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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

NAYARA DE OLIVEIRA WIIRA

UMA ANÁLISE DA ESTRUTURAÇÃO DO CAPITALISMO RUSSO ATRAVÉS DA PRIVATIZAÇÃO NO GOVERNO YELTSIN (1991-1999).

MARÍLIA

2020

NAYARA DE OLIVEIRA WIIRA

UMA ANÁLISE DA ESTRUTURAÇÃO DO CAPITALISMO RUSSO ATRAVÉS DA PRIVATIZAÇÃO NO GOVERNO YELTSIN (1991-1999).

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília, para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Orientador: Prof. Dr. Francisco Luiz Corsi

MARÍLIA

2020

Wiira, Nayara de Oliveira W662a Uma análise da estruturação do capitalismo russo através da privatização no governo Yeltsin (1991-1999) / Nayara de Oliveira Wiira. -- Marília, 2020 280 f.

Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientador: Francisco Luiz Corsi

1. História econômica. 2. História econômica russa. 3. Privatização. 4. Capitalismo. I. Título.

Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília. Dados fornecidos pelo autor(a).

Essa ficha não pode ser modificada. NAYARA DE OLIVEIRA WIIRA

UMA ANÁLISE DA ESTRUTURAÇÃO DO CAPITALISMO RUSSO ATRAVÉS DA PRIVATIZAÇÃO NO GOVERNO YELTSIN (1991-1999).

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília, para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Linha de pesquisa 4: Relações Internacionais e Desenvolvimento

BANCA EXAMINADORA

______Orientador: Prof. Dr. Francisco Luiz Corsi Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências

______Prof. Dr. Agnaldo dos Santos Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências

______Prof. Dr. Ângelo de Oliveira Segrillo Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Marília, 01 de setembro de 2020. Agradecimentos

Em primeiro lugar, meus agradecimentos vão à minha família e aos meus amigos, que me ofereceram todo o encorajamento necessário para concluir mais essa etapa. Sou eternamente grata por todo apoio e por terem acreditado no meu trabalho. Eu não teria sido capaz de concluí-lo sem vocês ao meu lado. Igualmente, agradeço profundamente ao meu orientador Professor Francisco Luiz Corsi, que acompanhou o desenvolvimento desse trabalho desde a graduação, com muita paciência e dedicação, oferecendo todo o apoio necessário para o andamento da pesquisa. Foi uma imensa honra contar com a orientação de alguém que tem tanto conhecimento a oferecer, e com quem eu tenho a oportunidade de sempre continuar aprendendo. Estendo meus agradecimentos aos membros da banca. Ao professor Agnaldo, que também acompanha os avanços desse trabalho desde o período da graduação e que me ofereceu muita atenção e conselhos preciosos ao longo dos anos, presente na minha banca avaliadora da monografia, da qualificação e mais uma vez na conclusão dessa nova fase. Ao professor Segrillo, cujo trabalho sobre a União Soviética e sobre a Rússia é referência e inspiração, fico extremamente lisonjeada de ter a oportunidade de contar com suas contribuições. Aos demais docentes que contribuíram para a minha formação, também apresento meu sentimento de gratidão. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, e meus agradecimentos se estendem à instituição que possibilitou a execução da pesquisa. Assim como eu, muitos estudantes não conseguiriam se dedicar à pesquisa caso não pudessem contar com o apoio dessa instituição essencial para o desenvolvimento da pesquisa nacional. Lutaremos por sua defesa, assim como lutaremos pela defesa da universidade pública de qualidade. Agradeço imensamente à Universidade Estadual Paulista, em especial à Faculdade de Filosofia e Ciências, seus funcionários e seu corpo docente, por ter sido nos últimos sete anos o meu espaço de acolhimento e de formação, não só acadêmica, mas também humana.

RESUMO

A Federação Russa tem mantido, nos últimos anos, um papel de destaque no cenário internacional, desempenhando uma atuação expressiva nos planos econômico, político e geoestratégico, ultrapassando sua área de influência regional e sendo incisiva no seu projeto de protagonismo global. Frente tal proeminência, torna-se evidente a necessidade de colocar o país como objeto de acompanhamento e pesquisa. Durante a década de 1990, após o fim da União Soviética em 1991, o país passou por um período de transformações, dentre as quais as reformas na estrutura econômica ganham destaque pela profundidade das mudanças. Nesse sentido, o presente trabalho volta-se para esse período, com o objetivo de analisar uma das faces das reformas econômicas, que foi a privatização em massa do setor industrial russo, ponderando sobre como esse processo foi central para a estruturação do sistema capitalista no país. Para alcançar tal objetivo, o trabalho toma como ponto de partida o referencial teórico marxista e a discussão dos conceitos de acumulação primitiva e acumulação por espoliação de David Harvey. Uma vez estabelecida a base teórica, o trabalho desenvolve um conteúdo de caráter qualitativo e exploratório, a partir de estudo bibliográfico e utilizando majoritariamente fontes secundárias, realizando um balanço do material selecionado, e avançando a discussão sobre o tema. Com o desenvolvimento do trabalho, foi possível concluir que o processo de privatização na Rússia foi conduzido pelo Estado russo de tal forma que favoreceu a concentração dos ativos antes públicos nas mãos de poucos indivíduos, estabelecendo assim uma classe proprietária dirigente que passou a controlar as mais valiosas estatais construídas no período soviético. Além disso, o processo contribuiu para o enfraquecimento do setor industrial russo e um retrocesso na densidade da estrutura econômica do país, que se viu cada vez mais concentrada na exploração das commodities. Palavras-chave: Economia russa. Privatização. Governo Yeltsin. História econômica russa. Capitalismo russo.

ABSTRACT

The Russian Federation has maintained, in recent years, a prominent role in the international scenario, playing an expressive role in the economic, political and geostrategic levels, surpassing its area of regional influence and being incisive in its project of global protagonism. Faced with such prominence, the need to place the country as an object of monitoring and research becomes evident. During the 1990s, after the end of the in 1991, the country underwent a period of transformation, among which reforms in the economic structure are highlighted by the depth of the changes. In this sense, the present work focuses on this period, with the objective of analyzing one side of the economic reforms, which was the mass of the Russian industrial sector, considering how this process was central to the structuring of the capitalist system in the country. To achieve this goal, the work takes as a starting point the Marxist theoretical framework and the discussion of David Harvey's concepts of primitive accumulation and spoliation accumulation. Once the theoretical basis is established, the work develops a qualitative and exploratory content, based on a bibliographic study and using mostly secondary sources, making a balance of the selected material, and advancing the discussion on the topic. With the development of the work, it was possible to conclude that the privatization process in was carried out by the Russian State in such a way that it favored the concentration of previously public assets in the hands of a few individuals, thus establishing a ruling proprietary class that came to control the most valuable state-owned companies built in the Soviet period. In addition, the process contributed to the weakening of the Russian industrial sector and a setback in the density of the country's economic structure, which was increasingly concentrated in the exploitation of commodities. Keywords: Russian economy. Privatization. Yeltsin government. Russian economic history. Russian capitalism.

Lista de gráficos GRÁFICO 1 – Saldo da balança comercial russa...... 107 GRÁFICO 2 – Taxa de câmbio entre dólar americano e rublos ...... 107 GRÁFICO 3 – Taxa de inflação na Rússia, preços ao consumidor no final do período...... 109 GRÁFICO 4 – Saída de Investimento Estrangeiro Direto na Rússia, em milhões. . 117 GRÁFICO 5 – Produção de petróleo bruto na Rússia - BBL/D/1K ...... 120 GRÁFICO 6 – Crescimento do PIB (em % anual) ...... 121 GRÁFICO 7 – Estrutura do PIB russo ...... 121 GRÁFICO 8 – Produção e preço do petróleo na Rússia ...... 194 GRÁFICO 9 – Estrutura ocupacional da população russa por setor ...... 229 GRÁFICO 10 – Produção industrial física da Federação Russa entre 1991 e 2011 (em número-índice – 1991=100)...... 237 GRÁFICO 11 – Investimento real bruto na Rússia de 1991 a 1994 (em número- índice – 1990=100) ...... 245 GRÁFICO 12 – Evolução da taxa de investimento na URSS e na Rússia (1950-2008, em termos de % do PIB) ...... 245 GRÁFICO 13 – Composição do PIB russo por setor ...... 252 GRÁFICO 14 – Evolução da participação das commodities no total das exportações russas, em % ...... 254

Lista de tabelas

TABELA 1 – Taxas de crescimento do PIB soviético no período de 1951 a 1960 .... 35 TABELA 2 – Taxas de crescimento anual, em porcentagem, da renda nacional soviética (Produto Material Líquido) ...... 42 TABELA 3 – Médias anuais da fração dos investimentos (em capital fixo) destinados à agricultura e da fração da renda nacional gerada pela agricultura, expressas em percentagem e em rublos...... 43 TABELA 4 – Gastos militares a preços constantes e correntes (em bilhões de dólares), segundo cálculos de SIPRI (S.) e USACDA (U.)...... 48 TABELA 5 – Gastos militares russos na década de 1990, em milhões de dólares (2017) ...... 114 TABELA 6 – Desemprego na Rússia – (% do total da força de trabalho) ...... 118 TABELA 7 – Expectativa de vida da população russa, em anos ...... 118 TABELA 8 – População russa, total em milhões de habitantes ...... 118 TABELA 9 – Índice de crescimento da população russa ...... 119 TABELA 10 – Número de empresas privatizadas por setor público por ano ...... 165 TABELA 11 – Leilões de vouchers na Rússia, de dez. de 1992 a junho de 1994... 166 TABELA 12 – Alguns resultados dos leilões de empréstimos por ações ...... 176 TABELA 13 – Principais indicadores do processo de privatização na Rússia ...... 184 TABELA 14 – Evolução da repartição da renda na Rússia entre 1992 e 2011 ...... 235

Sumário

INTRODUÇÃO ...... 10 a. Do objeto de estudo ...... 11 b. Do referencial teórico e dos conceitos centrais do trabalho ...... 18 c. Do método de pesquisa adotado ...... 29 1. Resgate do passado soviético – aspectos centrais do sistema econômico e principais tentativas de reforma ...... 31 1.1. As bases da economia soviética ...... 31 1.2. Breve balanço da política econômica nos governos Kruchev (1953-1964) e Brejnev (1964-1982) ...... 41 1.3. A chegada de Gorbachev – o contexto econômico da década de 1980 ...... 51 1.4. Balanço da política econômica da ...... 54 1.5. O elemento externo: a nova política externa de Gorbachev ...... 60 1.6. Notas sobre a reforma política – glasnost ...... 64 1.7. O processo de desintegração da União Soviética ...... 68 2. Aspectos condicionantes da transformação sistêmica Russa ...... 76 2.1. Conjuntura internacional e hegemonia do ideal neoliberal ...... 78 2.2. Qual modelo? O debate entre o modelo da “terapia de choque” e o modelo “gradualista” ...... 82 2.3. Breve retomada da transformação política na Rússia ...... 83 2.3.1. As relações entre Yeltsin e o parlamento russo ...... 87 2.3.2. A Constituição de 1993 ...... 89 2.3.3. As eleições de 1995 e 1996 ...... 93 2.3.4. A formação da nova classe dirigente russa...... 95 2.3.5. Avaliações sobre o legado de Yeltsin ...... 98 2.4. O plano de estabilização econômica – um dos pilares da “terapia de choque” ...... 100 2.4.1. Condições iniciais das reformas econômicas de Yeltsin ...... 100 2.4.2. As propostas do modelo neoliberal ...... 101 2.4.3. O início das reformas e a liberalização radical da economia ...... 103 2.4.4. A profunda depressão da economia russa ...... 113 2.4.5. Sobre a inexistência de uma estrutura institucional ‘adequada’ ...... 122 2.4.6. Breves notas sobre o crescimento do sistema bancário russo ...... 126 2.4.7. Modo de inserção da economia russa na economia capitalista global ...... 129 3. A privatização da economia russa ...... 134 3.1. Sementes da privatização no governo Gorbachev ...... 138 3.2. Planos de privatização do governo Yeltsin ...... 143 3.2.1. Privatização em massa ...... 156 3.2.2. Privatização loans for shares (empréstimos-por-ações) ...... 170 3.3. Principais resultados do processo de privatização da economia russa ..... 177 3.4. A formação da “oligarquia” russa ...... 197 3.4.1. A atuação política dos oligarcas ...... 200 3.4.2. Qual é a origem da fortuna dos oligarcas? ...... 204 a. e ...... 208 b. Boris Berezovsky ...... 209 c. ...... 210 d. ...... 212 e. ...... 214 f. Alexsandr Smolensky ...... 215 3.4.3. A concentração da propriedade e o controle dos oligarcas sobre a economia russa ...... 218 4. Privatização e acumulação por espoliação: construindo as bases do capitalismo russo...... 224 4.1. Consequências e impactos na população: o custo social da transformação ...... 227 4.2. A privatização como elemento chave na análise da estrutura capitalista na Rússia ...... 235 4.3. A transformação estrutural da economia russa pela perspectiva da acumulação por espoliação de Harvey ...... 250 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 267 REFERÊNCIAS ...... 271

10

INTRODUÇÃO

Após quase 70 anos de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), a sua dissolução em 1991 e a formação de 15 nações autônomas deram início a um longo processo de transformações sociais, econômicas e políticas. Um dos principais aspectos desse período de transformação foi a mudança da estrutura econômica, que passou de uma economia planificada centralmente pelo Estado para uma economia de mercado. No período da década de 1990, quando foram implantadas as reformas, a economia da Federação Russa foi marcada por uma longa depressão, com uma queda brutal do seu desempenho econômico (os únicos anos com crescimento positivo do PIB russo na década de 1990 foram 1997 e 1999). Além de ter de lidar com a crise econômica, os russos enfrentaram também as consequências da fragmentação de uma economia até então integrada, os desafios de assumir os compromissos internacionais soviéticos e a missão de redefinir a sua posição no sistema internacional. Assim, toda a década foi marcada por uma série de planos e reformas que concretizaram a integração russa ao sistema capitalista mundial, período em que ocupou o cargo da presidência em duas gestões, de 1991 a 1999. Abordar o período de tantas transformações na realidade russa não é tarefa simples de ser feita, principalmente ao considerarmos a dimensão das reformas que foram introduzidas e o peso que a herança soviética exerceu na realização dessas reformas. Em meio às várias abordagens que a temática permite, o presente estudo tem por objetivo analisar as reformas econômicas que visavam à destruição do sistema de planejamento e a introdução de uma economia de mercado segundo a lógica capitalista. Como fio condutor dessa análise, temos o processo de privatização da economia russa, elemento que consideramos essencial para compreensão do quadro geral das reformas e da estruturação do capitalismo no país. O exercício de reflexão que propomos aqui também resgata o passado soviético, buscando compreender as bases do funcionamento do sistema econômico daquele período, e as reformas a que foi submetido. Nesse sentido, nossa introdução deverá apresentar uma série de elementos que consideramos cruciais para iniciar nossa discussão. Compreendemos como pertinentes os esclarecimentos acerca do objeto de estudo (propondo uma breve 11

apresentação da organização do trabalho nos capítulos que o compõem), do referencial teórico e dos métodos de pesquisa adotados. a. Do objeto de estudo

A partir de 1991, a Federação Russa, agora autônoma na condução de suas políticas, apresenta um novo quadro institucional e político: após o colapso soviético, as reformas econômicas passam a fazer parte de um conjunto maior de reformas, que visam à transformação sistêmica do país. A Rússia ingressa, assim, em uma fase de transformação radical, tanto da estrutura de sua economia como da organização do Estado, do meio político e da sociedade (POMERANZ, 1995, p. 55). Em maio de 1990, Boris Yeltsin (que era na época um dos líderes da oposição a dentro do Partido Comunista da União Soviética - PCUS) foi eleito presidente do Soviete Supremo da República Socialista Federativa Soviética da Rússia (RSFSR), e manteve o seu cargo de liderança após o fim da União Soviética, como presidente da Federação Russa1. Yeltsin nomeou como seu principal assessor econômico, e este foi o responsável por organizar a nova fase de reformas econômicas que deveriam ser articuladas no país. Com participação de , também assessor econômico, foi estruturado um programa de “terapia de choque”, que tinha como objetivo realizar uma reforma acelerada da economia russa em direção ao modelo da economia de mercado, acompanhada de uma estabilização macroeconômica rápida. Ou seja, integrar rapidamente a economia russa ao sistema capitalista global, nos moldes do que se convencionou chamar Consenso de Washington, o receituário de reformas e medidas que foi imposto não só à Rússia, mas a todas as economias que estavam realizando a abertura ao capital internacional, através de mecanismos internacionais

1 No dia 09 de dezembro de 1991, os presidentes das repúblicas da Rússia (Boris Yeltsin), Ucrânia (Stanislav Shushkevitch) e Belarus (Leonid Kravtchuk) se reuniram na cidade de Minsk e selaram um acordo no qual declaravam o fim da União Soviética. No dia 25 de dezembro de 1991, em um pronunciamento que foi transmitido pela televisão, Gorbachev anuncia publicamente a sua renúncia ao cargo de presidente da União Soviética – país que, de fato, não existia mais. Um dia depois, 26 de dezembro, a dissolução oficial da URSS é votada pelo Soviete das Repúblicas, decidindo pela extinção do parlamento soviético. 12

como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) (ver capítulo 2, seções 2.1 e 2.2). Assim, foram definidos quatro pontos principais nos programas dos reformistas russos: 1) liberalização total dos preços; 2) abertura para economia mundial; 3) política de restrições financeiras duras; 4) privatização e introdução de um sistema de direitos de propriedade. Estas reformas seriam parte de um projeto maior de transformação institucional da economia, que tinha como eixos o programa de estabilização – visando um ajustamento econômico e a correção do que os reformistas consideravam desequilíbrios existentes no funcionamento da economia russa –, e o programa de privatizações, reformando a estrutura de propriedade do país (POMERANZ, 2000). Pomeranz (1995) destaca que as condições específicas da Rússia durante esse processo de reformas dificultavam em demasiado a realização de políticas eficazes, pois se tratava de um país

[...] marcado, portanto, no plano político, pelas turbulências da transição institucional; e no plano socioeconômico, pela fragilidade das bases institucionais da economia – quase inexistente infraestrutura de mercado – pela queda da atividade econômica decorrente do desmoronamento dos seus mecanismos anteriores de regulação e pela insipiência dos novos mecanismos reguladores, pelo desequilíbrio de sua estrutura produtiva e ainda, pelas consequências sociais do processo de reformas iniciado ainda com a perestroika soviética. Nestas condições, os dilemas de política econômica são de muito mais difícil solução e demandam uma formulação mais adequada a essa realidade (POMERANZ, 1995, p. 62).

Apesar das dificuldades colocadas, a partir do início de 1992, a Rússia toma como base de sua política econômica um programa que tinha objetivo central a construção da economia de mercado e a estabilização econômica. No caso da privatização da propriedade estatal, o plano específico foi aprovado em julho de 1992, dando início ao plano de privatização da economia russa. A estratégia do plano de privatização precisava dar conta de dois elementos fundamentais, de acordo com Segrillo (2000): primeiro, os reformistas precisaram levar em consideração a universalidade da propriedade estatal herdada do período soviético e a resistência inicial dos diretores das empresas (que se sentiam ameaçados pela possiblidade de perder seu poder sobre as empresas). O segundo elemento era a aversão da população à propriedade privada – os reformistas teriam de elaborar um plano que conquistasse, ao menos inicialmente, o apoio popular. Para isso, a equipe de Yeltsin fez uso da distribuição gratuita de ações à população, 13

através dos vouchers. Um dos objetivos do trabalho é justamente compreender como ocorre o processo de introdução desse plano (ver capítulo 3). O processo de privatização ocorre em duas grandes fases: entre 1992 e 1993, com a privatização em massa, realizada rapidamente em empresas pequenas, empresas do setor comercial e de serviços, através de leilões competitivos; e a partir de 1994, quando seria aplicado um novo plano de privatização para as empresas maiores e em setores considerados estratégicos, e que inclui a privatização por empréstimo com garantia de ações. Diante destas colocações, cabem diversas questões que moldam o trabalho aqui apresentado, a respeito de como foram colocados em prática o plano de privatização e os processos da política de estabilização, que ocorreram simultaneamente. Outro ponto que deve ser discutido na pesquisa é a relação do plano de privatização com a formação de um grupo de grandes proprietários russos, que ficou conhecido como oligarquia russa. Esse grupo enriqueceu muito no período das reformas econômicas de Yeltsin, e ganhou assim um enorme potencial de influência na condução da política econômica russa e no direcionamento das reformas. Dessa forma, buscaremos entender até que ponto esses novos atores da política russa, ao tomarem parte no conjunto das políticas econômicas introduzidas nesse período, tiveram seu fortalecimento ligado às privatizações que ocorreram no país, e, a partir de então, como passaram a influenciar na condução das políticas, moldando o funcionamento do capitalismo russo. O fio que conecta todas as questões aqui apresentadas é o processo de privatização, que conduz uma profunda transformação e que possibilita mudanças estruturais na economia e na sociedade russa. Houve um aumento significativo da participação do setor privado no PIB, que passou de menos de 10% em 1991 a quase 50% em 1994, para chegar a mais de 70% em 1997, o que dá indícios quantitativos do impacto que a privatização provocou na estrutura econômica do país (MAZAT, 2013). Buscando entender a estruturação do capitalismo russo, este processo deve ser analisado, compreendendo quais foram os resultados dessa década de transformações. O objetivo geral consiste, portanto, em analisar o processo de transformação da economia russa por meio de um estudo bibliográfico, tendo como objeto central as políticas de privatização das empresas estatais russas do setor industrial como principal meio de estruturação do novo sistema capitalista russo, e determinando 14

como recorte histórico as duas gestões de Boris Yeltsin como presidente (1991- 1999). O foco no setor industrial é justificado porque foi o principal alvo das políticas de privatização naquele momento, e pela centralidade do setor da indústria extrativa na economia russa. A privatização do campo e a privatização imobiliária não serão discutidas por fugirem do escopo do trabalho. Reconhecemos a importância dos dois processos para compreensão do quadro geral da transformação da economia russa, sobretudo a questão do setor agrícola, mas uma discussão mais rigorosa sobre ambos exigiria um espaço mais amplo de desenvolvimento2. A conexão entre a realização da privatização e a sua apresentação como uma das bases da estruturação do capitalismo russo será feita em grande parte através do referencial teórico de Harvey (2005; 2013), que apresenta o conceito de “acumulação por espoliação” (ver próxima seção), elemento importante para elucidar como a privatização é central para o processo de construção do sistema capitalista na Rússia. A pesquisa busca sustentar a hipótese de que, para compreender o complexo processo de transformações estruturais que ocorre na década de 1990 na Rússia, é fundamental analisar a transformação da propriedade estatal em propriedade privada. Ou seja, é imprescindível que se compreenda o processo de privatização, um projeto que foi central nos esforços reformistas do novo governo russo. Assim, o plano de privatização adotado pelo governo russo poderia ser enquadrado como um “fio condutor” das mudanças que são encaminhadas. Entende-se que sustenta tal hipótese a dimensão da privatização de uma economia majoritariamente estatal, as mudanças das relações sociais de produção que essa privatização acarreta, a rapidez com que o plano foi de fato realizado e o impacto dele na estrutura econômica e social do país. Destaca-se que, além de favorecer o processo de concentração da propriedade, a privatização contribuiu para um retrocesso na densidade da estrutura econômica russa, já que a economia ficou cada vez mais centrada nas atividades da indústria extrativa, e sua inserção no mercado capitalista

2 Para uma introdução sobre a questão do setor agrícola e imobiliária, ver mais: KOSAREVA, N.; STRUYK, R. (1993); BOOTH, S.; KAMALYAN, A.; PROCHIN, V. (1998); LERMAN, Z.; SHAGAIDA, N. (2007); ANDERSON, R. J.; ECKERT, J. K.; RENAUD, B. (2009). 15

global passou a ser limitada de forma crescente ao papel de uma economia exportadora de bens primários. Uma vez definido o objeto do trabalho, e justificada a escolha de focar na privatização das empresas estatais russas do setor industrial, devemos fazer menção a diversas questões que são extremamente importantes para compreensão do quadro geral das transformações que ocorreram na Rússia na década de 1990. A complexidade do tema abre possibilidade de expandir a discussão em diversas direções, mas que fugiriam do escopo estabelecido, e por isso seu devido desenvolvimento não será possível no presente trabalho, ainda que apareçam pontualmente na construção do texto. Em primeiro lugar, é imprescindível destacar a complexa questão do setor militar soviético que foi herdado pela Federação Russa. O setor que é determinante para compreensão do papel soviético no sistema internacional, e que, como veremos ao longo do capítulo 1, alavancava a economia do país como um todo, foi impactado também com as reformas econômicas da década de 1990, especialmente devido aos imensos cortes que o orçamento militar russo sofreu. Apesar de trazermos a questão militar ao discutirmos seu papel econômico, não coube no trabalho uma discussão sobre a atuação política dos militares ou sua relação com as reformas que foram introduzidas. Além do corte orçamentário, os eventos da (Primeira) Guerra da Chechênia também tiveram impactos políticos (e econômicos) significativos de 1994 a 1996. Apesar da superioridade bélica do exército russo, o conflito foi estendido e extremamente sangrento, e as forças russas não conseguiram controlar o território checheno, o que também contribuiu para uma grande desmoralização da força militar russa. Outro ponto envolvendo a questão militar é a herança da força nuclear soviética – dessa forma, ainda que enfrentando uma profunda crise econômica, a Rússia continuava sendo uma potência nuclear global, o que gerava uma influência significativa e determinante na sua inserção no sistema internacional como país autônomo e capitalista. Ligada à questão militar, temos a questão internacional. Após o fim da Guerra Fria, e durante toda a década de 1990, a política externa russa sofreu diversas reformulações, assim como a sua relação com os países que faziam parte do bloco soviético. A influência e o papel dos países capitalistas centrais na condução das reformas aparecem no decorrer do trabalho, mas a condução da política externa russa não pôde ser devidamente trabalhada. Considerando o peso da União 16

Soviética no sistema internacional, um caminho de discussão importante é o debate sobre qual é o papel herdado pela Rússia, que assumiu um protagonismo enquanto atravessava reformas profundas acompanhadas por impactos igualmente significativos3. Um terceiro ponto que mereceria um trabalho apenas para o seu desenvolvimento é o papel exercido pelo setor bancário nas transformações que ocorreram na Rússia nesse período. Provavelmente o setor mais importante da década de 1990, ele é objeto de nossa análise em diversos momentos do presente trabalho, especialmente na discussão sobre a ascensão dos oligarcas (indivíduos que eram ligados aos grandes bancos), o enriquecimento do período concentrado no setor financeiro (que apresentou lucros exorbitantes em um contexto de declínio econômico histórico) e a discussão sobre a acumulação por espoliação. Para dar conta de compreender como esse setor começou a ser formado ainda no período soviético, seria necessário organizar um trabalho que tivesse como objetivo essa discussão. Vamos brevemente mencionar os bancos russos porque eles vão se apropriar de muitos ativos na privatização, e, através deste processo, tais bancos vão passar a controlar os setores mais importantes da economia russa, formando assim o principal bloco de interesse na Rússia. A centralidade dos bancos e sua relação com o capital financeiro também provocariam um debate sobre a crise financeira que atingiu a Rússia em meados de 1998, e que foi consequência da década de reformas que são apresentadas no presente trabalho, combinadas com fatores externos que impulsionaram o colapso financeiro russo naquele momento. A crise financeira de 1998 é mencionada em alguns pontos do texto, por ter exercido um grande impacto nos bancos privados russos e na questão fiscal do país, e ter representado um momento importante a partir do qual a Rússia vai conseguir retomar o crescimento econômico, e recuperar o investimento no setor produtivo do país, motivado em grande parte pela erosão do setor financeiro e especulativo naquele momento. Contudo, uma discussão mais desenvolvida sobre as políticas que contribuíram para a crise, a reação do governo

3 A maioria das obras que aparecem na lista de referências do trabalho desenvolvem em algum momento a questão da política externa russa durante a década de 1990. Para obras focadas no tema, ver: OKUNEVA, L. (2010); SEGRILLO, A. (2010); JUBRAN, B. (2015). 17

russo naquele momento e as suas consequências fogem também do escopo definido para a dissertação. Por fim, devemos mencionar o debate frequente sobre a natureza do sistema soviético. Dentro dos limites definidos pelo objetivo do trabalho, não é possível tratar a discussão teórica sobre a natureza do sistema soviético (e, posteriormente, do sistema que se organiza na Rússia com as reformas estruturais) com o devido rigor metodológico e teórico, correndo assim o risco de cair em simplificações perigosas. O trabalho reconhece a importância desse debate, e traz algumas discussões no próximo tópico. Contudo, parte do ponto de que houve uma transformação radical e fundamental nos elementos que organizam os sistemas político e econômico na Rússia, que o país somente após essas reformas pode ser considerado um país capitalista pelos parâmetros apresentados pelo referencial teórico a seguir, e que a privatização foi um processo essencial nessa transformação. Ao longo do primeiro capítulo, ao apresentarmos um resgate histórico dos pilares da economia soviética, procuramos também dar conta de fazer menção a características importantes que nos auxiliam na compreensão do sistema e, portanto, da sua natureza. Assim, para alcançarmos os objetivos propostos, organizamos o trabalho da seguinte maneira: destarte, o primeiro capítulo, como mencionado, traz um resgate dos principais aspectos da economia soviética, para que possamos compreender a estrutura existente no início da década de 1990, e que será o ponto de partida para as reformas introduzidas pelo governo Yeltsin. O segundo capítulo focará em um quadro mais geral de condicionantes que interferiram no desenrolar do plano de privatização da economia russa. A privatização ocorre em um contexto de profunda transformação – não só o contexto internacional interferindo diretamente nos processos internos russos, mas também o próprio processo de transformação política e o plano de estabilização econômica que acontecem todos simultaneamente. Portanto, se faz necessária a apresentação contextual para compreendermos o quadro geral em que a privatização se insere. Consideramos importante e necessária a apresentação dos dois primeiros capítulos como uma longa reconstrução histórica, já que elucidam como as reformas são iniciadas ainda no período soviético e como vão minar as bases desse sistema, e também porque trazem a essencial apresentação do contexto político que possibilitou a condução das reformas, construindo um quadro geral da relação do Estado com o desenrolar dos processos econômicos que culminará na análise do último capítulo. 18

O capítulo 3 aparece como o núcleo de nosso trabalho, pois nele apresentaremos o processo de privatização da economia de fato, como ele foi organizado e realizado em duas fases distintas, destacando quais foram as estratégias dos reformistas responsáveis pelo seu delineamento. Além de apresentar detalhadamente o avanço da privatização sobre as estatais russas, buscaremos discutir os resultados desse processo, e principalmente mostrar como ele foi essencial para a formação de um grupo de grandes empresários russos, que ficou conhecido como oligarquia, destacando as origens dos oligarcas, como se deu seu enriquecimento e a concentração econômica em suas mãos. Através da discussão sobre a oligarquia russa, traremos questões importantes sobre como o capitalismo russo já é estabelecido com uma estrutura concentrada e monopolista, e os impactos que essa característica gera no conjunto da economia nacional, além de trabalhar a formação dessa oligarquia como a formação de uma nova fração da burguesia russa, a constituição do grupo que vai sustentar a base das reformas e que vai atuar como principal apoio dessas políticas. O capítulo 4, que encerra o trabalho, busca fazer um balanço das políticas apresentadas ao longo do texto através de uma breve revisão bibliográfica, apresentando a conclusão de nossa análise a partir do conceito da acumulação por espoliação, e trazendo elementos importantes para essa perspectiva, como a discussão sobre o padrão de acumulação do capital que é organizado com o ideal neoliberal a partir da década de 1970, os instrumentos utilizados pelos grandes detentores de capital para impor esse modelo, e o papel do Estado russo para viabilizar e orquestrar os processos que caracterizam esse fenômeno. Assim, procuramos avançar o debate sobre como a privatização da economia russa foi um processo essencial na estruturação do sistema capitalista no país, segundo os conceitos que estabeleceremos no nosso próximo tópico. b. Do referencial teórico e dos conceitos centrais do trabalho

Ao trabalharmos a questão da privatização como fio condutor da estruturação do sistema capitalista russo, procuraremos demonstrar como esse processo foi necessário para estabelecer a estrutura de relações sociais que, conforme o referencial marxista, seriam características do capitalismo. Não apenas é essencial nesse processo o estabelecimento da propriedade privada e uma mudança na 19

estrutura de classes na Rússia, com a formação de uma classe de proprietários dos meios de produção, mas também é central a questão da transformação do trabalho em mercadoria, sujeito às chamadas “leis” da economia de mercado, uma camada da população cuja sobrevivência fica dependente da venda de sua força de trabalho ao capital. Além disso, as reformas viabilizaram a acumulação do capital nas mãos de poucos proprietários, em conformidade com os processos que Harvey (2005; 2013) sintetiza no conceito de “acumulação por espoliação” (ou “acumulação por desapossamento”). Antes de mergulharmos na proposta de análise apresentada, é imprescindível que estabeleçamos o nosso referencial teórico, para que nosso trabalho não caia em usos ecléticos de conceitos importantes. Com frequência, o termo capitalismo é tratado de forma abstrata, sem que seja dada a devida atenção para o sentido em que a palavra está sendo tomada. Para garantir que exista coerência no emprego da palavra, buscamos destacar elementos da tradição marxista que nos auxiliam a compreender o sistema capitalista e seu desenvolvimento. Assim, podemos apresentar brevemente aqui o significado conferido ao termo capitalismo por Marx, segundo sintetizado por Dobb (1987):

[Marx] buscava a essência do capitalismo [...] num determinado modo de produção. Por modo de produção, ele não se referia apenas ao estado da técnica [...], mas ao modo pelo qual se definia a propriedade dos meios de produção e às relações sociais entre os homens que resultavam de suas ligações com o processo de produção. Desse modo, o capitalismo não era apenas um sistema de produção para o mercado – um sistema de produção de mercadorias, como Marx o denominou – mas um sistema sob o qual a própria capacidade de trabalho se tornara uma mercadoria e era comprada e vendida no mercado como qualquer outro objeto de troca. Seu pré-requisito histórico era a concentração da propriedade, dos meios de produção em mãos de uma classe, que consistia apenas numa pequena parte da sociedade, e o aparecimento consequente de uma classe destituída de propriedade, para a qual a venda de sua força de trabalho era a única fonte de subsistência. Desse modo, a atividade produtiva era suprida pela última, não em virtude de compulsão legal, mas na base de um contrato salarial. [...] O que diferencia o uso dessa definição quanto às demais é que a existência do comércio e do empréstimo de dinheiro, bem como a presença de uma classe especializada de comerciantes ou financistas, ainda que fossem homens de posses, não bastam para constituir uma sociedade capitalista. Os homens de capital, por mais aquisitivos, não bastam – seu capital tem de ser usado na sujeição do trabalho à criação de mais-valia no processo de produção. (DOBB, 1987, p. 18-19, destaques nossos).

Para nosso trabalho, alguns elementos da apresentação do autor são centrais, e servem de ponto de partida para que possamos trazer reflexões sobre as 20

relações sociais no período soviético e as mudanças que ocorrem após o colapso da União. Destarte, podemos destacar como a existência de um salário não estabelece uma relação capitalista. Dobb (1987) cita o exemplo de trabalhadores assalariados que trabalhavam no campo na Inglaterra antes da Revolução Industrial, um trabalho que ainda se achava sujeito por uma compulsão de fato. O trabalhador podia ser forçado a aceitar trabalho por um salário legal e era impedido de mudar de aldeia sem permissão do senhor local. No caso soviético, também existia pagamento de salário aos trabalhadores – mas as relações também estavam sujeitas à compulsão, no caso, originada do planejamento estatal. Além disso, não existiam leis de mercado regulando o trabalho, que não era visto como uma mercadoria. Outro ponto é a questão da acumulação primitiva que, segundo a tradição marxista, seria pré-requisito para o desenvolvimento do capitalismo. Harvey (2008) traz a seguinte explicação sobre o conceito:

[...] [O termo faz referência às] práticas de acumulação que Marx tratara como ‘primitivas’ ou ‘originais’ durante a ascensão do capitalismo. Incluem-se aí: a mercadificação e a privatização da terra, bem como a expulsão pela força de populações camponesas [...]; a conversão de várias formas de direitos de propriedade (comuns, coletivas, estatais, etc.) em direitos de propriedade exclusiva [...]; a supressão dos direitos aos bens comuns; a mercadificação da força de trabalho e a supressão de formas alternativas (nativas) de produção e consumo; processos coloniais, neocoloniais e imperiais de apropriação privada de ativos (incluindo recursos naturais); a monetização do câmbio e a taxação, principalmente da terra; o comércio de escravos (que continua de modo especial na indústria do sexo); e a usura, a dívida nacional e o aspecto mais devastador de todos: o uso do sistema de crédito como meio radical de acumulação por espoliação. (HARVEY, 2008, p. 171-172).

Segundo Clarke (2007), o processo de acumulação primitiva teria sido completado no período soviético com a coletivização forçada de Stalin, sobretudo quando os camponeses foram removidos de suas terras e transformados em trabalhadores assalariados – não em serviço do capital, mas em serviço do Estado, que promoveu um programa de industrialização acelerada da economia, contando inclusive com a introdução de tecnologias avançadas da economia capitalista4. Esse

4 Harvey (2005) menciona o debate existente na tradição marxista sobre a necessidade de impulsionar a acumulação primitiva para, dessa forma, alavancar a modernização de países que não tivessem passado pelos processos que caracterizariam esse estágio inicial do desenvolvimento capitalista. Essa tentativa “forçada” de acelerar as dinâmicas teria gerado violências semelhantes às 21

elemento levaria parte da bibliografia que trata sobre o tema a caracterizar o sistema soviético como um capitalismo de Estado – mas Clarke não concorda com tal definição. Ainda segundo a análise do autor, a forma social de produção e de apropriação do excedente no sistema soviético era essencialmente diferente da forma característica do modo de produção capitalista. Clarke aponta que apesar de ter pontos em comum com o capitalismo (uso de tecnologia avançada; alto grau de socialização da produção; uso de trabalho assalariado; produção de bens e serviços para necessidades individuais e sociais subordinada à produção e apropriação de mais-valia), os sistemas divergiriam fundamentalmente porque o sistema soviético não era baseado na maximização dos lucros, e nem na provisão planejada de necessidades sociais. “Era um sistema de apropriação de excedente e redistribuição subordinado às necessidades materiais do Estado e, acima de tudo, nos seus anos de maturidade, do aparato militar estatal” (CLARKE, 2007, p. 11, tradução nossa5). O sistema socioeconômico seria, assim, inteiramente subordinado às demandas militares e ao comando do Partido Comunista.

[...] o sistema soviético era marcado pelo seu próprio sistema de apropriação de excedentes e as contradições associadas a ele. Empresas e organizações negociavam a alocação dos meios de produção e de subsistência com o planejamento central, e em troca recebiam metas de produção definidas, e o excedente assumia a forma do produto líquido apropriado pelo Estado do partido militar para garantir sua própria reprodução expandida. (CLARKE, 2007, p. 12, tradução nossa6).

No caso do sistema soviético, nem o trabalhador, nem os gerentes e administradores das empresas, e sequer os ministérios responsáveis pelo planejamento tinham direito sobre o excedente produzido. Esta era uma contradição essencial entre o sistema de produção e o sistema de apropriação dos excedentes – o controle centralizado e a alocação dos excedentes estavam nas mãos de uma

da acumulação primitiva, conforme o exemplo da coletivização forçada da agricultura na União Soviética. 5 No original: “It was a system of surplus appropriation and redistribution subordinated to the material needs of the state and, above all in its years of maturity, of its military apparatus.” 6 No original: “[...] the Soviet system was marked by its own system of surplus appropriation and associated contradictions. Enterprises and organizations negotiated the allocation of means of production and subsistence with the center in exchange for the delivery of defined production targets, the surplus taking the form of the net product appropriated by the military-Party state to secure its own expanded reproduction.” 22

camada da população improdutiva, e os diretores das empresas que administravam a produção de fato não tinham incentivos para buscar formas de maximizar a extração desses excedentes. Tais atores sociais só podiam expandir os recursos a sua disposição inflando a demanda pelos mesmos, e só podiam ‘se proteger’ das exigências do estrato dominante, no caso o alto escalão do Partido Comunista e dos setores militares, ocultando seu potencial produtivo. A rigidez resultante deste sistema determinou a sua forma de crescimento extensiva, na qual a expansão dos excedentes dependia da mobilização de recursos adicionais. Quando as reservas, especialmente as reservas de mão de obra, eram exauridas, o ritmo de crescimento da produção e da apropriação dos excedentes também desacelerava (CLARKE, 2007, p. 13). Além da reflexão proposta por Clarke sobre a natureza do sistema soviético, podemos ainda mencionar a questão do uso do termo transição para referir-se aos processos de transformação que ocorrem não só na Federação Russa, mas em todos os países do antigo bloco “comunista” em direção a um sistema considerado capitalista. Segundo Clarke (2007), o termo “transição” carrega uma noção teleológica, de que o processo é determinado por seu ponto final, e traz o debate já mencionado sobre a própria natureza deste ponto: qual seria o resultado determinante para defini-lo? Transição para uma “economia de mercado”? Transição para o “capitalismo”? Retornamos assim ao desafio de definir o que exatamente cada locutor define como capitalismo. A maior parte das análises sobre as transformações da economia russa apresenta uma interpretação dualista da transição, como uma interação entre reformas liberalizantes e legado do Estado soviético, como se esse legado fosse uma barreira, o responsável por causar distorções nas reformas, resumido a uma série de elementos que deveriam ser eliminados para que as reformas tivessem sucesso. Esse tipo de abordagem não consegue identificar as raízes da dinâmica de tal transformação, e por isso não daria conta de apresentar o processo de transformação como uma realidade social que se desenvolve historicamente. A ideia dualista tem base teórica ligada ao liberalismo clássico de Adam Smith (1983), e no neoliberalismo de Friedrich Hayek (2010), que associa a imposição de qualquer controle político sobre a economia com uma distorção da “ordem natural da economia de mercado”. Grande parte desse debate parece carregar a implicação de que o capitalismo seria um sistema de empresas livres, em contraste com qualquer 23

invasão de controle estatal às custas do laissez-faire. O fato é que tal definição implica um significado muito estreito, que não condiz com a realidade da história humana (DOBB, 1987). Ainda assim, tais correntes defendem que a transição para o capitalismo dependia de varrer as instituições políticas do antigo regime, para assim estabelecer a liberdade e a proteção da propriedade, condições para a economia de mercado florescer (CLARKE, 2007). Estas ideias servem como base do projeto de reforma neoliberal – a terapia de choque justifica a necessidade de liberalização e privatização radicais como forma de destruir o antigo sistema, e qualquer forma de resistência que impeça essa ordem natural da economia de mercado. Além disso, a reforma neoliberal também é carregada pela ideia de que o livre-mercado e a proteção da propriedade privada seriam condições suficientes para o desenvolvimento de um capitalismo dinâmico. As características anteriores da estrutura social e econômica que é alvo da reforma neoliberal não importariam, ou seja, a condução da reforma neoliberal seria independente das condições iniciais que ela encontra. Isso demonstra como os reformistas não reconhecem que os indivíduos que são responsáveis pela construção do novo sistema foram formados no sistema anterior – seus valores, suas motivações e percepções são marcados todos pelo seu passado. Não se trata de uma simples passagem de um sistema para o outro – se trata do desenvolvimento histórico de um sistema existente. No caso russo, o motor desse desenvolvimento é a incorporação da antiga União Soviética ao sistema capitalista global através de uma progressiva integração do sistema soviético (e então russo) nas estruturas do mercado mundial (CLARKE, 2007). Um dos maiores desafios enfrentados pela economia russa, ao fazer a opção política de realizar uma reforma que vai ao encontro do modelo capitalista conforme idealizado pelos reformistas neoliberais, foi lidar com as consequências de um “modo de produção soviético” que dependia tanto da sua relação com o Estado. O desafio foi a difícil sobrevivência das unidades produtivas sem um Estado para distribuir recursos, pagar salários, garantir a subsistência dos trabalhadores e o investimento para expandir a capacidade produtiva. O colapso do Estado centralizado e do Partido Comunista da União Soviética dificultaram sobremaneira a reprodução não só do setor industrial soviético (e, por consequência, do setor industrial russo), mas a reprodução de todo o sistema. Buscaremos dar a devida atenção a essa questão no decorrer de nosso trabalho. 24

Para garantir que a opção política pelas reformas neoliberais fosse sustentável no longo prazo, seus representantes precisaram contar com o apoio de grupos da sociedade russa que sustentassem a viabilidade dessas reformas, servindo de base. Como veremos no capítulo 3, um dos resultados mais importantes da privatização foi a formação da nova burguesia russa, constituindo assim o grupo que sustentaria a política econômica neoliberal. A abordagem poulantziana sobre as frações de classe e sobre como é configurado o bloco no poder contribui para esclarecer como as classes se organizam, não necessariamente pela função do capital, mas em movimentos dinâmicos, reunindo diferentes setores por interesse em um projeto específico (FARIAS, 2009; JESSOP, 2009; BALANCO, PINTO, 2014). No caso russo, essa característica fica particularmente evidente quando a oligarquia se mobiliza ao redor de interesses pontuais. O referencial de Poulantzas contribuiu, assim, para compreensão das diferentes frações da burguesia, os diferentes sistemas de fracionamento e as principais situações de configuração do bloco no poder. A existência do bloco de classes e frações dominantes, ou seja, o bloco no poder, independe de acordo político explícito, já que se trata de uma comunidade de interesses cuja unidade é garantida pelo aparelho de Estado. Nessa direção, o bloco no poder é mais amplo que o conceito de aliança, no sentido de que diz respeito a uma mesma situação comum de segmentos que pertencem às classes dos proprietários dos meios sociais de produção. Trata- se de uma condição comum de partícipes privilegiados da ordem social, o que faz que todos os segmentos das classes dominantes se unifiquem em torno de certos objetivos políticos gerais. Na articulação do bloco no poder, há a tendência à formação de um núcleo hegemônico, composto de uma fração ou um anel de frações da classe dominante. Poulantzas define a hegemonia política como a capacidade de uma fração fazer prevalecer seus interesses no interior do bloco no poder. Isso se traduz na capacidade dessa fração de obter prioritariamente os benefícios das políticas econômica e social do Estado. A homologia estrutural, isto é, a interdependência das estruturas econômica e política e a capacidade de organização político- ideológica e pressão sobre o aparelho do Estado são os fatores que concorrem para o estabelecimento da hegemonia política no seio do bloco no poder. (FARIAS, 2009, p.93-94, destaque nosso).

Dedicaremos a parte final desse tópico para desenvolver o conceito central para a conclusão da análise do trabalho, a ideia da “acumulação por espoliação” trazida por Harvey (2005; 2013), retomando algumas ideias centrais do conceito marxista de acumulação primitiva. De acordo com Harvey (2005), a ideia de Marx sobre “acumulação primitiva” caracterizaria uma etapa original de formação do sistema capitalista, de alguma forma exterior ao capitalismo como um sistema fechado. Com o conceito de acumulação por espoliação, Harvey apresenta uma 25

reavaliação das práticas que caracterizam a acumulação primitiva, apontando como essas práticas predatórias persistem e tem um papel contínuo na reprodução do capital. Segundo a tradição marxista, o capitalismo depende fundamentalmente da mercadoria força de trabalho, que seria capaz de produzir mais valor do que aquele que ela própria tem. A relação entre quem precisa vender a sua força de trabalho e quem detém os meios de produção e os recursos para adquirir essa força de trabalho não é uma relação definida naturalmente:

A natureza não produz possuidores de dinheiro e de mercadorias, de um lado, e simples possuidores de suas próprias forças de trabalho, de outro. Essa não é uma relação natural e tampouco uma relação social comum a todos os períodos históricos. Mas é claramente o resultado de um desenvolvimento histórico anterior, o produto de muitas revoluções econômicas, da derrocada de toda uma série de formas anteriores de produção social. (MARX, 2013, p. 244 apud HARVEY, 2013, p. 279).

Dessa forma, as práticas que caracterizam a acumulação primitiva, que citamos acima (podemos mencionar a mercadificação e a privatização da terra, a expulsão pela força de populações camponesas, a conversão de várias formas de direitos de propriedade em direitos de propriedade exclusiva, a supressão dos direitos aos bens comuns, dentre outras) são as práticas que originam esse trabalho assalariado, e que acumulam os recursos nas mãos de poucos indivíduos que poderão empregar esse trabalho7.

[...] o processo que cria a relação capitalista não pode ser senão o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das condições de realização de seu trabalho, processo que, por um lado, transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção e, por outro, converte os produtores diretos em trabalhadores assalariados. A assim chamada acumulação primitiva não é, por conseguinte, mais do que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção. (MARX, 2013, p. 786 apud HARVEY, 2013, p. 280, destaque nosso).

7 “O roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios estatais, o furto da propriedade comunal, a transformação usurpatória, realizada com inescrupuloso terrorismo, da propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna foram outros tantos métodos idílicos da acumulação primitiva. Tais métodos conquistaram o campo para a agricultura capitalista, incorporaram o solo ao capital e criaram para a indústria urbana a oferta necessária de um proletariado inteiramente livre.” (MARX, 2013, p. 804 apud HARVEY, 2013, p. 283) 26

Nesse processo, o Estado tem um papel crucial para promover o seu desenvolvimento, atuando na própria regulação e organização das práticas e como força que impede qualquer mobilização contrária. Segundo Harvey (2005, p. 121) “[...] a transição para o desenvolvimento capitalista dependeu e continua a depender de maneira vital do agir do Estado.” Como mencionado acima, para Marx, após concluído o processo de acumulação primitiva, esta seria finalizada e perderia a importância. Contudo, Harvey sugere que há uma continuidade da acumulação primitiva. O autor cita que Rosa Luxemburgo (1985 apud HARVEY, 2013) já trabalhava a ideia da acumulação primitiva como um processo contínuo, argumentando que o imperialismo, por exemplo, caracterizaria um novo ciclo de acumulação primitiva, importante para garantir a própria sobrevivência do sistema.

[...] os processos específicos de acumulação que Marx descreve – a expropriação das populações rurais e camponesas, a política de exploração colonial, neocolonial e imperialista, o uso dos poderes do Estado para realocar recursos para a classe capitalista, o cercamento de terras comuns, a privatização das terras e dos recursos do Estado e o sistema internacional de finança e crédito, para não falar dos débitos nacionais crescentes e da continuação da escravidão por meio do tráfico de pessoas (especialmente mulheres) – todos esses traços ainda estão entre nós e, em alguns casos, parecem não ter sido relegados ao segundo plano, mas, como o sistema de crédito, o cercamento de terras comuns e a privatização, tornaram-se ainda mais proeminentes. (HARVEY, 2013, p. 293, destaque nosso).

Os processos definidos pelo conceito de acumulação por espoliação são importantes para liberar ativos, na maioria das vezes por preços muito baixos, para que o capital possa se apropriar dos mesmos e colocá-los em uso na sua busca por lucros (HARVEY, 2005). Dessa forma, Harvey atualiza o termo para acumulação por espoliação ou acumulação por desapossamento. Segundo o autor, nas décadas de 1950 e 1960, essa acumulação utilizou o colonialismo e o imperialismo como meios para impor as práticas características da acumulação primitiva nos novos espaços abertos para a exploração do capital através do mercado internacional. Contudo, a partir da década de 1970, com o domínio do ideal neoliberal, as práticas listadas por Marx teriam se voltado, mais uma vez, para as próprias regiões centrais do capitalismo, ao mesmo tempo em que se ampliava e se aprofundava o seu alcance em todo o sistema global. O autor analisa que a acumulação por espoliação “foi revivida como um elemento cada vez mais importante no modo como o capitalismo opera para 27

consolidar o poder de classe” (HARVEY, 2013, p. 296). Com essa virada neoliberal dos anos 1970, a classe trabalhadora viu a sua situação econômica e sua qualidade de vida piorarem ou ficarem estagnadas, enquanto a riqueza concentrada no 1% mais rico da população aumentava de forma exacerbada.

O projeto neoliberal foi direcionado para a acumulação crescente da riqueza e apropriação crescente de mais-valor pelos degraus superiores da classe capitalista. [...] Foi exatamente nisso que consistiu a “globalização neoliberal”. Criaram-se as condições socialmente necessárias [...] para a imensa acumulação de riqueza de uma pequena parcela da população a expensas de todo o restante. [...] A riqueza não apenas se acumula, como se concentra nas mãos de uma classe capitalista cada vez mais poderosa. (HARVEY, 2013, p. 274).

Assim, Harvey conclui que a acumulação através da espoliação, do desapossamento, é uma prática recorrente para a reprodução do capital e para uma concentração cada vez maior do controle dos ativos em uma pequena parcela da população. O autor cita como o capital se apropria inclusive de direitos cuja conquista foi fruto da dura luta dos trabalhadores em todo o mundo, como o direito à aposentadoria, à educação, às terras comuns e à seguridade social (HARVEY, 2005). Nesse sentido, o direito de ter acesso aos serviços que seriam garantidos pelo Estado de bem-estar social é minado, e tais serviços são devolvidos ao setor privado, para que sejam utilizados a favor da expansão capitalista. Segundo Harvey (2005, p. 123), essa transferência para o domínio privado seria “[...] uma das mais flagrantes políticas de espoliação implantadas em nome da ortodoxia neoliberal.”. Ainda,

[...] a crescente mercantilização da educação, para não falar das expulsões das terras e da destruição do meio ambiente são fatores importantes para o modo como entendemos a dinâmica agregada do capitalismo. Além disso, a conversão em mercadoria de um ativo de propriedade comum como a educação, a conversão das universidades em instituições empresariais neoliberais [...], tem importantes consequências ideológicas e políticas e é ao mesmo tempo o sinal e o símbolo de uma dinâmica capitalista que não poupa nada em sua luta para expandir a esfera da produção e extração do lucro. (HARVEY, 2013, p. 297).

Para compreensão desse processo de transferência de bens até então públicos (como aparece na citação acima, por exemplo, a questão das universidades) para as mãos do capital privado, a privatização é um processo fundamental. Acima mencionamos o papel crucial do Estado na viabilização das práticas da acumulação primitiva. Aqui, mais uma vez, o papel do Estado é determinante para possibilitar o encaminhamento do processo. Harvey (2005, p. 28

123) afirma que o poder do Estado é indispensável para que os processos de privatização ou corporativização dos bens públicos possam ser impostos, ainda que não estejam de acordo com a vontade da população. Esse poder dos Estados nacionais é aliado às instituições internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o Banco Mundial, para garantir que as práticas da acumulação por espoliação sejam impostas.

O livre mercado e os mercados de capital abertos tornaram-se o meio primário de criar vantagem para os poderes monopolistas com sede nos países capitalistas avançados que já dominam o comércio, a produção, os serviços e as finanças no mundo capitalista. O veículo primário da acumulação por espoliação tem sido por conseguinte a abertura forçada de mercados em todo o mundo mediante pressões institucionais exercidas por meio do FMI e da OMC, apoiados pelo poder dos Estados Unidos (e, em menor grau, pelo Europa) de negar acesso ao seu próprio mercado interno aos países que se recusam a desmantelar suas proteções. (HARVEY, 2005, p. 147).

Conforme poderemos perceber durante o desenvolvimento do trabalho, as medidas mencionadas por Harvey vão diretamente ao encontro das políticas que conduziram as reformas na economia russa a partir do colapso soviético. Não apenas a questão da privatização dos ativos e bens públicos, que é central para o trabalho e que aparece de forma mais evidente, mas também a liberalização do mercado e principalmente do fluxo dos capitais, que foram medidas estratégicas, alinhadas ao receituário da terapia de choque neoliberal, em grande parte impostas pelo FMI quando este condiciona a liberação de recursos necessários à introdução dessas medidas. Uma vez definidas as principais linhas que o conceito de acumulação de espoliação de Harvey procura incorporar, veremos em todo o trabalho uma conexão entre as práticas que o autor apresenta e os fenômenos que ocorrem na Rússia. Por fim, podemos destacar que os períodos da história são misturas complexas de elementos, e é uma simplificação desonesta tentar defini-los dentro de caixas específicas, sem considerar suas peculiaridades.

[...] os sistemas jamais se encontram em sua forma pura, e, em qualquer período da história, elementos característicos, tanto de períodos anteriores, quanto dos posteriores, podem ser achados, às vezes, misturados numa complexidade extraordinária. Elementos importantes de cada nova sociedade, embora não forçosamente o embrião completo da mesma, acham- se na matriz da anterior, e as relíquias de uma sociedade antiga sobrevivem por muito tempo na nova. O que se acha implicado numa concepção de capitalismo como a [de Marx] é que [...] cada período histórico é modelado 29

sob a influência preponderante de uma forma econômica única, mais ou menos homogênea, e deve ser caracterizado de acordo com a natureza desse tipo predominante de relação socioeconômica. (DOBB, 1987, p. 21)

Ou conforme Medvedev (2000, p. 51) sintetiza sobre as formações socioeconômicas segundo a definição de Marx, “[...] nenhum sistema social ou forma nova de civilização pode ser construída se já não tiver sido moldada nos interstícios da forma anteriormente existente. As formações socioeconômicas, como Marx as chamava, não são formas inertes mortas, mas sistemas vivos e autodirigidos.”. c. Do método de pesquisa adotado

Trata-se de uma pesquisa de caráter essencialmente qualitativo e exploratório, que deverá ser realizada através de estudo bibliográfico. Pretende-se realizar uma análise do material selecionado, visando abranger as diferentes linhas de pensamento e retomar o debate considerando as principais ideias a respeito do tema. Sobre o material que viabilizou a realização da pesquisa, utilizamos uma importante base da produção acadêmica brasileira (contamos com o material de autores que são referência nos estudos sobre Rússia no Brasil), além de um grande material de autores internacionais que é possível de ser encontrado com tradução para o português – tanto obras originais de autores russos, como também de outros idiomas. Também buscamos acessar um largo material produzido em língua inglesa, sobretudo de origem norte-americana e britânica. Uma limitação que condicionou o desenvolvimento da pesquisa foi o nosso distanciamento de fontes primárias russas, e o trabalho apresenta uma lacuna no que se refere a esse tipo de material. Foram buscados alguns materiais de origem russa, ainda que dentro das limitações com relação ao acesso. A bibliografia selecionada está disponível nos acervos das bibliotecas das universidades estaduais paulistas (UNESP, USP e UNICAMP), em acervos acessíveis no formato digital, e para aquisição em livrarias. Esta literatura traz contribuição de grande relevância ao detalhar os acontecimentos na década de 1990 na Rússia, explicitando o papel dos diferentes atores na condução do processo de transição, e foi fundamental no desenvolvimento desta pesquisa. O trabalho é baseado em fontes secundárias, mas pontualmente buscamos utilizar, quando possível, dados obtidos em fontes primárias. Ainda buscamos utilizar 30

dados quantitativos sobre a economia russa divulgados principalmente pelo Banco Mundial, e pelo Rosstat (Federal State Statistics Service, em russo Federal'naya sluzhba gosudarstvennoi statistiki).

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1. Resgate do passado soviético – aspectos centrais do sistema econômico e principais tentativas de reforma

Para que possamos realizar uma análise da economia russa nos anos 1990, é imprescindível clarear questões relativas ao sistema soviético, já que após o colapso da União este sistema será o alvo das reformas de transição que caracterizam toda a década que tomaremos como objeto da discussão. Assim, no presente capítulo buscaremos entender quais são as bases da economia soviética, como esse modelo foi reformado com o passar das décadas, destacando as principais e mais simbólicas reformas que ele sofreu a partir de 1950, e buscando também suas limitações, que serão importantes para compreender fatores que contribuíram para o colapso do sistema.

1.1. As bases da economia soviética

Para compreendermos o funcionamento do complexo sistema econômico soviético é importante que tomemos como ponto de partida as suas características básicas, que foram essencialmente constantes durante quase todo o período em que a União existiu: a estatização dos meios de produção e o planejamento centralizado sob a liderança do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Sobre o processo de planificação econômica, seu início se deu logo em 1920, após o “comunismo de guerra”, quando a Rússia soviética começou a construir o sistema de planificação centralizada como forma de gestão e de funcionamento da economia socialista. Em 1921, foi fundado o Gosplan (Comitê Estatal de Planificação), principal controlador do funcionamento da economia planificada, um dos mais importantes órgãos da história soviética. Este processo de planificação centralizada, desde seu início, submeteu-se ao Partido Comunista da União Soviética (PCUS), tornando-se dependente das decisões políticas (MIKHAILOVA, 2013). Pomeranz (1995) realiza uma descrição detalhada de como o sistema de planejamento soviético deveria funcionar (toda a estrutura de planejamento e controle estatal): o planejamento era dividido primeiro em longo prazo (planos perspectivos com diretrizes de desenvolvimento; planos quinquenais que expressavam quantitativamente as direções definidas nos planos perspectivos) e 32

depois em curto prazo (com planos operativos anuais – uma decomposição dos planos quinquenais realizada já setorialmente pelos ministérios, para que as empresas pudessem colocá-los em prática). Os planos de longo prazo eram definidos pelo Partido Comunista da União Soviética e aprovados pelo Soviete Supremo8. Os planos expressavam: a) diretrizes de produção – fixavam volume de vendas, além de metas físicas para os produtos estratégicos; b) insumos – volumes para uso na produção, fontes, autorização para empresas supridoras; c) introdução de novas tecnologias – quais inovações na produção a empresa deveria buscar; d) investimentos – projetos aprovados, autorizações para adquirir equipamento e contratar construção; e) emprego e desenvolvimento social – volume máximo de emprego, limite da folha de salários, normas para utilização do lucro como incentivo material e para fins socioculturais; e f) financeiro – especificava o fluxo financeiro da empresa – lucro, empréstimos, dívidas, fundos de reserva (POMERANZ, 1990). Para a elaboração dos planos anuais, cada empresa deveria enviar aos ministérios responsáveis por seu setor relatórios que especificassem sua capacidade e expectativa de produção, detalhando os custos, as matérias-primas necessárias. O Gosplan tomava esses relatórios e, a partir da análise deles, elaborava o plano anual de produção. A partir do plano elaborado pelo Gosplan, as metas eram divididas conforme os ministérios, e estes ficavam responsáveis por repassar a informação para as empresas (SEGRILLO, 2000). Não é difícil imaginar a dificuldade de concretizar de forma eficiente tal nível de planejamento, considerando todo o sistema econômico produtivo de um país tão grande quanto a União Soviética. A complexidade da realização de tal modelo era um desafio imposto à burocracia que compunha o Gosplan e também os ministérios. Frente tal tarefa hercúlea, era inevitável que o governo buscasse dividir cada vez mais as tarefas em diferentes departamentos, órgãos, ministérios, regiões administrativas e etc., buscando alternativas que facilitassem a computação de tanta

8 Mais alta instância do “poder Legislativo” soviético – o seu líder era o chefe de Estado da União, apontava a composição do Conselho de Ministros e da Suprema Corte. Leonid Brejnev foi o primeiro soviético a acumular o cargo de líder do Soviete Supremo com o cargo de líder do PCUS. Posteriormente, em 1988, Gorbachev fundiu os cargos em um só, o de Presidente da URSS. 33

informação. Conforme Nove (1989, p. 112) afirma, “[...] considerar tudo no contexto de tudo é, claramente, uma tarefa impossível.”. Mesmo com as diversas subdivisões que surgiam tentando facilitar o planejamento, ele continuou essencialmente centralizado, porque ainda dependia diretamente da aprovação do controle central do Gosplan e do Soviete Supremo (ver complicações ligadas ao controle político da gestão econômica adiante). O controle centralizado se apresentava como um instrumento limitado e que não conseguia sempre dar conta do que lhe era exigido. Pomeranz (1995) lista as diversas dificuldades que travavam a realização desse planejamento centralizado, como por exemplo as condições de recebimento e transmissão de informações, a dificuldade de integrar e coordenar as relações entre os setores da economia e a inviabilidade dos sistemas de incentivo vigentes.

Calculando-se que numa economia moderna são produzidos mais de 25 milhões de produtos, já na década de 1960 havia críticos ocidentais apontando para o fato de que a economia da União Soviética estava crescendo e se complexificando a tal ponto que, nem com os melhores computadores disponíveis, seria possível planejar centralmente, de maneira eficiente, os detalhes exigidos para a criação e circulação de todos estes bens. O aparato burocrático para tentar realizar tal tarefa teria um tamanho gigantesco. (SEGRILLO, 2000, p. 65).

Na prática, o sistema foi desenvolvendo um funcionamento próprio, com a realidade se adequando às limitações do sistema de planejamento. Este passou a ser comandado essencialmente por uma lógica assentada em dois fatores contraditórios: 1) a opção por um crescimento acelerado, em um modelo de crescimento extensivo9; e 2) a escassez de recursos para implantar um modelo que dependia do incremento constante dos mesmos para garantir o crescimento econômico (POMERANZ, 1990). Conforme os recursos se tornaram escassos (ver adiante a questão da escassez), as possibilidades de crescimento dentro deste

9 O modelo extensivo investe simplesmente na adição de recursos para expandir a economia – aumentando a produção, a quantidade de mão de obra empregada, o montante de recursos utilizados, a exploração da matéria-prima e etc. Já o chamado modelo intensivo investe no progresso científico e tecnológico visando melhorar a eficácia e a qualidade do conjunto do setor produtivo, reduzindo o custo da produção através da redução de recursos necessários e evitando desperdícios. 34

modelo foram sendo esgotadas, e o desequilíbrio entre demanda e oferta de bens (não só de consumo, mas também os bens de produção) foi acentuado10. Arantes Jr. (2015) destaca a dificuldade de harmonizar o que as empresas estavam produzindo e o que elas necessitavam de insumos para cumprir suas metas de produção. O desafio imposto aos planejadores era colossal, já que estavam constantemente confrontados com a necessidade de maximizar os resultados e, ao mesmo tempo, evitar pontos de estrangulamento. Segundo o autor, as dificuldades eram ainda mais acentuadas porque a administração central mantinha os trabalhadores distanciados da elaboração dos planos, minando assim uma das fontes de legitimidade do próprio planejamento. De acordo com o discurso do PCUS, os planos deveriam contar com a colaboração dos coletivos de trabalhadores.

Essas intenções elevadas nunca chegaram à sua implementação plena. Para começar, os trabalhadores não tinham voz na direção econômica. O planejamento permanecia no âmbito de imensas estruturas burocráticas, conduzidas por funcionários que dispunham de uma visão limitada do que estava acontecendo, e que ao mesmo tempo procuravam obter privilégios econômicos para si mesmos. (ARANTES JR, 2015, p. 355-356).

Um dos elementos que dificultava a eficiência da planificação econômica era justamente um dos alicerces do sistema econômico soviético, sendo este o controle político central da gestão econômica. No sistema soviético, era central a questão da propriedade pública dos meios de produção e o domínio do partido único – o PCUS, e nesta questão apoiava-se a centralização e politização da gestão econômica. Era essencial que o poder decisório fosse totalmente mantido no centro, para que assim fosse viável a mobilização e alocação dos recursos econômicos e humanos nos níveis que o controle central exigia. Esta concentração de controle no aparato estatal e em sua equipe burocrática minou a capacidade de auto-organização dos cidadãos soviéticos. Kagarlitsky (1993, 2002) tem uma leitura bastante crítica deste enfraquecimento da coletividade que foi alimentado pelo próprio Estado soviético. Segundo o autor, o Estado criou um

10 Importante evidenciar que, por um longo período, a economia soviética conseguiu apresentar resultados positivos de crescimento e de desenvolvimento de tecnologia avançada, conseguindo concorrer com as economias capitalistas. Contudo, conforme veremos adiante, esse modelo foi esgotado, e os avanços acabavam bastante limitados ao setor industrial-militar e à indústria pesada. 35

vínculo de dependência extremamente forte com seus cidadãos – “[...] a viabilidade da sociedade, a estabilidade da produção e do consumo eram garantidas pela própria estabilidade do sistema de Estado” (KAGARLITSKY, 1993, p. 31). A burocracia estatal não só garantia a modernização da economia soviética, como também assegurava a sobrevivência e a reprodução da força de trabalho. Enquanto nas sociedades europeias a burocracia costuma ser o instrumento responsável por materializar a vontade das classes dominantes, no sistema soviético o aparato estatal era responsável tanto pela tomada de decisões como por colocar em prática os planos elaborados. Kagarlitsky (1993) chama tal estrutura de estatocracia, um estado de classe, um grupo dominante que era organizado e que se confundia com o poder do Estado. Por isso, qualquer crise política que ameaçasse tal grupo traria consigo a ameaça de uma catástrofe social. Apesar das diversas dificuldades que se apresentavam ao sistema econômico soviético, podemos dizer que a industrialização acelerada da URSS funcionou dentro de suas limitações de forma bastante eficiente (conforme demonstrado na tabela 1) – no pós-Segunda Guerra Mundial, conseguia competir diretamente com os Estados Unidos, a então maior e mais forte economia do mundo. Contudo, Nove (1963) argumenta que, apesar da aparente concorrência equilibrada, a economia apresentava ineficiências importantes na sua estrutura, como a distribuição irracional de recursos, métodos muito políticos e cálculo econômico deixado em segundo lugar – tudo isso devido à estrutura política. As decisões econômicas eram tomadas sempre de forma tardia, porque dependiam do centro do poder no Partido Comunista da União Soviética.

TABELA 1 – Taxas de crescimento do PIB soviético no período de 1951 a 1960 Países 1955 (Ano base 1960 (Ano base 1960 (Ano base 1950 = 100%) 1955 = 100%) 1950 = 100%) Em % de 1950 Em % de 1955 Em % de 1950 URSS 162 151 244 EUA 124 107 133 Reino Unido 115 110 127 França 124 127 158 Alemanha Ocidental 154 141 217 Japão 143 177 253 Fonte: Mikhailova (2011, p. 38) 36

Outro elemento importante da economia que passava obrigatoriamente pelo controle estatal era a relação das empresas soviéticas com o exterior. O Ministério do Comércio Exterior adquiria os produtos das empresas por preços internos e os revendia ao exterior, em preços internacionais, fazendo o processo inverso com as importações (o rublo que circulava não era conversível, e os preços internacionais não exerciam qualquer efeito sobre a formação do preço interno, que era fixado centralmente11) (POMERANZ, 1990). Conforme buscamos demonstrar, havia uma extrema concentração de poderes no topo da hierarquia de funções do Estado e do partido dirigente, que vinculava todo o funcionamento da economia a essa estrutura – assim, qualquer ruptura em tal bloco de poder poderia acarretar em um colapso de todo o sistema, caso não fosse previamente formada uma estrutura organizacional alternativa. Esta informação fará toda a diferença ao buscarmos analisar o aspecto econômico das reformas de Mikhail Gorbachev, a partir de 1985, e do colapso soviético. A extrema concentração de poderes no planejamento centralizado, cujo objetivo em teoria seria garantir a alocação eficiente dos recursos (o que resultaria em um desenvolvimento equilibrado e acelerado da economia), acabou gerando um processo em que as empresas, os órgãos ministeriais em seus mais diversos níveis hierárquicos, os planejadores, entre outros, passaram a estabelecer uma relação de barganha (POMERANZ, 1995). Para garantir o fornecimento adiantado de um insumo necessário, ou o acesso aos melhores materiais e bens de capitais, tornou- se cada vez mais comum dentro do sistema de planejamento soviético a compra informal destes privilégios. Outro aspecto que foi formado é o que Segrillo (2000) chama de vedomstvennost (“departamentalismo”), um “corporativismo” em que os setores da administração não tinham como prioridade gerar benefícios para a economia soviética como um todo, mas sim tomar como fio condutor de suas ações o que era mais vantajoso para o seu setor específico, mesmo que tal conduta resultasse em prejuízo para o conjunto econômico. Uma fábrica em Vladivostok (extremo Oriente

11 Sobre o sistema monetário da União Soviética, ver mais: NAKAMURA, Y. (2017) 37

russo), por exemplo, preferiria fechar contrato de fornecimento com uma outra em Minsk (atual capital da Belarus), se essa fosse parte do seu ministério, do que com uma unidade produtiva localizada em sua região, mas que fosse relacionada a outro ministério. Manter os negócios dentro do mesmo ministério ou setor gerava vantagens, como garantir o cumprimento do contrato e o preço acertado, sem precisar estabelecer algum tipo de “acordo informal”, que beneficiasse uma das partes do negócio – mas era uma logística irracional.

