxigênio respirável nesse clima.” Em janeiro de 1986 a inflação mensal havia chegado a 16,23%. O Presidente Sarney e seu Ministro da Fazenda, Dilson Funaro, refletindo o susto e a apreensão de todo o povo brasileiro, e num gesto que beirava a irresponsabilidade heróica, decidiram dar um basta à farra dos índices des- controlados: baixaram o Plano Cruzado. Preços e salários foram congelados. A correção monetária dos contratos foi momentaneamente suspensa. Criou- se uma moeda nova, cujo nome assimilava uma conotação de messianismo, o Cruzado, que substituiu o Cruzeiro e partiu para a luta contra o dragão da maldade, a inflação. O povo aplaudiu. Gostou de ter no bolso um dinheiro que não desva- lorizava. Gostou do crédito a juros mais decentes e fixos. O consumo cres- ceu. A produção, sem novos investimentos e sem tempo suficiente para se adequar ao novo mercado, permaneceu estável. A pressão de demanda au- mentou. Apareceu o ágio, o desabastecimento, o fim do Plano Cruzado. Mal curada, a inflação voltou com a força das moléstias alimentadas a penicilina. O mercado de seguros, para sobreviver, e já que a inflação pa- recia um mal inevitável, tinha aprendido a extrair ganhos inflacionários de uma solução macunaímica: recebia prêmios à vista, aplicava os recursos, e

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mantinha fixo o valor da importância segurada. Em caso de sinistro, indeni- zava por valores históricos. O que parecia um bom negócio. Desde seu discurso de posse na Fenaseg, Sérgio Ribeiro vinha insis- tindo que essa lucratividade, que tinha origem não-operacional acabaria por criar uma tendência de acomodação, que em seu entender estreitaria cada vez mais “as dimensões do mercado segurador, em face das exigências do moderno capitalismo brasileiro.” Foi então que, por iniciativa, condução e empenho da Susep, o CNSP aprovou a Resolução nº 9, de 26 de maio de 1987, introduzindo a correção monetária nos contratos de Seguros. Sérgio Ribeiro, que buscava conciliar os exaltados e divididos pontos-de-vista dos seguradores, preocu- pados com uma súbita e eventualmente inevitável precipitação no custo de liquidação dos sinistros, pediu o que a prudência parecia recomendar. Que a correção fosse gradual e refletidamente implantada. O mercado aos poucos se ajustou, nenhuma seguradora quebrou, e o consumidor brasileiro finalmente teve, num ambiente perturbado pela infla- ção, contratos de seguros que inspiravam uma confiança muito maior, muito tempo depois que toda a economia brasileira já se achava indexada. Nesse episódio, em que se sentira desafiado pela necessidade de conciliar interesses tão distintos, Sérgio Ribeiro evidenciou a marca de seu temperamento e sua disposição para administrar “dentro da lógica, e contri- buir para que a classe discutisse francamente seus problemas”. Segundo ele, o mercado se dividia em grupos de opinião. Uns, ligados a bancos; outros, independentes. Grupos regionais, e sub-grupos de empresas brasileiras e estrangeiras. “Entre a maioria, a desconfiança em relação a mim, em quem as seguradoras menores viam mais um representante de uma das duas gran- des seguradoras” - relata. Para desfazer essa confusão, Sérgio Ribeiro passou a se dedicar à Fenaseg em tempo integral, e a cada reclamação, convocava o insatisfeito para participar de uma das comissões técnicas. “Assim, à medida em que ia modificando os critérios de representação, fui dando oportunidade a todos

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os segmentos”- conclui. E tendo consigo uma unidade maior dos segurado- res, pôde ampliar a freqüência e o tom do diálogo com o IRB e a Susep, “facilitado pela presença renovadora de Jorge Hilário e João Régis”. Foi nesse ambiente de franca interatividade que em agosto de 1987 foi criado o Codiseg - Comitê de Divulgação Institucional do Seguro, que se destinaria à permanente divulgação e esclarecimento sobre a atividade segu- radora, à melhoria da imagem do profissional do setor, mas, acima de tudo, a fazer com que o seguro se tornasse mais conhecido no universo comum dos consumidores. Escolhido para primeiro Presidente do Codiseg, Sérgio Ribeiro determinou a pronta realização de pesquisas, para o conhecimento do mercado e a orientação de campanhas de propaganda do seguro. Infelizmente, vitimado por um excesso de boas intenções e pela falta de entusiasmo por parte do mercado, o Codiseg teria o brilho e a passagem rápida de um cometa, e desapareceria poucos anos depois. Mas uma estrela, de luz mais forte e mais persistente, já despontara no céu da democracia brasileira nesse ano de 1988: a nova Constituição Fe- deral. Desde fevereiro de 1987, deputados federais e senadores vinham-se reunindo em Assembléia Nacional Constituinte, para elaborar e discutir a nova Carta de direitos, que ampliaria todos os conceitos de cidadania e for- taleceria as liberdades públicas no Brasil. Aos seguradores interessava, além dos atributos gerais da cidadania, a discussão específica do capítulo que tratava da Ordem Econômica e Soci- al. Ali é que se esperava que finalmente fosse resolvida a questão geral da presença do Estado no domínio econômico, e questões mais particulares, como o futuro da atividade seguradora no Brasil, a quebra do monopólio do resseguro mantido pelo IRB desde os tempos de Vargas, o desejado retorno do Seguro de Acidente do Trabalho à iniciativa privada. Estas, e outras mais questões que pudessem, finalmente, permitir que o seguro se tornasse um produto altamente disseminado e consumido pela sociedade. No auge dos debates em torno do futuro, e das prováveis conseqüên- cias da Nova Constituição na vida econômica do País, três questões ganha-

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ram destaque: o anunciado fim das cartas-patentes para que as seguradoras pudessem operar, aplaudido pela unanimidade dos profissionais do merca- do; a eventualidade de um cochilo dos legisladores, que poderia liquidar de uma vez por todas com o estímulo econômico à operação do seguro habita- cional; e a limitação da venda de seguro nos balcões das agências bancárias, aplaudido ou apedrejado pelos seguradores e corretores, de acordo com as convicções, e sobretudo o relacionamento de cada um em relação aos ban- cos. Sobre o seguro habitacional pairava o risco de iminente tragédia, desde o momento em que, pelo Art. 25 das Disposições Transitórias a Cons- tituição Federal estabelecia prazo de 180 dias para que decretos-leis em tra- mitação no Congresso, ou fossem votados nesse prazo, ou fossem conside- rados rejeitados. Nessa situação achava-se o Decreto-lei nº 2476/88, que passara a a- tribuir ao FCVS - Fundo de Compensação por Variação Salarial a função de garantidor do equilíbrio das operações do seguro habitacional. Por aquele decreto, os superavits havidos nas operações do seguro habitacional, seriam destinados ao FCVS; em compensação, os deficits seriam bancados pelo Fundo. Entendia-se, desse modo, que desde a extinção do BNH, no Governo de José Sarney, o Fundo constituía-se na última possibilidade de defesa das seguradoras em face de um sistema que já não existia: o SFH - Sistema Fi- nanceiro da Habitação. Acresce ainda que, ao longo da década de 80, suces- sivas vantagens concedidas pelo Governo Federal aos mutuários do SFH tinham levado o sistema a uma situação crítica, gerando deficits que vinham sendo indevidamente lançados contra as seguradoras. Assim, suportando esse ônus, que era anteriormente responsabilidade do BNH, de repente as seguradoras tinham visto ser retirada a escada em que se apoiavam quando aceitaram os riscos desse seguro. E agora, se por um desastre qualquer o DL 2476/88 caducasse, como previa a Constituição,

