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Ano 22 n. 302 PESQUISA FAPESP ABRIL DE 2021 cientistas desafia pobreza associadas à 20 doenças para enfrentar Roteiro da da Roteiro ABRIL DE 2021 | ANO 22, N. 302 22,N. 2021|ANO DE ABRIL OMS

recuperação de a auxiliar corais poderá de cultivo de Técnica inovadora recifes ameaçados Legislação avança Legislação avança no Brasil no científicas em pesquisas animais de o uso para reduzir

desalinhadas de grafeno folhas de surpreendente registra efeito Aparelho nacional VÍRUS VÍRUS EM EM MOVIMENTO favorece variedades favorece variedades da pandemia Descontrole mais transmissíveis mais transmissíveis do Sars-CoV-2 Sars-CoV-2 do e letais WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

Como Como industrial da saúde da industrial complexo o a desenvolver ajudaram e pesquisadores

médicos médicos

PESQUISA FAPESP TEM UM NOVO BOLETIM INFORMATIVO Todo mês, uma seleção dos principais conteúdos que INOVAÇÃO & publicamos sobre o tema EMPRESAS

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Cor engarrafada

À luz negra, a solução em laboratório brilha. Pode ser vermelha, laranja, verde ou de outra cor, conforme a composição química e o tamanho dos nanocristais de perovskita dentro dela. A pureza da coloração tem tornado esse material a sensação do momento como promissor para uma série de aplicações. No futuro distante ele pode, por exemplo, dar origem a uma nova geração de telas de televisão. Por enquanto, o grupo da química Ana Flávia Nogueira, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), dedica-se a sintetizar perovskitas e estudar suas propriedades ópticas, eletrônicas e quânticas.

Imagem enviada por Luiz Gustavo Bonato, estudante de doutorado no Instituto de Química da Unicamp

PESQUISA FAPESP 302 | 3 302

3 FOTOLAB ENTREVISTA FÍSICA AMBIENTE

6 COMENTÁRIOS 36 O geógrafo Jurandyr 56 Criado equipamento 64 Florestas antigas WIKIMEDIA COMMONS / 7 CARTA DA EDITORA Ross propõe uma para observar efeitos de Mata Atlântica perdem síntese das realidades decorrentes de desalinhar terreno para novas 8 BOAS PRÁTICAS ambientais, sociais uma de duas folhas formações com menor Estudos em psicologia e econômicas do país de grafeno sobrepostas biodiversidade ADAPTADO DE PONOR ADAPTADO

foram refutados, mas 3 continuaram a ter influência SAÚDE COLETIVA ENGENHARIA DE MATERIAIS ENTREVISTA 42 OMS apresenta 61 Sistema baseado 68 Gabriel Liguori, da 11 DADOS roteiro para enfrentar em inteligência artificial TissueLabs, tenta superar Publicações científicas as doenças tropicais descobre formulação desafios para fazer por unidade da federação negligenciadas de vidro a partir das coração bioartificial ACERVO ARQUIVO NACIONALACERVO características desejadas / 12 NOTAS ÉTICA BIOLOGIA MARINHA 16 NOTAS DA PANDEMIA 50 Legislação avança FOTÔNICA 72 UFPE cria técnica para reduzir o número 62 Miniaturização inovadora para recuperar DOMÍNIO PÚBLICO

CAPA de animais em práticas de em chip que transforma recifes de corais 2 18 Circulação sem ensino e pesquisa um tipo de luz em controle do coronavírus duas frequências pode favorece surgimento de FINANCIAMENTO reduzir dispositivos

variantes mais perigosas 54 Congresso derruba a laser WHO / ERIC SCHWAB 1 veto e proíbe novos

26 Instituto Butantan bloqueios do FNDCT IMAGENS e governo federal planejam testar dois novos candidatos a imunizante

28 Estudo realizado na cidade de Serrana deve gerar dados valiosos sobre a pandemia

30 Comitês de bioética ganham relevância na resolução de dilemas trazidos pela Covid-19

1. Pesquisa para o combate à esquistossomose no Brasil na década de 1950 (SAÚDE COLETIVA, P. 42) 2. Desenho de indígena da etnia Jurupixuna (HISTÓRIA, P. 82) 3. Ilustração representando duas lâminas de grafeno (FÍSICA, P. 56)

Capa Visão interna da estação da Luz, em São Paulo, 23 de março de 2021 Foto LÉO RAMOS CHAVES 1 WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

Leia no site a edição da revista em português, inglês e espanhol, além de conteúdo exclusivo

88 OBITUÁRIO VÍDEO YOUTUBE.COM/USER/PESQUISAFAPESP Manolo Florentino (1958-2021)

90 MEMÓRIA 2 Há 100 anos, insulina era descoberta e 50 anos atrás a Biobrás iniciava ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA sua produção no país 76 Pesquisadores participam de esforço 94 RESENHA para conjugar governo, O Brasil dobrou à direita – Seriam esses os precursores ciência e economia Uma radiografia da eleição dos pterossauros? em complexo industrial de Bolsonaro em 2018, Estudo sugere que vertebrados da saúde de Jairo Nicolau. terrestres extintos, os lagerpetídeos, Por Andréa Freitas foram os parentes mais próximos HISTÓRIA desses répteis alados 82 Estudos investigam 95 CARREIRAS bit.ly/igVLagerpetideos produção e circulação Número de graduandos do conhecimento que participam de programas no Império Português de estágio segue baixo

ABRIL 2021

Mesmo sem a cauda, esses escorpiões sobrevivem por meses Os animais destacam a ponta do próprio abdômen quando atacados, mas ainda conseguem caçar e se reproduzir bit.ly/igVEscorpiao

PODCAST Especial: Mulheres na ciência Pesquisadoras de zoologia, botânica e comportamento animal falam de seus trabalhos e refletem sobre a ampliação da participação feminina na geração de conhecimento 3 bit.ly/igPBR06mar21 COMENTÁRIOS [email protected] CONTATOS revistapesquisa.fapesp.br [email protected] Fósseis Tenho dó de quem faz parte desse gráfico. PesquisaFapesp É importante que o material descoberto fi- Eu, por exemplo. PesquisaFapesp que no Brasil (“No rastro dos fósseis contra- Rafael Nakamura bandeados”, edição 301). Mas também não pesquisa_fapesp dá para deixar queimar como aconteceu no PesquisaFAPESP Museu Nacional. Educação científica Thiago Cobra Sempre utilizei recursos de divulgação cien- pesquisafapesp tífica, ao longo de meus quase 35 anos de [email protected] magistério, nos ensinos fundamental, médio, R. Joaquim Antunes, 727 Terra preta técnico e superior (“Para abrir o mundo da 10º andar Os pesquisadores que criaram a nova teoria ciência”, edição 300). Dá certo. Empolga os CEP 05415-012 estudaram apenas um sítio (“Uma origem alunos. Coloca-os a par do processo científico, São Paulo, SP natural das terras pretas de índio?”, edição das lutas e dificuldades dos profissionais, da 301). Quando eles estudarem todos os sítios necessidade do aprimoramento e de estudos que o Eduardo Góes Neves e sua equipe já constantes. Contribui também para que se evi- ASSINATURAS, pesquisaram, aí sim a publicação irá “mexer” te a visão distorcida e até caricata do cientista. RENOVAÇÃO E MUDANÇA com os paradigmas. Lúcia Cruz DE ENDEREÇO Daniela Muniz Envie um e-mail para [email protected] Uso a revista com meus alunos. Acho impor- tante terem acesso à leitura de artigos de di- Arte indígena vulgação científica. PARA ANUNCIAR Vi as duas exposições sobre arte indígena Juliana Lescano Contate: Paula Iliadis (“Conquista do território”, edição 301): Vé- E-mail: xoa: Nós sabemos, na Pinacoteca, e a do Jaider [email protected] Eisbell, na galeria Millan. Fico feliz de ver Vídeo isso acontecer. O vídeo “Seriam esses os precursores dos Regina Müller pterossauros?” é um exemplo de explicação EDIÇÕES ANTERIORES Preço atual de capa didática, excelente. acrescido do custo Mariana Oliveira de postagem. Dados Peça pelo e-mail: A curva de contratados e concursos é o contrá- Rodolfo Nogueira é um artista de mão-cheia. [email protected] rio do que mostram os gráficos da seção Dados Parabéns a toda a equipe. (“Títulos de doutorado no Brasil”, edição 301). Cleberson C. X. de Albuquerque LICENCIAMENTO Milhares de doutores estão no terceiro pós-

DE CONTEÚDO -doutoramento por falta de emprego. Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser resumidas Adquira os direitos de Jefferson Sodré por motivo de espaço e clareza. reprodução de textos e imagens de Pesquisa FAPESP. E-mail: [email protected] Notícias que você lê no site de Pesquisa FAPESP bit.ly/igCarneJavaporco Mesmo processada, carne de javaporco pode transmitir doenças

Exemplares de javaporco, uma variedade selvagem de suíno, com filhotes CARLOS HENRIQUE SALVADOR SALVADOR HENRIQUE CARLOS

6 | ABRIL DE 2021 CARTA DA EDITORA FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

PRESIDENTE Marco Antonio Zago

VICE-PRESIDENTE Ronaldo Aloise Pilli

CONSELHO SUPERIOR

Carmino Antonio de Souza, Helena Bonciani Nader, Ignácio Maria Poveda Velasco, João Fernando Gomes de Oliveira, Liedi Legi Bariani Bernucci, Mayana Zatz, Mozart Neves Ramos, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Vanderlan da Silva Bolzani Princípios e decisões CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

DIRETOR-PRESIDENTE Carlos Américo Pacheco Alexandra Ozorio de Almeida | DIRETORA DE REDAÇÃO

DIRETOR CIENTÍFICO Luiz Eugênio Mello

DIRETOR ADMINISTRATIVO Fernando Menezes de Almeida s vírus são organismos simples e de pesquisa como o desenvolvimento de sofisticados. Não possuem meca- fármacos e vacinas: o uso de animais em O nismos muito eficientes de corre- testes e estudos. Embora a criação de mé- ção de erros na hora de se replicarem, o todos alternativos tenha avançado muito, ISSN 1519-8774 que faz com que essas mudanças no seu ainda não há substituto aos modelos ani-

COMITÊ CIENTÍFICO genoma sejam incorporadas nas gera- mais quando a pesquisa envolve múlti- Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Américo Martins Craveiro, Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria ções seguintes. Essas mutações podem plas interações em sistemas complexos Fonseca Almeida, Carlos Américo Pacheco, Catarina Segreti Porto, Claudia Lúcia Mendes de Oliveira, Deisy das Graças de Souza, Douglas ser inócuas ou tornar o vírus mais eficien- e interdependentes, como a avaliação Eduardo Zampieri, Eduardo de Senzi Zancul, Euclides de Mesquita Neto, Fabio Kon, Francisco Rafael Martins Laurindo, João Luiz te – algo indesejável quando somos nós da trajetória de uma molécula no orga- Filgueiras de Azevedo, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Leticia Veras Costa Lotufo, Lucio Angnes, Luciana os hospedeiros. nismo após sua administração. Mesmo Harumi Hashiba Maestrelli Horta, Mariana Cabral de Oliveira, Marco Antonio Zago, Marie-Anne Van Sluys, Maria Julia Manso Alves, Marta Um ano depois de a OMS ter classifi- assim, esses princípios são norteadores Teresa da Silva Arretche, Paula Montero, Richard Charles Garratt, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Rui Monteiro de Barros Maciel, cado o surto de Covid-19 como pande- de práticas que racionalizam o uso, re- Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral e Walter Colli mia, causam preocupação três variantes duzindo-as ao mínimo, substituindo-as COORDENADOR CIENTÍFICO Luiz Henrique Lopes dos Santos do Sars-CoV-2 – de um conjunto de mais sempre que possível. Reportagem desta DIRETORA DE REDAÇÃO Alexandra Ozorio de Almeida de 300 linhagens já catalogadas do vírus. edição (página 50) retoma essa questão,

EDITOR-CHEFE Uma foi identificada no Reino Unido, ou- em pauta devido ao prazo que se aproxi- Neldson Marcolin tra no Brasil e a terceira na África do Sul. ma para que no Brasil sejam obrigatórios EDITORES Fabrício Marques (Política C&T), Glenda Mezarobba (Humanidades), Marcos Pivetta (Ciência), Yuri Vasconcelos Embora ainda pouco se saiba sobre elas, métodos alternativos em alguns tipos (Tecnologia), Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto (Editores especiais), Maria Guimarães (Site) dado que o conhecimento é adquirido em de testes, como controle de qualidade

REPÓRTERES Christina Queiroz, Rodrigo de Oliveira Andrade tempo real, junto com a evolução do vírus, de produtos injetáveis. REDATORES Jayne Oliveira (Site) e Renata Oliveira há indícios de que sejam mais transmis- Outro exemplo de discussão no cam- do Prado (Mídias Sociais) síveis e, em alguns casos, mais letais que po da bioética é a distribuição de vacinas ARTE Claudia Warrak (Editora), Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Designers), as versões predominantes no começo da contra Covid-19 entre países com mais ou Alexandre Affonso (Editor de infografia), Felipe Braz (Designer digital)

FOTÓGRAFO Léo Ramos Chaves pandemia. Reportagem de capa desta edi- menos recursos. A concentração dos imu-

BANCO DE IMAGENS Valter Rodrigues ção (página 18) procura explicar o que se nizantes nas mãos de quem pode pagar

RÁDIO Sarah Caravieri (Produção do programa Pesquisa Brasil) sabe sobre as variantes, como ocorrem as por eles mostra que o fosso que separa

REVISÃO Alexandre Oliveira e Margô Negro mutações e por que é importante acom- os países desenvolvidos daqueles em de- COLABORADORES Andréa Freitas, Bruno de Pierro, Diego Viana, panhar a evolução do vírus para que as senvolvimento está presente também na Eduardo Geraque, Frances Jones, Luiz Gustavo Bonato, Natália Gregorini, Renato Pedrosa, Sidnei Santos de Oliveira, Suzel Tunes, vacinas se mantenham eficazes. saúde. Enquanto bilhões de dólares fo- Tiago Jokura Com média móvel de óbitos diários se ram investidos na busca de tratamentos e REVISÃO TÉCNICA Adriana Valio, Francisco Rafael Martins Laurindo, Gustavo Dalpian, Hellmut Eckert, Inez Staciarini Batista, Maria Beatriz aproximando de 3 mil, as equipes de saú- vacinas para a pandemia que em um ano Florenzano, Mariana Cabral de Oliveira, Paulo Nussenzveig, Ricardo Ribeiro Rodrigues, Walter Colli de no Brasil enfrentam decisões difíceis infectou 125 milhões de pessoas e matou

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL sobre a alocação de recursos escassos, 2,7 milhões, um conjunto de 20 molés- DE TEXTOS, FOTOS, ILUSTRAÇÕES E INFOGRÁFICOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO como leitos de UTI ou respiradores. A tias classificadas como doenças tropicais

TIRAGEM 30.050 exemplares IMPRESSÃO Plural Indústria Gráfica bioética é a área de pesquisa multidisci- negligenciadas mata todos os anos meio DISTRIBUIÇÃO RAC Mídia Editora plinar dedicada aos limites e à finalidade milhão de pessoas e mobiliza poucos re- GESTÃO ADMINISTRATIVA FUSP – FUNDAÇÃO DE APOIO À UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO da intervenção humana sobre a vida. A cursos e interesse em seu combate. Rela- PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, aplicação desse conhecimento por meio tório da OMS lançado neste ano e objeto 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, de comitês de bioética em hospitais é um de reportagem à página 42 informa que, Alto da Lapa, São Paulo-SP subsídio importante para essas situações embora nos últimos anos 600 milhões de SECRETARIA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO complexas. Infelizmente, estão presentes pessoas saíram da zona de suscetibilida- GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO em menos de 10% dos hospitais brasilei- de, muitas dessas doenças infecciosas não ros, como mostra reportagem à página 30. são objeto de uma articulação de esforços Os princípios da bioética também nor- de pesquisa e de políticas públicas para teiam uma discussão central para áreas serem neutralizadas.

PESQUISA FAPESP 302 | 7 BOAS PRÁTICAS

m um trabalho divulgado em feve- Caminhos reiro na plataforma MetaArXiv, um E grupo de pesquisadores dos Esta- dos Unidos, Reino Unido, Alemanha e demorados da Países Baixos avaliou o que ocorreu com quatro influentes artigos científicos na área de psicologia depois que suas con- autocorreção clusões foram contestadas por novos experimentos. Apesar dos prejuízos em da ciência sua credibilidade, esses papers continua- ram a ser citados em outros manuscri- tos em ritmo parecido com o que se via Psicólogos continuaram a citar anteriormente – na maioria dos casos, favoravelmente pesquisas cujos resultados simplesmente se ignorou o fato de que não foram confirmados em trabalhos não puderam ser confirmados. Houve, é verdade, uma queda discreta em men- subsequentes, mostra estudo ções favoráveis a tais estudos e um li- geiro aumento nas citações negativas. Entre os artigos que se referiram aos trabalhos e reconheciam que estavam em xeque, apenas a metade apresentou argumentos ou evidências para defender os achados originais.

8 | ABRIL DE 2021 A análise dos quatro artigos sugeriu apontou limites para a capacidade de não é um problema novo. Em 2012, os que os chamados estudos de replicação, autocontrole dos indivíduos. Em expe- psicólogos Joshua Hartshorne e Adena feitos para confirmar descobertas e tidos rimentos, Baumeister e seus colabora- Schachner, da Universidade Harvard, como essenciais para expor equívocos, dores pretenderam mostrar que pessoas propuseram em artigo da revista Fron- podem não acionar de forma imediata os que conseguiam resistir à tentação de tiers in Computational Neuroscience a mecanismos de autocorreção da ciência. comer chocolate tinham mais dificul- criação de bancos de dados capazes de O trabalho divulgado na MetaArXiv é dade em cumprir tarefas difíceis logo conectar estudos originais com os traba- um preprint, manuscrito ainda não sub- em seguida, como montar um quebra- lhos que buscaram replicar seus achados. metido à revisão, e foi coordenado pelo -cabeças. Da mesma forma, indivíduos epidemiologista John Ioannidis, da Uni- forçados a fazer discursos defendendo médico Olavo Amaral, professor versidade Stanford, nos Estados Unidos, ideias contrárias às suas sofreriam para do Instituto de Bioquímica Mé- um especialista em integridade científica. realizar esforços exigidos em sequência. O dica da Universidade Federal do A escolha dos papers da área de psico- Os achados teriam corroborado a ideia Rio de Janeiro (UFRJ), chama a atenção logia não foi ocasional. Na década passa- de que ocorre o “esgotamento do ego” para um outro aspecto: a possibilidade da, uma sucessão de artigos científicos quando o autocontrole é muito deman- de que a análise dos pesquisadores sofra da disciplina caiu em descrédito porque dado. Tal efeito foi reavaliado em um um viés de confirmação, selecionando ar- seus resultados não foram confirmados estudo em 2016, com 2.141 participantes, gumentos e evidências que corroborem em experimentos subsequentes. Isso ge- que não registrou as suas crenças. “Não é rou o que se convencionou em chamar de evidências sobre o es- incomum que as pes- “crise da reprodutibilidade da psicologia”. gotamento do ego. Mas soas citem trabalhos Entre as iniciativas para enfrentar o pro- isso, segundo a análise Na década passada, que lhes interessem blema, houve um esforço para submeter de Ioannidis, não teve vários artigos para provar um pon- a um escrutínio mais rigoroso estudos nenhum impacto nas to em vez de tentar fa- com grande repercussão na área, como os tendências de citação científicos de zer uma revisão isenta quatro artigos analisados por Ioannidis. do paper original. psicologia caíram da evidência existente. Um desses trabalhos foi publicado em Os outros dois ar- Talvez por isso não se- 1988 por Fritz Strack, hoje professor emé- tigos referiam-se aos em descrédito após ja infrequente que al- rito da Universidade de Würzburg, na efeitos da exposição serem contestados guns consensos se bi- Alemanha. Seus resultados supostamente de indivíduos a certas furquem na ciência”, corroboraram uma hipótese, postulada situações e como isso por outros afirma Amaral. Ele li- pelo filósofo e psicólogo americano Wil- influía na resposta a es- experimentos dera a Iniciativa Bra- liam James (1842-1910), de que a expres- tímulos subsequentes. sileira de Reproduti- são facial de uma pessoa afeta diretamen- Em 2013, Eugene Caru- bilidade, um projeto te seu estado emocional. Strack pediu aos so, da Escola de Gestão financiado pelo Insti- participantes do estudo que segurassem da Universidade da Califórnia em Los tuto Serrapilheira que pretende repetir uma caneta com a boca, de modo a forçar Angeles, nos Estados Unidos, publicou uma centena de experimentos de arti- dois diferentes tipos de expressão: sorriso um paper postulando que a exposição gos brasileiros da área biomédica para ou testa franzida. Em seguida, fez os in- de indivíduos ao dinheiro tinha impacto verificar o quanto é possível reproduzir divíduos verem desenhos animados. Ele na forma como eles defendiam princí- os resultados publicados (ver Pesquisa concluiu que os participantes forçados a pios de livre mercado. De forma seme- FAPESP nº 267). sorrir consideravam os desenhos anima- lhante, Travis Carter, da Universidade Um trabalho que avaliou esse proble- dos mais engraçados do que os que man- de Chicago, concluiu que a exposição ma na área médica foi coordenado pelo tinham a expressão carrancuda. de indivíduos à imagem da bandeira nos próprio Ioannidis, em 2007, e divulga- Em 2016, o trabalho foi reavaliado pela Estados Unidos influenciava comporta- do no Journal of the American Medical iniciativa Registered Replication Reports, mentos políticos conservadores. Esses Association (Jama). Foram analisadas da Association for Psychological Science, dois estudos foram reavaliados por uma as referências feitas a estudos obser- que utilizou os mesmos desenhos anima- iniciativa chamada Many Labs, utilizan- vacionais que apontaram benefícios da dos, mas não conseguiu reproduzir os do a metodologia original e aplicando-a vitamina E para o coração, do betaca- resultados de Strack. O psicólogo alemão a um número maior de indivíduos. Os roteno contra o câncer e do estrogênio defende a fidedignidade de seu experi- resultados não se confirmaram. contra o mal de Alzheimer – isso, de- mento e argumenta que, no estudo de Ioannidis levanta a hipótese de que pois que esses resultados foram refu- confirmação, os voluntários sabiam que parte dos autores possa ter citado os estu- tados por ensaios clínicos randomiza- estavam sendo observados e filmados. dos simplesmente porque não soube das dos. Observou-se que, após a contesta- Isso, segundo afirma, pode ter alterado contestações. Isso já ocorreu até mesmo ção, houve uma diminuição muito lenta o comportamento em relação ao que se com papers que são desqualificados por na frequência de citações dos estudos viu em 1988. erros ou fraudes e sofreram retratação – observacionais e, ainda assim, um seg- Outro trabalho no rol dos contestados ainda assim acabam citados por pesqui- mento dos pesquisadores continuou a é um artigo de 1998 do psicólogo social sadores incautos. A desconexão entre citar favoravelmente os resultados­

CHRISTOPHER FURLONG / GETTY IMAGES norte-americano Roy Baumeister, que os resultados originais e de replicação desmentidos. n Fabrício Marques

PESQUISA FAPESP 302 | 9 Formação sobre integridade científica

Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Vicente Rizzo, diretor-superintendente do institu- Albert Einstein reforçou o treinamento to. “A integridade científica está vinculada à qua- O em boas práticas de pesquisa de seus es- lidade da pesquisa. Nosso objetivo é aperfeiçoar a tudantes de pós-graduação. Braço de pesquisa do formação dos nossos pesquisadores para garantir Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo, que sigam padrões éticos e produzam resultados e responsável pela formação de médicos residen- de alto nível”, afirma Rizzo. O escritório também tes, especialistas, mestres e doutores, a instituição pretende lançar em breve um conjunto de vídeos criou no final de 2019 um Escritório de Integri- e um e-book sobre integridade científica. dade Científica dedicado a promover ações em Antes de criar o escritório, o instituto mantinha educação. Um programa-piloto que começou a ser desde 2016 um Comitê de Integridade Científi- aplicado a uma turma de 20 alunos de mestrado ca incumbido de monitorar estudos realizados oferece, logo no início do curso, uma aula sobre por seus médicos, docentes e alunos, com o ob- temas de integridade científica, esmiuçando con- jetivo de assegurar que estejam seguindo boas ceitos como plágio, falsificação e fraude, e orien- práticas e obedecendo as recomendações feitas tando práticas relacionadas a métodos de coleta pelo comitê de ética em pesquisa da instituição. e preservação de dados de pesquisa e ao uso de “Introduzimos um sistema de gerenciamento de ferramentas estatísticas para interpretá-los. Tais projetos capaz de acompanhar as pesquisas desde conceitos são resgatados e estimulados quando o a fase de coleta de dados e alertar os responsáveis aluno apresenta seu projeto de pesquisa para uma para eventuais descuidos ou equívocos”, infor- banca de qualificação, com o apoio de seu orien- ma a antropóloga Anna Davison, coordenadora tador, e depois checados na defesa da dissertação. do escritório. “Quando ajustes são necessários, A depender dos resultados da experiência, o o pesquisador deve fazer as correções e enca- programa poderá ser ampliado para alunos de minhar o projeto novamente para avaliação.” doutorado da instituição. “Todos os médicos e Em 2020, pesquisadores vinculados ao Hospi- estudantes interessados podem ter acesso a esses tal Albert Einstein foram responsáveis por 883 conteúdos e a supervisão mesmo sem participar publicações científicas, entre artigos, revisões e do programa-piloto”, explica o imunologista Luiz trabalhos apresentados em eventos.

Violência racial e reuniões científicas

American Physical Society (APS) vai tíficas dos Estados Unidos. Inconformados com adotar novos critérios para selecionar a morte de um homem negro desarmado, Geor- A as sedes de seus 12 eventos científicos ge Floyd, em uma ação policial no município de anuais, vetando cidades com registros policiais Minneapolis, no estado de Minnesota, eles pedi- racistas. A partir de agora, serão considerados ram que as entidades representativas de pesqui- na escolha fatores como a disponibilidade de da- sadores deixassem de prestigiar em seus eventos dos abertos sobre o uso da força pela polícia na cidades com histórico de ações policiais racistas. cidade e o perfil demográfico de seus alvos ou a A única até agora a aderir à ideia foi a APS, que existência de órgãos independentes para investi- reúne 55 mil físicos. Hunter Clemens, diretor gar mortes sob custódia policial. A lista de crité- de eventos da associação, disse à revista Natu- rios foi elaborada com a ajuda do criminologista re que os critérios só serão aplicados a eventos Greg Ridgeway, da Universidade da Pensilvânia. ainda não agendados. Com isso, será mantido um A decisão da APS foi uma resposta a uma car- congresso científico da associação que já estava ta enviada pelos físicos Philip Philips e Michael programado para 2024 justamente em Minnea- Weissman, ambos da Universidade de Illinois, polis, o estopim de protestos que ganharam os

Urbana-Champaign, a diversas sociedades cien- Estados Unidos em 2020. ALEXANDRE AFFONSO

10 | ABRIL DE 2021 Publicações científicas DADOS por unidade da federação

PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS – 2019 PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS POR TOTAL BRASIL – 64.368 100 MIL HABITANTES – 2019 Foram publicados 64.368 SP 26.463 DF 98,2 trabalhos científicos1 indexados RS 72,6 na base Web of Science com MG 9.885 pelo menos um autor sediado no SP 57,6 Brasil, em 2019, representando RJ 9.764 RJ 56,6 aumento de 6,9% sobre o número de 2018, de 60.203. RS 8.260 PR 52,8 Este número corresponde PR 6.037 RN 51,0 a 2,8% da produção mundial, de 2,33 milhões de publicações SC 3.609 SC 50,4 Autores sediados em São Paulo MG 46,7 DF 2.959 participaram de 26.463 Rússia 44,7 publicações, o que representa PE 2.895 41% do total do país. , PB 44,6 Rio de Janeiro, Rio Grande BA 2.513 MS 41,7 do Sul e Paraná seguem na lista de unidades da federação (UF), CE 2.248 China 39,2 ordenadas pelo número África do Sul 35,5 de publicações com autores GO 1.866 sediados na UF2 SE 33,4 PB 1.793 ES 32,0 Levando em conta a população, RN 1.788 o Brasil tem 30,6 publicações por Brasil 30,6 100 mil habitantes. O índice PA 1.662 Mundo 30,3 é o mesmo para a produção global de publicações científicas, de ES 1.286 PE 30,3 30,3, originado de 2,33 milhões de GO 26,6 publicações para uma população MS 1.160 global de 7,67 bilhões de AM 26,4 habitantes, no mesmo ano AM 1.094 CE 24,6 Entre os países do grupo do Brics3, MT 774 PI 22,3 o Brasil se coloca atrás da Rússia, da China e da África do Sul, SE 768 MT 22,2 mas bem acima do índice da Índia, AP 21,9 menor do que os de todas PI 730 as UF brasileiras PA 19,3 MA 704 AC 18,6 O Distrito Federal lidera o índice AL 595 relativo à população (98,2). AL 17,8 Seguem-se o TO 242 BA 16,9 (72,6) e São Paulo (57,6), com forte presença das universidades RR 15,7 RO 213 estaduais paulistas TO 15,4 AP 185 Essas UF, além de Rio de Janeiro, RO 12,0 Paraná, Rio Grande do Norte, AC 164 MA 10,0 Santa Catarina e Minas Gerais, apresentam índices acima RR 95 Índia 7,8 daqueles dos países do Brics

NOTAS (1) PUBLICAÇÕES INDEXADAS NAS BASES INCITES/WEB OF SCIENCE/CLARIVATE, DOS TIPOS “ARTICLE”, “PROCEEDING PAPER” E “REVIEW”. DADOS CONSULTADOS EM JANEIRO DE 2021 (2) A SOMA DOS NÚMEROS DAS UF EXCEDE O TOTAL DO BRASIL, POIS UMA PUBLICAÇÃO PODE CONTAR COM AUTORES DE MAIS DE UMA UF, SENDO CONTADA UMA VEZ PARA CADA UF (3) BRASIL, RÚSSIA, ÍNDIA, CHINA E ÁFRICA DO SUL

FONTES INCITES/CLARIVATE, IBGE/BRASIL, BANCO MUNDIAL. ELABORAÇÃO: GERÊNCIA DE ESTUDOS E INDICADORES, FAPESP

PESQUISA FAPESP 302 | 11 NOTAS

França subestimou total de afetados por testes atômicos

Durante os 41 testes nucleares realizados entre 1966 e 1974 pela França no oceano Pacífico, os habitantes dos arquipélagos da Polinésia Francesa foram expostos a doses de radiação de duas a 20 vezes superiores àquelas estimadas anteriormente pela Comissão de Energia Atômica da França, em 2005. A conclusão consta de uma análise realizada pelo projeto Arquivos Moruroa (moruroa- files.org/en) e divulgada em 9 de março. Os resultados foram apresentados ao público não especializado nas formas de site e livro, produzidos por uma colaboração entre a organização francesa para jornalismo investigativo Disclose, o coletivo de pesquisadores, arquitetos e designers Interprt, ligado à Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia, e uma equipe de pesquisadores liderada por Sébastien Philippe, do Programa de Ciência e Segurança Global da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Em um artigo científico, Philippe e colaboradores apresentam os detalhes da análise dos dados registrados durante os testes pelos militares franceses (arXiv.org, 9 de março). A maioria das informações vem de documentos secretos que só vieram a público em 2013. De acordo com a nova estimativa, o número de pessoas com direito à indenização pela lei francesa seria 10 vezes maior do que aquele reconhecido inicialmente pelo governo e somaria cerca de 10 mil pessoas que desenvolveram câncer entre 1975 e 2020.

Explosão nuclear realizada em 1971 no atol de Moruroa, na Polinésia Francesa

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12 | ABRIL DE 2021 Representação As primeiras imagens artística do planeta GJ 1132b do Amazonia-1

O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgou as primeiras imagens feitas pelo satélite brasileiro Amazonia-1. São fotos em alta resolução das regiões metropolitanas de São Paulo (abaixo) e do Rio de Janeiro, de áreas próximas à hidrelétrica de Sobradinho e ao rio São Francisco, na Bahia, e de uma reserva na Amazônia boliviana. O Amazonia-1 é o primeiro satélite de

observação da Terra completamente projetado, integrado, testado 3 e operado pelo Brasil. Ele foi colocado em órbita em 28 de fevereiro. Pouco depois, rastreadores dos Estados Unidos e da Itália Um planeta com uma detectaram um comportamento anormal do equipamento, o que levantou a suspeita de que estivesse fora de controle. O Inpe afirma atmosfera renovada que não houve problemas e que o satélite opera normalmente. A expectativa é que o Amazonia-1 se junte aos satélites CBERS-4 Dados obtidos com o telescópio espacial Hubble sugerem e 4A na produção de dados para o Sistema de Detecção de que um exoplaneta ganhou uma nova atmosfera após perder Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Inpe, que emite alertas a original. Para explicar a composição de sua segunda de desmatamento. Ele também será usado para apoiar a atividade atmosfera, o grupo de Mark Swain, da Nasa, realizou agrícola e monitorar as zonas costeiras e desastres ambientais. simulações computacionais da evolução do exoplaneta, o GJ 1132b. Distante 41 anos-luz do Sistema Solar, o GJ 1132b é um planeta rochoso, com idade, densidade e tamanho parecidos com os da Terra, mas está mais próximo de sua estrela do que a Terra do Sol. O estudo, do qual participaram a física brasileira Raissa Estrela e a astrofísica Adriana Valio, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, sugere que o GJ 1132b teria nascido como um gigante gasoso, um pouco menor do que Netuno, coberto por uma densa atmosfera de hidrogênio e hélio (Astronomical Journal, no prelo). “Nossos cálculos estimaram que, além da alta irradiação, o vento estelar teria varrido a atmosfera primordial do planeta”, explica Valio, que orientou o doutorado de Estrela. Segundo Estrela, os gases liberados pela atividade vulcânica na superfície rochosa do GJ 1132b

2 teriam regenerado sua atmosfera. UNESP 5

UFSCAR 4 5 4 Novos reitores da UFSCar e Unesp

Duas universidades paulistas têm novos dirigentes. Na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), foi escolhida reitora pelo presidente (sem partido) a fisioterapeuta Ana Beatriz de Oliveira. Ela se graduou em 2003, concluiu o doutorado na UFSCar em 2008 e R. HURT / ESA / CALTECH) / NASA (IPAC 3 no ano seguinte tornou-se professora do Departamento de Fisioterapia. INPE

2 Suas pesquisas estão voltadas para a fisioterapia preventiva, ergonomia e o estudo do movimento. Seu nome era o segundo na lista tríplice Ana Beatriz de Oliveira e Pasqual Barreti enviada pela instituição ao governo federal — o primeiro era o do físico Adilson Jesus de Oliveira. Os dois integravam a chapa vencedora (FM) da Unesp, campus de Botucatu, em 1981, tornou-se professor da da consulta realizada na universidade em fins de 2020. Ana Beatriz instituição em 1986. Exerceu o cargo de superintendente do Hospital não era candidata a reitora, mas a pró-reitora de extensão. Também das Clínicas da FM-Unesp entre 2001 e 2005. É bolsista de produtivi- em janeiro o médico Pasqual Barretti tomou posse como reitor da dade em pesquisa, nível 2, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Universidade Estadual Paulista (Unesp). O mais votado na consulta à Científico e Tecnológico (CNPq), com pesquisas dedicadas sobretudo GALERIA / GETTY BIDERWELT IMAGES

1 comunidade universitária em outubro do ano passado foi nomeado pelo ao estudo de complicações infecciosas da diálise peritoneal. Oliveira

FOTOS governador João Doria (PSDB-SP). Formado na Faculdade de Medicina e Barretti ocuparão o cargo até 2024.

PESQUISA FAPESP 302 | 13 Mais apoio à ciência Macho adulto e a girafa anã Nigel, em fazenda na no Reino Unido Namíbia em 2018 O governo britânico planeja criar uma nova agência de fomento à ciência no país, a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada e Inovação (Aria). A ideia é que ela atue de forma independente do governo e subsidie pesquisas na fronteira do conhecimento com potencial de oferecer retorno sob a forma de descobertas inovadoras que resultem em novas tecnologias, produtos e serviços. Ela deverá funcionar nos moldes da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (Darpa), dos

1 Estados Unidos. Criada em 1958 com o objetivo de dar àquele país superioridade Gimli e Nigel, duas girafas anãs tecnológica em relação à extinta União Soviética, a Darpa (atual Arpa) financiou Gimli é um macho adolescente de girafa-núbia (Giraffa camelopardalis camelopardalis). a formação de departamentos de ciência Foi observado pela primeira vez em dezembro de 2015 no Parque Nacional das Cataratas da computação, apoiou as startups com Murchinson, em Uganda, na África Oriental, por pesquisadores da Fundação para pesquisas iniciais, contribuiu para a Conservação das Girafas (GCF). Uma vez a cada quatro meses os integrantes da o desenvolvimento de semicondutores GCF fazem censos populacionais nos quais fotografam e calculam as medidas desses e supervisionou os estágios iniciais mamíferos em alguns países africanos. Na última vez em que foi visto, em março de 2017, da internet, ajudando a estabelecer Gimli media aproximadamente 2,8 metros (m) de altura e era pelo menos 0,5 m menor a indústria da informática nos anos 1960 do que as girafas da mesma idade – uma girafa macho adulta chega aos 5 m. Em maio e 1970. A Aria deverá contar com um de 2018, outra equipe do GCF conheceu Nigel, um macho jovem de girafa-de-angola orçamento inicial de £ 800 milhões (Giraffa giraffa angolensis) vivendo em uma fazenda na Namíbia, no sudoeste do (R$ 6,1 bilhões), a serem repassados em continente africano. Tinha 2,5 m quando foi visto em 2020 e uma filmagem sugeria que quatro anos. A proposta de criação caminhava com dificuldade. Gimli e Nigel são os primeiros registros de nanismo em da nova agência ainda será encaminhada girafas de vida livre (BMC Research Notes, 30 de dezembro de 2020). “Casos de animais pelo primeiro-ministro, Boris Johnson, selvagens com esse tipo de displasia esquelética são extraordinariamente raros”, para apreciação do Parlamento. declarou, em um comunicado, o biólogo Michael Brown, do GCF e do Instituto de Se aprovada, deverá começar a distribuir Biologia da Conservação Smithsonian e autor principal do estudo. seus recursos no início de 2022.

2

Uma forma de desdobrar o passado Sequência gerada por computador Usando um scanner de microtomografia por raios X, cons- Instituto de Pesquisa Adobe, ambos nos Estados Unidos, de abertura da truído para pesquisas odontológicas, uma equipe interna- analisaram as imagens obtidas pelo scanner para reconstituir carta do cional conseguiu ler o conteúdo de uma carta da Renascen- por computador o padrão de dobragem do papel de uma século XVII ça sem que fosse aberta. Para evitar tentativas de violação, carta de um acervo de 577 correspondências do século XVII, antes da invenção dos envelopes nos anos 1830, as corres- armazenadas em um posto dos correios em Haia, nos Países pondências na Europa costumavam ser dobradas e seladas Baixos (Nature Communications, 2 de março). Assim, sem de maneiras complicadas e únicas, conhecidas apenas pelo danificar o artefato, elas decifraram a mensagem do comer- remetente e pelo destinatário. Jana Dambrogio, do Instituto ciante francês Jacques Sennacques a seu sobrinho, Pierre Le de Tecnologia de Massachusetts, e Amanda Ghassei, do Pers, pedindo o certificado de óbito de um parente.

