edição 11 capa: © kakofonia

edições anteriores 1. futuro do lixo | dezembro 2012 2. subúrbios e identidades | março 2013 3. realismo mágico no século xxi | outubro 2013 4. mobilidade urbana | abril 2014 5. menos30 | outubro 2014 6. educação: mitos e fatos | dezembro 2014 7. consumo consciente | junho 2015 8. Empreenda-se | dezembro 2015 9. vozes do velho chico | maio 2016 10. somos todos olímpicos | agosto 2016 caderno © Debora Indio e Gabi Carrera (p. 20, 22, editorial Leituras e releituras 4 23, 25, 26, 29 e 112) CONSELHO EDITORIAL © Gabriel Rinaldi (p. 48, 49, 52, 53, 90, 93, Alice Sant’Anna, PUC-Rio 94, 97, 98, 112) Anna Penido, Inspirare © Fabio Moon e Gabriel Bá (Porto de A obra em letras e imagens Antonio Prata, Folha de S.Paulo / Globo Manaus, HQ Dois Irmãos, p. 50) artigo Beatriz Resende 8 Beatriz Azeredo, UFRJ / Globo © Maria Camargo (p. 30, 31, 42, 43, 112) Caio Dib, Caindo no Brasil © Shutterstock (p. 36, 37, 46) entre aspas Milton Hatoum 12 Clotilde Perez, USP Edna Palatnik, Globo Produção gráfica entrevista Milton Hatoum, Luiz Fernando Carvalho Jailson Souza, Observatório de Favelas Lilia Góes e Maria Camargo 20 Marcelo Canellas, Globo Toninho Amorim Silvio Meira, FGV-Rio / Porto Digital entre aspas Keila Grinberg 30

CURADORES DESTA EDIÇÃO artigo Ana Maria Daou 36 Beatriz Resende, UFRJ Globo Bianca Ramoneda, Globo artigo Lúcia Sá 42 Patrícia Lacerda, Instituto C&A Comunicação Paulo Werneck, jornalista Sérgio Valente, diretor entrevista Fábio Moon e Gabriel Bá 48

COORDENAÇÃO EDITORIAL Responsabilidade Social Beatriz Azeredo Beatriz Azeredo, diretora Viridiana Bertolini Globo Universidade Editora-chefe Viridiana Bertolini, gerente Graziella Beting Viviane Tanner, supervisora Referências e narrativas EDITORES Equipe Luiz Costa Pereira Junior Fatima Gonçalves Galeria 56 Paulo Jebaili Gisele Gomes Helena Klang Linha do tempo 74 Produção Juan Crisafulli Gisele Gomes Leticia Castro Paula Nakahara Entrevistas Willy Hajli Luiz Costa Pereira Junior Paulo Jebaili Caderno Globo 11 revisão São Paulo, janeiro 2017 Ricardo Jensen de Oliveira Tema: Assista a Esse Livro ISSN 2357-8572 Projeto gráfico Casa 36 Editor: Globo Comunicação olhares sobre a palavra versão digital e Participações S.A. artigo Mauro Alencar 84 Casa 36 Globo Universidade Endereço: Rua Evandro Entrevista Marçal Aquino, Fernando Bonassi, ilustrações Carlos de Andrade, 160 J. P. Cuenca e Chico Mattoso 90 Kakofonia São Paulo – SP CEP 04583-115 artigo Marisa Lajolo 100 FOTOGRAFIA E IMAGENS © Acervo Globo (p. 15, 16, 19, 58, 59, 62, infográfico 104 63, 66, 67, 71 a 81, 84, 85, 87, 89) EDIÇÃO DIGITAL © Divulgação (p. 64, 67, 68, 70) O Caderno está projetos Indicações de Anna Penido, Beatriz Resende, © Reprodução (p. 59, 60,63, 65 a 73) disponível em versão Bianca Ramoneda, Caio Dib e Paulo Werneck 108 © Luciana Prezia/Divulgação (p. 60,61) digital no link: © Kelson Spalato (p. 69) APP.CADERNOSGLOBO.COM.BR making of 112 editorial

o raiar de 2017 estreia a minis- J. P. Cuenca e Chico Mattoso revelam aspectos série Dois irmãos, uma adapta- do ofício ligados aos dois tipos de escrita. ção da obra do escritor Milton Hatoum, com roteiro de Maria Se a adaptação é uma releitura de uma obra, Camargo e direção artística de ela pode levar também à leitura do original. leituras e n Luiz Fernando Carvalho. A ver- Essa é uma das razões de o tema deste Caderno são televisiva do romance serve de inspiração ser Assista a esse livro, que intitula uma plata- para o Caderno tratar da questão das adapta- forma da Globo de incentivo à leitura e à for- ções literárias, com a diversidade de enfoques mação de novos leitores. Uma obra levada à que o tema permite. tela costuma elevar o interesse por aquele de- releituras terminado título ou autor. Um exemplo dessa A obra em questão, por si só, descortina uma simbiose é Memorial de Maria Moura. A obra de série de aspectos históricos e socioculturais que Rachel de Queiroz havia vendido mil exempla- permeiam sua trama, como as transformações res no mês de seu lançamento, em 1985. No de Manaus, num período que vai da pujança mês em que a minissérie foi ao ar, em 1994, 12 econômica propiciada pelo ciclo da borracha à mil livros saíram das prateleiras. instalação da Zona Franca, e os fluxos migra- tórios que marcaram a demografia da região. Mas, além desses impulsos, o hábito da leitura e da escrita precisa ser estimulado e cultivado Os autores da obra original e da adaptação de várias outras formas. Afortunadamente, ob- contam a gênese de cada processo e os desafios serva-se a existência de projetos de incentivo encarados até o resultado final. Dois irmãos surgindo em vários quadrantes do país. Membros saltou das páginas de outros modos. Ganhou do conselho editorial e curadores do Caderno uma versão em HQ, feita por Fábio Moon e apontam algumas iniciativas que contribuem Gabriel Bá. Em entrevista, os artistas gêmeos para o acesso ao mundo das letras. contam o processo de adaptação do romance Boa leitura! para a linguagem dos quadrinhos.

A literatura é fonte da teledramaturgia desde os Este Caderno está inserido na plataforma Assista primórdios da televisão no Brasil, consagrando a esse livro, que contempla as seguintes ações: a prática da transposição de linguagens, crian- do e recriando clássicos. Em sua história, a Exposição de figurinos das obras adaptadas A Globo fez mais de 200 produções a partir de moreninha (1965), Gabriela (1975), O tempo e o vento obras literárias. Para contemplar parte desse (1985), Memorial de Maria Moura (1994), Capitu acervo, o Caderno traz uma linha do tempo com (2008) e Dois irmãos (2017), em dezembro de 2016, as que foram adaptações de livros de autores no Istituto Europeo di Design, no Rio de Janeiro. brasileiros. Há também uma galeria ­—montada com colaboração e consultoria dos estudiosos Evento em dezembro de 2016, com debate sobre Esta edição conta Mauro Alencar e Elmo Francfort no quesito literatura e processo criativo de adaptações de com o traço do obras históricas. ilustrador Kako, teledramaturgia — que compila versões feitas para cinema, teatro e HQ. fazendo a releitura Lançamento do projeto Literatura hiperlinkada, que de clássicos da consiste em ilustrar com cenas de novelas trechos literatura adaptados O Caderno discute ainda a própria natureza da de e-books. A primeira obra será Gabriela (1975). pela Globo adaptação. Uma obra pode ter tantas versões quantas forem as luzes interpretativas lançadas Debates abertos ao público no lançamento deste sobre ela. Para tratar dessas possibilidades, re- Caderno, em janeiro de 2017. unimos escritores que também atuam como Tcar ísio Meira roteiristas, que falam dos processos de criação Participação na Flip, Bienal do Livro do Rio e no O Tempo e o vento, 1985 e adaptação. Marçal Aquino, Fernando Bonassi, LER - Salão Carioca do Livro, em 2017.

4 5 L orenzo Rocha, Juliana Paes e Enrico Rocha Dois Irmãos, 2017

30 36 42 8 20 dois 12 ir 48 Os cheiros de Manaus de Os cheiros e criaturas Criador literarura por Loucos contextos de Um romance Manaus de época bela A Amazônia da Literaturas Dois em dobro

maosAs facetas e o alcance cultural de uma história que nasceu clássica, ao conquistar a imaginação dos leitores e alcançar outras formas de linguagem artigo por Beatriz Resende

Ao falar da cidade, obra mostra elementos da cultura da Amazônia e, dessa forma, fala de todo o Brasil e seduz leitores de outras línguas, afirma pesquisadora

Monique Bourscheid Dois Irmãos, 2017

8 9 artigo

Beatriz Resende é crítica, pesquisadora, doutora em Literatura Comparada e professora titular de Poética do sua Cidade Flutuante. O fim da casa ximo e depois encara forte o que Departamento de que é substituída pela loja de quin- for preciso. Nael, “caracolzinho Ciência da Literatura quilharias importadas segue para- entre pedregulhos”, junta em si as da Faculdade de Letras lelo aos conflitos políticos que cul- duas culturas, vive entre duas di- da Universidade Federal do Rio minam com o golpe de 1964 e a ferentes classes sociais e, sobretu- de Janeiro (UFRJ) ois irmãos é o segun- ocupação da cidade por militares. do, move-se entre a casa e toda a Ficará o desafio de usar toda a do romance de Mil- cidade, até as fronteiras, pelos rios, capacidade que o diretor Luiz Fer- ton Hatoum, lança- Não se trata, porém, nem de ro- pelas casas pobres ou ricas. O bas- nando Carvalho já demonstrou na do 11 anos depois da mance político nem de depoi- Os gêmeos se opõem, divergem tardo é o mais completo habitan- transposição de uma linguagem publicação de Relato mento, nem mesmo memória, em tudo, mas perigosamente coin- te da cidade com seus contrastes. para outra para traduzir em ima- d de um certo Oriente, ainda que de tudo isso se trate. É cidem em seus amores. Não é ape- gens marcas únicas da narrativa: obra saudada com entusiasmo pela o debate em torno da ética e do nas uma mulher que é objeto da Levar Dois irmãos à TV é espalhar o cheiro de arnica, banha de cacau crítica literária, verdadeiro marco afeto, com suas dificuldades, que disputa afetiva, são todas. Antes por todo o país uma história que e óleo no corpo de Omar; a nhaca da literatura brasileira contempo- atravessa a narrativa. de mais nada a mãe, a preferir sem- falando de Manaus fala de todo o de pelame de jaguar; o cheiro de rânea. Com seu primeiro livro, Ha- pre o mais próximo, ao alcance de Brasil. Fala dos que foram respon- uma natureza morta que teima toum mostrava a nós, brasileiros, O núcleo da narrativa é o confli- seus carinhos. Mas também a irmã, sáveis por crimes, mas também em renascer; o cheiro de Zana e que também aqui o Oriente fora to entre dois irmãos gêmeos que que assume o papel que deveria dos que nos deram esperanças, seu braseiro, cheiro de jasmim; o uma invenção do Ocidente. talvez já brigassem desde o início ser destinado aos rapazes e toca o mostra a todos o que há de desco- cheiro do amanhecer e da folha- da concepção do romance, como negócio da família. E Domingas, nhecido, cheiros, gostos, frutas, gem úmida; o cheiro de cupuaçu O longo período de criação de Dois Pedro e Paulo, os gêmeos rivais a índia que se torna mãe do neto árvores, pássaros, em toda a cul- pesado e maduro; o cheiro de lodo irmãos já revela a importância que de Esaú e Jacó, de Machado de de Halim, o patriarca consumido tura indígena nessa Amazônia que que empestava as praias do iga- o autor dá à elaboração dos perso- Assis, obra que serve de provoca- pela paixão carnal e arrebatadora seduz leitores de todas as línguas rapé; os cheiros misturados, de nagens, do cenário, de cada pará- ção inicial, brigavam ainda no pela mulher, Zana, a mãe. em que as narrativas de Milton essências daqui e de lá, que en- grafo, de cada frase, à observação ventre da mãe. Hatoum são hoje traduzidas. chiam a casa. das cores, dos gostos, dos cheiros. Domingas, órfã da miserável con- Se Yaqub é independente, capaz dição indígena na Amazônia, é a Dois irmãos conta a história de uma de vencer sozinho na vida pelo companheira fiel, a protetora, ser- família de imigrantes libaneses que próprio trabalho, é também frio vil mas digna, e tem a sensibili- se estabelece e cria sua descendên- e mesquinho. Se Omar é um es- dade de artista a esculpir suas cia em Manaus durante o século troina, violento e egoísta, é tam- madeiras no quarto dos fundos. XX e vai até a decadência da famí- bém o orador eloquente que toma lia, dos laços familiares, o desapa- como suas as palavras de Laval, o Na casa da família, o árabe é falado recimento da cidade antiga, com poeta assassinado. nos momentos de crise ou de pai- xão, o pequeno altar reúne Zana e O núcleo da Domingas em orações. Mas são mesmo as comidas com seus gos- narrativa é o tos e cheiros que parecem dominar o cenário, marcando uniões e se- conflito de dois parações, saboreadas na felicidade, deixadas de lado nas separações. gêmeos, como em

O narrador, cujo nome, no roman- esaú e jacó, de ce, só saberemos no final, primei- ro espreita, em seguida se faz pró- machado de assis

10 11 entre aspas por milton hatoum

Aspectos históricos e psicológicos da trama são debatidos entre autor do livro e elenco da minissérie

romance Dois irmãos foi o segundo da carreira de Milton Hatoum. Lançado em 2000, o livro chamou atenção da rotei- rista Maria Camargo no ano se- o guinte. Desde então, a adaptação da obra para a TV passou por um processo que incluiu conversas por seis anos com o diretor Luiz Fernando Carvalho. Em 2014, durante a preparação da minissérie, o autor se encontrou com o elenco no Rio de Janeiro para uma conversa sobre aspectos que envolvem a cons- trução da obra e dos personagens. A seguir, criador e extratos das falas do escritor.

Cauã Reymond criaturas Dois Irmãos, 2017

12 13 entre aspas

A construção do narrador foi a mais difícil. O atuante nas palavras, nos atos, no pensamento. milton hatoum narrador é uma questão central da prosa de Agora, quando você muda o tom e a posição do é escritor, nascido em língua e literatura francesa e tinha uma carga ficção, em qualquer gênero: romance, conto, narrador e a relação dele com as outras perso- Manaus. Formado em horária pesada, que me impedia de ler. E es- novela, teatro. Na construção do narrador do nagens, tem de mudar as 270 páginas. Esse arquitetura pela Universidade de São crever, antes de mais nada. Sem tempo para romance, pensei no filho de uma índia com um narrador tinha de ser o observador e ao mesmo Paulo (USP), estudou ler, perdia o ânimo para escrever. Porque a dos irmãos. Um narrador que não fosse de uma tempo uma personagem mais ativa. Tive de literatura comparada maior parte do meu tempo é dedicado à lei- classe social privilegiada. Um dos meninos ou reescrever o manuscrito e tentar dar mais for- na Universidade tura, e o que escrevo depende disso. Esbocei curumins com os quais convivi na escola públi- ça a este narrador e encontrar a voz dele, a voz Sorbonne (Paris III) e o Dois irmãos em Manaus e em 1998 me mu- ca, o Colégio Estadual do Amazonas, antigo da Domingas e das outras personagens. Eu foi professor de literatura francesa na dei para São Paulo. Pedro II. Sem essa convivência, não sei se teria teria que respeitar as origens de Nael, que não

Universidade Federal Narrativa construído esse narrador. Nael está numa es- poderia ser um narrador muito erudito, de tom do Amazonas. É autor Sem nenhum exagero, durante quase dois anos pécie de limiar, na fronteira social, pois ele é um elevado, mas também não seria um narrador de Relato de um certo escrevi todos os dias. Por alguma superstição filho bastardo numa família à qual ele pertence inculto: ele tem uma formação intelectual e, Oriente, Dois irmãos, ou algum mistério, eu achava que essa histó- e não pertence ao mesmo tempo. É o neto do mais importante ainda, tem uma sensibilidade Cinzas do Norte e Órfãos do Eldorado ria de Halim, Zana e seus filhos me libertaria Halim – alguns acham que ele é filho do Halim, para observar, espreitar e depois elaborar no de alguma coisa, uma angústia pesada... Um mas isso é apenas mais uma conjetura, matéria pensamento essas observações. Nael dá voz ao movimento, uma agitação do passado em di- de discussão. Ele foi salvo pelo avô, que o esti- passado dos outros e dele mesmo. Ele é o por- O ano de 1998 foi de ruptura na minha vida. reção ao presente. Eu queria me libertar disso, mulou a estudar. Nas primeiras versões, esse ta-voz da memória da tribo, a voz de uma das Tinha publicado um romance [Relato de um enfrentar esse diabo que me provocava, e a narrador foi um problema porque ele testemu- versões possíveis da história desse clã em de- certo Oriente] em 1989 e, quando voltei da invenção é uma forma de soltar todas as amar- nhava esse drama familiar a distância. Meu composição. Encontrar a voz desse narrador foi ese França em 1984, fiquei em Manaus, onde le- ras, os fantasmas, a opressão de fora e de den- editor e mais dois ou três leitores fizeram essa o maior desafio, porque tudo depende dessa

n cionava na Universidade Federal do Amazonas. tro. Isso aconteceu quando escrevi o livro; crítica, achavam que o narrador não se envolvia voz, da atitude dela diante dos outros. Traduzir E não conseguia escrever outro romance. As depois aconteceu uma coisa inesperada: pas- muito nessa história, e que o romance ganharia os outros num pequeno mundo paralelo, in-

Gê coisas em Manaus começaram a dar errado. E sei a viver, modestamente, de literatura. força dramática se Nael fosse mais presente, mais ventado, é uma das tarefas do romancista. quando alguma coisa começa a dar errado, surge o momento da es- crita. Transcender a vida através da linguagem...

Em 1997, perdi pessoas muito queridas, minha relação com o trabalho na universidade se tor- nou problemática, eu não tinha mais tempo para ler e escrever. Eu queria escrever um ro- mance que estava mais ou menos armado na minha cabeça, era uma questão latente, desde a leitura de Esaú e Jacó, de Machado de Assis. E esse romance era o Dois irmãos. Deixei minha

Antonio Fagundes cidade e decidi não ser (Halim) mais professor univer- Dois Irmãos, 2017 sitário. Eu dava aula de

14 entre aspas

No esboço do romance, a decadência da família Antes de começar a escrever, penso em cada De um modo geral, a gente tende a fazer uma s e a da cidade estavam juntas. A Manaus de Dois personagem. A palavra inglesa para persona- relação direta entre a biografia do autor e as te irmãos está sendo destruída aos poucos. Halim n gem diz muito: character. Qual o caráter des- personagens. E não é assim. Muita coisa veio e perde a mulher, o amor de Zana; ao mesmo sa pessoa? Que máscara ela vai usar para ex- n das leituras canônicas, dos textos sagrados,

tempo perde os amigos e o espaço afetivo de g pressar seu modo de ser, que pode ser só o que são para mim textos literários; dos ro- Manaus, como a Cidade Flutuante, um bairro modo de ser aparente – daí vem a personagem mances, alguns do século XIX; de alguns a popular com casas de madeira, construído sobre caricatural. Ou pode ser uma caracterização mitos ameríndios, que têm histórias de gêmeos toras e passarelas nas águas do rio Negro. Os n interior, o que é sempre mais difícil e mais rivais; para algumas tribos é uma espécie de sobrados neoclássicos e art-nouveau vão sendo desejável. Para Dois irmãos, outra grande di- maldição ter filhos gêmeos. Eu quis enfatizar demolidos, e a transformação que está aconte- ficuldade foi não tornar cada irmão o bem e o a loucura da mãe, porque no fundo é isso, se cendo no interior dessa família também acon- mal... Eles vão se transformando ao longo do Zana fosse uma mãe normal não caberia num coisas... Mas a cidade e seu poder econômico,

tece em Manaus e no Brasil. São os anos da di- livro, um vai ficando o outro e vice-versa. Um orie e ia romance. A literatura surge com a paixão, e industrial, foram construídos por todos: pau-

tadura. O quadro histórico não foi enfatizado pode ser o avesso do outro... Pensei nesse es- n a paixão é o momento do desequilíbrio, e o listas, migrantes brasileiros de todas as regiões, perso porque não é um romance histórico, mas tem pelhamento: a fusão de um irmão no outro e desequilíbrio conduz ao pathos, à catástrofe. migrantes estrangeiros que se tornaram bra-

tido histórico tido cenas, como a do assassinato do poeta e profes- as diferenças entre eles. Queria, com essa con- Mas, além dessa questão da mãe, eu pensei sileiros. Pessoas da minha família que migra- sor Laval, que são metáforas da degradação do fusão, dar mais espessura, mais profundidade em criticar ou pelo menos abordar dois mitos ram para São Paulo se tornaram mais locomo- n ensino público e da dificuldade de ser artista psicológica a cada irmão. brasileiros: o primeiro é o lado exótico da tivas que a própria locomotiva, assimilaram naquele período da nossa história. Pensar na Amazônica e o segundo, o do Oriente exótico. esse discurso de que São Paulo move o Brasil. se poesia e na arte no meio daquela brutalidade Falar de um modo realista da vida familiar Tentei desmistificar essa polarização, esse

era uma questão. Por isso, para mim, a cena do amazô em Manaus e de uma família libanesa, árabe, embate entre Yaqub, o engenheiro exitoso, e assassinato de Laval e, depois, a cena em que sem cair no exotismo. Outra coisa que quis Omar, o dissipador da província... O embate Omar lê um poema no coreto da praça são uma desconstruir ou ironizar foi o mito de São Pau- entre o “civilizado”, com muitas aspas, e o encenação do luto, mas também de resistência. lo como locomotiva do Brasil, na figura do “primitivo”, também muitas aspas. Essa dico- O sentido histórico está presente nessa cena. Yaqub. Quem mora em São Paulo escuta essas tomia não existe, é uma ideologia negativa sobre os outros. Pode ser o outro do Amazonas, o outro sertanejo, nordes- tino, indígena, negro... Os brasileiros são mestiços há séculos, mas muitos desprezam esses “outros”, que fazem parte constitutiva da nossa sociedade. Daí a escolha do narrador, uma es- colha ética, mas não ideológica. Nael é um mestiço, filho de uma índia com um brasileiro de origem árabe. E ele, Nael, será a memória da tribo.