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todas aquelas seguradoras que operavam com o seguro habitacional passari- am a enfrentar sérios problemas. Sérgio Ribeiro imediatamente chamou à responsabilidade da Fena- seg a luta pela manutenção do DL 2476. Uma comissão, integrada por Edu- ardo Viana, da Bradesco Seguros, e Adolfo Bertoche, da Ajax, considerados os maiores especialistas brasileiros nessa modalidade de seguro, que havia preparado os estudos que resultaram na edição daquele decreto-lei, mobili- zou-se para a defender, no Congresso Nacional, a conversão dessa norma em Lei. Nessa empreitada, tiveram como aliados os próprios mutuários do SFH, ameaçados também de perder aquela que se constituía na única das garantias palpáveis de seus imóveis. Sensibilizado o Congresso, e em especial os partidos de oposição, que em outras circunstâncias dificilmente apoiariam um pleito do mercado, mas que se achavam sensíveis ao clamor da rua e à voz dos mutuários, o decreto-lei foi transformado na Lei 7682/88. Sérgio Ribeiro - e com ele os seguradores e os mutuários do SFH - pôde contabilizar a favor da Fenaseg mais essa conquista. Quanto à limitação da venda de seguro nos balcões das agências bancárias, Sérgio Ribeiro pessoalmente assumiu a trincheira dos bancos, por temer que um abrupto afastamento das agências na arrecadação dos prêmios colocasse em cheque a meta de o Brasil chegar a ter, no seguro, uma partici- pação de 3 a 4% do PIB. E seu argumento era simples: “se 70% dos prêmios são arrecadados por intermediação exercida pelas agências bancárias, que têm o mérito de difundir o seguro pessoal e de bens no interior do País, per- der esse balcão de vendas pode significar o fim da possibilidade de alcan- çarmos, já no início da década de 90, 2% do PIB”. O mercado não conseguiu inserir no texto da Constituição todos os sonhos de todos os seguradores. Mas, o principal seria incorporado ao Arti- go 192, cuja regulamentação atravessaria a década seguinte sem ser realiza- da. Pela nova Carta, o seguro foi transferido do campo da seguridade para o financeiro, recebendo a missão de investidor institucional. Seguro, previ-

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dência privada aberta e fechada, e capitalização, passam a fazer parte do sistema financeiro nacional, cujas condições de funcionamento transferem- se para lei complementar. Acaba-se com a exigência das cartas-patentes para a constituição das companhias de seguros, capitalização e previdência privada, que para existir dependem apenas da capacidade financeira e moral dos proponentes. Submete-se a entrada de companhias estrangeiras no sis- tema financeiro em geral à regulamentação prometida do Art.192 da Consti- tuição. Em novembro, um mês após a promulgação da nova Carta Constitu- cional, o mercado segurador se reúne no Rio Palace, hotel da orla atlântica no Rio de Janeiro, para a realização da 13ª Conferência Brasileira de Segu- ros Privados e de Capitalização, sobre o tema “Desenvolvimento do merca- do brasileiro de seguros: o papel da iniciativa privada e do Estado”. Realizada depois de um intervalo de seis anos, era uma boa oportu- nidade para repassar os recentes importantes acontecimentos (abertura polí- tica, Plano Cruzado, indexação dos seguros, avanços e recuos constitucio- nais). Ao discursar na Conferência, Sérgio Ribeiro, cuja gestão à frente da Fenaseg entrava em seu último trimestre, fala sobre as expectativas da classe seguradora, num tom muito mais apropriado a uma boa prestação de contas: “Não utilizamos toda a capacidade do setor. Há um grau de inefici- ência no mercado que precisa ser superado através de maior agressividade, Um marketing melhor e a criação de novos produtos. Vamos definir a parti- cipação do Estado e das empresas privadas no mercado. E discutiremos a falta de liberdade que ainda existe nas aplicações das reservas técnicas das companhias.” Eram desafios que passava às mãos e à proposta de trabalho de Ru- bens Santos Dias, seu sucessor, que tomaria posse no dia 7 de abril de 1989. O novo Presidente da Fenaseg ostentava em seu currículo um regis- tro que o credenciava de modo inédito, dentro da tradição de se dar o co- mando da Federação a algum segurador que representasse uma das grandes companhias do mercado: em sua carteira de trabalho tinha o registro de fun-

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cionário nº 1 da Itaú Seguros. Além disso, era Vice-presidente do Sindicato das Empresas de Seguros Privados e de Capitalização do Estado de São Paulo. Tais laços, de trabalho e de raízes que o prendiam a São Paulo, de- terminariam um outro dado inédito na biografia funcional de Rubens Dias à frente da Fenaseg: ele seria o primeiro Presidente da Federação a residir fora do Rio de Janeiro. Morando em São Paulo, onde tinha família e vida consti- tuída, obrigava-se ao incômodo da Ponte-aérea, e a partir de um determina- do nível de cansaço, a viagem por navio: embarcava em Santos, no domin- go, às 18h, e às 7 da manhã da segunda-feira aportava ao Rio. Em lugar de um planejamento apriorístico do trabalho a ser desen- volvido na Fenaseg, Rubens Dias optou pelo minimalismo de uma proposta que podia ser resumida em duas palavras: força e participação. “Eu poderia ter um plano de trabalho quando assumi na Fenaseg. Mas cheguei à conclusão que era preciso fazer primeiro uma tomada de po- sição para ver o que era realmente prioritário” - lembra, em entrevista con- cedida à “Revista de Seguros”, semanas depois de sua posse. “”Eu quero a Fenaseg forte e participativa” - acrescenta. “Forte, tendo uma estrutura que atenda ao mercado, com pessoal habilitado, assessores qualificados, e tam- bém, em termos internos, com comissões técnicas que possam atender não somente à diretoria da entidade como também a todo o mercado segurador, se necessário. Participativa, como o próprio nome diz, participando de even- tos, contatos com outras entidades e autoridades, sempre objetivando resul- tados práticos para o setor”. No cumprimento dessa proposta, e no caminho do fortalecimento institucional da entidade Rubens Dias se defrontaria com dois obstáculos. Um, no caixa da Fenaseg, que segundo ele não dispunha de dinheiro para bancar de imediato qualquer projeto crescimento, que implicasse na contra- tação de pessoal qualificado, aquisição de novas tecnologias, informatização dos serviços. E como a solução desse problema colocava-se na alçada direta do Presidente da Fenaseg, em pouco tempo Rubens Dias conseguiria trans-

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formar os déficits em superavits, o que lhe permitiu, entre outras realiza- ções, adquirir o imóvel que até então era alugado para funcionamento da Federação. O outro obstáculo já seria bem mais complicado, por achar-se fora de seu controle. Seria um atropelo histórico, no Governo Collor, quando a Ministra Zélia Cardoso impõe ao País a alucinação do confisco monetário, que incluía contas-correntes e poupança. E como se não bastasse a queda, nessa dupla barreira de obstáculos, havia também o coice da retenção de ativos financeiros, que atingiu brutalmente as companhias seguradoras. A Fenaseg convocou os Presidentes de Seguradoras para tentar des- cobrir uma saída ao nó cego da política de Zélia Cardoso. Rubens Dias ado- tou, então, como orientação geral, chamar os credores de cada companhia. Propôs, então, a cada um o pagamento atual, pela moeda antiga, o velho cruzeiro que havia sido substituído pelo Cruzeiro Novo, ou a espera de que moeda nova entrasse nos cofres das seguradoras, num horizonte de probabi- lidades que iam, naqueles tempos alucinados, de um zero do calote provisó- rio, ao infinito do pagamento assegurado. Entre tapas e tapas, houve credor que não aceitou. Rubens Dias to- mou uma decisão: “Vou a Brasília, falar com a Zélia” - lembra. “Pedimos entrevista com ela, e eu disse: olha, Ministra, esta repressão que a senhora fez nas companhias de seguro, não estou discutindo o mérito disto, mas não é dinheiro nosso. É dinheiro do segurado, beneficiário, acidentado. Dinheiro de quem teve sua casa queimada, quer receber sua indenização. Vamos pa- gar dinheiro velho para ele?” A todo-poderosa Ministra da Economia, inflexível, respondeu à an- gústia do Presidente da Fenaseg com a mais dura indiferença. Rubens Dias, tensamente desaninado: “Então a senhora se prepare, que muitas companhias vão quebrar com esta decisão que o Governo está tomando”. Não quebraram. Em três meses as seguradoras tinham de novo di- nheiro entrando em caixa e os débitos foram sendo saldados.