14 | ABRIL DE 2021 3

As causas da seca extrema do Pantanal Vista aérea da rodovia Transpantaneira Entre 2019 e 2020, o Pantanal enfrentou Pantanal está relacionada com a redução do no município de a pior seca registrada nos últimos 50 anos. transporte de ar quente e úmido do verão Poconé, em Mato Pesquisadores do Centro Nacional de Monitoramento da Amazônia para a região”, disse Carlos Marengo, Grosso, em 25 de e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), coordenador do Cemaden, à Agência FAPESP. O setembro de 2020 do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) surgimento de uma zona de alta pressão sobre e da Universidade Estadual Paulista (Unesp) o Centro-Oeste brasileiro teria impedido a chegada

PUC PUC CHILE identificaram as principais causas meteorológicas de umidade vinda da Amazônia e aumentado / do fenômeno e descreveram o seu impacto na as temperaturas do verão pantaneiro. A estiagem redução dos níveis do rio Paraguai, o maior da região prolongada elevou o risco de incêndios (Frontiers in Water, 23 de fevereiro). “A falta causados por descontrole de queimadas para de chuvas durante os verões de 2019 e 2020 no a abertura de pastos para a pecuária. FRANCISCA SANTANA-SAGREDO 4 Um fertilizante poderoso

Plantas e grãos encontrados nos registros arqueológicos sugerem que a agricultura praticada na região norte do Chile sustentou por séculos grandes assentamentos humanos, antes mesmo do estabelecimento do Império Inca

BUDA BUDA MENDES / GETTY IMAGES em 1438, o maior da América do Sul no período pré-colonial. Esses dados 3 não causariam estranhamento não fosse por um detalhe: o norte do Chile é dominado pelo deserto do Atacama, um dos mais áridos do planeta, com solo pobre em nutrientes. A arqueóloga Francisca Santana-Sagredo, pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica do Chile, e colaboradores supõem ter encontrado a resposta para o mistério. O grupo analisou a composição química de amostras de 12 alimentos com idade entre 3 mil anos e 550 anos atrás em sítios arqueológicos da região de Tarapacá e observou um aumento incomum na concentração de nitrogênio a partir do ano 900. UNLOCKING HISTORY RESEARCH GROUP 2 Os pesquisadores atribuem essa mudança na composição dos alimentos à adubação das plantações com guano, excremento de aves marinhas, um dos fertilizantes naturais mais ricos em nitrogênio (Nature Plants, 25 de janeiro). EMMA WELLS Amostras de milho e pipoca encontradas 1 A hipótese é de que o guano seria retirado de depósitos no litoral do Chile em sitios arqueologicos de cerca de

FOTOS e do Peru e transportado em caravanas de lhamas por dezenas de quilômetros. 4 1.500 anos da regiao de Tarapaca, no Chile

PESQUISA FAPESP 302 | 15 NOTAS DA PANDEMIA

O navio Diamond Princess no porto de Daikoku, no Japão, em fevereiro de 2020

1 Surto em navio confirma principal via de contágio

Finalmente foram publicados em uma revista científica os resultados analisaram 21,6 mil cenários diferentes para explicar a disseminação de simulações por computador da transmissão de Covid-19 durante da doença no navio. Cada cenário testou hipóteses sobre os valores o surto no cruzeiro australiano Diamond Princess, um dos primeiros de variáveis ainda desconhecidas que poderiam afetar o tempo de eventos de contágio fora da China a serem noticiados, no início da viabilidade das partículas de vírus fora do corpo humano. Os que pandemia. Em 20 de fevereiro de 2020, um mês depois de o cruzeiro melhor explicaram o surto são aqueles que assumem que mais de 50% começar, mais de 700 das 3.711 pessoas embarcadas testaram posi- das infecções ocorrem por meio da inalação de gotículas emitidas pela tivo para Covid-19. Em julho do ano passado, a equipe de Parham boca e pelo nariz quando se fala. Chamadas de aerossóis, essas gotas Azimi, da Escola de Saúde Pública de Harvard, nos Estados Unidos, diminutas permanecem suspensas no ar por mais de 20 minutos e divulgou os resultados preliminares das simulações. Os pesquisadores flutuam vários metros em um recinto fechado PNAS( , 23 de fevereiro).

Para entender os efeitos de longo prazo US$ 1,15 bilhão Os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos anunciaram em fevereiro o plano de investir US$ 1,15 bilhão nos próximos quatro anos em pesquisas para estudar os efeitos é o valor que de longo prazo da Covid-19 (Nature, 4 de março). Chamados de sequelas pós-agudas da os NIH vão investir infecção por Sars-CoV-2 (Pasc), os efeitos tardios da Covid-19 incluem fadiga, febre e falta de ar. Eles podem surgir semanas após a infecção e durar meses. Os NIH deverão apoiar estudos em quatro anos para de rastreamento e recuperação de pessoas, além da criação de um banco de amostras de estudar os efeitos sangue, urina, fezes e líquido cefalorraquidiano de pessoas com Pasc para a realização de longo prazo da de análises futuras. Até agora os NIH receberam US$ 3,6 bilhões do Congresso dos Estados Unidos para financiar pesquisas sobre Covid-19. Covid-19

16 | ABRIL DE 2021 Alta mortalidade infantil em Sergipe Aruká Juma, em 2014

Apesar do número adequado de leitos para adultos em unidades de terapia intensiva (UTI), Sergipe ainda conta com um déficit de 41% em leitos pediátricos. Em consequência, a taxa de mortalidade por Covid-19 entre crianças e adolescentes – de 4,9 casos para cada grupo de 100 mil pessoas com até 19 anos de idade – foi mais elevada nesse estado do que nos outros do Brasil e do que a média internacional, de acordo com um estudo de pesquisadores de universidades e órgãos de saúde de Sergipe e Alagoas (Tropical Medicine and International Health, janeiro). Houve 6.038 casos de Covid-19 entre crianças e adolescentes com idade máxima de 19 anos até 30 de setembro de 2020. Desse total, 37 morreram, a maioria (35) em hospitais públicos e 18 sem ter conseguido internação em UTI. A taxa mais alta de letalidade (15,3%) foi verificada entre crianças de até 1 ano.

Taxa de mortalidade e letalidade por faixa etária em Sergipe Maio a setembro de 2020

Mortes por Taxa de Casos Indivíduos 100 mil letalidade Grupo etário confirmados Mortes em Sergipe indivíduos (em %) < 1 ano 98 15 34.016 44,10 15,31 1 a 4 anos 935 4 136.606 2,93 0,43 5 a 14 anos 2.190 10 387.240 2,58 0,46 15 a 19 anos 2.815 8 202.045 3,96 0,29 Total 6.038 37 759.907 4,87 0,61

FONTES LOPES, A. S. A. ET AL. TROPICAL MEDICINE AND INTERNATIONAL HEALTH. JAN 2021 2 Morte de um homem Máscara que inativa o vírus e a extinção de uma etnia

Em março, começou a ser avaliada em um teste clínico no Hospital Regional Com idade estimada entre 86 e 90 anos, da Asa Norte, em Brasília, uma máscara contendo um composto biocompatível Aruká Juma, o último falante da língua do povo capaz de inativar o novo coronavírus. Desenvolvida pela equipe da engenheira Juma, morreu de Covid-19 em 17 de fevereiro biomédica Suélia Fleury Rosa, da Universidade de Brasília (UnB), a máscara deste ano em um hospital de Porto Velho, capital é um modelo N95 e contém nanofibras de quitosana, um polissacarídeo extraído de Rondônia. Sua etnia, que contava com cerca da casca descartada de crustáceos. Barato, atóxico e não alergênico, o composto de 15 mil pessoas no século XVIII, foi devastada inativou partículas do Sars-CoV-2 em testes no laboratório do engenheiro por doenças e conflitos com seringueiros, Marcus Vinicius Lia Fook, da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). madeireiros e garimpeiros. Em 1964, restavam Financiado por doações on-line, o ensaio clínico foi registrado na Anvisa só seis indivíduos Juma e, em 1999, apenas Aruká. e está avaliando o desempenho da máscara, que recebeu o nome de Vesta, Sua primeira mulher morrera em 1996. As quatro ALEXANDRE AFFONSO ALEXANDRE AFFONSO em 60 profissionais da saúde que atendem pacientes com Covid-19. filhas, incluindo uma de outro casamento, “Se aprovada pela Anvisa, a Vesta será fabricada sob licença não exclusiva”, casaram-se com homens da etnia Uru-eu-wau-wau.

ILUSTRAÇÃO conta Rosa. “Queremos oferecer a tecnologia a todas as empresas interessadas.” Em 2016, como noticiado no jornal New York Times,

ele contou ao repórter fotográfico Gabriel Uchida: “Éramos muitos antes que os seringueiros e os garimpeiros viessem para matar todos os Juma. AMAZÔNIA AMAZÔNIA REAL / Na época, os Juma eram felizes. Agora sou só eu”. Carga negativa Aruká Juma se dizia frustrado por não poder conversar com os netos, que só falavam português, ODAIR ODAIR LEAL

2 Carga positiva língua não dominada por ele. “Aruká era o último Atração elétrica homem Juma que tinha memória das maneiras de caçar e dos modos artesanais próprios de Vírus ativo seu povo”, comentou o antropólogo Edmundo

Vírus inativado Peggion, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araraquara, ao jornal El País, que CARL COURT / GETTY IMAGES

1 também noticiou sua morte. Peggion conheceu

FOTOS Juma nos anos 1990.

PESQUISA FAPESP 302 | 17 CAPA

O VÍRUS 50% EM 40% EVOLUÇÃO

30%

20%

B.1.1.29

10%

A DANÇA DAS VARIANTES NO BRASIL B.1 Como mudou a distribuição das seis principais linhagens em circulação entre fevereiro de 2020 e fevereiro de 2021 0 FEV/2020 MAR/2020 ABR/2020 MAI/2020 JUN/2020 JUL/2020 AGO / 2020 18 | ABRIL DE 2021 Baixos índices de vacinação e falta de controle da circulação do Sars-CoV-2 favorecem o surgimento de variantes mais transmissíveis e letais

Ricardo Zorzetto

m um ano de pandemia, oficialmente decre- e se replicava, acumulou pequenas modificações tada em 11 de março de 2020 pela Organi- em seu material genético até que, em diferen- zação Mundial da Saúde (OMS), o mundo tes locais e momentos, já estava tão diferente do assistiu, atônito, ao adoecimento de 122 mi- original que passou a ser considerado uma nova lhões de pessoas e à morte de ao menos 2,7 variante, que, ao prosperar e se disseminar, co- Emilhões – um terço delas ocorridas em apenas três meça a ser chamada de linhagem – a linhagem LISSA ECKERT HIGGINS - MSMI E DAN - MAMS / CDC A

países: Estados Unidos, Brasil e México. Também agrupa exemplares com a mesma origem e mui-

AGEM pôde acompanhar, em tempo quase real e com um to semelhantes entre si, mas que podem possuir IM nível de detalhe talvez nunca visto antes, a evo- pequenas diferenças. lução do patógeno que pôs de joelhos o sistema Em 15 de março deste ano, a Nextstrain, uma de saúde e afetou profundamente a economia de ferramenta de visualização de genomas virais, muitas nações. Desde que foi identificado no final listava nada menos do que 359 linhagens do novo de 2019 na cidade de Wuhan, na região central coronavírus catalogadas desde dezembro de 2019 ALEXANDRE AFFONSO da China, o vírus Sars-CoV-2 sofreu uma série de pelo sistema de classificação Pangolin ver( página transformações enquanto se espalhava pelo pla- 24). Entre tantas, três delas – uma surgida no Rei-

INFOGRÁFICO neta. À medida que infectava mais e mais pessoas no Unido, outra na África do Sul e uma terceira

B.1.1.33 P.2

P.1

B.1.1.28

Outras

AGO / 2020 SET/2020 OUT/2020 NOV/2020 DEZ/2020 JAN/2021 FEV/2021

FONTE REDE GENÔMICA FIOCRUZ PESQUISA FAPESP 302 | 19 no Brasil – vêm causando especial preocupação no Reino Unido e, agora, surgiram evidências de por serem mais transmissíveis, poderem escapar que está associada a um risco maior de morrer. à ação de anticorpos e, em alguns casos, provoca- Em um estudo publicado em 15 de março na rem doença mais grave do que as que circulavam revista Nature, o epidemiologista Nicholas Davies anteriormente. “Com as ferramentas genéticas de e matemáticos e estatísticos da Escola de Higiene que dispomos atualmente, estamos assistindo à e Medicina Tropical de Londres estimaram que evolução desse patógeno ao mesmo tempo que ela uma pessoa infectada por essa variante tem, em ocorre”, afirma o virologista José Luiz Proença média, uma probabilidade 61% maior de morrer Módena, coordenador do Laboratório de Estudos do que alguém que contraiu alguma das linhagens de Vírus Emergentes da Universidade Estadual que circulavam anteriormente. Eles chegaram a de Campinas (Unicamp). essa conclusão depois de analisar 4.945 óbitos ocorridos em um grupo de 1.146.534 britânicos que primeira dessas variantes, que já se tornou haviam testado positivo para o novo coronavírus. uma linhagem e em março estava presente Dias antes, pesquisadores liderados pelo médico em 118 países, foi detectada em 14 de de- Robert Challen, da Universidade de Exeter, tam- zembro do ano passado no Reino Unido. bém no Reino Unido, apresentaram um resultado Ela começou a circular em setembro no semelhante em artigo publicado em 10 de março Acondado de Kent, no sudeste da Inglaterra, e ra- na revista The BMJ. Ao comparar o total de mor- pidamente se espalhou. Apelidada inicialmente tes em um grupo de 54.906 britânicos infectados de variante de Kent ou britânica, tornou-se depois com a B.1.1.7 com os óbitos em número igual de conhecida por um frio e sóbrio conjunto de letras pessoas que haviam contraído outra linhagem do e números (B.1.1.7) definido por uma nomenclatu- vírus, verificaram que o primeiro grupo tinha um ra proposta por pesquisadores da Austrália e do risco de morrer 64% maior do que o segundo. Reino Unido. Essa sequência de números indica Apesar de se disseminar facilmente na popu- que ela é a sétima variante derivada da primeira lação humana, o Sars-CoV-2, na fase inicial da que descende da linhagem B.1, uma das duas que pandemia, parecia ser um vírus razoavelmente surgiu originalmente em Wuhan – a outra, pos- bem-comportado, que sofria modificações muito sivelmente mais antiga, é a A.1, que desapareceu lentamente. A cada mês acumulava, em média, em meados do ano passado. Por causa de algumas duas mutações na sequência de quase 30 mil ba- alterações (mutações) que apresenta no genoma, ses nitrogenadas, as letras químicas que compõem a B.1.1.7 é transmitida ao menos duas vezes mais seu genoma, uma espécie de manual de instru- facilmente do que a linhagem que a originou e, ções para a fabricação de novas cópias do vírus. ao que parece, também causa doença mais grave. Só para se ter um parâmetro de comparação, o No final de 2020 havia sinais de que ela poderia vírus da influenza A, causador de pandemias de contribuir para o aumento das hospitalizações gripe, evolui muito mais rapidamente: sofre uma

USINA DE TRANSFORMAÇÕES

Proteína Formado por uma fita simples de RNA com ORF1b quase 30 mil bases nitrogenadas, o material genético do Sars-CoV-2 acumula pequenas alterações (mutações) à medida que é copiado

B.1.1.7

Espícula B.1.351

ORF1c E Proteína M ORF1a 6 7a 8 b P.1 N

FONTES OUTBREAK.INFO E PANGO LINEAGES

20 | ABRIL DE 2021 mutação a cada vez que se multiplica, em questão tação leva à substituição do aminoácido aspara- de horas, ritmo que obriga a atualização anual da gina (N) pelo aminoácido tirosina (Y) na posição composição da vacina contra a gripe. 501 da proteína S. Identificada pela primeira vez Já no final de 2020, quando eram anunciados na linhagem B.1.1.7, essa troca parece aumentar os resultados de eficácia das primeiras vacinas a adesão do vírus às células e sua transmissibili- e ressurgia a esperança de que a pandemia esti- dade. Por causa dessas características, a agência vesse se atenuando, o novo coronavírus voltou a de saúde Public Health England (PHE), do Reino surpreender. “Passaram a surgir variantes que Unido, qualificou essa linhagem como variante apresentavam simultaneamente várias mutações de preocupação número 1 de dezembro de 2020. e se disseminaram rapidamente, substituindo as Em meados de março, segundo estimativa da anteriores”, lembra o virologista Fernando Spil- Nextstrain baseada em dados do sistema Pango- ki, pesquisador da Universidade Feevale, no Rio lin, a linhagem B.1.1.7 causava 42% das infecções Grande do Sul, e coordenador da Rede Nacional pelo novo coronavírus no mundo (ver gráfico na de ômicas de Covid-19, a Corona-ômica BR, que página 22). De maneira independente e quase si- acompanha a circulação do vírus no país. multânea, a mutação N501Y também apareceu nas Uma dessas variantes é a que originou a linha- duas outras linhagens do vírus que mais inquietam gem B.1.1.7. Ela apresenta 23 mutações em relação os especialistas: a B.1.351, originária da África do à B.1, de Wuhan, das quais 17 provocam a troca de Sul, e a P.1, que surgiu em , no Brasil. Elas um aminoácido nas proteínas do vírus – as outras se encontram em expansão e, estima-se, já causam, seis são inócuas (ver infográfico abaixo). Os ami- respectivamente, 6% e 2% dos casos de Covid-19 noácidos são compostos químicos que, unidos uns no planeta. “Até o surgimento da variante B.1.1.7 no aos outros em sequência, formam as proteínas. Em Reino Unido, acreditávamos que a taxa de evolução alguns casos, a substituição de um único aminoá- do vírus fosse lenta e que seria possível segurar cido é suficiente para alterar a estrutura tridimen- o aumento de sua diversidade até a chegada das sional da proteína e modificar seu funcionamento. vacinas”, conta a médica Ester Sabino, da Univer- sidade de São Paulo (USP), coordenadora de uma esquisadores e profissionais da área da saúde das equipes que identificaram a P.1. se preocupam porque oito das substituições A linhagem B.1.351 foi detectada inicialmen- da B.1.1.7 (seis trocas e duas eliminações) te na região metropolitana de Nelson Mandela ocorrem em alguns dos 1.273 aminoácidos Bay, no sul da África do Sul, em outubro de 2020, da proteína spike (S), justamente a que per- embora possivelmente tenha surgido meses an- mite ao vírus aderir à superfície das células huma- tes, e foi reportada pelas autoridades do país em

ALEXANDRE AFFONSO P nas e invadi-las e é o principal alvo dos anticorpos dezembro. Descrita pelo grupo coordenado pelo produzidos por algumas vacinas. Uma mutação virologista brasileiro Túlio de Oliveira, da Uni-

INFOGRÁFICO em especial chama a atenção: a N501Y. Essa mu- versidade KwaZulu-Natal, em um artigo publi-

B.1.1.7 B.1.351 P.1 Identificada no Reino Unido, tem Nove mutações definem Detectada inicialmente 17 mutações específicas, seis essa linhagem, surgida na em Manaus, no Amazonas, na proteína spike. Destas, duas África do Sul. Seis ocorrem apresenta 16 mutações preocupam: a N501Y e a E484K, na spike, entre elas a típicas, nove delas na spike. que conferem, respectivamente, N501Y, a E484K e a K417N Compartilha as mutações maior transmissibilidade (também ligada ao escape N501Y, a E484K e a K417N base trocada base eliminada e escape à ação de anticorpos à ação de anticorpos) com a linhagem sul-africana

PESQUISA FAPESP 302 | 21 cado em março deste ano na revista Nature, ela apareceu com mais frequência em pessoas mais O NASCIMENTO DAS LINHAGENS jovens e saudáveis e hoje já tem transmissão local Sequenciamento de genoma permite na Europa e na América do Norte. Os vírus dessa linhagem também exibem 23 acompanhar as transformações do vírus modificações em seu genoma, oito delas no gene da proteína S. Além da N501Y, duas outras muta- Para acompanhar o surgimento das variantes e linhagens, ções na spike deixam em alerta os especialistas: a os especialistas sequenciam o material genético dos vírus em circulação E484K, que representa a troca de um glutamato em certo momento e determinada região e comparam com o das que (E) por uma lisina (K) e em fevereiro deste ano existiam previamente. Até o início de março, haviam sido sequenciados começou a ser detectada também na linhagem no mundo quase 670 mil genomas do Sars-CoV-2 – cerca de 4 mil britânica; e a K417N, na qual uma lisina é reposta sequenciamentos foram feitos no Brasil. O país conta hoje com ao menos por uma asparagina (N). Essas substituições al- três redes de laboratórios que fazem a vigilância genômica de forma teram uma região da spike chamada domínio de sistemática: a Rede Genômica da Fiocruz, financiada pelo Ministério ligação ao receptor, que entra em contato mais da Saúde; a Rede Nacional de ômicas de Covid-19 (Corona-ômica BR), intimamente com o receptor ACE2 na superfície apoiada pelo Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações; e o Centro das células humanas e abre caminho para a en- Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica trada do vírus, e impedem que certos anticorpos e Epidemiologia de Arbovírus (Cadde), custeado pela agência britânica produzidos após a aplicação de algumas vacinas Medical Research Council e pela FAPESP. “Precisamos ampliar nossa ou infecções prévias por outras variedades do capacidade de sequenciamento e estamos iniciando esse projeto”, conta Sars-CoV-2 se conectem ao vírus e o neutralizem. a bioquímica Marilda Siqueira, pesquisadora da Rede Genômica da Estudos preliminares indicam que as pessoas Fiocruz. “Mesmo assim, fomos capazes de identificar a introdução da infectadas pela B.1.351 – a segunda variante de linhagem britânica em vários estados e de detectar o início da circulação preocupação detectada em dezembro de 2020, da P.1, da P.2 e da N.9.” O sequenciamento do genoma depende do uso segundo o PHE – apresentam maior quantidade de reagentes importados, leva dias e custa cerca de R$ 600. Para de vírus no organismo, o que pode facilitar a trans- melhorar a vigilância, alguns laboratórios nacionais desenvolveram testes missão, além de potencialmente se beneficiarem moleculares (PCR) que permitem detectar as novas linhagens do vírus. menos dos efeitos protetores de algumas vacinas. Um deles é o da Fiocruz no Amazonas. Outro é o do virologista Renato Essas três alterações na spike também estão pre- Santana Aguiar, da UFMG, que identifica a P.1, a P.2, a B.1.1.7 e a B.1.351. sentes na linhagem P.1, originária do Brasil, que tem “O teste sai por R$ 60 e fica pronto em horas”, conta Aguiar. “Ele ainda outras sete alterações na mesma proteína. Ela permitirá conhecer com mais detalhes a circulação dessas linhagens.” descende da linhagem B.1.1.28, encontrada no país A genotipagem por PCR, no entanto, não substitui o sequenciamento, desde o início da pandemia, e foi nomeada com ou- única forma de identificar o surgimento de novas variantes e linhagens. tra letra porque o sistema só aceita três conjuntos de algarismos. A linhagem brasileira possivelmente co-

AS ONDAS DO CORONAVÍRUS Ao menos 359 linhagens já foram identificadas no mundo desde janeiro de 2020. Algumas desapareceram, outras, mais adaptadas, ganharam espaço

100% B.1 80% B 60% B.1.1.29

40% A 20%

0 JAN/2020 MAR/2020 MAI/2020 JUL/2020

22 | ABRIL DE 2021 meçou a circular em Manaus no início de novembro até pacientes com Covid-19 foram transferidos e foi detectada no mês seguinte, simultaneamente para outras regiões brasileiras por falta de leitos. por pesquisadores da USP e da Fundação Oswaldo Uma das consequências é que, em meados de Cruz (Fiocruz), durante o aumento no número de março, a P.1 já representava 41% das infecções pelo internações que marcou o início da segunda onda novo coronavírus no Brasil (ver gráfico na página da pandemia na região Norte do país, quando o 18). Outra análise realizada pela Rede Genômica sistema de saúde do Amazonas colapsou e pessoas da Fiocruz indicava que em menos de três me- morreram por asfixia em consequência da falta de ses a linhagem se tornou responsável por mais oxigênio medicinal nos hospitais. da metade das infecções em seis estados: Per- nambuco (51%), Rio Grande do Sul (63%), Rio m indivíduo infectado pela P.1 produz, em de Janeiro (63%), Santa Catarina (64%), Paraná média, duas vezes mais vírus do que os con- (70%) e Ceará (71%).“A situação que o país vive taminados pelas linhagens que circulavam hoje é semelhante àquela em que se encontrava antes no país, constatou a equipe do virolo- Manaus em dezembro, com a P.1 em franca disse- gista Renato Santana de Aguiar, da Universi- minação”, afirma Sabino, que coordena no país o Udade Federal de Minas Gerais (UFMG), integran- Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Desco- te da rede Corona-ômica BR. A presença de mais berta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de vírus no organismo aumenta de 1,4 a 2,2 vezes a Arbovírus (Cadde), financiado pela agência bri- possibilidade de transmissão, segundo estimativa tânica Medical Research Council e pela FAPESP. calculada pelo grupo liderado por Sabino e pelo “O Brasil tornou-se um terreno fértil para o biomédico português Nuno Faria, da Universidade surgimento de variantes e linhagens mais con- de Oxford, no Reino Unido. Outra equipe da USP, tagiosas”, afirma o virologista Eurico Arruda, da coordenada pelo biólogo Paulo Inácio Prado, verifi- USP em Ribeirão Preto, que estuda os coronavírus cou ainda que a P.1 tem uma probabilidade – baixa, há quase três décadas (ver Pesquisa FAPESP nº é verdade, de 6,4% – de infectar novamente quem 301). A população suscetível a contrair o vírus é já foi contaminado por outras linhagens do vírus. grande, o país vacina muito lentamente e as me- Alguns especialistas defendem que, diante des- didas de prevenção, como distanciamento social sas características da P.1, medidas mais drásticas e uso de máscara, não vêm sendo adotadas de de saúde pública deveriam ter sido adotadas no forma efetiva em todas as regiões. “Quanto mais início do ano para tentar impedir a dissemina- gente o vírus infectar, mais ele vai se multiplicar ção dessa linhagem, como um rígido controle e sofrer alterações”, explica. de circulação de pessoas e o bloqueio de voos do Vírus são seres naturalmente propensos a acu- ALEXANDRE AFFONSO Amazonas para outras regiões. Desde dezembro, mular mutações em seu genoma porque, diferen- no entanto, ao menos 120 mil pessoas deixaram temente dos seres vivos formados por células, não

INFOGRÁFICO o Amazonas rumo a outros estados e países – e têm mecanismos eficientes de correção de erros.

B.1.2 B.1.1.7

B.1.351 P.1

SET/2020 NOV/2020 JAN/2021 MAR/2021

FONTE NEXTSTRAIN

PESQUISA FAPESP 302 | 23 À medida que o material genético viral é copiado “Minha expectativa é que, com o tempo, surjam para gerar novos exemplares, alterações ocorrem variantes mais transmissíveis, mas que causem aleatoriamente, de modo semelhante ao que acon- uma doença mais branda, como ocorreu com o tece com alguém que copia à mão um texto longo vírus da influenza A, que causou a pandemia de (mesmo que de modo muito atento). Sem proteí- gripe espanhola em 1918”, diz Arruda. Publicada nas que detectem com eficácia as incorreções e em 9 de março na revista Science, uma análise da as desfaçam, as mutações acabam incorporadas diversidade genética do Sars-CoV-2 em 1.313 pes- ao material genético dos novos vírus – no caso do soas feita pela epidemiologista Katrina Lythgoe, Sars-CoV-2, uma molécula de RNA de fita simples. da Universidade de Oxford, e colaboradores su- “Mutações ocorrem com frequência, mas nem gere que o desenvolvimento de variantes mais todas são importantes para aumentar a transmis- transmissíveis e que escapem à ação do sistema de sibilidade ou a patogenicidade do vírus”, explica defesa seja incomum. Uma vez que emergem, no a bioquímica Marilda Siqueira, do Laboratório de entanto, elas podem se disseminar rapidamente. Vírus Respiratórios e do Sarampo, da Fiocruz, re- ferência em vigilância genômica do coronavírus lém de permitir ao vírus se espalhar com para o Ministério da Saúde e para a OMS. Outras, mais facilidade, as mutações encontradas no entanto, podem conferir vantagem adaptati- nas novas linhagens vêm tirando o sono de va ao vírus e permitir, por exemplo, que penetre muitos especialistas pela ameaça que podem mais facilmente nas células, multiplique-se mais representar para a eficácia das vacinas. Os ou escape à ação dos anticorpos. Nessas situações, Aimunizantes produzidos pelas farmacêuticas norte- elas se fixam no genoma do vírus e são transmi- -americanas Janssen e Novavax, por exemplo, já tidas para as gerações futuras. mostraram ser menos eficientes contra a B.1.351, “Suspeitamos que esse seja o caso das mutações da África do Sul. Assim como a Novavax, a vacina N501Y, E484K e K417N, que apareceram de modo desenvolvida pela Universidade de Oxford com a independente em variantes surgidas em diferentes farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca também lugares do mundo e parecem aumentar a aptidão perde um pouco do seu efeito ante a linhagem viral”, conta Aguiar, da UFMG. Além de estar pre- B.1.1.7, do Reino Unido. Seu desempenho, porém, sente na P.1, na B.1.351 de origem sul-africana e é muito pior contra a linhagem da África do Sul. desde o início do ano também na britânica B.1.1.7, Ela mostrou uma importante redução na capacida- ela também aparece no material genético de duas de de evitar os casos leves e moderados de doença outras variantes brasileiras, identificadas com causada pela B.1.351 (não houve casos graves no auxílio do grupo de Siqueira: a P.2, que já se dis- grupo vacinado nem no que recebeu placebo), de tribui por todo o país, e a N.9, detectada no início acordo com os resultados de um ensaio clínico com de março. Elas ainda estão sob investigação e por cerca de 2 mil participantes publicados em 16 de enquanto não preocupam como a P.1. março na revista New England Journal of Medicine.

DANDO NOME AO VÍRUS Sistemas adotam estratégias distintas para denominar linhagens

Quem já leu algo sobre as novas linhagens Nesse sistema, as variantes ou linhagens são nos Estados Unidos, e colaboradores. Ele e variantes do novo coronavírus se deparou classificadas pelo grau de parentesco evolutivo, agrupa os vírus em conjuntos maiores (clados), com sequências de letras e números que atribuindo uma letra seguida de até três que são descritos pelo ano de identificação parecem não fazer sentido. São tentativas de algarismos. Nele, a linhagem surgida no Reino do clado, seguido de uma letra e do nome de organizar o conhecimento sobre o vírus e Unido é a B.1.1.7, a sétima variante derivada da uma mutação definidora do grupo. Assim, acompanhar sua dispersão e evolução. Nos primeira que descende da linhagem B.1, uma a linhagem do Reino Unido integrou o clado últimos meses, ao menos três estratégias de das duas que apareceram originalmente em 20I/501Y.V1; a da África do Sul o 20H/501.V2 nomeá-los se tornaram conhecidas. Uma delas Wuhan. A linhagem sul-africana é a B.1.351 e do Brasil o 20J/501.V3. O terceiro sistema de é um sistema proposto pelo biólogo Andrew (351ª descendente da B.1). Já a brasileira, por classificação é de um consórcio internacional Rambaut, da Universidade de Edimburgo, ser descendente da linhagem B.1.1.28, que já criado em 2008, o Gisaid. Adotado pela OMS, na Escócia. Conhecido pela sigla Pangolin, tinha três números, recebeu uma nova letra também reúne os vírus por clados, definidos acrônimo de Phylogenetic Assignment of e se tornou a P.1. Um segundo sistema de por uma ou mais letras que integram Named Global Outbreak Lineages, ele classificação é o Nextstrain, proposto pelo as principais mutações do grupo. Nela, a fornece informações mais detalhadas sobre a grupo de Trevor Bedford, do Centro de linhagem do Reino Unido está no clado GRY, circulação do vírus em determinado momento. Pesquisa para o Câncer Fred Hutchinson, a da África do Sul no GH e a do Brasil no GR.

24 | ABRIL DE 2021 B.1.1.7

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jam engolfados e digeridos por células de defesa. “Avaliar outras estratégias do sistema imune, como a atividade das células de defesa, é mais laborioso, AFP VIA GETTY IMAGES / mas essencial para se chegar a conclusões mais robustas”, conta o biomédico William Souza, que faz estágio de pós-doutorado na Universidade de MICHAEL DANTAS

3 Oxford e colaborou nos experimentos de Módena e de Sabino. “As vacinas continuam evitando que as pessoas adoeçam e morram.” 2 Para Módena, os resultados obtidos até o mo- mento contra as novas linhagens do vírus refor- AFP VIA GETTY IMAGES / çam a ideia de que mesmo quem já teve a doen- ça ou foi vacinado precisa manter os cuidados e continuar usando máscaras e adotando medidas RODGER BOSCH 2 de higiene e distanciamento social. “O que se sabe até o momento indica que quem já teve Covid-19 ou mesmo quem já recebeu algumas das vacinas GETTY IMAGES / pode ser infectado pelo vírus de uma das linha- gens de preocupação”, afirma. Em um levanta- mento realizado em janeiro pela revista Nature com 100 virologistas, imunologistas e especialistas em doenças infecciosas de diferentes países, 90% CHRISTOPHER FURLONG 1 afirmaram imaginar que o vírus pode se tornar

FOTOS 3 endêmico e continuar circulando em pequenos bolsões nos próximos anos – seja porque escapa Moradores de Manchester, Estudos realizados pelo grupo de Módena, na à ação dos anticorpos, porque não haverá vacinas no Reino Unido, fazem Unicamp, e pela equipe do imunologista Michael suficientes para todos, porque alguns se recusam testagem em fevereiro a ser vacinados ou porque eles continuaram a in deste ano, após surto Diamond, da Universidade de Washington em Saint - com a B.1.1.7; profissional Louis, Estados Unidos, identificaram, respectiva- fectar animais na natureza. n da saúde acompanha mente, algum nível de perda de efeito de anticorpos paciente com Covid-19 produzidos pela CoronaVac e pela vacina da Pfizer Projetos na África do Sul, contra a linhagem P.1 em testes in vitro. Ainda não após o surgimento de 1. Centro conjunto Brasil-Reino Unido para descoberta, diagnóstico, uma nova variante; é possível, no entanto, afirmar que essas variantes genômica e epidemiologia de arbovírus (Cadde) (nº 18/14389-0); e paciente chega para escapem do efeito das vacinas em pessoas. A lite- Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Ester Cerdeira internação em Manaus ratura científica sobre o tema ainda traz contra- Sabino (USP); Investimento R$ 5.331.725,16. em janeiro, em meio 2. ICTP – Instituto sul-americano para física fundamental: Um centro à nova onda de infecção dições e outros trabalhos chegaram a conclusões regional para física teórica (nº 16/01343-7); Modalidade Projeto diferentes. Mesmo assim, no final de fevereiro al- Temático; Pesquisador responsável Nathan Jacob Berkovits (Unesp); guns fabricantes de vacinas anunciaram que estão Investimento R$ 15.421.379,38. trabalhando em doses de reforço e formulações que Artigos científicos contemplem as mudanças das variantes. DAVIES, M. G. et al. Increased mortality in community-tested cases of Além disso, os anticorpos não funcionam apenas Sars-CoV-2 lineage B.1.1.7. Nature. 15 mar. 2021. CHALLEN, R. et al. Risk of mortality in patients infected with Sars- aderindo ao vírus e bloqueando sua entrada nas -CoV-2 variant of concern 202012/1: Matched cohort study. The BMJ. células. Eles podem desencadear reações químicas 10 mar. 2021.

que são lesivas para as partículas virais ou servir Os demais projetos e artigos citados nesta reportagem estão listados de sinalizadores, marcando os vírus para que se- na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 302 | 25 COVID-19 e tudo sair como o esperado, o Instituto Butantan deve co- meçar em algumas semanas, tão logo receba a aprovação das autoridades regulatórias de saúde, os testes em seres humanos de um novo com- posto candidato a vacina con- tra o Sars-CoV-2: a ButanVac. Desenvolvida em colaboração com par- Sceiros dos Estados Unidos, a formulação usa um vírus inativado e geneticamente modificado para expressar a proteína spike do novo coronavírus e, assim, estimular uma resposta imunológica. O imunizante deverá ser fabricado integralmente em São Paulo, usando a linha de produção da vacina contra a influenza (gripe) e insu- mos nacionais. “Já temos lotes suficientes para iniciar um estudo clínico, que deverá ser muito rápido”, afirmou Dimas Covas, diretor do Butantan, durante o anúncio do projeto, realizado na manhã de 26 de março pelo governador de São Paulo, João Doria, na sede do instituto. O pedido de autorização para os ensaios clínicos de fase 1 e 2 da ButanVac foi enca- NOVAS VACINAS minhado no mesmo dia à Agência Nacional A CAMINHO Instituto Butantan e governo federal planejam iniciar nos próximos meses testes em seres humanos de dois compostos candidatos a imunizantes

Marcos Pivetta e Ricardo Zorzetto

Ovos usados pelo Instituto Butantan na fábrica de vacina de gripe: mesma técnica deverá ser utilizada para produzir a ButanVac de Vigilância Sanitária (Anvisa), que esta- rios em aves, mas não causa doença grave Covid-19, uma única dose deve oferecer belece um prazo médio de 72 horas para em humanos – é geneticamente alterada uma boa proteção, mas duas devem dar dar uma resposta. Em geral, a fase 1 avalia para incorporar o gene da proteína spike uma proteção melhor e mais duradoura”, se o produto é seguro, enquanto a 2 ajuda do Sars-CoV-2. É essa proteína que per- comenta Palese. a definir se ele produz algum benefício mite ao coronavírus aderir às células hu- Na parceria com o grupo de Mount Si- terapêutico, qual sua dose mais eficiente manas e penetrar nelas. O vírus recombi- nai, Palese enviou ao Butantan um banco (e segura) e se provoca efeitos colaterais nante (contendo o gene do coronavírus) de vírus da doença de Newcastle gene- em uma amostra maior de pessoas do que a é depois purificado e inativado. Uma vez ticamente modificados. Esse banco foi que fez parte da fase anterior. Também em inoculado no organismo, é reconhecido replicado por pesquisadores do instituto 26 de março Marcos Pontes, titular do Mi- pelas células do sistema imune como um paulista e usado para iniciar a produção nistério da Ciência, Tecnologia e Inovações agente externo e potencialmente agres- do potencial imunizante. “Produzimos (MCTI), informou em uma entrevista co- sor. Células de defesa iniciam, então, a em escala-piloto uma versão aprimorada letiva que, na véspera, havia sido enviada síntese de anticorpos contra o Newcastle do imunizante, que torna a proteína spike à Anvisa a documentação para os testes e a proteína spike do coronavírus. mais estável e capaz de gerar maior imu- em pessoas de outro composto candida- “A vacina é segura. O vírus da doença nogenicidade, e enviamos os vírus inati- to a vacina: a Versamune-CoV-2FC. Essa de Newcastle tem sido testado em tra- vados para o grupo de Palese testar em formulação foi desenvolvida pelo imuno- tamentos contra câncer e não há rela- animais de laboratório”, conta o biólogo logista Celio Lopes da Silva, da Faculdade tos de efeitos colaterais significativos”, Paulo Lee Ho, pesquisador do Butantan de Medicina de Ribeirão Preto da Univer- afirmou Palese, um dos pesquisadores que participa do projeto. Os resultados te- sidade de São Paulo (FMRP-USP), com a mais importantes no desenvolvimento riam confirmado o desempenho do com- startup paulista Farmacore e o laboratório de técnicas que levaram à produção de posto, mas ainda não foram publicados. norte-americano PDS Biotechnology, e vacinas contra a gripe. conta com financiamento do MCTI (ver Dados de estudos com animais (pré- m um momento de escassez de Pesquisa FAPESP nº 301). -clínicos) embasam o otimismo do viro- vacinas no mundo, dominar a A ButanVac usa a chamada tecnologia logista. Em um primeiro experimento, o produção de um ou mais imu- de vetor viral para estimular o sistema grupo do Mount Sinai testou em camun- nizantes é importante para o imunológico a produzir anticorpos contra dongos uma versão elaborada com vírus país. E a fabricação da Butan- o Sars-CoV-2. A estratégia foi concebida vivos atenuados. Segundos os resultados, Vac, em um primeiro momen- pelo grupo coordenado pelo virologista publicados em um artigo de 21 de novem- to, quase não exige investi- austro-americano Peter Palese, da Escola bro na revista EBioMedicine, os roedores mento. Ela usa uma tecnologia de Medicina Icahn, da rede Mount Sinai que receberam duas doses intramuscula- muito semelhante à da vacina de hospitais de Nova York, nos Estados res do imunizante produziram uma gran- contra a influenza – fabricada no Brasil Unidos, para gerar um produto barato e de quantidade de anticorpos capazes de Epelo Butantan, que produz cerca de 80 que pudesse ser fabricado por países de neutralizar o novo coronavírus e, quando milhões de doses por ano para o Sistema média e baixa renda. O Mount Sinai de- infectados com uma versão do Sars-CoV-2 Único de Saúde – e poderia empregar as tém a licença para a produção dessa vaci- que afeta roedores, não adoeceram. mesmas instalações. Injetados em ovos na e a repassou, sem cobrar royalties, por Em outro teste, os pesquisadores ava- embrionados, os vírus infectam as células meio de acordos independentes, para o liaram em camundongos e hamsters o de- do líquido alantoide e se multiplicam. Butantan, no Brasil, e centros de pesqui- sempenho de duas formulações do imuni- São, depois, isolados, purificados e trata- sa na Tailândia, no Vietnã e no México. zante, agora com o vírus inativado por um dos quimicamente para se tornarem ina- “Temos um acordo com o Instituto Bu- composto químico (menos imunogênicas, tivos. Um ovo pode gerar até 10 doses de tantan para iniciar os testes clínicos no mas mais seguras que a anterior). Uma vacina contra o coronavírus, rendimento Brasil usando uma segunda geração da formulação foi elaborada apenas com o cerca de 10 vezes superior ao obtido com nova vacina [a ButanVac]. Também es- vírus inativado, enquanto outra continha o imunizante contra a influenza. Segundo tamos desenvolvendo vacinas contra as também um adjuvante, agente que amplia Covas, terminada a produção da vacina variantes brasileira e sul-africana para o a eficácia de vacinas ao provocar uma da influenza, a partir de maio, o Butantan Butantan”, afirmou Palese a Pesquisa FA- resposta imunológica mais robusta. Os teria condições de produzir 40 milhões PESP. Segundo o virologista, a segunda animais foram tratados com duas doses de doses da ButanVac até o final de julho. geração da vacina, que pode ser conser- da vacina e, mais tarde, infectados com “Podemos, se tudo correr bem, começar a vada por três semanas à temperatura de 4 o novo coronavírus. Em relação a grupos usar a vacina no segundo semestre deste graus Celsius, é mais estável e provocaria de controle que não foram imunizados, os ano”, afirmou Covas, na entrevista cole- uma resposta imunogênica ainda melhor. animais que receberam a vacina, sobre- tiva de 26 de março. n Prestes a ser avaliada em ensaios clínicos tudo a versão com o adjuvante, apresen- no Brasil e no México, a formulação se en- taram sintomas mais brandos da doença, Artigos científicos contra na fase 1 de testes em pessoas nos com menor perda de peso e quantidade de SUN, W. et al. Newcastle disease virus (NDV) expressing Estados Unidos, na Tailândia e no Vietnã. vírus muito mais baixa nos pulmões, de the spike protein of Sars-CoV-2 as a live virus vaccine Nessa plataforma vacinal, uma forma acordo com os resultados publicados em candidate. EBioMedicine. 21 nov. 2020. SUN, W. et al. A Newcastle disease virus (NDV) expres- modificada do vírus da doença de New- 17 de dezembro na revista Vaccines. “Co- sing a membrane-anchored spike as a cost-effective

INSTITUTO BUTANTAN INSTITUTO castle – que provoca problemas respirató- mo ocorre com todas as vacinas contra inactivated Sars-CoV-2 vaccine. Vaccines. 17 dez. 2020.

