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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

MICHELI CAROLINI DE DEUS LIMA SCHWADE

“TUPI” DO RIO ANDIRÁ: O NO MÉDIO RIO AMAZONAS

CAMPINAS 2021

MICHELI CAROLINI DE DEUS LIMA SCHWADE

“TUPI” DO RIO ANDIRÁ: O NHEENGATU NO MÉDIO RIO AMAZONAS

Tese apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutora em Linguística.

Orientador: Prof. Dr. Wilmar da Rocha D’Angelis

Este exemplar corresponde à versão final da Tese defendida pela aluna Micheli Carolini de Deus Lima Schwade e orientada pelo Prof. Dr. Wilmar da Rocha D’Angelis.

CAMPINAS 2021

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem Leandro dos Santos Nascimento - CRB 8/8343

Lima Schwade, Micheli Carolini de Deus, 1985- L628t "Tupi" do Rio Andirá : o Nheengatu no Médio Rio Amazonas / Micheli Carolini de Deus Lima Schwade. – Campinas, SP : [s.n.], 2021.

Orientador: Wilmar da Rocha D'Angelis. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.

1. Línguas indígenas. 2. Línguas tupi. 3. Língua Nheengatu. 4. Médio Rio Amazonas. I. D'Angelis, Wilmar da Rocha, 1957-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: "Tupi" of Andirá River : the Nheengatu in the Middle Amazon River Palavras-chave em inglês: Indians - Languages Nheengatu language Middle Amazon River Área de concentração: Linguística Titulação: Doutora em Linguística Banca examinadora: Wilmar da Rocha D'Angelis [Orientador] José Ribamar Bessa Freire Raynice Geraldine Pereira da Silva Aline da Cruz Angel Humberto Corbera Mori Data de defesa: 11-02-2021 Programa de Pós-Graduação: Linguística

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a) - ORCID do autor: orcid.org/0000-0002-9852-8561 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/7233602248140798

BANCA EXAMINADORA:

Wilmar da Rocha D'Angelis

Angel Humberto Corbera Mori

Aline da Cruz

José Ribamar Bessa Freire

Raynice Geraldine Pereira da Silva

IEL/UNICAMP 2021

Ata da defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria de Pós Graduação do IEL.

Aos falantes de hoje e de outrora da Língua Nheengatu. Aos amigos Célia, Conceição, Agabino Pereira dos Santos, José Pereira Nogueira e Luiz Calixto.

AGRADECIMENTOS

Aos falantes de Nheengatu do Médio Rio Amazonas, em especial à Dona Célia, à Dona Conceição, ao Sr. Agabino Pereira dos Santos, ao Sr. José Pereira Nogueira e ao Sr. Luiz Calixto, que compartilharam conosco sua língua materna ao entenderem a importância desta pesquisa. Ao meu orientador, Prof. Dr. Wilmar da Rocha D’Angelis, por conduzir de forma tão suave e precisa minhas orientações durante a construção da tese. Durante essa caminhada, em diversos momento, tive dúvidas quanto ao andamento do trabalho e, muitas vezes, mesmo antes de compartilhar minhas angústias acadêmicas, você chegou com a bibliografia/ informação de que eu estava precisando. Tenho muito orgulho de ter sido sua aluna/orientanda. Aprendi com você a olhar a pesquisa com línguas indígenas sob outra perspectiva, com atenção aos anseios e necessidades da comunidade envolvida. Muito obrigada, também, pelo acolhimento em Campinas. Aos professores do IEL/UNICAMP, por todos os ensinamentos nesta jornada. Aos funcionários do IEL/UNICAMP, por toda a paciência, assistência, eficiência e dedicação em nos ajudar. Aos professores da banca de qualificação e defesa, Profa. Dra. Raynice Geraldine Pereira da Silva, Profa. Dra. Ivana Pereira Ivo, Prof. Dr. José Ribamar Bessa Freire, Prof. Dr. Angel Humberto Corbera Mori, Profa. Dra. Aline da Cruz, Prof. Dr. Mateus de Oliveira Coimbra, Profa. Dra. Carolina Aragon e Profa. Dra. Anna Christina Bentes, pela disponibilidade, leituras cuidadosas e contribuições valiosas. À Profa. Dra. Carolina María Rodríguez Zuccolillo, pela incrível orientação na qualificação de área. Aos meus pais, Milton Viana de Lima e Marlúcia de Deus Lima, por todo apoio e amor dedicados a mim, ao meu esposo e ao meu filho. Sem vocês nos apoiando, não teria conseguido concluir esta pesquisa. Ao meu amor, Tiago Maiká Müller Schwade, por todo apoio e dedicação, nesses 15 anos de companheirismo. Muito obrigada por todo incentivo durante essa caminhada da tese. Se algum dia duvidei da minha capacidade, você estava lá para dizer que eu era capaz e ia conseguir. À minha razão de viver, José Lima Schwade, meu filho, que chegou para alegrar nossas vidas bem no meio da construção da tese, que nos acompanhou em muitos campos de pesquisa, sempre cheio de curiosidade e alegria.

À minha irmã, Ídri Íli de Deus Lima, minha parceira, amiga, confidente. À minha madrinha/sogra, Doroti Alice Müller Schwade (In memoriam), e ao meu sogro, Egydio Schwade, por me inspirarem a conhecer e a lutar pela causa indígena. Às minhas cunhadas, Mayá, Andrea, Helem e Angel, e aos meus cunhados, Álvaro, Ajuri, Adu e Luiz, por me ajudarem nessa caminhada da tese. As conversas que tive com cada um de vocês, ao longo desse processo, davam-me força e ânimo para continuar. Aos meus sobrinhos, Beatriz, Cristina, Pedro, Caio, Guilherme, Aila, Alice e Amelie, por alegrarem nossas vidas e nos encherem de amor e carinho. À minha família Deus Lima Schwade, por todo apoio e torcida. À família Weber, Terezinha, Mateus e Ana, por todo apoio e torcida. Aos amigos Fernandinho, Tereza, Flávia (In memoriam), Fernanda e Francisca, por todo carinho dedicado à minha família, em especial ao José. À família Veiga D’Angelis, por serem nosso porto seguro em Campinas. À Jura e ao Wilmar, obrigada pela calorosa acolhida quando chegávamos aí. Ao Gil, à Marília e ao pequeno Gonçalo, pelos encontros animados e felizes. Agradeço especialmente ao José Amilcar (In memoriam) por nos acolher como irmão em Campinas, nos fazendo sentir que aquele também poderia ser nosso lugar. Muito obrigada, querido amigo Amilcar, pela doce amizade que construímos. À minha prima, Paula Ceziane Andrade Coutinho, por toda ajuda que nos deu, principalmente após o nascimento do José. À minha amiga/comadre, Vanessa de Sales Marruche, pelo incentivo, apoio, ajuda, e carinho em todos esses anos de amizade. Às amigas, Suzana e Laura, pelo incentivo e apoio, mesmo morando longe. Aos meus compadres Manoel e Angelina, por todo apoio e torcida. Obrigada, também, por compartilharem comigo os conhecimentos e histórias de Parintins. Agradeço, ainda, à minha afilhada Emanuelle e a Jelena, sua irmã. Aos amigos Renata, Júlio, Lorena, Fábio e Arthur, por serem nosso aconchego familiar em . Obrigada por compartilharem conosco as alegrias, as angústias e a saudade do nosso Amazonas. Aos amigos Mary, Sales e Raul, pela linda amizade construída aqui no Amazonas, que se estendeu, agora, até . Aos amigos Raynice, André, Luiza, Vinicius e Davi, pela amizade construída ao logo desses anos.

Às amigas do IEL/UNICAMP, por dividirem comigo as angústias e conquistas nesta etapa de vida, em especial à Fabiana, Yonara, Sâmela e Ivana. Aos professores do Curso de Letras Língua Inglesa e do Mestrado em Letras da UFAM, que me acompanham desde a graduação com ensinamentos valiosos e me incentivam, apoiam e ajudam nesta caminhada acadêmica. Aos colegas do IFAM, que me apoiaram e deram suporte durante toda a caminhada do Doutorado. Aos professores Dr. Frantomé Bezerra Pacheco (In memoriam) e Lucy Seki (In memoriam), que tanto contribuíram com minha formação acadêmica. Ao meu querido professor Giancarlo Stefani (In memoriam), por ter me apresentado o Nheengatu e ter ajudado esta professora de inglês a enxergar o estudo de uma língua em outra perspectiva. À FAPEAM, pela concessão da bolsa de estudos durante uma parte do curso, possibilitando a realização da pesquisa.

RESUMO

Esta tese é resultado de uma pesquisa cujo objetivo principal foi verificar a existência ou não de uma linha de continuidade histórica e de transmissão cultural linguística unindo o Nheengatu falado/registrado no Médio Rio Amazonas nos séculos XVIII e XIX, à variante falada atualmente na mesma região, ainda que por um pequeno grupo de falantes. A proposta é estudar essa variedade, ressaltando os aspectos culturais e linguísticos, a partir da comparação entre os registros escritos do Nheengatu nos séculos XVIII e XIX e o registro atual da língua. Além disso, busca-se favorecer a ativação da memória lexical dos atuais falantes do Nheengatu, a fim de contribuir com o processo de fortalecimento da língua. O corpus principal de investigação foi a obra Poranduba Amazonense, de João Barbosa Rodrigues (1890), e o Dicionário de Língua Geral Amazônica, publicado em 2019, mas que traz dados do século XVIII. Quatro narrativas e algumas cantigas, selecionadas a partir do Poranduba Amazonense, de Barbosa Rodrigues (1890), foram transcritas para o Nheengatu atual pelos falantes da língua na região: “O curupira e uma mulher”; “O Jurupari e as moças”; “A Mucura e a Ariramba”; “A origem das Plêiades”; “Cantigas do Çairé” e “Cantigas do Makuru”. A partir da sistematização dos dados coletados, analisaram-se alguns sinais de obsolescência, bem como marcas de persistências encontradas nas narrativas, coletadas junto aos falantes atuais da língua, como: a ocorrência da vogal central alta ‘i’ e a aspiração na flexão verbal na primeira pessoa do singular sujeito ‘ha-’; a identificação de léxicos característicos dessa variedade (o verbo iwasẽn e o termo Suassureçá, para designar uma fruta da região); similaridade entre o léxico do Nheengatu e da língua Sateré-Mawé, línguas indígenas que dividem o mesmo espaço geográfico na região.

Palavras-chave: Línguas indígenas. Tupi. Língua Nheengatu. Médio Rio Amazonas.

ABSTRACT

This thesis is the result of a research whose main objective was to verify the existence or not of a line of historical continuity and linguistic cultural transmission joining the Nheengatu spoken / registered in the Middle Amazon River in the 18th and 19th centuries, with the variant currently spoken in the same region, albeit by a small group of speakers. The proposal is to study this variety, highlighting the cultural and linguistic aspects, from the comparison between the written records of Nheengatu in the 18th and 19th centuries and the current registration of the language. In addition, it seeks to promote the activation of the lexical memory of current Nheengatu speakers, in order to contribute to the process of strengthening the language. The main corpus of investigation was the work Poranduba Amazonense, by João Barbosa Rodrigues (1890) and the Dicionário de Língua Geral Amazônica, published in 2019, but which contains data from the 18th century. Four narratives and songs, selected from Poranduba Amazonense, by Barbosa Rodrigues (1890), were transcribed to current Nheengatu by the language speakers in the region: “O curupira e uma mulher”; “O Jurupari e as moças”; “A Mucura e a Ariramba”; “A origem das Plêiades”; “Cantigas do Çairé”, and “Cantigas do Makuru”. From the systematization of the collected data, some signs of obsolescence were analyzed, as well as persistence marks found in the narratives, collected from the current speakers of the language, such as: the occurrence of the high central vowel 'i' and the aspiration in verbal flexion in the first person of the singular subject 'ha-'; the identification of lexicons characteristic of this variety (the verb iwasẽn and the term Suassureçá, to designate a fruit from the region); similarity between the Nheengatu lexicon and the Sateré-, indigenous languages that share the same geographical space in the region.

Keywords: Indigenous languages. Tupi. Nheengatu language. Middle Amazon River.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Referência à Gramática de Anchieta no dicionário de Meisterburg ...... 42 Figura 2- Referência ao Catecismo Guarani no dicionário de Meisterburg ...... 42 Figura 3 - Expansão das missões jesuíticas no Norte ...... 43 Figura 4 - Detalhe: Aldeia dos Tupinambaranas, Abacaxis e Andirás...... 43 Figura 5 - Os grupos indígenas “Guayapí” e “Coribaré” no Xingu ...... 45 Figura 6 - Verbetes 10 e 11 do Dicionário de Meisterburg ...... 46 Figura 7 - Verbetes 16, 20 e 21 do Dicionário de Meisterburg ...... 46 Figura 8 - Trecho do Poranduba Amazonense: Cantiga do Çairé...... 48 Figura 9- Trecho do Poranduba Amazonense: Cantiga do Mukuru ...... 49 Figura 10 - Trecho do Poranduba Amazonense: Cantiga do Mukuru ...... 49 Figura 11 - Trecho do Poranduba Amazonense: Cantiga do Mukuru...... 50 Figura 12 - Trecho do Poranduba Amazonense: Cantiga do Mukuru...... 50 Figura 13 - Trecho do Poranduba Amazonense: Cantiga do Mukuru...... 50 Figura 14 - Complexidade fluvial entre Parintins e Barreirinha ...... 65 Figura 15 - Escola Estadual Padre Seixas, em Barreirinha ...... 68 Figura 16 - Missão dos Tupinambaranas e Missão do Andirá ...... 69 Figura 17 - Orla atual de Parintins ...... 70 Figura 18 - Orla atual de Barreirinha ...... 71 Figura 19 - Porto do Pucú ...... 71 Figura 20 - Câmara Municipal de Barreirinha ...... 72 Figura 21 - Çairé ...... 85 Figura 22 - Makuru ...... 85 Figura 23 - Estabelecimento comercial no Amazonas com nome Murucututu...... 89 Figura 24 - Gogó-de-guariba ...... 141 Figura 25- Gogó-de-guariba ...... 141 Figura 26 - Semente da fruta Caramuri ...... 143

LISTA DE MAPAS

Mapa 1 - Região do Médio Rio Amazonas...... 55 Mapa 2 - Localização de Ponta Alegre ...... 58 Mapa 3 - Rios e Paranás identificados na passagem do Pe. José de Moraes pelo Paraná Mirim (1759) ...... 62 Mapa 4 - Rios e Cidades importantes na história do Nheengatu do Médio Rio Amazonas. ... 63 Mapa 5 - Complexidade Fluvial da região do Médio Rio Amazonas...... 64

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Léxico comparativo Sateré-Mawé/Nheengatu ...... 17 Quadro 2 - Comparação de propostas para o sistema consonantal do Nheengatu Alto Rio Negro (NARN), do Nheengatu do Médio Rio Amazonas (NMRA) e do Sateré-Mawé (SM)...... 18 Quadro 3 - Comparação de propostas para o sistema vocálico do Nheengatu Alto Rio Negro (NARN), do Nheengatu do Médio Rio Amazonas (NMRA) e do Sateré-Mawé (SM)...... 18 Quadro 4 – Família Tupi-Guarani...... 22 Quadro 5 - Cronologia de alguns registros escritos do Tupinambá do Maranhão ao Nheengatu ...... 34 Quadro 6 - Alguns registros escritos do Nheengatu na região do Médio Rio Amazonas ...... 49 Quadro 7 - Cantiga do Murukututu em São Gabriel da Cachoeira ...... 86 Quadro 8 - Classificação da vitalidade das línguas para a situação das línguas indígenas ... 123 Quadro 9 – Semelhanças e diferenças entre os registros do Nheengatu coletados na região do Médio Rio Amazonas ...... 125 Quadro 10 - Marcas linguísticas do local da coleta presentes na narrativa Micura Arirambá Irumo ...... 126 Quadro 11 - Marcas linguísticas do local da coleta presentes nas narrativas de Rodrigues (1890) ...... 126 Quadro 12 – Flexão verbal na primeira pessoa do singular sujeito no Nheengatu do Médio Rio Amazonas ...... 130 Quadro 13 - Flexão verbal na 1ª. pessoa do singular sujeito no Nheengatu presente na narrativa Cyiucé Yperungaua ...... 132 Quadro 14 – Posposição associativa irumo irũ ...... 134 Quadro 15 – Ocorrência da palavra muirá nas narrativas de Rodrigues (1890) ...... 136 Quadro 16 – Registro da palavra pau/madeira no Alto Rio Negro e no Médio Rio Amazonas ...... 137 Quadro 17 – Registros históricos da palavra Pau/Madeira ...... 138 Quadro 18- Léxico comparativo Nheengatu/Português ...... 145 Quadro 19 – Léxico comparativo Nheengatu/Português considerando os registros históricos da língua indígena ...... 146 Quadro 20- Oclusiva velar [k] em Coda Silábica no Nheengatu do Médio Rio Amazonas . 147

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...... 16 2 NHEENGATU: UMA HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA NA AMAZÔNIA ...... 19 OS REGISTROS ESCRITOS: RAÍZES DA EMERGÊNCIA DO NHEENGATU 29 2.2. O NHEENGATU NA REGIÃO DO MÉDIO RIO AMAZONAS ...... 37 2.3. O NHEENGATU NO MÉDIO RIO AMAZONAS A PARTIR DE FINS DO SÉCULO XIX ...... 47 3 OS FALANTES DO NHEENGATU NO MÉDIO RIO AMAZONAS ...... 53 A REGIÃO DO MÉDIO RIO AMAZONAS ...... 53 HÁ FALANTES DE NHEENGATU NO MÉDIO RIO AMAZONAS? ...... 53 “TUPI” DO RIO ANDIRÁ: O NHEENGATU DO MÉDIO RIO AMAZONAS ... 73 4 METODOLOGIA ...... 77 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ...... 79 4.1.1 O Corpus da Pesquisa ...... 79 4.1.1.1 O Poranduba Amazonense: kochiyma-uara porandub ...... 77 4.1.1.2 O Dicionário de Língua Geral Amazônica ...... 81 4.1.1.3 O Vocabulário da Língua Geral para o uso do Seminário Episcopal do Pará e a Doutrina Cristã, do Pe. Manoel Justiniano de Seixas ...... 81 SELEÇÃO DOS FALANTES ...... 83 TRABALHO DE CAMPO ...... 84 TRANSCRIÇÕES DE DADOS ...... 86 5 REGISTRO DO NHEENGATU ATUAL FALADO NO MÉDIO RIO AMAZONAS ...... 87 OS DADOS COLETADOS ...... 87 NARRATIVAS COLETADAS NA REGIÃO DO MÉDIO RIO AMAZONAS POR JOÃO BARBOSA RODRIGUES ([1890], 2017), COM A VERSÃO ATUAL DA LÍNGUA...... 87 5.2.1 ‘O Curupira e a Mulher’ ...... 87 5.2.2 O Jurupari e as Moças ...... 97 5.2.3 A Mucura e a Ariramba ...... 103 5.2.4 A Origem das Plêiades ...... 109 5.2.5 Cantigas ...... 118 5.2.5.1 Cantigas do Çairé ...... 116

5.2.5.2 Cantigas do Makuru ...... 117 6 MARCAS DO NHEENGATU NO MÉDIO RIO AMAZONAS: PERSISTÊNCIAS E OBSOLESCÊNCIAS ...... 123 MARCAS LINGUÍSTICAS DO LOCAL DA COLETA DAS NARRATIVAS POR BARBOSA RODRIGUES ([1890] 2017) ...... 124 FLEXÃO VERBAL NA PRIMEIRA PESSOA DO SINGULAR SUJEITO ...... 129 O VERBO IWASẼN ...... 132 POSPOSIÇÃO IRŨ ...... 134 MUIRÁ ...... 136 A FRUTA SUASSUREÇÁ ...... 139 O CONTATO DO NHEENGATU COM O SATERÉ-MAWÉ NO MÉDIO RIO AMAZONAS ...... 144 6.7.1 O Léxico Similar entre o Nheengatu e o Sateré-Mawé ...... 145 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 149 REFERÊNCIAS ...... 151 ANEXOS ...... 159 ANEXO 1 – Quadro dos diretores das aldeais de índios da província do Amazonas, inserido no relatório da Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas de 1858. .... 159 ANEXO 2 – Quadro dos diretores das aldeais de índios da província do Amazonas, inserido no relatório da Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas de 1864. .... 160 ANEXO 3 – Mapa da Amazônia organizado em 1870 pela Amazon Steam Navigation Company Limited e completado em 1893 por Luiz R. Cavalcanti de Alburquerque ... 161 ANEXO 4 – Narrativas coletadas na região do Médio Rio Amazonas por João Barbosa Rodrigues ([1890], 2017) ...... 162 ANEXO 5 – Compêndio de Doutrina Cristã do padre Manuel Justiniano de Seixas publicado por Francisco Bernardino de Souza (1875) ...... 181 ANEXO 6 – Narrativas coletadas por João Barbosa Rodrigues (1890) em regiões diferentes do Rio Amazonas ...... 183 ANEXO 7 – História da Mucura e do Acurau, coletada por Nunes Pereira (1954) ..... 194 APÊNDICE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ...... 197

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1 INTRODUÇÃO

A Língua Geral Amazônica (LGA) foi a língua da colonização portuguesa na Amazônia a partir do século XVII. Ela desenvolveu-se a partir do contato da língua falada pelos Tupinambá, no Maranhão e Grão Pará, com a língua portuguesa e outras línguas indígenas. Denominado “Brasiliano” pelos franciscanos, no século XVIII (EDELWEISS, 1969, p. 109), e ao mesmo tempo referido como “língua geral” na documentação colonial (como no Diretório Pombalino), na segunda metade do século XIX, passou a ser conhecido como Nheengatu, termo introduzido nessa literatura pelo General Couto de Magalhães. Rodrigues (1993, p. 97) afirma que essa língua “alcançou notável expansão geográfica no século XVIII, tendo sido língua dominante desde o Maranhão até o Alto Rio Amazonas e ao longo dos principais afluentes deste rio”. Até o século XIX, seu grande domínio foi no vale do Rio Amazonas e nos vales dos principais afluentes, sendo considerada língua franca nas missões jesuíticas e, posteriormente, nas vilas e cidades que se desenvolveram a partir das missões. Durante esses três séculos, a LGA foi fator determinante na construção das cidades na calha do rio Amazonas. Como resultado dessa política linguística tão intensa no período colonial, ainda hoje há falantes espalhados por toda a região. Atualmente, a abrangência está quase restrita ao Alto Rio Negro, no Estado do Amazonas, onde exibe grande vigor, falada majoritariamente pelos Baré, Baniwa do Baixo Rio Içana e Warekena do Rio Xié. Em São Gabriel da Cachoeira, município da região, o Nheengatu é língua cooficial1. Entretanto, este estudo abrange a região do Médio Rio Amazonas2, mais precisamente os municípios de Parintins e Barreirinha, no Estado do Amazonas. Além disso, inclui o Rio Andirá − que se encontra à margem direita do Paraná do Ramos, afluente do Rio Amazonas −, usado como referência para marcar a relação dos falantes do Nheengatu com o Rio Andirá. Os falantes em questão, no entanto, habitam a zona urbana (as sedes dos referidos municípios de Parintins e Barreirinha). Assim, não houve necessidade de coleta de dados no Rio Andirá. A pesquisa sobre o Nheengatu no Médio Rio Amazonas partiu da possibilidade de se estudar uma variedade desta língua em um lugar onde houvesse outras línguas indígenas pertencentes ao mesmo tronco linguístico do Nheengatu (o Tupi), tendo em vista que, na região do Alto Rio Negro, onde ela se mantém muito forte até hoje, não há registros de outras línguas indígenas do tronco Tupi. Nossa escolha pela variante do Médio Rio Amazonas teve como base

1 O município de São Gabriel da Cachoeira, no Estado do Amazonas, a partir de uma legislação municipal, cooficializou três línguas indígenas. Tukano, Nheengatu e Baniwa são línguas cooficias do município, junto com a língua portuguesa, de acordo com as Leis no. 145 de dezembro de 2002 e no. 210 de outubro de 2006. 2 Sobre o uso que fazemos aqui da designação “Médio Amazonas” ver seção 3.1., adiante.

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registros do Nheengatu na região e de como seu contato com o Sateré-Mawé (língua do povo Sateré-Mawé pertence também ao tronco tupi, família Mawé) se apresentava. Taylor (1985, p. 3), afirma que: É difícil saber exatamente quando a língua geral cessou de ser utilizada como língua de comunicação no Solimões e no baixo Amazonas. Há ainda pessoas de idade que a falam e compreendem, mas parece que não há mais ninguém que a fale como língua materna. A principal diferença entre o nheengatu que se falava nesta região e a variante que se expandiu na área do Rio Negro é de natureza fonológica. Da primeira variedade só ouvi gravações feitas pelo Professor Ademir Ramos em território maué com informantes de língua materna sateré-maué. Como observou muito apropriadamente o Professor Ramos, é possível que o sistema fonológico do tupi tenha sido conservado melhor num ambiente onde a língua étnica também é de origem tupi. (TAYLOR, 1985, p. 3, grifo nosso).

Silva (2010) também registra o contato do Nheengatu e o Sateré-Mawé na região do Médio Amazonas. Segundo ela, influências do Nheengatu, língua da família Tupi-Guarani, podem facilmente ser observadas no léxico do Sateré-Mawé. Acrescenta ainda que há, basicamente, duas situações de empréstimos do Nheengatu na língua Sateré-Mawé. A primeira refere-se a palavras que foram incorporadas ao léxico sem alterações, como em aputita ‘remo’, kuia ‘cuia’, jakare ‘jacaré’, kumana ‘feijão’, purure ‘enxada’. A autora afirma que nesse tipo de alteração, o falante não identifica o empréstimo. A segunda situação trata-se de palavras que sofreram alterações, normalmente fonológicas, ao serem incorporadas, conforme apresentado no Quadro 1:

Quadro 1 - Léxico comparativo Sateré-Mawé/Nheengatu. Sateré-Mawé Nheengatu Tradução [awati] [awatʃi] Milho [iʔi] [iʔi] Água [tapiʔia] [tapuja] Índio [muka] [mukawa] Espingarda [pisanã] [piʃana] Gato [tupana] [tupã] Deus / divindade [kapiwara] [kapivara] Capivara [kusiu] [kuʃiw] Macaco-cuxiú [marakaha] [marakaʒa] Gato maracajá [ka:su] [kaʒu] caju Fonte: Silva (2006, p. 62-63).

Em um trabalho preliminar (LIMA-SCHWADE, 2014), estudamos esta variedade do Nheengatu, porém a pesquisa limitou-se ao aspecto fonético-fonológico. Esta descrição inicial permitiu uma comparação tanto entre as línguas do tronco Tupi daquela região, o Nheengatu e o Sateré-Mawé, quanto entre as duas variantes do Nheengatu: a do Médio Rio Amazonas e a do Alto Rio Negro. Como resultados, encontramos alguns aspectos fonológicos diferentes da

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variedade do Alto Rio Negro, onde a língua é falada cotidianamente. No Médio Rio Amazonas, o inventário fonológico é de quinze fonemas consonantais e nove fonemas vocálicos, diferente do Alto Rio Negro, que apresenta doze fonemas consonantais e oito vocálicos. Alguns fonemas que permanecem no Nheengatu do Médio Rio Amazonas, e não do Alto Rio Negro, também ocorrem na língua Sateré-Mawé, como as aproximantes bilabial /w/ e a palatal /j/, além da vogal alta central /ɨ/ e da vogal média posterior /o/, levando-nos a considerar a relação entre essas duas línguas que ocorrem na mesma região geográfica, porém o Sateré-Mawé com mais frequência que o Nheengatu, atualmente. Os quadros a seguir permitem comparar as propostas de sistemas consonantais e vocálicos do Nheengatu do Alto Rio Negro e do Médio Rio Amazonas, bem como da língua Sateré-Mawé, apresentadas por Cruz (2011), Lima-Schwade (2014) e Silva (2010), respectivamente (Quadros 2 e 3).

Quadro 2 - Comparação de propostas para o sistema consonantal do Nheengatu Alto Rio Negro (NARN), do Nheengatu do Médio Rio Amazonas (NMRA) e do Sateré-Mawé (SM) p t k Ɂ b d g m n ɲ ᵑ ɾ s ʃ ʒ h w j NARN* √ √ √ √ √ √ √ √ √ √ √ √ NMRA** √ √ √ √ √ √ √ √ √ √ √ √ √ √ √ SM*** √ √ √ √ √ √ √ √ √ √ √ √ Fontes: * Cruz (2011); ** Lima-Schwade (2014); *** Silva (2010).

Quadro 3 - Comparação de propostas para o sistema vocálico do Nheengatu Alto Rio Negro (NARN), do Nheengatu do Médio Rio Amazonas (NMRA) e do Sateré-Mawé (SM)

i e i a u o ῖ ẽ ã ũ i: e: i: a: u: NARN* √ √ √ √ √ √ √ √ NMRA** √ √ √ √ √ √ √ √ √ SM*** √ √ √ √ √ √ √ √ √ √ √ √ √ √ √ Fontes: * Cruz (2011); ** Lima-Schwade (2014); *** Silva (2010).

A análise realizada sobre a variante do Nheengatu do Médio Rio Amazonas teve como objetivo apresentar os aspectos fonético-fonológicos relevantes. Porém, mesmo nesse domínio, sabemos que ainda restam questões a serem resolvidas. Logo, na presente pesquisa, buscamos realizar um estudo sobre a variedade do Nheengatu do Médio Rio Amazonas, em colaboração com um grupo de falantes, ressaltando os aspectos culturais e linguísticos a partir de registros escritos da língua no século XVIII e XIX, comparando-os com o registro atual da língua. Nesse sentido, o objetivo primário é identificar elementos linguísticos e culturais dos antigos falantes de Nheengatu na região do Médio Rio Amazonas no Dicionário de Língua Geral Amazônica, do século XVIII, e nas narrativas registradas por João Barbosa Rodrigues no

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século XIX, com o propósito de verificar se há uma linha de continuidade histórica e de transmissão cultural e linguística, unindo os falantes de Nheengatu do século XVIII aos atuais, na região do Médio Rio Amazonas. Além disso, buscamos, a partir da análise dos registros mencionados, favorecer a ativação da memória lexical dos atuais falantes do Nheengatu da região do Médio Rio Amazonas, a fim de contribuir com o processo de fortalecimento de sua língua. Observamos, ainda, a relação do Nheengatu com a língua Sateré-Mawé, considerando que o contato entre essas duas línguas indígenas do tronco tupi foi bastante intenso, para identificar os empréstimos linguísticos e as apropriações culturais entre elas e entre os falantes de uma e de outra. Por fim, visamos contribuir com o modo de fazer pesquisa etnográfica, no sentido de refletir sobre a forma de investigação linguística e antropológica, considerando os falantes da língua como parte interessada e participantes ativos de todo o processo investigativo. Atualmente, há somente alguns falantes/lembrantes do Nheengatu como língua materna no Médio Rio Amazonas, mas também são falantes de Sateré-Mawé e do Português. Todos possuem idade acima de quarenta anos. Dessa forma, foi necessário registrar esta variedade linguística, marcando, também, os traços históricos e culturais que a acompanham desde o século XVIII até os dias atuais. Para este trabalho, algumas indagações foram levantadas. I. Qual a história da Língua Geral Amazônica na região do Médio Rio Amazonas? Como os falantes desta língua se estabeleceram na região? Como foi o contato desses falantes com os outros povos indígenas? II. Que elementos linguísticos e culturais estão presentes nos documentos que registram a língua nos séculos XVIII e XIX? III. Comparando as variedades da língua Nheengatu do século XVIII e XIX com a atual, que elementos linguísticos ainda permanecem na variedade atual e quais tornaram- se obsoletos? IV. A partir da coleta de dados, é possível identificar possíveis empréstimos do Nheengatu para o Sateré-Mawé e vice-versa? A partir desses questionamentos, temos a seguinte hipótese: Há uma linha de continuidade histórica, cultural e linguística dos falantes de Língua Geral Amazônica, dos séculos XVIII e XIX com os falantes de Nheengatu atuais na região do Médio Rio Amazonas. Além disso, é importante observar, nos dados coletados, a relação do Nheengatu com a língua Sateré-Mawé, considerando o grau de intensidade do contato entre essas duas línguas.

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A título de sistematização, organizamos a tese em sete capítulos. O primeiro é a introdução, onde contextualizamos o estudo, além de citarmos a motivação em realizar esta pesquisa. O segundo trata da história da língua Nheengatu na Região Amazônica. O terceiro contextualiza etnograficamente os falantes da língua no Médio Rio Amazonas. O quarto capítulo apresenta a metodologia utilizada no trabalho, bem como as etapas da pesquisa, detalhando o corpus utilizado, os critérios para a seleção dos falantes e os procedimentos realizados no trabalho de campo. Em seguida, temos efetivamente os dados coletados, com o registro das narrativas em Nheengatu contemporâneo, transcrito pelos falantes atuais da língua na Região Amazônica, tomando como base os textos coletados por Rodrigues (1890). O penúltimo capítulo traz a análise de algumas marcas de persistências e obsolescências da língua, observadas a partir da comparação entre o registro de Rodrigues (1890) e a língua atual. Além disso, fizemos algumas observações acerca do contato entre o Nheengatu falado no Médio Rio Amazonas e a língua Sateré-Mawé. Por fim, finalizamos a tese com as considerações finais compostas por um breve registro das conclusões.

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2 NHEENGATU: UMA HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA NA AMAZÔNIA

O Nheengatu, ou Língua Geral Amazônica (LGA), é uma língua da família Tupi- Guarani. Rodrigues (1984/1985), ao estudar as relações internas das aproximadamente 40 línguas dessa família, divide-as em oito subconjuntos, formados a partir do compartilhamento de propriedades específicas (basicamente fonológicas) que podem estabelecer uma referência ao Proto-Tupi-Guarani (PTG). O Nheengatu está inserido no terceiro subconjunto, ao lado do Tupinambá, da Língua Geral Paulista, do Kokáma, da Kokamíya (Cocamilla) e do Omágua. Seguindo a mesma classificação e agrupamento das línguas da família Tupi-Guarani propostos por Rodrigues (1984/1985), Dietrich (2010) organiza um quadro dessas línguas, seguindo os critérios de fonologia histórica, considerando os aspectos geográficos, comportamentos morfossintáticos e tipológicos (Quadro 4). As línguas agrupadas por baixo dos números I a VIII e das referências geográficas esquematizadas caracterizam-se por critérios da fonologia histórica específica de cada grupo e pelos critérios geográficos. Nos números I a III, estes critérios coincidem com os comportamentos morfossintáticos comuns a cada grupo. As línguas agrupadas por baixo dos números IV a VIII superiores formam grupos tipológicos de traços morfossintáticos próprios (números IV a VI inferiores). (DIETRICH, 2010, p. 25).

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Quadro 4 – Família Tupi-Guarani

I II III IV V VI VII VIII MERIDIONAL BOLIVIANO COSTA - TOCANTINS MT- ALTO AMAZÔNIA BRASILEIRA MARANHÃO -MEARIM RONDÔNIA XINGU SETENTRIO NAL Guarani Antigo Guarayo Tupinambá Asurini do Tocantins Parintintin Wayãpi Avá/Nhandeva Guarasug‘wã Tupiniquim Kamayurá Wayampipuku Caiowá Potiguara Tapirapé Émérillon Guarani Siriono Zo‘é Paraguaio Yuki Nheengatu Mbyá IV VI Xetá Aché (Cocama) Parakanã Anambé Apiaká Guajá Guarani do (Omágua) Suruí/Mudjetíre Amanayé Amondawa Chaco/ Tembé Araweté Kawahib/ Ka‘apor Chiriguano Asurini Xingu Uru-eu-wau- Tapiete wau

II III Avá-Canoeiro Kayabi V I Fonte: Dietrich (2010, p. 25).