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Mas em Brasília, em cujos ares começavam a surgir os primeiros si- nais de tempestade política próxima, a criatividade andava solta, e o Gover- no tinha acabado de inventar um seguro ecológico e convocara os segurado- res para a cerimônia de seu lançamento. Data, local e hora da solenidade: Brasília, 24 de dezembro de 1991, às 10 horas da manhã. Rubens dias, ouvindo o mercado, resolveu levar para essa exibição matinal de poder alguém que “estivesse na crista da onda, alguém que tra- tasse de coisas ecológicas” - lembra. E a escolha recaiu em Lucélia Santos, a atriz, que subiria a rampa do Palácio da Alvorada em companhia do Presi- dente da República e dos Seguradores, depois de um cerimônia sonolenta, que não haveria de durar mais do que 15 minutos. Quanto ao destino do Seguro Ecológico, lançado nesse dia, com toda pompa, grupos de crianças, índios, Dragões da Independência, teatralidade e muita circunstância, conti- nuaria na prateleira das seguradoras, esperando que se definissem com pre- cisão os limites e as diferenças entre o riscos de agressão ao meio-ambiente e os demais riscos menos festejados. Mesmo atropelado pela exaltação dos humores de Brasília, Rubens Dias insistia em sua proposta de fortalecimento institucional da Fenaseg, e modernização e alargamento da base de negócios das seguradoras. Em ju- nho de 1989, dois meses depois de sua posse, nas comemorações dos 38 anos da Fenaseg, a “Revista de Seguros” publicaria uma retrospectiva histó- rica e um balanço da atuação corporativa da entidade. Mostrava que o segu- ro, nessas quase quatro décadas, tinha deixado de ser um produto estranho para a população, e já se achava presente em praticamente todos os setores da vida brasileira. Mas o seguro pedia mais. E em agosto daquele ano, ao tomar posse como Presidente do Codiseg, Rubens Dias enfatizava a necessidade e a pos- sibilidade real de que esse ramo de atividade pudesse, depois de tantas dé- cadas de expectativa, superar a barreira de participação de 1% do PIB, am- pliando sua produção de US$ 6 bilhões para US$ 9 bilhões anualmente. Para ajudar nessa tarefa, o Codiseg deveria ser moldado como entidade política

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dinâmica e reveladora da necessidade e qualidades do mercado, procurando maior visibilidade para o produto “seguro”. Com esse propósito, em seu discurso de posse no Codiseg Rubens Dias citou uma das máximas da Comunicação Social: “Dize o que és, antes que os outros digam o que não és”. Além dessa maior visibilidade, que o Presidente da Fenaseg esperava conseguir com a utilização dos meios de comunicação a seu alcance, e entre os quais figuravam a “Revista de Seguros” e o “Boletim Informativo da Fe- naseg”, Rubens Dias, e com ele o mercado, continuava pedindo e esperando que o Artigo 192 da Constituição Federal fosse regulamentado, por Lei Complementar. Vários projetos vinham sendo apresentados nesse sentido, entre os quais um, preparado pela Susep, que pretendia promover uma rees- truturação geral do mercado, em substituição ao Decreto-Lei 73. Constavam desse projeto, que fora submetido por João Régis à audi- ência pública e à manifestação de todo o mercado, a possibilidade de co- mercialização direta do seguro pelas seguradoras, a extinção do sorteio de seguros das estatais e sua substituição por licitação pública. Também eram tratadas matérias dificilmente consensuais, como a abertura do mercado ao capital estrangeiro, a participação dos bancos no sistema de intermediação, o papel do corretor. Rubens Dias apresenta uma proposta alternativa. Escala duas estre- las, de luz própria e talento suficiente para ajudá-lo a acompanhar, em Brasí- lia, todo o processo de votação da lei complementar: Alberto Oswaldo Con- tinentino de Araújo, Vice-Presidente da Fenaseg, e Nilton Alberto Ribeiro, Diretor, conhecidos por sua habilidade como negociadores, e pela vasta ex- periência na solução de problemas relacionados com seguros. Mais enxuto (39 artigos) que a proposta apresentada pela Susep (80 artigos), o projeto de Lei Complementar da Fenaseg tinha um objetivo claro: facilitar o trabalho dos legisladores, na abordagem dos princípios básicos que a seu ver deveriam nortear a atuação das companhias e demais entidades participantes do mercado. “Por isso enxugamos o texto e apresentamos uma

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versão que não contemplava mais que o essencial, pois vivemos em um pro- cesso constante de mudanças, e se colocarmos muita coisa na lei, rapida- mente ela pode se desatualizar”. O projeto que Rubens dos Santos Dias apresentava ao Congresso podia bem ser sintetizado em duas palavras de ordem: “Modernidade e li- berdade”. Verdadeira declaração de propósitos pela qual se bateria o próxi- mo Presidente da Fenaseg, João Elisio Ferraz de Campos.

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Capítulo doze

A Carta de Brasília: certezas e expectativas para o novo Milênio

Ao tomar posse na Presidência da Fenaseg, em cerimônia realizada em Brasília, no auditório da Academia de Tênis, no dia 7 de maio de 1992, João Elisio Ferraz de Campos recebia o comando de uma instituição admi- nistrativamente fortalecida. Rubens Dias, em seu discurso de transmissão de cargo, enfatiza que além da milagrosa recuperação do mercado, em meio aos equívocos da política econômica do Governo Collor, a Federação havia conseguido se revigorar financeiramente. E conclui com uma frase de bom efeito, que ficaria valendo como um vaticínio sobre as possibilidades que se abriam para seu sucessor: “Num ambiente macroeconômico agora clareado por novas e melhores expectativas, outros são os horizontes para as catego- rias econômicas representadas por nossa Federação. Outro será, portanto, o papel político do órgão de classe”. Repercutindo pragmaticamente em seu discurso esse tom de profeci- a, João Elisio acrescenta a moldura que faltava ao quadro de mudança pre- vista por seu antecessor. “A hora é de desregulação, de desestatização, de desburocratização” - afirma, na Presença do Ministro da Economia, Fazenda e Planejamento, Marcílio Marques Moreira, e de mais expoentes do Gover- no do mesmo Fernando Collor que dera início a um verdadeiro desmonte da máquina empresarial do Estado, que resultaria na privatização de 33 empre- sas entre 1990 e 1994. “E este é o momento de se ajudar o Estado a refluir dos amplos espaços hoje ocupados para posições que lhe permitam realizar plenamente as missões políticas, econômicas e sociais que lhe são essenciais e intransferíveis, consagradas na Constituição” - acrescenta.

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Quando falava nessas marés de fluxos e refluxos da presença do Es- tado na atividade econômica, João Elisio pisava no terreno firme de suas convicções e de sua experiência profissional de segurador e político. E nesse momento, em que se abria à Federação uma nova raia, até então inédita, por onde devia fluir o sempre surpreendente diálogo com o Executivo e o Con- gresso Nacional, ele parecia singularmente credenciado para a missão que assumia. Advogado, formado em Direito pela PUC de Curitiba, João Elisio Ferraz de Campos trilhara até então uma dupla carreira bem sucedida. No setor de seguros, em que ingressara em 1962, na Cosepa – Corretora de Se- guros do Paraná, e posteriormente na Companhia Comercial de Seguros Gerais, onde exerceria diversas funções até chegar à diretoria. Por ocasião da aquisição do controle dessa empresa pela Bamerindus Seguros, ele se transferiria para a diretoria da compradora, onde viria a ocupar os cargos de diretor, Presidente da Companhia e de seu Conselho de Administração. I- gualmente percorrera uma bem sucedida carreira na política, onde ingressara em 1972, na direção da Fundação Educacional do Paraná (Fundepar), e de onde saíra para ocupar o cargo de Secretário de Administração no Governo de Jaime Canet Junior. Eleito Deputado Estadual em 1978, e Vice- Governador em 1982, ocupando paralelamente a Presidência do Banco do Desenvolvimento do Paraná, e em seguida a Secretaria da Fazenda, final- mente assumiria o Governo do Estado, em substituição ao Governador José Richa, que se candidatara ao Senado Federal. Sua escolha, fundada nesses predicados, acontecera num momento em que os seguradores procuravam um nome que, além do prestígio pessoal e da capacidade de trabalho, representasse trânsito livre na cena política. Assim, a indicação de seu nome, feita por Mário Petrelli durante almoço em Florianópolis, receberia o apoio de Ararino Sallum de Oliveira, Presidente da Bradesco Seguros, o que passava a valer como sinalização aos afiliados- eleitores.

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A realização da cerimônia em Brasília, e não no Rio de Janeiro onde é sediada a Fenaseg, já era um sinal claro de mudança de rumo e de propósi- tos nas relações de proximidade e diálogo com o Poder. Outra manifestação da importância atribuída por João Elisio ao fortalecimento do diálogo da Fenaseg com o Governo seria a ampliação do escritório de representação em Brasília, que a partir de 1992 passaria a contar com o trabalho de uma dele- gação técnica, orientada por um especialista em relações intergovernamen- tais, o ex-Deputado Federal Antônio Mazurek. Nesse mesmo propósito, de dar corpo à voz institucional da Fenaseg, na explicitação e defesa dos direitos da categoria de empresas e profissio- nais do setor de seguros, no exato instante em que era empossado, João Eli- sio passa do discurso à ação, e dá publicidade à “Carta de Brasília”. Docu- mento emitido pela Federação e por seus Conselhos, a carta sintetiza o pen- samento da entidade, as aspirações e as convicções de todos os segmentos do mercado de seguros, e é apresentada como “bandeira a favor da livre iniciativa, da economia de mercado, de um liberalismo moderno, social e economicamente justificável.” A Carta, que segundo João Elisio devia se constituir em “instrumen- to de diálogo e plataforma de ação”, tornar-se-ia conhecida como a política dos três dês: desestatização, descentralização, e desregulamentação. Em seu texto, a Fenaseg assume que a Economia de Mercado e de livre- concorrência “não deve ser cega e absoluta” mas, ao mesmo tempo em que seja causa e origem da eficiência econômica, deve se constituir em fonte de progresso socialmente justo. E fixa os seguintes objetivos: aumentar o nível de informação relativa à atividade seguradora, como forma de ampliar o mercado e sua participação no PIB; reduzir os excessos de regulação que prejudicam o seguro, inibem a iniciativa empresarial e desfiguram a econo- mia de mercado; contribuir para a modernização da Previdência Social, es- timulando a livre competição nos segmentos em que a presença do Estado não se revele essencial; retomar para a iniciativa privada o seguro de aciden- tes do trabalho; operar o seguro de saúde em regime de competição, assegu-