Na economia isto era sentido muito em relação aos ministérios. Devido aos perenes problemas de abastecimento do país, cada ministério tentava ser o mais autossuficiente possível (criando seu próprio setor de abastecimento de material, tentando fabricar ele próprio todos os insumos necessários à sua linha de artigos principal) e evitava desviar produção que ele próprio poderia estar utilizando para outros ministérios. Isto conduzia a uma dificuldade na integração das diferentes partes do organismo econômico do país e desperdício de recursos devido à duplicação desnecessária de esforços. (SEGRILLO, 2000, p. 76).

A questão do estabelecimento dos preços pela administração estatal é outro elemento importante do funcionamento do sistema soviético. O controle central dos preços garantia, por um lado, que o consumidor não encontrasse afetando o seu consumo uma inflação nominal. Contudo, ao considerarmos um dos principais papéis do preço em uma economia de mercado, de equilibrar a demanda e a oferta e influenciar a alocação dos recursos dentre os setores, faltava no sistema soviético um mecanismo que cobrisse tal lacuna com eficiência, já que os planos e relatórios não davam conta de realizar essa análise de forma rápida o suficiente para “corrigir” a produção no próximo plano. Os preços não refletiam a escassez relativa dos produtos, e por isso não podiam servir de guia para a alocação dos recursos de forma mais eficiente (SEGRILLO, 2000). Muitas vezes o preço que estava no produto não cobria sequer os custos da produção, e era responsabilidade do Estado cobrir essa diferença através dos subsídios. Partindo da questão dos preços, dois problemas se apresentam: como o sistema incentivava a melhora da produção e como lidava com o desequilíbrio de oferta no mercado de bens de consumo e de produção. Pomeranz (1990) aponta que havia pouca preocupação com a qualidade da produção, e que os sistemas de incentivos que existiam não eram eficazes. Por um lado, os incentivos eram distribuídos de acordo com a folha de salários e o valor bruto da produção dos ministérios – ou seja, aqueles que produziam menos e tinham salários mais baixos ficavam praticamente excluídos deste sistema, o que gerava um “ciclo de 38

desincentivo”; além disso, havia um desequilíbrio de oferta de bens de consumo no mercado, ou seja, mesmo recebendo um bônus provavelmente o trabalhador não encontraria muitas formas de utilizá-lo. A questão da escassez é muito presente em toda a história soviética, e o peso de tal problema na vida dos seus cidadãos era evidente. Mesmo aqueles que tinham algum dinheiro não conseguiam obter o que queriam ou o que necessitavam. A escassez de bens de consumo e de produção pode ser explicada por diversos fatores – devido a causas naturais, como problemas climáticos que afetam as colheitas, a circunstâncias imprevistas e previsões imperfeitas dos planos, até mesmo políticas deliberadas que não se preocupavam em atender certas demandas, ou um plano ambicioso demais que ultrapassava os recursos disponíveis. Apesar do leque de variáveis que pode levar à escassez, Nove (1989) dá especial atenção à questão do pleno emprego, argumentando que esta característica seria a principal responsável por impedir uma rápida correção dos gargalos de consumo (tanto consumo individual como o consumo produtivo das empresas). Segundo Nove (1989), portanto, a escassez vivenciada pelos soviéticos está diretamente relacionada ao pleno emprego, ao compromisso com o rápido crescimento e aos esforços de todas as divisões administrativas para adquirir recursos para seus propósitos. “A escassez é a consequência da versão soviética de inflação” (NOVE, 1989, p. 116). Como há um controle da renda e ao mesmo tempo dos preços, em caso de desequilíbrio entre a oferta e a demanda, não há um reajuste imediato dos preços ou da alocação dos recursos nos setores econômicos, e isso leva à escassez. O centro planejador também não tem instrumentos suficientes para ter conhecimento detalhado de quais são as necessidades do consumidor – o usuário (seja o consumidor individual, seja a empresa que necessita de materiais e insumos) não tem capacidade de influenciar a produção. O monopólio do Estado frequentemente força o consumidor a aceitar bens de qualidade ou especificação muito diferentes de seus desejos e preferências (NOVE, 1989). Os preços que são baseados essencialmente nos custos não levam em conta os resultados, a utilidade do que está sendo produzido ou a eficiência da linha de produção. Em situações de escassez, pode parecer melhor que todos que ganhem pouco ainda consigam adquirir o bem (se o encontrarem) do que aumentar os preços e privar alguns de obterem o bem de consumo. Porém, na prática, o que 39

acontece é a formação de um mercado ilícito que se aproveita da escassez de bens tanto de consumo como de produção para ganhar muito espaço atendendo às necessidades básicas da população (e até das empresas que também dependiam do fornecimento de insumos para conseguir cumprir as metas estabelecidas), e cobrando preços maiores do que os estabelecidos pelo centro administrativo. Além disso, há um claro distanciamento entre os bens que eram disponibilizados nos mercados voltados para a “classe dirigente” dos membros do Partido e da burocracia estatal, e os bens que estavam nas estantes dos mercados comuns, acessados pelos trabalhadores (NOVE, 1989). Outro elemento que travava a introdução de inovações, além da falta de incentivos (já que o poder de decisão do consumidor era limitado e a qualidade dos produtos não era determinante) era o receio de realocar a força de trabalho, retirando essa mão de obra do cumprimento das metas e redirecionando para o desenvolvimento de inovações ou outras técnicas produtivas. Tal receio era resultado dos indicadores de desempenho colocados nos planos serem essencialmente quantitativos – “[...] [receio] pelo atraso que isso poderia produzir no desenvolvimento das atividades correntes da empresa, pondo em risco o cumprimento das metas planejadas e, portanto, o ganho dos bônus” (POMERANZ, 1995, p.19). Segrillo (2000) trabalha o conceito de val (valovaya produktsiya ou produção bruta), e como tal índice era o principal guia da economia soviética. Ao contrário das economias capitalistas, que são movidas buscando maximizar a taxa de lucro, a economia soviética era guiada de acordo com o cumprimento dos planos definidos pelo aparato central do Estado. Tais planos, em sua grande maioria, levavam em consideração essencialmente os índices de “produção bruta (val)” (SEGRILLO, 2000, p. 63). O problema é que a ênfase no val fazia com que as empresas buscassem a todo custo o aumento da produção bruta. Este ‘a todo custo’ significava o que muitas vezes ocorria: a qualidade ser colocada em segundo plano em relação à quantidade (produtos com defeitos etc.); haver uso excessivo, ou desperdício, de insumos (até a utilização proposital de materiais constitutivos mais pesados ou mais caros nos produtos, o que aumentava os índices da produção bruta na contabilidade do plano); os gerentes de fábrica mostrarem má vontade em relação a adotar novas tecnologias que, exigindo reorganizações no ambiente de trabalho, poderiam perturbar a produção a curto prazo etc. (SEGRILLO, 2000, p. 64).

O foco no cumprimento dos planos seguindo apenas essa lógica de aumento da produção bruta evidentemente resultava em uma ausência de incentivo do 40

progresso técnico, considerando que inovações envolvem risco – e o risco não é recompensado, diferente do que ocorre no Ocidente. Nove (1989) acredita que a concorrência que existe no capitalismo é o que incentiva o “espírito inovador” das empresas, que estão sempre buscando melhorias nas suas produções. Acrescentamos aqui que a ideia da concorrência está diretamente vinculada com a questão já mencionada da maximização da taxa de lucro – afinal de contas, quando a empresa busca reduzir custos, substituindo a mão de obra pela automação da produção, por exemplo, o objetivo final é aumentar o seu lucro, aumentar a parcela de mais-valia apropriada e, assim, intensificar a exploração do trabalhador. Apesar de mencionarmos tal dificuldade de introduzir progresso técnico na linha de produção soviética, devemos analisar como o complexo industrial-militar funcionava de forma diferente. Impulsionado pela pressão de ser uma superpotência, em concorrência direta com os Estados Unidos, e sustentando o posto de um dos polos de um mundo bipolarizado pela Guerra Fria, foi mantido no sistema econômico soviético um profundo sistema de prioridades de setor militar: “Devido às conhecidas dificuldades de abastecimento de matérias-primas e componentes no país [...], o setor militar tinha prioridade na entrega de produtos de melhor qualidade e, frequentemente, recebia a alocação da melhor mão de obra especializada existente” (SEGRILLO, 2000, p. 126). Percebemos a capacidade existente na União Soviética de desenvolver tecnologias revolucionárias quando consideramos suas conquistas durante a corrida espacial – em 1957, com o lançamento do primeiro satélite artificial da Terra, Sputnik 1, e em 1961, quando Yuri Gagarin a bordo da nave Vostok 1 tornou-se o primeiro homem a realizar uma viagem no espaço. Contudo, com a falta de incentivos para transportar as inovações do complexo científico-militar para os setores civis da economia, o fato de que o setor envolvia tecnologias que eram segredo de Estado, e contando apenas com o modelo de crescimento extensivo, a União Soviética encontrou-se cada vez mais incapaz de alcançar o ritmo ocidental. Tais elementos serão mais bem explorados no próximo tópico, ao realizarmos um balanço da economia soviética nos governos Kruchev e Brejnev. Por fim, para finalizarmos o primeiro tópico que buscou explanar algumas das principais características que são base do sistema econômico soviético, devemos reforçar alguns dos elementos que foram consolidados durante o governo Stalin. O modelo extensivo de crescimento foi estruturado durante o regime stalinista, 41

sobretudo durante a recuperação da economia soviética no pós-Segunda Guerra Mundial. Esse período também foi essencial para consolidação do poder da burocracia estatal, como os detentores do poder no Estado soviético, que controlavam a condução das políticas econômicas, e estavam “no topo da pirâmide”. Outro elemento importante foi a cultura do controle das empresas, segundo a qual era necessária uma supervisão direta das unidades produtivas para garantir que elas executassem o que delas se esperava – “[...] o desenvolvimento dessa cultura está vinculado à escassez de recursos e à politização da gestão, que transforma a implementação dos planos numa questão política e gera o chamado impulso à expansão do sistema” (POMERANZ, 1995, p. 32). A legitimação do poder político autoritário soviético estava diretamente associada ao sucesso econômico do regime. A retórica utilizada da “construção do socialismo” era sustentada pela capacidade do regime de assegurar grandes taxas de crescimento e um grau mínimo de segurança social para a população. Com essas garantias, a sociedade se descolou da necessidade de construir de fato uma organização baseada no coletivo. O regime soviético dividiu a sociedade entre controladores e controlados – foram eliminadas as instituições que serviam de intermediário entre indivíduo e Estado, extinguindo assim as formas tradicionais de auto-organização dos coletivos, sindicatos, associações voluntárias e etc. Para essa fase, em que todas essas formas foram incorporadas ao Estado, foi essencial a estruturação do sistema político soviético organizada por Stalin e marcada por seu autoritarismo (KAGARLITSKY, 1993).

1.2. Breve balanço da política econômica nos governos Kruchev (1953-1964) e Brejnev (1964-1982)

Nikita Kruchev assume a liderança como Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética em 1953, saindo vencedor de uma disputa pelo poder iniciada após a morte de Stalin, e permanece até 1964, quando foi deposto pelo Comitê Central do Partido e foi substituído por Leonid Brejnev, que ocuparia a liderança do Partido até o seu falecimento, em 1982. A década de 1950 foi marcada como um dos períodos de mais rápido crescimento econômico soviético. Com o modelo de crescimento extensivo contando ainda com recursos disponíveis para expandir a sua capacidade produtiva, a 42

economia avançou e tal tendência conseguiu ser prolongada para a década de 1960. Contudo, os anos 1960 vão ser o período em que “[...] cada vez mais se revelavam distorções e pontos fracos da economia planificada, como o atraso permanente do setor agrícola, a demanda não atendida por vários bens de consumo, a infraestrutura carente, entre outros” (MIKHAILOVA, 2013, p. 145).

TABELA 2 - Taxas de crescimento anual, em porcentagem, da renda nacional soviética (Produto Material Líquido12)

1951 12,2 1955 11,9 1959 7,4 1963 4,1

1952 10,9 1956 11,4 1960 7,7 1964 9,4

1953 9,8 1957 6,7 1961 6,9 1965 6,8

1954 12,0 1958 12,6 1962 5,6 1966 8,0 Fonte: Segrillo (2000, p. 254).

A partir de Kruchev, com o desenvolvimento industrial encaminhado e gerando resultados positivos, o setor agrícola, que nas décadas anteriores foi o grande responsável pelo financiamento da industrialização, passou a ser o foco de atenção da gestão econômica, que buscava formas de torná-lo mais produtivo, com o aumento dos investimentos no setor. A produção bruta do setor agrícola era grande, e os soviéticos figuravam entre os maiores produtores do mundo. Contudo, esse aumento dependia diretamente de uma injeção cada vez maior de recursos e mobilização de uma grande quantidade de mão de obra, o que afetava a avaliação da produtividade do setor em comparação com o desempenho de outros países industrializados (SEGRILLO, 2000, p. 149).

12 “PML (Produto Material Líquido): expressão usada no Ocidente para designar o que os soviéticos chamavam de “Proizvedennyi Natsional’nyi Dokhod” (Renda Nacional Produzida). Diferentemente do PNB (Produto Nacional Bruto) ocidental, engloba somente a produção de bens materiais (excluindo a área de serviços). A partir de 1988, os soviéticos começaram a apresentar cálculos também de PNB [...]” (SEGRILLO, 2000, p. 251). 43

TABELA 3 - Médias anuais da fração dos investimentos (em capital fixo) destinados à agricultura e da fração da renda nacional gerada pela agricultura, expressas em percentagem e em rublos. 1918-40 1956-59 1961-65 1966-70 1971-75 1976-80 1981-85

% I.P.D. 11,3% 13,9% 15,2% 16,7% 19,8% 20% 18,5%

% I.D.I. 20% 24% 27% 28% 27%

% P.R.N. 21,6% 21,8% 18,9% 16,6% 17,9%

I.P.D.r. 42,3 66,7 111,2 143,2 156,2

I.D.I.r. 56,9 96,2 152,8 199,6 227,2

P.R.N.r. 206,5 301,5 348,2 380,9 483,7 Fonte: Segrillo (1997, p. 170). Notas: % I.P.D. = percentagem de Investimentos Produtivos Diretos (relacionados diretamente à produção) na Agricultura em relação ao total de investimentos do país no período designado. % I.D.I. = percentagem de Investimentos Diretos (produtivos e não produtivos) e Indiretos na agricultura em relação ao total de investimentos do país no período designado. % P.R.N. = percentagem da Renda Nacional soviética gerada pela agricultura no período designado. I.P.D.r. = % I.P.D. expressa em bilhões de rublos constantes de 1983 (total do período). I.D.I.r. = % I.D.I. expressa em bilhões de rublos constantes de 1983 (total do período). P.R.N.r. = % P.R.N. expressa em bilhões de rublos constantes de 1983 (total do período).

No momento em que Kruchev assumiu o governo, já estava em pauta no Partido um programa que deveria focar na diminuição das dificuldades materiais que a população soviética enfrentava então (RODRIGUES, 2006). Estes problemas relacionados à qualidade de vida foram resultados do plano de recuperação econômica adotado por Stalin após o fim da Segunda Guerra Mundial, o IV Plano Quinquenal (1946-1950), que colocou em prática uma política de prioridade ao setor dos bens de produção (produção de aço, indústria metalúrgica pesada, armamentos, energia, extração mineral). Segundo dados apresentados por Rodrigues (2006, p. 119), entre 1946 e 1950, 87,9% dos investimentos soviéticos foram aplicados nos ramos deste setor de bens de produção, enquanto o setor de bens de consumo recebia um pouco mais de 12%. Por isso, a prioridade de Kruchev foi a aceleração do setor agrícola e a melhora da qualidade de vida dos soviéticos através do investimento no setor de bens de consumo. Para realinhar as prioridades da economia soviética, o governo Kruchev organizou uma série de mudanças na estrutura de planejamento, a chamada Reforma Industrial de 1957, que teve suas determinações consolidadas no Sétimo Plano Quinquenal, cobrindo o período de 1958 a 1965 (o Sexto Plano, que iria de 1955 a 1960, foi cancelado após a gestão coletar dados que mostravam que não 44

seria possível cumprir com as metas estabelecidas). Com as reformas, Kruchev procurou aumentar os poderes dos governos das repúblicas sobre as empresas nos seus territórios, diminuindo assim a influência centralizada em Moscou. Alinhado com essa ideia de ampliar a autonomia, foram expandidos os poderes dos diretores das empresas, que passariam a ter mais autoridade no planejamento, na alocação de recursos, entre outros. O principal aspecto da Reforma de 1957, contudo, foi a abolição dos ministérios centrais, que conduziam a gestão da economia, substituindo essas instituições por 105 conselhos econômicos regionais. Assim, o critério para concentrar a gestão de planejamento seria a região e não o setor da unidade produtiva (FERNANDES, 1991). O resultado da tentativa de descentralização da gestão gerou uma febre de localismo na direção econômica, que impedia um desenvolvimento articulado da economia como um todo. Apesar disso, Kruchev conseguiu gerar alguns resultados positivos. A reorganização da gestão, a maior autonomia no planejamento, o avanço na mecanização e orientação técnica na agricultura, o aumento dos estímulos e rendimentos na cidade e no campo, além do relaxamento político, foram alguns dos fatores que teriam contribuído para o aumento da produção e da produtividade do trabalho verificado na década (RODRIGUES, 2006, p. 128).

Além disso, o acirramento da Guerra Fria após uma “coexistência pacífica” de 1956 a 1962 (destaque para a Crise dos Mísseis de 1962) contribuiu para a manutenção e até expansão dos investimentos na área de defesa. Foi na passagem da década de 1950 para a década de 1960 que a União Soviética também conseguiu abrir uma vantagem em relação aos Estados Unidos na corrida espacial, após ter sucesso no lançamento do primeiro satélite artificial e também ter conseguido o feito de enviar o primeiro homem para viagem em órbita. Contudo, a indústria leve, o setor de bens de consumo e a agricultura continuavam apresentando dificuldades para acompanhar o ritmo em que a indústria pesada e dos meios de produção avançavam. Rodrigues (2006) aponta que, apesar das tentativas de introduzir as medidas determinadas pela Reforma Industrial de 1957 no que se refere à mudança da condução da gestão, o resultado foi uma série de “vaivéns”. No contexto de mudança, havia uma crescente dificuldade de coordenar as atividades de produção e distribuição nas regiões. 45

Reproduziam, em nível local, as características burocráticas e formalistas do Gosplan, agora somadas às tendências anárquicas geradas pela disputa entre regiões e empresas na busca por insumos de distribuição ineficiente, que eles buscavam obter por meio de todo tipo de tráfico de influência e troca de favores em circuitos informais. Desta forma, as reformas do período Kruchev não implicaram uma verdadeira democratização da gestão. Ao passar para uma direção territorial, os métodos burocráticos e administrativos, fundados nas determinações e comandos sem discussão democrática com as unidades produtivas, não foram alterados. Somava-se a isso, o departamentalismo, vedomstvennost, ou localismo, que, derivado das disputas entre os distintos setores da burocracia, levavam à competição por insumos, estocagem excessiva e desorganização. (RODRIGUES, 2006, p. 132).

Essa dificuldade de conduzir reformas que tinham como objetivo alterar a estrutura de gestão e buscar descentralizá-la era agravada pela resistência dos burocratas do planejamento central, que viam essas propostas como ameaças à manutenção do seu poder. Dessa forma, Kruchev só conseguiu manter sua proposta reformista no breve período em que conseguiu resultados positivos e acelerado ritmo de crescimento. No primeiro momento em que os resultados puderam ser questionados (na tabela 2 é possível perceber uma desaceleração do crescimento soviético), os conservadores passaram à ofensiva, e Kruchev acabou sendo deposto pelo Partido em 1964. Com Leonid Brejnev assumindo a liderança da União Soviética, não foi necessário sequer um ano até que fosse iniciada uma nova tentativa de reforma, dessa vez encabeçada por Alexei Kosygin, chefe de governo da União Soviética13. A proposta de Kosygin procurava modificar a própria base econômica do socialismo, introduzindo elementos de mercado através do mecanismo de khozrazshot (cada uma das empresas passaria a ser responsável por seus lucros e perdas). O objetivo da reforma era, portanto, uma liberalização das relações econômicas internas e, também, a flexibilização do mecanismo vertical de comando e controle, a tentativa de colocar o lucro como critério principal da avaliação das atividades das empresas estatais. No seu plano, as transferências obrigatórias do lucro para o orçamento estatal seriam substituídas por um imposto sobre o capital fixo. Seriam também criados fundos de estímulos econômicos nas empresas, os quais dependiam dos

13 Presidente do Conselho de Ministros da URSS, mais alto corpo executivo e administrativo da União Soviética, essencialmente o chefe de governo da União, algo semelhante ao cargo de Primeiro- Ministro. 46

lucros líquidos e dos indicadores de eficiência da produção: a premiação de trabalhadores, auxílios financeiros, financiamento de objetivos da infraestrutura social das empresas – tudo isso dependeria da avaliação do desempenho das empresas. Como resultado, as empresas receberiam mais recursos financeiros para uso próprio, os quais poderiam ser alocados conforme a sua decisão, sem diretrizes centrais (MIKHAILOVA, 2013; RODRIGUES, 2006; FERNANDES, 1991). Além da enorme mudança que queria introduzir na administração das empresas soviéticas, em 1965 Kosygin também desfez as reformas de Kruchev, abolindo os conselhos econômicos regionais e restabelecendo os ministérios centrais. Dessa forma, Kosygin buscou a “recentralização” do planejamento, ao mesmo tempo em que procurava conceder mais liberdade para as empresas organizarem seu planejamento de forma independente. O processo de recentralização obteve sucesso imediato – as linhas burocráticas ligadas ao planejamento central estavam esperando recuperar o seu poder, de fato. Mas a ideia de atribuir mais autonomia às empresas e diminuir o papel do planejamento central (que logo naquele momento estava conseguindo recuperar seu poder) não conseguiu caminhar. Além disso, as reformas propunham dar mais poder aos administradores das empresas, mas em nenhum momento sugeriam uma democratização do diálogo entre eles e os trabalhadores, mantendo, como o padrão reformista soviético, a classe trabalhadora fora das discussões sobre as direções que o sistema deveria seguir. Os ritmos de crescimento voltaram a cair nos anos 1970 e as reformas não conseguiram ser duradoras. Rodrigues (2006) aponta que a tentativa (e fracasso) de reforma de Kosygin evidenciou as dificuldades de reformar a economia sem haver um consenso entre os atores do sistema político e o planejamento central burocrático sobre o destino que as reformas deveriam tomar. Sem contar com o apoio desses grupos, Kosygin acabou alimentando as contradições inerentes do sistema. Brejnev também teve papel essencial para travar as tentativas de reforma de Kosygin. Apesar de Kosygin manter seu cargo como chefe do conselho de ministros e sua posição no Politburo, sua capacidade de atuação de facto foi extremamente enfraquecida. A década de 1970 é também marcada por um crescimento dos níveis médios dentro da sociedade soviética, compostos por trabalhadores que ocupavam cargos considerados de “patamares privilegiados”. Isto é, cargos ligados à administração 47

das empresas, ou de setores produtivos com mais prestígio e importância no sistema soviético, também composto por dirigentes científicos, uma nova classe ligada à cultura, e a formação de uma cada vez mais forte máfia comercial, que no mercado ilícito ganhava seu prestígio. Essa máfia enriquecia aproveitando dos espaços (loopholes) que o Estado soviético não conseguia ocupar – seja por falta de fiscalização, seja por falta de oferecimento de bens e serviços. Kagarlitsky (1993) aponta que, apesar da ascensão desses níveis médios e da formação de um sistema de privilégios, sua qualidade de vida e a manifestação de sua ascensão social ainda estavam muito distanciadas do poder estatal. É justamente nesses níveis médios que as aspirações por mudanças radicais começam a se formar, especialmente conforme o ritmo de crescimento econômico começa a diminuir seu passo. Priestland (2014) também aponta como na década de 1970 a intelligentsia14 do Partido Comunista soviético vai começar a ganhar tons nitidamente mais liberais e pró-ocidentais, com muitos de seus membros passando para as linhas da social-democracia. Essas mudanças serão importantes sobretudo no governo Gorbachev, para dar suporte social à introdução de suas reformas liberalizantes. No campo internacional, uma das mais importantes mudanças que ocorre durante o governo Brejnev é a escolha de explorar as vantagens da divisão internacional do trabalho estabelecida pelo sistema capitalista, assumindo assim o papel de nação industrializada e, ao mesmo tempo, da maior produtora de petróleo do mundo.

[...] por trás de um discurso anticapitalista e anti-imperialista muitas vezes virulento, a liderança da URSS optou por intensificar cada vez mais os fluxos de capital entre o seu país e o mundo capitalista, numa silenciosa escalada de (re)integração no mercado capitalista mundial. Esta escalada foi a ‘resposta’ encontrada para tentar conter a tendência à estagnação da economia soviética, fruto do fracasso das tentativas de reformar o modelo

14 O termo intelligentsia é usado de forma vulgarizada para definir a classe intelectual russa, pensadores, atuantes do meio acadêmico, pessoas com formação qualificada. Contudo, há todo um debate acerca da origem do termo e de seus diferentes usos conforme o avançar do tempo. “Por um lado ela aparecia como representante do ethos da renovação, da modernidade, da civilidade, do progresso do povo e da nação e, por outro, foi representada pelos seus críticos como portadora de um espírito de soberba, sectário, eslavófilo e, portanto, incapaz de representar interesses universais e racionais” (VIEIRA, C., 2008, p. 70). 48

extensivo adotado na década de 30, e passar a uma fase de desenvolvimento econômico mais intensivo (FERNANDES, 1991, p. 187).

Na sua relação econômica com os países do chamado “Terceiro Mundo”, a União Soviética dificilmente conseguiria ocupar um espaço que eliminaria a dependência desses países em relação aos países capitalistas centrais. A decisão soviética foi, portanto, oferecer cada vez mais apoio militar para os Estados e movimentos que rompiam com as potências ocidentais. Tal aproximação com os soviéticos era vista pelos Estados Unidos como uma grande escalada da ameaça soviética, o que também impulsionou um curso mais agressivo dos americanos, sobretudo após a posse de Ronald Reagan (presidente dos Estados Unidos no período de 1981 de 1989). Após a crise dos mísseis de Cuba em 1962, Kruchev havia reorientado a sua política militar para a conquista e manutenção da paridade bélica com os Estados Unidos. Brejnev manteve e aprofundou esta política. A estratégia dos Estados Unidos foi tentar estrangular a economia soviética com os gastos militares, já que os sacrifícios impostos pela corrida armamentista eram mais severos para a URSS. As consequências dessa política serão sentidas também na tentativa de Gorbachev de reorientar a política externa soviética, o que veremos adiante, após um período de militarização sem precedentes (FERNANDES, 1991, p. 154).

TABELA 4 - Gastos militares a preços constantes e correntes (em bilhões de dólares), segundo cálculos de SIPRI (S.) e USACDA (U.). Ano 1970 1975 1979 1979 1980 1985 1985 x x x xx xx xx xxx

EUA (S.) 130,9 110,2 110,1 138,8 144,0 204,9 266,6

URSS (S.) 92,5 99,8 105,7 129,9 131,8 146,2 -

EUA (U.) 128,8 108,5 112,3 - 144,0 - 265,8

URSS (U.) 127,8 151,4 166,7 - 198,2 - 277,2

Fonte: Segrillo (1997, p. 111). Notas: SIPRI: Stockholm International Peace Research Institute. USACDA: Arms Control and Disarmament Agency. 49

Para avaliação dos gastos militares dos países comunistas, USACDA utiliza dados da CIA, enquanto SIPRI utiliza publicações oficiais complementadas por avaliação independente através de outras fontes primárias e secundárias. Anos x: dólares constantes e taxas de câmbio de 1978; Anos xx: dólares constantes e taxas de câmbio de 1980; Anos xxx: dólares correntes e taxas de câmbio de 1985.

Podemos mencionar, também na década de 1970, um momento de “empolgação” dos soviéticos, por toda a crise do mundo capitalista iniciada ainda em 1971, com o fim do acordo de Bretton Woods, seguido pelas crises do petróleo de 1973 e 1979. Especialmente a crise do petróleo de 1973 gerou resultados positivos para a União Soviética, que expandiu sua exportação de petróleo e, como resultado, uma quantidade cada vez maior de bilhões de dólares entrou no país. De acordo com Hobsbawn (1995), esse aumento das exportações foi importante para que a URSS conseguisse um “fôlego econômico” – mas justamente esse resgate foi o que permitiu que a administração adiasse a necessidade de uma profunda reforma econômica. O aumento das exportações também contribuiu para aumentar a sua integração econômica e comercial com o Ocidente, e desse modo a sua dependência dessa relação, ficando a economia soviética cada vez mais exposta às ondas de tecnologia e de mercadorias baratas do mercado mundial (RODRIGUES, 2006). “O ‘socialismo real’ [...] agora enfrentava não apenas seus próprios problemas sistêmicos insolúveis, mas também os de uma economia mundial mutante e problemática, na qual se achava cada vez mais integrado.” (HOBSBAWN, 1995, p. 458). Para concluir a seção que pretende fazer um breve balanço dos governos Kruchev e Brejnev, vale mencionar a questão do esgotamento do modelo econômico soviético, ao mesmo tempo em que ocorria na economia capitalista mundial a ascensão de um novo padrão de organização da produção. Com o avanço da corrida tecnológica mundial, a chamada “Terceira Revolução Industrial” ou “Revolução da Informação”, houve um movimento que passou a introduzir uma série de novos métodos organizacionais na indústria, com conceitos de especialização e flexibilização do setor produtivo, que foram consolidados no chamado toyotismo, que 50

trazia uma ênfase em fluxos horizontais de informação e comando, economia de recursos e etc.15 (SEGRILLO, 2008). Apesar da dificuldade de introduzir mudanças e reformas no modelo econômico soviético, a revolução que ocorria no mundo capitalista não passou despercebida da administração soviética. “O conceito de [Revolução Científico- Técnica] RCT foi incorporado pela administração brejneviana como uma das bases para a afirmação de que a URSS havia entrado na fase do socialismo desenvolvido” (SEGRILLO, 2000, p. 57). O conceito havia sido apresentado no XXII Congresso do PCUS de 1961, ainda nos últimos anos do governo Kruchev, com sua essência consistindo na substituição das funções produtivas diretas do trabalhador por meios técnicos. A ideia da RCT casava com o tom otimista da URSS nos anos 1960, e os administradores acreditavam que a RCT aguçaria as contradições internas do capitalismo, já que provocaria um efeito profundo diminuindo empregos – os soviéticos, nesse momento, acreditavam que somente uma economia planejada evitaria o desemprego e o caos econômico conduzidos pela automação da RCT (SEGRILLO, 2000). Hoje podemos concluir que o sistema capitalista conseguiu se adaptar às mudanças da RCT, mesmo com suas contradições (e as consequências que os trabalhadores tiveram de enfrentar em todo o mundo), enquanto o modelo soviético encontrou grandes dificuldades de remover suas travas e conseguir adotar um modelo mais dinâmico dentro das restrições do planejamento central. As reformas que tentaram ser introduzidas, seja por Kruchev ou Kosygin, não conseguiam ganhar forma sobretudo por uma forte resistência dos próprios dirigentes das empresas e do corpo burocrático do Estado, e também pela inércia dos órgãos de controle e do planejamento central (MIKHAILOVA, 2011, p. 17).

15 Esse processo não ocorre de forma aleatória – o sistema capitalista, após um longo crescimento que era vigente desde a década de 1950, e que contava com a participação ativa do Estado na economia, viu o modelo de produção entrar em colapso com as crises da década de 1970. Não à toa, em um contexto de crise em que o preço do petróleo e das commodities aumentou muito, o incentivo vai ser de desenvolver um modelo de produção que economize recursos. 51

1.3. A chegada de Gorbachev – o contexto econômico da década de 1980

Antes de Mikhail Gorbachev assumir a liderança do Partido em 1985, com a promessa de trazer uma renovação para o poder político e também para a condução das políticas da União Soviética, ainda passaram brevemente pelo poder Iuri Andropov (de 1982 a 1984, ano de seu falecimento), que havia sido chefe da KGB (Komitet Gosudarstvennoy Bezopasnosti, Comitê de Segurança do Estado), e Konstantin Chernenko (assumiu em fevereiro de 1984 e faleceu em março de 1985), que era o líder do Comitê Central do PCUS. Após tal período de instabilidade política em que os líderes não tiveram tempo de encaminhar uma proposta de governo concreta, Gorbachev chega ao poder como um “jovem” promissor (tinha 54 anos na época), com o desafio de recuperar a economia soviética e revigorar o sistema, prezando pelo seu fortalecimento. Uma dura missão, considerando a questão externa e uma tensão cada vez maior das contradições inerentes ao sistema. Uma série de fatores permitiu que Gorbachev chegasse ao poder, e Hobsbawn (1995) destaca a escancarada corrupção do Partido na era Brejnev quando os privilégios daqueles que ocupavam os cargos mais altos do Partido ficaram evidenciados, o que fez certos setores dentro da própria estrutura partidária se indignarem. Outro elemento foi o já mencionado setor médio que estava crescendo, camadas com mais qualificação e formação técnica que estavam cientes da necessidade de uma reforma para garantir a sobrevivência da economia soviética. Podemos citar também a questão da Guerra do Afeganistão, iniciada em 1979, e que estava demandando um custo alto para os soviéticos – tanto o custo econômico quanto o humano. A década de 1980 representou, portanto, o momento em que a estrutura econômica soviética (e a do Leste Europeu comunista também) estava deixando de conseguir manter um ritmo de desenvolvimento que garantisse aumentos de produção e melhora na qualidade de vida. Kagarlitsky (1993) aponta quatro problemas centrais para compreender esse momento: 1) o atraso tecnológico soviético em relação aos países capitalistas ocidentais estava cada vez maior, o que expandia a condição de dependência conforme a economia soviética ficava mais integrada à divisão internacional do trabalho; 2) as estruturas econômicas eram 52

antiquadas, seguindo essencialmente o mesmo modelo das décadas de 1940 e 1950; 3) faltava infraestrutura para uma rápida modernização, no setor de transportes e comunicação especialmente; 4) inadequação dos serviços de saúde e educação. O momento também é de baixa dos preços do petróleo no mercado internacional, a partir de 1985, o que contribuiu para dificultar a situação econômica soviética. Apesar do modelo de planejamento centralizado conseguir garantir uma certa manutenção do nível de vida da população, como mencionado no tópico anterior, o modelo de crescimento extensivo soviético estava cada vez mais esgotado, e com a defasagem tecnológica combinada com a queda do preço do petróleo (em um momento em que os soviéticos precisavam de dinheiro para importar as tecnologias do Ocidente), a União Soviética vivia no limite de não conseguir introduzir uma reforma que viabilizasse uma via de desenvolvimento intensivo (SEGRILLO, 2000). Além disso, uma série de princípios do novo padrão organizacional que se consolidava com a Revolução da Informação ia contra o compromisso soviético de manutenção do pleno emprego – como cortar custos, dispensar a produção excedente, demitir funcionários que não fossem necessários? Tais princípios exigiriam uma remodelação de todo o complexo organizacional da economia soviética, da gestão centralizada de planejamento, do papel dos diretores das empresas, e outros. A dificuldade do modelo soviético de se adaptar aos novos paradigmas de produção que surgiam é um dos problemas centrais que levaram à necessidade de uma reforma tão radical quanto a perestroika se propunha a ser em meados dos anos 80 (SEGRILLO, 2000). O modelo soviético tinha características de extrema rigidez, e esta ainda era agravada com o planejamento central. Como incorporar do dia para a noite um modelo baseado no dinamismo? Dessa forma, a década de 1980, momento em que Gorbachev se tornará o líder da União Soviética, é um período marcado pelo esgarçamento das contradições do sistema soviético. A partir de tal cenário de necessidade de retomar os ritmos de crescimento, o governo Gorbachev decide acelerar o crescimento econômico mediante uma manobra estrutural, com o aumento físico dos investimentos, sobretudo no setor de fabricação de máquinas e equipamentos. Em pouco tempo ficou claro que a simples incorporação de mais investimento seria insuficiente, e que era necessário reformar o próprio mecanismo econômico. Simplesmente aumentar volume de investimentos 53

sem articular outras formas de incentivo não era o suficiente para desencadear o crescimento econômico necessário (STARODUBROVSKAIA, 2005). Para Gorbachev, com o acirramento da crise, duas opções alternativas pareciam se apresentar: o modelo que a China estava seguindo a partir de 1976 com Deng Xiaoping16, de reformismo econômico moderado e sem liberalização política, que era apoiado pela ala conservadora do governo soviético, ou uma pauta mais próxima das reformas de mercado, apoiada pela ala mais liberal dos soviéticos. Gorbachev decide rejeitar as duas, e vai procurar encontrar uma solução conciliatória, mas que se mostrará profundamente falha, pois se tratava de tentar conciliar interesses completamente contraditórios – será a proposta de uma reforma radical na estrutura do mecanismo econômico, com uma face de reforma também política, mas de forma que não impedisse a viabilidade da continuidade do sistema soviético. Durante o Comitê Central do PCUS em 1987, Gorbachev vai assim condenar o modelo stalinista da economia – o modelo de uso extensivo dos fatores, através do qual as distorções da economia eram compensadas com a incorporação de uma quantidade cada vez maior de recursos. Segundo Gorbachev, este modelo estava em crise, e era inviável continuar seguindo-o (ARANTES JR, 2015, p. 276). Gorbachev assim escreve: [...] nossos esforços para mudar a estrutura da economia nacional, transferi-la para a trilha do desenvolvimento intensivo e acelerar o progresso científico e tecnológico, instigaram de forma ainda mais urgente a necessidade de uma reforma radical do mecanismo econômico e de reestruturação de todo sistema da administração econômica. (GORBACHEV, 1998, p. 93)

O plano da reforma econômica, que ficou conhecido como perestroika, apresentava assim como diretrizes gerais o recuo da planificação centralizada, o afrouxamento nos controles sobre as empresas e a reintrodução gradual de mecanismos de mercado na economia soviética (RODRIGUES, 2006). Tais objetivos gerariam um conflito na estrutura de comando do Estado e do Partido, justamente a estrutura que fazia o sistema soviético funcionar, e que, ao mesmo tempo, também era o principal obstáculo para transformação do sistema. A reforma de Gorbachev não pretendia destruir completamente a estrutura de comando, apenas flexibilizá-la,

16 Sobre as reformas de Xiaoping, ver mais: MEDEIROS, C. (2008); POPOV, V. (2007). 54

o que geraria desconforto para certas camadas que perderiam poder. A reforma política da glasnost vai buscar neutralizar o obstáculo da estrutura de comando através da liberação de forças populares que sustentariam a política reformista. Essas questões serão melhores trabalhadas adiante. Gorbachev decidiu apostar no “aperfeiçoamento das instituições”, o meio- termo que conseguisse passar de um modelo extensivo para um modelo intensivo, sob o controle prudente dos diretores das indústrias e do PCUS. Assim nasceu a perestroika (ARANTES JR, 2015).

1.4. Balanço da política econômica da perestroika

A perestroika se apresenta como a primeira tentativa de reforma global do sistema, e a chave para a sua realização se encontrava na esfera política, mais concretamente na esfera da direção partidária. A estratégia de Gorbachev para reforma do sistema como um todo se apresentou em dois fronts: a reforma econômica, condensada na perestroika, e a reforma política, apresentada na glasnost (POMERANZ, 1995). A perestroika se apresentava, portanto, como uma política de reforma (“reestruturação”) econômica elaborada por diversos economistas, e consagrada em uma série de atos normativos dos anos 1987 e 1988, e que tinha como objetivos a ampliação da autonomia econômica das empresas liberando a tomada das decisões empresariais, a redução do monopólio estatal, o afrouxamento do controle do Estado sobre todas as dimensões da economia, e a implantação, embora em doses muito limitadas, da iniciativa privada em forma de cooperativas e trabalho individual, sobretudo para fomentar os setores secundários de produção de bens de consumo, comércio varejista e serviços não essenciais (MIKHAILOVA, 2013; STARODUBROVSKAIA, 2005). Para alcançar tais resultados, a estratégia da perestroika era baseada em dois elementos centrais: 1) o redirecionamento da economia soviética para o atendimento do mercado consumidor; 2) mudar o sistema de gestão, descentralizando o processo de decisão, utilizando instrumentos econômicos como reguladores da atividade econômica (POMERANZ, 1990). Aganbeguian, um dos assessores econômicos de Gorbachev que auxiliou na formulação do programa de reformas, lista algumas das direções fundamentais da 55

perestroika: 1) a reorientação social do desenvolvimento econômico, com a expectativa de alimentar o crescimento da produção dos bens de consumo; 2) a política de incremento da eficiência e da qualidade como base da aceleração do progresso técnico-científico; 3) uma reforma econômica do sistema de gestão, com a substituição do sistema de comando administrativo por um mecanismo econômico novo (AGANBEGUIAN, 1990). Ainda em novembro de 1986, antes mesmo da formulação oficial da perestroika, foi aprovada a “Lei sobre a atividade econômica individual”, que tentava regularizar atividades que na prática já existiam ilegalmente, sobretudo atividades relacionadas a serviços (como táxis, cabelereiros e etc.), desde que não envolvesse a contratação de trabalho assalariado. Porém, foi uma legislação bastante falha e sem resultados concretos, já que com ela vieram exigências fiscais, como taxas e impostos – não havia uma vantagem concreta de legalizar a atividade, e os cidadãos que buscavam complementar sua renda através deste tipo de ocupação já estavam acostumados a fugir das tentativas de fiscalização do Estado (BOETTKE, 1993). Apesar de falha, a lei foi a primeira semente na liberalização do trabalho privado. “Foi uma primeira fenda aberta na estatização generalizada da atividade econômica até ali.” (RODRIGUES, 2006, p. 223) Em junho de 1987 foi aprovada uma das leis mais importantes deste período reformista, a “Lei sobre a empresa estatal”, que estabeleceu três princípios para o norteamento da atividade das empresas estatais: o cálculo econômico (khozrazshot), o autofinanciamento (samookupaemost) e a autogestão (samoupravlenia) (POMERANZ, 1995), e tinha como princípios: a) a elaboração, pela própria empresa, do seu plano de desenvolvimento; b) a responsabilidade e a participação de todo o coletivo nas decisões e trabalho da empresa (POMERANZ, 1990). A lei concedia às empresas uma maior autonomia em relação às entidades administrativas, e aos trabalhadores o direito de eleger o diretor da empresa, privando assim as instâncias superiores do principal instrumento de pressão sobre essas unidades produtivas – a ameaça de remover os diretores de seus postos. A diretoria conquistou também o direito de decidir livremente sobre questões salariais, o que fez com que os diretores fossem eleitos baseados em campanhas de aumento de salários. Com a nova lei, as empresas 56

Deixariam de se guiar apenas pelo cumprimento das metas ou valor global da produção e passariam a ser avaliadas pelos lucros que conseguissem e pela qualidade dos produtos [...]. A nova legislação as autorizava também a estabelecer os preços de seus produtos e a remuneração de seus trabalhadores. Seriam livres para escolher fornecedores e relacionar-se diretamente com os clientes, com quais seriam estabelecidos contratos diretos (RODRIGUES, 2006, p. 226).

Contudo, a lei não esclarecia nada sobre falências, demissões e sobre como seriam repassados (ou se seriam repassados) os subsídios estatais. Dessa forma, os diretores que eram eleitos passaram a ter muito controle sobre as empresas, praticamente desfrutando de todos os gozos do direito de propriedade, sem, contudo, terem qualquer responsabilidade equivalente a de um proprietário privado sobre as suas decisões. Na ausência de uma real propriedade privada, as empresas não tinham incentivos para investir de fato na produção, mas podiam desfrutar do lucro, assim como continuar gastando os recursos da união. Em maio de 1988, foi aprovada a “Lei sobre cooperação”, estabelecendo cooperativas17 como uma forma de organização possível nas zonas urbanas (com o mínimo de três membros, e autorizando a contratação de funcionários). Era uma tentativa de incentivar o setor de serviços, e Pomeranz (1995) afirma que constituiu o “primeiro passo para a introdução da atividade privada no país” (p.42). Segundo os números apresentados por Boettke (1993), em 1987, eram 8 mil cooperativas, empregando cerca de 88 mil trabalhadores e gerando 350 milhões de rublos; após a aprovação da lei, em 1989 eram 133 mil cooperativas, empregando quase 3 milhões de soviéticos, e gerando 12,9 bilhões de rublos. Apesar dos incentivos determinados pela lei, havia uma clara hostilidade entre as cooperativas “privadas” e órgãos estatais, já que as primeiras ainda dependiam do setor estatal para obter recursos, insumos, disputando esse espaço com as empresas públicas. A administração de Gorbachev também estabeleceu um novo estatuto das cooperativas agrícolas, que determinava um relaxamento na coletivização e abria

17Apesar do uso do termo “cooperativa” para definir as novas formas de organização econômica, com uma análise mais detida das relações que se formaram dentro de tais novas estruturas (especialmente a questão da “contratação de funcionários”) é possível concluir que essas relações não seguem a doutrina do cooperativismo e os chamados “Princípios de Rochdale” (referência às primeiras manifestações concretas de cooperativismo que surgiram na Inglaterra da Revolução Industrial, em meados do século XIX). Não cabe nos limites do presente trabalho apresentar uma análise mais detalhada acerca do tema. Sobre a questão das cooperativas na União Soviética, ver: FRENKEL, W. G. (1989). 57

espaço para maiores concessões aos camponeses, consolidando um modelo de sistema de brigadas, que permitia que grupos ou as famílias explorassem parte das fazendas coletivas e mantivessem para eles parte do lucro obtido (RODRIGUES, 2006). Uma das mais importantes medidas no período foi também a nova “Lei sobre a propriedade”, do começo de 1990, que generalizou a autorização para compra de propriedade estatal por qualquer coletivo de trabalhadores, e universalizou a autorização para emissão e venda de ações das empresas estatais (POMERANZ, 1995). Tal legislação gerou uma profunda transformação da grande propriedade estatal, concedendo-lhe maior autonomia para atuação como agente de novas relações de mercado. Combinada com o decreto de junho de 1990, que discorria sobre as Sociedades Anônimas e as Sociedades de Responsabilidade Limitada, essa legislação deu origem a dois movimentos que caracterizam a chamada “privatização de nomenklatura18” (POMERANZ, 1995): 1) conversão das empresas estatais em sociedades anônimas, com os acionistas majoritários sendo os diretores e trabalhadores do coletivo da empresa; 2) transformação dos ministérios setoriais em associações intersetoriais e complexos empresariais (POMERANZ, 1995). Podemos afirmar, assim, que o movimento embrionário de privatização da economia já se deu durante a perestroika, mas não de forma explícita: foram lançadas as sementes de novas unidades econômicas e de um movimento de “privatização espontânea”, como as leis que permitiram o surgimento de pequenas empresas no setor de serviços e favoreceram uma descentralização e desestatização da propriedade (em que os proprietários eram os membros da nomenklatura) (POMERANZ, 2000). Esse movimento de privatização pela nomenklatura seguiu três direções: 1) constituição da Economia do Komsomol (Organização da Juventude Comunista), a partir dos Centros de Criatividade Científica e Tecnológica da Juventude, que tinham autorização para produzir bens de consumo e manter relações com o exterior, estabelecendo preços e sendo isentos de tarifas alfandegárias – com as novas leis,

18 O termo é utilizado para designar de forma generalista aqueles que ocupam os cargos da burocracia estatal, a classe dirigente do PCUS e do Estado soviético. Veremos mais sobre a nomenklatura adiante. 58

esses centros se transformaram em cooperativas e estabeleceram joint ventures, obtendo grandes lucros; 2) funcionários dos ministérios, no processo de desestatização, acionarizaram as empresas que lhes eram subordinadas e criaram os konzerns que se transformaram em grandes grupos econômicos; e 3) criação de unidades comerciais independentes no âmbito das empresas, especializadas na prestação de serviços como marketing e vendas (POMERANZ, 2000). A administração de Gorbachev chegou a formular uma “Lei sobre desestatização e privatização” em julho de 1991, buscando reestruturar as empresas estatais, mas naquele momento já não era possível implantar nenhum plano. Com o predomínio da crise política, a tentativa de executar qualquer programa ou mesmo de garantir a efetiva aplicação da lei era inútil. A decisão de Gorbachev de conduzir uma série de reformas políticas de forma simultânea acabou travando a realização das medidas econômicas, pelo clima de instabilidade política que se instaurou na União (ver adiante na seção sobre a glasnost). As medidas que mais tiveram resultados concretos foram as relacionadas à destruição das bases do sistema planificado, que acabou desmontado. “Assim, os mecanismos econômicos de planificação centralizada foram desativados e os de mercado não foram implementados. Essa situação levou ao colapso da economia soviética e desencadeou a grande crise transformacional na década de 1990” (MIKHAILOVA, 2013, p. 148). Boettke (1993) aponta que um dos elementos centrais da economia soviética que foi importante para travar o avanço das medidas da perestroika era o compromisso do Estado soviético de manter o pleno emprego. Frente a isso, a falência das empresas não era uma opção. Os subsídios estatais não podiam ser interrompidos ou isso inevitavelmente levaria a uma série de falências e aumento do desemprego. Como os trabalhadores e os gerentes sabiam que o Estado possuía esse compromisso, eles assumiam uma posição “negligente” com o discurso estatal que defendia restrições orçamentárias. Tal elemento combinado com a falta de compromisso do Estado soviético de proteger os direitos do embrionário setor privado resultava na ausência de incentivos para investimentos concretos e o trabalho que era necessário para desenvolver a economia soviética (BOETTKE, 1993).

A incapacidade de transmitir qualquer tipo de compromisso com a reforma selou o destino da perestroika. As reformas simplesmente não conseguiram 59

impulsionar a economia e a crise do consumidor ficou mais aguda. A instabilidade política das reformas fracassadas, em conjunto com as expectativas deflacionadas por parte da população, produziram uma situação altamente problemática para o regime de Gorbachev (BOETTKE, 1993, p. 103, tradução nossa19).

As reformas da perestroika foram responsáveis por uma desorganização do sistema de planejamento soviético. No fim de 1991, a economia encontrava-se em uma difícil posição, misturando traços centrais do sistema organizado na União Soviética (traduzidos no grande peso do Estado na atividade econômica) e características capitalistas (setor privado em desenvolvimento, ainda que de forma bastante desorganizada) (MAZAT, 2013). Havia um processo de formação de instituições de livre mercado em curso, ao mesmo tempo, em que o Estado tentava manter o controle sobre os meios de produção e sobre os preços de bens e serviços essenciais. Esta dualidade pode ser apontada como fator que instiga assim a tendência de aprofundamento da crise econômica e crescentes distorções na economia. Um dos elementos que agravava a complexidade de introdução dos elementos de mercado no sistema soviético era a inexistência de um sistema monetário nos moldes da economia de mercado capitalista. A população soviética recebia salários e outros incentivos, mas a aquisição de produtos e serviços de subsistência essencialmente não era realizada através de trocas com esse “dinheiro”, o que gerava poupanças forçadas (PETRAKOV, 1990). A questão do funcionamento do mecanismo dos preços na economia soviética é complexa, amplamente debatida por uma bibliografia específica20, e foge dos objetivos determinados pelo presente trabalho. Contudo, podemos mencionar brevemente que os preços eram inteiramente administrados pelo planejamento estatal, a sua determinação estava associada aos custos da produção, e não tinham qualquer pretensão de assumir a mesma função dos preços como instrumento de uma

19 No original: “The inability to convey any kind of commitment to reform sealed perestroika’s fate. The reforms simply could not get the economy going and the consumer crisis grew more acute. The political instability of failed reforms, alongside deflated expectations on the part of the population, produced a highly troublesome situation for the Gorbachev regime.” 20 Também sobre o sistema de preços soviético, ver mais: BIRMA, I.; CLARKE, R. (1985); BRADSHAW, R.; FILATOCHEV, I. (1992); FISCHER, S.. FRENKEL, J. (1992). 60

economia de mercado (“equilibrando” a oferta e a demanda dos bens ou a distribuição dos recursos entre os setores da economia) (BOROZDIM, 1990). Outro ponto importante é a ausência de um sistema que desse suporte às relações de mercado que as reformas estavam tentando promover. Rodrigues (2006) destaca a ausência, no sistema soviético, de um sistema bancário e de crédito consolidado, que pudesse oferecer crédito para as empresas investirem e para os cidadãos consumirem, e de um sistema financeiro consolidado. Essa ausência de instituições influenciará as características da economia russa nos primeiros anos após o colapso soviético. Para piorar o quadro geral da situação econômica soviética, em 1988 houve uma crise na colheita de grãos – combinada com a crise que o preço do petróleo sofreu em 1986, e que reduziu a receita do governo. O Estado soviético se tornava cada vez mais incapaz de garantir o atendimento das necessidades básicas da população (RODRIGUES, 2006). Em julho de 1989, os mineiros de carvão desencadearam uma grande greve na Ucrânia, e uma onda de mobilizações se espalhou por toda União Soviética, gerando em meados de 1990 novas grandes greves – as paralisações de setores importantes da economia contribuíram ainda mais com a expansão do caos econômico (RODRIGUES, 2006).

1.5. O elemento externo: a nova política externa de Gorbachev

No governo de Gorbachev, foi realizada também uma reformulação da política externa soviética, como forma de viabilizar e fomentar as reformas econômicas que estavam sendo inseridas. Seus principais objetivos eram a redução da corrida armamentista, para que o orçamento direcionado ao setor militar pudesse ser redistribuído em outras áreas da economia, reduzir a presença do Exército Vermelho em territórios estrangeiros, e integrar ainda mais a economia soviética ao Ocidente capitalista, sobretudo à economia da Europa como um todo. Essa ruptura da política externa também pretendia “encerrar” a Guerra Fria para reintegrar a URSS na comunidade internacional, o que contribuiria também para que o país não ficasse isolado nem da revolução tecnológica (que ocorria em ritmo acelerado na indústria ocidental), e nem tampouco da organização dos grandes blocos econômicos internacionais que estava em andamento (POMERANZ, 1995). 61

Para essa renovação da política externa, portanto, é formado um novo pensamento político (new political thinking), que ocorre essencialmente em duas fases: primeiro, entre 1985 e 1987, o foco é na renovação do socialismo ou na aceleração do socialismo; posteriormente, entre 1987 e 1991, a política externa entra em sua fase mais radical, marcada por uma rejeição de fato da ideologia marxista-leninista como guia de formulação da política externa soviética, embarcando em uma tentativa de revitalizá-la (PATMAN, 1999). Patman (1999) busca apresentar três elementos que auxiliem a compreensão do surgimento do new political thinking: 1) o papel central da liderança de Gorbachev, suas iniciativas sendo essenciais para estabelecer relações com líderes ocidentais; 2) new political thinking como resultado da degeneração do sistema político soviético, processo iniciado com as denúncias dos crimes de Stalin - no início da década de 1980 já existia dentro da sociedade soviética o reconhecimento de que reformas eram necessárias; 3) o maior estímulo para formulação do new political thinking veio da política militante do presidente Ronald Reagan direcionada para Moscou entre 1981 e 1984 – a administração de Reagan deliberadamente iniciou uma pressão intensa sobre o sistema soviético, investindo altamente na renovação do aparato militar americano.

Argumentarei que a posição intransigente do governo Reagan em relação a Moscou se cruzou com as pressões de longo prazo do declínio político e econômico para criar uma janela de oportunidade para elementos reformistas ou 'modernizadores do sistema' dentro da estrutura dominante do PCUS para avançar uma nova agenda na política externa. Ou seja, o NPT [new political thinking] não apareceu repentinamente em 1985 com a ascensão de Gorbachev ao poder. De fato, o processo de reavaliação da política externa soviética começou no final de 1982 (PATMAN, 1999, p. 579, tradução nossa21).

Com a morte de Brejnev, dentro do Partido havia um debate sobre os caminhos que a política externa soviética poderia seguir a partir daquele momento: os hardliners apostavam na manutenção das tensões com o Ocidente, e com a

21 No original: “I will argue that the uncompromising stance of the Reagan administration towards intersected with the long-term pressures of political and economic decline to create a window of opportunity for reformist elements or ‘system modernizers’ inside the ruling CPSU structure to advance a new agenda. That is, NPT did not suddenly appear in 1985 with the accession of Gorbachev to power. Indeed, the process of reassessing soviet foreign policy began in late 1982.” 62

preparação militar da URSS caso fosse necessário um conflito direto; por outro lado, os membros do Partido que compunham a chamada loyal opposition (dentre os quais estava Gorbachev) defendiam que a proteção da segurança nacional deveria ser garantida com meios políticos e econômicos, indo além do foco nos meios militares (PATMAN, 1999). Com o new political thinking de Gorbachev, a administração da política externa soviética passou a se aproximar dos polos capitalistas, sobretudo procurando se associar com a Europa Ocidental, para assim garantir a presença soviética nas regiões mais importantes do mercado mundial, visando também à captação de capital e tecnologia (FERNANDES, 1990). Outro fator importante para o contexto, como já mencionamos, foi a influência do governo de Ronald Reagan (1981-1989). A década anterior foi marcada por certa crise na confiança dos Estados Unidos (que encontrou seu ápice na derrota no Vietnã); no mesmo período, a URSS expandiu sua capacidade militar e sua influência no chamado “terceiro mundo” (o ápice na invasão do Afeganistão em 1979) (PATMAN, 1999). Após esse período de conflitos para os americanos, a estratégia de Reagan a partir de 1981 consistiu não só de uma determinação renovada de conter a expansão soviética, mas também de confrontar e reverter os ganhos soviéticos em uma escala global. Assim, a estratégia de Reagan que finalizou o período da deténte entre Brejnev e Jimmy Carter (presidente dos Estados Unidos de 1977-1981) tinha dois elementos centrais: 1) o rearmamento dos Estados Unidos, que tinha como personagem principal a Iniciativa Estratégica de Defesa, anunciada em 1983 (em inglês SDI, o famoso “Projeto Guerra nas Estrelas”); e 2) uma forte ofensiva ideológica contra os soviéticos. Foi um momento de vários conflitos, com o uso da força militar norte-americana justificada com a “defesa dos interesses e valores ocidentais” – momento em que os Estados Unidos interviram na Líbia, Somália, Granada, Afeganistão, Nicarágua, Angola, Camboja e em outros países. Ao contrário do governo Jimmy Carter, que era considerado mais flexível, a liderança de Reagan estava pronta para rejeitar qualquer tipo de movimento nacional com ideais de independência ou de “autodeterminação”, considerando tais iniciativas como resultado da “atividade subversiva” da União Soviética (PATMAN, 1999). O foco de Reagan era, portanto, a superioridade dos valores ocidentais, e sua posição agressiva colocou o Kremlin na defensiva. O anúncio da SDI desempenhou 63

um papel psicológico poderoso, e evidenciou o atraso tecnológico soviético, que não ia conseguir acompanhar o ritmo de avanço que os Estados Unidos alcançaram a partir dessa iniciativa. A transformação da política externa soviética sob o governo de Gorbachev também implicou em uma renúncia do que se convencionou chamar de “doutrina Brejnev”, ou “doutrina da soberania limitada”22. Em 1988, Gorbachev tornou pública sua oposição à intervenção militar, na XIX Conferência do PCUS, declarando o princípio da não intervenção, o que sinalizava para os países da esfera soviética que o Exército Vermelho não mais iria interferir nos seus processos políticos internos. Posição que ficou conhecida como “doutrina Sinatra”23, tal decisão de Gorbachev, combinada com a liberalização política da glasnost, foi essencial para liberar as forças nacionalistas desses países. Outra implicação da decisão de Gorbachev de encerrar a Guerra Fria e diminuir a postura intervencionista da União Soviética era a redução da força do Exército Vermelho. Gorbachev conseguiu, em novembro de 1988, a aprovação do Politburo para redução das tropas do exército soviético – até 1990, reduziria em 500 mil homens o poder de suas forças armadas, retiraria do Leste Europeu 10 mil tanques, 8500 sistemas de artilharia e 800 aviões militares (BROWN, 2011, p. 610). A política externa soviética nesse momento estava essencialmente nas mãos de três indivíduos que eram fortes opositores a qualquer intervenção militar soviética - o próprio Gorbachev, Aleksander Yakvolev (então Secretário Supervisor do Departamento Internacional do Comitê Central), e Edvard Shevardnadze (então Ministro do Exterior). Ainda assim, muitos do sistema político soviético, principalmente das forças armadas e da KGB, tornaram-se extremamente críticos à renúncia do uso da força quando o preço disso foi a “perda”, conforme eles viam, do Leste Europeu (BROWN, 2011).

22Defendia acima de tudo a união entre os países e partidos socialistas, com alinhamento a Moscou, com licença para intervir política e militarmente em qualquer país que ameaçasse os interesses dessa união. Foi fundamento da intervenção militar soviética na então Tchecoslováquia, durante a Primavera de Praga em 1968, por exemplo, e também na intervenção no Afeganistão a partir de 1979. 23O nome faz menção à canção de Frank Sinatra, “My Way”, em que cada um agiria "do seu jeito", o fim do controle central pelo Kremlin dos caminhos políticos dos países de sua esfera de influência. 64

1.6. Notas sobre a reforma política – glasnost24

A reforma econômica da perestroika foi acompanhada de uma profunda reforma política, a glasnost, que introduziu elementos de democratização, eleições diretas para órgãos legislativos, e principalmente a abdicação do princípio unipartidário até então vigente na União Soviética, sob liderança do Partido Comunista (STARODUBROVSKAIA, 2005). Assim, a glasnost foi um conjunto de reformas políticas introduzidas pelo governo de Gorbachev, especialmente a partir do fim de 1986, que tinham como objetivo uma democratização da sociedade soviética como um todo, e visavam complementar as reformas econômicas da perestroika. Um evento importante que também contribuiu para a introdução da glasnost foi o acidente na Usina Nuclear em , em abril de 1986, uma mancha para a imagem soviética. Até aquele momento, em pouco mais de um ano de governo Gorbachev, as reformas econômicas estavam lentíssimas. Mas, a partir do acidente, numa evidente tentativa de melhorar a opinião pública sobre a administração soviética não só internamente, mas também no meio internacional, as reformas econômicas foram aceleradas e as reformas políticas passaram a ganhar mais força (RODRIGUES, 2006). Essa democratização que era proposta por Gorbachev tinha objetivos e delimitações bem práticas: o líder soviético buscava com isso, por um lado, neutralizar a influência dos elementos mais conservadores e imobilistas dentro do aparelho do Estado e do partido, que ofereciam uma resistência à implantação de mudanças estruturais no sistema econômico soviético. Por outro lado, buscava rever o sentimento de apatia e desinteresse dos produtores relaxando os mecanismos de coerção, ainda que mantendo certo controle do processo pelo PCUS como partido único (RODRIGUES, 2006, p. 220).

24As ideias apesentadas neste tópico fazem parte do artigo “Entre remendos, se faz inteira? A transformação do sistema político russo após o colapso soviético e a construção de uma democracia” apresentado pela autora na XVIII Semana de Pós-Graduação em Ciências Sociais, realizada em setembro de 2019, na UNESP Araraquara. 65

Rodrigues (2006) aponta que esses limites, contudo, não foram respeitados pela população de forma geral. Assim, o programa que deveria servir como complemento para a perestroika acabou atropelando suas reformas econômicas (já que as agitações políticas causadas pela glasnost acabaram abafando os efeitos que a perestroika deveria ter gerado).

A perestroika econômica patinava, mas a brecha democrática aberta pela glasnost libertou um turbilhão sem volta na sociedade soviética. Ao contrário dos planos iniciais dos reformadores, que pretendiam uma abertura gradativa e controlada, lastreada no apoio político que adviria de melhorias no nível de vida da população, a liberalização política acelerou a desintegração do sistema. O novo ambiente político abriu horizontes e, pela fenda da glasnost, a sociedade começou a denunciar também outras mazelas do regime político. A nova atmosfera, a mobilização social, a discussão generalizada de uma série de temas antes represados, ajudaram a trazer à tona, pela primeira vez, uma opinião pública que vinha se formando lenta e subterraneamente nas décadas anteriores (RODRIGUES, 2006, p. 231).

Um dos conflitos políticos que emerge durante o período do governo de Gorbachev foi o estabelecido entre a administração central da União Soviética e as administrações locais de suas Repúblicas federadas, que reivindicavam o direito de decidir unilateralmente sobre questões tributárias, decidir o quanto do orçamento seria repassado à União, dentre outros conflitos de gestão (STARODUBROVSKAIA, 2005). Podemos apontar que, com o espaço que foi criado pela glasnost, que dava abertura às críticas e à oposição, as forças opositoras e que buscavam ganhar mais poder em suas repúblicas cresceram e puderam cada vez mais vocalizar suas insatisfações com a administração central da União, já que os instrumentos de coerção haviam sido deixados de lado. Ao conduzir as reformas políticas da glasnost, Gorbachev provocou uma revolução conceitual e uma reforma das instituições soviéticas. Com a liberdade de expressão promovida pela glasnost, a sociedade civil encontrou-se livre do sentimento de medo que era sempre presente – assim, o sentimento separatista nas repúblicas soviéticas conseguiu ganhar voz, espaço e apoio, assim como o sentimento anticomunista, e as manifestações de descontentamento com o desempenho econômico do país. O clima de liberalização e democratização iniciado com Gorbachev na URSS influenciou e incentivou movimentos no Leste Europeu; esse, por sua vez, influenciou “de volta” as repúblicas soviéticas ao conseguirem manter movimentos 66

anticomunistas sem repressão dos soviéticos (BROWN, 2011). Um marco mundial que representa esse momento é a queda do muro de Berlim, em novembro de 1989, ato que canalizou todo o sentimento de efervescência da sociedade civil na região, e serviu de símbolo para os movimentos dos outros países. O evento é referenciado frequentemente como a data que marca o início do fim do bloco comunista. A introdução de eleições diretas para o poder Legislativo em 1989 minou a base institucional de Gorbachev, reduzindo o poder do aparelho partidário. As formas federativas foram ganhando substância, e como a autoridade das federações deixou de ser filtrada pelo partido único e centralizado, foi ficando cada vez mais difícil manter as 15 repúblicas soviéticas unidas. Segundo Brown (2004, p. 15), “[...] [o] esforço para manter por meios persuasivos a integridade territorial de um Estado que até então só conhecera o domínio autoritário ou totalitário demonstrou ser uma ponte longa demais”. A 19ª Conferência do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em 1988, tem um marco significativo em que Gorbachev deixa de ser um reformista do sistema soviético para assumir a posição de um transformador sistêmico. Ao defender e estabelecer a introdução de eleições competitivas para uma nova legislatura, com poderes eletivos, Gorbachev estava representando uma mudança de qualidade no sistema político. As eleições de 1989 foram um grande golpe ao PCUS, quando este sai derrotado do pleito. Yegor Ligachev, então segundo-secretário do Partido Comunista, o que lhe atribuía funções semelhantes às de um vice-presidente, foi o principal opositor da perestroika, e atribui a cisão nas instâncias mais altas do Estado e do PCUS a fatores tais como a ascensão de radicais de direita na mídia (papel importante da glasnost para liberar essas forças) e a passagem dessa lei eleitoral que ele considera “desastrosa”. Segundo Ligachev (apud ARANTES JR, 2015) o responsável por patrocinar esses dois fatores teria sido Alexander Yakovlev, que foi indicado por Gorbachev para assumir a parte de “questões ideológicas” do Comitê Central do PCUS. Yakovlev teria permitido uma campanha sistemática pela imprensa contra os partidários do papel tradicional do PCUS. Com a nova lei eleitoral, a campanha tinha poder de modificar o equilíbrio de poder – a eleição direta de 1989 para compor o Congresso dos Deputados do Povo da URSS (que posteriormente elegeria os deputados do Soviete Supremo) sofreu essa influência e 67

a tradicional base do PCUS foi eliminada, com a ascensão de candidatos identificados com novas plataformas radicais. Entre 1988 e 1990, Gorbachev deslocou conscientemente o poder político do Partido para as instituições estatais, com o objetivo de viabilizar as reformas econômicas sem que elas fossem travadas pelos setores mais conservadores do Partido. O seu papel na transformação do sistema político soviético foi visto por certos membros resistentes do governo como uma tentativa de destruir o PCUS (BROWN, 2004). Brown (2004) atribui larga medida de responsabilidade pela dissolução da União Soviética para as reformas políticas conduzidas por Gorbachev, argumentando que ao adotar a liberalização e a democratização, Gorbachev permitiu que os descontentamentos nacionais subissem à superfície, fossem articulados e defendidos. Com as eleições competitivas nas repúblicas, os deputados passaram a considerar mais importante responder ao seu eleitorado local do que procurar extrair favores de Moscou. Gorbachev proibiu o uso da força para garantir a obediência às leis soviéticas e para suprimir os movimentos separatistas, bloqueando o caráter repressivo do sistema – por mais que possa ser avaliada como uma decisão moralmente correta, a decisão facilitou o resultado da dissolução do Estado soviético. Nesse contexto, os Estados bálticos declaram sua independência ainda no primeiro semestre de 1990, e Boris Yeltsin, eleito o chefe do Soviete Supremo da República Russa também em maio de 1990, se aproveitou do novo clima político de busca de autonomia para afirmar que a lei russa tinha supremacia sobre as leis da União. Nesse sentido, Yeltsin declarou que a Rússia estava assumindo a gestão de todos os recursos naturais do seu território, criando uma rivalidade entre a República Russa e a administração central da União. Apesar de ser um discurso difícil de ser assimilado pelas outras repúblicas, já que as outras nacionalidades não aceitavam essa pretensa dissolução entre Rússia e União Soviética (a Rússia e os russos eram, de fato, os “sócios dominantes” da União), ele fez efeito e conseguiu maximizar o poder político interno de Yeltsin, unindo o apoio das forças democratas e das forças nacionalistas. 68

1.7. O processo de desintegração da União Soviética

Com seus principais suportes enfraquecidos, a administração central soviética deixou de ter capacidade de manter um controle unido e coeso. Com uma série de conflitos emergindo internamente, mais uma tentativa de golpe em agosto de 1991, as administrações regionais em conflito com a administração central, e os processos de independência aflorando, o clima de caos político e econômico era generalizado. O processo chega ao ponto mais extremo quando não é mais possível manter a União – no fim de 1991, a situação de caos culmina no fim de fato da União Soviética. Um dos fatores que é apontado pela bibliografia produzida como essencial para colapso da União é a dificuldade da administração de Gorbachev de manter a coesão de suas reformas e alcançar os resultados esperados. Com reformas incompletas, ou que não conseguiram sequer ser introduzidas (e ficavam apenas no plano das ideias), os resultados obtidos foram limitados a “[...] um ambiente em que a desorganização e a destruição gradativa do mecanismo regulador anterior não foi substituída pelo novo mecanismo antevisto na reforma” (POMERANZ, 1995, p. 45). Ou seja, os mecanismos reguladores e de gestão foram sendo desmontados, mas sem que houvesse uma preocupação de introduzir outros instrumentos que garantissem o funcionamento da economia soviética. Essa indefinição auxiliou no agravamento da crise econômica que já existia, e houve um aprofundamento da queda do desempenho econômico e um aumento do processo inflacionário, percebido pela população através de uma escassez cada vez mais severa dos bens de consumo. Kagarlitsky (1993) e Priestland (2014) também apontam que o fim do controle burocrático, com as estruturas do poder partidário sendo minadas, combinado com os conflitos entre os diferentes grupos que se formavam dentro da administração, foram responsáveis pela falta de resultados construtivos das reformas, e por um esgarçamento da crise e do caos político. É possível considerar que, em 1988 e 1989, sinais mostravam que a situação econômica e política do país já estava fora do controle da administração estatal.