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No quadro 4, observamos que o Nheengatu, ou LGA, se encontra no mesmo subconjunto do Tupinambá. Sendo a LGA um desdobramento que ocorre a partir do contato entre tupinambá e português, buscamos, através da história dessas línguas indígenas, estabelecer qual a relação entre elas. A título de sistematização, esta pesquisa utilizou os seguintes termos para situar o processo histórico que estabeleceu a língua Nheengatu:

• Tupinambá: Língua dos índios Tupinambá. Segundo Rodrigues (2002), ela era falada no século XVI por uma longa extensão da costa brasileira. • Tupi: Edelweiss (1969, p. 70) cita o termo tupi como um “conceito neutro, alheio a peculiaridades tribais, a fatôres exclusivos, que delimitam, entre si, outras denominações locais”. Segundo ele, “a presença do étimo tupi nos gentílicos compostos (Tupinambá, Tupiniquim, Tupinaé) foi um dos elos éticos mais palpáveis entre as tribos costeiras” (EDELWEISS, 1947; 1969). • Língua Geral Brasílica (Língua Brasílica): Nome firmado no início do século XVII, a partir dos trabalhos realizados pelos padres, na maioria jesuítas, que estudavam a língua Tupinambá, sistematizando-a para usar como instrumento de catequização. No mesmo período, o Tupinambá falado no Maranhão foi descrito pelo Pe. Luís Figueira, na obra intitulada Arte da Língua Brasílica, publicada em 1621. • Língua Geral: “língua popular, geral a índios missionados e aculturados e a não- índios” (RODRIGUES, 2002, p. 101). Possui duas variantes. A primeira é a Língua Geral Paulista, língua dos bandeirantes que, já no século XVI, realizavam a preação de indígenas, ao saírem de São Paulo para explorar Minas Gerais, Goiás, e o Sul do Brasil. Deu lugar à hegemonia do Português apenas a partir de meados do século XVIII. A segunda é a Língua Geral Amazônica, disseminada, inicialmente no Maranhão e no Pará. Rodrigues (2002, p. 102) afirma que a LGA, o “Tupinambá e essa Língua Geral em que se transformou, é que foi a língua da ocupação portuguesa da Amazônia no século XVII e XVIII.” O autor declara, ainda, que a LGA foi o veículo não só da catequese, mas também da ação social e política portuguesa e luso-brasileira até o século XIX. • Nheengatu (“língua boa”: de nheen “língua” e katu: “boa”): é a Língua Geral Amazônica de hoje, segundo Rodrigues (2002).3

3 Ressaltamos que a denominação Nheengatu só aparece em publicações a partir da segunda metade do século XIX.

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Para conhecer melhor o processo histórico do Nheengatu, apresentamos um breve histórico do processo de colonização da Amazônia. Por muito tempo, veiculou-se que a Língua Geral Brasílica fosse uma língua “inventada” pelos jesuítas para colonizar o Brasil. Entretanto, ao estudarmos sua história, percebemos que não somente tem sua base linguística em uma língua natural, como também se modificou à medida que entrou em contato com a língua portuguesa e outras línguas indígenas. Fica evidente que o Nheengatu, falado hoje na Amazônia, não é a mesma língua falada na época em que os portugueses chegaram ao Brasil. Isso se deve ao fato de que, durante o processo de colonização da Amazônia, diversas outras línguas europeias e indígenas entraram em contato, contribuindo com mudanças e empréstimos, que culminaram no surgimento do Nheengatu. Estima-se que, na primeira etapa do processo de colonização no Brasil, havia em torno de 1200 línguas indígenas (RODRIGUES, 1993; D’ANGELIS, 2019). Essa diversidade linguística era um obstáculo para as grandes empresas colonizadoras europeias que chegavam no país. Nas práticas político-administrativas coloniais, a língua era fator determinante, usada como instrumento de controle e doutrinação dos indígenas. Barros (2003a, p. 85) chama de política da língua geral a tendência das colonizações portuguesa e hispânica utilizarem uma única língua indígena como língua de contato colonial, em vez da introdução do português ou do uso da língua local. “Estas línguas gerais eram línguas autóctones escolhidas pela administração e pela igreja como veículo supra-regional de contato entre as diversas populações coloniais” (ALTMAN, 2003, p. 58), ou seja, as línguas gerais “não se desenvolveram como pidgins nem como crioulos, mas como continuações de línguas indígenas que passaram a ser faladas por mestiços de homens europeus e mulheres índias” (RODRIGUES, 1993 p. 96). Portanto, seria uma língua de contato. Devido ao fato de o Tupi estar presente em grande parte do litoral brasileiro, com apenas algumas variações, tanto os franceses quanto os portugueses procuraram aprender só essa língua, pois era “altamente funcional para os que pretendiam extrair o pau-brasil e estabelecer- se ao longo da costa” (RODRIGUES, 1993, p. 86). Assim, considerando as políticas administrativas da colônia, o Tupi foi escolhido como a língua geral no Brasil no século XVI. Em 1595, a Arte de Gramática da Língua mais usada na costa do Brasil, do Pe. José de Anchieta foi publicada. Chegando ao Brasil em 1553, Anchieta logo aprendeu o Tupi. Dois anos após a chegada, ele já dominava a gramática da língua de forma que poderia colocá-la “em Arte”. Por ordem do Pe. Manuel da Nóbrega, Anchieta escreveu-a rapidamente para que

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pudesse levá-la para Salvador, com a finalidade de ajudar os “irmãos de casa” a aprenderem a língua. Assim, cópias manuscritas dessa obra já circulavam nas casas jesuíticas desde a década de 1560 (CARDOSO, 1990). Assim, o Tupi passou a ser difundido em larga escala, devido ao interesse dos colonizadores em expandir seus territórios. Com o passar do tempo, passou a ser denominado de Língua Geral Brasílica, considerando que já não era somente a língua dos Tupinambás, mas também dos que participavam da colonização do Brasil. Rodrigues (2002) afirma que: como grande parte dos colonos vinham para o Brasil sem mulheres, passaram a viver com mulheres indígenas, com a consequência de que a Língua Brasílica (isto é, o Tupinambá) veio a ser a língua materna de seus filhos. [...] Foi nas áreas mais afastadas do centro administrativo da Colônia (que era a Bahia) que se intensificou e generalizou o uso da Língua Brasílica como língua comum entre portugueses e seus descendentes – predominantemente mestiços – e escravos (inclusive africanos), os índios Tupinambá e os outros índios incorporados às missões, as fazendas e as tropas, em resumo, toda a população (RODRIGUES, 2002, p. 101).

Com tantas línguas presentes nesse contato (português, línguas indígenas, africanas), pode-se concluir que a Língua Geral Brasílica, naquele momento, já apresentava diferenças da sua língua de origem, o Tupi. O século XVII, por sua vez, marcou uma nova etapa da língua – a expansão pela Amazônia. Depois da ocupação de São Vicente e São Paulo no século XVI, a Amazônia começou a ser explorada pela Coroa Portuguesa, iniciando assim sua expansão pelo Maranhão, após a conquista de São Luís em 16154, e pelo Pará, com a construção do forte do Presépio em 1616, a partir do qual se desenvolveu a cidade de Belém (UGARTE, 2009; CORRÊA, 1987). Com a chegada da colonização portuguesa na Amazônia, a política jesuítica da Língua Geral, estabelecida ao longo da costa do Estado do Brasil no século XVI, instituiu o tupi como língua geral no Estado do Maranhão e Grão-Pará (BARROS, 2003a). Por volta de 1626, o Pe. Luís Figueira abriu a primeira escola do Maranhão, destinada a ensinar letras aos filhos de portugueses (LEITE, 1943b; EDELWEISS, 1969). Entretanto, dois fatores levaram-na a ser fechada em 1649. O primeiro foi o naufrágio que vitimou 173 pessoas vindas de para o Maranhão, em 1643, dentre elas, o Pe. Luís Figueira, que trazia consigo o alvará de 25 de julho de 1638, documento oficial que entregava aos religiosos da Companhia de a administração das aldeias dos índios. O segundo foi a morte dos padres Francisco Pires, Manuel Moniz e Gaspar Fernandes pelos indígenas, em 1649, no rio Itapicuru (LEITE, 1943b). Edelweiss (1969, p. 27), ao relatar a reabertura da escola em 1653, cita um trecho da carta do

4 São Luís foi fundada pelos franceses em 1612 e conquistada pelos portugueses em 1615. (CORRÊA, 1987).

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padre Antônio Vieira5 em que exalta o estímulo dos mais de 70 alunos que “assistem à lição de catecismo, tanto em tupí como em português, por saberem eles ambas as línguas”. O padre Antônio Vieira, a propósito, teve papel fundamental na questão indigenista durante o início da estruturação da ordem jesuítica na Amazônia. Segundo Leite (1943b), ele foi o primeiro legislador das Aldeias e Missões a organizar o regimento interno delas. O Regulamento das Aldeias Indígenas do Maranhão e Grão-Pará ou Regulamento da “Visita” do padre Antônio Vieira foi organizado e escrito entre 1658 e 1661, composto de três partes: observância religiosa, cura espiritual das almas e administração temporal dos índios. Ancorados nesses três temas principais, verifica-se uma diversidade de assuntos tratados no documento, como as questões religiosas, espiritual, catequética, escolar, social, econômica, sacramental, hospitalar, linguística e civil. Conforme Barros (2003a), a partir desse documento, o Pe. Antônio Vieira determinou as regras do cotidiano nas missões jesuíticas – que se mantiveram vigentes até o século XVIII – em relação aos missionários e aos índios, assim como desenhou a política indigenista na região, ao estabelecer mecanismo de partilha da mão-de-obra indígena entre os três setores coloniais (missão, administração e colonos). Sobre a categorização das Aldeias, Serafim Leite (1943b, p. 97) relata a distinção em três espécies: Aldeias do Colégio, cuja finalidade era o complemento da “dotação régia aos mesmos Colégios para sustento dos Missionários”, Aldeias de El-Rei ou da Repartição, destinadas à realização das atividades de caráter público e para serviço dos moradores, e, por fim, as Aldeias, ou Missões, “núcleos apenas de catequese, pela fixação dos Índios nessas remotas paragens”. As aldeias situadas em locais próximos das cidades e dos fortes foram um dos principais locais responsáveis pela expansão do tupi na Amazônia, devido à política de descimentos. As expedições de descimentos tinham como objetivo ‘descer’ compulsoriamente a população indígena da sua aldeia de origem para as missões6, a fim de dividi-la como mão-de-obra indígena entre os colonos, os missionários e o serviço da Coroa Portuguesa (BARROS, 2003a; FREIRE, 2004). O tupi, dessa forma, era a língua de comunicação entre os povos indígenas de diferentes etnias e culturas, agrupados naquelas aldeias-missões, os missionários e os colonos. De acordo com Freire (2004), o ‘Regimento das Missões’, assinado em 21 de dezembro de 1686, permitiu que os missionários intensificassem os descimentos, pois essa legislação da

5 Cartas; Edição Lúcio d’Azevedo, v. 1, pp. 351-352 e 405. In: Edelweiss (1969, p. 27). 6 As missões situavam-se, basicamente, ao longo do Rio Amazonas, e em alguns de seus afluentes, mas sempre mais próximo à desembocadura. As populações indígenas, para viver e trabalhar, eram trazidas da parte alta ou das nascentes dos rios que corriam para o Amazonas. “Descer”, portanto, era trazer uma população “rio abaixo”.

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Coroa portuguesa entregava às ordens religiosas7 o “governo temporal e espiritual” dos indígenas. Sobre o oitavo artigo desse documento, Leite (1943b) reforça a responsabilidade dos missionários em aumentar o número de indígenas nas aldeias, para que pudessem ser utilizados na segurança do Estado, nos serviços dos moradores e nas entradas aos sertões. Retornando ao cenário de diversidade linguística nas aldeais-missões, duas práticas comuns da política da Língua Geral, já utilizadas na colonização da costa brasileira, caracterizaram o uso do tupi durante o processo de colonização da Amazônia: a tupinização dos grupos tapuias (não tupi) e a estandardização do tupi jesuítico (BARROS, 2003a). Essa diferenciação entre tupi e tapuia (termo tupi com sentido de “inimigo”) era usada na política indigenista colonial. Com os descimentos, grupos indígenas não tupis, considerados bárbaros, aprendiam a Língua Geral, ao serem incorporados nas missões. As línguas tapuias, também conhecidas como “travadas”, eram um empecilho para a colonização (BARROS, 2003a). Além disso, outra questão linguística presente nas aldeias-missões era o uso simultâneo de duas variedades da Língua Geral, uma escrita e outra oral. O tupi das gramáticas e dos catecismos era a língua literária, escrita, utilizada no contexto religioso, durante as doutrinas. Já a variedade oral era utilizada no cotidiano da aldeia, e essa forma coloquial refletia as mudanças ocorridas na língua durante o processo de colonização, de modo que foi se distanciando da forma escrita, ao ponto da maioria da população das missões não entender o escrito nos catecismos e gramáticas. Assim, a tupinização dos tapuias e a estandardização do tupi jesuítico faziam parte da política indigenista colonial na Amazônia. Durante o século XVII, a Língua Geral expandiu-se, amplamente, por toda a região, principalmente próximo aos grandes rios amazônicos, Amazonas e Solimões, bem como seus afluentes, permanecendo assim até meados do século XVIII, quando o cenário linguístico voltado para a Língua Geral Amazônica (LGA) começou a se modificar. No início do século XVIII, a política de Portugal em relação à Língua Geral Amazônica era institucionalizada como norma de uso (FREIRE, 2004), ou seja, a língua oficial das missões, sendo o ensino da língua portuguesa recomendado apenas para quem já dominava a LGA. Entretanto, após divergências entre os jesuítas e a administração colonial portuguesa acerca dos critérios de repartição dos indígenas, as primeiras medidas quanto à restrição da Língua Geral Amazônica começaram a surgir. Como consequência, o Marquês de Pombal8, na carta régia de

7 Ao entregar o governo espiritual, político e temporal das aldeias, o Rei cita os padres da Companhia de Jesus e os Padres de Santo Antônio como responsáveis pela administração (LEITE, 1943b). 8 Sebastião José de Carvalho e Melo, conhecido como Marquês de Pombal, foi Secretário de Estado dos Negócios Interiores do Reino (primeiro-ministro) do rei Dom José I, de Portugal, entre 1755 e 1777.

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1757, proibiu o uso da LGA nas aldeias de repartição e nas povoações, bem como instituiu que os missionários e moradores ensinassem o português aos indígenas (FREIRE, 2004). Entretanto, em meados do século XVIII, Portugal disputava com outros países europeus o território Amazônico. Nesse sentido, os portugueses, que naquela época estavam presentes na região por meio das missões, precisavam provar que faziam uso daquelas terras. Freire (2004) afirma que, ao disputar as fronteiras móveis da Amazônia com Espanha, Portugal precisava ocupar efetivamente o território. No que concerne às línguas faladas na região, Portugal dominava uma terra que falava, prioritariamente, a Língua Geral Amazônica, e não a Língua Portuguesa, o que “passou a ser um empecilho para a política territorial portuguesa” (CRUZ, 2011, p. 9). Em 3 de maio de 1757, o governador do Grão Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça, assinou o “Diretório dos Índios”, que reforçou essa proibição, exigindo o ensino e o uso exclusivo do português9. Segundo Freire (2004, p. 123), o documento foi o instrumento legal responsável por novas diretrizes político-administrativas tomadas pelo Governo, como “a formulação da política de línguas na região, cujo eixo principal era oficializar a língua portuguesa e transformá-la na língua de comunicação interna de todos os moradores, tanto portugueses como mestiços e índios”. Por orientação do Marquês de Pombal, Dom José I expulsou os jesuítas de todos os territórios portugueses (incluída a Amazônia portuguesa), em 1759, pois eram os maiores incentivadores do uso da Língua Geral Amazônica, sendo acusados de impedir o uso generalizado da língua portuguesa (CRUZ, 2011). Entretanto, a LGA já havia sido enraizada na cultura amazônica e, apesar de sua proibição, continuou a ser falada pela população da região, ficando mais evidente longe dos centros administrativos. Contudo, apesar da resistência, esta situação acelerou o declínio desta língua. A partir do século XIX, a Língua Geral Amazônica começou a perder drasticamente sua hegemonia na região. Além das novas diretrizes político-administrativas feitas pelo governo, alguns outros fatores contribuíram para o declínio da Língua Geral Amazônica: a Cabanagem, a Guerra do Paraguai e o Ciclo da Borracha (FREIRE, 2004). A Cabanagem (1835-1840) foi uma revolução de indígenas e mestiços na Amazônia, contra as políticas administrativas do período regencial brasileiro, que favoreciam aos

9 Segundo Mendonça (2005, p. 447), o documento “Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão” foi publicado na íntegra, em Lisboa, com data de 3 de maio de 1757, na oficina de Miguel Rodrigues, impressor do Eminentíssimo Senhor Cardeal Patriarca; ano de MDCCLVIII (1758), seguido de um alvará de confirmação datado de 17 de agosto de 1758.

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tradicionais negociantes portugueses e ingleses residentes na Província. Esse movimento, idealizado pela população local, culminou na morte de milhares de pessoas. Os cabanos, como eram conhecidos os revoltosos, eram quase todos falantes da Língua Geral Amazônica, muitos deles monolíngues. Segundo Freire (2004), A Cabanagem talvez tenha sido a última oportunidade histórica de sobrevivência de uma sociedade tapuia falante de LGA. A derrota dos cabanos marca o início do processo de declínio de uma língua que durante dois séculos e meio se expandiu por todo o vale amazônico e, a partir da revolta, começou a perder falantes e funções (FREIRE, 2004, p. 242).

Moreira Neto, em seu livro Índios da Amazônia: de maioria a minoria (1750-1850), publicado em 1988, já relatava a participação dos tapuios na cabanagem: A participação maciça dos tapuios na Cabanagem, determinada em certa medida pelas dificuldades de relacionamento e de integração com a sociedade regional, tornou o nome tapuio um sinônimo frequente para cabano, como se pode ver nos relatórios do presidente Manoel Jorge Rodrigues e em outros documentos do período. Pode-se entender, assim, porque os tapuios [...] transformaram-se no paradigma do revoltoso bárbaro e irrecuperável, o malvado da linguagem oficial. (MOREIRA NETO, 1988, p. 66).

Depois, a Guerra do Paraguai (1864-1870) ajudou a exterminar ainda mais os falantes de LGA. Foi um conflito armado entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (composta por Brasil, e Uruguai) em disputa pelos territórios de fronteira entre as nações em formação e pelo controle da navegação na bacia do rio da Prata. De acordo com Freire (2004, p. 242), “foram enviados um total de 2.070 homens, dos quais 746 eram ‘voluntários’10 dos municípios do baixo Amazonas e 1.324 da província do Amazonas. Mais de 1.250 falantes de língua geral – homens, adultos, muitos deles monolíngues – ficaram sepultados em terras paraguaias”. Por conta desse abrupto declínio do número de falantes, devido à Cabanagem e à Guerra do Paraguai, a Língua Geral Amazônica perdeu mais força e espaço. Por fim, entre 1840 até 1912, a região Amazônica viveu um dos períodos econômicos mais intensos da sua história: o ciclo da borracha, que teve um valor significativo para o declínio da LGA. Nesse período, devido à necessidade de mão-de-obra para trabalhar na produção de borracha, houve uma migração significativa para a Amazônia, principalmente as regiões mais afastadas dos centros urbanos. Corrêa (1987, p. 48) afirma que, após a grande seca nordestina de 1877-1880, muitos nordestinos chegaram à Região Amazônica, atraídos pela crescente demanda por borracha na indústria. Segundo o autor, essa migração ajudou a aumentar a população regional, mais precisamente nos altos vales dos rios Purus e Juruá. Havia, por exemplo, uma linha de navegação, subsidiada pela Província do Amazonas, ligando o território

10 Eram, na verdade, índios capturados e levados à força pelo governo brasileiro.

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amazonense ao porto cearense de Camocim. Majoritariamente, os migrantes que chegaram à Amazônia eram falantes exclusivamente do português. Em contrapartida ao declínio total da LGA, “surge um movimento romântico nativista que pretendia registrar a língua e as histórias tradicionais transmitidas em língua geral” (CRUZ, 2011, p. 652). Freire (2004) destaca cinco estudiosos que coletaram e transcreveram manifestações de literatura oral (entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX), denominada por alguns autores como etnoliteratura. São eles: Charles Frederick Hartt, José Vieira Couto de Magalhães, João Barbosa Rodrigues, Conde Ermano Stradelli e Antônio Brandão de Amorim. É no livro O Selvagem (1876), de Couto de Magalhães, que o termo Nheengatu aparece pela primeira vez para representar a língua oriunda da LGA. Para Freire (2004), a literatura oral registrada por esses estudiosos revela tanto a permanência vigorosa de narrativas indígenas em língua geral, que continuavam circulando oralmente no século XIX em algumas áreas da Região Amazônica, quanto uma situação de bilinguismo, língua geral- português, bastante generalizada, mas ignorada por historiadores da região. Segundo levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, havia um total de 7.237 falantes da Língua Geral Amazônica no Brasil. Deste total, 3.771 moravam em terra indígena e 3.466 residiam fora (IBGE, 2010). Sua abrangência encontra-se no Alto Rio Negro, onde é falado, majoritariamente pelos Baré, Baniwa do Baixo Rio Içana e pelos Warekena do Rio Xié. Estudando o Nheengatu numa perspectiva histórica, percebemos que, atualmente, é falado basicamente na região do Rio Negro no Amazonas, em duas circunstâncias. A primeira é como segunda língua de povos que mantêm sua língua ancestral, mas se comunicam com outros povos indígenas através do Nheengatu. A segunda circunstância é a ocorrência do Nheengatu como primeira língua, por povos que perderam a língua de origem e o adquiriram em substituição à língua materna, tendo em vista que foi aprendido, por eles, como segunda língua durante a colonização da Amazônia. Freire (2008) explica o caso da etnia Baré: ela não tem nada a ver com os grupos tupis, é um grupo de fala Aruak, que durante décadas viveu uma situação de bilinguismo (língua baré x língua geral), mas acabou deixando de falar a língua baré, ficou monolíngue em língua geral e hoje é bilíngue (língua geral x português). Então, hoje, a LGA ou nheengatu é uma língua de identidade dos barés. Eles dizem: “nós somos índios porque falamos uma língua que é a língua geral”. (FREIRE, 2008, p. 119-150)

Dessa forma, é importante desenvolver novos estudos linguísticos que possam auxiliar os povos falantes da língua que buscam, no Nheengatu, uma forma de firmar sua identidade cultural e étnica.

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A partir deste breve relato histórico, podemos perceber como o Nheengatu está intrinsecamente ligado à história da colonização da Amazônia. Segundo Borges (1996), o Nheengatu continua resistindo como símbolo de uma identidade amazônica. Assim, estudar toda sua mudança enquanto língua, dentro de uma perspectiva historiográfica, faz refletir também sobre sua importância na cultura dos povos da região Amazônica.

OS REGISTROS ESCRITOS: RAÍZES DA EMERGÊNCIA DO NHEENGATU

Ao analisarmos os documentos que registram a Língua Tupi nos séculos XVI e XVII, verificamos que seus estudiosos, na maioria, eram os padres jesuítas, que vinham para o Brasil com a finalidade de catequizar os indígenas. O Pe. José de Anchieta, autor da Arte da Gramática da língua mais usada na costa do Brasil (impressa em 1595) e o Pe. Luís Figueira, autor da Arte da gramática da Língua Brasílica, de 1621, ambos jesuítas, descreveram a língua falada na costa brasileira. Esse material foi usado por religiosos que chegavam ao Brasil e precisavam aprendê-la. Ainda no século XVII, outras publicações que também tratavam da Língua Geral foram escritas pelo Pe. Antônio de Araújo e Pe. João Filippe Bettendorff. O primeiro escreveu o Catecismo na Língua Brasílica, de 1618, republicado meio século após sua morte, como Catecismo Brasilico da doutrina christãa, com o cerimonial dos Sacramentos, & mais actos Parochiaes. Composto Por Padres Doutos da Companhia de Jesus, Aperfeiçoado, E dado a luz pelo Padre Antônio de Araújo da Mesma Companhia. Emendado nesta segunda impressão Pelo P. Bertholameu de Leam da mesma Companhia, em 1686. O Pe. Bettendorff escreveu o Compêndio da Doutrina Christaã na Língua Portuguesa e Brasílica, em 1687. Além disso, uma versão posterior da obra, intitulada Doutrina Christaã em lingua geral dos Indios do Estado do Brasil e Maranhão, composta pelo P. Phelippe Bettendorff traduzida em lingoa irregular, e vulgar uzada nestes tempos11, foi traduzida para Língua Geral do seu tempo, considerando que a língua usada por Bettendorff, na Doutrina, em 1687, já era bastante incompreensível. Observa-se que essas obras são de cunho religioso, descrevem os rituais católicos por meio da Língua Geral. O interessante desse material é que os autores, já no século XVII, registraram as modificações da Língua Geral. Perceberam a diglossia12 que havia com o

11 Códice n. 1.089. Manuscrito da Universidade de Coimbra, escrito em tupi, parcialmente traduzido ao latim, com apresentação inicial em português. A Biblioteca Nacional possui cópia microfilmada (MONSERRAT, 2003). 12 De acordo com Ferguson (1959), citado por Calvet (2002, p. 60), diglossia é “uma situação linguística relativamente estável, na qual, além das formas dialetais de uma língua (que podem incluir um padrão ou padrões regionais), existe uma variedade superposta muito divergente, altamente codificada (quase sempre

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material descrito pelos padres Anchieta e Figueira e a língua falada diariamente quando escreveram seus catecismos. No século XVIII, ainda eram os religiosos que escrevem na Língua Geral Amazônica. Há registro quanto à estrutura da língua: Gramática da Língua Geral do Brasil com hum dicionário dos vocabulos mais uzuaes para a intelligencia da dita lingua e Dicionário da Língua Geral do Brasil que se falla em todas as villas, lugares e aldeas deste vastissimo Estado13. Para Edelweiss (1969), há dúvidas quanto ao período exato em que foram escritos bem como a autenticidade do conteúdo, podendo ser apenas cópias reeditadas de materiais já impressos anteriormente. Segundo Edelweiss (1969, p. 146), “o autor [da gramática] parece ter trabalhado sempre à vista dos velhos compêndios clássicos”. Sobre o dicionário, descreve que: o resultado dessa verificação no códice 81, confrontado com a sua data, a mais recente dentre as consignadas em manuscritos brasilianos, impõe a seguinte alternativa à conclusão: ou o códice 81 é cópia remaniada de resenha mais antiga, ou o seu autor o confeccionou em íntima convivência com índios tupis aculturados, de linguagem ainda mais próxima ao tupi do que a população mestiça em geral. (EDELWEISS, 1969 p. 155)

Outra obra que descreve a estrutura da Língua Geral Amazônica no século XVIII é Specimen Linguae Brasilicae Vulgaris, do Pe. Anselmo Eckart. De acordo com Barros (2003b), a obra foi impressa no século XVIII, porém sem ser por iniciativa da Companhia de Jesus, mas em 1778 por um editor protestante que apoiou os jesuítas alemães expulsos por Marquês de Pombal. Ao observarmos o título do material, verificamos que Eckart (1778) aponta as mudanças ocorridas na Língua Geral Amazônica, denominando essa “nova” língua como “vulgar”, fazendo uma relação com a situação vivida pelo Latim. Temos, ainda, a obra do Pe. João Daniel, que escreveu Tesouro Descoberto do Máximo Rio Amazonas, baseado em suas experiências na Amazônia no século XVIII. O livro registra, com detalhes, como funcionava a vida na região, comentando tanto a vida dos indígenas que ali habitavam, como também a dos portugueses que chegavam para a colonização, sendo uma importante referência tanto para aquele século quanto ao estudo do Nheengatu. Diferente dos livros anteriores, O Tesouro Descoberto do Máximo Rio Amazonas traz um relato sobre a Língua Geral e não uma descrição estrutural. Ele também retrata a diglossia. Porém, como os primeiros, e verdadeiros tupinambás já quase de todo se acabaram, e as missões se foram restabelecendo com outras mui diversas nações e línguas, se foi corrompendo de tal sorte a língua geral tupinambá, que hoje são raros os que a falam com a sua nativa pureza, e vigor; de sorte que já os mesmos índios não percebem o catecismo, nem os que estudam a arte se entendem com os índios especialmente no gramaticalmente mais complexa), veiculando um conjunto de literatura escrita vasta e respeitada (...), que é estudada sobretudo na educação formal, utilizada no escrito ou num oral formal, mas não é utilizada na conversação comum em nenhuma parte da comunidade”. 13 Códices n. 69 e 81, respectivamente. Manuscritos da Universidade de Coimbra.

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Amazonas, com muitas vezes têm experimentado, e confessado os mesmos missionários, e índios, de [tal] sorte está viciada e corrupta que parece outra língua diversa; mas a qual é a que se usa em todas as missões portuguesas do Amazonas, e a que aprendem as novas nações que vão saindo dos matos, e a que estudam os missionários brancos que tratam com índios não como regras, e preceitos da arte, mas pelo uso e trato dos mesmos índios (DANIEL, 2004, p. 334).

Os séculos seguintes, do XIX até os dias atuais, representam uma nova perspectiva nos estudos do Nheengatu. O foco dos estudiosos era descrever não apenas como instrumento de catequização, mas sim como língua de comunicação entre os povos indígenas. Assim, encontramos registros feitos, por exemplo, por um geólogo, como Charles Hartt, que escreveu Notas sobre o Tupi geral ou Tupi moderno do Amazonas (1938); um militar, advogado de formação, como o General Couto de Magalhães, com seu livro O Selvagem (1876); um funcionário público da Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas, como Luiz Símpson ([1876] 1955) com Gramática da Língua Brasileira (Brasílica, Tupi ou Nheengatu). A obra de Hartt analisa não somente a estrutura da língua tupi, que ele chama de moderna, mas também a relação com o tupi falado anteriormente e descrito pelos jesuítas que estiveram no Brasil na época da colonização. No título, faz a relação entre Tupi antigo e moderno, indicando o estudo das mudanças quanto ao uso da língua. É no livro de Couto de Magalhães (1876), O Selvagem, que surge, pela primeira vez, o termo Nheengatu. Tupi era o nome de uma tribo que, ao tempo da descoberta, denominava grande parte da costa. Se dissermos a qualquer índio civilizado do Amazonas: “fale em língua tupi”, - ele não entende o que lhe queremos dizer. Para que ele entenda, que queremos que ele se expresse na sua própria língua, mister é dizer-lhe: Renhehen nhehengatú rupí, lit: fale língua boa, isto é: fale pela língua boa. Estes fatos fizeram-me adotar os vocábulos Ava nhehen e nhehengatú para exprimir, o primeiro, a língua guarani; o segundo, a língua tupi. (MAGALHÃES, 1876, p. 38-39).

O livro é composto por um curso da língua geral, segundo Ollendorf (1835)14, ou Curso de Língua Tupi Viva ou Nheengatu, que traz um resumo das regras gramaticais, uma parte prática dividida em lições, exercícios e algumas lendas tupi, para servirem de método de educação intelectual ou elemento linguístico. A segunda parte, intitulada de Origens, Costumes e Região Selvagem, é uma reprodução da memória do autor, de um texto publicado pelo Instituto Histórico, intitulado de Regiões e Raças Selvagens, para dar subsídios aos que quisessem continuar os estudos sobre esta língua. Já Luiz Símpson, membro da Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas, tinha interesse em estudar a língua que escutava quando criança na Vila da Barra do Rio Negro

14 Método de ensino de línguas, desenvolvido por Heinrich Gottfried Ollendorff, bastante difundido e popular na época em que Couto de Magalhães escreveu O Selvagem, mas cujo princípio de repetição de frases sob a forma de perguntas e respostas nunca tinha sido aplicado ao Tupi (LIMA, 2009, p. 80). Magalhães (1876, p. VII) reconhece, na seção direcionada ao leitor, que é pioneiro ao usar este método na língua geral do Brasil.

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(cidade de Manaus atualmente) e, por conta do convívio, aprendeu a falar. Segundo Freire (2014, p. 98), Símpson “não só falava fluentemente a língua geral, como recebeu educação formal sobre ela durante os estudos regulares realizados no seminário de Belém, em cujo currículo foi disciplina obrigatória no período de 1851 a 1863”. Além disso, participou como como voluntário na guerra do Paraguai (1864-1870). Durante algum tempo, Símpson colecionou vocábulos que sabia, como as palavras que aprendeu em seus estudos, para, em 1876, montar um opúsculo gramatical, uma espécie de livro sobre esta língua postulada em forma de gramática. Além da gramática, o autor escreveu um dicionário, inédito, com mais de dez mil vocábulos. De acordo com Freire (2014, p. 98) a gramática teve seis edições e “a primeira delas, dedicada a D. Pedro I, foi impressa em Manaus, com o título de Gramática da língua brazílica geral fallada pelos aborígenes das províncias do Pará e Amazonas”. Nessa edição, não aparecem os termos tupi e Nheengatu, observadas nas capas de edições posteriores. Quanto ao dicionário inédito, Freire (2014, p. 98), afirma que “os originais foram oferecidos, em 1925, à Academia Brasileira de Letras, que não publicou, apesar do parecer favorável da comissão de lexicografia”. Para Símpson, a Língua Brasílica Geral, como era chamada, não era uma língua inventada pelos jesuítas, nem uma língua artificial do Tupi, era o Tupi legítimo repleto de vocábulos, fácil de compreensão e digna de ser falada por todos os brasileiros. Diversas obras tratam da Língua Geral Amazônica, enfatizando as mudanças que sofreu ao longo do tempo. Os estudiosos mais recentes pesquisam a Língua, não somente diacronicamente, mas também sincronicamente. Gerald Taylor (1985), Aryon Dall’lgna Rodrigues (1959; 2002), Luiz Carlos Borges (1991), Navarro (2011) são alguns pesquisadores que estudaram o Nheengatu. Um dos estudos mais recentes e significativos é o registro moderno do Nheengatu na região do Alto Rio Negro, intitulado de Fonologia e Gramática do Nheengatú: a língua mais falada pelos povos Baré, Warekena e Baniwa, apresentada como tese de doutorado de Aline da Cruz, em 2011. Ela propõe uma descrição dessa língua, denominada por como a variedade moderna da Língua Geral Amazônica. Os capítulos são divididos em três grandes partes, contemplando a Fonologia, a Morfologia e a Sintaxe. Essa descrição proposta por Cruz (2011) acrescenta, de forma científica, informações relevantes para os estudos do Nheengatu. A título de compilação cronológica, apresentamos um quadro sintético de algumas obras desde a Língua Tupinambá do Maranhão até o surgimento do Nheengatu (Quadro 5).

Quadro 5 - Cronologia de alguns registros escritos do Tupinambá do Maranhão ao Nheengatu Período Obra Autor Data

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Séc. XVII - Catecismo na Língua Brasílica. 1ª. impressão em 1618 - Catecismo Brasilico da doutrina christãa, com o cerimonial dos Sacramentos, & mais actos Parochiaes. Composto Por Padres Doutos da Companhia de Jesus, Pe. Antônio de Araújo Aperfeiçoado, E dado a luz pelo Padre Antônio de Araújo da Mesma Companhia. 1686 Emendado nesta segunda impressão Pelo Bertholameu de Leam da mesma Companhia. - Arte da Gramática da Língua Brasílica. 1ª. impressão Pe. Luís Figueira em 1621. - Compêndio da Doutrina Christã na 1ª. edição em Língua Portuguesa e Brasílica 1687.

- Doutrina Cristã em Língua geral dos Pe. João Filippe Índios do Estado do Brasil e Maranhão, Bettendorff composta pelo P. Filippe Bettendorf Não-datado. traduzida em Língua irregular e vulgar usada nestes tempos. Séc. XVIII - Dicionário Português e Brasiliano 1ª. edição Anônimo 1795. - Gramática da Língua Geral do Brasil Sem data Anônimo exata. - Tesouro Descoberto no máximo Rio Escreveu Amazonas depois de ser expulso do Pe. João Daniel Brasil e preso em Portugal entre 1757- 1776. - Specimen Linguae Brasilicae Escrito nesse período, mas Pe. Anselmo Eckart publicado em 1890. - Dicionário de Língua Geral Amazônica Escrito em 1756, mas Pe. Anton Meisterburg publicado em 2019. Séc. XIX - Notas sobre o Tupi geral ou Tupi 1ª. impressão Charles Hartt - Geólogo moderno do Amazonas em 1872. - O Selvagem Publicado em Couto de Magalhães 1876. - Gramática da Língua Brasileira Luiz Símpson - Publicado em (Brasílica, Tupi ou Nheengatu) Funcionário Público 1876. - Poranduba Amazonense 1890

João Barbosa Rodrigues - Vocabulário indígena comparado para mostrar adulteração da língua 1892 - Vocabulário da Língua Geral para o uso 1853 do Seminário Episcopal do Pará Pe. Manoel Justiniano de Seixas 1875 - Doutrina Cristã

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Séc. XX - - Gramática da Língua Tupi Publicada em dias atuais 1910 em Pe. Constantin Tastevin francês e 1923 em português. -Vocabulário da Língua Geral Português– 1928 Nheengatu e Nheengatu–Português Ermanno Stradelli

- Phonologie der Tupinambá-Sprache. 1959

Aryon Dall’lgna - Línguas Brasileiras: para o conhecimento Rodrigues das Línguas Indígenas 2002

- Apontamentos sobre o Nheengatu falado 1985 no Rio Negro Gerald Taylor

- A Língua Geral Amazônica: aspectos de 1991 sua fonêmica Luiz Carlos Borges

- Nheengatu: uma língua amazônica 1996 - Nheengatu (LGA), its history, and the 1990/1993 effects of language contact Denny Moore, Nádia Pires e Sidney Facundes

- Curso de Língua Geral (Nheengatu ou 1999; 2011 Tupi Moderno): A língua das origens da Eduardo de Almeida civilização Amazônica. Navarro - Fonologia e Gramática do Nheengatu: a 2011 língua falada pelos povos Baré, Warekena Aline Cruz e Baniwa. - Yupinima Rupiaita Yenga Yengatu Estudantes da 2012 Kuiriwara Licenciatura Indígena Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável - Polo Nheengatu/UFAM. - YEGATÚ RESEWÁ: Yega, Yubuesa Idijina Estudantes da 2012 Licenciatura Indígena Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável - Polo Nheengatu/UFAM. Descrição Fonético-Fonológica do 2014 Nheengatu falado no Médio Rio Amazonas Micheli Carolini de Deus Lima Schwade

Nheẽgatu asuí kuxiimawara kuausawa Organizadores: Cauã 2020 Tapajowara: yãdé yayũbué yepewasu = Nóbrega da Cruz, Iára Nheengatu e Notório Saber do Tapajós: Elizabeth Sousa nós aprendemos juntos Ferreira; Coautores: Alexandro Paranatinga dos Santos et al. Fonte: Elaborado pela autora (2021).