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radas as garantias de proteção à saúde dos beneficiários; conferir maior au- tonomia e flexibilidade aos investimentos de reservas técnicas, ampliando- se o leque de ativos onde podem ser aplicadas, para realizar seus objetivos econômicos e sociais. Dois meses após a Carta de Brasília, e pode-se dizer que ainda reper- cutindo as propostas do empresariado feitas através da Fenaseg, foi apresen- tado ao mercado o reforço ideológico de mais um programa com objetivos de modernidade: o “Plano Diretor do Sistema de Seguros, Capitalização e Previdência Complementar”, lançado em ação conjunta do Secretário de Política Econômica, Roberto Macedo, IRB e SUSEP. Importante pela iniciativa de seus autores, esse documento reafirma- va a imprescindibilidade da desregulamentação do setor, e apresentava pro- postas de modernização da atividade seguradora: política de liberação de tarifas, controle de solvência das empresas, abertura do setor ao capital es- trangeiro, redefinição do papel do corretor, reestruturação do IRB com a gradual redução do monopólio do resseguro até sua final extinção, retorno do seguro de acidente de trabalho ao setor privado, e regulamentação de novas modalidades de seguros, como o de crédito agrícola e crédito à expor- tação. Além da intenção manifestada pelo Governo, e da vontade declarada pelo mercado, havia nesse contexto, por parte dos dirigentes da Fenaseg, a firme convicção de que a atividade seguradora podia mesmo alavancar o desenvolvimento econômico e social do País. “Não há país desenvolvido sem uma indústria de seguros desenvolvida” - repetia insistentemente João Elisio, ao considerar os números do mercado segurador que, em 1991, nas 132 companhias que operavam no Brasil empregava diretamente 40.000 pessoas e proporcionava atividade a mais 70.000 corretores. A produção de prêmios, que patinara em torno de US$ 3 bilhões na década de 70, havia saltado para US$ 5,7 bilhões em 1991, o que era equivalente a 1,19% do PIB. “Estudos mostram que uma participação de 4% a 5% no PIB é possí- vel” – acrescentava João Elisio.

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Passando então do discurso à conseqüência, João Elisio dá início à realização de uma série de seminários técnicos, reuniões com autoridades, campanhas de impacto junto aos formadores de opinião e ao povo, sobretu- do para esclarecer e alertar a população sobre modos de se prevenir contra a fraude, o roubo e o furto de automóveis. A preocupação da Fenaseg com a criminalidade tinha uma forte mo- tivação, duramente sentida pelas seguradoras. Em 1993, 200 mil carros (50% em São Paulo e 25% no Rio) foram roubados no Brasil, um a cada três minutos, computando-se nesse número um percentual significativo de frau- des cometidas com a participação ou conivência de segurados. E como o seguro de auto era responsável por 37% de todo o movimento do mercado segurador, as companhias se viram obrigadas a pagar, somente nesse ano, US$ 1 bilhão em indenizações, o que representava um sexto de todo o fatu- ramento do setor. E a esses números podia-se somar um outro ônus, insu- portavelmente crescente para as seguradoras: a elevada sinistralidade no seguro de transporte, inclusive carros-fortes, que em 1992 tinha representa- do uma sangria de US$ 8,5 milhões, e em 1984 já ascendia a US$ 85 mi- lhões. Para o enfrentamento ao roubo e furto e automóveis, em Setembro de 1993 a Fenaseg assinou convênio com o Ministério da Justiça, para suprir as seguradoras com informações do Registro Nacional de Veículos Automo- tores (Renavam), onde já se achavam cadastrados 80% dos veículos em cir- culação no País. O objetivo era o cruzamento de dados do Renavam com os do Cadastro Nacional de Sinistros, operado pelas próprias seguradoras, permitindo acompanhar a evolução do seguro e da sinistralidade dos auto- móveis. A Fenaseg desenvolveu também um sistema de banco de dados compartilhados com seguradoras e autoridades, e propôs mudanças na legis- lação, ampliando o elenco de coberturas obrigatórias de auto. Além disso, em julho de 1994 a Fenaseg lançou em todo o País a campanha contra roubo e furto de auto: “Se a sociedade der o alarme, o roubo de veículos diminui.” Como resposta a essa campanha, as estatísticas sobre roubos e furtos apresentaram queda de 25% a 30% quase que de imediato.

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A preocupação com os crimes relacionados com veículos, cuja con- seqüência mais dramática para as seguradoras era o aumento da sinistralida- de de suas carteiras de Auto, mereceria novos cuidados da Fenaseg. Já em 1992, em sua primeira gestão, João Elisio contrataria um escritório de advo- gados criminalistas, que passaria a fazer o rastreamento dos sinistros, fos- sem roubos, furtos, ou fraudes cometidas contra o DPVAT, o que resultaria numa queda significativa nesse tipo de delito. Para se ter uma idéia desse trabalho, somente no ano de 2000, a análise de 77.032 processos de sinistros permitiu a detecção de milhares de casos de fraudes, e uma economia final, para as seguradoras, de R$ 37,921 milhões. Esse combate sistemático à fraude seria aprofundado a partir de 1998, quando a Fenaseg institui um outro mecanismo de controle de dados sobre veículos, o SNG - Sistema Nacional de Gravames. Destinado a regis- trar em um mesmo banco de dados todos os veículos alienados fiduciaria- mente, com reserva de domínio ou cláusula de arrendamento, o SNG rece- beu a adesão de entidades que representam as instituições financeiras que operam com financiamento, crédito direto ao consumidor, consórcios, ar- rendamento mercantil e operações com reserva de domínio de qualquer tipo de veículos automotores. Faça-se uma volta no tempo, quatro anos antes. Volte-se a 1994, quando uma conjunção de astros, feliz e democraticamente provocada em seguida ao processo de impeachment e à renúncia do Presidente Collor (ou- tubro de 1992), o mercado assiste, já no Governo de Itamar Franco, a uma demonstração de prestígio público de suas instituições. Por proposta da Fenaseg, o Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso conduz à dire- toria do IRB, pela primeira vez, e depois de mais de cinqüenta anos de espe- ra, dois representantes das seguradoras, um dos quais, Demóstenes Madu- reira de Pinho Filho, tornar-se-ia Presidente do IRB, e cujo nome constara de lista quádrupla e ofício apresentados pela Fenaseg, mais de um ano antes, ao então Ministro da Fazenda Paulo Roberto Haddad. Como justificativa a seu pleito, o Presidente da Fenaseg argumentara que as seguradoras, todas elas acionistas do Instituto de Resseguros, nos

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termos das leis de organização societária, queriam exercer o direito de indi- car seus representantes para os dois cargos de diretoria. Posteriormente a Fenaseg ampliaria essa conquista, ao dar assento a dois de seus representan- tes no Conselho de Administração do IRB, Ararino Sallum de Oliveira e Nilton Molina. À alegria dessa conquista do mercado em 1994 somou-se, em julho desse ano, o advento do Plano Real, recebido em clima de excelente expec- tativa, já que se destinava a atacar pela raiz o mal que tantas vezes havia vitimado as melhores intenções dos brasileiros em geral, e dos seguradores em particular. Com moeda nova, mas sem congelamento de preços nem de salários, o plano deveria dar um basta ao cansativo lenga-lenga secular de que inflação não tinha jeito, e que a única saída para o País era aprender a conviver com esse dragão bem nutrido e muito perigoso quando mantido em descontrole debaixo do teto da economia. O plano de estabilização concebido por Fernando Henrique Cardoso tinha uma cara diferente de outros venenos até então adicionados à ração desse animal de mil vidas. Em lugar das tablitas de preços, que a melhor das boas vontades de governos anteriores não tinha conseguido manter sob con- trole, procurava conter os gastos do próprio Governo. Cortava na carne dos orçamentos públicos, acelerava o processo de privatização das empresas estatais, controlava qualquer fumaça de explosão de demanda pela política austera e amarga dos juros altos, e batia de frente na veleidade dos especu- ladores de plantão, ao abrir o país aos produtos importados, sempre que os preços internos ameaçavam o bolso do povo. Para o mercado de seguros não se poderia imaginar um mundo me- lhor. Um ano antes, a Fenaseg havia contratado a McKinsey, maior empresa de consultoria do mundo, que no Brasil era consorciada à Delphos, para a realização de um estudo sobre as possibilidades atuais e futuras de negócios com seguros no País, considerados vários cenários econômicos possíveis. Tratava-se de verdadeiro raio-x do mercado, indispensável à fundamentação técnica dos estudos relacionados com a quebra dos monopólios, inflação ou estabilidade, alterações na regulação do setor.