Cauã Reymond (Yaqub) e Bárbara Evans (Lívia) Dois Irmãos, 2017

16 17 entre aspas

Goethe e outros grandes escritores, Flaubert, Balzac, Stendhal, traba- lharam com romances de forma- ção ou de aprendizagem, que são temas universais. Eu os reli muito. Minha intenção era escrever ao menos um romance de formação, e acabei escrevendo dois, pois o Cinzas do Norte vai nessa direção. Esse tipo de romance realista narra um drama a uma experiência de vida, que passava tam- A maior transgressão moral, física e simbólica Eu só começo a escrever quando tenho uma de família, recortado no tempo e no espaço, bém pela observação de Manaus, do interior da família se dá através da relação incestuosa intuição das últimas cenas. Começo pelo fim e em que o narrador conta a história da sua vida, do Amazonas, das índias e caboclas que eu vi de Rânia com o sobrinho (ou meio-irmão) Nael. vou até as origens, fazendo a travessia sinuosa que é problemática, e as etapas que ele vai padecer, dos curumins que eram moleques de É um momento em que ela rompe com um do romance. Depois que você escreve, as coisas queimando: vai deixando de ser ingênuo, e, recados, da pequena burguesia e da elite ma- tabu que é universal. E para fazer justiça ao vão mudando, como na filmagem e na vida. O na passagem da juventude à maturidade, as nauara, uma sociedade que tinha saído do [escritor] Raduan Nassar... Quando ele leu a Cinzas do Norte demorou cinco anos. Quando o ce de formação de ce experiências se somam, se acumulam: o amor, ciclo da borracha e vivia numa cidade estag- primeira versão, meio crua ainda, disse uma terminei, eu tinha um filho, minha mãe tinha n

a morte dos amigos e parentes, o conhecimen- nada desde 1915, à espera de alguma coisa. iversal coisa que foi fundamental: o narrador tinha morrido. O romance é a arte da paciência. Como to das coisas, a consciência de estar no mun- Tracei um arco temporal longo, de 40 anos, em um certo pendor afetivo por um dos irmãos. esculpir com argila, você suja as mãos e começa n do, a desilusão. Tentei construir meu roman- que Manaus e Belém ficaram adormecidas até Na aproximação do fim, ele quase que ficava a moldar uma personagem, em tensão crescen- ce de formação caboclo, modesto, naquele o advento da Zona Franca em 1967, quando a enlevado com um dos irmãos. Mas o Raduan te com as outras, até chegar àquilo que Aristó- estruturas

oma pequeno lugar, mas com personagens que cidade assume uma espécie de protagonismo observou que, para fazer sentido e dar mais teles chamava de “anagnórise”, que é uma es- fossem críveis, convincentes e com alguma regional por causa das indústrias de produtos ambiguidade a esse mistério da paternidade e pécie de esclarecimento, de reconhecimento ou r complexidade. Essa experiência da formação, eletrônicos e da reativação do comércio, ser- dar mais força ao narrador Nael, eu não devia revelação de algo que estava escondido, mas que é a experiência da vida, da passagem do viços etc. A chegada dos aventureiros é sim- aproximá-lo de nenhum dos gêmeos. Eu o latente. A morte de Halim é o momento em que

tempo, é importante para quem escreve ficção. bolizada pelo indiano Roshiram... u tabu deixaria no fundo da casa escrevendo as suas se esclarece tudo o que estava por trás. A famí- Se um jovem escritor de 30 anos não teve ain- memórias, para dar mais dignidade a ele, uma lia está esfacelada, somando mortes reais e sim- da uma experiência das decepções, das gran- solidão radical. Acho que Raduan estava cer- bólicas, e a cidade está morrendo para Halim. E des ilusões que vão se perdendo, é difícil es- to. Porque não fazia mesmo sentido o narrador depois disso é o caminho para a agonia, os gran- crever. O que eu tentei foi dar forma literária ser mais afetuoso com um dos gêmeos, ou ser des conflitos que terminam no trágico, que é o mais cúmplice... A dúvida moral que percor- mundo sem saída. Na tragédia não há saída pos- re quase todo o livro já não o atormenta, ele sível, o duelo entre os dois irmãos, a agressão tinha superado isso pela memória, pela lin- violentíssima do Omar e depois a morte da mãe, guagem, pelo trabalho, pela vida... “Aprender narrada na abertura do romance. Mas entendo Eliane Giardini (Zana) a viver é que é o viver mesmo”, diz Riobaldo que para um filme na TV talvez seja mais forte Dois Irmãos, 2017 no Grande sertão: veredas. deixar a morte da matriarca para o fim...

18 19 entrevista com Luiz Fernando Carvalho, Milton Hatoum e Maria Camargo

Loucos por literatura Reca ri r o tempo e a memória contidos no romance foi o maior desafio da minissérie Dois irmãos, constatam o autor Milton Hatoum, a roteirista Maria Camargo e o diretor Luiz Fernando Carvalho

20 21 entrevista

transformação do romance Dois ton falava uma coisa muito bonita: “Para ser MH – Maria sugeriu escrever o roteiro e até LFC – Na verdade, são famílias espirituais. Uma irmãos em minissérie é, oficial- escritor, é preciso ter vivido coisas muito produzir um filme, pois se apaixonara pela coisa leva a outra. Mas meu primeiro impulso foi mente, um projeto gestado há fortes na vida, mas é preciso ainda mais de obra. Gostou tanto que fiquei comovido [risos]. transformar o livro em cinema. Quando fui reler 14 anos. Desde que a roteirista maturação para isso se tornar literatura”. De- Quando você encontra um leitor fervoroso, de o livro, eu me toquei: “Meu Deus, não cabe...”. Maria Camargo sentiu o impac- pois disso, tinha de lê-lo. O Relato de um cer- uma lealdade extrema ao livro, fica satisfeito. a to da leitura de Milton Hatoum. to Oriente, você lançou quando? Em 2006, o Luiz Fernando Carvalho incluiu o MC – Teria de ser outro recorte. A ideia, no entanto, de alguma maneira respi- título no “Quadrante”, um projeto que desen- rava antes de o livro ser lançado, desde que o MH – Em 1989. volveu na Globo, para adaptar ficções de várias LFC – Aí se perderia todo o paralelismo com o diretor Luiz Fernando Carvalho conheceu regiões do Brasil. A Maria já tinha começado Brasil. Hatoum ao apresentar o filme Lavoura arcaica. MC – Fui à livraria atrás do Relato e encontrei a fazer o roteiro... “Há famílias espirituais, em que uma coisa leva Dois irmãos. Não dormi. Os personagens estavam MH – A noção de tempo ia ficar mais difícil de a outra”, diz o diretor. A paixão por literatura vivos ali, o narrador me levava a um lugar a que LUIZ FERNANDO CARVALHO – Foi Maria ser elaborada... irmana os espíritos mesmo em desafios com- nunca tinha ido e, ao mesmo tempo, não havia quem me fez o convite de trabalhar o Dois plexos como o de adaptar para a TV uma saga exotismo naquilo. Eu me reconheci naquela irmãos. Mas há um subsolo nisso tudo. Raduan MC – Muito filme trabalha com o tempo, mas que atravessa décadas. A história enreda con- família e me emocionei com a mãe que não Nassar e Milton são amigos e a época do lan- teria de ser outra coisa. flitos sutis e exige reconstituição de épocas amava os filhos do mesmo modo. Amanheci o çamento do filme Lavoura arcaica [inspirado distintas e a inclusão de um “personagem dia chorando, foi visceral. Já era roteirista havia no romance homônimo de Nassar] foi a mes- LFC – E num outro momento do cinema na- invisível” que é a Manaus da era de ouro da uns três anos. E pensei: “Bom, essa história é ma do livro Dois irmãos. Houve um momento cional, para comportar uma obra que neces- borracha até a criação da Zona Franca. Levá-la universal, mas além de tudo tem uma estrutu- em que fui morar na casa de Raduan para ter- sitaria de uma duração diferente da comercial. para a TV foi a saudável loucura desse trio de ra aqui, é uma saga”. Eu trabalhava na Globo, minarmos o filme, e Milton foi um dos primei- criadores reunidos nesta conversa mediada fiz um parecer sugerindo a adaptação, entre 10 ros a ver o longa. MH – A questão, para mim, não era fazer meu por Luiz Costa Pereira Junior e aqui resumida. e 16 capítulos. Esperei uma resposta, que não livro vender mais. Eu queria outra linguagem veio. Foi quando encontrei o Milton na Bienal. MH – Raduan havia lido meu manuscrito. Ele estética, inventiva, que transformasse o Dois Como o livro virou minissérie? é um leitor severo, não enseba: “Eu faria isso, irmãos numa obra audiovisual de fato inova- MILTON HATOUM – Quando escrevi Dois ir- isso e isso”, depois me olhava: “Onde encon- mãos, não o fiz pensando numa adaptação. Mas trou tanta loucura? De onde saiu a loucura do o interesse por adaptá-lo começou em 2002, Lavoura arcaica? Não foi da sua cabeça?”, e numa Bienal do Livro no Rio, pouco depois de começamos a rir. Nós três ficamos dez horas eu ter publicado o romance. vendo duas, três vezes o Lavoura arcaica. Veio daí uma empatia pelo trabalho do Luiz Fer- MAA RI CAMARGO – Cheguei ao livro em nando. Se você não admirar esteticamente o 2002, a partir de uma entrevista em que Mil- diretor, não funciona.

22 23 entrevista

dora. A gente não sabe exatamente o que nos diz um texto quando a gente lê. A obra do Raduan é assim. Borges diz que clássico é o livro que a gente lê com prévio fervor e uma misteriosa lealdade. Não é aquele que a críti- ca colocou lá em cima. É esse fervor e essa lealdade que você tem por uma obra de arte. A literatura

MC – É uma história de paixão... de que gosto

MH – De paixão. Acho que essa empatia com não é nem só o Luiz Fernando, com a Maria foi fundamen- MH – Achei que seria difícil recriar os vários tal, como foi com o Luiz e a obra do Raduan. planos do livro, o psicológico dos personagens de ação nem só Eu revi o filme há pouco tempo, 15 anos depois. e os lugares que se transformam, a oposição Tudo surgiu de novo. Toda a magia, a música, Norte-Sudeste do Brasil e as culturas diferen- introspectiva, a sequência de imagens, o sentimento, a pai- tes. Como eles conseguiriam? Mas não só con- xão pelos objetos, pelo detalhe. Uma obra de seguiram como ampliaram o quadro histórico é a confluência arte, quando se vê muitas vezes, é como se da ditadura. A literatura de que gosto não é visse pela primeira vez. nem só de ação nem só introspectiva, é a con- do drama humano fluência do drama humano e da ação. Trabalhar MC – Já li Dois irmãos 25 vezes. isso em imagens não é fácil. e da ação

MH – Fico até preocupado [risos]. MC – Mas fazer isso no livro também não é. Não consigo me apaixonar só pelo enredo, há m ilton hatoum MC – Outro dia, eu o li de novo para conferir o jeito como as palavras são colocadas ali. É é escritor, autor de Relato de um certo algo do roteiro e vi coisas que nunca tinha lido. tudo uma coisa só. Oriente, Dois irmãos, Pensei: “Gente, como assim? Ou sou desme- Cinzas do Norte e moriada ou muito apaixonada pela obra”. O Quais elementos da obra fizeram vocês Órfãos do Eldorado livro dá isso, tem tanta coisa ali. E cada vez que acreditarem que era viável adaptá-la? leio entendo os personagens de um modo. Numa MC – Há muitos fatos dramáticos, os perso- leitura, tenho ódio da Zana porque, cara, o que nagens estão vivos ali. Com o tema de gêmeos, é uma mulher privilegiar um filho e deixar o a tentação é fazer a dramaturgia esquemática, outro desse jeito? Na próxima leitura, constato: a oposição entre gêmeo mau e bom, mas no memória e o tempo. Como incluir isso dentro mas está dialogando com sociologia, antropo- coitada, ela se apaixonou por esse filho como livro não há isso: às vezes, um até fica demo- de uma casa, uma cidade, os personagens con- logia, a história das imagens. Quando você quem se apaixona por um homem ou uma ideia níaco em contraste com o outro, mas, se a tracenando com o tempo que escorre, que pas- está falando de memória, fala como era 1920, e não consegue fazer diferente. Tenta ser mãe, gente avança a leitura, vê que não é isso. sa como um rio? O livro é um rendado de tem- 1930, que cor havia, qual a paleta das roupas. mas só desaprende. Todos os personagens estão po, espaço, memórias, afetos, e a adaptação E nos 1950? Que lente de câmera se usava para cobertos de razão para ser o que são, e é trági- LFC – Apesar de ser um épico emocional, é uma deve conseguir ser a síntese disso. filmar? Como era a música? E a ancestralida- co porque não conseguem fugir disso. história que se passa no âmbito de uma família. de árabe? Quer dizer, você faz um painel his- É uma história com milhares de cruzamentos, Nesse rendado de tempo, a densidade dos tórico, antropológico, que está nas entrelinhas. de emoções, de memórias, mas que são evoca- personagens e o rico mundo exterior devem Mesmo Manaus não é a Manaus exótica, de das por meia dúzia de personagens. Em termos ser costurados. Como não errar a mão? cartão-postal; é um recorte muito rigoroso. de produção, a obra tem uma dramaturgia mui- LFC – Um dos valores do romance é contar a Há autocrítica sobre o que virou Manaus. Há to concisa, é quase uma peça de teatro. Isso história desses seis personagens enquanto uma aula de história... facilita em termos de produção, mas não de conta a história do país do século XX. A voz realização. Realização é outra coisa. É saber do Nael, o narrador, está nos anos 1980. Há MC – E com um narrador muito particular. O como esses seis personagens ficam em carne e um arco temporal que rebate nos quartos, nos porta-voz do tempo é o Nael. A história não osso, passando por esse mundo emocional e a corredores, na mesa da família. Então você seria o que é se narrada por outra pessoa. A ação desse outro personagem invisível que é a alça a literatura a uma literatura que é ficcional, memória inventa mesmo quando quer ser fiel

24 25 entrevista

contar. Da chegada de Yaqub ao final, a his- tória segue cronologicamente, entremeada pelo passado. Porque a trama é sobre a memó- ria. Nunca me passou pela cabeça ou pela do Luiz Fernando fazer algo cronológico, porque Se fizesse a cena é contra a natureza do romance. É difícil fazer adaptação em que se cruzam tempos, mas a como escrita no gente não tinha opção. Era a natureza do livro.

livro, não MH – Melhor pensar em linguagens distintas, em que uma fala da outra profundamente. Não funcionaria na e passa a ser trágico; deixa de ser cômico e passa se deixa de admirar a novela do Thomas Mann a ser tragicômico, patético. Então tudo isso nos para admirar o filme Morte em Veneza. O pa- TV. Até tentei. é transmitido como um vírus pela obra principal. ralelismo entre eles existe na medida em que Nós somos aquelas formiguinhas que trabalham se comunicam profundamente. Comparar li- Mas não seria a síntese desse negócio todo. vro e versão é a pior coisa...

fiel à alma de O que há na minissérie que não está no MC – É meio inevitável ocorrer, mas... livro? cada momento MC – Se pegasse as palavras do Milton e fizes- MH – Não é o caminho. A minha leitura do se a cena como escrita no livro, não funciona- roteiro não esperava encontrar o livro tal como ria na TV. Até tentei. Mas não conseguia ser fiel foi escrito. à alma de cada momento. Se a cena era impor- m aria camargo tante para a história caminhar, teria de des- MC– Ele é o autor dos sonhos de todo rotei- é roteirista de cinema e TV. montá-la e fazer outra coisa. Tive de me apro- rista. Autora de novelas como Lado priar da história e torná-la minha, senão não a lado, especiais e infantis como Sítio do Picapau conseguiria. Então entraram referências fami- Quais as referências que a história deveria Amarelo, entre outros liares, de coisas que vi e estão contidas no modo reforçar? Seria natural pensar em Caim e como escrevi as cenas. Mas o mais difícil foi Abel, na enchente bíblica... pensar estruturalmente. Como pegar um livro MH – Para mim, a Bíblia é um texto literário. desse tamanho sem a tendência de transcrevê-lo? Ler a Bíblia ao pé da letra é loucura. Muita gen- Até porque as cenas não caberiam todas, há te faz isso e é perigoso. A rivalidade de irmãos muita coisa no original. Mesmo tendo dez ca- não está só na Bíblia, mas em todas as literatu- ao passado. Então, a gente está fazendo uma tarismo naturalista. Essa transcendência do pítulos, eu poderia fazer uma versão maior. ras e nos mitos, porque os mitos são viajantes, coisa que é realista, mas não é, porque é o naturalismo não é uma exclusão do realismo, Como fazer tudo caber na medida? Como mon- não pertencem a uma única cultura. Há irmãos ponto de vista de alguém... mas a inclusão de uma imaginação produtiva. tar uma estrutura em que, mesmo sendo dife- rivais na mitologia ameríndia, nas Mil e uma rente do original, permaneça o que Milton es- noites, nos egípcios, em Borges. Não tive um LFC – A realidade não existe. Como dizia Ma- LFC – Em outras palavras, se nós estamos dian- tabelece como a natureza trágica da história? modelo único, mas Esaú e Jacó, de Machado de chado de Assis, a realidade é uma cadela, não te de um livro, entramos numa sala de cinema Assis, foi referência, mais pelo Machado do que serve pra nada. ou de teatro, fazemos isso para reencontrar, re- O livro começa com uma morte e vai dando pela história. No fundo, a literatura é mito e conectar a vida. Mas, se naquela leitura, naque- pistas dos personagens. A estrutura da aparece em tudo quanto é lugar. O meu desafio MC – É um realismo filtrado. le filme, quando se acende a tela, não houver uma minissérie acompanha isso? mínima diferença entre a vida que está na tela e MC – Mudou. Ela não começa com a morte da LFC – É linguagem. a vida que há lá fora, não faz sentido entrar na Zana, mas a chegada de Yaqub em Manaus. A sala de cinema ou abrir um livro. E essa diferen- chegada é um marco, um disparador de algo MC – É o olhar do Nael, pura linguagem. ça é a linguagem. São coisas muito sutis e, às que faz a gente voltar ao passado. Na verdade, vezes, uma vírgula a mais e você passa um outro são três tempos se entrelaçando. Há o do nar- MH – O realismo no trabalho do Luiz Fernan- sentido. Se deixo na tela o rosto de um persona- rador, que na verdade é o do Halim contando do recusa a reprodução do real, o documen- gem um segundo a mais, ele deixa de ser cômico a Nael o que o narrador Nael vai depois nos

26 27 entrevista

foi tornar essa a história de um momento es- pecífico, um lugar e uma família, na cidade LUIz fernando Carvalho onde nasci. É transformar o meu lugar numa é diretor e roteirista. No cinema, escreveu e dirigiu Lavoura coisa maior, mais geral, se possível universal. Arcaica (2001) a partir da obra de Raduan Nassar. Na TV, Houve alguma cena mais difícil de recriar? assinou a direção de novelas MC – A da morte do Halim. Eu chorava muito, como Renascer (1993), Rei do não conseguia digitar. Gado (1996), Meu pedacinho de chão (2013) e Velho Chico (2016), além de minisséries como MH – Nem me deixaram ver. Agradeci. Porque Os Maias (2001), Pedra do Reino me emocionou quando a escrevi. Às vezes, a (2007) e Capitu (2008). Criou, gente se pergunta, tudo isso é papel, lápis e quando cheguei à rua dos Barés, onde mora a escreveu e dirigiu Hoje é dia caneta, mas não é bem assim. Significa muito família do romance. É das mais caóticas do de Maria (2005), Afinal, o que querem as mulheres? (2010) e estar possuído por esses conflitos, escrever a centro, desemboca no porto. Chorava tanto Suburbia (2012), entre outros morte de um personagem que lhe é querido e que me senti um dos personagens vendo no pensar na morte recente do próprio pai. Isso é que aquilo se tornou. Encaro o período entre muito freudiano. Freud dizia que o grande trau- a belle époque e a Manaus caótica como um ma é a morte do pai. Pode ser questionável... percurso dramático de um personagem. Ten- tei construir isso. MC – Vale para mim. Ao ler e escrever, revivi a morte do meu pai. As histórias vão se somando. MH – E como. O roteiro é excepcional.

M H – Vi uns trechos e o Luiz disse: “Melhor não LFC – A grande vitória da Maria foi não ser só ver a morte do pai”. Fomos embora conciliados. roteirista, mas ser também uma escritora. Esta paixão pela literatura, este encontro, é um Concebeu toda a narrativa antes de escre- encontro de três loucos por literatura. vê-la? MH – O livro nasceu de uma crise. Ao terminar MH – É isso o que eu queria dizer. o primeiro romance, fiquei anos pensando em

como escrever essa história que já estava meio LFC – A gente sabe o valor da palavra, o valor armada na cabeça. Passei três anos com Dois da imagem da palavra. Milton sabe a imagem irmãos. Isso depois de ter visto a cidade da mi- da palavra. Eu sei a palavra da imagem e Ma- nha infância ser destruída – o centro histórico, ria também. Essas coisas todas se cruzam, e é os casarões, os igarapés, a transformação de um grande desafio. um lugar que já foi digno num espaço caótico Se estamos diante e hostil. Como sou arquiteto, queria contar uma história que fosse trágica e ao mesmo tempo de um livro, trouxesse a narrativa dessa decadência. veja mais na versão digital app.cadernosglobo.com.br entramos numa Manaus é a real protagonista? MH – Eu gostaria que fosse uma das personagens. sala de cinema Essa referência se dá na minissérie? ou de teatro, MC – Sim. Conheci a Manaus do Milton antes da real. Sabia que ia encontrar a cidade do fim fazemos isso para do livro, sem nada de idílico, sem mangueiras sombreando as calçadas, igarapés, Cidade reencontrar, Flutuante, mas com o rio tornado esgoto. Es- tava mais ou menos preparada para aquilo reconectar a vida

28 29 entre aspas por KEILA GRINBERG um romance de s levas de imigrantes árabes que vieram à Amazônia, os efeitos das duas guerras mundiais na geopolítica, as trans- formações em Manaus do apogeu da borracha à criação da Zona Franca, os impactos da ditadura militar no Brasil. Esses e outros acontecimentos permeiam a narrativa de contextos a Dois irmãos e ajudam a explicar os contextos presentes no livro. Em palestra para elenco e equipe de produção da minissérie nos Leitura de Dois irmãos pode ser conduzida também por fatos Estúdios Globo, no Rio de Janeiro, a historiadora Keila Grinberg abordou históricos que remontam ao Império Otomano no século XV fatos que marcaram o Brasil e o mundo antes e durante o período em que a trama se desenvolve. A seguir, extratos das falas da historiadora.