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2.2. O NHEENGATU NA REGIÃO DO MÉDIO RIO AMAZONAS

Ao nos depararmos com a história da Língua Geral Amazônia, a partir do século XVII, percebemos como foi intensa sua presença na Região Amazônica. Considerando os registros de missionários, militares e naturalistas dos povos que falavam a LGA, reunimos fontes bibliográficas que tratam desta língua na região do Médio Rio Amazonas, ressaltando seus possíveis15 falantes, área onde moravam, nível de domínio da língua, período do registro, autor do registro, registro de nomes de pessoas que tiveram contato com os falantes da língua, dentre outras informações. O primeiro registro de que se tem notícia sobre falantes da Língua Geral na região do Rio Amazonas se deve a um jesuíta espanhol, na primeira metade do século XVII. Trata-se do registro do padre Cristóbal de Acuña, da Companhia de Jesus, que escreveu o livro Novo descobrimento do Rio Amazonas, publicado, pela primeira vez, no ano de 1641, em Madri. Ele acompanhou a viagem de retorno da expedição portuguesa comandada por Pedro Teixeira16. Acuña teve a função de observador e relator da a geografia do rio, enumerando as possíveis riquezas existentes na região e descrevendo as populações locais (ACUÑA, [1641] 1994). No seu livro, o padre jesuíta relata a existência de uma ilha de sessenta léguas de comprimento e cem de circunferência, a qual ele chama de “ilha grande dos Tupinambá” (ACUÑA, [1641] 1994, p.171), atualmente a Ilha Tupinambarana, no Estado do Amazonas. Segundo o autor, essa ilha era povoada pelos valentes Tupinambá que viviam na costa do Brasil e, com a chegada dos portugueses em , fugiram para o interior do país. Ele afirma que aqueles indígenas falavam a Língua Geral do Brasil, que também era corrente, naquela

15 Consideramos como “possíveis falantes” (ou talvez se pudesse dizer: muito prováveis falantes) de Língua Geral Amazônica, os índios pertencentes aos Aldeamentos daquela região, dirigidos pela Companhia de Jesus: a Missão dos Tupinambaranas e a Missão do Andirá. 16 No século XVII, aconteceram algumas expedições ao longo do Rio Amazonas, com a finalidade de explorar a região, bem como ocupar as fronteiras. Portugal e Espanha, considerando o acordo que estabeleceu a União Ibérica, protegiam o “Novo Mundo” dos holandeses, ingleses e franceses. Entretanto, disputavam, entre si, os limites territoriais de ambas as Coroas delimitados no Tratado de Tordesilhas. Ugarte (2009) destaca algumas dessas expedições lusitanas: a viagem de Francisco Caldeira Castelo Branco (1616) e a de Pedro Teixeira (1637). A expedição comandada por Pedro Teixeira, militar de longa vivência na região do Baixo Amazonas e que havia se destacado na luta contra ingleses, holandeses e franceses, foi planejada pelo governador do Estado do Maranhão, Jácome Raimundo de Noronha em 1637, após a chegada de dois religiosos espanhóis e alguns soldados em Belém, sobreviventes de uma expedição massacrada pelos nativos, no Alto Amazonas. Ele, munido das informações sobre o percurso da viagem e da relativa facilidade da navegação pelo Rio Amazonas, decidiu planejar uma expedição lusitana para se adiantar a invasão de espanhóis em território português. A viagem de Pedro Teixeira iniciou no Pará em outubro de 1637 e chegou a Quito no final de 1638. Ao chegarem em território espanhol, foram recebidos com festa e desconfiança, pois Pedro Teixeira, ao ser interrogado pela administração espanhola, informou que havia sido incumbido de tomar posse de toda a região pertencente a Coroa Portuguesa na viagem de volta. Por isso, os dirigentes castelhanos decidiram enviar, na expedição de volta de Pedro Teixeira ao Maranhão, dois observadores espanhóis, os padres jesuítas Andrés Artieda e Cristóbal de Acuña (UGARTE, 2009).

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época, entre quase todos os nativos conquistados no Maranhão e Pará. É importante ressaltar que os Tupinambás, ao fugirem do litoral para o interior, trouxeram a sua própria língua. Ainda segundo os relatos de Acuña, o número de índios que saíram de Pernambuco era tão grande, que ficava difícil sustentar todos juntos, por isso, espalharam-se ao longo do caminho, deixando falantes da língua por toda extensão do caminho que percorreram até chegar à ilha tupinambarana Tomaram sempre à mão esquerda as faldas da cordilheira que, vindo desde o estreito de Magalhães, rodeia toda a América. E desbravando quantos rios correm dela para o oceano, chegaram alguns a encontrar-se com os espanhóis do , que habitavam as cabeceiras do rio da Madeira. Com eles estiveram algum tempo, e porque um espanhol açoitou um deles que havia matado uma vaca sua, aproveitando-se da facilidade do rio, lançaram-se todos em suas correntezas, vindo a dar na ilha que atualmente habitam (ACUÑA, 1994, p. 173).

Meio século depois, no fim do século XVII, outro registro histórico de possíveis falantes da Língua Geral Amazônica, na região do Médio Rio Amazonas, foi produzido pelo padre jesuíta João Felipe Bettendorff. Segundo Serafim Leite (2008), Bettendorff foi um dos padres mais notáveis das Missões do Maranhão e Pará, exercendo funções de Reitor, Superior de Missões, linguista e cronista. Em Crônicas dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão, escrita em meados da década de 169017, Bettendorff faz um relato das atividades dos missionários, narrando os acontecimentos diários, testemunhando fatos, relembrando acontecimentos do início da colonização até 1698 (SALLES, 1990)18. A narrativa é dividida em dez livros, cada um com seus respectivos capítulos. Nesta obra, encontramos registros de possíveis falantes da Língua Geral na região do Médio Rio Amazonas em três momentos. No primeiro livro da Crônica de Bettendorff, intitulado “Da origem do nome, descobrimento do Estado e Capitania do Maranhão”, identificamos, no capítulo 12, um relato sobre lugares onde a Companhia de Jesus tinha residência. Umas cinco jornadas pouco mais ou menos pelo rio das Amazonas acima estão os Tupinambaranas. Estes estavam em uma ponta alta sobre o rio, onde em 1669, quando lá os foram visitar em minha companhia o Padre Pedro Luiz Glui e o Irmão Domingos da Costa; mas pela grande praga dos mosquitos mudaram-se uma jornada pouco mais pela terra dentro sobre um bello lago ou rio que vindo parte dos Andirazes, parte do rio das Amazonas, vai dar pelos Curiatós; aqui fizeram sua aldêa que o padre Antonio da Fonseca, primeiro Missionario de accento, mudou mais para riba, e acrescentou com indios novos chamados Pataruanas, fazendo sua residencia com egreja e casas de Santo Ignacio (BETTENDORFF [1699], 1990, p. 36).

17 Há divergências quanto ao período de escrita desta obra de Bettendorff. Entretanto, sabe-se que ele morreu sem terminá-la, em 1698, e se dedicou a escrevê-la, pelo menos, dois anos antes da sua morte (ARENZ, 2010). 18 In: Crônica da Missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão [nota prévia] 2. ed., 1990.

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Nesse trecho descrito pelo padre Bettendorff, dois povos indígenas foram mencionados na região do Médio Rio Amazonas: Tupinambaranas e Pataruanas. Sobre os Tupinambaranas, Serafim Leite (1943a) afirma que eram os índios Tupinambás fugidos da costa do Brasil que se estabeleceram em uma grande ilha na região do Médio Rio Amazonas, considerando os escritos do Padre Cristóbal de Acuña. Quanto aos Pataruanas, Antônio Porro (2007) explica que, em 1698, eram uma nação originária da região ao sul da ilha Tupinambarana, entre o Rio Maués e o Baixo Tapajós e, depois de 1670, foram descidos para a aldeia jesuítica de Tupinambarana. Observamos ainda no trecho de Bettendorff que a Aldeia dos Tupinambaranas mudou algumas vezes de lugar. Em 1669, estava em uma ponta Alta do Rio Amazonas, passando para mais dentro da região, perto de um lago na confluência do Rio dos Andirazes e do Rio Amazonas. Neste lugar, estabeleceram aldeia, tendo o padre Antônio Fonseca como primeiro missionário. Em seguida, o mesmo padre realocou novamente a Aldeia Tupinambarana mais para cima do rio, agregando os Pataruanas ao novo local, onde construíram residência e igreja. Ainda no capítulo doze do primeiro livro da Crônica de Bettendorff ([1699] 1990), há uma referência sobre o principal indígena dos Tupinambaranas: João Cumarú, descrito como um índio afamado nas guerras e, por esta razão, tornou-se Capitão-Mor. Segundo Bettendorff ([1699] 1990), ele faleceu, já com idade avançada, após quase todo seu povo morrer. É no terceiro livro da crônica que o autor relata o início das atividades missionárias de doutrinação e evangelização na aldeia dos Tupinambaranas, a partir dos trabalhos dos padres Manoel de Souza e Manoel Pires, em 1660 (BETTENDORFF, [1699] 1990). No oitavo livro, capítulo sete, o padre Bettendorff descreve, de forma mais detalhada, o terceiro lugar onde a Aldeia dos Tupinambaranas foi estabelecida. No trecho, descreve o uso da Língua Geral por Sebastião Vieira, homem branco, ajudante do Padre Antônio da Fonseca, que morava no Aldeamento. Depois de umas quatro jornadas para cinco dos Urubuzes, cheguei aos Tupinambaranas, residencia de Santo Ignacio, em a qual assistia já há anos o Padre Antonio da Fonseca, sem outro campanheiro que um homem branco por nome Sebastião Vieira, mui versado em lingua geral e de grande préstimo, o qual morava á parte com seus escravozinhos, tratando de sua vida como outros que andam por esses sertões, ainda que não com tão boa consciencia como elle. Tinha o Padre Antonio da Fanseca, com a ajuda deste seu companheiro, feito uma egreja nova e casas novas, em que morava, e estas mui airozas e commodas. (BETTENDORFF [1699], 1990, p. 498).

Na mesma crônica, no segundo livro, capítulo dois, Bettendorff ([1699], 1990) cita o trecho descrito pelo padre Cristóbal de Acuña sobre a ilha Tupinambarana. O padre João Felippe Bettendorff, em sua Crônica, cita os aldeamentos na região do Médio Rio Amazonas diversas vezes. Entretanto, essas passagens serão mais bem detalhadas no capítulo sobre a

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região estudada. No presente capítulo, buscamos mais informações sobre a Língua Geral Amazônica e seus possíveis falantes, além de fontes bibliográficas que tragam registro linguístico da língua na região do Médio Rio Amazonas. Nesse sentido, não encontramos no século XVII nenhum registro linguístico stricto sensu na região, somente registros históricos que ajudaram a entender o uso da Língua Geral Amazônica na área da pesquisa. Como no século XVIII, eram os religiosos que continuavam escrevendo na Língua Geral Amazônica, além dos dicionários e gramáticas, foi produzido o manuscrito Dicionário da Língua Geral Amazônica, em 1756, porém a publicação do material só ocorreu em 2019. Conforme os pesquisadores que trabalharam no projeto de publicação desse Dicionário19, em 2012, Jean-Claude Muller, ex-diretor da Biblioteca Nacional de Luxemburgo, encontrou na Biblioteca Municipal de Trier (Alemanha) um manuscrito de 65 fólios, isto é, 130 páginas de duas colunas, contendo um vocabulário Português – Língua Geral Amazônica (LGA) e um pequeno dicionário LGA – Português, organizado segundo o início da última sílaba da palavra ou expressão, como um dicionário de rimas (MULLER et al, 2019). Inicialmente, o dicionário foi considerado anônimo e não tinha título, porém havia um registro de data na capa interior da parte de trás do dicionário. Em letras grandes, estava escrito “Meirinho” e o ano de 1756. Segundo os pesquisadores, essa anotação seria a confirmação do meirinho de que, no momento de confiscar o manuscrito depois da proibição da ordem dos jesuítas em 1755, registrou o documento naquele ano. Posteriormente, evidenciaram também que o material correspondia à Língua Geral Amazônica do século XVIII. Na análise dos pesquisadores, “o documento linguístico mantinha a continuidade da política linguística jesuítica na região em um período em que se dava início ao cumprimento das diretrizes pombalinas de evangelização em português” (MULLER et al., 2019, p. 17). Além disso, observaram que o manuscrito tinha estreita relação com dois outros dicionários da mesma língua, região e época: Prosodia da língua e o Vocabulário da Língua Brasil (MULLER et al., 2019). O primeiro é um dicionário Português-Língua Geral, de autor anônimo, sem data e possui como referência geográfica a Missão de Arucará, no rio Xingu, estando depositado na Academia de Ciência de Lisboa, n. 569. O segundo também é um dicionário Português-Língua Geral, com referência geográfica na missão de Abacaxis, no rio Madeira. Primeiramente, esse Vocabulário da Língua Brasil foi considerado anônimo, entretanto Papavero e Porro (2013 apud MULLER et al., 2019) concluíram que a autoria do

19 Jean-Claude Muller, Wolf Dietrich, Ruth Monserrat, Cândida Barros, Karl-Heinz Arenz, Gabriel Prudente, Nelson Papavero.

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segundo dicionário é do padre Anselm Eckart, ao confrontarem a letra do manuscrito com um autógrafo. Quanto à autoria do material encontrado em Trier, os pesquisadores verificaram que o manuscrito foi escrito por uma única mão, com exceção de raras intervenções tardias por outras mãos, que concluíram ser de Anselm Eckart. As demais intervenções tardias são da mesma mão do autor do dicionário. Após uma análise dos três materiais citados e de um estudo sobre a história das atividades dos jesuítas alemães na Amazônia na primeira metade do século XVIII, os pesquisadores concluíram que o autor era um jesuíta alemão, Anton Meisterburg, que trabalhava em diferentes missões jesuíticas no Brasil, no baixo Xingu e no Rio Madeira. A identificação também só foi possível ao confrontarem a letra do manuscrito com um documento autógrafo, escrito na carta de profissão, disponibilizada pelo Arquivo Central dos Jesuítas, em Roma (2013, apud MULLER et al., 2019). Anton Meisterburg fez parte do grupo de padres jesuítas da Europa Central que chegaram à Região Amazônica no século XVIII. Eles pertenciam à Assistência Germânica da Companhia de Jesus, colégios jesuíticos daquela região europeia. Meisterburg chegou à Amazônia em 1750 e permaneceu até 1757. Durante esse período, atuou nas Missões Trocano, Abacaxis, Arucará e Santa Cruz (MULLER et al., 2019). Na introdução do Dicionário, publicado em 2019, há diversos artigos escritos e publicados pelos pesquisadores para contextualizar o documento. Entretanto, originalmente, não há prefácio do dicionário, nem textos que esclareçam melhor o modo como foi elaborado. Mesmo indicando ausência de referências históricas explícitas, geralmente presentes nos prefácios dos manuscritos coloniais, ainda é possível identificar as filiações assumidas pelo autor no decorrer dos verbetes, quando registra citações de autores e obras que utilizou na construção do material. Muller et al. (2019) afirmam que o autor do Dicionário de Língua Geral Amazônica menciona cinco obras (gramáticas e catecismos) utilizadas na construção do material: a Arte da gramática da língua mais usada na costa do Brasil, de 1595, do padre José de Anchieta; o Catecismo da Língua Guarani, de 1640, do padre Antonio Ruiz de Montoya; o Catecismo Brasílico da doutrina cristã, de 1686, do padre Antonio de Araújo e padre Bartolomeu de Leão; o Compêndio da doutrina cristã na língua Portuguesa e Brasílica, de 1678 [1687] do padre João Felipe Bettendorff; e a Arte de Gramática da Língua Brasílica, de 1687 (2ª edição), do padre Luís Figueira. Segundo os pesquisadores, as obras são mencionadas pelo nome do autor (o caso das obras de Anchieta e Bettendorff) ou pelo título (caso das gramáticas de Luís Figueira e Ruiz de

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Montoya). Além disso, a menção ocorre normalmente ao final dos verbetes, com cor de tinta e tamanho diferentes, indicando que foram incluídas em um segundo momento. Dois exemplos das citações por Meinsterburg constam na página 120/121 (fólio 7 verso – 2ª coluna) e na página 122/123 (fólio 8 recto – 1ª coluna). O primeiro faz referência ao Catecismo Guarani de Ruiz de Montoya, e o segundo, à Gramática de Anchieta, respectivamente (Figuras 1 e 2):

Figura 1 - Referência à Gramática de Anchieta no dicionário de Meisterburg.

Borrar, ou risgar [riscar]. açair. delere. oblitúrare. amogoeb ita m̅ [em] Guarani Fonte: Muller et al. (2019).

Figura 2- Referência ao Catecismo Guarani no dicionário de Meisterburg.

Boubas. piã: (rasura ilegível) Anchieta: miã. miãbora: o qʒ tem boubas Fonte: Muller et al. (2019).

Muller et al. (2019) sugerem que, em um segundo momento da construção do dicionário, Anton Meisterburg fez um trabalho de comparação textual, ao relacionar os verbetes do manuscrito com o conteúdo do material da língua, disponibilizado nas gramáticas e catecismo. Na análise dos pesquisadores do dicionário, o missionário-autor precisava aprender duas variedades do tupi: a língua cristalizada nas obras impressas, utilizadas para as tentativas de conversão dos indígenas, e a língua corrente, usada cotidianamente nos aldeamentos. Assim, os pesquisadores sugerem que essa foi a razão para o autor do dicionário fazer menção a outras obras em alguns verbetes do material. Além disso, neste dicionário, há duas evidências importantes que precisam ser analisadas quanto ao registro da Língua Geral Amazônica na região do Médio Rio Amazonas, lugar da nossa pesquisa. A primeira é a área de atuação do padre jesuíta Anton Meisterburg, que atuou na Missão Abacaxis, no rio Madeira. Mesmo não sendo um aldeamento no Rio Amazonas, é uma missão com uma relação muito próxima com a Missão dos Tupinambaranas. Ao observarmos o mapa organizado, segundo os documentos analisados por Serafim Leite (1943a), é possível notar a proximidade entre as Aldeias Tupinambarana, Abacaxis e Andirás (Figuras 3 e 4).

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Figura 3 - Expansão das missões jesuíticas no Norte.

Fonte: Leite (1943a, p. 453).

Figura 4 - Detalhe: Aldeia dos Tupinambaranas, Abacaxis e Andirás.

Fonte: Leite (1943a, p. 453).

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Segundo Serafim Leite (1943a), a Aldeia dos Tupinambaranas e a dos Abacaxis eram intimamente ligadas: Uns três para quatro dias, acima do sítio, em que o P. António da Fonseca fundara a Aldeia dos Tupinambaranas, ficava a dos Abacaxis, perto da bocaina do rio Madeira, intimamente ligada aquela. Mas a bocaina do Rio Madeira não representa como se poderia crer, a bôca do Madeira, ao entrar no Amazonas, mas sua confluência com o Canumã. (LEITE, 1943a, p. 387)

Nesse sentido, como o padre Anton Meisterburg atuou na Missão Abacaxis, sua relação com as Missões do Rio Amazonas provavelmente foi intensa. Assim, consideramos a possibilidade da variedade da Língua Geral Amazônica, coletada para o referido Dicionário Geral da Língua Amazônica, naquela época, haver também ocorrências da LGA falada na região de nossa pesquisa. A segunda evidência a ser observada sobre a relação do Dicionário de Língua Geral Amazônica com a região do Médio Rio Amazonas é o conteúdo dos comentários pessoais inseridos pelo autor, ao registrar alguns verbetes. Segundo os pesquisadores do dicionário, esses comentários foram escritos, na maioria dos casos em latim, mas também em português e alemão antigo, o que demonstra que o autor interferiu em diferentes momentos no documento, incluindo novas informações (MULLER et al., 2019). Além disso, também foram encontradas menções a grupos indígenas, dois dos quais, provavelmente, eram da região do Xingu, e um terceiro, possivelmente do rio Madeira (MULLER et al, 2019). Os índios do Xingu identificados nos comentários dos verbetes são os Coribaré e os Goyapi. Prudente (2017) destaca, no mapa de 1707 do padre Samuel Fritz, os grupos indígenas “Guayapí” e “Coribaré” no Xingu (Figura 5).

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Figura 5 - Os grupos indígenas “Guayapí” e “Coribaré” no Xingu.

Fonte: Prudente (2017).

O terceiro grupo indígena mencionado nos comentários pessoais de Anton Meisterburg foram os Xapi, citados vinte vezes no dicionário. Entretanto, segundos os pesquisadores do manuscrito de Trier, ainda não foi possível identificar exatamente quem eram esses indígenas e onde estavam no século XVIII. Algumas hipóteses foram levantadas, uma é que os Xapi sejam os Sateré-Mawé, que, no século XVIII, viviam no Rio Madeira. Em Muller et al. (2019), há uma análise dos trechos que mencionam os Xapi, comparando com a língua Sateré-Mawé. Porém, segundo os pesquisadores, nem todos os itens puderam ser relacionados ao Sateré- Mawé, mas com certeza alguns puderam ser identificados. Para exemplificar essa hipótese, Muller et al. (2019) fazem um levantamento de todas as citações de Xapi no dicionário e inserem, quando possível, o verbete em Sateré-Mawé. II. 10 Amocaẽ. secar ou tostar ao fogo. Xap. atoncaẽ 11 Amoeè v amocëè. salgar, ou adoçar. atonceẽ (deve ser Xapí também) 16 Erimbäè. qdo. em qʒ tempo assim præt. como futuro. Xapi: = nímoi (Mawé nimo ‘muito tempo atrás’) 20 Mbäè ráma. para que: Xap. evanaei? 21 Maiavetäè? como de que maneira. Xap. carapoii? (Mawé karãpẽi? ‘quando’) (MULLER et al., 2019, p. 378-379).

Dos verbetes relacionados citados, os números 10, 11 e 20 não apresentam o correspondente em Sateré-Mawé, mas somente a indicação Xapi, inserida por Anton Meisterburg. Nos trechos 16 e 21, o equivalente em Sateré-Mawé já aparece, inserido pelos pesquisadores do dicionário. Vale ressaltar, novamente, que na versão original, escrita pelo

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padre jesuíta Meisterburg, só aparece o correspondente Xapi do verbete em Língua Geral Amazônica, como podemos verificar tanto nos verbetes 10 e 11 do dicionário quanto nos verbetes 16, 20 e 21 (Figuras 6 e 7)

Figura 6 - Verbetes 10 e 11 do Dicionário de Meisterburg.

Fonte: Muller et al. (2019, p. 268).

Figura 7 - Verbetes 16, 20 e 21 do Dicionário de Meisterburg.

Fonte: Muller et al. (2019, p. 270).

Outra hipótese para os Xapi é dada por Prudente (2017), considerando os dados colhidos no rio Xingu para construção do Dicionário de Língua Geral Amazônica: o único etnônimo da região mais próximo a “Xapi” é o dos Xipaia (também chamados de Shipaia e Jacipoiya). Os Xipaia habitam a região xinguana desde o período colonial, chegando a ser contatados pelo padre Roque Hunderfuntdt na década de 1730 [...]. Atualmente, os Xipaia vivem em Altamira contabilizando pouco mais de 80 indivíduos (PRUDENTE, 2017 p. 153-154).

Entretanto, Prudente (2017) pondera que, apesar deste grupo habitar o Rio Xingu e ter certa proximidade com os Coribaré citados no dicionário, não é possível, pelas fontes históricas e bibliográficas colhidas, afirmar que Xapi é mais um etnônimo para designar os Xipaia; mas é necessária uma análise linguística, feita por especialistas, das palavras em Xapi, em comparação com o léxico Xipaia no sentido de confirmar ou refutar a hipótese. Em relação à nossa pesquisa sobre o Nheengatu do Médio Rio Amazonas, é importante uma análise dos dados, considerando esse material do século XVIII, pois os falantes da variante

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da língua que estudamos convivem diariamente com falantes de Sateré-Mawé no Médio Rio Amazonas.

2.3. O NHEENGATU NO MÉDIO RIO AMAZONAS A PARTIR DE FINS DO SÉCULO XIX

A partir do século XIX, os registros da Língua Geral Amazônica já não eram tão escassos e registravam não somente vocabulários como também narrativas na língua. No livro Poranduba Amazonense: Kochiyma-Uara Porandub de João Barbosa Rodrigues (1890), encontramos alguns registros do Nheengatu falado na região da pesquisa: Rio Amazonas, Rio Andirá e Parintins. Entretanto, antes de discutirmos esses trechos do Nheengatu, iremos contextualizar em que circunstâncias a obra foi produzida. João Barbosa Rodrigues foi um importante engenheiro, naturalista e botânico brasileiro, dentre as diversas áreas que se propôs a estudar, encontramos a linguística. Entre os anos de 1872 e 1875, Rodrigues viveu na Amazônia por conta de uma missão científica do governo imperial. Durante aquele período, ele coletou dados da convivência com os indígenas e, mais tarde, escreveu duas obras importantes para os estudos do Nheengatu. A primeira é Poranduba Amazonense, de 1890. Segundo o autor, a proposta do livro era registrar pequenos “contos de tempo antigo” – narrativas que circulavam nas aldeias indígenas desde antes da colonização e faziam referência à natureza do imenso Vale do Amazonas, enfatizando a fauna e a flora da região. A obra é seguida de um Vocabulário indígena comparado, publicado em 1892, como uma continuação do Poranduba Amazonense. Por conta disto, o próprio autor considera as duas publicações como uma obra única, dividindo, assim, em duas partes. O autor classifica os contos em: lendas mitológicas, contos zoológicos, contos astronômicos e botânicos, e, por fim, disponibiliza algumas cantigas, ressaltando que são apenas fragmentos das cantigas originais, considerando que a maioria se perdeu ao longo do tempo. Porém, antes de escrever e traduzir os contos, Rodrigues faz um breve histórico da língua. A segunda parte é o Vocabulário indígena comparado, que pretendia mostrar as “adulterações” do Nheengatu (RODRIGUES, 1890), ou seja, as variações da língua, sendo fruto das observações do autor no período em que estava na Amazônia (1872-1875), mais precisamente as alterações da língua no Pará e no Amazonas. Na segunda parte, buscou evidenciar as diferentes ortografias e pronúncias da língua como era falada e escrita anteriormente. Para alguns estudiosos, João Barbosa Rodrigues escrevia a “literatura testemunhal”, que, segundo Freire (2003), era feita por escritores profissionais ou cientistas sociais, coletando

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dados de informantes qualificados, preservando assim uma estrutura narrativa e um estilo peculiar da fonte oral. Para outros pesquisadores, como Edelweiss (1969), é preciso ter cuidado com as alegações feitas por Rodrigues no campo linguístico, considerando-o ousado, porém desastrado e contraditório. Entretanto, suas observações acerca do Nheengatu são consideradas por todos como uma importante fonte de estudos historiográficos. Dentre os textos presentes na obra, encontramos alguns que foram coletados na região da nossa pesquisa20. Nas “lendas mitológicas”, o número VI (p. 59): Curupira Yepé Cunhan Irumo (o corupira uma mulher e)21 do Rio Amazonas. Na página 65, encontra-se a versão desta mesma narrativa na variante do Rio Negro. Nos contos zoológicos, o número III (p. 151): Yurutahy Nheengareçara (Jurutahy a cantiga), também do Rio Amazonas. Há ainda um registro de contos astronômicos e botânicos coletados na Vila Bella de Imperatriz22 na página 257: Cyiucé Yperungaua (Das pleiades a origem). Finalmente, são identificados trechos de cantigas coletadas na região de Vila Bela da Imperatriz, na página 288 (Figura 8): Figura 8 - Trecho do Poranduba Amazonense: Cantiga do Çairé.

Fonte: Rodrigues (1890, p. 288).

20 As imagens utilizadas neste capítulo, referentes à obra de Rodrigues (1890), são da publicação disponibilizada em http://biblio.etnolinguistica.org. 21 Tradução literal, como no original. 22 Atualmente chamada de Parintins, mas anteriormente era chamada de Vila Bela da Imperatriz.

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Na mesma página 288, encontra-se o seguinte fragmento de cantiga, bem como o da página 300. Ambos são de Parintins. Vale ressaltar que, no primeiro, além da glosa, há uma tradução da cantiga em português. No segundo trecho, não há tradução. (Figuras 9 e 10)

Figura 9- Trecho do Poranduba Amazonense: Cantiga do Mukuru.

Fonte: Rodrigues (1890, p. 288).

Figura 10 - Trecho do Poranduba Amazonense: Cantiga do Mukuru.

Fonte: Rodrigues (1890, p. 300).

Na página 301, há dois fragmentos de cantigas coletadas na região da pesquisa: no Vale do Rio Amazonas e na Vila Bela, respectivamente. Em ambos, não há registro de tradução (Figuras 11 e 12)

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Figura 11 - Trecho do Poranduba Amazonense: Cantiga do Mukuru.

Fonte: Rodrigues (1890, p. 301).

Figura 12 - Trecho do Poranduba Amazonense: Cantiga do Mukuru.

Fonte: Rodrigues (1890, p. 301).

Por último, na página 302, encontramos o último trecho de Nheengatu, citado por Barbosa, na região de Parintins. Nesse trecho, também não há registro de tradução (Figura 13).

Figura 13 - Trecho do Poranduba Amazonense: Cantiga do Mukuru.

Fonte: Rodrigues (1890, p. 302).

Nossa pesquisa sobre o Nheengatu do Médio Rio Amazonas não pode dispensar, portanto, uma análise dos registros oriundos da mesma região, encontrados na obra de Barbosa Rodrigues. Isso porque a proposta deste trabalho é fazer o registro da variante da língua geral sobrevivente nessa região, observando as transformações que a língua experimentou, evidenciando as diferenças e semelhanças ao longo do tempo.

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Observando as raízes da emergência do Nheengatu, percebemos que são muitos os registros da língua. Entretanto, ao limitarmos o corpus de pesquisa para a região do Médio Rio Amazonas, encontramos poucos registros linguísticos escritos. O levantamento histórico e bibliográfico dessa região ainda é escasso. Destacamos, no quadro abaixo, alguns registros da Língua Geral Amazônica na região do Médio Rio Amazonas (Quadro 6).

Quadro 6 - Alguns registros escritos do Nheengatu na região do Médio Rio Amazonas. Período Obra Autor Data Século XVII -Novo descobrimento Pe. Cristóbal de 1641 do rio das Amazonas Acuña - Crônicas dos padres Pe. João Felipe [1687] 1990 da Companhia de Bettendorff Jesus no Estado do Maranhão Século XVIII -Dicionário de Escrito em 1756, mas Pe. Anton Língua Geral publicado em 2019. Meisterburg Amazônica - Tesouro Descoberto Escreveu depois de no máximo rio ser expulso do Brasil Pe. João Daniel Amazonas e preso em Portugal entre 1757-1776. -História da 1759 Companhia de Jesus Pe. José de Moraes na extinta província do Maranhão e Pará. Século XIX - Notas sobre o Tupi 1ª. impressão em geral ou Tupi Charles Hartt - 1872. moderno do Geólogo Amazonas - Vocabulário da 1853 Língua Geral para o uso do Seminário Pe. Manoel Episcopal do Pará Justiniano de Seixas 1875 - Doutrina Cristã - Poranduba 1890 Amazonense

João Barbosa -Vocabulário Rodrigues indígena comparado 1892 para mostrar adulteração da língua Século XX – dias -Apontamentos sobre 1985 atuais o Nheengatu falado Gerald Taylor no Rio Negro - Descrição Fonético- 2014 Fonológica do Micheli Carolini de Nheengatu falado no Deus Lima Schwade Médio Rio Amazonas

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- Documentação e 2017 Descrição das Raynice Geraldine Variedades do Pereira da Silva et al. Nheengatu no Amazonas. Fonte: Elaborado pela autora (2021).

A partir desses registros, percebemos que o Nheengatu instigou estudiosos e pesquisadores, o que ajudou a registrar não somente as línguas (ou suas variantes) que antecederam o Nheengatu, mas também o processo de colonização da Amazônia, colocando a língua como fator determinante para a ocupação da região.

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3 OS FALANTES DO NHEENGATU NO MÉDIO RIO AMAZONAS

O levantamento histórico sobre o Nheengatu indica uma ampla abrangência da língua na região estudada. Cronistas como Acuña (1641), Bettendorff (1687) e Daniel (1776) registraram informações importantes sobre a língua e seus falantes. Nesse sentido, buscamos fazer um levantamento histórico sobre a região, para contextualizar etnograficamente os falantes de Nheengatu no Médio Rio Amazonas.

A REGIÃO DO MÉDIO RIO AMAZONAS

A pesquisa abrange a região do Médio Rio Amazonas, mais precisamente os municípios de Parintins e Barreirinha, no Estado do Amazonas. Para este estudo, considera-se como Região do Médio Amazonas a área entre a desembocadura dos Rios Madeira e Tapajós, por se tratar de uma área com influência política e social dividida entre as cidades de Manaus e Santarém, ao mesmo tempo em que se apresenta como centro cultural relativamente autônomo. Além disso, regionalmente, considera-se a formação do Rio Amazonas a partir do encontro entre o Rio Negro e o Rio Solimões, o que ocorre na altura da cidade de Manaus, e não na Cordilheira dos Andes. Essa compreensão vai ao encontro da teoria do geógrafo Haesbaert (2010), da região como artefato, que considera importante no processo de regionalização um equilíbrio entre os interesses da pesquisa e as relações territoriais de sua população. Por conta disto, decidimos utilizar o termo Médio Rio Amazonas para designar a nossa área de pesquisa23. Sobre o Rio Andirá, que se encontra à margem direita do Paraná do Ramos, afluente do Rio Amazonas, é usado apenas como referência para marcar a relação dos falantes do Nheengatu com o rio. Os falantes em questão, no entanto, habitam a zona urbana (as sedes dos referidos municípios de Parintins e Barreirinha).

HÁ FALANTES DE NHEENGATU NO MÉDIO RIO AMAZONAS?

23 Sobre essa região do Rio Amazonas, é importante registrar que um grupo de falantes e pesquisadores do Nheengatu, falado em Nova Olinda, designam a região da foz do Madeira como “Baixo Amazonas” (YAMÃ et al., 2020). Entretanto, ressalta-se que, mesmo quando se considera o Amazonas como o trecho fluvial iniciado na confluência do Napo com o Ucayali (ponto onde, no Peru, esse rio passa a receber o nome de Amazonas), o “Baixo Amazonas” só teria início muito próximo de Parintins, estando a foz do Madeira – mesmo nessa configuração – no que seria o Médio Amazonas.

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Durante o período da pesquisa, fomos questionados diversas vezes com essa pergunta. Atualmente, o Português e o Sateré-Mawé são línguas consolidadas na região (Mapa 1). Entretanto, ao nos depararmos com indígenas com o Nheengatu como língua materna, percebemos que precisaríamos registrar a variedade da língua na região, bem como traçar o perfil dos falantes: quem são, como chegaram lá, de que forma mantiveram a língua.

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Mapa 1 - Região do Médio Rio Amazonas.

Fonte: Elaborado por Tiago Maiká Müller Schwade em 2019, em função desta pesquisa.