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Coordenado pelo ex-Ministro de Minas e Energia, Antônio Dias Lei- te, esse estudo contou com a participação de diversos segmentos do mercado e nove grupos de forças-tarefas constituídos pela Fenaseg, que analisaram, entre outros temas, o seguro de saúde, a integração do mercado segurador no Mercosul, o monopólio do IRB, o seguro de acidente do trabalho, previdên- cia privada e auto. Ao ser lançado, em novembro de 1993, sob a forma de um “Plano Setorial da Indústria de Seguros”, esse estudo fez uma revelação surpreendente: até US$ 16,2 bilhões de dólares poderiam ser agregados à produção anual de prêmios, e a indústria de seguros podia mobilizar os tão desejados 5% de participação no PIB, desde que o Brasil pudesse contar com um ambiente de estabilidade estrutural em sua vida econômica. O lançamento do Plano Real vinha, portanto, na medida certa da aspiração dos seguradores, que em 1994 assistiram ao melhor desempenho já registrado até então em toda a história de sua atividade. O volume de prêmios, que em 1992 tinha chegado a US$ 6 bilhões, e caíra em 1993 para US$ 5,6 bilhões, salta espetacularmente para US$ 11,9 bilhões, e a partici- pação no PIB, até então estagnada em torno de 1%, finalmente salta para a proximidade de 2%. E no primeiro semestre de 1995, quando João Elisio dá início ao triênio de uma segunda gestão (1995-1998), o volume de prêmios mantém sua trajetória ascensional, com um crescimento de 55% sobre igual período anterior, levando aos cofres das seguradoras um faturamento mensal que já ultrapassava R$ 1 bilhão. Nesse momento de franca prosperidade, em que o Plano Real trazia ao Brasil a tranqüilidade institucional que liberava o mercado do imediatis- mo de apagar um incêndio a cada hora, e da necessidade de matar um leão a cada dia para não ser devorado e consumido no crepitar das crises, a Fena- seg encontrou espaço e clima para pensar o futuro. Constituiu uma comis- são mista Fenaseg-FEA USP - Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, e Fipe – Fundação Instituto de Pesquisas Apli- cadas, para a elaboração de um “Programa de Estudos e Debates sobre a Reforma da Previdência e da Seguridade Social”, o Proseg.

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Até então a seguridade social no Brasil, que se achava em crise de- clarada, e com um horizonte já mostrando sinais próximos de catástrofe, era discutida em termos acentuadamente emocionais. Muita gente falava sobre o assunto, com muito calor e baixa racionalidade, não se dispondo até então de uma referência técnica de maior profundidade. Coordenado por Nilton Molina, da Icatu-Hartford Seguros; Júlio de Albuquerque Bierrenbach, da Sul América de Seguros; Luis Carlos Trabu- co, do Grupo Bradesco; José Arnaldo Rossi, Ex-Presidente do INSS, consul- tor da Fenaseg na área de Previdência; e do Professor Hélio Zylberstajn, da Fipe – Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, a comissão reuniu em- presários e acadêmicos para analisar a situação da Previdência, e tentar reco- locá-la no caminho menos sinuoso da discussão técnica. Pela primeira vez no Brasil, e partindo de estudos comparativos de tendências, sistemas de seguridade e legislação social de outros países, o conceito de Previdência evoluía do empirismo de sua prática eminentemente ligada à seguridade, para a racionalidade de uma base conceitual ligada ao seguro. Introduziu nas matrizes de cálculos do valor das contribuições as variáveis de tempo de contribuição, idade e expectativa de vida, além do valor previsto para a apo- sentadoria, antecipando a construção teórica do fator previdenciário, que anos depois seria adotado pelo Governo em reforma do sistema de aposen- tadoria. Em termos práticos, o Proseg sugeria que aposentadorias de até dois salários mínimos mantivessem o custeio pelo Estado, com subsídio total para a parcela de um salário mínimo e parcial na faixa de dois. Quem ga- nhasse mais, contribuiria compulsoriamente para fundos privados de pensão até o equivalente a 8,5 salários mínimos. Acima dessa faixa, a contribuição deixaria de ser compulsória, e aposentadorias de valores mais elevados seri- am objeto de contratação facultativa no mercado de previdência privada. Quanto às contribuições dos trabalhadores para o INSS, transformar-se-iam em bônus de reconhecimento que, na hipótese de opção pelo novo sistema,

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seriam aceitos por Fundo de Pensão. Os já aposentados continuariam rece- bendo normalmente, com base em recursos orçamentários. Ao apresentar o Proseg, João Elisio explicitava as características do novo modelo previdenciário, em que “a responsabilidade do Estado e a o- brigação de recolhimento compulsório das empresas fique restrita à faixa de baixa renda. Para as demais faixas deve-se adotar alternativas de livre esco- lha para empregados e empresas.” Segundo ele, as vantagens das propostas do Proseg eram meridianamente claras: “o regime deixaria de ser de reparti- ção e passaria a capitalização, assegurando sua liquidez futura; o Estado seria liberado de um ônus financeiro e social que a cada dia se mostrava menos suportável pelos orçamentos públicos; a sociedade teria, sem dúvida alguma, melhor serviço e melhor atendimento pela concorrência que se es- tabeleceria no setor; e finalmente, o mercado segurador teria nova faixa para crescer.” Desde sua apresentação ao mercado e seu encaminhamento ao Con- gresso Nacional e ao Executivo, o Proseg mostrou-se um modelo de prote- ção social cuja lógica passaria a orientar a formação de leis de seguridade social. Garantido pelo critério da autoridade de seus autores, Fenaseg, FEA- USP e Fipe, ele se respaldaria nos resultados conseguidos pela experiência do mercado de previdência privada, cujo visível crescimento no Brasil, ao longo da década de 90, foi acompanhado de uma modernização conceitual. Entendida originariamente apenas como plano de aposentadoria, a previdência privada aos poucos evoluiu para uma visagem mais ampla, que a apresentou ao consumidor como partícipe do domínio dos riscos aleató- rios, como a morte e a invalidez, o que estreitou seu parentesco na família do seguro. Essa cara nova com que a previdência se apresentou ao mercado podia ser notada, sobretudo, na forma de indenização: se contratada na car- teira de Previdência, dava-se como renda vitalícia; se contratada na carteira de Vida, realizava-se na forma de pagamento único. Essa cara de moderni- dade explicou, em parte, o sucesso da Previdência Privada no Brasil, que em 1999 já abrangia seis milhões de pessoas, com uma receita de R$ 3,898 bi-

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lhões, reservas de R$ 10,2 bilhões, e um crescimento acumulado de 730,45% entre 1994 e 1999. Outro segmento que na década de 90 vivenciou profunda transfor- mação positiva foi o da Capitalização, cuja história no Brasil é bem antiga, iniciada em 1929, data de fundação da Sulacap - Sul América Capitalização, na forma de caderneta de poupança programada. Quanto a sua visibilidade emblemática, tem a mesma idade da Fenaseg: desde aquele primeiro dia, 25 de junho de 1951, lá estava na denominação institucional da entidade, que recebeu no ato de constituição o nome completo de FNESPC - Federação Nacional Empresas de Seguros Privados e de Capitalização. Mas, não obs- tante a antigüidade desse nascimento, ao longo de praticamente quarenta anos de história, já dentro da Fenaseg, a Capitalização praticamente passava incólume e invisível, ao largo das angústias, dos avanços e recuos da ativi- dade seguradora. De acordo com pesquisa coordenada pelo Economista Claudio Con- tador, Secretário Executivo da Funenseg, a Capitalização apresentava, nas décadas de 40 e 50, um crescimento médio anual próximo de 10%, partici- pando do bolo do PIB com aproximadamente 0,30%, e suas operadoras che- gavam ser mais ricas que as seguradoras. Nos primeiros anos da década de 60, atropelada pela inflação e obscurecida pelas nuvens de incertezas que pairavam sobre o País, o setor apresenta quebra em sua produção, que chega a 20,9% negativos em 1965. Mas, a partir daí, a partir da reforma do merca- do de Capitais (Lei 4595/65) e da instituição da correção monetária, entra no pátio da euforia desenvolvimentista dos anos do “milagre”, e sua produção parte de uma participação de 0,11% no PIB em 1965, para chegar a 0,21% em 1980, e entrar em rota ascensional desde então: em 2000, com uma pro- dução de R$ 4,340 bilhões, a Capitalização já representava 0,38% do PIB. Esse crescimento, que retrata a evidência da modernização do mer- cado brasileiro de produtos financeiros, soma-se a outros importantes mo- mentos na vida das seguradoras na década de 90. Um deles, marcado pelo Parecer GO-104/96, da Advocacia Geral da União. Emitido em resposta a