PESQUISA FAPESP 302 | 27 COVID-19

Moradores de Serrana fazem fila para ser vacinados A CIDADE contra Covid-19 COMO LABORATÓRIO Estudos epidemiológicos como o realizado no município paulista de Serrana devem gerar informações valiosas sobre a pandemia

Frances Jones

cotidiano dos moradores do pa- e demonstrar o que poderia ocorrer no culdade de Medicina de Ribeirão Preto da cato município de Serrana, locali- restante do país caso fosse adotado em Universidade de São Paulo (FMRP-USP), zado na Região Metropolitana de ampla escala. Com a proposta de vacinar diretor-geral do Hospital Estadual Ser- Ribeirão Preto, a 330 quilômetros em dois meses toda a população adulta – rana e investigador principal do estudo, (km) da capital, foi alterado des- 28,3 mil dos seus 45 mil habitantes –, a que ganhou a denominação de Projeto S. Ode que o Instituto Butantan anunciou, investigação transformou oito escolas O codinome S vem tanto de Serrana e de em fevereiro, que a cidade seria objeto públicas em núcleos temporários de pes- Sars-CoV-2, o vírus responsável pela Co- de uma pesquisa científica para avaliar a quisa, mobilizou cerca de 500 pessoas, a vid-19, como de segredo, já que os prepa- efetividade da CoronaVac. O objetivo não maioria da própria cidade, para executar rativos para a pesquisa tiveram início em é testar a eficácia do imunizante contra a o projeto e causou até aquecimento no agosto de 2020 e mantiveram-se em sigilo. Covid-19, atestada pela Agência Nacional mercado imobiliário local. “Esse tipo de investigação é comple- de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas ana- “É uma operação de guerra”, conta o xo, pois é preciso entender muito bem o lisar o seu efeito sobre uma comunidade médico Marcos de Carvalho Borges, da Fa- território onde será realizado. Há ainda

28 | ABRIL DE 2021 um desafio logístico, que é a realização Uma diferença importante do Proje- da vacinação”, diz o infectologista Ricar- to S em relação aos estudos de Pelotas do Palacios, diretor-médico de pesquisa e de Framingham, destaca Palacios, é clínica do Instituto Butantan e um dos que o de Serrana propõe uma interven- idealizadores do Projeto S. Os seis meses O PROJETO S ção farmacológica, que é a aplicação do iniciais foram usados para aprimorar a vi- imunizante. O método de ensaio clínico gilância epidemiológica e fazer um censo TEM COMO OBJETIVO adotado no interior paulista é conhecido na cidade a fim de cadastrar a população como estudo de implementação escalo- e georreferenciar os imóveis. “Com esses ANALISAR O EFEITO nada (stepped-wedge trial), cujo modelo dados em mãos, sabemos se o imóvel é co- foi usado pela primeira vez na Gâmbia, mercial ou residencial e quantas pessoas DA IMUNIZAÇÃO em 1986. Ao longo de quatro anos, 60 moram nele”, explica Borges. “Também CONTRA O NOVO mil crianças do país africano foram va- conseguimos controlar a chegada de in- cinadas contra hepatite B – outras 60 divíduos de fora, atraídos pela vacinação.” CORONAVIRUS SOBRE mil participaram do estudo no grupo- Os pesquisadores dividiram Serrana -controle. O objetivo era avaliar, três ou em 25 clusters ou conglomerados, agru- A COMUNIDADE quatro décadas depois, o efeito protetor pados em quatro cores diferentes – a va- do imunizante sobre doenças hepáticas cinação seguiria uma ordem cronológica, crônicas na vida adulta. O acompanha- conforme a cor. A primeira fase foi en- mento dos vacinados ainda está em cur- cerrada em 14 de março, com a aplicação so, mas desde a década de 1990 a vacina da dose inicial em todos os voluntários. Pelotas (UFPel), no Rio Grande do Sul, contra hepatite B passou a integrar o ca- “O interesse e a participação da popu- dedicam-se a um projeto que investiga lendário nacional de imunização. lação foram altos. Vacinamos 97,3% dos a influência das condições presentes nos Pesquisas com esse perfil correm dois 28,3 mil inscritos”, informa Palacios. A primeiros anos de vida sobre a saúde de riscos. O primeiro é não haver um enga- segunda etapa, quando os participantes um indivíduo. Para isso, acompanham jamento da comunidade. Para evitar que receberão a segunda dose da CoronaVac, ao longo da vida todos os nascidos na isso ocorra, é preciso implementar uma já foi iniciada. Os primeiros resultados cidade nos anos de 1982, 1993, 2004 e boa estratégia de comunicação e manter do projeto deverão ser conhecidos nos 2015. A comparação entre as gerações, canais abertos para troca de informações próximos meses. de acordo com a UFPel, permitiu estudos com a população. O segundo risco é re- Antes da imunização, todos os par- sobre mortalidade infantil, amamenta- petir o que ocorreu em um estudo de ticipantes submeteram-se a testes de ção, desnutrição e obesidade, e rendeu a 2014, iniciado durante uma epidemia de sorologia para verificar se já haviam ti- publicação de mais de 500 artigos. ebola na África, que não foi adiante, pois do contato com o novo coronavírus. As No Norte do país, a população de Mân- o número de casos caiu drasticamente vacinas usadas para a pesquisa foram cio Lima, cidade do Acre na fronteira antes de começar a pesquisa. O Projeto doadas pela Sinovac, fabricante chine- com o Peru, também vem sendo observa- S, no entanto, não corre esses riscos na sa da CoronaVac, e o projeto é financia- da com lupa por cientistas da USP. Desde avaliação de seus idealizadores. do pelo Instituto Butantan, com apoio 2018, 2,6 mil dos 9 mil moradores da área A investigação em Serrana, diz Pala- da FAPESP. A Fundação autorizou que urbana são avaliados e testados a cada cios, poderá fornecer informações re- R$ 4 milhões de um projeto orçado em seis meses no âmbito de um estudo in- levantes para a comunidade científica R$ 32 milhões para o desenvolvimento ternacional sobre transmissão de malária. e para as mais de 20 nações que usam a da CoronaVac sejam usados em Serrana. Em 2020, a mesma amostra populacional CoronaVac. “Os países que empregam a Estudos epidemiológicos envolvendo passou a ser objeto de investigações sobre vacina e aqueles que cogitam utilizá-la cidades inteiras não são novidade. Nos a dinâmica de transmissão da Covid-19 poderão fazer bom uso dos nossos da- cursos de medicina, um clássico das au- em um trabalho coordenado pelo médico dos”, diz o diretor-médico do Butantan, las de epidemiologia é o Framingham Marcelo Urbano Ferreira, do Instituto de destacando que desconhece outro local Heart Study, realizado em Framingham, Ciências Biomédicas (ICB) da USP, com no mundo que esteja conduzindo pes- nos Estados Unidos. Iniciado em 1948, apoio da FAPESP. quisa similar para Covid-19. n teve inicialmente a participação de 5.209 “Aproveitamos que já visitávamos essa homens e mulheres, que foram exami- população e colhíamos amostras sanguí- nados e testados a cada três a cinco anos neas para testar anticorpos para Covid”, Projetos para checagem das condições gerais de sublinha Ferreira. O inquérito sorológico 1. Desenvolvimento de vacina contra a Covid-19 (n° saúde. O estudo encontra-se na terceira feito em novembro verificou que 34,5% 20/10127-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Políticas geração de voluntários e já gerou mais da população já havia tido contato com Públicas; Pesquisador responsável Dimas Tadeu Covas de 3 mil artigos científicos que ajudaram o Sars-CoV-2. “Agora, queremos saber (Instituto Butantan); Investimento R$ 32.501.477,00. 2. Mapeando a disseminação de Sars-CoV-2: Dimensão a estabelecer as bases do conhecimento quantos indivíduos adquiriram infecções do surto, dinâmica de transmissão, desfechos clínicos sobre as causas e os fatores de risco para após novembro, quantas das pessoas que da infecção e duração das respostas de anticorpos em doenças cardiovasculares. tinham anticorpos continuam positivas uma pequena cidade amazônica (n° 20/04505-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador No Brasil, há quase quatro décadas para anticorpos e qual linhagem do no- responsável Marcelo Urbano Ferreira (USP); Investimento

/ FOTOARENA JOEL SILVA cientistas da Universidade Federal de vo coronavírus predomina na cidade.” R$ 183.722,45.

PESQUISA FAPESP 302 | 29 COVID-19

ESCOLHAS COMPLEXAS

30 | ABRIL DE 2021 Comitês de bioética ganham relevância na resolução de dilemas trazidos pela pandemia, embora estejam presentes em poucos hospitais

Christina Queiroz | ILUSTRAÇÕES Natália Gregorini

o último ano, a pandemia trouxe novos à tomada de decisão. Ele conta que as primeiras desafios para o campo da bioética, ca- comissões de bioética hospitalar surgiram nos racterizado como o estudo sistemático Estados Unidos, nas décadas de 1960 e 1970, e sua das dimensões morais das ciências da proliferação remonta aos anos 1990. Mais tarde, vida e atenção à saúde. Com a missão em 2005, a Declaração Universal sobre Bioética e de auxiliar equipes médicas na tomada Direitos Humanos motivou sua disseminação para de decisão envolvendo casos clínicos outros países. “No Brasil, essas comissões ainda complexos, os comitês de bioética hos- são escassas porque não temos uma norma indi- pitalar têm oferecido subsídios para cativa do Conselho Federal de Medicina [CFM] ou qualificar discussões envolvendo a alocação de obrigatoriedade na forma de lei para sua constitui- Nrecursos em um contexto de colapso dos sistemas ção, como ocorre nos Estados Unidos”, compara de saúde, bem como assumido novas atribuições, o pesquisador, também secretário da Sociedade entre elas a criação de pareceres com sugestões Brasileira de Bioética (SBB) e membro do comitê para organizar a distribuição de vacinas entre a de bioética do Hospital do Coração (HCor), em São população. Apesar da sua importância, essas comis- Paulo. Em 2017, o Conselho Regional de Medicina sões estão presentes em menos de 10% dos hospi- do Estado de São Paulo (Cremesp) fez um levan- tais brasileiros, conforme estudo de pesquisadores tamento que indicou a existência de 967 hospitais da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública e no estado, dos quais apenas 18 contavam com co- da Faculdade Regional da Bahia (Unirb). O Brasil mitês de bioética. O Conselho Federal de Medicina contava com cerca de 6,7 mil hospitais em 2019, publicou um documento em 2015 que “recomenda segundo a Confederação Nacional de Saúde (CNS). a criaço, o funcionamento e a participaço dos O médico e bioeticista Reinaldo Ayer de Olivei- medicos nos comites de bioetica”. Já em 2020, ra, da Faculdade de Medicina da Universidade de a Sociedade Brasileira de Bioetica (SBB), consi- São Paulo (FM-USP) e coordenador do grupo de derando o aumento de casos graves de Covid-19, pesquisa Bioética, Direito e Medicina da institui- aconselhou o reforço do trabalho das comissoes ção, esclarece que, historicamente, as comissões de bioetica hospitalar. de bioética hospitalar auxiliam os profissionais Um dos autores do estudo que fez uma revisão em situações-limite do contexto clínico, em espe- sistemática da literatura para avaliar a participação cial em processos de fim de vida, dando suporte de comitês de bioética na resolução de conflitos

PESQUISA FAPESP 302 | 31 hospitalares no Brasil, o médico Mário de Seixas HC para criar novas vagas Rocha, da Bahiana, identificou que algumas insti- em UTI permitiu atender tuições de saúde resistem à criação das comissões à demanda por cuidados por causa do receio de que elas passem a fiscalizar intensivos. Mas atualmen- e punir eventuais equívocos na atividade médica. te, com a possibilidade de Compostos por profissionais da área de saúde, superlotação desses lei- CONCILIAR A AFIRMAÇÃO como médicos, psicólogos e enfermeiros, além de tos, há a necessidade de advogados, filósofos, sociólogos, entre outros, os estabelecer novos crité- DA DIGNIDADE DO comitês podem desempenhar função deliberativa rios de prioridade. A si- ou de aconselhamento, debatendo conflitos por tuação mobilizou debates INDIVÍDUO COM meio de abordagens transdisciplinares. “A existên- entre os membros do co- cia desses grupos nas instituições de saúde alivia mitê, que procurou definir A NECESSIDADE DE o estresse que recai sobre os profissionais da área a forma mais justa de dis- UTILIZAÇÃO RACIONAL médica, especialmente nesse momento da pande- tribuir os recursos do hos- mia, em que decisões sobre a vida ou a morte são pital a partir discussões DE RECURSOS ESCASSOS tomadas diariamente”, destaca ele, lembrando que bioéticas, que envolvem nos Estados Unidos e no Canadá 90% dos hospi- os princípios da autono- CONSTITUI DESAFIO tais têm comitês, enquanto no Japão o percentual mia, justiça, não malefi- equivalente é de 50%. Rocha cita artigo publicado cência – ideia de que ne- CENTRAL À BIOÉTICA na Revista Bioética, em 2014, que informa que na nhum mal deve ser feito prática de países europeus como Alemanha, Itália ao outro – e beneficência, e Holanda as estruturas dos comitês de bioética, que consiste na prática do denominados nesses países Clinical Ethics Consul- bem. De acordo com ele, tation, foram implementadas por iniciativa oficial diante de um cenário de saturação do sistema de do Estado ou por medidas institucionais. “Nesses saúde, foi feita a proposta de adoção de um crité- países, cerca de 80% dos hospitais contam com rio que leve em consideração, além da gravidade comitês de bioética”, afirma. do quadro, as chances reais de sobrevivência. O Em um debate que costumava acontecer por- pesquisador explica que o comitê do HC dispõe de tas adentro das instituições de saúde e se tornou dois mecanismos para lidar com conflitos bioéticos. público com a chegada da pandemia, a alocação O primeiro é um sistema de atendimento imediato de recursos representa uma discussão histórica para resolver situações de urgência, enquanto o no campo da bioética, informa o médico Chin segundo envolve decisões para casos clínicos ou An Lin, presidente do comitê de bioética da Di- situações não urgentes, que necessitam de uma retoria Clínica do Hospital das Clínicas (HC) da reflexão mais ampla e para os quais os pareceres FM-USP. Um dos primeiros do país, o comitê do são emitidos no prazo de até um mês. “Se o pacien- HC foi fundado em 1996 para discutir questões te com poucas chances de sobreviver permanece conceituais que podem ajudar a fundamentar nor- por 10 dias na UTI, esse leito ficará indisponível mas institucionais. Outras experiências pioneiras para outras pessoas com mais possibilidades de foram as dos grupos do Hospital de Clínicas de sobrevida”, exemplifica. “Por causa disso, em uma Porto Alegre, constituído em 1993, e do Hospital situação de absoluta falta de leitos de cuidados São Lucas, da Pontifícia Universidade Católi- intensivos, propomos que, além da gravidade do ca do Rio Grande do Sul (PUC-RS), de 1997. No quadro, se devem considerar as possibilidades de o comitê do HC, um debate tradicional envolve o paciente voltar para uma vida produtiva na socie- encaminhamento de demandas para tratamentos dade. É uma discussão muito dolorosa, a famosa excepcionais e caros de indivíduos, que podem ‘escolha de Sofia’”, afirma Lin. O médico refere-se consumir recursos destinados a áreas que aten- ao célebre romance do norte-americano William dem a um número maior de pessoas. “A chegada Styron (1925-2006), A escolha de Sofia(1979), que da pandemia escancarou problemas históricos conta a história de uma polonesa presa com um relacionados ao acesso da população ao sistema casal de filhos pequenos no campo de concentra- de saúde, além de trazer novos desafios para os ção de Auschwitz durante a Segunda Guerra Mun- comitês”, avalia Lin, um dos autores de artigo dial. Ela deveria escolher apenas uma das crianças publicado em 2020 na revista Clinics para pro- para ser salva da execução ou ambas morreriam, por referenciais teóricos à tomada de decisão obrigando-a a uma terrível decisão. no atendimento a pacientes e para alocação de Com pesquisas no campo da bioética desde recursos de saúde. 1996, o teólogo Mário Antonio Sanches, da Ponti- Ponto crítico no atendimento a pacientes graves fícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), de Covid-19, a organização do acesso a leitos de UTI explica que, diante da escassez de leitos, a escolha tem sido uma dessas adversidades. Lin explica que, pelo paciente com mais chances de sobrevivência no início da pandemia, a rapidez de resposta do pode ser justificada a partir de diferentes escolas

32 | ABRIL DE 2021 de bioética, desde que não se defenda que a vida de dois filhos médicos, sendo um deles intensivista. um é mais digna do que a de outro. “O desafio Vejo como a decisão tomada de forma solitária de um comitê de bioética hospitalar é conciliar gera um grau de sofrimento enorme”, observa o a afirmação da dignidade de cada pessoa com a médico José Eduardo de Siqueira, da PUC-PR, e necessidade de utilização racional de recursos es- membro assessor da Redbioética da Organização cassos”, esclarece o teólogo, autor de artigo escrito das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e em conjunto com outros pesquisadores da PUC- a Cultura (Unesco) na América Latina e Caribe. -PR que identificou as contribuições da bioética Siqueira menciona estudos que mostram que as para enfrentar conflitos em tempos de pandemia. situações de sofrimento e estresse podem levar profissionais da saúde a quadros cada vez mais médico Sérgio Rego, da Escola Nacio- depressivos. Um desses estudos, a pesquisa “Con- nal de Saúde Pública da Fundação Os- dições de trabalho dos profissionais de saúde no waldo Cruz (Ensp-Fiocruz), observa, contexto da Covid-19”, foi realizado pela Fiocruz, por outro lado, que ainda não há estu- em 2020. Coordenado pela socióloga Maria Helena dos que comprovem uma correlação Machado, o levantamento envolveu cerca de 16 mil direta entre a gravidade dos doentes profissionais de saúde, dos quais 22,2% afirmaram de Covid-19 e seu prognóstico. “Os conviver com uma rotina extenuante de trabalho, conflitos bioéticos surgem em debates 15,8% citaram estar com problemas de perturbação sobre direitos individuais e interesses do sono e 13,6% com irritabilidade, choro frequente coletivos. Para resolver esses dilemas, é preciso e distúrbios em geral. Enquete realizada em 2019 Oencontrar razões que justifiquem quem deve sair com cerca de 15 mil médicos pelo portal Medscape perdendo”, reflete o pesquisador, que coordena indicou crescimentos na incidência de depressão um grupo temático sobre bioética na Associação e esgotamento entre os profissionais consultados. Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Com base Nesse sentido, a psicóloga Suely Marinho, do no princípio utilitarista, profissionais da área mé- Serviço de Psiquiatria e Psicologia Médica do dica também têm tido prioridade na ocupação de Hospital Universitário Clementino Fraga Filho leitos, de acordo com o farmacêutico e advogado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (HU- Gustavo da Cunha Lima Freire, da Universidade CFF-UFRJ), enfatiza que os profissionais da saúde Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). “Segun- precisam de apoio institucional para fazer escolhas do essas diretrizes, profissionais da saúde devem com base em critérios transparentes, inclusivos e ser prioritários porque quando voltam a trabalhar justos, oriundos de ponderações éticas e responsa- beneficiam toda a sociedade”, elucida. bilidades compartilhadas. “O manejo de situações Em um cenário em que as mortes diárias por clínicas em um cenário de colapso do sistema de Covid-19 estão próximas a 3 mil, os profissionais saúde exige um esforço de integração entre a éti- da saúde têm se visto, a todo momento, diante da ca da saúde pública e a ética clínica, ou seja, en- necessidade de fazer escolhas de Sofia. “Tenho tre interesses individuais e demandas coletivas”,

PESQUISA FAPESP 302 | 33 comenta Marinho, também 2ª vice-presidente da dações em casos individuais e também auxiliá-la Sociedade Brasileira de Bioética – Regional Rio no desenvolvimento de normas institucionais, que de Janeiro. Em documento publicado no site da prevalecem no atendimento geral dos pacientes. Abrasco em conjunto com outros pesquisadores, Para além da ausência dos comitês em gran- Marinho explica que, para que esse diálogo ocorra, de parte dos hospitais brasileiros, Siqueira, da se deve estabelecer uma comunicação transparente PUC-PR, aponta que outro problema envolve a entre os diversos atores envolvidos no cotidiano formação médica, que subestima o ensinamento dos hospitais e os comitês de bioética têm sido do processo deliberativo à tomada de decisões clí- espaços propícios para essas ações. nicas diante de complexos dilemas morais entre médicos e pacientes. “Os cursos da área da saúde partir da experiência no comitê do priorizam conteúdos técnicos e têm pouco espa- HCor e da interlocução com pesqui- ço para tratar de campos do conhecimento como sadores atuantes e outros grupos, antropologia e filosofia, o que permitiria resgatar Oliveira, da FM-USP, explica que os compromissos humanísticos e humanitários nos primeiros meses de 2020, ins- das profissões”, analisa. Ele conta que países co- tituições com orçamento adequado mo França, Portugal e Itália dispõem de comitês e condições de se planejar, como o nacionais de bioética para assessorar presiden- Hospital Israelita Albert Einstein ou tes ou primeiros-ministros. O Brasil tem mais de o HC-USP, sofreram menos conflitos 400 escolas de medicina e, segundo Siqueira, os bioéticos, na medida em que conseguiram prepa- cursos costumam ter de 9 a 11 mil horas de carga Arar suas equipes e aumentar os leitos, instituindo horária durante os seis anos da graduação – as instâncias de triagem que aliviaram a demanda disciplinas de ética ou bioética respondem, em por UTI. Ele é um dos coautores do artigo publi- média, por cerca de 80 horas desse total. “O CFM cado com Lin na Clinics para propor referenciais está empreendendo esforços para mudar a cultura teóricos à tomada de decisão médica. O panora- médica, incentivando os profissionais a buscar os ma mudou com o agravamento da pandemia, a comitês quando se deparam com dilemas clínicos partir de fevereiro de 2021, quando os comitês e morais”, informa Siqueira, que integra a comis- passaram a ser acionados com mais frequência. são de Humanidades Médicas do CFM. “A existência de comissões em hospitais auxilia a Atento a essa lacuna na formação dos profis- tomada de decisão, reduzindo a carga de estresse sionais da saúde, Freire, da UFRN, junto com o da equipe e ajudando a pensar situações morais aluno de graduação em medicina George Felipe que surgem em conflito com situações sociofami- de Moura Batista, analisou como as 50 melhores liares, ou mesmo com a equipe de saúde, exigindo faculdades de medicina do país, conforme os re- escolhas que devem ser avaliadas em toda a sua sultados do Ranking Universitário Folha (RUF) complexidade”, comenta a médica Maria Alice de 2017, incorporam discussões sobre tanatologia, Scardoelli, do Cremesp. Os comitês podem ser o estudo científico da morte, em seus currículos. acionados pela equipe clínica para fazer recomen- “Constatamos que mais de 70% deles não abor-

34 | ABRIL DE 2021 dam ou tratam do assunto de forma superficial. vacina pelo setor privado, que mobilizaram grupos Os cursos da área da saúde, especialmente os de de diferentes instituições e cuja recomendação feita medicina, devem preparar melhor seus egressos pelo comitê de bioética do Hospital Sírio-Libanês para lidar com a morte”, defende Freire, que em se tornou referência. O parecer aconselha que as 2015 criou, junto com colegas, uma disciplina para vacinas podem ser compradas por empresas, mas ensinar fundamentos da bioética e tanatologia a devem ser doadas em sua integralidade para o Sis- estudantes da universidade. tema Único de Saúde (SUS). Com reflexão similar, Rego, da Fiocruz, avalia O farmacêutico-bioquímico Sérgio Surugi de que a dificuldade de lidar com a morte faz com Siqueira, da PUC-PR e membro da Comissão Na- que alguns médicos insistam em fazer tratamentos cional de Ética em Pesquisa (Conep), destaca outra invasivos em pessoas que não podem ser salvas. questão que gera debates no campo da bioética: o “Já escutei alunos afirmarem que não dão atesta- excedente de vacinas. Ele explica que alguns países do de óbito e que, se seus pacientes morrem, eles compraram vacinas de vários fabricantes, quando os reanimam, mesmo sabendo que as chances de elas ainda eram protótipos, na expectativa de que sobrevida são mínimas”, conta, ao lembrar que a ao menos uma delas seria bem-sucedida. “Como Associação Médica Mundial passou a recomen- muitas funcionaram, algumas nações, como o Ca- dar o ensino de ética nas faculdades de medicina nadá, contam hoje com excedente de produtos”, apenas em 1999. Para Rego, essa atitude se rela- diz. Para Surugi, doses extras deveriam ser redis- ciona com o fato de que muitos profissionais fo- tribuídas. “Porém essa é uma decisão soberana e gem do debate sobre até quando se deve tentar política de cada país, que requer discussões bioé- reanimar uma pessoa e também com a falta de ticas para estabelecer os critérios de quem deve critérios transparentes que orientem a tomada recebê-las”, observa, lembrando que os debates de decisão médica em casos de reanimação ou pa- em torno da exigência de passaporte vacinal, do- cientes terminais. “A formação médica privilegia cumento que pode ser adotado por alguns países a especialização, promovendo um conhecimento para autorizar a entrada de estrangeiros, também centrado em doenças e partes do corpo humano, têm mobilizado pesquisadores de bioética. “Por um que desconsidera a realidade do doente e dificulta lado, o passaporte pode ferir direitos fundamen- a realização de discussões como essas no cotidia- tais de países que não conseguem vacinar todos no de trabalho”, afirma Rego. os seus cidadãos, mas, por outro, representa um Diante de situações em que indivíduos interna- instrumento que minimiza o risco de o vírus se dos em estado terminal eram impossibilitados de disseminar novamente”, reflete Siqueira, coautor ter um encontro final com seus familiares, o co- de artigo sobre as contribuições da bioética para mitê de bioética do HC-USP colocou em debate enfrentar conflitos em tempos de pandemia. a proibição de visitas a pacientes com Covid-19, Tratamentos com medicamentos autorizados buscando estratégias que permitissem aliviar seu para cuidar de determinadas doenças, mas sem sofrimento, mas sem trazer riscos a outras pessoas. uso aprovado para combater a Covid-19, também “Orientada pelo comitê, a equipe médica passou foram objeto de discussão dos comitês. No começo a emitir boletins diários de 2020, o CFM emitiu um parecer destacando por telefone a familiares e que os médicos têm autonomia para prescrever a permitir a realização de remédios, com base no princípio de autonomia encontros virtuais”, conta desses profissionais para recomendar tratamentos. Lin. “Pacientes costumam “Porém isso acabou incentivando que medicações CURSOS DA ÁREA permanecer internados na sem eficácia comprovada passassem a ser recei- UTI entre uma semana e tadas, o que chamou a atenção à necessidade de DA SAÚDE DEVEM 50 dias. Tornar viável con- se debater os limites da autonomia médica. Por versas com entes queri- mais terrível que seja, a pandemia criou a opor- INCORPORAR CONTEÚDOS dos por meios virtuais foi tunidade de refletirmos publicamente sobre essas a forma que encontramos práticas”, finaliza Lin.n QUE PERMITAM de humanizar esse tipo de RESGATAR COMPROMISSOS situação”, conta. Para além de questões Artigos científicos HUMANÍSTICOS relacionadas com a distri- BATISTA, G. F. de M. e FREIRE, G. da C. L. Análise do ensino da morte e do morrer na graduação médica brasileira. Revista Brasileira de buição de recursos de saú- Bioética. v. 15. p. 1-13. 2019. E HUMANITÁRIOS de, a chegada da pandemia LIN, C. A. Bioethical principles and values during pandemics. Clinics. motivou os comitês a am- v. 75. 2020. DAS PROFISSÕES pliarem suas atribuições. ROCHA, M. de S. e ROCHA, S. A. Resolução de conflitos bioéticos no cenário hospitalar brasileiro: Uma revisão sistemática da literatura. Nesse sentido, Oliveira, da Revista Brasileira de Bioética. v. 15, p. 1-12. 2019.

FM-USP, menciona as dis- Os demais artigos citados nesta reportagem estão listados na versão cussões sobre aquisição de on-line.

PESQUISA FAPESP 302 | 35 ENTREVISTA JURANDYR ROSS

OS TRÊS BRASIS Geógrafo paulista propõe uma síntese das diferentes realidades ambientais, sociais e econômicas do país

Carlos Fioravanti | RETRATO Léo Ramos Chaves

o escritório de seu apartamento, entre paredes cober- tas de mapas, o geógrafo Jurandyr Luciano Sanches Ross redescobriu o Brasil à medida que examinava dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com colegas de outros estados. O que emergiu foram na verdade três Brasis: o que denominaram No Brasil da natureza, com grandes áreas verdes; o do semiárido, no sertão nordestino; e o de maior atividade econômica, ligada principalmente à agropecuária. “Provavelmente esse é meu último grande trabalho”, diz ele, aos 73 anos. Especialista em geomorfologia, estudo das formas de relevo e suas origens, Ross lançou na década de 1980 um mapa do relevo brasileiro. Elaborado com base nas informações do Projeto Ra- damBrasil, que ele integrou, seu trabalho sucedeu as versões dos geógrafos Aroldo de Azevedo (1910-1974), de 1949, e Aziz Ab’Saber (1924-2012), da década de 1960. Nascido em Promissão, noroeste paulista, e crescido em Rolândia, no Paraná, mudou-se para São Paulo na década de 1960. Viúvo, duas filhas (uma engenheira eletrônica e outra dentista), três netos, ele concedeu a entrevista a seguir por videoconferência em fevereiro.

36 | ABRIL DE 2021 IDADE 73 anos FORMAÇÃO Graduação em geografia ESPECIALIDADE (1972), mestrado (1982) Geomorfologia e doutorado (1987) INSTITUIÇÃO pela USP Universidade PRODUÇÃO de São Paulo (USP) 45 artigos e 8 livros

PESQUISA FAPESP 302 | 37 Em que você está trabalhando? primeira tarefa de um plano de orde- estatísticos do IBGE na escala muni- Coordeno um projeto de três anos pa- namento territorial é entender as áreas cipal e os mapas do MapBiomas Brasil ra estudar o ordenamento territorial do mais ou menos favoráveis para agricul- [organização não governamental que Brasil, o modo pelo qual o território do tura ou pecuária e as que não devem ser acompanha as mudanças da cobertu- país está organizado. Esse trabalho, com mexidas ou convertidas em agricultura ra da vegetação nativa e do uso do solo financiamento do CNPq [Conselho Na- ou pecuária. Dizem que o Brasil não pre- no país] sobre desmatamento e outras cional de Desenvolvimento Científico e cisa desmatar, e não precisa mesmo, por- questões ambientais. Os mapas repre- Tecnológico], envolve minha equipe do que tem muita terra subaproveitada. Mas sentam os 5.570 municípios brasileiros. Laboratório de Geomorfologia da USP, que terras são essas, onde estão, com que Por exemplo, conseguimos ver por on- colegas da Universidade Estadual de tipo de relevo e de solo? Tem de saber de a soja caminha, desde que começou Londrina, das universidades federais da se é favorável a algum uso econômico ou a ser cultivada no Rio Grande do Sul e Paraíba e de Uberlândia e um sociólogo não. A ocupação do território brasileiro em São Paulo nas primeiras décadas do do Ministério da Economia. Já produzi- é espontânea, feita por quem compra e século XX. Agora já está no Maranhão mos muitos dados e adquirimos uma no- incorpora as terras. Andei por Parauape- e no Piauí, quase chegando ao mar. A ção mais clara de quem somos nós, sob a bas, no leste do Pará. Só se vê pastagem cana-de-açúcar está em São Paulo, mas perspectiva de uso do território nacional. e nada de árvore. Quase ninguém deixou também no Triângulo Mineiro, em Goiás os 50% da área com vegetação nativa e as e no noroeste do Paraná. O Brasil tem plano de ordenamento ter- matas ciliares, obrigatórias por lei; agora ritorial? a reserva legal é 80% da área. Participei E no Nordeste? Tivemos a partir de 1993, em conse- da finalização do plano de zoneamento A cana não está mais tão forte em Per- quência da Rio-92, que levou a uma po- ecológico de Rondônia, que terminou em nambuco, mas em Alagoas. Os tabuleiros lítica de Estado e à criação do Ministé- 2000. Ficaram definidas em torno de 10 de Pernambuco não são planos e grandes rio do Meio Ambiente, de unidades de áreas para diferentes tipos de ocupação como os de Alagoas. A mecanização do conservação, principalmente na Ama- ou preservação, mas o plano se perdeu plantio e corte da cana precisa de relevo zônia, dos zoneamentos ecológico-eco- ou não foi aplicado adequadamente. Ho- plano. O relevo é fundamental na agri- nômicos em alguns estados e regiões, je resta muito pouco de floresta, só mes- cultura tanto quanto o solo e o clima, por dos planos de gestão de recursos hídri- mo em unidade de conservação. A maior conta da mecanização. Em outro mapa, cos e dos planos diretores municipais, parte do estado foi ocupada com café, ao examinar o PIB dos municípios por até 2002. Então começou outra política banana, cacau e principalmente pasto. atividade econômica predominante, vi- territorial e o Ministério do Meio Am- mos que na Amazônia e sobretudo no biente se tornou periférico. O ordena- O que estão vendo agora? semiárido a principal renda é o dinheiro mento deixou de ser algo importante. Focamos no Brasil rural e examinamos a público enviado às prefeituras e a pessoas, agricultura, silvicultura, pecuária e mi- por meio das aposentadorias, do Bolsa E por que é importante? neração. Pensamos em fazer um levanta- Família e de outros benefícios sociais. Porque ajuda a não serem feitas coisas mento das condições atuais do uso e da Há dois anos estive no sertão do Ceará erradas no uso e ocupação das terras. A ocupação da terra, com base nos dados e fiquei assustado. Porque os jovens em

CULTIVO DE SOJA POR MUNICÍPIO EM 2017 PRODUTO INTERNO BRUTO PER CAPITA POR MUNICÍPIO EM 2016

CULTIVO DE SOJA (TONELADAS) Nulo PIB PER CAPITA (R$) 1 – 500 3.190,57 – 10.000,00 501 – 5.000 10.000,01 – 26.000,00 5.001 – 50.000 26.000,01 – 42.000,00 50.001 – 500.000 42.000,01 – 50.000,00 500.001 – 1.991.801 50.000,01 – 314.637,69