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No primeiro contato com os falantes de Nheengatu na região do Médio Rio Amazonas, ainda na pesquisa de mestrado (LIMA-SCHWADE, 2014), os informantes relataram que a família tinha origem na região do Rio Andirá. A mãe deles, dona Ducira Nogueira dos Santos, era falante de Nheengatu e de Sateré-Mawé, porém sua língua materna era o Nheengatu, que passou para os filhos. Até a morte da mãe, os irmãos viviam mais perto e comunicavam-se, entre si, utilizando o Nheengatu, foi somente em 2003, após a morte de dona Ducira, aos 94 anos, que deixaram de usar o Nheengatu diariamente. Atualmente, alguns moram na cidade de Parintins e outros em Barreirinha, e durante o ano, há alguns encontros entre eles, quando aproveitam para interagir na língua materna. Sobre a origem da família no Rio Andirá, todos os falantes de Nheengatu, participantes da pesquisa, são nascidos em Ponta Alegre, Barreirinha/AM, localizada na margem direita do Rio Andirá. Ao contextualizarem o local de origem da família, relembraram o antigo nome da localidade, Mirápara: pau d’arco, ou pau que faz arco, um nome de origem Tupi. Ressaltamos que esta informação sobre o nome em Nheengatu de Ponta Alegre foi fornecida pelos falantes, sem que mencionássemos qualquer referência prévia a este termo. Paiva (2018, p. 32) também cita Muirá Apa’ra como antigo nome da localidade, afirmando que posteriormente mudou para Ponta Alegre, pois o “local reunia várias pessoas entre indígenas e brancos em sua bela ponta de praia para várias comemorações, o que ocasionava muita alegria”. Segundo dados históricos disponibilizados pelo IBGE sobre o município de Barreirinha24, o distrito de Ponta Alegre foi criado em 24 de novembro de 1956, como território desmembrado do distrito de Ariaú. Em 1960, a divisão territorial do município constituía-se em cinco distritos: Barreirinha, Ariaú, Freguesia do Andirá, Pedras e Ponta Alegre. Entretanto, por não ter sido ratificada pela Assembleia Legislativa do Estado, Ponta Alegre deixou de ser sede distrital do município de Barreirinha. Em 1968, somente os quatro primeiros distritos permaneceram na divisão territorial. Finalmente, em 1988, o município de Barreirinha foi constituído novamente por cinco distritos: Barreirinha, Ariaú, Freguesia do Andirá, Pedras e Cametá. Atualmente, Ponta Alegre é uma das aldeias da Terra Indígena (TI) Andirá-Marau, do povo Sateré-Mawé (Mapa 2). A terra indígena foi homologada pelo Decreto 93.069 de 7 de agosto de 1986, localizada entre os Estados do Amazonas e Pará, abrangendo os municípios de Maués, Parintins e Barreirinha, no Amazonas, e Itaituba e Aveiro, no Pará. De acordo com Silva (2010, p. 50), os principais rios da TI são o Marau, o Miriti, o Urupadi, o Manjuru, o Andirá e

24 Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/am/barreirinha/historico, Acesso em: 20 fev. 2020.

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o Uaicurapá. Como mencionamos, Ponta Alegre está localizada no Rio Andirá, e é a aldeia mais a jusante da TI neste rio. Continuando o levantamento sobre a origem da família dos falantes de Nheengatu, verificamos que a avó materna só falava em Tupi25, já a mãe falava o Tupi e aprendeu um pouco do Português, mas a comunicação era sempre na língua indígena com os filhos e o marido. O pai falava o Sateré-Mawé, mas aprendeu o Tupi após o casamento. Segundo os falantes, a avó materna era “índia pura”26 e a mãe era “misturada com civilizado”27. Além do Tupi ter sido a primeira língua que aprenderam, o contato foi bastante intenso, pois a mãe deles, dona Ducira, viveu até os 94 anos, já o pai, seu Calixto, faleceu antes, por volta dos 40 anos de idade. Atualmente, dos cinco irmãos, o mais velho está com 80 anos. Quanto ao casamento dos falantes de Nheengatu, afirmam que seus respectivos cônjuges não falam a língua, mas alguns falam o português e o Sateré-Mawé, e outros somente o português. Entretanto, todos afirmam que seus cônjuges entendem quando falam em Tupi.

25 Como eles chamam a língua. 26 Termo utilizado pelos falantes. 27 Termo utilizado pelos falantes.

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Mapa 2 - Localização de Ponta Alegre.

Fonte: Elaborado por Tiago Maiká Müller Schwade e Micheli Carolini de Deus Lima Schwade em 2020, em função desta pesquisa.

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A partir dessas informações sobre a origem da família, procuramos conhecer como foi a entrada da língua geral na região do Médio Rio Amazonas, considerando os relatos de Acuña (1641), Bettendorff (1687) e Daniel (1776). De acordo com esses cronistas, a língua geral chegou à ilha Tupinambarana com os indígenas vindos de Pernambuco, fugidos da colonização portuguesa na costa do Brasil, chegando à Região Amazônica pelo Rio Madeira. Fernandes (1963, p. 54) afirma que “a fixação dos grupos tribais Tupí na Ilha de Tupinambarana parece ter ocorrido ao mesmo tempo que o povoamento do Maranhão e Grão-Pará” e a migração acontecia do “Estado do Brasil”, e não do “Estado do Maranhão”, ou seja, vinham da costa, conforme os relatos de Acuña28. Sobre o estabelecimento na região da ilha Tupinambarana, Heriarte29 ([1662] 1874, p. 40-41) relata que havendo caminhado muito tempo chegaram àquelle sitio, que acharam abundante, e cheio de Indios naturàes; e por ser bom o sitiaram e conquistaram os seus naturaes, avassalando-os, e com o tempo se cazaram uns com os outros, e se aparentaram; mas nam deixam de conhecer os naturaes a superioridade que os Tupinambaranas teem nelles.

Nesse trecho, observa-se a relação que os indígenas vindos da costa tiveram ao encontrar com os da região. Eles teriam imposto uma subordinação dos “naturaes” aos Tupinambaranas, segundo o autor, entretanto, posteriormente, estabeleceram parentesco por casamento. Acuña ([1641] 1994, p. 173) também já havia mencionado a postura belicosa desses índios: São gente de grande brio na guerra, e bem o mostraram os que chegaram a estas paragens onde atualmente vivem, pois sendo eles, sem comparação, menos numerosos que os nativos deste rio de tal sorte fustigaram e submeteram todos aqueles com quem tiveram guerras que, consumindo nações inteiras, obrigaram outras a deixar suas terras e ir peregrinar por terras estranhas.

Ao fazermos o levantamento histórico do Nheengatu, a partir do processo de colonização da Amazônia, vimos a formação das aldeias-missões, onde a Língua Geral se estabeleceu, de forma que abordamos o surgimento dessas aldeias na região. Alguns missionários descrevem o início dos aldeamentos jesuíticos. Como vimos, Bettendorff ([1687] 1990) narra como a Aldeia Tupinambarana se estabeleceu como missão. Já Daniel ([1776] 2004, p. 368), ao tratar da mesma missão, descreve incialmente as características da nação Tupinambarana na Região Amazônica:

28 Segundo Alfred Métraux (1927, p. 23), “Seu estabelecimento na Amazônia provavelmente ocorreu no início do século XVII. Acunha conseguiu obter informações exatas sobre a geografia do Madeira que lhe foram dadas pelos que haviam descido seu curso: disseram que esse rio era o caminho mais curto para chegar aos rios que correm na região de Potosi. Essa indicação é uma das melhores provas da autenticidade dessa migração”. 29 De acordo com Baldus (1954, p. 304), a ‘Descrição do Estado do Maranhão, Pará, Corupá e Rio das Amazonas’, escrita por Mauricio de Heriarte é uma valiosa contribuição seiscentista do norte do Brasil. Ela foi publicada pela primeira vez em 1874. Entretanto, suas referências devem ter sido coletadas quando foi ouvidor-geral, provedor- mor e auditor em 1622.

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é muito parenta da dos tupinambás, senão é a mesma com alguma corrupção da língua pela comunicação de outras nações. Tinha esta nação o seu domicílio em uma grande ilha, que forma o Amazonas na foz do rio Madeira, que deles tomou o nome da ilha dos Tupinambaranas.

Neste trecho, notamos novamente o olhar do Pe. Daniel sobre a língua falada por esses indígenas, evidenciando a relação da Língua Geral Amazônica com a dos tupinambás. Sobre a missão e os descimentos, Daniel relata a densidade populacional da aldeia e a insatisfação dos índios quanto à mudança para o rio Tapajós: dela [da ilha] desceram muitos para algumas missões; os mais se aldearam na mesma ilha em uma populosa missão. Porém, sentindo os seus missionários alguns inconvenientes na dita ilha, se resolveram a mudar sítio para o rio Tapajós, onde ainda existe algum resto na missão de Santo Ignácio, ainda que contra a vontade dos índios, que antes queriam a sua ilha, e pátria; e além de ser pátria, é muito farta, e abundante de peixe e caça; e por esta oposição na mudança ficaram muitos dispersos pela ilha. (DANIEL, [1776] 2004, p. 368)

Heriarte (1874, p. 40) descreve a Província dos Tupinambaranas situada em terra plana sobre o Rio Amazonas, com um clima quente e doentio, por estar debaixo da Linha do Equador. Segundo o autor, por falarem a língua geral, os Tupinambaranas eram intérpretes quando os portugueses iniciavam contato com outras nações indígenas do mesmo rio que falavam outras línguas. Além disso, Heriarte afirma que a aldeia deles era ponto onde as tropas se organizavam para entrar no sertão. No século XVIII, o padre José de Moraes ([1759] 1987, p. 360-361) também descreveu o lugar onde a Aldeia dos Tupinambaranas se estabeleceu: Tornando abaixo da parte do sul das Amazonas, e subindo dos Tapajós, onde ficamos até a boca de um braço do rio da Madeira chamado Paraná-Mirim, são sessenta léguas de distância. A boca deste Paraná-Mirim terá de largura duzentas braças, e de comprimento até a margem do rio da Madeira serão sessenta léguas. Este rio Paraná- mirim se forma de quatro rios pequenos que desembocam nele todos da parte esquerda; o primeiro se chama Andirá, que dista da boca seis léguas; o segundo, Maguês, que dista do Andirá quinze léguas; o terceiro, Abacaxis, que dista do Maguês vinte léguas; e o quarto, Canumã, que dista do Abacaxis oito léguas; e deste Canumã à margem do rio da Madeira serão seis léguas. E fica sendo a terra da parte direita deste rio Paraná-Mirim uma ilha formada deste Paraná-Mirim, Amazonas e Madeira. Nesta ilha sobre as Amazonas acima da boca do Paraná-Mirim cinco léguas se fundou primeiro a aldeia dos tupinambaranas, que ainda hoje se chama Tapera, que quer dizer lugar que foi dos tupinambaranas.

No trecho, observamos a importância do Paraná-Mirim para o entendimento da área estudada, pois é a partir dele que rios importantes para a navegação e comunicação entre a população amazonense daquela região são interligados. O mapa 3, produzido a partir desse trecho do Pe. José de Moraes ([1759] 1987), ajuda a compreender essa dinâmica fluvial. Atualmente, a extensão do Paraná-Mirim entre o Rio Amazonas e o Rio Madeira, descrito por Moraes ([1759] 1987), recebe três nomes: Paraná do Ramos, Paraná Urariá e

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Paraná Canhumã. Dos rios citados, somente o Manguês mudou o nome para Maué-Açu. Os falantes que participam da pesquisa, por exemplo, utilizam o Paraná do Ramos como rota fluvial das cidades de Parintins e Barreirinha para o Rio Andirá. O Mapa 4, a seguir, ilustra esse trecho citado pelo Pe. José de Moraes ([1759] 1987), mas com os nomes atuais dos rios e paranás. Após a descrição do primeiro local da aldeia Tupinambarana, Moraes ([1759] 1987), assim como Bettendorff ([1687] 1990, p. 36), relata as duas outras mudanças da missão, para um lago do Rio Andirá e posteriormente para o Rio Tapajós. Entre essas duas últimas mudanças, Serafim Leite (1943a, p. 386) afirma que, em 1730, a aldeia dos Tupinambaranas contava com 495 índios, dos quais 284 eram catecúmenos, ou seja, prontos para o batismo, indicando um grande percentual de indígenas que se doutrinava na aldeia e que, em 1737, teria acontecido a última mudança para o Rio Tapajós, com invocação de Santo Inácio.

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Mapa 3 - Rios e Paranás identificados na passagem do Pe. José de Moraes pelo Paraná Mirim (1759).

Fonte: Elaborado por Tiago Maiká Müller Schwade e Micheli Carolini de Deus Lima Schwade em 2020, em função desta pesquisa.

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Mapa 4 - Rios e Cidades importantes na história do Nheengatu do Médio Rio Amazonas.

Fonte: Elaborado por Micheli Carolini de Deus Lima Schwade e Tiago Maiká Müller Schwade em 2020, em função desta pesquisa.

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Mapa 5 - Complexidade Fluvial da região do Médio Rio Amazonas.

Fonte: Elaborado por Micheli Carolini de Deus Lima Schwade e Tiago Maiká Müller Schwade em 2020, em função desta pesquisa.

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Por fim, Leite (1943a) expõe a complexidade fluvial da região, intitulada como ‘labirinto aquático’, onde há uma infinidade de furos, alguns navegáveis, apenas, no inverno. Na figura abaixo (Figura 14), retirada do Google Earth, uma composição de imagens de satélites representa o complexo fluvial entre Parintins e Barreirinha.

Figura 14 - Complexidade fluvial entre Parintins e Barreirinha.

Fonte: Google Earth.

Retomando as informações sobre a origem dos falantes do Nheengatu envolvidos na pesquisa, outra referência citada é a relação com o Rio Andirá. Assim, buscamos informações sobre a Missão do Andirá. Serafim Leite (1943a) cita uma lista geral das Aldeias de 1678, na qual aparece uma única aldeia na região com o nome de Santa Cruz dos Andirases, de que dependiam os Curiatós, sendo o primeiro registro da possível missão do Andirá. O Pe. Bettendorff ([1687] 1990), ao relatar uma visita feita à aldeia Tupinambarana como superior da missão, cita a dos Andirazes. Com a chegada do Pe. António da Fonseca, em 1689, algumas aldeias da região ficaram sob sua responsabilidade. De acordo com Bettendorff ([1687]1990, p. 498), Fonseca comandava a missão dos Tupinambaranas e visitava as aldeais dos Andirazes e dos Curiatós: “Assistia em aquella aldêa [Tupinambarana] e de lá ia visitar as aldêas dos Andirazes para riba e as dos Curiatos para baixo, com muito zelo e trabalho, ensinando e formando-as até fazer nascer em ânimos daqueles bárbaros a fé de Christo, que elle primeiro de todos lhes manifestou”. Nesse período, a Aldeia Tupinambarana era localizada em um lago, belo e espaçoso para Bettendorff, na confluência entre os Rios Andirá e Amazonas.

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Em 1714, o Pe. Bartolomeu Rodrigues, missionário da Aldeia de Tupinambarana, escreve uma carta ao Pe. Jacinto de Carvalho com informações sobre os indígenas e aldeamentos na região do Médio Rio Amazonas30. Inicialmente, lista as nações indígenas de alguns rios, como o Andirá: Unaniá, Guaranaguá, Abuaturiá, Uipitiá, Riauiá, Acaicaniá, Pirapeiguá, Abuquá, Jacarauá, Piraguá, Piritiá, Aweteriá, Uemâtré. Sobre os aldeamentos, Rodrigues cita quatro ‘domesticados’ situados nas enseadas dos rios Canumá, Guarinamá, Acuriatós e Andirás, entretanto não há registro do nome, só a localização. Além disso, relata os descimentos que realizou para a aldeia dos Tupinambaranas e dos Andirás. Para a primeira, registrou 10 nações indígenas que foram ‘descidas’: Arerutus, Comandis, Andirases, Japucuitabijaras, Puraiuaniá, Capiurematiá, Mujuariá, Monçaú, Sapopés e Ubuquaras. Os índios desta última foram, na verdade, trazidos da missão dos Andirases para a Tupinambarana. Para a segunda aldeia, ‘desceram’ índios Amoriá e Acaiuniá. (LEITE, 1943a). Os relatos dos padres Bettendorff, do século XVII, e Bartolomeu Rodrigues, do século XVIII, indicaram a existência da aldeia dos Andirazes, mas a reduzida informação sobre a localização e as caraterísticas do lugar da missão, aliada à complexidade fluvial da região, não foi o suficiente para indicar com precisão a localização da missão do Andirá. Entretanto, no século XIX, encontramos registro do lugar onde estava localizada. No primeiro trimestre de 1856, João Wilkens de Mattos publicou um artigo na Revista do Instituto Geográfico do Brasil, Tomo XIX, que tratava da Missão do Andirá. No trabalho, intitulado ‘Alguns esclarecimentos sobre as missões da província do Amazonas’31, o autor lista dados de seis missões, dentre elas a do Andirá, situando a missão no rio Tupinambaranas32, porém, naquele momento, já era considerada extinta. Sobre a Missão do Andirá, o autor afirma que foi fundada em 1848 pela província do Pará e reuniu mais de mil habitantes, como indígenas domesticados, guardas nacionais, dentre outros. Em 23 de outubro de 1852, foi elevada a Curato Filial da Vila Bela de Imperatriz33 e, em 17 de novembro de 1853, à freguesia do Andirá. Por fim, o missionário Frei Pedro de Ceriana, que era pároco da missão do Andirá, passou a ter exercício no rio Purus, seguindo uma resolução da presidência de 07 de janeiro de 1853. Observamos que a transição entre a missão e a freguesia do Andirá, descrita por João Wilkens de Mattos em 1856, marca o início da cidade de Barreirinha, que trataremos ainda

30 A carta do Padre Bartolomeu em 1714 apresenta diferentes etnias indígenas espalhadas pelos rios Madeira, Abacaxis, Canumã, Guarinamá, Mangués, Andirá, Mariacoã (Acuriató). 31 João Wilkens de Mattos explica que o artigo é um adendo do ‘Relatório da repartição dos negócios do império e do mapa estatístico dos aldeamentos’, apresentado à Assembleia Legislativa, na 3ª. Sessão da 9ª. Legislatura, por Luiz Pedreira do Coutto Ferraz, pois afirma que algumas informações no relatório precisavam ser esclarecidas. 32 Atualmente, o rio Tupinambarana recebe o nome de Uiacurapá. 33 Atual cidade de Parintins.

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neste capítulo. Apesar de Mattos ter registrado a missão do Andirá como extinta, já em 1856, encontramos registros dessa aldeia nos relatórios da Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas nos anos subsequentes34. No documento de 07 de setembro de 1858, encontramos um quadro de diretores das aldeias de índios da província. Na aldeia do Andirá, o diretor era o Pe. Manoel Justiniano de Seixas, titulado em 28 de maio de 1857 (Anexo 1). Em 1864, o comando era de Manoel Joaquim da Cruz (Anexo 2). Contudo, as indicações no relatório relacionadas aos indígenas no Andirá não confirmam a continuação da missão, como aldeamento, e sim da freguesia do Andirá. Os dados apresentados confirmam apenas que havia um diretor que tratava da questão indígena nas diretorias da província. Sobre a missão do Andirá, Nimuendajú ([1948] 1963, p. 246) relata que prosperou de 1848 a 1855, sob a direção do padre Pedro de Ceriana, apesar dos conflitos entre o missionário e as autoridades de Parintins. Como o estudo de Nimuendajú trata sobre os Mawé e Arapium, registra os índios da primeira etnia na missão do Andirá: “em 1849, tinha 507 Maue; em 1851, 570; e em 1852, 665, sem contar com um grande número de pessoas civilizadas”. Por fim, o autor cita que, em 1855, o lugar foi ocupado por um pároco, no caso, Pe. Manoel Justiniano de Seixas, citado como vigário da freguesia do Andirá em 1858, que é autor do Vocabulário da Língua Indígena Geral para o uso do Seminário Episcopal do Pará, de 1853. Antes de assumir a aldeia no Andirá, Seixas foi visitador35 da Missão do Grão-Pará e Maranhão de 1717 a 1721 (LEITE, 1943b, p. 229). Plínio de Ayrosa (1954, p. 2014), ao comentar a obra do missionário, menciona que o Pe. Seixas foi professor da cadeira de língua geral, no Seminário do Pará, criada por decreto em 10 de outubro de 1851, e que o vocabulário corresponde ao Nheengatu falado na Amazônia. Embora um histórico de Barreirinha, produzido pelo IBGE36, aponte a chegada do padre na missão em 27 de outubro de 1851, ou seja, antes da publicação do vocabulário, o que indicaria o registro da variedade da língua no Andirá, não encontramos nenhum outro documento oficial registrando a chegada de Seixas antes da publicação do material.

34 O Projeto Latino-Americano de Materiais (LAMP) no Center for Research Libraries (CRL) digitalizou documentos de série do Poder Executivo emitidos pelo governo nacional do Brasil entre 1821 e 1993, e por seus governos provinciais desde os primeiros disponíveis para cada província para o fim da primeira República em 1930. Os Relatórios Presidenciais Provinciais (1830-1930) podem ser acessados em: http://www- apps.crl.edu/static/brazil/hartness/ . Os relatórios da Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas que trata dos indígenas está disponível em http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hartness/indians.html, Acesso em: 11 jan. 2019. 35 Segundo Serafim Leite (1943b, p. 223) o governo da Missão ou Vice-Província era do Superior da Missão ou Vice-Provincial. Além disso, havia o cargo de Visitador Geral, nomeado pela autoridade mais alta que o Superior. A jurisdição do visitador, durante o tempo da visita, era suprema. 36 Histórico da cidade de Barreirinha, disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/am/barreirinha/historico. Acesso em: 12 jan. 2020.

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A relação do padre Manuel Justiniano de Seixas com a história da cidade de Barreirinha é tão representativa, que ainda hoje podemos encontrar referências ao padre na cidade. A Figura 15 é de uma escola em Barreirinha que recebe o nome do Padre Seixas. Figura 15 - Escola Estadual Padre Seixas, em Barreirinha.

Fonte: Elaborado pela autora (2021).

Além desse vocabulário, Francisco Bernardino de Souza (1875) cita que o Pe. Manuel Justiniano de Seixas, vigário do Andirá, estava escrevendo um compêndio da doutrina cristã, em língua geral, naquele ano. Souza, inclusive, transcreveu o capítulo preliminar dessa doutrina escrita por Seixas (SOUZA, 1875). No capítulo seguinte, quando analisarmos as narrativas coletadas com os falantes de Nheengatu, verificaremos se essas obras do Padre Manuel Justiniano de Seixas possuem alguma relação com a variedade do atual Nheengatu. No mapa etnográfico de Nimuendajú ([1883-1945] 2017), podemos observar a localização da Missão dos Tupinambaranas e da Missão do Andirá na área estudada. Na Figura 16, é possível acompanhar a migração dos Tupinambaranas da ilha até o rio Tapajós e a localização da missão do Andirá, no rio que recebe o mesmo nome.

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Figura 16 - Missão dos Tupinambaranas e Missão do Andirá.

Fonte: Nimuendajú ([1883-1945] 2017).

A respeito do local onde as cidades de Parintins e Barreirinhas estão situadas atualmente, notamos que a escolha está relacionada com a história das Missões dos Tupinambaranas e do Andirá, respectivamente. Parintins está localizada à margem direita do Rio Amazonas, na extremidade oriental da ilha Tupinambarana. Em 1796, o local era uma fazenda, comandada pelo português José Pedro Cordovil, que se estabeleceu na ilha para trabalhar com a pesca do pirarucu, trazendo consigo escravos e agregados e, ao tomar posse da terra, deu-lhe o nome de Tupinambarana. Posteriormente, ao receber da rainha, Dona Maria I de Portugal, um vasto terreno a título de sesmaria em outro local, Cordovil oferta a fazenda à rainha. Em 1804, D. Maria I eleva o sítio com o nome de Vila Nova da Rainha. Em 1833, com a organização da comarca do Alto Amazonas, o local é elevado à freguesia, com o nome de Freguesia de Nossa Senhora do Carmo de Tupinambarana. Ainda sendo província do Pará, em 1848, recebe a denominação de Vila Bela da Imperatriz. Em 1850, o Amazonas é elevado à categoria de província. Em seguida, em 1858, a Comarca de Parintins foi criada, congregando as vilas de Maués e Bela da Imperatriz. Somente em 1880, a vila foi elevada à categoria de cidade com a denominação de Parintins (MELLO, 1967; SOUZA, 1875)37 (Figura 17).

37 Os dados do IBGE também foram utilizados. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/am/parintins/historico. Acesso em: 12 jan. 2020.

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Figura 17 - Orla atual de Parintins.

Fonte: Elaborado pela autora (2021).

Barreirinha, situada à margem direita do Paraná do Urariá, ou Paraná do Ramos, possui suas raízes na missão do Andirá. Mello (1967, p. 81) sugere que a antiga localidade da cidade seja a atual Freguesia do Andirá, localizada à margem direita do Rio Andirá, associando também o local da freguesia com lugar da missão. Sobre a primeira sede do município, antes mesmo da missão do Andirá ser oficialmente criada pela Resolução 76, de 2 de outubro de 1848, pela província do Pará38, o local era uma fazenda de gado comandada por Manoel da Silva Lisboa. Durante a revolução da Cabanagem (1835-1840), o lugar foi destruído e incendiado em um combate entre os indígenas liderados pelo índio Crispim Leão e os colonos da fazenda. Nesse embate, Crispim Leão foi morto e a propriedade foi abandonada, sendo retomada somente em 1848, sob o comando do frei capuchinho Pedro de Ceriana. Conforme Mattos (1856), em 23 de outubro de 1852, a missão foi elevada a Curato, com subordinação à Vila Bela da Imperatriz e, em 1853, tornou-se freguesia com invocação de Nossa Senhora do Bom Socorro do Andirá. Em 1873, a sede foi transferida para o atual lugar da sede do município, recebendo o nome de Nossa Senhora do Bom Socorro das Barreirinhas, e o local antigo ficou sendo Freguesia do Andirá, nome atual da localidade. Em 1881, a nova sede foi elevada à categoria de vila com o nome Vila Nova de Barreirinha. Entre 1891 e 1938,

38 Mattos (1856)

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por termos judiciários, o comando da vila foi exercido, intercaladamente, pela comarca de Parintins e Maués. Somente em 31 de março de 1938, pelo Decreto-Lei no. 38, Barreirinha foi elevada à categoria de cidade (Figura 18). Figura 18 - Orla atual de Barreirinha.

Fonte: Elaborado pela autora (2021).

Na atual cidade de Barreirinha, há dois portos fluviais: um principal, em frente à cidade, a beira do paraná do Urariá, e outro secundário, chamado Porto do Pucú, onde indígenas e ribeirinhos têm acesso ao rio Andirá. Além disso, é a partir desse porto que as embarcações partem para a atual localidade da Freguesia do Andirá (Figura 19). Figura 19 - Porto do Pucú.

Fonte: Elaborado pela autora (2021).

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Outro detalhe interessante sobre Barreirinha é um gentílico popular dos seus habitantes: Ariramba39. Thiago de Mello, conhecido poeta Barreirinhense40, escreveu o seguinte poema, em seu livro Amazonas: Águas, Pássaros, Seres e Milagres (1998):

A Ariramba Caboclo bom não padece de falsa modéstia. Digo contente que sou ariramba. É o nome de uma ave azulada, peito branco, bico comprido, célere de voo. Manhã de sol intenso, ela fica mais azul. Voa rasteira e faz ninho num buraco de barranco. Quem nasce em Barreirinha, pátria minha, o povo da floresta chama de ariramba. Os de Manicoré, como o querido Coriolano Lindoso, são chamados de bacurau, pássaro noturno.

Essa denominação popular ao povo nascido em Barreirinha está presente também nos espaços públicos da cidade. A Figura 20 é da câmara municipal da cidade, onde a referência ao Povo Ariramba está em destaque na fachada do prédio: Figura 20 - Câmara Municipal de Barreirinha.

Fonte: Elaborado pela autora (2021).

Uma das narrativas que coletamos com os falantes atuais de Nheengatu do Médio Rio Amazonas conta, justamente, a história da mucura e da ariramba. Durante nosso trabalho de campo, eles nos falaram sobre a quantidade de contos com a ariramba como personagem e que estão presentes no imaginário cultural dos habitantes daquela região. No capítulo seis, iremos tratar com mais detalhes dessas narrativas. Nosso interesse em compreender a dinâmica da

39 Histórico da cidade de Barreirinha, disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/am/barreirinha/historico. Acesso em: 12 jan. 2020. 40 Thiago de Mello é o autor de Os estatutos do Homem, sendo referência literária regional.

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região, relacionando-a com a história das missões e das cidades em questão, é entender de que forma os falantes de Nheengatu atuais aprenderam e mantiveram a língua.

“TUPI” DO RIO ANDIRÁ: O NHEENGATU DO MÉDIO RIO AMAZONAS

Como mencionamos, o Nheengatu falado hoje na Amazônia não é a mesma língua falada no século XVII na região. Durante o processo de colonização da Amazônia, diversas outras línguas europeias e indígenas entraram em contato, contribuindo com mudanças, empréstimos, os quais estabeleceram o Nheengatu atual. Do início da ocupação europeia da região Amazônica até os dias atuais, o Nheengatu recebeu diferentes nomes, os quais o caracterizavam conforme os acontecimentos históricos. No segundo capítulo, sistematizamos os nomes utilizados para situar o processo histórico que estabeleceu a língua: Tupinambá do Maranhão, Tupi, Língua Geral Brasílica, Língua Geral, Língua Geral Amazônica e Nheengatu. Ressaltamos, novamente, que o termo Nheengatu só foi registrado pela primeira vez na literatura em 1876, na obra O Selvagem do general Couto de Magalhães. Durante a coleta de dados, nas conversas com os falantes sobre a língua, notamos que chamam a língua materna de “Tupi”. É importante salientar que o nome Tupi é usado de modo natural, ou seja, durante a conversa. No início da pesquisa, ao explicarmos sobre o assunto do trabalho, eles se dispuseram a participar, entendendo que são falantes do Nheengatu e afirmando, ainda, que essa língua é a mesma falada em São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro, com algumas diferenças. Porém, quando se referiam à língua deles durante as conversas, sempre a chamavam de “Tupi”. Esse fato nos chamou atenção, porque, atualmente, o termo Nheengatu é amplamente conhecido na Região Amazônica, pois é uma das três línguas indígenas cooficiais do município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. Nesse sentido, o termo Tupi, para determinar a LGA, pode ter se mantido na região do Médio Rio Amazonas. No levantamento histórico sobre o Nheengatu na região da pesquisa41, encontramos alguns registros sobre a língua que ajudaram a entender o uso do termo Tupi pelos falantes atuais. Tomando como marco para o uso do termo Nheengatu, na obra de Couto de Magalhães, no século XIX, verificamos nos registros posteriores como a língua é registrada. Contemporâneo a Couto de Magalhães, Charles Hartt escreveu Notas sobre a Língua Geral ou Tupi Moderno do Amazonas, impresso pela primeira vez em 1872. Nesse material, Hartt escreveu sobre a língua falada naquela época. Além de evidenciar que a língua naquele

41 Cf. quadro 5 do capítulo anterior.

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momento era diferente da falada no período da colonização portuguesa, a obra de Hartt trouxe informações sobre as variedades dialetais da língua. Ainda que o Tupí moderno seja falado com grande uniformidade em uma extensa região de ambas as margens do Amazonas, encontram-se, como seria de esperar, variantes, especialmente de pronúncia, não só entre habitantes de lugares muito distantes, como também entre povos da mesma localidade. (HARTT, 1872, p. 308).

Ainda sobre as variedades da língua, o autor citou a diferença entre o dialeto falado no Alto Rio Negro e no Rio Amazonas: O Coronel Faria, de Óbidos, publicou em 1858 um folheto de 28 pp., intitulado Compêndio da Língua Brasileira, escrito para uso do mesmo Seminário; mas é curioso que se baseie num dialeto falado no alto Rio-Negro, muito diferente da Língua geral, como é propriamente chamada, e não intelegível no Amazonas. (HARTT, 1872, p. 309).

Sobre a língua falada na região do Médio Rio Amazonas, Hartt citou uma variedade do tupi falado pelos Mawé: Achei o Tupí, tal como é falado pelos civilizados e pelos descendentes mais ou menos misturados dos Tupís, capaz de diferenciar-se, principalmente pelas peculiaridades de pronúncia, do que é falado pelos Mundurucús e Mauhés. (HARTT, 1872, p. 309).

O material de Hartt, além de trazer informações sobre a estrutura da língua, levantou também registro de frases e conversação na língua. Nessa parte, ressaltamos que há registro do tupi da época, falado pelos Mawé.

600 – ixé intí haroyar sesé. (Mauhé)42 600 – não acredito nisso. (HARTT, 1872, p. 362).

839 – nerakykuéra kuri xasó. 839a – nerakuera kurí hasó (Mauhé).43 839 – hei de ir atraz de ti (HARTT, 1872, p. 380).

A partir do registro das frases em Tupi moderno feitos por Charles Hartt no século XIX, identificamos semelhanças dessa variedade falada pelos Mawé, registrada em 1872, e a língua falada atualmente no Médio Rio Amazonas. Na nossa pesquisa, encontramos também uma aspiração na flexão verbal na primeira pessoa do singular sujeito, - ha44. Em sua obra, Charles Hartt não menciona o termo Nheengatu, mas para se referir à língua falada na época, usou Tupi moderno.

42 Grifo nosso 43 Grifo nosso 44 Cf. capítulo seguinte.

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Outro registro da língua na região do Médio Rio Amazonas foi feito pelo padre Manoel Justiniano de Seixas. Em Vocabulário da Língua Geral para o uso do Seminário Episcopal do Pará, de 1853, o termo utilizado foi Língua Geral, como foi verificado no título, e Língua Indígena Geral, registrado na seção “Breves explicações da Lingua Indigena Geral” (SEIXAS, 1853). No vocabulário, foi constatado o verbo Nhêen e seus respectivos derivados, Nheênga e Nhêensáua:

“Nhêen, v. act. diser, fallar; v. g. Dize a teo senhor, que me falle a manhã, nhêen nê iára çupé o nhêen arâma se irúmo uirané.

Nheênga, subs. f. falla, idioma; v. g. o idioma indigena geral é fácil de fallar-se, nhêengatú intio uassú purunguetá.

Nhêensáua, ou nheengassaua subs. f. fallacia.” (SEIXAS, 1853, p. 37)45.

Nesse trecho do vocabulário, antes mesmo de Couto de Magalhães (1876), Seixas (1853) registrou o uso do termo Nhêen, em referência a “falar o idioma indígena geral”. Já no material Doutrina Cristã, também de Seixas, publicado pelo cônego Francisco Bernardino de Souza (1875), não há nenhum registro do termo usado para a língua indígena. Em 1890, quando o Poranduba Amazonense: kochiyma-uara porandub, de João Barbosa Rodrigues, foi publicado, o termo Nheengatu já havia sido lançado para nomear a LGA. Dessa forma, nas advertências do seu livro, Rodrigues (2017 [1890]) já inseriu o termo proposto por Magalhães (1873) para marcar a Língua Geral. Como sinônimo do termo Nheengatu, Rodrigues (2017 [1890]) utiliza Tupi moderno, já para tratar das variedades linguísticas da língua no vale do Amazonas, Rodrigues (2017 [1890), p. 34) utilizou Língua Geral: “Quem como eu, tem percorrido o vale do Amazonas, e ouvido a Língua Geral falada pelos Tembés, Maués, Mundurucus, Pariquis, Muras, Apurinãs, Macuxis, Uapichanas, Chirianás, Tarianos, Tucanos etc., julga existirem muitas línguas, tal é a diferença de pronúncia”. Após listar diversas inserções do português e de outras línguas indígenas na Língua Geral, Rodrigues afirmou que: “essa língua adulterada é que conservou o nome Nheengatu no vale do Amazonas” (RODRIGUES, 1890, p. XII). Sobre esta e outras afirmações de Barbosa Rodrigues sobre o Nheengatu, Edelweiss (1969, p. 203) afirmou que o autor de Poranduba Amazonense apresenta “desconhecimento e mistificação entretecidos num emaranhado tal, que muitos ainda hoje titubeiam quanto ao verdadeiro significado do termo nheengatu”. Para

45 Grifos nossos.

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Edelweiss (1969, p. 204), o Nheengatu “desenvolveu-se (do tupi médio, ou seja, do brasiliano, um dialeto tupi, a tal língua-geral, que se formara entre colonos, mestiços e índios aculturados), de fins do século dezoito em diante e ainda subsiste em alguns rincões amazônicos mais afastados, como língua de intercâmbio”. Em 1892, quando o Vocabulário indígena comparado para mostrar a adulteração da língua foi publicado, Barbosa Rodrigues afirmou que conservava o emprego da palavra Nheengatu para o Tupi do Amazonas (RODRIGUES, 2017 [1892]). Todos esses registros mostram que diferentes termos foram utilizados para determinar a Língua Geral Amazônica, a partir de meados do século XIX. Muito deles utilizaram o Tupi como referência para marcar a língua, mesmo quando o termo Nheengatu já estava sendo utilizado. É importante ressaltar também que, naquele período, o uso intenso da língua na região do Médio Rio Amazonas já estava em declínio, restringindo-se a alguns lugares, o que pode ter contribuído para a manutenção do termo Tupi para marcar a língua. Entretanto, com os dados de que dispomos, não podemos determinar o motivo da manutenção do termo Tupi, mas seriam necessárias novas investigações sobre o assunto. Contudo, cabe destacar que os falantes do Médio Rio Amazonas utilizam o termo Tupi para identificar sua própria língua. Tore Janson (2015, p. 148) pontuou que a preocupação com os nomes exatos das línguas pode parecer desimportante. Entretanto, o crucial para a existência de uma língua é que as pessoas acreditem na sua existência. Se assim for de fato, então o nome da língua é essencial, pois não se pode falar facilmente de algo que não tenha nome, e se as pessoas não puderem falar sobre uma língua, é difícil esperar que acreditem que ela tenha existência própria. Uma nova língua existe quando um nome de língua foi criado por meio da mudança metalinguística. (JANSON, 2015, p. 148).

No Médio Rio Amazonas, em vez de usar o termo Nheengatu, os falantes nomeiam a sua língua materna como Tupi.