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consulta do Ministro da Fazenda, firmava opinião em torno da inconstitu- cionalidade da Resolução CNSP nº 14/86, que impedia que o capital estran- geiro participasse com mais de 50% do capital ou um terço das ações de seguradora brasileira. Acatado pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, esse Parecer da AGU foi o respaldo legal para que, imediatamente, mais de 20 empresas estrangeiras entrassem no Brasil a partir de junho de 1996. A abertura do mercado brasileiro às seguradoras estrangeiras, em lu- gar de ser apenas mais um capítulo na história do jacobinismo de paróquia, é o início da manifestação de uma tendência inédita no quadro geral das relações econômicas em escala planetária: a globalização. Processo que, abrangendo o mundo inteiro, induz à quebra das barreiras e dos isolamentos geográficos, e ao surgimento de um novo quadro de relações produtivas, em que o capital a cada dia torna-se menos político e mais financeiro. Na Fenaseg, João Elisio aplaude essa tendência, que de certo modo consagrava algumas das propostas constantes da Carta de Brasília, e que a seu ver podiam ser sintetizadas em três substantivos de rima fácil: desestati- zação, descentralização, modernização. Essa nova realidade, segundo ele, preservava a coerência mantida ao longo de toda a história da própria Fede- ração, que desde seu nascimento vinha-se batendo pela abertura de espaço para a atividade das seguradoras. Para favorecer o aproveitamento desse novo ambiente de aprimora- mento da atividade seguradora, desde o primeiro ano de sua gestão João Elisio procura incentivar uma série de medidas destinadas sobretudo a in- tensificar o fluxo de informações indispensáveis à modernização, segurança e ampliação do volume global dos negócios. Neste sentido, estimula a reali- zação do SIAS - Simpósio Internacional de Automação de Seguros, que a cada dois anos reúne conferencistas brasileiros e estrangeiros, representa- ções de seguradoras e fornecedores de equipamentos, para discutir soluções de informática e comunicação aplicadas à comercialização e operação de seguros.

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Diante das transformações ocorridas nas relações decorrentes de contratos de seguros, sobretudo após o advento do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90) e da Lei nº 9656/98, sobre Planos e Seguros de Saúde, a perplexidade e a desinformação passaram a fazer parte do dia-a-dia do mercado. Relações entre segurados e operadoras de seguros de repente foram aquecidas pelo clamor nem sempre justo, que antepunha, à inocência contratual de um consumidor quase sempre visto como hipossuficiente, as empresas, rotuladas pela cegueira e precipitação como beneficiárias de um estado supostamente geral de ignorância da lei. Formadores de opinião, mo- vidos por razões humanitárias, e não raramente magistrados, diante do inedi- tismo da nova legislação e seus efeitos, sobretudo os emocionais, sobre os contratos de seguros, viram-se de repente sensibilizados por verdadeira eu- foria na concessão de favores nem sempre justos aos consumidores. Bus- cando-se fazer justiça, atropelava-se a segurança jurídica dos contratos, a boa-fé objetiva e a lealdade nas relações de consumo. Para debater a natureza e conseqüências dessa mudança de cenário, a Fenaseg, afastando-se da emocionalidade que afetava o conteúdo dos con- tratos de seguros, em parceria com a Funenseg e Sindicatos das Empresas de Seguros, passa a promover uma série de fóruns jurídicos sobre a atividade seguradora. Em nível nacional, os eventos tiveram a participação de Minis- tros do STF, STJ e TRFs, e regionalmente, em vários Estados da Federação, através das associações locais de magistrados, com a participação de juízes, representantes dos Procons e jornalistas. E, para avançar ainda mais, na bus- ca de melhor informação e maior celeridade na solução de conflitos decor- rentes das relações de contratos de seguros, João Elisio cria, em 1999, um Núcleo de Arbitragem. Sua missão: estudar a viabilidade da implantação de câmaras de arbitragem, modo extrajudicial de resolução de litígios relacio- nados a seguros e resseguros, nos termos da Lei 9703/96. Para mostrar o que é e o que pode ser a utilização desse modo de composição de interesses, mais ágil, mais econômico e mais rapidamente eficiente que os meios ordi- nários de recorrência ao Poder Judiciário, a Fenaseg realiza no Rio, em a-

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gosto de 1999, um Seminário Internacional de Arbitragem, com participan- tes de vários Estados. Internamente, a proposta de uma comunicação melhor com os vários agentes do mercado levou a Fenaseg a implantar o “Cadastro Nacional de Sinistros” (CNS), arquivo informatizado de informações essenciais aos pro- cessos de indenização de sinistros, que desde então foi largamente utilizado pelas seguradoras. Também dá início à edição do “Fax Seguros”, publicação semanal amplamente informativa, que se destina a manter o mercado segu- rador informado sobre eventos e mais assuntos de seu interesse, transforma- do em “E-mail Seguros” a partir de 2001, quando a expansão da rede de teleinformática já recomenda a utilização de veículos mais imediatizados. Também é neste mesmo sentido que o site da Fenaseg, reformatado e reedi- tado na mesma época, agrega a partir de então informações gerais sobre o mercado, as seguradoras, os sindicatos, a agenda de trabalhos da Federação. Mas, além da contemporaneidade, João Elisio é desafiado a enfrentar o passado. Desatar o nó institucional do monopólio do resseguro, atado nos tempos de Vargas, e que finalmente, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, parecia ter morte anunciada. Assim, no momento em que a Fenaseg dá publicidade e impulso a uma proposta de modelo para a privati- zação do IRB, que deveria deixar de ser regulador do cosseguro, resseguro e da retrocessão, e se manteria em condições de igualdade com outros agen- tes, o mercado aplaude. Mais que isso, apóia o projeto vitorioso de Emenda Constitucional (nº 13), de autoria do Deputado Cunha Bueno, que seria a- provada pelo Congresso Nacional em sessão do dia 21 de agosto de 1996. Essa Emenda, que além do apoio da Fenaseg acolhera a franca simpatia do próprio Governo, alterou a redação do inciso II do Artigo 192 da Constitui- ção Federal, suprimindo de seu texto o aposto “órgão oficial ressegurador”, que até então garantira ao IRB a perpetuação de um monopólio que vinha de 1940. Constante das intenções do próprio Governo, que já não via razão para manter esse monopólio, a Emenda Cunha Bueno passou a depender

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apenas de regulamentação, que desde então seria insistentemente pedida pelo mercado, através de estudos e pronunciamentos da Fenaseg. Entre os argumentos que a Federação utiliza, para sensibilizar o próprio mercado para a importância de entregar à livre competição o mercado de resseguros, há um, de clareza meridiana: entre 1970 e 1979 o volume acumulado de negócios no ramo do resseguro no Brasil chegou a US$ 3,18 bilhões, ex- pressivamente ampliados para US$ 4,33 bilhões entre 1980 e 1988. A força desse argumento, somada às razões técnicas da busca de modernidade no mercado de resseguro, deu corpo e intensidade à voz corpo- rativa da Fenaseg em defesa da quebra do anacronismo do monopólio do IRB. Voz que se tornaria mais insistente a partir de abril de 1998, quando João Elisio, eleito para seu terceiro mandato à frente da Fenaseg (1998- 2001), encaminha ao Governo um relatório de grupo de trabalho constituído para realizar “Estudos sobre a regulamentação do resseguro no Brasil”. Coordenado por Luiz Tavares Pereira Filho, da Bradesco Seguros, o trabalho realizado por esse grupo teve como ponto de partida os princípios da livre iniciativa e concorrência inseridos na Constituição Federal, e esten- didos pela Emenda nº 13/96 à área de resseguro. Preocupa-se com a prote- ção ao segurado e às seguradoras cedentes nas operações de resseguros, so- bretudo no que diz respeito aos cálculos da margem de solvência e constitu- ição de suas reservas. E finalmente propõe, num substancioso e enxuto rela- tório de 126 páginas, diretrizes para a regulamentação do resseguro no Bra- sil, “capazes de sustentar um modelo ideal e viável, que possa, ao mesmo tempo, atender às necessidades do mercado e ser condizentes com os pa- drões internacionais”. O Relatório que é apresentado por João Elisio ao mercado e ao Go- verno provocaria de imediato um movimento que a Fenaseg certamente ha- via previsto: o Ministro da Fazenda Pedro Malan propõe que seja formada uma equipe mista, integrada por representantes da Secretaria de Política Econômica, Susep e IRB, para elaboração de modelo de política do ressegu- ro no Brasil. Além disso, as linhas técnicas gerais do relatório apresentado