69

A situação política e econômica da URSS nos finais de 1991 era catastrófica. Em um só ano, a renda nacional diminuiu mais de 11% e o PIB, 13%, tendo a dívida externa crescido para 100 bilhões de dólares norte-americanos. A dívida interna aumentou para 5,6 bilhões de dólares, as reservas em ouro e divisas sofreram uma drástica redução, e o estoque nacional de ouro caiu [...]. O déficit orçamentário atingiu, segundo estimativas do Banco Mundial, 30,9% do PIB. O governo não podia mais controlar os processos financeiros e a circulação monetária, tendo-se verificado a fuga à posse do rublo e a predominância de trocas diretas de produtos [...] (STARODUBROVSKAIA, 2005, p. 197).

A combinação das reformas políticas da glasnost, que desintegraram a autoridade do Partido e do aparato estatal, com as reformas econômicas da perestroika, que atacaram a estrutura de planejamento central da economia, mecanismos que faziam a economia soviética funcionar, sem que fosse oferecida uma alternativa concreta de organização, atacou dramaticamente o padrão de vida dos cidadãos soviéticos, o que acelerou ainda mais o processo de desintegração da União Soviética. Segundo Hobsbawn (1995), as reformas de Gorbachev estabeleceram uma lacuna de autoridade, sendo que o posto da autoridade era essencial para o funcionamento de todo o sistema soviético. Além do fracasso da perestroika e a rejeição cada vez maior à figura de Gorbachev, a desintegração da autoridade central também “[...] obrigou toda região ou subunidade do país a cuidar de si mesma e, não menos, a salvar o que pudesse das ruínas de uma economia que escorregava para o caos” (HOBSBAWN, 1995, p. 476). Assim, o clima caótico que era cada vez mais alimentado a partir das reformas levou não apenas à flexibilização do sistema, mas a uma “completa aniquilação da gestão estatal da economia e da propriedade nacionalizada” (RODRIGUES, 2006, p. 248). A partir de 1989, Gorbachev assistiu passivamente, sem condições ou força política para tentar intervir, à desintegração da União Soviética. As forças liberais e nacionais que empurravam o Leste Europeu para o Ocidente capitalista finalmente atingiram os soviéticos, e forças nacionalistas dentro do território soviético passaram a corroer todas as repúblicas da União. Ao invés de apertar o cerco, Gorbachev “afrouxou as rédeas” (PRIESTLAND, 2014). Durante esse processo de desintegração do sistema centralizado do governo soviético, era cada vez mais claro como os objetivos políticos e econômicos das repúblicas tornavam-se mais divergentes. As mobilizações nacionalistas representaram ao mesmo tempo um desafio direto ao aparato federal e o estopim que selou a explosão da URSS. As frentes e 70

manifestações nacionalistas serviam como grande transmissor dos ideais democráticos que ganhavam força contra o aparato burocrata federal em Moscou. Segundo Rodrigues (2006), a luta nacionalista teve efeito desagregador na União Soviética pelos seguintes fatores: 1) a luta nacional foi uma luta generalizada e desenvolvida em todo o Leste Europeu na busca por autonomia; 2) a ação de grupos locais que usaram o movimento nacionalista a favor de seus interesses particulares; 3) utilização consciente da luta nacional como parte da ofensiva restauracionista pelos reformistas a partir de Moscou (RODRIGUES, 2006). O contexto dos anos finais da União Soviética era de reformas econômicas adiadas para não desgastar ainda mais o regime, tentativas de encontrar uma alternativa ao congelamento dos salários e o perigo do desemprego; início de uma comercialização da educação, dos serviços de saúde, da habitação e da ciência e a preparação ideológica para transição para o mercado capitalista, que estava sendo encaminhada desde o final dos anos 1980 (KAGARLITSKY, 1993). Em 1990, além dos economistas, os dirigentes das repúblicas começaram a considerar abertamente a possibilidade de reintrodução do capitalismo. As maiores forças que depois reintroduziram de fato o capitalismo surgiram dentro dos setores mais escolarizados e urbanos, provenientes de uma sociedade industrial já bastante desenvolvida. A nova intelligentsia soviética, que tinha contato com a sociedade de consumo e o maior grau de liberdade em países como a Alemanha Ocidental, Suécia e mesmo Estados Unidos, teve papel importante como base social que servirá de sustentáculo para a defesa de medidas reformistas a favor do capitalismo (RODRIGUES, 2006, p.242). Gorbachev ainda tentou desempenhar um recuo tático no fim de 1990 e início de 1991, após perder o apoio dos reformistas radicais e, ao mesmo tempo, aumentar o sentimento de animosidade dos comunistas conservadores e da linha dura das forças armadas e da KGB. Naquele momento, o principal objetivo de Gorbachev era preservar a União, mas encontrava-se isolado. Ao tentar introduzir medidas que eram conciliatórias entre dois grupos opositores, Gorbachev acabou desagradando e perdendo apoio de ambos. O líder soviético, nos últimos momentos de governo, não tinha onde buscar suporte. Para os conservadores, Gorbachev havia perdido o controle sobre as reformas, levando o país ao caos; os membros mais liberais do Partido defendiam a aceleração da reforma, e afirmavam que Gorbachev estava lento demais, sendo levado pelo ‘jogo’ dos conservadores. O fato 71

é que Gorbachev tentou se posicionar no meio, e acabou perdendo apoio dos dois lados (RODRIGUES, 2006). Desai (2005) considera que Gorbachev procurou, em suas tentativas de reformar o sistema soviético, não desmantelar o papel ideológico e de comando do PCUS. A crítica da autora é que, ao manter o monopólio da vida política de todo o país sob o controle do Partido, Gorbachev acabou travando suas próprias reformas25. Tal visão de Desai vai ao encontro da análise de Boettke (1993), que também destaca a incapacidade de Gorbachev de transformar o sistema de comando soviético: “Ele não era um agente de mudança, mas, ao contrário, era um guardião da estrutura do antigo regime – mesmo que este fosse ocupado por novas faces” (BOETTKE, 1993, p. 84, tradução nossa26). É importante frisar que Desai e Boettke apresentam uma perspectiva bastante divergente dos autores até aqui trabalhados, ao afirmarem que Gorbachev, até certo ponto, falhou nas reformas porque procurou proteger de alguma forma o sistema. Acreditamos que, ao contrário, os indícios mostram que Gorbachev demonstrou um grande compromisso com as reformas, seguindo inclusive com as medidas que atacaram diretamente o poder do Partido Comunista e a estrutura burocrática do aparato estatal soviético. O que ele parece ter tentado manter, de fato, foi a viabilidade da União Soviética como uma união de repúblicas federadas, lutando contra a dissolução do país. Priestland (2014) também apresenta uma análise diferente dos dois autores supracitados, ao argumentar que o avanço de Gorbachev sobre o Partido e o conflito que isso gerou dentro de sua estrutura e entre os seus membros foi fator essencial para o desmantelamento da União Soviética.

As políticas de Reagan sem dúvida colocaram pressão econômica e psicológica na URSS, e a SDI [Iniciativa Estratégica de Defesa] era um sinal

25 “Ele pretendia criar uma democracia dentro do Partido e mantendo o sistema unipartidário propondo mudanças políticas [...]. Mas o monopólio do partido comunista na vida política do país era um artigo de fé que Gorbachev achou difícil abrir mão. [...] As reformas econômicas de Gorbachev falharam por sua convicção de que o socialismo, expurgado de suas aberrações stalinistas, poderia promover a eficiência econômica sob a abertura da glasnost” (DESAI, 2005, p. 93, tradução nossa). 26 No original: “He was not an agent of change, but rather a guardian of the structure of the old regime – even if populated with new faces.” 72

preocupante de que a URSS não estava acompanhando o passo [...]. Mas o fardo militar, embora bem pesado, não estava causando crise econômica ou inquietação social. [...] O homem que destruiu o PC soviético não estava na Casa Branca, e sim no Kremlin. O próprio Gorbachev foi menos motivado por medo do poder militar americano do que por um desejo de revigorar o sistema, tornando-o também mais inclusivo. De início, com seus predecessores, ele nutria a esperança de poder conseguir seu intento por meio da transformação do Partido Comunista, mas quando isso fracassou, viu-se tentando castrá-lo. O domínio comunista, portanto, implodiu, não por pressão de fora, mas como resultado de uma revolução interna não violenta, protagonizada pela elite do próprio partido comunista (PRIESTLAND, 2014, p. 614-615).

Assim, a situação econômica da URSS nos seus últimos momentos pode ser resumida em três aspectos básicos: 1) aprofundamento contínuo da crise econômica; 2) rápida ‘estruturação’ da sociedade em virtude da constituição de diversos grupos de interesse; 3) policentrismo do poder político causado pela luta crescente entre escalões de poder pelo controle sobre os processos sociopolíticos no país. A política econômica refletia o momento de confronto político: entre União e as repúblicas federadas, entre as autoridades centrais e os órgãos de poder regionais – as repúblicas reivindicando o direito de decidir unilateralmente sobre questões tributárias, decidir sobre quanto seria repassado a União, entre outros. Havia uma luta também pelo controle sobre as empresas, sobretudo entre a administração ligada à Rússia e a administração da União Soviética (STARODUBROVSKAIA, 2005). Apesar da bibliografia produzida sobre o tema apresentar diferentes avaliações sobre o principal elemento que levou ao colapso soviético, de forma geral os autores convergem ao destacar os fatores mais importantes para o desencadeamento do processo. Antes de encerrar o capítulo, buscaremos apresentar algumas considerações sobre este balanço do período soviético, levantando a discussão sobre os impactos gerados pelo fim de uma era. O novo parlamento russo (que havia sido eleito nas primeiras eleições diretas da União Soviética, em 1989) elegeu o novo presidente da Rússia, Boris Yeltsin, em maio de 1990, e no mesmo ato proclamou a soberania da República Russa em detrimento do governo central soviético, em uma votação de 907 votos a favor da soberania russa contra 13 votos. A partir de tal determinação, o governo de Gorbachev começou a traçar uma oposição direta com o governo Yeltsin, em um claro confronto pelo controle do sistema administrativo do governo, que era traduzido na luta de Gorbachev pela defesa da integridade da União Soviética como 73

Estado federativo. Antes do colapso da União, Gorbachev ainda tentou oferecer um novo esboço de tratado para manter as repúblicas unidas em agosto de 1991 e para reforçar os laços federativos existentes, antes da tentativa de golpe que ele sofreria no mesmo mês (RODRIGUES, 2006). Os conservadores do aparato estatal e do PCUS passaram a exigir o retorno da ordem, a restauração da autoridade centralizada, e que as reformas de flexibilização e democratização encabeçadas por Gorbachev fossem desfeitas. Tentaram aplicar um golpe de Estado em 19 de agosto de 1991, constituindo um Comitê Estatal de Emergência, censurando os meios de comunicação e colocando no centro de Moscou tanques de guerra. Yeltsin foi responsável por reunir a resistência no Parlamento russo e, com o apoio da Força Aérea, conquistou a rendição dos golpistas. No dia 21 de agosto o Comitê foi preso e a censura foi suspensa. “Nos primeiros dias depois do 19 de agosto, o Partido Comunista foi varrido da cena, e teve início uma nova era na história da Rússia e do mundo, com o gradual esfacelamento da antiga União Soviética” (KAGARLITSKY, 1993, p.203). Logo após o golpe, Yeltsin exigiu que todas as estruturas de poder no território da República Russa fossem colocadas sob o controle do seu governo. Isso significou a dissolução virtual e irreversível da União Soviética, com início do governo de fato autônomo de Yeltsin. Jornais comunistas foram fechados, prédios do Partido foram lacrados. Yeltsin e sua equipe apossaram-se do controle das estruturas da União, disparando declarações de independência e efetivamente provocando a fragmentação da federação soviética. No dia 9 de dezembro, conforme já mencionamos, se reuniram Rússia, Belarus e Ucrânia para assinarem o acordo que declarou o fim da União Soviética. Gorbachev renunciou apenas no dia 25, abrindo mão do cargo de presidência (RODRIGUES, 2006). Importante mencionar que o anticomunismo ganhou força nas repúblicas soviéticas antes de 1991, se tornando parte da ideologia dominante (KAGARLITSKY, 1993). O sentimento anticomunista se tornou a doutrina ideológica básica da oposição, e a introdução do livre-mercado e do empresariado privado tornaram-se ideais propagados como a receita essencial para salvar o país. Globalmente, a queda do bloco comunista também teve um papel central na vitória intelectual dos neoliberais, e o espírito dominante da época era de que o capitalismo era inevitável e uma força moralmente boa (PRIESTLAND, 2014). 74

Quando Kagarlitsky escreve, ainda em 1992 (publicado em 1993), e antes de serem encaminhados devidamente os processos de privatização da economia, o autor já demonstrava preocupação com a possibilidade do governo organizar a privatização das empresas nas circunstâncias em que a economia soviética (e, a partir da dissolução da União, economia russa) se encontrava. Segundo o autor, a privatização naquelas condições significaria uma condenação à falência de grande parte das unidades, e uma tendência à concentração da propriedade. No terceiro capítulo nos debruçaremos exaustivamente na questão da privatização - contudo, podemos adiantar pontos interessantes da análise do autor. A ideia principal que o autor trabalha sobre esta questão (e que será devidamente retomada) é que a privatização nas condições específicas de crise econômica era precisamente o plano daqueles que defendiam tal decisão – deste modo, aqueles que teriam as condições de garantir o seu acesso aos recursos disponíveis eram um grupo seleto de indivíduos que havia acumulado poder econômico durante o período soviético. Tal perspectiva está de acordo com alguns dos pontos trazidos na introdução sobre a acumulação por espoliação de Harvey (2005; 2013), especialmente quando o autor trata da prática capitalista de desvalorizar ativos através de crises para facilitar a apropriação destes pelo capital. Tratar-se-ia, assim, de uma transformação da estrutura social do país, e a formação de uma classe burguesa, proprietária de ativos antes públicos, e que formaria uma oligarquia. O poder político que era predominante no período soviético seria ultrapassado pelo poder econômico, concretizado através da propriedade privada.

Na verdade, isto era precisamente o que os financiadores do projeto tinham em mente. Em tais circunstâncias, as únicas pessoas que podem investir dinheiro e comprar empresas são aquelas que contam com garantias políticas confiáveis, e a garantia única é o próprio poder. Deste modo, os círculos dominantes e, acima de tudo, a burocracia conquistaram a possibilidade de efetivamente monopolizar o direito à propriedade privada, partilhando-o apenas com aquelas pessoas, ou grupos, que demonstram lealdade e estão dispostas a se tornarem sociais minoritárias dos novos proprietários (KAGARLITSKY, 1993, p.146).

Neste mesmo sentido, Rodrigues (2006) também evidencia como Gorbachev perdeu muito apoio, enquanto Boris Yeltsin ganhava muito prestígio. Para o autor, essa reorientação do apoio de grupos importantes pode ser relacionada com a posterior rapidez e radicalidade do processo de privatização generalizada das empresas, que foi levado a cabo em todo Leste Europeu e na União Soviética. Segundo o autor, para que essas mudanças pudessem acontecer tão rapidamente, 75

era imprescindível a existência de forças favoráveis à construção do capitalismo já presentes na formação soviética e nos demais países da sua esfera de influência, com um delineamento de programa sendo feito há algum tempo. Essas forças subitamente se viram liberadas e passaram à ofensiva, com a completa perda de autoridade do Estado soviético. No próximo capítulo, buscaremos compreender melhor a forma com que ocorreu a transformação do sistema econômico russo, e como se organizou a sociedade para viabilizar esse avanço sobre a propriedade estatal de forma tão rápida e radical, sem deixar de levar em consideração o contexto internacional em que essas mudanças profundas estão inseridas.

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2. Aspectos condicionantes da transformação sistêmica russa

Para que possamos compreender as transformações do sistema econômico russo que ocorreram na década de 1990, sem perder de vista o objetivo do nosso trabalho de analisar essa transformação tendo como fio condutor a questão da privatização, é necessário apresentar um quadro geral dos condicionantes que agiram diretamente na definição desse processo. A virada da década de 1980 para 1990 testemunhou um desmonte sem precedentes na história, o colapso de um sistema que foi consolidado durante quase todo o século XX. O período marca também um momento de extrema incerteza, sobretudo para os cidadãos soviéticos, quando não havia clareza sobre a direção a que estavam sendo levados. O Partido Comunista da União Soviética, espinha dorsal que sustentava o Estado soviético, mas cujo aparato já estava enfraquecido após as reformas de Gorbachev (como a abertura para o multipartidarismo e a eleição de 1989 para compor o Congresso dos Deputados do Povo), encontrou seus momentos finais após uma tentativa de golpe de agosto de 1991, sendo oficialmente banido do território russo por Yeltsin em novembro de 1991, e quebrando de fato a estrutura do Estado. Segundo Freeland (2000), os sinais de falência do Estado naquele momento estavam espalhados por todo o país: soldados russos vendendo as próprias armas, cidades no interior controladas por milícias, governantes regionais se recusando a passar impostos para o governo central, incapacidade da justiça de fazer valer as suas decisões, dentre outros exemplos. Um contexto de caos, ao mesmo tempo em que o Estado buscava introduzir reformas decisivas para a definição de sua nova trajetória. A fase de mudanças que a sociedade russa encarou ia muito além da mudança do sistema econômico, a adoção de fato de uma “economia de mercado capitalista” – foi uma transformação da sociedade e das suas estruturas sociais e políticas. Esta transformação foi resultado de determinadas decisões políticas e econômicas tomadas durante toda a década de 1990. Com o início da nova década, a Rússia enfrenta o desafio de construir um novo quadro institucional e político, após o colapso do Estado soviético. As reformas, que em grande parte já estavam sendo encaminhadas antes de ser concluído o processo de dissolução da União Soviética, sofrem uma mudança de perfil, assumindo assim um novo caráter. O que antes eram propostas de reformar 77

um sistema, passaram a ser propostas de transformação radical, a decisão de transformar inteiramente a organização política, social e econômica do país. A questão da institucionalização do novo Estado russo foi um processo conflituoso que teve como base a política conduzida por Boris Yeltsin, que continuou como Presidente da Federação Russa. A política de Yeltsin foi centrada: 1) nas reformas econômicas, destinadas à construção de uma economia de mercado e de um sistema econômico assentado numa classe de proprietários; e 2) em reformas nas instituições políticas, destinadas à garantia de um poder executivo com autonomia suficiente não apenas para assegurar a implementação das reformas econômicas, mas também para impedir a restauração do sistema soviético (POMERANZ, 2018). Além do desafio de construir uma transformação tão abrangente, aspectos da realidade russa adicionavam níveis de dificuldade para tal objetivo – Pomeranz menciona, por exemplo, a extensão e a diversidade territorial russa, como a administração central do país tinha de levar em conta não só as peculiaridades de cada região, mas também a preocupação imediata de manter a unidade territorial do país. O processo de transformação que foi colocado em curso não surge de forma isolada do contexto global: primeiro, o plano de transformação, sobretudo da economia, é delineado dentro de um quadro de mudança maior, que incorpora a maioria dos chamados “países pós-socialistas” e outros países que estavam passando por um processo de abertura econômica para o capital internacional e adaptação ao modelo vigente nos países considerados “centros” do capitalismo mundial. Esse plano está alinhado com o modelo que se convencionou chamar de “terapia de choque”, um modelo propagado especialmente através das instituições financeiras ocidentais, sobretudo o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, e que tinha como objetivo introduzir uma reforma rápida e brusca em economias que estavam se abrindo para o capital internacional. Assim, o primeiro tópico do presente capítulo buscará focar na questão da conjuntura internacional, momento em que após o fim da Guerra Fria, a ideologia neoliberal prevalece e impõe seus princípios em economias que estavam se abrindo. Alinhada com essa ideia, a segunda seção apresentará de forma breve o debate entre o modelo da “terapia de choque” e o chamado modelo “gradualista”, que surge como alternativa (ainda que os defensores da terapia de choque tratassem-na como único modelo viável). 78

Outro elemento de extrema importância para compreensão das reformas desencadeadas na Rússia na década de 1990 é a questão do quadro político interno – com o colapso do sistema soviético, uma série de reformas e mudanças políticas estava ocorrendo ao mesmo tempo em que as reformas econômicas eram introduzidas, o que implica um alto grau de complexidade devido à profundidade do conjunto de transformações. A questão política é, portanto, essencial, para compreender quem assumiu o poder e o controle da política e quais eram os seus objetivos. Também deveremos apresentar os principais personagens responsáveis pela condução das reformas econômicas, dentre os quais destacamos Yegor Gaidar, que foi Primeiro-Ministro até o fim de 1992, e que foi o grande condutor das políticas econômicas associadas à “terapia de choque”, e Anatoly Chubais, que encabeçou o Comitê Estatal para Gestão da Propriedade do Estado (sigla em russo GKI, Goskomimushchestvo) e foi responsável por arquitetar o plano de privatização da economia russa. Por último, daremos início no presente capítulo à abordagem sobre a reforma econômica de fato. Conforme será demonstrado, o plano de reforma neoliberal da terapia de choque tem dois pilares principais, o plano de estabilização macroeconômica e o plano de privatização. O segundo será tratado em um capítulo específico, por se tratar do tema principal de nosso trabalho. Contudo, a questão da estabilização será trabalhada no presente capítulo, tentando mostrar resumidamente quais eram os objetivos desse plano e quais foram os resultados obtidos pela equipe reformista.

2.1. Conjuntura internacional e hegemonia do ideal neoliberal

O movimento de reformas econômicas centralizado na perestroika de Gorbachev, assim como a queda do “comunismo” da União Soviética, estão presentes no contexto de uma crise generalizada dos modelos econômicos centrados na intervenção estatal. Esses dois acontecimentos foram extremamente importantes para garantir a posição vitoriosa do neoliberalismo como ideologia hegemônica no sistema capitalista global. Buscaremos, neste tópico, apresentar de forma bastante resumida o caminho que levou à ascensão neoliberal e seus principais princípios. 79

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, uma nova ordem mundial foi estabelecida no sistema capitalista global, tendo como marco o estabelecimento do sistema de Bretton Woods, um caminho que buscava combinar a atuação do Estado nacional, o mercado e instituições democráticas. Caracterizado pela chamada “política keynesiana”27, procurava sustentar um “compromisso de classe” entre o capital e o trabalho, gerando um período de “paz” e tranquilidade (nos países centrais do sistema capitalista, pelo menos). O Estado interferiu ativamente na economia, e uma série de padrões foi estabelecida para garantir um nível básico de bem-estar social entre os trabalhadores (HARVEY, 2008). Tal modelo conseguiu produzir elevadas taxas de crescimento nos países capitalistas avançados nas décadas de 1950 e 1960. Contudo, a partir da década de 1970, a capacidade de gerar crescimento do modelo foi sendo esgotada e este começou a ruir, entrando em um período de crise da acumulação do capital. Os conflitos sobre qual caminho a economia deveria seguir foram acirrados. O projeto que ficou conhecido como “neoliberal” buscava remover as restrições que eram impostas pelo Estado de bem-estar social ao capital. A derrubada do sistema monetário internacional de Bretton Woods em 1971 está no centro de toda falta de regulação que se seguiu. A mobilidade do capital juntamente com o movimento de liberalização e desregulamentação levaram a melhor sobre o quadro sócio-político do Estado nacional (CHESNAIS, 1996). As medidas tomadas pelos governos de Margaret Thatcher, no Reino Unido (1979 a 1990), e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos (1981 a 1989), foram responsáveis por criar um sistema de finanças liberalizadas e internacionalizadas. Nesse sistema, as instituições dominantes são os mercados financeiros e as organizações financeiras que neles atuam. As medidas tomadas a partir de 1979 atacaram diretamente o controle dos movimentos de capitais em relação ao exterior, ou seja, liberalizaram os sistemas financeiros nacionais, com a imposição da desregulamentação monetária e financeira (CHESNAIS, 1996).

27 O keynesianismo faz referência ao conjunto das teorias e medidas propostas pelo economista britânico John Maynard Keynes, que defendia, dentro dos parâmetros do mercado livre capitalista, a necessidade de uma forte intervenção econômica do Estado com o objetivo principal de garantir o pleno emprego e manter o controle da inflação. Ver mais: KEYNES, J. M. (2012).

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Harvey (2005) também destaca o papel de Thatcher e Reagan para a transformação da orientação da atividade do Estado, com o abandono da proposta de bem-estar social. O “mantra” neoliberal era centrado essencialmente na liberalização do mercado e na privatização, e o capital pressionava para que os ativos de propriedade do Estado (ou destinados ao uso partilhado da população) fossem entregues ao mercado. Essa apropriação pelo capital dos ativos que antes eram direitos garantidos à população ocorreu em todo o mundo – Harvey apresenta diversos exemplos notáveis que marcaram o período, como a privatização da habitação que ocorreu na Inglaterra de Thatcher, a privatização do acesso à água na África do Sul, as crises econômicas que marcam a história da Argentina, com uma aguda saída de capitais, e as lutas pelas terras indígenas no México. As práticas da acumulação por espoliação que foram apresentadas na introdução foram aceleradas com o avanço do neoliberalismo. Ainda de acordo com Harvey (2005), para consolidar este avanço o capital utilizou como veículo a financialização do sistema econômico, contando com a direção dos Estados Unidos, e organizando um sistema financeiro poderoso que passou a exercer influência direta nas economias nacionais. Com o poder exercido pelo setor financeiro, o grande capital conseguia desencadear surtos de desvalorização como parte da lógica da acumulação por espoliação, para facilitar a apropriação por parte do capital dos ativos então desvalorizados. Harvey (2005) destaca que além do poder das finanças e da liberalização do comércio, a mudança da lógica segundo a qual era compreendido o poder do Estado foi essencial.

Para que tudo isso ocorresse, era necessário, além da financialização e do comércio mais livre, uma abordagem radicalmente distinta da maneira como o poder do Estado, sempre uma grande agente da acumulação, por espoliação, deveria se desenvolver. O surgimento da teoria neoliberal e a política de privatização a ela associada simbolizaram grande parcela do tom geral dessa transição (HARVEY, 2005, p. 129, destaque nosso).

No início da década de 1990, foi consolidado o neoliberalismo como ideologia que regeria os movimentos do sistema econômico global, apregoada pelas instituições financeiras internacionais, como o Banco Mundial e especialmente o Fundo Monetário Internacional, assim como pelos governos dos principais países capitalistas. Naquele momento, diversos países da periferia do capitalismo global entravam em um processo de profundas transformações em suas economias, 81

adequando-se ao padrão exigido pelo capital internacional e desmontando o controle estatal sobre a economia. O economista John Williamson (2004) cunhou o termo “Consenso de Washington” como forma de sintetizar os dez principais princípios que serviam de fórmula para as reformas econômicas desses países, padrão promovido pelas instituições financeiras já mencionadas (além do Federal Reserve) que prestavam assistência aos governos para a introdução das reformas e que eram baseadas em Washington. Os dez pontos são: 1) disciplina fiscal; 2) reorganização das prioridades e redução do gasto público; 3) reforma tributária; 4) liberalização da taxa de juros; 5) taxas de câmbio competitivas; 6) liberalização do comércio exterior; 7) liberalização dos fluxos de entrada de IED; 8) privatização; 9) desregulamentação para eliminar barreiras dos fluxos de capitais; 10) garantia dos direitos de propriedade. Tais princípios voltarão a aparecer adiante, quando apresentarmos o plano de reforma econômica introduzido no governo de Boris Yeltsin na Rússia. A “revolução neoliberal” não foi conduzida apenas por governos considerados “de direita”, como Reagan e Thatcher. Sobretudo durante a década de 1990, seu fortalecimento foi conduzido pela chamada “centro-esquerda cosmopolita” – , Gerhard Schroder, Tony Blair, que buscava uma “Terceira Via”, uma tentativa de encontrar equilíbrio entre justiça social e mercado (PRIESTLAND, 2014). Difícil argumentar que eles encontraram esse equilíbrio, considerando os dados que indicam uma intensificação da crescente desigualdade na distribuição da renda e da extrema concentração da riqueza sobretudo a partir de 197928. Assim, buscamos apresentar brevemente como a radicalização das reformas econômicas na Rússia faz parte de acontecimentos no nível internacional. O fim da Guerra Fria foi essencial para que Washington decretasse, de fato, o surgimento de uma nova ordem global. Em um primeiro momento das reformas na Rússia, o governo Yeltsin determinou que a única alternativa para a resolução da crise econômica era através de uma aproximação com as grandes potências ocidentais. – “Assim, na medida em que os Estados Unidos apregoaram o ideário neoliberal como solução para os problemas dos países do Leste Europeu, [...] nada mais natural que

28 Ver mais dados sobre a concentração da riqueza em: BELTRAN, J. et al. (2020). 82

as principais lideranças russas do período o aplicassem em seu país” (ADAM, 2011, p. 42).

2.2. Qual modelo? O debate entre o modelo da “terapia de choque” e o modelo “gradualista”

Dentro do domínio do pensamento neoliberal, é importante reconhecermos que existe um debate sobre qual seria, na prática, a melhor forma de introduzir a política econômica para abertura dos mercados. Esse debate é dividido essencialmente em duas correntes, a da “terapia de choque” e a do “gradualismo”. No caso da terapia de choque, como o próprio nome indica, o programa econômico introduzido apostaria em uma conduta radical, em que a estabilização macroeconômica, a liberalização e a reestruturação são colocadas em prática ao mesmo tempo e da forma mais rápida possível. No caso do gradualismo, as reformas apostariam em um ritmo mais lento, em que as políticas não são introduzidas de forma abrupta e simultânea, e são conduzidas de forma que permitem concessões maiores, que se adaptem à realidade da economia que está sendo reformada. Autores como Starodubrovskaia (2005) procuram demonstrar que o tratamento de choque era a única via possível apresentada para a economia russa, mas Pomeranz (2005) argumenta que não – a opção gradualista existia, mas foi descartada pelos responsáveis pelo delineamento do programa de reforma. Tanto Pomeranz como Segrillo (2008) afirmam que a defesa do choque como alternativa correta pelos reformadores do governo russo era baseada em um temor da “resistência dos burocratas ao ingresso do setor privado” – para garantir a realização das reformas, o ideal seria concretizar a formação de um setor privado o mais rápido possível, para que uma resistência não pudesse se organizar e se fortalecer. Outro argumento a favor da terapia de choque utilizado na época, e apresentado por Desai (2005), era baseado na probabilidade de aceitação do público: em um período de mudanças políticas extraordinárias, tais reformas econômicas drásticas são possíveis e o público é mais suscetível a aceitar impactos no seu cotidiano, como o baque de altas de preços. Ao contrário, reformas introduzidas lentamente, que buscam consenso político, poderiam ter um custo 83

maior e os resultados poderiam ser prejudicados, além de abrir mais espaço para uma reação articulada dos opositores. O exemplo da economia chinesa e das reformas introduzidas por Deng Xiaoping a partir de 1979 é constantemente trazido por aqueles que procuram confrontar a defesa do modelo da terapia de choque29. Para os partidários da terapia de choque, uma abordagem reformista gradual não daria resultados, pois elementos remanescentes da planificação burocrática estatal distorceriam os resultados das reformas. Contudo, ainda que consideremos as inúmeras diferenças entre a economia chinesa e a economia russa, a China tomou um caminho claramente oposto ao da terapia de choque e, ainda assim, apresentou resultados imensamente melhores que outros países, embarcando em um longo período de crescimento econômico (ARANTES JR, 2015). A escolha entre os modelos de reforma não dependia somente das noções de eficiência econômica, muito menos de segurança e conforto para a população, mas sim dos interesses dos setores que dirigiam as reformas. O plano de reforma econômica que foi conduzido na Polônia a partir de 1989, conhecido como “Plano Balcerowicz” (em homenagem ao Vice-Primeiro Ministro da Polônia, Leszek Balcerowicz, que foi responsável por introduzir o plano), responsável por transformar o sistema econômico polonês, removendo o controle estatal e introduzindo uma economia capitalista de livre mercado, é considerado como a referência última da “terapia de choque”. Contudo, Goldman (2003) destaca que até mesmo os poloneses conduziram o processo de privatização da economia de forma mais gradual e planejada do que os reformistas russos.

2.3. Breve retomada da transformação política na Rússia

Ainda que a União Soviética tenha chegado ao fim em 1991, é evidente que uma série de referências do passado soviético permaneceu como herança, já que um novo sistema político não apareceria subitamente. Os embates políticos que

29 Sobre as reformas conduzidas na China, ver nota de rodapé 15, no capítulo 1.

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surgiram durante a glasnost de Gorbachev, as disputas em torno da configuração do novo país capitalista e das dificuldades de ordem econômica continuaram. O desafio estava colocado – como institucionalizar o novo Estado, criar uma nova Constituição e uma nova regulação das relações políticas, econômicas e sociais internas do país, ao mesmo tempo em que buscava ampliar e aprofundar as medidas iniciadas com a perestroika, para garantir o funcionamento e crescimento de uma economia de mercado, lidando com as dificuldades econômicas desse momento. Importante destacarmos que o presente trabalho não tem a pretensão nem o objetivo de tentar discutir todas as transformações políticas que ocorreram na Rússia na década de 1990, muito menos dar conta de apresentar todos os acontecimentos e personalidades do cenário político do período. Contudo, uma série de eventos está intrinsicamente relacionada à condução das reformas econômicas, e focaremos, portanto, nestes personagens e fatos. Com o processo de institucionalização do novo Estado russo, surge a necessidade de definir uma nova Constituição, que refletisse um novo projeto de organização político-social do país, uma reorganização das suas forças políticas e os seus diferentes grupos de interesse. Ao mesmo tempo, é necessário lidar com as consequências de um vácuo de governabilidade que é presente em tal momento de profundas transformações. Pomeranz (1995, p. 57) destaca a instabilidade política, a ausência de uma sociedade civil organizada, as disputas regionais que são aprofundadas nesse período, e a atuação permanente e praticamente incontrolável da criminalidade organizada. Um dos problemas destacados por diversos autores (LANE; ROSS, 1999; GOLDMAN, 2003; SHEVTSOVA, 2007) é a falta de consenso entre os políticos russos sobre qual seria o caminho que a Rússia deveria seguir. Sem esse consenso, sem um projeto definido para o país, a construção de uma Constituição (que deveria ajudar a apontar para esse caminho) definitivamente geraria conflitos. Desde 1988, quando perdeu sua cadeira no Politburo após ter feito duras críticas a Gorbachev (e mesmo assim continuou ativo na política, algo somente possível com as medidas democratizantes da glasnost), Yeltsin construiu a imagem de sua liderança baseada na oposição ao sistema e na defesa de reformas. Eleito deputado por Moscou em março de 1989, nas eleições para o Congresso dos Deputados do Povo da República Socialista Federativa Soviética da Rússia (RSFSR), foi posteriormente eleito seu líder em maio de 1990, o cargo mais alto 85

dentro da República russa. Com a instituição do cargo de Presidente da RSFSR (após o Congresso determinar a autonomia da República Russa em detrimento da administração central soviética), e o enfraquecimento da administração central e do PCUS, Yeltsin é eleito Presidente em junho de 1991. Quando Yeltsin torna-se presidente da Rússia, a organização e a ideologia comunistas já haviam sido, essencialmente, destruídas. Naquele momento, os limites impostos ao progresso do país já eram resultado de uma série de destruições prévias – a fragmentação das instituições governamentais, o conflito entre jurisdições políticas dentro do sistema político herdado – ou seja, um conflito entre a administração autônoma russa e a administração da União, uma desorganização da economia e a ameaça do colapso das finanças governamentais. A extensa desorientação e o profundo sentimento de ansiedade são aprofundados com a dissolução da URSS, e é disseminada a ausência de um projeto que unisse os diferentes grupos de interesse, gerando um consenso (BRESLAUER, 2004, p. 92). Antes da conclusão do longo processo de desmantelamento da União Soviética, ainda em outubro de 1991, no Quinto Congresso dos Deputados do Povo da RSFSR, Yeltsin anunciou a proposta de um novo programa de reformas econômicas, e o Congresso lhe atribuiu poderes adicionais para que pudesse conduzir o programa de fato através de decretos, sem precisar da autorização prévia do corpo legislativo (MEDVEDEV, 2000). O objetivo das reformas apresentadas era transformar o sistema ‘socialista’ soviético no sistema capitalista liberal – medidas vastas para eliminar a indústria estatal e para privatizar toda a infraestrutura econômica.

Ao implementar esse programa de "reforma", Yeltsin e seu governo não tinham base de apoio na forma de um partido político; eles nem sequer tinham um programa declarado publicamente. Eles usavam métodos exclusivamente administrativos, às vezes empregando força e violência (MEDVEDEV, 2000, p. 4, tradução nossa30).

Um personagem importante no delinear dessas formas foi Gennady Burbulis, que assumiu o cargo de “vice-presidente” em novembro de 1991, e era

30 No original: “In implementing this ‘reform’ program, Yeltsin and his government had no base of support in the form of a political party; they did not even have a publicly stated program. They used exclusively administrative methods, sometimes employing force and violence.” 86

essencialmente o ‘número dois’ do governo russo, abaixo apenas de Yeltsin31. Burbulis defendia uma rápida transformação do sistema, e ele foi o responsável por formar o time de reformistas que encaminharia as reformas econômicas e políticas. Burbulis foi o grande responsável por trazer Yegor Gaidar para compor a equipe que desenharia o plano de reforma econômica. Na época, Gaidar atuava como líder da seção econômica do Pravda (principal jornal da União Soviética e um órgão oficial do Comitê Central do Partido Comunista) e organizava um novo centro de pesquisa, o Instituto de Economia Política. Ao conduzir esse processo, Gaidar se tornaria o principal nome da reforma econômica russa e maior defensor da “terapia de choque” (MEDVEDEV, 2000). Além de Gaidar que passou a liderar o grupo, foram convidados também representantes ocidentais, dentre eles , economista que já havia trabalhado como conselheiro da reforma econômica na Polônia e como membro do grupo que delineou o Plano Balcerowicz. As expectativas de Yeltsin com o sucesso das reformas eram grandes. Ou, pelo menos, ele demonstrava que eram.

Uma transição única para os preços de mercado - essa é a medida difícil, mas necessária, que somos forçados a tomar [...]. As coisas ficarão piores para todos por cerca de meio ano, depois [haverá] uma redução de preços e o preenchimento do mercado consumidor com mercadorias. No outono de 1992, como prometi antes das eleições, [haverá] estabilização da economia e melhoria gradual na vida das pessoas. Defender o padrão de vida de todos no primeiro estágio das reformas é algo que não podemos fazer. (YELTSIN, Rossiyskaya Gazeta, 29 de outubro, 1991 apud MEDVEDEV, 2000, p. 19, destaque e tradução nossos32).

Como ficará claro adiante no capítulo, as expectativas do presidente (e da população russa) foram brutalmente frustradas.

31O cargo, em inglês, é “First Deputy to the Chairman of the Government”. Em 1989, Burbulis foi eleito para compor o Congresso dos Deputados do Povo. Quando Yeltsin declarou que seria candidato ao recém-estabelecido cargo de Presidente, Burbulis foi quem organizou a sua campanha. Em julho de 1991, Yeltsin nomeou Burbulis como Secretário de Estado. De novembro de 1991 a abril de 1992 Burbulis ocupou o cargo de First Deputy to the Chairman of the Government (gabinete do governo). 32 No original: “A one-time transition to market prices—that is the difficult but necessary measure we are forced to take [...] Things will be worse for everyone for about half a year, then [there will come] a lowering of prices, and the filling up of the consumer market with goods. By the fall of 1992, as I promised before the elections, [there will be] stabilization of the economy, and gradual improvement in people’s lives. To defend everyone’s standard of living in the first stage of the reforms is something we cannot do.” 87

2.3.1. As relações entre Yeltsin e o parlamento russo

Conforme mencionado por Goldman (2003), o “período de lua de mel” entre o Congresso russo33 e a liderança de Yeltsin, iniciado após a resistência à tentativa de golpe de agosto de 1991, não demorou para terminar. As reformas econômicas iniciadas ainda em 1991 e no decorrer de 1992 não apresentaram resultados positivos rapidamente, contrariando as expectativas do governo e da população russa e, acima de tudo, contrariando o que havia sido amplamente prometido por Yeltsin e seu time de reformistas. Pelo contrário, houve um aprofundamento da crise econômica e uma piora significativa das condições materiais da população em pouquíssimo tempo (ver próximos tópicos do capítulo). Com a continuidade das dificuldades econômicas do país, o Congresso passou a exigir o fim dos poderes extraordinários do presidente Yeltsin, que haviam sido cedidos no fim de 1991 para agilizar a implantação das reformas. Ao mesmo tempo em que o Soviete Supremo ameaçava remover esses poderes do presidente, Yeltsin questionava abertamente a legitimidade do corpo do Congresso de Deputados do Povo, já que este havia sido eleito ainda durante o período soviético, e não representava a “nova realidade do país” (SEGRILLO, 2000). As tensões ao fim de 1992 foram acirradas ainda mais quando o Congresso rejeitou o nome de Yegor Gaidar como Primeiro-Ministro da Rússia. Gaidar já estava atuando no cargo desde abril de 1992, mas o nome deveria ser submetido à aprovação pelo Congresso. Considerando o envolvimento próximo de Gaidar com as reformas econômicas e sua impopularidade naquele momento, os deputados se recusaram a confirmar a atribuição ao economista de um cargo de tanto poder. Após duas tentativas de votação, Yeltsin precisou recuar, e foi nomeado para o cargo. Em meados de 1992, Chernomyrdin havia sido nomeado por Yeltsin ao cargo de Ministro do Combustível e Energia, e, mesmo com o colapso econômico generalizado daquele momento, a administração de Chernomyrdin conseguiu

33 Congresso dos Deputados do Povo da Rússia, principal instituição do governo russo, era organizado em sessões. O encontro completo dos mais de mil representantes ocorria de duas a três vezes ao ano. Entre as sessões, o órgão responsável por governar era o Soviete Supremo, corpo legislativo permanente que era composto por cerca de 250 deputados, eleitos pelo Congresso. 88

manter o então setor mais importante da economia russa funcionando de forma eficiente (MEDVEDEV, 2000, p. 37). Apesar de não ter uma relação próxima com o Presidente Yeltsin, Chernomyrdin se mostrou um importante aliado e sua nomeação garantiu um breve momento de tranquilidade entre o Executivo e o Congresso. Em março de 1993, Yeltsin decretou o Regime Especial de Administração do País, uma espécie de estado de emergência que garantiria ao Presidente a continuidade dos poderes extraordinários, justamente o que o Congresso estava tentando evitar. O plano de Yeltsin era manter essa condição de poderes especiais até que fosse resolvida a questão da definição do novo texto constitucional – para isso, Yeltsin queria convocar um referendo no qual o povo russo votaria sobre a escolha entre presidencialismo e parlamentarismo, e sobre questões específicas referentes à nova constituição (SEGRILLO, 2000). Um dia após o anúncio de Yeltsin, o presidente do Tribunal Constitucional, o Procurador-Geral e o vice-presidente de Yeltsin, Aleksandr Rutskoi, condenaram o decreto e o declararam inconstitucional. Ao mesmo tempo, o Parlamento começa a articular uma maioria para avançar um processo de impeachment. As tensões a partir desse momento não foram dissipadas (SEGRILLO, 2000). Em setembro de 1993, as tensões atingem seu ápice, quando Yeltsin traz de volta Gaidar como seu vice-primeiro-ministro, e, poucos dias depois, assina o Decreto 1400, “Sobre a reforma constitucional gradual”, que dissolvia o Congresso de Deputados do Povo e marcava eleições para outubro, eleições que formariam um novo tipo de parlamento bicameral. Com tal decreto, revogava também qualquer parte da Constituição em vigor que contrariasse seus próprios dispositivos. Dois dias após o decreto, o Parlamento (que, de acordo com o decreto do Presidente, estaria dissolvido) votou e aprovou o impeachment de Yeltsin. Estava instaurado um clima aberto de confrontação e tensão (SEGRILLO, 2000). Os deputados opositores a Yeltsin passaram a fazer uma vigília permanente, entrincheirados no prédio do Parlamento. Houve confronto armado entre partidários do parlamento, polícia, manifestantes, e o presidente decretou estado de emergência em Moscou. Nos dias 3 e 4 de outubro, a sede do Parlamento foi cercada por tanques e alvejada por estes. O saldo de mortos ao fim desse confronto foi de mais de 300 pessoas. O impasse entre o Presidente e o parlamento foi finalmente resolvido, com o uso da força armada (SEGRILLO, 2000). 89

Sobre o canhoneio do parlamento nos dias 3 e 4 de outubro, Pomeranz (2018) afirma que o conflito marca o encerramento da primeira fase de institucionalização do novo Estado russo – a violência dos acontecimentos influenciou a natureza das instituições políticas formadas posteriormente, pois a vitória de Yeltsin sobre os seus oponentes fez com que ele e seus apoiadores entendessem que ela lhes concedia mandato político para impor as novas regras políticas e econômicas do país (POMERANZ, 2018). Ainda sobre a dissolução violenta do Parlamento em outubro de 1993, é destacada a relativa apatia da população, com uma ausência de atuação da sociedade civil durante o conflito (POMERANZ, 1995). Naquele momento, marcava a população russa um forte cansaço e descrença em relação à atividade política, além do aumento das dificuldades do cotidiano e o desencanto em relação às promessas de melhoria. Shevtsova (2007) também afirma que o ataque ao parlamento em 1993 foi o “empurrão definitivo da Rússia para o caminho autoritário”. Yeltsin adotou um discurso radical, apresentando a situação daquele momento como se a Rússia estivesse diante de uma armadilha: ou voltar para o sistema soviético, ou aceitar o anticomunismo autoritário de seu governo.

2.3.2. A Constituição de 1993

No dia 12 de dezembro de 1993, foram realizadas as novas eleições parlamentares, e um referendo para a população aprovar ou não a nova Constituição. Com uma participação de 54,4% do eleitorado russo, a nova Constituição teve seu texto aprovado com 58,43%34. De acordo com o texto aprovado, o novo parlamento, a Assembleia Federal, é formado por duas câmaras: a câmara alta, o “Conselho da Federação”, constituído

34 “Resultados do voto nacional para o projeto de Constituição Da Federação Da Rússia em 12 de dezembro de 1993”. Disponível em . Último acesso em 20 jan. 2020.

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pelos governantes das 89 unidades administrativas da Federação Russa; e a câmara baixa, a “Duma do Povo”, eleita por voto direto. A Duma é o órgão principal, responsável por elaborar leis, aprovar orçamentos, aprovar ou não o indicado a Primeiro Ministro pelo Presidente - os outros ministros do governo, contudo, não precisam da aprovação da Duma (SEGRILLO, 2000; POMERANZ, 2018). A eleição parlamentar que ocorreu no mesmo dia do referendo e compôs o primeiro corpo de deputados da Duma teve um resultado amargo para os aliados do Kremlin: os partidos mais votados foram o Partido Liberal Democrata da Rússia (oposição de Yeltsin e liderado por Vladimir Zhirinovsky), Escolha da Rússia (partido de Gaidar, pró-Yeltsin mas que não garantia a maioria dos assentos), e o Partido Comunista da Federação Russa (levantando sinais de alerta dentro da equipe administrativa de Yeltsin). Ainda segundo a nova Constituição, o Presidente era responsável não só pela escolha direta do Primeiro-Ministro, como também tinha o poder para dissolver a Duma em caso de impasse entre o Poder Executivo e o Legislativo. O Presidente tem a prerrogativa de nomeação dos ministros da Defesa, do Interior e das Relações Exteriores, além de indicar o Chefe do Serviço Federal de Segurança. O Presidente também é responsável pela nomeação dos juízes da Corte Constitucional, e o Conselho da Federação (câmara alta da Assembleia Federal) aprova as nomeações (SEGRILLO, 2000; POMERANZ, 2018). A nova Constituição também foi importante para centralizar a política econômica – os instrumentos de implantação de políticas econômicas são do Executivo, e os ministros reportam à presidência. Assim, o texto constitucional dava espaço para o Executivo adotar medidas críticas através de decretos presidenciais e resoluções, sem a necessidade de envolver o Legislativo (DESAI, 2005). Medidas centrais para o processo de privatização foram tomadas por Yeltsin e sua equipe através desse mecanismo, sem buscar a legitimação por meio da aprovação da Duma. De acordo com Pomeranz (2018), com a nova ordem constitucional que fora estabelecida e com todo o conflito que levou ao seu estabelecimento, os responsáveis por encaminharem as reformas econômicas na Rússia garantiram “o tipo de Estado que desejavam para implementar sua política de reformas.” Essa afirmação é extremamente importante, porque relaciona diretamente os acontecimentos políticos com a viabilidade das reformas. Considerando que os dois 91

partidos pró-governo que disputaram as eleições de 1993, Escolha da Rússia e Partido da Unidade e do Acordo Russos, juntos somavam 123 dos 450 assentos da Duma, Yeltsin não conseguiria controlar a agenda do Parlamento e nem impor seus direcionamentos. Segundo Strepetova (2000), a Constituição permitia a concentração de poderes nas mãos do presidente, apesar do princípio constitucional da separação de poderes estar presente no texto. A autora defende que a concentração de poder no Executivo seria responsável por gerar uma instabilidade geral no cenário político e uma série de conflitos entre os poderes, sobretudo após as eleições parlamentais de 1995 em que o novo Partido Comunista da Federação Russa (PCFR) saiu como principal vencedor. Para os políticos que estavam no poder naquele momento (ver adiante), a ideia de estabelecer uma democracia era importante apenas como uma forma de garantir e legitimar o seu poder35. Mas, ao mesmo tempo, não queriam correr os riscos de perder eleições e perder o seu poder. Yeltsin e a sua equipe buscaram, assim, formas de encaminhar reformas sem a necessidade de submetê-las a um novo consenso nacional (SHEVSTOVA, 2007).

35 Considerando a necessidade de não perder de vista o objetivo do nosso trabalho, não poderemos discutir devidamente se a Constituição de 1993 garante a instituição de um “Estado democrático de direito”, e nem temos base teórica para fazê-lo devidamente. Contudo, buscaremos pincelar aqui a discussão de Shevtsova (2007) sobre o tópico. Segundo a autora, é possível questionar até que ponto o grupo de políticos que conduziu o processo de instituição do novo Estado russo tinha como objetivo desenvolver, de fato, direitos e liberdades civis. Shevtsova (2007) acredita que no governo de Yeltsin é formado um pluralismo de elite (elite pluraslim), em que algumas liberdades sobrevivem de fato, mas sem que isso signifique de fato um regime democrático, com participação e organização da sociedade civil. Esse pluralismo de elite só existia dentro dos limites dos interesses dos grupos oligárquicos próximos ao Kremlin. Uma ilusão de liberdade, competição, concorrência foi criada através da participação de políticos de diversas posições ideológicas, e da presença de jornalistas – mas esses players tinham pouquíssimo poder de influência de fato nas decisões tomadas no Kremlin. A autora avalia que Yeltsin falhou em criar uma fundação sólida que servisse de base para as liberdades que emergiram durante seu governo, ou criar uma garantia que esses direitos não seriam facilmente revogados posteriormente. Se o regime democrático era o único considerado “legítimo” aos olhos dos países capitalistas ocidentais e das instituições financeiras internacionais, a elite política russa fez o necessário para poder apresentar a ‘credencial democrática’. Não chega a ser o colapso da democracia, mas o uso deliberado de instituições democráticas e liberais para esconder arranjos tradicionais de poder. (SHEVTSOVA, 2007) Goldman (2003) faz a analogia de um transplante: os reformistas pegaram como referência os códigos e estrutura do Estado democrático dos países ocidentais e transplantaram para a realidade Rússia sem considerar se, de fato, seria compatível com a sociedade russa, com sua cultura política e conjunto de valores políticos de forma geral. 92

Huskey (2004) destaca três mudanças institucionais estabelecidas com o processo da nova Constituição que fortaleceram a estrutura e a autoridade do Executivo: 1) a dissolução do Parlamento por Yeltsin encorajou o desenvolvimento de formas personalistas de governo; 2) Constituição de 1993 criou o Conselho da Federação, cujos membros eram os chefes do Executivo e do Legislativo de cada território sujeito a Moscou, o que deu grandes poderes e capital político para os líderes provinciais; 3) decisão de introduzir eleições diretas para governador, o que alterou fundamentalmente o cálculo político na Rússia, dando legitimidade, segurança no cargo e independência política aos governadores (HUSKEY, 2004). Essa divisão do poder estabelece uma mistura que o autor considera “peculiar” de princípios unitários e federativos, o que no futuro iria gerar uma série de conflitos entre a legislação federal e provincial, sobretudo no que diz respeito ao recolhimento de impostos36. Ao avaliarem o nível de poder atribuído ao Presidente pela Constituição de 1993, autores como Brown (2004), Kagarlitsky (2002) e Medvedev (2000) reforçam a avaliação de que o texto constitucional atribuía autoridade máxima pessoalmente à figura do Presidente, ao invés de apostar no fortalecimento de uma série de instituições. Kagarlitsky considera inclusive a Constituição “hiperpresidencialista”. Medvedev avalia que a Constituição de 1993 estabelece uma presidência muito forte, com o gabinete do presidente ficando acima de todos outros braços do governo – o autor justifica essa posição destacando a prerrogativa do Presidente de nomear todos os membros do gabinete que administra o governo, sendo que o único nome que precisa da aprovação da Duma é o do Primeiro-Ministro. Além disso, Medvedev considera determinante o fato do presidente ter grandes liberdades para legislar por decretos. Segrillo (2011, p. 140) discorda, afirmando que

[...] uma leitura atenta da Constituição russa de 1993 e nota-se que ela segue o modelo francês do semipresidencialismo em vez de presidencialismo puro.

36 Yeltsin conseguiu o apoio dos líderes regionais ao prometer que teriam mais autonomia sobre seus territórios. Depois que conquistou o poder, o desafio de Yeltsin era manter o poder dos líderes dentro de determinados ‘limites’. – depois da vitória do confronto com o Parlamento em 1993, as elites regionais decidiram evitar conflitos com Yeltsin e, em troca, a administração central não iria interferir nas ‘questões internas’ das regiões – estabelecido um “equilíbrio instável” (KAGARLITSKY, 2002). 93

Um regime semipresidencialista é aquele em que há um presidente e um primeiro-ministro e ambos têm papéis distintos definidos e de importância comparável. Na Rússia, como na França, de maneira geral, o presidente cuida da política externa e da segurança do país, enquanto o primeiro- ministro trata dos assuntos internos – economia, políticas sociais, etc.

O fato é que, após a Constituição de 1993 ter sido devidamente aprovada, a administração de Yeltsin ganhou ainda mais liberdade para avançar seu programa de reformas. O período a partir de então coincide com o aumento da crise econômica e o aprofundamento da ruína do sistema de bem-estar social.

2.3.3. As eleições de 1995 e 1996

Em dezembro de 1995, após a realização de mais uma eleição parlamentar federal, o Partido Comunista da Federação Russa (PCFR) ascendeu como a grande força política daquele momento, ficando com 34,9% dos assentos da Duma, sob liderança de . Tal vitória foi um grande acontecimento político, pois consolidava o retorno dos comunistas ao primeiro plano do cenário político russo. O contexto da vitória do PCFR envolve a continuidade da crise econômica russa, o descontentamento com o conflito na Chechênia37 e a deterioração cada vez maior da qualidade de vida da maioria da população russa. Logo após a eleição parlamentar de 1995, o país entrou em clima de corrida eleitoral presidencial, já que as eleições para eleger o próximo Presidente estavam marcadas para junho de 1996. A corrida estava polarizada entre Yeltsin e Zyuganov (o candidato do PCFR), com um terceiro candidato ganhando popularidade, o general Aleksandr Lebed. As pesquisas indicavam um cenário perigoso para Yeltsin, com grandes possibilidades de vitória do PCFR. Segundo Medvedev (2000), houve uma significativa mudança da orientação do governo de Yeltsin no contexto das eleições se aproximando. A campanha de Yeltsin foi construída ao redor de um programa socioeconômico que essencialmente

37 A (primeira) Guerra na Chechênia foi um conflito separatista iniciado em dezembro de 1994, e que durou até agosto de 1996, uma disputa dos chechenos para conquistar a independência da Federação Russa. O confronto foi sangrento, e muito mais prolongado do que os russos esperavam. O fim do conflito em 1996, com termos frágeis, não foi suficiente para evitar uma retomada do confronto em 1999. Ver mais em: WOOD, T. (2004). 94

ia contra tudo o que havia sido realizado no primeiro mandato sob sua liderança, com promessas de recuperação econômica e investimento. Para conquistar o suporte dos trabalhadores, das Forças Armadas, da população rural, dos estudantes e aposentados, Yeltsin teria que mudar suas políticas significativamente – essas mudanças apareceram em pequenos primeiros passos do governo de janeiro de 1996 a junho de 1996 e nas promessas da campanha. Contudo, muitos dos programas sociais anunciados foram interrompidos logo após a eleição: “Após a eleição, o retorno do idealizador da privatização, Chubais, a um alto cargo no governo de Yeltsin, cancelou muitas das esperanças dos que votaram no presidente russo" (MEDVEDEV, 2000, p. 225, tradução nossa38). Zyuganov, mesmo mantendo distância do discurso comunista mais radical, não conseguia evitar a automática associação de sua candidatura com as políticas do PCUS e com o passado soviético. Os seus adversários aproveitaram a evidente conexão e alimentaram uma associação muito forte de Zyuganov com a figura de Stalin. O candidato do PCFR inclusive não conseguiu a simpatia dos trabalhadores urbanos, sendo que seu maior apoio vinha do interior rural russo (MEDVEDEV, 2000). Com o resultado do 1º turno, no dia 16 de junho, Yeltsin ficou com 35,28% e Zyuganov com 32,03%, enquanto Lebed ficou com 14,52% (SEGRILLO, 2000). Definido que a disputa de Yeltsin seria, de fato, contra o Partido Comunista, a nova classe de proprietários privados que estava se formando na Rússia (ver adiante, capítulo 3), uma pequena camada da população que estava prosperando com as reformas econômicas ainda que o conjunto da economia estivesse em declínio, assumiu uma postura de extremo receio. Existia o temor de que, caso os comunistas saíssem vitoriosos, as reformas poderiam ser desfeitas. O chamado grupo dos oligarcas se uniu para apoiar Yeltsin no segundo turno – foi definida uma estratégia de campanha que exigiu um grande investimento financeiro, arcado pelos oligarcas. A imprensa foi mobilizada para alimentar a campanha de Yeltsin e, principalmente, para minar a campanha de Zyuganov.

38 No original: “After the election, the return of privatization mastermind Chubais to a high post in Yeltsin’s administration canceled many of the hopes held by those who voted for the Russian president.” 95

Segundo Segrillo (2000, p. 98), “cenas de terror stalinista eram mostradas constantemente, acompanhadas de perguntas ao público se desejava a ‘volta de tudo aquilo’.” Ainda sobre a disputa entre Zyuganov e Yeltsin, Medvedev (2000) avalia que o potencial individual dos candidatos de conquistar votos já havia alcançado seu limite no primeiro turno, e que o fator decisivo no segundo turno seria a capacidade de formar alianças. Nesse sentido, a campanha de Yeltsin foi mais estratégica, e, além do acordo com os oligarcas, fez um acordo com Lebed (terceiro lugar no primeiro turno), que foi nomeado como um dos secretários do Conselho de Segurança Russo e como assistente do presidente para assuntos de segurança nacional. A eleição, assim, teria sido determinada principalmente pela rejeição em relação aos candidatos, segundo a avaliação de Medvedev. Yeltsin venceu o segundo turno com 53,82% dos votos, e Zyuganov ficou com 40,31%. A vitória de Yeltsin foi um ‘suspiro de alívio’ para aqueles que defendiam o mercado capitalista na Rússia, e Yeltsin recompensaria os que o ajudaram na reeleição. Viktor Chernomyrdin continuou como Primeiro-Ministro, Anatoly Chubais foi nomeado chefe do gabinete do Presidente, e os oligarcas seriam recompensados com a continuação de uma política favorável a eles (SEGRILLO, 2000). Retomaremos esta questão no capítulo 3, ao discutirmos as reformas econômicas que estavam ocorrendo nesse período e a ascensão e conquista de poder político dos oligarcas.

2.3.4. A formação da nova classe dirigente russa

A perspectiva que aparece de forma mais frequente na bibliografia que procura entender a composição do grupo dirigente da política russa no período pós- soviético é a de que houve uma continuidade do alto escalão político soviético, que este teria conseguido manter o seu poder mesmo após o colapso da União. Kagarlitsky (1993), Shevtsova (2007) e Freeland (2000) são exemplos de autores que, apesar de apresentarem linhas de análise diferentes, concordam essencialmente que a nova classe dirigente russa é formada nas bases da velha nomenklatura soviética. Segundo tal perspectiva, não existiria uma classe estruturada dentro da União Soviética capaz de tomar o poder e dar forma a um novo modelo de sociedade, a não ser a própria nomenklatura soviética. “A 96

nomenklatura não podia mais governar no modelo antigo, mas ela rapidamente aprendeu a governar de acordo com o novo.” (KAGARLITSKY, 1993, p.49) Shevtsova (2007) concorda que oficiais do PCUS foram compondo a nova classe no poder – não apenas mantendo e restaurando seu poder, mas agora conquistando poder sobre a propriedade, o que os tornou ainda mais poderosos (SHEVTSOVA, 2007). O bloco no poder russo, assim, teria se organizado para encontrar novas maneiras para concretizar os seus interesses, mesmo com o colapso do sistema soviético. Outro ponto destacado por Freeland (2000) é como a própria figura política de Yeltsin, apesar de ter colaborado para o fim soviético, foi construída na União Soviética. A autora destaca que seu governo teria sido composto pelas mesmas figuras do alto escalão soviético, antigos ministros, ex-membros do Comitê Central, secretários do PCUS. Todos esses indivíduos, formados pelo sistema soviético, tentando criar um novo sistema capitalista na Rússia (FREELAND, 2000). Lane e Ross (1999) realizaram um profundo estudo sobre a composição dos setores dirigentes da política soviética e da política russa, analisando detalhadamente a carreira daqueles que compunham os principais blocos de poder dentro dos governos (no caso soviético, analisam os políticos que compunham o Politburo, o Comitê Central do PCUS, o Secretariado do PCUS, e os Ministérios – as mais altas instâncias de poder político soviético; no caso russo, analisam o gabinete de ministros, os líderes do Parlamento, e os líderes regionais). Uma das contribuições mais interessantes do trabalho dos autores é a demonstração de como existia uma considerável fragmentação de interesses dentro do bloco no poder soviético – divisões internas importantes em termos de ideologia, fidelidade institucional, interesse político. O que é comumente tratado pela bibliografia como “nomenklatura”, como um bloco monolítico, é um termo extremamente vago que não dá conta de definir os interesses existentes dentro deste grande grupo39. Considerando a magnitude desse grupo, é inviável tratá-lo de

39 A definição de Nomenklatura: “lista de cargos executivos e de autoridade na sociedade socialista estatal para a qual o aparato do Partido Comunista tinha o direito formal de nomeação, veto ou destituição. [...] A função original desse sistema de nomeações era permitir ao Partido manter sua hegemonia política.” (LANE; ROSS, 1999, p. 144, tradução nossa). – Apesar da ideia da 97

forma generalista, como se todos os seus membros tivessem poder para interferir diretamente nas decisões tomadas em nível nacional. Além do problema de tratar a nomenklatura como um bloco coeso, outro ponto que deve ser considerado é o passado político daqueles que compunham o bloco no poder durante o governo Yeltsin. Segundo Lane e Ross, havia um claro conflito entre diferentes frações de grupos diversos no período soviético, e o bloco que ascende ao poder com Yeltsin não seria uma simples reprodução do setor dirigente da União Soviética. Muito pelo contrário, ao analisar a trajetória dos principais políticos do período Yeltsin40, Lane e Ross mostram como ocorre uma renovação significativa. Ainda que os políticos tivessem de fato um passado na estrutura de poder soviética (seja através da participação nos quadros do PCUS ou no aparato estatal – afinal de contas, seria impossível renovar completamente todo o quadro de políticos russos de uma hora para a outra), os cargos eram de nível médio, ou seja, a maioria das lideranças da década de 1990 não compunha a liderança política soviética. Assim, segundo Lane e Ross, o conflito de grupos e a crise política que são iniciados no governo Gorbachev continuam na Rússia pós-soviética. A Rússia sob governo de Yeltsin herdou uma estrutura política conflituosa e fragmentada, com profundas divisões entre os níveis nacional e regional, entre os diferentes grupos de interesse político e daqueles ligados ao controle econômico – conflito que contribui na frustração da consolidação do mercado e do novo regime político. Tal fragmentação é visível na falta de consenso sobre os parâmetros básicos do novo Estado e os conflitos gerados, o que prejudicou tanto a formação de um mercado como a democratização.

nomenklatura de garantir a unidade ideológica do setor dirigente da política soviética, os autores destacam como a complexidade de tal controle cresceu de forma significativa com o passar dos anos. Desde o Politburo até organizações primárias do Partido, as estimativas do tamanho da lista variam de 330 mil nomes em 1977 até 3 milhões de nomes na década de 1980. A ideia de que “nomenklatura” pode ser usado para definir um grupo coeso, com interesses e ideologia alinhados, é no mínimo uma expectativa grande demais. 40 Lane e Ross fizeram um longo trabalho de pesquisa, entrevistando e buscando o histórico de mais de 450 membros do alto escalão da política russa. 98

2.3.5. Avaliações sobre o legado de Yeltsin

Ao analisar o legado de Yeltsin, Shevtsova (2007) avalia que o presidente russo seguiu uma política que concentrava o poder do Estado na sua figura, um poder personalizado. A autora analisa como durante toda a história da Rússia, um padrão de poder personalizado foi seguido – desde o Império Russo, passando por todo período soviético, e então com Yeltsin na Rússia pós-soviética, existia essa concentração de poder e recursos nas mãos do líder, que se coloca acima de toda a sociedade. Ainda que o líder obviamente precise de todo um aparato para governar, frente à população a sua imagem prevalece. Ainda segundo Shevtsova (2007), uma das principais consequências do poder personalizado é o estabelecimento de relações profissionais baseadas em favoritismo. O governo apostaria na eliminação de instituições independentes, convertendo relações funcionais de Estado em relações pessoais baseadas em confiança. Sobretudo a partir de 1995, esse movimento foi ilustrado quando uma “família política” passou a governar em nome de Yeltsin – incluindo membros da sua família biológica, como sua filha Tatiana Diachenko, e seu genro, . Dessa forma, Yeltsin não conseguiu superar a tradição russa de poder personalizado. Através da sua principal bandeira contra o comunismo, Yeltsin e sua equipe protegeram seus interesses, suas recém-adquiridas propriedades e sua autoperpetuação. Para o entourage de Yeltsin, seu governo e seu regime político se tornaram um instrumento, um fim em si mesmo (SHEVTSOVA, 2007). Yeltsin conseguiu combinar patriotismo, orgulho étnico e nacionalismo liberal – e o já mencionado profundo sentimento anticomunista. Ao mesmo tempo, Yeltsin não conseguiu criar um clima, instituições e processos para sustentar uma transformação a longo prazo: Ao deixar de criar a infraestrutura organizacional de um Estado democrático e de uma economia de mercado, e ao tolerar a criação de facto de um Estado corrupto e de um mercado remonopolizado, muito semelhante ao sistema soviético que tinha sido abandonado, Yeltsin pôs em risco todo o seu projeto (BRESLAUER, 2004, p. 95).

No momento em que Yeltsin deixou o poder, em 1999, o projeto do Estado democrático e da economia de mercado já era tratado por boa parte da população com ceticismo, quando não com hostilidade (SHEVTSOVA, 2007). Yeltsin apareceria, portanto, como uma figura contraditória, combinando um discurso inflamado de defesa da democracia com atitudes consideradas autoritárias 99

– como ilustrado no conflito com o Parlamento em 1993. Essa imagem de contradição e inconsistência foi importante para unir aqueles que queriam uma reforma parcial do sistema soviético e aqueles que queriam o rompimento completo com o passado. Segundo Shevtsova (2004), apenas Yeltsin teria a capacidade de incorporar a herança do passado com o desejo de colocar fim a esse legado soviético. Ainda sobre o perfil político de Yeltsin, Medvedev (2000) aponta que Yeltsin foi um político cujo principal objetivo era a permanência no poder – ainda que para isso ele precisasse mudar sua imagem, suas políticas, seu entourage. O autor argumenta que isso é demonstrado quando Yeltsin apresenta um projeto socioeconômico completamente diferente do pretendido na campanha de 1996, e como em seus mandatos houve ciclos de pessoas chegando, e depois sendo afastadas, enquanto havia pouca mudança de fato na política econômica do país (MEDVEDEV, 2000). Yeltsin deixou como legado a incapacidade de estabelecer um sistema de instituições mais ou menos independentes, que agissem com base em regras claras. O modo de sobrevivência do regime Yeltsin era baseado em trocas e negócios de distribuição de poder e propriedade: autoridades regionais receberam poder de autonomia, oligarcas receberam porções substanciais da propriedade – a autoridade sobrevivia conforme oferecia aos grupos de grande influência a maior liberdade para perseguir seus interesses especiais. No contexto eleitoral de 1996, Medvedev (2000) aponta que a base social do regime de Yeltsin era limitada ao capital comercial e financeiro (com apoio do capital internacional), burocratas corruptos, fragmentos das elites regionais e da intelligentsia, e as organizações criminosas que prosperaram particularmente durante seu governo.

100

2.4. O plano de estabilização econômica – um dos pilares da “terapia de choque”

2.4.1. Condições iniciais das reformas econômicas de Yeltsin

Antes de embarcarmos nas reformas introduzidas pelo governo de Boris Yeltsin, é importante realizar uma breve retomada sobre a condição econômica da Rússia no momento após o colapso soviético. Pomeranz (1995) destaca a fragilidade das bases econômicas daquele momento: a) a queda da produção, sobretudo nos últimos dois anos da União Soviética, quando a desorganização do sistema econômico atingiu seu ápice com o desmoronamento das suas bases, e seus desequilíbrios foram intensificados; b) o fato de que a perestroika foi, no fim das contas, incapaz de resolver os desequilíbrios estruturais da economia; c) o acirramento da escassez de bens na economia; d) a herança da dívida externa soviética (a Rússia assumiu todos os compromissos internacionais da União Soviética, incluindo uma dívida de US$ 81 bilhões em novembro de 1991); e) condições de indefinição sobre direitos de propriedade, ausência de sistemas monetário e fiscal estruturados para a imediata introdução de mecanismos de um sistema de mercado. A Rússia apresentava condições extremamente desafiadoras, ao ter de enfrentar, ao mesmo tempo, a instituição de um novo Estado, e a missão de elaborar uma política econômica adequada à realidade daquele contexto. Além disso, o governo Yeltsin teria de lidar com os fatores que alimentavam uma reprodução contínua da instabilidade macroeconômica. Starodubrovskaia (2005) destaca como o novo governo ainda não contava com uma Constituição para regular as relações entre os poderes e legitimar de fato as reformas conduzidas, e as relações com as outras ex-repúblicas soviéticas também precisavam ser regulamentadas. Essa questão das relações entre as repúblicas contribui para compreender a instabilidade do momento, já que se tratava de uma economia integrada que, após um longo processo de turbulências, encontrou-se fragmentada em 15 novos países. Ademais, as características que foram os alvos das reformas da perestroika e que desafiaram o pleno desenvolvimento dos planos de Gorbachev continuaram interferindo nas condições iniciais do processo encabeçado agora por Yeltsin: a extrema militarização do setor industrial, a prioridade que o setor da indústria pesada 101

recebia em detrimento dos demais setores, o fato de não haver um setor de serviços plenamente desenvolvido, um predomínio das megaempresas tanto no setor industrial como no agrícola, dentre outros (POPOV, 2007).