30 31 entre aspas

tinos, herdeiros dos romanos, e sua conquista sem impostos. Com a crise, os impostos aumen- KEILA GRINBERG foi o sepultamento do que restara do Império tam. Como cristãos e judeus tinham mais é doutora em História Romano. Já o Otomano existiu até o início do instrução que os muçulmanos, começaram a do Brasil pela século XX e ocupou o norte da África, os atuais ser vistos como os que roubavam os melhores Universidade Federal livro toma Fluminense (UFF) e Oriente Médio e Bálcãs. empregos, e não deveriam estar num país mu- professora associada çulmano. Assim, quando a imigração começa, manaus como do Departamento de A cultura mediterrânea é o coração desse im- o número de muçulmanos a vir para cá é pe- História da pério, que espalhou islamismo pela África e queno. É significativo que o pai de Halim seja cidade dos Universidade Federal ligou a religião muçulmana ao mundo árabe. muçulmano. O conflito muçulmano-cristão do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), com Quando Dois irmãos começa, o Líbano era um transparece no romance. Quando Halim se apai- imigrantes pós-doutorado pela lugar em ruínas, com alta dívida externa com xona por Zana, as cristãs maronitas não aceitam Universidade de França e Inglaterra, e os britânicos lidando com e até encomendam novenas para separá-los. Michigan um movimento de independência na Turquia. Na colonização, Manaus foi um entreposto de O que leva alguém a cruzar o oceano? As con- venda de especiarias. A grande cidade da Ama- A minha intenção é abordar o romance Dois dições econômicas têm peso, mas são só o cal- zônia era Belém. No início do ciclo da borracha, Imigrantes como Halim e Galib não foram aos irmãos à luz dos contextos em que se situa. Na do, não fazem ninguém dar um basta e dizer por volta de 1879, Manaus ganha relevo. Das seringais, embora portugueses e espanhóis obra de Milton Hatoum, a história é um pano “Vou tentar a vida em outro lugar”. Nenhuma estradas de ferro otomanas ao sistema de na- tenham ido, assim como, no Sul, italianos e de fundo, mas intervém na narrativa. O tempo motivação parece comparável ao rearmamen- vegação de Manaus, tudo era fruto do desen- alemães foram ao campo. Os imigrantes oto- é tratado de forma não linear, o que permite ao to que instituiu o serviço militar obrigatório volvimento industrial inglês da época. manos ficam na cidade. Fazem o que já faziam: autor dar luz a temas sem que os fatos históricos entre otomanos. Das regiões que viraram Tur- comércio. Primeiro de porta em porta, depois ocupem discussões centrais na trama. Isso per- quia, Líbano e Marrocos, o estopim foi o servi- O livro toma Manaus como cidade de imigran- em lojas e restaurantes; de todo modo, uma mite também que seus personagens encarnem ço militar obrigatório (mesmo no Egito já in- tes. Por um lado, há libaneses, sírios e judeus função que exige pouca escolaridade. Os liba- ideias sobre o Brasil, sobre a maneira como se dependente). A Turquia teve independência em marroquinos que falam português misturado neses eram alfabetizados, uma vantagem so- percebe uma sociedade tão hierarquizada. 1921, mas manteve a obrigatoriedade. Para os ao árabe, francês e espanhol. Por outro, há os bre a população de base africana e indígena. libaneses, era ser obrigado a integrar um exér- que vieram da floresta. Tecnicamente, a po- O fato inaugural é a imigração de sírios, liba- cito que não representava sua comunidade, não pulação indígena não é imigrante porque não Essa Manaus cosmopolita, com presença in- neses e marroquinos à Amazônia. Para enten- era muçulmano como eles. Ao fim da Primeira vem de fora, mas na prática é tão imigrante glesa e depois americana, acaba em 1912. Os der isso, é útil uma linha do tempo com as re- Guerra, o Império Otomano é partilhado. Al- quanto quem veio do outro lado do oceano. seringais começam a ficar longe das regiões ferências que não estão tão claras na obra. É nos gumas áreas são ocupadas por França (Líbano), centrais. Nessa época são explorados os serin- anos 1890 que nasce Halim, no sul do Líbano. outras pela Inglaterra (atuais Israel e Palestina). Todos vivenciaram um centro cosmopolita. O gais da Ásia, o que desbanca a Amazônia. Por Zana nasce no norte, por volta de 1900, em Em 1926, o Líbano se separa. Volta a ser ocu- Teatro Amazonas é de 1896. Em 1910, Manaus isso, na história do Brasil, se usa a expressão Biblos. Ele chega ao Brasil em 1905 com o tio pado na Segunda Guerra pelos franceses nazis- tem sistema de tratamento de esgoto que não “ciclos”, a ideia de que algo começa e acaba Fadel; ela, um ano depois, com o pai Galib, que tas, para só em 1941 ficar independente de novo. havia no Rio de Janeiro ou em São Paulo e um sem gerar riqueza para além de si mesmo. em 1914 inaugura o restaurante Biblos, para um centro de pesquisa sobre doenças tropicais. Uma ano depois retornar ao Líbano. Biblos é possivelmente a mais antiga cidade cena com Abbas mostra a cidade europeizada. A Manaus do romance é a que já viveu a belle 130 mil do mundo. Foi capital da Fenícia, quando se Ele compra um chapéu à prestação. É preciso époque. Um período de estagnação em que a sírios e libaneses O primeiro contexto a ser entendido é a razão chamava Amonaco e “pérola do Oriente”. À atenção a isso. O ingresso de prestamistas (ven- cidade fica à mercê de si mesma porque não chegam ao que os levou a sair do Líbano. Entre o século XIX beira-mar, com montanhas ao fundo e arqui- das a crédito) no Brasil se dá com a imigração tem mais influxo externo, que só voltará com Brasil na virada do e o XX, o Império Otomano está em crise. Como tetura imponente, dominada por cristãos ma- sírio-libanesa. Mas os avanços têm reverso: a a Zona Franca. Esse contexto, no romance, é século XIX para o XX os EUA fecham suas portas, cerca de 130 mil ronitas, era onde Galib vivia. Já Halim vem de miséria nos seringais. De 1880 a 1912, ocorre marcado pelo nascimento de Domingas, em libaneses e sírios vêm ao Brasil. É um momen- uma área menos desenvolvida, muçulmana. a primeira exploração da borracha, que produz 1915, a julgar pelas referências de que ela era to de definição do que será o mundo no século Portanto, os dois viviam a rivalidade secular riqueza, uma cidade admirável e a belle époque. dez anos mais velha que Yaqub e Omar. Os XX, pouco antes da Primeira Guerra Mundial. de muçulmanos e cristãos, numa dinâmica sul É quando Manaus e Belém querem ser Paris. anos 1920 serão de mudança na estrutura da e norte que se reproduz em Dois irmãos. Mas é quando as pessoas do porto, os carre- família. O pai Galib morre no Líbano. Em 1923, O Império Otomano começa no século XV, gadores e os que vendem produtos do interior Zana e Halim abrem a loja na rua dos Barés. A 1896 quando o povo otomano, já muçulmano, con- Minorias como cristãos e judeus tinham uma ficam sem função, pois a borracha brasileira rua representa ascensão: o casal deixa o res- é o ano de quista Constantinopla. O episódio se chama espécie de governo comunitário próprio na re- deixa de ser a matéria-prima para os pneus da taurante árabe, muito perto do rio, e se insta- inauguração do “queda” porque o vemos pela ótica dos bizan- gião e eram deixadas em paz desde que pagas- indústria automobilística. la em área mais nobre. Teatro Amazonas

32 33 entre aspas

posterior a 1942, ano em que o Brasil entra no armarinho de coisas da Amazônia e vende conflito. Bases americanas são instaladas em camisetas, carteiras e bolsas, que se encontram Belém e Natal. É a época dos soldados da bor- em qualquer lugar do país. Quando Halim se 1967 marca a instalação Os gêmeos racha, um grupo de quase 50 mil militares, a dá conta, não vendia mais rede, malhadeira, maioria nordestinos, a extrair borracha para caixa de fósforos, iscas, lanterna e lamparina, da Zona Franca representam uma os EUA. Quando acaba a guerra, vão para Ma- coisas de uso ribeirinho. de Manaus naus. Erguem palafitas à beira dos igarapés, só pessoa, os lados nos barrancos e clarões da cidade. Quando o pai reclama que a Cidade Flutuante está cercada por militares, Yaqub responde: “É do brasil do O livro trabalha a ideia de periferias da civili- que os terrenos do centro pedem para ser ocu- zação. Manaus é periferia. Mas há as periferias pados”. Manaus está pronta para crescer. E futuro e do atraso de Manaus. A aldeia do Líbano é periferia de verticalmente, pois é a era da especulação imo- Manaus. A floresta também. Manaus é perife- biliária. É quando as pessoas deixam os sobrados ria de São Paulo e será de Brasília. Jogos como e vão a apartamentos, escolas e cinemas estão esses vão se construindo no romance. Manaus fechados, as lanchas da Marinha patrulham o O comércio agora é o de tecidos, botões, mi- será as duas coisas, centro e periferia. Nesse rio Negro, rádios trazem comunicados militares. nária a Caim e Abel, e é poderosa a imagem da çangas, pequenas coisas que as casas tinham processo, Yaqub se torna mais que brasileiro, enchente bíblica que encerra o livro, um di- de ter. No século XIX, as pessoas compram torna-se paulista, um expoente do progresso. A cidade está crescendo quando a família fecha lúvio em que sobra quem conta a história. Nael tecidos e mandam a costureira fazer roupas, Visita Manaus na época da inauguração de a loja, porque a greve dos portuários terminou é o sobrevivente e, por isso, narra. em vez de fazer elas mesmas. Lojas como a de Brasília, que é a da reforma da loja. A loja pros- em confronto com o Exército. A Zona Franca Halim foram fundamentais ao crescimento pera quando Yaqub começa a ajudar o irmão. muda o traçado urbano, está no meio da cida- Os gêmeos representam uma só pessoa, os urbano. É em 1923 que Domingas, “batizada Esse trecho do livro tem dimensão política de, e traz outros imigrantes. Hatoum mostra lados do Brasil do futuro e do atraso, de estag- e alfabetizada” (sinais da adequação à civili- clara, as referências à greve dos portuários em aqui nostalgia, não da belle époque, mas da nação e modernidade. Omar é cúmplice da zação europeia), é oferecida por uma freira ao janeiro de 1964 e, em abril, a visão do golpe cidade que tem árvores, armarinho, carrega- própria fraqueza, de uma escolha mais pode- casal. Aos poucos, perde as origens indígenas militar por meio da morte de Laval e destrui- dores e cheiro próprio, onde as pessoas estão rosa do que ele. A ambição desmedida de Ya- e vira empregada. Em 1925, nascem Yaqub e ção da Cidade Flutuante. A Zona Franca se mais misturadas e há cultura amazônica, cos- qub o fez sair de Manaus e enriquecer. Sua Omar. Quatro anos depois, nasce Rânia. materializa em 1967, embora não seja projeto mopolita. Essa cidade deixa de existir com a ambição é faceta do Brasil num período de da ditadura (o decreto que a cria é de 1957). Zona Franca e a Amazônia militar. Não à toa, busca, mas de exploração e destruição. E o A primeira geração de imigrantes é de comer- o romance chega ao fim nesse momento. contraponto é Omar no alpendre, entre a inér- ciantes; a segunda, a de Yaqub, vai à faculda- O romance acaba com a morte de Halim em cia da ressaca e a euforia da farra noturna. As de, numa ascensão que corresponde à da clas- dezembro de 1968, a de Domingas em 1970, a É a demolição do passado, quando Halim vê o atitudes inesperadas e a paixão de Omar, assim se média pós-guerra. Yaqub vai ao Líbano em mudança de Rânia para um bangalô e a morte fim da Cidade Flutuante. Os moradores xingam como a sordidez da ambição de Yaqub, fazem 1938 e volta em 1945. É quando nasce Nael. O de Zana. Com a Zona Franca, há um segundo os demolidores, não querem morar longe do o leitor oscilar entre um e outro. Mas, no final, livro deixa vago o ano, e de propósito, para apogeu de Manaus, com a indústria de substi- porto. Manaus agora está cheia de indianos, sobra pouco dos dois. Estagnação e ambição enfatizar a dúvida de paternidade entre os tuição de importações. O romance enfatiza a coreanos, chineses, os novos estrangeiros. Ha- são os dois lados da mesma destruição. gêmeos. A oposição entre eles se intensifica oposição moderno-antigo, progresso-estagna- toum conta o fim da Manaus de Halim, olha no Natal de 1949, quando Yaqub comunica à ção, que Omar e Yaqub encarnam. Havia noites uma cidade que se mutilara e crescia, afastada família que vai cursar engenharia na USP. Ser de blecaute enquanto a capital do país era inau- do porto, irreconciliável com seu passado. A engenheiro era chave para largar o passado gurada. A ideia de futuro promissor se dissolve Zona Franca é tudo, menos Manaus. imigrante e virar classe média. Yaqub será no mormaço amazônico. Domingas esvazia a aquele que vai construir, em oposição a Omar, geladeira nova antes de cada blecaute para trans- Uma maneira de ler o livro é ver Manaus como que não faz nada e está estagnado em Manaus. ferir tudo para a velha, de querosene. A onda protagonista, não contexto ou pano de fundo. passou, chegou lenta a Manaus e, em vez de É ela que perpassa a história, a cidade em que A Segunda Guerra acentua a crise da cidade, trazer desenvolvimento, acentuou a estagnação. ninguém é de lá. Não há oposição entre quem com racionamento de energia e comida. Ma- está dentro e fora, pois todos são de fora. Mes- naus vive às escuras. Zana e Domingas costu- Perto do golpe de 1964 há já duas cidades, uma mo quando se reclama dos indianos, é só ques- mam esperar o carvoeiro e há referência a que muda na superfície e outra que permane- tão de quem chegou primeiro. Dois irmãos enlatados trazidos por aviões norte-america- ce. Omar aceita a ajuda de Yaqub, que de São retrata o duplo movimento de grandeza e de- nos. Essa informação situa a ação em período Paulo lhe envia produtos. A loja deixa de ser cadência de uma cidade. Daí a referência bi-

34 35 artigo por Ana Maria Daou a bela época de no século XIX, capital amazonense ganha novas feições com fluxo de investimentos e de pessoas manaus intensificado pelo ciclo da borracha

36 37 artigo

Ana Maria Daou é doutora em leciam na cidade como médicos, advogados, Na Amazônia, na segunda metade do século 1867 Antropologia, funcionários públicos, professores ou inter- XIX, nada pôde deter a “febre da seringa”, ou professora do marca a abertura Departamento mediários no comércio junto às grandes firmas da borracha, objeto de severas críticas pelos da bacia do de Geografia da e companhias de navegação, enquanto os tra- setores já estabelecidos em face do abandono Amazonas ao Universidade Federal balhadores pobres, arregimentados sobretudo da agricultura e da pesca, com notável redu- comércio do Rio de Janeiro no Ceará, Maranhão e Piauí, passavam pela ção do volume comercializado de peles e gor- emblemática do empreendimento civilizador (UFRJ) e autora internacional capital, de onde iam para os seringais. duras animais, óleos vegetais, ervas diversas, sobre a floresta. Uma verdadeira cartografia do livro A belle époque amazônica castanha, cacau e peixes secos. A empresa da civilização se traduziu na suntuosidade dos (Zahar, 1999) A borracha, cientificamente denominada He- seringalista se ajustava aos ideais liberais, de edifícios-monumentos, no ajardinamento das vea brasiliensis, já era conhecida pelos europeus livre-comércio e enriquecimento e atendia praças, na amplitude das ruas e no casario desde o século XVIII, no registro de viajantes aos interesses de europeus e norte-americanos renovado. Não faltaram os asilos, os presídios a quem impressionavam as qualidades de im- em garantir o de acesso à matéria-prima prio- e os hospitais, espaços privilegiados para o permeabilização e inigualável elasticidade, ritária para suas economias industriais. Para exercício das intenções de controle sobre po- observadas nos usos que os nativos faziam do isso, foram significativas as medidas que, en- bres, doentes e desvalidos, bem como orfana- leite extraído do caule da árvore, o látex. Sua tre 1850 e 1870, alteraram o quadro de isola- tos que, na capital, se ocupariam das crianças período que compreende os anos aplicação industrial se faria cada vez mais sig- mento do vale do Amazonas, a começar pela indígenas chegadas do interior na proporção 1880 e se estende até a Primeira nificativa atrelada aos recursos tecnológicos criação da província do Amazonas, nova uni- em que avançava a exploração dos seringais. Guerra Mundial veio a ser co- que propiciaram a estabilidade do produto e dade administrativa, desmembrada do vasto nhecido como “bela época”, ex- potencializaram suas qualidades como subs- domínio do Grão-Pará. Mecanismos legais tanto promoveram o con- pressão da euforia e do triunfo tância isolante por excelência. Bem antes da trole do espaço urbano quanto orientaram a o da sociedade burguesa, das con- invenção dos automóveis a combustão, a no- Entre 1890 e 1912, grande parte da riqueza expansão da cidade para as novas áreas que quistas do progresso tecnológico e da dissemi- vidade dos silenciosos pneus de borracha foi propiciada pela exportação da borracha no adentravam a mata, em relativo abandono do nação de novos valores que transformariam usada em veículos de tração animal e nas mo- Pará e no Amazonas foi revertida no embele- rio. O Código de Postura, de 1893, restritivo profundamente sociedades por inteiro, sendo, dernas bicicletas. Luvas de borracha favore- zamento das capitais, no pagamento dos po- em relação aos hábitos vigentes, afastou os por todo o planeta, as cidades o lugar onde as ceram a assepsia médica e os preservativos sem líticos locais e do funcionalismo que ali vivia. moradores pobres, e as casas de madeira e mudanças se fizeram de modo grandiloquente. costuras longitudinais dificultavam a trans- O engenheiro Eduardo Ribeiro (1892-1896) palha, mais frágeis, indesejáveis em uma ci- Para falar de Manaus na belle époque, é preciso missão de doenças venéreas. Assim, a falta da promoveu a transformação definitiva de Ma- dade sonhada que espelhasse o progresso e a balizar medidas sociais, políticas e econômicas “maravilhosa substância” seria um transtorno naus. Mobilizou recursos financeiros, conhe- ordem pretendidos, foram demolidas. O novo que favoreceram a inserção de regiões remotas “para as mais essenciais condições de existên- cimento técnico e uma ampla rede de articu- regime renomeou ruas e praças, e apenas em do planeta, como a Amazônia, nos fluxos globais cia dos povos civilizados: a comunicação elé- lação que propiciou a convergência dos alguns casos foi mantida a toponímia alusiva associados à expansão das economias industriais. trica a grande distância e o telégrafo por cabo interesses da elite política e comercial. A ci- aos nomes indígenas de antigos habitantes do submarino ficariam definitivamente interrom- dade e sua transformação se constituíram em sítio urbano, como a rua dos Barés. Em 1867, a abertura da bacia do Amazonas ao pidos sobre a superfície do globo”, nos termos um grande investimento material e simbólico comércio internacional foi efusivamente co- de um jornalista norte-americano em artigo que proporcionou aos olhos dos que ali viviam Os vapores que ancoravam no porto voltavam memorada em Manaus e Belém. No final da publicado no Álbum do Pará, de 1908. a superação de um atraso histórico e se tornou carregados de novíssimos materiais de cons- década seguinte, em Manaus, era visível o trução, o que favoreceu o ritmo acelerado das movimento de chegada de mercadorias e pas- obras e a montagem do cenário da belle époque: sageiros, entre eles ingleses, franceses, espa- estruturas de ferro, bancos, quiosques e todo nhóis, alemães, italianos, árabes e judeus do o mobiliário urbano utilizado nos espaços para norte da África, além dos portugueses já pre- onde afluiria o público, como as praças remo- sentes de longa data. Igualmente numerosos, deladas, com coretos e quiosques, postes de brasileiros para lá se deslocaram no exercício iluminação. Apareciam também nos gradis das mais distintas ocupações. Em geral, che- das escadarias dos sobrados, palacetes e prédios gavam homens, jovens e solteiros para os quais administrativos, nos portões do teatro, nos o casamento significou sua inserção definitiva pavilhões do mercado público ou na escadaria na cidade animada pela crescente exportação da Biblioteca Pública. Das reformas na cidade, de borracha. Os mais qualificados se estabe- além dos engenheiros e técnicos da superin-