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4 METODOLOGIA

Ao estudar uma língua, buscamos compreender sua relação com a cultura na qual seus falantes estão inseridos. Franz Boas (1911), um dos fundadores da Antropologia americana, argumenta que não se pode entender realmente uma outra cultura sem ter acesso direto à sua língua (DURANTI, 1997). Para Boas (1911), o conhecimento das línguas indígenas serve como um importante complemento para uma compreensão completa dos costumes e crenças das pessoas que estudamos. De acordo com Goodnough (1964), assim como a cultura de uma sociedade consiste em tudo o que é preciso saber ou acreditar para operar de maneira aceitável para seus membros, e fazê-lo em qualquer papel que aceitem para qualquer um deles, a língua consiste em tudo o que é preciso saber para se comunicar com seus falantes tão adequadamente quanto fazem uns com os outros, e de uma maneira que aceitem como correspondendo aos seus. Considerando que a Etnografia é a descrição escrita da organização social, das atividades sociais, dos recursos simbólicos e materiais e das práticas interpretativas características de um grupo de pessoas em particular, o objetivo da Antropologia Linguística é estudar as formas linguísticas como elementos constitutivos da vida social (DURANTI, 1997). Nesse sentido, métodos etnográficos tradicionais, como a observação participante, são necessários para conectar formas linguísticas com práticas culturais particulares. A observação participante consiste em duas perspectivas: a participação passiva, quando o etnógrafo tenta ser o menos intrusivo possível, e a participação completa quando os pesquisadores interagem intensamente com os outros participantes da pesquisa, podendo até participar ou realizar a própria atividade estudada. É importante ressaltar que uma rica descrição de algum evento ou situação social pode variar quanto ao modo de observação, ou seja, pode-se alternar entre momentos de alto e baixo envolvimento. “Um princípio geral norteador aqui é que o respeito pela sensibilidade de nossos anfitriões deve sempre sobrepor nosso desejo por ‘bons’ dados e a emoção de documentar algo exemplar para nossos objetivos de pesquisa” (DURANTI, 1997, p. 102). Buscando alinhar os objetivos e procedimentos metodológicos com os pressupostos da Etnolinguística na pesquisa, utilizamos o modelo de pesquisa colaborativa como metodologia de trabalho. Para Keren Rice (2011), o estudo colaborativo acontece quando está vinculado à colaboração com membros de uma comunidade. Um trabalho de linguística documental, por exemplo, preocupa-se com o papel dos falantes, seus deveres e necessidades. Nesse sentido, a pesquisa baseada na comunidade é “conduzida por, para e com a participação de membros da

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comunidade” (RICE, 2011, p. 188). Czaykowska-Higgins (2009) afirma que este tipo de pesquisa envolve uma relação colaborativa, uma parceria entre pesquisadores e comunidade ou membros da comunidade onde a pesquisa é realizada. Neste ponto, quando falamos em comunidade da pesquisa, é necessário contextualizar as características dos falantes de Nheengatu no Médio Rio Amazonas. Como foi mencionado, os falantes são todos adultos, com mais de quarenta anos, que possuem relação de parentesco, mas que não vivem juntos nem convivem diariamente. Têm, também, uma relação histórica com o Rio Andirá, onde nasceram e aprenderam a Língua Geral Amazônica como língua materna. Porém, atualmente, alguns moram na cidade de Parintins e outros na cidade de Barreirinha, ambas do Estado do Amazonas. Durante o ano, ocorrem encontros entre eles, quando aproveitam para interagir em Nheengatu, mas também falam o Sateré-Mawé e a Língua Portuguesa. Neste caso, a comunidade é de falantes de Nheengatu que se estabeleceram em duas cidades do Médio Rio Amazonas. Retomando a pesquisa baseada em comunidade, Rice (2011) explica que, embora o termo “comunidade” remeta a estruturas complexas, com diferentes grupos dentro, unidos por laços familiares e/ou interesses compartilhados, há comunidades com poucos indivíduos, algumas vezes um ou dois membros, o que não inviabiliza o trabalho científico. A proposta colaborativa é fazer com que os participantes sejam parceiros e colaboradores na pesquisa de interesse mútuo e de utilidade para a comunidade. Ainda sobre a pesquisa colaborativa, é importante ressaltar a postura ética deste modelo de estudo, permitindo que as comunidades exerçam controle sobre as informações relacionadas ao seu conhecimento e herança e a si mesmos, ou seja, a pesquisa deve ser gerenciada juntamente com os falantes do Nheengatu, e as comunidades em estudos devem se beneficiar das oportunidades de treinamento e emprego geradas pela pesquisa, tendo uma participação direta no desenvolvimento e definição de práticas de pesquisa e projetos relacionados a eles (CZAYKOWSKA-HIGGINS, 2009). Como parte das práticas metodológicas e éticas da pesquisa colaborativa, evidencia-se que, caso haja algum constrangimento ou incômodo sobre determinado assunto do estudo pelos participantes, deve ser evitado ou suspenso. Quanto à metodologia de análise de dados, foi orientada por métodos qualitativos em Ciências Humanas, considerando, entre outros aportes teóricos, o Paradigma Indiciário de Carlo Ginzburg (1989). Segundo o autor, buscam-se analisar os indícios singulares que, pela sua relevância, ajudam a compreensão da realidade. Essas singularidades normalmente estão à margem dos fenômenos visíveis, mas, ao serem analisadas, permitem a elaboração de uma hipótese explicativa da realidade (PAULA, 2014). Como mencionado, o embasamento teórico

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para a análise orienta-se pelos postulados da Linguística Antropológica (BOAS, 1911; HYMES, 1964; SAPIR, 1921; 1974; WHORF, 1974) e pela Etnossintaxe (ENFIELD, 2002; WIERZBICKA, 1997; LUCY, 1999; PAULA, 2014). O corpus da investigação constitui-se por obras que registram o Nheengatu na região do Médio Rio Amazonas, como o Dicionário de Língua Geral Amazônica, do século XVIII, e a obra de João Barbosa Rodrigues, Poranduba Amazonense, que registra narrativas coletadas na região estudada. Nesse sentido, buscamos, nos dados coletados, indícios linguísticos e culturais que possam indicar uma linha de continuidade histórica e de transmissão cultural e linguística, unindo os falantes de Nheengatu do século XVIII aos atuais na região do Médio Rio Amazonas.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

4.1.1 O Corpus da Pesquisa

O objetivo principal do nosso trabalho foi verificar se há uma linha de continuidade histórica e de transmissão cultural linguística, unindo os falantes de Nheengatu do século XVIII aos atuais da língua na região. Além disso, com a pesquisa, buscamos favorecer a ativação da memória lexical dos atuais falantes do Nheengatu, a fim de contribuir com o processo de fortalecimento da língua. Assim, em consonância com os objetivos escolhidos, tomamos como corpus principal de investigação a obra Poranduba Amazonense, de João Barbosa Rodrigues (1890), e o Dicionário de Língua Geral Amazônica, publicado em 2019, mas com dados do século XVIII. Além das duas obras, identificamos dois materiais do padre Manoel Justiniano de Seixas, o Vocabulário da Língua Geral para o uso do Seminário Episcopal do Pará (1858) e a Doutrina Cristã (1875), que auxiliaram nas análises, considerando que o autor possivelmente coletou dados na região.

4.1.1.1 O Poranduba Amazonense: kochiyma-uara porandub

Rodrigues (1890), ao coletar as narrativas durante sua viagem à região Amazônica, entre 1872 e 1875, registrou o lugar onde as escutou. Como mencionamos, algumas foram coletadas

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na área que abrange a pesquisa. Sobre as narrativas selecionadas46, fizemos os seguintes apontamentos iniciais: O autor dividiu-as em quatro categorias: (I) “lendas mitológicas”47; (II) contos zoológicos; (III) contos astronômicos e botânicos; e (IV) cantigas. Para cada um desses itens, Rodrigues escreveu uma introdução comentando cada tópico. No primeiro item, as “lendas mitológicas” foram divididas em contos do Curupira e Contos dos Juruparis. Para cada seção, há uma explicação do autor sobre o Curupira e o Jurupari. Da região do Médio Rio Amazonas, encontramos uma narrativa do Curupira – “O Curupira e a mulher” e uma do Jurupari - “O Jurupari e as moças”. O registro da primeira foi no Rio Amazonas e a segunda, no Rio Madeira. Ressaltamos que incluímos a narrativa desse último rio por considerar as relações e contato entre diferentes etnias na área que abrange o Rio Madeira e o Tapajós, já descrita no capítulo anterior. No segundo item, encontramos três narrativas que podem ter sido coletadas na região da pesquisa: “A cantiga do Jurutaí”, do rio Amazonas, “A Mucura e a Ariramba”, do rio Amazonas, e “O Tamurapurá e o Japiim”, do Pará e Amazonas. Na segunda narrativa, um detalhe que chamou atenção foi a diferença da língua portuguesa, que classifica a ave Ariramba como feminino, dizemos “a Ariramba”, enquanto na narrativa, Ariramba é marcada pelo artigo “o”, masculino. No conto, a filha da mucura é casada com o Ariramba. Para essa ocorrência, podemos considerar três explicações possíveis: (1) pode ser um uso do português regional (há outras denominações que sofrem variação de gênero conforme usos regionais ou outros; como “a personagem” e “o personagem”); (2) a cultura indígena cuja língua é substrato, identifica esse animal como masculino; (3) a língua indígena de substrato não distingue gênero e, ao falarem português, os falantes nativos usam “o” (masculino) não marcado, para tudo que não tenha o sexo feminino definido. Verificamos, também, que nas narrativas zoológicas, os animais possuem graus de parentescos. Na terceira narrativa zoológica, por exemplo, o Tamurapurá mata o avô dos Japiins. No terceiro item, contos astronômicos e botânicos, só há uma narrativa do Médio Rio Amazonas, coletada em Vila Bela, antigo nome da cidade de Parintins: “A origem das Plêiades”. Encontramos também relações familiares para explicar a origem dessa constelação. Enfim, no último item, identificamos versos coletados na região da pesquisa de dois tipos de cantigas: do Çairé e do Makuru.

46 Todas as narrativas selecionadas constam no anexo deste trabalho, transcritas a partir de Rodrigues ([1890] 2017). 47 Termo usado por Rodrigues (1890).

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De acordo com Rodrigues ([1890] 2017), o Çairé era uma espécie de procissão de mulheres, em que carregavam o instrumento com o mesmo nome, fazendo uma saudação nas festas religiosas em homenagem a algum santo. O cortejo dirigia-se a diferentes lugares, como a igreja, a casa do juiz da festa, a casa do vigário, dentre outros. As palavras de saudação eram próprias a quem se dirigiam e o canto era sempre em Língua Geral, repetido em coro pelas mulheres. Ainda segundo o autor, o “instrumento”, também chamado de çairé, é um semicírculo de madeira de 1,40m de diâmetro, contendo dentro dois outros menores, colocados um a par do outro, sobre o diâmetro maior. Da união dos dois parte um raio do grande, que, excedendo a circunferência, aí forma uma cruz. Os menores têm o seu raio perpendicular ao diâmetro comum, rematados em cruz. Esses arcos são envolvidos por algodão batido, enleado por fitas e enfeitados com espelhinhos, doces, frutas etc. Da cruz do raio maior parte uma longa fita. (RODRIGUES, [1890] 2017, p. 498).

O padre João Daniel ([1776] 2004), ainda no século XVIII, descreve o Sairé48 como uma dança dos meninos e meninas. No registro, cita que os homens não participavam da dança, sendo apenas responsáveis pelo compasso do tamborim. A descrição de Daniel sobre o Sairé apresenta a organização da dança, a ornamentação do arco e a sequência de movimentos durante a apresentação: Consiste o sairé em uma boa quantidade de meninos, todos em fileira atrás um dos outros com as mãos nos ombros dos que lhe ficam adiante, em três, quatro ou mais fileiras: e na vanguarda anda um menino, se a dança é de ascânios, dos mais altos, ou menina, quando o sairé é de hembras, das mais taludas, pegando com ambas as mãos nas bases de um meio arco, o qual em várias travessas está enfeitado com algodão, flores, e outras curiosidades, e no remate em cima prende uma comprida fita que, salvando por cima das cabeças de toda a chusma, vai rematar a outro, ou outra, que na retaguarda lhe pega, e a puxa de quando em quando para trás, e logo laxa para diante conforme o compasso da primeira, que já levanta o sairé, e já o abaixa, já o inclina para diante, agora para trás, e agora para as bandas: e a cada movimento do sairé dão um passo para diante, e logo outro para trás, acompanhado das vozes até, ou cansarem, ou os tamborileiros de fora pararem com o toque do tamboril (DANIEL [1776] 2004, p. 288).

Além disso, o autor descreve como o Sairé estava presente nas missões: Nas missões, em que ainda conservam o sairé, o fazem já com mais galantaria, porque o ornam e adornam com o enfeite de boas fitas de diversas cores, e lindas plumagens, espelhos, e vários adornos; e ao seu compasso entoam, e cantam devotas cantigas, ou aos Santos, ou em abono dos juízes da festa, que algumas vezes vão no couce da procissão muito à grave, isto é atrás do sairé, rodeados dos mordomos, e metidos entre as suas varas, porque pegando nas pontas uns dos outros fazem à roda um quadro, ou quadrângulo, em que os juízes vão metidos entre varais, especialmente quando nas festas saem das igrejas e picam de roda para suas casas bem providas de mocororó para hospedarem o acompanhamento, que bem o agradece com estas, e muitas outras danças, e festins, enquanto duram as vinhaças. tamboril (DANIEL [1776] 2004, p. 289).

48 Grafia utilizada por Daniel ([1776] 2004, p. 288)

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Observamos que essa segunda parte da descrição do Sairé por Daniel nas missões é similar à descrita por Rodrigues, citada anteriormente. Ressalta-se que, embora Daniel relate essa dança, não cita nenhuma região específica no Rio Amazonas onde presenciou o Sairé. Além das descrições do Çairé por Daniel, no século XVIII, e por Rodrigues, no século XIX, encontramos outra referência a essa celebração descrita pelo Cônego Francisco Bernardino de Souza (1875, p. 91), também no século XIX. No relato, o autor descreve que assistiu à célebre festa na freguesia do Andirá. Segundo ele, o Sahiré49 “é um semicírculo com seu diametro, raios, cordas, etc., tudo forrado de algodão ou arminho enfeitado com fitas e coroado de uma cruz da mesma forma forrada e enfeitada. Tres mulheres indígenas o carregam, e é muito raro que uma delas não seja côxa50”. Entretanto, o autor relata que não viu nenhuma mulher coxa no Andirá. O Sahiré era levado quando acompanhavam alguma imagem à igreja para ser festejada ou quando desembarcavam a coroa do Espírito Santo, na véspera da Ascenção. Além disso, nas festas de São João e São Thomé, realizadas pelos indígenas, o Sahiré era acompanhado de perto “por um tambor, tocado por um sujeito, que ao mesmo tempo toca uma gaita” (SOUZA, 1875, p. 91). Na descrição de Souza no Andirá, as mulheres levam o Sahiré dançando e cantando um hino, em língua geral, “em honra da Santa Cruz, da Virgem Santíssima e de S. João Baptista, o santo mais popular dos índios do Amazonas”. Descreve, ainda, os hinos (SOUZA, 1875, p. 91): Eis a letra do hymno, que cantam em lingua geral: - Itá Camuti pupé neiássúcaua pitanguê puranga ité. E o estribilho em portuguez: - E Jesus e Santa Maria! Santa Maria cuian puranga; imemboira iauerá iuaté pupé, oicou curussá uassú pupé; ianga turama rerassú. E o estribilho. - E Jesus e Santa Maria! (SOUZA, 1875, p. 91).

Segundo a autor, a tradução dos hinos são, respectivamente: “Em uma pia de pedra foi baptisado o Menino Deus” e “Santa Maria é uma mulher bonita: seu filho é como ella: no alto céo está n’uma cruz grande para guardar a nossa alma”. Por fim, Souza (1875) afirma que a festa d Sahiré, instituída pelos jesuítas, já estava caindo em desuso naquela época. Sobre as cantigas do Makuru, o autor não caracteriza em que circunstâncias o canto era utilizado, mas detalha o que era o “instrumento” chamado de Makuru: É o berço do índio. São duas rodelas de cipó, unidas uma à outra por cordéis, cobertas de algodão, formando como que um cesto, que é suspenso a um caibro da casa por uma corda, ficando distante da terra só a altura necessária para que a criança metida nela possa tocar com os pés o chão, e assim, pelo movimentos das pernas por si se embalar. (RODRIGUES, [1890] 2017, p. 509).

49 Grafia utilizada por Souza (1875, p. 91). 50 O adjetivo coxo refere-se a um objeto que falta pé ou perna, ou seja, no texto, uma mulher manca.

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4.1.1.2 O Dicionário de Língua Geral Amazônica

Assim como as narrativas citadas no item anterior, o Dicionário de Língua Geral Amazônica, que registra a língua no século XVIII, também auxilia a verificar se há uma linha de continuidade entre os falantes antigos da língua com os atuais. Além disso, a escolha por esse material condiz com nosso objetivo uma vez que há evidências de que o autor, Anton Meisterburg, tenha coletado dados para o dicionário na região do Médio Rio Amazonas (MULLER et al., 2019). Os detalhes sobre a relação do dicionário com esse trecho do rio foram explicitados no capítulo anterior.

4.1.1.3 O Vocabulário da Língua Geral para o uso do Seminário Episcopal do Pará e a Doutrina Cristã, do Pe. Manoel Justiniano de Seixas

No decorrer da pesquisa, identificamos duas obras do padre Seixas, que foi vigário da missão do Andirá no século XIX. Rodrigues ([1890] 2017, p. 38) cita-o como amigo, já falecido, e afirma que, no seu vocabulário, já escrevia sobre a diglossia existente nas missões jesuíticas entre a língua dos catecismos e das gramáticas e a língua falada diariamente nas missões. O finado meu amigo, o reverendo padre Manoel Justiniano de Seixas, vigário da freguesia do Andirá, conhecia que a língua ia em decadência, tanto que no prólogo do seu vocabulário, disse: “que pela corrupção tudo quanto nela existe escrito é quase desconhecido pelos índios”.

O Vocabulário da língua indígena geral para o uso do Seminário Episcopal do Pará, do padre Seixas, citado por Rodrigues, possui uma seção inicial intitulada “Breves explicações da Língua Indígena Geral”, com algumas informações sobre a gramática da língua. Em seguida, o vocabulário é organizado alfabeticamente, seguindo a ordem língua geral-português. Sobre o compêndio da doutrina cristã que o padre Seixas escrevia em 1875, quando morava na freguesia do Andirá, Souza (1875) transcreve o capítulo preliminar (Anexo 5). Considerando a área da pesquisa e o estudo sobre o Nheengatu da região, decidimos utilizar também esse material nas investigações.

SELEÇÃO DOS FALANTES

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O critério inicial de inclusão é ser falante/lembrantes de Nheengatu, como língua materna do Médio Rio Amazonas e morar nas cidades de Parintins e Barreirinha, municípios do Amazonas. Nesse sentido, a pesquisa foi realizada em colaboração com os falantes atuais de Nheengatu do Médio Rio Amazonas que vivem em uma dessas cidades. Identificamos cinco falantes, integrantes da mesma família: três homens e duas mulheres. Durante um dos encontros com os falantes, soubemos que a filha de uma das mulheres aprendeu, com a mãe, o Nheengatu. De todos os irmãos, somente esta irmã conseguiu passar a sua língua materna para a filha.

TRABALHO DE CAMPO

Ao observarmos esse panorama das narrativas, desenhamos as etapas do nosso trabalho de campo, considerando as transcrições dos textos para o Nheengatu atual e o registro da relação dos falantes com a língua. Assim, o ponto inicial da conversa foi um levantamento histórico e familiar detalhado sobre o uso da língua materna e as outras línguas faladas (Sateré-Mawé e Português). Em conjunto, identificamos os lugares onde a família se estabeleceu na região do Médio Rio Amazonas e sua relação com os demais rios adjacentes: Andirá, Madeira e Tapajós. Para esta etapa, utilizamos mapas da região que pudessem ilustrar o levantamento, de um mapa da Amazônia, organizado em 1870 pela Amazon Steam Navigation Company Limited e completado em 1893 por Luiz R. Cavalcanti de Alburqueque (Anexo 3). Esse último foi importante, pois registrava nomes antigos de rios atuais, como o Tupinambarana, atual Uiacurapá, ajudando na identificação de lugares que estavam, de alguma forma, ligados com a história da família. Todos os mapas foram impressos em A3, para que os falantes enxergassem com mais detalhes as informações. Após essa etapa, cada um ficou com uma cópia desses mapas. Quanto às narrativas, decidimos iniciar com as cantigas. Como mencionamos, encontramos registros de cantigas do Çairé e do Makuru coletadas em Vila Bela, atual Parintins. Antes da leitura dos trechos das cantigas, foram disponibilizadas duas imagens que representavam os dois temas e, depois, perguntou-se se eles conheciam esses adornos/objetos:

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Figura 21 - Çairé.

Fonte: Disponível em: http://augustoalves.com/caire-2016-vai-comecar-a-maior-manifestacao-folclorica-do- oeste-do-para/.

Figura 22 - Makuru.

Fonte: Disponível em: https://deskgram.co/explore/tags/Educa%C3%A7%C3%A3odeVerdade.

Em seguida, começamos os trabalhos com os textos narrativos. Inicialmente, a proposta era perguntar se conheciam algum conto com os personagens apresentados nas narrativas: mitológicos (Curupira e Jurupari), zoológicos (Jurutaí, Mucura, Ariramba e Tamurapuá) e astronômicos (Plêiades/constelação). Entretanto, não conseguimos registrar nenhuma narrativa livre, pois os falantes, naquele momento, não lembraram de nenhuma. Posteriormente, começamos a trabalhar com as narrativas selecionadas de Barbosa Rodrigues (2017[1890]). A sequência de coleta foi: O curupira e uma mulher; o Jurupari e as moças; a Mucura e a Ariramba; A origem das Plêiades; Cantigas do Çairé e Cantigas do Makuru.

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Iniciamos a coleta, apresentando somente a versão em Nheengatu. Naquele momento, os falantes indicavam se conheciam ou não a história apresentada, as semelhanças e as diferenças entre as narrativas de Rodrigues e as que eles conheciam. Em seguida, começamos a transcrever as narrativas para a língua atual.

TRANSCRIÇÕES DE DADOS

Para a etapa de transcrição, surgiu um questionamento. Diferente de outros lugares que trabalham com revitalização de línguas indígenas, no Médio Rio Amazonas, os falantes são lembrantes da língua, mas não estão no processo de revitalização. Nesse sentido, não há uma nova ortografia da língua para fazer o registro. Dessa forma, optamos por registrar as transcrições com base na análise fonológica proposta em trabalhos preliminares do Nheengatu do Médio Rio Amazonas (LIMA-SCHWADE, 2014). Nessa análise fonológica, foram utilizados os princípios descritos por Pike (1947) e Gleason (1978), que seguem os critérios de análise de sons semelhantes para encontrar contraste em ambientes idênticos ou análogos, seguidos da distribuição complementar e variação livre. Assim, os fonemas /p, b, t, d, k, g, m, n, ɲ, ɾ, s, ʃ, ʒ, w, j/ foram definidos como consoantes e os fonemas /i, e, ɨ, a, u, o, ῖ, ã, ũ/ como vogais da língua Nheengatu do Médio Rio Amazonas. O estudo da estrutura da sílaba definiu os tipos V e CV como padrões silábicos em Nheengatu, não atribuindo, em seu inventário silábico, um elemento na posição de Coda do padrão CV. As sequências de segmentos ambíguos foram divididas em duas partes: em posição de Ataque e em posição de Coda. Em Ataque, a ambiguidade encontrava-se quanto ao uso das vogais altas anterior [i] e posterior [u] em início de sílaba. Entretanto, devido à pressão estrutural da língua, passaram a ser consideradas como aproximantes palatal [j] e bilabial [w]. Em posição de Coda, foram analisadas como ditongos, com um núcleo silábico complexo ocupado por dois segmentos vocálicos. Por fim, alguns termos, registrados por Rodrigues (1890), foram dispensados pelos falantes do Nheengatu no Médio Rio Amazonas, pois dispensaram a transcrição das narrativas para a língua atual, afirmando que naquele contexto, achavam melhor não inserir. Assim, na tese, esses termos aparecem riscados, seguidos de um asterisco (*).

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5 REGISTRO DO NHEENGATU ATUAL FALADO NO MÉDIO RIO AMAZONAS

OS DADOS COLETADOS

No nosso primeiro trabalho de campo, conversamos com dois falantes homens, sendo que um mora em Parintins e, outro, em Barreirinha, e fomos às duas cidades. No segundo trabalho de campo, continuamos a coleta de dados com os dois falantes homens, em suas respectivas cidades. Além disso, conversamos também com uma mulher, falante de Nheengatu, atualmente moradora de Barreirinha. Durante o trabalho de campo, conseguimos realizar um levantamento histórico familiar, que ajudou a projetar uma linha cronológica da entrada da Língua Geral Amazônica na região do Médio Rio Amazonas. Quanto às cantigas, não obtivemos informações com os falantes sobre a do Çairé, pois não relacionaram a imagem à festividade religiosa na região e o conhecimento que relataram sobre o Çairé referia-se à atual festa realizada no município de Santarém/Pará, amplamente divulgada nos Estados do Norte do país. Sobre a cantiga do Makuru, logo reconheceram a imagem e relacionaram ao nome indígena citado por Rodrigues (1890). Em um dos encontros, um dos falantes, juntamente com sua esposa51, cantaram uma versão de cantiga em português, utilizada quando a criança estava no Makuru. Entretanto, não conseguimos fazer o registro completo naquele momento52. A única parte que conseguimos registrar foi um canto em português relacionado à cantiga do Makuru em português: “Murucututu me empresta teu sono”. Infelizmente, devido à pandemia de Covid-19, no início de 2020, não conseguimos encontrá- los novamente até o fim da pesquisa. Vale ressaltar que Murucututu é uma ave encontrada na região amazônica (Pulsatrix perspicillata / Strigidae): Coruja grande e impressionante, encontrada em floresta primária de todo tipo, inclusive em grandes fragmentos urbanos. Come ratos e outros mamíferos de porte pequeno e médio. A plumagem branca do jovem é substituída gradativamente por penas mais escuras. O nome popular imita mais ou menos o canto característico. (D’AFFONSECA, 2012, p. 80)

Em muitos lugares da região amazônica, há cantigas, utilizadas para embalar o sono das crianças, que usam o murucututu como personagem. Uma versão dessa cantiga em Nheengatu,

51 A esposa é falante só de língua portuguesa. Entretanto, afirma que entende um pouco o Sateré-Mawé e o Nheengatu. 52 Nesse dia, fomos somente fazer uma visita a este falante em sua casa, pois encontrava-se muito doente depois de sofrer uma queda. Inclusive, não levamos os equipamentos de pesquisa (gravador, caderno de pesquisa). Durante a conversa, comentamos sobre esse tipo de berço/balanço e logo ele e a esposa cantaram a cantiga em português.

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utilizada em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, foi disponibilizada pelo projeto Cantos da Floresta: iniciação ao universo musical indígena.

Quadro 7 - Cantiga do Murukututu, em São Gabriel da Cachoeira.

MURUKUTUTU TRADUÇÃO Tutututu moreka tutu re rúry se pussê Coruja, traz para mim a boneca pesada tutu Sembyra mirî Minha filha pequena tem tudo no meu peito tirutypá urykupã seputiã Traz a boneca pesada Moreka tutu re rúry se pussê Gavião, gavião Karioka ray, Esquilo, traz o peso para minha mão kareka ray Para minha filha hum hum tu tu Akutypurú re rúry, se pussé Coruja da noite, traz para minha filha Sembyra supê hum hum tu tu Coruja e esquilo, tu tu tu tu Murukututu re rúry Sembyra supê Nananananana Maraku tutu akutypurú, tu tu tu tu Minha filha pequena está encostada em mim Naná nanana nana nananá nana nanana Traz para mim o peso da minha filha pequena Sembyra mirî uyay se yukuy Esquilo, traz o peso Sembyra mirî re rúry se pussé Para a minha filha Akutypurú re rúry se supê Assim eu falei para vocês Sembyra supê Fonte: Disponibilizado em: http://www.cantosdafloresta.com.br/audios/murukututu/ Acessado em 31de outubro de 2020.

Buscamos saber se a cantiga era conhecimento comum entre os amazonenses e paraenses. Encontramos uma versão em língua portuguesa disponibilizada por um paraense que mora em Manaus: “Murucututu de cima do telhado empresta teu sono para o “fulano” dormir”. Ele afirmou que era cantada por sua mãe e, algumas vezes, o personagem murucututu era substituído pelo sapo cururu. Em Cametá, município do Pará, encontramos uma versão também em língua portuguesa, dada por uma cametaense, porém, o nome da coruja é morocototo. Dois amazonenses lembraram do início da cantiga que ouviram de suas respectivas mães: “Murucututu da beira do rio”. Ainda no Amazonas, encontramos esse termo em Nheengatu sendo utilizado para nomear estabelecimentos comerciais. Em Manacapuru, município do Amazonas, há um restaurante e balneário chamado Murucututu.

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Figura 23 - Estabelecimento comercial no Amazonas com nome Murucututu.

Fonte: Elaborado pela autora (2021).

Dos textos narrativos coletados por Rodrigues (2017[1890]), transcrevemos a versão com o Nheengatu atual coletados no Médio Rio Amazonas. A título de organização de dados para as análises, organizamos as narrativas com o registro de Rodrigues, do século XIX (em itálico), e com a transcrição atual (em negrito).

NARRATIVAS COLETADAS NA REGIÃO DO MÉDIO RIO AMAZONAS POR JOÃO BARBOSA RODRIGUES ([1890], 2017), COM A VERSÃO ATUAL DA LÍNGUA.

5.2.1 O Curupira e a Mulher

CURUPIRA YEPÉ CUNHAN IRUMO53 Kuɾupiɾa jepé kuɲã iɾũ o curupira uma mulher com (RIO AMAZONAS)

53 Rodrigues ([1890] 2017, p. 127-133).

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Yepé apegaua o ricu, paá, chemericó, o ricu tayra miri cuaira54 eráin. Jepé apiga u-ɾekó, paá, simirikó55, u-ɾekó taiɾa miɾi cuaira* eráin* Um homem tinha, dizem, esposa, tinha filho pequeno tenro, ainda

Cuá apegaua yepé o ço u camonó i o iuanti Curupira irumo. Kuá apiga jepé aɾa u-so u-kamonõ i-u-iwasẽn56 Kuɾupiɾa iɾũ. Este homem um dia foi caçar ele encontrou-se Curupira com.

Curupira, paá, o iucá aé. Kuɾupiɾa, paá, u-juká aé. O Curupira, contam, matou ele.

Ariri, paá, o pirare nhaan apegaua petêra rupi; ariri, paá, o iuúca i pêá pêa; Aɾiɾé, paá u-piɾaɾe ɲaã apiga piteɾa ɾupi; aɾiɾé, paá, u-joók i-pea pêa; Depois, dizem, abriu aquele homem meio pelo; depois, contam, tirou seu fígado;

ariri, paá, iuêre iuúca i cerora camichá o mundéua cecé; aɾiɾé, paá, juere joók i-seɾoɾa kamiʃá u-munéu sesé57; depois, dizem, ainda tirou sua calça e camisa vestiu em si;

ariri, paá, i o muácuaema aé uana o ço nhaan apegaua cuêra remericó pêre, o cenoi: aɾiɾé, paá, i-u-muákuaema aé uana u-so ɲaã apiga kuêra ɾemeɾikó pêɾe, u-senõi: depois, dizem, ele disfarçou-se logo foi aquele homem que foi mulher tu com, e chamou:

-Uaimi! Uaimi!...Mamé taá re icó?58 -Waimi! Waimi!...Mamé taá ɾe-ikó? - velha velha Onde que tu estás?

54 “Abreviatura de ikó, estava, ayra, tenro, pequeno” (RODRIGUES, 1890). 55 Em pesquisas anteriores (LIMA-SCHWADE, 2014), registramos “minha esposa” como “cimiricó”. Entretanto, na coleta da narrativa, o termo “minha esposa” foi registrado como sewaimi, que não tem o mesmo significado; sewaimi é, literalmente, “minha velha”. 56 Perguntei como era encontrar e a resposta foi ‘iwasẽn’. 57 Não identificaram cecé para ‘em si’, mas construíram um equivalente: i pira pupé - no corpo dele. 58 “Abreviam a frase dizendo Matarecô” (RODRIGUES, 1890).

91

-Cu çucui chá icó. -Ku sukui ʃá-ikó / ʃikui iʃe aikó59. - Aqui está eu estou. Aqui eu estou

Aé ana, paá, o uiqui oca cuara queté. Aé ana, paá, uiké oka cuara pupé60. Ele já, dizem, entrou casa dentro para.

Ariri, paá, o maité i mena arama, mahy cuité, paá inti o maan cecé Aɾiɾé, paá, u-maité i-mena aɾama*, mahy cuité*, paá inti u-maã sesé Depois, dizem, pensou seu marido mesmo, como então, dizem não olhou nele.

- Cu çucui cha rure çoó-cuêra ceen uaá, iure rememue cha arama. - iké ʃikui haɾuɾi soó-kueɾa61 seẽ waá, eɾê mimõi se arã. - Aqui está eu trouxe carne gostosa que, vai cozinhar mim para.

- Aé ana, paá, u meen ichupé i pêá pêá o iuúca uaá i mena cuêra. - Aé ana, paá, u-meẽ iʃupé i-pêá u-joók waá i-mena kuêra. - Ela já, dizem, deu lhe o fígado tirou que dela marido que foi.

Aé ana o mechire, ramé uana o çu o iuúca iú, Aé ana u-meʃiɾe, ɾamé wana u-so u-joók uí, Ela logo assou, quando já foi tirou farinha,

aé ana o apêca membira aitá irumo, iuêre o apêca Curupira, tupé arpe, aé ana u-apêk imemiɾa itá iɾũ, jueɾe u-apêk Kuɾupiɾa, tupé aɾpe, ele logo assentou-se filho eles com, também assentou-se Curupira esteira em cima,

aé ana o nheen: aé ana u-ɲeẽ: ele já disse:

59 Eles deram esta segunda opção. Como mencionamos anteriormente, essa forma que o pronome livre (iche) não se junta com o prefixo de 1ª pessoa do verbo (a-), o que prova a independência, ainda, tanto do pronome livre (iche ~ che) quanto da marca pronominal (a- ~ha-). 60 Segundo eles, se falar cuara será dentro do buraco da casa. Uiqué oca pupé. 61 Eles dizem que é carne de caça.

92

-Yá ço yá umbaú -ja-so ja-maú -Vamos nós comer

Aé ana aintá o maú yepé uaçu. Ariri Curupira o nheen: Aé ana aῖtá u-maú jepé wasu. Aɾiɾé Kuɾupiɾa u-ɲeẽ: Logo eles comeram juntos. Depois, o Curupira disse:

-Cuêre cha ço putare cha quîre. Irure tayra i cha arama u quîre ce irumo. - Kuêɾe ha-so-putaɾe ha-kéɾi. Eɾuɾe taiɾa se aɾã arama u-kéɾi se-iɾũ. -Agora eu ir quero eu dormir. Traz filho mim para dormir migo com.

Aé ana, paá, Curupira o inó quiçaua opé. Aé ana, paá, Kuɾupiɾa u-junõũ kuisa pupé. Ele, logo, dizem, Curupira deitou-se rede na.

Aé ana, paá, nhaan cunhan o rure tayra o meen ichupé. Aé ana, paá, ɲaã kuɲã u-ɾuɾi taiɾa u-meẽ iʃupé. Logo, dizem, aquela mulher trouxe filho deu a ele

O quîre o ço o maan cecé, o maan catu iarpe. U kuéɾi u-so u-maã sesé, u-maã katu jaɾpe. Dormiu foi olhar nele, olhou bem em cima.

Aé ana, paá, u nhenhê: “Cuá inti ce mena, cuá inti ce mena, cuá Curupira”. Aé ana, paá, u-ɲeɲê: “Kuá ῖti se-mena, kuá ῖti se-mena, kuá Kuɾupiɾa”. Ela logo, dizem, falou: “Este não meu marido, este não meu marido, este Curupira”.

Aé ana, paá, i o mocaturu i maan etá panacu upé; Aé ana, paá, i-u-mokatuɾu i-maã etá panaku pupé; Ela logo, contam, ela arrumou dela coisas panacu no; aé ana o ço o iuúca i membira i chii o ço o iuoca inuá aé ana u-so u-joók i-memiɾa i-ʃii u-so u-joók inuá ela logo foi tirar seu filho dele foi tirar pilão

93

umbure tayra recoiara i potiá ape, aé ana o pecêca i panacu, umumoɾe taiɾa ɾekó i-potiá pupé, aé ana u-pesêka i-panaku, botou filho em lugar dele peito no, ela já pegou seu panacu,

i maan etá irumo uaá umbure i cupepe, i-maitá iɾũ waá umomoɾe i-kupepe, suas coisas com que pôs suas costas na,

u pecêca tayra u çupire i poti ape didima62 apé, aé ana o ço ana. u-pesêka taiɾa u-supiɾe i-poti ape dídima*63 pupé, aé ana u-sõ ana. pegou filho carregou seu peito no tipoia na, ela logo foi embora.