38 | ABRIL DE 2021 grande parte saíram e continuam saindo industriais com destaque para agroin- do campo, ficando na zona rural princi- dústrias e indústrias sucroenergéticas, palmente os mais velhos, que recebem concentrada no Centro-Oeste, oeste da aposentadoria rural ou Bolsa Família, Bahia, do Maranhão, do Piauí, do sul e cuidam dos animais e fazem pequenas ro- O que leste da região Norte, toda a região Sudes- ças de feijão, milho e mandioca. Já o PIB te e Sul e a faixa costeira brasileira, desde per capita é mais alto na região Sudeste, chamamos de o Nordeste oriental até o Rio Grande do sem o norte de Minas, como resultado do Sul. É o Brasil que gera mais empregos e agronegócio, da atividade industrial e dos renda nos três segmentos da economia: serviços. Estou mostrando esses mapas, três Brasis indústria, agropecuária e serviços. originais, para falar do que chamamos de três Brasis, ou unidades de ordenamento são realidades O que você pensou vendo essas dife- territorial, que nossas análises revelaram. renças? muito São realidades completamente diferen- Quais são os três Brasis que vocês pro- tes, em biodiversidade, geodiversidade, põem? diferentes, que revelam problemas estruturais e exi- Um é o da natureza, outro do semiárido gem abordagens distintas. No semiárido, e o terceiro, o economicamente produti- uma área de esvaziamento ou estagna- vo. O primeiro tem extensa área de terras que exigem ção demográfica, temos de questionar: preservadas e grande biodiversidade, mas “Vamos deixar todo mundo ir embora é permanentemente ameaçado por causa abordagens e pronto?”. O ideal é que se comece a da expansão, principalmente da pecuária. gerar mais renda e emprego, com uma A área cobre a Amazônia, o Pantanal, o distintas economia mais dinâmica. rio Araguaia e a faixa costeira, com a ser- ra do Mar. Em situação oposta está o se- E a Amazônia? miárido. Não é o Nordeste todo, mas uma Em 2019, fui dar um curso em Parintins, área de restrição climática muito forte. a leste de Manaus. Depois saímos de bar- Enquanto a ocupação na Amazônia é de co. Em um dos pontos em que paramos baixa densidade e receptora de migrantes, vivia uma família com a casa no terraço o semiárido é o resultado de 500 anos de do rio. Perguntei para o homem da casa, ocupação com êxodo de população. Quan- devia ter uns 60 anos, do que ele vivia. Ele do a cana ocupou o litoral, o semiárido foi respondeu: “Ainda tenho algumas vacas, tomado com a pecuária. Existe hoje lá um que comem o capim da várzea. Tiro leite, esvaziamento ou estagnação demográfi- faço queijo e vendo o bezerro”. Ele tinha ca. O terceiro Brasil é essencialmente o reduzido o número de vacas porque es- da produção agropecuária e atividades tava dando mais atenção a uma roça de

UNIDADES DE ORDENAMENTO TERRITORIAL DO BRASIL (VERSÃO SEMIFINAL)

TERRAS DE FORTE INTERESSE ECOLÓGICO Floresta da Amazônia Ocidental Floresta da Amazônia Oriental Florestas amazônicas das planícies fluviais Floresta amazônica aberta em superfícies baixas Floresta amazônica aberta sobre morros e serras Planícies e pantanais do Pantanal do Alto Paraguai Planícies do rio Araguaia – ilha do Bananal Floresta tropical atlântica (remanescentes da Mata Atlântica) TERRAS DO SEMIÁRIDO – DOMÍNIO DAS CAATINGAS Superfície baixa aplanada com vales fluviais intermitentes Superfícies com morros, escarpas, patamares e colinas Terras montanhosas (serras, escarpas, Chapada Diamantina e serra do Espinhaço) TERRAS COM AGRICULTURAS E PECUÁRIA SEMI-INTENSIVA Floresta amazônica e faixas de transição (floresta-Cerrado) convertidas em pastagens plantadas Cerrado mais preservado com pecuária extensiva Cerrado convertido parcialmente em pastagens plantadas e pecuária semi-intensiva Cerrado convertido em agricultura intensiva de grãos/fibra Floresta tropical atlântica convertida em mosaico de agricultura e pecuária semi-intensiva Floresta tropical e subtropical atlântica convertidas em mosaico de agricultura e pecuária semi-intensiva Mapas resultantes Floresta tropical e subtropical atlântica com agricultura do projeto de de grãos, citros e cana-de-açúcar Pampas – planícies fluviais e costeira com agricultura pesquisa sobre de grãos (arroz e milho) ordenamento Pampas – morros baixos e colinas com pecuária semi-intensiva territorial no Brasil e silvicultura

PROJETO ORDENAMENTO TERRITORIAL BRASILEIRO TERRITORIAL ORDENAMENTO PROJETO coordenado por Ross

PESQUISA FAPESP 302 | 39 guaraná na floresta, em sistema agroflo- do Paraná e de Mato Grosso, na bacia do restal. Ele vendia a R$ 15 o quilograma da Alto Paraguai e no Tocantins. semente de guaraná, um valor três vezes mais alto que o do quilograma do bezerro. Por que resolveu fazer o mapa de rele- “E eu trabalho muito menos que com as Dei aula vo do Brasil? vacas”, ele falou. “Porque praticamente é Quando estava no curso de geografia, dei só manter a área limpa e colher as semen- em escolas aula em escolas e ficava agoniado quan- tes.” A floresta tem solução, que não pode do tinha de ensinar coisas ultrapassadas ser derrubar árvore para plantar pasto. sobre o relevo brasileiro. Eu já conhecia e ficava uma parte do Brasil. Nas férias de janei- O que vocês pretendem fazer com es- ro, saía com algum amigo e viajávamos ses mapas? agoniado de carona em caminhão. Fomos até a Vamos terminar o relatório, que já está Argentina, Uruguai, sul do Brasil, Goiás com 900 páginas de mapas e textos. Que- quando tinha e Mato Grosso, para o Pantanal, depois remos discutir essas informações com para o Nordeste. Terminei a graduação colegas da universidade, com gente do de ensinar e resolvi fazer mestrado em geomorfo- governo, com políticos, com o máximo de logia. Na metade do mestrado, surgiu a pessoas, de qualquer área. Queremos que possibilidade de fazer geomorfologia essas informações sejam úteis para o país. coisas para o RadamBrasil. Foi onde eu me fir- mei profissionalmente como geógrafo. Esse é o grande trabalho da sua car- ultrapassadas reira? O que era o projeto Radam? Provavelmente é o meu último grande tra- sobre o relevo O Radam foi um grande levantamento balho. Os outros foram o mapa de relevo dos recursos naturais, entre os quais o do do Brasil, na década de 1980, o mapa geo- relevo brasileiro, que começou em 1970. morfológico do estado de São Paulo, no Fui trabalhar para o Ministério de Minas final dos anos 1990 [ver Pesquisa FAPESP e Energia, que administrava o projeto n° 35], com financiamento da FAPESP, e o através do DNPM [Departamento Na- mapa geomorfológico da América do Sul, cional de Produção Mineral]. Enquanto concluído em 2019 [ver Pesquisa FAPESP o Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas n° 246]. Fiz muitas orientações tecno- Espaciais] usava imagens de satélites, o científicas em projetos de zoneamento Radam produzia os mapeamentos temá- ecológico-econômico, que determinam ticos de geologia, geomorfologia, solos, as áreas a serem ocupadas com atividades vegetação e clima usando imagens de econômicas e as que devem ser preser- radar, mais fáceis de trabalhar porque vadas, no litoral do Paraná e nos estados as micro-ondas do radar atravessam as nuvens, que assim não atrapalham o le- vantamento. O trabalho começou pela Amazônia e por isso se chamava projeto Radam, de Radar da Amazônia, depois é que virou RadamBrasil. Nessa época o governo era muito cobrado porque não se conhecia direito o território e preci- sava mapear os recursos naturais. Eu morava com minha família em Goiânia e trabalhei no Radam de 1977 até 1983, na região centro-oeste e sul da Amazônia.

Como era o trabalho de campo? Tínhamos as imagens de radar, com um pouco menos de 1 metro de comprimento, feitas por sobrevoos de avião, que mostra- vam basicamente as rugosidades do rele- vo. Íamos a campo para identificar as for- mas de relevo, a geologia, os tipos de solo e de vegetação. Viajávamos por terra, com uma Ford Willys, ou com avião bimotor em voo baixo, a 200 metros de altitude,

Ross entre gêiseres nos Andes em 2015 fazendo ziguezague sobre a área objeto do PESSOALACERVO

40 | ABRIL DE 2021 mapeamento. As saídas eram longas, de Azevedo valorizou as diferenças de al- trabalham o relevo com duas perspecti- 25 a 30 dias, tínhamos de dormir em rede, titudes do relevo e fez um mapa apenas vas, a estrutural, que vem de dentro para em barraca ou em hotelzinho de beira de com planaltos e planícies, foi um dese- fora, como os movimentos tectônicos, e estrada. Acampar ou amarrar a rede, era nho, uma figura de ilustração. Ab’Saber a escultural, de fora para dentro, como o uma delícia, eu adorava. Fotografávamos fez o mapa dos chamados domínios mor- desgaste erosivo. E ele: “Legal, gostei”. O tanto em terra como no ar, com helicóp- foclimáticos, unindo vegetação e relevo. mapa chegou ao público não especializa- tero e avião, usávamos aqueles gravado- Eu explorei as macroformas. Uma das do por meio de reportagens nas revistas res grandões, depois transcrevíamos e inovações foi a incorporação das depres- Nova Escola e Veja. Depois saiu no livro detalhávamos os mapas. Trabalhei em sões, os corredores rebaixados entre os Geografia do Brasil(Edusp, 1996), que três grandes áreas em Goiás e no atual planaltos, já conhecidas desde a década coordenei, e as editoras começaram a Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso de 1930, só não haviam sido ainda ma- incorporá-lo em livros didáticos. do Sul e Triângulo Mineiro. Cada área peadas. O RadamBrasil identificou as de- era coberta com 16 folhas de imagens de pressões, de Norte a Sul. Trabalhei nisso Você também foi consultor para a cons- radar. Cada folha, no corte internacional por três anos e o mapa saiu em 1989, pu- trução de hidrelétricas nos rios Xingu, ao milionésimo, na escala de 1 para 1 mi- blicado na Revista do Departamento de Madeira, Iguaçu e Uruguai. Como foi lhão, tinha 16 mapas na escala 1 para 250 Geografia, aqui da USP, em 1990. essa experiência? mil, portanto 48 mapas nessas três áreas, Foi no final da década de 1980, quando para cada tema de pesquisa. Quando o apresentou aos seus colegas? começou a aplicação dos EIA-Rimas [es- Um ano antes no simpósio de geografia tudos e relatórios de impacto ambiental] Por que você resolveu sair do Radam e física no Rio de Janeiro, em 1989. Esta- e havia um plano nacional da Eletrobras entrar na USP? vam lá ex-colegas do Radam, que havia para implantar hidrelétricas, até 2010, Meu orientador do mestrado e doutora- sido extinto quatro anos antes. Havia em todos os rios da Amazônia oriental, do, Adilson Avansi de Abreu, me alertou umas 300 pessoas assistindo, os con- porque os do lado ocidental não têm cai- para o fato de que o Radam acabaria um gressos ainda eram pequenos e todos mento suficiente. O Projeto Radam já dia e que eu deveria terminar o mestrado viam tudo. Depois da apresentação, meu tinha indicado algumas possibilidades. e buscar outro trabalho. Segui o conselho ex-chefe perguntou: “Mas de onde você Fui chamado para ensinar ex-alunos e es- dele e terminei. Depois ele me avisou de tirou esses conceitos de morfoestrutura tagiários que trabalhavam nas empresas um concurso na USP, para preencher a e morfoescultura?”. Falei que vinha do contratadas a usar imagens de radar para vaga do Ab’Saber, que tinha se aposenta- meu aprendizado do doutorado, seguin- fazer mapeamento e análise geomorfoló- do. Comecei na USP em janeiro de 1983 e do um conceito de alemães e russos que gica. Eu ajudava nos mapas e relatórios. aos poucos vi o que poderia fazer. Refiz meu projeto de doutorado para aprovei- Se você pudesse entrar agora em um tar o material do Radam e examinar uma helicóptero e o piloto perguntasse “va- província serrana interessante, próxima mos para onde?”, que lugares escolheria a Cuiabá. Ao mesmo tempo comecei a para revisitar ou conhecer? dar aulas para a graduação. Montei uma Vou ser pragmático, estou precisando disciplina extracurricular para os alu- fazer um sobrevoo na Chapada Diaman- nos interessados em imagem de radar. tina, na Bahia. Nunca estive lá e estou O laboratório de geomorfologia do De- orientando um doutorado sobre essa partamento de Geografia da USP tinha o região. É um lugar muito interessante acervo completo das imagens do Radam, As saídas porque entre os relevos montanhosos que o Ab’Saber havia pedido antes de há superfícies baixas e planas, com um se aposentar. Essas aulas viraram uma do Radam clima de transição do Cerrado para a disciplina optativa e me estimularam a Caatinga, solo fértil e uma intensa agri- fazer duas coisas, que me tomaram os 10 eram longas, cultura irrigada. Tenho muita curiosi- anos seguintes. A primeira foi a síntese dade de conhecer esse lugar. do relevo brasileiro e a segunda o mapa geomorfológico do estado de São Paulo, de 25 a 30 Você conhece todos os estados brasi- os dois com base em imagens de radar e leiros? nos relatórios do RadamBrasil. Ambos dias, tínhamos Sim, embora não conheça todos inteiros. foram praticamente uma continuidade Já fui de Macapá até Oiapoque por estra- do que se fazia no Radam, agora no La- de dormir da; de Boa Vista, Roraima, até Pacaraima, boratório de Geomorfologia do Depar- na divisa da Venezuela. Em maio de 2019 tamento de Geografia da USP. em rede. quase morri subindo a serra do Caparaó, na divisa de Minas Gerais com Espíri- Em seu mapa de relevo do Brasil, quais to Santo. Durante a pandemia só tenho as inovações em relação ao que Aroldo Uma delícia, ido a uma casa que tenho em Boituva. de Azevedo e Ab’Saber tinham feito? Espero recomeçar a viajar assim que ti- Eram enfoques diferentes. Aroldo de eu adorava ver tomado a vacina contra a Covid-19. n

PESQUISA FAPESP 302 | 41 ESQUECIDAS DOENÇAS AS PARA AGENDA UMA SAÚDE COLETIVA

OLYMPIA DE MAISMONT / AFP VIA GETTY IMAGES A OMS apresenta um roteiro de desafios para mudar até 2030 o panorama das moléstias tropicais negligenciadas

Fabrício Marques

ara enfrentar a emergência sanitária do vitimar 3,6 milhões de africanos. Em 2019, houve novo coronavírus, governos e cientis- apenas 54 registros da infecção, graças sobretu- tas conseguiram desenvolver em me- do à oferta de água potável em áreas endêmicas. nos de um ano um portfólio de vacinas Em outras situações, a estratégia foi aplicar baseado em diferentes tecnologias e novas terapias. O número de casos de tripanosso- começaram a aplicar sete formula- míase africana, conhecida como doença do sono, ções de imunizantes. A prioridade caiu de 7 mil em 2012 para menos de mil em 2019. clamorosa da Covid-19 contrasta com Isso foi consequência do desenvolvimento de um a sina de um grupo de doenças infec- medicamento oral, o fexinidazol, por um consórcio ciosas que atinge a humanidade há muito tempo, de instituições coordenado pela Iniciativa Medi- Psem que a pesquisa científica e políticas públicas camentos para Doenças Negligenciadas (DNDi), consigam articular esforços para extingui-las ou organização sediada em Genebra, na Suíça. Os neutralizá-las. Um relatório lançado em janeiro cinco remédios disponíveis até então precisavam pela Organização Mundial da Saúde (OMS) atua- ser administrados por injeção. O fexinidazol foi lizou a situação de 20 dessas moléstias, chamadas sintetizado nos anos 1970, mas só há uma década de doenças tropicais negligenciadas (ver quadro se descobriu seu potencial contra a enfermidade. nas páginas 46 e 47). Em comum, elas atingem Apesar dos progressos, a OMS estima que 1,74 predominantemente pessoas e países pobres – o bilhão de pessoas ainda sofra com tais doenças, que ajuda a explicar os investimentos insuficientes que são responsáveis por 500 mil mortes anuais. em prevenção, diagnóstico e tratamento. Por isso, o relatório da OMS estabeleceu um no- Resultado do trabalho de mais de 50 técnicos vo roteiro de metas para 2030, alinhadas com os e especialistas, o documento mostra um conjun- Objetivos do Milênio para o Desenvolvimento to de avanços no combate a essas doenças desde Sustentável (ODS) das Nações Unidas, que pre- uma reunião ocorrida em Londres, na Inglaterra, veem acabar com epidemias dessas moléstias no em 2012 – na ocasião, representantes de governos, mundo nos próximos 10 anos. O propósito, como das empresas farmacêuticas, do Banco Mundial, definiu o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanon da OMS e da Fundação Bill & Melinda Gates es- Ghebreyesus, é “libertar mais de 1 bilhão de pes- tabeleceram um roteiro para enfrentá-las. O re- soas que hoje precisam de intervenções contra as sultado foi que, nesses oito anos, 600 milhões doenças tropicais negligenciadas”. de pessoas saíram da zona de suscetibilidade às Naturalmente, não se espera que as ambições doenças negligenciadas e 42 países conseguiram para 2030 sejam integralmente alcançadas. “Es- se livrar de pelo menos uma delas. sas metas em geral são utópicas, mas ajudam a Atendimento médico Os avanços foram possíveis graças a doações orientar a aplicação de recursos e podem ser a uma família em feitas por 11 empresas farmacêuticas de 3 bilhões efetivas nos países mais organizados”, afirma o Uagadugu, Burkina Faso: distribuição de de comprimidos de medicamentos por ano e da infectologista Marcos Boulos, da Faculdade de remédios e novas adoção de novas estratégias de prevenção e tra- Medicina da Universidade de São Paulo (FM- estratégias terapêuticas tamento nas áreas mais afetadas. Em certos ca- -USP), um dos representantes do Brasil no gru- livraram 600 milhões de pessoas do espectro sos, o controle não envolvia medidas complexas. po técnico consultivo que definiu e sumarizou das doenças tropicais Um exemplo é o da dracunculíase, que provoca as recomendações do relatório da OMS. “É co- negligenciadas desde 2012 ferimentos nos pés e pernas; em 1986 chegou a mum que surjam outras prioridades e desviem

PESQUISA FAPESP 302 | 43 1 Distribuição de água potável no Zimbábue nos anos 1990 para prevenir disseminação da dracunculíase 2 Centro de tratamento de leishmanioses em Cabul, Afeganistão 3 Paciente internado no Hospital Curupaiti, antiga colônia de tratamento de hanseníase no Rio de Janeiro, em imagem de 2016 4 Aplicação de inseticida para matar insetos transmissores da doença de Chagas na vila de Palmarito, na Bolívia 2 1 a mais do que no ano anterior. O problema é que o G-Finder considera como negligenciadas doenças que não são mais classificadas assim pela OMS, como malária, Aids e tuberculose, e foram elas o alvo da maioria dos recursos. Em um grupo de seis moléstias que historicamente recebe poucos recursos, entre as quais hanseníase, tracoma e úlcera de Burili, houve queda nos investimentos em 2018. A malária é um exemplo de doença com alta prevalência em países pobres que passou a ser vista como prioridade. Em 2018, a Fundação Bill & Melinda Gates destinou US$ 1 bilhão ao programa de combate à malária da OMS e encomendou um estudo que resultou em um roteiro de ações em prevenção e pesquisa para erradicá-la até 2050. Parte significativa da agenda para combater as doenças negligenciadas depende de colaborações científicas e do desenvolvimento de novos trata- mentos. Os desafios para pesquisadores estão em múltiplas frentes. No caso do micetoma, causado a atenção das metas. Agora, o mundo todo está por fungos ou bactérias, ainda não existem testes mobilizado para enfrentar a Covid.” capazes de detectar a infecção em seus estágios As novas metas para as doenças negligencia- iniciais, o que é essencial para evitar formação de das propõem ações integradas para combatê-las deformidades na pele. Em muitos casos, já faria e identificação de lideranças espalhadas pelo pla- muita diferença aperfeiçoar os tratamentos exis- neta para trabalhar de perto nos problemas. “In- tentes. Um consórcio de centros de pesquisa, que tegração significa destinar recursos para cuidados inclui a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), está de saúde com abordagens mais holísticas. Profis- concluindo os estudos clínicos de fase 3 de um sionais de saúde treinados para testar a doença do antiparasitário já indicado para o tratamento da sono também devem estar preparados para buscar esquistossomose, o prazinquantel, mas com uma outros males prevalentes em sua região”, expli- formulação para crianças de 3 meses a 6 anos. “A cou a médica francesa Nathalie Strub-Wourgaft, apresentação existente não pode ser usada por diretora de doenças tropicais negligenciadas da crianças menores de 4 anos de idade. Trata-se de DNDi, em entrevista ao site da organização. um comprimido extremamente amargo, que pode Um dos principais desafios será obter recur- provocar vômitos quando mastigado, limitando sos. Um levantamento da organização G-Finder, muito o tratamento”, explica a médica baiana Rosa que monitora investimentos em pesquisa e de- Castália Ribeiro Soares, coordenadora do Programa senvolvimento (P&D) em saúde, mostrou que o Nacional de Hanseníase e Doenças em Eliminação financiamento global para combater essas enfer- do Ministério da Saúde entre 2004 e 2007 e de 2011 midades alcançou US$ 4,05 bilhões em 2018, 7% a 2016. Ela também faz parte do grupo técnico que

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ajudou a elaborar o relatório e o roteiro da OMS. cessos relacionados à capacidade de esses para- Transmitida pelo contato com água contaminada sitas sobreviverem nos hospedeiros, em busca de com parasitas, a esquistossomose é endêmica em fármacos capazes de evitar a infecção. vários países da África. No Brasil, era um grande Em São Paulo, três grupos dedicados a essa problema de saúde pública até a década de 1970 e frente de investigação se reuniram no ano pas- foi combatida com o acesso a saneamento, educa- sado para organizar um evento internacional, ção em saúde, tratamento de comunidades afetadas, a Escola São Paulo de Ciência Avançada em tri- além da eliminação dos caramujos hospedeiros. panossomatídeos patogênicos, financiada pela FAPESP. Trata-se de um curso de curta duração, indústria farmacêutica tem de- com a participação de pesquisadores e jovens monstrado interesse limitado em doutores do Brasil e de outros países para discu- desenvolver medicamentos contra tir os avanços nesse tópico de pesquisa. O evento, OMS

/ as doenças negligenciadas. Como programado para o final de 2020, foi adiado para atingem populações muito pobres, o segundo semestre de 2022. “Cogitamos fazer a tais remédios têm um potencial escola on-line, mas a interação que esse tipo de restrito de exploração econômica. curso propicia depende muito do contato presen- Um levantamento feito em 2018 cial”, afirma Angela Kaysel Cruz, pesquisadora FERNANDO G. REVILLA

4 por pesquisadores da Universidade da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da de Fudan, na China, mostrou que, entre 2000 e USP e organizadora da escola. A2011, apenas 5 dos 850 medicamentos que obti- Cruz trabalha com ciência básica, analisando veram registro nos Estados Unidos e na Europa os mecanismos moleculares pelos quais os para- eram destinados a moléstias da pobreza – em sitas Leishmania sofrem reprogramação genética todos os casos, tratava-se de novas aplicações de durante seus ciclos de vida em busca de alvos fármacos já existentes. “No século XXI, ainda para novos medicamentos. Coordena também não foi produzido nenhum medicamento ino- o projeto temático Centro Brasil-Reino Unido vador para as 20 doenças tropicais negligencia- para Estudo da Leishmaniose, financiado pela das”, afirma o químico Adriano Andricopulo, FAPESP e por instituições britânicas como a do Instituto de Física de São Carlos da USP, agência UK Research and Innovation e o Fun- FABIO TEIXEIRA / AGÊNCIA ANADOLU / GETTY IMAGES 3 que trabalha no desenvolvimento de fármacos do Newton, executado em parceria com o pa- contra Chagas e leishmaniose. rasitologista Jeremy Mottram, da Universidade No caso dessas duas enfermidades, causadas de York. “A parceria com o Reino Unido inclui por uma mesma família de protozoários pato- desde perguntas básicas de genética molecular, gênicos, os tripanossomatídeos, o desafio é de- para compreender como o parasito Leishmania

CHRISTOPHER BLACK / OMS senvolver medicamentos novos. Os principais funciona e regula sua expressão gênica, e passa 2 fármacos para combater a leishmaniose visceral pelo estudo da fisiopatologia da doença”, afirma. são os medicamentos antimoniais, considerados Isso se complementa com a expertise dos cola- muito tóxicos. Já o mais utilizado contra a doen- boradores, que analisam estruturas de moléculas ça de Chagas é o benznidazol, eficaz só em casos e procuram inibidores de proteínas. / OMS LIBA TAYLOR 1 detectados na chamada fase aguda. Estudos em Os outros dois grupos também têm parcerias

FOTOS genômica e proteômica têm investigado os pro- com equipes do Reino Unido. O bioquímico Ariel

PESQUISA FAPESP 302 | 45 AS DOENÇAS E A POBREZA DISTRIBUIÇÃO DAS PRINCIPAIS DOENÇAS O status e a incidência das 20 moléstias tropicais classificadas como negligenciadas TROPICAIS NEGLIGENCIADAS pela Organização Mundial da Saúde NO MUNDO Carga de casos por milhão de habitantes

PASSÍVEIS DE ERRADICAÇÃO DRACUNCULÍASE BOUBA Causada por parasita conhecido como Infecção da pele e articulações originada pela verme-da-guiné, produz úlceras principalmente bactéria Treponema pallidum pertenue, pode nas pernas. É transmitida por água provocar deformidades físicas. Ainda é endêmica contaminada. Há casos em países como em 15 países, como Costa do Marfim, Gana, Angola, Chade e Sudão do Sul Papua Nova Guiné, Togo e Filipinas

PASSÍVEIS DE INTERRUPÇÃO DA TRANSMISSÃO < 0,1 HANSENÍASE ONCOCERCOSE TRIPANOSSOMÍASE 0,1 – 0,49 Gerada pelo bacilo Provocada pelo parasita AFRICANA HUMANA 0,5 – 1,49 Mycobacterium leprae, atinge Onchocerca volvulus e transmitida Conhecida como doença do 1,5 – 2,99 os nervos periféricos, por uma mosca, é a segunda sono, é causada por dois tipos 3,00 – 4,49 a pele e o trato respiratório. maior causa de cegueira de tripanossomas e transmitida 4,50 – 5,99 Se não for tratada, causa infecciosa no mundo. Atinge pela mosca tsé-tsé. Compromete 6,00 – 7,49 deformidades; 80% dos novos 20 milhões de pessoas, o sistema nervoso e pode ser > 7,5 casos estão na Índia, Brasil principalmente na África mas letal. Presente no sudeste Sem informação e Indonésia também em regiões tropicais e centro da África, teve cerca Não aplicável da América de mil casos em 2019

O PIB PER CAPITA DOS PAÍSES PASSÍVEIS DE ELIMINAÇÃO COMO PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA Em milhares de US$ (2018) LEISHMANIOSE nas pernas e também pode responsável por 59 mil mortes Causada por protozoários, comprometer a saúde mental. no mundo em 2015 provoca lesões em órgãos Há 50 milhões de infectados, internos (visceral) ou na pele principalmente no centro da TRACOMA (cutânea). É transmitida por África e sul da Ásia Conjuntivite motivada pela insetos. Cães contaminados são bactéria Chlamydia trachomatis, reservatório de protozoários. ESQUISTOSSOMOSE é a maior causa de cegueira Maioria dos casos está na Índia, Infecção gerada por vermes evitável do mundo. Está Brasil e África da família Schistosoma, presente na África, América é transmitida pelo contato do Sul e Índia. Em 2019, DOENÇA DE CHAGAS com água doce contaminada, 2,5 milhões de vítimas da doença É transmitida por fezes de provocando sintomas como necessitavam de cirurgia barbeiros contaminados com febre e diarreia. Maioria dos o Trypanosoma cruzi. Sem casos está na África. Ainda HELMINTÍASES tratamento, pode levar à é presente no Brasil Doenças causadas por <20 insuficiência cardíaca. Incidência parasitas intestinais 10 – 19,9 maior é em países da América RAIVA HUMANA presentes no solo, como 8 – 9,9 Latina. Matou 10 mil em 2017 Zoonose que ocasiona encefalite a ascaridíase, a ancilostomíase 6 – 7,9 viral, é transmitida por saliva e a estrongiloidíase. 4 – 5,9 FILARIOSE LINFÁTICA de morcegos e mordida de Maior incidência está na Índia, 2 – 3,9 Transmitidas por mosquitos, cães infectados. Está presente centro da África e América 1 – 1,9 suas larvas migram para as vias em 89 países, na maioria Latina. Causaram 6,3 mil < 1 Sem informação linfáticas. Provoca inchaço da África e Ásia. A doença foi mortes em 2016 Não aplicável

46 | ABRIL DE 2021 PASSÍVEIS DE CONTROLE ÚLCERA DE BURULI Causada por Mycobacterium ulcerans, produz lesões ulcerativas na pele, pode atingir os ossos e gerar incapacitação. Houve 2,2 mil casos em 2019, concentrados no centro da África, América Latina e oeste da Ásia

DENGUE Ocasionada por quatro tipos de flavivírus e transmitida por mosquito, produz febre alta e dores. Pode desencadear febre hemorrágica. Em 2017, houve 100 milhões de casos e 40 mil mortes na América Latina, África e sul da Ásia

EQUINOCOCOSE Infecção originada por larvas, produz desconforto abdominal e cistos no fígado e nos pulmões. Concentra-se no norte da África, sul da Europa, América do Sul. Houve 1 milhão de casos e 19 mil mortes em 2016

TREMATODÍASES Doenças geradas por parasitas trematódeos, são disseminadas por alimentos contaminados. Com cerca de 200 mil casos por ano e 7 mil mortes, são endêmicas em 92 países em todos os continentes

MICETOMA E CROMOBLASTOMICOSE Infecções na pele, tecido muscular e ossos provocadas por fungos ou bactérias. Se não forem tratadas, podem gerar deformidades e deficiência física. Casos se concentram em regiões tropicais da América Latina e África

SARNA A escabiose e parasitoses do gênero são motivadas por ácaros que penetram a pele, gerando coceira e irrupções. Duzentos milhões de pessoas são infectadas anualmente, com destaque para Austrália, Brasil e centro da África

ENVENENAMENTO POR PICADA DE COBRA Reação a toxinas introduzidas no organismo após picada de cobras venenosas, é mais prevalente em áreas rurais da América do Sul, África, China e Índia. A cada ano, 2,7 milhões de pessoas são picadas e 8 mil morrem

TENÍASE E CISTICERCOSE Causadas pela ingestão de carne com ovos do parasita tênia. A teníase é uma infecção intestinal e a cisticercose pode atingir ALEXANDRE AFFONSO o sistema nervoso; 28 mil morreram em 2015, principalmente na África, América Latina e Ásia FONTE OMS / RELATÓRIO “ENDING THE NEGLECT TO ATTAIN THE SUSTAINABLE

INFOGRÁFICO DEVELOPMENT GOALS – A ROAD MAP FOR NEGLECTED TROPICAL DISEASES 2021-2030”

PESQUISA FAPESP 302 | 47 Silber, do Instituto de Ciências Biomédicas da Flavio Alves Lara elucidou em 2016 como Myco- USP, trabalha com pesquisadores da Universidade bacterium leprae altera o metabolismo das células de Glasgow, em busca de compreensão de como que recobrem os axônios, responsáveis pelo trans- o metabolismo afeta a proliferação do parasita. porte de impulsos elétricos nervosos, e assume o Já Adriano Andricopulo trabalha com colegas da controle de seu metabolismo para obter energia. Universidade de Dundee. Seus estudos procuram “O metabolismo da célula infectada, em vez de alvos para novos medicamentos em moléculas abastecer o axônio, passa a fornecer glicose e gor- inovadoras a partir de produtos naturais da bio- dura para o invasor”, explica. Lara trabalha agora diversidade brasileira. na busca de uma molécula que bloqueie esse pro- cesso. “Parece uma meta desnecessária, porque é oordenador de transferência de tec- possível matar a bactéria com antibióticos. Mas nologia do Centro de Pesquisa e Ino- alguns pacientes continuam desenvolvendo neu- vação em Biodiversidade e Fármacos ropatias durante o tratamento e alguns até pioram (CIBFar), um dos Centros de Pesquisa, em um primeiro momento. Seria importante ter Inovação e Difusão (Cepid) apoiados uma droga complementar que protegesse os ner- pela FAPESP, Andricopulo estuda 10 vos ao longo da terapia, que pode durar um ano”, moléculas candidatas a medicamentos diz. Atualmente, ele testa essa possibilidade em contra Chagas e 20 para leishmaniose. ensaios in vitro com um composto que, por ser Entre os mais promissores, destaca-se muito tóxico, não poderia ser utilizado clinica- a classe de inibidores de uma enzima cruzaína en- mente. “A ideia é produzir uma prova de conceito Cvolvida em todos os estágios de desenvolvimento para procurar moléculas mais viáveis”, explica. e diferenciação do parasita Trypanosoma cruzi. O Há ainda um grande espaço para a contribui- 1 Laboratório de Química Medicinal e Computacional grupo de São Carlos participa de um consórcio ção de epidemiologistas. A esquistossomose ain- do Centro de Pesquisa e internacional criado em 2019 para desenvolver da depende de estratégias de vigilância, como o Inovação em Biodiversidade medicamentos contra doença de Chagas, leishma- monitoramento da presença dos caramujos em e Fármacos, que busca niose visceral e malária. Liderada por Luiz Carlos rios. Em um estudo publicado em 2018 na revista novos medicamentos para Chagas e leishmaniose, Dias, do Instituto de Química da Universidade Epidemiologia e Estudos de Saúde, o médico Omar em São Carlos (SP) Estadual de Campinas (Unicamp), a iniciativa dos Santos Carvalho, do Instituto René Rachou, 2 Moscas tsé-tsé, receberá investimentos de R$ 43,5 milhões da da Fiocruz de Minas Gerais, fez uma análise de- transmissoras da FAPESP e das organizações internacionais DNDi talhada da distribuição geográfica dos caramujos tripanossomíase humana africana, coletadas em e Medicines for Malaria Venture (MMV). hospedeiros do verme Schistosoma mansoni em zona rural da Tanzânia O combate à hanseníase também inspira esfor- Pernambuco, Paraná, Minas Gerais, Bahia e Rio 3 Caramujos dissecados ços de ciência básica para criar novos remédios. Grande do Norte. As informações levantadas ali- para verificar contaminação pelo parasita da Na Fiocruz, no Rio de Janeiro, o microbiologista mentaram as bases de dados das equipes de vigi- esquistossomose em 2 lância sanitária que trabalham com a prevenção. Xangai, China Foram encontrados os moluscos em 300 dos 427 4 Etapa de produção municípios estudados. Em 53 deles, havia simul- da vacina liofilizada contra a dengue taneamente duas espécies. em desenvolvimento no O Brasil obteve grandes avanços no controle de Instituto Butantan doenças negligenciadas, como Chagas e esquistos-

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48 | ABRIL DE 2021 somose. Para Rosa Castália, os resultados positivos com protocolos definidos pela OMS”, afirma Rosa devem ser atribuídos também ao trabalho descen- Castália. A filariose linfática, que causa inchaço tralizado do Sistema Único de Saúde (SUS). “Nos nas pernas, desapareceu nos estados da Bahia, de últimos 15 anos, o treinamento de profissionais em Alagoas e do Pará, mas ainda está em processo de Atenção Básica de Saúde ampliou a capacidade de certificação da eliminação em Pernambuco, onde oferecer diagnóstico e tratamento”, afirma. Ela havia focos ativos até poucos anos atrás. menciona o exemplo da hanseníase, cujos registros A ciência dispõe de um arsenal de estratégias não têm diminuído nos últimos anos mesmo com a para eliminar ou controlar doenças infecciosas. ampliação do atendimento. “Na medida em que se As vacinas, quando disponíveis, são a principal aperfeiçoa a vigilância e se amplia o acesso ao diag- solução. Graças a elas, a varíola foi erradicada e nóstico, é natural que surjam mais casos porque outras enfermidades são mantidas sob controle há uma busca ativa de indivíduos contaminados e por meio de imunizações periódicas. O advento melhor notificação”, diz. “No entanto, condições dos antibióticos igualmente transformou antigos sanitárias e fatores associados à transmissão ain- flagelos em infecções tratáveis, caso da cólera ou da pouco conhecidos também são importantes na da peste bubônica – a oferta de saneamento básico manutenção dos níveis endêmicos.” O Brasil só é também ajudou a eliminá-las. Segundo a OMS, há superado pela Índia em registros de doença. Em perspectiva de erradicação completa para poucas 2018, foram 27 mil novos casos. doenças negligenciadas nos próximos anos, como Para Flavio Alves Lara, da Fiocruz, a subno- a dracunculíase ou a bouba. Para as demais, o de- tificação não explica sozinha a persistência da safio é mantê-las em um patamar administrável. hanseníase. “Provavelmente, há diversos reser- vatórios da bactéria na natureza – os tatus são o rol das doenças negligenciadas, as reservatórios conhecidos – e não estamos fazendo mais preocupantes no Brasil atual- um esforço eficiente para identificá-los”, afirma. mente são a dengue e a leishmaniose Ele observa que a maioria dos casos está em fron- visceral. “Vamos continuar conviven- teiras agrícolas, como no arco do desmatamento do com epidemias anuais de dengue e na Amazônia. “A hanseníase não é uma doença de chikungunya, porque não tivemos INSTITUTO BUTANTAN INSTITUTO 4 tropical nem urbana. Era predominante em toda competência de tirar o Aedes aegypti a Europa, mas sua transmissão local foi inter- da casa da gente”, diz Marcos Boulos. rompida de forma concomitante aos processos “Doenças que dependem da elimi-

SIMON / OMSLIM de industrialização e urbanização na região ao nação de mosquitos são difíceis de erradicar.” O 3 longo do tempo. Acredito que os reservatórios Ndesenvolvimento de uma vacina poderia mudar naturais europeus tenham desaparecido durante esse panorama. Há 12 anos, o Instituto Butantan, a revolução industrial ou ao menos reduzido sua em São Paulo, trabalha no desenvolvimento de interação com o homem. Os esquilos vermelhos, um imunizante (ver Pesquisa FAPESP nº 291). ANDY CRAGGS / OMS 2 que tinham seus rabos utilizados na confecção No ano passado, foram registrados perto de 1 de adornos e chapéus femininos, ainda povoam milhão de casos de dengue no Brasil, com pouco a Inglaterra e foram somente agora identificados mais de 500 mortes. / IFSCLQMC 1 como reservatórios naturais da doença.” Outro desafio é combater a leishmaniose visce-

FOTOS Quando participou da elaboração do relatório ral, doença rural e restrita à região Nordeste até a

4 da OMS, o infectologista Marcos Boulos encon- década de 1980, que nos últimos anos vem avan- trou dificuldades para sensibilizar os outros mem- çando rumo a centros urbanos, incluindo cidades bros do painel sobre os problemas enfrentados no paulistas. Ela é causada pelo protozoário Leishma- Brasil. “Em geral, o alvo das preocupações e dos nia infantum chagasi e transmitida pelas picadas recursos da organização é a África, que concentra das fêmeas de insetos Lutzomyia longipalpis. Um boa parte das doenças.” Mas o Brasil ocupa uma reservatório do parasita são cães contaminados. posição pouco confortável no panorama de inci- “Os insetos não são urbanos. Vivem em matas dência das 20 moléstias negligenciadas. Só duas próximas às cidades e é muito difícil combatê- delas comprovadamente não estão presentes aqui: -los. Precisamos produzir mais conhecimento a dracunculíase e a tripanossomíase africana. É sobre como ela está se espalhando. Em 2019, duas certo que o Brasil está perto de se livrar de algu- crianças morreram de leishmaniose na cidade de mas delas. A oncocercose, doença parasitária que Guarujá [SP] e não conseguimos até hoje rastrear pode causar cegueira, ainda tem um foco no país, onde estavam os focos de contaminação”, explica em Roraima, na fronteira com a Venezuela, no Boulos. Não faltam alvos de pesquisa para quem território habitado pelos Ianomâmi. “Os agentes puder investigar as doenças negligenciadas. n de saúde e os médicos têm de entrar na mata e ver onde os indígenas estão, pois muitos são nô-

mades. Há evidências de que não tem ocorrido Os projetos sobre doenças negligenciadas financiados pela FAPESP mais transmissão, mas isso precisa ser confirmado podem ser consultados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 302 | 49 ÉTICA

MENOS ANIMAIS NA CIÊNCIA

50 | ABRIL DE 2021 Legislação avança para reduzir o número de cobaias em práticas de ensino e pesquisa no Brasil