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por esse grupo seriam enriquecidas por proposta apresentada pela Fenaseg, sendo finalmente aproveitadas no projeto de privatização do IRB elaborado pelo BNDES, e na regulamentação feita pela Susep. Mas, nesse ambiente em que se acolhiam com franca receptividade pelo menos as idéias gerais de modernização do mercado, o monopólio do resseguro é apenas um entre os vários dinossauros com que a atividade se- guradora se defronta, nesse já quase apagar das luzes do milênio. Desde seu discurso de posse, proferido seis anos antes, João Elisio vinha insistindo na necessidade do “encaminhamento de sugestões que permitam ao Executivo e ao Legislativo extinguir o monopólio hoje existente para o segmento de seguros de acidentes de trabalho, outra herança lamentável do Brasil estati- zante”. Assim, disposto ao enfrentamento de um problema que vinha paqui- dermicamente se arrastando desde a pré-história da Fenaseg, institui em dezembro de 1998 um grupo de trabalho encarregado de preparar uma “Pro- posta de Regulamentação do Seguro de Acidente do Trabalho”. Coordenado por Oswaldo Mário Azevedo, da Sul América Seguros, esse grupo retomaria algumas das linhas de trabalho realizado anteriormente, por comissão presi- dida por Júlio Bierrenbach, ramo de seguros O Grupo de Trabalho procurou definir o exato enquadramento legal desse ramo de negócios que havia sido estatizado pela Lei 5136, de 14 de setembro de 1967 (Lei 5136. Desenhou as linhas de limite e interface com outros ramos e áreas afins, como o Seguro Saúde, o Seguro de Acidentes Pessoais e os planos públicos e privados de Previdência. Procedeu a um estudo de legislação comparada, pontos de tangenciamento com a normati- zação vigente no Brasil, e trabalhos de fundamentação normativa elaborados pelo Governo. Em dezembro de 1999 o grupo apresentou ao mercado a con- solidação das idéias e “Fundamentos para a regulamentação do seguro de acidentes do trabalho”, e uma minuta de projeto de lei fundamentada na Emenda PEC nº 33, que reformulou o Art. 201 da Constituição Federal. A verdadeira pedra de toque à reforma desse famoso Art. 201 da Constituição deve-se à minudente leitura feita por Luiz Mendonça, nos tex-

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tos existentes e nas propostas de reforma já em discussão legislativa. O texto originalmente proposto à votação no Congresso Nacional falava, no inciso I do Artigo 201, que eventos resultantes de acidentes de trabalho eram atribu- ição exclusiva da Previdência Social; e, contraditoriamente, num § 10º, esta- tuía que a “Lei disciplinará a cobertura de risco de acidente do trabalho, a ser atendida concorrentemente pelo regime geral de previdência social e pelo setor privado”. Alertado por Mendonça, para a aberração desse conflito dentro de um mesmo artigo de lei, o Deputado Cunha Bueno apresentou emenda su- pressiva, que limpou o inciso “I” do Artigo 201 da Constituição Federal daquilo que teria sido, para as seguradoras, a morte pelo absurdo, de sua velha aspiração do retorno do acidente do trabalho à iniciativa privada. A essa conquista, filha da atenção de Luiz Mendonça e do empenho do Depu- tado Cunha Bueno, somar-se-ia proximamente a disposição da Secretaria de Previdência do Ministério da Previdência e Assistência Social, favorável à realização de trabalho conjunto com a Fenaseg, para a elaboração da propos- ta de regulamento da lei, em que seriam considerados os interesses do setor privado e do Instituto Nacional de Seguridade Social. Desde sua posse, no primeiro mandato em 1992, João Elisio mani- festara sua preocupação com o Seguro Saúde. Criado pelo Artigo 129 do Decreto-Lei nº 73 de 1966, durante três décadas essa modalidade de apólice hibernou na obscuridade, padecendo com as incertezas de um disciplina- mento sempre incompleto. Mas, ao ser promulgada a Constituição Federal de 1988, pela qual o Estado foi declarado responsável pelo acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção da saúde de mais de cem milhões de brasileiros, entendeu-se que alguma coisa tinha que mudar. O depauperado sistema público de saúde foi colocado na berlinda e sob o fogo cruzado das emoções, e assistiu-se ao esforço de Sísifo da seguridade social, tentando rolar morro acima a bola de chumbo de um orçamento cada dia mais comprometido e menos suficiente para atender à demanda de assistên- cia à saúde.

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Para se ter uma idéia da dimensão do esforço, da boa-vontade e da insuficiência de meios exigidos para a manutenção do sistema nacional de saúde pública, em 1999, para atender a 124 milhões de brasileiros, que re- presentavam 73,4% da população total do País, o SUS - Sistema Único de Saúde mobilizou mais de R$ 20,5 bilhões, através de 6.922 hospitais, 566 mil leitos e 70 mil médicos. Esse montante (3,5% do PIB naquele ano), que equivalia à vontade e ao limite possível da capacidade do Estado em face de um quadro de escassez orçamentária, só não era mais comprometido porque, nesse ano, cerca de 40 milhões de brasileiros eram atendidos por planos ( 34 milhões de pessoas) e seguros privados de assistência à saúde (6 milhões de segurados em 1999). Diante desse quadro, o ramo de seguro saúde, cuja importância fora sempre destacada pela Fenaseg, assumiria com o passar dos anos uma con- dição que o privilegiava sob o ponto de vista da favorabilidade à sua comer- cialização. Representando pouco mais de 1,9% do total da produção das seguradoras em 1984, em 1990 sua participação no volume agregado de faturamento do mercado subia para 7,5%, percentual que dobraria em ape- nas cinco anos, chegando a 15,33% em 1995. A partir daí, apresentando uma performance a cada ano mais expressiva, chegaria a 24,7% do total do mercado no ano de 2000, superando todos as demais ramos, excetuado o de Automóvel, que nesse ano manteria um patamar de 31% da produção brasi- leira de seguros. Nada mais natural, portanto, que a partir do agigantamento desse sistema, Estado e iniciativa privada passassem a se preocupar com a impre- cisão de limites normativos à atividade econômica de operadores de planos e seguros de saúde. E a Comissão Técnica de Seguro Saúde da Fenaseg, inicialmente coordenada por Horácio Cata Preta, e posteriormente por Már- cio Seroa Araújo Coriolano, da Bradesco Seguros, promoveu ou participou de debates e comissões que discutiram, na Câmara, no Senado e com o Mi- nistério da Saúde, a regulamentação única para o setor, que aconteceria com

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a edição da Lei 9.656/98, cujo texto seria alterado por sucessivas Medidas Provisórias. Tudo parecia finalmente caminhar para o final feliz de uma normati- zação que atenderia à expectativa antiga, manifestada oito anos antes na Carta de Brasília, de que se colocasse a operação do seguro saúde nos trilhos da racionalidade, em que prevalecessem os mesmos princípios normativos para todos os setores envolvidos na assistência à saúde. Mas, de repente, uma guinada. A brusca mudança de temperamento e clima, no debate que vinha sendo conceitualmente enriquecido em torno da regulamentação que era ensaiada através de sucessivas normas. No dia 27 de setembro de 1998 é baixada a Medida Provisória nº1908 em sua 18ª versão, que dava nova reda- ção ao Artigo 1º, Parágrafo 2º da Lei 9656, acrescentando ao texto original da norma uma proibição muito estranha: a partir de 31 de dezembro de 1999 as companhias de seguros não poderiam mais comercializar um produto que é peculiar e natural em suas carteiras, o seguro saúde. Na origem remota e absurda de tal proibição, que poderia atingir seis milhões de segurados, residia um daqueles tantas vezes deplorados atos de miopia regulamentar. A Fenaseg, e com ela a totalidade das seguradoras, vinha resistindo a uma proposta contemporânea de transferir a fiscalização até então exercida pela Susep, em decorrência do que determina o Decreto- Lei 73, para o âmbito da ANS - Agência Nacional de Saúde, criada pela Lei 9961/2000. O argumento a favor dos seguradores residia no próprio sistema legal vigente, que requeria, para uma eventual transferência desse tipo, a prévia existência de Lei Complementar determinativa, afastada a possibili- dade de uma tal movimentação institucional por simples Medida Provisória. Criado o impasse, a solução que se apresentou de modo aparente- mente mais simples foi acabar com o seguro saúde, fixar um prazo para que seguradoras transformassem a operação de seguro saúde na contratação de plano, e submeter-se toda a atividade de prestação privada de assistência médico-hospitalar à fiscalização da ANS.