38 39 artigo

a bebida e a prostituição satisfaziam homens Teatro Amazonas de negócios, viajantes, trabalhadores exauridos e solitários dos quais se ocupavam as mulheres se consagraria que animavam as noites e ameaçavam a moral e os bons costumes da elite endinheirada, fre- como o símbolo mazés da Turquia, Joalheria Pelossi, Photo- quentadora dos saraus musicais, banquetes, edifício do teatro se impôs na paisagem urba- grafia Allemã, Confeitaria Avenida, London bailes e das apresentações da lírica no Teatro na. A cúpula colorida que tanto acentuava o mais acabado da Bank, os escritórios da Booth Line ou da frota Amazonas, quando não estava nas viagens tran- tamanho e a monumentalidade do edifício da Hamburg Südamerikanische. satlânticas para Lisboa, Londres ou Paris. passou a capturar o olhar do forasteiro que Manaus modernizada chegasse ao ancoradouro do rio Negro. Linhas de bondes garantiriam a circulação en- Implantado “a mil e seiscentos quilômetros tre os novos bairros e o antigo centro comercial, acima da foz do Amazonas, em meio à flores- Além de sala de espetáculos, o teatro foi o que se manteve estreitamente vinculado ao ta equatorial primitiva [...]”, o Teatro Ama- grande salão da belle époque, ponto de encon- movimento dos navios, embarcações, cobertas zonas teve reiterado seu valor de “catedral tro da elite em seu círculo ampliado de polí- e canoas que geravam a efervescência da vida característica da cultura burguesa”2 quando ticos, magistrados, negociantes, representan- tendência, participaram artistas italianos, ar- social que animava as ruas em torno do anco- as casas de ópera se tornaram “templos pro- tes das casas comerciais, estrangeiros e quitetos, pintores, escultores e decoradores radouro do rio Negro. Ali, os referenciais des- fanos” e mobilizaram o esforço de indivíduos brasileiros, homens e mulheres que partici- que, desde o final dos anos 1870, haviam atua- critos para a pequena cidade de meados do e governos na construção desses espaços, va- pavam de bailes e banquetes ali realizados. do nas reformas na catedral e do Teatro da Paz. século se mesclavam com os fluxos da moder- lorizados por seus fins educativos e enobre- Estar no teatro implicava uma atenção simul- Tiveram presença garantida em Manaus, des- nidade próximos ao Mercado Público, amplia- cedores do espírito. tânea de observador e de observado, e, no tino final dos navios da companhia de nave- do e renovado, nas cercanias da matriz, da foyer ou salão nobre, situado no último andar, gação Ligure Brasiliana, que, subvencionada igreja de Nossa Senhora dos Remédios ou pra- A construção do Teatro Amazonas – que se o público era convidado a desfilar sob o olhar pelo governo, garantiu a chegada dos revesti- ça, remodeladas e ajardinadas. Dia e noite, no consagraria como o símbolo mais acabado da das figuras mitológicas representativas das mentos, adereços e materiais diversos utiliza- embarque da borracha, no esvaziamento dos Manaus modernizada – foi favorecida pelas artes no Amazonas, pintadas no teto do salão. dos nas obras de acabamento do Teatro Ama- navios carregados de mercadorias para os gran- circunstâncias que orientaram investimentos zonas, onde atuaram também os artistas des armazéns, circulavam os estivadores, os financeiros e esforços materiais para sua edi- A partir de 1911, a entrada no mercado da pro- brasileiros. E, é claro, nos navios oriundos do carregadores ou aqueles que conferiam e sele- ficação, decoração, seleção da programação. dução dos seringais cultivados no Sudeste Asiá- porto de Gênova, vinham os cantores respon- cionavam borracha a ser embarcada. Não eram Depois de inaugurado, o edifício assumiria as tico acabou com o monopólio da produção sáveis pela lírica a ser privilegiada no Teatro desprezíveis os que chegavam em pequenas funções de novo templo mundano na socie- brasileira e inviabilizou a exportação da borra- Amazonas, inaugurado no final de 1896. embarcações carregadas de víveres, peixe, fru- dade da belle époque, como casa de ópera, um cha da Amazônia. Sem a pujança dos anos 1910, tas e farinhas, e atracavam na rampa do mer- dos notáveis objetos de mundialização da a paisagem urbana manteve-se fiel ao projeto No estilo das moradias de políticos, profissio- cado depois de terem descido os grandes rios cultura do período, e como espaço privilegia- da belle époque, mas a cidade, em franco dis- nais liberais e negociantes, situadas nas ruas em busca da modernidade, do conforto e dos do de afirmação da ordem republicana, em tanciamento das disciplinas excludentes quan- recém-abertas, o acabamento em azulejo e prazeres que a cidade oferecia. Nos hotéis de franca evocação no colorido da cúpula que to ao uso do espaço urbano, forçosamente abri- ancorado nos padrões portugueses esteve me- luxo, nas casas de diversão, nos bares e bordéis, encima o edifício. No alto da nova avenida, o garia parte dos inúmeros trabalhadores que, nos visível em prol da “italianização” das fa- retornados dos seringais falidos, chegavam chadas, onde materiais pré-fabricados, fron- tomados pelas doenças ou sem recursos. Nos tões e brasões com monogramas as anos 1920, sem a febre da seringa, foram reto- singularizavam1. No centro comercial, o ecle- madas atividades agrícolas e extrativistas, mas 1. Derenji, Jussara. Arquitetura nortista, tismo das lojas, cafés, ourivesarias, agências a falência dos seringais continuou e a cidade a presença Italiana bancárias, restaurantes e hotéis também se passou a se expandir de outra maneira. No por- no início do século XX. Manaus: Secretaria de apresentava, e a diversidade do conjunto evo- to, outros fluxos interrompidos pela Primeira Estado e Cultura, 1998 cava a ascendência de seus proprietários, a Guerra foram retomados, propiciando a vinda 2. Hobsbawm, Eric. especialização dos negócios ou as ambições de indivíduos que haviam permanecido na ter- A era dos impérios afinadas com a notável expansão do comércio é o período ra de origem ou o retorno de jovens, filhos de –1875-1914. Rio 1890-1912 de pujança de Janeiro: Paz europeu: O Novo Mundo, High Life Bar, Clube brasileiros e estrangeiros radicados em Manaus, e Terra, 1994. p. 53 dos Terriveis, A la ville de Paris, Grandes Ar- econômica gerada pelo ciclo da borracha que haviam saído em viagens e estudos.

40 41 artigo por lúcia Sá

Mes mo antes das primeiras publicações no século XIX, região já reunia línguas e culturas milenares e narrativas sofisticadas

42 43 artigo

As primeiras publicações extensas Lúcia Sá de narrativas ou cantos indígenas é professora de da Amazônia datam do século XIX Literatura e Cultura e incluem a Poranduba amazonen- Brasileiras na a floresta amazônica Universidade de se, de Barbosa Rodrigues (1890), e Manchester A lenda de Jurupari (1890), publi- provocou um fascínio (Inglaterra). Autora do cada em italiano por Ermanno livro Literaturas da Stradelli. Ambos os textos foram ponto: sem as narrativas amerín- que algumas vezes floresta: textos inicialmente recolhidos em nheen- dias da região do Amazonas, o mo- amazônicos e cultura latino-americana gatu pelo tariana Maximiano José dernismo de 1922 não teria duas de se traduziu em horror (Eduerj) Roberto na região plurilíngue do suas obras mais importantes, e a Alto Rio Negro. A essas coleções literatura brasileira não teria o di- e outras em êxtase devem-se acrescentar, já em prin- visor de águas que foi Macunaíma. cípios do século XX, as Lendas em Mas não é só isso: as Lendas em nheengatu e português (1928), de nheengatu e português deveriam, a sua coleção de Antonio Brandão do Amorim, tam- por seus próprios méritos, integrar textos sobre a Ama- bém oriundas das transcrições o panteão modernista, pela lingua- vorado pela selva. Mas a imagem teve um destino muito distinto, zônia, publicada de Maximiano José Roberto, e o gem deliciosamente lírica e brin- infernal da Amazônia nesses au- sendo ignorada pela maior parte postumamente com segundo volume da coleção Do calhona da tradução de Amorim e tores não se deve apenas à imen- das histórias literárias nacionais. O o título Às margens Roraima ao Orinoco (1917), publi- pelas histórias, que levam a comu- sidão da floresta: está também ambiente amazônico que se revela n da história (1909), cado em alemão por Theodor nicação entre humanos e animais relacionada à violência e explora- na obra de Jurandir é, no geral, es- Euclides da Cunha declarou que a Koch-Grünberg. Essas duas últi- a um nível muito mais profundo ção humana causadas pelo comér- téril e melancólico: personagens Amazônia era um território pouco mas obras exerceram um papel do que o das fábulas europeias. cio da borracha em fins do século sem visão de futuro ou perspectiva, propício à ocupação humana.1 De- muito importante no modernismo XIX e princípio do XX. A Amazô- imersos em ambientes urbanos de- duz-se dessa observação que a brasileiro de 1922: foi no livro de À parte e independentemente das nia se torna, assim, nessas obras, cadentes, onde a água que carac- Amazônia seria também um ter- Koch-Grünberg que Mário de An- narrativas indígenas, a floresta palco de injustiças sociais a serem teriza a natureza fluida da Amazô- ritório sem literatura ou, ao menos, drade foi buscar o herói e grande amazônica provocou, desde o seu denunciadas. De um lado, está a nia aparece quase sempre descrita um território onde a ocorrência parte das tramas e subtramas de primeiro contato com os europeus, riqueza extrema dos seringalistas, como charco, pântano, estagnação de literatura não passaria de um Macunaíma (1928). E as lendas de um fascínio que algumas vezes se alimentando excessos e deprava- – como se pode ver, por exemplo, acidente ou anomalia. Mas a Ama- Brandão do Amorim, além de in- traduziu em horror e outras em ções; do outro, a escravização de no seu primeiro romance, Chove zônia, ao contrário do que nos fluírem, também, em Macunaíma, êxtase; em sensações de pavor e indígenas e a semiescravização nos campos de Cachoeira (1941). queria fazer crer Euclides da tiveram um papel decisivo na com- de prazer, não raro simultâneas, dos seringueiros nordestinos, que Cunha, já era, muito antes da che- posição de Cobra Norato (1931), de ligadas às dimensões exageradas migraram para a região na espe- A partir da década de 1970, a aná- gada dos europeus, habitada por Raul Bopp. Convém enfatizar este da floresta, ao seu imenso núme- rança de fazer fortuna mas termi- lise social da Amazônia ganha uma centenas de povos com línguas e ro de animais e plantas (muitos naram vítimas da exploração, das voz irônica na obra do amazonen- culturas milenares e tradições de deles desconhecidos) e à estra- doenças e da miséria. se Márcio Souza. Galvez, impera- cantos e narrativas sofisticadas e nheza (do ponto de vista europeu dor do Acre (1976), o seu romance complexas que certamente podem ou europeizado) das culturas que A literatura social da Amazônia, mais bem-acabado, exibe uma ser descritas como literatura, des- a habitavam e habitam. É o que se inaugurada pelo ciclo da borracha, veia satírica com traços de humor de que a nossa definição de “lite- pode ver tanto em escritores que tem continuidade com a obra neor- machadiano e oswaldiano. Galvez ratura” seja aberta o suficiente apenas estiveram na Amazônia na realista do paraense Dalcídio Ju- narra, em tom de farsa, a revolu- para incluir as artes verbais. Nos condição de viajantes, como Eu- randir, que retrata o período de ção acriana liderada pelo espanhol parágrafos seguintes, vou discor- clides da Cunha, quanto de auto- decadência e penúria que se seguiu Luis Galvez no final do século XIX. rer brevemente sobre algumas res que viveram na região, como à desvalorização da borracha no Mad Maria (1980), seu segundo tendências da literatura da Ama- Alberto Rangel, autor de Inferno cenário econômico mundial a par- romance, trata da Madeira-Ma- zônia, sem nenhuma pretensão de verde (1908), e até mesmo em es- tir da segunda década no século moré, a malfadada tentativa de esgotar o assunto ou fazer jus ao 1. Cunha, Euclides da. critores de lá oriundos, como In- XX. A obra de Jurandir, embora construir uma estrada de ferro no À margem da história. imenso número de obras produ- São Paulo: Lello, 1967. glês de Souza, cujo protagonista comparável à de regionalistas nor- atual estado de Rondônia para zidos na/sobre a região. p. 12. em O missionário (1888) acaba de- destinos como José Lins do Rego, escoar a borracha.

44 45 artigo

é habitada por personagens que parecem sempre recém-chegados ou prestes a partir, insatisfeitos povos indígenas amazônicos com uma vida urbana frequente- mente descrita como culturalmen- vêm se empenhando em te estagnada, ou por relações fa- miliares e sociais opressivas. publicar, nos últimos 15 Grandes casarões do passado apa- Cristiano Waipichana). Um dos recem em seus romances roídos livros mais impressionantes a anos, as próprias narrativas por fungos e sendo destruídos, aos emergir desse cenário é A queda poucos, por goteiras, como se a do céu (2015), publicado inicial- floresta estivesse sempre a ponto mente em francês pelo pajé ia- de reocupar a cidade. É uma ima- nomâmi Davi Kopenawa (em Mas não poderíamos falar da Ama- gem urbana que não deixa de se tagonista é paralisado pela paixão parceria com o antropólogo Bru- zônia brasileira sem mencionar os assemelhar, em muitos aspectos, doentia por uma órfã indígena. Essa ce Albert). Kopenawa revela no seus grandes centros urbanos: Be- à Belém de Jurandir. Mas Hatoum, paixão destruidora, que nunca se livro a concepção de mundo ia- lém, uma das cidades mais impor- que é criador de matriarcas feno- materializa porque a jovem, Di- nomâmi, contrastando-a com a tantes do período colonial e capi- menais, descreve de forma admi- naura, pertence mais à dimensão concepção de mundo daqueles tal de um país autônomo que rável as sutilezas da malha social do sonho do que à da realidade, é a quem ele chama de brancos. resistiu a fazer parte da nação bra- amazonense, como é o caso do alimentada pelas histórias contadas Contrariando a visão euclidiana sileira após a independência (um narrador testemunha de Dois ir- pela mulher que o ajuda a criar, Flo- da floresta inabitada à espera de capítulo pouco comentado da nos- mãos (2000), figura tão brasileira rita – histórias que têm uma im- ser colonizada e civilizada pelo sa história oficial); e Manaus, a na sua indefinição entre persona- portância estética e estrutural no Estado-nação brasileiro, o livro cidade surgida no meio da selva gem de dentro e de fora, neto e romance. Mas ao final descobre-se de Kopenawa vem ressaltar o com a ascensão econômica da bor- empregado, bastardo e herdeiro. que as histórias tinham sido inven- papel fundamental dos habitan- racha e definida justamente pela As culturas indígenas amazonenses tadas por Florita, e o lastro da he- tes originais da Amazônia na de- opulência oriunda do látex (veja-se, nunca chegam a ocupar uma po- rança indígena se esvai, converte-se fesa da floresta e, com ela, do como exemplo, o seu mais conhe- sição central nos seus romances, em mentira, em invenção. planeta onde vivemos. cido monumento, o Teatro Ama- mas estão sempre por perto, mar- zonas) e pela presença marcante ginalizadas, relegadas ao quarto da Entretanto os povos indígenas ama- do rio, da floresta e das culturas empregada/amante/mãe nos fun- zônicos, que continuam resistindo, indígenas. Belém serve de cenário dos da casa, aos orfanatos ou às admiravelmente e contra todas as para vários dos romances de Ju- palafitas da cidade flutuante. E mal previsões, às mais variadas tenta- randir, e tanto Belém quanto Ma- poderia ser de outra forma, já que tivas de aniquilação por sucessivos naus aparecem também na obra os romances e contos de Hatoum governos brasileiros, vêm se em- histórica de Souza, mas é com Mil- tendem a ser narrados desde o pon- penhando em publicar, nos últimos é o ano em que ton Hatoum que o cenário urbano to de vista de personagens mascu- 15 anos, as próprias narrativas. É o 1890 surgem as amazonense entra, através de Ma- linos com ascendência libanesa e/ caso da Federação das Organizações naus, definitivamente, para o ima- ou europeia, que vêm o indígena Indígenas do Rio Negro, uma en- primeiras publicações da ginário da literatura brasileira. como um um outro misterioso e tidade de caráter político cujas ini- literatura amazonense vagamente assustador. Uma apa- ciativas incluíram a edição de vários A Manaus de Hatoum é caracteri- rente exceção seria o romance Ór- volumes de cosmogonias e histórias zada pela impermanência humana: fãos do Eldorado (2008), cujo pro- de diferentes grupos do Alto Rio é o ano da imigrantes libaneses, chegados há Negro. É o caso também de escri- 1980 publicação pouco mais de uma geração, con- tores individuais indígenas que vivem com indígenas desterrados começam a surgir por todo o Bra- de Mad Maria, romance de e outros imigrantes. Em vez de ser sil, incluindo-se, é claro, a Ama- Márcio Souza sobre a construção um espaço de retenção, um settle- zônia (veja-se, por exemplo, a obra da estrada de ferro Madeira- ment, a cidade das obras de Hatoum prolífica de Daniel Mundurucu e Mamoré

46 47 entrevista com Fábio Moon e Gabriel Bá em dobro

Artist as gêmeos transpõem Dois irmãos 2 para a linguagem de HQ em quatro anos de trabalho

48 49 entrevista

Como se deu o processo de adaptação de idade em certa época, quando ele nasceu mais Dois irmãos para quadrinhos? ou menos, mas no quadrinho nós tínhamos de Fábio Moon – Li o livro quando ele saiu. Oito imaginar o narrador em cena. Isso nos ajudou a primeira anos depois, o editor da Companhia das Letras a definir como estruturar a história. Há as ce- viu o Bá, eu e o Milton conversando num fes- nas em que o narrador viu acontecer alguma coisa que omo transformar em quadrinhos tival literário: “Ah, por que não fazem uma coisa, outras em que ele está com o Halim, no uma trama complexa, cheia de adaptação do livro do Milton, que tem dois topo da loja ou num bar na cidade flutuante. E fizemos foi nuances e ambientada numa cida- gêmeos que nem vocês e tal? Pode ser legal”. aí foi ler e reler o livro para entender: “Esta de a milhares de quilômetros e em A princípio, tentei me desviar um pouco, por- cena está acontecendo ali, então podemos separar as outra época? O que parecia uma que sabia que o livro era complexo. Mas aí mostrá-la desse jeito; esta está acontecendo c série de impeditivos foi o que mo- fomos ler o livro de novo, e a gente viu que em outro momento, e a gente mostra assim”. linhas de tivou os gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá a todas as dificuldades de fazer uma adaptação A gente manteve esse caráter não linear da encarar a empreitada de adaptar o romance Dois em quadrinhos seriam os desafios a nos mo- história, de ir para a frente, ir para trás, mas narrativa irmãos para HQ. A proposta surgiu de um en- tivar. Se conseguíssemos transpor toda essa deu uma reorganizada nela. Porque vai ter um contro casual com o autor Milton Hatoum num complexidade narrativa de camadas da histó- quadrinho em que aparece o Halim, só que ele g abriel bá evento literário. ria, num vai e volta no tempo, e acrescentar estava falando de uma coisa que aconteceu O desafio aceito significou quatro anos de tra- uma camada visual, ia ser muito legal. Era um havia muito tempo e a gente vai e volta também balho para produzir o livro de 232 páginas, lan- negócio que não se vê muito em quadrinhos. no quadrinho. Essa camada visual deixa as çado em 2015 pela Quadrinhos na Companhia coisas um pouco mais claras do que quando, das Letras. O resultado da obra rendeu à dupla No livro, o autor entrega informações aos no mesmo parágrafo, você muda três vezes de o prêmio Eisner, considerado o Oscar dos qua- poucos. Como lidaram com isso? tempo na história. Mas é difícil, precisa de drinhos, na categoria “melhor adaptação de Gabriel Bá – O estilo de escrita do Milton é muitas leituras para conseguir ter essa clareza, outro meio”, em 2016. esse emaranhado que vai dando informação, passar do estágio de leitor para começar a veja mais na versão digital Os autores contaram como foi o processo de volta um pouco no tempo, dá outras informa- desconstruir a história e poder reconstruir. app.cadernosglobo.com.br adaptação aos jornalistas Paulo Jebaili e Luiz ções, vai para a frente. Uma hora é o narrador Costa Pereira Junior, na conversa a seguir. refletindo, outra é alguém contando algo para ele, outra ele lembra de alguma coisa. É mui- to, digamos assim, o interior dos personagens. A primeira coisa que fizemos foi separar essas linhas de narrativa. Separar o narrador, que tem de ser colocado em cena. No livro, você percebe a existência do narrador mais para a frente, só que ele nunca aparece, não tem ne- nhuma descrição física dele, você sabe sua

Fábio moon e gabriel bá são quadrinistas com obras publicadas em países como EUA, França, Espanha e Itália. Pela adaptação de O alienista, receberam o Prêmio Jabuti de melhor livro didático e paradidático para ensino médio ou fundamental (2008). Vencedores do Eisner Awards duas vezes

50 51 entrevista

Quanto tempo passaram produzindo a HQ? FM – Quatro anos. Nos dois primeiros, a gente só ficou lendo e relendo o livro, fazendo resumos para entender o que acontecia com qual per- sonagem e com qual consequência; como fun- cionava a trama que se passava durante 60 anos da história brasileira, entendendo tudo crono- logicamente para depois voltar a contar fora de uma ordem cronológica, como é no livro. Nes- se meio-tempo, os cadernos tanto eram resu- mos de cada capítulo como listas para enten- der quantos personagens e quantos lugares teríamos de criar visualmente. Logo no pri- meiro ano, passamos uma semana em Manaus para entender o universo da história e ver como a cidade tinha mudado. Depois, fizemos uma pesquisa pela internet para ver como era Ma- naus antes. O Milton emprestou uns livros, compramos outros. Por ser visual, na história nos dois em quadrinhos, mais até do que o romance, a cidade é uma personagem muito forte, a mu- primeiros anos, dança da cidade é muito clara. Então fizemos uma pesquisa muito grande nesses dois pri- fizemos uma meiros anos e depois começamos a trabalhar no roteiro mesmo, que é um roteiro visual grande pesquisa página por página, se vão ser mais ou menos pedimos dicas de lugares, de pessoas para con- Em quais países o livro foi traduzido? os quadrinhos e o que cabe de texto em cada versar. Mais para a frente, quando íamos co- FM – Saiu na França ao mesmo tempo em que e depois fomos um deles. Assim dá para enxergar o tamanho meçar a desenhar, fomos mostrar os persona- saiu no Brasil. Depois, no mesmo ano saiu nos do gibi, quantas páginas terá. A gente começou gens. Ele gostou de todos, menos da Zana, que EUA e na Itália. Este ano deve sair na Turquia, para o roteiro a desenhar antes de terminar o roteiro para é a mãe. A nossa ideia inicial da Zana era mui- e estamos negociando outras edições. conseguir ver o livro tomando forma. Esse é to mais uma matrona sensual, meio cigana, que f ábio moon um dos maiores incentivos quando você está não tinha nada a ver com a ideia que ele tinha. Antes, vocês transpuseram O alienista, de fazendo quadrinhos, porque demora tanto Sim, tinha de ser bonita, mas elegante, calma Machado de Assis. Quais as diferenças e tempo que você precisa ver alguma coisa físi- e tinha de conquistar o Halim e o leitor em vá- as similaridades nesses dois processos? ca para dizer “Está bom, um dia vou chegar rias épocas da vida dela. Aí ele mostrou umas FM – A similaridade é que nós gostávamos dos Vocês empacaram em alguma sequência, lá”. Os dois últimos anos do trabalho foram fotos de família dele, e o legal foi que elas batiam dois. Esse é o ponto de partida para fazermos sem uma solução visual? para terminar o roteiro e o desenho. O último com a pesquisa visual que estávamos fazendo. qualquer adaptação, gostar do autor e ter uma FM – Os cenários de O alienista nós inventamos ano foi praticamente só desenhando. Mulheres com descendência libanesa, década vontade de preservar aquilo. A ironia do texto com fins dramáticos. Era muito mais exagera- de 1920, Brasil, Manaus, batia com aquilo ali. O do Machado, aquele humor ácido do final do do para dar essa cara de loucura à história. Já O contato com o Milton Hatoum fez vocês visual pode transformar muito um personagem. século XIX, ou essa narrativa de fluxo de pen- pesquisar Manaus, os personagens, as roupas, mudarem alguma coisa? Quando o Milton explicou um pouco melhor o samento que tem no Dois irmãos e na obra do e criar a cara do livro para o Dois irmãos foi o GB – Tivemos poucos encontros com o Milton, conceito da Zana, o espírito da personagem, Milton em geral eram dois fatores que quería- que deu mais trabalho. Porque, no momento porque não queríamos sobrecarregá-lo. Não é conseguimos redesenhá-la e foi melhor para a mos transpor para os quadrinhos. O alienista em que começamos a desenhar e ver que es- porque ele é o autor vivo que ficaríamos o tem- história inteira. Depois, fizemos dois capítulos era um conto de 20 páginas e fizemos uma HQ tava funcionando, ficou mais fácil criar as pró- po todo perguntando: “Mas aqui você quis para levar o material ao festival em Angoulême, em quatro meses. Dois irmãos era um livro de ximas cenas, ficou mais fácil fazer os persona- dizer o quê? Isso aqui significa o quê?”. Nós na França, e mandamos para ele ver. Fizemos mais de 200 páginas, virou uma HQ de mais gens envelhecerem durante a história. Mas confiamos na nossa interpretação da história e mais dois quando fomos para Frankfurt, na de 200, que fizemos em quatro anos. Nós fala- entender tudo para conseguir criar visualmen- ele deu liberdade para fazermos a história do Alemanha. Depois desses quatro capítulos, ele mos: “Não dá para ter prazo, tem de ser no te foi o que deu trabalho, muito mais do que jeito que a enxergávamos. Para visitar Manaus, só viu o livro pronto, um ano e meio depois. tempo que levar para ficar bom”. em qualquer outro gibi que fizemos antes.