Rodrigo de Oliveira Andrade

ermina em agosto o prazo para que A veterinária Luciana Honorato, da Universida- universidades, empresas e institu- de Federal de Santa Catarina (UFSC), acrescenta tos públicos e privados de pesquisa que cada método tem uma aplicação específica substituam o uso de animais por e determina em sua própria descrição se o seu métodos alternativos em testes de uso visa a substituição total, parcial ou a redução potencial de irritação e corrosão do número de animais. “Alguns métodos apro- Tocular, de toxicidade de substâncias no sistema vados pelo Concea não funcionam como substi- reprodutivo humano e de controle de qualidade tutos independentes ao uso de animais, mas se de produtos injetáveis – este último comumente inserem em uma estratégia inicial de testes em usado na avaliação de segurança de vacinas e camadas”, explica. É o caso do teste de avaliação medicamentos injetáveis a cada lote produzido. de opacidade e permeabilidade de córnea bovina, A exigência consta de uma resolução publicada validado como alternativa ao uso de coelhos em em 2016 pelo Conselho Nacional de Controle de análises de irritação ocular. O método consiste Experimentação Animal (Concea), instituição no uso de córneas de bovinos recém-abatidos, as colegiada do Ministério da Ciência, Tecnologia e quais seriam descartadas. “Aplica-se a substância Inovações (MCTI) encarregada de criar normas de interesse na superfície da córnea para avaliar para o uso ético de animais e zelar pelo seu cum- os danos. No caso de resultados inconclusivos, primento. O Concea já havia publicado resolução recorre-se ao uso de animais.” semelhante em 2014, a qual entrou em vigor em É certo que o uso de cobaias segue indispensá- fins de 2019, determinando a substituição do uso vel em muitas pesquisas (ver Pesquisa FAPESP de animais por 17 técnicas alternativas nos casos nº 144), como em estudos na área de farmacoci- de testes de avaliação de mutações genéticas in- nética, que avaliam o caminho que uma molécula duzidas por substâncias químicas, toxicidade percorre no organismo após sua administração. aguda, sensibilidade da pele, entre outras. Esse tipo de análise é essencial na definição dos As resoluções têm força de lei e preveem puni- parâmetros de toxicidade relacionados à segu- ções que incluem advertências, multas e interdi- rança e eficácia de candidatas a fármacos ou va- ção da instituição, em caso de descumprimento. cinas, como as desenvolvidas contra a Covid-19, Estima-se que elas afetem igualmente empresas por exemplo. “Avalia-se como e a que velocidade e instituições públicas e privadas de pesquisa, uma substância é absorvida e metabolizada pelo sendo as atividades que exigem registro da Agên- organismo, se se acumula em determinado órgão cia Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) as e os possíveis impactos desse processo“, esclare- mais impactadas, como o desenvolvimento de no- ce Valadares. Por envolver interações complexas vos produtos cosméticos, agrotóxicos, fármacos, em sistemas igualmente complexos e interdepen- medicamentos e vacinas. “Ensaios de toxicida- dentes, é difícil criar um método robusto e inter- de reprodutiva são muito usados pela indústria nacionalmente padronizado capaz de substituir farmoquímica para saber se uma nova molécula os modelos animais nessas pesquisas. Uma das interfere na capacidade de reprodução humana, técnicas com potencial para resolver esse proble- enquanto os testes de potencial de irritação ocular ma é a de sistemas microfisiológicos, formados ainda são aplicados por fabricantes de agrotóxicos, por organoides humanos em dispositivos mi- entre outros”, explica a bioquímica Marize Vala- crofluídicos: microchips revestidos com células

TONY / GETTYEVANS IMAGES dares, da Universidade Federal de Goiás (UFG). humanas de diferentes órgãos interconectados

PESQUISA FAPESP 302 | 51 em um sistema fechado. “Com ele, seria possível ços promovidos pela Lei Arouca foi a criação de analisar os impactos sistêmicos de substâncias em Comissões de Ética no Uso de Animais (Ceuas) órgãos distintos”, explica a pesquisadora da UFG. em empresas e instituições públicas e privadas As normativas do Concea são um desdobra- de ensino e pesquisa que trabalham com expe- mento de um esforço iniciado no Brasil há mais rimentação animal. Com isso, todo pesquisador de duas décadas pelo sanitarista e ex-deputado que use modelos animais deve, antes de iniciar federal Sérgio Arouca (1941-2003). Em 1995 ele sua pesquisa, apresentar um projeto para ava- apresentou um projeto de lei propondo mecanis- liação dessas comissões em sua própria institui- mos para assegurar o uso ético e racional de ani- ção. “Elas trabalham na avaliação dos métodos mais em atividades de ensino e pesquisa no Brasil, alternativos disponíveis mais adequados para o a exemplo do que acontecia em outros países. O experimento proposto”, diz o biólogo Octavio projeto tramitou por 13 anos no Congresso até Presgrave, coordenador do BraCVAM. ser aprovado em 2008. A Lei nº 11.794, conhecida como Lei Arouca, regulamentou o uso de animais biomédica Monica Andersen, no país e instituiu as bases para a formação de da Universidade Federal de São uma rede de laboratórios devotada à validação de Paulo (Unifesp), informa que as métodos alternativos, como o Centro Brasileiro de Ceuas são formadas por biólo- Validação de Métodos Alternativos (BraCVAM), gos, veterinários, professores e no Rio de Janeiro. A lei também criou o Concea, pesquisadores de áreas especí- cujas resoluções se deram todas por intermédio Aficas, além de um representante das sociedades do BraCVAM. “O Brasil avançou muito na última protetoras de animais estabelecidas no Brasil. década em termos de legislação sobre o uso de “Elas analisam os projetos de modo a racionalizar animais na ciência”, diz Valadares. o uso de animais de acordo com o princípio dos A Lei Arouca foi aprovada após grande mobi- três erres”, explica a pesquisadora, referindo- lização da comunidade acadêmica, que contes- -se ao modelo proposto pelo zoologista William tava a existência de leis estaduais e municipais Russell e o microbiologista Rex Burch, ambos do proibindo o uso de animais em empreendimen- Reino Unido, em 1959, segundo o qual o uso de tos científicos sem levar em conta os prejuízos animais em experimentos é permitido, mas deve que isso poderia ter na ciência brasileira. Uma ser reduzido (reduce) ao mínimo, refinado (refine) das entidades à frente da articulação em favor ou substituído (replace) sempre que possível por da lei foi a Federação das Sociedades de Biolo- técnicas alternativas. gia Experimental (FeSBE), então presidida pelo Para a biomédica Debora Fior Chadi, assessora neurocientista Luiz Eugênio Mello, atual diretor da Pró-reitoria de Pesquisa da Universidade de científico da FAPESP. “Reunia-me frequente- São Paulo (USP), as Ceuas ajudaram a aprimo- mente com os parlamentares em Brasília para rar a ciência brasileira. “Passou-se a exigir que sensibilizá-los sobre a importância da pauta e os pesquisadores descrevessem em detalhes o costurar um consenso entre os líderes dos par- uso que fariam dos animais em seus trabalhos e tidos em relação ao texto da lei”, lembra Mello. também que justificassem a necessidade desse Ele avalia que o esforço da comunidade científica uso à luz de métodos alternativos disponíveis”, contribuiu para que a lei fosse aprovada da forma comenta. “Procura-se com isso verificar a real que os pesquisadores esperavam. necessidade do uso de animais, as espécies mais Para o médico e biofísico Marcelo Morales, ex- adequadas para se alcançar os objetivos propostos -coordenador do Concea, um aspecto importante e a quantidade necessária.” As comissões deter- da legislação foi a definição da classe de animais minam ainda que os cientistas criem protocolos a que seus dispositivos se aplicavam: vertebrados assegurando o bem-estar dos animais, de modo em geral, como peixes, anfíbios, répteis, aves e que eles sejam mantidos em condições adequadas mamíferos. “As legislações municipais que des- e tenham seu sofrimento minimizado. pontavam eram vagas e criavam uma situação de Graças às Ceuas, o impacto das resoluções do incerteza, pois tornava ilegal o uso de qualquer Concea nas universidades tende a ser pequeno, animal em atividades de pesquisa”, diz Morales, pois os pesquisadores já são obrigados a usar hoje secretário de Pesquisa e Formação Cientí- métodos alternativos quando eles existem e têm fica do MCTI. “Estudos com insetos e vermes, eficácia comparável aos tradicionais. “Não é pos- usados em pesquisas de genética, por exemplo, sível avançar na pesquisa sem que as comissões ficariam comprometidos. A Lei Arouca foi im- aprovem os projetos. Todos os pesquisadores que portante porque tirou o efeito das leis munici- trabalham com animais, mesmo os poucos fami- pais, criando um cenário de segurança jurídica liarizados com as normativas, precisam atualizar e normas éticas para o uso racional de animais.” suas metodologias para diminuir ou substituir Passados 13 anos de sua aprovação, é consenso seu uso nos experimentos e, com isso, adequar- entre os especialistas que um dos principais avan- -se às exigências”, comenta Liliana Scorzoni, da

52 | ABRIL DE 2021 Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus em aulas práticas de graduação”, assegura a ve- de São José dos Campos (SP). terinária Ekaterina Botovchenco Rivera, coorde- Algumas instituições, como a UFSC, vão além e nadora do Concea. “Eles só podem ser usados em também avaliam os projetos à luz da relação dano- caráter de exceção, em cursos de anestesiologia -benefício. “Pedimos que os cientistas discorram em medicina veterinária, por exemplo. Mesmo sobre os retornos de sua pesquisa para a ciência e assim, o projeto de aula deve passar pela Ceua, a sociedade em geral a fim de que possamos avaliar que avaliará as estratégias para reduzir o número se os danos que serão causados nos animais se jus- de animais.” Esse movimento, ela diz, é importante tificam”, explica Luciana Honorato, presidente da porque “tem ajudado a incutir uma mudança de Ceua da universidade catarinense. “Nem sempre cultura nos novos pesquisadores”. é fácil fazer essa avaliação porque muitos projetos A legislação brasileira de 2008 estimulou ain- são de pesquisa básica, que envolvem a busca da da a formação de grupos de pesquisa dedicados à compreensão científica sem antecipar nenhum criação de métodos alternativos ao uso de mode- benefício particular.” O esforço da UFSC resultou los animais. A indústria de cosméticos é talvez a em uma redução de 40% no número de ratos e que mais avançou nesse sentido, para se adequar camundongos criados pelo biotério central entre às exigências da Anvisa – a agência se baseia nas 2014 e 2018. “Curiosamente, atendemos ao mes- normativas do Concea para avaliar os resulta- mo número de projetos”, diz. O mesmo ocorreu dos dos testes submetidos pelas empresas para no Instituto Butantan, onde a redução foi de 30%. registro de seus produtos – e tentar melhorar a Estima-se que pouco sua imagem ante a pressão mais de 190 milhões de de parte da sociedade pelo animais foram usados para fim do uso de animais. “A fins científicos no mundo grande maioria das empre- em 2015 – no Brasil, se- Pouco mais de sas de cosméticos no Brasil gundo Presgrave, não há já atende às resoluções do estimativas consolidadas. 190 milhões Concea e há muito tempo O número global represen- de animais foram usa métodos alternativos ta um aumento em rela- na avaliação de seus pro- ção a 2005, quando cerca usados para fins dutos”, diz Valadares. de 115 milhões de cobaias No Butantan, uma das foram utilizadas em pes- científicos no instituições que mais rea- quisas. China, Japão e Es- lizam testes de controle tados Unidos são os que mundo em 2015 de qualidade de produ- mais fazem uso de animais tos injetáveis no país, a na ciência. Essa tendência equipe do químico Wag- é diferente na Europa, on- ner Quintilio, ao lado da de o número de animais bioquímica Terezinha de usados para fins científicos foi de 9,39 milhões Jesus Andreoli Pinto, da Faculdade de Ciências em 2017. Em 2015, esse contingente era de 9,59 Farmacêuticas da USP, trabalha em um ensaio milhões. Os dados constam de um relatório da para detecção de endotoxinas em testes de con- Comissão Europeia, divulgado em 2020, sobre trole de qualidade de lotes de soro antiofídico que o estado da pesquisa animal nos países do bloco dispensa o uso de coelhos. Em 2020, a Faculdade desde a introdução da Diretiva 2010/63/EU. Em de Ciências Farmacêuticas da Unesp, campus de vigor desde 2013, a legislação estabelece regras Araraquara (SP), lançou o Laboratório de Desen- para o manejo de animais em biotérios e promove volvimento e Validação de Métodos Alternativos testes que causam o mínimo de dor e usam um para Avaliação de Segurança e Eficácia de Bio- número mínimo de animais. Nos Estados Unidos, produtos (LaMABio), que, sob coordenação das o governo vem pressionando as agências federais micologistas Ana Marisa Fusco Almeida e Maria de financiamento, como os Institutos Nacionais José Giannini, atua na avaliação da toxicidade e de Saúde (NIH), para que explorem alternativas eficácia de substâncias via métodos alternativos. ao uso de animais em pesquisas. A exigência se “Desde 2004 investimos em metodologias para estende à agência reguladora de alimentos e medi- avaliação de produtos naturais”, informa Gian- camentos do país (FDA), que nos próximos cinco nini. “A partir de 2010, passamos a trabalhar na anos deve apresentar um plano para a redução e padronização de novos métodos para avaliação aposentadoria de seus macacos. de toxicidade de produtos farmacêuticos.” No Brasil, as exigências vão além das práticas A longo prazo, se novas técnicas e tecnologias de pesquisa, abarcam também as atividades de forem desenvolvidas, o Concea publicará reso- ensino. “Praticamente todas as universidades e luções com mais métodos alternativos. “Vejo institutos de ensino aboliram o uso de animais como um caminho sem volta”, diz Valadares. n

PESQUISA FAPESP 302 | 53 FINANCIAMENTO Congresso Nacional derrubou em março um dos vetos impos- tos pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ao trecho da OLei Complementar nº 177/21 que proibia novos contingenciamentos dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), prin- cipal instrumento de fomento à ciência, FÔLEGO tecnologia e inovação (CT&I) no Brasil. Nos últimos cinco anos, apenas uma fração dos valores disponíveis no fun- do pôde ser executada. O restante era RENOVADO transferido para um fundo de reserva, ficando à disposição do governo para o Congresso derruba veto e proíbe pagamento da dívida pública e manu- tenção de superávit fiscal. novos bloqueios do FNDCT, principal Com a derrubada do veto, daqui pa- fundo de fomento à pesquisa no país ra a frente os recursos federais reser- vados para a ciência não poderão ser bloqueados. A notícia foi recebida com Rodrigo de Oliveira Andrade alívio pela comunidade científica e por parlamentares. “Esse é um dia histórico

1 para a CT&I brasileira”, disse o senador Izalci Lucas (PSDB-DF), ao divulgar seu voto em sessão remota no Senado Federal. “A derrubada do veto fortalece- rá nosso sistema de ciência e tecnologia [C&T]. A prioridade é a vacina contra a Covid-19. E não se faz vacina sem pes-

2 Articulação no Congresso (acima) deu sobrevida ao fundo, após manifestações públicas (acima, à esq.), pressão da comunidade científica e de diferentes setores da indústria (ao lado)

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54 | ABRIL DE 2021 quisa, sem tecnologia, sem inovação. 95, que em 2016 instituiu por 20 anos o e o financiamento de bolsas de estudo e Agora nós teremos mais recursos para teto dos gastos públicos. O texto infor- pesquisa”, alerta Luiz Davidovich, pre- essa área tão importante para o país.” mava ainda que, ao obrigar a imediata sidente da Academia Brasileira de Ciên- A manobra foi sacramentada após execução dos recursos contingenciados cias (ABC). Em março, a SBPC lançou acordo entre o colégio de líderes par- em 2020, a medida forçaria o cancela- um abaixo-assinado em parceria com tidários, no âmbito do qual se decidiu mento de dotações das demais pastas já outras entidades, como a Associação pela derrubada do primeiro veto e a ma- programadas para o exercício, atrapa- Nacional dos Dirigentes das Instituições nutenção de um segundo, que impedia a lhando a realização de projetos e ações Federais de Ensino Superior (Andifes), liberação de R$ 4,2 bilhões bloqueados planejadas pelas outras áreas do gover- contra o contingenciamento de verbas em 2020. Foram 71 votos pela derruba- no, elevando a rigidez orçamentária. do fundo. O documento angariou mais da do veto no Senado e 385 na Câmara No entanto, alguns especialistas ex- de 130 mil assinaturas. No dia 16 de dos Deputados. “Esse é um resultado plicam que os dispositivos vetados não março, a SBPC o entregou ao primeiro muito importante para a comunida- impactariam as contas do governo por- vice-presidente do Senado, o senador de científica, após meses de luta pela que a dotação orçamentária prevista pa- Veneziano Vital do Rêgo (PSB-PB). preservação do FNDCT. O Senado e a ra o Ministério de Ciência, Tecnologia Também em março, a SBPC divulgou Câmara reafirmaram seu compromis- e Inovações (MCTI) na proposta de lei um manifesto assinado por ex-ministros so com a CT&I, o que já haviam feito orçamentária já computa o valor total de Ciência, Tecnologia e Inovações, en- no ano passado, quando aprovaram o arrecadado pelo FNDCT. Desse modo, tre eles José Goldemberg, Aloizio Mer- projeto que deu origem à Lei Comple- o investimento feito com recursos do cadante e Ronaldo Sardenberg, que ocu- mentar nº 177/21 nas duas casas quase fundo não entraria no cálculo dos gas- param o cargo em diferentes momentos, por aclamação”, destaca o físico Ildeu tos que compõem o déficit primário, o entre 1991 e 2016, chamando a atenção de Castro Moreira, presidente da So- que elimina o risco de violação do teto. para a necessidade de garantir recursos ciedade Brasileira para o Progresso da para a CT&I no Brasil em um momento Ciência (SBPC). vitória no Congresso de crise sanitária. “Sem ciência não há Bolsonaro vetou os dois trechos da lei foi importante, mas inovação. Sem inovação não há desen- em fins de janeiro ao sancionar o Proje- as perspectivas para a volvimento”, dizia o texto. “O conheci- to de Lei Complementar nº 135/20, que ciência brasileira se- mento científico e a educação devem estabelecia mudanças no FNDCT. Apro- guem incertas em 2021. ser colocados no centro das questões vado no ano passado por ampla maioria A expectativa era a de nacionais e revalorizados como alavan- na Câmara e no Senado, o projeto, de au- Aque o sistema nacional de CT&I pudesse cas para o crescimento econômico, re- toria do senador Lucas, transformou o contar já este ano com R$ 5,35 bilhões, industrialização e redução da pobreza.” FNDCT em um fundo financeiro cumu- conforme previsto no Projeto de Lei Or- Na avaliação de Fernando Peregrino, lativo – o fundo hoje recebe receitas de çamentária Anual (PLOA) 2021. “Ocorre presidente do Conselho Nacional das diferentes setores da economia, mas tem que o governo deixou para promulgar a Fundações de Apoio às Instituições de natureza apenas contábil. Com a mu- derrubada do veto após a votação do or- Ensino Superior e de Pesquisa Científica dança, seus valores poderão ser aloca- çamento de 2021”, explica Celso Pansera, e Tecnológica (Confies), as circunstân- dos em fundos de investimento, gerando ex-deputado e ex-ministro da Ciência, cias atuais evidenciaram a importância rendimentos que deverão ser usados no Tecnologia e Inovações. “Era o que te- da manutenção de recursos governamen- financiamento de atividades de CT&I. míamos desde o início.” Pansera esclare- tais para projetos estratégicos e foram Outra novidade diz respeito ao reapro- ce que mesmo com a derrubada do veto, fundamentais para convencer os parla- LÉO RAMOS CHAVES LÉO 3 veitamento de saldos anuais não usados a medida só deverá entrar em vigor no mentares a derrubarem o veto. “O agra- para reinvestimento, de modo que os re- ano que vem. “Pode ser que o Congresso vamento da pandemia no país reforçou cursos se acumulem ao longo dos anos aprove um Projeto de Lei [PLN] para o papel da CT&I na resolução de proble- – os valores não desembolsados hoje reinserir os recursos do fundo no orça- mas de saúde e ajudou a sensibilizar os AGÊNCIA SENADO / voltam para a conta única do Tesouro. mento de 2021, mas isso vai depender de parlamentares sobre a importância do A imposição de vetos ao PLP 135/20 vontade política, inclusive do governo e FNDCT, contendo a fuga de alguns votos seguiu uma recomendação da equipe de sua equipe econômica. Vamos ter de e ajudando a angariar outros.” econômica. Na decisão, publicada na reiniciar a articulação, agora para tentar Um ponto importante da articulação

EDILSON RODRIGUES edição de 13 de janeiro do Diário Ofi- emplacar o PLN.” em prol do FNDCT envolveu a capaci- cial da União, o governo argumentou Há anos a comunidade científica e dade das entidades representativas de que, do modo como foram aprovados representantes da indústria, como a dialogar com parlamentares de todas no Congresso, os dispositivos contra- Mobilização Empresarial pela Inova- as correntes ideológicas. “Abraçamos riavam o interesse público, pois coli- ção (MEI) da Confederação Nacional todos, com um diálogo muito racional e diam com disposições legais existentes. da Indústria (CNI), vêm se articulando construtivo. As perspectivas para o Brasil NURPHOTO VIA GETTY IMAGES 2

/ Segundo essa visão, isso resultaria em com os parlamentares para sensibilizá- tendem a melhorar, sobretudo no que se um aumento não previsto das despesas -los sobre a importância do FNDCT. refere ao combate à pandemia”, avalia e em um impacto significativo nas con- “O desbloqueio dos recursos do fundo Peregrino. A expectativa é que parte dos CRIS FAGA 1 tas públicas, podendo levar ao descum- é fundamental para a manutenção dos recursos seja liberada para financiar o

FOTOS primento da Emenda Constitucional nº programas nacionais de pós-graduação desenvolvimento de vacinas brasileiras. n

PESQUISA FAPESP 302 | 55 FÍSICA

O GIRO DO GRAFENO Nanoscópio flagra efeitos decorrentes de desalinhar uma de duas folhas sobrepostas desse material

Marcos Pivetta

o início de 2018, em um par de ar- equipamento óptico que pode ser fundamental tigos publicados simultaneamente para entender como funciona a twistrônica. na revista Nature, o grupo do físi- Em artigo que recebeu destaque de capa na co espanhol Pablo Jarillo-Herrero edição do dia 18 daquele mês da Nature, o grupo mostrou experimentalmente que liderado pelo físico Ado Jório descreveu o fun- empilhar duas folhas de grafeno, cionamento do nanoscópio, aparelho que produz estruturas com um átomo de espes- imagens em escala atômica do que ocorre no sura que lembram uma sucessão de interior de estruturas como um par de folhas de colmeias interligadas de carbono, e grafeno deliberadamente desalinhadas. “Com o girar muito sutilmente uma lâmina em relação nanoscópio, conseguimos ver onde se localizam Nà outra poderia produzir dois efeitos diametral- os estados vibracionais das folhas giradas de gra- mente opostos em função apenas da densidade feno e tentar entender suas propriedades eletrô- de elétrons do sistema. Para certos valores desse nicas locais”, explica o pesquisador da UFMG. parâmetro, o material se tornava um isolante e “Não se trata apenas de um equipamento que não deixava passar corrente elétrica. Se, além produz imagens em alta resolução, mas de uma de desalinhar uma das camadas de grafeno em ferramenta útil para compreender a twistrônica.” consonância com um ângulo de 1,1 grau, a equipe O trabalho é assinado por 13 pesquisadores e de pesquisadores do Massachusetts Institute pós-graduandos da UFMG, dois outros colegas of Technology (MIT), dos Estados Unidos, au- brasileiros — um da Universidade Federal da mentasse levemente a quantidade de elétrons, as Bahia (UFBA) e outro do Instituto Nacional de folhas passavam a se comportar como um super- Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), condutor e a corrente elétrica fluía sem qualquer de Brasília — e oito coautores de instituições do resistência pelo material. Japão, da Bélgica e dos Estados Unidos. O estudo Os experimentos ocorreram a temperaturas traz os resultados de medições feitas pelo nanos- bastante baixas, a -271 graus Celsius, muito pró- cópio em duas folhas de grafeno sobrepostas, ten- ximas do zero absoluto, mas os indícios de super- do uma delas sido rotacionada sutilmente. Como condutividade foram suficientes para esquentar nos experimentos da equipe de Jarillo-Herrero, uma área que despontara como teórica no fim do MIT, a lâmina levemente desalinhada foi gi- dos anos 2000 e ainda não tinha produzido um rada em diversos ângulos em torno de 1,1 grau, grande feito laboratorial: a twistrônica, isto é, o valor apelidado pela comunidade acadêmica de estudo dos efeitos produzidos pelo ato de girar ângulo mágico. uma das folhas de um sistema constituído por duas Foram produzidos até agora quatro nanoscópios. ou mais camadas de grafeno ou de outros mate- Dois estão na UFMG, um na Universidade Federal WIKIMEDIA COMMONS / Girar em 1,1 grau uma riais com apenas duas dimensões, como o sulfeto do Ceará (UFC) e um quarto no Inmetro. Duas de duas folhas de grafeno de molibdênio (MoS2) e o nitreto de boro (BN). unidades do protótipo pré-comercial do apare- empilhadas produz um sistema com padrão Em meados de fevereiro deste ano, uma equipe lho estão sendo montadas no momento e deverão moiré e altera as coordenada por pesquisadores da Universidade ficar prontas até o meio do ano. De olho em um

ADAPTADO DE PONORADAPTADO propriedades do material Federal de Minas Gerais (UFMG) apresentou um possível mercado para a venda do equipamento a

PESQUISA FAPESP 302 | 57 laboratórios de pesquisa e empresas, nove patentes referentes ao nanoscópio foram requisitadas no Brasil, duas delas também no exterior. Os direitos de produção comercial do equipamento, que serão divididos pela UFMG e entidades financiadoras das pesquisas, serão provavelmente repassados a uma pequena empresa que nasceu dos trabalhos da equipe de Jório e hoje é coordenada por três ex- -alunos da pós-graduação da universidade minei- ra, a spin-off Fábrica de Nanossoluções (FabNS). “Quando iniciamos em 2018, cerca de 70% dos componentes do nanoscópio eram importados e 30% nacionais”, comenta o doutor em engenharia elétrica Cassiano Rabelo, outro coautor do estudo e um dos sócios da FabNS. “Hoje provavelmente deve ser o contrário. Mas o mais importante é o conhecimento que temos sobre a construção do aparelho.” Jório estima que um nanoscópio poderá ser vendido por € 250 mil, cerca de R$ 1,6 milhão, após validação do produto com clientes-chave. 1 “Com certeza, o equipamento ainda precisará ser melhorado e as informações geradas pelos primeiros compradores serão muito úteis para aprimorar o nanoscópio”, pondera Jório. O desenvolvimento específico do aparelho co- mercial começou em 2018, mas a iniciativa tecno- lógica se beneficiou de investimentos feitos pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi- co e Tecnológico (CNPq) desde meados dos anos 2000 em pesquisas nas áreas de nanotecnologia e de grafeno realizadas pelo grupo da UFMG. O financiamento dessa versão do equipamento teve o apoio da Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais (Codemge), empresa pública que

bancou a construção de uma planta-piloto de sonda grafeno no estado. O projeto também se bene- ficiou do acordo firmado com duas unidades da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação In- nanoantena dustrial (Embrapii): a situada no Departamento de Ciência da Computação da UFMG, que con- cebeu o software de controle e análise usado no nanoscópio, e o Senai-Cimatec, de Salvador, que desenvolveu partes do hardware.

m sistemas formados por sucessivas camadas de materiais bidimensionais, como duas ou mais folhas de grafe- no, um giro modesto da ordem de 1,1 grau é capaz de produzir alterações radicais nas propriedades dessas es- truturas, sobretudo as eletrônicas, e levar à supercondutividade. Esse desalinhamento de uma das lâminas 2 encaixadas de grafeno gera imagens dentro de um No alto, pesquisadores da Epadrão de interferência denominado na física, na UFMG testam o nanoscópio. matemática e nas artes visuais de sistema moiré, Acima, representação pontuado por franjas claras e escuras, semelhante da sonda e da nanoantena do equipamento sobre à ilustração de folhas de grafeno sobrepostas na um sistema desalinhado página que abre esta reportagem. Em impres- de folhas de grafeno

58 | ABRIL DE 2021 Janeiro (UFRJ), que, desde outubro passado, trabalha temporariamente no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas, com o apoio de bolsa da FAPESP para pesquisadores visitantes. “Segundo esse A PROPRIEDADE conceito, os elétrons da amostra perderiam seu comportamento individual e passariam a atuar INTELECTUAL como um ente coletivo.” Capaz já publicou artigos com simulações de até quatro folhas de grafeno DO NANOSCÓPIO empilhadas, das quais duas são giradas. O nanoscópio é uma versão turbinada, com re- CRIADO PELA UFMG solução aumentada, de um espectrômetro Raman É PROTEGIDA associado a um microscópio de varredura (esca- neamento) por sonda, usado para gerar imagens POR NOVE PATENTES em nível atômico. Ele “enxerga” estruturas tão diminutas quanto 10 nanômetros, onde cabem al- go entre 50 e 70 átomos de carbono, dependendo da molécula e da fase (estado da matéria) em que se encontram. “Nosso aparelho tem uma eficiên- cia de 10 a 100 vezes maior do que a de outros equipamentos comerciais disponíveis no merca- são gráfica, uma figura colorida é gerada pela do”, afirma Jório. A espectroscopia Raman é uma sobreposição perfeita de quatro camadas de tons técnica não destrutiva em que a luz é empregada distintos (preto, amarelo, ciano e magenta). Se para realizar análises físico-químicas de um com- uma dessas camadas se desloca um pouco em posto. Sua base analítica deriva das interações da relação às demais, a imagem fica fora de registro luz com as vibrações moleculares de um material. e surge um padrão moiré. O que é erro nas artes Em termos simplificados, a técnica funciona gráficas pode se revelar um acerto ou ao menos assim: ilumina-se uma amostra com uma fonte um fascinante campo de estudo da twistrônica. de laser e observa-se o padrão de espalhamento Desalinhar na medida certa uma das folhas de da luz que incidiu sobre o objeto de estudo. A grafeno para que novas propriedades apareçam maior parte da radiação espalhada terá a mesma não é um processo trivial. “Essa é uma das par- frequência da luz emitida. No entanto, uma pe- tes mais difíceis de nosso trabalho”, comenta o quena parcela exibirá diferentes comprimentos físico Andreij Gadelha, primeiro autor do artigo de onda (cores). A partir das características des- da Nature, que concluiu seu doutorado na UFMG sa porção distinta de luz espalhada, é possível em 2019. Acertar o ângulo mágico depende de inferir certas propriedades do material, como uma certa destreza manual. Os pesquisadores sua estrutura, fase e interações moleculares. O usam controles ópticos que necessitam literal- indiano Chandrasekhara Venkata Raman (1888- mente de uma mãozinha humana para atingir o 1970) ganhou o Nobel de Física em 1930 por ter ângulo desejado de deslocamento. “Demorei um descoberto esse efeito de espalhamento da luz ano para aprender a dominar a técnica”, conta (daí o nome da técnica). Gadelha. Contudo, os sistemas com camadas O nanoscópio inicia seu trabalho jogando luz de materiais bidimensionais às vezes desfazem sobre uma área circular de cerca de 1 micrôme- espontaneamente o pequeno giro e suas folhas tro, equivalente a mil nanômetros, de diâmetro. voltam a se justapor de forma perfeita, pondo Em seguida, por meio de uma nanoantena dotada fim ao ângulo mágico. de uma ponta com 10 nanômetros de diâmetro, o Não há uma explicação consensual sobre por aparelho promove uma espécie de escaneamento que deslocar uma das camadas de estruturas bi- dessa área 100 vezes menor do que a inicialmente dimensionais altera as características do mate- iluminada. Essa varredura da superfície da amos- rial. No caso da supercondutividade, especula-se tra registra as forças de Van der Waals, um tipo que as interações entre os elétrons e os modos de interação fraca entre átomos e moléculas e a

CASSIANO RABELO de vibrações internas, associados a fenômenos luz espalhada localmente, e permite reconstruir, quânticos ainda pouco compreendidos, mudam a partir dessas medições, uma imagem do mate- NITRO 2 / de forma significativa em razão dessa alteração rial. A resolução máxima da técnica é determi- de arquitetura entre as camadas de materiais nada pelo tamanho da ponta da nanoantena. O bidimensionais. “Uma das explicações para os uso da nanoantena, que tem uma forma piramidal LEO DRUMOND LEO

1 efeitos da twistrônica faz referência à teoria da e foi desenvolvida na UFMG e no Inmetro, é o correlação eletrônica”, explica o físico Rodri- grande diferencial do equipamento. Sem ela não

IMAGENS go Capaz, da Universidade Federal do Rio de seria possível chegar à resolução final alcançada.

PESQUISA FAPESP 302 | 59 Propriedades de outros materiais 2D, como as folhas de trióxido de molibdênio do desenho ao lado, também são alteradas por giros em uma de suas camadas

Isso porque a resolução máxima dos microscó- rapidamente até que, sete anos mais tarde, um de pios ópticos convencionais é, por limitações fí- seus ex-alunos da pós-graduação, o espanhol Pablo sicas do fenômeno de difração da luz, de cerca Jarillo-Herrero, registrasse supercondutividade de 500 nanômetros. em experimentos com folhas de grafeno giradas de acordo com o ângulo mágico. escoberto em 2004 por Andre Geim “Os trabalhos de Jarillo-Herrero deram um e Konstantin Novoselov, uma dupla novo boom à área”, comenta o físico teórico Da- de físicos russos da Universidade de rio Bahamon, do Centro de Pesquisas Avançadas Manchester, no Reino Unido, que, em Grafeno, Nanomateriais e Nanotecnologias por esse feito, ganharia o Nobel de (MackGraphe), da Universidade Presbiteriana 2010, o grafeno é um dos materiais Mackenzie, de São Paulo, apoiado pela FAPESP. mais simples e surpreendentes que Neste ano, Bahamon publicou, ao lado de colegas se conhece. É, ao mesmo tempo, leve, da Universidade Autônoma de Madri, seu primei- flexível e extremamente resisten- ro estudo com lâminas de grafeno empilhadas, te do ponto de vista mecânico. Também é bom das quais uma foi girada em consonância com o Dcondutor térmico e de eletricidade. Propriedades ângulo mágico. “Simulamos qual seria a resposta inesperadas já foram verificadas experimental- magnética nessa situação.” Se, além de despertar mente em diferentes formas de grafeno, puras o interesse de teóricos, os físicos experimentais ou associadas a outros elementos ou compostos continuarem se debruçando em seus laborató- químicos. O que chama a atenção na twistrônica rios sobre amostras de folhas giradas de grafe- das folhas de grafeno e de outros materiais bidi- no, é possível que surja um pequeno mercado de mensionais que podem ser empilhados e girados é consumidores potencialmente interessados em a ausência da necessidade de promover alterações um nanoscópio. Ao menos esse é o desejo de Ado químicas para atingir resultados surpreendentes, Jório e de seus colegas da UFMG. “Recebi muitos como a supercondutividade. Basta, aparentemen- convites para conferências depois da publicação te, girar corretamente uma das camadas. do artigo na Nature. O interesse por conhecer As bases do que viria a ser a twistrônica remon- melhor o equipamento é grande”’, diz Jório. n tam à segunda metade da década retrasada. Em 2007, o físico teórico brasileiro Antônio Castro CUNY Neto, hoje na Universidade Nacional de Singapu- Projeto /

ra, sugeriu que comprimir duas folhas de grafeno Resolução atômica em microscopia de força atômica (nº 20/06257- levemente desalinhadas poderia gerar novas pro- 7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Pesquisador Visitante – Brasil; priedades eletrônicas. Em 2011, Allan MacDonald, Pesquisador responsável Adalberto Fazio (CNPEM); Beneficiário Rodrigo Capaz (UFRJ); Investimento R$ 194.320,00. da Universidade do Texas, nos Estados Unidos, propôs que poderiam ocorrer mudanças eletrôni- Artigos científicos cas significativas em duas folhas de grafeno caso GADELHA, A. C. et al. Localization of lattice dynamics in low-angle twisted bilayer graphene. Nature. v. 590. 18 fev. 2021. uma delas fosse girada cerca 1,1 grau, o twist do CAO, Y. et al. Unconventional superconductivity in magic-angle gra-

ângulo mágico. O setor não se desenvolveu muito phene superlattices. Nature. v. 556. 5 abr. 2018. RESEARCH CENTER SCIENCE ADVANCED

60 | ABRIL DE 2021 ENGENHARIA DE MATERIAIS Vidro obtido a partir de receita indicada por programa de inteligência artificial

S O B MEDIDA

Sistema aprimorado de inteligência artificial permite descobrir formulação de vidro a partir

das características desejadas para o material Ricardo Zorzetto

esquisadores da Universi- A equipe de Zanotto foi uma das pio- moldes metálicos. Cassar alimentou o dade Federal de São Carlos neiras no mundo a usar inteligência ar- programa com dados de temperatura de (UFSCar) mostraram que é tificial para auxiliar a criação vidros. transição vítrea de 45.302 combinações possível trilhar um caminho Anos atrás, o engenheiro de materiais produzidas com até 39 elementos quí- menos trabalhoso e mais Daniel Cassar desenvolveu um progra- micos e do índice de refração de 41.225 rápido para criar um vidro ma de computador que se baseava no formulações de até 38 elementos. Depois, Pcom propriedades específicas. Usando funcionamento das redes neurais para usou um algoritmo genético para identi- técnicas de inteligência artificial, o grupo tentar descobrir, a partir de uma compo- ficar as composições mais relevantes. A partiu das características que desejava sição química teórica de um vidro, quais estratégia indicou 15 formulações, entre encontrar em um material útil para fa- seriam algumas de suas características. as quais Zanotto selecionou as duas com bricação de lentes para câmeras de com- Apresentado em 2018 na revista Acta Ma- maior probabilidade de funcionar. putadores e celulares e, em poucos dias, terialia, o modelo matemático predizia No LaMaV, a química Gisele Guima- identificou formulações que poderiam com boa confiabilidade uma propriedade rães dos Santos, também bolsista de pós- originar o tal vidro. É o percurso inverso física (temperatura de transição vítrea) -doutorado, transformou as formula- ao seguido pelos especialistas nos últimos de qualquer vidro óxido produzido a par- ções teóricas em objetos concretos. O 400 anos. No método tradicional, mestres tir de uma mistura de três a 45 elemen- vidro feito com seis compostos tem cor vidreiros, químicos e pesquisadores da tos químicos. O programa, no entanto, amarelo-palha, tornou-se rígido a 450 área de ciências de materiais, com ba- não permitia fazer o inverso: definida graus e apresentou índice de refração se em tentativa e erro e em experiência uma característica específica, dizer quais igual a 1,7. Já a mistura de 11 compostos acumulada, misturam compostos em pro- componentes deveriam ser combinados e vitrificou a 400 graus e com índice de porções variadas, que depois são fundidos quais as proporções para alcançá-la. “Ti- refração mais alto (1,75), com coloração e resfriados. Só então é possível saber vemos de aprimorar o software usando caramelo. “Está aberto um caminho mais se a combinação resulta em um vidro e algoritmos genéticos”, lembra Cassar, eficiente para obter materiais vítreos conhecer suas propriedades. que realiza estágio de pós-doutorado no que atendam às exigências da indústria”, “Usando a nova estratégia, consegui- LaMaV. Algoritmo genético é uma téc- conclui Zanotto. n mos produzir em laboratório dois vidros nica de computação capaz de resolver com as características que queríamos já na problemas de otimização inspirada por primeira rodada de experimentos”, conta mecanismos da biologia, como heredi- Projeto o engenheiro de materiais Edgar Dutra tariedade, mutação e seleção natural. CeRTEV – Centro de Pesquisa, Educação e Inovação em Vidros (nº 13/07793-6); Modalidade Centros de Zanotto, coordenador do Laboratório de Os pesquisadores testaram o novo pro- Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador res- Materiais Vítreos (LaMaV) da UFSCar e grama definindo de saída duas proprie- ponsável Edgar Dutra Zanotto (UFSCar); Investimento LAMAV

/ do Centro de Pesquisa, Educação e Inova- dades que o novo vidro deveria apre- R$ 37.769.093,39. ção em Vidros (CeRTEV), um dos Centros sentar: baixa temperatura de transição Artigos científicos de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) vítrea, inferior a 500 graus Celsius, e alto CASSAR, D. R. et al. Designing optical glasses by machine financiados pela FAPESP. A estratégia ado- índice de refração, superior a 1,7. Essas learning coupled with a genetic algorithm. Ceramics tada e os resultados obtidos estão descritos características são necessárias para pro- International. 25 dez. 2020. CASSAR, D. R. et al. Predicting glass transition tempe- em um artigo publicado em dezembro na duzir lentes pequenas e finas em grandes ratures using neural networks. Acta Materialia. v. 159,

GISELE GUIMARÃES DOS SANTOS GUIMARÃES DOS GISELE revista Ceramics International. quantidades, obtidas por prensagem em p. 249-56. 2018.