2.4.2. As propostas do modelo neoliberal

Yegor Gaidar, economista russo, formou-se na Faculdade de Economia da Universidade Estatal de Moscou em 1978, e desde então seguiu uma carreira acadêmica passando por diversos institutos de pesquisa. Membro de longa data do PCUS, Gaidar foi editor responsável pelo setor econômico da revista Kommunist que era ligada ao Partido. Gaidar se aproximou politicamente de Boris Yeltsin durante o período da perestroika, e em 1991 Gaidar deixou o PCUS para ser nomeado membro do governo de Yeltsin. Seu primeiro cargo foi de Vice Primeiro-Ministro e Ministro da Economia de 1991 até o início de 1992; foi Ministro das Finanças de fevereiro de 1992 até abril do mesmo ano, quando assumiu o cargo de Primeiro- Ministro em atividade (ainda precisava da aprovação do Congresso dos Deputados do Povo). Foi o escolhido por Yeltsin para elaborar e conduzir os planos de reforma econômica logo em outubro de 1991. Forte defensor do sistema de mercado e da privatização, Gaidar convidou o ex-ministro da economia polaco Leszek Balcerowicz e outros economistas ocidentais para trabalharem na elaboração do plano (Andrei Schleifer, Jeffrey Sachs, David Lipton, Anders Aslund). Tais especialistas haviam trabalhado no programa de reformas econômicas que havia sido experimentado na Polônia, o “Plano Balcerowicz”, que ficou conhecido como o grande exemplo “terapia de choque”. O principal objetivo desse modelo era reformar a economia de forma acelerada em direção a uma economia de mercado, acompanhada de uma rápida estabilização macroeconômica (GOLDMAN, 2003; MAZAT, 2013). Sobre as prioridades de Gaidar e a formação de seu grupo, os “jovens reformistas”, Freeland (2000) destaca como a preocupação deles era essencialmente econômica – se as medidas econômicas 102

corretas fossem introduzidas, não importaria a forma como o Estado estaria sendo governado41. Em 17 de julho de 1992 (depois de já terem liberado os preços da economia, ver adiante), foi publicado pelo governo o programa que delineava a intensificação das reformas, e Medvedev (2000, p. 27) destaca como a palavra “capitalismo” não aparece em nenhum momento no texto. O texto limitava-se a tratar da “necessidade de criar de forma acelerada uma ‘economia de mercado cujas principais forças motrizes seriam o empreendedorismo e a concorrência, baseados na propriedade privada’.” As reformas que foram introduzidas a partir de 1992 seguiam o modelo da “terapia de choque” (e os princípios do chamado Consenso de Washington, que mencionamos acima) e tinham, essencialmente, dois princípios fundamentais como pilares: 1) a chamada estabilização macroeconômica, que apostava em uma política monetária restritiva para controlar os riscos inflacionários do período de reformas, elevando juros e liberalizando as taxas cobradas pelos bancos comerciais, e apostando na redução dos gastos públicos para diminuir assim o déficit orçamentário do governo; e 2) a política de reestruturação e liberalização de toda a economia, que deveria criar as condições para o funcionamento da economia de mercado e remover o que os reformistas acreditavam serem distorções do mercado. Estavam incluídos como principais eixos a liberalização total dos preços, a liberalização do comércio exterior, e a privatização das empresas estatais acompanhada da defesa dos direitos de propriedade privada (KAGARLITSKY, 2002; OKUNEVA, 2010; MAZAT, 2013; MIKHAILOVA, 2013; ARANTES JR, 2015; POMERANZ, 2018). O programa elaborado para construir a economia de mercado, que defendia a política de estabilização econômica, foi alvo de severas críticas, ainda que essas críticas não questionassem a necessidade em si das reformas. Apesar de

41 Referência a Friedrich Hayek – para Hayek, um dos principais teóricos do neoliberalismo, não importava o regime político desde que os princípios neoliberais fossem seguidos. No seu pensamento, o papel do Estado é preservar a eficiência da ordem do mercado. O Estado deveria, assim, garantir a segurança dos agentes econômicos, garantir que as regras fossem respeitadas. De acordo com Hayek, seria melhor uma ditadura com uma política econômica liberal, do que um governo democrático sem qualquer liberalismo. Ver mais: DARDOT, P.; LAVAL, C. (2016). 103

considerarem as reformas necessárias, a adoção da terapia de choque e de um caráter monetarista da política econômica (que enfatiza o papel da política monetária para a estabilidade macroeconômica de uma economia de mercado) era considerada inaplicável às condições concretas da economia russa, marcada por graves desequilíbrios estruturais e pela queda da produção. Yavlinsky42 apontava o “[...] excesso de confiança no poder espontâneo do mercado para processar as reformas estruturais, principalmente as privatizações” (POMERANZ, 1995, p.61-2). Junto com o programa, foi formulado um Memorando de Intenções, em que o time econômico de Yeltsin delineou quais as linhas de política econômica o governo russo estava comprometido a seguir, solicitando o ingresso no FMI logo depois. Antes da passagem de 1991 para 1992, o parlamento (Soviete Supremo da RSFSR que foi eleito ainda durante o período soviético) já havia mostrado que os deputados não estavam inclinados a aceitar um pacote de reformas a qualquer preço. Contudo, uma ajuda econômica imediata internacional de US$ 24 bilhões do FMI dependia da declaração conjunta do parlamento de apoio às reformas e à liberalização – e o parlamento atendeu às condições. Em abril de 1992, o FMI aceita a entrada da Rússia na instituição oficialmente (SEGRILLO, 2000). Quando Gaidar tornou-se Primeiro Ministro (voltando ainda mais forte após o parlamento ter pressionado a sua saída do cargo de Ministro de Finanças ainda em abril de 1992), a decisão foi um grande sinal de Yelstin ao FMI e aos organismos internacionais, demonstrando o seu compromisso com as reformas.

2.4.3. O início das reformas e a liberalização radical da economia

No dia 02 de janeiro de 1992, através de um decreto presidencial assinado por Yeltsin, os preços (incluindo aqui os salários) foram liberados do controle estatal - exceto energia, combustível, transporte, comunicação e certos alimentos básicos, que continuaram sob controle do governo, para suprimir os efeitos inflacionários que

42 Grigory Yavlinsky, economista e político russo, em 1990 era o chefe do Departamento Econômico Conjunto do Governo da URSS e escreveu o famoso plano dos “500 dias”, que não foi aplicado por Gorbachev, em que apresentava um programa para a União Soviética transformar sua economia planejada em uma economia de mercado em menos de 2 anos. Após o colapso soviético, fundou em 1993 o , Partido Democrático Unido Russo. 104

já eram esperados no cotidiano da população. A liberação levou a um aumento dos preços de quase cinco vezes no varejo no primeiro trimestre de 1992 em relação a dezembro de 1991 (POMERANZ, 2018). A liberalização foi feita de forma rápida, sem que houvesse qualquer preocupação do governo de procurar melhorar antes as condições de ofertas de bens na economia (existia uma escassez na oferta de bens de consumo, um dos principais problemas que Gorbachev procurou enfrentar nos seus últimos anos de governo) (SEGRILLO, 2000). Para enfrentar o surto inflacionário (ver adiante, gráfico 3), foi adotada uma política monetária restritiva, limitando o crédito e definindo um teto para emissão de moeda. Gaidar ainda apresentou propostas ao Soviete Supremo para eliminar o déficit orçamentário do governo russo. Seria um passo muito agressivo, considerando que o déficit em 1991 foi de 17% do PIB (estimativa FMI apud DESAI, 2005) e que o governo ainda estava lidando com as consequências da dissolução soviética. A proposta era cortar o orçamento da defesa, os investimentos estatais e os subsídios da indústria e dos consumidores. A radicalidade da proposta gerou mais uma onda de conflitos dentro de um parlamento já dividido (esses confrontos chegaram ao ápice em outubro de 1993, como vimos no tópico 2.3). Nesse momento, há o início dos comércios de rua de Moscou, que viraram uma marca registrada da década de 1990 na Rússia. Gaidar falava sobre esses mercados de forma idealizada, como se fosse algo admirável de ver surgindo, a iniciativa de mercado – mas a realidade era que as pessoas estavam vendendo qualquer coisa que pudessem para conseguir sobreviver e sanar suas necessidades básicas. Freeland (2000) relata que os próprios economistas do FMI se mostraram surpresos com a habilidade dos reformistas de ignorar o sofrimento pelo qual passava seu povo. Stiglitz (2002) aponta que a liberalização imediata dos preços, dando início a uma inflação que acabou com o pouco de poupança que existia no país, foi um grande erro dos reformistas. A partir desse momento, o foco dos reformistas foi mobilizado, buscando solucionar o desafio de reduzir a inflação. Como garantir uma reforma bem-sucedida com uma hiperinflação? Para reduzir a inflação, os reformistas só apostavam em uma fórmula: apertar a política monetária, ou seja, aumentar as taxas de juros. O autor aponta que começar pelo desafio dos preços acabou comprometendo todo o caminho das reformas depois – o foco acabou centrado no controle da questão monetária. Ao invés de propor reformas 105

construtivas ou propositivas, ficaram limitados a buscar remédios que solucionassem essa questão.

Depois do surto de inflação de demanda inicial observado até março de 1992, o processo inflacionário observado na Rússia a partir de março de 1992 se torna crônico, pois se transforma em uma inflação de custos persistente, na medida em que as empresas e os trabalhadores russos tentam reajustar seus salários e preços para compensar suas perdas iniciais de renda (MAZAT, 2013, p. 138).

Ao mesmo tempo em que os preços foram liberados, a liberalização do comércio exterior foi feita através de uma forte queda das barreiras tarifárias às importações e o fim das quotas de importações. Essa medida favoreceu muito a difusão dos produtos importados e ajudou, até certo ponto, a eliminar a escassez de bens de consumo (MAZAT, 2013). A Rússia se encontrou inundada com produtos importados, e os produtores locais estavam tendo dificuldade de lidar com a concorrência, sobretudo em um ambiente de baixo nível de investimento (STIGLITZ, 2002). Não só os produtores tinham dificuldade de concorrer localmente - a adoção dessa política foi um golpe significativo na capacidade da indústria russa de concorrer no mercado internacional. Veremos mais adiante, ao discutirmos como a abertura do mercado russo levou a certa “desindustrialização” do país. As indústrias nacionais russas não conseguiam competir com as estrangeiras e as matérias-primas se tornavam cada vez mais os itens principais de sua pauta de exportação (SEGRILLO, 2008). Apesar das dificuldades da indústria de concorrer com importadas, a Rússia durante esse período teve superávits comerciais (ver gráfico 1), especialmente pelo elevado nível de exportações de matérias-primas. A fragilidade externa russa não vinha da balança comercial, mas da tendência crescente de saídas de capital legais e ilegais que levou ao aprofundamento da vulnerabilidade (MAZAT, 2013). Mais adiante veremos o impacto do aumento das rendas ligadas aos títulos do governo comprados por instituições financeiras estrangeiras, a dívida externa crescente do país, o problema da saída de divisas, combinados com a adoção após 1994 da valorização do câmbio real e a diminuição das reservas do Banco Central russo. Outro problema que buscaremos apresentar é como a ausência de controle de capital e de monopólio cambial do Estado russo deu a oportunidade a muitas 106

empresas exportadoras, que recebiam seus pagamentos em divisas através de filiais no exterior, de “externalizar” todo valor das exportações (MAZAT, 2013).

107

GRÁFICO 1 – Saldo da balança comercial russa Balança Comercial Russa, 1989-1999, em bilhões de US$ 70,00

60,00

50,00

40,00 Russia Trade Balance 1989- 30,00 1999, Billions of US$ 20,00

10,00

0,00 19891990199119921993199419951996199719981999

Fonte: World Bank. Saldo externo de bens e serviços (anteriormente saldo de recursos) é igual à exportação de bens e serviços menos a importação de bens e serviços (antes chamados de serviços não fatoriais). Os dados estão em dólares americanos atuais. Disponível em .

GRÁFICO 2 – Taxa de câmbio entre dólar americano e rublos43 35,000

30,000

25,000

20,000

15,000 National Currency Units per US Dollar: Russian 10,000 Federation

5,000

-

1995-06-01 1993-03-01 1993-12-01 1994-09-01 1996-03-01 1996-12-01 1997-09-01 1998-06-01 1999-03-01 1999-12-01 2000-09-01 2001-06-01 2002-03-01 1992-06-01

43 Os números no gráfico são, de fato, milhares de rublos (RUR) por dólar. Em 1992, o rublo soviético (código SUR) foi substituído pelo rublo russo (código RUR) na taxa 1 SUR = 1 RUR. Em 1998, após a crise financeira russa, o rublo russo sofreu uma reforma monetária e adotou o código RUB e sofreu um corte de três zeros, ou seja, 1 RUB = 1000 RUR. 108

Fonte: Federal Reserve Economic Data - Taxa de câmbio da moeda nacional para o dólar dos EUA: média das taxas diárias para a Federação Russa, unidades de moeda nacional por dólar dos EUA, mensalmente, sem ajuste sazonal. Disponível em . Acesso em 22 jan. 2020.

Esta ausência de controle cambial e relaxamento do monopólio estatal sobre o comércio exterior como oportunidade de enriquecimento vêm desde quando Gorbachev abre o mercado externo, retirando o monopólio estatal. Esta abertura representou uma oportunidade para aqueles que, com os contratos apropriados, conseguiam comprar bens pelo preço interno subsidiado e vender no mercado por preços internacionais em ‘moeda forte’, fazendo assim muito dinheiro.

[…] emergiu uma economia dupla, na qual as empresas clamavam cada vez mais pela oportunidade de vender sua produção a preços [internacionais] de mercado, enquanto ainda pagavam preços estatais nacionais por sua força de trabalho e insumos materiais e energéticos (CLARKE, 2007, p. 49, tradução nossa44).

Ao avaliar esse primeiro momento de liberalização generalizada, com liberalização dos preços, salários e comércio exterior, Clarke (2007) afirma que essas medidas foram apenas o reconhecimento formal do Estado de que não tinha mais controle sobre esses valores reais.

44 No original: “[…] a dual economy emerged in which enterprises increasingly clamoured for the opportunity to sell their output at market [international] prices, while still paying domestic state prices for their labour power and material and energy inputs.” 109

GRÁFICO 3 - Taxa de inflação na Rússia, preços ao consumidor no final do período

Inflation rate, end of period consumer prices

2510

840,1

160,4 214,8 131,3 21,8 11 84,4 36,6 20,2 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 Fonte: Fundo Monetário Internacional (FMI) – O índice de preços ao consumidor (CPI em inglês) no final do período é uma medida do nível geral de preços de um país com base no custo de uma cesta típica de bens e serviços de consumo no final de um determinado período. A taxa de inflação é a variação percentual no final do período CPI. Disponível em < https://www.imf.org/external/datamapper/PCPIEPCH@WEO/RUS?year=2020>. Acesso em 27 jan. 2020.

Nesse contexto de descontrole econômico, a explosão dos salários nominais, combinada com uma taxa de câmbio nominal que se desvaloriza muito até 1995, contribuiu para alimentar o ciclo inflacionário. Os níveis de inflação ficam tão altos (ver gráfico 3) que, ainda em março de 1992, a escassez de moeda em circulação foi um problema cada vez maior. A Gosznak (agência governamental que imprimia o dinheiro) não conseguiu acompanhar a demanda por papel-moeda – sem papel para pagar, milhões de pessoas ficaram sem salários, pensões, bolsas, e outros benefícios ativos. Nesse ponto, os agentes econômicos passam a realizar as trocas comerciais em espécie, ou seja, trocando os produtos disponíveis – isso ocorreu entre empresas e seus fornecedores, e também conforme as empresas passaram a pagar os funcionários com produtos (MEDVEDEV, 2000). Apesar dos esforços iniciais de tentar controlar a inflação que crescia cada vez mais, a política de restrição monetária de tentar controlar o gasto público e aumentar as taxas de juros fracassou. Segundo Starodubrovskaia (2005), a crise inflacionária demonstrou como o novo governo era débil, e acabou impondo a 110

necessidade de uma manobra social para que esse governo sobrevivesse politicamente. Assim, em abril de 1992, menos de um mês depois de ter encaminhado ao FMI um memorando de intenções que listava o controle do gasto público e a política monetária restritiva como prioridades, o governo voltou a financiar o orçamento via emissão de moeda, reforçando ainda mais o potencial inflacionário. Em agosto, a inflação dispara, a renda real da população continua caindo, e a cotação do rublo segue a sua trajetória de desvalorização (ver gráfico 2). De julho a setembro de 1992, o país continua a espiral de completa desorganização econômica e o detrimento das condições sociais avança em passos largos: Os programas sociais começaram a ser encerrados. O financiamento da saúde, educação, cultura e ciência foi reduzido drasticamente. Muitas plantas do complexo industrial militar pararam de funcionar. Devido à dissolução da URSS, o exército e a marinha começaram a desmoronar, assim como os sistemas de transporte, energia elétrica e linhas aéreas. Os antigos sistemas legais e de segurança de todo o país também se desintegraram (MEDVEDEV, 2000, p. 23, tradução nossa45).

No final do ano de 1992, para agravar a capacidade do governo de lidar com a crise econômica, o cenário político também passava por um momento de intensificação dos conflitos, como já trabalhamos no tópico 2.3. O conflito entre Gaidar e Chernomyrdin pelo cargo de Primeiro-Ministro também tinha seus desdobramentos econômicos - a equipe de Gaidar tinha forte ligação com organismos econômicos internacionais e um compromisso maior com o modelo da “terapia de choque”, enquanto a equipe de Chernomyrdin apresentava propostas para defender o interesse corporativo das empresas russas. Em dezembro de 1992, quando Chernomyrdin assumiu oficialmente o cargo de Primeiro-Ministro russo, havia a expectativa de que a política econômica que seria introduzida a partir daí seria mais branda, sobretudo pensando na recuperação do setor industrial russo. Contudo, a influência de Chernomyrdin na condução da política econômica foi

45 No original: “Social programs began to be terminated. The financing of health, education, culture and science was cut back sharply. Many plants in the military-industrial complex stopped working. Because of the dissolution of the USSR, the army and navy began to fall apart, as did the transport, electric power, and airline systems. The former union-wide security and legal systems also disintegrated.” 111

bastante limitada – além disso, não demorou muito para que Gaidar retornasse ao governo. A hiperinflação desse período consumiu não só as economias da população, mas também deixou as empresas russas sem capital. Sem recursos, as empresas não só não tinham como para pagar os salários, mas também não tinham condições para comprar insumos necessários ou para contratar serviços. Cada vez mais, houve um aumento das dívidas entre as empresas (CLARKE, 2007). Nesse contexto de intensa demanda por crédito, os bancos recém-formados ansiavam para oferecê- lo. No começo, cobravam taxas abaixo da inflação, mas conforme a inflação seguiu sua rápida tendência ascendente, as taxas aumentaram, e logo as dívidas aumentaram, e com elas também aumentou o poder dos bancos sobre aqueles que dependiam dos empréstimos. Até o fim de 1992 e nos primeiros meses de 1993, não havia qualquer sinal de estabilização. A produção caiu mais de 20%, além da queda drástica do PIB (ver gráfico 6). Era um ciclo de decadência e o governo russo não mostrava ter condições de tentar sair dessa situação: os custos de produção aumentavam, o que fazia os preços aumentarem ainda mais, e o consumidor ficava cada vez mais sem condições de acompanhar. A quantidade de bens sendo consumidos diminuía, e a receita do governo proveniente dos impostos também caía cada vez mais, em um momento em que o governo desesperadamente precisava de fundos. Medvedev (2000) apresenta o relato de Georgy Kostin, diretor de uma grande indústria russa na cidade de Voronej, e que foi publicado no jornal russo Rossiyskaya Gazeta em agosto de 1993, sobre a realidade da economia naquele momento: [...] ainda não havia um plano para tirar o país da crise econômica. O setor de engenharia pesada da Região Econômica Central da Terra Negra, disse ele, estava pagando entre 35% e 40% do seu orçamento em energia. Mas em agosto, com o aumento dos preços do carvão, gás e energia elétrica, era esperado que esse número subisse de 57% a 63%. Era impossível continuar dessa maneira (Rossiyskaya Gazeta, August 4, 1993 apud MEDVEDEV, 2000, p. 43, tradução nossa46).

46 No original: “[…] there was still no plan to bring the country out of its economic crisis. The heavy engineering sector of the Central Black Earth region, he said, had been paying 35–40 percent of its budget for energy. But in August, with price rises for coal, gas, and electric power, that figure was expected to go up to 57–63 percent. It was impossible to go on in that way.” 112

Ainda sobre os resultados econômicos em 1993:

Os resultados globais de 1993 não foram consoladores. Ao longo do ano, o produto interno bruto diminuiu 12,5% e a renda nacional foi 14% menor. A produção industrial havia caído 25%; agrícola, 5,5 por cento. A taxa média mensal de inflação foi de 16%. A taxa de câmbio havia piorado: no final de 1992, eram 450 rublos por dólar; no final de 1993, eram 1.250 rublos por dólar. As condições materiais da população também pioraram substancialmente (Voprosy Ekonomiki [Problems of Economics], 1994, No. 1, pp. 86–96 apud MEDVEDEV, 2000, p. 43, tradução nossa47).

Após dois anos de “terapia de choque”, tempo que Yeltsin havia prometido que seria suficiente para realizar as transformações e recuperar a economia russa, a sociedade russa encontrava-se em um momento de extremo conflito social. Apesar do clima de crise econômica, a parcela mais rica da população enriqueceu muito durante esse período (ver capítulo 3), enquanto um terço da população recebia uma renda abaixo do salário mínimo e 15 milhões de pessoas viviam abaixo da linha de pobreza, recebendo menos do que o considerado necessário para sobreviver (MEDVEDEV, 2000, p. 43). Neste contexto, somente com a Nova Constituição de 1993, que alterava o sistema político e “encerrava” um período de intenso conflito, foi possível retomar uma tentativa concreta de política de estabilização, conforme o modelo pretendido pelo time de reformistas de Yeltsin, já que o novo texto constitucional regulamentou o processo decisório sobre questões econômicas. Dentre as medidas da Constituição, destaca-se a independência do Banco Central russo, que ganhou uma nova autonomia, e abriu espaço para constituir uma infraestrutura financeira que passou a priorizar a captação de recursos nos mercados financeiros, em detrimento da prática de financiamento do déficit orçamentário via emissão de moeda. O preço da escolha de priorizar a captação de recursos em mercados financeiros, ou seja, de

47 No original: “The overall results for 1993 were not consoling. Over the course of the year, gross domestic product had shrunk by 12.5 percent and national income was 14 percent lower. Industrial production had fallen by 25 percent; agricultural, by 5.5 percent. The average monthly inflation rate was 16 percent. The rate of exchange had worsened: at the end of 1992 it had been 450 rubles to the dollar; at the end of 1993, it was 1,250 rubles to the dollar. The material conditions of the population had also worsened substantially.” 113

vincular a dívida pública à venda de títulos e promessa de pagamento de juros, seria cobrado no futuro próximo48.

2.4.4. A profunda depressão da economia russa

A economia que já passava por uma longa desmonetização, com atrasos nos pagamentos dos salários, pensões e outros benefícios, tanto no setor público como no privado, não pôde contar com os bancos para diminuir a restrição de liquidez monetária. Os bancos russos não financiavam o fluxo de caixa das empresas russas, travando ainda mais as perspectivas de investimento do setor produtivo, e preferindo passar a investir na compra de títulos da dívida do governo russo, que ofereciam taxas de juros mais altas (MAZAT, 2013; MIKHAILOVA, 2013). O colapso do sistema soviético alterou de forma muito radical o ambiente em que as empresas deveriam operar. A partir da consolidação das reformas, as empresas passaram a estar sujeitas às “leis do mercado”, sem poderem contar com os subsídios estatais, sem o apoio do Estado para garantir os recursos e fornecimento de insumos necessários, e o pagamento de salários, sem o planejamento estatal para garantir que a produção seria consumida, devidamente encaminhada aos seus consumidores. Em um primeiro momento, tendo que se adaptar a tal realidade, a preocupação primária dos trabalhadores e dos gerentes era sobreviver, garantir sua própria reprodução (CLARKE, 2007). Um dos setores em que é mais visível o efeito do afastamento do Estado é o gigante setor industrial-militar, um dos mais avançados (se não o mais) setores da economia soviética, conforme procuramos demonstrar no decorrer do trabalho. Após o colapso soviético, o Estado reduz ainda mais o orçamento militar (movimento que já havia sido iniciado durante o governo de Gorbachev). Segundo Medeiros (2011a), essa redução do orçamento militar, combinada com um profundo declínio dos investimentos, resultou em dois movimentos: “de um lado, um relativo

48 Não cabe no desenvolvimento do presente trabalho discutir de forma prolongada a crise financeira russa de 1998. Contudo, podemos mencionar que a emissão de títulos da dívida pública russa, de curto-prazo e com altíssimas taxas de juros, contribuiu com a vulnerabilidade da economia naquele período. A incapacidade da Rússia de rolar a dívida com a emissão de novos títulos foi um dos principais elementos que levaram à eclosão da crise. 114

envelhecimento de algumas tecnologias militares que estavam na fronteira tecnológica, de outro lado, um ainda maior isolamento da indústria militar da civil” (MEDEIROS, 2011a, p. 32).

TABELA 5 – Gastos militares russos na década de 1990, em milhões de dólares (2017) Military expenditure by Russia, in constant (2017) US$ m., 1992-1997 1992 48655 1995 26455 1993 42533 1996 24980 1994 40208 1997 27310 Fonte: Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI). Military expenditure by country, in constant (2017) US$ m., 1988-2018. Disponível em . Acesso em 23 jan. 2020

Conforme demonstrado na tabela 5, o gasto militar seguiu uma tendência declinante durante a década de 1990, o que representou um forte encolhimento do gigante complexo militar-industrial herdado da União Soviética. Goldman (2003) relata a experiência de visitar uma importante indústria do complexo militar-industrial soviético em meados da década de 1990, ilustrando como as indústrias desse setor foram obrigadas a buscar alternativas para sobreviver – naquele contexto, o setor mais lucrativo era o financeiro: Em 1994, enquanto visitávamos Podolsk, nos arredores de Moscou, uma cidade oficialmente fechada para estrangeiros durante a Guerra Fria, fomos levados para ver Lutch, que havia sido uma importante fábrica no complexo industrial militar da União Soviética. Na corrida por um sistema de defesa antimísseis, Lutch havia sido um centro de pesquisa em um laser do tipo ‘Guerra nas Estrelas’. Com o fim da Guerra Fria, a administração da empresa Lutch tentou se envolver mais no setor civil, mas teve problemas para fazê-lo. Como parte de sua mudança para atividades comerciais, Lutch concordou em se juntar a outras fábricas da era soviética no estabelecimento de seis bancos comerciais diferentes. Entre os bancos que ajudou a criar estavam o Commerzbank, um ramo do Ministério de Energia Atômica, pelo qual Lutch havia investido 11% do capital. Também forneceu quase 10% do capital do Inkombank e 35% do Banco Russo de Reconstrução e Desenvolvimento. O Rosbusinessbank, no entanto, era seu principal interesse. Lutch contribuiu com 40% do capital desse banco, e o presidente da Lutch dedicou a maior parte de sua atenção ao seu novo trabalho como vice-presidente da organização (GOLDMAN, 2003, p. 81, tradução nossa49).

49 No original: “In 1994, while visiting Podolsk outside Moscow, a city officially closed to foreigners during the Cold War, we were taken to see Lutch, at one time an important factory in the Soviet Union’s military-industrial complex. In the race for a missile defense system, Lutch had been a center 115

Acompanhando a forte diminuição do gasto público, houve uma significativa queda da arrecadação fiscal, o que manteve o déficit fiscal em um patamar alto apesar dos esforços do governo. O sistema tributário herdado da União Soviética não era muito adaptado à nova realidade econômica russa. Houve a tentativa de estabelecer um imposto sobre o consumo, mas sua aplicação foi bastante complicada, devido à desorganização da fiscalização, à inconsistência do novo sistema fiscal e à corrupção dos agentes administrativos. O enfraquecimento do Estado russo estava refletido na generalização das práticas de sonegação de impostos no país50 (MAZAT, 2013). O atraso de impostos tornou-se uma prática comum na Rússia, assim como a prática de ajuste de contas entre as empresas (e até entre as empresas e o Estado) por meio da troca direta de produtos ou perdão recíproco das dívidas. Nesse tipo de relação, não era possível para o governo controlar a incidência dos tributos. Havia uma sonegação em massa dos impostos:

[...] o valor total das faturas não pagas atingiu 191% do PIB mensal em dezembro de 1995 e 280% do PIB no primeiro semestre de 1996 (em números absolutos: 281,1 bilhões de rublos em janeiro de 1996; 552,8 bilhões de rublos em janeiro de 1997; 934,9 bilhões de rublos em janeiro de 1998) (STARODUBROVSKAIA, 2005, p. 206, destaque nosso).

for research on a Star Wars-type laser. With the end of the Cold War, the management of Lutch attempted to involve itself more in the civilian sector, but it had trouble doing so. As part of their shift to commercial activities, Lutch agreed to join with other Soviet-era factories in establishing six different commercial banks. Among the banks it helped create were Commerzbank, an offshoot of the Ministry of Atomic Energy, for which Lutch had put up 11 percent of the capital. It also provided almost 10 percent of the capital for Inkombank and 35 percent for the Russian Bank for Reconstruction and Development. Rosbusinessbank, however, was their main interest. Lutch contributed 40 percent of that bank’s capital, and the chairman of Lutch at that time devoted most of his attention to his new job as Deputy Chairman of that organization.” 50 Pomeranz (1995) trabalha a questão fiscal e a evasão tributária, mencionando especialmente a relação da administração do governo central e as administrações locais das regiões e das repúblicas. Segundo a autora, existia um equilíbrio instável entre as lideranças centrais e as regionais, já que o governo precisava contar com o apoio das representações dessas administrações no Congresso. O aspecto “instável” da relação contava com a questão da “não transferência dos tributos arrecadados localmente para o Centro e a busca da autonomia e independência das repúblicas/regiões” (POMERANZ, 1995, p. 64). Era uma negociação de apoio político em troca de as unidades administrativas poderem reter parcelas maiores dos tributos arrecadados localmente – o governo russo precisa do apoio, mas ao mesmo tempo diminuía sua arrecadação em um momento de plenos esforços para equilibrar o seu orçamento. 116

O racionamento do crédito e o forte recuo do gasto público refletiram também na queda brutal do nível do investimento agregado, que perdeu 84% do seu valor real entre 1990 e 1998. Além de não ter o crédito para investir, o encolhimento da demanda efetiva também servia como incentivo para não investir, travando ainda mais a modernização do setor industrial e acelerando a deterioração da infraestrutura. O incentivo à criação de bancos privados para substituir o Estado no seu papel de financiamento do investimento acabou não aumentando a disponibilidade de crédito para a maior parte das empresas russas – essas novas instituições financeiras eram, em geral, focadas em atividades especulativas, nas privatizações e em aplicações em títulos públicos (MAZAT, 2013). Conforme o gráfico 2, podemos perceber também que a partir do início de 1992, ocorre uma forte desvalorização da taxa de câmbio nominal na Rússia, após a adoção de um regime de câmbio flexível como parte do pacote inicial de reformas, alimentada pela elevada fuga de capital que acompanhou a abertura financeira (também estabelecida a partir de 1992). A liberalização da economia não atraiu grande volume de investimentos estrangeiros para a Rússia, diferente do que os reformistas esperavam, e contribuiu, pelo contrário, para fragilizar ainda mais a economia russa (CARMO, 2010). Não havia interesse do capital estrangeiro de investir na Rússia – a entrada de Investimento Estrangeiro Direto (IED) na Rússia entre 1994 e 1998 foi menor do que na Polônia no mesmo período. Além disso, o pouco investimento que entrava era voltado para o setor de petróleo e gás e para o setor financeiro, e não para o setor industrial (CLARKE, 2007). O fenômeno da fuga de capital da Rússia é marcado sobretudo pelos lucros das exportações sendo depositados nos bancos ocidentais, normalmente em dólares ou outras moedas fortes – os detentores desses lucros buscavam, dessa forma, protegê-los da inflação russa e dos impostos do governo. O gráfico 4 mostra algumas estimativas sobre os valores que deixaram a Rússia nesse período. 117

GRÁFICO 4 – Saída de Investimento Estrangeiro Direto na Rússia, em milhões.

Foreign direct investment, net (BoP, current US$)

1994 1995 1996 1997 1998 1999

-378,6

-1061,41

-1459,95 -1551,61 -1656,49 -1680,74

Fonte: Base de dados do Banco Mundial. Sem dados disponíveis antes de 1994. Investimento direto estrangeiro é o ingresso líquido de investimento para adquirir uma participação gerencial duradoura (10% ou mais do capital votante) em uma empresa que opera em uma economia diferente da do investidor. É a soma do capital social, reinvestimento de lucros, outro capital de longo prazo e capital de curto prazo, conforme mostrado na balança de pagamentos. Esta série mostra o IDE líquido total. Disponível em .

De forma geral, o desempenho econômico russo até 1995 não mostrou sinais de melhora. Segundo Medvedev, “na primeira metade de 1994, o declínio da produção foi de 26% em 1993 e quase 50% em 1991. A queda na atividade de investimento foi ainda maior” (MEDVEDEV, 2000, p. 140, tradução nossa51). A escolha de conduzir a política econômica segundo os princípios da terapia de choque fazia com que o governo se encontrasse sem recursos para investir (afinal de contas, as escolhas sobre como financiar o orçamento público e, acima de tudo, de direcionar o gasto público, são escolhas políticas). Enquanto isso, o capital privado não tinha os incentivos para investir em produção industrial ou agrícola, já que em uma situação de declínio econômico, a promessa era de retornos pequenos e a longo-prazo. Segundo Medvedev (2000), os proprietários de capital priorizavam

51 No original: “in the first half of 1994 the decline of production was 26 percent of that in 1993 and almost 50 percent of the decline in 1991. The falling off in investment activity was even greater.” 118

os investimentos em comércio e em relações intermediárias, no setor de serviços e no setor financeiro, uma vez que os retornos eram maiores. A situação da economia não melhorou em 1995, conforme demonstra o gráfico 6. O início da guerra na Chechênia, que começou em dezembro de 1994, provou ser também um importante elemento para piorar a situação econômica russa. O desemprego e o nível de pobreza continuavam crescendo, e os índices populacionais mostravam que a população russa estava pagando o preço pelas reformas neoliberais (tabelas 6 a 9).

TABELA 6 – Desemprego na Rússia – (% do total da força de trabalho) 1991 - 1995 9,4 1992 5,2 1996 9,7 1993 5,9 1997 11,8 1994 8,1 1998 13,3 Fonte: World Development Indicators, World Bank. Disponível em . Acesso em 20 jan. 2020

TABELA 7 – Expectativa de vida da população russa, em anos 1991 68,5 1995 64,7 1992 66,9 1996 65,9 1993 64,9 1997 66,7 1994 64,5 1998 67 Fonte: World Development Indicators, World Bank. Disponível em . Acesso em 20 jan. 2020

TABELA 8 – População russa, total em milhões de habitantes 1991 148,62 1995 148,37 1992 148,68 1996 148,16 1993 148,52 1997 147,91 1994 148,33 1998 147,67 Fonte: World Development Indicators, World Bank. Disponível em . Acesso em 20 jan. 2020

119

TABELA 9 – Índice de crescimento da população russa 1991 0,2 1995 - 1992 - 1996 -0,1 1993 -0,1 1997 -0,2 1994 -0,1 1998 -0,2 Fonte: World Development Indicators, World Bank. Disponível em. Acesso em 20 jan. 2020

A partir de 1995, Chernomyrdin partiu para um plano econômico que apostava em uma política de estabilização rígida e que tinha como base a utilização da âncora cambial. Eram três pontos principais: 1) Banco Central russo ancorando a taxa de câmbio do rublo ao dólar, na cotação entre 4300 e 4900 rublos por dólar, com um regime de câmbio fixo (o governo russo tinha o compromisso de defender essa cotação); 2) o déficit público não poderia mais aumentar (cortes nos gastos públicos seriam intensificados); e 3) restrição monetária (Banco Central não podia financiar o déficit público com a emissão de moeda). Com isso, foi imposta a necessidade de financiar o déficit através de empréstimos (SEGRILLO; 2000; MAZAT, 2013).

Como a sonegação e o déficit fiscal eram extremamente elevados, esta estratégia só podia ser mantida à custa de empréstimos estrangeiros e emissão de títulos e obrigações do governo. Os juros internos subiriam de maneira incrível, para atrair o fluxo de dólares (capital estrangeiro) necessário para manter a cotação do rublo (SEGRILLO, 2000, p. 83).

Com a política macroeconômica endurecida, o governo consegue controlar a inflação e aumentar as suas reservas. Por outro lado, o endurecimento agrava a crise da produção (em 1995, o PIB cai mais 14%, e conforme demonstrado no gráfico 7, o setor industrial tem uma participação cada vez menor), e também diminui o padrão de vida dos russos (aumento da parcela de pobres em 30%) (STARODUBROVSKAIA, 2005). Até mesmo os setores voltados para exportação, como a produção de petróleo, tinham o desempenho da sua produção significativamente menor do que os níveis de 1990. 120

GRÁFICO 5 - Produção de petróleo bruto na Rússia - BBL/D/1K

Fonte: U.S. Energy Information Administration (EIA). Gráfico de Trading Economics. Disponível em . Acesso em 27 jan. 2020. BBL/D/1K: Milhares (1k) de barris (BBL) produzidos por dia (D).

O produto interno bruto em 1995 foi cerca de 40% do que havia sido em 1990; a produção industrial foi de 42% [do valor de] 1990; agrícola, 65%. Os investimentos de capital haviam caído para apenas 28% daqueles de 1990. [...] Durante o período de cinco anos, o sistema pelo qual o país havia fornecido seu próprio suprimento de alimentos foi levado à beira da destruição. Na indústria, a produção de ferro e aço foi reduzida em 40% em cinco anos. A produção de caminhões em 1995 foi de 39% do nível de 1990; dos tratores, 10%; [...]. A produção de fibra sintética representava apenas 33% do nível de 1990; de geladeiras, 47%; máquinas de lavar, 25%; aparelhos de televisão em cores, 15%; gravadores, 10%. A produção de têxteis foi de 21% de 1990 e de calçados, apenas 14%. Números como esses, testemunhando um colapso geral em vez de uma “reforma bem- sucedida”, podem preencher muitas páginas [...] (MEDVEDEV, 2000, p. 142- 143, tradução nossa52).

52 No original: “Gross domestic product in 1995 was about 40 percent of what it had been in 1990; industrial production was 42 percent of 1990; agricultural, 65 percent. Capital investments had fallen to only 28 percent of those in 1990. […] Over the five-year period the system by which the country had provided its own food supply was brought to the verge of destruction. In industry, iron and steel production had been reduced by 40 percent in five years. The production of trucks in 1995 was 39 percent of the 1990 level; of tractors, 10 percent; […]. Production of synthetic fiber was only 33 percent of the 1990 level; of refrigerators, 47 percent; washing machines, 25 percent; color television sets, 15 percent; tape recorders, 10 percent. The production of textiles was 21 percent of 1990, and of shoes, only 14 percent. Figures like these, testifying to a general breakdown rather than “successful reform,” could fill many pages […].” 121

GRÁFICO 6 – Crescimento do PIB (em % anual) 15 10 10 6,4

5 1,4

0 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 GDP growth (annual %) - -5,04 -4,14 -5,3 Russian Federation -3 -5 -3,75 -8,66

-10 -12,57 -14,53 -15

-20 Fonte: World Bank national accounts data, and OECD National Accounts data files. Disponível em . Acesso em 20 jan 2020.

GRÁFICO 7 – Estrutura do PIB russo 120

100

8036,7 48,7 42,8 44,8 52,2 49,4 50,6 51,8 49,9 60

40 45,9 42,3 40,5 41,2 34,5 35,3 20 34,7 33,9 33,5

13,8 7,3 7,6 0 6,1 6,7 6,5 5,9 5,1 6,6 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999

Agricultura Indústria Serviços

Fonte: World Bank. Disponível em . Acesso em 20 jan. 2020. Agriculture: agriculture, forestry, and fishing, value added (% of GDP); Industry: industry (including construction), value added (% of GDP); services (% of GDP).

A população russa encontrava-se, evidentemente, frustrada com os resultados das reformas. As expectativas e as promessas das reformas eram altas. 122

O descontentamento do público era materializado, principalmente, de três formas: 1) os preços de bens essenciais subiram muito (mesmo com a tentativa inicial do governo de segurar esses preços, logo esse controle ficou insustentável); 2) o atraso do pagamento de salários e de impostos, tanto no setor público quanto no recém- estabelecido setor privado; e 3) o esquema de vouchers para integrar a população no processo de privatização, conforme veremos detalhadamente no próximo capítulo, não deu resultados concretos para os russos (DESAI, 2005).

2.4.5. Sobre a inexistência de uma estrutura institucional ‘adequada’

Uma das críticas que aparecem com mais frequência na bibliografia quando os autores avaliam a eficácia das reformas refere-se à ausência de uma estrutura institucional adequada ao padrão do mercado na Rússia. Ou seja, as instituições que auxiliariam e viabilizariam o funcionamento de uma economia de mercado não existiam, e tiveram de ser introduzidas conforme as reformas econômicas eram, ao mesmo tempo, aplicadas. Para Popov (2007), a velocidade para ajustar e reestruturar uma economia inteira é limitada, especialmente devido ao potencial restrito de investimento necessário para realocar estoque de capital. Por isso, teria sido menos traumático, na opinião do autor, a adoção de uma estratégia gradual, que aos poucos removesse as tarifas, subsídios, e outras formas de suporte que os setores recebiam do governo. Quando esses suportes são removidos muito rapidamente, deixam para trás uma grande necessidade de reestruturação, em uma economia com severas limitações (inclusive a limitação de investimento). “O ritmo da liberalização não deveria ser mais rápido do que a capacidade da economia de transferir recursos de setores não competitivos (sob as novas proporções de preços de mercado) para setores competitivos” (POPOV, 2007, p. 19, tradução nossa53). Segundo Okuneva (2010), além de todos os desafios de uma entrada brusca e rápida na economia capitalista global, a situação da Rússia ainda era agravada

53 No original: “The pace of liberalization had to be no faster than the ability of the economy to move resources from non-competitive (under the new market price ratios) to competitive industries.” 123

porque não existia uma clara compreensão de como funcionava a economia nessas condições, e qual seria seu papel nesse novo cenário. As reformas produziram um crescimento acelerado dos desequilíbrios sociais, e a sociedade não estava pronta para acompanhar o ritmo de mudanças, sofrendo um profundo choque psicológico. Essas incertezas são refletidas na busca pelo novo lugar dos russos na nova ordem mundial – agora sem os recursos políticos, administrativos, e financeiros para manter as mesmas posições da União Soviética. Outro ponto que pode ser mencionado na questão estrutural faz referência à própria lógica que movia o setor industrial russo. No período soviético, as indústrias não competiam entre si, não estavam habituadas a um ambiente competitivo – o seu objetivo era o cumprimento das metas quantitativas determinadas pelo planejamento central. Quando o sistema é desintegrado, surgem inúmeros desafios e custos que as empresas não tinham qualquer preparo para lidar. Alves (2011a) destaca que um dos principais fatores que aceleraram a queda do PIB russo na década de 1990 foi justamente essa desorganização generalizada da economia após o fim do planejamento centralizado. Popov (2007) destaca que a profunda recessão da década de 1990 está associada com um colapso institucional, um golpe na eficiência das instituições do Estado (habilidade de impor suas regras e regulamentações). O Estado, segundo o autor, estaria naquele momento incapaz de desempenhar suas funções mais tradicionais.

É precisamente o colapso de instituições estatais fortes que começou na URSS no final dos anos 80 e continuou nos estados sucessores nos anos 90 que explica a extensão extrema, se não a profundidade extrema, da recessão transformacional da FSU [Former Soviet Union, antiga União Soviética]. [...] O padrão russo de deterioração institucional provou ser extremamente prejudicial para o investimento e para o desempenho econômico geral (POPOV, 2007, p. 20-21, tradução nossa54).

Os fatores institucionais que não só Popov, como outros autores (GOLDMAN, 2003; STIGLITZ, 2002; MIKHAILOVA, 2013) mencionam, são: a questão da

54 No original: “It is precisely the collapse of strong state institutions that started in the USSR in the late 1980s and continued in the successor states in the 1990s that explains the extreme length, if not the extreme depth of the FSU [Former Soviet Union] transformational recession. […] Russian pattern of institutional decay proved to be extremely detrimental for investment, and for general economic performance.” 124

regulação da cobrança de impostos do setor privado; o controle do mercado ilícito; a proteção da propriedade e dos direitos contratuais, garantindo a execução dos contratos e de um meio judicial para resolver disputas comerciais; procedimentos legais comuns a um sistema de mercado, como regulação do processo de falência ou legislação que garanta a concorrência; as regulamentações que garantam o mínimo de segurança para o sistema bancário; um mercado e um registro de imóveis atuante; além da garantia da “lei e da ordem” de forma geral (houve aumento das taxas de crime e de corrupção no período55). Além disso, havia também a questão das instituições sociais que precisavam ser estabelecidas para proteção dos trabalhadores russos. Na União Soviética não existia um seguro-desemprego formal, por exemplo. Além disso, o sistema de seguridade social soviético era muito ligado às estruturas das empresas. Veremos mais sobre essa estrutura adiante, nos capítulos 3 e 4, quando ocorre o desmonte desses sistemas sociais das empresas durante a privatização. Para Stiglitz (2002, p.179, destaque nosso) “[...] essa estrutura de leis e órgãos ajuda a garantir que os mercados de capitais operem de maneira justa [sic], que os administradores não obtenham vantagem sobre os acionistas nem que os acionistas majoritários obtenham vantagem sobre os minoritários.” Opiniões semelhantes aparecem em:

Lançada no capitalismo, mas carecendo de quase todas as instituições necessárias para fazer o capitalismo funcionar (bancos, sistemas de pagamento, mercados que funcionam efetivamente), a Rússia naquela época era o sonho de um operador de arbitragem, um país com tantas informações incompletas e com tantos mercados incompatíveis que por alguns meses inebriantes, parecia que alguém com poucas conexões e com vontade de negociar poderia ficar rico (FREELAND, 2000, p. 14, destaque e tradução nossos56).

E também:

55 Starodubroskaia (2005) também destaca a questão da corrupção existente nos escalões administrativos e nos foros judiciais – as empresas eram obrigadas a prever em suas despesas os gastos com a “efetividade da lei”. 56 No original: “Thrown into capitalism, but lacking almost every institution it takes to make capitalism work (banks, payment systems, effectively functioning markets), Russia in those days was an arbitrage trader’s wet dream, a country of so much incomplete information and so many mismatched markets that for a few heady months it felt as if anyone with a few connections and a nose for a deal could get rich.” 125

A economia russa foi lançada na anarquia do sistema de mercado com as mãos atadas. Nenhum ambiente competitivo existia, mesmo entre setores relacionados. Não foram adotados padrões legais para as relações de mercado, e faltava a infraestrutura necessária (MEDVEDEV, 2000, p. 20, tradução nossa57).

A crítica da bibliografia sobre a falta de infraestrutura, que seria responsabilidade do Estado estabelecer, parece, em um primeiro momento, ir de encontro com os princípios do modelo neoliberal de economia de mercado, em que o Estado justamente não deveria interferir na economia. Apesar de parecer contraditório, o modelo neoliberal de fato condena a intervenção direta do Estado na economia, mas de forma alguma isso significa que o Estado deva ser fraco. O modelo exige que o Estado forte consiga estabelecer essas instituições que garantiriam o funcionamento “adequado” do mercado. Apesar de aparecer com tanta frequência tal avaliação, podemos questionar até que ponto instituições fortes garantem, de fato, o “bom” funcionamento do mercado. Afinal de contas, é necessário levar em consideração a perspectiva dos autores de que o capitalismo “funciona”, o mercado “funciona”, existe a possibilidade de um mercado funcionando de maneira “justa” – são, no fim, avaliações qualitativas e que revelam um ponto de vista. O “bom funcionamento” da economia é uma verdade universal? Um ponto de concordância, em que todos autores estão pensando o mesmo quando falam “o mercado funciona”? Evidente que não. Instituições fortes garantiriam a proteção aos trabalhadores russos, evitando assim o avanço de um capital “selvagem”? Ou, instituições fortes evitariam a concentração da renda, ou o aumento da desigualdade? Garantiriam a proteção de um sistema de bem-estar social? Evitariam o avanço avassalador do capital especulativo? Seriam suficientes para enfraquecer a formação dos monopólios ou o poder dos grandes grupos financeiros industriais? Ao considerarmos o histórico do capitalismo, especialmente as crises que marcam a trajetória do sistema, percebemos que mesmo países com longos históricos de mercados consolidados, instituições e Estados considerados fortes,

57 No original: “The Russian economy was thrown into the anarchy of the market system with its hands tied. No competitive environment had existed, even among related industries. No legal standards for market relations had been adopted, and the necessary infrastructure was lacking.” 126

que contam com as instituições mencionadas pelos autores acima como “essenciais para o sistema funcionar”, certamente não conseguiram fazer frente às forças do capital. A ideia que os autores apresentam, e que de fato concordamos, é que a economia russa não apresentava nem sequer uma estrutura básica que viabilizasse um ambiente com consenso mínimo sobre seu funcionamento. A falta de definição desses padrões e regulações, combinada com a introdução simultânea de reformas profundas (como haver clareza sobre os objetivos das reformas ou sobre como introduzi-las na prática, em um ambiente de tantas incertezas?), gerou um ambiente de profunda confusão e desorganização e, consequentemente, um declínio acentuado do desempenho econômico.

2.4.6. Breves notas sobre o crescimento do sistema bancário russo

A questão do setor bancário voltará a aparecer no capítulo 3, mas aproveitaremos alguns dos ganchos deixados no presente capítulo para apresentar breves observações sobre o avanço do setor durante a década de 1990. As instituições bancárias atuando na Rússia foram de 6, em 1988, para 1360 em 199158. Em 1994, já eram 2517 bancos. O único que continuou “intacto” durante esse processo, no sentido de não ter sofrido fragmentações, foi o Sberbank, até hoje o maior banco da Rússia e do Leste Europeu, em que o Banco Central Russo é o maior acionista, e o único banco que na época do colapso da União Soviético contava com um seguro estatal sobre os depósitos. Uma parcela considerável das instituições financeiras que surgiram nesse período era extensões dos departamentos financeiros de empresas industriais, os ‘bancos de empresas’, ligados à formação dos grupos industriais-financeiros (ALVES, 2011b, veremos mais adiante). Apesar da marcante crise econômica da década de 1990, um dos poucos setores que continuou lucrativo foi o bancário, com os ganhos provenientes

58 O desenvolvimento sobre as origens do setor bancário ainda durante a União Soviética também foge dos objetivos estabelecidos para o presente trabalho. Uma excelente contribuição sobre o funcionamento do setor bancário ainda durante o período soviético pode ser encontrada em português em Alves (2011b). 127

sobretudo das operações especulativas. Com a deficiência na regulação e supervisão do sistema bancário, combinado com avaliações de risco não confiáveis e uma população não familiarizada com riscos e possibilidades de falência, foi aberto um grande espaço para esquemas fraudulentos que conseguiram se apropriar de muitas poupanças dos russos, ao menos daquelas que ainda não haviam sido corroídas pela inflação (ALVES, 2011b). Esta corrosão das poupanças pela inflação gerou na sociedade russa uma profunda desconfiança com os bancos já estabelecidos. Esta desconfiança, por sua vez, estabeleceu o ponto de partida para que diversos esquemas de pirâmide pudessem florescer na economia russa. Estes esquemas apostavam em campanhas agressivas de propagandas nos canais de TV, oferecendo serviços, e falavam sobre “fundos de investimento”, sendo utilizados para viabilizar a apropriação das poupanças de muitos russos (MEDVEDEV, 2000). Outra importante forma de obter grandes lucros naquele período veio através das oportunidades de intermediação comercial, que surgiram com a integração cada vez maior da economia russa ao mercado mundial. As corporações de trading, que vendiam os recursos russos no mercado internacional, conseguiam lucros enormes como resultado da disparidade entre os preços domésticos e os preços internacionais (disparidade que refletia as diferentes condições de produção). Essas corporações enriqueceram e acumularam muito capital no início da década de 1990 dessa forma, o que levou a um rápido crescimento das empresas de trading e finanças na Rússia (CLARKE, 2007, p. 18). Finalmente, devemos mencionar a questão da dívida pública financiada com a emissão de títulos denominados em rublo, como os GKOs e os OFZs, e em dólar, como os MinFins. Os GKOs são títulos do tesouro russo, com vencimento de 3 a 6 meses, enquanto os OFZs tinham prazos maiores. Ambos tinham taxas de juros reais altíssimas, para assim atrair investidores externos e sustentar a paridade cambial. A Rússia estava seguindo o modelo generalizado nos países da periferia na década de 1990:

Num contexto internacional de desregulação financeira, uma grande quantidade de capital externo de curto prazo fluía para os países da periferia que ofereciam, pelo contrário, taxas de juros em dólar elevadas e tinham realizado a abertura financeira. A Rússia conseguiu, então, atrair fluxos elevados de capital especulativo de curto prazo (MAZAT, 2013, p.145).

128

Com a adoção da estratégia de atrair esses fluxos especulativos, o governo russo estava cada vez mais dependente dos detentores dos títulos da dívida interna (18,7% do PIB em 1997), que se concentravam em um grupo restrito de bancos, o que permitiu que esse grupo exercesse uma poderosa pressão sobre o governo (STARODUBROVSKAIA, 2005). O fato de ter uma estrutura institucional ainda em formação, conforme apresentamos no tópico anterior, foi essencial para garantir o enriquecimento acelerado de uma pequena parcela da população, que viu os furos na regulamentação como uma enorme oportunidade:

Para os empresários mais ricos e bem conectados da Rússia, um Estado debilitado oferecia muitas vantagens: uma agência de cobrança de impostos fraca significava que os impostos podiam ser evitados; juízes empenhados significavam que investidores podiam ser expulsos; funcionários públicos maleáveis significavam que contratos governamentais extremamente lucrativos poderiam ser adquiridos. […] Sem um estado federal em funcionamento, a Rússia desenvolveu uma espécie de capitalismo hobbesiano, de dentes e garras, em que grandes empresas caçavam pequenas, e aparelhos e vigaristas caçavam todos (FREELAND, 2000, p. 21, tradução nossa59).

Dessa forma, é possível notar o papel central do setor bancário como um dos principais envolvidos no processo de acumulação por espoliação, conforme o conceito de Harvey (2005; 2013) apresentado na introdução do presente trabalho. Conforme Harvey menciona, o sistema de crédito controlado pelos bancos e a própria dívida pública são instrumentos importantíssimos para o capital conseguir viabilizar a apropriação dos ativos distribuídos pela economia. Em uma economia ainda fragilizada como a Rússia, e considerando as práticas mencionadas acima de taxas de juros altíssimas, o capital especulativo conseguiu lucros exorbitantes explorando essas fragilidades da economia. Enquanto o desempenho econômico do país declinava, o setor bancário enriqueceu agressivamente, mostrando como

59 No original: “For Russia’s richest, best-connected businessmen, an enfeebled state offered many advantages: a weak tax-collection agency meant taxes could be evaded; bent judges meant investors could be fleeced; malleable civil servants meant extremely lucrative government contracts could be own. […] without a functioning federal state, Russia developed a sort of Hobbesian capitalism, red in tooth and claw, in which big businesses preyed on smaller ones, and apparatchiks and racketeers preyed on everyone.” 129

funciona de forma descolada da economia real e o quão lucrativo é a exploração do próprio declínio econômico.

2.4.7. Modo de inserção da economia russa na economia capitalista global

Como procuramos demonstrar no decorrer deste capítulo, as reformas que são introduzidas na economia russa ocorrem durante o auge do processo de globalização financeira e financeirização da riqueza. A Rússia, ao apostar na liberalização e na inserção sem barreiras ao mercado capitalista global, sofreu também os efeitos desse processo. Com as políticas monetárias que prejudicavam o setor industrial e a capacidade competitiva das exportações russas, a concentração da pauta de exportação no setor de combustíveis e matéria-prima é acentuada. Reforçando o padrão de inserção internacional em torno dos produtos primários, Carmo (2010) aponta que a economia russa ameaçava sua posição no sistema internacional, com a possibilidade de reforçar seu papel de periferia do capitalismo central. O setor de recursos primários, apesar de despontar como o mais avançado dentro da economia russa, dominante na pauta de exportações, não conseguia provocar efeitos multiplicadores na economia e gerar desenvolvimento. Tompson (apud SCHUTTE, 2011) elenca quatro fatores que barram esse efeito multiplicador: 1) a forte apreciação da moeda nacional desestimula investimento em produção nacional e estimula importação de bens; 2) o impacto da volatilidade dos preços internacionais dos recursos primários, sobretudo na situação fiscal; 3) especialização ineficiente devido ao baixo desenvolvimento dos mercados financeiros; 4) impacto sobre a qualidade das instituições, dos processos políticos e da governança – uso da renda capturada para expansão da burocracia por interesses particulares e crescimento de setores dependentes de subsídios. Neste processo de integração da economia russa ao mercado mundial capitalista, um sistema dominado pela dinâmica da acumulação de capital em uma escala global, a primeira etapa da incorporação russa foi através do fornecimento de combustível e matéria-prima, que dominou a pauta exportadora do país. Contudo, isso logo não se mostrou sustentável, deteriorando a economia e a sociedade russa – o que Clarke (2007) chama de fase de pura exploração durou até 1998, quando a 130

crise financeira russa foi determinante para encerrar essa fase de predomínio da exploração do capital rentista. Outro ponto que mencionamos brevemente no tópico anterior, é a questão da integração econômica ao mercado mundial como oportunidade de apropriação de mais-valia para aqueles que lucravam enormemente como intermediários comerciais. Segundo Clarke (2007, p. 18, destaque e tradução nossos60),

[Empresas capitalistas comerciais e financeiras privadas] apropriaram seus lucros estabelecendo o controle monopolista de suprimentos que antes eram prerrogativas do Estado. Eles adquiriram esse controle com base nos direitos que lhes foram atribuídos pelos órgãos estatais e mantiveram seu controle pela corrupção de funcionários do estado e diretores de empresas, apoiados pela ameaça e uso da força. Não se tratava da corrupção de um sistema capitalista ideal; era uma adaptação normal do capitalismo às condições que ele enfrentava.

Assim, ainda segundo Clarke (2007), o excedente que antes era apropriado pelo Estado soviético passou a ser apropriado pelos novos capitalistas russos e seus parceiros estrangeiros. No período soviético, a apropriação era realizada através do sistema de comando central do Estado. Com o colapso da União Soviética, passou a ser realizada através dos mecanismos de mercado. Um problema desta transformação é que a administração estatal soviética conciliava essa apropriação com um aparato burocrático que garantia as condições de reprodução expansiva do próprio sistema. A nova forma de apropriação baseada no capitalismo de mercado não tinha os mecanismos para garantir a reprodução do sistema de produção – e nada foi feito para renovar a base industrial russa de forma que viabilizasse o capital industrial russo a competir no mercado mundial. Indo ao encontro do argumento de Clarke, Kagarlitsky (2002) também apresenta uma análise de como o capitalismo se adaptou às condições que encontrou na Rússia. A Rússia pós-colapso soviético conseguiu, segundo o autor, concluir o principal objetivo dos reformistas, de adotar o sistema de um país capitalista, fazer parte da economia capitalista global, do mercado de capital mundial

60 No original: “[Private commercial and financial capitalist enterprises] appropriated their profits by establishing the monopoly control of supplies which had formerly been the prerogative of the state. They acquired this control on the basis of rights assigned to them by state bodies and they maintained their control by the corruption of state officials and enterprise directors, backed up by the threat and use of force. This was not a matter of the corruption of an ideal capitalist system, it was a normal adaptation of capitalism to the conditions it confronted.” 131

e da divisão internacional do trabalho. Mesmo carregada com as heranças do período soviético, como o coletivismo burocrático e as relações corporativistas – essas estruturas que parecem atrasadas, ou não adequadas ao modelo capitalista conforme a definição do modelo neoliberal, não configuram barreiras ao desenvolvimento do capitalismo. Concordamos com o autor que, ao contrário, tais estruturas são um elemento importante do capitalismo russo, uma espécie de vantagem comparativa para o modelo de apropriação e exploração que foi organizado no país, e importantes para manter a sociedade estabilizada. Também nesse sentido, a economista Galina Rakitskaya (apud MEDVEDEV, 2000) procura mostrar que as reformas, ao resultarem em um empobrecimento da população russa e na deterioração do setor industrial russo, não foram um fracasso. Muito pelo contrário, teriam resultado exatamente no que os seus idealizadores esperavam, sobretudo aqueles ligados ao FMI e ao capital internacional. Seguindo a lógica de estabelecer aspectos “atrasados” da economia para garantir uma vantagem para a valorização do capital, as reformas conseguiram transformar a economia russa em uma fonte de mão de obra barata e, principalmente, de matéria- prima barata. Além disso, conforme Harvey (2005; 2013) explora ao trabalhar o conceito de acumulação por espoliação, uma das práticas vinculadas à atuação do FMI (e das outras instituições internacionais financeiras) é a de orquestrar crises para, dessa forma, desvalorizar os ativos que serão apropriados pelos detentores do capital e utilizados para sua reprodução, facilitando assim o acesso a esses ativos. Assim, quando Gaidar ou Chubais defendem o sucesso das reformas, apostam no discurso de como a escassez de bens de consumo acabou (se a população tinha condições materiais de consumir os bens ofertados, é outra história), como o setor de serviços também cresceu rapidamente, e como tiveram sucesso na formação de um sistema de instituições financeiras e outros elementos básicos da infraestrutura de mercado61. Para cerca de 10% da população, houve uma melhora na qualidade de vida.

61 “[...] bancos comerciais, bolsas de commodities, mercados de valores mobiliários e títulos do governo, mercados de moedas estrangeiras, companhias de seguros, fundos de pensão e um corpo de árbitros, notários e advogados que lidam com casos civis” (MEDVEDEV, 2000, p. 139, tradução nossa). 132

Para Medvedev (2000), os resultados das reformas foram uma combinação de incompetência e voluntarismo dos que estavam no poder, da sua incapacidade de prever e evitar consequências negativas. Outro elemento que o autor destaca é a constante determinação dos reformistas de destruir todas as estruturas prévias, levar a economia russa para um ‘ponto sem retorno’ – o autor menciona que essa motivação aparece sobretudo nos resultados e no curso da privatização “[...] cujo caráter absurdo e destrutivo parece desafiar qualquer explicação racional” (MEDVEDEV, 2000, p. 145, tradução nossa62). Apesar da posição econômica fragilizada que a Rússia assume durante a década de 1990, muito mais vulnerável às movimentações do capital financeiro internacional, e estabelecendo uma relação de dependência com a entrada dos capitais especulativos, acreditamos que é difícil reduzir o país ao papel de periferia do capitalismo global. Não cabe tratar de um conceito tão complexo aqui, correndo os riscos de sermos levianos com o rigor teórico necessário para dar conta da discussão, mas a questão é que a Rússia assume, no sistema internacional, um papel muitas vezes contraditório e de difícil definição. Ainda que a incorporação da Rússia ao mercado capitalista global tenha significado uma grande vitória do capitalismo, a abertura de um grande terreno para a exploração, e o predomínio da lógica de acumulação dos países centrais do sistema capitalista em detrimento dos interesses econômicos nacionais, ao mesmo tempo os russos continuaram tendo um dos maiores aparatos militares do mundo, e assumiram os compromissos internacionais soviéticos63 que, de uma maneira ou de outra, colocavam o país como protagonista no palco das relações internacionais. As contradições e incertezas sobre o papel da Rússia nesse período serão determinantes para a ascensão de , a partir de 1999, e uma importante base para os sentimentos de nacionalismo e resgate histórico que garantem a sua força. A principal consideração final que trazemos do presente capítulo é como foi o contexto da inserção da economia russa ao sistema capitalista global – e como o

62 No original: “[…] whose absurd and destructive character seems to defy all rational explanation.” 63 A Federação Russa assumiu os compromissos internacionais soviéticos sobre desarmamento com os Estados Unidos, a posição soviética no Conselho de Segurança da ONU, e as dívidas externas contraídas por todas as ex-repúblicas (POMERANZ, 2018).

133

controle da economia passou do Estado soviético a uma nova geração de proprietários privados. O processo de formação dessa classe de proprietários privados é o que buscaremos compreender no próximo capítulo.

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3. A privatização da economia russa

Após setenta anos de uma economia controlada pelo Estado, em que essencialmente todas unidades econômicas eram estatais, a Rússia adentrou o período de reformas da década de 1990 com o desafio de privatizar toda a sua economia. No presente capítulo, buscaremos apresentar como foi o processo de privatização da economia russa – ou seja, apresentar quais foram os planos do governo Yeltsin para alcançar o objetivo de ter uma economia majoritariamente privada. Para ilustrar o tamanho do desafio enfrentado pelos reformistas russos, Pomeranz (1995, p. 78) afirma que “o número de empresas estatais na indústria em começos de 1991 era de 45.900; na agricultura existiam 23.300 sovkhozes e 27.900 kolkhozes; na construção, 3.400 trusts e organizações subordinadas; e no comércio retalhista e serviços, 572.000 e 690.000 estabelecimentos respectivamente.” Além da universalidade do setor estatal, outro desafio que se apresentava era a extrema concentração da propriedade – houve um movimento de fusões durante o governo Brejnev que gerou um grau de concentração econômica que a autora considera “sem precedentes”. Para os reformistas, as condições iniciais do processo determinaram suas maiores dificuldades. Os responsáveis pelo delineamento das reformas precisaram lidar com a ausência de uma série de elementos que compõem uma economia de mercado, e que ainda precisavam ser inseridos na economia (e o plano era inseri- los, mas simultaneamente à realização do processo de privatização): 1) a ausência de poupança privada, ou seja, a acumulação de recursos para investimento fora do Estado (havia poucos recursos disponíveis entre a população, e as empresas russas antes da perestroika não tinham capital acumulado para investimento – não era papel delas) (POMERANZ, 1995); 2) a ausência de cultura empresarial construída em princípios de uma economia de mercado – apesar da existência de uma economia subterrânea na União Soviética, um mercado ilícito, essa se organizou com base na corrupção e na associação com agentes estatais e deu lugar ao surgimento de organizações criminosas; e 3) novas empresas privadas surgindo completamente desprovidas de qualquer instrumento regulatório – a estrutura básica de códigos que regulariam o funcionamento das empresas foi surgindo ao mesmo tempo em que as reformas foram introduzidas. 135

Ainda além dos pontos mencionados, com o colapso do sistema soviético de comando e o momento de “caos” administrativo, que marca sobretudo os anos de 1990 e 1991, as empresas se encontraram em uma posição de incerteza. Excetuando as poucas empresas que foram privatizadas antes de 1991, e as que foram oficialmente entregues aos coletivos de trabalhadores (ver adiante), na prática todas as outras empresas ainda pertenciam ao Estado, mesmo que o Estado não estivesse mais com capacidade para administrá-las na prática. Os diretores gerais receberam uma espécie de carta branca para administrarem e cuidarem do patrimônio do Estado e de seus recursos da forma que eles considerassem correta. Apesar dessa liberdade, os diretores ainda não tinham direito sobre a propriedade de fato, e a legitimidade da sua posição dependia diretamente do apoio dos gerentes (equipe administrativa) e dos trabalhadores (CLARKE, 2007). Esse processo dos diretores gradualmente tomarem controle de suas empresas é apontado por Mau (1999) como um dos motivos que levou os reformistas a apostarem em um plano de privatização acelerada, para que o governo pudesse tentar retomar o controle sobre a distribuição da propriedade e não deixar esse processo inteiramente nas mãos do antigo grupo de dirigentes soviéticos. De acordo com McFaul (1995), diversos diretores, especialmente os que controlavam as maiores empresas, usaram suas redes de contatos, seu poder de influência local e até mesmo subornos para conquistar acordos especiais com o governo, que viabilizassem planos de privatização que fossem mais favoráveis para seus interesses. Ainda sobre essa influência dos diretores e de grupos políticos sobre o processo, ganhou bastante notoriedade o que ficou conhecido como “privatização espontânea” ou “privatização da nomenklatura”. Apesar de parte da bibliografia tratar os dois termos como sinônimos, Boycko et al. (1995) destacam uma diferença entre os dois processos. Segundo os autores, a privatização da nomenklatura seria o modelo de venda das empresas públicas para pessoas diretamente ligadas ao bloco dirigente do poder político, seus aliados, e indivíduos com cargos importantes. Ainda que os reformistas não considerassem esse modelo ideal, os autores relatam que tal 136

estrutura de propriedade era considerada melhor do que um setor público, já que dessa forma os proprietários, ainda que ligados à vida política, seriam obrigados a lidar com os custos de sua ineficiência. O problema apontado por Boycko et al.64 é que essa forma de privatização não levaria à completa despolitização da economia, a não ser que os políticos ligados a essas novas empresas privadas sejam afastados da vida política. A privatização espontânea, por outro lado, seria o processo de permitir que os diretores se apropriassem dos ativos que já controlavam. A privatização espontânea, assim, foi praticada em certa medida conforme os diretores desviaram ativos das empresas estatais sob seu controle para as empresas privadas que fundaram. “Em 1991-1992, era comum para uma empresa vender os supostos ‘ativos excedentes’, ou até mesmo a produção final, por preços menores para uma empresa que era propriedade privada do diretor” (BOYCKO et al., 1995, p. 60, tradução nossa65). Esse tipo de prática justifica a tentativa do governo de retomar o controle sobre o processo de distribuição da propriedade. Segundo os autores, os políticos não eram favoráveis a essa súbita perda de controle sobre as empresas, e por isso ofereciam certa resistência a essas práticas. Além disso, o “público” também tenderia a ver como uma forma de roubo dos ativos públicos. Os modelos formulados pelos reformistas de Yeltsin buscaram uma forma de fazer essa transferência dentro da “legalidade” e conquistando uma base maior de apoio. Conforme trabalhamos no capítulo anterior, as reformas do governo Yeltsin foram lideradas principalmente por Yegor Gaidar e Anatoly Chubais, com a aposta na fórmula da “terapia de choque”. Os reformistas acreditavam que com esse plano de reformas, seria possível romper de forma total e rápida com o passado soviético, gerando espontaneamente uma economia de mercado e as instituições necessárias para o seu funcionamento. Dentro desse quadro, e segundo a lógica neoliberal dos reformistas, a privatização deveria ser feita da forma mais rápida possível, para aproveitar-se da janela de oportunidade política trazida pelo colapso soviético e pela

64 Maxim Boycko, e Robert Vishny participaram ativamente da equipe de reformistas que elaborou o plano de privatização na Rússia. 65 No original: “In 1991-1992, it was common for a firm to sell so-called surplus assets, or even final output, at a discount to a company privately owned by the manager.” 137

ascensão do grupo político de Yeltsin ao poder. Ou seja, tornar a privatização um processo irreversível, protegendo-se caso os comunistas retomassem o poder. Clarke (2007) vai ao encontro deste argumento, afirmando que a prioridade do governo russo era privatizar a maioria das empresas estatais o mais rápido possível, minando assim as possibilidades de retorno ao antigo sistema soviético. Assim, a privatização foi realizada abruptamente, justificada com a necessidade de criação de uma classe de pessoas que estariam interessadas em defender a propriedade privada e impediriam qualquer alternativa de retorno ao passado. “Ou seja, a preocupação central era política e por isso procedeu-se à privatização rapidamente, sem a criação dos institutos regulatórios necessários para fundamentar a atuação dos novos agentes econômicos privados” (POMERANZ, 2005, p. 340, destaque nosso). Por essa preocupação política ser a prioridade dos reformistas, Kagarlitsky (2002) vai apontar como desde o início a redistribuição da propriedade estatal russa acabou condenada a seguir uma lógica essencialmente contrária aos princípios de mercado. Como já afirmamos, não havia na Rússia poupança privada acumulada o suficiente para comprar a propriedade colocada à venda no mercado – portanto, a distribuição foi muito mais um ato administrativo do que um símbolo da vitória do mercado. Veremos neste capítulo primeiramente como as reformas de Gorbachev lançaram as primeiras sementes para o desenvolvimento de um setor privado. Depois, mergulharemos no período Yeltsin e na descrição do processo de privatização que é desencadeado durante seu governo. Buscaremos apresentar os principais resultados desse período e, por fim, mostrar como esse processo foi essencial para a formação de um grupo de proprietários (conhecidos como oligarquia russa) que tomaram controle das maiores e mais importantes empresas russas, acumulando um grande poder econômico e, posteriormente, político. Nesse contexto, os atores envolvidos na luta pela privatização não podem ser reduzidos a políticos, o “público” de forma geral, e os diretores das empresas. Outros atores importantes foram, por exemplo, os coletivos de trabalhadores e os governos regionais que também desempenharam influência no processo.