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Um ano inteiro de negociações foi o tempo gasto por João Elisio e uma comissão integrada por representantes do mercado (Luiz Tavares, Ga- briel Fagundes Filho, da Sul América, e Horácio Cata Preta, da Fe- naseg), para vencer às resistências ao que parecia tão evidente. E no dia 12 de fevereiro de 2001, com a edição da Lei 10185, as seguradoras foram fi- nalmente autorizadas a pleonasticamente operar o seguro saúde. Desde que, para tanto, se constituissem como empresa especializada. Essa especiosa e freqüente mudança de ventos políticos no debate das questões relacionadas com o Seguro Saúde motiva, na Fenaseg, uma resposta administrativa de João Elisio, que decide criar, no primeiro semes- tre de 2001, uma diretoria inteiramente voltada à análise e condução técnica do assunto. Tal providência, num contexto mais amplo, pode ser vista como parte de um corpo maior de medidas, que vinham sendo tomadas não só para o enfrentamento de uma verdadeira campanha em favor do seguro saú- de, mas também da melhor definição normativa dos demais produtos e da atividade global das seguradoras. Um ano antes, em janeiro de 2000, atendendo a solicitação do Minis- tro da Fazenda Pedro Malan, técnicos do mercado, com abonação da Fena- seg, tinham apresentado uma “Agenda para as áreas de seguro, previdência privada e capitalização”. Em modo de síntese, esse documento apontava meios de potencialização de investimentos que poderiam ser feitos a partir de poupança gerada no setor de seguros, previdência privada e capitalização, desde que alguns corpos estranhos à operação de alguns tipos de seguros e contratos fossem devidamente tratados ou eliminados. A Agenda, entregue à Susep, mereceu boa acolhida por parte do Su- perintendente Hélio Oliveira Portocarrero de Castro, que não só manifestou sua abonação a algumas mudanças propostas, relacionadas com produtos, como designou o diretor da Susep Luis Peregrino para participar nos traba- lhos de fundamentação técnica dos estudos. Além disso, Portocarrero de- terminou o início a uma série de estudos relacionados com a modernização dos vários produtos oferecidos pelas seguradoras, incluindo, entre os temas

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tratados com maior rigor técnico, a questão ansiosamente esperada pelo mercado, de se acabar com a incidência de IOF na contratação de seguros de vida. Desde o início de 2001, a tão esperada queda do imposto ganhara força, através de Parecer do CNSP e, em março, a promessa do Ministro da Fazenda Pedro Malan de que até o final do semestre a isenção do IOF seria definida. Assim, no dia 21 de maio de 2001, ao ser editado o Decreto nº 3819, que acabava com a cobrança de IOF - Imposto sobre Operações Fi- nanceiras no Seguro de Vida por Sobrevivência, a proposta técnica da Fena- seg e o empenho da Susep foram parcialmente atendidos. Ao comemorar essa conquista, o mercado antecipava a possibilidade de redução no valor dos prêmios cobrados pelas seguradoras, e o estímulo à comercialização do produto, que é vantajoso para o País, por se constituir em instrumento de formação de poupança de médio e longo prazos. Ainda nesse mesmo primeiro semestre de 2001 a Fenaseg retomou uma bandeira antiga, e após dois anos de estudos encaminhou, à diretoria do Departamento de Planejamento Agrícola do Ministério da Agricultura e Abastecimento, um projeto de regulamentação do seguro rural. Tratava-se do retorno a uma daquelas antigas aspirações do mercado, cuja origem pode ser rastreada até o ano de 1962, quando o então Presidente da Fenaseg Clau- dio Almeida Rossi defende a idéia da criação de um consórcio de segurado- ras privadas, para a operação de um seguro agrícola. Paradoxalmente, como resposta, surge no Congresso Nacional um projeto de lei que estatizaria esse ramo de seguro, concedendo sua exploração por monopólio operado por uma autarquia, cujo destino permaneceu incerto e não sabido por algum tempo. A matéria voltaria à luz do mercado em 1966, com a edição do De- creto-Lei 73, que dele se ocupa em seus Artigos 16 a 19, e novamente mer- gulharia na sombra do desinteresse, até que em 1982 a Fenaseg divulga um texto de proposta de projeto de lei, preparado por José Américo Peon de Sá, quase como resposta a alguns sustos vividos pela agricultura brasileira em

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face de fenômenos hostis da natureza. Lido, estudado e debatido, esse proje- to, cujo texto se estendia por 15 artigos, novamente mergulha no conforto preguiçoso de algum arquivo público, mas a Fenaseg insiste em sua defini- ção normativa. Finalmente, em 1999, o seguro agrícola reaparece, com nova roupagem mas o mesmo corpo, em novo projeto, elaborado pelo Grupo de Trabalho do Seguro Rural, coordenado pelo experiente Peón de Sá, com a participação de técnicos do mercado, IRB, SUSEP e do próprio Ministério da Agricultura. Ao justificá-lo, Peón de Sá vale-se de uma cerrada argumentação e- conômica: o setor de agronegócios representa 21% do PIB brasileiro, sendo responsável por 40% das exportações do País, e pela geração de 37% da mão-de-obra ocupada. Contempla várias modalidades de seguro: agrícola, pecuário, florestal, bens, benfeitorias, produtos rurais, e entrega futura de produto agropecuário, e consolida dispositivos de várias leis esparsas em vigor. O projeto é finalmente recebido pelo Ministro da Agricultura e abas- tecimento Marcus Vinicius Pratini de Morais, com sinalização de boa aco- lhida. Ao mesmo tempo em que se voltava com obsessiva atenção para as propostas de modernidade inseridas na Carta de Brasília ou historicamente pedidas pelo mercado, João Elisio procura definir uma plataforma de proje- tos voltados para o futuro. E em Setembro de 2000, durante a Conseguro - Conferência Brasileira de Seguros, Resseguros, Previdência Privada e Capi- talização, realizada no Rio, com a participação de 1.342 personalidades bra- sileiras e internacionais, ele apresenta um balanço altamente positivo da atividade nos últimos anos. Mostra como, num ambiente de estabilidade econômica, marcado pela a queda vertical da inflação brasileira, que despencara dos quase 3.000% ao ano, da primeira metade da década de 90, para índices que em junho de 2001 situavam-se numa expectativa de 4,5% ao ano, a atividade havia crescido. Registrara em 2000 uma relação da produção de prêmios com o PIB da ordem de 3%, contra um índice historicamente engessado em

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1%. E favorecido pelo advento do Plano Real, em 1994, pôde o mercado viver um período de franco desenvolvimento. Na produção do Seguro, que sobe de R$ 14,045 bilhões em 1994 para R$ 20,324 bilhões em 1999. Na previdência privada aberta, que passa de R$ 695,727 milhões para R$ 3,019 bilhões no período; e na Capitalização, cujo faturamento vai de R$ 2,407 bilhões para R$ 4,090 bilhões entre 1994 e 1999. A essas considerações, João Elisio acrescenta um prognóstico sobre o desenvolvimento futuro do mercado. Considera que, num cenário de eco- nomia estável e expansão econômica anual média de 4%, o volume agrega- do da produção de Seguros, Capitalização e Previdência Privada Aberta pode ascender a R$ 56 bilhões em 2005, e o País, em 10 anos, pode vir a se beneficiar com uma geração de reservas da ordem de R$ 278 bilhões. E a- firma que “nenhum outro segmento da economia brasileira pode gerar uma cifra como esta, em tão curto espaço de tempo”. Para tanto, conclui o Presi- dente da Fenaseg, além de economia estável o mercado pede apenas que se mantenha a trajetória desenhada pela Carta de Brasília, em sua política de três “DDD”: desregulação, desburocratização e desestatização. A evolução registrada no Brasil, na atividade de seguros, capitaliza- ção e previdência privada, ao longo da década de 90 e do primeiro ano do novo milênio parece apontar no sentido da confirmação dessa boa expectati- va da Fenaseg. Mas, se tudo isto vai mesmo se tornar realidade, para a feli- cidade geral do mercado e o coroamento do bom combate corporativo que marcou os 50 anos da Federação, apenas o tempo será capaz de dizer.

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