PESQUISA FAPESP 302 | 61 FOTÔNICA

Miniaturização em chip que transforma um tipo de radiação eletromagnética em duas frequências distintas pode reduzir o tamanho de dispositivos a laser

Eduardo Geraque

62 | ABRIL DE 2021 ísicos brasileiros e norte-americanos utilizam dos osciladores paramétricos ópticos desenvolveram uma versão extrema- para gerar luz em diferentes faixas do espectro mente reduzida de uma fonte de luz eletromagnético. Esses osciladores costumam responsável por, simultaneamente, medir entre 20 e 5 centímetros, ou seja, são entre converter um tipo de radiação em 350 e 1.400 vezes maiores do que o novo dispo- outras duas frequências (cores) do sitivo. O conjunto integrado do oscilador em um Fespectro eletromagnético. Construído em um chip desenvolvido por brasileiros e norte-ame- chip fotônico de silício, que usa a luz em vez ricanos funciona como um microrressonador de elétrons para processar informação, esse os- ou uma cavidade óptica – um circuito fechado, cilador paramétrico óptico, nome técnico do composto por uma fibra óptica integrada que, de componente, mede 0,14 milímetro. Centenas acordo com sua disposição geométrica e outros de vezes menor que seus similares comerciais, parâmetros, pode amplificar e converter o sinal o ínfimo oscilador é capaz de transformar um original do laser em outras frequências. O chip feixe de radiação no comprimento de onda do foi produzido nos Estados Unidos, mas o expe- infravermelho próximo, que não é observável a rimento foi realizado no Brasil. olho nu, em luz visível e de frequências usadas “Projetamos microrressonadores na forma de na área de telecomunicações. um anel em que a luz circula por guias feitas de O domínio dessa conversão é importante pa- nitreto de silício [Si3N4] acopladas em um subs- ra a produção de luz em comprimentos de onda trato de óxido de silício [SiO2]”, explica o físico muito específicos, destinado a determinadas -fi Renato Domeneguetti, primeiro autor do artigo, nalidades, como aplicações industriais, pesquisas que desenvolveu a pesquisa como parte de seu em computação quântica e estudo das interações doutorado, defendido em 2018 no IF-USP. “Nosso da matéria com radiações eletromagnéticas de dispositivo pode ser de interesse para aplicações diferentes frequências. Chamada de espectros- nas áreas de comunicação e de computação quân- copia, esta última área permite, por exemplo, tica. Hoje existem empresas e diversos grupos de analisar a cor emitida por materiais e, assim, pesquisa acadêmicos trabalhando em aparelhos inferir os elementos que o compõem e a forma semelhantes.” É possível, por exemplo, que as como estão arranjados estruturalmente. É uma partículas de luz constituintes dos dois feixes técnica que permite divisar desde a composição distintos de radiação eletromagnética gerados da atmosfera até os contaminantes diluídos em pelo chip fotônico apresentem algum tipo de um copo de água. correlação quântica, uma propriedade que, em Por suas reduzidas dimensões, o oscilador de- tese, pode ser explorada para codificar e recu- senvolvido em parceria entre o Instituto de Fí- perar informação. sica da Universidade de São Paulo (IF-USP) e as universidades Columbia e Cornell, ambas no egundo Martinelli, a união da micro­ estado de Nova York, Estados Unidos, pode ser eletrônica com a fotônica no interior a base para a criação de aparelhos menores, que de um mesmo chip poderia reduzir seriam integrados a equipamentos de informática, a perda de energia e fazer com que a segundo seus criadores. “Nosso dispositivo pode placa de um computador não aque- ser instalado dentro de uma placa de computador cesse. Atualmente, o funcionamento ou integrar um sistema híbrido, envolvendo ele- Sdos computadores e da indústria de informática trônica e fotônica”, afirma o físico Marcelo Mar- está baseado na exploração das propriedades tinelli, do IF-USP, um dos autores do trabalho, dos elétrons (daí o termo microeletrônica). No cujos resultados foram divulgados em março em mundo da fotônica, a luz é a responsável por artigo no periódico científicoOptica . processar a informação, como nos cabos de fibra No Brasil, o estudo conta com financiamento óptica. Embora gaste menos energia do que a da FAPESP, do Conselho Nacional de Desenvol- eletrônica, a fotônica ainda é uma área cara e o vimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da controle mais refinado das propriedades da luz Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal permanece um desafio. n de Nível Superior (Capes). “O artigo é o pri- meiro resultado importante de nossas pesquisas com chips de silício”, comenta outro autor do trabalho, o físico Paulo Nussenzveig, também Projeto do IF-USP. Explorando informação quântica com átomos, cristais e chips (nº 15/18834-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável A transformação de um feixe de luz em outros Marcelo Martinelli (USP); Investimento R$ 3.366.437,68. dois tipos de radiação eletromagnética ocorre Artigo científico usualmente em aparelhos de laser relativamen- DOMENEGUETTI, R. R. et al. Parametric sideband generation in CMOS- te grandes. Esses aparelhos normalmente estão -compatible oscillators from visible to telecom wavelengths. Optica. instalados em laboratórios de pesquisa, que se v. 8, n. 3. mar. 2021.

PESQUISA FAPESP 302 | 63 AMBIENTE

PERDAS OCULTAS

Cerca de 28% da área nativa de Mata Atlântica, como esse trecho no Rio Grande do Sul, continua preservada

64 | ABRIL DE 2021 A área coberta por Mata Atlântica se mantém praticamente estável há 30 anos, mas as florestas antigas perdem terreno para novas formações com menor biodiversidade e estoque de carbono

Suzel Tunes

esde o final da década de 1980, “As matas mais biodiversas são, em princípio, mais a área nativa de Mata Atlântica, eficientes para prover serviços de regulação cli- um dos biomas mais ameaçados mática, hídricos e de suporte à produção agrícola, do país, tem se mantido relativa- como polinização e controle de pragas”, comenta mente estável. Sua extensão oscila o biólogo Jean Paul Metzger, do Instituto de Bio- entre 30 milhões e 28 milhões de ciências da Universidade de São Paulo (IB-USP), Dhectares (ha), cerca de 28% da dimensão original. coordenador do grupo que redigiu o artigo. “Di- A partir de 2005, o ganho de floresta nativa passou ferentemente de áreas de floresta madura, que a ser até ligeiramente superior à perda de mata, já estocam muito carbono e biodiversidade, as derrubada geralmente em razão da expansão da florestas em restauração levam muitos anos ou fronteira agrícola e da pecuária. Mas o que po- mesmo décadas para chegarem a níveis similares deria ser uma ótima notícia esconde um cenário de benefícios. Em muitos casos, isso nem chega a preocupante: as florestas antigas continuam sendo ocorrer porque elas são degradadas ao longo do desmatadas em um ritmo preocupante e estão processo, por queimadas, pela invasão de espécies perdendo espaço para as mais jovens e esse pro- exóticas e outras intercorrências. Nem sempre o gressivo rejuvenescimento da cobertura florestal que se perde pode ser recuperado”, adverte o en- da Mata Atlântica tem efeitos deletérios sobre a genheiro-agrônomo Pedro Brancalion, da Escola biodiversidade e os serviços ecossistêmicos, ou Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) seja, os benefícios oferecidos pela natureza. Essa da USP, de Piracicaba, coautor do trabalho. é a principal conclusão de um artigo publicado “A hipótese de que, após séculos de desmata- em janeiro no periódico Science Advances. mento contínuo, a Mata Atlântica estaria ganhando Por convenção, são consideradas antigas as mais floresta do que perdendo é uma meia ver- áreas de Mata Atlântica que existiam em 1985, dade”, diz o geógrafo Marcos Rosa, coordenador quando teve início o primeiro mapeamento anual técnico do projeto MapBiomas, primeiro autor do do bioma. Desde então, as florestas mais velhas estudo. O MapBiomas é uma iniciativa do Obser- têm perdido terreno. Atualmente, 80% das matas vatório do Clima, organização não governamental nativas são compostas de vegetação com mais (ONG) que reúne universidades, empresas de tec- de 30 anos e 20% apresentam menos de três dé- nologia e entidades da sociedade civil brasileira, cadas de existência (ver gráfico na página 66). dedicada a mapear o uso da terra no país. “Ima- Embora cerca de 80% das espécies de árvores ginávamos que as florestas mais antigas do bioma ressurjam em áreas recuperadas após 20 anos, já estavam bem protegidas e o desafio para a Mata o tempo necessário para que ocorra a recompo- Atlântica era principalmente a restauração. Vimos sição total da biodiversidade vegetal é estimado que a conservação continua sendo um problema em mais de um século. e que a restauração precisa caminhar junto com a Florestas antigas da Mata Atlântica são insubs- proteção da floresta”, explica Brancalion. tituíveis, uma vez que muitas espécies de animais, O artigo faz parte da tese de doutorado que plantas e micro-organismos dependem de hábitats Rosa defendeu em fevereiro deste ano na USP

PAULO PAULO HOEPER / GETTY IMAGES mais maduros e menos alterados para persistirem. e está vinculado a projeto temático financiado

PESQUISA FAPESP 302 | 65 40.000 Avanço 35.000 IDADE DA das FLORESTA 30.000 NATIVA < 10 anos florestas Cobertura florestal recente 4,7% 25.000 6,2% 11-20 anos jovens 8,4% 21-30 anos 20.000 Matas com menos Cobertura florestal antiga de 30 anos (1.000 ha) 15.000 representam hoje 80,6% > 30 anos um quinto das 10.000 áreas preservadas do bioma 5.000

0 1988 1990 1995 2000 2005 2010 2015 2017

FONTES ROSA, M. R. ET. AL. SCIENCE ADVANCES. 20 JAN. 2021

conjuntamente pela FAPESP e pela Organização de floresta, mas como ela está. Ele assinala que Holandesa para a Pesquisa Científica (NWO). a capacidade de manutenção ou recuperação Brancalion é o coordenador brasileiro da iniciati- da biodiversidade depende muito do contexto va e Frans Bongers, da Universidade de Wagenin- em que a vegetação está inserida. “Fragmentos gen, está à frente do projeto pelos Países Baixos. florestais mais isolados sofrem efeito de borda”, Segundo Rosa, embora tenha ocorrido um au- exemplifica Ribeiro, que não participou do estudo. mento do percentual de cobertura vegetal nativa “A interface da borda do fragmento florestal com da Mata Atlântica, a comparação de imagens de atividades humanas, como pastagem e agricultu- satélite entre os anos de 1990 e 2017 revelou um ra, cria um ambiente desfavorável à manutenção alto índice de desmatamento em florestas mais da fauna e dos processos ecológicos.” antigas, sobretudo no norte de Minas Gerais, na divisa com Bahia, e no centro-sul do Paraná e de avanço da fragmentação flo- Santa Catarina. No mesmo período, houve tam- restal da Mata Atlântica tam- bém ganhos de floresta nativa, principalmente no bém foi um achado da nova interior do Paraná e São Paulo, sul de Minas Gerais pesquisa. Segundo o estudo, e Espírito Santo, litoral de Pernambuco e Paraíba devido a mudanças na cober- e região serrana do Rio de Janeiro. Mas essa re- tura vegetal nativa e em sua cuperação não compensa totalmente as perdas. Odistribuição espacial, foi constatado aumento Para o cientista da computação Milton Cezar de isolamento de trechos de floresta em 36,4% Ribeiro, responsável pelo Laboratório de Eco- da área remanescente do bioma. Para Ribeiro, o Área degradada do bioma, com logia Espacial e Conservação da Universidade trabalho apresenta um nível de detalhamento não falhas de vegetação, Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Cla- alcançado em iniciativas anteriores. “Parte disso em Santa Catarina ro, o mais importante não é saber quanto existe é incremento de vegetação em algumas regiões e parte é resultado de um mapeamento mais fino, que quantificou áreas menores”, destaca o cien- tista da computação. “Até agora, não sabíamos como estavam as áreas de Mata Atlântica, qual era a sua história ao longo do tempo.” Esse detalhamento foi possível graças à análise de material compilado e organizado pelo Map- Biomas: mais de 50 mil imagens de satélite, for- necidas gratuitamente pela família de satélites Landsat, da agência espacial norte-americana (Nasa) e do Serviço Geológico dos Estados Uni- dos (USGS). Abrangendo um período de mais de 30 anos, de 1985 a 2019, as imagens apresentam uma resolução de 30 metros e foram classifica- das por um algoritmo baseado em aprendizagem

66 | ABRIL DE 2021 50.000 Evolução Pasto do uso 40.000

da terra Cobertura florestal nativa A extensão 30.000 conservada de Mata Atlântica se Mosaico de pasto (1.000 ha) mantém em torno 20.000 e plantações de 30 milhões de hectares

10.000 Plantações Monocultura de árvores

0 1985 1990 1995 2000 2005 2010 2015 2018

FONTES ROSA, M. R. ET. AL. SCIENCE ADVANCES. 20 JAN. 2021

de máquina. Para a elaboração desse trabalho de menos mais uns cinco ou seis artigos para serem mapeamento e classificação da cobertura vegetal, escritos e publicados, indo mais a fundo nas aná- Rosa, especialista em geoprocessamento, contou lises desses dados do MapBiomas.” com a colaboração de integrantes do MapBiomas. “A proposta de executar a tese em paralelo ao MENOS BIOMASSA MapBiomas nasceu como uma oportunidade de Enquanto o artigo na Science Advances alerta para aprimorar a base científica do projeto”, diz ele. a diminuição de florestas mais antigas na Mata O estudo é o primeiro resultado do projeto te- Atlântica e os consequentes riscos para a biodi- mático coordenado por Brancalion. O objetivo versidade, outro estudo brasileiro, publicado na da iniciativa é mapear todas as florestas surgidas Nature Communications de dezembro de 2020, nas últimas três décadas no estado de São Paulo, quantifica a extensão dessa perda: cerca de 85% seja por iniciativas de restauração ou regenera- dos fragmentos florestais do bioma apresentam ção natural, e avaliar os serviços ecossistêmicos redução de biomassa e de riqueza de espécies de por elas prestados, como a capacidade de estocar árvores. Os trechos de mata são menos densos e carbono, conservar biodiversidade e promover com menor biodiversidade arbórea. infiltração de água no solo. “Vamos estudar um Segundo o estudo, coordenado pelo ecólogo conjunto de mil parcelas distribuídas por todo Renato Augusto Ferreira de Lima, que faz estágio o estado, cada uma delas com 900 metros qua- de pós-doutorado no IB-USP e é pesquisador as- drados [0,09 ha]. Mesmo com as restrições da sociado ao projeto temático, as parcelas de vege- pandemia, já analisamos 350 parcelas”, relata o tação têm entre 25% e 32% menos biomassa e de pesquisador da Esalq. 23% a 31% menos espécies. A estimativa baseia- Para essa tarefa, o projeto conta com cerca de -se em informações de 1.819 estudos de campo 100 integrantes, dos quais um quinto tem se dedi- realizados por diversos grupos de pesquisa e de- cado a atividades de campo. Durante os períodos positados na plataforma TreeCo – Neotropical de menor intensidade da pandemia, esses pesqui- Tree Communities Database, um banco de dados sadores se organizam em equipes de cinco pes- sobre comunidades de árvores neotropicais cria- soas, que, antes das viagens, fazem testes de PCR do por Lima em 2014. n para a Covid-19. Os grupos permanecem 15 dias no trabalho de campo, adotando todas as medidas

ALEXANDRE AFFONSO Projeto de proteção contra o vírus Sars-CoV-2. “Até o mo- Compreendendo florestas restauradas para o benefício das pessoas e mento, nenhum membro das equipes de campo se da natureza – NewFor (nº 18/18416-2); Modalidade Projeto Temático; infectou, mas interrompemos todas as atividades Acordo NWO; Pesquisador responsável Pedro Brancalion (USP); INFOGRÁFICOS presenciais agora que o estado de São Paulo re- Investimento R$ 1.539.356,27. tornou à fase mais crítica da pandemia”, comenta Artigos científicos Brancalion. “As informações desse mapeamento ROSA, M. R. et. al. Hidden destruction of older forests threatens abrem possibilidades novas de explorar dados de ’s Atlantic Forest and challenges restoration programs. Science Advances. 20 jan. 2021. SOS MATA ATLÂNTICA MATA SOS dinâmica de desmatamento e regeneração num LIMA, R. A. F. et al. The erosion of biodiversity and biomass in the Atlan-

FOTO período de 30 anos”, avalia Metzger. “Temos pelo tic Forest biodiversity hotspot. Nature Communications. 11 dez. 2020.

PESQUISA FAPESP 302 | 67 ENTREVISTA GABRIEL LIGUORI

UM CORAÇÃO BIOARTIFICIAL NO HORIZONTE Criador da startup TissueLabs conta como tem buscado superar os desafios para a construção de tecidos e órgãos humanos em impressoras 3D

Frances Jones

ano de 2020, cheio de imensos desafios provocados pela pande- mia do novo coronavírus, foi também um tempo de conquistas para o médico, pesquisador e empreendedor paulista Gabriel Liguori, de 31 anos. Seu trabalho na TissueLabs, startup criada Opor ele e pelo engenheiro da computação Emerson Moretto em 2019, ren- deu frutos e alcançou reconhecimento internacional. Em dezembro passado, Liguori foi apontado como um dos jovens mais inovadores na América Latina pela revista MIT Technology Review, publi- cada pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos. Ele foi incluído na categoria Visionários da lista que reúne jovens de até 35 anos com ideias inovadoras. Sua empresa, que teve apoio da FAPESP, é especializada no desenvolvi- mento de órgãos e tecidos artificiais construídos a partir de células-tronco e biomateriais. Em 2020, a TissueLabs mais do que triplicou de tamanho e, segundo Liguori, já é líder no país na área de bioimpressão 3D, disputada por cerca de meia dúzia de empresas nacionais e estrangeiras. Vislumbran- do a possibilidade de começar os testes clínicos com corações bioartificiais dentro de 10 a 15 anos, ele explica nesta entrevista concedida a Pesquisa FAPESP por que decidiu migrar da academia para a iniciativa privada a fim de alcançar esse objetivo. E conta de que forma um problema de saúde congênito acabou definindo o seu futuro profissional.

68 | ABRIL DE 2021 que é desenvolvido por nós é colocada no mercado na forma de produtos. Para conseguir fabricar o primeiro coração artificial, precisamos desenvolver tecno- logias em diversas áreas que precedem a fabricação do coração em si.

Por exemplo? Quando falamos de bioimpressão 3D, nos referimos a uma bioimpressora 3D que usa um biomaterial para construir te- cidos tridimensionais. Precisávamos de uma impressora e de materiais que estivessem de acordo com o que enten- díamos ser ideal para a fabricação desses órgãos e tecidos. Com apoio do progra- ma Pipe [Pesquisa Inovativa em Peque- nas Empresas], da FAPESP, desenvolve- mos em escala industrial os hidrogéis – os biomateriais para a fabricação de ór- gãos e tecidos –, algo que já havíamos feito em escala-piloto. Hoje produzi- mos hidrogéis na escala de litros, uma grande quantidade. Em 2020, também recebemos um investimento-anjo, de R$ 1,5 milhão, que permitiu a ampliação dos nossos horizontes. Com isso, colo- camos no mercado nosso segundo pro- duto, a bioimpressora 3D TissueStart. Além de vendermos aos pesquisadores interessados, ela é usada internamente em nossos projetos.

Quão distantes estão de finalizar o co- ração artificial? Liguori: expectativa de começar testes clínicos com corações bioartificiais dentro de 10 a 15 anos Muito. É importante dizer isso para evi- tar falsas expectativas. Às vezes, as man- chetes dão a impressão de que vamos pôr Sua presença na lista de jovens inova- O reconhecimento se deu por sua ambi- no mercado e implantar um coração até dores do MIT o surpreendeu? ção de criar um coração artificial usan- o ano que vem. Não é nada disso. Esse é De certa forma, sim. O processo é um do células-tronco impressas tridimen- um projeto que exige muito tempo. Fala- pouco mais longo do que eles simples- sionalmente. Como está o projeto? mos em pelo menos uma década ou mais mente mandarem um e-mail avisando De fato, esse é o foco e foi a razão do prê- para começar os ensaios clínicos. Então, que você foi escolhido. Primeiro, iden- mio. Fabricar órgãos artificiais, em par- não é algo que estará nas manchetes tão tificaram o meu perfil – não tenho ideia ticular um coração para transplante, é o cedo. É um desafio para o qual estamos como – e depois entraram em contato objetivo da nossa empresa, a TissueLabs, bem preparados. Temos as tecnologias, o pelo LinkedIn pedindo informações so- no longo prazo. É difícil, porém, traba- conhecimento, as parcerias e um time de bre a empresa e meu trabalho. Respondi, lhar exclusivamente no desenvolvimen- qualidade muito focado. Naturalmente, ainda sem saber se a inclusão do meu to científico por muito tempo sem ter ainda exigirá muito desenvolvimento. nome na lista já era certa ou se eles ain- que promover rodadas de investimen- da estavam no meio da seleção. Depois to com alguma frequência. Como é um Alguma empresa já produz órgãos de uns meses, recebi um e-mail dizen- projeto de 10 a 15 anos, precisamos gerar bioartificiais? do que havia sido selecionado como um uma fonte de renda para que a empresa Hoje, não há nenhuma companhia no dos 35 empreendedores mais inovado- seja sustentável. Para isso, criamos um mundo que produza órgãos bioartificiais res da América Latina, na categoria dos modelo de negócios que chamamos de para aplicação em humanos. Às vezes, visionários, de jovens que têm projetos dual business model, no qual, ao mesmo ouvimos falar de ventrículos mecânicos futuros ambiciosos. O primeiro contato tempo que fazemos pesquisa a fim de ou rins artificiais para diálise, por exem- foi uma surpresa; depois, eu já espera- fabricar em alguns anos órgãos e teci- plo, mas os bioartificiais, fabricados em

TÁCIA LIGUORI TÁCIA va uma resposta, positiva ou negativa. dos para aplicação clínica, boa parte do laboratório, não são uma realidade ainda.

PESQUISA FAPESP 302 | 69 Não há nenhum estudo clínico, em hu- mesmo tenho uns tubos e uns remendos manos, nessa área. Os projetos estão, no desses. Mas, ao longo do tempo, algumas máximo, em escala experimental, ainda dessas crianças podem ter problemas e em testes com animais. necessitar de transplante. Conseguimos dar qualidade de vida ao paciente, mas Como foi a sua trajetória até aqui? não o curamos de fato. Ao menos, não Sou médico de formação. Fiz gradua- todos. Quando voltei do doutorado, já ção na USP [Universidade de São Pau- estava tão envolvido e encantado com lo] e, assim que terminei a faculdade, Sempre me essa área que foi natural abdicar da ideia optei por seguir na área de pesquisa. de seguir a carreira de cirurgião e focar Depois do doutorado na Holanda, on- interessei exclusivamente na pesquisa. de fiquei dois anos, voltei para o Brasil por cirurgia e tive a oportunidade de trabalhar no O que faz a TissueLabs? InCor [Instituto do Coração], como pes- cardiovascular. A TissueLabs é uma empresa muito quisador. Criamos lá um laboratório de jovem; completamos dois anos no fim engenharia de tecidos e, algum tempo Nasci com uma de janeiro. Ela tem uma frente de pes- depois, percebi que esse projeto preci- quisa e outra de desenvolvimento e co- sava ir para a iniciativa privada, porque cardiopatia mercialização de produtos. De um lado, tinha ambições grandes e exigia um vo- congênita pesquisamos tecnologias para permitir lume de recursos que nem a academia desenvolver órgãos em laboratório. De nem o próprio Estado, via seus órgãos e fui operado outro, usamos esses desenvolvimentos de fomento, como a FAPESP, conseguem para lançar produtos no mercado, como fornecer. Ter essa clareza foi uma das aos 2 anos a bioimpressora 3D TissueStart. Ela foi razões que me fizeram migrar para o projetada para a fabricação de tecidos empreendedorismo. Fundei em 2019 humanos tridimensionais complexos, a TissueLabs com meu sócio, o enge- formados por mais de um tipo de célu- nheiro Emerson Moretto. Já havíamos la. É o caso do miocárdio, que combina trabalhado juntos na universidade. Foi células musculares e endoteliais. Ou- uma experiência muito boa. A FAPESP tro item do portfólio são os hidrogéis nos ajudou a dar os primeiros passos. MatriXpec, a matéria-prima que vai na Naquele mesmo ano, recebemos apoio bioimpressora para fabricar os tecidos. do Pipe, o que deu segurança para se- é quase uma figura do folclore médico, Eles contêm centenas de proteínas espe- guir em frente. Colocamos um pouco de porque são pouquíssimos os cirurgiões cíficas da matriz extracelular derivadas recursos próprios, mas é claro que não que conseguem se dedicar à pesquisa. do tecido nativo e estão disponíveis pa- tínhamos capital para desenvolver ati- Quando fui fazer o doutorado, não tinha ra 15 tecidos diferentes. Nosso terceiro vidades de pesquisa supercaras. Quando intenção de abandonar de fato a prática produto, o MatriCoat, é uma solução o auxílio da FAPESP terminou, em no- médica; a ideia era fazer isso tempora- contendo as proteínas de matriz extra- vembro de 2019, tivemos que andar com riamente, voltar e juntar as duas coisas. celular. Quando o pesquisador coloca as próprias pernas. Passamos a oferecer Quando escolhi a minha área, optei pela essa solução em placas ou frascos de ao mercado os primeiros produtos re- medicina regenerativa, da qual a enge- cultura, as proteínas contidas nela se lacionados à engenharia de tecidos [os nharia de tecidos faz parte. ligam à superfície desses recipientes. hidrogéis e a bioimpressora TissueStart]. Com isso, transformam materiais sin- O que é exatamente engenharia de te- téticos não representativos [as placas e Como surgiu seu interesse por esse cidos? os frascos de cultura] em um ambiente campo de pesquisa? É uma nova área da medicina, que ain- um pouco mais parecido com o corpo Durante a graduação, sempre me inte- da não chegou à clínica de maneira re- humano, tornando o experimento que ressei muito por cirurgia cardiovascular. levante, mas que chegará nos próximos vai ser realizado ali um pouco mais re- Tenho uma história pessoal com isso anos. Ela utiliza células, principalmente presentativo do real. Por fim, também por ter nascido com uma cardiopatia células-tronco, para a regeneração de ór- disponibilizamos a plataforma Matri- congênita. Aos 2 anos, fui operado no gãos. Isso pode ser feito tanto com tera- Well, para cultivo de células epiteliais. InCor e, desde então, continuo sendo pia celular quanto com engenharia de te- Com foco inicial em pulmão, ela foi cria- um paciente da instituição. Desde que cidos, que é fabricar um órgão novo para da no começo da pandemia e distribuída entrei na Faculdade de Medicina da USP, implante. Enxerguei que essa área tinha gratuitamente para alguns pesquisado- que é a responsável pelo InCor, me en- potencial, principalmente para a cirurgia res. Estamos recebendo os primeiros volvi com a área de cirurgia cardíaca, cardíaca pediátrica. Hoje, quando uma resultados agora. Recentemente, obti- especialmente a pediátrica. Fiz inicia- criança tem uma cardiopatia, tentamos vemos apoio da Finep [Financiadora ção científica nessa área, participei de consertar o coração colocando um tubo de Estudos e Projetos] para expandir congressos e publiquei livros. Minha aqui, fazendo um remendo ali, outro aco- esse projeto para que mais cientistas, ideia era ser cirurgião pesquisador, que lá. Dá para dizer que funciona bem; eu do Brasil e do mundo, possam utilizar

70 | ABRIL DE 2021 a plataforma. Queremos disponibilizar Essas células têm de estar conectadas para esse outro tipo de aplicação, que é para pesquisadores, na academia ou na e alinhadas de uma forma que, quando o desenvolvimento de modelos in vitro indústria, as mesmas tecnologias que contraem, geram um vetor de força de tridimensionais para substituir alguns usamos internamente. Dizemos que, dentro do coração para os vasos san- modelos animais no desenvolvimento se não conseguirmos fazer o primeiro guíneos. Não adianta, por exemplo, ter de drogas, screening [rastreamento de coração artificial, mas alguém o fizer um monte de células dentro do seu co- doenças] e na medicina personalizada. com os nossos produtos, estaremos fe- ração impresso contraindo, mas cada Por exemplo, se um paciente tem uma lizes do mesmo jeito. uma para um lado. Se isso acontecer, cardiopatia, em vez de testar várias dro- ocorre a chamada fibrilação. O coração gas diretamente nele, poderemos criar Qual é o principal desafio de construir bate sem rumo. Há, ainda, um terceiro um pedacinho do seu coração personali- órgãos artificiais com impressoras 3D? ponto de dificuldade a superar: a vascu- zado, baseado nas células dele, e investi- A fabricação desses tecidos artificiais larização. Se não tem vascularização no gar que medicações funcionam melhor, tridimensionais tem uma grande limi- órgão artificial, não chega oxigênio e o antes de dar o remédio. tação, que é a maturação dos tecidos. tecido morre. Aí não adianta construir Às vezes, conseguimos imprimir um o coraçãozinho de rato com 3 ou 4 cm3, Como a startup se situa no mercado? coração de rato com células-tronco, a se ele vai morrer inteiro, se vão ficar vi- Somos líderes no Brasil em bioimpres- matriz extracelular, mas isso está lon- vos só os 2 milímetros mais exteriores. A são 3D, tanto no fornecimento de equi- ge de ser um órgão funcional. Porque o vascularização é um ponto fundamental pamentos quanto no de biomateriais. tecido original, do coração nativo, tem sobre o qual também temos estudado. Mais de 20 laboratórios no país utilizam detalhes que ainda não conseguimos re- nossa impressora, a TissueStart. Cerca produzir via impressão 3D. O primeiro Planejam desenvolver outros órgãos? de 70% a 80% de nossos clientes são pes- deles é a densidade celular. Nas impres- Temos preferência e familiaridade com quisadores acadêmicos, a maioria bra- sões 3D atuais, trabalhamos na casa de o sistema cardiovascular, principalmen- sileiros. Mas há também cientistas dos 10 milhões de células por mililitro. Um te pelo background da equipe. O mais Estados Unidos, da Suíça, de Portugal coração nativo, nesse mesmo espaço e provável será desenvolvermos vasos san- e do México. Temos clientes na indús- volume, de 1 centímetro cúbico [cm3], guíneos e valvas [conjunto de válvulas] tria, em startups e em grandes empresas. tem quase 1 bilhão de células – até 100 cardíacas. Mas não fechamos os olhos Uma delas, de fora do Brasil, adquiriu vezes mais do que conseguimos repro- para as outras áreas. nossos equipamentos para o desenvol- duzir in vitro atualmente. vimento de carne de laboratório. Creio A empresa também produz órgãos para que há espaço para crescer. Esperamos Quais são os outros desafios? testar novos fármacos em substituição ter mais de uma centena de laboratórios O alinhamento celular. Os cardiomióci- a modelos animais? no país trabalhando com nossos produ- tos, que são as células que contraem o Levaremos muitos anos para colocar ór- tos nos próximos anos. Queremos que coração, são alinhados e têm um posicio- gãos para transplante no mercado, mas mais pessoas conheçam a TissueLabs,

LÉO RAMOS CHAVES LÉO namento geométrico muito particular. já conseguimos utilizar nossa tecnologia porque oferecemos soluções que dão nova perspectiva às pesquisas na área. Hoje, 95% da pesquisa biomédica no mundo é feita em duas dimensões [2D], nas famosas placas de Petri. Sabemos que esses resultados não são represen- tativos do corpo humano, da natureza do organismo. Então, a proposta é tra- zer os estudos biomédicos in vitro para o 3D. Nos próximos 10 anos haverá um grande movimento de cientistas indo do bi para o tridimensional. n

Projetos 1. Caracterização de hidrogéis miméticos à matriz ex- tracelular derivados de tecidos diversos e sua influência no comportamento celular (nº 19/22468-0); Modalida- de Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Gabriel Liguori (TissueLabs); Investimento R$ 821.306,56. 2. Otimização e padronização da fabricação de um hidro- gel mimético à matriz extracelular para aplicações em medicina regenerativa, engenharia de tecidos e outros estudos in vitro (nº 18/15450-5); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Gabriel Liguori (TissueLabs); Investimen- A bioimpressora TissueStart foi projetada para fabricar tecidos humanos tridimensionais complexos to R$ 96.292,65.

PESQUISA FAPESP 302 | 71 BIOLOGIA MARINHA

BERÇÁRIO

DE Dispositivo para cultivo de corais na praia de Porto de Galinhas, no litoral CORAIS de Pernambuco

Cultivo móvel de fragmentos danificados ma técnica inovadora criada na Universidade Federal de Pernam- de corais em berços pré-moldados buco (UFPE) poderá ajudar na é uma tecnologia promissora preservação dos recifes de coral. Cientistas da Biofábrica de Corais, para restauração de recifes ameaçados projeto vinculado ao Laboratório de UEnzimologia Luiz Accioly (Labenz) do Departa- Tiago Jokura mento de Bioquímica da UFPE, desenvolveram uma espécie de berço para cultivar fragmentos de espécies ameaçadas. Cada pedaço de coral cresce por alguns meses no berço até ter condições de ser enxertado definitivamente em locais que tenham perdido sua cobertura original. Um projeto-piloto está sendo posto em prática nas piscinas naturais na praia de Porto de Galinhas, destino turístico de Ipojuca, município a 50 quilômetros do Recife. Corais são animais invertebrados formados por pequenos pólipos de corpo mole conectados en- tre si por um esqueleto calcário. A técnica criada na UFPE, capaz de tornar mais simples e acessí- vel o processo conhecido como transplante, tem De acordo com o relatório Coral reef restoration, o potencial de mitigar a degradação dos recifes publicado este ano pelo Programa das Nações Uni- causada por poluição ou pelo aquecimento dos das para o Meio Ambiente (Pnuma) e pela Inicia- oceanos. Quando o ambiente marinho é atingido tiva Internacional de Recifes de Corais (Icri), os por derramamento de óleo, por exemplo, associa- recifes de coral ocorrem em mais de 100 países e do a aumentos bruscos de temperatura, uma das pelo menos 500 milhões de pessoas dependem da consequências é o branqueamento das colônias existência deles para viver. Se a Grande Barreira de corais, causado pela perda de microalgas, as de Corais da Austrália tivesse valor de mercado, zooxantelas, que vivem associadas aos pólipos e estima o documento, seria de US$ 56 bilhões. O dão cor aos corais. O branqueamento pode levar relatório projeta ainda que atividades econômicas os pólipos à morte, restando apenas o esqueleto induzidas por ela geram US$ 6,4 bilhões por ano. calcário branco. Essa abundância de recursos, contudo, está O trabalho da Biofábrica, iniciado há seis anos, ameaçada. Os recifes de coral são um dos ecos- já rendeu ao grupo o pedido de duas patentes re- sistemas mais vulneráveis diante das mudanças ferentes a dispositivos para o cultivo de corais e climáticas e de atividades humanas. Estima-se que de esponjas-do-mar. “Queremos promover a con- metade deles tenha sido destruída nos últimos 30 servação dessas espécies a partir de uma aborda- anos – e uma parcela ainda maior pode desapare- gem multidisciplinar e envolver a comunidade cer nas próximas décadas se o aquecimento global local para que ela perceba a conservação a partir não for contido. “Para exemplificar o tamanho da da ótica da sustentabilidade econômica”, explica ameaça que os corais têm sofrido, em 2020 uma o engenheiro de pesca Rudã Fernandes, coorde- onda de calor causou o branqueamento de cerca nador científico do projeto, que tem a participa- de 80% dos corais-de-fogo em Porto de Galinhas”, ção de 34 membros, entre biólogos, engenheiros, alerta Fernandes. “Nesse cenário agudo, precisa- designers, comunicadores e jangadeiros, sendo 17 mos trabalhar rápido. Caso contrário, em cinco deles fixos e os demais ocasionais. anos talvez não tenhamos mais o que conservar.” O grupo cultiva no berçário em Porto de Gali- nhas, também conhecido como fazenda de corais, BERÇOS BIODEGRADÁVEIS duas espécies: os corais-de-fogo (Millepora alcicor- Um estudo de revisão liderado pela bióloga Lisa nis) e os corais-cérebro (Mussismilia harttii). Estes Boström-Einarsson, da Universidade James Cook, últimos correm risco de extinção desde 2014 e são na Austrália, analisou mais de 360 projetos de res- considerados uma das espécies construtoras mais tauração em 56 países e observou que 70% dessas importantes, pois sua composição pétrea ajuda a for- iniciativas envolvem fazendas de coral. No Brasil, mar recifes. Já os corais-de-fogo, com ramificações o trabalho da UFPE é um dos pioneiros. O uso de que oferecem abrigo a diversos organismos aquá- laboratórios em terra para acelerar o crescimento ticos, estão ameaçados por serem mais sensíveis a de corais, o transplante direto – sem passar por alterações bruscas na temperatura da água – o que berçários – e a remoção de organismos compe- pode ocorrer pelo aquecimento global, mas também tidores são outras estratégias usadas no mundo por exposição a marés baixas ou pelo aumento da para recuperar corais. temperatura da água de piscinas naturais rasas. “O cultivo e a restauração de corais não são uma Até agora, os resultados das fazendas são anima- novidade em si. Isso já é feito há algumas déca- dores. Os fragmentos de corais-de-fogo têm cresci- das. A longo prazo, a abordagem tem se mostra- do 40% em 90 dias e os de coral-cérebro 200% em do promissora em locais como Caribe, Tailândia 120 dias. Com três meses, segundo Fernandes, eles e Flórida, nos Estados Unidos. Em um período estão completamente recuperados do estresse do entre 8 e 12 anos, notou-se nessas regiões uma manejo e colonizam os berços. “Mas ainda estamos maior cobertura de coral e uma maior complexi- investigando qual é o tempo ideal que precisam fi- dade estrutural nos locais restaurados, em com- car no berçário antes de serem transplantados para paração aos não restaurados”, pontua o biólogo o ambiente marinho”, diz o pesquisador. catarinense Alberto Lindner, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “É importan- DESAFIO GLOBAL te, contudo, ressaltar que o transplante deve ser Os recifes de coral cobrem menos de 0,1% dos visto como último recurso para a conservação. oceanos mundiais, mas abrigam 25% da biodi- Medidas preventivas, como evitar a sobrepesca, versidade marinha – daí a importância de serem controlar a poluição oceânica e criar unidades preservados. Além de sustentar tanta vida, essas de conservação podem ser mais baratas e evitam colônias formam um ambiente que serve como danos aos corais.” BIOFÁBRICA DE CORAIS DE BIOFÁBRICA

/ proteção costeira, reduto pesqueiro, fonte de bioa- Em Pernambuco, a recente inovação desenvol- tivos para as indústrias farmacêutica e cosmética e vida pela equipe da UFPE está nas peças que dão como atração turística. São, portanto, uma impor- origem aos berços onde os corais serão cultivados.