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3.1. Sementes da privatização no governo Gorbachev

Na presente seção, buscaremos resgatar alguns elementos das reformas de Gorbachev que podem ser apontados como o início da privatização, ainda que de forma gradual e embrionária. Conforme trabalhamos em nosso primeiro capítulo, ainda que a perestroika não tivesse como um dos seus objetivos explícitos a privatização da economia, um dos passos para a reconstrução econômica planejada por Gorbachev era a introdução da iniciativa privada, sobretudo o desenvolvimento de um setor privado que alavancasse pequenos empreendimentos e a prestação de serviços. A questão da propriedade na União Soviética ainda era abordada de forma mais cautelosa, por razões ideológicas e políticas. Por isso, foi gradualmente que Gorbachev passou a introduzir leis que ditavam sobre a formação de um setor privado. Retomando brevemente algumas das ideias já trabalhadas no capítulo 1, podemos destacar algumas das leis soviéticas do período de Gorbachev que introduziram os primeiros elementos de privatização na economia estatizada – a “Lei sobre a atividade econômica individual”, aprovada em 1986; a “Lei sobre a empresa estatal”, aprovada em 1987; uma das leis mais importantes nesse processo, a “Lei sobre as cooperativas”, que abriu caminho para a formação de muitas cooperativas que foram o princípio da acumulação de capital no contexto soviético; e a “Lei sobre a propriedade”, essencial também para dar início ao processo de privatização das empresas estatais. Segundo Pomeranz (2018), o estabelecimento dessas leis (combinado com o quadro econômico e político que estava sendo criado através das reformas) determinou o início da disputa pela propriedade estatal, que vai continuar durante o período após o colapso soviético nas reformas do governo Yeltsin. Com a “Lei sobre a empresa estatal”, os diretores das empresas receberam uma grande autonomia, e passaram a atuar basicamente como proprietários, com bastante liberdade de decisão sobre a produção das empresas, a relação com fornecedores, e até mesmo o direcionamento de parte da produção e seu preço. Os diretores puderam combinar essa nova autonomia com as oportunidades que surgiram com as cooperativas, e passaram a desviar os fundos do setor estatal para cooperativas e firmas privadas que haviam estabelecido com o apoio da legislação supracitada. A privatização dos lucros antecipou a privatização da propriedade. Essa 139

forma de apropriação foi importante para enriquecimento de uma camada da população (KAGARLITSKY, 2002, p. 92). A ideia da “Lei sobre a empresa estatal” era de descentralizar parte do controle da produção, alocando mais direitos de controle nas mãos dos diretores das empresas, para que eles pudessem “racionalizar” a produção e reduzir o desperdício. Gorbachev sistematicamente transferiu a autoridade dos ministérios, removendo dessas instituições os seus mais importantes direitos de controle (como o direito de indicar os diretores das empresas, que passou a ser decidido pelos coletivos das próprias empresas, e o direito de estabelecer os planos de produção e alocar os insumos66) (BOYCKO et al., 1995). Como os diretores receberam esses direitos de controle, eles reagiram aos novos poderes buscando lucrar pessoalmente – e para alcançar tal objetivo, “[...] a estratégia mais natural foi o desvio de ativos e de produtos” (BOYCKO et al., 1995, p. 39, tradução nossa67). Essa prática gerou um profundo impacto nas cadeias de produção, afetando o fornecimento de material, por exemplo. A mudança na estrutura de controle das empresas mais golpeou o setor estatal do que ajudou a desenvolver o setor privado. Associados diretamente com essas práticas estão os caminhos que surgiram com a “Lei sobre as cooperativas” de 1988, o verdadeiro nascimento do setor privado na URSS. As cooperativas tinham autorização para funcionar como empresas privadas, e não tinham qualquer ligação com o planejamento estatal. “As cooperativas também tinham o direito de desenvolver atividades de serviços de crédito, ou seja, elas podiam se constituir no embrião de um sistema de instituições financeiras privadas [...]” (SERRANO; MAZAT, 2013, p. 815, destaque nosso). Além disso, as cooperativas também tinham autorização para participar do comércio exterior, e eventualmente foi autorizada a participação em joint ventures com empresas estrangeiras, a contratação de funcionários não-membros da cooperativa (noção de emprego privado assalariado), e não havia sido estabelecido qualquer teto de limite dos ganhos da cooperativa.

66 Ver mais sobre o funcionamento dos coletivos, dos sindicatos e das relações sociais no setor industrial russo em: ASHWIN, S.; CLARKE, S. (2002). 67 No original: “[…] most natural strategy was asset and output diversion.” 140

A autorização da formação das cooperativas serviu também para legalizar parte das atividades que já eram desempenhadas na chamada “economia subterrânea”, ou seja, atividades privadas que já estavam em andamento de forma ilegal no período soviético, especialmente atividades privadas ligadas ao setor de serviços. A oportunidade das cooperativas não só conferiu um status empresarial a tais atividades, mas também estabeleceu uma maneira de legalizar o seu dinheiro (POMERANZ, 1995).

As leis de Gorbachev sobre cooperativas, pequenos negócios e arrendamentos, ofereceram boas oportunidades. Nas empresas menores, os diretores frequentemente utilizaram as leis de cooperativas para estabelecer firmas privadas que serviram de destino para desvios dos lucros das empresas que controlavam – e depois esses desvios foram usados para comprar as ações da própria empresa (FORTESCUE, 2006, p. 44, tradução nossa68).

A princípio, o objetivo da lei das cooperativas era construir negócios pequenos que ajudariam a suprir a demanda por bens e serviços que as grandes estatais não estavam oferecendo. Na realidade, as cooperativas se tornaram posteriormente grandes empresas (como veremos no tópico 3.4, ao retomar as origens dos grandes proprietários russos), se popularizaram muito e deram origem a muitas empresas capitalistas. Uma prática comum (e que aparece brevemente na citação acima de Fortescue) foi a criação de cooperativas por funcionários e gerentes das estatais, que compravam os bens vendidos pela estatal onde ainda trabalhavam, a preços fixados pelo Estado, processavam o material de alguma forma (quando possível), e vendiam a preços livres, ou até no mercado ilícito. Tal prática piorava ainda mais a situação de escassez de bens de consumo e bens de capital. “[...] muitos gerentes de empresas estatais se tornaram verdadeiros capitalistas e acumularam muita riqueza rapidamente graças a suas atividades paralelas em cooperativas” (SERRANO; MAZAT, 2013, p. 816). O decreto sobre a atividade de comércio exterior do Estado, das cooperativas e de outras empresas, adotado em dezembro de 1988, eliminou uma série de

68 No original: “Gorbachev’s legislation on cooperatives, small enterprises and leasing, all provided good opportunities. In smaller enterprises management often set up under cooperative legislation private firms into which enterprise earnings were siphoned and then used to buy shares in the enterprise.” 141

controles estritos sobre o comércio exterior – e aumentou ainda mais as oportunidades de obter riqueza acumuladas nas mãos dos gerentes estatais. “[...] muitas cooperativas compravam bens (especialmente matérias-primas, metais, gasolina) a preços domésticos tabelados e vendiam-nos no exterior, em divisas, a preços bem maiores” (SERRANO; MAZAT, 2013, p. 816). Conforme vimos acima, a legislação aprovada durante as reformas de Gorbachev foi importante para encaminhar um processo que ficou notoriamente conhecido como “privatização espontânea” ou “privatização da nomenklatura”, e apresentamos a distinção estabelecida entre os dois conceitos por autores como Boycko et al. (1995). Os exemplos que mencionamos de gerentes utilizando cooperativas para desviar recursos das estatais sob seu controle faria referência, nesse caso, ao processo de privatização espontânea. O fato é que muitos diretores se encontravam com um grau de independência que não tinha precedentes, com controle sobre questões financeiras e produtivas – e, ao mesmo tempo, com o desafio de tentar sobreviver sem os subsídios do governo e sem o auxílio dos planos como guias. Acreditamos que os dois termos dão conta de descrever um processo de buscar apropriar-se dos ativos do Estado através dessas “janelas de oportunidade” que se apresentam de forma escusa, sem tomar a forma de um processo de privatização de fato assim regulamentado. Segundo Pomeranz (2018), essa onda de privatizações iniciada no período Gorbachev ocorreu, essencialmente, em quatro movimentos: 1) início do processo de conversão das empresas estatais em sociedades anônimas; 2) a conversão dos ministérios setoriais em associações estatais intersetoriais e complexos empresariais (exemplo do Ministério da Indústria do Gás, que foi transformado na Gazprom69 – o então ministro Viktor Chernomyrdin assumiu o cargo de presidência da empresa); 3)

69 Em agosto de 1989, o Ministério da Indústria do Gás soviético foi transformado em uma corporação, a . Essa decisão manteve intacta a estrutura concentrada do controle sobre todos ativos ligados ao Ministério, garantindo que não seriam divididos e espalhados para diversos compradores (diferente do Ministério do Petróleo, que foi fragmentado em diversas corporações que foram posteriormente privatizadas). O Estado soviético (e, logo após o colapso da União, o governo russo) controlava todas as ações da Gazprom, mas gradualmente vendeu algumas ações para agentes privados. Viktor Chernomyrdin, que era Ministro da Indústria do Gás desde 1985, foi nomeado presidente e CEO da companhia. A iniciativa de constituir a Gazprom veio em parte do próprio Chernomyrdin (GOLDMAN, 2008). 142

constituição em 1986 da Economia de Komsomol70, com Centros de Criatividade Científica (esses centros de criatividade tinham autorização para desempenhar uma série de atividades econômicas e prestar serviços); e 4) criação, dentro das empresas, de unidades comerciais independentes, especializadas na prestação de serviços (marketing, vendas e etc.) (POMERANZ, 2018). De forma geral, as medidas do período Gorbachev geraram uma profunda divisão dos direitos de controle entre as agências do governo. Ainda que a legislação tenha procurado diluir esses direitos para as empresas ganharem autonomia, os cargos políticos continuavam poderosos, mantendo o controle ainda sobre algumas das licenças de importação e exportação, e controlando a alocação de recursos críticos como energia ou, mais importante, o direcionamento dos subsídios do governo.

Sem o Partido Comunista coordenando as atividades das diversas agências, cada uma delas simplesmente buscou formas de expandir seu controle sobre as empresas, e a sobreposição de regulamentos se proliferou de forma desenfreada (BOYCKO et al., 1995, p. 40, tradução nossa71).

Um dos maiores entraves das reformas iniciadas por Gorbachev, conforme discutido no primeiro capítulo do trabalho, foi a sua introdução gradual e a dificuldade de disseminar as medidas de forma uniforme na economia, alcançando os resultados esperados. Além disso, suas medidas sofriam diversos reveses políticos, dificultando sua eficácia e contribuindo para o clima de incerteza e caos. Essas “idas e vindas” acabam brecando a possibilidade de dinamizar a economia, sendo que este era justamente o objetivo principal das reformas, e facilitando o controle e a autonomia dos diretores sobre a propriedade estatal. Nos últimos momentos da era soviética, o controle dos ativos e da propriedade estatal foi alvo de alguns dos principais conflitos. Não só o aparato administrativo estava buscando formas de manter o seu poder e de transferir a propriedade dos ativos para seu próprio grupo, como também os diretores buscavam

70 Komsomol (abreviação de Коммунистический Союз Молодёжи) era a organização política voltada para os jovens da União Soviética. 71 No original: “Without the Communist Party coordinating the activities of the various agencies, each one simply sought to expand its control over firms, and overlapping regulations proliferated rampantly.” 143

assumir o controle total da propriedade, e outros indivíduos buscavam janelas de oportunidade para conseguirem algum “pedaço desse bolo” – pessoas com cargos executivos mais baixos, aqueles que conseguiram enriquecer na economia ilícita, e outros profissionais que buscavam alternativas de enriquecimento (LANE; ROSS, 1999). Tal disputa vai ser prolongada e intensificada no período após o colapso soviético. Devemos enfatizar a importância das sementes lançadas por Gorbachev para o processo de privatização da economia russa. As leis que caminharam em direção à privatização no período de Gorbachev, ainda que não fossem o objetivo central da perestroika, foram instrumento para definir os parâmetros e o ambiente em que a privatização tomaria forma de fato. Em julho de 1991, nos últimos meses de existência da União Soviética, o Soviete Supremo já havia aprovado a lei sobre “desestatização e privatização”, autorizando as repúblicas a buscarem seus próprios caminhos para a privatização. Após essa lei, a República Socialista Federativa Soviética da Rússia (RSFSR) assumiu o controle sobre o processo e pôde construir medidas mais concretas que sinalizavam que a privatização assumiria um dos espaços centrais das reformas. Foram estabelecidas duas agências que seriam fundamentais para o processo de privatização a partir de 1992: o Comitê da Propriedade Estatal (GKI), e o Fundo da Propriedade Estatal Russa (RFFI). O GKI se espalhou pelo território russo, classificando as empresas entre federação, regiões, municípios, e transformando as empresas em corporações e sociedades anônimas, em que o Estado detinha a propriedade das ações. Em novembro de 1991, Chubais entrou em cena, sendo nomeado chefe do GKI e “Ministro da Privatização” (GOLDMAN, 2003). Após a definição das condições e dos principais personagens do processo de privatização nesse período, a partir de 1992 tal processo será conduzido de forma mais concreta durante o governo Yeltsin.

3.2. Planos de privatização do governo Yeltsin

Com o fim da União Soviética, a equipe econômica do governo russo precisou enfrentar uma situação de profundas transformações. As reformas iniciadas ainda no período soviético, com a perestroika, deveriam ser aprofundadas e passariam a ter um escopo ainda maior. O programa de reformas que deveria ser introduzido na Rússia foi baseado em uma estratégia de choque para lidar com a situação: um 144

contexto de queda na produção, agudização da inflação aberta e da inflação disfarçada na insuficiência quase total de abastecimento e de bens, a dívida externa acumulada de 81 bilhões de dólares em novembro de 1991, além das condições institucionais de “pseudomercado” nas quais operavam as empresas (distorções no sistema de preços, e ausência de um sistema monetário e fiscal considerado adequado) (POMERANZ, 2000). Parte importante desse programa de reformas era a questão da privatização da economia que era, até então, essencialmente controlada pelo planejamento estatal. No período soviético, as reformas estavam limitadas ao quadro do sistema vigente. O livre curso de reformas com objetivo de construir um sistema capitalista de economia de mercado só poderia ocorrer com o fim da URSS, com a “supressão” do obstáculo político representado pelo Partido Comunista. Sem as limitações ideológicas, as transformações econômicas estruturais introduzidas a partir do fim de 1991 puderam incorporar inteiramente como uma de suas bases a questão da privatização. O discurso oficial do governo passou a ser explicitamente a favor da privatização da propriedade estatal, e esse processo deveria ser realizado no quadro da “terapia de choque” adotada pelo governo para estabilização econômica e ajustamento estrutural (POMERANZ, 1995). O plano para construir a economia de mercado e a “estabilização” econômica nos moldes da terapia de choque começou com a liberação de preços, logo no primeiro dia de janeiro de 1992, como vimos no decorrer do capítulo 2. Além disso, o governo russo adotou uma série de compromissos com o FMI – dentre eles, a redução do déficit orçamentário da Federação, a proposta de uma política monetária restritiva, a liberalização do comércio exterior e de câmbio, e também a preparação de um programa de privatizações. Apesar dos planos e programas do governo terem sofrido críticas e mudanças no percurso, sua base permaneceu essencialmente a mesma, sendo a base da política econômica, com ajustamentos, avanços e recuos provocados pelas condições da conjuntura econômica ou por embates políticos em torno da sua implementação (POMERANZ, 2000). Ainda em novembro de 1991, Gaidar recomendou o nome de Anatoly Chubais para chefiar o GKI, e Chubais foi o responsável por delinear o plano. Chubais contou com a participação de diversos consultores ocidentais, que estavam profundamente alinhados com os princípios da terapia de choque que deveriam nortear a condução das reformas. Dentre os participantes que ganharam mais notoriedade, podemos 145

mencionar Andrei Shleifer, professor em Harvard especializado em finanças e governança corporativa, Maxim Boycko, economista russo, Jonathan Hay, formado em Direito em Harvard e que escreveu várias das regulações utilizadas na privatização russa, e Robert Vishny, economista da Universidade de Chicago (GOLDMAN, 2003). O programa de privatização do governo Yeltsin foi introduzido em duas grandes fases: a primeira fase de privatização em massa foi marcada pela utilização dos vouchers e pela enorme quantidade de empresas que passaram a funcionar como propriedades privadas; e a segunda fase, quando foram realizados os chamados “empréstimos-por-ações”, momento em que as maiores e mais importantes empresas estatais russas também foram privatizadas. Dedicaremos adiante tópicos específicos para tratar em detalhes sobre essas duas fases. Contudo, antes disso, pretendemos aqui realizar um balanço geral dos acontecimentos que cercaram e influenciaram a elaboração do programa de privatização da economia russa. Como chefe do GKI, Anatoly Chubais foi o responsável por delinear o plano de privatização, e tinha o desafio de fazer com que o Soviete Supremo, eleito em 1989 ainda sob o sistema soviético, aprovasse a sua proposta. O Soviete Supremo ainda tinha uma presença significativa dos principais políticos do antigo regime, oficiais de “alta patente” do Partido Comunista e diretores das maiores empresas do país. Esses grupos se mostraram, em diversas ocasiões, contrários à trajetória que as reformas estavam tomando. O conflito entre os reformistas responsáveis pelo programa de reformas e o Soviete Supremo era eminente, e refletiu em uma série de concessões cedidas por Chubais no decorrer no delineamento do plano de privatização – apesar dessas concessões, os conflitos permaneceram e o acúmulo de tensões culminou no confronto entre o parlamento e o Kremlin em 1993 (FREELAND, 2000). O programa de privatização do novo governo russo, que foi aprovado em julho de 1992, estabeleceu uma série de parâmetros para o encaminhamento do processo: distinguiu pequenas e grandes empresas para estabelecer formas e prazos distintos para a sua privatização; definiu os direitos de propriedade nos diversos níveis de autoridade (municipal, regional, federal); consolidou as funções do GKI, agência que ficou responsável pela condução do programa; classificou empresas estratégicas, cuja privatização seria postergada; definiu formas de se 146

proceder à privatização; fixou normas de distribuição dos recursos obtidos da privatização; determinou as condições de participação do capital estrangeiro no processo (POMERANZ, 2000; POMERANZ, 1995). Chubais identificou como objetivo principal do programa de privatização a transferência da maior quantidade de propriedades, da forma mais rápida possível, do setor estatal para o setor privado. Se haveria benefícios ‘secundários’, como a garantia de maior eficiência das empresas privadas, ou se haveria justiça social e uma redistribuição mais justa da propriedade estatal, não era o foco dos reformistas naquele momento, e tais potenciais benefícios seriam ‘sacrificáveis’ na busca de seu objetivo central (FREELAND, 2000). Medvedev (2000) traz um relato de que Chubais, ao ser entrevistado em 1994 na televisão russa, teria mencionado que o objetivo da privatização era a construção do capitalismo na Rússia em pouco tempo, de forma agressiva72. Não só Chubais, como também Gaidar destacava a emergência que era realizar a privatização. Os líderes reformistas defendiam a necessidade de agir o mais rápido possível para interromper a desintegração da economia que estaria em curso, e também para prevenir que os comunistas tentassem retomar o controle estatal e restituir o comunismo, o controle central e a propriedade estatal. Goldman (2003) cita as obras de Gaidar e Chubais73, em que os reformistas evidenciam como essa era de fato a principal preocupação. Também estavam preocupados com a falta de disciplina dos trabalhadores e a dificuldade de manter o cumprimento da lei, dada a desintegração do controle estatal e o clima econômico cada vez mais caótico, e acreditavam que proprietários privados conseguiriam controlar melhor a situação, com o foco de proteger suas propriedades. Na obra publicada por Boycko, Shleifer e Vishny (BOYCKO et al., 1995), os autores deixam evidente que a prioridade no plano de privatização era a despolitização das empresas, ou seja, eliminar as ligações entre os diretores das

72 “O objetivo da privatização era construir o capitalismo na Rússia e fazê-lo em alguns anos de ataque frontal, alcançando assim as normas de produção que levaram séculos ao resto do mundo” (Fala de Chubais no programa televisivo “Podrobnosti” [“Details”]. 29 de junho, 1994 apud MEDVEDEV, 2000, p. 88). 73Ver mais: CHUBAIS, A. (1999); GAIDAR, Y. (1999).

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empresas e os membros do grupo dirigente do poder político. Os autores ainda questionam os críticos que apontavam que uma privatização gradual seria mais adequada, acompanhada com uma reestruturação das empresas que pudesse prepará-las para o processo ou gerar receitas para o orçamento do governo – os autores argumentam que: [...] se a influência política é a principal causa de ineficiência, então é absurdo confiar aos ministérios, ou aos bancos de investimento que eles designem, a missão de encontrar parceiros estrangeiros ou de reestruturar empresas e indústrias inteiras. [...] o objetivo de estabelecer um sistema de governança melhor era claramente subordinado ao objetivo de despolitização (BOYCKO et al., 1995, p. 12, tradução e destaque nossos74).

Esse trecho traz algumas reflexões interessantes. Primeiro, aos que argumentam que a privatização seria uma forma de alcançar uma administração “mais eficiente” das empresas, os próprios autores ligados à elaboração do plano de privatização afirmam que essa não era a preocupação central do processo. Segundo, é interessante questionar qual seria, para os autores, a fonte da legitimidade para conduzir esse processo de distribuição da propriedade estatal, se os ministérios ou atores políticos de forma geral estavam “contaminados” com seus interesses particulares de controle sobre a economia. O formato final do plano estabelecido levou em consideração os desafios políticos e realizou uma série de concessões também políticas para garantir que o projeto fosse, de fato, introduzido. Ainda sobre a questão do objetivo central da privatização, os autores escrevem: Muitos escritores sobre privatização no Leste Europeu e na Rússia não viam a despolitização como o objetivo principal da privatização, e focaram, em vez disso, no estabelecimento de uma governança efetiva como objetivo basilar. Acreditamos que controlar os diretores não é tão importante quanto controlar os políticos, uma vez que os interesses dos diretores geralmente estão mais próximos da eficiência econômica do que os interesses dos políticos. Uma vez que a despolitização tenha sido alcançada, o objetivo secundário de estabelecer governança corporativa eficaz pode ser abordado (BOYCKO et al., 1995, p. 65, tradução nossa75).

74 No original: “[…] if political influence is the main cause of inefficiency, then it is absurd to trust the ministries, or the investment bankers they designate, with finding foreign partners or with restructuring firms and entire industries. [...] the goal of a better corporate governance system was clearly subordinate to that of depoliticization.” 75 No original: “Many writers on privatization in Eastern Europe and Russia have not viewed depoliticization as the primary goal of privatization, and have instead focused on establishing effective governance as the key objective. In our view, controlling managers is not nearly as important as controlling politicians, since managers’ interests are generally much closer to economic efficiency than 148

Tendo em mente os principais objetivos dos reformistas ao delinearem o programa de privatização, podemos mencionar também que a assessoria internacional que acompanhou o processo de privatizações recomendou rapidez, e que o processo fosse imediato. Pomeranz (1995) afirma que foi preciso decorrer um certo tempo para que se reconhecesse que a privatização, como eixo do processo de transformação sistêmica, é um processo que demanda tempo para sua realização. Apesar dos reformistas identificarem com clareza quais eram os objetivos que o programa de privatização deveria alcançar, reconheciam também a existência de uma série de dificuldades impostas para a realização desse projeto desde o seu início. O programa deveria lidar com a universalidade da propriedade estatal herdada do sistema soviético, e com o desafio político que o processo representava, desafio este que se apresentava na resistência dos diretores de empresas e dos políticos a eles relacionados, por um lado, e na ojeriza da população à propriedade privada, por outro. Era necessário encontrar maneiras de conseguir o apoio da população. Além do mencionado, Pomeranz (2018) ainda adiciona como obstáculos ao programa a questão do grau de concentração econômica e a ausência de poupança privada (em termos de recursos para investimento) fora do âmbito do Estado. A inexistência de uma capacidade monetária para dar conta da potencial demanda também foi considerada por Kagarlitsky (2002), que afirma que, mesmo considerando a circulação monetária na economia ilícita e a possibilidade de entrada de capital estrangeiro, dificilmente haveria capital suficiente para garantir a venda das propriedades estatais – a privatização em larga-escala só conseguiria ser concluída se fosse vendido tudo muito barato ou, caso não conseguisse vender, a propriedade fosse essencialmente distribuída. Freeland (2000) afirma que esse movimento de transferir os bens acumulados pelo Estado para proprietários privados gerava três preocupações principais: 1) a preocupação central dos críticos aos programas de privatização era a questão da

those of the politicians. Once depoliticization is accomplished, the secondary goal of establishing effective corporate governance can be addressed.” 149

justiça das privatizações, ou seja, havia uma preocupação de que as propriedades estatais, que pertenciam a ‘todos os cidadãos’, poderiam acabar concentradas nas mãos de poucos; 2) outros estavam preocupados se as empresas privatizadas iriam para as mãos de donos capazes, com o know-how e o capital para reestruturar a economia de forma efetiva e competitiva; 3) preocupação de como conciliar o esforço reformista com a privatização – privatizar muito devagar poderia travar a economia, e privatizar muito rápido poderia criar um monte de companhias privadas incapazes de funcionar devidamente segundo as “regras” do mercado capitalista, simplesmente porque a infraestrutura capitalista ainda não havia sido criada. De forma geral, o maior desafio era o de conciliar os interesses dos trabalhadores, dos diretores e da população em geral. Boycko et al. (1995) sintetizam que a maior dificuldade era, em primeiro lugar, a resistência dos “políticos”, que não queriam perder seu controle sobre a economia; outro desafio era a necessidade de considerar os interesses dos trabalhadores das empresas privatizadas e dos governos locais. Por fim, os autores destacam que a principal aliança que os reformistas precisavam conquistar naquele momento era a aliança com a opinião pública – por isso, afirmam: “Apelo populista é o elemento mais essencial de qualquer programa de privatização que espera despolitizar a economia” (BOYCKO et al., 1995, p. 69, tradução nossa76). Diante dos desafios apresentados, os reformistas precisavam construir uma estratégia para conquistar o mínimo de apoio político necessário para sustentar o programa. Para construir essa aliança, foi necessário ceder em alguns pontos durante a elaboração do programa, para assim conseguir conquistar principalmente o apoio dos diretores das empresas. Para conquistar o apoio necessário no Soviete Supremo, Chubais concordou com um grande compromisso político e econômico no coração da privatização em massa russa, que foi estabelecer um modelo de privatização das empresas que privilegiasse o acesso dos diretores e dos trabalhadores às ações das suas empresas. Esse compromisso foi importante já que Chubais não precisava só

76 No original: “Populist appeal is the most essential element of any privatization program that hopes to depoliticize the economy.” 150

conquistar espaço entre os parlamentares, mas também precisava do apoio dos gerentes e trabalhadores das empresas, que efetivamente as controlavam. Como veremos logo adiante, o GKI e o Soviete Supremo organizaram uma opção de privatização (a famosa “opção 2”) que favorecia a venda das empresas aos trabalhadores e gerentes. Os diretores e trabalhadores das empresas a princípio foram contra a ideia de privatizar, temendo que perderiam o controle e seu espaço nas empresas e que teriam de se submeter aos novos proprietários. Contudo, logo perceberam que com as opções de privatização estabelecidas pelo governo, conquistariam algo extremamente vantajoso e lucrativo (GOLDMAN, 2003). Além da questão dos diretores, o papel dos trabalhadores para manter o funcionamento das empresas era bastante relevante, assim como sua influência para definir o tom da opinião pública em relação ao programa de privatização. Por isso, foi importante incluir os trabalhadores no estabelecimento do modelo - afinal de contas, como Boycko et al. (1995) afirmam: “A ideia dos meios de produção pertencendo aos trabalhadores tem um grande apelo histórico na Rússia” (BOYCKO et al., 1995, p. 76, tradução nossa77). Pomeranz (1995) destaca também como era importante que o governo levasse em conta a questão da equidade social para tentar obter o apoio político necessário para viabilizar as reformas em geral. A autora afirma que, naquele momento em que as linhas gerais do programa de privatização eram definidas, havia uma acirrada luta em torno da repartição da propriedade estatal, e diversas forças estavam disputando esses ativos – os principais membros do aparelho administrativo soviético que não queriam abrir mão dos seus poderes de controle, a nova equipe de reformistas que tinha como foco a rápida privatização, e os diretores das empresas que também buscavam manter o máximo de controle possível. Uma vez que os vouchers foram distribuídos (os títulos de propriedade que foram distribuídos pelo governo a todos os cidadãos russos), novos atores entraram nessa disputa: os novos empresários que conseguiram começar um processo de

77 “The idea of the means of production belonging to the workers had a great deal of historical appeal in Russia.” 151

acumulação acelerada e os proprietários de vouchers que conseguiram acumular esses títulos de propriedade. Tratou-se de uma luta entre os diferentes grupos, por pedaços da propriedade estatal – uma luta por manutenção ou obtenção de poder, que era derivado agora da propriedade, uma nova ordem estabelecida com as mudanças estruturais que eram encaminhadas pelas reformas. A equipe de reformistas econômicos de Yeltsin conseguiu estabelecer na Rússia uma nova coalisão política, forte o suficiente para viabilizar a introdução das reformas. Foi essencial para isso conseguir o apoio dos diretores, dos trabalhadores das empresas, dos governos locais e, pelo menos inicialmente, da opinião pública de forma geral. Boycko et al. (1995) definem essa coalisão da seguinte forma:

[...] os reformistas de livre-mercado tendem a representar uma coalizão política recém-formada, composta por empreendedores, profissionais, pequenos empresários, profissionais (sic) e outros proprietários. Seus oponentes, que frequentemente são comunistas e nacionalistas, representam os funcionários das firmas estatais em declínio e fazendas coletivas, os militares, aposentados e outros que se beneficiam da generosidade do governo (BOYCKO et al., 1995, p. 48, tradução nossa78).

Com alguns dos princípios basilares estabelecidos em julho de 1992, no fim do mesmo ano foi formulado o novo programa para 1993, reafirmando as linhas gerais estabelecidas no programa anterior e estabelecendo o objetivo maior de assegurar a implantação dessas linhas, fixando metas de privatização e de venda de empresas para o ano por unidade territorial, e provendo o estímulo necessário para atingi-las (POMERANZ, 1995). O programa de privatização estabeleceu uma classificação das empresas russas. Primeiro, foram definidas aquelas que seriam vendidas como propriedade em troca de dinheiro, normalmente pelos governos locais, e aquelas que seriam submetidas ao programa de privatização em massa através dos vouchers. A maioria das lojas locais e pequenos negócios foram imediatamente alocados para os

78 No original: “[…] free-market reformers tend to represent a newly formed political coalition comprised of entrepreneurs, professionals, small business people, professionals, and other property owners. Their opponents, who most frequently are the Communist and the nationalist, represent the employees of the declining state firms and collective farms, the military, pensioners and others who benefit from government largesse.” Sobre a questão dos militares durante o período do governo Yeltsin, ver mais em: ROGOV, S. (2001) 152

governos locais. Essa privatização de menor escala foi importante para incluir os governos locais na coalizão que daria suporte à privatização em massa. As empresas maiores (médias e grandes) foram submetidas à outra forma de classificação, sendo divididas em basicamente quatro categorias: 1) privatização obrigatória (mandatory privatization) para as empresas de indústria-leve, como indústria têxtil, processamento de alimentos, fabricação de móveis; 2) privatização com a autorização do GKI para indústrias maiores, mas não de setores estratégicos; 3) privatização com autorização do gabinete presidencial para as principais empresas em setores estratégicos (como setores de recursos naturais e defesa); 4) privatização proibida para empresas envolvidas com o transporte ferroviário, exploração espacial, saúde e educação (BOYCKO et al., 1995). Além da classificação, essas empresas maiores foram transformadas em corporações. “Ou seja, [essas empresas] foram re-registradas [sic] como sociedades por ações com 100% do patrimônio pertencendo ao governo, um estatuto corporativo e um conselho diretor” (BOYCKO et al., 1995, p. 74, tradução nossa79). Esse conselho diretor inicialmente contaria com o diretor geral da empresa e representantes do governo central, dos trabalhadores e do governo local. Foram oferecidas opções de participação nas ações das empresas para os seus coletivos (que eram compostos de todos os funcionários - diretores e todos os outros trabalhadores), para que eles pudessem decidir de que forma teriam acesso às ações. O programa de privatização estabeleceu, basicamente, três opções de “reserva” de parte das ações para esses coletivos, enquanto a porcentagem restante seria vendida nos leilões abertos a todos participantes. A opção 1 oferecia 25% das ações sem custo, mas também sem poder de voto, para assim poder evitar o controle dos trabalhadores. Além dos 25%, os trabalhadores poderiam comprar mais 10% com um desconto de 30% (esses 10% sim com poder de voto). Os diretores também teriam acesso a mais 5% das ações pelo preço nominal. Na opção 2, os diretores e trabalhadores juntos compravam 51% das ações com poder de voto, por 1,7 vez o preço nominal (o preço foi determinado pelo valor contábil dos ativos

79 No original: “That is to say, they were to re-register as joint stock companies with 100 percent of equity owned by the government, a corporate charter, and a board of directors.” 153

definido em julho de 1992). Mesmo com a adição de 70% sobre o valor nominal, o valor continuava bastante razoável e até acessível para os trabalhadores, considerando a inflação acumulada de 1992. Os trabalhadores podiam pagar com dinheiro, com vouchers, ou com os lucros retidos da empresa, podendo estender os pagamentos por um período relativamente curto de tempo (BOYCKO et al., 1995). A maioria das empresas seguiu a opção 2, que reservava a maioria das ações com poder de controle sobre a empresa para os coletivos. A opção 3, que praticamente não foi utilizada, também reservava até 20% das ações para o coletivo, sem custo. Os trabalhadores ainda poderiam comprar mais 20% com um desconto de 30% sobre o preço nominal, tendo 3 anos para pagar (GOLDMAN, 2003). Apesar de aparentemente vantajoso para os trabalhadores, Chubais garantiu que o acesso às ações seria feito individualmente e não como coletivo, pois assim cada um dos trabalhadores poderia decidir sobre a venda de suas ações da forma que preferisse. Isso facilitou o processo posterior de acumulação de ações por grandes investidores ou até mesmo diretores que compraram as ações de seus funcionários.

A opção 2 fundamentalmente permitiu que os diretores das empresas tomassem para si o controle e a propriedade de fato da maioria das empresas do país por custos mínimos, e gerou o mínimo de benefícios para o público em geral. Os diretores conseguiram fazer isso comprando as ações e os vouchers dos trabalhadores, que vendiam às vezes de forma voluntária e às vezes sob coerção (GOLDMAN, 2003, p. 76-77, tradução nossa80).

A opção 2 foi, assim, essencial para conquistar o apoio dos diretores e dos coletivos de trabalhadores e, ainda mais importante, dos representantes dos interesses desses grupos que ocupavam cadeiras no Soviete Supremo e cujo apoio era importante para viabilizar que o programa de privatização fosse de fato encaminhado. Os coletivos de trabalhadores das empresas escolhiam a opção e depois submetiam um plano de privatização da empresa para o escritório local do GKI, descrevendo como o restante das ações seria vendido. Essa forma de envolver o

80 No original: “Variant 2 ultimately allowed the factory directors to grab control and effective ownership of most of the country’s factories at minimal cost to themselves, as well as minimal benefit to the public at large. The managers were able to do this by buying up shares and vouchers of the workers, who sometimes sold them voluntarily and sometimes because of coercion.” 154

governo local e atribuir tamanha autonomia para as empresas de decidirem suas trajetórias foi um golpe nos planos de obter controle sobre os ativos dos membros da “antiga nomenklatura”, já que os ministérios ou outras agências oficiais do governo não interferiram diretamente nesse procedimento. Os diretores, através dos coletivos, tiveram praticamente total controle sobre a estratégia de privatização das suas empresas (BOYCKO et al., 1995). Como a maioria dos casos podia ser aprovado localmente, Chubais removeu dos ministros e de outros políticos de Moscou aquilo que Boycko et al. consideram que era seu maior poder, a necessidade de sua aprovação. A legislação sobre privatização passou pelo governo e pelo legislativo no decorrer de 1992. Contudo, após a aprovação de fato do programa, parte do Parlamento iniciou uma campanha mais forte contra Chubais e contra a privatização, contribuindo também para o clima de conflito que culminaria nos eventos de 1993, conforme vimos no capítulo 2. Como resultado do clima de disputa, a partir de 1993, Yeltsin aproveitou dos seus poderes extraordinários, e quase toda regulação da privatização que veio após esse período foi introduzida por decretos presidenciais, e não através da aprovação do parlamento. Sobre a meta de privatização total defendida pelos reformistas, parte da bibliografia critica que foi adotado um discurso para vender a ideia de que a privatização seria uma “receita mágica”, que contribuiria para que a economia russa retomasse seu crescimento. “É como se a transferência da propriedade estatal para mãos particulares fosse o bastante para mudar tudo; como se, uma vez feito isso, a inflação fosse desaparecer, a ameaça do desemprego se desvanecesse, os salários começassem a aumentar [...]” (KAGARLITSKY, 1993, p. 114). Strepetova (2000) afirma que essa conduta de privatizar o mais rápido possível estava associada ao discurso dos reformistas de recear que os comunistas pudessem retomar o poder e reverter o curso das reformas. Assim, o objetivo principal seria formar uma classe de proprietários que serviria de suporte social para a nova ordem, ou seja, que estaria disposta a defender os seus direitos de propriedade privada. O objetivo principal, como os próprios reformistas evidenciam em suas falas, não era, em momento algum, estabelecer um sistema econômico considerado “eficiente” pelos padrões do sistema capitalista e por parte da bibliografia liberal (que tece as críticas ao processo justamente por não ter sido alcançado esse modelo de “eficiência”). 155

Kagarlitsky também cita o relato de Oleg Smolin, deputado da Duma que escreveu sobre o período: A fim de acelerar ao máximo a privatização, criar uma base de apoio social para as novas autoridades e, ao mesmo tempo, garantir seus próprios interesses materiais para as próximas gerações, os organizadores da privatização a conduziram em benefício das pessoas que tinham meios financeiros significativos ou estavam ocupando altos cargos na hierarquia social. Para esse fim, foram oficialmente estabelecidas condições privilegiadas para o aparato gerencial na obtenção de uma parcela da antiga "propriedade de todos” (SMOLIN, 1999 apud KAGARLITSKY, 2002, p. 93, tradução e destaque nossos81).

A questão do poder atribuído à administração das empresas para conduzir o processo de privatização já foi mencionado como uma das características desse período. Outra questão importante destacada por Segrillo (2000b) é a ausência de um sistema legal definido para a nova realidade que estava sendo construída, o que dificultava o estabelecimento de um ambiente transparente das transações que estavam ocorrendo com a propriedade estatal. Em um primeiro momento, os reformistas avaliaram que a inexistência de uma infraestrutura de mercado e sistema regulatório adequado dificultaria o trabalho da privatização. Contudo, no decorrer do processo, essa ausência se mostrou um dos bens mais valiosos dos responsáveis pela privatização - eles puderam construir o sistema desde o início, o que deu imensas liberdades para que conduzissem o processo como bem entendessem (FREELAND, 2000). Tratou-se da liberdade de criar as regras no decorrer da trajetória. Essa sobreposição das políticas de liberalização e estabilização por um lado (que tratamos no capítulo 2), e, por outro lado, de privatização e criação da infraestrutura do mercado e do seu corpo regulatório, gerou uma profunda complexidade para os fenômenos que ocorreram na Rússia nesse período. As duas primeiras colocavam obstáculos no caminho da privatização, porque esgotavam rapidamente a poupança da maioria dos russos com a inflação inicial, e era um momento de juros altos e falta de instituições financeiras dispostas a oferecer crédito

81 No original: “in order to speed up privatization to the upmost, to create a base of social support for the new authorities and, at the same time, to guarantee their own material interests for several generations ahead, the organizers of privatization conducted it to the advantage of people who either had significant financial means or were filling high posts in the social hierarchy. To this end, privileged conditions were officially established for the managerial apparatus in obtaining a share of the former ‘property of all the people’.” 156

com objetivo de investimento nas propriedades adquiridas (STIGLITZ, 2002). Além disso, a situação fragilizada da população facilitou o acesso a ações e vouchers, já que os trabalhadores vendiam por preços baixos para conseguir assim atender às suas necessidades de consumo imediato. Veremos mais nos próximos dois tópicos.

3.2.1. Privatização em massa

Como já mencionado brevemente no tópico anterior, foram introduzidos três modelos de participação dos coletivos das empresas na sua propriedade, cada um estabelecendo diferentes combinações de detenção de ações preferenciais e nominais aos trabalhadores e aos administradores, associada a uma forma de pagamento e pressupondo diferentes graus de controle acionário pelos coletivos (POMERANZ, 2000). A opção mais escolhida foi a 2, que garantia um controle do coletivo (essencialmente o controle dos diretores) sobre as empresas, representando mais de 70% dos casos (MEDVEDEV, 2000; FORTESCUE, 2006). Alves (2011a, p. 193) destaca que os preços das empresas para realização dos leilões foram estabelecidos conforme o valor contábil de janeiro de 1992, sendo que as vendas foram ocorrer de fato somente em 1993 e principalmente em 1994. Ao analisarmos as taxas de inflação na Rússia nesses anos (só em 1992 ultrapassou os 1200%) e considerando que os preços não foram reajustados durante o processo, podemos concordar com a conclusão do autor de que os preços nominais que foram fixados para a venda dos ativos estatais “[...] representaram quase uma doação do patrimônio público aos compradores.”. No dia 11 de junho de 1992, o Soviete Supremo ratificou o plano de privatização que estabelecia os modelos de participação dos coletivos, e assim foi decidido para quem vender – mas a partir daí o desafio imposto foi decidir como vender. Não havia na Rússia capital acumulado ou dinheiro em circulação suficiente para a aquisição de toda propriedade estatal disponibilizada para compra. Além disso, a liberalização dos preços consumiu grande parte das economias da maioria dos russos. Por isso, foi determinado o esquema dos vouchers (FREELAND, 2000). Starodubrovskaia (2005) lista uma série de fatores que considera que influenciaram na decisão da equipe econômica de utilizar o modelo dos vouchers: [...] a falta de demanda devido ao baixo poder aquisitivo da população; a falta de interesse dos investidores estrangeiros em face da crescente instabilidade política e econômica; [...] a necessidade de acelerar o processo de 157

privatização legal para bloquear os processos de privatização espontânea que já estavam ganhando força e em que o controle sobre as empresas assim privatizadas passava para as mãos de seus diretores sem que estes arcassem com a responsabilidade por suas decisões econômicas; a necessidade de reduzir e, no final de contas, cancelar os subsídios estatais às empresas; a necessidade de criar uma base de apoio social à política de estabilização e uma base política para o livre mercado (STARODUBROVSKAIA, 2005, p. 211).

Os vouchers eram títulos de direito de propriedade que foram emitidos pelo governo russo para serem distribuídos para toda a população e depois trocados por ações das empresas submetidas à privatização. Para definir o valor nominal dos vouchers, a equipe econômica dividiu o total do valor dos ativos estatais (conforme os valores contábeis de 1992) pelos cidadãos russos – chegando ao valor de 10 mil rublos por habitante. Dessa forma, todos os russos receberiam um voucher com valor de face de 10 000 rublos (US$ 25 na época). Esses vouchers se tornaram basicamente uma moeda (currency), e seus detentores podiam utilizá-los para garantir seu acesso às ações das suas empresas reservadas aos trabalhadores, ou mesmo para comprar ações de empresas que estavam sendo vendidas em leilões abertos ao público, para investir em fundos de vouchers que surgiram no período82, ou até mesmo para comprar qualquer coisa nas ruas, desde dólares até garrafas de vodca (FREELAND, 2000, p. 59). Para realizar os leilões, foi adotada uma estratégia para simplificar ao máximo o processo, e os vouchers eram submetidos como um lance pelas ações. A única forma de influenciar o valor das ações era interferindo na quantidade de vouchers submetidos:

O número de ações que cada voucher compra é inversamente proporcional ao número de vouchers ofertados. Assim, se a empresa oferecer 1000 ações para leilão e 40 vouchers forem submetidos, cada voucher comprará 25 ações. Se, por outro lado, 4.000 vouchers forem submetidos, cada voucher comprará apenas um quarto de ação. Cada investidor que submete vouchers

82 A parcela das ações das empresas que não foram reservadas aos coletivos de trabalhadores foi vendida em leilões de livre concorrência, por isso “abertos ao público”. Com a circulação de vouchers na economia, foram organizadas instituições financeiras que se especializaram na compra desses vouchers para viabilizar uma acumulação que garantiria acesso a parcelas maiores de ações das empresas disponíveis nesses leilões de livre concorrência. Assim, com o acesso a grandes quantidades de vouchers, esses fundos conseguiam se apropriar de blocos de ações que garantiam uma influência maior nas decisões das empresas. 158

tem a garantia de obter algumas ações, mas recebe menos ações das empresas mais desejáveis (BOYCKO et al., 1995, p. 91, tradução nossa83).

Com os detalhes do esquema de vouchers definidos, 144 milhões de russos foram até o Sberbank, pagaram uma taxa de 25 rublos e coletaram seus vouchers (FREELAND, 2000). A distribuição dos vouchers foi iniciada em outubro de 1992, e até o fim de janeiro de 1993, quase 98% dos vouchers haviam sido entregues. Eles se tornaram o primeiro título líquido na Rússia pós-1991, e foram altamente negociados em todo o país. Como se tratava de papéis anônimos, obviamente foram utilizados como mecanismo de troca, e Boycko et al. (1995) relatam como as pessoas batiam de porta em porta buscando oportunidades de comprar vouchers, como quiosques foram formados nas ruas para realizar compras e vendas de vouchers. Como a distribuição dos vouchers ocorreu ao mesmo tempo em que era encaminhada a liberalização dos preços, e seu valor de face não foi revisto, os títulos estavam perdendo valor real e sendo corroídos pela inflação acelerada daquele período84. Muitos russos foram constrangidos a venderem seus vouchers para fundos de investimento ou instituições financeiras o mais rápido possível, antes mesmo dos primeiros leilões serem organizados, como forma de obterem recursos para a vida cotidiana (MAZAT, 2013). Assim, os mais pobres rapidamente vendiam os seus vouchers, enquanto essas instituições compravam a maior parte dos vouchers por preços muito baixos, e posteriormente usavam esses vouchers para entrar no capital das empresas mais valiosas (POMERANZ, 1995; DESAI, 2005; MAZAT, 2013).

83 No original: “The equilibrium number of shares each voucher buys is then inversely proportional to the number of vouchers tendered. Thus, if the company offers 1000 shares for auction, and 40 vouchers are submitted, then each voucher buys 25 shares. If, on the other hand, 4000 vouchers are submitted, each voucher buys only a quarter of a share. Each investor submitting vouchers is assured of getting some shares, but gets fewer shares of desirable companies.” Foi formulado um “tipo 2” de leilão, em que ao submeter o seu lance, o potencial investidor poderia determinar o preço máximo (em vouchers por ação) que estaria disposto a pagar – se o valor ultrapassasse o limite definido, o investidor não receberia as ações e poderia obter seus vouchers de volta. Contudo, o processo demorava meses, período esse que os vouchers ficariam “presos” – por isso, esse tipo de leilão foi pouquíssimo utilizado. 84 “No fim de 1992, dez mil rublos não comprariam nada além de um terno qualidade ordinária.” (MEDVEDEV, 2000, p. 90). 159

O grande volume de trocas envolvendo os vouchers levou ao surgimento de centenas de fundos de investimento para centralizar a realização de transações com esses papéis. Os fundos deveriam servir para transferência dos vouchers disseminados pela população a um número reduzido de portadores, formando a acumulação de capital necessária para aquisição do controle acionário das empresas submetidas à privatização. Dessa forma, na medida em que se estabeleceu e estimulou a livre circulação dos vouchers, permitiu-se a sua acumulação, e o surgimento de detentores estratégicos de propriedade, preparando assim o terreno para privatização em dinheiro da próxima etapa (POMERANZ, 1995). A fase dos vouchers foi importante para dar “[...] início à formação dos grandes grupos empresariais, na medida em que, pouco tempo após a distribuição, esses vouchers acabavam concentrados nas mãos de poucos, principalmente dos próprios empregados e dos dirigentes das empresas” (ALVES, 2011a, p. 193-194). Os fundos juntaram os vouchers e compraram ações das empresas privatizadas:

Até o fim de 1994, 620 fundos [de investimento focados em vouchers] haviam sido criados, atraindo 60 milhões de vouchers. Contudo, em poucos meses, quase metade desses fundos havia colapsado, deixando seus acionistas com nada de seus vouchers originais. Alguns, juntamente com alguns fundos mútuos estabelecidos ao mesmo tempo, como Chara ou MMM, desperdiçaram seus ativos ou foram, desde o início, fraudes; os fundadores simplesmente fugiram com os ativos (GOLDMAN, 2003, p. 83, tradução nossa85).

A privatização por vouchers sobreviveu ao conflito de Yeltsin com o parlamento no segundo semestre de 1993, mas um novo obstáculo se apresentou à conclusão do processo, na forma da data de expiração que havia sido estabelecida para os vouchers, marcada para o primeiro dia de 1994. Com 1993 chegando ao fim, dois terços dos vouchers ainda não tinham sido utilizados na aquisição de ações das empresas. O prazo foi estendido por mais seis meses, e foi iniciada uma campanha intensa para acelerar o processo (FREELAND, 2000).

85 No original: “As of late February 1994, 620 such funds had been created, attracting 60 million vouchers. But, within a few months, almost one-half of these funds had collapsed, leaving their shareholders with little to show for their original vouchers. A few, along with some mutual funds established at the same time, such as Chara or MMM, squandered their assets or were outright scams; the founders simply ran off with the assets.” 160

Uma das formas que Chubais buscou de acelerar o processo foi através de apoio no Ocidente – os oficiais do Banco Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento indicam o Credit Suisse First Boston (CSFB) para ser o primeiro banco a “abocanhar” a torta das privatizações russas. O envolvimento do Credit Suisse First Boston nos leilões marcou um momento decisivo, e o CSFB foi o primeiro banco ocidental envolvido na privatização de massa russa (FREELAND, 2000). O fato é que os vouchers foram utilizados das mais diversas formas. Muitos foram vendidos por valores menores do que seu valor de face, por cidadãos que não tiveram interesse em participar dos leilões e utilizaram o valor obtido nas vendas para satisfazer necessidades imediatas de sua sobrevivência. Segundo Boycko et al. (1995), cerca de 12 milhões de russos utilizaram seus vouchers em leilões fechados para obter ações das suas empresas, e outros 10 milhões teriam usado os vouchers individualmente em leilões abertos para adquirir outras ações. A maioria daqueles que investiram vouchers focaram nos fundos de investimento formados. Esses fundos foram participantes centrais na privatização, consolidando o papel dos vouchers e das ações, atores decisivos para a emergência de um mercado de títulos. Apesar dos problemas mencionados, como a questão de grande parte da população encontrando-se constrangida a vender os seus vouchers sem chance de participar de fato nos leilões, até certo ponto podemos dizer que o plano de privatização com os vouchers obteve sucesso no seu objetivo de envolver a maioria da população russa no processo. A ideia central era distribuir o título à propriedade estatal pelo conjunto da população para que a privatização assumisse uma “feição democrática”, buscando alcançar alguma legitimação como resultado desse processo. Não houve uma distribuição da propriedade pela população de fato, mas como cobertura política e ideológica Arantes Jr. (2015), por exemplo, acredita que “funcionou admiravelmente”, já que a população de forma geral aceitou a passagem da propriedade estatal para as mãos de um novo grupo de proprietários. Kagarlitsky (2002) tem uma visão bastante crítica sobre essa forma do governo russo de tentar envolver a população no processo, destacando o impacto moral e psicológico dos vouchers. Segundo o autor, através dessa estratégia, a população se tornou cúmplice dos roubos de propriedade – a maioria da população não só não ganhou nada com os vouchers, como também sofreu com os resultados 161

desse esquema. Assim, a utilização dos vouchers não teria sido “[...] apenas uma forma de fraude em massa, mas também uma forma de suborno e desmoralização dos trabalhadores” (KAGARLITSKY, 2002, p. 95, tradução nossa86). Apesar da tentativa de envolver os trabalhadores, os maiores beneficiados dessa primeira fase foram os diretores das empresas, que conseguiram muitas concessões e facilidades para garantir o seu acesso à propriedade, os fundos de investimento, e ainda os governos locais, que tiveram controle sobre grande parte da privatização nessa primeira fase e, além disso, foram os detentores das receitas da privatização das pequenas empresas. A fragilidade da coalizão política que sustentou o processo nesse período justifica as concessões que os reformistas realizaram buscando sustentá-la. As considerações políticas de fato determinaram o modelo estabelecido para os leilões de vouchers. “Governos, gerentes e trabalhadores locais tiraram muito mais proveito da privatização do que muitos observadores considerariam razoáveis” (BOYCKO et al., 1995, p. 93, tradução nossa87). As maiores concessões foram para os diretores – ainda que sua participação nas ações tenha sido inicialmente limitada, em muitos casos os membros da diretoria das empresas compraram mais ações baratas depois, nos leilões dos vouchers. Também compraram dos próprios trabalhadores que vendiam barato no mercado de ações. Os trabalhadores tinham uma relação de grande dependência com os diretores, atrelando a manutenção de seus empregos com a subordinação a decisões favoráveis à diretoria. Além disso, Goldman (2008) destaca que, após 70 anos de propaganda anticapitalismo, poucos russos compreendiam o porquê de ter uma ação em uma empresa – não viam como algo que valeria de verdade, e isso foi outro fator que contribuiu para levar a maioria a vender rapidamente e por muito pouco. Apesar de terem sido os grandes beneficiados do processo, foi necessário tempo até que os diretores fossem convencidos de que conseguiriam lucrar com o

86 No original: “Voucherization, therefore, was not only a form of mass deception, but also a kind of bribery and demoralization of the workers.” 87 No original: “Local governments, managers, and workers all got much more out of privatization than most observers would consider reasonable.” 162

processo de privatização e não teriam seu controle sobre as empresas prejudicado. A fase inicial do processo foi lenta (como veremos adiante na tabela 10, que mostra como nos primeiros meses a quantidade de leilões realizados não foi muito alta), e os diretores demoraram para se engajar no processo. Segundo Pomeranz (1995), a falta de infraestrutura para realização dos leilões combinada com a desconfiança inicial (não só dos diretores, mas da população de forma geral) com a privatização foram fatores que contribuíram para o baixo número de leilões realizados na fase inicial. Ainda segundo a autora, esse começo lento teria levado o governo a estabelecer uma proporção mínima de ações que as empresas deveriam disponibilizar para venda nos leilões de vouchers. Essa proporção começou em 29%, mas foi elevada gradativamente até atingir 80% (POMERANZ, 1995, p. 106). Segundo Boycko et al. (1995), para que o processo de privatização pudesse acelerar, era necessário o engajamento de fato dos diretores no processo, e foi importante também contar com o apoio dos governos locais que ficaram responsáveis por conduzir grande parte do processo:

[...] a privatização teve que começar de forma voluntária, com gerentes de empresas que queriam privatizar liderando o caminho. Além disso, os gerentes tinham que ter algum controle sobre quando sua empresa era privatizada e qual fração de ações era oferecida aos vales. Além disso, as autoridades locais exigiram controle sobre os leilões de vouchers, principalmente de empresas de importância regional. Para obter o consentimento dos gerentes e das autoridades locais, os leilões de vouchers precisavam ser descentralizados e enviados às localidades (BOYCKO et al., 1995, p. 90, tradução e destaque nossos88).

Quando os diretores perceberam que poderiam lucrar com a privatização e que o processo não implicaria na entrada de terceiros que assumiriam o controle das empresas, o processo conseguiu acelerar de fato. Sobretudo a partir do segundo semestre de 1993, conforme os leilões foram realizados, houve um movimento de obtenção progressiva do controle acionário das empresas pelos seus diretores, que buscavam formas de restringir a participação acionária dos trabalhadores, criando

88 No original: “[...] privatization had to start on a voluntary basis, with managers of companies who wanted to privatize leading the way. Moreover, managers had to have some control over when their company was privatized and what fraction of shares was offered for vouchers. In addition, local officials demanded control over voucher auctions, particularly of companies of regional importance. To get the consent of the managers and the local officials, voucher auctions had to be decentralized and pushed to localities.” 163

uma separação cada vez mais profunda entre os interesses dos trabalhadores e da diretoria das empresas, transformando o grupo de diretores em um núcleo social com interesses próprios (POMERANZ, 1995).

A privatização nessa fase ficou conhecida como privatização da nomenklatura, porque resultou, de fato, na transferência da propriedade estatal das empresas para os seus diretores, dada a forma de organização e gestão das mesmas no sistema anterior, na qual predominavam concomitantemente a autoridade e o paternalismo dos diretores em relação aos seus trabalhadores (POMERANZ, 2009, p. 302).

Em 1994, mais da metade da capacidade produtiva já estava sob controle de proprietários privados, e no fim de 1995, essa relação já era mais de 80%. Outro resultado relevante dessa primeira fase de privatização foi a deterioração da distribuição de renda (sem o controle estatal sobre os salários, houve um forte aumento da disparidade salarial entre os setores) e a concentração da riqueza. Os vouchers acabaram concentrados nas mãos de poucos, que facilmente, e de forma bem mais barata do que esperavam, conseguiram acesso aos títulos – empresas grandes passaram para mãos de proprietários privados por preços relativamente baixos (MEDVEDEV, 2000; FORTESCUE, 2006; MAZAT, 2013). Assim, a fase dos vouchers foi extremamente importante para viabilizar rapidamente a concentração de propriedade e a acumulação de riqueza. Duas características dos vouchers foram essenciais para esse processo: a sua denominação em rublos e sua tradability (o fato de poderem ser negociáveis). Por que os vouchers receberam especificamente a denominação em rublos (e não pontos, por exemplo, como foi feito na República Tcheca) e por que suas trocas foram autorizadas? Os reformistas argumentam que, apesar da denominação em pontos ser mais interessante em um cenário de inflação alta, para que os vouchers não sejam desvalorizados rapidamente, a denominação em rublos tinha um forte apelo político. Boycko et al. (1995) escrevem que a denominação em moeda fez com que os vouchers parecessem títulos de fato e deixava uma impressão mais clara do governo presenteando o público. Além disso, os autores também consideram que a denominação em rublos estabelecia um compromisso mais forte com a irreversibilidade do processo (já que algo em rublos tem um valor mais evidente para a população do que algo em pontos), mesmo que isso tenha resultado em uma desvalorização tão rápida dos vouchers (os próprios autores escrevem que, em dois 164

meses, os vouchers que tinham valor de face de 10 mil rublos perderam cerca de 60% de valor de mercado) (BOYCKO et al., 1995). Sobre a livre-troca dos vouchers, os argumentos contrários defendiam que os vouchers não são papel-moeda e nem títulos de fato, eles deveriam ser utilizados apenas como instrumentos para viabilizar a privatização. Com a evidente desvalorização dos vouchers sendo trocados no mercado, eles passam a valer menos do que o valor real dos ativos sendo privatizados – isso viabiliza especulação com vouchers e que, como ocorreu de fato na Rússia, grandes investidores consigam acumular vouchers comprando da camada mais pobre da população, que vendia rapidamente e por muito pouco. Segundo os reformistas, esse aspecto dos vouchers seria algo positivo, algo que ajudaria os mais pobres, que tinham necessidades imediatas de consumo, e que poderiam utilizar os vouchers como uma forma de atender tais necessidades (BOYCKO et al., 1995). Além disso, os autores defendem que, caso as trocas com vouchers não fossem autorizadas, elas ocorreriam de qualquer forma no mercado ilícito, o que provavelmente levaria a uma desvalorização ainda mais rápida. O aspecto mais importante que foi viabilizado pela tradability dos vouchers, contudo, foi a oportunidade de ascensão dos grandes investidores, já que para conseguir grandes blocos de ações nesse momento da privatização era necessário acumular uma grande quantidade de vouchers. O direito de venda e compra dos vouchers foi, portanto, essencial para viabilizar a sua acumulação, que serviu de acesso aos blocos de ações.

[...] a importância da tradability dos vouchers para a formação de blockholdings na Rússia. Para adquirir blocos de ações nas empresas, investidores precisavam acumular blocos de vouchers e então utilizá-los nos leilões de vouchers. Sem a tradability dos vouchers, apenas os fundos de investimento teriam sido capazes de estabelecer grandes blocos de ações antes do desenvolvimento do mercado de ações (BOYCKO et al., 1995, p. 113, tradução nossa89).

89 No original: “[…] importance of voucher tradability for the formation of blockholdings in Russia. To acquire large stakes in firms, investors needed to accumulate blocks of vouchers and then bid them in voucher auctions. Without voucher tradability, only investment funds would have been able to build large stakes before the aftermarket developed.” 165

De fato, os vouchers conseguiram alcançar um de seus principais objetivos, que era garantir que a privatização não poderia ser facilmente revertida. Apesar dos problemas de desvalorização e de grande parte da população ter vendido rapidamente os seus vouchers, eles representaram um papel com valor real, que foi oferecido do governo ao público. Caso posteriormente um novo governo fosse formado e buscasse, de alguma forma, cancelar o programa, isso poderia representar nos olhos da população um confisco de seus bens, e afetaria os interesses dos novos detentores da propriedade. Ao apresentar alguns dos números que estimam a quantidade de empresas privatizadas nesse período, podemos ter dimensão de como esse processo envolveu um número grande de trabalhadores e agora proprietários privados.

TABELA 10 – Número de empresas privatizadas por setor público por ano 1993 1994 1995 Municipal 26 340 11 108 6 960 Regional 9 521 5 112 1 317 Federal 7 063 5 685 1 875 Total 42 924 21 905 10 152 Fonte: Goskomstat Rossi, Rossiiskii Satistiicheskii Ezhegodnik (Russian Statistical Report), Moscow: Goskomstat, 1996, p. 702 apud GOLDMAN, 2003, p. 87

Segundo Boycko et al. (1995), até o fim da fase dos vouchers, o GKI e suas agências regionais registraram mais de 20 mil empresas como companhias de sociedade anônima. A média dessas empresas era de cerca de 1000 funcionários por empresa. Em junho de 1994, o último mês da privatização por vouchers, foram realizados os leilões de parte das ações de algumas das maiores empresas russas, envolvendo setores como comunicações, exploração de metais não-ferrosos, petróleo e gás. Só nesse mês foram quase três mil empresas privatizadas e, pela primeira vez, estrangeiros puderam participar dos leilões de vouchers. De dezembro de 1992 até junho de 1994, a média foi de quase 900,000 trabalhadores por mês passando da folha de pagamentos do setor público para a do setor privado. Somente no último mês, como podemos verificar nos dados apresentados na tabela 11, as empresas privatizadas somavam uma mão de obra de quase 4 milhões de funcionários. Como resultado, quase 18 milhões de pessoas passaram a trabalhar 166

no setor privado, ou, ainda Segundo Boycko et al. (1995), dois terços da mão de obra russa.

TABELA 11 – Leilões de vouchers na Rússia, de dezembro de 1992 a junho de 1994 Dez92 Jan93 Fev93 Mar93 Abr93 Mai93 Jun93 Jul93 Ago93 Set93 Número de 18 108 197 450 611 577 910 917 895 811 empresas vendidas por mês* Regiões 8 26 41 58 70 73 80 82 82 83 totais acumuladas* * Capital social 3041 6025 8678 21284 29235 25286 38543 36098 35439 38123 das empresas, em milhões de rublos Número de 43 188 200 556 836 600 820 787 828 825 funcionários, em milhares Capital social 513 676 1685 5266 6294 5208 7117 8280 7010 7432 vendido, em milhões de rublos Média 16,9% 11,2% 19,4% 24,7% 21,5% 20,6% 18,5% 23% 19,8% 19,5% ponderada dos pacotes de ações vendidos*** Total de 158 159 611 2284 4147 4331 4364 6828 4489 5089 vouchers aceitos, em milhares Taxa média 3.2 4.2 2.8 2.3 1.5 1.2 1.6 1.2 1.6 1.5 ponderada dos leilões****

167

Out93 Nov93 Dez93 Jan94 Fev94 Mar94 Abr94 Mai94 Jun94 Total Número de 963 1002 1044 733 779 967 1057 1119 2621 15779 empresas vendidas por mês* Regiões 83 83 83 84 86 86 86 86 86 86 totais acumuladas* * Capital social 44720 48414 47092 46057 60875 109852 96917 69393 38638 1151450 das 0 empresas, em milhões de rublos Número de 910 903 1025 659 1282 1069 1245 1131 3863 17772 funcionários, em milhares Capital social 8172 9019 8792 9078 13687 16633 18438 16082 55414 202797 vendido, em milhões de rublos Média 18,3% 18,6% 18,7% 19,7% 22,5% 15,1% 17% 23,2% 14,3% 17,6% ponderada dos pacotes de ações vendidos*** Total de 4617 3158 3543 3151 4550 8969 13620 8805 30735 113587 vouchers aceitos, em milhares Taxa média 1.8 2.9 2.5 2.9 3.0 1.9 1.2 1.8 1.8 1.8 ponderada dos leilões**** Fonte: GKI/RPC Performance Database apud BOYCKO et al., 1995, p. 106-107 *Referente ao número de leilões de vouchers realizados no mês. Algumas empresas realizaram mais de um leilão de vouchers. Como resultado, o número total de empresas vendidas em leilões de vouchers é menos de 15779 e mais próximo de 14000. **Número total de regiões que organizaram leilões até a data. *** Média ponderada percentual de ações das empresas vendidas ****Taxa que expressa o número de ações de 1000 rublos que são trocadas por um voucher nos leilões.

De forma geral, podemos avaliar que a primeira fase de privatização através do uso de vouchers alcançou resultados significativos, atingindo o objetivo estabelecido pelos reformistas, de aceleradamente formar uma classe de proprietários que serviria de base para a próxima fase de privatizações e para dar força política que sustentasse a continuidade das reformas. As vendas das pequenas empresas, municipais e locais, foi importante também para facilitar o acesso de um grande número de pessoas a essas propriedades. Estabelecimentos como lojas de varejo, restaurantes, cafés e barbearias, foram vendidos como propriedades municipais, e foram essencialmente oferecidos aos coletivos de 168

trabalhadores para comprar da autoridade municipal por valores baixos e acessíveis. O maior problema que os novos proprietários encontraram depois de privatizados os estabelecimentos foi a dificuldades pela falta de capacidade de investimento, e também a dificuldade de definir sua clientela. As filas do período soviético sumiram, porque as pessoas não tinham mais condições de consumir determinados bens e serviços (MEDVEDEV, 2000). O problema de baixo investimento (e baixa demanda) não incidiu apenas nos negócios locais pequenos, mas nas empresas privatizadas de forma geral nesse período. A administração das empresas não conseguiu capital como resultado das privatizações, e, enquanto isso, o governo também não conseguiu grandes benefícios econômicos através da privatização (MEDVEDEV, 2000). Independente da forma utilizada para privatizar, os novos proprietários teriam que encontrar uma forma de pagar suas compras, enquanto não havia na Rússia um sistema bancário plenamente estabelecido, com crédito disponível. Não havia fundos excedentes disponíveis para uso por prospectivos tomadores de empréstimo. Segundo Goldman (2003), isso era um subproduto do sistema soviético, a disponibilidade de dinheiro era profundamente regulada. Outro fenômeno que pode ser mencionado que caracterizou o período dos vouchers foi a utilização da influência política para manipular os leilões realizados. As maiores empresas russas, que tinham conexões políticas mais importantes, fizeram uso dessas para interferir e até modificar algumas das regras dos leilões realizados. Boycko et al. (1995) mencionam como exemplo a AvtoVAZ (montadora de automóveis russa, mais conhecida como Lada, que contava em meados dos anos 1990 com mais de 500,000 trabalhadores, e era responsável por cerca 7% do PNB russo), que elaborou seu próprio procedimento para encaminhar o leilão de vouchers, e restringiu que os investidores teriam que apresentar seus lances pessoalmente. No caso de parte das ações reservadas aos leilões de vouchers da Gazprom, também houve restrição de participação nos leilões de vouchers, e apenas investidores individuais puderam participar, excluindo tanto estrangeiros quanto “compradores profissionais” (“professional buyers”) (BOYCKO et al., 1995). Apesar do número expressivo de empresas que foram privatizadas nesse período, o método dos vouchers não foi adotado em todas as regiões da Rússia. Algumas regiões resistiram e desenvolveram modelos próprios para encaminhar a privatização das empresas que estavam sob sua administração. Nijni Novgorod 169

seguiu um modelo próprio para as empresas de sua região; regiões como Tartaristão, Calmúquia e Tchukotka também se recusaram a participar; e o prefeito de Moscou, Yuri Luzhkov, também fez oposição violenta contra os vouchers. Ainda assim, até o fim do programa de vouchers, mais de 14 mil empresas empregando dois-terços da mão de obra industrial russa foram de fato privatizadas, e um expressivo grupo de proprietários foi formado.

O principal objetivo da privatização era formar uma classe ou um estrato de proprietários que poderia se tornar uma base confiável de suporte para o novo sistema social que estava sendo criado. Não houve precedente desse tipo de privatização na história econômica (MEDVEDEV, 2000, p. 94-95, tradução nossa90).

Apesar de todos os problemas e dificuldades do período, o grupo de Chubais foi fortemente protegido da opinião pública, com suas ações ‘escondidas’ do público geral, para que não fossem abertamente condenadas. As propriedades do Estado foram tratadas como um fardo pelo discurso oficial, uma propriedade que foi usada e desgastada, como bens sem utilidade e que o Estado deveria ‘se livrar’ (MEDVEDEV, 2000). A preservação (até certo ponto) da figura política dos reformistas, combinada com esse discurso, foram importantes para encaminhar a nova fase da privatização, a partir do vencimento dos vouchers em 1994. Na nova fase, os leilões para vender empresas envolveriam dinheiro de fato. Nesse momento, Chubais já tinha montado um time para administrar a privatização, um pequeno grupo de indivíduos que recebeu autoridade quase ilimitada para distribuir as empresas de uma das maiores plantas industriais do mundo – uma propriedade industrial que foi construída por 70 anos (MEDVEDEV, 2000). A fase seguinte ficou marcada sobretudo pelo esquema dos “empréstimos-por-ações”, que será abordado no próximo tópico.