Ariri çacacuera iunto o paca nhaan Curupira, Aɾiɾé sakukueɾa jũto u-pá ɲaã Kuɾupiɾa, Depois, em seguida logo acordou aquele Curupira,

Aé ana, paá, o puama o cema ocara queté onheen: aé ana, paá, u-puã u-sẽ ukuara kité uɲeẽ: ele já, dizem, levantou-se saiu fora para e disse:

-Ah! o ganane i ché nhaan cunhan. -Ah! u-ganã i-ʃé ɲaã kuɲã. Ah! enganou me aquela mulher.

Aé ana o cecare o çacema: Aé ana u-ʃikaɾi u-sasẽn: Ele logo procurou gritando:

-Uaimi! Uaimi! Mamé taá re icó? -Waimi! Waimi! Mamé taá ɾe-ikó? -Velha! Velha! Onde que tu estás?

62 “Vocábulo do dialeto Uapichana, que corresponde à tipoia Tupi”. (RODRIGUES, 1890) 63 Não lembraram.

94

Aé ana, paá, o maan Curupira ure çacacuera. Aé ana, paá, u-maã Kuɾupiɾa uɾi sakukueɾa. Ela logo, contam, viu Curupira vir no encalço.

Aé ana, o iáuau i chii. Aé ana, u-jawau i-ʃii. Ela logo, fugiu dele.

Aé ana, paá, u nhana nhaan64 cunhan o iupire mambui iua65 recé, Aé ana, paá, u-ɲã ɲaã kuɲã u-jupiɾe mãbui iwa ɾupé, Ele logo, dizem, correu aquela mulher subiu mambuizeira na,

çacanga queté iuaté aap o puitá u queiiri66 o iapeçaca Curupira ure, sakãa pupé juaté aapi u-pitá u-kueiiri*67 u-senũ68 Kuɾupiɾa uɾi, galho pelo alto lá ficou calada escutando o Curupira vir,

o cêca uirpe u cenõe: u-sêka iwpé u-senõi: chegar em baixo chamar:

-Uaimi! Uaimi! Mamé taá re icó? -Waimi! Waimi! Mamé taá ɾe-ikó? - Velha! Velha! Onde, que tu estás?

Yapé muirá racanga arpe Uacuráu nhengare: “Mambui! Manbui!”69 Japé miɾá ɾakã aɾpe Wakuɾáu ɲẽgaɾe: “Mãbui! Mãbui!” Num árvore galho em cima acurau cantou: “ Mãbui! “Mãbui!”

64 “Pronunciam também iáan”. (RODRIGUES, 1890) 65 “É o nome dado aos Louros, árvores dos gêneros Nectandra e Aydendrum da família das Lauráceas.” (RODRIGUES, 1890). 66 “Também pronunciam quirirento”. (RODRIGUES, 1890) 67 Eles não lembraram o termo ‘calada’. 68 Para esse trecho, eles usaram u-senũ: escutar, ouvir. 69 “Este notívago parece no canto dizer esta palavra, que também, como já vimos, é o nome de uma árvore”. (RODRIGUES, 1890).

95

Curupira u cendó icó o máeté nheengare icó, inti o cuau, Kuɾupiɾa u-senói ikó u-máeté ɲeẽgaɾe ikó, ῖti u-kuá, o Curupira ouvindo estava pensou cantando estava, não soube,

Curupira inti o maan cunhan recé, aé iana o iuuire. Kuɾupiɾa ῖti u-maã kuɲã ɾesé, aé jana* u-juwiɾe. o Curupira não viu mulher a, ele já voltou.

Cunhan o maan Curupira o iuuire, aé ana o êiyr, Kuɲã u-maã Kuɾupiɾa u-juwiɾe, aé ana u- iwié, A mulher olhando o Curupira voltar, ela logo desceu, o nhana uiqui caá pupé. u-ɲã wiké kaá pupé. correu e entrou mato no.

Aé ana, paá, Curupira o nheen: “ Nhaan cunhan u ganane iché”. Aé ana, paá, Kuɾupiɾa u-ɲeẽ: “ɲaã kuɲã u-ganã iʃé”. Ele logo, dizem, o Curupira disse: “Aquela mulher enganou me”.

Aé ana o iuuire o nhana çacacuera o cenoe aé: Aé ana u-juwiɾe u-ɲã sakakueɾa u-senõi aé: Então voltou correu atrás chamou ela:

-Uaimi! Uaimi! Mamé taá re icó? -Waimi! Waimi! Mamé taá ɾe-ikó? -Velha! Velha! Onde que tu estás?

Aé ana, paá, cunhan o nhana iuêre muirá açu rupetá queté, Aé ana, paá, kuɲã u-ɲã jueɾe miɾá asu ɾupetá kueté, Ela logo, dizem, a mulher correu outra vez árvore grande tronco para, nhaan muirá o ricó i cuara uaçu, ɲaã muiɾá u-ɾekó i-kuaɾa wasu, aquela árvore tinha seu buraco grande,

96

nhaan i cuara chii o pure cururu Cunauaru.70 ɲaã i-kuaɾa ʃii u-póɾe kuɾuɾu Kunawaɾu. daquele buraco dele saltou sapo Cunauaru.

-Ah! Cunauaru! Cha putare re peceru iché Curupira chii. -Ah! Kunawaɾu! Ha-putaɾe ɾe-peseɾu iʃé Kuɾupiɾa ʃii. -Ah! Cunauaru! Eu quero tu livres me Curupira do.

Aé ana, paá, Cunauaru o munhan tupaçama i pira Aé ana, paá, Kunawaɾu u-muɲã tupaʃama i-piɾa Ele logo, dizem, Cunauaru fez corda seu corpo

icica chii uara71 i rupi uana nhaan cunhan o iupire muirá cuara queté. isika ʃii waɾa i-ɾupi wana ɲaã kuɲã u-jupiɾe miɾá kuaɾa kueté. resina do ela por já aquela mulher subiu árvore buraco para.

Curupira u cêca u cenõe: Kuɾupiɾa u-sêka u-senõi: O Curupira chegou chamou:

-Uaimi! Uaimi! Mamé taá re icó? - Waimi! Waimi! Mamé taá ɾe-ikó? - Velha! Velha! Onde que tu estás?

Cunauaru o nheen: Kunawaɾu u-ɲeẽ: O Cunauaru disse:

70 “O sapo cunauaru faz, no oco dos paus, o ninho com resina de breu branco, que acama com o peito, formando um grande cilindro furado no centro; aí dorme e aí depõe os ovos no tempo da enchente. É crença que a resina é feita pelo sapo, que é boa, quando queimada, para dores de cabeça, assim como, que o sapo trazido para casa dá felicidade a quem o criar. Cunauaru icica é corruptela de kundá, enrolada, enroscada, u karô ele guarda, icica, resina”. (RODRIGUES, 1890) 71 “Esta dicção não tem tradução e denota frequência, existência, continuação de alguma ação”. (RODRIGUES, 1890)

97

-Cu çucui aé. -iké ʃikui aé. -Aqui está ela.

Aé ana, paá, nhaan cunhan iururé cururu çupé inti richare o iupire Curupira Aé ana, paá, ɲaã kuɲã juɾuɾé kuɾuɾu supé ῖti uʃaɾe u-jupiɾe Kuɾupiɾa Ela logo, contam, aquela mulher pediu sapo ao não deixar subir o Curupira

- Tenhen re cequeié, cha iucá putare aé. - Teɲẽ ɾe-sekuejé, ha-juká-putaɾe aé. - Não te amedrontes, eu matar quero ele.

Aé ana, paá, Cunauaru, o quetica i icêca72 muirá rupetá recé. Aé ana, paá, Kunawaɾu, u-kuetika i-isêka miɾá ɾupetá ɾesé. Ele logo, dizem, o Cunauaru esfregou sua resina árvore tronco no.

Aé ana Curupira oiare nhaan muirá recé i o mutá icêca73 iaua rupi, Aé ana Kuɾupiɾa u-jaɾe ɲaã miɾá ɾesé i-o-mutá isêka jawa ɾupi, Ele já o Curupira encostou-se áquela árvore na ele grudou resina pelo pelo.

aé ana, paá, aap o manu. aé ana, paá, aapi u-manu. Então, dizem, aí morreu.

Aé ana, nhaan cunhan o êiyr membira irumo, aé ana i uiuire çoca queté. Aé ana, ɲaã kuɲã u- iwié memiɾa iɾũ, aé ana i-uɾi74 soka kueté. Ela logo, aquela mulher desceu filho com, ela correu casa para.

72 “Por icika. Chamo a atenção do leitor para a irregularidade da pronúncia não só dos diferentes lugares, como mesmo na do mesmo conto, como, por exemplo, na palavra Korupira, que ora está escrita Curupira, ora Corupira. Escrevo conforme vulgarmente escrevem, porque para mim adotei e proponho a ortografia com K”. (RODRIGUES, 1890) 73 “Este fato nos lembra um caso semelhante do conto do Macaco e o moleque de cera”. (RODRIGUES, 1890) 74 Na narrativa de Rodrigues (1890), registra aé ana i uiuire çoca queté como “ela correu para casa”. Entretanto, os falantes atuais do Nheengatu no Médio Rio Amazonas registraram aé ana i-uɾi soka kueté como “ela veio para casa”.

98

O Curupira e uma mulher75

Dizem que um homem tinha de sua mulher filho pequeno. Indo um dia este homem caçar, encontrou o Curupira. Contam que o Curupira matou-o, depois o abriu pelo meio e tirou- lhe o fígado. Dizem que ainda depois tirou-lhe a calça e a camisa e vestiu-as, e, disfarçando, foi ter com a mulher do morto e a chamou: -Velha! Velha!...onde estás? -Estou aqui. Entrou em casa. Como não olhasse para ele, pensou ser seu marido. -Aqui está...Eu trouxe carne gostosa. Vai cozinhar para mim. Dizem que ele tirou e deu-lhe o fígado que foi do marido. Ela assou-o logo, e, quando foi tirar a farinha, assentou-se com os filhos; assentando-se também o Curupira na esteira, disse: -Vamos comer. Juntos comeram. O Curupira disse: -Agora eu quero dormir. Traz o filho para dormir comigo. O Curupira deitou-se logo na rede. A mulher trouxe o filho e lhe deu. Quando dormiu, olhou para ele, e reparou bem. Dizem que ela dissera: -Este não é meu marido...Este não é meu marido...Este é o Curupira. Arruma logo as suas coisas numa cesta de trazer às costas: tirou o filho e botou um pilão sobre o peito em lugar o filho. Pegou na cesta com as suas coisas. Pôs às costas, carregou o filho numa tipoia ao peito e foi-se embora. Logo depois acordou o Curupira. Levantou-se, saiu para fora e disse: -Ah!...Aquela mulher enganou-me. Procurou-a logo, gritando: -Velha! Velha! Onde estás? Ela viu o Curupira ir-lhe no encalço, e fugiu dele. Dizem que a mulher correu, subiu para um galho alto do mambuizeiro e lá ficou calada, ouvindo vir o Curupira chegar em baixo e chamá-la: -Velha! Velha! Onde estás? Um bacurau que estava num galho da árvore cantou: Mambuí! Mambuí!

75 Mantivemos a tradução feita por Rodrigues ([1890] 2017).

99

O Curupira, não sabendo, pensou que ele estava cantando. O Curupira não viu a mulher e voltou. A mulher, vendo o Curupira voltar, desceu logo, correu e entrou no mato. Dizem que o Curupira dissera: - Aquela mulher me enganou. Voltou então e correu atrás chamando-a: - Velha! Velha! Onde estás? Dizem que a mulher correu outra vez para um grande tronco de árvore que tinha um grande buraco, e dele saltou o sapo Cunauaru. -Ah! Cunauaru, eu quero que me livres do Curupira. Dizem que o Cunauaru fez da resina de seu corpo uma corda e por ela subiu a mulher para o buraco da árvore. O Curupira chegou e chamou: -Velha! Velha! Onde estás? O Cunauaru disse: -Aqui está ela. Dizem que a mulher pediu ao sapo para não deixar subir o Curupira. -Não tenhas medo. Eu quero matá-lo. Dizem que o Cunauaru esfregou logo a sua resina no tronco da árvore. Logo que o Curupira encostou-se à árvore ficou grudado pelo pelo e dizem que aí morreu. Então a mulher desceu com o filho e correu para casa.

5.2.2 O Jurupari e as Moças

YURUPARI CUNHAN MUCU ETÁ IRUMO76 ʃuɾupaɾi kuɲã muku etá iɾũ O Yurupari moças e as (RIO MADEIRA) Cuchi ima, paá, curumi uaçu etá u cêca yepé tuiué oca opé u nhehê, Kuʃiima, paá, Kuɾumῖ wasu etá u-sêk77 jepé tujué oka opé u-ɲeê, Outrora, contam, uns mancebos chegaram dum velho casa na e falaram,

76 Rodrigues ([1890] 2017, p. 237-241). 77 Ressaltamos que o seu Agabino, segundo irmão mais velho da família, registra sêk em todas as realizações do verbo chegar. A irmã que participou da pesquisa registra seka para este mesmo verbo.

100

paá, etá cunhan mucu etá çupé. paá, etá kuɲã muku etá supé. contam, eles moças às

-Pe i u mucaturu orandé curi yá çu yá temiare, - Pe - ju mukatuɾu uɾenẽ kuɾi ja-so ja-seɾimiaɾe78, -Vocês se arrumem amanhã iremos apanhar peixe,

pe munhan meyú pêça... yé...79 ramé curi yá çu. pe-muɲã beiʃú80 pêsa...81 yé... ɾamé82 kuɾi ja-so. vocês façam beijus meia-noite (depois de) quando iremos

Aap iunto ipó u icó Yurupari u cenó aitá u purangueta. Aap iũto ipó83 u-ikó ʃuɾupaɾi u-senũ aitá u-puɾãgeta. Aí perto talvez estivesse o Jurupari ouvindo eles conversarem.

Aé ana, paá, curumi açu etá renondé u cêca Yurupari. Aé ana, paá, kuɾumi asu etá ɾenoné u-sêk ʃuɾupaɾi. Então, dizem, dos moços antes chegou o Jurupari.

Aé ana ué in aé cunhan mucu etá cupê: Aé ana ué in84 aé kuɲã muku etá supé: Então disse ele moças às:

-Pe i u mocaturu, apecatu mamé yá çu uaá. -Pe - ju mokatuɾu, apekatu mamé já-só waá. - Vocês se arrumem, longe onde vamos que.

78 Em serimiare, eles dizem “minha embiara”, ou seja, o que conseguiu ao caçar ou pescar. 79 “Os tapuios têm o costume de demorar a pronúncia de uma palavra quando querem dar uma ideia de demora, distância, tempo, etc. Assim, quando dizem apec atu dizer longe, mas se dizem apeca...tu... querem dizer muito longe. Aqui na lenda os moços disseram peça...yé..., isto é, muito depois da meia noite” (RODRIGUES, [1890] 2017). 80 Em beiʃú, eles disseram que falam beiʃú mas que na língua era meiú. 81 Não lembram meia-noite. 82 Ao referirem-se a “quando”, dizem maramé. Entretanto, nas sentenças das narrativas, ao escutarem ramé, mantêm o termo. 83 Não lembraram essa expressão. 84 Aqui, novamente, aparece para “disse”: ué in. Eles não trocaram para u-nheen.

101

Aé ana u çu ana yurupari irumo Aé ana u-so ana ʃuɾupaɾi iɾũ Eles já foram o Jarupari com.

Aitá racacuera u cêca curumi açu etá u purundu: Aῖtá ɾakakueɾa u-sêk kuɾumi asu etá u-puɾũdu: Delas em seguida chegaram os mancebos perguntando:

-Mamé taá icó cuá cunhan mucu etá yá çu arama? -Mamé taá ikó kuá cuɲã muku etá ja-so aɾã? - Onde que estão estas moças irmos para?

I u canhema aitá paia, aitá manha, upáin mira etá. I- u- kaɲẽ aῖtá paja, aῖtá maɲa, upáῖ miɾa etá. Delas assustou-se delas o pai, delas a mãe, toda gente.

Aé ana coema cunhan mucu etá u maan Yurupari recé, puchi uera i marice tepê. Aé ana ῖta koẽ kuɲã muku etá u-maã ʃuɾupaɾi ɾesé, puʃiweɾa i-maɾika tepi. Então de manhã as moças olhando Jurupari no, feio sua barriga funda.

-Aé ana Yurupari u nhehê cunhan mucu etá çupé: -Aé ana ʃuɾupaɾi u-ɲeê kuɲã muku etá supé: - Então Jurupari falou moças às:

-Cuire iché pe mena. -Kuiɾe85 iʃé pe-mena. - Agora eu vocês marido.

Aé ana, paá, cunhan mucu etá u iachió. Aé ana, paá, kuɲã muku etá u-jaʃiú. Então, dizem, as moças choraram.

85 Na narrativa da mulher e o curupira, o termo “agora” foi registrado como Kuêre e aqui ele enfatizou Kuire.

102

Iui cuara açu Yurupari opé çoca. Mahi cuité aramé Iui* kuaɾa wasu ʃuɾupaɾi opé soka. Majawé kuité aɾamé Gruta do Jurupari a casa. Como então nesse tempo

upáin uirá etá çoó etá u purunguetá mira irumo, upáῖ wiɾá etá soó86 etá u- puɾũgetá miɾa iɾũ, todos os pássaros e animais conversavam gente com,

u ure Caran u çaçau aitá ara rupi yepé cunhan mucu ué in: u-uɾe Kaɾã u-saa aῖtá aɾa ɾupi jepé kuɲã muku ué ῖ: veio Carão passando delas cima por uma moças disse:

-Ce ramonha, Caran, re raçu iché ce manha roca opé? -Se-ɾamoɲa, Kaɾã, ɾe-ɾasó iʃé se-maɲa ɾoka pupé? - Meu avô, Carão, tu levas me minha mãe casa na?

Caran u nhehê: Kaɾã u-ɲeẽ: Carão falou:

-Erê! Cha raçu indé ne manha roca opé, ariri cha iuire cha iure i piama ne amu. -Eɾé! Ha-ɾasó ῖdé ne-maɲa ɾoka pupé, aɾiɾé ha-juiɾe ha-juɾe i-piamã ne-amu. - Sim! Eu levo tu tua mãe casa em, depois eu outra vez eu volto buscar tua parente.

Yurupari u çu, paá, uatá, intimaan çoca opé. ʃuɾupaɾi u-só, paá, watá87, ῖtimãã soka pupé. O Jurupari foi, dizem, passear, não casa em.

Ure ramé u cecare cunhan mucu etá inti ana u acema. U-ɾe ɾamé u-sek kuɲã muku etá ῖti ana u-acẽ. Veio quando chegou as moças não já achou.

86 Eles traduziram soó como “as caças”. 87 Eles traduziram como “andar”.

103

Jurupari e as moças88

Contam que outrora uns moços chegaram à casa de um velho e disseram às moças: - Vocês se arrumem, porque iremos amanhã apanhar peixe. Vocês façam beijus e, quando for depois de meia-noite, iremos. Talvez estivesse perto o Jurupari ouvindo a conversa. Dizem que o Jurupari chegou antes dos moços e disse às moças: - Vocês se arrumem, porque é longe para onde vamos. Foram elas com o Jurupari. Logo depois chegaram os moços perguntando: -Onde estão estas moças para irmos? O pai, a mãe e todos se assustaram. Olhando para o Jurupari, já de manhã, as moças viram que ele era feio e tinha a barriga funda. O Jurupari disse às moças: -Eu agora sou o marido de vocês. As moças choraram. A casa do Jurupari era uma gruta. Como nesse tempo todos os pássaros conversavam com a gente, passando por cima delas um carão, uma das moças disse: -Meu avô carão, tu me levas para casa de minha mãe? O carão falou: - Sim, eu te levo para casa de tua mãe. Depois, voltarei outra vez a buscar tua parenta. Dizem que o Jurupari estava passeando e não estava em casa. De volta já não achou as moças.

5.2.3 A Mucura e a Ariramba MICURA ARIRAMBÁ IRUMO89 90 mukuɾa aɾiɾãba iɾũ Mucura a Ariramba e a (RIO AMAZONAS)

88 Mantivemos a tradução feita por Rodrigues ([1890] 2017). 89 Rodrigues ([1890] 2017, p. 343 e 347). 90 “Mucura é o marsúpio conhecido no Sul por Sariguê ou Gambá, como já vimos, o Didelphis azarae e ariramba é um sindáctilo, conhecido por martim-pescador, do gênero Alcedo. Neste conto nos dá o índio o motivo do pixé ou cantiga do gambá” (RODRIGUES, [1890] 2017).

104

Micura u ricó, paá, taira mena Arirambá. Mukuɾa u-ɾekó, paá, seɾaimena91 Aɾiɾãba. A Mucura tinha, contam, genro Ariramba.

Arirambá u çu paraná me u iumu pirá, u cêca ipaua opé aap Aɾiɾãba u-só paɾaná me u-jumũ piɾá, u-sêk92 ipaua93 opé aapi O Ariramba foi rio no flechar peixe, chegando lago no lá

u mamé ricó muirá u eauêca paraná arpe aap, u çárô pirá u iumu arama. u-mamé-ɾekó miɾá u-jawik paɾaná aɾpe aapi, u-saɾũ piɾá u-jumũ aɾã. onde havia pau abaixado rio em cima lá, esperou o peixe flechar para.

Arirambá u çu rami curuten uara u iuêre, ne rain çaichu çarô Aɾiɾãba u-só ɾame kuɾutẽ awá u-juwiɾe, ne ɾaῖ saiʃu94 saɾô O Aribamba lá quando depressa voltava, não ainda a sogra esperava

u cêca uana. Yepé ara opé i paia u cenõe taira: u-sêk wana. Jepé aɾa opé i paja u-senõi taiɾa: chegava. Um dia em dele pai chamou a filha:

- Ce raira, mahy taá ne mena u iucá pirá? - Se-ɾaíɾa, majawé taá ne-mena u-juká piɾá? - Minha filha, como que teu marido mata peixe?

-Mahy mu taá ce paia? U iupire muirá u eauêca -Majawé mu* taá se-paja? U-jupiɾe miɾá pupé u-jawik - Como fazer que meu pai? Ele sobe pau abaixado

91 Eles ficaram em dúvida sobre o termo, mas, no final, quando já estávamos passando para outras palavras, falaram seɾaimena. Entretanto, ressaltamos que em Nheengatu há duas formas para o termo genro, uma com referência ao sogro (Tayra-mena) e outra com referência à sogra (Membyra-mena) (STRADELLI, [1928] 2014, p. 228). Nesse trecho da narrativa ‘A mucura e a Ariramba’, o termo ‘genro’ deveria fazer referência à sogra, considerando que a mucura é a sogra do Ariramba. Porém, provavelmente a hesitação e dúvida sobre o termo “genro” levou-se à escolha do termo ‘genro’ com referência ao sogro. 92 Seu Agabino registrou o verbo chegar como cec. Ele chegou: u-cec. 93 Não lembraram palavra para lago. Como é um léxico bastante utilizado na região, perguntei de diferentes formas para ver se conseguia ativar a memória lexical dos falantes, mas realmente não lembraram. 94 Eles registraram minha sogra: seɾaiʃu e a sogra dele neɾaiʃu.

105

parará arpe u muoapu maracá paɾaɾá aɾpe u-muoapu95 maɾaká rio no e toca o maraca.96

- Yaué cerá? Iché yaué iuire cha iucá pirá - jawé seɾá? Iʃé jawé jueɾe ha-juká piɾá - É assim? Eu assim também eu mato peixe.

Ariri, paá, ué in che mericó çupé: Aɾiɾé, paá, u-ɲeẽ simiɾikó supé: Depois, dizem, disse mulher à (para ela):

-Uaimi! Yá çu yá iumi pirá? -Waimi! Ja-so ja-jumũ piɾá? - Velha! Vamos flechar peixe?

- Yá çu, tuyué. - Ja-so, tujé. - Vamos, velho.

Aé uana, paá, aetá u çu, u cêca ipaua opé. Aé wana, paá, aetá u-só, u-sêk ipaua97 opé. Então, dizem, eles foram, esperar lago no.

Micura tuyué u iupire muirá ape. Mukuɾa tujé u-jupiɾe miɾá ape. O Mucura velho subiu pau no.

Aé uana, paá, u iupire muirá ape u moapu maracá u çarô pirá. Aé wana, paá, u-jupiɾe miɾá ape u-moapu98 maɾaká u-saɾũ piɾá. Então, dizem, subiu pau no tocou o chocalho e esperou o peixe.

95 Não lembraram o verbo ‘tocar’. 96 “Alude ao canto que na realidade assemelha-se muito ao som de um chocalho” (RODRIGUES, [1890] 2017). 97 Não lembraram. 98 Não lembraram.

106

Ne copocó u iucuao pirá, Tucunaré ramunha ichupé. Ne kopokó* u-jukuá piɾá99, Tukunaɾé ɾamuɲa iʃupé. Não tardou apareceu peixe, o Tucunaré avô lhe.

Aé uana, paá, u pure cecé pirá, u çóuante100 u mucuna aé micura tuyué. Aé wana, paá, u-poɾe101 sesé piɾá, u-sóuãte 102 u-mokuã103 aé mukuɾa tujé. Então, dizem, saltou nele peixe, encontrou engoliu ele mucura velho.

- Uhn! Ce mena! Pirá ramunha mucuna uana. - Uhn! Se-mena! Piɾá ɾamuɲa mokuã wana. - Uhn! Meu marido! O peixe avô engoliu já.

Aé uana, paá, uaimi u nhana oca queté. Aé wana, paá, waimi u-ɲana oka kueté. Então, dizem, a velha correu casa para.

Aé uana, paá, çacema: Aé wana, paá, sasẽ: Então, dizem, gritou:

-Ce membyra! Pirá ramunha u mucuna uana ne paia. -Se-memiɾa! Piɾá ɾamuɲa u-mokuã wana ne paja. - Minha filha! O peixe avô engoliu já teu pai.

Aé uana, paá, ué in i mena çupé: Aé wana, paá, uieé104 in i-mena supé: Então, contam, disse seu marido ao:

99 Eles registraram ne ukuá pirá: nem apareceu o peixe. 100 “Isto é: esperou o bote saltando ao mesmo tempo” (RODRIGUES, [1890] 2017). 101 Mas pode variar com u-pire. 102 Nesse trecho, citado por Rodrigues na nota 102, os falantes atuais do Nheengatu não lembraram e, consequentemente, não traduziram a expressão “dar o pote”. 103 Algumas vezes variou em mukuã. 104 Diferente de todas as outras vezes que registramos “disse” como u-nheen, dessa vez a tradução foi uieé.

107

-Có re maan ce paia pirá mucuna uana. -Kó ɾe-maã105 se-paja piɾá mokuã wana. - Vai ver meu pai peixe engoliu já.

Aé uana, paá, u nhana, u çu, u cêca aap. Aé wana, paá, u-ɲana, u-só, u-sêk aapi. Então, dizem, correu, foi, chegou lá.

- Mamé taá? - Mamé taá? - Onde que?

-Iquê. -Ikuê. Aqui.

-Aé uana, paá, iupire, ne copocó u iucuáo pirá ramunha. -Aé wana, paá, jupiɾe, ne kopokó106 u-jukuá piɾá ɾamuɲa. Então, dizem, subiu, não tardou apareceu o peixe avô

Aé uana u iumu, u iucá u cequei iui queté. Aé wana u-jumũ, u-juká u-sekêi iwip kuetê Ele já flechou, matou puxou terra para.

Aé uana ué in che mericó çupé: Aé wana uieé in simiɾikó supé: Então disse mulher à:

-Irure quicé. -Iɾuɾe kuicé. - Traz a faca.

105 Para esta expressão, eles registaram Kuá semaɲã u maã. 106 Não lembraram dessa expressão.

108

U pecêca quicé umboé pirá marica, u acema, paá, U-pesêk kuisé u-muí piɾá maɾica, u-acẽ, paá, Pegou a faca partiu peixe barriga, achou, dizem,

çateua micura pirá marica opé, u manu u putare uana. satewa mukuɾa piɾá maɾika opé, u-manu u-putaɾe wana. o sogro mucura peixe barriga na, morrer querendo já.

Aé uana, paá, aetá u raçu oca queté. Aé uana, paá, u puitá arama, Aé wana, paá, aetá u-ɾasó oka kueté. Aé wana, paá, u-puitá aɾã, Então, dizem, eles levaram casa para. Ele já, dizem, ficou para,

i yaué çaua puchi, i nema nhaan pirá marica racoçaua chii. i jawé suaja107 puʃi, i nẽ ɲaã piɾá maɾika ɾakosawa ʃii. assim rabo feio, ele fedorento aquele peixe barriga calor do.

A Mucura e a Ariramba108

Dizem que a mucura tinha uma filha casada com o ariramba, que ia ao rio e ao lago flechar peixe. No rio havia um pau abaixado, de cima do qual esperava o peixe para flechar. Quando ariramba ia, volta depressa, quando menos, a sogra esperava. Um dia, o pai chamou a filha. - Minha filha, como é que teu marido mata peixe? - Como há de ser, meu pai? Sobe no pau que está abaixado sobre o rio, e toca o maracá. -É assim? Assim eu também mato peixe. Depois disso, disse à mulher: -Velha, vamos flechar peixe? -Vamos, velho. Dizem que foram. Esperaram no lago: o velho mucura subiu no pau, tocou o chocalho e esperou pelo peixe. Sem demora apareceu-lhe o avô do peixe tucunaré. Então saltou sobre o peixe, que esperou o bote e engoliu o velho mucura.

107 Eles dizem que sawá é rosto. 108 Mantivemos a tradução feita por Rodrigues ([1890] 2017).

109

-Uhn! Meu marido; o peixe avô já engoliu meu marido. A velha correu para casa, gritando: -Minha filha, o peixe avô já engoliu teu pai. Esta disse a seu marido: -Vai ver meu pai que o peixe já engoliu. Dizem que ele correu e lá chegou. -Onde? -Aqui. Então subiu, e sem demora apareceu o avô do peixe. Flechou-o e puxou-o para terra. Disse à mulher: - Traze a faca. Pegou na faca e cortou o peixe pela barriga. Achou nesta o sogro mucura, já quase a morrer. Levaram-no para casa. Dizem que, por isso, ficou com o rabo feio e fedorento. O seu mau cheiro é por conta do calor da barriga do peixe.

5.2.4 A origem das Plêiades 109CYIUCÉ110 YPERUNGAUA111 cyiucé yperungaua112 Das Plêiades a origem (Vila Bela) Cuchiyma u ricó yepé ucaúçaiçu u iauáu cemericó çuhy. Kuʃiima u-ɾekó jepé ukaúsaisu113 u-jawau simiɾikó çuhy. Antigamente havia um encantado fugiu mulher da.

109 Rodrigues ([1890] 2017, p. 461 e 468). 110 “Como sempre, conservo aqui a pronúncia própria do lugar em que ouvi os contos” (RODRIGUES, [1890] 2017). 111 “Uma prova da influência dos contos da imigração portuguesa, na região amazônica, quando a população então era toda europeia e indiana, está neste conto que passou aos mamelucos e, mais tarde deste a seus descendentes brancos. Enquanto estes, pela Língua Geral ou em português, repetem o Cyuicy yperungaua ou A origem das Sete Estrelas, os brancos das outras províncias, que não conheciam o mito amazonense, contam as histórias dos Trois cheveux d’or du diable, de Grimm, do Bicho Majaléo, dos Três coroados, do Príncipe das Palmas Verdes ou do Limão verde, que segundo Teófilo Braga, é a mesma Paraboinha de ouro, ou El príncipe Jalma, do Chile. A passagem da mulher em casa da mãe da onça é aquele aqui fede a sangue real é um enxerto português feito no conto indígenas, tirado daqueles que acima citei, onde em todos se encontra uma passagem semelhante e a frase igual, que fielmente o tapuio reproduz na sua língua. Esta mesma frase está nos Contos zulos, do Dr. Callaway, no conto da Papa-gente Uzembini e no fec, fo, fum, I small the blood of na inghishman”. (RODRIGUES, [1890] 2017). 112 Mantivemos o título. Entretanto, essa narrativa foi a mais difícil para realizarmos a transcrição para o Nheengatu atual, pois a história não fazia sentido para eles. O termo Plêiades não reavivou a memória sobre essa narrativa. 113 Sobre a palavra encantado, registrada por Rodrigues, ucaúçaiçu, não conseguiram lembrar. Entretanto, registraram que ucaú é ficar porre (ficar bêbado).

110

“Ce re nheeng putare ramé ce irumo rereçó curi çacacuera pe rupi, “Se-ɾe-ɲeẽ putaɾe ɾamé se-iɾũ ɾeɾesó kuɾi sakakueɾa pe-ɾupi, “Me tu falar quiseres quando comigo irás atrás caminho pelo,

ce pe urubu pepora curi,114 re uacema arara pepó maiahiua etá rapé”. Se - pe uɾubu pepoɾa kuɾi, ɾe-wasema aɾaɾa pepó maiahiua etá ɾapé”115. o meu caminho urubu pegadas , tu achares arara penas das coisas más caminho”.

Cyiucé paia u chiare ramé ce remirecó ipuruáçá irumo. Cyiucé116 paja u-ʃaɾe ɾamé se-ɾemiɾikó ipuɾuá (ɾesé) iɾũ117. Das Plêiades o pai deixou quando a mulher gravidez com.

Yepé ara u çó pe rupi u cecare i mena taina etá uachió i marica opé. Jepé aɾa u-só pe ɾupi u- ʃikaɾe i-mena taãna etá waʃiú i-maɾika pupé. Um dia foi caminho pelo procurar seu marido os filhos choraram dela barriga na.

-Opain maá u chipiaca uaá u yururé, i manha çuhy ipeayua, -Opaῖ maá u-ʃipiaka waá u-juɾuɾé, i-maɲa çuhy ipeaiá118, -Todas as coisas vêm que pedem, a mãe deles zangou-se,

taina etá recé u iacaua. taãna etá ɾesé u-jakawa. os filhos com ralhou.

Nhaan recé inti pecema uana pê u arama maan pe putare uaá. ɲaã ɾesé ῖti pesema wana pê-u aɾã maã pe putaɾe waá. Por isso não saem já vocês comer para as coisas vocês querem que.

114 A posição da vírgula foi corrigida para depois da palavra curi, pois pepora curi significa “pegadas”, como podemos observar a mesma expressão 12 linhas abaixo. 115 A expressão “coisas más” não foi traduzida para a variedade atual. Eles não lembraram. 116 Decidimos manter o termo Cyiucé para Plêiades, como registrou Rodrigues (1890), pois os falantes do Médio Rio Amazonas não identificaram o termo na língua atual. 117 Nesse trecho, eles registraram com irũ e recé. 118 A dona Célia registrou dessa forma. Entretanto, o seu Agabino disse ipiaiá.

111

U iacáu riré intiana u nheeng taina etá. U-jakáu aɾiɾé ῖtiana u-ɲeẽ taãna etá. Ralhou depois que não falaram as crianças.

Auhuana u çu arama mahiyua etá rapé rupi i peayua recé taina etá. Auhuana u-só aɾã mahiyua119 etá ɾapé ɾupi i-peaiá, ɾesé taãna etá.120 Somente foi para das coisas más caminho pelo zangada com as crianças.

Uceca yauarité manha roca popé. U-seka jawaɾité maɲa ɾoka pupé. Chegou da onça mãe casa na.

-Maa taá re ure i piama quêrupi? Ce membyra etá mira puchi reté. -Maa taá ɾe-uɾe i-piamã keɾupi? Se-memiɾa etá miɾa puʃiweɾa ɾeté. -O que tu vens buscar por aqui? Meus filhos gente má muito.

-Cha yure que rupi ce aryia ce mena racacuera. -Ha-juɾi ke ɾupi se-aɾia se-mena121 ɾakakueɾa . -Eu venho por aqui minha avó meu marido no encalço.

U nheen iché arama cha yure arama çacacuera urubu pepora curi, U-ɲeẽ iʃé aɾã ha-juɾi aɾã sakakueɾa uɾubu pepoɾa kuɾi, Disse me para eu vir para atrás urubu pegadas,

ce rapé, arara pepó rupi mahiyua etá rapé cha yure. se-ɾapé, aɾaɾa pepó ɾupi mahiyua122 etá ɾapé ha-juɾi. meu caminho, arara penas pelo coisas más caminho eu vim.

-Ah! ce temiareron! Aé cué ce membyra etá u ceca i peayua çe irumo. -Ah! se-ɾemiaɾiɾu! Aé kué se-memiɾa etá u-seka i- peajá se-iɾũ. -Ah! minha neta! Aí estão meus filhos chegando deles zangados comigo.