THALIA SANTANA THALIA tante fonte de riqueza para a comunidade local. Elas são construídas por impressoras 3D com o

PESQUISA FAPESP 302 | 73 1 2 polímero biodegradável PLA (ácido polilático). e a partir daí experimentamos essa abordagem Berçário de corais­‑de­‑fogo: Em terra, o material se degrada em torno de um com os corais”, conta Fernandes. fragmentos crescem ano, mas os pesquisadores ainda não sabem quan- O pesquisador destaca que o design das peças 40% em três meses to tempo levará para se decompor no fundo do foi aprimorado a partir da observação do padrão mar. Uma das novidades do projeto é que elas de crescimento de certas espécies. “A primeira são desenhadas para se adaptar à morfologia das versão feita para fixar os corais-de-fogo tinha o diferentes espécies, o que pode acelerar o seu formato de uma chapa quadrada. Quando nota- crescimento (ver infográfico abaixo). “Espon- mos que era nas quinas que o animal se ramificava jas- do-mar e corais são animais que se associam e passava a crescer mais rápido, projetamos uma ao substrato e se desenvolvem a partir de uma esfera com 12 pontas. Aumentamos a quantidade superfície fixa. Mas em muitos cultivos víamos de quinas ao mesmo tempo que diminuímos o os animais pendurados em cordas; e pensamos tamanho da peça. Isso resultou em ganho de pro- em fazer diferente. Quando fixamos as esponjas dutividade na impressão”, detalha Fernandes. numa superfície, os resultados foram melhores “Já para os corais-cérebro e outras espécies mais

O passo a passo do transplante O cutivo em berços feito pela Biofábrica de Corais dura pelo menos 90 dias

1 Mergulhadores 2 Os fragmentos são 3 Chamadas de nublins, 4 As mesas de cultivo são 5 O cultivo dura cerca recolhem fragmentos de cortados em tamanhos as mudas são fixadas com colocadas no fundo de de 90 dias para os corais no assoalho apropriados, que variam uma cola adesiva. Os piscinas naturais próximas corais­‑de­‑fogo e 120 marinho, que podem ter de 3 a 10 centímetros, berços são presos a mesas à costa. De fácil manuseio, dias para os corais­ parado lá por algum para serem encaixados de cultivo e sua evolução podem ser transferidas ‑cérebro. Os indivíduos acidente com âncoras, nos berços, as pequenas é acompanhada por meio para águas mais profundas, são monitorados até fundo de embarcações ou peças de PLA produzidas de fotos e aferição de peso caso a temperatura poderem ser remos raspando os corais em impressoras 3D e tamanho das mudas marinha aumente transplantados

FONTE BIOFÁBRICA DE CORAIS

74 | ABRIL DE 2021 achatadas, que crescem se espalhando, temos ado- corais”, declara o bioquímico Ranilson Bezerra, tado superfícies planas com pequenas variações coordenador-geral do projeto. A integração entre para otimizar sua recuperação.” pesquisadores e moradores se dá por meio de Outra vantagem do dispositivo da Biofábrica atividades de conscientização e orientação sobre é que ele confere mobilidade ao berçário, permi- preservação marinha, além do envolvimento de tindo que se mude o cultivo de lugar para driblar profissionais da pesca, mergulho e do turismo no eventos que causem estresse aos corais, como manejo e mapeamento de espécies locais. poluição ou aumento de temperatura. “Podere- Vinícius Nora, analista de conservação da mos transferir nossas fazendas para locais mais WWF-Brasil, explica que o apoio à Biofábrica

ALEXANDRE AFFONSO profundos no mar com a ajuda de jangadeiros e se insere no contexto do Projeto Coralizar, lidera- mergulhadores. Nesses lugares, a temperatura do pela entidade e o Instituto Neoenergia, com a da água é menor e não ameaça o crescimento dos parceria da UFPE, da Universidade Federal Rural INFOGRÁFICO animais. Se nosso manejo fosse fixo, em uma ro- de Pernambuco (UFRPE) e do Instituto Nautilus. cha, poderíamos perder o trabalho de vários anos “Decidimos dar suporte ao projeto pernambucano caso ocorresse uma anomalia térmica ou de outra por entender sua importância para recuperação natureza”, pondera Fernandes. de corais ameaçados. Nos últimos anos, atingimos “Em um futuro próximo, graças ao apoio que o um nível de branqueamento e de perda de corais BIOFÁBRICA DE CORAIS DE BIOFÁBRICA

/ projeto recebe da WWF [Fundo Mundial para a muito grande. O desenvolvimento de novas tec- Natureza], os berços serão feitos injetando o plás- nologias, como essa da Biofábrica, pode ajudar a tico direto em um molde, aumentando a produti- mitigar e, em alguns casos, até a reverter cenários

THALIA SANTANA THALIA vidade. O desenvolvimento de polímeros plásticos de degradação observados na costa brasileira e para impressão deve se tornar uma futura linha de em outros países.” pesquisa”, complementa. O grupo também planeja A iniciativa também recebeu suporte finan- instalar em breve bases em terra firme, como se ceiro da Fundação Grupo Boticário de Proteção fossem estufas, com os corais se desenvolvendo à Natureza, da empresa de mobilidade Uber e em berços instalados dentro de grandes aquários. do Instituto Serrapilheira. Os recursos têm si- do usados não apenas para o manejo de corais, impacto dessa tecnologia não se mas também para a divulgação da tecnologia e CARLOS DOS SANTOS / ECOJANGADA 3

2 limita aos resultados científicos a promoção do intercâmbio entre a Biofábrica e e ecológicos. Há uma intenção eventuais interessados na preservação recifal no da Biofábrica, preconizada pe- Brasil e no exterior.

REVISTACORAIS lo Pnuma e pelo Icri, de que o “Além de aliar conservação e inovação com in- / manejo de corais nativos seja terdisciplinaridade e impacto social, a Biofábrica Ouma atividade integrada à comunidade e traga oferece uma ferramenta que pode ser estudada, benefícios econômicos e sociais para as localidades replicada e escalonada em outros lugares”, des- PAMELA PAMELA DEVIA Corais-cérebro fixados 1 aos substratos poliméricos, em que ele é introduzido. “É fundamental que taca a bióloga Janaína Bumbeer, analista da Fun-

FOTOS criados na UFPE a comunidade seja atuante na preservação dos dação Grupo Boticário de Proteção à Natureza.

3 “É importante ressaltar que esse projeto se insere em duas agendas globais que tiveram início este ano: a Década da Ciência Oceânica, que tem como um dos desafios promover a saúde e a resiliência costeira, e a Década da Restauração dos Ecossis- temas”, completa. Recentemente, a Biofábrica foi selecionada em um edital lançado pelo Instituto Serrapilheira para financiar podcasts de divulgação científica. “Em agosto de 2021, lançaremos o podcast Um mar de histórias, com animais marinhos como personagens, sendo os protagonistas os corais Mussi e Mille, em referência às espécies que te- mos manejado”, conta Thalia Santana, da equipe de comunicação da Biofábrica. “Nosso objetivo é ensinar crianças entre 6 e 10 anos sobre a impor- tância da vida marinha.” n

Artigo científico BOSTRÖM-EINARSSON, L. et al. Coral restoration – A systematic review of current methods, successes, failures and future directions. PLOS ONE. 30 jan. 2020.

PESQUISA FAPESP 302 | 75 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA TECENDO AS POLÍTICAS DE SAÚDE Desde os anos 1970, pesquisadores e outros atores lutam para conjugar governo, ciência e economia em um complexo industrial do setor

Diego Viana

76 | ABRIL DE 2021 JAYK7 / GETTY IMAGES A tecnologia, ofinanciamentoeapolíticaindus um complexo sistema quemobilizaaciência, médicos. Abatalhaexpôs osmecanismosde Econômico-Industrial daSaúdeEconômico-Industrial (Ceis). instituições constituem ochamadoComplexo hospitaisprivadosmédico-hospitalares, eoutras duzem vacinas, os fabricantes de equipamentos farmacêutica, asentidadesquepesquisamepro o Sistema Único deSaúde (SUS), aindústria Geografia e Estatística (IBGE). Em conjunto, Bruto (PIB), segundooInstituto Brasileiro de setor responsável por9,2% doProduto Interno trial. No Brasil, apandemiarealçou opesodeum reconstruiu o longocaminhodeintrodução das realizadas nodecorrer dequatro anos, Fonseca consulta aarquivos daimprensa e30entrevistas dequado àsnovas situaçõesqueseapresentam. mente, quando seu modo de agir se revela ina transformadas pormedidassúbitas, masgradual pesquisadora mostra queasinstituições nãosão lhando comaanálisedamudançainstitucional, a seja pelanecessidadedecorrigirerros. Traba seja como resposta à entrada de atores novos, cionais sofrem emendaserevisões paulatinas, dança emcamadas”,queaspolíticasinstitu políticas tecnológicas. po queosetoradquiriaumpesocrescente nas inovação naspolíticas desaúde, aomesmotem ampliação paulatina do papel da ciência e da da legislaçãoedecisõesdeEstado levaram à cunstâncias econômicas e sociais, mudanças de pesquisadores eoutros profissionais, cir distintas. Porém umalongahistória deatuação na maiorpartedotempo, comoduasrealidades saúde edeciênciatecnologiaforam tratadas, Fonseca, aolongodoséculoXX,aspolíticasde brasileira”, financiadopela FAPESP. Segundo setor farmacêutico: Uma análise da experiência de pesquisa“Políticas para competitividadedo Paulo eresponsável (Eaesp-FGV) peloprojeto Escola deAdministração deEmpresas deSão gundo Elize Massard da Fonseca, professora da a evolução gradual daspolíticaspúblicas, se logia emsaúdenoBrasil éumcasoqueilustra A construção darede depolíticastecno Por meiodaanálisededocumentosoficiais, Fonseca refere-se aesseprocesso como“mu doença efabricarequipamentos ver vacinas etratamentos contra a da para entenderovírus, desenvol universidades iniciaram umacorri o Sars-CoV-2, países, empresas e porânea: asaúde. Na lutacontra dinâmicos daeconomiacontem sobre umdoscomponentesmais pandemia da Covid-19 lançou luz PESQUISA FAPESP 302 PESQUISA | 77 ------UM PROCESSO DE GERAÇÕES

políticas de ciência e tecnologia na saúde brasi- O conceito de Complexo Econômico-Indus- leira. Ela defende que o ingresso da saúde como trial da Saúde tem origem na pesquisa brasileira. setor estratégico da política industrial brasileira O economista Carlos Grabois Gadelha, da Escola em 2013 e o papel do Banco Nacional de Desen- Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswal- volvimento Econômico e Social (BNDES) no do Cruz (Ensp-Fiocruz) e titular da SCTIE-MS investimento em pesquisa no setor não foram entre 2011 e 2015, recorda que a ideia lhe veio decisões isoladas, mas uma construção de três a partir de um trabalho sobre cadeias produti- décadas, que começa com a mobilização de pes- vas integradas. A primeira ocorrência do termo ANOS 1970 quisadores e outros profissionais até resultar nas aparece no artigo “O complexo industrial da saú- MOVIMENTO SANITARISTA políticas de Estado. de e a necessidade de um enfoque dinâmico na economia da saúde”, publicado por ele em 2003. 1976 Criação do MOVIMENTO SANITARISTA “O Ceis pensa a saúde como um espaço eco- Centro Brasileiro de A primeira etapa do processo que viria a redun- nômico de geração de riqueza e bem-estar. A Estudos de Saúde dar nas políticas de ciência em saúde do século autonomia das políticas sociais depende de um (Cebes) XXI foi o movimento da reforma sanitária das sistema econômico vigoroso, porque as polí- décadas de 1970 e 1980. No período, surgiram ticas sociais são vulneráveis ao econômico. E 1979 Criação da instituições como o Centro Brasileiro de Estu- esse sistema econômico tem que estar calcado Associação Brasileira dos de Saúde (Cebes), de 1976, e a Associação em uma base de inovação relevante”, afirma o de Pós-graduação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coleti- economista. Para ele, a atual pandemia ilustra a em Saúde Coletiva va (Abrasco), de 1979. Médicos sanitaristas de relevância do Ceis: “A inovação se tornou central (Abrasco) destaque no movimento, como Sérgio Arouca para a sustentabilidade econômica da saúde”. (1941-2003) e Hésio Cordeiro (1942-2020), te- riam papel central na criação do SUS. rês marcos institucionais da década Nesse período, os projetos e debates estavam de 1990 reforçaram indiretamente concentrados nos serviços, segundo o sanitarista o impulso para incorporar políticas Reinaldo Guimarães, pesquisador do Núcleo de de pesquisa e inovação na saúde. O Bioética e Ética Aplicada à Saúde da Universi- primeiro foi a abertura comercial dade Federal do Rio de Janeiro (Nubea/UFRJ), promovida pelo governo de Fernan- ALEXANDRE AFFONSO vice-presidente da Abrasco e secretário de Ciên- do Collor de Mello (1990-1992), que

cia, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Mi- eliminou barreiras tarifárias a impor- INFOGRÁFICO

nistério da Saúde (SCTIE-MS) de 2007 a 2010. tações brasileiras de equipamentos Entre as propostas mais difundidas estavam a médicos e fármacos. Como resultado, muitas municipalização da responsabilidade pelo setor Tempresas industriais que dependiam da proteção e a criação de um sistema universal. do mercado desapareceram. Em 1986, a 8ª Conferência Nacional de Saú- “Até os anos 1980, havia grandes projetos para de, presidida por Arouca, definiu o projeto que desenvolver a indústria farmacêutica no Brasil, resultaria no SUS, incorporado na Constituição inclusive produzindo insumos a partir do petró- de 1988 e criado pela Lei Orgânica da Saúde, de leo. Chegamos a ter uma certa autossuficiência”, COMUNICAÇÃO EM / ENSPSAÚDE / FIOCRUZ

1990 (Lei nº 8.080). Embora não fosse o objetivo informa a economista Lia Hasenclever, do Ins- 2 primário de seus criadores, o SUS representou tituto de Economia da UFRJ e da Universida- um impulso para a economia da saúde e para de Cândido Mendes (Ucam). “Com a abertura as políticas de ciência e tecnologia. “A criação comercial, os projetos nacionais acabaram e as do SUS é um ponto-chave, porque gerou uma multinacionais deixaram de produzir aqui, por- demanda enorme para as indústrias da saúde”, que sem as barreiras tarifárias o Brasil se revelou resume Fonseca. Até hoje, o sistema é o prin- pouco competitivo.” ACERVO RADIS / ENSP / FIOCRUZ cipal comprador de medicamentos, vacinas e Em 1994, o Brasil aderiu ao Acordo sobre As- 1

equipamentos médicos no Brasil. pectos dos Direitos de Propriedade Intelectual FOTOS

78 | ABRIL DE 2021 ANOS 1980 ESTRUTURANDO POLÍTICAS

1986 8ª Conferência 1988 Constituição Federal 1990 Lei Orgânica da Saúde Nacional de Saúde prevê a criação do SUS regulamenta o SUS (Lei nº 8.080/90)

Relacionados ao Comércio (Trips). Responden- dos razoáveis. Em casos de emergência nacional, do a uma exigência do tratado internacional, situações de extrema urgência e uso público não o país aprovou uma Lei de Patentes dois anos comercial, a licença compulsória é permitida mais tarde, com impacto direto sobre os seto- diretamente. A partir de 1999, o Ministério da res farmacêutico e farmoquímico, que até então Saúde passou a usar a possibilidade de quebrar se valiam do não reconhecimento de patentes patentes por meio da licença compulsória para sobre diversos medicamentos para fabricar os fechar acordos com laboratórios por remédios ANOS 1990 chamados similares. usados no combate à Aids. Um único medica- Segundo Guimarães, a rápida aprovação da mento teve, de fato, a patente quebrada: o Efa- MONTANHA-RUSSA Lei de Patentes foi uma decisão com consequên- virenz, em 2007. DA PRODUÇÃO NACIONAL cias determinantes: o país abdicou do período Em 1999, foi aprovada a Lei dos Genéricos, de adaptação de 10 anos que o tratado permitia, que trouxe um incentivo à produção de medi- 1990 Plano Collor I fazendo valer o direito de propriedade intelec- camentos no Brasil. De acordo com Fonseca, “a marca início da abertura tual dos detentores estrangeiros de tecnologias Lei de Patentes e a dos Genéricos são pontos comercial e seus produtos imediatamente. No livro Intel- marcantes que ajudaram a constituir as políticas 1994 Acordo sobre lectual property rights, the WTO and developing da década seguinte”. Em resposta às dificulda- Aspectos dos Direitos countries (Direitos de propriedade intelectual, des que surgiram ao longo da década de 1990, os de Propriedade a Organização Mundial do Comércio e os paí- pesquisadores ligados ao movimento sanitarista, Intelectual Relacionados ses em desenvolvimento), o jurista e economis- que haviam atuado na década de 1980 para de- ao Comércio (Trips) ta argentino Carlos Correa, da Universidade de senvolver a política de saúde da Nova Repúbli- exige o patenteamento Buenos Aires, argumenta que a rápida adoção da ca, dessa vez participariam da constituição das de fármacos propriedade intelectual foi resultado da pressão políticas de pesquisa em saúde, envolvendo leis do setor farmacêutico americano. específicas para o setor, uma nova secretaria no 1996 Lei de Patentes Um dispositivo inserido no acordo Trips em MS e incentivos diretos do governo às empresas. (nº 9.279/96) coíbe 2001 acabaria sendo decisivo para as políticas imitação de remédios públicas da década seguinte: a licença compul- POLÍTICA INDUSTRIAL por empresas locais sória, permitida quando um produtor local não O relatório final da Primeira Conferência Nacio- consegue chegar a um acordo com a fabricante nal de Ciência e Tecnologia em Saúde, de 1994, 1999 Lei dos de um produto em troca de royalties considera- recomendou a criação de uma secretaria no MS Genéricos (nº 9.787/99) incentiva reorientação 1 especificamente para tratar de investimentos em ciência e tecnologia. A proposta só viria a ser in- da indústria tegralmente adotada em 2007, com a criação da farmacêutica brasileira SCTIE, que sucedeu o Departamento de Ciên-

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Hésio Cordeiro (à esq.) e Sérgio Arouca, participantes da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986 (à dir.): sanitaristas tiveram papel importante na criação do SUS

PESQUISA FAPESP 302 | 79 Manifestação na praça da Sé, na capital paulista, em apoio à decisão do governo federal de quebrar a patente de remédio anti-Aids, em 2007

cia e Tecnologia (Decit), de 2000. Em 2008, na gestão do ministro José Gomes Temporão (2007- ANOS 2000 2011), o Ceis ganhou centralidade, com a criação do Grupo Executivo do Complexo Industrial da COMPLEXO ECONÔMICO- Saúde (Gecis), hoje extinto. -INDUSTRIAL Fonseca destaca o papel do BNDES no fomen- to à pesquisa médica, sobretudo a partir da im- 2003 Política Industrial, plementação da Política Industrial, Tecnológica Tecnológica e de e de Comércio Exterior (Pitce), em 2003, que Comércio Exterior incluiu a saúde como um dos quatro setores es- (Pitce) inclui a saúde tratégicos. “O banco agiu como um importante entre os setores indutor de políticas. Incentivou empresas a fa- estratégicos para receber zer joint ventures [parcerias para um negócio 1 incentivos do BNDES específico] e favoreceu acordos de transferên- cia de tecnologia”, diz a pesquisadora da FGV. Foi por meio dessas parcerias que as empre- 2004 Programa de Apoio ao “Costumamos pensar que políticas industriais sas brasileiras entraram no campo mais recente Desenvolvimento da resultam da influência de setores que querem ser dos chamados biossimilares, medicamentos que Cadeia Produtiva favorecidos, mas, no caso da saúde, claramente resultam de processos biológicos, diferentes dos Farmaceutica (Profarma) os pesquisadores tiveram um grande peso, por genéricos, feitos por síntese química. “Os em- tudo que fizeram nas décadas anteriores: criaram presários que entrevistei sempre ressaltaram o 2007 Primeira os conceitos, pressionaram o Estado e partici- tamanho do mercado que o SUS representa, ga- quebra de patente param da formulação das políticas”, completa. rantindo os negócios por um longo tempo, quan- pelo governo brasileiro: do se entra na lista de fornecedores”, comenta o remédio Efavirenz, esse período, foram criados mecanis- Fonseca, acrescentando que frequentemente usado no combate mos financeiros para fortalecer o se- esses mesmos empresários negam precisar da à Aids tor produtivo da saúde, com impacto ajuda do governo. “Mas, quando olhamos a lista direto sobre a atividade de pesquisa. das parcerias que o BNDES fechou entre 2008 Criação da Secretaria O pioneiro, em 2004, foi o Progra e 2017, estão todos presentes”, observa. de Ciência, Tecnologia - Hoje, cerca de 80% do mercado local de ge e Insumos Estratégicos ma de Apoio ao Desenvolvimento - do Ministério da da Cadeia Produtiva Farmaceutica néricos é ocupado por empresas nacionais, que Saúde (SCTIE/MS) (Profarma). O principal mecanismo, se tornaram capazes também de investir em segundo os pesquisadores, está nas pesquisa e desenvolvimento (P&D): segundo ALEXANDRE AFFONSO 2008 Programa Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo Hasenclever, as empresas privadas brasileiras Nacional de Fomento (PDP), estabelecidas em 2012, que formalizaram ou instaladas no Brasil investiram em média R$ N INFOGRÁFICO à Produção Pública dispositivos previstos no Programa Nacional de 19 milhões por ano em P&D, de acordo com os e Inovação no Complexo Fomento à Produção Pública e Inovação no Com- dados da Pesquisa de Inovação do IBGE (Pintec) Industrial da Saúde plexo Industrial da Saúde, de 2008. Trata-se de de 2015. É um valor baixo para padrões mun- um sistema pelo qual o MS determina uma lista diais, em um setor no qual a pesquisa mobiliza 2012 Parcerias de de produtos estratégicos a serem adquiridos, que US$ 160 bilhões por ano. RAMOS CHAVES LÉO Desenvolvimento tenham importância para o SUS e representem Para André Médici, ex-economista sênior Produtivo (PDP), que um custo grande para o governo ou um peso re- da área da saúde do Banco Mundial, essas po- FOLHAPRESS 2 FOLHAPRESS

/ garantem às empresas levante na pauta de importações. As empresas líticas não chegam a representar um impulso um mercado para se comprometem a transferir a tecnologia para suficiente para a pesquisa em saúde, já que fal- produtos estratégicos laboratórios públicos do país e, em contrapartida, ta “musculatura científica nas universidades e podem fabricá-lo com vendas garantidas por um centros de pesquisa”, além de “incentivos pa- EDUARDO KNAPP EDUARDO período de até 10 anos. Passado esse tempo, o ra que o desenvolvimento científico possa ser 1

laboratório público detém a tecnologia. transformado em oportunidades de negócio”. FOTOS

80 | ABRIL DE 2021 Médici cita a má posição do Brasil em rankings de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, de oportunidades de negócio. Mesmo a fabrica- o FNDCT (ver reportagem na página 54), em ção de genéricos e biossimilares não envolve um particular o Fundo Setorial de Saúde e o Fundo intenso processo de inovação, já que “existe um Setorial de Biotecnologia. Todos consideram grande mercado no Brasil para que esses pro- que o país tem condições de ocupar nichos de dutos sejam fabricados aqui, a partir de tecno- mercado na economia da saúde das próximas logias que já foram desenvolvidas no exterior”, décadas, tanto no setor farmacêutico quanto em segundo o economista. outros, como equipamentos hospitalares, desde “Incentivar o setor privado ou parcerias com que sejam feitos ajustes na legislação e haja apoio empresas internacionais nesse campo, reduzin- do Estado às empresas. do os custos para que se instalem no país, seria “Há um grande risco de que as pesquisas em uma opção vantajosa para acelerar o processo áreas da saúde venham a perder espaço a partir de criação de tecnologia e inovações no Bra- de fontes de recursos que dependem do gover- sil”, sugere Médici. O economista cita o caso no federal, dada não apenas à crise econômica dos ensaios clínicos, apontando que menos de e fiscal que atravessa o país, mas também à bai- 3% deles ocorrem no Brasil, segundo o Global xa prioridade que o sistema federal confere às Innovation Index de 2019. “Essa participação áreas de ciência e tecnologia”, alerta Médici. Para é menor nas fases mais intensivas em conheci- Fonseca, a despeito da mudança de prioridade mento. Um aumento nos testes clínicos ajudaria do governo federal, os principais elementos das a consolidar o país nas redes globais de produção políticas de pesquisa em saúde permanecem de de conhecimento em medicamentos e produtos pé. “Apesar da queda de investimento, as polí- de saúde”, estima. ticas públicas não acabaram. Os contratos de PDP permanecem. O BNDES não tem mais uma ara Hasenclever, é preciso repensar os linha específica para o setor farmacêutico, mas princípios da política industrial para as empresas ainda conseguem crédito. A SCTIE que, além da transferência de tecnolo- ainda existe”, avalia. n gias específicas, as empresas também absorvam os avanços técnicos, refor- çando sua capacidade de inovação. Projeto “A Estratégia Nacional de Saúde, que Políticas para competitividade do setor farmacêutico: Uma análise está sendo discutida no Congresso [PL da experiência brasileira (nº 15/18604-5); Modalidade Jovens Pes- quisadores; Pesquisadora responsável Elize Massard da Fonseca nº 2.583/20], contempla compras do (Eaesp-FGV); Investimento R$ 848.810,00. governo com transferência de tecnologia. É muito Ppouco. Seria preciso incrementar as encomendas Artigos científicos FONSECA, E. M. et al. Integrating science, technology and health tecnológicas”, afirma, referindo-se ao instrumento policies in brazil: Incremental change and public health professionals da Lei de Inovação (nº 10.973/04) que permite as agents of reform. Journal of Latin American Studies. v. 51, n. 2, ao governo contratar avanços tecnológicos com p. 357-77. 2019. GADELHA, C. A. G. O complexo industrial da saúde e a necessidade o risco de que não se concretizem. de um enfoque dinâmico na economia da saúde. Revista Ciência e Hoje, a maior preocupação dos pesquisado- Saúde Coletiva. v. 8, n. 2, p. 521-35. 2019. res é a falta de investimento no Brasil, agrava- Os demais artigos citados nesta reportagem estão listados na versão da pelo contingenciamento do Fundo Nacional on-line.

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Produção de medicamentos em laboratório: empresas privadas brasileiras ou instaladas no Brasil investem um valor baixo em P&D, no setor de saúde, para os padrões mundiais HISTÓRIA

CONEXÕES ULTRAMARINAS

82 | ABRIL DE 2021 Estudos investigam produção e circulação do conhecimento no Império Português e ambiguidades nas relações de poder com suas colônias

Bruno de Pierro

existência de conexões entre Brasil solos propícios para o cultivo de plantas de outros e África no período colonial é tema continentes.” Consequentemente, tais expedições recorrente em estudos históricos contribuíram para consolidar, em Portugal, estu- dedicados a investigar fatores eco- dos de história natural que reformularam o que nômicos e sociais relacionados ao se sabia sobre o Novo Mundo até então. tráfico negreiro. O comércio de es- O contato com conhecimentos tradicionais so- cravos, no entanto, não foi o único bre o uso de plantas, animais e mercadorias que fator responsável pela criação de serviam de moeda para o comércio local abriu pontes entre territórios explora- caminho para o estabelecimento de entrepostos dos pelos portugueses. Segundo historiadores que comerciais no Brasil, na África e na Ásia. “Nessas Atrataram do tema em um seminário virtual ocorri- viagens, os europeus enfrentavam dificuldades de do em fevereiro, técnicas de cura e conhecimentos adaptação e eram recorrentemente acometidos por sobre fauna e flora circularam pelas diferentes doenças tropicais. Era comum valerem-se da sa- áreas do Império lusitano, principalmente por bedoria local em busca de possíveis tratamentos”, intermédio de tratados médicos e mapeamentos diz Conceição, que concluiu em dezembro um es- topográficos produzidos entre os séculos XVI e tágio de pós-doutorado na Faculdade de Filosofia, XVIII. As consequências da interação entre auto- Letras e Ciências Humanas da Universidade de ridades da metrópole, naturalistas e detentores de São Paulo (FFLCH-USP), com apoio da FAPESP. saberes locais são objeto de estudos recentes, que Em sua pesquisa, Conceição identificou re- buscam entender como essa relação – marcada ferências às artes curativas praticadas no reino simultaneamente por conflitos e cooperações – de Angola em manuais médicos que circulavam impactou a cultura europeia e criou condições na Europa no século XVIII. “O conhecimen- para o uso da ciência como instrumento de poder. to produzido pelos portugueses em território A competição entre impérios europeus por angolano foi elaborado a partir de observação, domínios na África, na Índia e no Brasil fez com incorporação e reconfiguração de práticas e sa- que a Coroa portuguesa investisse nas chamadas beres botânicos gerados localmente.” Uma das PINTEREST / “viagens filosóficas”, explica a historiadora bra- obras analisadas pela historiadora é A árvore da O painel de azulejos sileira Gisele Cristina da Conceição. “Coordena- vida, publicada em 1731 pelo militar português no Hospital São José, das pelo naturalista italiano Domenico Vandelli Francisco de Buytrago. “Ele trabalhou em Ango- em Lisboa, remete [1735-1816], essas expedições tinham o objetivo la por duas décadas e decidiu escrever um guia a uma alegoria do pensamento de elaborar uma história natural dos domínios medicinal após regressar a Lisboa.” geométrico europeu coloniais, a fim de identificar potencialidades O objetivo de Buytrago, conta Conceição, era

REDE INVESTIGAÇÃO EM AZULEJO do século XVIII econômicas dos recursos naturais e encontrar fornecer informações relevantes sobre doenças

PESQUISA FAPESP 302 | 83 1 2

Em 1788, o italiano comuns em Angola e como poderiam ser curadas contemporâneas procuram reconstituir os mean- Domenico Vandelli com a utilização de plantas e ervas medicinais. dros tanto da produção quanto da transmissão dos publicou o Dicionário de termos técnicos “Ao catalogar enfermidades e espécies vegetais, saberes úteis à colonização e à evangelização das da história natural, com Buytrago produziu um trabalho de caráter trans- populações sob controle dos portugueses. “São representações de cultural”, afirma a pesquisadora. “O livro não é conhecimentos que foram gerados nos circuitos espécies vegetais uma simples tentativa de difundir saberes médi- de trocas mercantis, nas interações promovidas conhecidas a partir das "viagens filosóficas" cos de Angola, mas o resultado do encontro entre por missionários e nos confrontos militares.” realizadas nos domínios culturas diferentes. Essas zonas de contato foram De acordo com Kantor, o conhecimento adqui- do Império Português capazes de gerar novos conhecimentos que, por rido em expedições cartográficas e em viagens sua vez, não podem ser entendidos como pura- filosóficas possibilitou a efetivação da ocupa- mente europeus.” ção territorial e a defesa militar dos domínios De acordo com Conceição, os estudos produ- portugueses na época da Independência das 13 zidos nas colônias geralmente transitavam por colônias inglesas e da expansão napoleônica. todo o império. Conhecimentos originados no “Mapas e censos populacionais elaborados por Brasil sobre o uso de plantas para fins curati- naturalistas e cartógrafos serviram também para vos foram influentes em Angola. “Havia uma o deslocamento forçado e o reassentamento das extensa circulação de plantas e médicos entre populações indígenas, especialmente após os tra- as colônias, e isso ajudou a fortalecer os laços tados com o Império Espanhol entre 1750 e 1777.” entre elas.” O intercâmbio de informações, con- Os dados resultantes dessas expedições con- tudo, tinha como pano de fundo a preocupação tribuíram para elaborar a legislação dos Diretó- com as enfermidades incapacitantes que pode- rios dos Índios, decretada em 1755, que transfor- riam acometer os cativos deportados da África mou os aldeamentos indígenas – até então admi- para a América. nistrados por missionários – em vilas municipais “Por isso, ter acesso a saberes médicos rela- autogovernadas por líderes indígenas e diretores cionados a doenças comuns no Brasil era funda- civis. A nova lei visava integrar os povos nativos mental para traficantes e senhores de escravos, nas tropas militares, povoar regiões fronteiri- uma vez que a morte de negros representava di- ças e garantir o abastecimento da mão de obra minuição da força de trabalho e dos lucros”, ana- em trabalhos agrícolas, construção de fortale- lisa Conceição, uma das organizadoras do semi- zas e transporte de mercadorias (ver Pesquisa nário on-line “Produzir, acumular e transmitir FAPESP nº 249). conhecimento no Império Português: Práticas e “Nesse contexto, descrever e representar ver- objetos (séculos XVI ao XIX)”, realizado no iní- bal e graficamente a realidade observada foi cen- cio de fevereiro pelo Laboratório de Estudos de tral para a acumulação de informações científicas Cartografia Histórica da Cátedra Jaime Cortesão, no período colonial”, sublinha Kantor. Para ela, ligada à FFLCH-USP. pode-se afirmar que as expedições criaram há- “A história da ciência no período colonial ga- bitos culturais que permitiram a subalternização nhou maior destaque na última década”, avalia a dos povos indígenas, “na medida em que as inte- historiadora Íris Kantor, professora do Departa- rações não eram simétricas e não propiciavam o mento de História da FFLCH-USP e outra orga- pleno desenvolvimento das comunidades locais,

nizadora do evento. Segundo ela, as abordagens apesar da retórica iluminista”. DOMENICO / WIKIMEDIAVANDELLI COMMONS

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Ao mesmo tempo, diferentemente da Espa- Os resultados da expedição, no entanto, não nha, Portugal promoveu a formação intelectual foram divulgados em periódicos científicos eu- de naturalistas, engenheiros militares, médicos ropeus, como se poderia esperar. “A documen- e magistrados naturais da América, concedendo tação enviada a Portugal durante a viagem ficou bolsas de estudo, em instituições como a Univer- desorganizada e encaixotada por muitos anos”, sidade de Coimbra, e empregos na administração explica o historiador Breno Ferraz Leal Ferreira, pública. Ao retornarem para o Brasil, esses ho- que analisou a obra do naturalista durante está- mens – descendentes de elites europeias – atua- gio de pós-doutorado no Instituto de Filosofia e vam em expedições filosóficas e de levantamento Ciências Humanas da Universidade Estadual de cartográfico. Permaneciam, portanto, a serviço Campinas (IFCH-Unicamp). “Somente começou da Coroa, assumindo cargos de gestão e produ- a ser publicada a partir dos anos 40 do século zindo dados e informações botânicas, geológicas XIX, num contexto completamente diferente. e demográficas. Parte dos produtos naturais remetidos a Lisboa Paralelamente, Portugal dificultava a constitui- foi confiscada pelos franceses no momento da ção de academias de ciência no Brasil e impedia ocupação napoleônica de Portugal, a partir de a publicação de estudos, inclusive proibindo o 1807, e levados às instituições científicas e mu- funcionamento de gráficas – o que só passou a seus franceses.” ser permitido em 1808, com a transferência da Grande parte dos relatos feitos por Alexandre sede do império para o Brasil. “O conhecimen- Ferreira permanece manuscrita até os dias de to científico gerado nos domínios coloniais era hoje. No texto “Observações gerais e particulares tratado como assunto sigiloso, que deveria estar sobre a classe dos mamíferos” (1790), o natura- concentrado apenas nas instituições científicas lista reconhece os indígenas como pertencentes da metrópole”, afirma Kantor. à espécie do Homo sapiens – utilizando a classi- ficação científica moderna, proposta pelo taxo- m alguns casos, o conhecimento ge- nomista sueco Carl Lineu (1707-1778), no século rado em expedições sequer circulava XVIII. Tratava-se de atribuir uma “roupagem” dentro do próprio império. É o caso moderna e científica, de acordo com os padrões dos textos redigidos durante a cha- da época, a uma visão anterior, que já colocava mada Viagem Filosófica, comandada o indígena em condição subalterna. “Alexandre pelo naturalista baiano Alexandre Ro- Ferreira defendia que os indígenas eram uma drigues Ferreira (1756-1815). Ao longo forma ‘inferiorizada’ do Homo sapiens, quando de quase 10 anos, ele e sua expedição comparados aos europeus”, diz o historiador. percorreram mais de 39 mil quilôme- Embora considerasse que os nativos estavam tros, passando pelas capitanias do Grão-Pará, em uma etapa primitiva de desenvolvimento – ou Ede São José do Rio Negro e de Mato Grosso. No na “infância da sociedade” –, Alexandre Ferreira trajeto, coletaram e desenharam plantas, animais reconhecia a importância dos indígenas na obten- e fósseis. Também mapearam o curso de vários ção de informações sobre recursos naturais e seus rios e produziram documentação visual sobre a possíveis usos econômicos, médicos e dietéticos. cultura material e hábitos das populações encon- Em seus escritos, o naturalista baiano chega a tradas no percurso entre Belém e Cuiabá. mencionar os nomes dos indígenas Cipriano de

PESQUISA FAPESP 302 | 85 Souza e José da Silva, que ajudaram a preparar mento no Império Português. “De maneira geral, amostras de plantas “com habilidade” e, por isso, mulheres portuguesas e de populações nativas foram promovidos a alferes, antigo posto militar. atuaram como intermediárias entre o mundo da Conceição chama a atenção para a necessidade metrópole e o das colônias, integrando redes in- de se evidenciar a complexidade envolvida na formais e auto-organizadas que faziam circular construção do conhecimento. Como referência, o conhecimento.” a pesquisadora cita o historiador francês Kapil Como exemplo, Polónia menciona a questão Raj, da L’École des Hautes Études en Sciences do parto. “Em 1567, deliberações eclesiásticas Sociales (EHESS), em Paris. “De acordo com proibiram a presença de mulheres não católicas Raj, a ciência não é resultado de um processo no parto de mulheres católicas. Na prática, po- linear e unificado de conhecimentos, mas sim rém, muitas cristãs deram à luz com a ajuda de um sistema afetado por aspectos históricos re- parteiras que detinham conhecimentos advindos lacionados com identidade cultural de seus pro- de sociedades orientais.” Ao mesmo tempo, diz dutores, práticas sociais, conjunturas políticas e Polónia, há relatos sobre mulheres portuguesas habilidades cognitivas.” que atuaram como parteiras na Índia e apren- Para a historiadora portuguesa Amélia Polónia, deram técnicas locais, que depois foram apli- Ilustrações de etnias indígenas produzidas do Departamento de História, Estudos Políticos cadas na Europa. “Métodos abortivos baseados nas expedições lideradas e Internacionais da Universidade do Porto, a em saberes populares de lugares como Índia e pelo naturalista baiano narrativa histórica dominante, escrita pelos eu- China também influenciaram novas abordagens Alexandre Ferreira ropeus, ocultou indivíduos e grupos que contri- no mundo ocidental.” entre 1783 e 1792: 1 e 2 Jurupixuna, buíram para a evolução da ciência. Ela destaca A construção de novos saberes em solo euro- 3 Guaicuru e 4 Mura o papel das mulheres na circulação do conheci- peu muitas vezes se dava a partir de processos de reconfiguração do conhecimento tradicional que era produzido na colônia, observa o histo- riador brasileiro Fabiano Bracht, pesquisador da Universidade do Porto. “Falar de circulação não significa pensar apenas na disseminação ou transmissão de ideias. Trata-se de entender co- mo uma produção local é reconfigurada a par- tir de embates próprios da luta para controlar determinado conhecimento e obter benefícios com ele”, diz Bracht, autor do livro Ao ritmo das monções: Medicina, farmácia, filosofia natural e produção de conhecimento na Índia portuguesa do século XVIII (Edições Afrontamento, 2019). Um exemplo de reconfiguração do conheci- mento é o livro Simplices sinicos medicinaes, do padre jesuíta António de Barros (1717-1759). A obra, na verdade, é uma versão em português de um documento chamado Ý Haoc, um termo

1 2 vietnamita para “medicina”. Barros trabalhou como embaixador de missões portuguesas em Goa, na Índia, em Macau e em Beijing, na Chi- na. “É provável que tenha sido escolhido porque tinha conhecimentos avançados em algumas lín- guas orientais, entre elas o mandarim, a língua oficial da corte e da burocracia estatal chinesa.” O manuscrito de Barros é muito mais do que uma simples tradução, pontua Bracht. “Ele apre- senta mais de 500 ervas medicinais, não ape- nas segundo princípios da medicina oriental, mas também buscando relações com o que já se sabia sobre as plantas na Europa.” É o caso da acácia-falsa (Robinia pseudoacacia), uma planta

da América do Norte introduzida na Europa no ARQUIVO NACIONALACERVO século XVII e, na Ásia, no século XVIII. O gêne- / ro botânico Acácia compreende 163 espécies, 52 nativas das américas, 83 africanas, 32 asiáticas e

9 australianas. “A maior parte das espécies tem DOMÍNIO PÚBLICO 3 4

86 | ABRIL DE 2021 5 espinhos, flores amarelas e raízes odoríferas. Por serem leguminosas, todas produzem vagens. As acácias eram conhecidas por suas propriedades medicinais na Europa, América, África e Ásia desde tempos imemoriais”, observa Bracht. “O que Barros fez foi identificar similarida- des entre as plantas, levando em consideração o sistema de classificação galênico baseado em propriedades ‘subjetivas’, como quente, frio, seco e úmido”, diz Bracht. Assim, sem levar em consideração aspectos morfológicos ou químicos (que ainda não faziam parte da ciência daquele tempo), mas sim os efeitos das plantas no trata- mento de doenças, Barros considerou que uma planta conhecida pelos vietnamitas como Huinh cám pudesse ser uma acácia-falsa, classificando-a como sendo de propriedades quentes e adequada ao tratamento de doenças da bexiga, derivadas de causas “frias”.

utro caso de circulação e reconfigu- ração do conhecimento no Império 6 Português é o trabalho sobre plan- tas medicinais publicado pelo mili- desafios atuais enfrentados por Estados que pas- Durante as viagens tar baiano Domingos Alves Branco saram pela experiência colonial. “A cultura de de Ferreira também foram feitas Muniz Barreto (1748-1831) em finais coletar, observar e representar estatisticamente cartografias de cidades, do século XVIII, a partir de saberes informações científicas distinguiu a geração de entre elas Belém (mapa indígenas. “O levantamento feito homens que reivindicaram e defenderam a ideia acima), e elaboradas por ele é interessante porque não de um Estado brasileiro emancipado, a partir de representações de aldeias, como a de Caboquena esconde a interação com as populações indígenas. 1822. Não por acaso, eles sabiam que o exercí- (ilustração mais acima) OPelo contrário, Muniz Barreto deixa claro que foi cio da soberania política dependia da criação de por meio de trocas culturais que ele construiu o instituições científicas autônomas.”n próprio conhecimento sobre a vegetação local”, diz Conceição. De acordo com a historiadora, é possível ob- Projetos servar, no trabalho do baiano, a presença das cul- 1. Materia medica angolana: Processos de circulação, construção e turas europeia e indígena. “Ao mesmo tempo que reconfiguração de conhecimentos médicos em Angola na primeira ele cita, por exemplo, o trabalho de Lineu, tam- metade do século XVIII (nº 18/11552-8); Modalidade Bolsa de Pós- bém menciona o conhecimento de um indígena -doutorado; Pesquisadora responsável Iris Kantor (USP); Bolsista Gisele Cristina da Conceição Bracht; Investimento R$ 218.876,63. sobre determinada erva.” O trabalho de Muniz 2. Materia medica sinensis: Construção, circulação e reconfiguração Barreto chegou até Portugal por meio de seus de conhecimentos médico-farmacêuticos em Macau entre os séculos contatos na Academia das Ciências de Lisboa e XVII e XVIII (nº 18/02259-5); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Iris Kantor (USP); Bolsista Fabiano Bracht; com pessoas influentes ligadas ao poder central. Investimento R$ 161.702,38. Para Kantor, da USP, estudos sobre os pro- 3. A grande cadeia do ser: O reino animal no olhar dos naturalistas cessos de construção de redes de transmissão viajantes portugueses e luso-americanos (1772-1818) (nº 16/23264- 1); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisadora responsável e acumulação do conhecimento científico no Leila Mezan Algranti (Unicamp); Bolsista Breno Ferraz Leal Ferreira; período colonial podem ajudar a compreender Investimento R$ 749.694,74.