90 No original: “The main aim of privatization was to form a class or stratum of property owners who could become a reliable base of support for the new social system being created. There was no precedent in economic history for this kind of privatization.” 170

3.2.2. Privatização loans for shares (empréstimos-por-ações)

Após o processo de redistribuição da propriedade ter sido alavancado pela fase dos vouchers, foi iniciada uma nova etapa do processo de privatização, que passou a envolver a venda de ações das empresas por dinheiro de fato. Nessa nova fase, foram incorporadas ao processo as empresas estratégicas e mais valiosas do país. A partir de setembro de 1995, o governo russo autorizou a realização de leilões para repassar para atores privados a gestão provisória de parte das ações detidas pelo Estado, em troca de empréstimos. Por isso, essa fase ficou conhecida pelo termo “empréstimos-por-ações”. Tecnicamente os leilões seriam “abertos e competitivos”, apesar dos estrangeiros não terem autorização de participarem, por se tratar de empresas estratégicas da economia russa. Após a primeira fase de leilões e a concessão do empréstimo ao governo russo, nos primeiros três meses o governo pagaria aos credores uma taxa de juros baixa. Os empréstimos venceriam em setembro de 1996, e nesse momento o Estado teria duas alternativas: 1) pagar o empréstimo e retomar o controle sobre as suas ações; ou 2) vender as ações que foram usadas como colaterais – nesse caso, o emprestador receberia a compensação do empréstimo e mais 30% da diferença entre o preço de venda das ações e a soma inicial que ele emprestou ao Estado. O ‘emprestador’ seria responsável pela organização da segunda “rodada” dos leilões, atuando como agente de venda do Estado (FREELAND, 2000; POMERANZ, 2018). Em setembro de 1995, foram listadas 29 empresas a serem leiloadas nesse esquema. Para Fortescue (2006), não foi surpresa alguma quando, um ano depois, os empréstimos não foram pagos e os bancos puderam arranjar a segunda fase dos leilões, sendo que esses mesmos bancos (ou seus associados) acabaram vencendo a maioria deles. O pretexto para aplicação desse modelo era que os bancos queriam ‘ajudar o governo a reduzir o seu déficit orçamentário’ (curioso é como o orçamento sofria com a evasão fiscal inclusive dos bancos). A ideia das ações como colaterais dos empréstimos poderia ter gerado um resultado positivo para o orçamento público, e se os bancos tivessem realizado os leilões da segunda fase com ampla concorrência de fato, o valor das vendas poderia ser maior que os empréstimos iniciais e isso geraria alguma renda para o Estado. Mas a bibliografia consultada de forma geral 171

parece concluir que os leilões foram esquemas que garantiram que as ações (em praticamente todos os casos) fossem para algum afiliado do banco que organizou o leilão em primeiro lugar (FREELAND, 2000; POMERANZ, 2000; GOLDMAN, 2003; FORTESCUE, 2006). Para garantir o resultado dos leilões, os organizadores usavam as mais diversas estratégias, e esses leilões foram marcados por irregularidades. Dentre as práticas mais comuns, Goldman (2003, p. 4) aponta como os leilões eram realizados “em localidades remotas, fechavam os aeroportos na data dos leilões, especificavam termos e condições de participação que apenas o banco responsável pelo leilão poderia de fato atender”. Assim, os leilões geraram pouca receita além do valor inicialmente estabelecido. Pomeranz (2018) considera que a implementação do programa foi nitidamente (sic) manejada para obtenção das empresas previamente decidida pelos banqueiros, e pelos valores subavaliados desejados. O resultado do processo de empréstimos-por-ações foi a transferência de propriedades que representavam um enorme potencial de poder econômico para as mãos de um pequeno número de bancos. Fortescue (2006) ainda destaca que o processo foi conduzido de forma tão descarada e corrupta (sic), e os preços foram tão obscenamente baratos, que acabou “matando” qualquer pretensão de legitimidade que a reforma econômica e a privatização de forma geral tentaram construir durante suas implantações. Freeland (2000) avalia que a adoção do esquema de empréstimos-por-ações teria sido uma demonstração de quão debilitado estava o Estado russo naquele momento, que enfrentava dificuldades para exercer funções básicas como garantir a coleta dos impostos. A autora afirma que, por mais que a propriedade dessas empresas ainda fosse do Estado russo, o governo tinha dificuldades de exercer o controle de fato sobre elas. Por isso, os empréstimos-por-ações teriam sido a forma encontrada pelo Estado de “autorizar” que atores privados tentassem retomar o controle sobre a propriedade que estava sendo administrada, de fato, pelos diretores que mantiveram seus cargos e sua influência política após o colapso soviético (sobretudo os diretores das maiores e mais importantes empresas). Ao construir tal análise, a autora constata que a responsabilidade pelo resultado dessa fase de empréstimo por ações é do Estado e dos reformistas, que permitiram que os bancos tomassem o controle dessas propriedades. Essa questão do papel central desempenhado pelo Estado no processo de acumulação de atores privados será 172

retomada no capítulo 4, quando discutiremos de maneira mais aprofundada a transformação da propriedade na Rússia nesse período, tendo como referencial a questão da construção do capitalismo e a discussão da acumulação por espoliação trazida por Harvey (como apresentamos na introdução). O decreto presidencial que autorizou a realização dos empréstimos por ações foi assinado em 31 de agosto de 1995 por Yeltsin. O contexto em que foi realizada essa fase de privatização é essencial para compreendermos o aspecto político desse processo. Apesar de o decreto ter sido elaborado e assinado antes das eleições legislativas de 1995, que foram realizadas em dezembro, a disputa política envolvendo o Partido Comunista, por um lado, e os aliados do governo, por outro, foi central para a consolidação da coalizão política que fortaleceu, acelerou e sustentou o processo de privatização através dos empréstimos-por-ações. A ideia dos empréstimos-por-ações havia sido concebida por Vladimir Potanin, proprietário do Oneximbank, e ao elaborar o seu plano de oferecer empréstimos para o governo russo, Potanin tinha como objetivo principal a obtenção da Norilsk Niquel, a gigante estatal russa de níquel e mineração. Potanin propôs, ainda no segundo semestre de 1994, administrá-la em troca de um empréstimo para o governo russo. A situação do orçamento russo naquele momento era delicada e a oferta de recursos não inflacionários para compor a receita do governo compunha o principal aspecto que tornava a sua proposta aceitável. Assim, em outubro de 1994, Yeltsin já havia assinado um decreto autorizando a , a holding de Potanin, a administrar as ações detidas pelo Estado da Norilsk Niquel (POMERANZ, 2018). O esquema foi então ampliado para incluir outras empresas do mesmo porte ainda não privatizadas, e para trazer a participação de investidores nelas interessados. A proposta foi aprovada por , que naquele momento ocupava o cargo de diretor do GKI. A ideia era “disfarçar” a privatização em um programa de empréstimo, e o decreto de Yeltsin de agosto de 1995 definiu os termos para o encaminhamento da proposta (POMERANZ, 2018). Potanin desempenhou um importante papel de propagar a ideia entre outros possíveis investidores, em sua maioria outros grandes representantes do setor bancário, para conseguir o apoio político necessário. Segundo Freeland (2000), o grupo de investidores chegou a desenhar um esquema de dividir previamente as empresas, para definir quem ficaria com qual empresa, evitando assim conflitos futuros. 173

Potanin precisou convencer os dois líderes das principais facções do governo, Chubais (líder dos liberais) e Oleg Soskovets (líder do “partido da guerra”, representantes políticos ligados às forças russas de segurança e inteligência). Para convencer Chubais, Potanin precisou utilizar o argumento de que o esquema levantaria fundos que o tesouro russo tão desesperadamente precisava. Até em 1995, o governo havia falhado miseravelmente em sua promessa de estabilizar a economia, e precisava encontrar fontes de receitas não-inflacionárias, e era exatamente isso que Potanin estava oferecendo (FREELAND, 2000). O resultado das eleições legislativas de dezembro de 1995 foi o elemento decisivo para acelerar a introdução do esquema de privatização dos empréstimos- por-ações. O Partido Comunista saiu como o grande vencedor das eleições, e o seu líder Zyuganov era apontado como possível candidato à presidência nas eleições que seriam realizadas em junho de 1996. O receio de uma possível vitória dos comunistas em 1996 era compartilhado principalmente pelos representantes do setor bancário e financeiro e pela classe empresarial formada (e ainda em formação) pela privatização. Essas frações de classe viam a possível volta dos comunistas ao poder como uma ameaça aos seus ganhos que haviam sido obtidos no decorrer da década de 1990, durante o processo de mudanças do sistema econômico (POMERANZ, 2018). Foi apresentada uma janela de oportunidade para que Yeltsin e seus aliados estabelecessem um acordo com os principais banqueiros do país, que estavam almejando as estatais russas que eram consideradas as “joias da coroa”. Assim, foi delineado um esquema de interesse duplo: dos investidores, para conseguir obter principais estatais russas a preço de barganha, e do governo, para assegurar um massivo apoio financeiro para a campanha de reeleição de Yeltsin em 1996 (POMERANZ, 2018). Esse acordo e a posterior transferência das principais empresas do país para um pequeno número de proprietários foi um momento decisivo para consolidar os grandes grupos financeiros industriais russos, que passaram a deter não só um enorme poder econômico, mas também um enorme poder de influência no governo Yeltsin (POMERANZ, 2005, p. 341-2). Freeland (2000) descreve esse processo como a mais crua troca de propriedade por apoio político. Em pouco mais de quatro meses, o governo privatizou as maiores empresas russas - uma pequena quantidade de empresas, mas que eram gigantescas, e vendeu esse patrimônio por uma pequena fração do 174

seu potencial valor de mercado. “[…] em troca de algumas das empresas mais valiosas da Rússia, um grupo de empresários - os oligarcas - lançou a sua força política para sustentar o Kremlin. [...] foi a venda do século" (FREELAND, 2000, p. 169, destaque e tradução nossos91). É possível estabelecer, assim, uma relação direta de dependência entre a consolidação da segunda fase do esquema dos empréstimos-por-ações (já que o vencimento dos empréstimos estava marcado apenas para setembro de 1996) e um resultado das eleições presidenciais que fosse favorável aos atores envolvidos nesse esquema, ou seja, a reeleição de Yeltsin garantida. Com a popularidade de Yeltsin em declínio no fim de 1995, o apoio organizado de atores com grande poder econômico para investir em campanha foi decisivo para que Yeltsin recuperasse sua vantagem, e saísse vencedor em julho de 1996 (o segundo turno foi realizado no dia 3 de julho de 1996). Fortescue (2006) também considera que o que realmente estava por trás do esquema dos empréstimos-por-ações era um acordo de curto- prazo, que conquistou o apoio que Yeltsin precisava para vencer as eleições. Segundo o autor, tratou-se de um “ataque de oportunidade” por parte dos grandes investidores (que passaram a ser conhecidos como oligarcas) para se apropriarem de ativos de um governo que enfrentava uma situação orçamentária desesperadora, e uma estratégia de longo-prazo dos políticos reformistas, que favoreceram a criação de grandes grupos privados que poderiam tornar-se globalmente competitivos. A análise de Pomeranz (2011) também vai ao encontro dessa perspectiva de um pacto político rodeando a aquisição das grandes empresas estatais russas por um pequeno número de proprietários, o que resultou na formação dos grupos financeiros industriais, liderados pelos bancos que participaram dessas privatizações e que passaram a dominar os setores mais fortes da economia russa.

A transferência das empresas se fez a preços de barganha, a fim de assegurar a realização do pacto político em torno dos objetivos visados, e serviu de base à estreita vinculação entre este grupo de empresários e o poder político, dando origem aos chamados oligarcas. Estes tiveram enorme

91 No original: “[…] in exchange for some of Russia’s most valuable companies, a group of businessmen – – threw their political muscle behind the Kremlin. […] it was the sale of the century.” 175

influência durante o governo Yeltsin, que foi marcado pelo caos da transformação, resultado das consequências da terapia de choque e da luta encarniçada pela propriedade estatal (POMERANZ, 2009, p. 302, destaque nosso).

Goldman (2008, p. 64) defende que todo o processo envolvendo os empréstimos-por-ações não foi nada além de um “tremendo golpe”. O autor argumenta que, desde o início da elaboração desse esquema, estava evidente que o Estado russo não teria condições de coletar a receita que seria necessária para pagar os empréstimos, ainda mais considerando o prazo curto que foi estabelecido para o vencimento dos mesmos. Além disso, o autor também destaca como os atores envolvidos nos empréstimos-por-ações (os oligarcas) eram diretamente responsáveis por parte das dificuldades enfrentadas pelo orçamento russo, considerando como as práticas de evasão fiscal eram proeminentes nos setores bancário e financeiro. Outros fatores que sustentariam o argumento de que os leilões foram esquematizados antes mesmo de sua realização são as barreiras que foram impostas para participação de outros possíveis licitantes, ou os preços baixos que as vendas foram depois realizadas, que praticamente não cobriam os valores inicialmente emprestados ao Estado. Tomemos alguns leilões realizados nesse período como exemplos. O leilão da é particularmente simbólico, por ter representado o pontapé inicial de todo o programa que seria realizado a partir dali. Apesar de ter esquematizado e trabalhado para a organização oficial dos leilões dessa fase da privatização, Potanin e seu banco, Oneximbank, enfrentaram um desafio final na figura do banco Rossisky Kredit, que resolveu participar também do leilão pelas ações da Norilsk Nickel com uma oferta rival. Em 17 de novembro de 1995, quando os lances da Norilsk Nickel foram liberados, Kokh convenientemente descobriu uma irregularidade na “inscrição” (depósito da quantia “de intenção” que era feito para o banco organizador, um sinal que era a condição inicial para participação no leilão) do Rossisky Kredit, e o banco foi desqualificado. Sobraram assim três candidatos, sendo que todos estavam ligados a holding de Potanin. O lance inicial era US$ 170 milhões para 38% das ações – os dois primeiros deram lances mínimos, e o Oneximbank deu o lance de US$ 170,1 milhões, garantindo assim que Potanin teria controle do maior bloco de ações da maior produtora de níquel e platina do mundo (FREELAND, 2000). Pouco depois, Potanin adquiriu 51% da (que explorava petróleo na Sibéria) por 176

pouco mais de US$ 130 milhões (2 anos depois, a BP92 pagou mais de quatro vezes esse valor por 10% das ações). No caso da , uma das maiores empresas do mundo no setor petrolífero, ela havia sido “informalmente prometida” para Mikhail Khodorkovsky, proprietário do banco Menatep. Mesmo assim, Rossisky Kredit, Inkombank (do oligarca ) e o Grupo Alfa (Alfa Bank, do também oligarca Mikhail Fridman) decidiram dar lances pela Yukos, ao mesmo tempo em que promoviam uma campanha pública para denunciar que os leilões já estavam esquematizados para garantir a vitória de Khodorkovsky. Em contexto de eleições parlamentares, foi o suficiente para comunistas virem a público atacarem ferozmente o programa de privatização (alimentando ainda mais os receios de que, caso os comunistas retomassem o controle sobre o governo, o processo poderia ser revertido). Mesmo sob ataque público, em 8 de dezembro de 1995, o leilão da Yukos foi realizado e os três bancos ‘rivais’ também foram eliminados por questões técnicas. Khodorkovsky garantiu 45% das ações da Yukos por US$ 159 milhões (FREELAND, 2000).

TABELA 12 – Alguns resultados dos leilões de empréstimos por ações Ativo leiloado % de ações Preço inicial, em Lance vencedor, Instituição leiloadas milhões de em milhões de vencedora dólares dólares (de 1995) (de 1995) Surgutneftegaz* 40.12 66.7 88.9 Fundo de Pensão da Surgutneftegaz Norilsk Nickel** 38 170 170.1 ONEKSIMBank/MFK ** 15 5 13.3 Imperial Northwest 25.5 6 6.05 MFK/ONEKSIMBank Shipping*** * 5 35 35.01 Imperial/Lukoil Sidanko* 51 125 130 MFK/ONEKSIMbank NLMK** 14.84 30 31 MFK/ONEKSIMbank Murmansk 23.5 4 4.125 Menatep

92 A BP, ou British , é uma empresa multinacional sediada no Reino Unido que opera no setor de energia, sobretudo de petróleo e gás. 177

Shipping*** Yukos* 45 150 159 Menatep Novorossiisk 20 15 22.65 Novorossiisk Shipping*** Shipping Company Nafta- 15 20 20.01 Nafta- Moscow**** fin/ONEKSIMbank Sibneft* 51 100 100.3 Stolichnyi/Menatep *Empresa de petróleo/gás. **Empresa de mineração. ***Transportadoras. ****Trading. Fonte: Rezultaty auktsionov, Panorama privatizatsii, n. 3, Fev. 1996, p. 52-54 apud FORTESCUE, 2006, p.56

Apesar do processo ter sido iniciado, de fato, antes da realização das eleições, acreditamos que o contexto foi importante por estabelecer essa relação de dependência entre o governo Yeltsin e o grupo de grandes banqueiros russos – o futuro do governo Yeltsin e a consolidação da posse desses banqueiros sobre algumas das principais empresas russas ficaram intrinsecamente ligados. Esse período foi marcante para situar os oligarcas como importantes atores políticos e financeiros na Rússia. Apesar de terem protagonizado algumas disputas pelas principais propriedades do país, os chamados “oligarcas” alinharam sua atuação para garantir a reeleição de Yeltsin – preservando, assim, os seus interesses econômicos. Antes de dedicarmos uma seção focando especificamente na ascensão dos oligarcas, devemos fazer uma breve avaliação sobre os resultados desse período de privatização acelerada dos ativos da economia russa.

3.3. Principais resultados do processo de privatização da economia russa

Uma vez que apresentamos de forma detalhada os processos que deram forma à privatização da economia russa na seção anterior, deveremos agora trabalhar quais foram alguns dos principais resultados desse processo – deixando uma discussão aprofundada que dialogue com o referencial teórico de nosso trabalho para o quarto e último capítulo, concluindo assim os objetivos previstos. Como buscamos demonstrar ao apresentar a descrição dos processos que caracterizaram a privatização, o período foi marcado por uma profunda disputa para conseguir o controle sobre os ativos do Estado russo, caracterizando uma verdadeira luta pela redistribuição da propriedade. A privatização foi justificada pelo governo como necessária para aliviar o Estado do encargo de administrar toda a 178

economia, e também como uma forma de obtenção de recursos para o orçamento público. Medvedev (2000) apresenta uma citação de Alexander Shokhin, que ocupou o cargo de ministro da economia no governo Yeltsin em 1994. Shokhin afirma que,

Quando passamos para a fase monetária da privatização [deixando de lado o estágio dos vouchers] um conflito óbvio de escolhas se apresentou: seria a privatização para fins de investimento ou para fins de orçamento? O esquema ideal teria sido aquele em que a renda da privatização monetária pudesse ser direcionada para o investimento real na economia. Este era um caminho que levava diretamente à recuperação da economia. Mas a situação financeira e orçamentária em 1995 nos forçou a pensar na necessidade de vender o máximo de propriedades possível para cobrir o déficit orçamentário não inflacionário (Rabochaya Tribuna, 15 jul. 1995, apud MEDVEDEV, 2000, p. 150, tradução e destaque nossos93).

O ministro procurou justificar a privatização como uma alternativa apresentada para o governo russo, uma maneira de obter recursos para o orçamento público. Medvedev (2000) considera que o argumento não teria muita força – segundo o autor, o orçamento federal russo fez pouco mais de US$ 1 bilhão com as privatizações da fase monetária, o que representaria, ainda segundo o autor, cerca de 1,5% do orçamento anual russo. Além de não gerar recursos suficientes, a venda dessa propriedade ainda reduziu a possibilidade de utilizá-la para gerar receita, ou de viabilizar investimentos na economia real que pudessem contribuir para a recuperação do crescimento econômico russo. Ainda segundo Medvedev (2000), os grupos ligados a Chubais também justificavam que não havia na Rússia quem tivesse capital suficiente para comprar os blocos mais valiosos da propriedade estatal, caso fossem tomados como referência os preços no mercado internacional para empresas da mesma grandeza das que foram leiloadas no processo de empréstimos-por-ações, por exemplo. Ao mesmo tempo, os reformistas destacavam a necessidade de criar o mais rápido possível um estrato de proprietários privados para administrar a propriedade de forma mais eficiente do que o Estado. Medvedev (2000, p. 150) considera isso outro

93 No original: “When we entered the monetary phase of privatization [as opposed to the voucher stage] an obvious clash of choices revealed itself: would it be privatization for purposes of investment or privatization for the budget? The ideal scheme would have been one in which income from monetary privatization could go toward real investment in the economy. This was a road leading directly toward revival of the economy. But the financial and budgetary situation in 1995 forced us to think about the necessity of selling as much property as possible to cover the noninflationary budget deficit.” 179

argumento sem fundamento: o autor afirma que os novos proprietários “[...] não tinham nem a habilidade nem os incentivos necessários para gerenciar com eficiência essas empresas compradas a baixo custo.”. Os reformistas defendem que os preços baixos das empresas nos leilões seriam resultado do controle excessivo dos políticos sobre elas – ou seja, as avaliações de mercado refletiriam a preocupação dos possíveis compradores com a influência política que era exercida sobre os ativos que estavam sendo leiloados.

Mesmo com os ministérios setoriais fora de cena, o controle residual [de forças políticas sobre as empresas] permite que os políticos expropriem a riqueza dos acionistas por meio de regulamentos, restrições impostas à produção, demissões, direitos aduaneiros e muitas outras intervenções, incluindo a [sempre presente] ameaça de nacionalização. […] Políticos ainda influenciam as empresas em diversos níveis. […] Ademais, em muitos casos em que o governo central reduziu o seu controle sobre as empresas, os governos locais ascenderam e expandiram a sua influência, especialmente porque serviços sociais continuaram sendo providos pelas empresas (BOYCKO et al., 1995, p. 121-122, tradução nossa94).

Apesar da preocupação dos reformistas com a manutenção de determinada influência política sobre a administração das empresas, o fato é que a privatização contribuiu de forma decisiva para a constituição de uma nova classe de proprietários, que também tinha seus próprios interesses políticos. Desde o fim de 1992, quando estava sendo traçado o processo de transformações na Rússia, percebe-se que, apesar do discurso de parte dos políticos ter mantido o tom das metas de arrecadação de recursos da privatização, acentua-se o aspecto sociopolítico dos objetivos do plano. O ápice desse foco sociopolítico pode ser apontado durante a instabilidade política decorrente da luta eleitoral de 1995 e 1996, quando o governo buscou apoio junto ao grande capital russo em formação, ao mesmo tempo em que realizava a privatização das suas maiores e mais rentáveis empresas (em especial nos setores petrolífero e de mineração). Segundo Starodubrovskaia (2005) o rendimento reduzido dos leilões

94 No original: “Even with sectoral ministries out of the picture, residual control enables politicians to expropriate shareholder wealth through regulations, restrictions on product mix and layoffs, custom duties and many other interventions, including the threat of potential nationalization. […] Politicians still influence firms through multiple levels. […] Moreover, in many cases where the central government has reduced its control over firms, local governments have stepped in and increased theirs, largely because social services continue to be provided through firms.” 180

seria justificado justamente por essa aproximação política, já que o governo precisava garantir o apoio dos principais círculos financeiros às vésperas das eleições. Ao mesmo tempo, a autora afirma que havia uma reduzida demanda pelos ativos fixos das empresas, também devido ao período de imprevisibilidade dos resultados eleitorais (o mercado estaria lidando com o risco de um próximo governo reverter ou alterar as políticas da privatização). As questões políticas que envolveram todo o processo de privatização acabaram minando a legitimidade da sua realização. Apesar do andamento da privatização ter recebido um apoio inicial expressivo por parte da população, sobretudo durante o período de distribuição dos vouchers, essa popularidade acabou sendo minada conforme avançava a divisão da propriedade estatal ao mesmo tempo em que o governo acumulava tentativas frustradas de recuperar o crescimento econômico, sem conseguir brecar a queda da qualidade de vida da população95. A forma com que se deu a privatização e o surgimento de um pequeno grupo de grandes proprietários (que lucraram muito nesse período enquanto parte da população enfrentava sérias dificuldades) foram eventos importantes para minar a confiança no governo, no discurso sobre “democracia” e nas tentativas de reforma econômica. A imagem desse período era do governo russo ‘dando’ seus ativos mais valiosos para um pequeno grupo, enquanto ao mesmo tempo não conseguia pagar pensões e aposentadorias (STIGLITZ, 2002). Apesar do sucesso do programa de privatização em mover essencialmente toda a economia estatal russa para o setor privado, o governo russo não teve a preocupação de estabelecer um programa de suporte para os russos que estavam sofrendo com o impacto das transformações econômicas e da implantação do programa (DESAI, 2005).

95 Guriev e Rachinsky (2004, p. 21, tradução nossa) citam pesquisas do início dos anos 2000 que foram feitas na Rússia sobre a avaliação da população sobre o processo de privatização: “Na pesquisa de julho de 2003 realizada pela ROMIR [representante na Rússia da Gallup International Association. associação de organizações de pesquisa registrada em Zurique], 88% responderam que todas as grandes fortunas foram acumuladas de maneira ilegal e 57% concordaram que o governo deveria iniciar investigações criminais contra os ricos. Em agosto de 2001, 72% dos russos disseram ao VCIOM [Centro de Pesquisa de Opinião Pública da Rússia] que ‘a melhor coisa a fazer agora sobre privatizações passadas’ seria ‘investigar todas as ações erradas do passado e devolver as propriedades afetadas ao Estado’ (apenas 12% concordaram que ‘Anistia para fortalecer os direitos de propriedade’ seria uma boa ideia)”. 181

Para os reformistas, a preocupação com a elaboração de um plano que amenizasse os impactos das transformações do período na população, ou o estabelecimento de um projeto que garantisse a saúde financeira das empresas após concluída a privatização, focando no aspecto da eficiência dessas empresas segundo o padrão do mercado, eram questões de segunda ordem. A prioridade e o objetivo central era garantir o estabelecimento da propriedade privada para “criar o sistema capitalista”, como se tal garantia fosse condição suficiente para estabelecer esse sistema. Havia um discurso que, uma vez que os proprietários privados dos meios de produção estivessem com o controle, as “demais peças do sistema se encaixariam” (FREELAND, 2000). Com o grupo de proprietários estabelecido, as reformas teriam uma “proteção” mais forte, e dificilmente poderiam ser revertidas. Essa urgência para realizar a transferência da propriedade também nos ajuda a compreender porque o governo Yeltsin “aceitou” que uma parcela grande das empresas permanecesse nas mãos dos seus antigos diretores, que controlavam as empresas desde o período soviético (notoriamente conhecidos como diretores vermelhos). Anatoly Chubais, naquele momento [1992] o Ministro da Privatização, estava com pressa. Preparados ou não, essa urgência levou à imediata distribuição de ações das companhias estatais para o público de forma geral. Uma vez que as pessoas tivessem parte do patrimônio em suas empresas, Chubais acreditava que eles, em conjunto com a administração e os trabalhadores das empresas, fariam oposição aos esforços dos líderes comunistas de retomar o controle estatal. Ao atender tais preocupações políticas, Chubais acabou reduzindo os esforços para estimular a eficiência administrativa e a reestruturação [nessas empresas] (GOLDMAN, 2003, p. 197, tradução nossa96).

A equipe responsável por conduzir a privatização, liderada por Chubais, concordou em atribuir poder às diretorias das empresas, e esses diretores, que essencialmente já tinham o controle efetivo dessa propriedade, encontraram os meios para assumir o patrimônio de fato das mesmas. O importante naquele momento era garantir que fosse estabelecida a propriedade privada e seus novos

96 No original: “Anatoly Chubais, at that time [1992] the Minister of Privatization, was in a hurry. Ready or not, this led to the immediate distribution of shares in state-owned companies to the public at large. Once the public had an equity in their factories, Chubais reasoned that they, along with both factory management and workers, would oppose efforts by communist leaders to return to state controls. While responding to these political concerns, Chubais ended up shortchanging the effort to stimulate managerial efficiency and restructuring.” 182

proprietários estivessem dispostos a defender o seu direito por essa propriedade. Assim, é importante frisar que parte significativa das condições para o surgimento de uma classe de proprietários foi gestada ainda no período soviético, conforme esses diretores consolidaram seu controle sobre as empresas. Uma vez afirmado esse controle através da propriedade de fato, se os administradores não obtivessem sucesso em sua missão de melhorar a eficácia das empresas de acordo com os parâmetros estabelecidos pelo mercado, os reformistas defendiam que, eventualmente, o “corpo de diretores” seria mobilizado para que a administração da empresa fosse substituída. Apesar da forte presença desse princípio dentre os reformistas, de que as empresas e o mercado teriam capacidade de adaptação constante conforme as pressões dos atores e do próprio ambiente de mercado, acreditamos que tal ideal não estaria totalmente de acordo com a realidade da estrutura econômica russa naquele momento. Primeiro que os conceitos do que era considerado “eficiente” para o mercado não estavam totalmente definidos entre aqueles que exerciam controle de fato sobre as empresas russas. O foco era lucrar o máximo possível no curto-prazo, sobretudo considerando o clima de instabilidade que marcou o período. Além disso, ainda estavam sendo definidos e gradualmente colocados em prática os direitos e as regulamentações envolvendo a propriedade privada e a sua gestão. Portanto, é difícil afirmar que o “corpo diretor” ou que os “acionistas” das empresas teriam capacidade prática de exercer um controle de fato sobre as empresas, sobretudo em decisões de peso tal como a de definir o futuro da administração ou os principais direcionamentos da produção, sendo que naquele momento questões mais simples como o repasse de dividendos geravam conflitos de imensa complexidade, e não encontravam uma infraestrutura legal preparada para receber e lidar com tal realidade. Ainda sobre o controle que era exercido sobre os diretores, Medvedev (2000) afirma que: Mesmo quando 51% das ações de uma empresa estatal foram distribuídas entre seus trabalhadores de colarinho azul e colarinho branco, os diretores se tornaram os donos de facto. Era praticamente impossível impor novos proprietários que viessem de fora [da empresa]. Fez um sentido político 183

considerável para o regime pós-soviético permitir essa fusão de poder e propriedade nas mãos do corpo de ex-diretores vermelhos: isso reduzia a força e a intensidade da oposição. Deixar o grupo de gerentes, um grupo influente e poderoso e que também tinha experiência como líderes partidários, sem propriedades ou posições, teria fortalecido muito a oposição (MEDVEDEV, 2000, p. 177, tradução e destaque nossos97).

Dessa forma, um importante movimento da privatização da economia russa foi transferir grande parte das empresas estatais para as mãos daqueles que estavam mais preparados (e nas melhores posições) para agarrá-las. Medvedev (2000) afirma que o plano definiu um “modelo único russo de formação de uma classe”. Não só a figura de Chubais, mas o conjunto dos reformistas, incluindo também o grupo mais ligado às reformas de Gaidar, todos apostavam alto na criação da propriedade privada como forma essencial de desconectar o Estado da economia, ainda que as instituições consideradas necessárias para o “bom funcionamento do mercado” não estivessem preparadas para atuar no cenário da economia russa. Assim como previamente mencionado, sobre o princípio da capacidade de adaptação do mercado e de seus atores como elemento basilar da política de reformas, mais uma vez os reformistas defendiam que, uma vez que fosse estabelecida a classe dos proprietários privados, a privatização atuaria como uma importante alavanca que aceleraria o processo de reformas legais, auxiliando na sua adaptação, e que, eventualmente, levaria a um “sistema eficiente de governança corporativa”. Autores como Goldman (2003), que defendem de fato a existência de um modelo de sistema eficiente e o “bom funcionamento do mercado” através de instituições fortes, afirmam que tais adaptações do mercado poderiam ser alcançadas em uma economia de mercado padrão (GOLDMAN, 2003, p.70). Contudo, o autor afirma que as características do processo que foi desencadeado especialmente na Rússia inviabilizariam essa fluidez dos movimentos do mercado.

97 No original: “Even when 51 percent of the shares in a state-owned enterprise were distributed among its blue-collar and white-collar workers, the directors became the de facto owners. It was virtually impossible to impose new owners from the outside. It made considerable political sense for the post-soviet regime to allow this merger of power and property in the hands of the corps of former ‘red directors’: this reduced the strength and intensity of opposition. To have left influential and powerful managerial personnel, who also had experience as party leaders, without property or positions would have strengthened the opposition many times over.” 184

Assim, o fato da economia russa ser altamente concentrada em monopólios, e como essa estrutura foi mantida em essência mesmo após a privatização, seria um exemplo, para Goldman, desse tipo de barreira imposta pelas características da economia russa. O autor acredita também que o problema não foi somente o modelo de privatização adotado, mas como a sociedade russa não estava pronta para o processo. Não havia no país clima social, político ou econômico que favorecesse o desenvolvimento desse processo, sobretudo após 70 anos de história de um sistema totalmente diferente que criou um ambiente que era hostil e propenso a distorcer qualquer processo de privatização. Ainda que de forma tumultuosa, os reformistas alcançaram seus principais objetivos com a privatização, sobretudo quando consideramos o aspecto quantitativo da reforma, como podemos perceber na tabela 13. Em 1991, o setor privado da economia russa era irrelevante. Em menos de quatro anos, mais de metade da mão de obra russa estava empregada em empresas privadas ou parcialmente privatizadas (FREELAND, 2000, p. 69). A equipe responsável por conduzir esse processo se orgulhava que 60 a 70% das estatais russas foram privatizadas nesse período. Mas o que isso significou de fato, além da formação da classe proprietária que seria o instrumento político necessário para viabilizar a continuidade das reformas? Os novos donos não injetaram capital em seus negócios, o crescimento não foi retomado, e a maioria absoluta das empresas continuou funcionando conforme as mesmas lógicas do período soviético, tanto na sua organização interna, como nas relações estabelecidas com os consumidores (GOLDMAN, 2003).

TABELA 13 – Principais indicadores do processo de privatização na Rússia

Total desde 1.01 de 1.01 de 1.07 de 1.01 de 1.01 de 1.01 de 1.01 de 1.01.1992 1993 1994 1994* 1995 1996 1997 1998 atualizado para o dia

1. Empresas públicas de 20499 direito privado e patrimônio próprio

2. Propostas 10233 12549 13750 143968 147795 14900 15566 apresentadas

3. Propostas 5390 9985 11488 12317 13295 13642 15607 declinadas 185

4. Propostas 46628 24992 19308 17491 13214 12327 10305 em fase de atendimento

5. Propostas 46815 88577 10379 112625 118797 12374 12682 atendidas

6. Preço de venda dos bens (em bilhões de 57 752 1107 1867 2510 3230 5723 rublos aos preços anteriormente praticados)

7. Valor dos bens vendidos de acordo com as propostas 193 653 958 1092 1618 2205 2875 atendidas (em bilhões de rublos, aos preços anteriormente praticados)

8. Empresas públicas transformadas em 2376 14073 20298 24048 27040 29882 30900 Sociedades Anônimas com oferta pública de ações Fonte: elaborada por Starodubrovskaia (2005, p. 213) com base nos dados apresentados pelo Ministério da Administração dos Bens Públicos da Federação da Rússia e do Acervo Nacional de Bens Federais (conteúdos originais em russo). *A data oficial do fim da privatização via vouchers **Itens 6 e 7 não consideram as maiores vendas

Freeland (2000) afirma que, apesar do sucesso alcançado pelo projeto de transferir propriedade para o setor privado, outro “importante objetivo dos reformistas” não teria sido alcançado – eles não teriam conseguido melhorar a eficiência e a lucratividade das empresas privatizadas. Além disso, a autora faz uma crítica sobre como os reformistas toleraram a corrupção no decorrer do processo, argumentando que, com o objetivo central de privatizar as propriedades de qualquer forma possível, teria sido legalizada a captura dos bens estatais pelos diretores da era soviética (e se os diretores queriam pegar fatias maiores do que lhes era garantido pelas provisões do programa de privatização, os oficiais do GKI “faziam 186

vista grossa”). Sobre essa análise da autora, consideramos importante destacar dois pontos: em primeiro lugar, é difícil afirmar que “eficiência” e “lucratividade” foram objetivos importantes dos reformistas nesse momento da privatização. Parece-nos bastante evidente que, desde a elaboração do plano de privatização, a prioridade dos reformistas não foi alcançar esses parâmetros de avaliação do desempenho das empresas definidos em uma economia de mercado. Um segundo ponto é a questão da crítica à corrupção do processo, e que aparece frequentemente na bibliografia sobre esse período mais alinhada a uma perspectiva liberal. A crítica voltada à corrupção traz um aspecto de avaliação sobre a moralidade do processo, caracterizando os agentes como corruptos, e tira o foco da problematização envolvendo a transferência da propriedade estatal para poucos agentes privados – em que pese estejam sendo transferidas as propriedades, o problema central passa a ser que o processo não foi realizado de forma honesta segundo determinados padrões estabelecidos. Além disso, é ainda mais difícil falar sobre corromper processos em uma realidade em que os regulamentos e os procedimentos legais estavam escassamente definidos. O fato da elaboração do plano de privatização ter ocorrido ao mesmo tempo em que eram determinadas as regulamentações importantes para o processo deu uma imensa liberdade de atuação para os reformistas – as regras do jogo foram definidas conforme o jogo estava já em andamento, ambiente perfeito para que os jogadores busquem conquistar o máximo de vantagens possíveis. Ainda em 1993, antes da privatização ter avançado de fato, Kagarlitsky (1993, p. 234) já alertava que seria inevitável uma série de escândalos envolverem a “jornada rumo à privatização”, porque a disputa pela propriedade carregava um impasse próprio: “[...] a privatização não pode ser implementada sem abusos monstruosos, devido à ausência de um mercado e de leis operantes”. Nesse período em que escrevia, Kagarlitsky via com bastante crítica a perspectiva de realizar a privatização no contexto daquele momento da economia russa. O autor argumenta que não havia na Rússia uma economia de mercado estabelecida, e naquele momento havia uma dificuldade do Estado efetivar as leis (quando a situação ainda não era mais difícil pela ausência de legislação específica que atendesse as demandas do novo contexto), e não existia um desenvolvido sistema de leis comerciais. Acima disso, havia ainda a preocupação sobre quem compraria as 187

propriedades privatizadas, sendo que não havia constituída no país uma burguesia organizada. Diferente do que os reformistas afirmam, Kagarlitsky não acredita que a privatização levaria rapidamente a uma estrutura de mercado idealizada pelo modelo liberal, especialmente porque a característica monopolística da economia russa foi mantida. Além das estruturas de monopólio, permaneceram também as práticas realizadas na gestão empresarial e no relacionamento entre as unidades econômicas, e entre elas e os consumidores. Assim, o sistema que era formado naquele momento não foi uma ruptura absoluta com o sistema anterior – foram herdados muitos dos elementos que caracterizaram o sistema soviético, e, conforme demonstramos ao longo do capítulo, até mesmo os diretores e as equipes de gestão que controlavam as empresas continuaram, na maioria dos casos, as mesmas, o que significou pouca mudança na prática econômica. Com a permanência da maioria desses diretores controlando as suas empresas, podemos afirmar que um grupo político de considerável relevância no sistema soviético não só conseguiu manter parte do seu poder de influência após o colapso desse sistema, como também conquistou um poder econômico ainda mais relevante, concretizado com a aquisição da propriedade, uma vez que passou a ter controle de fato sobre os fluxos financeiros das empresas sem mais precisar se preocupar com a administração estatal. Dessa forma, apesar do discurso dos reformistas tentar frequentemente conectar as reformas realizadas na economia russa com uma “revolução liberal”, sobretudo considerando como a privatização ocorreu ao mesmo tempo em que o governo realizava medidas em conformidade com a estratégia da “terapia de choque”, estruturas que são importantes para o modelo idealizado do capitalismo liberal (e que garantiriam o que muitos autores defendem como o “bom funcionamento” do mercado), tais como regulamentações antimonopólio ou defesa dos direitos dos acionistas, não existiam na Rússia e não eram colocados como prioridade dessas reformas. Freeland (2000) acredita que tais estruturas seriam vitais para garantir que a mudança na propriedade levasse a uma economia próspera e funcional. Goldman (2003, p. 29), que apresenta uma perspectiva até certo ponto alinhada com Freeland, argumenta que, ao priorizar os objetivos políticos e “ignorando imperativos econômicos” (sic), Chubais teria levado à criação de 188

deformidades estruturais na economia russa que não poderiam ser facilmente corrigidas, ignorando a inexistência de um mercado estabilizado na Rússia ou de uma infraestrutura competitiva que tivesse capacidade de absorver esses novos monopólios privatizados. Podemos considerar como exemplo do que o autor considera “deformidades” da estrutura econômica russa a rede de dívidas estabelecida entre as empresas, mesmo após a privatização. Os grandes monopólios russos nos setores de energia e transporte permitiam que outras empresas acumulassem grandes dívidas – essas empresas menores não conseguiam pagar por esses serviços essenciais para o seu funcionamento, e, devido ao contexto de crise econômica, encontravam dificuldades em arcar com o pagamento de impostos ou o pagamento de salários. Isso alimentava um ciclo depressivo da economia, dificultando a situação do governo, que também não conseguia fechar as contas do orçamento público, prejudicando, por exemplo, o pagamento de pensões, ou até mesmo o fornecimento de energia em prédios públicos (FREELAND, 2000). Para garantir sua sobrevivência, as empresas recorriam a práticas como o escambo, o cancelamento mútuo de dívidas, entre outros. Enquanto a economia real penava para sobreviver, montantes enormes ‘atravessavam’ o mercado, circulando em estruturas ilícitas, ou se concentrando em instituições financeiras que especulavam com a dívida pública ou sobreviviam do fornecimento de crédito para operações financeiras, enquanto o crédito para as empresas, por exemplo, era escasso e tinha altas taxas. A Gazprom, por exemplo, vendia gás no mercado doméstico com preço subsidiado pelo governo russo, e a tolerância com a inadimplência era maior com os clientes russos. A gigante russa também recebia inúmeras e generosas concessões fiscais, ao mesmo tempo em que o governo russo deixava de pagar salários de professores e aposentadorias (FREELAND, 2000). Sobre as alternativas que as empresas buscaram para sobreviver nesse contexto, Kagarlitsky (2002) afirma que:

O mecanismo que é descrito difere pouco do “mercado cinzento” [mercado ilícito] que operava entre as empresas nos últimos anos do período soviético. A única diferença é que, no fim dos anos 1980, os economistas liberais 189

argumentavam que, com a privatização e a liberalização, todos esses fenômenos desapareceriam por conta própria (KAGARLITSKY, 2002, p. 194, tradução nossa98).

O autor conclui que as relações que eram estabelecidas nesse período após a privatização caracterizavam, cada vez mais, uma situação paradoxal: quanto mais a privatização avançava, e as empresas se tornavam propriedades privadas, mais o Estado precisava intervir para evitar o colapso desses novos proprietários – e quanto mais o Estado precisava fornecer investimento e créditos, seu orçamento era asfixiado. Mais uma vez, a análise da privatização e dos processos subsequentes na Rússia nos permite fazer referência à perspectiva de Harvey (2005; 2013) sobre a acumulação por espoliação e o papel fundamental desempenhado pelo Estado para garantir que os atores privados alcancem esse acúmulo de capital. O Estado russo, nesse caso, estava ativamente sangrando recursos públicos para garantir a sobrevivência desses proprietários, e em contrapartida os proprietários essencialmente não estavam cumprindo seu papel de utilizar esses recursos para investir na economia real. O foco desse grupo era buscar oportunidades de lucros que combinassem ganhos em curto-prazo e com altas taxas de retorno. A melhor oportunidade apresentada, portanto, era o setor financeiro que crescia de forma vertiginosa nesse período, alimentado pelas grandes possibilidades de avanço em um país que, essencialmente, não contava com qualquer regulamentação concreta que colocasse rédeas nesse crescimento. Para esse crescimento desenfreado, um importante elemento foi a “economia das brechas” (loophole economy), que Freeland (2000) considera um dos setores mais lucrativos desse período na Rússia, e que tem uma relação direta com o gradual colapso da arrecadação fiscal no país e as práticas cada vez mais frequentes de evasão fiscal e fuga de capitais. O governo enfrentava dificuldades para cumprir com funções básicas, enquanto era estimado que bilhões de dólares fugiam todos os anos da economia russa. Ilustrando esse cenário, Freeland (2000) cita o exemplo da Inguchétia (uma pequena república da Federação russa,

98 No original: “The mechanism described differs little from the ‘grey market’ that operated between enterprises in the final years of the Soviet epoch. The only difference is that, in the late 1980s, liberal economists argued that, with privatization and liberalization, all these phenomena would disappear of their own accord.” 190

localizada no norte do Cáucaso), que foi transformada em um paraíso fiscal dentro da Rússia, realizando uma série de cortes nos impostos. Outra prática comum para evitar os impostos sobre exportações era o uso do “preço de transferência”: a produção a ser exportada era vendida para intermediários com preços artificiais abaixo do nível internacional, sendo que esses “intermediários” muitas vezes eram empresas ligadas à produtora, mas localizadas no exterior ou nos paraísos fiscais regionais (como no caso da Inguchétia mencionado acima). Segundo Schutte (2011), além dos evidentes problemas de evasão fiscal e fuga de capitais, o uso desse mecanismo ainda gerava profundas distorções nos dados oficiais sobre a participação dos setores que faziam uso dessa prática no PIB. Com o uso desses instrumentos, aumentou a exportação de matéria-prima russa para os países ocidentais (petróleo, gás, minério, madeira). Além das vendas realizadas por preços abaixo do nível internacional, grande parte dos dólares (ou marcos, ou libras) obtidos nesses negócios não voltava para a Rússia - iam para as contas privadas das empresas no exterior. Esse processo auxiliou no enriquecimento dos proprietários envolvidos nesses setores, dos intermediários, e de muitos oficiais do governo que atuavam nas operações de comércio exterior e garantiam a eficácia desses processos (MEDVEDEV, 2000). As enormes reservas de recursos naturais da Rússia representavam, inegavelmente, uma grande oportunidade de enriquecimento. Além do petróleo e do gás, com o fim da União Soviética e da Guerra Fria, a demanda interna na Rússia por materiais como alumínio, titânio e aço diminuiu muito, e os preços desses materiais no mercado doméstico estavam bem abaixo dos preços do mercado internacional. Esse cenário apresentava uma oportunidade de altos lucros para quem controlasse a exportação desse material:

Com baixo custo (as fábricas foram basicamente gratuitas para o novo proprietário e cada vez menos fábricas se preocupavam em pagar salários a seus trabalhadores ou em pagar seus fornecedores dentro dos prazos), a maior parte da receita obtida era essencialmente puro lucro. Ainda mais tentador, já que o pagamento pelos produtos, especialmente exportações, vinha de compradores estrangeiros, esses fundos eram facilmente mantidos fora da Rússia (GOLDMAN, 2003, p. 73, tradução nossa99).

99 No original: “With low cost (the factories were basically free to the new owner and fewer and fewer factories bothered to pay wages to their workers and bills to their suppliers on time) most of the 191

O colapso do sistema soviético combinado com o avanço da privatização acabou resultando em um período de profundas tensões. O governo russo não estabeleceu as regulações necessárias para lidar com a propriedade privada e com a estrutura de mercado, e a maioria das regulações existentes conforme as reformas e a privatização avançavam eram textos adaptados de regulações que tratavam sobre empresas estatais, um universo completamente diferente do sistema que era instalado às pressas no país. Goldman (2003) conclui que sem regulamentações bem definidas, e em um ambiente sem a existência de concorrência entre as empresas, não existiam definições sobre os limites do que poderia ser apropriado para ser revertido em lucro particular dos novos detentores das propriedades e do capital que era acumulado. O Estado russo não só encontrava adversidades orçamentárias ou de regulamentação dos processos, mas também precisava lidar com a dificuldade de efetivar as transferências de propriedade definidas na privatização e de impor a eficácia das leis existentes. Freeland (2000) ilustra essa dificuldade apresentando o caso da privatização da empresa ZNGG, que explora gás e petróleo no Ártico, e que foi comprada pelo grupo de Kakha Bendukidze. Segundo relato da autora, Oleg Kudrin, que era diretor da empresa desde o período soviético, teria se recusado a entregar o controle da empresa. Bendukidze processou Kudrin e venceu, mas a decisão da corte não teve efeito algum. O governo não tinha músculo para garantir a execução da justiça. A equipe de segurança privada de Bendukidze teria ido até a sede da ZNGG para tomar o controle da empresa através do uso da força (FREELAND, 2000). Esse tipo de ocorrência ilustra as dificuldades para exercer os direitos de propriedade na Rússia. Com o avanço da privatização, outra prática que Fortescue (2006) aponta que se tornou comum foi a manipulação dos registros das ações das empresas. Segundo o autor, eram extremamente frequentes ocorrências sobre a remoção dos registros dos nomes dos acionistas que “não eram bem-vindos”, manipulação das reuniões e das pautas, além de práticas como os conselhos

revenue earned was virtually pure profit. Even more tempting, since payment for the goods, especially exports, was coming from overseas purchasers, these funds were easily kept outside Russia.” 192

recusarem o reconhecimento do direito de voto de determinados acionistas, ou autorizarem a emissão de ações para diluir a participação de determinados grupos. Os bancos também foram beneficiados uma vez que foi estabelecido o primeiro código de falência na Rússia pós-soviética, que foi utilizado pelo setor bancário para obtenção do controle de diversas propriedades. O código foi organizado para facilitar para os credores o decreto da falência das empresas devedoras, e então providenciar uma substituição da administração. Segundo Fortescue (2006), o código foi utilizado como uma forma hostil de assumir o controle da empresa. Ainda que o devedor se mostrasse disposto a quitar ou negociar a dívida, era feito um malabarismo para garantir que o pagamento não fosse feito e que os credores conseguiriam assumir o controle sobre os ativos. Mais uma vez, podemos questionar o argumento dos reformistas de que, uma vez que o grupo de proprietários privados estivesse formado, este se organizaria para defender o estabelecimento da infraestrutura institucional que é considerada necessária para o bom funcionamento do mercado. Com os interesses dos proprietários privados organizados, o processo político poderia avançar e essa infraestrutura poderia ser rapidamente estabelecida. Nossa análise vai ao encontro do argumento de Stiglitz (2002), de que, pelo contrário, é muito mais vantajoso para esses proprietários a manutenção um ambiente não regulado, onde possam realizar suas negociações sem qualquer transparência ou fiscalização. Os oligarcas, por exemplo, que passaram a controlar grandes monopólios, dificilmente estariam na linha de frente pela luta por uma política antimonopolista, que ameaçaria diretamente seus interesses particulares. É difícil acreditar que as exigências por regras e leis mais rígidas viriam dos grupos que justamente se beneficiavam tanto com a manutenção do status quo. Os atores que tinham interesse em estabelecer regulamentações mais fortes ou leis antimonopolistas, como o imenso setor de pequenos negócios (ou seja, a pequena burguesia), que engloba um leque enorme de negócios pequenos e médios, eram justamente os que recebiam menos ajuda do governo russo, do setor bancário e dos reformistas. Medvedev (2000) destaca que a legislação do período, ao invés de favorecer ou tentar ajudar a sobrevivência desses negócios, acabava bloqueando qualquer possibilidade de desenvolvimento desse setor. Era exigido dos pequenos negócios o cumprimento de uma série de questões burocráticas, envolvendo registros, taxações, e outros, e eles não recebiam o apoio que esse tipo 193

de negócio normalmente necessita para sobreviver no começo do seu desenvolvimento. O autor ainda destaca que o setor de pequenos negócios é extremamente importante para garantir a estabilidade na sociedade, tanto política como economicamente. Assim, o governo russo pode, ao não trabalhar de forma que auxilie a sobrevivência desse setor, alimentar ainda mais o clima de instabilidade do país. O Estado russo, em uma situação de enfraquecimento, respondia ao aumento da evasão fiscal com um aumento constante dos impostos, mas a contrapartida das empresas era buscar outras formas de evasão, um ciclo difícil de ser interrompido (KAGARLITSKY, 2002). Nesse período, outro agravante para a situação econômica russa foi a queda brutal da produção de petróleo, como demonstrado no gráfico 8, um dos principais setores da economia. Em 1996, a produção chegou a 60% do pico de 1987 (SCHUTTE, 2011). Ainda segundo Schutte (2011), a queda da produção pode ter tido como uma de suas causas a forma “desastrosa” (sic) com que o governo russo conduziu as privatizações. O autor acredita que a queda foi influenciada: “Os novos proprietários não eram do ramo e estavam mais interessados em tirar o máximo possível de riqueza em curto prazo e enviá-la para o exterior em um maciço e constante fluxo de fuga de capitais” (SCHUTTE, 2011, p. 93). Kagarlitsky (2002) também trabalha essa questão da queda da produção do petróleo, mas demonstra que houve ao mesmo tempo um aumento da exportação do produto, o que significa que a queda da produção está diretamente ligada à redução da demanda interna. Com o rublo valorizado no período e o aumento das exportações, as importações de bens de consumo ficaram mais acessíveis, minando ainda mais a indústria russa, que não conseguia competir com os produtos importados. A indústria russa sofria com a falta de investimento, enquanto os proprietários das empresas que estavam aumentando suas exportações começavam a lidar com os problemas da superacumulação do capital – o capital dos oligarcas estava altamente concentrado no setor financeiro.

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GRÁFICO 8 – Produção e preço do petróleo na Rússia

Fonte: BP Estatística apud SCHUTTE, 2011, p. 114

As ‘galinhas dos ovos de ouro’ que eram as empresas do setor energético, foram vendidas na fase dos empréstimos-por-ações por dezenas ou centenas de milhões de dólares, enquanto valiam de fato bilhões. A Yukos, por exemplo, que teve 78% das suas ações vendidas por cerca de US$ 350 milhões na época tinha uma avaliação de valor de mercado de mais de US$ 2 bilhões (MEDVEDEV, 2000, p. 149). No fim de 1995, Medvedev (2000) relata que representantes gestores das empresas produtoras de petróleo e gás alertaram Yeltsin e Chernomyrdin que a venda de ações desordenada e precipitada poderia resultar em perdas significativas para o Estado e em uma redução dos investimentos em um setor vital para a economia. Mesmo nas empresas em que os diretores conseguiram permanecer no controle da maioria das ações, depois surgiram problemas relacionados ao acesso ao capital que era imprescindível para manter as operações das empresas, ou para realizar investimentos necessários. As empresas tinham dificuldade para levantar esse capital sem correr riscos, e o Estado não tinha condições de atender essa demanda por investimentos. Piorando o cenário, havia pouco interesse do capital estrangeiro de investir diretamente no setor industrial russo – o foco do investimento direto que entrou no país nesse período era nos lucros do setor financeiro e na exploração do setor dos recursos naturais. Restavam poucas opções para o setor 195

industrial russo além da abertura das ações para outsiders, e assim as empresas ‘convidavam’ os bancos por necessidade, e, uma vez inseridos no corpo de acionistas, eventualmente os bancos encontravam os meios para obter a maioria das ações (FORTESCUE, 2006). A privatização não criou incentivos ou viabilizou a reestruturação das plantas industriais, ou o pagamento das dívidas acumuladas pelas empresas. Grande parte dos novos proprietários não tinham os meios para conseguir encaminhar a modernização dos seus ativos (MEDVEDEV, 2000). Durante esse período de crise econômica e enquanto as empresas tinham dificuldade de sobreviver com a ausência de investimentos e capital, ainda que grande parte das empresas tenha adotado o modelo de privatização que garantia parte das ações para o conjunto de trabalhadores, como já foi demonstrado, o controle sobre as empresas passou de fato para os diretores (e como vimos logo acima, os bancos logo buscaram formas de tomar esse controle). Joseph Blasi realizou uma pesquisa em 2000 empresas russas em 1993 (apud BOYCKO et al., 1995; apud FREELAND, 2000), e constatou que dois terços das empresas de médio e grande porte acabaram sob controle dos seus antigos administradores soviéticos, mesmo após a privatização. O controle dos diretores foi consolidado principalmente através da obtenção do apoio dos trabalhadores. Esse apoio foi conquistado informalmente, às vezes com medidas coercitivas, mas também formalmente, através de acordos em que os trabalhadores cediam os seus votos aos diretores. Mesmo enquanto os trabalhadores detinham o poder de voto e eram majoritários no capital das empresas, é difícil afirmar que eles conseguiam exercer alguma influência na sua administração, e quem exercia o poder de fato eram os diretores, que utilizavam uma série de práticas de intimidação, como ameaças de demissão ou redução de salários. Assim, foi relativamente simples para os diretores assumirem o controle das empresas. Os diretores do período soviético que emergiram em condições mais favoráveis após o colapso do sistema foram, sem dúvidas, os executivos das empresas do gás natural e do petróleo, que administravam as mais ricas reservas de recursos naturais do país. Freeland (2000) destaca os papéis de Viktor Chernomyrdin e Rem Vyakhirev. Chernomyrdin, enquanto ainda ministro soviético do setor de gás e petróleo, participou diretamente na formação da Gazprom, e assumiu a sua presidência. A venda das ações da Gazprom ocorreu da seguinte forma: 15% foi vendido para funcionários e gerentes no valor nominal; 10% ficou 196

com a própria empresa; 35% vendido para investidores domésticos; e 40% para o governo. Quando Chernomyrdin se tornou Primeiro-Ministro do governo Yeltsin, seu gabinete fez um acordo com aquele que havia assumido a presidência da Gazprom, Rem Vyakhirev, que deu ao presidente da companhia o direito de administrar as ações do governo e votar em seu nome nos encontros dos acionistas. Basicamente, controlar a maior parte da empresa mais valiosa da Rússia. De forma geral, no presente tópico tentamos apresentar alguns resultados principais do processo de privatização que foi desencadeado na Rússia sob o governo Yeltsin, focando em especial nos impactos que esse processo gerou na estrutura da economia e na formação de um grupo de proprietários. O processo obteve sucesso na sua intenção de transformar a estrutura de propriedade e passar a atividade econômica para o setor privado – a participação do setor privado no PIB, que era de menos de 10% em 1991, alcançou quase 50% em 1994, e ultrapassou os 70% logo em 1997 (MAZAT, 2013). Parte do grupo de proprietários privados que foi formado no período, sobretudo aqueles ligados aos setores mais fortes da economia russa (como os de energia e financeiro), conseguiu alcançar lucros absurdos durante esse período, mesmo enquanto a maioria da população sofria, e esses ganhos não refletiram de forma alguma em resultados positivos para a economia como um todo. Ao contrário, grande parte desses lucros foram obtidos conforme os recursos do país eram sangrados e a indústria doméstica era extremamente prejudicada. As condições fragilizadas da economia russa e a forma com que se deu o processo de privatização favoreceram uma rápida concentração da propriedade e do capital no país, e um dos principais oligarcas do período, Boris Berezovsky, declarou em novembro de 1996 para a revista que os sete maiores banqueiros da Rússia controlavam 50% dos recursos do país (apud GOLDMAN, 2003). No último tópico do terceiro capítulo, buscaremos compreender melhor qual foi a trajetória desses oligarcas, procurando esclarecer como conseguiram acumular tanto capital e tanto poder financeiro em um período tão curto, e em um país que passava por um dos períodos de maior declínio econômico de sua história. Antes de entrarmos no último tópico, que focará na ascensão da oligarquia russa, é importante destacar como a privatização foi um processo fundamental para a formação de uma classe burguesa russa, proprietária dos meios de produção, e que por mais que a oligarquia represente uma fração importante, com maior poder 197

econômico concentrado, ela não esgota a composição da classe. A burguesia russa é composta por diversas frações, dentre as quais podemos mencionar, por exemplo, o caso dos diretores do período soviético que conseguiram manter o seu controle sobre as propriedades que já administravam, como ilustrado pela pesquisa de Blasi supracitada. Dessa forma, ao colocarmos em evidência a oligarquia como fração principal, não pretendemos excluir a importância das outras frações, mas sim destacar a importância daquela que pode ser considerada a fração nuclear da burguesia russa.

3.4. A formação da “oligarquia” russa

Durante o desenvolvimento do presente capítulo, procuramos esclarecer diversos aspectos que compuseram o processo de transferência de propriedade realizado na Rússia durante a década de 1990, quando o governo Yeltsin embarcou na privatização de uma economia que era, até então, essencialmente controlada pelo planejamento estatal. Conforme demonstramos, foi um processo complexo, que envolveu diversos atores e interesses, e que teve diversos resultados e impactos na estrutura do sistema econômico russo. Uma das principais consequências da forma com que foi conduzida a privatização foi a concentração de um poder econômico e financeiro muito grande nas mãos de poucos indivíduos, que conseguiram acumular um enorme montante de capital e de patrimônios nesse período. A mobilização conjunta desses atores para atuarem de forma incisiva no cenário político, interferindo no desencadeamento dos processos políticos, fez com que o grupo ficasse notoriamente conhecido como “oligarquia russa”. A bibliografia consultada apresenta diferentes avaliações sobre os méritos ou, ao contrário, os prejuízos, que a formação desse grupo causou na sociedade russa, e parte dos autores questiona o próprio uso do termo “oligarquia”100. Contudo,

100 Considerando as limitações do presente trabalho, não teremos condições de expandir a discussão sobre o uso do termo “oligarquia”. Vale notar, entretanto, que Fortescue (2006) considera complicado tal uso, porque os “oligarcas” atuaram politicamente de forma coletiva em um período relativamente breve – e nas poucas ocasiões que o fizeram, foi com objetivos específicos e de curto-prazo. Os momentos marcantes de cooperação foram principalmente a eleição de 1996, a reação conjunta à crise financeira de 1998, a rejeição do governo do Primeiro-Ministro Sergey Kirienko (março a agosto de 1998). Mas os oligarcas também protagonizaram momentos de conflito, seu ápice sendo a 198

parece ser consensual a conclusão de que a forma com que foi realizada a privatização foi essencial para viabilizar a acumulação da propriedade em poucas mãos e formar esse grupo influente e poderoso. Na presente seção que encerra o terceiro capítulo, buscaremos apresentar um pouco sobre a trajetória de enriquecimento dos principais oligarcas da década de 1990, para compreender os fatores que contribuíram para a sua acumulação de capital, e também algumas notas sobre o poder acumulado pelo grupo como um todo. Não existe uma lista definitiva de quem seriam os oligarcas, e há uma dificuldade para identificá-los com precisão, especialmente considerando a falta de transparência nas estruturas da propriedade privada. Além disso, existe uma alta mobilidade vertical entre os grandes empresários russos, e muitos dos oligarcas que dominaram a economia no período Yeltsin, por exemplo, foram de tal forma abalados pela crise financeira de 1998 que acabaram saindo do topo, dando espaço para ascensão de outros grandes empresários. Na presente seção, para alcançar os objetivos propostos, focaremos nos sete oligarcas que foram os principais personagens dos eventos envolvendo as privatizações, os empresários que ascenderam no processo de acumulação primitiva do período Yeltsin, responsáveis pelos grandes grupos financeiros e industriais nas áreas de energia, mineração, comunicações e setor bancários, e que representariam o principal bloco de interesses no país daquele momento (MEDEIROS, 2011). Esses grandes grupos dominavam uma fatia enorme das empresas industriais e financeiras privatizadas da Rússia (Segrillo, 2000b, afirma que menos de dez oligarcas dominariam, direta ou indiretamente, cerca de 80% dessas grandes empresas). A estrutura do poder econômico desses oligarcas era essencialmente baseada em um grande banco como ponto central, um grupo de empresas associadas (as holdings), e ao menos uma gigante russa (ou várias, dependendo do sucesso obtido nos leilões da privatização), as empresas consideradas como “joias” do país, geralmente nos setores de energia ou mineração. Especialmente utilizando

chamada ‘guerra dos bancos’ em 1997 (quando Gusinsky e Potanin protagonizaram uma intensa disputa pela privatização da Svyazinvest, holding estatal gigante do setor de mídia). Ainda assim, decidimos manter o uso do termo para fazer referência geral aos grandes empresários que controlavam recursos financeiros de tal forma que acumulavam poder para influenciar de alguma forma a condução da política nacional. 199

essas indústrias de recursos naturais como pilares, os oligarcas conseguiram criar uma enorme base de capital, que também pôde ser utilizada para uma expansão ainda maior para outros setores. Segundo Segrillo (2000), os oligarcas também passaram a revender as empresas de áreas “secundárias”, a que tiveram acesso por preços baixos durante a privatização, para estrangeiros que estivessem interessados. O foco dos oligarcas nos setores que exploravam os recursos naturais russos evidencia como tal investimento era o que garantia a maior lucratividade naquele momento - a exploração das riquezas russas era a forma mais garantida de enriquecer no país101. Outra importante fonte de enriquecimento dos oligarcas foi a exploração do setor bancário e o controle das “artérias financeiras” que conectavam a economia nacional russa. Segundo Freeland (2000), uma consequência das reformas conduzidas por Gaidar, ao procurar desmembrar todo o sistema de planejamento soviético, foi destruir as antigas artérias financeiras que ligavam as unidades econômicas entre si e com o governo. Ao desmontar a estrutura que executava os planos econômicos soviéticos, foi necessário estabelecer novas formas, agora privadas, de circular os recursos dentro da economia. Os oligarcas descobriram que a privatização do fluxo dos recursos do governo, através do seu controle sobre o setor bancário ascendente, representava uma enorme oportunidade de lucros. Fortescue (2006) também destaca esse fenômeno: Depois que os bancos foram criados, o patrocínio e a assistência oficiais foram lucrativamente importantes, principalmente através do fenômeno dos bancos "agência". Os banqueiros privados usariam seus contatos nas agências estatais para organizar as transações financeiras dessas agências (FORTESCUE, 2006, p. 42, tradução nossa102).

101 Essa prioridade dificultava muito o já enorme desafio de recuperar a estrutura do setor produtivo russo, focando na sua reorganização conforme os novos padrões que estavam sendo definidos. Naquele momento, com um cenário desfavorável para a indústria russa, ninguém estava interessado em investir na sua modernização, já que a perspectiva de lucratividade em curto-prazo (ou até médio) era bastante baixa. Os problemas do setor industrial russo (com exceção do avançado complexo militar-industrial) já eram evidentes desde o período de elaboração das reformas de Gorbachev, e um dos objetivos da perestroika era justamente viabilizar a renovação do capital fixo soviético, que estava bastante envelhecido e com uma tecnologia decadente. Sem o Estado para viabilizar esses investimentos, e com o capital privado focando nos setores de recursos naturais (e no setor financeiro), a indústria russa enfrentaria um caminho ainda mais difícil. 102 No original: “After the banks were created, official patronage and assistance was lucratively important, particularly through the ‘agency’ bank phenomenon. Private bankers would use their contacts in state agencies to arrange to handle the financial transactions of those agencies.” 200

A fama dos oligarcas não vem, contudo, de sua atuação no setor bancário, mas sim por terem se tornado proprietários das maiores empresas russas e por seu papel na privatização em diversas formas. Além disso, a sua notoriedade também cresceu conforme ocorria uma crescente aproximação de membros do grupo com o cenário político, o que favoreceu a sua transformação em figuras públicas amplamente reconhecidas pela população russa.

3.4.1. A atuação política dos oligarcas

Ao considerarmos o período inicial das reformas conduzidas pelo governo Yeltsin, de 1991 a 1995, os oligarcas (que ainda não eram reconhecidos por esse termo) não desempenhavam uma atuação política ativa, e nem apresentavam um poder de influência significativo na condução da política nacional. Veremos no próximo tópico a trajetória individual dos principais oligarcas, mas podemos adiantar que eles não estavam envolvidos diretamente no embate político que levou ao colapso soviético ou na elaboração das reformas que conduziriam a transformação do sistema político-econômico na Rússia pós-1991. A ascensão meteórica dos oligarcas para o centro do palco político ocorreu principalmente pela combinação do processo de empréstimos-por-ações, que expandiu o poder econômico desses atores, e pelo contexto das eleições de 1995 e 1996, que criaram o ambiente favorável para o estabelecimento de um acordo mais direto entre o governo Yeltsin e esses oligarcas. Segundo Shevtsova (2007), os oligarcas puderam conquistar o poder de influência política porque a liderança de Yeltsin se encontrava em um “estado de paralisia”, e o presidente havia esgotado a sua capacidade de reunir as principais classes econômicas russas ou engajar a maioria da população por conta própria. Assim, esse esgotamento teria sido essencial como a abertura de uma oportunidade para outros grupos – no caso, os oligarcas – assumirem esse protagonismo. Além disso, o esquema dos empréstimos-por-ações foi fundamental para conectar diretamente o futuro da fortuna dos oligarcas com o futuro político da administração Yeltsin. A transferência total e oficial das propriedades que foram leiloadas no segundo semestre de 1995 só poderia ser concluída depois de setembro de 1996, ou seja, após terem ocorrido as eleições presidenciais de 1996. Caso a oposição saísse como vencedora desse pleito, havia a ameaça do acordo 201

ser cancelado e o governo poderia buscar formas de retomar o controle das empresas. Yeltsin, naquele momento, era a maior garantia que os oligarcas tinham de que o programa seria concretizado. Para o aprofundamento da parceria política entre Yeltsin e os oligarcas nessas eleições, o episódio do encontro do Fórum Econômico Mundial em Davos, realizado em fevereiro de 1996, foi essencial. A presença de Anatoly Chubais no encontro foi determinante, já que Chubais adotou uma retórica inflamada sobre como Zyuganov (do Partido Comunista) reverteria todo o processo de privatização caso vencesse a eleição presidencial. Ainda em Davos, foi realizada a reunião com os oligarcas Boris Berezovsky, Vladimir Gusinsky, Mikhail Khodorkovsky e Vladimir Vinogradov, estabelecendo uma aliança política com o objetivo de reeleger Yeltsin, o que ficou conhecido como “Pacto de Davos”. Posteriormente, foram “adicionados” à aliança os oligarcas Vladimir Potanin, Mikhail Fridman, Petr Aven e . Com a presença de Berezovsky (que controlava a ORT, maior rede estatal de televisão) e Gusinsky (que controlava a emissora NTV), a aliança conseguiu estabelecer o domínio da maioria da audiência russa (FREELAND, 2000). A mídia russa fez, através dos meios controlados pelos oligarcas, um trabalho intenso de propaganda a favor de Yeltsin e para disseminar o sentimento anticomunista pela população russa. Chubais foi contratado como coordenador da campanha eleitoral em fevereiro de 1996, e as contas milionárias da sua realização foram divididas entre os oligarcas. Segundo Freeland (2000), em pouco tempo os oligarcas conseguiram transformar Zyuganov de possível vencedor em perdedor designado. O apoio remanescente nas campanhas de Zyuganov vinha daqueles que foram mais prejudicados pelo governo Yeltsin – membros do Exército, os acadêmicos, os aposentados, e a população rural, camadas cada vez mais jogadas na miséria conforme o Estado era reduzido. Ainda assim, no dia 3 de julho de 1996, Yeltsin venceu o segundo turno das eleições com aproximadamente 54% dos votos103. A pequena margem de vantagem de Yeltsin aponta que, mesmo com o apoio dos oligarcas, a vitória não foi garantida com tranquilidade.