52 53 Isis Valverde O Canto da Sereia, 2013

56

na 74 gale Uma obra, várias formas várias obra, Uma brasileiras Letras

riaA arte de recriar nas telas de cinema e da televisão e nos palcos a força da imaginação e a qualidade das obras que marcaram a literatura no Brasil galeria

A seguir, uma lista de produções adaptadas de livros de autores brasileiros que ganharam as telonas, as telinhas, os palcos e outras páginas

a palavra escrita para o audiovisual, são vários os exemplos de histórias recontadas sob novas perspectivas. A teledramaturgia está repleta de casos de adaptações literárias. Só no acer- vo da TV Globo, são mais de 200 produções. Neste bloco do Caderno, há uma compilação uma obra, d dessas obras, que contou com a colaboração dos consultores Mauro Alencar e Elmo Francfort.

A galeria a seguir expõe adaptações em vários meios (filmes, peças teatrais, e HQs) que tiveram como ponto de partida uma obra impressa de um autor brasileiro. Por esse critério, ficaram de fora versões televisivas consagradas, várias como, por exemplo, Auto da Compadecida, de Ariano Suas- suna, e O bem amado, de Dias Gomes, por serem original- mente obras teatrais, e Os Maias, do escritor português Eça de Queiroz. Na sequência, uma linha do tempo relembra

Sônia braga, mais de 60 títulos, entre novelas, minisséries e seriados, que gabriela, ajudaram a construir a história da televisão brasileira. formas 1975

56 57 galeria

O romance Gabriela, cravo e canela (1958), de Jorge Amado (1912-2001), é das obras literárias mais adap- Ninguém, no entanto, fala desse ano, tadas para outros meios. Só para a televisão foram três da safra de 1925 à de 1926, como o versões. A primeira foi ao ar em 1961, na TV Tupi, num ano do amor de Nacib e Gabriela, e, seriado de 40 capítulos dirigido por Maurício Sherman. mesmo quando se referem às peri- Em 1975, a TV Globo exibiu a adaptação de Walter Geor- pécias do romance, não se dão con- ge Durst (1922-1997) de 135 capítulos, com direção de ta de como, mais que qualquer outro Walter Avancini (1935-2001). A novela que eternizou acontecimento, foi a história dessa Sônia Braga no papel principal contou com cenas que doida paixão que o centro de toda a não estavam na obra original, mas entraram para a vida da cidade naquele tempo, quan- história da teledramaturgia brasileira. Caso da sequên- do o impetuoso progresso e as no- cia em que Gabriela sobe no telhado para recuperar uma vidades da civilização transforma- pipa sob olhares perplexos dos passantes (imagem de vam a fisionomia de Ilhéus. abertura desta galeria, na página 56).

Sônia Braga voltou a reviver a personagem em 1983, na versão cinematográfica do diretor Bruno Barreto. A Globo lançou a sua segunda versão da história em 2012, com 77 capítulos e Juliana Paes no papel-título. José Wilker (1946- 2014), que em 1975 interpretara Mundinho Falcão, jovem exportador de cacau que desafia a oligarquia dos coronéis, nesta adaptação aparece do outro lado da rivalidade política, na pele do coronel Jesuíno.

Em 2016, a história ainda ganhou os palcos, com Gabriela, um musical. Dirigido por João Falcão, o espetáculo escalou a cantora paraense Daniela Blois para o papel principal (ao lado). Na trilha, canções de Dorival Caymmi, Caetano Veloso e Milton Nascimento, entre outros.

Walter Avancini dizia que o mais jeitos de importante nas adaptações era manter a identidade do escritor. “Você pode criar histórias Gabriela paralelas que surjam de indicações do próprio autor. Jorge Amado mal cita Maria

Machadão, mas com base nisso g abriela, cravo e canela criamos a personagem de Eloísa jorge amado Mafalda, com mais espaço.” companhia das letras

58 59 galeria pimenta baiana

O livro A casa dos budas ditosos, de João Ubaldo Ribeiro (1941-2014), tornou-se um dos espetáculos mais bem-sucedidos na história recente do teatro brasileiro. O monólogo encenado por Fernanda Torres estreou em 2003 e, entre pausas e retomadas, levou mais de 350 mil espectadores às salas de teatro até 2016. Na peça, a atriz interpreta uma senhora baiana de 68 anos que relembra suas experiências sexuais sem pudores ou constrangimentos. A adaptação é de Domingos de Oliveira, que também assina a direção do espetáculo.

Não lembro onde li a respeito desses dois Budinhas, um macho e uma fêmea fazendo sexo, essas coisas milenares de chinês, nunca enten- do direito, misturo as datas, apron- to a maior confusão.

a casa dos budas ditosos joão ubaldo ribeiro objetiva

60 61 galeria o furacão hilda Em 1998, sete anos após o lançamento do livro do mineiro Roberto Drummond (1933-2002), vai ao ar a minissérie Hilda Furacão. Os 32 capítulos mostram a história da moça da sociedade que desiste do casamento e se torna uma disputada prostituta na zona boêmia de Belo Horizonte nas décadas de 1950 e 1960. A protagonista é vivida por Ana Paula Arósio, que mantém um romance com Malthus, jo- vem destinado à vida religiosa, interpretado por Rodrigo Santoro. O livro de Drummond (Siciliano, 1991) mistura fatos reais e ficção, e o próprio autor é personagem da história.

Todas as noites, menos às segundas-feiras, quando tomava destino ignorado, como di- ziam, uma fila começava na Rua Guaicurus, subia as escadas do Maravilhoso Hotel, che- gava ao terceiro andar, espremia-se pelo corredor e parava na porta do mitológico quarto 304, o dos fundos, gêmeo com o quar- hilda furacão to 303; era lá que Hilda Furacão fazia a lou- roberto drummond cura dos homens. geração editorial

quem conta um conto... horário clássico

As adaptações televisivas não se baseiam só em Nos anos 1970, a faixa das 18h foi marcada pelo predomínio romances. Há casos em que um conto foi o ponto de das adaptações literárias. Foi assim com Helena (Machado partida para a produção na TV. Exemplo é Vejo a lua no céu, de Assis), Senhora (José de Alencar), ambas de 1975; de Sylvan Paezzo, que foi ao ar em 1976, baseada no conto O feijão e o sonho (Orígenes Lessa), de 1976, e Memórias homônimo de Marques Rebelo (1907-1973), presente na coletânea de amor (de O Ateneu, de Raul Pompeia), de 1979. Os três caminhos (1933). Um caso recente é Êta mundo bom!, escrita A tendência seguiu até meados da década seguinte. por Walcyr Carrasco e Maria Elisa Berredo. Exibida em 2016, a novela Só em 1980 foram três novelas adaptadas no horário: teve como inspiração O comprador de fazendas, um dos 14 contos de Olhai os lírios do campo (Erico Verissimo), Marina Urupês, de Monteiro Lobato (1882-1948), publicado em 1918. (Carlos Heitor Cony) e As três Marias (Rachel de Queiroz).

62 63 galeria

– Vou dizer três adivinhas, se você descobre, te C onfronto deixo fugir. O que é que é: É comprido, roliço e perfurado, entra duro e sai mole, satisfaz o gosto da gente e não é palavra indecente? esclarecedor – Ah, isso é indecência sim! – Bobão! É macarrão! – Ahn... é mesmo! Engraçado, não? – Agora o que é que é: Qual o lugar onde as mulheres têm cabe- lo mais crespinho? – Oh, que bom! isso eu sei! é aí! – Cachorro! É na África, sabe! – Me mostra, por favor! – Agora é a última vez. Diga o que que é: Mano, vamos fazer Aquilo que Deus consente: Ajuntar pelo com pelo, Deixar o pelado dentro. E Macunaíma: – Ara! Também isso quem não sabe! Mas cá pra nós que ninguém nos ouça, você é bem senvergo- nha, dona! – Descobriu. Não é dormir ajuntado os pelos das pestanas e deixando o olho pela dentro que você está imaginando? Pois se você não acertasse pelo menos uma das adivinhas te entregava pra gulosa de minha mãe. Agora fuja sem escarcéu, serei expulsa, voarei pro céu.

RTO EIRO FILHINHA – Sabe, faz tempo que eu ando deso- cupada, de modo que hoje estou muito bondosa... Vou dizer duas adivinhas. Se você acertar as duas te deixo fugir pro meu quarto, tá? O que é o que é? Qual o lugar onde as mulheres têm o cabelo mais crespinho? MACUNAÍMA – É na África! Diretor do filme Macunaíma (1969), Joaquim dolfo Arena) é uma sucessão de confrontos FILHINHA – Bom, acertou. Agora uma mais Pedro de Andrade (1932-1988) achava que a com os constrangimentos da vida e do mun- difícil: O que é o que é? Mano vamos fazer / aqui- interpretação audiovisual é sempre legítima do. Na cena a seguir reproduzida, Macunaí- lo que Deus consente: / juntar pelo com pelo / – e discutível. Nada impede, dizia ele, que o ma é pego por Caapora, que quer prepará-lo deixar o pelado dentro? próprio confronto entre interpretações resul- como prato do jantar que ela terá ao lado MACUNAÍMA – Ah, isso é indecência! te esclarecedor. O contraste entre o clássico das filhas. A mais nova, curiosa, abre o em- FILHINHA – Bobo! É o olho quando vai dormir e de Mário de Andrade e o roteiro de cinema de brulho, de onde sai o herói. Muito bondosa, as pestanas fecham! Macunaíma é revelador. Na versão do diretor, porque “desocupada desde tempo”, ela pro- macunaíma MACUNAÍMA – Ah, é mesmo! Engraçado, não? a história de Macunaíma e seus irmãos (Gran- mete deixá-lo livre para brincarem (sexual- mário de andrade FILHINHA – Você errou, mas eu vou te levar pro de Othelo/Paulo José, Milton Gonçalves e Ro- mente) juntos, se ele acertar umas adivinhas. ftd meu quarto assim mesmo.

64 65 galeria reza a lenda

A velha Aninha benzia a morrinha do corpo. Bem velha era, mãe e avó de praieiros robustos. Sempre tivera força de fora, de cima, para as ma- nobras com os outros. De sua casa de palha saíam as orações, os seus benditos para a gente de perto e de longe. Ela sabia quando a lua vinha forte, quando as marés cresciam, quando a chuva tirava os peixes do mar. Velha sábia, de poderes estra- nhos, de coração duro.

Exibida em 1990, a minissérie Riacho Doce foi inspirada no romance de José Lins do Rego, de 1939, que dá nome a uma localidade imagi- nária de Alagoas. O tema central é a paixão que se estabelece entre Nô (Carlos Alberto Riccelli), um nativo da vila de pescadores, e Eduar- da (Vera Fischer), que chega ao local com o marido, Carlos (Herson Capri). No livro, o casal forasteiro vem da Suécia para lidar com ex- ploração de petróleo. Na adaptação de Aguinaldo Silva e Ana Maria Moretzsohn, os dois chegam do Sul do Brasil em busca de um navio naufragado. A personagem Aninha é rebatizada de Vó Manuela (Fer- nanda Montenegro), que faz rituais para fechar o corpo do neto Nô

ao amor das mulheres. No cinema, o romance virou Bela donna, diri- ri acho doce gido por Fabio Barreto, que também assina o roteiro com José Almino josé lins do rego e Amy Ephron, numa coprodução entre Brasil e EUA de 1998. best bolso

Obra literária inovadora, Grande sertão: veredas constrói uma mitologia sertaneja a partir da narrativa do ex-jagunço Riobaldo. Na aridez da paisagem, o personagem vê brotar seu amor pelo colega de tropa Diadorim. Riobaldo repri- me seu sentimento e só descobre que Diadorim Physique du rôle é mulher após a morte dela em batalha. Publi- Ela era. Tal que assim cado em 1956, o livro de Guimarães Rosa foi se desencantava, num encanto tão A liberdade na adaptação pode se manifestar já no tipo físico dos adaptado para a TV em 1985 por Walter George terrível; e levantei mão para me personagens. No romance policial de Rubem Fonseca Bufo & Spallan- Durst e Walter Avancini, que dirigiu a minissé- benzer – mas com ela tapei foi um zani (1985), o protagonista é Ivan Canabrava, um ex-professor e ex- rie de 25 capítulos, protagonizada por Tony Ra- soluçar, e enxuguei as lágrimas funcionário de uma companhia de seguros. Ao tornar-se escritor, mos e Bruna Lombardi. Em 1964, a obra inspi- maiores. Uivei. Diadorim! adota o nome artístico de Gustavo Flávio. No livro, descreve-se como rara uma versão cinematográfica do diretor Diadorim era uma mulher. um homem alto e corpulento: “[...] tenho um metro e noventa de altura Renato Geraldo Santos Pereira. A obra foi trans- Diadorim era mulher como o sol grande sertão: veredas e peso mais de cem quilos...”. Na versão cinematográfica do diretor posta para os quadrinhos por Eloar Guazzelli e não acende a água do rio Urucuia, joão guimarães rosa Flávio R. Tambellini (2001, 96 min.), é vivido por José Mayer, que não Rodrigo Rosa (Biblioteca Azul, 2014). como eu solucei meu desespero. NOVA FRONTEIRA tem exatamente a mesma compleição física de Ivan/Gustavo.

66 67 galeria rito de passagem L ançado em 1973, o livro As meninas, de Lygia Fagundes Telles, ganhou os palcos em 2010, quando foi adaptado por Maria Adelaide Amaral. Mais do que um quarto num pensionato em São Paulo, as personagens Lorena, Lia e Ana Clara dividem sonhos e impressões sobre o mundo que as cerca. A obra descreve o rito de passagem para a [...] todos eles batiam palmas, re- vida adulta no final dos anos 1960, no auge da ditadura forçando o novo ritmo, e não tar- militar. À época, Maria Adelaide explicou ter feito um dava Ana, impaciente, impetuosa, “trabalho de edição” da obra original. Antes, em 1995, o com o corpo de campônia, a flor livro havia sido adaptado para o cinema, em filme dirigi- vermelha feito um coalho de sangue do por Emiliano Ribeiro (1949-2011). prendendo de lado os cabelos negros e soltos, essa minha irmã que, como eu, mais que qualquer outro em casa, trazia a peste no corpo, ela varava então o círculo que dançava e logo eu podia adivinhar seus pas- – Mas nossa música não me comove, sos precisos de cigana se deslocan- querida. Se os seus baianos dizem que do no meio da roda, desenvolvendo estão desesperados, acredito, acho com destreza gestos curvos entre ótimo. Mas se vem John Lennon e diz as frutas, e as flores dos cestos... a mesma coisa, então vibro, fico mís- tica. Sou mística. as meninas lygia fagundes telles palavras companhia das letras e imagens

A versão cinematográfica deL avoura arcaica não seguiu um roteiro de adapta- ção convencional. No livro Sobre o filmeL avoura arcaica (Ateliê, 2002), o dire- tor Luiz Fernando Carvalho conta como se deu a transposição da obra de Ra- duan Nassar, publicada em 1975, para as telas: “Primeiro eu li o Lavoura... e visualizei o filme pronto, quando eu cheguei no final, eu já sabia o filme – eu ti- nha visto um filme, não tinha lido um livro. Porque aquela poética é de uma ri- queza visual impressionante, então eu entendi a escolha daquelas palavras que, para além dos seus significados, me propiciavam um resgate, respondiam

à minha necessidade de elevar as palavras a novas possibilidades, alçando l avoura arcaica novos significados, novas imagens. Tentei criar um diálogo entre as imagens raduan nassar das palavras com as imagens do filme”. companhia das letras

68 69 galeria sa ga gaúcha O tempo e o vento foi uma minissérie criada a Compreende o período de 1777 a 1895 e, por partir da trilogia de livros O continente (1949), meio da saga da família Terra Cambará, faz O retrato (1951) e O arquipélago (1961), do uma narrativa da história política, social e escritor gaúcho Erico Verissimo (1905-1975). culturaldo Rio Grande do Sul. Uma segunda A produção, que foi ao ar em 1985, adaptou versão foi ao ar em 2014, com três capítulos, os sete capítulos do primeiro livro (A fonte, baseada no longa-metragem do diretor Jay- Ana Terra, Um certo capitão Rodrigo, A tei- me Monjardim, que havia sido exibido nos niaguá, A guerra, Ismália Caré e O sobrado). cinemas no ano anterior.

Rodrigo não podia esconder seu orgulho e sua sa- tisfação por ter um filho macho. Brincava com a criança como uma menina brinca com sua boneca e às vezes não podia deixar de dar voz à sua impa- ciência diante do fato irremediável de que a crian- ça levaria anos para crescer, fazer-se homem e A minissérie exigiu uma fala atualizada poder chegar à idade de botar pistola e espada na estrutura de grande produção cintura e sair a burlequear pelo Continente. em 1985. Foram 5 mil Com 121 anos de diferença, a adaptação para o cinema RTO EIRO profissionais envolvidos, em seis de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Cemitério. Dia chuvoso. Brás Cubas dentro de um meses de trabalho, para levar Assis, é marcada por mudanças na linguagem. Logo na caixão. Fecham o caixão e começa a sair o féretro os 25 capítulos ao ar. As cenas cena de abertura, há a supressão de palavras como “in- com umas 10 pessoas acompanhando, guarda- de batalha exigiram cem galões troito” e a substituição de termos como “campa” por “se- chuvas abertos. Vemos o rosto de Brás dentro do de sangue cenográfico, além da pultura” e de “Pentateuco” por “Bíblia”. Dirigido por André caixão (câmera dentro do caixão). O caixão per- minuciosa reprodução de Klotzel, que assina o roteiro, com diálogos de José Roberto corre o cemitério e chega a uma cova aberta. VIR- uniformes e armamentos. Foram Torero, foi lançado em 2001 (o livro é de 1880). GÍLIA em especial destaque durante o percurso. o tempo e o vento mais de 3 mil trajes de época e erico verissimo mais de 200 armas e punhais FANTASMA (off) – Normalmente se começa a companhia das letras confeccionados para as cenas. contar uma história pelo nascimento, mas eu re- solvi fazer o contrário por dois motivos.

Algum tempo hesitei se devia abrir essas memórias O caixão é posto no solo. Num corte para plano pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em pri- geral, vemos a cena do enterro ao fundo, enquanto meiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. o Fantasma de Brás, pálido, fala em primeiro plano. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimen- to, duas considerações me levaram a adotar dife- FANTASMA – O primeiro é que, como eu ressus- rente método: a primeira é que eu não sou propria- citei para ser o autor destas memórias, eu não sou mente um autor defunto, mas um defunto autor, um autor defunto, mas um defunto autor. Para mim para quem a campa foi outro berço; a segunda é a sepultura foi outro berço. O segundo é que a his-

memórias póstumas que o escrito ficaria assim mais galante e mais tória fica renovada e moderna. Moisés, que também de brás cubas novo. Moisés, que também contou a sua morte, contou a sua morte na Bíblia, começou pelo nas- machado de assis não a pôs no introito, mas no cabo; diferença ra- cimento e não pela morte. Aliás, esta é uma dife- saraiva dical entre este livro e o Pentateuco. rença radical entre a minha história e a Bíblia.