PESQUISA FAPESP 302 | 87 OBITUÁRIO

INTÉRPRETE DA ESCRAVIDÃO O historiador Manolo Florentino desenvolveu estudos de referência sobre o tráfico transatlântico

Christina Queiroz

emonstrar que o tráfico transatlântico toriador norte-americano Herbert S. Klein, das era controlado por mercadores residen- universidades Colúmbia e Stanford, nos Estados tes no Brasil e analisar o protagonismo Unidos. Segundo Klein, estudioso da escravidão Dde pessoas escravizadas na formação de na América Latina e no Caribe, seu esforço mais suas próprias famílias foram algumas das princi- importante foi explorar os arquivos locais para pais contribuições dos estudos desenvolvidos por mostrar como o sistema funcionava. “Junto com as Manolo Garcia Florentino, professor aposentado novas escolas de pesquisa histórica desenvolvidas do Instituto de História da Universidade Federal na Bahia, no Rio Grande do Sul e em São Paulo, do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele morreu aos 63 anos esse esforço fez com que o Brasil se tornasse o no dia 12 de março, no Rio de Janeiro, após uma principal centro do mundo em estudos sobre a parada cardiorrespiratória. Deixou a esposa, Ca- história da escravidão americana.” cilda Machado, também professora aposentada João Luís Ribeiro Fragoso, historiador da UFRJ, da UFRJ, e a filha, Maria. lembra que Florentino desempenhou papel cen- Nascido no Espírito Santo, em 1958, Florentino tral na revisão da historiografia brasileira ao sus- graduou-se em história pela Universidade Federal tentar, em seus trabalhos, que a economia do país Fluminense (UFF) e fez mestrado em estudos afri- não se resumia à agroexportação para metrópo- canos no Colégio de México (Colmex), em 1985. les europeias. De acordo com ele, seu primeiro Defendeu o doutorado em história na UFF, em livro, Em costas negras – Uma história do tráfico 1991, sob orientação de Ciro Flamarion Cardoso de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (sé- (1942-2013). Em 1988, passou a integrar o então culos XVIII e XIX) (Arquivo Nacional, 1993), de- Departamento de História da UFRJ, hoje Instituto monstra que o tráfico de escravos entre o final do de História, no qual se aposentou, em 2019. Re- século XVIII e o começo do XIX era controlado cebeu a Comenda da Ordem Nacional do Mérito por uma comunidade de mercadores residentes Científico, em 2009, e foi presidente da Fundação no Rio de Janeiro. “Isso significa que a economia Casa de Rui Barbosa de 2013 a 2015. do Brasil, mesmo sob a tutela de Portugal, não “Florentino, seus alunos e colegas forneceram dependia exclusivamente das relações com esse uma compreensão fundamental da escravidão e país”, explica. A obra mostra que a permanência do tráfico interno de escravos no Rio de Janei- da escravidão no Brasil – que Florentino chama ro”, afirmou por e-mail a Pesquisa FAPESP o his- de “comércio de almas” – não deve ser atribuída

88 | ABRIL DE 2021 Manolo Florentino unicamente aos interesses do capital europeu criadores do banco de dados Slave Voyages, que no Rio de Janeiro, situado no mercado internacional. “Até os anos oferece informações sobre cerca de 35 mil ex- em 2004 1980, fomos descritos nessa chave da dependência pedições negreiras ocorridas entre 1514 e 1866. e obediência às chamadas, na época, economias De acordo com o historiador José Inaldo Chaves centrais no comércio atlântico. Florentino reco- Junior, da Universidade de Brasília (UnB), junto loca o país no cenário internacional ao chamar a com outros historiadores, Florentino fez parte de atenção à responsabilidade do país no prolonga- uma geração que, trabalhando com ampla docu- mento da escravidão”, destaca. mentação, como arquivos paroquiais e eclesiásti- Com Fragoso, Florentino publicou O Arcaísmo cos, listagens de navios negreiros, testamentos e como projeto (Editora Diadorim, 1993), que mudou inventários, analisou a colonização “por dentro”, a maneira de se conceber a relação entre merca- buscando os rostos e os nomes de seus principais do atlântico, sociedade agrária e elite mercantil. agentes. “Ele atuou diretamente na consolidação Essa obra dialoga e contesta visões do historiador dos estudos africanistas no Brasil, destacando Caio Prado Júnior (1907-1990) e do economista como eles são cruciais à compreensão da própria Celso Furtado (1920-2004) de que o Brasil Colô- sociedade brasileira”, diz. nia seria inteiramente dependente da metrópole A historiadora Hebe Mattos, da Universidade portuguesa e sem mercado interno. Federal de Juiz de Fora (UFJF), recorda que conhe- ceu Florentino durante a graduação em história na lorentino foi um dos primeiros a realizar UFF e mais tarde eles foram colegas de doutorado. pesquisas sobre famílias escravas, estudos “Os encontros acadêmicos que promovemos no que resultaram na publicação de A paz das início de nossas carreiras foram, para mim, teo- F senzalas (Editora Civilização Brasileira, ricamente fundadores e absolutamente memorá- 1997), escrito com José Roberto Góes, da Uni- veis”, recorda. De acordo com ela, ao constituir o versidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). O tráfico de escravizados como objeto de pesquisa, FOLHAPRESS

/ trabalho descreve as pessoas escravizadas como levando em conta as especificidades históricas nas protagonistas no processo de formação de suas duas margens do atlântico, Florentino abriu uma próprias famílias, mostrando como eles reagiam pauta de investigação que não mais cessou de se a situações do cotidiano, em busca de condições desdobrar em novas abordagens e perspectivas, no

LUCIANA LUCIANA WHITAKER melhores de vida. Florentino também foi um dos Brasil, na África e na história global. n

PESQUISA FAPESP 302 | 89 MEMÓRIA

A descoberta da insulina Início da purificação e formulação farmacêutica do hormônio, A descoberta da insulina há cem anos e sua produção no Brasil há 100 anos, e a sua produção no Brasil, meio século atrás, permitiu o controle de uma doença antes vista como fatal permitiram o controle do diabetes

Carlos Fioravanti Carlos Fioravanti

odos os dias, cerca de 7 milhões mas décadas do século XIX, médicos e Em 1922, os pesquisadores aplicaram de brasileiros se aplicam insuli- cientistas perceberam que a doença não o extrato pancreático em um rapaz de na. O hormônio é necessário pa- decorria de problemas nos rins, como se 14 anos com diabetes que se tratava no T ra controlar os níveis excessivos pensava. No mesmo período, postulou- Hospital Geral de Toronto, mas as rea- de açúcar no sangue, a chamada glicemia, -se que alterações no pâncreas poderiam ções colaterais foram intensas e o expe- porque o organismo de algumas pessoas levar ao diabetes. rimento foi interrompido. O bioquímico não a produz em quantidade suficiente. Em 1921, o cirurgião canadense Fre- canadense James Collip (1892-1965) pu- Elas sabem que, desse modo, poderão derick Banting (1891-1941) começou rificou a insulina, o teste foi retomado evitar o avanço do diabetes, doença antes uma série de experiências, auxilia- e as injeções seguintes, no mesmo pa- vista como fatal. A situação mudou com do pelo então estudante de medicina ciente, fizeram a glicemia cair de 520 o início da preparação farmacêutica da Charles Best (1899-1978). Eles aplica- microgramas por decilitro (mg/dl) de insulina, há um século, e sua produção ram extrato pancreático em cães torna- sangue para 120 mg/dl. em escala industrial. No Brasil, o medi- dos diabéticos e viram uma redução na As descobertas renderam prêmios No- camento foi inicialmente importado e glicemia. O trabalho foi feito no labora- bel. Em 1923, Banting e Macleod ganha- depois fabricado pela Biobrás Bioquímica tório do médico escocês John Macleod ram o de Fisiologia e Medicina. Ambos do Brasil, empresa criada há 50 anos. (1876-1935) e supervisionado por ele, na dividiram os méritos e valor do prêmio O diabetes é uma doença cujo registro Universidade de Toronto, no Canadá. A informalmente com Best e Collip. Com mais antigo está em papiros no Egito, de nova substância ganhou esse nome em a identificação da sequência de aminoá- 1552 a.C. A descoberta de como mantê-la referência às células do pâncreas que a cidos da molécula de insulina, o biólogo sob controle, porém, é uma história com produziam, as ilhotas de Langerhans, britânico Frederick Sanger (1918-2013)

pouco mais de 100 anos. Nas duas últi- identificadas anos antes. ganhou o Nobel de Química em 1958. CHRIS / KEYSTONEWARE FEATURES / GETTY IMAGES

90 | ABRIL DE 2021 Em fevereiro de 1946, a equipe de um laboratório em Bielefeld, na Alemanha, mistura ácidos, álcoois e pâncreas de origem animal para obter a insulina de uso humano

PESQUISA FAPESP 302 | 91 Em 1969, a bioquímica britânica Doro- A Biobrás se beneficiou de um con- com 55% de participação da empresa mi- thy Hodgkin, que havia recebido o Nobel texto político e econômico favorável. neira e 45% da filial brasileira da multina- de Química em 1964 por causa de seus Os anos 1970 foram uma época de cres- cional. Segundo Emrich, toda a produção estudos em cristalografia por raios X, cimento econômico intenso, conhecido era entregue para a Eli Lilly, que a dis- usou sua técnica para definir a estrutura como milagre econômico. Os governos tribuía no Brasil e a exportava. Em 1988, espacial do hormônio. militares instituíram uma “política de desfeita a parceria, a Biobrás começou Até o início do século XX, as pessoas substituição de importações e proteção sua própria distribuição, principalmente com diabetes eram tratadas com uma à indústria nacional”, observou o econo- para o Ministério da Saúde (MS). dieta rigorosa, com um consumo extre- mista Frederico Turolla, da Escola Su- Naquele mesmo ano, a Biobrás fez um mamente baixo de calorias, que poderia perior de Propaganda e Marketing, em acordo de cooperação científica com a ser tão fatal quanto a própria doença. um estudo sobre empresas nascidas de equipe do biólogo molecular Spartaco “A insulina é marco na história da me- universidades elaborado em 2001 para Astolfi Filho, da Universidade de Bra- dicina, porque as pessoas com diabetes a Fundação do Desenvolvimento Ad- sília (UnB), para produzir insulina por tipo 1, cujo organismo não produz esse ministrativo (Fundap), órgão estadual meio de engenharia genética e evitar a hormônio, estavam condenadas a mor- paulista extinto em 2015. dependência da matéria-prima suína – a rer em algumas semanas após a doença Inicialmente, 80 quilogramas de pân- primeira insulina humana recombinante se manifestar”, diz o endocrinologista creas suínos, fornecidos por frigoríficos, havia sido aprovada em 1982 nos Esta- Domingos Malerbi, presidente da So- rendiam 1 miligrama de insulina. Em 1981, dos Unidos. Para acelerar o trabalho, o ciedade Brasileira de Diabetes (SBD) e o laboratório farmacêutico norte-ameri- microbiologista Josef Ernest Thiemann presidente do Departamento de Diabetes cano Eli Lilly, o primeiro a produzir o me- (1931-2016), funcionário da empresa, foi da Sociedade Brasileira de Endocrinolo- dicamento em escala industrial, propôs trabalhar com Astolfi na UnB. gia e Metabologia (SBEM). Segundo ele, um acordo de cooperação com a Biobrás Depois de obterem o gene que induzi- para quem tem diabetes tipo 2, cujo or- e, como resultado, formou-se a Biofar, ria a produção de insulina em bactérias, ganismo produz insulina, mas em quan- tidade insuficiente, o novo tratamento poderia adiar complicações da doença, Insulina purificada como cegueira ou infarto. em uma ampola de 1925 de Melbourne, na Austrália, e em o final de 1923, empresas frascos de um lote farmacêuticas começaram a produzido em 1924 em produzir insulina nos Estados Toronto, no Canadá N Unidos e na Europa. No Brasil, a produção começou em 1978 e prosse- guiu até 2001 na Biobrás, criada em 1971 pelo médico Marcos Luís dos Mares Guia (1935-2002), professor de bioquímica da Universidade Federal de Minas Gerais 1 (UFMG). Depois, de 1991 a 1993, ele foi presidente do Conselho Nacional do De- senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Com financiamento inicial da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), a Biobrás começou a funcionar em 1974 em Montes Claros, norte de Minas Gerais, incorporando sete alunos do mestrado em bioquímica da UFMG, além dos três sócios. “Marcos tinha visão de engenharia bioquímica, mesmo sendo médico”, co- mentou o engenheiro Guilherme Caldas Emrich, a quem o pesquisador da UFMG convidou para ser sócio da empresa. O terceiro sócio era o também engenhei- ro Walfrido dos Mares Guia, seu irmão, 3 então professor do curso pré-vestibular Pitágoras, que os dois haviam criado. O cirurgião Frederick Banting (ao lado) Walfrido foi vice-governador de Minas e seu assistente Charles Best de 1994 a 1999 e ministro do Turismo (acima) descobriram de 2003 a 2007. a insulina em 1921 2

92 | ABRIL DE 2021 Thiemann (abaixo) ampliou a escala da produção da insulina recombinante na fábrica da Biobrás (ao lado)

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Thiemann cuidou da ampliação da escala por meio de um acordo de transferência de produção, até chegar a fermentadores de tecnologia com o fabricante ucrania- de 2 mil litros. A patente do medicamen- no Indar, que previa a importação de to transgênico da Biobrás, solicitada em 18 milhões de frascos do medicamento. 1998, foi aprovada nos Estados Unidos Biomm Mas uma equipe da Anvisa visitou a fá- em 2000 – um ano depois do início da e Farmanguinhos brica em Kiev, na Ucrânia, inicialmente produção em escala comercial – e em desaprovou as práticas de produção e 2010 no Brasil. Em 2001, a Novo Nor- anunciaram cancelou a importação. disk, uma das fabricantes que vendiam planos de insulina no Brasil a preços abaixo dos m 2017, o MS transferiu a res- do mercado internacional, comprou a retomada de ponsabilidade de produzir in- Biobrás por U$ 75 milhões (valores da produção nacional sulina no Brasil com tecnolo- época). “Foi uma oferta irrecusável”, E gia ucraniana para a Fundação comenta Emrich. Segundo ele, a Novo de insulina Baiana de Pesquisa Científica e Desen- queria o acesso ao mercado da Biobrás. volvimento Tecnológico, Fornecimento “A fábrica continuou funcionando e e Distribuição de Medicamentos (Bahia- nenhum dos 380 funcionários foi demi- farma), do governo estadual. Em 2018, o tido”, afirma o farmacêutico industrial Indar obteve o certificado de boas prá- Reinaldo Costa, vice-presidente da uni- ticas de fabricação emitido pela Anvisa dade de Montes Claros da Novo Nor- Agência Nacional de Vigilância Sanitária e a empresa baiana entregou o primeiro disk. Mas houve mudanças. A unidade (Anvisa) em 2019. lote de insulina ucraniana ao MS. de produção de insulina recombinante Após a venda da Biobrás, Emrich e “Farmanguinhos colabora no apren- foi desativada e adaptada para fabricar Walfrido – Marcos dos Mares Guia havia dizado tecnológico da equipe técnica do ACERVO CRISTÁLIA ACERVO 5 uma enzima usada na produção dos cris- morrido – criaram um fundo de inves- laboratório baiano”, informou por meio tais de insulina. Desde 2007, a fábrica de timento em empresas de biotecnologia de nota a Pesquisa FAPESP . “A transfe- Montes Claros importa a matéria-prima e se associaram à Biomm, empresa que rência de tecnologia está em andamento – os cristais – da Dinamarca, comple- importa insulina, embora tenha anun- e Farmanguinhos já reproduziu o pro- ACERVO BIOBRÁS ACERVO 4 ta sua formulação, envasa e distribui o ciado a intenção de produzi-la no Brasil. cesso em escala laboratorial até a etapa produto final. “Estamos em processo de validação da final de purificação de cristais (princí- “A venda da Biobrás gerou um grande fábrica em Nova Lima [MG] para pro- pio ativo).” O plano do instituto é con- desânimo na comunidade científica, por duzir insulina recombinante, com tec- tribuir para abastecer o sistema público representar um desestímulo à inovação nologia própria, a partir de E. coli”, diz o de saúde e regular os preços desse medi- saída da universidade e à criação de em- farmacêutico-bioquímico Ciro Massari, camento em um patamar baixo. O preço 2 E 3 WELLCOME COLLECTION presas. Mas não paramos”, diz Astolfi, diretor comercial da empresa. de cada dose importada dos fabricantes atualmente na Universidade Federal do Há outra possibilidade de retomada internacionais varia em média hoje de Amazonas (Ufam). Em 2005, ele e Thie- de produção nacional do hormônio que R$ 10 a R$ 15, dependendo do tipo de mann desenvolveram para a empresa regula a glicemia. Em 2006, o Instituto insulina (de ação rápida ou lenta). farmacêutica Cristália uma versão bios- de Tecnologia em Fármacos (Farman- Atualmente, o mercado continua mui- similar do hormônio de crescimento hu- guinhos), unidade da Fundação Oswaldo to disputado e, como antes da criação UNIVERSIDADE DE TORONTO 1 mano produzido por engenharia genética Cruz (Fiocruz), anunciou a intenção de da Biobrás, toda insulina consumida no

FOTOS e fermentação bacteriana, aprovado pela produzir insulina humana recombinante, Brasil é importada. n

PESQUISA FAPESP 302 | 93 RESENHA

Afinal, quem votou no presidente da República?

Andréa Freitas

final, quem votou em Bolsonaro? É com No sexto, explora sentimentos positivos e ne- essa pergunta que Jairo Nicolau conduz gativos em relação aos partidos políticos. E cla- A o leitor no livro O Brasil dobrou à direita: ro que se eleitores que se identificam com o PT Uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018. votam no PT, o contrário também é verdadeiro, O livro é uma leitura fácil dirigida ao público não eleitores que rejeitam o PT votam em Bolsona- especializado. E, através de pesquisas de opinião e ro. O interessante aqui é ver como se comporta dados eleitorais, busca fazer, como o título enun- o conjunto de eleitores majoritários, aqueles que cia, uma radiografia das eleições daquele ano. não se identificam com nenhum partido e tam- Despretensioso e direto, o autor vai condu- bém não rejeitam nenhum partido. zindo o leitor pela sua visão das eleições, com As redes sociais, protagonistas daquela eleição, anedotas, hipóteses e dados quantitativos. Faz constituem o tema do sétimo capítulo. No oita- o que chamou de um ensaio baseado em dados. vo e nono capítulos o autor explora o território, Cumpre o que promete. Apresenta um caleidos- analisando os padrões de distribuição de votos O Brasil dobrou cópio das eleições de 2018 caracterizando os nas regiões, estados e nos municípios. à direita – eleitores de Jair Bolsonaro (sem partido) por O quadro apresentado pelo autor permite dizer Uma radiografia da eleição de Bolsonaro variáveis sociodemográficas tradicionais como que homens, evangélicos, moradoras de centros em 2018 escolaridade, gênero, idade, religião e região de urbanos, com mais idade, mais escolarizadas e Jairo Nicolau moradia. E acrescenta outras duas variáveis não com acesso as redes sociais, tenderam a votar mais Zahar tão usuais, mas imprescindíveis para entender em Bolsonaro. Mais interessante é que do ponto 144 páginas R$ 39,92 as últimas eleições presidenciais: as variáveis de vista regional, Bolsonaro conseguiu receber petismo/antipetismo e o uso das redes sociais. mais votos do que Fernando Henrique Cardoso, O pleito eleitoral de 2018 merece atenção espe- Geraldo Alckmin, José Serra e Aécio Neves re- cial pela sua singularidade. Como Nicolau nota, ceberam, quando candidatos pelo PSDB à Presi- até então todos os eleitos para o cargo de presi- dência da República, nos estados de São Paulo e dente da República tinham: grande volume de Minas Gerais, onde desenvolveram suas carreiras financiamento eleitoral, muito tempo de propa- políticas. Também interessante é que a candida- ganda eleitoral gratuita e apoio de partidos nos tura de Bolsonaro impulsionou seus apoiadores estados, especialmente, nos mais populosos. Esse de uma maneira que nenhum outro candidato à não é o caso de Bolsonaro, o que torna a eleição de Presidência tinha conseguido impulsionar antes. 2018 diferente das demais. Mas claro, esse não é o As eleições de 2018 foram diferentes. Viven- único fato que a distingue das demais. E Nicolau ciamos uma disputa em que um dos candidatos vai remontado essa história capítulo a capítulo. sofreu um atentado, as redes sociais tiveram pa- No primeiro, ressalta as regras eleitorais e as pel decisivo, o eleito afirma ter gastado menos modificações que elas sofreram para as eleições do que muitos candidatos a deputado federal, de 2018, bem como o desenrolar da campanha. dispôs de pouco tempo no horário eleitoral e Ressalta o atentado sofrido por Bolsonaro e a quase nenhum apoio formal de partidos políti- exposição que ganhou na mídia. Ressalta, ain- cos. Também foi novidade naquele pleito o corte da, que ele foi eleito sem participar de debates e de gênero e religião na votação dos candidatos. concedendo pouquíssimas entrevistas. Virou um Nunca antes essas variáveis tinham apresentado candidato conhecido em todo país, mas do qual tamanha diferença no voto. Como o próprio autor nada se sabia efetivamente. reconhece, muitas das hipóteses levantadas ainda Nos capítulos 2 a 5, Nicolau explora dados so- precisam ser testadas. Mas a sistematização dos ciodemográficos e caracteriza o eleitor que vo- dados apresentada por Nicolau monta uma útil tou em Bolsonaro e em Fernando Haddad (PT). radiografia do fenômeno. As perguntas desses capítulos são: Escolaridade fez diferença na opção dos eleitores? Gênero fez Andréa Freitas é professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp) diferença? Idade? Religião? Para cada um desses e coordenadora do Núcleo de Instituições Políticas e Eleições temas dedica um capítulo. do Centro Brasileiro de Pesquisa e Planejamento (Cebrap).

94 | ABRIL DE 2021 CARREIRAS

A teoria na prática

Decisivos para a formação profissional, ainda é baixo o número de graduandos que participam de programas de estágio

econhecidos como uma das dados da Associação Brasileira de passado, defasagem que hoje se principais vias de inserção no Estágios (Abres). encontra na casa dos 30%, de acordo Rmundo do trabalho, programas “É um cenário que comprova a com dados do Centro de Integração de estágio constituem-se em período quantidade insuficiente de vagas, Empresa-Escola (Ciee). crucial para a formação de estudantes o que gera grande concorrência entre É também durante os estágios que universitários, uma vez que abrem os estudantes na hora de procurar os estudantes começam a formar suas oportunidade para articulação entre um estágio”, afirma Carlos Henrique redes de contatos profissionais, o que teoria e prática. Essa etapa formativa, Mencaci, presidente da Abres, amplia as oportunidades de trabalho. no entanto, ainda é cumprida por entidade que representa as As carreiras que apresentam número um número reduzido de graduandos. organizações encarregadas da mais expressivo de vagas são as de Dentre os mais de 8,4 milhões de divulgação e gerenciamento de vagas administração (16,8%), direito (7,3%), estudantes matriculados em cursos de estágio, mais conhecidas como comunicação social (6,2%), de graduação no Brasil em 2020, agentes integradores. Prejudicada informática (5,2%), engenharias (5,1%) apenas 686 mil realizavam estágio, pela pandemia, a abertura de novos e pedagogia (4,2%). Ainda segundo ou seja, aproximadamente 8% da postos teve queda de 90% entre dados da Abres, há outras áreas em

KLAUS / GETTY VEDFELT IMAGES população universitária, segundo os meses de março e abril do ano que ocorre a falta de candidatos para

PESQUISA FAPESP 302 | 95 Quantidade de estagiários de nível superior por região no Brasil Alunos Estagiários

NORDESTE

18.316 CENTRO-OESTE 1.799.609 NORTE 691.639 52.273 774.211 40.474 vagas, como matemática e estatística, delas de nível superior e os outros estagiários estará muito mais biblioteconomia, agronomia, 15% distribuídos entre ensino médio sintonizada com o que acontece nas gastronomia e ciências atuariais. e cursos técnicos –, o Ciee tem mais instituições de ensino e pesquisa, Regido pela Lei nº 11.788/2008, de 1,17 milhão de alunos cadastrados o que acaba por deixá-la mais o estágio é definido como ato escolar à espera de uma colocação em competitiva.” Para incentivar e educativo, que deve ser programas de estágio e de a ampliação de oportunidades de supervisionado com o intuito de aprendizagem. Antes da pandemia, estágio no país, organizações que preparar o estudante para o trabalho a média diária estava em torno de disponibilizam vagas estão isentas dos produtivo, não podendo ser 1.500 novas vagas. “Hoje, para cada encargos trabalhistas previstos pela configurado como vínculo jovem que está desenvolvendo Consolidação das Leis do Trabalho empregatício. As contratações são atividades em programas de estágio, (CLT) nesse tipo de contratação. estabelecidas por intermédio de um há outros seis aguardando uma vaga”, Estipulados para serem cumpridos termo de compromisso e as tarefas avalia Marcelo Gallo, superintendente a partir da metade dos cursos devem ser acompanhadas por um nacional de operações do Ciee. superiores, em geral nos terceiros professor da instituição de ensino A entidade opera no estado de e quartos anos, estágios podem ser e pelo supervisor que recebe São Paulo e nas regiões Centro-Oeste, remunerados pelas empresas com o estagiário na empresa. A carga Norte e Nordeste – com exceção do a chamada bolsa-auxílio, compulsória horária não pode exceder seis horas estado de Pernambuco. no caso dos estágios não obrigatórios, diárias e o período máximo de Dentre os motivos identificados ou seja, aqueles exercidos pelo permanência em uma mesma empresa para a quantidade insuficiente de vagas estudante de forma opcional. Nas é de dois anos. Em cursos como está o baixo número de empresas carreiras em que o estágio é definido ciências econômicas, administração interessadas em abrir programas de como obrigatório, o pagamento de e psicologia, por exemplo, o estágio estágios, informa Gallo. Soma-se bolsas é facultativo, sobretudo constitui etapa obrigatória de a isso o aumento de estudantes que quando há grande procura por vagas, formação, ou seja, sem ele não existe ingressaram em cursos superiores nas como ocorre nas áreas de direito, a possibilidade de colação de grau. últimas décadas, expansão que não foi enfermagem, fonoaudiologia e Ofertada em grande parte absorvida pelo mercado de trabalho. diversas licenciaturas. “Há, porém, pelos agentes integradores ou por “Há diversas organizações de pequeno situações em que o empregador intermédio de parcerias diretas porte, por exemplo, que poderiam oferece a remuneração mesmo havendo entre empresas e universidades, contribuir com o aumento dessa oferta. a obrigatoriedade do estágio, o que a quantidade de vagas costuma Porém ainda existe receio dos trâmites acaba sendo um fator de estímulo para acompanhar o cenário socioeconômico necessários para a contratação”, diz o estudante”, diz Gallo. Com média do país. Ou seja, aumenta em períodos Gallo. “O que muitas delas não sabem nacional de R$ 1.138,28, os valores da de aquecimento da economia é que os agentes integradores existem bolsa-auxílio variam de acordo com e diminui em épocas de recessão, justamente para administrar os a carreira, com remuneração em torno ALEXANDRE AFFONSO assim como ocorre com os postos procedimentos legais que precisam ser de R$ 1.360,20 para os estagiários de efetivos. Com média de mil novas tratados entre a empresa e a escola”, cursos de tecnólogos em banco de

oportunidades abertas por dia – 85% completa. “Uma empresa que contrata dados e podendo chegar a R$ 1.841,97 INFOGRÁFICO

96 | ABRIL DE 2021 SUL BRASIL 411.600 163.337 8.450.755 1.428.909 3.755.153 686.000

SUDESTE

FONTE ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESTÁGIOS (ABRES) para os que cursam bacharelado em cursos de licenciatura, bem como em casa e com supervisão remota agronomia, de acordo com dados do promover a imersão do estudante as atividades que até então estavam Núcleo Brasileiro de Estágios (Nube), na escola de educação básica. Ambos sendo desenvolvidas no escritório. entidade que publica anualmente são mantidos pela Coordenação de “Essa também é uma oportunidade a Pesquisa Nacional de Bolsa-Auxílio. Aperfeiçoamento de Pessoal de para que os estudantes se familiarizem A grande concorrência por estágios Nível Superior (Capes) do Ministério com essa nova forma de trabalho, tem levado estudantes a buscar da Educação (MEC). que exige certa disciplina e deverá conhecimentos que complementam os “Os dois últimos são estágios que se tornar cada vez mais comum conteúdos oferecidos na universidade. oferecem remuneração e permitem nos próximos anos”, afirma Gallo, De cursos de idiomas ao domínio de supervisão mais efetiva do do Ciee. softwares, muitos candidatos desempenho dos estudantes, pois Graduando do terceiro ano de participam de palestras e congressos são acompanhados por docentes da licenciatura em ciências humanas virtuais com o intuito de complementar escola em que se realiza o estágio da Faculdade Sesi-SP de Educação a formação. “São práticas que ampliam e da instituição de ensino superior”, (Fasesp), o estudante Eli Moura Braz o repertório cultural do aluno de afirma Cyntia Graziella Guizelim tem cumprido remotamente as graduação, além de serem bastante Simões Girotto, professora do atividades de residência educacional, valorizadas pelos recrutadores”, afirma Departamento de Didática da programa correlato ao estágio e que Gallo. Segundo ele, são dois os períodos Faculdade de Filosofia e Ciências da consta como obrigatório na matriz mais propícios para pesquisa de Universidade Estadual Paulista curricular do curso. As tarefas vagas: o primeiro trimestre de cada (Unesp), campus de Marília. preveem o aperfeiçoamento da ano e os meses de julho e agosto. Responsável pela coordenação de prática docente por meio de vivências estágios do curso de pedagogia da em escolas públicas e do Sesi-SP. EDUCAÇÃO instituição, Girotto lembra que, apesar “Durante a pandemia estou Além dos estágios que se configuram de consistir em atividade de cunho utilizando plataformas virtuais para como componentes obrigatórios prático, os programas não costumam acompanhar aulas on-line, além de da organização curricular das oferecer equivalência no cumprimento participar de reuniões para discutir licenciaturas, estudantes da área do estágio obrigatório previsto planejamento e definir as atividades da educação podem buscar estágios para os cursos de licenciatura. pedagógicas”, explica. Mesmo remunerados por meio de agentes A determinação, porém, fica a critério sendo uma forma de não interromper integradores ou concorrer a vagas da deliberação de cada instituição. o cumprimento do programa, do Programa Institucional de Bolsas “Aqui na Unesp de Marília, por Braz lembra que o trabalho remoto de Iniciação à Docência (Pibid) – exemplo, a equivalência está sendo é bastante influenciado pelo destinado a alunos de cursos reconhecida durante o período de contexto do isolamento. “A pandemia presenciais que se dediquem a cumprir pandemia”, completa. gerou um aumento do nível de seus estágios em escolas públicas – e As medidas de isolamento ansiedade, o que pode resultar na do Programa Residência Pedagógica estipuladas para enfrentar a pandemia intensificação da jornada de quem (PRP), que tem por objetivo da Covid-19 fizeram com que muitos realiza estágio remotamente”, aperfeiçoar a formação prática nos estagiários passassem a cumprir finaliza.n Sidnei Santos de Oliveira

PESQUISA FAPESP 302 | 97 Marcia Ferraz: prêmio de € 1,65 milhão para montar laboratório e financiar estudos sobre reprodução

“É um número baixo, que se apresenta tanto nos procedimentos realizados em animais quanto em humanos”, afirma. Para investigar os processos de gestação provenientes da fertilização in vitro, Ferraz utiliza células extraídas principalmente de bovinos, como touros e vacas. Durante o doutorado, pesquisou o papel do oviduto, tubo que liga o ovário ao útero, na fertilização bovina e no desenvolvimento embrionário inicial. Para tanto, utilizou células do oviduto em um chip de silicone com o objetivo de criar um processo inédito de fertilização fora do ambiente materno. “Construímos uma espécie de câmara com dois compartimentos divididos PERFIL por uma membrana porosa que possibilita estudar os fatores que Pesquisa embrionária influenciam a formação do embrião”, afirma. As conclusões do estudo Cientista paulista vence prêmio internacional e cria laboratório mostraram que os embriões na Alemanha para investigar processos reprodutivos produzidos no dispositivo apresentaram melhor qualidade do Especializada em biologia celular instituição alemã na qual queiram que os gerados totalmente in vitro, e reprodução assistida, há 10 anos desenvolver as pesquisas. Escolhi no laboratório, inclusive com Marcia de Almeida Monteiro Melo a Ludwig-Maximilians justamente expressão genética mais parecida Ferraz pesquisa formas de melhorar pela tradição que ela possui nos com os embriões produzidos in vivo. as taxas de gestação concebidas estudos sobre biologia molecular, No novo laboratório, inaugurado a partir da técnica de fertilização genética e reprodução”, explica. em dezembro de 2020, Ferraz in vitro. “Conhecemos bem os meios Nascida em Poá, na Região utilizará tecnologias de impressão de cultivo dos embriões em laboratório, Metropolitana de São Paulo, Ferraz em 3D para construir tecidos do mas ainda sabemos pouco sobre as concluiu a graduação em medicina oviduto utilizando células do órgão condições do ambiente materno que veterinária pela Universidade de com um tipo de hidrogel. A ideia irá provê-los”, afirma a pesquisadora, São Paulo (USP) em 2010. Seu interesse é simular as condições da matriz que acaba de inaugurar um laboratório pelo campo da reprodução animal extracelular, material responsável de pesquisas sobre reprodução na surgiu durante a iniciação científica, pela estruturação dos tecidos dos Universidade Ludwig-Maximilians tema que continuou a investigar órgãos em seres vivos. “Coletamos de Munique, na Alemanha. nos estudos de mestrado, concluído células de oviduto de vacas de Vencedora do prêmio Sofia em 2013 pela Universidade Autônoma matadouro que, impressas com Kovalevskaya, concedido desde 2002 de Barcelona, na Espanha, e de o hidrogel, reproduzem os tecidos do pela Fundação Alexander von doutorado, finalizado em 2018 pela órgão”, explica. “A partir desses Humboldt, sediada na cidade alemã Universidade de Utrecht, na Holanda. estudos poderemos entender com de Bonn, Ferraz recebeu € 1,65 milhão Apesar de utilizada há mais mais precisão o que ocorre dentro para financiamento e montagem do de quatro décadas, a técnica de do corpo da mãe, bem como a relação laboratório, além da contratação fertilização in vitro não apresenta altas que se dá entre os tecidos maternos de equipe. “Os ganhadores do prêmio taxas de êxito na gestação – entre 30% e do embrião em desenvolvimento”,

têm a liberdade de selecionar uma e 40% dos casos são bem-sucedidos. completa. n S.S.O. PESSOAL ARQUIVO

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