103 Dados sobre o resultado das eleições presidenciais de 1996 na Rússia. Disponível em < http://cikrf.ru/banners/vib_arhiv/president/1996/>. Acesso em 17 mai. 2020. 202

Pomeranz (2018) também considera que o esquema dos empréstimos-por- ações foi o que propiciou o surgimento da oligarquia russa, ao enriquecer muito um pequeno grupo de indivíduos, e a “ameaça” do retorno dos comunistas na figura de Zyuganov foi fator decisivo para levar esse grupo a atuar ativamente na política, com o apoio que foi decisivo à vitória de Yeltsin. Os oligarcas russos se uniram, assim, devido a uma necessidade de ação estabelecida pelo contexto. Com a campanha vitoriosa, o grupo garantiu seu acesso ao poder e conseguiu consolidar sua posição próxima ao Kremlin, tendo acesso exclusivo ao regime, e alguns dos oligarcas chegando a assumir posições relevantes no governo (Potanin no Ministério das Finanças, e Berezovsky como Secretário do Conselho de Segurança) (SHEVTSOVA, 2007; POMERANZ, 2018). Individualmente, os oligarcas tinham riquezas e influência, mas a união deles em torno de um objetivo claro se tornou um marco histórico. “Os empréstimos-por- ações deram à maioria desses homens as suas fortunas. O Pacto de Davos os transformou em players políticos. Juntos, os dois eventos os fizeram oligarcas” (FREELAND, 2000, p. 195, tradução nossa104). O grupo central de principais oligarcas naquele momento pode ser sintetizado em Berezovsky, Gusinsky, Potanin, Khodorkovsky, Fridman, Aven e Smolensky, os semibankirschina (sete banqueiros), com aparições eventuais de Vinogradov (Inkombank) e (Rossisky Kredit). A vitória de Yeltsin representou a vitória dos oligarcas e seu poder de atuação coletiva. Para eles, o essencial do processo era garantir a conclusão dos empréstimos-por-ações, para consolidar o seu controle sobre as estatais russas, que passariam a ser suas propriedades privadas. Mas, além disso, eles também pretendiam influenciar a privatização dos bens estatais restantes, e por isso institucionalizar a sua influência foi importante, ou seja, garantir que haveria a presença de seus membros compondo o governo – como já mencionamos, o caso de Potanin e Berezovsky (além de Chubais, cujo novo cargo foi o de chefe de gabinete de Yeltsin).

104 No original: “Loans-for-shares had given most of these men their fortunes. The Davos Pact made them political players. Together, the two events made them into oligarchs.” 203

Fortescue (2006) avalia que a equipe econômica de Yeltsin adotou uma atitude essencialmente instrumental com os oligarcas. Ou seja, independente do aspecto político, para os reformistas a presença dos oligarcas era importante como uma fase decisiva da construção do capitalismo na Rússia, sendo um instrumento fundamental para enterrar os remanescentes do sistema soviético. Outro elemento interessante da análise do autor é o destaque atribuído ao papel do Estado nesse processo. As bases do poder dos oligarcas foram construídas a partir de processos elaborados e executados por representantes do Estado russo. O plano de empréstimos-por-ações e a responsabilidade da decisão de realizar esse esquema são, segundo o autor, frutos de decisões do governo.

[O esquema dos] empréstimos-por-ações não se tratou exatamente de um caso de atores econômicos poderosos utilizando sua influência política para capturar novos ativos. Pelo contrário, foi um caso do governo distribuindo novos ativos para [esses atores], como uma decisão econômica estratégica (FORTESCUE, 2006, p. 101, tradução nossa105).

A ascensão dos oligarcas, além de representar a distribuição dos principais recursos do país, o estabelecimento dos grandes grupos industriais-financeiros, e o controle da maioria dos canais financeiros e das áreas mais lucrativas do setor produtivo, envolveu, como buscamos demonstrar, a formação dessa aliança com os representantes do governo russo. Kagarlitsky (2002) afirma que os oligarcas eram capitalistas que dependiam do Estado, e o governo de Yeltsin também dependia inteiramente deles – o governo era o responsável por garantir a reprodução do modelo de acumulação adotado pelos oligarcas, e estes, por sua vez, movimentavam o lobby conforme seus interesses, pagavam pelas campanhas dos políticos, e frequentemente pagavam os salários de funcionários específicos, ‘necessários’. O autor defende que se essas relações fossem subitamente desfeitas, o Estado e a economia quebrariam. Essa questão do Estado como ator que viabiliza o processo de acumulação dos oligarcas é essencial dentro da perspectiva da acumulação por espoliação. O Estado desempenha um papel central e decisivo como aliado dos representantes do

105 No original: “Shares-for-credit was not so much a case of powerful economic actors using their political clout to seize new assets. Rather it was a case of the government, as a strategic economic choice, giving them new assets.” 204

grande capital, permitindo que os recursos públicos sejam transferidos para as mãos de poucos indivíduos. Contudo, apesar de reconhecermos essa responsabilidade dos atores estatais, consideramos que a análise de Fortescue (2006) acima apresentada corre o risco de isentar os oligarcas de parte da responsabilidade pelo andamento do processo descrito. Ao praticar evasão fiscal, ou se apropriarem dos recursos que foram obtidos através da exploração das riquezas do país, ou lucrarem através da especulação financeira e envolvendo a dívida pública, os oligarcas ativamente contribuíram para o enfraquecimento do Estado russo, colaborando para a criação das condições que levaram à formação dessa relação de dependência entre o Estado e o grupo dos oligarcas. É importante entendermos como os oligarcas conseguiram chegar a tal posição de poder financeiro e político em um prazo tão curto. Antes de 1987, os soviéticos corriam risco de prisão caso tomassem parte em algum negócio particular, o que era considerado crime econômico, e, pouco mais de dez anos depois, a lista da Forbes de pessoas mais ricas do mundo contava com cinco russos, enquanto a economia russa passava por um dos períodos mais depressivos de sua história. Por isso, agora voltaremos a nossa atenção para a trajetória e as origens daqueles que são considerados os principais oligarcas desse período.

3.4.2. Qual é a origem da fortuna dos oligarcas?106

Apesar de tratados frequentemente de forma homogênea sobre o cunho de “oligarcas”, os membros deste grupo possuem origens e trajetórias diferentes. Alguns dos autores da bibliografia consultada estabeleceram espécies de “classificações”, considerando os traços comuns nas trajetórias dos oligarcas. Medeiros (2008), por exemplo, estabelece uma classificação dos oligarcas em três grupos diferentes, baseada em suas origens: 1) os diretores das grandes estatais soviéticas que conseguiram manter o controle sobre os ativos; 2) o grupo mais ligado ao setor bancário ascendente que intermediou os empréstimos ao governo

106 Reiteramos que a base material para realização de nosso trabalho é essencialmente de fontes secundárias. Esse trecho do trabalho, em especial, aborda a história pessoal dos indivíduos que se tornaram oligarcas. Por se tratarem de informações pessoais, a obtenção de fontes primárias ou informações de caráter “oficial” é dificultada. 205

russo; 3) indivíduos que enriqueceram através de atividades ilegais e alcançaram maior prosperidade conforme as instituições soviéticas colapsaram. Fortescue (2006) segue uma classificação de quatro origens dos oligarcas: 1) enriquecimento no mercado ilegítimo, os que acumularam algum capital nas atividades ilícitas no período soviético (semelhante ao grupo 3 de Medeiros); 2) membros da nomenklatura, que fizeram carreira na estrutura do PCUS; 3) os diretores vermelhos, que conseguiram manter o controle direto da administração das empresas (semelhante ao grupo 1 de Medeiros); e 4) o grupo dos “novos russos”, que iniciaram seu enriquecimento no período pós-soviético, sem utilizar recursos estabelecidos antes do colapso soviético. A classificação estabelecida por Goldman (2003) é bastante próxima ao modelo de Fortescue, e segue os três primeiros grupos (enriquecimento ilícito, membros da nomenklatura, diretores do período soviético), sendo desconsiderado apenas o grupo dos “novos russos”. Guriev e Rachinsky (2005) não estabelecem uma classificação em grupos conforme dos autores anteriormente mencionados, mas também identificam perfis diferentes entre os oligarcas. Segundo os autores, os oligarcas mais velhos eram os mais ligados à estrutura da nomenklatura, e no período soviético trabalhavam normalmente na diretoria de empresas ou nas agências do governo que estavam ligadas à supervisão da atividade industrial. Quando a privatização foi conduzida, tais oligarcas teriam convertido seu controle em direito de propriedade. No caso dos empresários mais jovens, os autores destacam que o momento das reformas de Gorbachev foi essencial para viabilizar seu enriquecimento e sua acumulação de capital. Nesse período, em que coexistiam os preços estabelecidos pelo planejamento estatal e os preços de quase-mercado, os futuros oligarcas usavam a diferença para obter lucros. A partir de 1992, com o início da liberalização e da privatização, a maioria desses empresários já havia estabelecido companhias de trading, bancos e/ou fundos de investimento. Assim, quando as privatizações começaram de fato, estavam entre os poucos russos que tinham capital para comprar parcelas significativas das empresas estatais sendo vendidas. Apesar das diferentes classificações, o que fica nítido é que, diferentemente do que é considerado como senso comum (de que a classe dirigente da política soviética teria tomado o controle dos ativos da economia após o colapso soviético), a maioria dos oligarcas não tinha ligação com a cúpula soviética, e os principais oligarcas não eram da camada dirigente do Partido Comunista da União Soviética. 206

Os diretores soviéticos que conseguiram manter o controle sobre as empresas ficaram mais ligados ao setor produtivo e não se envolveram diretamente com atividades do setor bancário, e o grupo central dos sete principais oligarcas não conta com nenhum representante dessa classificação. Dentre os casos de burocratas da nomenklatura que conseguiram obter controle sobre importantes ativos, o caso mais notório é o de Chernomyrdin e seu envolvimento com a Gazprom, que foi exposto previamente no capítulo – mas ele não é considerado parte do grupo principal de oligarcas. Neste grupo, o exemplo mais próximo de oligarca com ligações próximas com a nomenklatura soviética é o de Vladimir Potanin, como veremos adiante, e até certo ponto Khodorkovsky e Vinogradov. Os três oligarcas não eram membros do “alto escalão” do Partido, e ocupavam posições secundárias nas hierarquias. Mesmo assim, podemos considera-los como maiores exemplos de como ligações com membros da camada dirigente política foram importantes para garantir a oportunidade original de iniciar suas carreiras particulares – ou seja, os vínculos estabelecidos abriram oportunidades e permitiram um amplo leque de relações que facilitaram o seu enriquecimento posterior (FORTESCUE, 2006). Devemos dedicar uma breve nota sobre alguns métodos de enriquecimento ilícitos que eram comuns no período soviético. Goldman (2003) apresenta as práticas dos fartsovshchiki (a venda de importados proibidos e outros bens no mercado ilícito), valiutchiki (trocas ilícitas com moeda estrangeira), e dos deltsy (prestação de serviços privados também ilicitamente), que ocorriam frequentemente na sociedade soviética. Para lidar com a escassez de bens de consumo e de capital, era estabelecida dentro das empresas, segundo o autor, a posição do tolkatch – um funcionário que encontrava no mercado ilícito os insumos necessários para a fábrica cumprir suas metas, quando por alguma eventualidade os fornecedores oficiais determinados pelo Estado não eram capazes de cumprir os contratos ou os prazos. O tolkatch fazia essencialmente a mesma coisa que os fartsovshchiki, mas de forma “socialmente aceita”. Quando a partir das reformas de Gorbachev foram autorizadas as aberturas de cooperativas e de certos empreendimentos privados, o que antes era considerado um crime econômico passou a configurar uma atividade legal. Os tolkatchi e fartsovshchiki haviam acumulado o conhecimento e a prática necessários para iniciarem com sucesso essas atividades de forma legal. 207

Os que enriqueceram nesse período exploraram a demanda que existia na população russa por bens de consumo aos quais não tinham acesso no cotidiano (os produtos importados de consumo abrangiam desde computadores ou máquinas fotográficas até peças de vestuário e cigarros). A prestação de pequenos serviços também tinha uma enorme demanda não atendida pelos meios legais soviéticos, criando outra grande janela de oportunidade de lucros. Goldman (2008, p. 67, tradução nossa107) relata que, [...] se esses serviços fossem ser desempenhados legalmente através dos canais oficiais centrais de planejamento soviético, o consumidor teria uma espera enorme, meses se não mesmo anos. Parecia haver escassez de quase tudo, incluindo encanadores, carpinteiros e reparadores em geral. [...] Muitos russos estavam dispostos a pagar algo extra debaixo da mesa para concluir o trabalho imediatamente.

A criação das cooperativas era uma forma de legitimar essas atividades que já eram praticadas. Com os lucros dessas atividades legalizadas, os proprietários de cooperativas passaram a acumular capital suficiente para conseguir abrir os primeiros bancos privados da União Soviética, nos seus últimos anos (o capital mínimo determinado pela legislação era muito baixo108). Com a licença bancária obtida e a permissão para emissão de crédito, Goldman (2003, p. 119) afirma que esses bancos se tornaram praticamente “caixas eletrônicos particulares”. Veremos adiante que a maioria dos principais oligarcas passou por essa etapa de abertura de cooperativas que depois se tornariam grandes bancos e holdings. Antes de passarmos aos casos individuais das trajetórias dos oligarcas, vale a apresentação da análise de Clarke (2007) que sintetiza as principais formas de enriquecimento dos oligarcas, que acumularam fortunas em um período de tempo curtíssimo. O autor apresenta que as fortunas dos oligarcas foram construídas essencialmente em três grandes fases. A primeira delas foi a fase de intermediação

107 No original: “[...] if such services were to be performed legally through official Soviet central planning channels, the customer would have had an enormous wait, sometimes months if not years. There seemed to be shortages of almost everything, including plumbers, carpenters, and general repairmen. […] many were willing to pay something extra under the table to have the work done right away.” 108 Conforme foi autorizado o estabelecimento de bancos comerciais privados, o capital requerido para obtenção da licença bancária era o equivalente a, na época, US$ 750,000, uma quantidade relativamente pequena considerando tratar-se do setor bancário. Goldman (2008) afirma que, se considerarmos a inflação, no início da década de 1990, o valor real em rublos que era exigido para obtenção dessa licença (que não havia sido reajustado) era o equivalente a US$ 75,000. 208

comercial e financeira, explorando as diferenças entre os preços internacionais e os preços domésticos, sobretudo ainda durante a perestroika e ainda nos primeiros anos de reforma no governo Yeltsin. Quando os oligarcas conseguiam monopolizar o comércio de determinados itens, obtendo licenças ou autorizações exclusivas (neste caso era essencial a proximidade do oligarca com os encarregados pela emissão desses documentos), seus lucros eram ainda maiores. A segunda fase foi determinada pela privatização em massa, quando os oligarcas conseguiram consolidar seu controle sobre o mercado ao adquirir de fato a propriedade das empresas (ou pelo menos o controle acionário destas). A terceira fase, que Clarke destaca como a mais decisiva para que as fortunas fossem dramaticamente multiplicadas, foi a dos leilões dos empréstimos-por-ações, quando empresas valiosíssimas foram vendidas por preços que o autor considera “irrisórios”. Em todos os casos, o traço comum sobre o enriquecimento dos oligarcas seria o fato dos seus lucros terem sido obtidos não através do investimento na modernização ou no desenvolvimento do setor produtivo russo, mas sim através do seu controle sobre o fluxo comercial. Os oligarcas priorizariam, assim, a venda dos bens por preços baixos para companhias offshore (que normalmente também eram suas propriedades) onde seus lucros ficariam protegidos. Internamente, os oligarcas investiram e expandiram suas fortunas essencialmente no setor bancário, através dos bancos comerciais que eles também controlavam, e que eram utilizados para praticar especulação com moeda estrangeira e com a dívida pública.

a. Mikhail Fridman e Petr Aven

Apesar da formação como engenheiro e do emprego em uma siderúrgica soviética, Mikhail Fridman desempenhava uma série de atividades paralelas (de forma “não oficial”), como prestar serviço de lavar janelas, organizar eventos, trabalhar na construção civil, entre outros. Com a aprovação da nova legislação nas reformas de Gorbachev, Fridman iniciou uma cooperativa, Kurier (КУРЬЕР) para prestar serviços legalmente, de entregas, limpeza. Quando conseguiu começar a acumular recursos, passou a importar bens de consumo e a expandir suas atividades. Ainda em 1988, fundou uma cooperativa focada no setor fotográfico, a Alfa-Foto, a firma de trading de commodities ALFA/EKO, e a Alfa-Kapital, um fundo 209

de investimentos. Com o capital acumulado através dessas atividades, em 1991 Fridman conseguiu abrir o Alfa-Bank, precursor do consórcio Alfa-Group (GOLDMAN, 2003; GOLDMAN, 2008). Em 1992, Fridman trouxe Petr Aven, até então Ministro das Relações Comerciais Exteriores, para o Alfa-Bank, estabelecendo uma aliança que seria mantida entre os dois. Antes da atuação como Ministro, Aven tinha uma carreira na área acadêmica. Em 1994, Aven assumiu a presidência do Alfa-Bank, cargo que manteve até junho de 2011109. Com o início das privatizações, o foco de Fridman foi comprar o máximo de ações possível das empresas russas que os investidores estrangeiros já tinham algum interesse, aproveitando assim o preço acessível que teria acesso para lucrar posteriormente com a revenda. Freeland (2000) afirma que Fridman teve acesso aos estudos produzidos pelo CSFB (Credit Suisse First Boston), banco de investimento dos Estados Unidos, sobre as empresas russas que já haviam sido “sinalizadas” por investidores estrangeiros. O Alfa-Group, liderado por Fridman e Aven, era composto essencialmente pelo Alfa-Bank, Alfa-Kapital, a Tyumen Oil (companhia de petróleo na Sibéria), firmas de material de construção, processamento de alimentos, uma rede de supermercados, processadores de chá e açúcar, telecomunicações ( e Vimpelcom).

b. Boris Berezovsky

No período soviético, Berezovsky atuava como acadêmico e pesquisador, com diversas obras publicadas. Começou a sua atuação no setor privado também no período da perestroika, ao fundar a cooperativa LogoVAZ em 1989, que prestava essencialmente serviços de consultoria. Estabelecendo uma relação com a AvtoVAZ, maior indústria de automóveis soviética, a LogoVAZ prestava assistência com softwares importados, e posteriormente conseguiu um acordo de marketing com a indústria, através do qual a LogoVAZ ficou responsável por realizar a venda dos

109 Perfil de Petr Aven no site oficial do Alfa-Bank. Disponível em . Acesso em 17 mai. 2020. 210

automóveis. A AvtoVAZ passou a transferir os carros para a LogoVAZ, por preços baixos, e a segunda ficava responsável por realizar a revenda (GOLDMAN, 2003; FORTESCUE, 2006). Freeland (2000) afirma que, devido a falta de transparência na contabilidade do período, a lucratividade das operações da LogoVAZ pôde avançar de forma acelerada. A LogoVAZ estabeleceu um forte controle sobre o mercado de automóveis de Moscou, passando a vender também veículos importados. Berezovsky conquistou a confiança de Yeltsin e de sua família e passou a fazer parte do “círculo familiar” do Kremlin após ter organizado a publicação de um livro de memórias do presidente. As receitas geradas pelo o livro foram alvo de diversos questionamentos da população russa, devido aos relatados repasses feitos à família de Yeltsin referentes à “receita da venda dos livros”. Berezovsky tinha uma relação muito próxima especialmente com Tatyana Yumasheva, filha de Yeltsin (e que desempenhou um importante papel como intermediária na relação entre Yeltsin e os oligarcas em diversas ocasiões) (FREELAND, 2000). O império de Berezovsky cresceu ao ponto de incluir o controle (nem sempre através de ações de fato ou de propriedade, às vezes indiretamente através de práticas como o pagamento “por fora” dos salários dos funcionários) sobre a Aeroflot, a Sibneft, importantes empresas da indústria de alumínio e a ORT (maior e mais influente rede televisiva estatal) (GOLDMAN, 2003).

c. Mikhail Khodorkovsky

Khodorkovsky estabeleceu, no período soviético, uma profunda relação com o Komsomol, chegando a trabalhar integralmente para a organização após ter finalizado sua graduação como químico. A ascensão na hierarquia do Komsomol era considerada uma forma frutífera de construção de carreira política, para estabelecimento de conexões com membros da nomenklatura. Com as autorizações especiais que os “Centros de Criatividade Científica” do Komsomol conquistaram em 1986, sob as reformas de Gorbachev, Khodorkovsky e seus colegas passaram a desempenhar uma série de atividades em nome da organização, desde prestação de serviço qualificado na área química até trabalhos na área da computação. Em dezembro de 1987, Khodorkovsky fundou o Menatep, uma cooperativa que também 211

oferecia as mais diversas atividades, nas mesmas linhas do que era desenvolvido ainda sob o Komsomol. Também vendia softwares e hardwares, e, após conquistar a licença bancária, passou a oferecer linhas de crédito (GOLDMAN, 2003). Segundo Freeland (2000), no caso do Menatep, as relações estabelecidas entre Khodorkovsky e representantes do governo foram particularmente decisivas para acelerar o processo de acumulação de capital, porque esses agentes priorizavam o Menatep nas transações envolvendo recursos públicos, e o banco de Khodorkovsky foi favorecido na obtenção de diversas contas públicas. Em cada transação, Menatep ganhou a gratidão de outro diretor de fábrica da província ou a confiança de outro poderoso chefe do governo regional e melhorou seu relacionamento com os ministérios de Moscou [...]. Em pouco tempo, ministérios inteiros complementariam seus salários estaduais de miséria com recompensas dos empresários privados da Rússia (FREELAND, 2000, p. 124, tradução nossa110).

Com a acumulação de capital obtida, Khodorkovsky apostou nas privatizações como uma oportunidade de expansão. O Menatep comprou diversas empresas tendo como critérios principais os baixos preços e obter um grande número de propriedades. Foram priorizadas as fábricas com que o Menatep já mantinha uma boa relação com os diretores, os setores que Khodorkovsky tinha algum conhecimento, e fábricas que tinham um papel importante na economia soviética. O Menatep começou nessa fase a formação do seu grupo industrial- financeiro, um conglomerado enorme de indústrias e um banco capaz de manter esse grupo financeiramente. Em 1992, o banco criou a Rosprom como uma holding para administrar o seu portfólio industrial (FREELAND, 2000; GOLDMAN, 2003). Segundo Fortescue (2006), em meados de 1994, com o fim do programa de vouchers, Khodorkovsky, através do Menatep, já teria utilizado mais de US$ 40 milhões na compra de vouchers e ações nos leilões. O Menatep conseguiu o controle de empresas importantes, como, por exemplo, a produtora de titânio AVISMA, através de grandes apostas nos leilões de vouchers. A grande conquista

110 No original: “In each transaction, Menatep won the gratitude of another provincial factory director or the trust of another powerful regional government head, and improved its relationship with the Moscow ministries […]. Before long, entire ministries would be supplementing their misery state salaries with payoffs from Russia’s private businessmen.” 212

de Khodorkovsky foi o controle da Yukos, maior indústria de petróleo da Rússia, em dezembro de 1995, no esquema dos empréstimos-por-ações.

d. Vladimir Potanin

Oligarca que foi considerado o russo mais rico em 1998, Potanin iniciou a sua carreira na área das relações exteriores da União Soviética, seguindo os passos de seu pai, que era um importante oficial no Ministério do Comércio Exterior soviético. Potanin trabalhava na Soiuzpromexport, uma agência de comércio exterior associada ao Ministério111, e que lidava com o setor de metais não-ferrosos. Potanin abandonou a carreira diplomática no fim de 1990 e abriu a cooperativa Interros, focada na realização de operações de comércio exterior, lidando justamente com trading de metais não-ferrosos. Goldman (2003; 2008) afirma que, na prática, Potanin privatizou o serviço que antes ele mesmo prestava em nome do governo soviético na Soiuzpromexport, capitalizando assim a sua especialização. Após o sucesso de seu empreendimento com a Interros, Potanin focou na abertura de um banco. Para obtenção do capital necessário, além do acumulado pela Interros, Potanin contou com fundos emprestados pelo Vneshekonombank, o banco estatal voltado para as operações de comércio exterior. Segundo Goldman (2008), as conexões que Potanin havia estabelecido com importantes funcionários do banco foram essenciais para viabilizar um acesso facilitado ao crédito que foi fornecido. Uma vez conquistado o capital necessário, Potanin fundou o Oneximbank em 1993, e criou também o MFK – o Oneximbank focou nas atividades comerciais do setor bancário, enquanto o MFK se tornou o banco de investimentos afiliado (GOLDMAN, 2003). Freeland (2000) relata que pouco tempo após ser fundado, o Oneximbank assumiu as contas do banco estatal IBEC, que estava prestes a declarar falência e

111 Soiuzpromexport era uma Organização de Comércio Exterior (em inglês, Foreign Trade Organization - FTO). Essas organizações tinham a função de organizar as importações e as exportações de bens em nome do Estado soviético, atuando como agentes das empresas que, até as reformas de Gorbachev, não tinham autorização para engajar nas relações exteriores diretamente. Assim, essas organizações estavam entre as poucas agências oficiais soviéticas que tinham autorização para lidar com operações envolvendo moeda estrangeira. 213

foi proibido de lidar diretamente com clientes, sendo obrigado a passar todas as suas contas para outro banco. Nessa operação, o Oneximbank teria obtido o acesso a contas que valiam no total cerca de US$ 300 milhões. O banco de Potanin entrou no mercado rapidamente com uma posição muito poderosa, e a utilizou agressivamente para expandir ainda mais o seu capital. A estratégia de Potanin foi buscar uma abordagem direta com as empresas russas, para oferecer empréstimos, contas e outros. Além disso, o banco assumiu mais duas contas estatais gigantescas para administrar, a Agência Alfandegária do Estado, e a Rosvoruzheniye, a companhia de comércio de armas. Essas contas estatais permitiram que o grupo criasse e controlasse um circuito fechado de uma das maiores circulações de dinheiro do país (FREELAND, 2000). Sob a Interros, Potanin criou o maior império industrial russo daquele período, e conseguiu o controle sobre mais de vinte importantes empresas que eram antes propriedades do Estado. Algumas dessas empresas ele obteve através do esquema de empréstimos-por-ações, que, como já trabalhamos, foi justamente sugerido e esquematizado por ele. A mais importante empresa nesse complexo era a Norilsk Nickel, cuja obtenção foi o objetivo de Potanin desde que sugeriu o sistema de empréstimo-por-ações. Outra importante empresa conquistada nesse esquema foi a Sidanko, companhia do setor do petróleo. Com o controle das gigantes russas, Goldman (2003, p. 114, tradução e destaque nossos112) afirma que “[...] acredita-se que a Interros é responsável por aproximadamente 3% do PIB do país. Somente ela controla um quinto do níquel do mundo, dois terços do paládio e um quinto da platina.” Após a vitória de Yeltsin nas eleições de julho de 1996, Potanin concretizou ainda mais seu poder de influência quando foi nomeado para compor o corpo ministerial do Presidente. e. Vladimir Gusinsky

112 No original: "Interros is said to account for approximately 3 percent of the country’s GDP. It alone controls one-fifth of the world’s nickel, two-thirds of its palladium and one-fifth of its platinum.” 214

Com uma jornada peculiar, Gusinsky era diretor de teatro no período soviético. Ao mesmo tempo, desenvolvia uma série de atividades paralelas no mercado ilícito, como prestação de serviço de táxi e venda de artigos importados (como itens de vestuário e cigarros). Em 1987, abriu a sua cooperativa Metal, uma das primeiras aprovadas na região de Moscou, com foco na produção de garagens de metal e, posteriormente, pulseiras de cobre e outras joias. Em 1989, abriu sua segunda cooperativa, a MOST, que prestava o serviço de consultoria para estrangeiros que queriam investir na Rússia113. Conforme cresciam os lucros, Gusinsky diversificou as atividades desempenhadas pela MOST, incorporando o fornecimento de material de escritório, e o setor de construção (fornecimento de materiais e serviço), até alcançar o estabelecimento do MOST-Bank. Acumulando o suficiente para se envolver nos setores de construção e no mercado imobiliário de Moscou, Gusinsky se aproximou de Yuri Luzhkov, burocrata importante de Moscou que em 1992 se tornou prefeito da cidade. A aliança formada entre os dois garantiu que projetos municipais passassem pela construtora de Gusinsky. Luzhkov depois também transferiu o dinheiro das contas municipais dos bancos da era soviética para o consórcio de bancos comerciais liderado por Gusinsky sob o Grupo MOST (FREELAND, 2000). O dinheiro municipal de Moscou passava pelo MOST-Bank por tempo suficiente para Gusinsky usá-lo no investimento em títulos federais de curto-prazo que apresentavam taxas altíssimas de rendimento e uma enorme oportunidade de lucratividade. Em 1994, o MOST-Bank já figurava como um dos maiores bancos do país (GOLDMAN, 2003). Além do setor bancário e de construção, Gusinsky começou a investir no setor de comunicações e mídia em 1992, construindo o Media-MOST, um gigantesco conglomerado de mídia. No fim da década, a parte mais saudável do Grupo MOST de Gusinsky era o seu império de mídia. Freeland (2000) afirma que Gusinsky se tornou o primeiro barão da mídia russo, e seu envolvimento com esse setor foi essencial para consolidação do seu poder de influência.

113 No início, a MOST era uma joint-venture 50/50 com a APCO, um ramo da Arnold e Porter, firma de advocacia consagrada baseada em Washington. Em 1992, Gusinsky comprou os 50% dos americanos. 215

f. Alexsandr Smolensky

Também envolvido com a área de construção, Alexsandr Smolensky fundou a sua cooperativa logo em 1987, a “Cooperativa de Construção Nº 3 Moscou”. Antes disso, Smolensky já trabalhava na área, sobretudo no mercado ilícito de instrumentos e materiais de construção, comprando e estocando quando conseguisse acesso, ou produzindo por conta própria quando tivesse condições (atividades que eram consideradas ilegais no período antes da perestroika). Uma vez que essas atividades foram legalizadas, pôde utilizar a experiência e as conexões acumuladas para legalizar os seus lucros. Com o capital acumulado, criou o próprio banco em fevereiro de 1989, o Stolichnyi Bank (GOLDMAN, 2003). Diferente dos outros oligarcas, Smolensky não procurou ativamente construir um império industrial, e focou no setor bancário. Ainda assim, tinha participação no Kommersant e no (jornais russos), na ORT (associado com Berezovsky), e obteve parte das ações da Sibneft no esquema de empréstimos-por- ações. Adquiriu o banco rural estatal, Agroprombank, que tinha mais de 1250 agências na área rural, e mudou o nome de todos os seus bancos para SBS/Agro. Seu objetivo era realmente ocupar a maior área do território russo com suas agências bancárias, apostando no crescimento do banco. Esse foco no setor bancário fez com que Smolensky sofresse particularmente mais do que os outros oligarcas com a crise financeira de 1998 – como tinha muitas agências, o SBS/Agro sofreu muito com a corrida aos bancos (GOLDMAN, 2003). 216

QUADRO 1 - Principais propriedades controladas pelos oligarcas (os semibankirshchina mais Alekperov e Vinogradov) Identificação da Oligarcas Principais instituições Principais indústrias Principais subsidiárias holding financeiras Interros- Vladimir Potanin Oneximbank, MFK Bank, Sidanko, Russia-Petroleum, Norilsk Newspapers: Izvestiia, Oneximbank Baltoneximbank, Alfa-Alliance Nickel, Holding Corp. Oboributel’nie Komsomolskaia Pravda, The Bank, Renaissance Capital Sistemy, Severnie Ver, Baltiskii Russian Telegraph Newspaper, Investment Co., East Investment Zavod, Perniskie Motory, OKB Expert Magazine Co., Swift Investment Co., Sukhogo, Novolipetskii Steel Plant Interrossoglasie Insurance Co., Co., Northwest Shipping Renaissance Insurance Co., Interros-Dostoinstvo Pension Fund LUKOil Imperial Bank, Petrokommertz LUKoil, Arkhangelsk Geology Newspapers: Izvestiia; Russian Oil Bank, Nikoil Investment Co., Magazine; Telecommunication LUKoil-Garant Pension Fund, companies: TV-31, REN-TV, TV-6, LUKoil-Reserve Investment Co., TCN CK-LUKoil Insurance Co. Khodorkovsky Mikhail Khodorkovsky Menatep Bank, ‘Menatep St. YUKOS, Eastern Piping Co., ‘Independent Media’ Publishing Petersburg’ Bank, ‘Russkie Omskshina Tire Factory, Apatit House Investory’ Investment Co. Voskresenkie Mineral Fertiziers, Volzhskii Pipe Factory, Nitron Corp., Murmansk Ocean Streamliners, Volgotanker Inkombank Group Vladimir Vinogradov Inkombank, Reso-Garantia Bakery Holding Babayevskii, Rot- Newspapers: Novaya Gazeta, Vek Insurance Company Front Corp., Novosibirskii Fat Processing Factory, Omskii Bacon, Sameko Magnitogorskii Semi- Precious Metals Co., Sukhogo Corp., Baltiskii Zavod, Severnie Ver Morskaya Tekhnika Corp. Berezovsky and Boris Berezovsky, SBS/Agro Bank, Agroprombank, ‘Sibneft’ Corp., Eastern-Siberian Oil Kommersant Publishing House; Smolensky Alexander Smolensky Zolotoplatinabank, Obiedinennyi and Gas Company, Aeroflot, Newspapers: Nezavisimaya Bank, KOPF Bank, STS Insurance Dragotsennosti Urala Corp Gazeta, Novie Izvestiia, Rossiskie Company, Dobroe Delo Pension Vesti, Obshchaya Gazeta; Fund Magazines: Ogoneok; Telecommunication companies: ORT, TV-6, NSN 217

Consórcio Mikhail Fridman, Peter AlfaBank, AlfaKapital Investment Tyumen Oil, Holding AlfaCement, n/a AlfaGroup Aven Firm Holding Kyban-Sakhar, Nikitin Corp., Akrikhin Pharmaceutical Company, Borovskii Glass Factory, Western-Siberian Steel Plant, Achinskii Brick Plant Grupo MOST Vladimir Gusinsky MOST-Bank, Insurance Group Moscow Fuel Company, “MOST- Newspapers: Segodnya, Sem’Dnei, “Spasskie Vorota” Development” Obshchaya Gazeta; Magazines: Itogi; Radio: Echo Moskvy; Telecommunication companies: NTV, NTV+; Film companies: NTV- Profit, NTV- Kino Fonte: Quadro adaptado a partir dos dados apresentados em: PAPPE, I. Oligarchs, Economic Chronicle 1992–2000, Gosudarstvennyi Universitet, Vysshaia Shkola Ekonomiki Moscow, 2000, pp. 206–10 apud GOLDMAN, 2003, p. 94-97

218

3.4.3. A concentração da propriedade e o controle dos oligarcas sobre a economia russa

No último tópico da presente seção e como forma de encerrar o capítulo, buscaremos retomar aspectos da construção do poder econômico dos oligarcas, destacando alguns elementos da sua relação com o Estado que expressam o seu poder de influência e controle sobre a economia russa, e dedicando algumas notas para revisão de qual é a avaliação da bibliografia consultada sobre o papel desempenhado pelos oligarcas nesse período. Uma das questões centrais na relação entre o Estado e os grandes empresários russos envolve a disputa pelos recursos expressa nos impostos e taxas. Durante a maior parte da década de 1990, o governo russo enfrentou sérias dificuldades relacionadas ao orçamento público, enquanto os oligarcas desenvolviam estratégias para estruturar suas operações de forma que pudessem sistematicamente evitar os impostos e as taxas devidas ao Estado. Dentre as práticas mais comuns, está o já mencionado deslocamento dos capitais para o exterior, em empresas offshore, onde os oligarcas conseguiam obter rendas maiores e ainda protegiam seus lucros (HAYE, 2010). O setor dos recursos naturais, que era o setor mais saudável da economia russa na década de 1990, apresentando resultados positivos enquanto os outros setores produtivos sofriam uma profunda depressão econômica, tinha o maior potencial para contribuir com a receita do governo. Contudo, era essencialmente controlado pelos oligarcas, e estes argumentavam que o regime de impostos atrapalhava a sua competitividade (FORTESCUE, 2006). Por se tratar de um setor extremamente estratégico para o funcionamento do conjunto da economia, envolvendo o fornecimento de energia e combustível, a capacidade de negociação do Estado era limitada, e o governo tolerava a dívida dos impostos ou aceitava receber os valores devidos através do fornecimento dos produtos. Teoricamente, o governo teria um controle maior sobre os níveis reais de produção do setor de combustíveis, já que as necessidades de licenciamento envolvidas no setor aproximavam esse controle da produção real. Além disso, mesmo depois das privatizações, as redes de transporte e os dutos continuaram em grande parte sendo propriedades estatais. Com essa proximidade entre agentes do governo e o setor, em teoria seria mais fácil realizar um cálculo preciso dos impostos 219

devidos. Mas muitos argumentavam que o sistema era incompetente e corrupto, e essas questões cobertas pela falta de transparência. O setor estava em boa posição para arquitetar um esquema de evasão fiscal, já que lucrava muito com os preços de transferência, e havia a pressão social envolvendo a questão do abastecimento de combustível que, como mencionamos, reduzia a margem de negociação do Estado (FORTESCUE, 2006). A questão dos impostos é interessante para ilustrar o debate sobre o método de enriquecimento dos oligarcas. Ao exercerem um controle muito grande sobre o conjunto da economia russa, é possível discutir como a principal forma de expansão das suas fortunas individuais foi a apropriação dos recursos da economia russa, desconsiderando a recuperação, o desenvolvimento e o crescimento do conjunto econômico nacional. Não só exploravam ao máximo os recursos sem realizar investimentos que contribuíssem com essa recuperação, mas ainda utilizavam métodos como a evasão fiscal e a fuga de capitais para inviabilizar outras alternativas que pudessem ser buscadas para tentar construir a retomada econômica. Freeland (2000) argumenta que

[O problema] era simplesmente que a estreita camada de empresários e gerentes talentosos (sic) da Rússia direcionava seus esforços para onde eles renderiam a maior recompensa. Nos primeiros anos do capitalismo russo, a tendência era explorar as oportunidades de arbitragem entre os preços soviéticos remanescentes e o mercado mundial, comprar ativos estatais baratos, lucrar com as taxas de juros reais negativas do Banco Central e garantir contratos governamentais saborosos (FREELAND, 2000, p. 151-152, tradução nossa114).

Frequentemente na bibliografia consultada essa postura dos oligarcas é caracterizada como asset stripping, melhor definida por Alves: Asset stripping (de onde se origina asset stripper) é uma expressão difícil de traduzir. Literalmente significa “desmembramento de ativos”. No jargão econômico, tem sido utilizada pejorativamente para caracterizar a venda, principalmente em países em transição, de partes de uma empresa por seus controladores. Este termo é utilizado tanto nos casos de incorporação de

114 No original: “[The problem] was simply that Russia’s narrow layer of talented businessmen and managers directed their efforts where they would yield the highest reward. In the early years of Russian capitalism that tended to be in exploiting the arbitrage opportunities between lingering soviet prices and the world market, in buying up cheap state assets, in profiting from the Central Bank’s negative real interest rates, and in securing juicy government contracts.” 220

ativos de empresas estatais por subsidiárias controladas por entes privados (como ocorrera com as cooperativas no fim da era soviética), quanto nos de empresas privatizadas, quando seus controladores vendem partes da empresa, em um típico caso em que as partes valem mais do que o todo – pelo menos valem mais do que o preço pago nos processos de privatização (ALVES, 2011a, p. 196). Parte essencial para viabilizar essas práticas adotadas pelos oligarcas foi o seu controle monopolista ou oligopolista sobre setores da economia russa, nível de concentração que acelerou ainda mais o seu processo de acumulação. Ainda segundo Alves (2011a), essa concentração econômica dos setores econômicos organizados ao redor de empresas gigantes é um forte traço herdado da economia soviética, onde as estruturas produtivas eram profundamente integradas e, normalmente, poucas eram as empresas que produziam determinados bens ou prestavam determinados serviços. Essa estrutura concentrada não foi desmembrada antes da realização da privatização. Uma vez nas mãos dos oligarcas, considerando o nível de influência sobre o poder político exercida por esse grupo, ficou praticamente inviável pensar que o governo russo adotaria políticas antimonopolistas, ou políticas que buscassem estimular um ambiente de concorrência mais equilibrado. Ainda sobre o grau de concentração da economia russa, Guriev e Rachinsky (2004) afirmam que essa concentração era tão alta que a preocupação dos políticos ia muito além de questões antitruste. Os políticos precisavam considerar uma série de fatores envolvendo os oligarcas: primeiro, como já demonstramos, o poder econômico concentrado era tão grande que era praticamente impossível não ser traduzido em influência política; segundo, os oligarcas controlavam os principais setores de exportação da economia russa e, dessa forma, tinham o poder de determinar a posição da Rússia na economia mundial. Por último, o papel dos oligarcas foi essencial como instrumento para estabelecer as principais bases do capitalismo na Rússia. Essa relação complexa entre os oligarcas e o governo russo, o fato de serem constantemente favorecidos nas suas relações com o poder estatal (favorecimento este decorrente do poder econômico controlado), e considerando as hesitações que cercam a forma com que foram conduzidos os leilões da privatização, – todo esse conjunto de fatores leva a um constante questionamento sobre a legitimidade da riqueza acumulada por esses oligarcas. 221

Os maiores críticos dos oligarcas apontam não somente para a forma inapropriada com que eles obtiveram seus ativos, mas também para como foi mal administrada a propriedade adquirida, já que não houve investimento para modernização dos ativos adquiridos ou para crescimento e desenvolvimento da economia doméstica. Essas críticas geram uma série de impactos econômicos e políticos, tirando a legitimidade de todo o processo de privatização. Fortescue (2006) avalia que esse constante questionamento impede a consolidação das bases de desenvolvimento do sistema, e abre espaço para constante instabilidade política e econômica. Com a privatização transferindo o controle sobre o setor industrial para grandes empresários privados, a emergência da oligarquia também foi associada com o aumento da desigualdade social na Rússia e o aumento da concentração da propriedade e da renda (ver os dados sobre essa concentração no início do próximo capítulo). Guriev e Rachinsky (2004) também destacam que a emergência dos oligarcas gera uma instabilidade sobre a legitimidade dos direitos de propriedade no país. Autores como Stiglitz (2002) e Goldman (2003) consideram que a consolidação dos oligarcas como maiores influências sobre a economia (e a política) russa foi um fator de enorme enfraquecimento do conjunto econômico, levando à extração das riquezas do país e a fuga de capitais em favorecimento de um pequeno grupo de indivíduos. Além disso, Alves (2011a) destaca que a forte presença dos oligarcas dificultou a consolidação de instituições democráticas devido à captura do Estado realizada por esses atores. Fortescue (2006) apresenta uma perspectiva mais positiva sobre o papel dos oligarcas, afirmando que a falta de investimentos na indústria doméstica foi resultado das condições inadequadas para os investimentos daquele momento. Segundo o autor, os oligarcas “tiveram de adotar uma disciplina financeira mais rígida” antes que pudessem fortalecer e reestruturar a administração das empresas. Fortescue (2006) ainda afirma que os oligarcas foram para o setor de commodities em um período de baixo lucro, que era consequência de uma situação difícil do mercado e do rublo valorizado (além de terem assumido empresas com dívidas sérias e problemas com capital operacional), mas que depois de 1998, com uma melhora dos preços internacionais e o rublo desvalorizado, as empresas do setor de metalurgia, por exemplo, passaram a apostar em projetos de investimento com maior quantidade de capital. 222

Apesar dos argumentos apresentados pelo autor, ao avaliarmos a retomada do investimento no setor produtivo no período mencionado, consideramos fundamental destacar que, com a crise financeira de 1998, as perspectivas de lucro através do investimento no setor financeiro e na especulação, que era o foco dos oligarcas antes da crise, foram limitadas. Por isso, os oligarcas se viram ‘obrigados’ a retornarem para o setor produtivo, porque a partir daquele momento tal setor apresentava uma perspectiva de taxa de lucro mais favorável do que o financeiro, que ainda estava em processo de recuperação. Ao tentar responder a questão de por que as reformas na Rússia levaram à formação dessa oligarquia, Goldman (2003) elenca alguns pontos interessantes. O primeiro deles é como existe um grande conjunto de ativos valiosos na Rússia ligados às reservas naturais do país, muito maior e mais valioso do que o de outros países que também passaram por esse período de reformas. Outro ponto que o autor destaca é a responsabilidade dos reformistas:

A determinação na Rússia de privatizar empresas estatais tão rapidamente significou que, como as regulamentações governamentais existentes foram projetadas para uma era de planejamento central e propriedade dos estados, não havia leis que regulamentassem empresas privadas. Portanto, praticamente não existiam restrições dentro do governo sobre o que poderia ser feito - as esquinas eram viradas, os aluguéis eram procurados, os olhos eram piscados, os bens despidos e os favores prestados (GOLDMAN, 2003, p. 146, tradução nossa115).

A dificuldade de traçar conclusões sobre o papel dos oligarcas parte muito da falta de transparência que envolve os negócios que foram realizados nesse período. Mas o fato é que esse pequeno grupo de empresários russos alcançou um enriquecimento absurdo em um período de profunda depressão do conjunto econômico russo, e esse enriquecimento foi alcançado através da apropriação (ainda que dentro dos termos “legais”) da propriedade que antes era do Estado. Sem aprofundar muito a questão de quão regular foi o processo (no sentido literal de cumprimento das regras estabelecidas), o problema é que poucos

115 No original: “The determination in Russia to privatize state enterprises so quickly meant that, because existing government regulations were designed for an era of central planning and states ownership, there were no laws regulating private businesses. Thus there were virtually no restraints within the government on what could be done – corners were turned, rents were sought, eyes were blinked, assets stripped, and favors rendered.” 223

indivíduos conseguiram se apropriar desses ativos de fato, com autorização e através da decisão do Estado, sem que esse processo gerasse vantagens palpáveis para o conjunto da população. Dentro da lógica da acumulação por espoliação, esse é o papel desempenhado pelo Estado para permitir que as práticas predatórias do capital sejam executadas. No caso da privatização das empresas estatais russas, o Estado foi também o responsável por orquestrar esse confisco dos recursos públicos e sua concentração nas mãos de pouquíssimos indivíduos. Para concluir o desenvolvimento do trabalho, no próximo capítulo buscaremos amarrar essa análise de como as reformas e as transformações até aqui apresentadas, sobretudo a privatização, vistas através da lente do referencial teórico adotado, auxiliam na compreensão de como esse processo foi essencial para estruturação do sistema capitalista na Rússia.

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4. Privatização e acumulação por espoliação: construindo as bases do capitalismo russo

No quarto e último capítulo do presente trabalho buscaremos aprofundar a análise do processo de privatização da economia russa, compreendendo-o como elemento central da estruturação do capitalismo no país após o colapso soviético de 1991. A análise apresentada no quarto capítulo toma como referência a discussão marxista sobre a estrutura do sistema capitalista, em especial a perspectiva desenvolvida por Harvey (2005; 2013), que traz o conceito da “acumulação por espoliação” como uma atualização da acumulação primitiva de Marx, elemento essencial para a compreensão dos processos de acumulação do capital, sua expansão contínua e a consequente continuidade do capitalismo. Como procuramos demonstrar no decorrer do desenvolvimento do trabalho, a Rússia passou por um profundo processo de transformação na década de 1990, após o fim da União Soviética. Esse período de radicais reformas e o encontro com o capitalismo cobraram altos preços da população russa. O país que era protagonista no sistema internacional e uma das grandes potências mundiais no século XX sofreu uma queda brutal no padrão de vida da população e no desempenho econômico. A produção industrial russa em 1998 caiu para 48% do seu nível de 1991, desempenho que foi resultado de uma combinação de diversos fatores, dentre os quais podemos mencionar o colapso da demanda, a queda dos investimentos, e a combinação da liberalização comercial com a abertura financeira, que provocou uma terrível perda de competitividade da indústria russa, que passou a sofrer com a concorrência dos produtos industriais importados. Além disso, os mercados que eram os principais importadores dos bens soviéticos, especialmente os tradicionais mercados do antigo Pacto de Varsóvia, passaram a enfrentar dificuldades também em suas economias domésticas, enquanto tentavam buscar uma recuperação. Segundo Mazat (2013, p. 156) “[...] entre 1990 e 1992, as exportações nominais dentro das fronteiras da ex-União Soviética caíram de 320 bilhões de dólares para 20 bilhões”. Apesar da queda das exportações, os setores da indústria pesada e da indústria química conseguiram manter um bom desempenho, ainda que lidando com uma queda na produção. Os melhores resultados da economia russa nesse período ficaram concentrados nos setores da mineração e da energia (petrolífero e gás). 225

Segundo Goldman (2003), a combinação do fim da Guerra Fria, o colapso do planejamento central e a tentativa de estabelecer uma economia de mercado, e a substituição dos bens de consumo nacionais em favor das importações, foi o que induziu o colapso da produção industrial russa na década de 1990, uma queda de produção historicamente marcante (a queda da produção e do PIB foi pior do que a queda que os Estados Unidos enfrentaram durante a Grande Depressão da década de 1930). O fim da Guerra Fria, além dos impactos no setor industrial-militar russo e os reflexos no próprio processo de colapso da União Soviética, que foram trabalhados no primeiro capítulo, também gerou diversos impactos na relação da Rússia com os países capitalistas centrais. Apesar de não ter sido amplamente explorado no presente trabalho, vale mencionar que a influência internacional foi presente em todo andamento das reformas conduzidas na década de 1990. No caso específico do processo de privatização, a influência internacional foi concretizada, por exemplo, na assistência que o governo dos Estados Unidos prestou aos reformistas que trabalharam no projeto, através da U.S. AID (sigla em inglês, Agency for International Development, Agência para Desenvolvimento Internacional). Segundo Boycko et al. (1995), a U.S. AID financiou a assistência técnica para o processo de privatização, financiando o estabelecimento dos mecanismos necessários para encaminhar o processo (como o sistema nacional de leilões que foi estabelecido nesse período). Além disso, a U.S. AID também enviou profissionais para diretamente auxiliar na execução dos leilões de vouchers, e financiou campanhas de publicidade para divulgar a privatização116. Assim, a década de 1990 foi marcada na Rússia por um profundo declínio econômico, combinado com uma queda na qualidade de vida e uma redução

116 Boycko et al. (1995) falam explicitamente sobre como o auxílio internacional ajudou a mudar o equilíbrio político na Rússia, ajudando os reformistas a derrubarem os seus oponentes. “Em 1992 e 1993, o governo dos Estados Unidos usou fundos de assistência para apoiar as políticas de Gaidar e Chubais. A assistência financiou programas que não teriam sido financiados pelo Parlamento conservador, e assim permitiram que esses programas avançassem.” (BOYCKO et al., 1995, p. 143, tradução nossa). O papel do governo dos Estados Unidos na influência do processo de privatização que foi encaminhado na Rússia, apesar de ser elemento importante para compreender o quadro geral dos processos que foram encaminhados na década de 1990, não coube no desenvolvimento do presente trabalho. 226

drástica da capacidade do Estado russo de garantir o acesso da sua população aos serviços básicos essenciais para sua sobrevivência. Foi um período marcado por uma taxa de mortalidade média maior do que a de natalidade e uma diminuição da expectativa de vida de forma geral (MEDVEDEV, 2000). O caos econômico e político que foi gerado após o fim da União Soviética e o impacto da separação das repúblicas foi acompanhado por um colapso ainda mais profundo da infraestrutura econômica do país. O sistema de planejamento, que era um dos principais pilares da economia soviética, representado pelo Gosplan e pelos ministérios, foi radicalmente removido, o que contribuiu para a formação de um vácuo institucional, já que não havia uma estrutura alternativa estabelecida naquele momento para auxiliar na organização da economia. Não havia na Rússia um código comercial ou civil consolidado para atender as demandas das relações de mercado, um sistema bancário organizado e efetivo. (GOLDMAN, 2003). Com o clima caótico e o declínio da economia russa, os já mencionados colapsos da produção e do investimento, os grandes lucros ficaram concentrados somente nos setores de energia e de metais. Esses lucros essencialmente não eram investidos de volta na produção, ficando principalmente concentrados nas estruturas corporativas centradas em bancos que eram controlados pelos oligarcas. Essa concentração contribuiu para um aumento do desemprego e principalmente um aumento da desigualdade no país, conforme alguns dos dados trazidos no presente capítulo procuram demonstrar (CLARKE, 2007). O processo de privatização contribuiu para essa concentração do controle da economia russa em um pequeno grupo que era responsável por aglomerados enormes. Segundo Pomeranz (2011), a concentração da produção que já era característica do período soviético foi base para a constituição desses grandes aglomerados. Guriev e Rachinsky (2005) realizaram uma pesquisa para avaliar o nível de concentração dos setores da economia em grandes grupos. Segundo a pesquisa dos autores, que também é citada por Pomeranz (2011), cerca de 42% dos empregos da Rússia são ligados a grandes grupos industriais-financeiros, concentrados especialmente nos setores de petróleo e gás, metais não ferrosos, papel, produtos alimentícios, telecomunicações e bancos. “Em alguns desses setores, estes grupos controlavam mais de 70% das vendas: 72% no de petróleo; 78% no de metais ferrosos, 92% no de não ferrosos – exceto na venda de alumínio, cujo controle era de 80%; 71% na indústria automobilística e 73% na mineração” 227

(POMERANZ, 2009, p. 303). Esses dados sugerem que o capitalismo russo se organizou, rapidamente, em bases monopolistas. Essa discussão aparece adiante no capítulo. Para encerrar a análise desse período e concluir a construção desse trabalho, que procurou estabelecer uma análise da estruturação do capitalismo na Rússia tomando o processo de privatização da economia como eixo central e fio condutor, o capítulo 4 está assim dividido: primeiro buscaremos apresentar os custos sociais dessa transformação, discutindo os impactos na população e na estrutura de seguridade social que havia sido herdada do período soviético; depois, buscaremos retomar e concluir a centralidade da privatização para compreensão desse processo; por último, retomaremos com mais atenção a questão da acumulação por espoliação de Harvey (2005; 2013), para entender como essa referência teórica pode contribuir para avançar a discussão sobre as transformações da economia russa.

4.1. Consequências e impactos na população: o custo social da transformação

De acordo com Segrillo (2000), o período de reformas na Rússia na década de 1990 representou um avanço a passos largos do país rumo ao capitalismo, marcado pela agressividade das políticas da “terapia de choque” e por um custo altíssimo que foi cobrado da maioria da população. Como o processo de privatização focou essencialmente na transferência da propriedade para atores privados, não foi estabelecido qualquer plano concreto de investimento ou modernização das empresas privatizadas (POMERANZ, 1995). As empresas enfrentaram uma grande dificuldade tentando ajustar suas estruturas, a sua lógica de funcionamento, ao novo sistema que estava sendo formado, ao mesmo tempo em que tentavam sobreviver. Aquelas incapazes de realizarem os ajustes necessários passaram a buscar mecanismos alternativos, como esquemas de crédito interempresarial, mas que nem sempre foram suficientes para manter o desempenho e a produção. Nesse momento em que era desenhado um desastre econômico na Rússia (o país perdeu parte maior do PIB na década de 1990 do que perdeu na Segunda Guerra Mundial - entre 1990 e 1999, a produção industrial caiu quase 60%, o rebanho criado caiu pela metade, o investimento na produção quase 228

parou), o único setor que manteve certa capacidade de atrair investimento e de manter o ritmo de exportações foi o setor de recursos naturais (STIGLITZ, 2002). Em tal contexto de declínio econômico, o sistema de previdência universal que era vigente no período soviético foi praticamente abandonado e a proporção de pobres na Rússia subiu muito. Conforme apresentado na tabela 6 (capítulo 2 do trabalho), o desemprego da Rússia avançou de forma acelerada, passando de 5,2% em 1992 para 13,3% em 1998. Além do aumento do desemprego, a alocação do emprego segundo os setores também sofreu alterações, com uma queda dos empregos no setor industrial e um aumento significativo da parcela dos empregos no setor de serviços, como ilustrado adiante no gráfico 9. Nessa perspectiva, ao analisar as taxas de desemprego, Mazat (2013) aponta como a queda do PIB foi bem maior – ao colocar os dois índices em perspectiva, o autor destaca que ambos apontariam para uma forte queda da produtividade da economia russa. Mesmo com a queda da produção, os diretores das empresas tendiam a manter o quadro de funcionários, ainda que com uma queda dos salários reais, e dificilmente cortavam os empregos apesar dos problemas financeiros. Clarke (2007) afirma que essa tendência de manter empregos estava ligada à relação existente entre o corpo administrativo das empresas e a mão de obra empregada, já que a legitimidade da posição dos diretores, desde o período soviético, dependia também da sua capacidade de manter o apoio dos trabalhadores. 229

GRÁFICO 9 – Estrutura ocupacional da população russa por setor

100 90 47,9 80 58,9 60 70 60 7,6 50 5,9 6,7 40 31,2 30 23,5 23,1 20 13,3 10 11,7 10,2 0 1992 1998 2005

Setor primário (agricultura, mineração, pesca etc.) Indústria Construção civil Serviços

Fonte: Elaborado pela autora, dados obtidos em SERRANO; MAZAT, 2013, p. 855.

Essa prática de manter os empregos adotada pelas empresas, que muitas vezes sequer tinham condições de pagar os salários em dinheiro e pagavam seus trabalhadores em produtos, gerava o que Kagarlitsky (2002) chama de “desemprego escondido”. Ela mantinha os níveis de desemprego relativamente baixos (considerando o grau do declínio econômico), garantia o apoio dos trabalhadores e evitava que as empresas precisassem lidar com outros custos, como acerto de contas. Houve um aumento do emprego informal, sobretudo em atividades privadas ilegais e irregulares, já que os trabalhadores (que mantinham os seus vínculos empregatícios, mas não recebiam salários de forma devida) precisavam encontrar fontes de renda alternativas em outras atividades. Outro fator importante para manutenção dos empregos foi a forte pressão exercida sobretudo pelos governos locais para que as empresas continuassem prestando o papel social que era sua responsabilidade no período soviético. Era importante para as autoridades locais que nas regiões sob sua jurisdição houvesse empresas funcionando, empregando a população, pagando impostos e, muitas vezes, arcando com grande parte da manutenção da infraestrutura básica de serviços oferecidos para a comunidade. No período soviético, as empresas eram responsáveis por grande parte dos serviços básicos garantidos aos seus trabalhadores, como moradia, saúde, 230

educação e bem-estar. Com a privatização, havia a pressão dos reformistas e do governo central para que essas responsabilidades fossem passadas para as autoridades locais, já que os proprietários privados não teriam a obrigação de manter essas estruturas, mas as administrações locais dificilmente tinham condições de oferecer esses serviços. Outra opção foi o surgimento de atores privados oferecendo esses serviços, interessante para aqueles que buscavam oportunidade de empreender, mas que gerou profundos impactos negativos na qualidade de vida da população, rompendo as bases da política social soviética (KAGARLITSKY, 2002; CLARKE, 2007; MAZAT, 2013). Segundo Boycko et al. (1995), o custo da manutenção desses chamados “ativos sociais” era um dos principais gastos das empresas russas, e os reformistas enfrentaram grandes dificuldades tentando reestruturar a forma de financiamento da rede de segurança social existente. A preocupação dos reformistas era que o custo desses ativos sociais representava de 5 a 25% do total dos custos trabalhistas das empresas, além de consumir uma parcela significativa do potencial de lucro. Além de moradia, escolas e creches, e até mesmo opções de lazer, as empresas também eram responsáveis por arcar com os custos do seguro-desemprego (outro elemento que estimulava a manutenção dos empregos). Além da renda, o consumo e a qualidade de vida dos trabalhadores estavam todos ligados à empresa empregadora. Ainda segundo Boycko et al. (1995), esse peso dos ativos sociais tornava as empresas russas ainda menos atrativas para os possíveis investidores. A privatização não conseguiu imediatamente resolver essa questão, porque o programa estabeleceu que as empresas só poderiam transferir a responsabilidade pelos ativos sociais para os governos locais caso estes aceitassem, e evidentemente a maioria dos municípios não abraçou essa responsabilidade. Ainda assim, conforme os diretores e novos proprietários conseguiram avançar o seu controle sobre as empresas em detrimento dos coletivos de trabalhadores, houve um desmonte acelerado dessas estruturas sociais, e os trabalhadores não contavam com representações trabalhistas ou sindicatos setorizados organizados para mobilizar uma luta pela defesa desses direitos (MCFAUL, 1995). Além dos problemas relacionados aos serviços sociais básicos, a população russa também enfrentou uma série de desafios tentando adaptar seu consumo ao novo sistema de mercado que estava sendo formado. Foi gradual o estabelecimento 231

de um mecanismo de mercado eficiente, que conseguisse de forma eficaz garantir o encontro entre os produtores e os consumidores. O papel que era desempenhado pelo planejamento estatal no período soviético não foi rapidamente substituído após o colapso do Gosplan e dos ministérios. De acordo com Goldman (2008), os russos que queriam comprar coisas simples como um colchão ou um casaco, ou empresas que buscavam fornecimento de carvão ou uma máquina específica, nem sempre sabiam onde ir, pois não havia um sistema de lojas de varejo bem organizado, e a maioria dos que não tiveram qualquer contato com o mercado ilícito no período soviético não tinha experiência ou conhecimento para lidar com produtores e fornecedores independentes. Para agravar a situação, parte dos bens (sejam estes bens de consumo ou de produção) que eram antes alocados pelo Gosplan vinha de unidades produtivas que passaram a ser localizadas no exterior, em ex-repúblicas soviéticas, países agora independentes que passavam por seus próprios desafios econômicos. De acordo com Kotz (2005):

Grande parte da população da Rússia foi jogada para trás, forçada a confiar em métodos primitivos de produção de subsistência para sobreviver. Uma pesquisa realizada em 1999 constatou que 55% das famílias russas confiavam metade ou mais da comida consumida no que podiam produzir em seus próprios pequenos jardins (p. 6, tradução nossa117).

Os efeitos negativos do período na qualidade de vida, combinados com o fato de que, no início da privatização, os trabalhadores foram inseridos no processo através dos vouchers, e que viram a ascensão dos oligarcas enquanto vivenciavam um profundo empobrecimento, são todos elementos que deixaram um sentimento muito negativo na população em relação às reformas (GURIEV; RACHINSKY, 2004). Como mencionamos no capítulo anterior, com a introdução dos vouchers, os trabalhadores foram incorporados ao processo de privatização, mas como este ocorreu em um momento de inflação e queda dos salários reais, em que os trabalhadores lutavam para encontrar formas alternativas de renda, estes foram

117 No original: “A large part of Russia’s population has been thrust backward, forced to rely on primitive methods of self-supply to survive. A survey in 1999 found that 55 percent of Russian households relied, for half or more of the food consumed, on what they could produce from their own small gardens.” 232

“obrigados” a venderem os seus vouchers para fundos de investimento e instituições financeiras, por valores muito baixos e muito rapidamente. Estes fundos, por sua vez, utilizaram os vouchers que antes eram dos trabalhadores para entrar no capital das empresas. Houve uma sobreposição de fatores que contribuíram para a concentração da renda, o aumento da desigualdade e o aumento da pobreza.

[Os gerentes] manobraram com essas instituições para adquirir ações dos funcionários e tomar o controle das empresas mais cobiçadas. Essa situação levou a uma concentração da riqueza na mão deu um número reduzido de operadores econômicos, com efeitos negativos sobre a distribuição da riqueza. A deterioração da distribuição de renda foi amplificada, também, por um forte aumento da disparidade salarial entre os setores de atividade (SERRANO; MAZAT, 2013, p. 841).

Dessa forma, segundo também conclui Pomeranz (2018), as mudanças das relações de propriedade decorrentes do processo de privatização levaram não apenas à transferência de grande parte da propriedade estatal para proprietários privados, mas a parcela que era destinada aos trabalhadores foi gradualmente reduzida – ou seja, essa parcela foi apropriada pelos diretores das empresas, pelos grandes investidores e detentores de fundos. Para tentar garantir que os problemas vivenciados pela população não levariam a uma mobilização organizada do descontentamento, Medvedev (2000) afirma que o governo russo estabeleceu o que o autor chama de “válvulas sociais de segurança”, elementos que contribuíam para reduzir o descontentamento de forma que ele não se tornasse um obstáculo para o encaminhamento dos processos. Dentre essas válvulas, Medvedev destaca a liberdade de comércio (os cidadãos russos agora podiam vender e comprar o que bem entendessem), a venda de bebidas alcoólicas baratas (segundo o autor, era mais barato comprar vodka do que pão ou carne)118, o incentivo a manutenção de pequenas hortas individuais (conforme mencionamos acima, tornou-se comum a prática de cultivar alimentos), e a liberdade para viajar e emigrar (o autor destaca que essa liberdade foi importante sobretudo para parcela da intelligentsia soviética empobrecida, trabalhadores

118 A questão do alcoolismo é tema de discussões e pesquisas na Rússia, e sobretudo na primeira metade da década de 1990 houve um aumento significativo no consumo de bebidas alcoólicas no país. Ver mais em: LYSOVA, A.; PRIDEMORE, W. (2010). 233

altamente qualificados que estavam desempregados ou enfrentando um declínio acelerado da sua qualidade de vida). O período do governo Yeltsin, lembrado como o tempo do aumento da desigualdade de renda e uma queda dramática do padrão de vida enquanto a classe política vendia o discurso democrático e liberal, faz com que parte do público trate com repúdio tais valores ligados à “influência ocidental” (SHEVTSOVA, 2007). Foi um período em que, de acordo com Stiglitz (2002), o tamanho do bolo russo estava diminuindo e sendo dividido de forma cada vez mais desigual. Em 1989, apenas 2 por cento dos que viviam na Rússia estavam na pobreza. No fim de 1998, esse número havia disparado para 23,8 por cento (utilizando- se o padrão de dois dólares por dia). Mais de 40 por cento do país ganhava menos de quatro dólares por dia [...]. As estatísticas em relação às crianças revelaram um problema ainda maior: mais de 50 por cento delas pertencia a famílias pobres (STIGLITZ, 2002, p. 194-5).

Além da concentração da renda e aumento da pobreza, outro elemento que tornava a estrutura social do país no período extremamente instável era que o “grupo intermediário” da sociedade russa, que segundo Shevtsova (2007) representava entre 60 e 65% da população, apesar de não entrar na classificação acima utilizada de pobreza, também enfrentava sérios problemas tentando manter sua qualidade de vida. Stiglitz (2002) afirma que grande parte da população que seria a “classe média” do país foi devastada com as reformas – a inflação consumiu suas escassas economias, sua renda real caiu, e com o gradual colapso dos sistemas públicos de educação e saúde, os gastos das famílias nesses setores aumentaram. Segundo Pomeranz (2018), com a privatização e as reformas econômicas, houve uma mudança na estrutura social do país e foi formada uma nova estratificação social. Essa nova estrutura social passou a apresentar estratos anteriormente não existentes no período soviético, como o estrato dos proprietários de capital, em um extremo, e o das pessoas vivendo em condições de extrema pobreza, em outro. A estrutura social e econômica do país entrou em colapso, conforme mencionamos acima. Segundo Freeland (2000), na década de 1990 era comum na Rússia ocorrências de escolas e hospitais parando de funcionar, professores e médicos tentando mobilizar greves após meses sem pagamento, e até mesmo apagões de energia e falta de água frequentes, tanto em locais estratégicos (como 234

em bases militares e hospitais) quanto em locais “menos importantes”, como teatros e outros centros culturais. Ainda segundo Freeland (2000), as únicas pessoas que estavam prosperando na Rússia na década de 1990 era o pequeno grupo concentrado no topo da estrutura social. Em 1999, os 10% mais ricos tinham metade de toda a riqueza do país, enquanto os 40% de baixo não tinham 1/5. Os novos grandes proprietários de capital na Rússia ficaram ricos muito rapidamente, e fizeram isso sem qualquer preocupação de sequer tentar levar o resto do país junto no caminho da prosperidade. Isso evidencia como o enriquecimento desse pequeno grupo está diretamente ligado ao empobrecimento e deterioração da qualidade de vida da população – essa extração da riqueza, a acumulação nas mãos de poucos indivíduos através da espoliação dos recursos que serviam à população, recursos que são apropriados da base da população em direção às fortunas individuais.

No plano social, a transformação sistêmica resultou na substituição de uma sociedade relativamente igualitária, ainda que em níveis de renda per capita mais baixos, por uma sociedade estratificada em classes, com a formação de uma elite empresarial e de governo, que comanda parcela significativa da riqueza nacional, o surgimento de uma pequena classe média, e uma ampla parcela da população vivendo com baixos níveis de renda, na qual se insere uma porcentagem ainda significativa de pessoas com renda inferior à do nível de subsistência. (POMERANZ, 2009, p. 305).

A mudança na propriedade dos meios de produção e adoção de uma escala de remuneração “capitalista” também contribuiu na piora da distribuição de renda, e a média do salário real caiu 1/3 entre 1990 e 1998, enquanto a renda do capital não parou de aumentar (enquanto o sistema de previdência universal soviético era abandonado e a pobreza aumentava de forma alarmante) (SERRANO; MAZAT, 2013). Na tabela 14, que apresenta a divisão da renda na Rússia, é possível perceber como na década de 1990, a queda da parcela da remuneração do trabalho e das transferências sociais passaram justamente para as rendas empresariais e para a renda da propriedade.

235

TABELA 14 – Evolução da repartição da renda na Rússia entre 1992 e 2011 1992 1995 2000 2005 2007 2008 Rendas empresariais 8,4 16,4 15,4 11,4 10 10,2 Remuneração do trabalho 73,6 62,8 62,8 63,6 67,5 68,4 Transferências sociais 14,3 13,1 13,8 12,7 11,6 13,2 Renda da propriedade 1 6,5 6,8 10,3 8,9 6,2 Outras rendas 2,7 1,2 1,2 2 2 2 Fonte: Federal State Statistics Service apud SERRANO; MAZAT, 2013, p. 867

Serrano e Mazat (2013) também concluem que essa transformação da estrutura distributiva que era presente no período soviético foi possível principalmente pelo processo de privatização conduzido pelo governo russo. Ainda que os reformistas tivessem adotado inicialmente um discurso que pretendia fazer justiça ao patrimônio coletivo herdado do período soviético (e, ainda que tenham falhado, os vouchers foram a tentativa dos reformistas mostrarem compromisso com esse discurso), o processo beneficiou apenas uma pequena classe de novos proprietários. Retomando essa centralidade do processo de privatização como fio condutor das transformações que ocorreram no país no período de reformas, passamos ao próximo tópico.

4.2. A privatização como elemento chave na análise da estrutura capitalista na Rússia

Considerando os resultados gerais do processo de privatização, Pomeranz (2018) destaca os seguintes principais pontos: 1) o objetivo de criar rapidamente uma classe de proprietários interessada na defesa de sua propriedade, que era de fato o principal objetivo político desse processo, foi inegavelmente alcançado; 2) as estruturas e organizações de planejamento estatal foram removidas, e a expectativa dos reformistas era de que as unidades empresariais se adaptariam rapidamente aos mecanismos de mercado; 3) a privatização contribuiu para a formação de uma estrutura social bastante desigual, como vimos acima, com o surgimento dos extremos de um grupo abaixo da linha da pobreza e um grupo de grandes milionários (e bilionários); 4) a forma com que o governo russo conduziu o processo de privatização permitiu a ascensão de um grupo diferenciado dentre os novos proprietários capitalistas, a chamada oligarquia, que graças ao poder financeiro acumulado passou a exercer influência direta na condução da política do Estado russo. 236

Kotz (2005) avalia que a privatização foi o elemento mais importante que levou ao declínio econômico russo no período. O autor considera que como as empresas foram praticamente doadas pelo Estado, e sem uma política de investimento e modernização da indústria, a privatização teria levado a um sucateamento do setor industrial russo, e os novos proprietários teriam atuado de forma a priorizar seu enriquecimento imediato, vendendo qualquer coisa que levasse a um lucro rápido. Conforme demonstrado adiante no gráfico 10, grande parte da produção industrial foi perdida ao longo da década de 1990, além de ter avançado o declínio tecnológico da indústria russa em comparação com a indústria dos principais países capitalistas. Um elemento importante para compreender o declínio da indústria de bens de consumo é a questão da liberalização do comércio exterior e o aumento significativo da importação desses bens. Segundo Goldman (2003), em 1995, os importados já representavam cerca de 70% dos bens de consumo comercializados nas maiores cidades russas, o que foi uma significativa redução de espaço no mercado para a indústria russa. A abertura comercial expôs a indústria russa à concorrência internacional em um contexto de forte recessão interna e restrição de financiamento. Os bens de consumo russos eram obsoletos, de qualidade questionável. Além disso, os tradicionais mercados que consumiam esses bens estavam agora voltados para o Ocidente ou enfrentando as suas próprias crises internas (as ex-repúblicas soviéticas e os ex-membros do COMECON) (SERRANO; MAZAT, 2013). 237

GRÁFICO 10 – Produção industrial física da Federação Russa entre 1991 e 2011 (em número-índice – 1991=100).