119 Não lembraram. 120 Para a sentença recé taãna etá, eles deram outra opção: taãna itarũm. 121 Para meu marido, eles registram também se tuieé, literalmente, “meu velho”. 122 Não lembraram.

112

Yure quê queté cha iumime iné igaçaua uirpe enti arama aintá ne repiaca. Juɾi kuê kuité ha-jumime iné igasawa123 iwipe ῖti aɾã aῖtá ne-ɾemaã. Vem para aqui eu esconder- te panelão embaixo não para eles te enxergarem.

U ceca yepé membyra. “Ah! ce manha! iquê nema moacara tuhy”. U-seka jepé memiɾa. “Ah! se-maɲa! ikuê nema moakaɾa tiwi”. Chegou um filho. “Ah! minha mãe! Aqui fede real a sangue”.

- Ah! ce membyra! Uaá taá i mu uceca quê rupi? - Ah! se-memiɾa! Waá taá i-mu-u-seka kuê ɾupi? - Ah meu filho! Quem que há de chegar por aqui?

apecatu cha icó? I manha porandu ichupé. ipekatu124 (iʃé) ha-ikó? I-maɲa poɾãdu iʃupé. longe eu estou? Mãe perguntou lhe.

– Maá mutaá re munhan curi yepé cunhan u iucuau ramé ce queté? – Maá mutaá125 ɾe-muɲã kuɾi jepé kuɲã u-jukuá ɾamé se kueté126? – O que que tu farias uma mulher aparecer quando mim para?

“Ah! ce manha! Maa mutaá cha munhan? Tenupá u puitá ne camarara arama”. “Ah! se-maɲa! Maa mutaá ha-muɲã? Tenupá u-puitá ne-camaɾaɾa aɾã”. “ Ah! minha mãe! O que eu fazia? Deixava ficar tua amiga para.”

Ariré u ceca a muitá maá yaué u nheen tenoné Aɾiɾé u-seka a muitá maá jawé u-ɲeẽ tenoné Depois disso chegaram outros a mesma coisa disseram o primeiro

123 Não lembraram. 124 Aqui, longe variou entre ipecatu e ipecatu. 125 Maá taremunhã – o que está fazendo? 126 U-iucuá charã – apareceu para mim.

113

uceca uaá nheeng, yaué tenhen çacacuera u nheen. u-seka127 waá ɲeẽ, jawé teɲẽ sakakueɾa u-ɲeẽ. chegou que disse, assim também após disseram.

Yepé ara timaan u iucá aintá u ú arama, i peayua u iucá aintá cunhan Jepé ara timaã u-juká aῖtá u-ú aɾã, i-peajá u-juká aῖtá kuɲã Um dia nada mataram eles comer para, eles zangados mataram a mulher

icó i manha irumo. I manha u ururé i çupiá ceremá rama. ikó i-maɲa iɾũ. I-maɲa u- uɾuɾé i-supiá seɾumã rama. estava sua mãe com. Deles a mãe pediu deles os ovos criar para.

U pececa çupiá etá u inu catu, u cema pó-mocoin taina etá yepé taina cunhan. U-peseka supiá etá u-inu katu, u-sema sete taãna etá jepé taãna cuɲã. Tomou os ovos guardou bem, saíram sete crianças uma menina.

I iumunhan ariri u nheen aitá manha yaué tacuri128 ya upêca yá manha? I- jumuɲã aɾiɾé u-ɲeẽ aitá maɲa jawé tasiwa129 ja-upêka130 ja-maɲa? Elas cresceram depois disseram mãe como tacuri nós vingaremos nossa mãe?

– Yá çu yá munhan cepetu pachiuba131 çuhy yá iamuné nhaan tipy aqueté maá taá – Já-só já-muɲã sepetu paʃiuba suhy já-jamuɲá ɲaã tepi akueté maá taá – Vamos nós fazer espeto paxiúba de nós espetarmos naquele fundo ali que

arama yá iucá arama, yané manha repêcaçara. aɾã já-juká aɾã, jané maɲa ɾepêkasaɾa132. para matarmos para, nossa mãe vingadores.

127 Sobre o verbo chegou: A dona Célia, durante toda esta narrativa, registrou o verbo como u-seka, variando também em u-sekã. Entretanto, ao registrar essa passagem, ela registrou u-sek. Essa última forma, foi utilizada em todas as realizações do seu Agabino, irmão dela. 128 É uma espécie de formiga 129 Eles traduziram para formiga, em geral. 130 Não lembraram o verbo ‘vingar’. 131 Palmeira do gênero Iriartea. Da madeira negra fazem os índios os seus arcos e as pontas das flechas, por ser muito flexível e forte (RODRIGUES [1890] 2017). 132 Não lembraram

114

Taina etá uçu yaçuca u ceca yauarité etá. Taãna etá u-só jasó-sápe u-seka jawaɾité etá. As crianças foram banhar-se e chegaram as onças.

-Maá taá pe munhan taina etá? “Timaan”. Ya yaçuca yá icó. -Maá taá pe muɲã taãna ῖtá133? “Timaã”. Ja-ha-jaso134 ja-ikó. - O que que vocês fazendo meninos? “ Nada”. Nos banhando nós estamos.

-Iche yure cha yaçuca putare pe irumo. “Eré cuté”. -Iʃe juɾi ha-jasó putaɾe pe135 iɾũ. “Eɾé kuté”136. - Eu vim me banhar puro vocês como. “Está bom”.

Yané miraira recé yapor quê queté tepy yma queté, Jané miɾaitá ɾesé japor kuê kueté tepi yma kueté*, Nós criancinhas por saltamos aqui para baixio para,

penhen peturuçu recé pepor queté quaá tepy uaá queté. peɲẽ petuɾusu ɾesé pepor137 kueté kuaá tepi waá kueté. vocês grandes por saltem para aquele fundo que para.

U por aintá yg pype aap u puitá, u manu opain yg pype cepetú recé. U-por aῖtá i pipé138 aap u-puitá, u-manu opaῖ i pipé sepetu ɾesé. Saltaram água funda aí ficaram, morreram todas água funda espeto no.

Taina etá u çu ana u apêca itá aarpe. Yauareté u ceca taina etá pyre. Taãna etá u- sõ ana* u-apêka139 itá aaɾpe. Jawaɾeté u-seka taãna etá pyɾe. As crianças foram se embora assentaram-se pedra em cima. A onça chegou as crianças ter com.

133 Aqui, dona Célia marcou o etá como intá. 134 Eu perguntei novamente nos banhando e ela me disse hajasó. Entretanto, não se sabe se ela entendeu se era nos banhando. Escutando o áudio novamente, ela enfatiza hajasó para tomar banho. Porém, não marca a primeira pessoa do plural. Acredito que estava referindo-se à primeira do singular. 135 Aqui ela marca ne-irũ. 136 Eles deram a opção Icatu catu para “Tá bom!” 137 Aqui dona Célia marca que pepo é asa. 138 Eles registraram pipe para funda, mas não com certeza. Houve dúvida, principalmente ao comparar com a opção têpi, registrado acima. 139 Em pesquisas anteriores (LIMA-SCHWADE, 2014), foi registrado [apuk] para sentar.

115

“Maá taá pê munhan?” “Maá taá pê-muɲã?” “O que que vocês fazem?”

-Timaan. Yá iumuçarai yá icó. “Aramé cha iumuçarai -Timaã. Ja-jumusaɾai ja-ikó. “Aɾamé ha-jumusaɾai -Nada. Nós brincando estamos. “Então eu brincar

putare yuire ne irumo”. – Eré cuté! putaɾe jueɾe ne iɾũ”. – Eɾé kuté! quero também vocês com”. – Pois bem!

I u apeca itá arpe u munhan maá yá munhan yá icó. I-u-apeka itá aɾpe u-muɲã maá ja- muɲã ja-ikó. Assenta pedra em cima faz o que nos fazendo estamos.

-Maa arama taá cuté? – “Yá munhan i miraira arama yá mian”. -Maa aɾã140 taá kuté? – “Ja-muɲã i-miɾaiɾa141 aɾã ja-miã”. - Que para que então? – “Nós fazemos pequeninos para nossos grãos”.

- Aramé cha putare i miraira arama ce mian. - Aɾamé ha putaɾe i-miɾaiɾa aɾã se-miã. - Então eu quero pequenino para meu grão.

“Aramé ré munhan curi çupé açu yá munhan yá icó. “Aɾamé ɾé-muɾã kuɾi supé asu142 ja-muɲã ja-ikó. “Então tu farás igual fazendo nós estamos.

U tucá aintá itá irumo i mian arp, aap i u manu, paua, U-tuká aῖtá itá iɾũ i -miã arp, aap i u-manu, upã, Bateram todos pedra com deles os grãos em cima, aí ela morreu, acabou,

140 Um deles abreviou Maarã de Maa arama (RODRIGUES, 1890[2017]). 141 Nesse ponto, não modificaram pequeninos, miraira. Entretanto, anteriormente havia registrado miraitá. 142 Em pesquisas anteriores (LIMA-SCHWADE, 2014), registramos waçu. Entretanto, nas narrativas atuais, mantiveram açu. Não enfatizei, mas na leitura em conjunto, não houve incômodo com açu.

116

aap i u puitá. U iuire taina etá yauarareté manha roca queté. aap i u-puitá. U-juwire taãna etá jawaɾaɾeté maɲa ɾoka kueté. aí ela ficou. Voltaram os meninos da onça mãe casa para.

Ariri uçu paraná remehê pe u çaan muruirá, u çaan care, Aɾiɾé u-sõ paɾaná ɾemehê pe u-saá saã muɾuiɾá, u-saã 143 kaɾe, Depois foram rio beira pela arremedar todos os pássaros, arremedar mandaram,

intá i quiyuire, nemaan i puranga aintá ichupé. U çaan aintá care Caran. ῖtá i-kiwiɾe144, nemaã i puɾãga aῖtá iʃupé. U-saã aῖtá kaɾe Kaɾã. eles sua irmã, nada bonito eles para. Arremedar eles mandaram o Carão.

I puranga reté uacema aintá Caran nheengara u nheen: I puɾãga ɾeté wasema aῖtá Karã ɲeẽgaɾe u-ɲeẽ: Bonito bem acharam eles do Carão a cantiga e disseram:

“re chepiaca, ramé curi ceiyucy ure ramé icó, “ɾe ʃepiaka, ɾamé kuɾi ceiyucy uɾe ɾamé ikó, “Espreita, quando as Plêiades saindo quando estiverem,

eré curi ne pepó, inti ara ne pepó u cucui. eɾé peteka kuɾi ne-pepó, ῖti aɾa ne-pepó u-kukui. tu sacudirás tuas asas nunca tuas penas cairão.

Re chepiaca ceiyucy u cema ramé eré nheengara curi”. ɾe-ʃepiaka ceiyucy u-cẽ ɾamé eɾé ɲeẽgaɾe kuɾi”. Espreita as Plêiades nascerem quando tu cantarás”.

Caran u peteca i pepó u çu ana i quiuira etá u monó145, Kaɾã u-peteka i-pepó u-sõ ana i- ki´wira146 etá u-monõ, O Carão sacudiu suas asas e foi se embora seus irmãos mandaram,

143 Aqui eles não acrescentaram usaá. 144 Pode variar com Kiwira 145 Metamorfosearam as irmãs em pássaro e eles foram para o firmamento, onde se transformaram em estrelas. (RODRIGUES, [1890] 2017). 146 Variou com kiwire.

117

aintá u iupire iuaca queté ceiyucy arama. aῖtá u-jupiɾe juaka 147 kueté ceiyucy aɾã. eles subiram céu para Plêiades para.

A origem das Plêiades148

Havia antigamente um encantado que fugiu da mulher. - Quando tu quiseres falar-me, irás atrás de mim. Meu caminho são as pegadas dos urubus. Quando achares penas de araras, é porque é o caminho das coisas más. O pai das Plêiades, quando deixou a mulher, esta estava grávida. Indo um dia pelo caminho procurar o marido, os filhos choraram na barriga. Zangando-se a mulher com os filhos, ralhou-os e disse: - Tudo quanto vocês vêm, pedem. Por isso não saem já para comer o que querem. Depois que ralhou, as crianças não falaram mais. Somente foi pelo caminho das coisas más, zangada com eles. Chegou à casa da mãe da onça. -Que vens tu buscar por aqui? Meus filhos são muito maus. -Eu venho por aqui no encalço do meu marido. Ele me disse que viesse atrás das pegadas do urubu e eu vim pelo caminho das coisas más ou das penas das araras. -Ah! minha neta, aí vêm meus filhos chegando e zangados comigo. Vem para aqui a fim de que eu te esconda debaixo do panelão, para que eles não te vejam. Chegou um filho: -Ah! minha mãe, aqui cheira a sangue real. -Quem há de chegar aqui, meu filho. Eu estou longe. A mãe perguntou-lhe: -Que farias tu quando uma mulher aparecesse e viesse procurar-me? -Que eu faria, minha mãe?...Deixava ficar para tua amiga. Depois disso, chegaram os outros e disseram a mesma coisa, como o primeiro. Um dia, eles nada trataram para comer, e zangados mataram a mulher que estava com a mãe. Esta pediu os ovos dela para criar; tomou-os, guardou-os bem e deles saíram sete meninos e uma menina. Depois de crescidos, disseram estes:

147 Para céu, ficaram pensativos. Em pesquisas anteriores (LIMA-SCHWADE, 2014), registramos [i´aki]. 148 Mantivemos a tradução feita por Rodrigues ([1890] 2017).

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-Como vingaremos nossa mãe? Vamos fazer um espeto de paxiúba para espetar naquele fundo que ali está, matá-los, ficando assim vingadores de nossa mãe. Quando as crianças foram banhar-se, chegaram as onças. -Meninos, vocês que estão fazendo? -Nada; estamos nos banhando. -Eu quero também me banhar com vocês. -Pois bem. Nós como criancinhas, saltamos aqui pelo baixio. Vocês, como são grandes, saltem ali para aquele fundo. Saltaram para a água funda e aí ficaram; morreram todos no espeto. Foram-se embora as crianças e sentaram-se em uma pedra. Chegou a onça a ter com eles. -Que é que fazem vocês? - Nada; estamos brincando. -Então eu quero também brincar. - Pois bem. Senta-te na pedra e faz o que estamos fazendo. - Para quê? - Para fazer pequeninos os nossos grãos. - Então eu quero me grão também pequenino. -Farás o mesmo que estamos fazendo. Bateram todos com os grãos na pedra. Aí ela ficou e morreu. Voltaram os meninos para casa da mãe da onça. Depois, foram pela beira do rio, arremedando todos os pássaros. Mandaram também a irmã arremedá-los. Nada para eles era bonito. Mandaram arremedar o carão. Acharam bem bonita a cantiga e disseram: -Espreita; e quando as Plêiades estiverem saindo, tu sacudirás as asas, porque nunca as tuas penas cairão. Espreita; quando as Plêiades nascerem, tu cantarás. O carão sacudiu as asas e seus irmãos o mandaram embora. Eles subiram para o céu e tornaram-se as Plêiades.

5.2.5 Cantigas

5.2.5.1 Cantigas do Çairé149 150

149 Rodrigues ([1890] 2017, p. 508). 150 Eles não têm referência do Çairé. Não identificaram como celebração vivida.

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De madrugada no fim da festa (Parintins, antiga Vila Bela da Imperatriz) S. Francisco, S. Miguel S. Francisco, S. Miguel S. Francisco, S. Miguel

Curumi açu poranga kuɾumi asu poɾãga Mocetão bonito.

U erecó i balança i pópe, U-eɾekó i-balãsa i-pópe, Estão sua balança na mão,

Iané anga pesarçara jané ãga pesaɾsaɾa151 Nossa alma o que pesa

Angaturama pesarçara Ãgatuɾama pesaɾsaɾa Alma boa o que pesa

Carai uéué angaturama. Kaɾai wéwé ãgatuɾama. Anjo espírito bom.

S. Francisco e S. Miguel são mocetões bonitos e que pesam as nossas almas. Quem pesa as boas almas são anjos e bons espíritos.152

5.2.5.2 Cantigas do Makuru 153

151 Eles falaram que ipasei era pesar. Paseisara, que pesa. 152 Mantivemos a tradução feita por Rodrigues ([1890] 2017). 153 Segundo Rodrigues ([1890] 2017, p. 509) “Makuru é o berço do índio. São duas rodelas de cipó, unidas uma à outra por cordéis, cobertas de algodão, formando como que um cesto, que é suspenso a um caibro da casa por uma corda, ficando distante da terra só a altura necessária”.

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Akutipuɾu154 155 (Parintins) Acutipuru re puru Akutipuɾu ɾe-puɾu Acutipuru tu emprestas

Ne ré pocêi cuá taira çupé Ne-ɾé-pasêi kuá taiɾa supé O teu sono este filho à

Inti u quire putare ῖti u-kéɾi putaɾe Não dormir quer

Re puru uquir arama. ɾe-puɾu ukiri aɾã. Tu emprestas dormir para.

Acutipuru tu me emprestas o teu sono para este filho que não quer dormir.

Andirá156 (Parintins) Andirá yurupari, Ãdiɾá juɾupaɾi, O morcego é o demônio

Umucu ce ratá Ueu se-ɾatá Apagou meu fogo;

154 Rodrigues ([1890] 2017, p. 510). 155 “É um roedor do gênero Sciurus, que compreende várias espécies conhecidas no sul por caxinguelês. Acreditam ser um animal encantado, donde o nome de cutia emprestada (acuti, puru)” (RODRIGUES, ([1890] 2017). 156 Rodrigues ([1890] 2017, p. 514).

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Cururu mirá catu, Kuɾuɾu miɾá katu, O sapo é gente boa,

U mundeca ce ratá157 U-mũdeka se-ɾatá Acendeu meu fogo.

Jacurutu158 159 (Todo o vale do Amazonas) Yacurutu re puru ne repocé ʃakuɾutu ɾe-puɾu ne-ɾepasé Jacurutu tu emprestas teu sono.

Taina pitanga u quire arama. Taina pitãga u-kéɾi aɾã. Filho pequenino dormir para.

Sururina160 (Vila Bela) Çururina161 re munguera162 ne membyra Suɾuɾina ɾe-mũguera ne-memiɾa Sururina tu fazes dormir tua filha

Yá çu arama yá mundá maníaca Ja-so aɾã ja-mũdá maniok Nós irmos para roubar mandioca

157 “Por uma apócope dizem ce ratá em vez de ce ratatá. Entretanto, esta nota traz um equívoco dele. A palavra t- atá mesmo é que passa a r-atá quando possuída.” (RODRIGUES, ([1890] 2017). 158 Rodrigues ([1890] 2017, p. 515). 159 Nome da coruja Strix macurutu, Vieill. (Rodrigues ([1890] 2017). 160 Rodrigues ([1890] 2017, p. 516). 161 “Corruptela de çurury, conhecida também por inambu añanga, galináceo das que, sobretudo, nas noites de luar, com seu piar triste, marca as horas” (RODRIGUES, ([1890] 2017). 162 “Corruptela de mbokér ou mokér” (RODRIGUES, ([1890] 2017).

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XIV163 (Vila Bela) - Murucututu ne manha ne renõe. - Muɾukututu ne-maɲa ne-ɾenõi. - Murucututu tua mãe te chama

- Puité munhan çe nupan putare recé - Puité ganã se nupã putaɾe ɾesé - Está mentindo me dar pancada quer ela.

163 Rodrigues ([1890] 2017, p. 517).

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6 MARCAS DO NHEENGATU NO MÉDIO RIO AMAZONAS: PERSISTÊNCIAS E OBSOLESCÊNCIAS

As narrativas coletadas indicam que a língua Nheengatu ainda vive na região do Médio Rio Amazonas, entretanto está presente somente nas gerações mais velhas. D´Angelis (2014) apresenta uma classificação da vitalidade das línguas, para a situação das línguas indígenas:

Quadro 8 - Classificação da vitalidade das línguas para a situação das línguas indígenas.

Classificação Situação 1. Línguas vivas e plenamente ativas Língua forte, mas também alguma língua enfraquecida. 2. Línguas vivas com perda de falantes Língua muito enfraquecida ou língua doente. 3. Línguas vivas apenas nas gerações Língua moribunda ou língua agonizante. mais velhas 4. Línguas mortas, com ou sem Língua morta. lembrantes 5. Línguas desaparecidas Língua extinta. Fonte: D´Angelis (2014). Hinton (2001) prefere não usar o termo “línguas moribundas” para as línguas que ainda possuem falantes que as saibam, mas não tem como usá-las. Ele prefere chamá-las de línguas silente, ou que caíram em silêncio. There are at present many languagues in the world that have fallen silent. A language is silent either because there is no one left who knows it, or because those who know it no longer have any domain left in which to use it. In some of the literature, such languages have been called “moribunda” if there are people who retain knowledge but have no way to use it, or “dead” or “extinct” when there are no living speakers. I prefer the less final of “silence”, or L. Frank Manriquez’s “sleep”. (HINTON, 2001, p. 413).

De acordo com Couto (2009, p. 83), “a obsolescência (e a morte de) língua é mais uma consequência do contato de línguas, resultado de descolamento de povos e respectivos idiomas”, o que, segundo o autor, tem a ver com o contato, em dois sentidos. O primeiro quando ocorre a atrição164 da L1 com uma L2 dominante. Segundo, quando os falantes de L1 deixam de usá-la, por pressão da L2 dominante. Couto (2009, p. 83) afirma também que “uma língua pode desaparecer devido ao desaparecimento da população que a fala”. Sobre a classificação de vitalidade das línguas, considerando a situação em que elas se encontram, Couto (2009, p. 85) defende que quando as línguas são usadas em poucas funções, por poucos falantes, estão em processo de obsolescência. Quando nenhuma criança fala a

164 Couto (2009, p. 85) chama de atrição (attrition) “o processo gradual de perda de domínios de uso, de falantes e de material linguístico.

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língua, ele a considera moribunda, e as pessoas que a adquirem nessas circunstâncias são chamadas de semifalantes. O autor ainda classifica a língua como agonizante quando não há mais crianças que a falam e os últimos falantes (os semifalantes) são idosos, que não terão mais como passar o conhecimento para as gerações mais novas. No caso do Nheengatu falado na região do Médio Rio Amazonas, os falantes atuais sabem a língua, pois é sua língua materna, mas não a usam mais diariamente. Além disso, todos estão com idade acima de 60 anos e as gerações mais jovens não a falam mais. Se considerarmos a classificação da vitalidade das línguas proposta por D’Angelis (2014), o Nheengatu falado na região do Médio Rio Amazonas é uma língua viva apenas na geração mais velhas, sendo considerada língua moribunda ou agonizante. Além do Nheengatu, os falantes atuais falam o Sateré-Mawé e o Português, utilizando a língua Sateré-Mawé, principalmente, quando estão na região da terra indígena Andirá-marau. Quando estão nas cidades, Parintins e Barreirinha, usam normalmente o Português. Alguns filhos dos falantes atuais sabem e utilizam o Sateré-Mawé, mas a maioria é monolíngue em língua portuguesa. Entretanto, entendem bem quando escutam o Sateré-Mawé. Dessa forma, considerando a situação linguística atual do Nheengatu na região do Médio Rio Amazonas, buscamos analisar alguns sinais de obsolescência, bem como marcas de persistências encontradas nas narrativas, coletadas junto aos falantes atuais da língua. Durante a sistematização dos dados, observamos algumas dessas marcas que serão apresentadas:

MARCAS LINGUÍSTICAS DO LOCAL DA COLETA DAS NARRATIVAS POR BARBOSA RODRIGUES ([1890] 2017)

Como mencionamos, a obra Poranduba Amazonense, de João Barbosa Rodrigues (1890), apresenta diversas narrativas em Nheengatu, coletadas em diferentes lugares ao longo do Rio Amazonas. Segundo o autor (RODRIGUES, [1890] 2017, p. 24), a proposta do livro era: Registrar esses pequenos contos do tempo antigo que se referem à natureza do imenso vale do Amazonas, frutos da observação silvícola, formando uma coleção cuja leitura é inocente e instrutiva, mostrando, ao mesmo tempo, simbolicamente os costumes de alguns animais da sua fauna.

Além disso, Rodrigues ([1890] 2017) afirma que dois motivos o levaram a colher e reunir esses contos: (a) para não desaparecerem e para mostrar o estado intelectual dos indígenas; (b) para ver como a Língua Geral havia se modificado e como era falada naquela época.

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Assim, ao coletar diversas narrativas em diferentes lugares do Rio Amazonas, Rodrigues ([1890] 2017) registra também como a língua era falada naquele lugar. Ao registrarmos a transcrição atual da narrativa Curupira yepé cunhan irũ, verificamos que algumas palavras eram diferentes da versão de 1890, mas similares a palavras da narrativa Cyiucé Yperunguau (a origem das Plêiades), coletada por Rodrigues em Vila Bela da Imperatriz, ou seja, possivelmente, a narrativa do ‘Curupira e uma mulher’ foi coletada em outra parte do Rio Amazonas (Quadro 9).

Quadro 9 – Semelhanças e diferenças entre os registros do Nheengatu coletados na região do Médio Rio Amazonas.

Curupira yepé Cyiucé Yperunguau Curupira yepé cunhan irũ cunhan irumo (Rodrigues, 1890) Tradução (Rodrigues, 1890) Vila Bela165 (Contemporâneo) Rio Amazonas Médio Rio Amazonas ariri ariré aɾiɾé Depois chemericó cemericó simiɾikó Esposa o ricu u ricó u-ɾekó 3ª.sg-ter Fonte: Elaborado pela autora (2021). O padre Justiniano de Seixas (1853), vigário da missão do Andirá no século XIX, classificou Ariré como o advérbio ‘depois’. Para ‘mulher casada’ [esposa], registrou Rêmiricó ou Ximiricó. Em ‘neto, neta’, Seixas (1853) registrou Ximiarerum. Ressaltamos que para este termo, o que estamos considerando como diferença é a marca de 3ª. pessoa do singular nos nomes inalienável. Seixas (1853) registrou ainda que a flexão verbal da 3ª. pessoa do singular em verbos ativos é u-, como em ‘ucêca – chegou’. No Dicionário de Língua Geral Amazônica (MULLER et al., 2019)166, encontramos Riré, para ‘depois’. Para ‘esposa, já casada’, deparamo-nos com temirecó. Entretanto, para ‘neto ou neta da fêmea’ registrou-se temiairõ [temiarorõ] ut: xeremiarirõ e para ‘neto ou neta do homem’: temiminõ. ut: xeremiminõ (p.205). No Dicionário de Língua Geral Amazônica, não ficou evidente a marca da flexão verbal de 3ª. pessoa do singular. Comparando os dados da narrativa Micura Arirambá Irumo, presentes no Poranduba Amazonense, com a transcrição atual coletada na região do Médio Rio Amazonas, temos os seguintes dados (Quadro 10):

165 Lembramos que Vila Bela é o antigo nome da cidade de Parintins/AM. 166 Lembramos que o autor desse dicionário é o Pe. Anton Meisterburg (1756), mas só foi publicado em 2019, por um grupo de pesquisadores (MULLER et al., 2019).

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Quadro 10 - Marcas linguísticas do local da coleta presentes na narrativa Micura Arirambá Irumo.

Micura Arirambá Irumo Mukura aɾiɾãba irũ Tradução (Rodrigues, 1890) (Contemporâneo) Amazonas Médio Rio Amazonas Ariri aɾiɾé Depois Che mericó simiɾikó Esposa u ricó u-ɾekó 3ª.sg-ter Fonte: Elaborado pela autora (2021). No quadro, observamos que Rodrigues ([1890] 2017) marcou o local da coleta da narrativa Micura Arirambá Irumo, sendo o Amazonas. Pelas outras marcações usadas pelo autor ao identificar o lugar de coleta (Rio Amazonas, Vila Bela, Pará e Amazonas), entendemos que estava se referindo ao Estado do Amazonas, sem especificar exatamente a cidade. Diferente dos dados apresentados no quadro anterior, a flexão da terceira pessoa do singular sujeito, ‘u-’, é igual tanto na narrativa coletada por Rodrigues quanto na transcrição atual. Por outro lado, os termos Ariri e Chemericó (Che mericó) assemelham-se aos dados apresentados em Curupira yepé cunhan irumo. Encontramos, ainda, outras marcas linguísticas do local da coleta das narrativas, registradas por Rodrigues ([1890] 2017). O Quadro 11 apresenta dados de três outras narrativas coletadas pelo autor, que não foram usadas na pesquisa com os falantes de Parintins e Barreirinha, pois não faziam referência à região estudada. Entretanto, mostraram a importância de registrar a Língua Nheengatu, com suas respectivas variedades. As narrativas usadas para a construção desse quadro encontram-se no anexo 6. Além disso, inserimos no quadro a narrativa Curupira yepé Cunhan irumo, coletada por Rodrigues (1890) no Rio Amazonas.

Quadro 11 - Marcas linguísticas do local da coleta presentes nas narrativas de Rodrigues (1890)

Curupira O dilúvio Çuaçu Yurará Curupira yepé Caíma etá manyiua Uiráuaçu irumo Cunhan irumo Tradução irumo Rio Purus Rio Negro R. Amazonas Tefé Rio Solimões ariré ariri, ariré ariri, ariré ariri ariri depois - chemericó chemericó chemericó chemericó esposa

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o ço167 uçu168 u çu u çu o ço 3ªp: foi, foram o çaru u çuru cha çuru - esperar recó ricó ricó ricu ricu ter iuére iuire iuêre iuêre iuêre Tefé: outra vez Demais: também No Purus, a forma “iuêre” é o verbo “voltar”. roca ruca - roca oca casa cuhiri169 - cuêre cuêre - agora Fonte: Elaborado pela autora (2021). Observando o quadro, destacamos a maior proximidade entre Purus e Solimões, o que indica que Solimões é a parte mais próxima de Manaus e da foz do Purus, portanto, não é o Alto Solimões (onde já está Tefé). Encontramos, ainda, uma similaridade maior entre os dados coletados no Rio Amazonas e no Rio Negro. Destacamos, por fim, o maior distanciamento do falar de Tefé. Observando mais especificamente a palavra Ariré, pois vimos que nas narrativas coletadas no rio Purus e no rio Solimões há duas formas: Ariré e Ariri, o que pode sugerir tanto falha/distração do anotador, como de fato variação ocorrendo naquele dialeto. Se olharmos para a geografia170, podemos concluir que Ariré é a forma mais ocidental, encontrada em Tefé, e Ariri a forma mais oriental, encontrada no Rio Amazonas e no Rio Negro, enquanto a porção “central” (Purus e Solimões) oscila entre as duas formas. Sobre o Nheengatu do Rio Negro, Cruz (2011, p. 381) registrou Arire ~ Rire, para a conjunção ‘depois daquilo’. Para a palavra esposa, Cruz (2011, p. 156) apresentou X-imiriku. Nesse caso, ela registrou que ‘x-’ é marca de 3ª. pessoa singular para nomes relativos. Além

167 Na narrativa de Tefé, com respeito ao verbo “ir”, há 6 registros de “o-ço” e 1 de “u-ço”. Há, porém, 3 ocorrências do verbo “ir” como “-çu”: na pág. 115 do original, em uma fala do Curupira, duas vezes ensina os meninos dizendo “re-uçu” (“tu vás”). Na frase seguinte, do narrador, aparece “o-çu”, para “eles foram”. Dado o uso reiterado de “o- ço”, consideramos as ocorrências do narrador em “u-ço” e “u-çu” como falhas do anotador, ou seja, falhas de transcrição, distração ou, mesmo, falhas de passagem do manuscrito. Mas as duas formas anotadas na fala do Curupira (“re-uçu”) sugerimos que são escolha deliberada do narrador indígena, marcando uma diferença dialetal entre o Curupira e a sua gente, ou seja, entre a fala do Curupira e o dialeto da gente do narrador. 168 Observamos que nessa narrativa, Rodrigues ([1890] 2017, p. 388) registrou “uçu” em ‘Muirá açu etá racanga inti maan uçu ipipe’ (Das árvores grandes os galhos não foram ao fundo). Entretanto, ele registrou uçu, nessa mesma narrativa, em ‘Aé uana paraná açu u iumunhan uçu’ (Então, o mar cresceu muito) e em pituna uçu (a noite grande / trevas). Nessas duas últimas para expressar quantidade. 169 Não está na narrativa, mas em Tastevin (1922, p. 592) 170 Cf. mapa 5, p. 134.

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disso, ainda sobre a marca de pessoa em nomes relativos com determinante, Cruz (2011, p. 156) registrou para esposa se-rimiriku (1Sge-esposa). Para a flexão de 3ª. pessoa singular do verbo ‘ir’, registrou u-su, como em [maxi] u-su u-munuka ae171 (CRUZ, 2011, p. 261). Para compararmos os dados apresentados por Rodrigues (1890) do Rio Purus e do Rio Solimões, incluindo Tefé172, buscamos o Vocabulário da Língua Geral Português-Nheengatu e Nheengatu-Português (1928) de Ermanno Stradelli, pois foram suas viagens pelos rios Negro, Purus e Solimões que o ajudaram a construir o vocabulário. Sobre a conjunção ‘depois’, Stradelli ([1928] 2014, p. 171) registrou Ariré. Para esposa, há duas citações do autor, sendo que a primeira está na lista do vocabulário. O verbete ‘esposa’ foi traduzido como Remiricó-aráma. Entretanto, ao tratar de uma singularidade do substantivo, Stradelli ([1928] 2014) relatou a substituição das consoantes C=S por R. Como um dos exemplos dessa substituição, registrou ‘Cemiricó – esposa’, ou seja, no vocabulário de Stradelli ([1928] 2014), não há chemericó, como cita Rodrigues (1890). Para o verbo ‘ir’, Stradelli ([1928] 2014) apresentou -só, em Nheengatu. Ele ainda afirmou que o prefixo pronominal da 3ª. pessoa do singular e plural dos verbos é ‘o’, como em ‘o-recó: tem / o-só: vai e vão’ (p. 579). Entretanto, completou dizendo que, em alguns lugares, dizem ‘u’. Adicionando a essa informação, ao citar o verbete ‘u’ no vocabulário, Stradelli ([1928] 2014, p. 692) registrou que a letra é muitas vezes trocada por ‘o’, especialmente na preposição verbal da 3ª. pessoa do singular, conforme citado. Além de Stradelli ([1928] 2014), verificamos os dados apresentados por Silva (2020) sobre o Nheengatu do Rio Solimões. A autora registrou ‘u-’ para marcador de 3ª. pessoa singular em verbos da série dinâmica (ativa). O Mapa 5 mostra mais claramente alguns lugares por onde Rodrigues coletou textos em Nheengatu173.

171 Tradução: O leproso foi cortar ele (CRUZ, 2011, p. 261). 172 Tefé é município da calha do Rio Solimões. 173 Ressaltamos que Rodrigues (1890) registrou textos em outros lugares do Rio Amazonas, mas esse mapa marca somente os lugares das narrativas citadas neste trabalho.

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Mapa 5 - Rios e povoados onde Barbosa Rodrigues (1890) coletou as narrativas comparadas nesta tese.

Fonte: Elaborado por Tiago Maiká Müller Schwade e Micheli Carolini de Deus Lima Schwade em 2020, em função desta pesquisa.

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FLEXÃO VERBAL NA PRIMEIRA PESSOA DO SINGULAR SUJEITO

Uma marca linguística que registramos, ao coletarmos as narrativas na região do Médio Rio Amazonas, foi a flexão verbal na primeira pessoa do singular sujeito, conforme apresentado no Quadro 12.