70 71 galeria

Exibida em 1978, Maria, Maria se passa numa região de garimpo de diamantes na Bahia, em 1860. Baseada no livro Maria Dusá, de Lindolfo Rocha, a novela de Manoel Carlos conta a história de duas irmãs gê- meas que só se conhecem na idade adulta. Foi a primeira produção da Globo em que uma atriz viveu dois papéis na trama. Nívea Maria interpretou a rica Maria Dusá e a reti- rante Maria Alves. Abaixo, o encontro das personagens no livro, publicado em 1910.

Vestia de branco, tinha os cabelos em parte soltos, parte em bandos elegantes. Sua presença desarmou a antipatia de Dusá, que se não conteve de exclamar, sorrindo: — Como é bonita! — Isso é mangação! retorquiu a moça. A se- o tempo nhora é que é bonita. — Não estou mangan- do, não; sou incapaz de e o espaço fazer isso, minha San- ta! E agora fique sa-

bendo que só lhe cha- maria dusá O romance A moreninha teve três versões televisivas. A primeira foi da TV Tupi, Em uma das ruas do jardim duas rolinhas mariscavam; mas, marei Minha Santa, lindolfo rocha em 1956, com Yoná Magalhães e Paulo Porto nos papéis principais. Em 1965, a ao sentir passos, voaram e assentando-se não longe, em um para não chamar xará. ática scipione TV Globo exibiu sua primeira versão da trama, com 35 capítulos, nos quais o arbusto, começaram a beijar-se com ternura; e esta cena se casal Augusto e Carolina foi interpretado por Cláudio Marzo e Marília Pêra. Foi passava aos olhos de Augusto e Carolina!... uma das primeiras produções da emissora a gravar externas (cenas fora dos Igual pensamento, talvez brilhou em ambas aquelas almas, estúdios), rodadas na ilha de Paquetá (RJ). Entre 1975 e 1976, foi ao ar uma ver- porque os olhares da menina e do moço se encontraram ao são mais extensa, com 79 capítulos, e já em cores, com Mário Cardoso e Nívea mesmo tempo e os olhos da virgem modestamente se Maria como protagonistas. As externas foram também rodadas em Paquetá, abaixaram e em suas faces se acendeu um fogo, que era o do embora para essa versão tenha sido construída uma cidade cenográfica em pejo. E o mancebo, apontando para as pombas, disse: Barra de Guaratiba, no litoral carioca. Nessa segunda adaptação, o autor Mar- - Elas se amam! cos Rey situou a história anos à frente da cronologia do livro de Joaquim Manuel E a menina murmurou apenas:

de Macedo, publicado em 1844. A versão televisiva se passa entre 1866 e 1868, a moreninha - São felizes! acrescentando referências a fatos históricos como a Guerra do Paraguai e a luta joaquim manuel de macedo - Pois acredita que em amor possa haver felicidade? pela abolição da escravatura. saraiva - Às vezes.

72 73 linha do tempo

Aoo long Sinhazinha Flô De: A viuvinha; Til; das décadas, O sertanejo (José de Alencar) a televisão Adaptação: Lafayette Galvão encontrou na Direção: Herval Rossano literatura Vejo a lua no céu 25 out. 1977-28 jan. 1978 Gina De: Marques De: Maria José nacional não só Gabriela Rebelo Dupré uma fonte de De: Gabriela, cravo e canela Adaptação: Adaptação: Rubens (Jorge Amado) Sylvan Paezzo Ewald Filho inspiração como Adaptação: Direção: Herval Direção: Sérgio Walter George Durst Rossano e Walter Mattar um espelho em Campos Direção: Walter Avancini 26 jun.-7 out. 1978 que aprendemos e Gonzaga Blota 9 fev.-25 jun. 1976 A sucessora 14 abr.-24 out. 1975 a nos reconhecer De: Carolina Nabuco Adaptação: Manoel Carlos Helena Direção: Herval Rossano, De: Machado de Assis Gracindo Júnior Adaptação: Gilberto Braga e Sérgio Mattar Direção: Herval Rossano 9 out. 1978-3 mar. 1979 5-30 maio 1975 1965 1976 1978

A moreninha De: Joaquim Manuel de Macedo 1977 Maria, Maria 1979 Adaptação e direção: De: Maria Dusá Otávio da Graça Mello 1975 (Lindolfo Rocha) Cabocla Senhora Sítio do Picapau 25 out.-10 dez. 1965 Adaptação: De: Ribeiro Couto De: José de Alencar Amarelo Manoel Carlos Adaptação: Benedito De: Monteiro Adaptação: Gilberto Braga Direção: Herval Rossano Ruy Barbosa Lobato Direção: Herval Rossano 30 jan.-24 jun. 1978 Direção: Adaptação: Paulo 30 jun.-17 out. 1975 Herval Rossano Afonso Grisolli e O feijão e o sonho Wilson Rocha 5 jun.-15 dez. 1979 A moreninha De: Orígenes Lessa 7 mar. 1977-1985

letras letras De: Joaquim Manuel Adaptação: Benedito Memórias de amor de Macedo Ruy Barbosa De: O Ateneu Adaptação: Direção: Herval Rossano (Raul Pompeia) Marcos Rey e Walter Campos Adaptação: Wilson Direção: Herval 28 jun.-9 out. 1976 Aguiar Filho Rossano Direção: 20 out. 1975-6 fev. Escrava Isaura Gracindo Júnior 1976 De: Bernardo Guimarães 5 mar.-2 jun. 1979 Adaptação Gilberto Braga Direção: Herval Rossano e Milton Gonçalves

brasileiras 11 out. 1976-5 fev. 1977

74 75 linha do tempo

O tempo e o vento De: O continente (Erico Verissimo) Anarquistas, Adaptação: Doc graças a Deus Comparato, colaboração: De: Zélia Gattai Regina Braga Adaptação: Walter Direção: Paulo José, George Durst Denise Saraceni e Walter Direção: Walter Campos Avancini, Hugo Barreto 22 abr.-31 maio 1985 Riacho Doce e Silvio Francisco De: José Lins do Rego 7-17 maio 1984 Grande sertão: veredas Adaptação: Aguinaldo Silva e Ana Olhai os lírios Terras do sem fim De: Guimarães Rosa Tieta Maria Moretzsohn, do campo De: Cacau; Terras do sem De: Tieta do agreste Adaptação: Walter colaboração: De: Erico Verissimo fim; São Jorge dos Ilhéus (Jorge Amado) George Durst, Márcia Prates Adaptação: Geraldo (Jorge Amado) colaboração: José Adaptação: Aguinaldo Direção: Paulo Vietri e Wilson Rocha Adaptação: Walter Antonio de Souza Sinhá Moça (1ª versão) Silva, Ana Maria Ubiratan, Luiz George Durst De: Maria Dezonne Moretzsohn e Ricardo Direção: Herval Direção: Walter Avancini Fernando Carvalho e Pacheco Fernandes Linhares Rossano Direção: Herval Rossano 18 nov.-20 dez. 1985 Reynaldo Boury Adaptação: Benedito Direção: Paulo Ubiratan, 21 jan.-24 maio 1980 16 nov. 1981-27 fev. 1982 31 jul.-5 out. 1990 Ruy Barbosa Reynaldo Boury e Luiz Direção: Reynaldo Fernando Carvalho Boury e Jayme 14 ago. 1989-31 mar. 1990 Monjardim 1985 28 abril-15 nov. 1986 1987 1990

1981 Bambolê De: Chama e cinzas (Carolina Nabuco) 1980 Adaptação: Daniel Más, 1989 1984 colaboração: Ana Maria As três Marias Ciranda de pedra 1986 Moretzsohn Direção: Wolf Maya, Atílio De: Rachel de Queiroz De: Lygia Rabo de saia Memórias Riccó, Ignácio Coqueiro Adaptação: Wilson Fagundes Telles de um gigolô De: Pensão Riso e Marcelo de Barreto Rocha e Walther Adaptação: da Noite; De: Marcos Rey 7 set. 1987-26 mar. 1988 Negrão Teixeira Filho Rua das Mágoas Adaptação: Walter Direção: Herval Direção: Reynaldo (José Condé) George Durst, Marcos Rossano Boury e Wolf Maya Adaptação: Walter Rey, Walter Avancini 10 nov. 1980-16 maio 18 maio-14 nov. 1981 George Durst, José Direção: Walter 1981 Antonio de Souza Avancini e Tairone Feitosa 14 jul.-8 ago. 1986 Marina Direção: Walter Avancini Tenda dos milagres De: Marina, Marina De: Jorge Amado (Carlos Heitor Cony) 8 out.-2 nov. 1984 Adaptação: Adaptação: Aguinaldo Silva, Wilson Aguiar Filho Regina Braga Direção: Herval Direção: Paulo Rossano Afonso Grisolli, 26 maio-8 nov. 1980 Maurício Farias e Ignácio Coqueiro 29 jul.-6 set. 1985

76 77 linha do tempo

Engraçadinha... seus amores e seus pecados De: Asfalto selvagem Fera ferida (Nelson Rodrigues) Direção: Carlos Manga, De: Clara dos Anjos; Força de um desejo Recordações do Denise Saraceni e João De: A retirada da escrivão Isaías Caminha; Henrique Jardim Laguna; Inocência; Triste fim de Policarpo 25 abr.-25 maio 1995 A mocidade de Trajano Quaresma, Vida e morte A madona de cedro (Visconde de Taunay) de M. J. Gonzaga de Sá; contos: Nova Califórnia; De: Antonio Callado Adaptação: Sérgio A casa das sete mulheres O homem que sabia Adaptação: Walther Marques, Márcia javanês (Lima Barreto) Negrão, colaboração: Prates, Lilian Garcia A muralha De: Leticia Wierzchowski e Eliane Garcia Adaptação: Aguinaldo Nelson Nadotti De: Dinah Silveira Adaptação: Maria Adelaide Silva, Ana Maria e Charles Peixoto Direção: Marcos Paulo, de Queiroz Amaral e Walther Negrão Mauro Mendonça Filho Salomé Moretzsohn e Ricardo Direção: Carlos Manga, Adaptação: Maria Direção: Jayme Monjardim e e Carlos Araújo De: Menotti Del Picchia Linhares, colaboração Tizuka Yamasaki e Denise Adelaide Amaral, Marcos Schechtman Márcia Prates e Flávio Saraceni 10 maio 1999-28 jan. Adaptação: Sérgio João Emanuel Carneiro 7 jan.-8 abr. 2003 de Campos 2000 Marques, colaboração: 26 abr.-6 maio 1994 e Vincent Villari Elizabeth Jhin e Márcia Direção: Dennis Direção: Denise Saraceni, Prates Carvalho, Marcos Paulo, Carlos Araújo e Luís Carlos Magalhães Direção: Herval Rossano Henrique Rios e Carlos Araújo e Marco Aurélio Bagno 4 jan.-28 mar. 2000 15 nov. 1993-16 jul. 1994 3 jun.-5 out. 1991 1992 1994 1998 2003 Memorial de Maria 2000 Tereza Batista Moura Dona Flor e seus De: Tereza Batista De: Rachel de Queiroz dois maridos cansada de guerra De: Jorge Amado Adaptação: Jorge Sítio do Picapau (Jorge Amado) 1995 Adaptação: Dias 2001 1993 Furtado e Carlos Amarelo (2ª fase) 1991 Adaptação: Gerbase, colaboração Hilda Furacão Gomes, colaboração: Presença de Anita Felicidade Vicente Sesso Renato Campão Marcílio Moraes De: Monteiro De: Roberto Drummond Lobato De: Mário Donato De: Tati, a garota e Direção: Paulo e Glênio Póvoas e Ferreira Gullar Adaptação: Glória Perez Adaptação: outros sete contos Afonso Grisolli, Agosto Direção: Carlos Direção: Mauro Direção: Manoel Carlos (Aníbal Machado) Fernando Rodriges De: Rubem Manga, Denise Direção: Wolf Maya, Maurício Mendonça Filho, Márcio Trigo, de Souza e Walter Fonseca Saraceni, Mauro Farias e Luciano Sabino Rogério Gomes Roberto Talma, Direção: Ricardo Adaptação: Cininha de Paula, Campos Adaptação: Mendonça Filho, 26 maio-23 jul. 1998 e Carlos Araújo Waddington, Manoel Carlos Paulo Ghelli, Jorge Furtado e Marcelo de Barreto 31 mar.-1º maio 1998 Alexandre Avancini e Direção: Denise Saraceni, 7 abr.-22 maio 1992 Carlos Manga, Giba Assis e Roberto Farias Edgard Miranda Ignácio Coqueiro e Carlos Magalhães Brasil 17 maio-17 jun. 1994 7-31 ago. 2001 Fernando de Souza 12 out. 2001-2007 7 out. 1991-30 maio 1992 Direção: Carlos Manga, Paulo Incidente em Antares José, Denise Porto dos milagres De: Erico Verissimo O sorriso do lagarto Saraceni e José De: Mar morto; A descoberta da De: João Ubaldo Ribeiro Henrique Adaptação: Nelson América pelos turcos (Jorge Amado) Fonseca Nadotti e Charles Adaptação: Adaptação: Aguinaldo Silva e Ricardo Peixoto Walther Negrão e 24 ago.-17 set. Linhares, colaboração: Nelson Geraldo Carneiro 1993 Direção: Carlos Nadotti, Filipe Miguez, Glória Barreto, Manga, Paulo José Direção: Roberto Talma Francisco Vieira e Maria Elisa Berredo e Nelson Nadotti 4 jun.-30 ago. 1991 Direção: Marcos Paulo, Roberto Naar, 29 nov.-16 dez. 1994 Luciano Sabino e Fabrício Mamberti 5 fev.-29 set. 2001

78 79 linha do tempo

Mad Maria As cariocas O canto da sereia De: Márcio Souza De: Sérgio Porto De: Nelson Motta Adaptação: Adaptação: Daniel Filho Adaptação: George Moura Benedito Ruy Barbosa Direção: Daniel Filho e Patricia Andrade Direção: 19 out. 2010 Direção: José Luiz Villamarim, Ricardo Waddington, Ricardo Waddington José Luiz Villamarim Capitu 8 jan. 2013 e Amora Mautner De: Dom Casmurro Êta mundo bom! 25 jan.-25 mar. 2005 (Machado de Assis) De: Cândido ou O otimismo Adaptação: Euclydes (Voltaire), Candinho (Abílio Marinho, colaboração: Hoje é dia de Maria Pereira de Almeida) e Amazônia: de Galvez Daniel Piza, Luís De: Carlos Alberto O comprador de fazendas a Chico Mendes Alberto de Abreu e Soffredini (Monteiro Lobato) De: O seringal (Miguel Ferrante) Edna Palatnik, Luiz Adaptação: Luiz e Terra caída (José Potyguara) Fernando Carvalho Adaptação: Walcyr Carrasco e Fernando Carvalho e Luiz Maria Elisa Berredo Alberto de Abreu Adaptação: Glória Perez Direção: Luiz Fernando Carvalho Direção: Ana Paula Guimarães, Direção: Luiz Fernando Direção: Marcos Schechtman, Marcelo Zambelli, Diego Morais, 9-13 dez. 2008 Carvalho Marcelo Travesso, Pedro Jorge Fernando Vasconcellos, Carlo Milani, 11-21 jan. 2005 Roberto Carminatti e Emilo di Biasi 18 de jan.-26 de ago. 2016 2 jan.-6 abr. 2007

2006 2008 2012 2014 2017

Sinhá Moça 2007 Amores roubados (2ª versão) De: A emparedada da rua De: Maria nova (Carneiro Vilela) Dezonne Pacheco A Pedra do Reino As brasileiras Dois irmãos 2005 Fernandes De: O romance d’a Pedra 2010 2013 Adaptação: George 2016 De: As cariocas Moura, Sérgio De: Milton Adaptação: do Reino e o príncipe do (Sérgio Porto) Goldenberg, Flávio Araújo Hatoum Edmara Barbosa sangue do vai-e-volta Hoje é dia de (Ariano Suassuna) Adaptação: Daniel Filho e Teresa Frota Adaptação: Maria: segunda e Edilene Barbosa Adaptação: Luiz Fernando Direção: Daniel Filho Direção: José Luiz Maria Camargo jornada Direção: Marcelo Villamarim, Ricardo Carvalho, Luiz Alberto 2 fev. 2012 Direção: De: Carlos Travesso, Luiz Ciranda de pedra Waddington Pilar, Rogério de Abreu e Braulio Tavares Luiz Fernando Alberto De: Lygia 6 jan. 2014 Carvalho Soffredini Gomes, Ricardo Direção: Waddington Luiz Fernando Carvalho Fagundes Telles 9 jan. 2017 Adaptação: Luiz Adaptação: Fernando 13 mar.-14 out. 12-16 jun. 2007 2006 Alcides Nogueira, Carvalho e Luiz colaboração: Alberto de Rodrigo Amaral, Mário Abreu Teixeira, Lúcio Manfredi Gabriela Direção: Luiz Direção: Denise De: Jorge Amado Fernando Saraceni, Carlos Carvalho Araújo, Maria de Adaptação: 11-15 out. 2005 Médicis, Natalia Walcyr Carrasco Grimberg, André Luiz Direção: André Felipe Câmara e Allar Binder, Marcelo Travesso, Fiterman Noa Bressane, André 5 maio-3 out. 2008 Barros, Mauro Mendonça Filho, Roberto Talma 18 jun. 2012

80 81 Candido Damm, João Vitor Silva, Caroline Molinari e Isabelle Drummond Sítio do Picapau 100 Amarelo, 2001

84 104 90 108

Do papel para a tela para Do papel cruzadas Palavras viagem grande A literárias adaptações das leitura da O desafio talentos Futuros

os olhares lançados sobre os livros que recontam suas histórias e Os desafios da sociedade brasileira para estimular a cultura literária artigo por mauro alencar

com a dramaturgia presente desde os primórdios da televisão brasileira na década de 1950, adaptações literárias constroem uma tradição capaz de atravessar fronteiras

do papel para a tela

Lucélia Santos e Rubens De falco Escrava Isaura, 1976

84 85 artigo

mauro alencar é o ano em que é doutor em 1952 Teledramaturgia Helena vai ao ar Brasileira e na TV Paulista: é a primeira Latino-americana adaptação na TV de um escritor pela Universidade de São Paulo (USP). brasileiro (Machado de Assis) Consultor e pesquisador da TV Como as referências eram o teatro Uma releitura dessa mesma obra, Globo, é autor de A Hollywood brasileira e o cinema, os diretores inspira- realizada por Gilberto Braga, inau- – Panorama da vam-se na estética visual desses gurou oficialmente em 1975 o ho- no Brasil dois já consagrados meios de co- rário das 18h na TV Globo, dedica- (Senac, 2002) e da municação. Com muito sucesso à do somente a versões de livros coleção Grandes época, os teleteatros duraram até nacionais até 1982 – a maioria di- novelas (editora Globo, 2007-2008) a década de 1960, e um dos últimos rigida por Herval Rossano (1935- – Teleteatro Cacilda Becker – che- 2007). Helena é o romance macha- gou a ser gravado em videoteipe. diano favorito dos autores de TV odas as tardes, de mar- por possuir uma estrutura mais ço a setembro de 2010, Não havia profissionais que escre- folhetinesca, contada em partes a TV Globo reprisou a vessem para a televisão, e por isso, que, individualmente, contêm ele- novela Sinhá Moça, de numa estratégia inédita, os em- mentos suficientes para proporcio- 2006, que concorreu presários e diretores recorreram nar o clímax. Outras obras do es- t ao Emmy, prêmio às adaptações de livros e filmes – critor, como Memórias póstumas de americano para os programas da nacionais e estrangeiros. Foi tam- Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro televisão mundial. Remake da obra bém uma maneira de aproveitar (1899), tratam principalmente de exibida pela primeira vez em 1986 o prestígio que obras já consagra- conflitos internos e questões psí- – que teve uma das maiores audiên- das levavam para o novo meio de quicas dos personagens, algo difí- cias no horário das 18h –, Sinhá Moça comunicação. cil de adaptar nas telenovelas, que seguia uma tradição iniciada em precisam de várias tramas e ganchos 1950, ano em que foi criada a pri- A primeira adaptação feita pela para enlaçar o espectador. meira emissora do Brasil: a adapta- Tupi, em 1950, ficou a cargo do ção de obras da literatura nacional autor Cassiano Gabus Mendes Outro romancista que merece par- 1960. Macedo tinha ainda o hábi- lista, gravou A moreninha (1844), para a televisão. (1929-1993): uma versão do filme ticular atenção na história da te- to de abordar pessoas na rua para com Marília Pêra. Dez anos depois, americano A vida por um fio (1948). lenovela no Brasil é Joaquim Ma- saber suas opiniões sobre um per- esse romance ganharia mais uma A dramaturgia esteve presente na Já o primeiro a investir em um ro- nuel de Macedo (1820-1882). Ele sonagem, o que achavam do casal versão, em cores, no mesmo canal, programação televisiva desde o mance nacional foi Manoel Carlos, foi o primeiro a escrever, no sé- mais recente e as impressões do com Nívea Maria. início, seguindo estética seme- que em 1952 levou para a TV Pau- culo XIX, um ciclo de romances cenário que imaginava para sua lhante à do teatro e à do cinema. lista uma versão de Helena (1876), ao estilo do gênero que fez suces- história seguinte – um precursor Também considerada um pilar da Além das novelas, exibidas ao vivo de Machado de Assis (1839-1908). so na TV a partir da década de das atuais pesquisas de opinião teledramaturgia brasileira, a obra duas vezes por semana, outro gê- realizadas pelas emissoras. José de Alencar (1829-1877) estava nero que fazia sucesso era o dos presente na TV já no ano inaugural teleteatros, histórias, em sua maio- Duas obras de Macedo foram adap- da Tupi, que levou ao ar a novela ria, adaptadas de clássicos nacio- tadas por canais diferentes em 1965. Senhora, baseada no livro de 1875. nais e estrangeiros do teatro e da A TV Cultura produziu uma versão Existe na obra de Alencar uma literatura. Esse gênero foi exibido para O moço loiro (1845). A TV Glo- grande coerência das tramas, es- T exto originalmente ao vivo praticamente durante todo bo, fundada naquele ano pelo jor- tabelecendo bastante liberdade na publicado na Revista o período de sua existência. As nalista Roberto Marinho (1904- marcação dos atores e ressaltando de História da Biblioteca Osmar Prado Nacional, edição 63, histórias eram contadas, mais ou e Lúcia Alves 2003), e que se tornaria a Rede o papel criativo do diretor, o que dezembro de 2010 menos, em uma hora de duração. Helena, 1975 Globo após a compra da TV Pau- justifica a grande quantidade de