Produção industrial

100

84 72

57 57 54 53 50 51 48

1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000

Fonte: UNECE, 2012 apud SERRANO; MAZAT, 2013, p. 847

Apesar dos resultados negativos até aqui mencionados, Starodubrovskaia (2005) considera que, ainda assim, as reformas conduzidas pelo governo russo foram suficientes para criar no país as condições macroeconômicas, institucionais e políticas básicas para o funcionamento de uma economia de mercado. A autora avalia que, no momento das reformas, a principal tarefa era construir instituições básicas, e as relações de propriedade estavam no centro dos mecanismos econômicos mais elementares. Assim, ainda de acordo com Starodubrovskaia (2005), a redistribuição da propriedade cumpriu seu papel de estabelecer essas relações, e foi além, desempenhando duas tarefas: a de captar recursos financeiros (já apresentamos no capítulo 3 que os recursos levantados pela privatização para o governo russo não foram tão significativos), e, especialmente, a de reforçar a base política do novo regime, transferindo a propriedade para grupos políticos e sociais que o apoiam. A importância do processo de privatização não se refere somente a uma transformação na estrutura da propriedade – ele determina os detentores do poder econômico no novo modelo socioeconômico que estava sendo construído no país, e esse poder econômico, como pudemos notar até aqui, é refletido no poder político. Ao trabalharmos a ascensão da oligarquia russa, pudemos notar como a privatização foi central para que esses novos proprietários conseguissem esse poder 238

econômico, e esse poder é concretizado através da formação de conglomerados enormes na economia russa, em pouquíssimo tempo, e centralizados nas mãos desses poucos indivíduos. Guriev e Rachinsky (2004) argumentam que a ascensão dessa oligarquia foi inevitável devido à forma com que foram conduzidas as reformas na Rússia. No início da década de 1990, ainda sem as instituições de uma economia de mercado capitalista estabelecidas, os reformistas optaram por conduzir um processo acelerado de privatização, e os autores também concluem que essa decisão foi baseada na convicção dos reformistas de que, sem o estabelecimento da propriedade privada, não haveria apoio para as demais mudanças institucionais. Nesse contexto, a postura do governo russo no processo e o sistema legal ainda não definido criaram enormes oportunidades de enriquecimento desse pequeno grupo. Os autores afirmam ainda que, mesmo que nos momentos iniciais da privatização as ações das empresas tenham sido distribuídas de forma dispersa, em pouco tempo essas ações acabaram concentradas – eram utilizados recursos como a diluição societária ou até mesmo expropriação de investidores externos. Considerando a complexidade das transformações associadas ao processo de privatização da economia russa, a avaliação desse processo como um todo é uma tarefa bastante difícil. Pomeranz (1995) afirma que

[...] nas condições específicas da transformação sistêmica do país, o processo [de privatização] assume uma importância estratégica que extrapola uma transformação estrutural limitada ao âmbito de empresas ou setores [...]. Trata-se, assim, de um processo que deve determinar os detentores do poder econômico e, em última instância, o modelo socioeconômico que assumirá o país; daí por que o embate pelo poder político, do qual ele fundamentalmente depende, assume proporções dramáticas [...]. Trata-se de um processo que foi conduzido em ritmo extraordinariamente rápido, tendo em vista o objetivo estratégico de criar as bases materiais necessárias para o impedimento de quaisquer retrocessos; [...] a sua amplitude e os preconceitos ideológicos, bem como o desenvolvimento anterior das reformas representavam obstáculos grandiosos sem comparação com processos semelhantes no resto do mundo. (POMERANZ, 1995, p. 115-116).

Sobre as duas fases da privatização, Freeland (2000) avalia que a primeira, da privatização em massa, configurou uma redefinição da propriedade, e não uma redistribuição de fato, já que durante essa primeira fase o governo russo essencialmente oficializou a propriedade dos ativos que os diretores das empresas já controlavam no período soviético. Contudo, na segunda fase, dos empréstimos- por-ações, a autora considera que a redistribuição foi de fato realizada. Nessa fase, ao contrário da primeira, os diretores das grandes empresas que foram privatizadas 239

perderam o seu controle sobre esses ativos, que passaram a ser controlados pelos grupos da oligarquia que era formada. Freeland (2000) argumenta que o esquema dos empréstimos-por-ações foi motivado principalmente porque os reformistas e o governo Yeltsin de forma geral precisavam encontrar uma forma de garantir a continuidade das reformas no país, “salvar a revolução capitalista na Rússia” (sic). Essa fase da privatização, assim, teria comprado o apoio político, financeiro e estratégico do grupo de grandes proprietários que formaria a oligarquia russa. “Significou penhorar as joias da coroa da Rússia, mas se esse era o preço para manter os comunistas fora do Kremlin, os reformistas estavam dispostos a pagar” (FREELAND, 2000, p. 170-171, tradução nossa119). Starodubrovskaia (2005) também destaca o aspecto estratégico de formar essa camada de grandes proprietários privados, como esse era um dos objetivos sociopolíticos das privatizações. O governo favoreceu a formação de um grupo que estivesse alinhado com a sua postura na condução das reformas, e isso fortaleceu o vetor sociopolítico do processo de privatização. Dessa forma, o processo também teve a função de atrair os diretores das empresas para dentro do grupo de apoio do governo, e chegou a atrair parte da população sobretudo no início do processo, com a promessa da redistribuição do patrimônio para o coletivo. Ainda sobre os objetivos da privatização, Boycko et al. (1995) destacam como um dos principais alvos do processo era remover o controle político sobre as decisões das empresas, promover uma suposta separação do Estado e da economia. Uma das maiores preocupações dos reformistas era justamente conseguir alcançar um modelo de reestruturação das empresas de forma que estas ficassem descoladas dos objetivos políticos do governo, um modelo em que a alocação dos investimentos no país, de alguma forma, não fosse definida por motivações políticas. Em meados da década de 1990, os reformistas continuavam preocupados porque “a alocação do capital na Rússia continuava altamente politizada”, e o governo continuava oferecendo subsídios e crédito que “interferiam” no conjunto econômico. É curioso destacar a preocupação dos reformistas de

119 No original: “It meant pawning Russia’s crown jewels, but if that was the price of keeping the communists out of the Kremlin, the young reformers were willing to pay up.” 240

garantir uma alocação de investimentos apolítica, sendo que a alocação da propriedade conduzida por eles assumiu inteiramente suas motivações políticas. A escolha feita de seguir a receita neoliberal para conduzir as reformas também foi uma escolha essencialmente política. Sobre essa distribuição da propriedade com motivações políticas, Kagarlitsky (2002) também destaca como é curioso a dissociação entre o discurso neoliberal e a forma com que as reformas são conduzidas de fato. O autor afirma que Tendo começado criticando o comunismo e o socialismo como "ideologias da redistribuição", os próprios neoliberais da Rússia e da Europa Oriental mudaram rapidamente para uma política de redistribuição, em uma escala historicamente sem precedentes. Só que nesse caso o que estava envolvido era a divisão dos recursos utilizados por muitas pessoas e sua entrega a uma minoria minúscula e privilegiada (KAGARLITSKY, 2002, p. 94, tradução e destaque nossos120). Apesar do discurso acirrado sobre a construção de uma economia de mercado nos moldes da economia de mercado capitalista ocidental, o processo foi conduzido, desde sua origem, seguindo uma lógica antimercado. O problema, segundo Kagarlitsky (2002), era a combinação da estrutura econômica herdada do período soviético com a adoção de uma lógica de desenvolvimento destinada à periferia do capitalismo, que focava no setor de exportações de recursos naturais. Acreditamos que é complicado resumir o papel da Rússia na economia mundial simplesmente como “periferia do capitalismo”, devido à complexidade da posição que o país ocupa nesse cenário. Como já mencionamos previamente em momentos diferentes do trabalho, a posição da Rússia no cenário internacional é peculiar justamente por combinar elementos de países centrais, como uma influência militar mundial evidente, com elementos de países periféricos, como a dependência econômica na exportação de recursos naturais. Parte significativa da bibliografia, ligada a uma perspectiva institucionalista, argumenta que uma das principais causas para o fracasso das reformas foi o avanço agressivo da liberalização econômica sem a organização prévia das transformações institucionais, já que não existia no país uma estrutura de instituições que poderiam

120 No original: “Having begun by criticizing communism and socialism as ‘ideologies of redistribution’, the neo-liberals in Russia and Eastern Europe themselves quickly shifted to a policy of redistribution, on a historically unprecedented scale. Only this time, what was involved was dividing up resources used by many people, and handing them over to a tiny, privileged minority.” 241

trabalhar para garantir certo desenvolvimento da economia de mercado. Strepetova (2000) apresenta essa perspectiva de que as dificuldades enfrentadas pela economia russa se deram devido a ausência de um mercado institucionalizado. Pomeranz (2000) também afirma que houve uma inadequação da estratégia adotada às condições do processo de transformação sistêmica. Segundo a autora, os reformistas não levaram em consideração a necessidade da construção institucional da economia de mercado. Goldman (2003) também utiliza o argumento institucionalista de que, como as reformas foram conduzidas com a ausência das instituições que viabilizassem um funcionamento do mercado, sem levar em consideração a estrutura e a cultura econômica herdadas do período soviético, isso teria possibilitado a ascensão de grandes detentores de propriedades e capital como os oligarcas. Ao estabelecer essa conexão, essa análise institucionalista leva a entender que, caso fosse construída uma estrutura institucional de mercado organizada antes da realização das reformas, o declínio econômico ou a concentração da renda e o empobrecimento da população poderiam ter sido evitados. Contudo, mesmo em países como Estados Unidos e Inglaterra, referências históricas do modelo econômico do capitalismo de mercado e da construção das instituições regulatórias do mercado, existe um custo social e um empobrecimento da população, favorecendo o grupo dos mais ricos. A estratégia do governo russo pode ter resultado em efeitos importunos para a população, mas considerando as forças que conduziram a reforma e a estrutura econômica herdada do período soviético, é difícil afirmar que a simples construção de instituições mais estabelecidas seria o suficiente para evitar determinados resultados da transformação capitalista. A desigualdade presente no capitalismo está no núcleo da própria lógica dos processos de acumulação121. Retomaremos este ponto logo adiante, na discussão sobre a concentração da propriedade.

121 A questão da desigualdade e da distribuição de renda exigiria um espaço maior para desenvolver a discussão. Contudo, ainda que limitados pelos objetivos do trabalho, podemos mencionar que nos momentos da história do capitalismo em que é possível observar uma melhora na distribuição da renda, tal fato é atrelado a um período em que a correlação de forças está mais favorável aos trabalhadores. Ao considerarmos, por exemplo, as conquistas dos trabalhadores dos países centrais durante a “era de ouro” do capitalismo (após a Segunda Guerra Mundial, até 1970), a própria 242

Os aspectos estruturais herdados do período soviético condicionaram vários dos efeitos das transformações conduzidas pelo governo russo. Um exemplo foi a ascensão das empresas de trading, um dos setores que mais enriqueceram na década de 1990 e que a maioria dos oligarcas estava envolvida. Goldman (2003) relata como o papel dos tolkatchi (que vimos no capítulo anterior), que encontravam fornecedores e produtos no período soviético, foram consolidados nessas empresas de trading. Sem o planejamento estatal, as empresas de trading foram a forma que o setor privado encontrou para ocupar os espaços deixados pelo Gosplan, considerando a dificuldade das empresas de se adaptarem automaticamente ao funcionamento do mercado122. Outro evidente problema que não foi resolvido pelas reformas conduzidas pela equipe econômica foi a própria estrutura das indústrias russas, que seguiam uma lógica de organização alinhada com o sistema de planejamento soviético e não estavam prontas para serem imediatamente alinhadas à uma organização de

existência da União Soviética e da ameaça comunista fez com que os trabalhadores de todo o mundo ganhassem força. 122 Goldman (2003, p. 130, tradução nossa) faz um longo relato que ilustra de forma bastante esclarecedora sobre o papel que as empresas de trading assumiram na economia russa: “Tive ampla oportunidade de me familiarizar com uma operação semelhante, a Verkhne Volzhsk Shina (VVSh), uma empresa de comércio de pneus na cidade de Yaroslavl. Foi fundada em 1994, após a privatização da fábrica de pneus de Yaroslavl, que havia sido uma das maiores empresas estatais da cidade. Como fábrica estatal, não precisava se preocupar com a aquisição de suprimentos de matérias-primas ou com a disposição dos pneus produzidos. Essa preocupação era responsabilidade da Gossnab, a organização de suprimentos do estado [que coordenava a alocação de recursos não administrados pelo Gosplan]. Depois da privatização, no entanto, essas funções de aquisição e venda tornaram-se de responsabilidade dos executivos da empresa de pneus. Por causa da falta de experiência com atividades básicas do mercado comercial, como compra e venda, dominar esses novos procedimentos rapidamente não foi fácil. Além disso, devido à política monetária rígida adotada para conter a inflação, quase ninguém tinha dinheiro para pagar grandes quantias em dinheiro. [...] o diretor comercial da fábrica de pneus sugeriu a alguns associados a criação da VVSh Tire Trading Company. Sob este novo formato, como nem os clientes nem os fornecedores da fábrica de pneus tinham dinheiro, a produção seria passada para a empresa de trading e ela seria responsável por encontrar maneiras de comercializar os pneus produzidos pela fábrica. Entendeu-se que o lucro resultante seria direcionado em uma propina para o diretor comercial da fábrica. Inicialmente dependente dos pneus da fábrica Yaroslavl a VVSh Trading Company logo começou a se ramificar, de modo que, na época da minha visita, havia se aventurado no setor imobiliário, têxteis e na conversão de um estaleiro de submarinos nucleares. O diretor comercial da VVSh me explicou que empresas de trading similares surgiram rapidamente em todo o país. Como vimos, a maioria das grandes fábricas russas achava difícil se adaptar ao mercado. Além disso, essa era uma maneira conveniente para os executivos da empresa de pneus complementarem sua renda, algo que eles estavam ansiosos para fazer enquanto os banqueiros e investidores procuravam assumir o controle de suas fábricas. Embora nem sempre visíveis para quem está de fora, essas tradings se tornaram um elemento-chave na operação da economia russa.” 243

mercado. As empresas eram, em sua grande maioria, enormes, de mão de obra extensiva, sem tecnologia avançada para concorrer abertamente com a indústria capitalista, e espalhadas pelo gigantesco território russo, o que significava muitas vezes que a empresa era localizada no meio da Sibéria, a milhares de quilômetros do mercado europeu ou do mercado asiático. Essas indústrias foram planejadas para servir uma economia fechada, centralmente planejada, e com objetivo de consumir grandes montantes de matéria-prima e empregar muita mão de obra (FREELAND, 2000). Simplesmente privatizar essas empresas e transferir a responsabilidade de administrá-las para os novos proprietários não fazia com que elas fossem plenamente viáveis e funcionais no ambiente de mercado, sobretudo concorrendo com empresas do mercado internacional. Goldman (2003) também destaca como os reformistas não organizaram uma reestruturação das empresas, e nada foi feito para quebrar os monopólios que eram uma característica integral da maioria das empresas soviéticas. Ao privatizar as empresas dessa forma, a estrutura capitalista que é originada na Rússia nasce como uma estrutura capitalista monopolista, concentrada. Considerando esse aspecto central, e o poder acumulado nessas unidades centralizadas, é necessário questionar a abordagem liberal e a abordagem institucionalista sobre a avaliação de que, no caso da primeira, simplesmente privatizar as empresas levaria ao funcionamento da economia de mercado nos moldes ideais de concorrência, e, no caso da segunda, instituições regulatórias conseguiriam desempenhar sua função sem entrar em um confronto direto com essas estruturas monopolistas. Kotz (2005) vai ao encontro dessa ideia, quando afirma que o simples desmantelamento do planejamento central e a privatização das instituições não gera automaticamente uma economia de mercado funcional:

Se uma sociedade cuja economia era baseada em planejamento central desmonta o seu sistema de planejamento, privatiza suas empresas, e libera o lucro como motivação, as ações de interesse próprio dos indivíduos não levarão a nenhum dos resultados socialmente desejáveis que Adam Smith descreve. Ao contrário, é iniciada uma guerra sobre quem pode pegar os valiosos ativos econômicos da sociedade à medida que se tornam disponíveis para a propriedade privada (KOTZ, 2005, p. 11-12, tradução nossa123).

123 No original: “If a society whose economy was based on central planning dismantles its planning system, privatizes its enterprises, and turns loose the profit motive, then self-interested action by 244

Assim como a privatização não garantiu automaticamente o funcionamento de uma economia de mercado conforme o padrão liberal, o processo também não funcionava como um programa de investimento ou crescimento. Tanto a privatização quanto todo o programa de liberalização e das políticas de estabilização foram tratadas pelos reformistas como condições para viabilizar um futuro crescimento econômico. Contudo, Stiglitz (2002) afirma que a condução das reformas estabeleceu as condições, na realidade, para o colapso econômico do país. O autor afirma que os investimentos cessaram, como podemos notar nos gráficos 11 e 12, e a privatização combinada com a abertura dos mercados de capitais não gerou efeitos positivos – pelo contrário, facilitou uma perda de ativos acelerada do país. O autor avalia que tal resultado é algo “perfeitamente lógico”:

Um oligarca que tenha acabado de utilizar sua influência política para acumular ativos bilionários após pagar apenas uma quantia ínfima iria querer mandá-los para fora do país. Manter dinheiro na Rússia significava investir em um país em profunda depressão e arriscar não apenas obter lucros reduzidos, mas ter os ativos confiscados pelo governo seguinte, que logo contestaria a ‘legitimidade’ do processo de privatização (STIGLITZ, 2002, p. 184).

individuals will not lead to any of the socially desirable outcomes that Adam Smith describes. Instead, a war will begin over who can grab whatever are the valuable economic assets of the society as they become available for private ownership.” 245

GRÁFICO 11 – Investimento real bruto na Rússia de 1991 a 1994 (em número- índice – 1990=100)

Investimento real bruto

85

51 44,9

32,8 29,2 23,2 22,4 22,8 15,9 17,3

1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000

Fonte: OECD e Goskomstat apud KOTZ, 2005, p. 15

GRÁFICO 12 – Evolução da taxa de investimento na URSS e na Rússia (1950- 2008, em termos de % do PIB)

Fonte: Joint Economic Committee, UNSTAT, Popov (2008) e Federal State Statistics Service apud SERRANO; MAZAT, 2013, p.761

Com investimentos reduzidos, é reduzida também a possibilidade de modernização das empresas privatizadas, de maneira a tentar assegurar alguma competitividade e eficiência (POMERANZ, 1995). Dentro dessa análise, é 246

interessante notarmos que, apesar de não ser um programa de crescimento em si, muito do discurso que defendia a privatização e as reformas de forma geral era associado à ideia de modernização da economia russa, que seria atrasada em termos relativos à economia capitalista na questão da tecnologia utilizada e da lógica de organização das empresas (evidentemente que em setores que não o militar, que destoava do resto da economia justamente pelo montante de investimentos – mas que também sofreu com a queda dos investimentos na década de 1990). Contudo, apesar de utilizar a retórica da modernização para alimentar a justificativa das reformas, elas de fato não resultaram no aumento do investimento no setor produtivo, muito pelo contrário, os recursos foram sangrados da indústria russa ainda mais. Os juros elevados como forma de controlar a inflação na política de estabilização também reprimiam os novos investimentos, e para os diretores lucrarem, se não era possível através do investimento em ativos, a opção mais fácil era simplesmente liquidá-los. As rígidas políticas monetárias também incentivaram o sistema de trocas informais entre as empresas e entre a população, como já trabalhamos também no decorrer dos capítulos anteriores. Os mercados informais que surgiram nas ruas dos grandes centros urbanos, e que ganharam fama mundialmente, não eram, segundo Stiglitz (2002) resultado de um ímpeto empreendedor: eram trabalhadores buscando qualquer forma de sobreviver. Esses resultados colocaram em xeque a capacidade de implementar ao mesmo tempo um programa de estabilização econômica e um programa de privatizações, o que era amplamente defendido pelo receituário neoliberal da terapia de choque e imposto não só à Rússia, mas a todos os países que estavam passando por transformações similares. As instituições financeiras internacionais foram importante instrumento para pressionar os países, ao condicionarem a aprovação dos pacotes de auxílio financeiro aos países mediante a introdução dessas reformas. Foi criada uma armadilha que prendia a economia em um ciclo de declínio, e as forças políticas defensoras das reformas congelavam os instrumentos econômicos que o Estado poderia utilizar para tentar brecar esse colapso. O orçamento do governo dependia do nível de atividade econômica. A privatização não tinha capacidade de criar condições para retomar os investimentos, e o nível dos investimentos caiu continuamente no período considerado. A liberalização das importações não contribuiu também para estimular os investimentos, deprimindo a 247

produção nacional e estimulando a atividade especulativa no mercado cambial, e a remessa ilegal de divisas para fora do país (POMERANZ, 1995). Freeland (2000) ilustra a liquidação dos ativos e a queda dos investimentos com o caso da metalúrgica em Zlatoust (situada no oblast de Tcheliabinsk). No período soviético, o maior comprador do aço produzido era o setor de defesa estatal, mas com os profundos cortes do orçamento militar durante a década de 1990, a produção caiu de 1,2 milhões de toneladas de aço por ano em meados de 1980 para cerca de 280 mil toneladas em 1996. A autora relata que essa indústria foi privatizada, mas o interesse dos novos proprietários era explorar os bens adquiridos. Não houve investimento na linha de produção, e o aço era vendido por preços artificialmente baixos e os lucros eram enviados para fora do país. Esse caso evidencia como o interesse daqueles que obtinham as empresas, normalmente por preços bastante baixos, era explorar o máximo possível dos seus recursos para obter um enriquecimento a curto-prazo. A queda significativa dos investimentos no setor industrial russo (incluindo aqui o setor militar, que sofreu os impactos da década de 1990) fez com que a Rússia passasse de gigante industrial, com uma capacidade industrial e tecnológica que criou o Sputnik e colocou o primeiro satélite em órbita, para uma economia que dependia essencialmente da exportação de recursos naturais (STIGLITZ, 2002, p. 193). O caso russo evidencia como as políticas introduzidas simultaneamente podem agravar uma situação de declínio econômico, como a combinação de liberalização do mercado de capitais e privatização facilitou a retirada de recursos do país, além da privatização sem uma infraestrutura legal ter facilitado a liquidação de ativos. Aqui é possível notar, mais uma vez, como o Estado tem o papel fundamental de viabilizar a apropriação dos recursos do país por atores privados, já que esses resultados só foram possíveis porque o governo russo tomou a decisão política de conduzir as reformas seguindo essa fórmula neoliberal. Por mais que os reformistas apostassem no discurso da remoção do Estado da economia, e que esse discurso seja comumente associado com uma ideia de Estado enfraquecido, é importante destacar que para realizar uma transformação de tal dimensão é indispensável que ela seja conduzida por um Estado forte. McFaul (1995) afirma que um Estado eficaz e autônomo é uma condição necessária para conduzir transformações econômicas revolucionárias. 248

Paradoxalmente, portanto, mesmo que o objetivo da transformação econômica seja estimular as forças do mercado e eliminar o planejamento do estado, ainda é necessário um Estado forte para extrair o Estado da economia (MCFAUL, 1995, p. 213-214, tradução nossa124).

Para realizar essa transformação, as instituições econômicas que organizavam o planejamento estatal devem ser deliberadamente destruídas para que novas sejam criadas, e isso não é um movimento natural, o Estado é a entidade que deve realizar as mudanças. Ainda segundo McFaul (1995), não pode ser esperado que surja naturalmente o ímpeto necessário para realizar tal destruição das instituições antigas e a construção das novas. No caso dos reformistas russos, o Estado adotou uma postura firme na destruição das instituições antigas, mas não houve a preocupação de construir instituições que organizassem o mercado, e isso foi especialmente interessante para os grupos que buscavam a oportunidade de se apropriar dos recursos do país. Já mencionamos aqui a discussão institucionalista, e não acreditamos que ela seja suficiente para avaliar inteiramente os resultados do caso russo, mas ela ainda traz questões para compreender as brechas que a ausência de instituições abre para facilitar a acumulação, o mais importante dessa perspectiva é compreender o papel decisivo do Estado na abertura dos espaços de apropriação e na liberação dos ativos para serem apropriados. Priestland (2014), por exemplo, avalia que o caso russo representaria o maior dos fracassos dos experimentos neoliberais, e que o problema residiu na fraqueza do Estado, quando este não podia aumentar os impostos, impor normas legais e contratos, ou evitar o crime organizado e a pilhagem dos ativos russos. Contudo, como veremos adiante, esses aparentes problemas foram instrumentos de acumulação para os proprietários do capital no país, e a postura adotada pelo Estado russo nesse caso está de acordo com a estratégia da acumulação por espoliação do capitalismo, até mesmo a prática de gerir crises para abrir campos ainda mais amplos de exploração e reprodução do capital. Apesar do enriquecimento do pequeno grupo, ainda se trata de uma estratégia bastante arriscada (como a crise financeira de 1998 demonstrou), mas é um risco que o

124 No original: “Paradoxically, therefore, even if the goal of economic transformation is to stimulate market forces and eliminate state planning, a strong state is still needed to extract the state from the economy.” 249

capital está disposto a correr se for para garantir um lucro exacerbado em curtíssimo prazo. Com a aproximação das eleições presidenciais em 2000, Kagarlitsky (2002) afirma que as mesmas questões presentes nas eleições de 1996 emergiram, e a essência da disputa eleitoral era a ameaça de uma “redivisão” da propriedade ou uma revisão da privatização. O autor destaca que continuava estabelecido naquele momento uma ligação profunda dos grandes proprietários com o Estado russo, e um dependia do outro para sobreviver.

As relações com o Estado não foram construídas com base em acordos formais, mas em laços pessoais, assistência mútua e confiança recíproca entre grupos particulares de empresários e burocratas. Isso não era mais corrupção, mas um sistema sem o qual nem os negócios nem o Estado poderiam existir. (KAGARLITSKY, 2002, p. 213, tradução nossa125).

Medvedev (2000) afirma que as grandes fortunas formadas na Rússia na década de 1990 estão ligadas, de alguma forma, a créditos obtidos em bancos ocidentais distribuídos às pessoas certas, na obtenção de licenças para exportar matérias-primas, no fornecimento de materiais ou serviços para o governo russo, na obtenção de subsídios ou na permissão adquirida para privatizar propriedades

125 No original: “Relations with the state were not constructed on the basis of formal agréments, but of personal ties, mutual assistance and reciprocal trust between particular groups of entrepreneurs and bureaucrats. This was no longer corruption but a system without which neither business nor the state could exist.” Esta discussão sobre a relação dos empresários com o Estado abre um ponto importante de reflexão que é sobre a natureza do capitalismo que emerge na Rússia após as reformas da década de 1990 (o que implicaria também uma reflexão sobre a própria natureza do sistema soviético). Infelizmente, a complexidade da discussão foge dos objetivos do presente trabalho. Porém, devemos sinalizar a importância desse debate. Conforme mencionado logo acima, a estrutura da propriedade privada que é formada após o processo de privatização tem traços do capitalismo monopolista, com uma grande concentração econômica nos principais setores. Mikhailova (2013) apresenta uma avaliação de que, apesar do predomínio da propriedade privada, o capitalismo russo não poderia ser simplesmente classificado como uma economia capitalista convencional de mercado, porque o funcionamento dos mecanismos de mercado é fraco. A autora avalia também a tentativa de conformar a economia russa ao modelo de “economia do capitalismo periférico” – ainda que a dependência da exportação de matéria-prima para os países capitalistas centrais favoreça a adoção do termo, poderia ser considerada uma abordagem simples demais para o caso russo (como também já trabalhamos em alguns outros pontos do texto). No caso de Shevtsova (2007), por exemplo, a autora considera que seria um “capitalismo oligárquico”. Ainda que o grupo que rodeava Yeltsin atualmente não seja tão favorecido, os grandes capitalistas proprietários das maiores empresas russas e detentores do grande capital na Rússia continuam sendo favorecidos pelo Kremlin. Essa relação faz com que parte da bibliografia também considere o termo “capitalismo de Estado”, “capitalismo burocrático”, até “capitalismo de máfia”. Para mais aspectos sobre essa discussão, ver LANE, D. (2000), ou para uma referência mais clássica sobre a própria natureza do sistema soviético, KURZ, R. (1993). 250

estatais a preços baixos. Essas oportunidades de enriquecimento ligam o papel do Estado à fonte da acumulação primitiva de capital para todas essas novas fortunas. No presente tópico, além de termos buscado ilustrar que o processo de privatização foi essencial para as transformações que ocorreram na Rússia, também tentamos destacar que tais transformações não configuram um processo natural, de atores simplesmente se adaptando às novas condições. O Estado russo assumiu um papel ativo e foi responsável pela condução desse processo. A transformação da propriedade na Rússia ocorre em um contexto do sistema capitalista mundial em que avançavam estratégias de expansão do capital, dentre as quais Harvey (2005; 2013) destaca justamente a apropriação por espoliação, que será explorada no próximo tópico, em que o capitalismo explora alternativas para manter sua expansão, tomando novos campos que possibilitem essa reprodução, e o Estado tem um papel fundamental e central para viabilizar esse processo. Vejamos, por fim, como podemos alinhar essas questões para compreender a construção do capitalismo na Rússia dentro de tal referencial teórico, explorando esse contexto.

4.3. A transformação estrutural da economia russa pela perspectiva da acumulação por espoliação de Harvey

O conceito de acumulação por espoliação aparece na obra de Harvey (2005; 2013) conforme o autor procura atualizar a discussão sobre acumulação primitiva, um dos principais pontos da teoria de Marx sobre a formação do sistema capitalista. De acordo com Harvey, as práticas que são apontadas por Marx como formas de acumulação primitiva126 são utilizadas recorrentemente pelo sistema capitalista para abertura de campos de exploração. A acumulação primitiva envolve amplas

126 A acumulação primitiva para Marx incorpora uma ampla gama de processos: “[...] mercadificação e a privatização da terra e a expulsão violenta de populações camponesas; a conversão de várias formas de direitos de propriedade (comum, coletiva, do Estado) em direitos exclusivos de propriedade privada; a supressão dos direitos dos camponeses às terras comuns [partilhadas]; a mercadificação da força de trabalho e a supressão de formas alternativas (autóctones) de produção e de consumo; processos coloniais, neocoloniais e imperiais de apropriação de ativos (inclusive de recursos naturais); a monetização da troca e a taxação, particularmente da terra; o comércio de escravos; e a usura, a dívida nacional e em última análise o sistema de crédito como meios radicais de acumulação primitiva” (HARVEY, 2005, p. 121). 251

mudanças legais, institucionais e estruturais que inserem o território, ou a formação social, na lógica do desenvolvimento capitalista. Não só a Rússia, como também as outras ex-repúblicas soviéticas e os países que compunham o bloco de influência da União Soviética, passaram por essa transformação na década de 1990. Harvey (2005, p. 127) afirma que o resultado dessa transformação no caso da União Soviética foi um “violento episódio de acumulação primitiva à título da ‘terapia de choque’ aconselhada pelas potências capitalistas e pelas instituições internacionais.” Além disso, o autor destaca o custo social imenso que foi cobrado por essa transformação e também o desequilíbrio na distribuição dos ativos pela privatização e pelas reformas de mercado. Tendo como ponto de partida essa discussão, neste último tópico buscaremos concluir o trabalho construindo uma análise que articule as questões trabalhadas ao longo dos capítulos anteriores com o debate de Harvey sobre a acumulação primitiva/acumulação por espoliação, procurando dessa forma contribuir com o avanço da discussão sobre as transformações que ocorreram na Rússia na década de 1990 e concluir o objetivo proposto de mostrar a centralidade do processo de privatização como fio condutor dessas mudanças. A privatização da economia russa é considerada um sucesso do ponto de vista dos próprios reformistas, se considerarmos o critério quantitativo, já que os números de desestatização da economia são significativos, e os reformistas conseguiram alcançar esses resultados em um tempo bastante curto. Buscamos demonstrar que o processo pôde ganhar esse perfil amplo e muito rápido porque foi sustentado pelos poderes excepcionais concedidos ao executivo para a condução de reformas estruturais através de decretos presidenciais (POMERANZ, 1995). Este ponto que foi debatido sobretudo no capítulo 2 é importante porque traz mais uma evidência de como o Estado russo é um ator central para viabilizar a distribuição da propriedade e liberar os processos de acumulação capitalista dentro do país. Segundo Medeiros (2011) essa expansão acelerada e bastante violenta da acumulação de capital na Rússia, e altamente centralizada nos grandes conglomerados da oligarquia, em conjunto com a destruição das instituições herdadas do período soviético, foram as principais consequências das reformas conduzidas dentro da fórmula neoliberal da “terapia de choque”. Nessa fórmula, a prioridade do Estado é garantir a expansão do capital, ainda que para sustentar essa expansão seja necessário retirar os recursos dos serviços sociais. O Estado russo 252

passou a ser instrumento dessa expansão, orquestrando processos que garantissem a reprodução do capital. Stiglitz (2002) afirma:

O governo russo estava dando praticamente de graça seus preciosos ativos estatais, apenas de não ser capaz de prover pensões para os idosos ou assistência social para os pobres. O governo estava tomando bilhões em empréstimos do Fundo [Monetário Internacional] e ficando cada vez mais endividado, enquanto os oligarcas, que haviam recebido esse tipo de doação [dos ativos] do governo, estavam retirando bilhões do país. O FMI havia encorajado o governo a abrir suas contas de capital, permitindo um fluxo livre de capitais. Esperava-se que a política tornasse o país mais atraente aos investidores estrangeiros, mas foi praticamente uma via de mão única que facilitou uma enxurrada de dinheiro para fora da Rússia (STIGLITZ, 2002, p. 185).

Um ponto interessante é que a distribuição da propriedade evidenciou algumas das contradições do processo. A escolha de não vender as propriedades a preço de mercado mostrou, segundo Kagarlitsky (2002), que a lógica de construir o capitalismo prevalecia sobre uma suposta racionalidade capitalista liberal. A estrutura das empresas na Rússia não funcionava sem o Estado. Para os detentores de capital na Rússia que queriam se apropriar desses ativos, essas questões não eram um problema desde que os seus lucros, seu enriquecimento, seu controle sobre os setores da economia, e a expansão do seu capital, não fossem afetados por isso. Essa postura do Estado russo e sua atuação direta para conduzir a construção do capitalismo na Rússia implicaram em uma série de profundas transformações no país, inclusive na organização estrutural da economia, que resultou em uma redução do setor industrial, conforme demonstrado no gráfico 13, e um avanço dos setores de serviços (incluindo aqui o setor financeiro) e do setor de recursos naturais voltado para exportação. 253

GRÁFICO 13 – Composição do PIB russo por setor

Fonte: Russian GDP by main sectors, 1990-2009, WDI 2011, World Bank. Gráfico elaborado por VOLCHKOVA, N. (2015) em seminário apresentado na Stockholm School of Economics, 2015.

Serrano e Mazat (2013) afirmam que a forte heterogeneidade estrutural da economia russa implica em uma grande vulnerabilidade na sua inserção no mercado internacional, e os autores apontam três elementos fundamentais que expressam essa heterogeneidade: 1) a economia russa estabeleceu uma dependência de importar tecnologia para a indústria (exceto o setor militar-industrial); 2) existe na Rússia uma baixa produtividade agrícola e uma relativa insegurança alimentar (depende da importação de alimentos); 3) alta disponibilidade e baixo custo da produção de petróleo e gás. Os autores ainda afirmam que, a partir de 1992, com a agressiva abertura financeira do país, esta se torna um quarto elemento. O país, apesar de manter até certo ponto seu status de potência militar nuclear, ao mesmo tempo depende muito das exportações de petróleo e gás, como podemos ver no gráfico 14, e é fortemente afetada pelos movimentos dos fluxos de capitais internacionais de curto prazo. 254

GRÁFICO 14 – Evolução da participação das commodities no total das exportações russas, em %

Participação das commodities nas exportações russas

86,9 82,2 78 76,7 76,9 78,9 71,4 72,2 72,7

50,8

1987 1995 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005

Fonte: SERRANO; MAZAT, 2013, p.854 O movimento de primarização da pauta exportadora russa havia começado ainda no período soviético, nos anos 1970, com o forte aumento dos preços internacionais do petróleo. Esse fenômeno se acentuou durante a transição via ‘tratamento de choque’ com um recuo marcado da parcela de bens manufaturados nas exportações russas [...]. Assim, já em 1995, as commodities representavam cerca de ¾ das exportações russas, o petróleo e gás (42,5% do total) e os metais (26,7% do total), sendo os elementos de maior peso. Essa primarização da pauta exportadora russa contribuía para piorar a fragilidade externa da Rússia, na medida em que o valor das exportações passava a depender principalmente dos preços internacionais das matérias-primas, por essência, extremamente voláteis (SERRANO; MAZAT, 2013, p. 854, destaque nosso).

A primarização da pauta exportadora é importante também dentro da perspectiva da acumulação por espoliação, e conforme a economia russa é inserida no sistema capitalista mundial esse processo é acelerado. Da perspectiva das forças capitalistas centrais, são aniquilados os possíveis concorrentes do mercado mundial, e o processo faz a economia russa focar na sua vocação (questão neoliberal entra nesse ponto também), que é o fornecimento de matéria-prima para os países centrais. O setor industrial sofreu também, como demonstramos em diversos momentos, pela falta de investimentos, já que o processo de privatização não implicava um programa de crescimento, apesar de associado com o discurso de modernização. Para garantir o avanço da economia, segundo os reformistas, era necessário apenas remover o Estado da economia, e qualquer proprietário privado 255

que assumisse o controle das unidades produtivas russas seria melhor do que o controle estatal. Os reformistas apostavam também no discurso de que, assim que tais proprietários assumissem o controle, eles passariam automaticamente a adotar um comportamento de agentes econômicos racionais, de acordo com os padrões de eficácia da perspectiva neoliberal (ALVES, 2011a). Os reformistas que adotaram a receita neoliberal apostaram na perspectiva de que a remoção do Estado levaria automaticamente a uma economia de mercado eficiente. Ao contrário, essa estratégia levou a uma situação caótica em que só importava a perspectiva de lucro a curto-prazo, e levou a uma série de posturas e práticas extremamente danosas para o conjunto da economia, como especulação, fraudes, apropriação indevida de fundos públicos. (KOTZ, 2005). Segundo Kotz (2005) a adoção dessa estratégia em um país tão rico em recursos naturais quanto a Rússia garantiu a questão trabalhada acima de primarização da pauta exportadora, conforme a indústria foi reduzida enquanto o mercado capitalista tomava proveito das matérias-primas sendo exportadas. O autor avalia que tal configuração não é saudável para o desenvolvimento de qualquer país, mas que tem impactos especialmente devastadores no caso russo, porque foi necessário o desmonte de um importante setor industrial, e o deslocamento de uma população altamente urbanizada e qualificada. Além dos impactos da queda dos investimentos, as empresas foram alvo de um intenso conflito entre os novos detentores das ações e a estrutura administrativa consolidada desde o período das empresas, envolvendo lideranças políticas e os trabalhadores, um conflito pelo controle dessas propriedades. Os trabalhadores rapidamente perderam sua força nessa disputa, conforme venderam suas ações tanto para os diretores quanto para investidores outsiders. Boycko et al. (1995) afirmam que houve uma luta acirrada para conseguir comprar essas ações, e esse conflito ilustra como se deu a luta pela propriedade no caso russo. A privatização representou a abertura desses campos a serem apropriados pelo capital – conforme afirma Harvey (2005, p. 124), o processo de privatização na Rússia liberou um montante imenso de ativos para serem apropriados, que até então não estavam “disponíveis na corrente principal da acumulação do capital”, e foi esperado que, com tantos ativos disponíveis para serem apropriados, haveria uma luta pelo seu controle. 256

A questão do controle da propriedade é particularmente destacada por Clarke (2007), que afirma que a maior apropriação dos lucros era garantida aos detentores do capital quando estes conseguiam estabelecer um controle monopolístico dos fluxos financeiros e produtivos, o que era antes prerrogativa do Estado soviético. Esse controle foi possível de ser adquirido, sobretudo pelos oligarcas, graças aos direitos atribuídos a esse grupo pelo próprio Estado russo, e Clarke indica que para manutenção desse controle foram utilizados recursos de corrupção, ameaças, uso de força. Ainda que muitos autores que apresentam uma análise liberal condenem essas práticas como distorções do modelo capitalista, Clarke não concorda – o autor afirma que tais práticas não representam uma corrupção do sistema capitalista ideal, se trata apenas de uma adaptação natural do capitalismo às condições confrontadas. Como mencionado acima, os oligarcas criados nesse processo de acumulação primitiva que ocorre no governo Yeltsin formaram grandes grupos financeiros e industriais, sobretudo nas áreas de energia, mineração, setor bancário e de comunicações, e esses oligarcas foram consolidados como o principal bloco de interesses na nova Rússia (MEDEIROS, 2011). Segundo Goldman (2003), a transferência de um montante tão grande de riquezas do Estado para as mãos de poucos indivíduos em um período curto de tempo foi garantida com a expropriação do que antes era propriedade estatal, um traço importante para construirmos a perspectiva de análise do processo de privatização com o referencial da acumulação por espoliação. O ambiente caótico da economia russa garantiu que rapidamente os “novos ricos” se tornassem bilionários, e esses derivaram a maior parte da sua riqueza da apropriação do que antes eram ativos estatais, muitas vezes drenando os ativos das empresas para conseguir lucros em curto-prazo e com baixa necessidade de investimento. Goldman (2008) afirma que, na década de 1990, pelo contexto complicado da Rússia e pela queda dos preços das commodities no mercado internacional, talvez fosse possível encontrar justificativas para a transferência das grandes estatais russas da forma que foi feito no processo dos empréstimos-por- ações, ou talvez não fosse tão absolutamente escancarado como os oligarcas lucrariam com essas transações. Mas o autor argumenta que, mesmo durante esse período, havia uma crescente percepção entre a população de que o esquema de 257

empréstimos-por-ações beneficiou um pequeno grupo oportunista à custa do Estado. As práticas que foram destacadas até aqui, introduzidas na economia russa durante a implementação do conjunto de reformas de mercado, ilustram como as práticas predatórias identificadas por Marx continuam presentes, e várias progrediram, evoluíram para formas ainda mais complexas, se proliferaram e se multiplicaram, promovendo o enriquecimento das classes dominantes, por um lado, e o empobrecimento cada vez maior da classe trabalhadora, por outro. Para ilustrar esse processo, Harvey (2013) cita especialmente a onda de privatizações, que não ocorreu apenas na Rússia. Segundo Harvey, essas privatizações varreram o mundo capitalista a partir da década de 1970, com o avanço do neoliberalismo e da financeirização do capitalismo (que trabalhamos brevemente no capítulo 2), e chegaram na Rússia uma vez que a barreira do regime soviético foi derrubada. O trecho a seguir de Harvey auxilia a análise desse processo na Rússia:

A privatização da água, da educação e da saúde em muitos países que os forneciam como bens e serviços públicos alterou dramaticamente o funcionamento do capitalismo (criando todo tipo de mercado, por exemplo). A privatização de empresas estatais (quase sempre por preços que permitiam aos capitalistas conseguir lucros imensos em muito pouco tempo) também acabou com o controle público sobre o crescimento e as decisões de investimento. Essa é, de fato, uma forma particular de cercamento dos bens comuns, orquestrada em muitos casos pelo Estado (como no ciclo originário da acumulação primitiva). O resultado foi um confisco dos recursos e dos direitos das pessoas comuns. E, ao mesmo tempo em que houve confisco, houve essa imensa concentração de riqueza no outro extremo da escala (HARVEY, 2013, p. 295, destaques nossos).

Ao mencionar os preços baixos das empresas estatais privatizadas, podemos traçar um paralelo com o caso russo, que conforme trabalhamos em diversos pontos do capítulo anterior, as estatais russas foram adquiridas pelos novos proprietários por preços irrisórios, até mesmo as maiores estatais dos setores mais lucrativos da economia russa na fase dos empréstimos-por-ações – sobretudo as exportadoras de recursos naturais, que garantiram um enriquecimento acelerado e muito grande para os seus novos proprietários. Em relação ao controle público sobre o crescimento e as decisões de investimento, uma vez que não existia mais o mando do Estado sobre tais decisões, o impacto foi especialmente danoso no setor industrial russo – não era interessante para o capital privado apostar na indústria russa, que demandava um montante de investimento maior para poder concorrer no mercado 258

internacional e que não oferecia perspectivas de lucros tão altos ou rápidos como o setor dos recursos naturais, ou o setor financeiro. Essa postura causou profundos impactos no conjunto econômico, e o Estado russo não foi capaz de ocupar esses vácuos de investimento. Os dois últimos pontos que podemos destacar a partir do trecho de Harvey é a questão do papel central do Estado para orquestrar esse processo, o que de fato ocorreu no caso russo, conforme o Estado russo viabilizou e ativamente arquitetou essa transferência de propriedade para mãos privadas, e a questão da concentração da riqueza, que foi severamente sentida pela população russa, com a formação da oligarquia, por um lado, e um empobrecimento maciço dos trabalhadores. Com a ascensão dos oligarcas, os recursos básicos do país foram divididos, e os grandes grupos industriais-financeiros estabelecidos controlavam a grande maioria dos canais financeiros e as áreas mais lucrativas do setor produtivo. O poder de influência exercido pelos oligarcas era garantido não só pelos seus vastos recursos financeiros, mas também pela proximidade que esse grupo estabeleceu com as autoridades. Como visto previamente no tópico sobre a atuação política dos oligarcas, estes eram capitalistas que dependiam do Estado, e o governo de Yeltsin também dependia inteiramente deles: o governo era o responsável por garantir a reprodução do modelo estabelecido que mantinha a expansão da riqueza acumulada desse grupo, e os oligarcas movimentavam o lobby, pagavam pelas campanhas dos políticos, às vezes pagavam o salário de funcionários específicos, necessários. Essa relação fazia parte do sistema, e Kagarlitsky (2002) defende que, se essas relações fossem subitamente desfeitas, o Estado quebraria e a economia também. É importante destacarmos essa relação simbiótica do Estado com os grandes detentores do capital, porque mais uma vez apresenta uma possibilidade de avanço da análise dentro da perspectiva da acumulação por espoliação. Sobre o papel do Estado no processo de acumulação por espoliação, Harvey (2005) afirma que sua atuação é crucial para apoiar e promover as diversas faces desse processo. Segundo o autor, “[...] a transição para o desenvolvimento capitalista dependeu e continua a depender de maneira vital do agir do Estado” (HARVEY, 2005, p. 121, destaque nosso). Nesse sentido, muito se discute sobre o modelo de Estado que promove a transformação capitalista, e qual seria o regime mais adequado para garantir aos detentores do capital que seus interesses sejam atendidos. No caso da Rússia em 259

especial a discussão do caráter democrático do regime foi bastante presente, sobretudo porque nos anos finais da União Soviética o discurso da luta pela democracia foi frequentemente utilizado. Mas a existência de uma democracia estabelecida ou não nunca foi a preocupação ou a prioridade dos reformistas e dos interesses do capital. Pomeranz (2005, p. 346) resume a questão: [...] não é de democracia que os investidores se ressentem, nem é ela condição fundamental para que o crescimento ocorra [...]. Ao capital, basta que se assegure a estabilidade política indispensável à obtenção de seus lucros e à sua mobilidade, qualquer que seja o regime político instaurado no país. A capacidade do sistema capitalista de se adaptar a diferentes contextos, culturas e estruturas institucionais é uma de suas principais forças - o sistema é compatível com diferentes formas de financiamento, regulação trabalhista, sistemas de pagamento, de fornecimento, de bem-estar social. Conforme a avaliação de Clarke (2007) sobre essa flexibilidade do capital, o aspecto essencial é a subordinação da estrutura de produção a uma produção de mais-valia. O importante para a reprodução do capital é garantir uma estrutura social em que os diferentes interesses possam ser todos subordinados ao interesse dos detentores do capital, que é a sua acumulação. Essa adaptação do sistema e a centralidade da acumulação estão relacionadas com o fato de que acumulação primitiva e as suas dinâmicas continuam vivas no capitalismo contemporâneo, e a sua existência ininterrupta é apontada por Harvey (2013) como um aspecto fundamental para sobrevivência do capitalismo. A subordinação dos demais interesses de outras classes na Rússia aos interesses dos detentores do capital é concretizada quando o Estado escolhe o caminho das reformas de mercado e adota a estratégia neoliberal. Essa é uma decisão política, fruto da disputa de forças daquele momento que agiu para alcançar esse resultado. Os resultados dessa decisão já foram amplamente discutidos, e são assim resumidos por Kotz (2005):

O declínio econômico e o caos social da Rússia pós-soviética podem ser atribuídos diretamente à estratégia neoliberal que a Rússia segue desde 1992. O levantamento imediato dos controles de preços garantiu uma inflação descontrolada que empobreceu grande parte da população enquanto enfraquecia o Estado. O caos induzido pela inflação descontrolada e a repentina remoção da direção estatal das ações empresariais, combinadas com a desmonetização causada por uma política monetária rígida, eliminaram qualquer incentivo para se envolver em investimentos produtivos. [...] A abertura imediata da economia garantiu que as importações chegariam para reunir grande parte da demanda doméstica restante, ao mesmo tempo em 260

que facilitava aos novos ricos enviar seus ganhos ilícitos para fora do país. A rápida privatização das empresas estatais levou ao surgimento de uma classe criminalizada poderosa e violenta, mais orientada ao roubo de empresas a curto prazo do que ao desenvolvimento a longo prazo. Apesar de seguir as políticas recomendadas pelo FMI, a Rússia não foi recompensada com nenhum fluxo significativo de investimento ocidental (KOTZ, 2005, p.6, tradução nossa127).

Ainda que apresente resultados tão negativos para a população e para a economia, o ideal neoliberal continua prevalecendo, mesmo sem evidências de sua influência positiva para o conjunto da economia e para motivar o crescimento. Kotz (2005) indica que as forças sociais que sustentam essa estratégia são muito poderosas, e controlam um mecanismo que dificulta qualquer articulação contrária a essa estratégia. O autor ainda procura esclarecer por que a classe detentora do grande capital que se tornou o mais forte grupo de influência na Rússia (que o autor define pelo termo elite) continuou seguindo a estratégia neoliberal, depois de tanto empobrecimento e de uma queda do desempenho econômico do país:

A resposta parece ser que uma estratégia de transição dirigida pelo Estado impediria o máximo enriquecimento possível dos indivíduos mais poderosos e bem colocados. Por exemplo, na indústria de construção de máquinas da Rússia, os novos proprietários logo descobriram que, sob a estratégia neoliberal, eles eram livres para acumular vasta riqueza pessoal através de vários métodos de roubo da empresa, ainda que a própria empresa estivesse se saindo mal nas condições criadas pelas políticas neoliberais. Eles também estavam livres para gastar o que poderia ser extraído da empresa em consumo de luxo e enviar o restante para o exterior para proteção. A nova elite compra principalmente importações e envia seus filhos ao exterior para estudar. O colapso da economia tem pouco efeito sobre eles (KOTZ, 2005, p. 12-13, tradução e destaque nossos128).

127 No original: “The economic decline and social chaos of post-Soviet Russia can be traced directly to the neoliberal strategy that Russia has followed since 1992. The immediate lifting of price controls guaranteed a runaway inflation that impoverished much of the population while enfeebling the state. The chaos induced by runaway inflation and by the suddenly removal of state direction of enterprise actions, combined with the demonetization caused by tight monetary policy, removed any incentive to engage in productive investment. […] Immediate opening of the economy assured that imports would flood in to gather much of what domestic demand remained, while it also made it easy for the new rich to send their ill-gotten gains out of the country.14 The rapid privatization of state enterprises led to the rise of a powerful and violent criminalized class that is more oriented to short-term stealing from enterprises than long-term development. Despite following the IMF’s recommended policies, Russia was not rewarded with any significant inflow of Western investment.” 128 No original: “The answer appears to be that a state directed transition strategy hinders the maximum possible self-enrichment by powerful and well-placed individuals. For example, in Russia’s machine building industry, the new owners soon found that, under the neoliberal strategy, they were free to accumulate vast personal wealth by various methods of stealing from the enterprise, although the enterprise itself may have fared poorly in the conditions created by the neoliberal policies. They were also free to spend what could be wrung from the enterprise in luxury consumption and send the 261

Ainda sobre o triunfo do neoliberalismo (e da acumulação por espoliação como elemento essencial para o capitalismo consolidar o seu poder de classe) e a discussão sobre o modelo democrático, Kagaritsky (2002) argumenta que o domínio neoliberal consolidado a partir das décadas de 1980 e 1990 foi acompanhado de uma erosão da democracia em todo o mundo. Apesar do discurso democrático forte no momento do colapso soviético, apresentamos alguns indícios (especialmente no capítulo 2) que o governo russo precisou utilizar os recursos de centralização do poder no Executivo para que fosse possível avançar as reformas de mercado, sem, contudo, abandonar a retórica da defesa da democracia. Com os resultados negativos das políticas neoliberais dos anos 1990, e a associação feita com o discurso liberal e democrático, o governo russo precisou construir uma nova retórica129. Harvey (2005, p. 129) aponta que, para os processos da acumulação por espoliação avançarem no sistema capitalista mundial, foi necessário construir uma abordagem radicalmente distinta sobre o poder do Estado e sobre como deveria ser seu desenvolvimento para atuar como agente da acumulação por espoliação. A força que a teoria neoliberal ganhou na década de 1970, com a defesa da remoção do Estado da economia e da política de privatização, simbolizariam essa mudança no papel do Estado. Além da abertura de espaços para acumulação por espoliação através da privatização, outro importante instrumento para essa acumulação foi a expansão da financeirização, a organização de um sistema financeiro que se expandiu rapidamente no mercado capitalista mundial. Harvey (2005) afirma que esse sistema foi orquestrado em larga medida pelos Estados Unidos, e que o sistema financeiro atuava para desencadear surtos de desvalorização em setores ou territórios para facilitar a espoliação e acumulação desses ativos. A questão do sistema financeiro é essencial para compreender o enriquecimento muito rápido de poucos indivíduos na Rússia durante a década de 1990.

rest abroad for safe-keeping. The new elite buys mainly imports and sends their children abroad for schooling. The collapse of the economy has little effect on them.” 129 Foge dos objetivos do trabalho essa discussão, mas destacamos aqui a ascensão do discurso de patriotismo e o renascimento do poder estatal no início dos anos 2000 com o governo Putin, enquanto os interesses da oligarquia e do grande capital continuavam protegidos. 262

Dentre os mecanismos que Marx apontava da acumulação primitiva, o sistema de crédito (e o capital financeiro) evoluíram excepcionalmente, se tornando os instrumentos mais aprimorados para a fase de acumulação por espoliação atual do sistema capitalista. Harvey (2005, p. 122) afirma que o sistema de crédito e o capital financeiro se tornaram, como Lenin, Hilferding e Luxemburgo observaram no começo do século XX, grandes trampolins de predação, fraude e roubo. A forte onda de financialização, domínio pelo capital financeiro, que se estabeleceu a partir de 1973, foi em tudo espetacular por seu estilo especulativo e predatório.

O estilo especulativo é ilustrado no caso russo pela capacidade do setor bancário de extrair os recursos do setor produtivo. Kagarlitsky (2002) analisa o caso dos bancos comerciais e das holding, afirmando que esses atores, ligados especialmente aos grupos dos oligarcas, se tornaram “sifões” que drenam os fundos da indústria, e enviam esses recursos para fora do país. O autor avalia que esse modelo é incapaz de desempenhar um papel positivo no desenvolvimento do país. Argumenta ainda que o capital acumulado no país não é o capital produtivo – o sistema que foi organizado na Rússia seria capaz apenas de extrair os recursos da produção, sangrando o setor produtivo em favor do enriquecimento acelerado de um pequeno grupo. A indústria russa, que precisava ser submetida a um processo de renovação tecnológica tentado desde o período da perestroika com Gorbachev, exigia uma quantidade considerável de investimentos para poder retomar um bom desempenho – contudo, com as reformas neoliberais da década de 1990, o investimento para substituir os equipamentos virtualmente acabou. Kagarlitsky (2002) afirma que, nos anos 1990, o valor dos ativos produtivos básicos da Rússia enfrentou uma média de queda anual de 8%. Para piorar a situação da indústria russa, outro movimento também já mencionado foi a questão da saída acelerada do capital uma vez que os fluxos foram abertos. A única forma de atrair capital naquele momento na Rússia era através do setor financeiro, com o governo oferecendo taxas de juros exorbitantes, mas atraía apenas um capital especulativo e predatório. Para o capital produtivo, não era recomendado investir na instável economia russa (enquanto esta sofria justamente pela falta de investimentos). Goldman (2003) ilustra a diferença entre o setor produtivo e o setor financeiro, mostrando que enquanto o PIB russo sofreu uma queda absurda na década de 1990, no mesmo período o mercado de ações cresceu aceleradamente. Segundo o autor, ocorre um descolamento entre a economia real e o setor financeiro. Os lucros 263

absurdos dos poucos indivíduos que ascenderam muito nesse período vieram do setor financeiro e não da economia real. Os monopólios estabelecidos pelos grandes grupos foram importantes para controlar a apropriação da mais-valia, sobretudo na exportação de combustível e matéria-prima – uma vez apropriada através do sistema bancário, este lucrou enormemente através da intermediação comercial, da especulação de moeda e comprando os títulos da dívida do governo russo (CLARKE, 2007). Sobre essa centralidade do capital financeiro, Harvey conclui que “o cordão umbilical que une acumulação por espoliação e reprodução expandida é o que lhe dão o capital financeiro e as instituições de crédito, como sempre com o apoio dos poderes do Estado” (HARVEY, 2005, p. 126). Um último ponto que devemos mencionar é a associação entre a inserção da Rússia no sistema capitalista mundial com uma promessa de modernização, feita desde o período soviético, quando existiam altas expectativas sobre o modo de vida capitalista e que conseguiu mobilizar apoio de parte da população. Apesar das promessas de modernização, Kagarlitsky (2002) destaca que o processo foi exatamente o contrário, e que as reformas de mercado introduzidas geraram um atraso, um retrocesso no país130. Harvey (2005) destaca que, apesar do aparente discurso modernizante, na lógica da acumulação por espoliação é interessante que ocorram retrocessos e crises nos espaços que são alvos dessa apropriação, para que os ativos sejam desvalorizados e esse processo seja facilitado. Essas crises de desvalorização podem ser orquestradas e administradas, e o FMI é um importante instrumento nesse sentido, utilizado para impor reformas estruturais nos países com seus pacotes de ajuda e programas de austeridade, representando o sistema financeiro internacional. O resultado da atuação do FMI e dessas políticas é a criação de estoques de ativos desvalorizados, prontos para serem apropriados. Mencionamos esta questão brevemente no capítulo 2, ao discutirmos a perspectiva de que os resultados das reformas que levaram à desvalorização brutal da indústria russa eram exatamente os resultados esperados pelo FMI. Apesar de útil no seu intuito, o

130 Uma discussão interessante sobre o uso do termo “modernização”, associada com a ideia de progresso através do desenvolvimento capitalista, pode ser encontrado em: CASTILHO, D. (2010). 264

método de orquestrar crises é bastante arriscado, uma vez que existe o perigo dessas crises saírem do controle e se espalharem pelo sistema. O Estado ganha outra função importante nesse contexto, que é atuar para administrar essas desvalorizações e crises, para permitir que a acumulação por espoliação ocorra, mas evitando que ocorra um colapso mais generalizado que incorpore outros setores (HARVEY, 2005, p. 126). Essa questão destaca como o enfraquecimento da indústria russa não teria sido um acidente de percurso, um resultado inesperado das reformas – muito pelo contrário, segundo essa perspectiva, a desvalorização dos ativos que o grande capital tem interesse de incorporar nos seus processos de acumulação por espoliação está incorporada na receita neoliberal. Uma vez que foi feita a escolha dessa receita como estratégia de reformas, o resultado esperado seria essa liberação dos ativos desvalorizados. Além disso, uma reforma que aumentasse a eficiência da indústria russa, que garantisse seu acesso à tecnologia produtiva, potencializaria a capacidade industrial russa de concorrer com a indústria ocidental, o que poderia resultar em um conflito comercial. Segundo Kagarlitsky (2002), era perfeitamente lógico para os detentores de capital na Rússia optar por evitar esse confronto, interessados na aproximação com o capital internacional para seu próprio enriquecimento, e a resposta “correta” ao desafio da globalização – ainda que o resultado dessa escolha tenha gerado impactos negativos na indústria nacional e empobrecimento da população. Para o capital internacional, isso significou acesso facilitado aos recursos naturais da Rússia, e um mercado de mão de obra cada vez mais barata. Harvey (2005, p. 117) destaca essa questão como uma das relações mais básicas da expansão capitalista:

o acesso a insumos mais baratos é tão importante quanto o acesso a mercados em ampliação na manutenção de oportunidades lucrativas. A implicação é que os territórios não-capitalistas deveriam ser forçados não só a abrir-se ao comércio (o que poderia ser útil), mas também a permitir que o capital invista em empreendimentos lucrativos usando força de trabalho e matérias-primas mais baratas, terra de baixo custo e assim por diante. O modelo neoliberal ainda consegue manter alguns pontos de crescimento na economia, mesmo com o declínio industrial, e a estrutura comercial e bancária, em conjunto com setores de construção, energia, e extração de matéria-prima conseguiram apresentar resultados positivos em meio à crise da década de 1990 – 265

os maiores perdedores no processo foram os trabalhadores da indústria de manufaturados (KAGARLITSKY, 2002). Essa “desmodernização” da Rússia transformou uma economia altamente industrializada do período soviético em uma economia que é essencialmente organizada ao redor do setor de recursos naturais, exportados para o mercado mundial. Kotz (2005) destaca que outra profunda mudança foi que, no período soviético, os recursos provenientes desses setores mais fortes eram ao menos diluídos em investimentos para o desenvolvimento da economia nacional. Contudo, com a privatização e a concentração desses recursos nas mãos de poucos indivíduos, eles passaram a ser utilizados essencialmente para enriquecimento dos grupos que passaram a controlar os ativos do país131. Ao longo do quarto e último capítulo, buscamos evidenciar o papel do Estado russo como instrumento para viabilizar a formação do capitalismo no país, e o uso da privatização para encaminhar a acumulação por espoliação das propriedades que eram estatais. Como resultado desse processo, o capital e a propriedade acabaram concentrados em poucas mãos, a economia russa concluiu sua inserção no mercado mundial e foi estabelecida uma estrutura, um modelo, que permite a acumulação e a contínua reprodução do capital no país. O custo dessa apropriação é pago com a queda da qualidade de vida da população, quando esta passa por um profundo empobrecimento e perde acesso a serviços sociais que eram direitos garantidos no período soviético. Essa transformação ocorre dentro do quadro global de adaptações do capitalismo para garantir a sua reprodução, em que a acumulação por espoliação tem como principais instrumentos o avanço do setor financeiro e do capital especulativo. O caso russo, apesar de peculiar por carregar o peso histórico do passado soviético, consolida a sua entrada no sistema capitalista mundial abrindo os recursos e as riquezas do país aos padrões de acumulação que o capitalismo

131 Nos últimos 20 anos, governo russo adotou uma postura de precaução para tentar diminuir a dependência do conjunto econômico no setor de exploração de gás e petróleo. Contudo, ainda que tenha sido retomado o investimento na economia real, na indústria russa, e tenham sido recuperadas indústrias de tecnologia avançada (sobretudo com a retomada do setor militar), ainda assim é bastante desproporcional o peso massivo do setor dos recursos naturais em comparação com os outros setores. O gráfico 14 mostra como até em 2005 a participação das commodities dominava o total das exportações russas, e, mesmo que com algumas oscilações, essa tendência continua até hoje. 266

adota em todo o mundo, e o processo de privatização é elemento central para viabilizar essa acumulação e a organização dessa estrutura de reprodução do capital.

267

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O papel relevante que a Rússia continua exercendo no cenário internacional, seja no plano econômico, e especialmente no plano geoestratégico, coloca o país como importante objeto de acompanhamento e pesquisa. Para compreensão das atuais vias de desenvolvimento russo, é essencial buscar os elementos que foram resultado do processo de transformação conduzido após o colapso da União Soviética, na consolidação das estruturas do novo sistema capitalista russo, ao mesmo tempo em que diversas das características que eram base do sistema soviético influenciaram na formação desse novo sistema, considerando assim a combinação dos elementos herdados do período soviético, e como a Rússia capitalista passou a se inserir no sistema internacional (POMERANZ, 2018). Considerando a complexidade dessas grandes transformações, ao longo do trabalho buscamos evidenciar como o período foi importante para definir os principais traços que caracterizam o capitalismo na Rússia. No centro desse processo, temos o processo de privatização, que transferiu uma quantidade massiva de empresas que eram até então propriedade do Estado e do conjunto da população para as mãos de poucos indivíduos, na forma de propriedade privada, estabelecendo uma mudança fundamental na estratificação social do país e constituindo uma classe de proprietários, submetendo o setor produtivo russo à lógica de acumulação do capital. Através da retomada histórica realizada no primeiro capítulo, pudemos perceber as características centrais da economia soviética que interferiram no desenlace dos processos de reforma a partir de 1991, dentre as quais podemos destacar a estrutura concentrada da economia, que facilitou na formação rápida de um capitalismo com características monopolistas na Rússia. Além disso, destacamos também as diversas tentativas de reforma do sistema soviético, mas o foco na perestroika nos ajuda a compreender como as reformas econômicas conduzidas por Gorbachev funcionaram como sementes para diversos processos que foram encaminhados após o fim da União Soviética. A questão contextual que foi trabalhada no segundo capítulo é extremamente importante, especialmente considerando o avanço do neoliberalismo e a inserção das reformas da Rússia no fenômeno que ocorre em todo o mundo. Buscamos demonstrar como esse avanço transformou a orientação da atividade do Estado, 268

com um abandono cada vez maior da garantia de direitos da população e do ideal do bem-estar social, e o Estado atuando decisivamente para viabilizar as práticas da acumulação do capital. Nesse sentido, buscamos explorar como os reformistas russos conduziram a liberalização do mercado conforme o receituário da terapia de choque neoliberal, e os impactos da condução da política econômica. Outro ponto essencial no capítulo foi demonstrar como as reformas políticas viabilizaram a organização do Estado russo de forma que fosse facilitada a condução das reformas através, sobretudo, do Poder Executivo. Essa construção do Estado russo a partir da Constituição de 1993 é elemento fundamental quando consideramos o papel crucial desempenhado pelo Estado na organização das práticas que caracterizaram a acumulação por espoliação no país. A principal política conduzida pelo Estado russo nesse período, dentro dos objetivos estabelecidos pelo trabalho, foi sem dúvidas a privatização das empresas estatais russas. Conforme procuramos demonstrar no terceiro capítulo, foi um processo conduzido de forma acelerada, e que favoreceu uma parcela pequena da população, apesar das aparentes tentativas do governo de incorporar, ao menos inicialmente, o conjunto de trabalhadores ao processo de transferência da propriedade. Destacamos no decorrer do capítulo detalhadamente como foi conduzido o processo e quais foram os seus principais resultados. O aspecto principal, que é explorado especialmente quando trabalhamos a questão da formação da oligarquia russa, é como a privatização foi essencial para construir uma estratificação social significativamente diferente da existente no período soviético. O processo consolidou a formação de uma nova burguesia russa, uma classe de proprietários que passou a controlar os meios de produção do conjunto econômico. Para finalizar a construção da análise, procuramos aprofundar no quarto capítulo como os processos que foram conduzidos na Rússia durante a década de 1990 podem ser interpretados através da lente conceitual da acumulação por espoliação, estabelecida por Harvey (2005; 2013). Não só a privatização, mas toda a estratégia de reforma aplicada pelo governo russo, até mesmo as políticas que causaram mudanças estruturais no conjunto da economia e que tiveram efeitos negativos na população, foram conduzidas de acordo com o plano delineado pelos grandes detentores de capital, de forma que facilitaram o processo de acumulação e a apropriação dos ativos que foram liberados no mercado internacional. 269

Acreditamos que uma das principais causas para o declínio da economia russa foi a falta de qualquer compromisso ou preocupação, por parte da classe de proprietários e novos bilionários russos, de investir no crescimento da economia nacional, agravando os impactos da política econômica conduzida pelo governo russo e pelas consequências da desestruturação do sistema soviético. Dentro das regras do capitalismo, é um comportamento completamente compreensível, já que o fluxo do capital é voltado para os setores que apresentam perspectiva de lucros, e de fato o decadente setor industrial russo ou a atrasada agricultura não eram atrativos. Mas ainda assim, eram responsáveis por empregar e pagar os salários de milhões de russos. Não satisfeitos em não investir nos setores nacionais, especialmente a classe dos maiores empresários (que foram presenteados com um acesso facilitado às maiores e mais lucrativas empresas nacionais pelo governo Yeltsin) ainda adotaram uma série de práticas que enfraqueceram agressivamente o Estado russo (essa responsabilidade é compartilhada com o grupo dirigente do governo, que permitiu esse comportamento) inviabilizando que o setor estatal pudesse intervir ou atuar pelo resgate dos setores que mais precisavam de investimentos. Ainda, além disso, a classe dos russos mais ricos, que convencionamos no terceiro capítulo chamar de oligarcas, essencialmente controlava também o setor bancário, outro setor com enorme potencial para investir e realizar concessões como forma de incentivo para o setor produtivo russo. Contudo, o dinheiro do setor bancário também não estava voltado para os interesses nacionais, e foi direcionado essencialmente para o setor financeiro, atuando de forma especulativa com a dívida pública e com a taxa de câmbio. Essa postura não é exclusiva da classe burguesa russa – muito pelo contrário, podemos notar esse mesmo comportamento predatório como elemento fundamental da sobrevivência do sistema capitalista global, seja nos países centrais, seja nos países da considerada “periferia” global. É um traço comum que caracteriza o capitalismo na sua fase neoliberal, e que, com a estruturação do sistema capitalista na Rússia, sua constituição era esperada. O que buscamos destacar com o desenvolvimento do trabalho foi como a privatização foi determinante para viabilizar esses processos, já que foi através da privatização que essa classe pôde tomar o controle das empresas russas, principalmente das empresas mais lucrativas, nos setores de recursos naturais russos. Os novos proprietários, que estavam em grande parte já envolvidos com o 270

setor bancário, puderam ainda utilizar a exploração dos recursos russos para uma expansão agressiva de suas fortunas. A privatização ainda contribuiu para minar ainda mais a capacidade do Estado de encontrar formas de interferir nos investimentos direcionados ao setor produtivo, e somente após a crise financeira de 1998, sob a liderança de Vladimir Putin a partir de 1999, que a economia russa consegue recuperar seu crescimento e o Estado russo vai buscar formas de retomar sua postura ativa na economia, sem enfrentar diretamente os interesses do grande capital no país.

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