86 87 artigo

países compraram 104 os direitos de quase todos os canais de exibição de Escrava Isaura, de televisão produziram 1976 a janeiro de 2016 novelas baseadas em A Rede Globo já era líder em au- Lucélia Santos – que fugia da ti- livros em algum momento diência e qualidade de produção rania de seu senhor, um grande televisiva em meados da década fazendeiro vivido por Rubens de de suas trajetórias de 1970. Nesse clima comemora- Falco (1931-2008). Vendida para tivo, foi produzida a novela Ga- vários países, a novela chegou a briela (1975), adaptação de Walter criar uma nova palavra na Rússia, George Durst (1922-1997) para o onde era exibida em dublagem romance Gabriela, cravo e canela espanhola: “hacienda” no sentido (1958), de Jorge Amado (1912- de “casa de campo”. Dez anos Antes e depois da TV adaptações de sua obra para a te- 2001). Era um cartão de visitas depois, Lucélia Santos viveu a pro- A daptações aumentam o interesse pelas obras levisão. Em 1954, o autor Vicente para o projeto da Rede Globo de tagonista na versão original de Sesso escreveu para a Record – fun- Televisão de unir literatura e tele- Sinhá Moça, adaptada do romance dada um ano antes pelo empresá- novela que seria aprofundado de de Maria Dezonne Pacheco Fer- Me mórias de um gigolô rio do rádio Paulo Machado de Car- maneira sistemática no horário nandes (1910-1998), publicado em Livro homônimo de Marcos Rey (1968) valho (1901-1992) – uma versão de das 18h. Contava com um grande 1950. Foi também com uma adap- Adaptação: Walter George Durst e Marcos Rey O guarani (1857), recontada logo elenco, liderado por Sônia Braga, tação de A escrava Isaura que a TV Exibição: 14/7 a 8/8/1986 em seguida pela TV Paulista. e direção de Walter Avancini. A Record reabriu seu núcleo de te- EXEMPLARES VENDIDOS novela é considerada um exemplo ledramaturgia em 2004. Junho de 1986: 683 Uma obra de Alencar foi a esco- de como adaptar um livro de 200 Julho a dezembro de 1986: 11.444 lhida para dar ares de superpro- páginas, em média, para uma obra Enquanto livros como A escrava dução pela primeira vez a uma de mais de 100 capítulos. Isaura contribuem para o sucesso Chiquinha Gonzaga novela brasileira. Em 1966, Ivani das novelas, as adaptações para a A minissérie foi baseada em duas biografias: Chiquinha Ribeiro (1922-1995) adaptou As A abertura do mercado interna- TV ajudam obras esquecidas a re- Gonzaga. Sofri e chorei. Tive muito amor, de Dalva Lazaroni, e minas de prata (1866) para a TV cional para a televisão brasileira tornar ao mercado. Foi o que acon- Maria Adelaide Amaral impulsio- 1984), um dos mais adaptados da Chiquinha Gonzaga, uma história de vida, de Edinha Diniz (1991). Os números abaixo se referem a este último título. Excelsior com um elenco de peso, também foi impulsionada por uma teceu em 1978 quando Manoel nou a venda do livro, que passou história da TV. uma direção de arte bem cuidada obra baseada num romance. Es- Carlos escreveu Maria, Maria – no- de 18 mil exemplares. A daptação: Lauro César Muniz (colaborou e uma trilha sonora composta es- crita por Gilberto Braga em 1976, vela baseada no livro Maria Dusá Apesar de o ritmo de adaptações Marcílio Moraes) pecialmente para a produção, tudo a versão de A escrava Isaura (1875), (1910), de Lindolfo Rocha (1862- Quase todos os canais de televisão não ser o mesmo do final dos anos Exibição: 12/1 a 19/3/1999 comandado pelo diretor Walter de Bernardo Guimarães (1825- 1911). Pela primeira vez, a Globo produziram novelas baseadas em 1970 e início dos 1980, quando só EXEMPLARES VENDIDOS Avancini (1935-2001). 1884), contava a história da escra- exibiu uma protagonista, inter- livros em algum momento de suas a Globo fez mais de 20 versões de 1991 a 1998: 1.500 va branca – interpretada pela atriz pretada pela atriz Nívea Maria, vi- trajetórias. A TV Cultura, por livros para novelas, esse tipo de 1999: 25.000 Alencar foi representado também vendo dois papéis: a simplória exemplo, iniciou a década de 1980 produção ainda tem seu espaço. na tela da TV Globo. Baseada em Maria e a sofisticada Maria Dusá. com adaptações dentro da série É o que provam folhetins recentes A muralha seu romance, outra adaptação de O sucesso foi tanto que a Editora “Tele-Romance”. A TV Bandei- como Ciranda de pedra (2008) e Dinah Silveira de Queiroz (1965) Senhora (1975), desta vez assinada Ática resolveu relançar a obra que rantes recorreu duas vezes ao clás- Cabocla (2004), da Globo, e Essas Adaptação de Maria Adelaide Amaral, João por Gilberto Braga, foi ao ar em estava no ostracismo desde o iní- sico infanto-juvenil O meu pé de mulheres (2005), da Record, sem Emanuel Carneiro e Vincent Villari 1975. Foi a primeira novela em cio do século XX. Outro exemplo, laranja lima (1968), de José Mauro falar nas reprises como a de Sinhá Exibição: 4/1 a 28/3/2000 cores do horário das 18h e recebeu desta vez com o gênero minissérie, de Vasconcelos (1920-1984). Já o Moça, que faz sucesso mesmo fora EXEMPLARES VENDIDOS um alto investimento num elenco envolve A muralha (1954), roman- SBT investiu no melodrama po- do horário nobre da programação 1999: fora de catálogo que trazia Norma Blum e Cláudio Vane ssa Giácomo ce de Dinah Silveira de Queiroz pular Éramos seis (1943), de au- e contribui para projetar a melhor 2000: 18.130 Marzo como protagonistas. Cabocla, 2004 (1911-1982). A adaptação feita por toria de Maria José Dupré (1898- imagem do Brasil no exterior.

88 89 entrevista com fernando bonassi, J. P. cuenca, marçal aquino e chico mattoso palavras cruzadas Adaptar uma obra literária é uma forma de leitura da história original, e não um exercício de reprodução, contam escritores e roteiristas

m par de tênis que aparece entre os pertences de uma personagem do século XVIII. Música contem- porânea para embalar um enredo criado por Machado de Assis. Ce- u nas que entraram para a antologia cinematográfica sem constar na obra original. Tudo isso não só é possível no mundo da adap- tação de uma obra literária, como está na essência do ato de transpor uma história da linguagem escrita para a audiovisual. É o que dá para depreender da conversa que reuniu quatro escritores que também atuam como roteiristas. Numa manhã em São Paulo, na Escola Britânica de Artes Criativas (Ebac), o Caderno convidou para um bate-papo Marçal Aquino (O invasor), Fernando Bonassi (Um céu de estrelas), J. P. Cuenca (Descobri que estava morto) e Chico Mattoso (Nunca vai embora). Com mediação de Luiz Costa Pereira Junior e Paulo Jebaili, a conversa abordou as diferen- ças entre linguagens e entre os ofícios de escritor e roteirista.

90 91 entrevista

Cabe comparar uma adaptação ao original ou se trata de outra obra? Marçal Aquino – Uma adaptação nada mais é do que uma leitura do livro numa outra lin- guagem. Quando vai para a tela, é a leitura do Quando o livro diretor; se outro diretor filmar o mesmo livro, sairá diferente. O fã de um livro querer ver vai para a tela, aquilo que estava na cabeça dele, é ingênuo, Quando se escolhe um Shakespeare para inocente. São duas linguagens diferentes. adaptar é porque ali tem alguma coisa que é a leitura você deseja comunicar. É isso? Fernando Bonassi – Um bom roteirista, que MA – Trabalho muito com o [cineasta] Beto do diretor; não é necessariamente um bom escritor, pre- Brant. Por que o Beto vem ao meu universo cisa ter uma fértil imaginação visual. Tem de literário fazer os filmes dele? Porque enxerga se outro saber narrar com imagens, o que é diferente uma questão que responde a uma premissa de eu contar a você “Era uma vez, um fulano dele. Passa a tratar de uma questão que não é diretor filmar que nasceu no dia tal, teve rubéola...” e você necessariamente a mesma que me levou a es- vai andando comigo porque temos uma expe- crever o livro, e em geral não é. Não tenho o o mesmo livro, riência em comum. Outra coisa é eu ter de desejo de adaptar nada. Sou um escritor. Quan- contar a você uma vida inteira em duas horas. do termino de ler um livro, o máximo que sairá diferente Então, tenho de escolher qual momento da sua posso pensar é: “Baita livro”. É necessário que vida, se é um momento só ou não. É uma in- um diretor me diga “Quero filmar” e a minha tervenção enorme da adaptação da obra lite- pergunta clássica para ele será: “Que filme você marçal aquino rária em um universo que não o literário. Pre- vai fazer?”. O papel do roteirista é ajudá-lo a é jornalista, cisamos falar sobre Kevin [filme de Lynne materializar aquilo. escritor e roteirista. Autor do livro e Ramsay] é uma adaptação maravilhosa de um do roteiro do filme livro indigesto, terrível [de Lionel Shriver], um J. P. Cuenca – Por isso não existe adaptação. Eu receberia as piores livro de cartas entre pai e mãe sobre um me- Existe diálogo. Criar outra obra em diálogo notícias de seus nino psicopata. E a adaptação é de natureza com aquela. Ao longo dos tempos, a realidade lindos lábios. Na TV, artística. Coisas assim acontecem porque são muda, a sociedade se transforma e Shakes- assina os roteiros das séries O caçador, linguagens diferentes. Já o escritor dá um gol- peare continua falando conosco, levantando Força-tarefa pe. O estrangeiro [de Albert Camus] abre com questões. É interessante pegar esse tipo de e Supermax “Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não clássico e ver os filmes que foram feitos a par- sei bem”, isso é inadaptável, o valor metafí- tir dele. Você vai ver que é um diálogo. sico dessa frase, dita no meio da guerra, de você esquecer o dia que sua mãe morreu. Que FB – Há livros em que a trama é insignificante, mentira é essa que esse cara está contando? no entanto a trama é relevante para o cinema. Que diabos de homem é esse que está dizendo O que acontece para um filme é relevante. No isso, com esse desprendimento das relações livro, não é tanto. Começo a ler o jeito como de família? Isso não dá para adaptar. Herta Müller descreve o caminhar de um per- sonagem e já acho apaixonante. Como tradu- zo isso? É a assinatura artística da linguagem literária. E outra coisa é o que acontece.

MA – É a tensão da linguagem.

FB – Já vi gente que compra os originais pela história, o estilo do autor não interessa. Assim como já vi quem não se interessa pela trama, mas por certa cadência de fala, uma visão de

92 93 entrevista

mundo que está no original. Fiz muita adapta- ção de coisa que já tinha dado certo. Carandiru, ve ja mais na Cazuza já tinham milhões de leitores. Quando versão digital app.cadernosglobo. o cara põe isso na sua frente, está claro que fala com.br não há forma “Quero 20 milhões de espectadores” e não quer correta de saber da qualidade literária. Na televisão é diferente? contar uma MA – A TV tem dinheiro e o cinema, não. A dão sente, desligue a música, se concentre. É famosa história dos dois camelos. Você está outro negócio. Chico achou a palavra correta, história. escrevendo enquanto o produtor faz café. Aí há uma coisa codificada que é poderosa. você fala “Dois camelos entram em cena”. O lamento produtor grita lá da cozinha: “Um camelo! Para JPC – De certa maneira, cada leitor de roman- que dois?”. Na televisão, o cara perguntaria: ce é um adaptador. Quando você lê um livro, as pessoas “E com dez camelos, não fica lindo?”. Quando passa um filme na sua cabeça. Você imagina a se trata de adaptação, a TV tem plenas condi- cara das pessoas, a roupa, como é aquela casa. que buscam ções de fazer chover. Você escala os atores, dá o tom de tudo. Ver um romance que você ama adaptado vai ser manuais Chico Mattoso – A diferença é de recepção. sempre uma frustração. Até para o diretor: Um produto audiovisual é recebido pelos sen- você nunca consegue o que quer e a graça da tidos, você está enxergando imagens, ouvindo coisa é essa. fernando bonassi sons. Um produto literário é codificado, você é cineasta formado pela está lendo e fazendo alquimia na sua cabeça. FB – O [diretor Alain] Resnais fala que ser ci- Universidade de São Paulo (USP). Na literatura, publicou poemas, neasta é superar sucessivas frustrações. O livro contos, crônicas, além de romances, Dos filmes, minisséries, telenovelas e se- que você comprou não é o mesmo que você como Luxúria. Assina os roteiros riados que viram, que cena consideram tão adaptou; o que você filmou não é o que adap- de Estação Carandiru, no cinema, boa quanto a do texto original? tou; o que vai montar não é o que filmou, e o e das séries O caçador, Força- JPC – Todas do Stanley Kubrick. Aliás, Lolita que lançou não é o que você montou. Se depois tarefa e Supermax, na televisão é exemplo de como sempre há perdas, mesmo isso ainda assim acharem que fez algo razoável, quando o livro [de Vladimir Nabokov] é bri- você será um grande artista do cinema. Os lhante e a adaptação é brilhante. A adaptação caras que falam “meu filme”, não tem essa. de Lolita não é o livro. Kubrick não quis isso. Ainda que tenha a palavra final, se o ator não chegar lá, se o maquiador não entender a men- MA – Há uma questão que parece banal, mas sagem, podem transformar o personagem em não é: o poder de convencimento da imagem. algo grotesco, e o que era para ser trágico fica Uma grande cena é irrefutável. Quando [Ste- ridículo. Teatro é assim também. ven] Spielberg adapta A lista de Schindler, faz a cena em que o nazista perfila os judeus por- que roubaram uma galinha. Não está no livro [de Thomas Keneally], é cena de roteirista. “Quem roubou a galinha?”O primeiro judeu cala e o nazista dá um tiro na cara dele. Chega- se ao segundo: “Quem roubou a galinha?”. Um menino dá um passo à frente, de cabeça baixa. O nazista se agacha e fala: “Você sabe quem roubou a galinha?”. “Sei.” “Quem foi?”E o menino aponta o judeu que o nazista matara. Espetacular. Essa é a função do cinema nar- rativo, enquanto a literatura exige que o cida-

94 95 entrevista

A adaptação bem-sucedida é a autoral? livro. Resolvi todas as pendências dramáticas FB – É a que fala com seu tempo histórico. no roteiro e fui fazer outro romance. O Beto é Mesmo um filme de época deverá ecoar o nos- que insistiu para eu voltar ao livro. Quando so momento. Em Maria Antonieta, da Sofia voltei, já havia set de filmagem, eu já sabia que Coppola, a princesa da Áustria anda de tênis Paulo Miklos faria o papel principal. Percebe a ver um romance só para dar exemplo visual de um frescor que loucura? Meu personagem passa a ter rosto. E aí facilita a compreensão de uma história chata, há a tentação de contar o que vi no set. Eu pen- que você ama de uma época chata, que aquele tratamento sei: “Não”. A única saída seria manter a narra- pop – botar rock and roll, tênis – flexibilizou. tiva na primeira pessoa – e o personagem só pode adaptado vai falar, dentro do estatuto literário mínimo, da- CM – Tinha uma coisa de tédio adolescente quilo que viu ou soube. Ele não tem a onipre- ser sempre uma nesse filme que é contemporâneo. sença que há no cinema, que é o deslocamento do foco narrativo. No cinema, você vai atrás dos frustração. FB – Que é uma forma de ecoar o começo dos personagens e mostra. O meu personagem, por anos 2000, a geração de brancos americanos narrar na primeira pessoa, sabia apenas parte Até para o diretor: que estava entediada e praticando pequenos da história. Então o bacana foi: eu sabia a his- crimes. Sofia Coppola captou isso. Não é que é tória inteira, o personagem não. Criou-se uma você nunca autoral, é que conversa com seu momento his- tensão importante para eu terminar o livro. tórico. Qualquer dom Pedro I que a gente adap- consegue o que te na Globo hoje deverá ecoar os acontecimen- Qual a situação mais complicada que já tos destes 20 anos de Brasil. Senão nem vale a roteirizaram? quer e a graça pena e não será visto. Adaptar Grandes sertão: FB – No terceiro episódio, de dez, do seriado O veredas depois do governo Lula, das conquistas caçador [2014], o protagonista se vê com uma da coisa é essa LGBT destes 20 anos, será outra coisa que foi arma na cabeça, posta pelo irmão – os dois para o [diretor Walter] Avancini [em 1985]. A descobrem que têm interesse na mesma mulher. discussão da homossexualidade não é a mesma A narrativa nos levava a um paroxismo em que J. P. Cuenca da que ele propõe ali. Naquele momento, o Bra- um irmão teria de matar o outro. A gente não é cronista, escritor e roteirista. sil olhava para os pobres pela primeira vez depois podia fazer isso porque o protagonista era o Seu livro Descobri que estava morto deu origem ao filme A da ditadura, e o trabalho do Avancini ecoava um Cauã Reymond, ele tinha de durar até o fim da morte de J. P. Cuenca, que ele entendimento do Brasil. série. Aí o Marçal teve uma ideia ótima, a de roteirizou e dirigiu. Na TV, é autor que o irmão que está ameaçando tem um mal do roteiro de Afinal, o que Quando trabalham um livro, vocês têm um súbito. Ele cai duro e aí a natureza se coloca na querem as mulheres? “roteiro”, a arquitetura da história, ou se narrativa e resolve o problema. O personagem deixam levar pelo fluxo? não pode executar uma maldade por uma im- MA – Quando escrevo literatura, não sei nada, possibilidade mágica... estou no escuro e é fabuloso, porque o livro se conta para mim. Claro que se corre o risco de MA – Ficamos três dias discutindo a cena. O empacar no meio, embora eu conheça escri- cara é delegado de polícia, prendeu o irmão tores que antes de escreverem o livro façam que está no submundo, algemado num lixão, um resumo de cada capítulo. Se fizesse isso, de noite. A gente dizia: “E agora?”. Falei: “Tem eu tiraria o prazer de descobrir. de cair um raio”. E o raio foi o cara ter um ataque epiléptico. “Mas eu não sabia que o cara FB – Não consigo começar até saber onde vai era epiléptico.” “Agora está sabendo.” chegar. Mas isso não é deus ex machina? MA – Há escritor que tem de fazer isso. Eu não. MA – De deus ex machina está cheio por aí. Há Se souber o livro inteiro, abandono. Quando fiz uma coisa maravilhosa na TV: o cara cai, espu- O invasor, com dois terços do livro prontos, o ma a boca, fim de papo. “Segura a língua dele Beto disse: “Vamos fazer um filme”. Eu parei o aí”– e vai ao ar.

96 97 entrevista

FB – Os manuais de roteiro são uma falácia MA – A vantagem de ser escritor é que a gen- porque não é possível prever todas as situações te leu muito, tem repertório, tem muita saída, da ficção. Não há forma correta de contar uma sai do lugar-comum. O problema a resolver história. Lamento as pessoas que buscam ma- no roteiro, então, são as ações e os diálogos. nuais. Os problemas só se resolvem naquele Mesmo as intenções não devem ser descritas. U m produto lugar específico, para aquele personagem, na- São mais sutis, ou você perde riqueza. O ro- quela história. teiro não deve dirigir. Às vezes está assim: audiovisual É “Câmera faz um looping”. Não. Senão o diretor CM – O roteirista tem de buscar o beco sem não tem função no set. recebido pelos saída. Alguns têm uma espécie de síndrome de Estocolmo com os personagens. Tentam ser JPC – As rubricas têm de ser pequenas e diretas. sentidos. Um bons com eles. MA – É, deixa os caras... Vou ensinar o Matheus produto literário MA – É a vantagem de virmos da literatura. Nachtergaele a fazer o quê? Deixa ele ler. Isso nos dá um repertório diferente. Gabriel É codificado, García Márquez está narrando um café e de JPC – Roteirista não pode ter vaidade. Esse é repente entra um cara com asas. Perfeitamen- o negócio. você está lendo te. Se você fizer isso no cinema, numa narra- tiva realista, tem de explicar as asas do cara. MA – O livro é íntimo e intransferível. O que e fazendo São instâncias de cada linguagem. você pode fazer é aprimorá-lo, ter humildade em receber uma sugestão. O roteiro, não. É uma alquimia JPC – Escrevo os livros para aprender a escre- coletivo. Você já parte do princípio de que o vê-los. Se soubesse o final, não escrevia. Roteiro maquiador vai se meter, o iluminador, o di- na sua cabeça é obra de engenharia. Você pensa na estrutura. retor. Sempre me perguntam: “O que sentiu quando viu o que escreveu na tela?”. Nada. MA – Se for uma série e você não souber o Senti o mesmo que o maquiador. C hico Mattoso andamento, o ritmo vai ser assim: um episódio formado em Letras pela Universidade muito legal e outro em que não acontece nada, Que adaptações consideram bem realiza- de São Paulo, é tradutor, escritor só blá-blá-blá. No roteiro, você pensa a his- das na TV? e roteirista. Autor do livros Longe tória por inteiro. FB – Como projeto de adaptação, o que Guel de Ramiro e Nunca vai embora. Começou a carreira de roteirista [Arraes] fez com Ariano [Suassuna], em Auto na equipe da novela Bang-Bang FB – Posso até entregar tarefas. A gente fez isso da Compadecida. De longe, o melhor resultado em Supermax [2016]. Fazia reunião, partilha- recente da indústria cultural brasileira. va o conteúdo e dizia ao colaborador: “O epi- sódio 4 é seu e é isto o que acontece”. E a ta- JPC – Gosto muito de Os Maias. refa era dele. MA – É a leitura que o cara faz. Ele traz todo o JPC – Na estrutura do romance, a única coisa repertório dele, pega música contemporânea com que se luta é a linguagem. Na de um ro- e adapta o Machado de Assis. Esses ruídos, essa teiro, há um monte de restrições, físicas, de incorporação de coisas, dão a grandeza da produção, de atores. coisa. O bacana é ir a outro território e fazer um comentário, uma leitura daquilo que já FB – No romance, você pode se dar ao luxo de existe. fazer um capítulo que não narra. O cara olha a TV e narro o que ele está vendo, e é um ca- CM – A ideia de que é possível esgotar o livro pítulo do meu livro. Narra-se porcaria nenhu- em uma adaptação é sinal de incompreensão ma, no entanto: “Que diabos esse narrador do que é literatura. É impossível e, se fosse quer comigo me mostrando isso?”. possível, seria porque o livro é ruim.

98 99 artigo por marisa lajolo a grande viagem das adaptações literárias

Passagem de uma linguagem para outra gera novas leituras e cada uma desloca e altera significados, aprofundando a compreensão

iteratura e adaptação são parceiras antigas. A presença da literatura em outras mídias revitaliza o texto origi- nal, ao mesmo tempo em que empres- ta aos novos suportes a – digamos – l “aura” da arte literária. Muita coisa do original transforma-se radicalmente nos novos meios. Pois talvez nem tudo possa ser dito em qualquer linguagem. Na passagem de uma lin- guagem para outra – isto é, na adaptação –, a leitura de quem adapta vai gerar novas leituras. Muitas e imprevisíveis, o que é ótimo, pois cada leitura desloca e altera o significado de tudo o que já se leu e vivenciou, tornando mais pro- Ana Paula Arósio funda a compreensão do leitor dos livros, das Hilda Furacão, 1998 gentes e da vida.

100 101 artigo

Mas não é só hoje nem só no dia a dia que essas Sendo fiel ao que li, M arisa Lajolo palavras que derivam do latim (ad aptare: para Eu mostrarei nos meus versos é professora da tornar apto, para tornar capaz, para tornar útil, A meiga e linda Ceci, Universidade para tornar adequado) frequentam nossa língua. Com seu leal defensor, Presbiteriana “Adaptação” é uma palavra e um conceito que O devotado Peri. Mackenzie e professora colaboradora da ocorre há muito no mundo da cultura. No hoje Unicamp. É autora, tão longínquo século XIX brasileiro, um dedi- O guarani é, por sinal, um dos exemplos mais entre outros, de Do cado educador – Carlos Jansen – preocupava-se antigos, na tradição brasileira, de adaptação da mundo da leitura para muito com a falta de livros adequados para jovens literatura para outras linguagens. Já em 1870, o a leitura do mundo brasileiros. O que fez ele? Adaptou obras-primas músico campineiro Carlos Gomes transformou (Ática, 1994) e Gonçalves Dias, o da literatura, de forma que elas se tornassem o romance de José de Alencar em ópera, apre- poeta do exílio compreensíveis para jovens leitores. Um dos sentada no Rio de Janeiro na presença do im- (FTD, 2011) Adaptações são apaixonadamente discutidas. livros adaptados por ele foi Robinson Crusoé, perador d. Pedro II e com retumbante sucesso. salto foi o esperado. E José de Alencar continua Estimulam defensores e detratores, integrados um belo romance inglês. O resultado da rees- a estrelar o time dos viajantes, os bem-amados e apocalípticos. Há quem pareça crer que o critura foi muito bem aceito, como, em 1884, Se, pois, já no século XIX uma obra de arte mi- escritores que percorrem diferentes mídias mundo vai acabar porque O primo Basílio foi registra Sílvio Romero: grava de uma linguagem para outra, sofrendo para chegar ao coração dos leitores. Leitores? parar na tevê e outros, os que apoiam a adap- um processo de adaptação, o desenvolvimento Claro, leitores de várias linguagens. tação porque sua atriz favorita está no elenco. “O Sr. professor Carlos Jansen, a quem as letras de diferentes tecnologias de comunicação foi Mas talvez a questão importante não seja exa- e a pedagogia brasileiras já tanto devem, aca- multiplicando e sofisticando as modalidades de Num país como o Brasil, com forte tradição de tamente ser “contra” ou ser “a favor”. ba de traduzir o celebrado romance Robinson adaptação. oralidade e com uma cultura marcada pela Crusoé, de Daniel Defoe. O livro foi pelo tra- plasticidade de formas, cores e movimentos, Afinal, adaptações existem há muitos séculos dutor adaptado ao nosso meio social [...]. O No século XX, a intensa divulgação e crescente a adaptação de livros para novelas e minissé- e parece que vão continuar existindo. Impor- Robinson Crusoé, redigido para a mocidade popularidade dos quadrinhos também se deve- ries é bem-vinda. Faz circular por ambientes tante é trabalhar para que elas sejam boas. brasileira é um presente magnífico, um mimo ram em parte à adaptação de romances clássicos mais vastos e diversificados histórias e cenários, Trabalhar para que produtores de tevê, de ci- que vai encantar instruindo os nossos filhos”.1 brasileiros. Eles foram quadrinizados a partir personagens e conflitos que, restritos à letra nema e de quadrinhos, roteiristas, diretores, dos anos 1950. Na época, HQs eram vistas com impressa, parecem ter circulação menor. atores, ilustradores e demais profissionais en- Trata-se, no caso, da transformação de um desconfiança, consideradas capazes de “dese- volvidos em projetos de adaptação tenham romance, por hipótese destinado a um públi- ducar” a juventude. Mas o novo gênero acabou E quem sabe a viagem não se faz nos dois sen- condições de fazer trabalhos ótimos. co adulto, em um romance para leitores jovens. se impondo. E é sobre a importância da adap- tidos, ou seja, será que a adaptação televisiva Carlos Jansen pulou uns pedaços, alterou ou- tação romance-quadrinhos que se pronuncia não incentiva a busca pelo original impresso? E a torcida pelo ótimo fica ainda maior e mais tros, ou seja – “adaptou” a história. O texto Jorge Amado quando, a propósito de uma versão Jorge Amado, ali atrás, nos diz que sim. animada quando a linguagem para a qual a sofreu alterações, mas continuou a circular em quadrinizada de Gabriela, cravo e canela , defen- literatura é adaptada tem uma demanda tão um livro, papel impresso. deu a linguagem dos quadrinhos: “Há muita Com tantas mídias em circulação, cresce a ne- grande de mercado, como a da televisão. gente que tem preconceitos contra as histórias cessária competência dos leitores em diferentes Esse tipo de adaptação até hoje tem largo em quadrinhos e algumas me aconselham a não linguagens. Fluentes nos labirintos da realidade “Adaptar” e todos seus familiares – “adaptação”, mercado e é cultivado, com competência, por permitir tal adaptação. […] Estou plenamente virtual em que navegamos, lemos as evanes- “adaptável”, “adaptador” – são palavras cor- premiados escritores como Álvaro Cardoso satisfeito com essas adaptações e penso que elas centes linguagens das telas. Como desde os rentes em nossa língua e uma prática comum Gomes e Walcyr Carrasco. Incluída a catego- só têm feito aumentar o público de meus livros”. tempos da esfinge, as mensagens nos desafiam: em nossa cultura. Frequentam com naturali- ria “adaptação” no Prêmio Jabuti em 2015, um “Ou me decifras ou te devoro...”. dade nosso dia a dia. Frases como “Pois é, ele dos premiados foi Clevisson Viana, que rees- Com o desenvolvimento e a popularização do 1. Romero, Sílvio. não se adaptou” surgem a toda hora e em creve em versos o best-selller O guarani, de rádio, grandes obras literárias transformaram-se Pois as linguagens não são irmãs? Das adaptações Estudos de literatura 2 contemporânea. Páginas qualquer situação: a amiga interfonou dizen- José de Alencar, romance publicado pela pri- em radionovelas, avós das atuais novelas e mi- verbais aos quadrinhos, do livro à ópera, ao de crítica. Rio de Janeiro do que a receita do bolo pedia três bananas e meira vez em 1857: nisséries da televisão. Transmitidas de tarde, teatro e ao cinema, da radionovela à telenovela, Tipografia Universal ela só tinha duas. Uma maçã pode substituir a arrancavam lágrimas e sorrisos de donas de casa dos poemas aos aplicativos, aos sites, aos e-books Laemmert&C.,1885. p. 159-164. banana, “adaptando” a receita ao que ela tinha a quem eram dirigidas. Do rádio para a TV o e aos games vai se refinando nossa capacidade em casa? Seu liquidificador pede tomada para de leitura. Vamos vencendo o desafio da esfin- 2. Ed. Amarilys, il. Luís Ma- três pinos e as de sua casa só têm dois bura- ge e quase que o invertendo: não somos nós tuto, http://www.manole. com.br/guarani-em-cor- quinhos? No bazar da esquina, você acha um devoradores de linguagens? A versão televisiva del-o-viana-/p. “adaptador” que resolve o problema. de Dois irmãos está aí a confirmar essa ideia.

102 103 infográfico

O motivo da leitura

O que influencia a escolha do livro a ser lido 8% Não respondeu/ 2,8 O desafio não sabe Média 5% de gêneros Outros 30% lidos por motivos Tema entrevistado nos 3 meses da leitura anteriores 5% Pesquisas mostram o brasileiro mais afeito aos Crítica ou à pesquisa resenha livros, mas ainda É preciso avançar no incentivo ao hábito, seja no papel ou nos meios audiovisuais 7% Dica de 38% professor Dos leitores que gostam de ler usam a stimulado pelo ensino, pelo acesso à áreas. Isso significa que a média dos estudantes internet para escrita via internet ou pela maior do país consegue apenas localizar informações ler livros oferta de livros, o brasileiro está mer- ou reconhecer temas de um texto, habilidades 11% gulhado no mundo das letras como do nível mais básico de leitura. Estão distantes Título poucas vezes em sua história. Pes- as habilidades de organizar informações, desco- da obra 12% quisas como a quarta edição da Re- brir o que é mais importante num texto, avaliar E Autor tratos da Leitura no Brasil, feita em 2015 pelo criticamente e demonstrar a compreensão de- Instituto Pró-livro e Ibope Inteligência, mos- talhada do conteúdo. 11% tram que nunca se leu tanto no Brasil: quase Capa 11% cinco livros por ano. Não chega a dois livros O problema reflete-se no mercado de trabalho. Dica de no início do século XXI. De cada cem brasileiros de 15 a 19 anos, 72 não outras pessoas estão aptos a conseguir uma boa colocação pro- * 104,7 É verdade que parte do aumento de leitura vem fissional, segundo estudo do Banco Interameri- Frequência de leitura (%) * valores aproximados MILHÕES de obras religiosas, de autoajuda e best-sellers. cano de Desenvolvimento sobre a qualidade da É o número de Há muito a ser feito. Gerações cresceram com educação na América Latina. Para chegarem à leitores no Brasil, o experiências escolares que as afugentaram da conclusão, os autores do estudo consideraram o Tipo de material Todo dia ou Ao menos 1 vez Ao menos Menos de 1 Não lê (em papel ou meio digital) quase todo dia por semana 1 vez por mês vez por mês que equivale a 56% cultura literária. Não se sabe se por isso o país nível de leitura desse público – o percentual de Literatura lida por vontade própria 9 10 13 13 54 da população tem se revelado uma sociedade de letrados sem jovens sem ensino fundamental completo é de leitura, mostrada na Retratos da Leitura no Bra- 43% e o dos que, mesmo após o fundamental, Literatura indicada pela escola 5 11 9 10 65 sil, fonte dos dados exibidos nestas páginas. tiveram dificuldade em sua educação chega à Didáticos indicados pela escola 12 15 9 9 55 metade dos 57% que concluíram o fundamental. Textos escolares 18 14 6 6 56 Outras pesquisas ajudam a dar um panorama do Histórias em quadrinhos 9 12 12 11 56 5 problema. Pisa é a sigla de Programa Internacio- A leitura testa respostas à diversidade da expe- Livros de trabalho, técnicos, nal de Avaliação de Alunos, que avalia estudan- riência humana e ilumina a vivência de situações para formação profissional 7 9 9 9 66 É o número estimado tes de 57 países. O Brasil costuma estar no grupo antes que as desfrutemos na realidade. Aumen- Textos de trabalho 14 12 8 6 59 de livros que o de países que têm mais da metade dos estudan- ta nossa capacidade de criar ideias, conceitos e Livros de outros tipos 10 13 16 13 49 brasileiro lê por ano tes com dificuldades para usar a leitura como proposições – atributos decisivos em sociedades Jornais 17 18 10 9 46 (4,96 em média) ferramenta para obter conhecimentos em outras que se transformam a todo tempo. Revistas 7 18 16 13 46

104 infográfico nível de ensino que estuda atualmente perfil do leitor e (apenas estudantes) não leitor por região

Fundamental I Fundamental II 49% 51% 49% 51% (1ª a 4ª série ou 1º a 5º ano) (5ª a 8ª série ou 6º a 9º ano) 53% 47% 47% 53% 29% 71% 18% 82% 22% 78% 16% 84% NORTE 2011 2015

2011 2015

NORDESTE 2011 2015 2011 2015

47% 53% 43% 57% CENTRO-OESTE Ensino Médio Superior (1º a 3º ano) SUDESTE 50% 50% 39% 61% 25% 75% 22% 78% 10% 90% 7% 93% 2011 2015

SUL 2011 2015 57% 43% 50% 50%

2011 2015 2011 2015

2011 2015

não leitor leitor não leitor leitor

Gêneros mais lidos Por que não leu mais Por que não leu mais (%) (% entre os não leitores) (% entre os leitores) o que a leitura significa

Gênero Total Falta de tempo 32 F alta de tempo 43 A leitura traz conhecimento 49% Bíblia 42 Não gosta de ler 28 Prefere outras atividades 9 A leitura traz atualização e crescimento profissional 23% Religiosos 22 Não tem paciência para ler 13 Não tem paciência para ler 9 A leitura me ensina a viver melhor 22% Contos 22 Não há bibliotecas por perto 8 Prefere outras atividades 10 A leitura pode fazer uma pessoa ‘vencer na vida’ e Romance 22 7 Tem dificuldades para ler 9 Livro é caro melhorar sua situação financeira 17% Didáticos 16 Muito cansado para ler 4 Muito cansado para ler 7 A leitura é uma atividade interessante 16% Infantis 15 Não há bibliotecas por perto 2 Não gosta de ler 5 A leitura facilita a aprendizagem na escola ou faculdade 15% 2015 A leitura é uma atividade prazerosa 13% (1ª+2ª opção) A leitura ocupa muito tempo 5% A leitura é uma atividade cansativa 5% Só leio porque sou obrigado(a) 3% A leitura não serve pra nada 1% Nenhuma destas/ Não sabe/ Não respondeu 4%

106 107 projetos indicação de anna penido, Beatriz Resende, Bianca Ramoneda, Caio Dib e Paulo Werneck

Glória Pires Memorial de Maria Moura, 1994

membros do conselho editorial indicam projetos que consideram exemplares para o estímulo à literatura entre jovens brasileiros futuros talentos 108 109 projetos

anna penido é diretora do Instituto Inspirare. Formada em Jornalismo pela Estante Mágica Bicic lotecas FeliZs Universidade Federal da Bahia (UFBA), com sugestão: Caio Dib sugestão: Anna Penido sugestão: Caio Dib especialização em Direitos Humanos Projeto desenvolvido em escolas, trabalha com a Projeto desenvolvido pelo Instituto A Festa Literária da Zona Sul de São Paulo pela Universidade criação de livros por alunos. Em sala de aula, cada Mobilidade Verde em 2011, de acervo se especializou em reunir projetos e Columbia (EUA) e em criança cria, escreve e desenha uma história com ajuda itinerante para empréstimo a quem não pessoas que estimulam leitura e escrita. É Gestão Social para o Desenvolvimento do professor. A editora Estante Mágica transforma a tem acesso a bibliotecas públicas, em organizada pelo Coletivo Sarau do Binho. pela UFBA história em um livro impresso ou até confecciona um especial os moradores de rua. São triciclos A edição de 2016 ocorreu em setembro, boneco do personagem que a criança criou. Por fim, com motor elétrico e um baú acoplado na com o tema “Gente que lê, une e beatriz resende pais, família e amigos compram o livro do autor e parte traseira, com capacidade para 300 transforma”. A ideia é criar, com apoio de é crítica, pesquisadora e professora titular de participam do grande dia de autógrafos. Mais de 70 mil livros. Nos dois primeiros anos, a parceiros, espaços para reflexão que Poética do alunos já foram beneficiados pelo projeto. Bicicloteca distribuiu mais de 200 mil livros fortaleça movimentos culturais da região. Departamento de gratuitamente e ajudou milhares de Ciência da Literatura da pessoas sem acesso à leitura. Faculdade de Letras da Transescritas: Caooperif Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) oficina de escrita criativa sugestão: Paulo Werneck sugestão: Beatriz Resende Pró-Saber SP caio dib leitura à stímulo sugestão: Caio Dib Projeto idealizado pelo poeta e agitador é jornalista. Em 2013, Projeto iniciado em 2015 por iniciativa da professora E cultural Sérgio Vaz, em 2001, promove o percorreu 58 cidades literária nteração em busca de boas Adriana Armony, em sua oficina de escrita criativa no A ONG promove parceria com escolas I encontro de leitores e escritores, além de práticas na área de Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Oficinas são públicas da comunidade de Paraisópolis divulgar poesia nas escolas. Virou uma educação. Desde então, realizadas semanalmente, a partir da leitura de textos para incentivar a leitura de crianças e espécie de academia de letras da periferia participa de ações que literários contemporâneos. Grupos de até dez alunos adolescentes. É uma biblioteca com 9 mil de São Paulo. envolvam educação, aprimoram os próprios textos de ficção, percorrendo o livros em um espaço com atividades comunicação e tecnologia processo de produção literária. O projeto reúne em livro lúdicas. Fundada em 1987, no Rio de contos, novelas narrativas, roteiros, peças teatrais ou Janeiro, a ONG criou sua filial paulista em Fl upp paulo werneck fragmentos de romance criados por alunos. 2003 e hoje também dá atenção à sugestão: Bianca Ramoneda é jornalista, editor e formação de educadores da comunidade. tradutor. Curador das edições de 2014 a A carioca Flupp ficou conhecida como a 2016 da Festa Literária literária produção à stímulo Primeiro Livro “Festa Literária das Periferias”. Criada em Internacional de E sugestão: Anna Penido e Caio Dib Programa de Bibliotecas Rurais 2012 e mantida com apoio federal, Paraty (Flip) – Arca das Letras promove intercâmbios entre autores e bianca Ramoneda Coordenado pelo professor Luis Junqueira, em São sugestão: Bianca Ramoneda leitores entre abril e setembro, com 25 é jornalista, atriz e Paulo, o projeto beneficia alunos de escolas públicas encontros em favelas diferentes, com escritora. Apresenta o e privadas de São Paulo e Alagoas, além de jovens Criado pela Secretaria de Reordenamento escritores nacionais e internacionais. Seus programa Ofício em reclusos na Fundação Casa. Em encontros semanais, Agrário do Ministério do Desenvolvimento processos de formação já resultaram na cena, na Globonews. É os alunos aprendem ortografia e gramática, a Agrário em 2003, o programa de bibliotecas publicação de dez livros, revelando mais autora do livro Só (Rocco) e adaptou a construir personagens, a montar cenas e a diagramar rurais Arca das Letras entregou mais de 2 de cem autores das periferias. Foi obra do poeta Manoel e a ilustrar os próprios textos. Os livros são impressos milhões de livros a agricultores familiares, escolhida como o melhor festival literário de Barros para o teatro e cada aluno recebe 25 exemplares. Quem ajuda a assentados da reforma agrária, pescadores, de 2016 pela London Book Fair. com a peça Inutilezas e financiar o projeto recebe livros autografados de remanescentes de quilombos, indígenas, para o curta de escritores apoiadores, como Ziraldo, Chico Buarque e populações ribeirinhas e comunidades animação Histórias da unha do dedão do pé Milton Hatoum. tradicionais que vivem no meio rural de do fim do mundo 2.338 municípios brasileiros, em acervos com cerca de 200 títulos cada uma.

110 111 making of nas internas bastidores da produção desta edição, que chega com novidades

Para este número foi formada uma equipe de curadoria, que com a gerente de Educação do Instituto C&A, Patrícia Lacer- conta com a professora da UFRJ e crítica literária Beatriz Re- da, e com a jornalista Bianca Ramoneda, autora do livro Só, de sende; com o jornalista Paulo Werneck, curador das edições contos e poemas, além de ser atriz e de ter adaptado o roteiro de 2014 a 2016 da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip); da peça Inutilezas, baseada na obra de Manoel de Barros.

várias vozes P ela primeira vez, o Caderno adota o sem folga modelo da entrevista múltipla, que na direção reúne mais de uma fonte. São três A conversa com o escritor entrevistas com essa dinâmica, que, por Milton Hatoum, o diretor vezes, propicia momentos de debate, Luiz Fernando Carvalho e em que ideias se complementam ou se a roteirista Maria contrapõem, aprimorando a reflexão Camargo aconteceu no altos sobre o tema proposto. Tvliê, mesmo galpão dos retratos Estúdios Globo, no Rio de T oda adaptação requer Janeiro, em que foram um mergulho na obra feitos os workshops e as original e muita atividades de pesquisa. A roteirista preparação de elenco de Maria Camargo fez Dois irmãos. Ao chegar várias fotos nas ao local, Carvalho não viagens a Manaus. O se limitou ao papel acervo serviu de de entrevistado. referência para a No melhor estilo diretor, ambientação da versão ele modificou televisiva de Dois a disposição de luzes irmãos e algumas fotos e equipamentos para que constam nesta edição. a entrevista começasse.

As opiniões expressas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores. Todo material incluído nesta publicação tem autorização dos autores ou de seus representantes legais. Nenhuma parte dos artigos pode ser reproduzida sem a autorização expressa da Globo, dos autores ou seus representantes.

112 O Caderno Globo é uma publicação periódica, com edições temáticas que se dedicam a aprofundar o debate e estimular a reflexão sobre assuntos relevantes para a sociedade. Concebido e produzido pela Globo, o Caderno faz parte de um amplo projeto de relacionamento da empresa com o meio universitário, estudantes e jovens, que inclui a realização de seminários, encontros e atividades que promovem a escuta, a troca e a disseminação de conhecimento.