Quadro 12 – Flexão verbal na primeira pessoa do singular sujeito no Nheengatu do Médio Rio Amazonas. Curupira yepé cunhan irumo Curupira yepé cunhan irũ (RODRIGUES, 1890) (Médio Rio Amazonas) Cuêre cha ço putare cha quîre. Kuêre ha-so-putare ha-kéri. Agora eu ir quero eu dormir. Agora eu ir quero eu dormir. Cha putare re peceru iché Curupira chii. Ha-putare re-peseru iʃé Curupira ʃii. Eu quero tu livres me Curupira do Eu quero tu livres me Curupira do Fonte: Elaborado pela autora (2021). Em trabalhos preliminares sobre o Nheengatu do Médio Rio Amazonas (LIMA- SCHWADE, 2014), já havíamos registrado essa ocorrência. Observando a tabela, no dado à esquerda, temos cha ço, em que reconhecemos a forma Tupi che + aço (pronome livre + verbo precedido de seu prefixo pronominal subjetivo; o {a-} nunca é pronunciado sozinho, porque é prefixo do verbo), mas no Nheengatu aparentemente houve uma gramaticalização da juntura che + {a-} na forma {cha-}, donde: chaço, literalmente, “eu vou”. Na verdade, há naquela passagem uma incorporação lexical (de um verbo em outro), de modo que, de fato se tem: {che+a-} ço-putare > chaçoputare = lit. “eu quero ir”. Mas, no exemplo à direita, não aparece a crase com o pronome livre (che), apenas o verbo conjugado com {a-}: ha-so-putare (literalmente: “quero ir”), onde a aspiração inicial na flexão de primeira pessoa pode ser fonética. Considerando essa hipótese fonética, há duas interpretações possíveis: (1) as ocorrências de cha são, ainda sincronicamente, juntura de che + {a-}, de modo que as ocorrências de um verbo dessa conjugação, não precedido do pronome livre, recebe apenas o prefixo da 1ª pessoa que, nesses casos, realiza-se aspirado; o fato de que, havendo juntura com o pronome livre che, essa aspiração não ocorre, demonstraria o caráter fonético da aspiração. (2) a segunda explicação é que a língua gramaticalizou a juntura che + {a-}, de modo que transformou a flexão de 1ª pessoa na forma {cha-}, porém, em algum momento, iniciou um processo de debucalização da fricativa (cha- > ha-), e os registros em que

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coexistem as duas formas revelam um momento histórico de variação, que pode ou poderia consolidar-se em mudança (desaparecimento de cha). Couto de Magalhães, em seu curso de língua Tupi Viva ou Nheengatú, na obra O Selvagem (1876), grafou xa- para a forma de primeira pessoa, como em: xa munhan curi aramé – ‘quando eu fizer’ (p. 10). Entretanto, na primeira lição prática do curso de Magalhães (1876, p. 16), ele explicou que “Xá rekó é a contracção de Xe a rekó”. A favor da primeira hipótese, encontramos o seguinte dado na transcrição da narrativa “o Curupira e uma mulher” realizada junto aos falantes de Nheengatu do Médio Rio Amazonas: -Cu çucui chá icó. 174 -Ku sukui ʃá ikó / ʃikui iʃe aikó.175 - Aqui está eu estou. Aqui eu estou

Para a versão descrita por Rodrigues ([1890] 2017), os falantes deram uma forma alternativa (a forma após a barra inclinada) em que o pronome livre (iʃe) não se junta com o prefixo de 1ª pessoa do verbo (a-), o que prova a independência, ainda, tanto do pronome livre (iʃe ~ ʃe) quanto da marca pronominal (a- ~ha-). Se de fato {ʃa-} fosse uma forma gramaticalizada, não ocorreria mais {a-} e, muito menos iʃe a-. Trabalhos sobre o Nheengatu do Rio Negro apresentam o prefixo ‘a-’ como flexão verbal para identificar a primeira pessoa do singular sujeito. Segundo Taylor (1985), há uma variante do prefixo ‘a-’ no Nheengatu de Maués e na região do Rio Içana (Região do Alto Rio Negro). Essa variante acontece ao acrescentar a fricativa glotal antes deste prefixo verbal [ha]. Cruz (2011) corrobora com Taylor, quando afirma que, no Nheengatu dos Baniwa do Rio Içana, o prefixo da primeira pessoa do singular do sujeito ‘a-’ é realizado com a aspiração em posição de Ataque Silábico. Segundo a autora, essa aspiração na flexão verbal só acontece na primeira pessoa do singular. Por isso, conclui que a aspiração na primeira pessoa do singular do sujeito é uma forma lexicalizada naquele dialeto. Retornando ao Curso de Língua Tupi Viva ou Nheengatú, presente na obra O Selvagem, de Couto de Magalhães (1876, p. 3), o autor registrou sobre a aspiração em sílaba tônica: “O h é levemente aspirado; assim, escrevemos a palavra tahá como h na última syllaba, para indicar que ella é levemente aspirada”.

174 Registro de Rodrigues ([1890] 2017). 175 Transcrição para o Nheengatu do Médio Rio Amazonas atual.

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Como mencionamos no capítulo anterior, Hartt (1872), em Notas sobre a língua geral ou tupi moderno do Amazonas, registrou que a variedade do Nheengatu falado pelos Mauhé também realizava a aspiração na primeira pessoa do singular sujeito. 600 – ixé intí haroyar sesé. (Mauhé)176 600 – não acredito nisso. (HARTT, 1872, p. 362).

Ao verificarmos a narrativa “A origem das Plêiades”, registrada por Rodrigues (1890), em Parintins, não encontramos essa aspiração na primeira pessoa do singular. Mas, quando coletamos com os falantes atuais, a aspiração da flexão na primeira pessoa do singular sujeito apareceu (Quadro 13)

Quadro 13 - Flexão verbal na 1ª. pessoa do singular sujeito no Nheengatu presente na narrativa Cyiucé Yperungaua.

Cyiucé Yperungaua Cyiucé Yperungaua (Rodrigues, 1890) (Médio Rio Amazonas/ contemporâneo) Cha yure que rupi ce aryia ce mena racacuera Ha-juɾi ke ɾupi se-aɾia se-mena ɾakakueɾa Eu venho por aqui minha avó meu marido no Eu venho por aqui minha avó meu marido no encalço encalço Aramé cha putare i miraira arama ce mian. Aɾamé ha putaɾe i-miɾaiɾa aɾã se-miã. Então eu quero pequenino para meu grão Então eu quero pequenino para meu grão Fonte: Elaborado pela autora (2021).

O VERBO IWASẼN

Das marcas apresentadas anteriormente, ao realizarmos a transcrição da narrativa coletada por Rodrigues ([1890] 2017) para o Nheengatu do Médio Rio Amazonas atual, registramos iwasẽn para “encontrar”177. Esse verbo encontra-se inserido na seguinte sentença da narrativa: i-u-iwasẽn Curupira irũ178 ele encontrou-se com o Curupira. Inicialmente, ao realizarmos uma análise morfológica prévia da sequência i-u-iwasẽn, assumimos que i é 3ª pessoa do singular e iuasẽn é raiz verbal de “encontrar”. Sobre o u,

176 Grifos nossos. 177C.f. 59º. nota de rodapé. 178 Transcrição para o Nheengatu do Médio Rio Amazonas atual da sentença, i o iuanti Curupira irumo, registrada por Rodrigues ([1890] 2017).

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verificamos que pode ser a marca de recíproco das línguas Tupi, jo. Assim, a seguinte interpretação da sequência i-u-iuasẽn seria: i + jo + iwasẽn > ijo + iwasẽn > ioiwasẽn ou i-o- iwasẽn, tendo como glosa: i + jo + iwasẽn 3p.sg. + recíproco + encontrar Ressaltamos que coletamos a ocorrência do recíproco como u e não como o, conforme registrou Rodrigues ([1890] 2017) - i o iuanti. Cruz (2011), ao estudar o Nheengatu do Alto Rio Negro, registra a marca do recíproco como yu, afirmando também a relação com outras línguas da família Tupi-Guarani. Ainda precisamos coletar dados sobre o recíproco e o reflexivo, a fim de confirmar este u como recíproco. Durante a análise desse trecho, outras observações foram realizadas. Como os próprios falantes destacaram a forma iwasẽn para o verbo “encontrar”, procuramos esse verbo em outros autores. No Dicionário de Língua Geral Amazônica, do século XVIII, encontramos agoacém para “achar”. Lemos Barbosa (1970, p. 87), em seu Vocabulário Português-Tupi, registra guassema para “encontrar”. Podemos interpretar que essas são as formas portuguesas de grafar o que seriam awassem, wassem-a, respectivamente. O padre Manoel Justiniano de Seixas (1853, p. 61), registra uacema: achar. Na doutrina de Seixas, transcrita por Souza (1875, p. 92), também encontrar o verbo achar como uacema: Ma me cuite yauacema supiçaua itá ya ruiarearama cê-cê? -Onde se acham as verdades que devemos crer?

Supiçaua itá ya uacema opain catu ruiar arama cê-casymbolo apostolo itá pupé. - As verdades que devemos crer se acham em resumo no symbolo dos apóstolos.

Dessa forma, considerando as formas citadas, em comparação com a registrada no Nheengatu do Médio Rio Amazonas atual, podemos supor que o verbo iwasẽn foi conservado no Tupi do Andirá. Entretanto, restava, ainda, verificar se os falantes do Nheengatu da região estariam usando um verbo do Sateré-Mawé. Assim, buscamos pesquisadores dessa língua para identificar o verbo “encontrar”. Para esse verbo, Silva (2010) registra -puẽti; Franceschini (2009; 2011) puenti; e Spoladore (2011) -puenti. Ao averiguarmos a forma do verbo “encontrar” em Sateré-Mawé, afirmamos que iwasẽn é Nheengatu, e um léxico autêntico do Tupi do Andirá.

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POSPOSIÇÃO IRŨ

Ao analisarmos as narrativas transcritas para o Nheengatu atual do Médio Amazonas pelos falantes, verificamos a ocorrência da posposição associativa ‘irũ - como’, na variedade da língua na região. Observamos que, em todos os textos de Rodrigues (1890) coletados de diferentes localidades, registrou irumo. Entretanto, os falantes atuais do Nheengatu do Médio Rio Amazonas empregam irũ para todas as ocorrências de irumo, presentes nas narrativas de Rodrigues (1890).

Quadro 14 – Posposição associativa irumo X irũ.

IRUMO IRŨ (RODRIGUES, 1890) (Médio Rio Amazonas/Contemporâneo)

• Curupira yepé cunhan irumo • Curupira yepé cunhan irũ

aé ana o apêca membira aitá irumo aé ana u apêk imemira itá irũ ele logo assentou-se filho eles com ele logo assentou-se filho eles com

i maan etá irumo uaá umbure i cupepe i maitá irũ waá umomore i supepe suas coisas com que pôs suas costas na suas coisas com que pôs suas costas na

• Yurupari cunhan mucu etá irumo • ʃuɾupaɾi kuɲã muku etá iɾũ

Aé ana u çu ana yurupari irumo Aé ana u-so ana ʃuɾupaɾi iɾũ Eles já foram o Jarupari com. Eles já foram o Jarupari com.

• Micura arirambá irumo • Mukuɾa aɾiɾãba iɾũ Mucura a Ariramba e a Mucura a Ariramba e a

Cyiucé yperungaua • Cyiucé yperungaua

Aé cué ce membyra etá u ceca i peayua çe Aé kué se-memiɾa etá u-seka i- peajá se-iɾũ irumo Aí estão meus filhos chegando deles zangados Aí estão meus filhos chegando deles zangados comigo comigo Fonte: Elaborado pela autora (2021). Figueira ([1621] 1878), em sua obra A arte da gramática da língua Brasílica, registrou irúmo como uma das preposições da língua. Entretanto, não dispôs nenhum exemplo do uso, mas o autor ressaltou que as preposições devem ser consideradas posposições, pois sempre se põem depois dos nomes que as regem. No Dicionário de Língua Geral Amazônica, escrito pelo padre Anton Meisterburg em 1756 e publicado por Muller et al. (2019), irúmo ou irúnamo foram registrados como ‘com, sendo de companhia’. Para ‘companheira ou companheiro’, o autor transcreveu uma citação de

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Bettendorff ([1687] 1800) para a palavra, irunagoera, afirmando que no dicionário era irunaçara ou irunamoçara e, a tradução de companheira (o) explicava-se por irúmo v irunámo. jrũ. Companheira – ou _ ro [companheiro]. explica se per irúmo v irunámo. jrũ irunagoera Bettend [Bettendorff]. pag. 93. in psenti dícitʒ [in praesenti dicitur]: irunaçara v irunamoçara. (MULLER et al., 2019, p. 133)

Ressaltamos que nessa citação, além de irúmo e irunámo apareceu jrũ. Entretanto, não encontramos nenhum outro registro de jrũ no dicionário. Na Doutrina Cristã, do padre Justiniano de Seixas publicada por Souza (1875, p. 93), encontramos irumo, na sentença: “Pêlêra itá Tupana inum yane catuçaua rama aê rapa-á yumueçaua, Sacramento itá irumo (Os meios que Deus estabeleceu para nos santificar são: a oração e os Sacramentos)”. Couto de Magalhães (1876) registrou irúmo, ao tratar das declinações, afirmando que em Nheengatu os nomes declinam por meio de preposições, como em português, mas como ocorrem sempre depois do nome, chama de posposições. Um dos exemplos utilizados foi: “com Deos, Tupã irúmo” (MAGALHÃES, 1876, p. 5). Charles Hartt (1872), ao fazer registro de frases e conversação na língua Nheengatu, trouxe exemplos do uso da posposição ‘com’:

2- xasó xamuí ymyrá yí irúm179. 2- vou rachar o pau com machado. (HARTT, 1872, p. 319).

651 – yasó yañeén apyáua irúm180. 651 – vamos falar com o homem (HARTT, 1872, p. 366).

Sobre os conectivos, Lemos Barbosa, em seu Curso de Tupi antigo (1956, p. 75), disse que “a preposição “com” de (de companhia) se pode traduzir por pabẽ, ndí, ndí-bé, r-esé-bé, irũ-namo ou irũ-mo”. Segue afirmando que, no sujeito, essas preposições levam o verbo para o plural, mas irũ-namo ou irũ-mo prefere o singular. Ele registrou, ainda, que companheiro é irũ, com em maran-irũ: companheiro de guerra (p. 79). No Pequeno Vocabulário português- tupi, Barbosa (1970) marcou “com: irũ-namo ou irũmo” e “companheiro: irũ”, exemplificando companheiro de viagem como atairũ. De acordo com Cruz (2011), no Nheengatu, falado no Alto Rio Negro, irũ é posposição associativa: comitativo e instrumental. A autora afirmou que a posposição irumu pode variar

179 Grifos nossos. 180 Grifos nossos

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em irũ e em rũ (irumu ~irũ ~[=rũ]), exprimindo a noção de companhia e podendo, também, ser utilizada para expressar noção de instrumento. Em pesquisas anteriores sobre a variedade do Nheengatu na região do Médio Rio Amazonas, Lima-Schwade (2014) registrou irũ para ‘com’. Nas narrativas coletadas junto aos falantes para esta pesquisa, a utilização apenas da forma irũ foi novamente verificada. Diferente dos falantes do Alto Rio Negro, no Médio Rio Amazonas, a forma irumo não se manteve.

MUIRÁ

Durante a preparação para o trabalho de campo, uma palavra chamou atenção. Em diversas narrativas, a palavra “pau” ou “árvore” foi registrada como muirá. Encontramos esta palavra nos textos: o Curupira e uma mulher, a cantiga do Jurutaí e a Mucura e a Ariramba. Em um trabalho preliminar (LIMA-SCHWADE, 2014), registramos a palavra para “madeira” como miɾa, com ocorrência da vogal central alta /i/, som que não aparece na fonologia do Nheengatu no Alto Rio Negro. Entretanto, nas narrativas coletadas por Barbosa Rodrigues, a palavra aparece da forma transcrita acima (muirá) em diversos trechos, registrados em diferentes lugares (Rio Amazonas, Rio Negro, Rio Branco), como podemos ver no quadro 15181. De acordo com o autor, não há variação.

Quadro 15 – Ocorrência da palavra muirá nas narrativas de Rodrigues (1890). Barbosa Rodrigues Narrativa/página ([1890]2017) Yapé muirá racanga arpe Uacuráu nhengare: Mambui! O Curupira e uma mulher Num árvore galho em cima acurau cantou: “ Mandui! p. 130/ Rio Amazonas rupetá queté, nhaan muirá o ricó i cuara uaçu, nhaan i O Curupira e uma mulher tronco para, aquela árvore tinha seu buraco grande, daquele p. 131/ Rio Amazonas Cunhan bucu u cyca muirá Cunauaru eta uirpe, u çacema O Curupira e seu alimento A rapariga chegou da árvore Cunauaru debaixo gritou p. 139 / Versão Alto Rio Negro Açuhy aintá o iupire muirá uaçu recé. O Curupira e os perdidos Depois eles subiram pau grande no. p. 159 / Tefé u cêca yepé muirá uaçu uirpe aap u quire O Curupira e o caçador chegando a uma árvore grande debaixo ahi dormio p. 23 / Rio Branco. Fonte: Elaborado pela autora (2021).

Sobre o termo “pau / árvore” em Nheengatu, encontramos os seguintes registros nos trabalhos de Borges (1991), Cruz (2011) e Leetra Indígena (2014) sobre a região do Alto Rio Negro, e Lima-Schwade (2014), sobre a região do Médio Rio Amazonas (Quadro 16).

181 Grifos nossos

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Quadro 16 – Registro da palavra pau/madeira no Alto Rio Negro e no Médio Rio Amazonas. Alto Rio Negro Alto Rio Negro Alto Rio Negro Médio Rio Amazonas (BORGES, 2011) (CRUZ, 2011) (LEETRA INDÍGENA, 2011) (LIMA-SCHWADE, 2014) / mirá/ Mirá Mirá [mi’ra]

Árvore p. 60 Árvore, madeira, Madeira, árvore p. 67 Madeira p. 60 tronco p. 641

Fonte: Elaborado pela autora (2021).

Observando a tabela, verificamos ocorrências distintas para a palavra madeira/pau no Alto Rio Negro e no Médio Rio Amazonas, diferente de Rodrigues (1890), que registrou para as duas regiões a mesma palavra em Nheengatu, muirá. Sobre as diferentes formas dessa palavra, o próprio Barbosa Rodrigues, em seu livro A botânica, nomenclatura indígena e seringueiras (1905), registrou “ymirá, mbyrá, ibirá, muirá, myrá, mará, e até em guirá182” (p. 47). Nessa mesma obra, afirmou que: Mbyrá, ou myrá por abreviatura, como genero, que corresponde ao Ɛένδρον dos gregos, é empregado para dar alguma qualidade que tenha a madeira e corresponde ao portuguez Páo, como: Myrá tatá, páo de fogo, ou tambem cor de fogo, myrá piranga, Páo vermelho, myrá kualiar, Páo pintado, myrá heen, Páo doce, ou que tem a casca doce. (RODRIGUES, 1905, p. 48).

No Dicionário de Língua Geral Amazônica (MULLER et al., 2019), encontramos Pao – ybyrá. Couto de Magalhães registou mịrá para ‘o páo, a madeira’. O autor acrescentou que esse ‘ị’ tinha um som gutural de difícil representação: Ha um som gutural de difficil representação, porque não existe semelhante em nenhuma das linguas europeas, e é o que representaremos pelo ị tartarico e chinez. Para pronuncial-o abra-se a boca, encolha-se a lingua, contraiham-se os labios, e pronuncie-se o i na garganta, e será o som. Este som é o que os gramaticos jesuítas representavam pelo , ou i grosso (MAGALHÃES, 1876, p. 2)

Charles Hartt (1872) registrou ymyra para pau/madeira. O interessante do registro feito por Hartt é que marcou essa forma em sentenças Nheengatu coletadas com Mauhé: 729 – eparauák na mokóin ymyra (Mauhé) 729 – escolha dois paus. (HARTT, 1872, p. 372).

Seixas (1853), assim como no Poranduba Amazonense (1890), registrou somente muirá, para o substantivo masculino páo. O quadro 17 sintetiza os registros históricos desta palavra:

182 “Guirá, pronuncia hespanhola de uirá, passáro” (RODRIGUES, 1905, p. 47)

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Quadro 17 – Registros históricos da palavra Pau/Madeira.

Registros Autor Ano Pau/Madeira Dicionário de Língua Geral Pe. Anton Meisterburg [1756] 2019 ybyrá Amazônica Vocabulário da Língua Gral para Pe. Manoel Justiniano de 1853 muirá o uso do Seminário Episcopal do Seixas Pará Notas sobre o Tupi geral ou Tupi Charles Hartt 1872 ymyra moderno do Amazonas O Selvagem Couto de Magalhães 1876 mịrá Poranduba Amazonense João Barbosa Rodrigues 1890 muirá A botânica, nomenclatura João Barbosa Rodrigues 1905 ymirá, mbyrá, indígena e seringueiras ibirá, muirá, myrá, mará, guirá Fonte: Elaborado pela autora (2021). Observando o quadro dos registros históricos da palavra pau/madeira, podemos supor que muirá seja a representação da forma como os autores escutavam o som na língua indígena, e não o que propriamente os falantes, naquela época, pronunciavam. O próprio Barbosa Rodrigues, na introdução do Vocabulário Indígena comparado para mostrar a adulteração da língua ([1872] 2017), apresentou o uso da letra y para representar um som em Nheengatu que “soa como u francês quando entre vogal e consoante, como em pytá, tayra, filho, que se pronuncia como em du francês” (RODRIGUES, [1872] 2017, p. 591). Seguindo sobre esse som, Rodrigues ([1872] 2017, p. 595) disse que: a pronúncia do y como u francês tem trazido corruptela: tem sido mudada para u, para i, para ê e para ui, e o pronunciam de uma e outra forma, assim: tyba, passa a tuba e a tiba, como cipotuba, mukajatiba, matyre a matere, pyta a puitá, etc.

Pelos dados apresentados na citação, verificamos que ele identificou a realização de y por ui como uma mudança da língua, tentando adequar um som. É interessante observar que na transcrição das narrativas gravadas com os falantes do Nheengatu do Médio Rio Amazonas, eles mantêm o uso da vogal central alta i em mirá. já mencionamos, esse fonema vocálico ainda é realizado no Nheengatu da região. Em um trabalho preliminar sobre essa variedade da língua (LIMA-SCHWADE, 2014), verificamos a ocorrência desse segmento vocálico /i/ que não ocorre mais na variedade do Nheengatu do Alto Rio Negro. Naquele estudo, buscamos registros históricos para confirmar que esse som era característico da língua. Rodrigues (2005) apresentou seis vogais orais ao tratar do Proto-Tupi-Guarani, Awetí e Mawé: /i/, /ɨ/, /u/, /e/, /a/, /o/. Vale ressaltar que a Língua Nheengatu é uma das línguas que derivam do Proto-Tupi-Guarani. Dietrich (2010) afirmou que o Tupinambá e o Guarani Antigo têm um sistema vocálico de seis vogais: a baixa /a/, as médias /e/ e /o/ e as altas /i/, /ɨ/ e /u/. Dessa forma, a ocorrência desse segmento na variante do

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Nheengatu do Médio Rio Amazonas poderia, em princípio, representar a manutenção dessas vogais em seu inventário fonológico, ou seja, mesmo depois do contato com a língua Sateré- Mawé e com a língua portuguesa, o Nheengatu não perdeu esse fonema vocálico, nesta região. Uma possível razão para que o Nheengatu do Médio Rio Amazonas mantivesse a chamada “6ª vogal tupi”, ou seja, /i/, é o contato continuado e próximo com a língua Sateré- Mawé. Como mencionamos, Silva (2006) já havia identificado a relação entre o Nheengatu e o Sateré-Mawé na região do Rio Andirá, afirmando que as influências do Nheengatu podem ser observadas no léxico do Mawé, sendo incorporadas ora sem nenhuma alteração, ora com algumas adaptações fonológicas. Além dos dados apresentados pela autora, é importante ressaltar que, segundo Silva (2006), o Sateré-Mawé, assim como o Nheengatu do Médio Rio Amazonas, possui seis vogais orais, incluindo /ɨ/, ou seja, ambas possuem os mesmos fonemas vocálicos orais, diferente da variante do Nheengatu do Alto Rio Negro. Sugerimos, naquele trabalho (LIMA-SCHWADE, 2014), que o contato direto do Nheengatu e do Sateré-Mawé na região do Médio Rio Amazonas manteve alguns segmentos fonológicos do Nheengatu, diferente do Nheengatu do Rio Negro, que simplificou drasticamente o sistema vocálico herdado da Língua Geral dos séculos XVIII-XIX. A ortografia atual do “Yẽgatu” do Alto Rio Negro reconhece apenas 4 vogais orais: i, e, u, a – e suas contrapartes nasais. Entretanto, ressaltamos que, mesmo sendo línguas do tronco Tupi, Nheengatu e Sateré-Mawé são diferentes, por mais que apresentem semelhanças – devido a suas histórias de contato nessa região –, cada uma tem sua particularidade.

A FRUTA SUASSUREÇÁ

Durante a análise, utilizamos as ocorrências da língua das narrativas coletadas por Barbosa Rodrigues (1890), transcrita para o Nheengatu contemporâneo do Médio Rio Amazonas. Entretanto, no decorrer da nossa pesquisa, tivemos contato com diversos outros textos com informações sobre o Nheengatu falado na região do estudo. Um desses materiais foi a obra Lembranças e curiosidades do Valle do Amazonas, do cônego Francisco Bernardino de Souza (1873)183. Nesse livro, como o próprio título revela, estão reunidas lembranças do cônego coletadas durante suas viagens pelo Vale do Rio Amazonas. Uma das lembranças citados por Souza (1873, p. 297) é da fruta suassureçá.

183 Lembramos que Bernardinho de Souza escreveu também o relatório, intitulado Commissão do Madeira. 2ª. parte (1875), onde transcreveu o capítulo preliminar da Doutrina Cristã do padre Manoel Justiniano de Seixas.

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Fructa silvestre das mattas de Faro, Parintins e de toda a região da Munducurania. Seu sabôr é primoroso e superior, segundo a opinião geral, ao do caramury. E’ pequena, de forma orbiculae, e sua cor, quando madura, é de um roxo formoso.

A partir dessa nota de Bernardino de Souza sobre a suassureçá encontrada em Parintins, buscamos mais informações sobre essa fruta, junto aos falantes atuais do Nheengatu do Médio Rio Amazonas. Inicialmente, perguntamos se conheciam a fruta suassureçá, sem mencionar as características descritas por Souza (1873), tendo como resposta imediata a confirmação. Um deles afirmou que é uma fruta que (também) se chama “olho de veado”. Seixas (1853) registrou ceça (olho) e suassú (veado, veada, animal bravio de caça), ou seja, suassureçá efetivamente se traduz por “olho de veado”, conforme indicou o falante. Entretanto, para confirmarmos se conheciam a fruta ou se apenas nos repassaram a tradução da palavra, perguntamos se já haviam provado. Eles afirmaram que conheciam a fruta suassureçá e já tinham experimentado. Além disso, completaram dizendo que era uma fruta preta do mato, igual a um caramuri. Essa resposta dada pelos falantes atuais do Nheengatu do Médio Rio Amazonas corresponde exatamente à nota descrita por Souza (1873), ressaltando que, até aquele momento, não havíamos mencionado a descrição da fruta citada. Confirmada a informação de que aquela fruta existia na região da pesquisa, buscamos saber se era um conhecimento comum aos amazonenses e paraenses atuais, como forma de verificar se, eventualmente, a memória dessa fruta também estava associada diretamente à memória lexical do Nheengatu. Assim, perguntamos a cerca de oito pessoas, nascidas e criadas no Estado do Amazonas (Manaus, Barreirinha e Parintins) e no Pará (Santarém e Oriximiná), se conheciam a fruta suassureçá, lembrando que Souza (1873) registrou a existência dessa fruta em cidades desses dois Estados. Ao citarmos apenas o nome indígena, nenhum reconheceu. Buscando informações na literatura botânica sobre essa fruta amazônica184, conseguimos associar suassureçá à fruta gogó-de-guariba. Assim, voltamos aos mesmos amazonenses e paraenses e perguntamos se a conheciam com o nome popular “gogó-de- guariba”. Com esse nome alternativo, os mais velhos reconheceram e, alguns disseram que já haviam experimentado, já os mais jovens só haviam escutado falar sobre a existência da fruta. Em Parintins, encontramos relatos de que gogó-de-guariba era encontrada em áreas de igapó. Dessa forma, concluímos que a fruta gogó-de guariba é conhecida em alguns lugares do Amazonas e Pará. As figuras 24 e 25 representam algumas características da fruta.

184 Cavalcante (1979) e Resque (2007).

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Figura 24 - Gogó-de-guariba.

Fonte: Disponível em: http://frutasnativasdaamazonia.blogspot.com/2012/01/fruteira-desconhecida-e-muito-rara- e.html Figura 25- Gogó-de-guariba.

Fonte: https://www.safarigarden.com.br/mudas-de-frutas/muda-de-gogo-de-guariba-vermelho.

Ao compararmos essas imagens e as características da fruta com a descrição feita da suassureçá pelo cônego Bernardino de Souza (1873) e pelos falantes atuais de Nheengatu do Médio Rio Amazonas, constatamos que as características eram diferentes. Dessa forma, mostramos as fotos da fruta gogó-de-guariba para os falantes de Nheengatu, que afirmaram que eram frutas diferentes, ou seja, a suassureçá não é a mesma gogó-de-guariba. De acordo com eles, a que tem o nome indígena é preta e tem só um caroço. Não conseguimos encontrar uma imagem que correspondesse às características da suassureçá. Entretanto, os falantes garantem que ainda hoje é possível encontrá-la em região de mata, no Médio Rio Amazonas. Disso tudo podemos concluir que o termo suassureçá foi reconhecido pelos falantes atuais de Nheengatu do Médio Rio Amazonas, como uma fruta típica da região cujas características são tão familiares que não a confundem com outras que foram sugeridas – associadas àquele nome, na literatura especializada. Assim, é legítimo propor que a memória

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desse elemento particular do seu ecossistema está intimamente associada à memória lexical do idioma materno. Outro detalhe importante advindo da descrição da suassureçá é a comparação com a fruta Caramuri, citada tanto por Souza (1873) quanto pelos falantes atuais do Nheengatu no Médio Rio Amazonas. Bernardinho de Souza (1873, p. 71) descreveu o Caramuri como: E’ uma fructa silvestre das matas do Amazonas, muito apreciada por seu delicado sabor. Abunda nos mezes de março e abril e só dá de quatro em quatro anos. E’ muito raro dar em dous anos seguidos. E’ crença entre os índios da tribu Maués, que o aparecimento da fructa, pressagia a morte de algum tuchaua. E’ bárbaro o systema da colheita; para fazerem-n’a, tanto índios como homem civilizado, derrubam a arvore.

Dos falantes atuais do Nheengatu no Médio Rio Amazonas, a única informação que conseguimos, até o momento, foi a semelhança com a suassureçá. Entretanto, encontramos algumas referências que relacionam a fruta Caramuri com os Sateré-Mawé, como descreveu Souza (1873). Aguiar (2018), em sua dissertação de mestrado intitulada Etnoconhecimento Sateré Mawé e a influência de fatores ambientais e antrópicos na distribuição de espécies florestais de interesse da etnia, classificou a árvore da fruta Caramuri como importante no passado para os Sateré-Mawé e rara de encontrar no presente. Mauro (2016) afirmou que uma das funções das sementes de Caramuri é para uso no artesanato Sateré-Mawé. Segundo a autora, comunidades e associações de Sateré-Mawé que vivem em Manaus criaram um circuito de trocas de sementes para artesanato com os indígenas da Terra Indígena Andirá-Marau: “Os caminhos das sementes mobilizam uma ampla circulação de pessoas, saberes, narrativas e coisas, formando um circuito específico” (MAURO, 2016, p. 111). Um dos depoimentos apresentados por Mauro (2016) sobre o Caramuri, dado por uma das artesãs Sateré-Mawé que usa as sementes para o artesanato traz dados sobre a fruta que se assemelham com a descrita por Souza (1873): “O Caramuri é uma semente que só pode ser coletada de quatro em quatro anos, restrita à região do baixo Amazonas” (MAURO, 2016, p. 152). Uma informação importante apresentada por Mauro (2016) é o nome na língua Sateré- Mawé: /toto/ ou /y’wahup/.

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Figura 26 - Semente da fruta Caramuri.

Fonte: Mauro (2016, p. 152)

Fonte: Mauro (2016, p. 152). Considerando esse nome Sateré-Mawé para a fruta Caramuri, buscamos em trabalhos sobre essa língua indígena mais informações acerca do uso do termo /toto/ ou /y’wahup/. Ribeiro (2010, p. 68), em seu Dicionário Sateré-Mawé/Português, registrou o termo ywahup para caramuri. Neste mesmo dicionário, ela registrou ywa, como fruta (p.98), e ihup, como vermelho (p. 62). Spoladore (2011, p. 47 e 123) trouxe iwa para fruta e hup para vermelha. Silva (2010, p. 83) marcou i´hup˺ para vermelho. Entretanto, ela registrou hat para fruta (SILVA, 2010, p. 94). Pereira (1954, p. 140) trouxe ihôp para vermelho. Observando essas informações, coletadas em trabalhos sobre a língua Sateré-Mawé, e a imagem da fruta, percebemos que o termo /y’wahup/ para caramauri pode ser o nome descritivo da fruta, ou seja, fruta vermelha. Para o termo /toto/, há um vocabulário Sateré-Mawé/ Português de Teófilo Tiuba, na obra de Pereira (1954, p. 145), que traz totó para osso. Poderíamos relacionar esse termo com caroço ou semente. Entretanto, nas referências sobre a língua Sateré-Mawé, encontramos outras formas para semente. Ribeiro (2010, p.58) registrou hayig̃. Silva (2010, p. 310), trouxe ha’ãi. Não encontramos mais informações específicas sobre a fruta. Os dados linguísticos que encontramos para nos ajudar a identificar a fruta pelo nome Sateré-Mawé ainda são escassos. Seria necessária, assim, uma pesquisa mais aprofundada com falantes de Nheengatu e de Sateré- Mawé sobre a existência da fruta na região, nome e uso em ambos os grupos. O registro feito por Souza (1873), aliado ao relato desses falantes sobre a fruta suassureçá, mostrou que esse conhecimento da flora regional está associado ao conhecimento da língua. A reativação da memória lexical acerca desse termo reavivou diversas ligações culturais e linguísticas nos falantes de Nheengatu do Médio Rio Amazonas, contribuindo, dessa forma, para um possível fortalecimento da sua língua na região.

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O CONTATO DO NHEENGATU COM O SATERÉ-MAWÉ NO MÉDIO RIO AMAZONAS

Durante a análise dos itens, muitas vezes recorremos aos dados da língua Sateré-Mawé para confirmar ou não o uso de algum elemento linguístico do Nheengatu. Essa busca deu-se, principalmente, pelo conhecimento do contato intenso entre essas duas línguas na região e por sabermos que os falantes atuais do Nheengatu também são falantes de Sateré-Mawé. O Sateré-Mawé (também conhecida como Sateré ou Mawé), uma das línguas ainda faladas pelos povos indígenas na Região Amazônica, é de grande representatividade social e linguística devido ao número de falantes (cerca de 8.000 pessoas) e por ter sua área localizada numa região próxima aos municípios de Parintins, Barreirinha e Maués, além de Manaus, capital do Estado do Amazonas, com intenso fluxo migratório desses indígenas para esses centros urbanos e Manaus (SILVA, 2010). Assim como o Nheengatu é uma língua pertencente ao tronco Tupi185, o contato entre essas duas línguas na região resultou em algumas situações de empréstimos. Silva (2010) escreveu sobre a influência do Nheengatu no léxico do Sateré- Mawé, que podem ser de dois tipos: (a) palavras incorporadas ao léxico sem nenhuma alteração; (b) palavras que foram adaptadas ao sistema da língua Sateré-Mawé. Nunes (1954) também relatou elementos do Nheengatu no Sateré-Mawé, ciandou as referências de Charles Hartt (1872) sobre o som gutural que ocorria naquela época no Nheengatu e era característico na língua Mundurucú e Mauhé. Além disso, Nunes (1954) descreveu a ‘História da Mucura e do Acurau’, em seu livro Os índios Maués (Anexo 7), registrando uma versão em língua portuguesa, mas coletada com os Maués. Porém, o autor afirmou que algumas dessas narrativas que ele coletou “procedem de certas fontes comuns á imaginação, á experiência, á mística dos tupis” (NUNES, 1954, p. 165). Para reforçar essa sua afirmação, Nunes disse que a história da mucura e do bacurau já estava presente no Poranduba Amazonense, mas encontrou variantes “mais pitorescas e movimentadas, entre os Parintintins de Tres Casas, no rio Madeira”. Comparando as narrativas apresentadas por Rodrigues (1890) e Nunes (1954), verificamos que parte do enredo é o mesmo. Porém, a história da Mucura e do Acurau é mais extensa, com eventos não narrados na história da Mucura e da Ariramba. Considerando que

185 De acordo com Silva (2010), a língua Sateré-Mawé não apresenta uma classificação genética muito bem definida. Atualmente, está classificada como língua isolada da família Mawé do tronco linguístico Tupi. Porém, já foi classificada por Rodrigues (1958) como pertencente ao tronco tupi e à família Tupi-Guarani. Entretanto, o próprio autor reviu essa classificação, considerando apenas como pertencente ao tronco tupi e não à família Tupi- Guarani.

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encontramos essa mesma narrativa em referências bibliográficas sobre o Nheengatu e o Sateré- Mawé, um detalhe durante o trabalho de campo chamou a atenção. Quando coletamos a narrativa “A mucura e a Ariramba” com os falantes atuais do Nheengatu do Médio Rio Amazonas, eles relataram que histórias da mucura e da ariramba eram bastante presentes na região e conheciam algumas versões da mesma narrativa. Naquele momento, eles não narraram outra versão, mas percebemos que, de todas as narrativas, esta foi a mais fácil e rápida para coletar em Nheengatu, pois não precisaram de muito tempo para ativar a memória lexical na língua indígena presente neste texto. Lembramos que esses mesmos falantes de Nheengatu falam o Sateré-Mawé, ou seja, há uma possibilidade de terem conhecido essa narrativa em ambas as línguas. Nas referências em Sateré-Mawé, não encontramos a versão na língua indígena dessa narrativa. Em pesquisas futuras, poderemos coletar a versão dessa narrativa em Sateré-Mawé para compará-la com a versão em Nheengatu. A seguir, apresentamos algumas considerações sobre o contato dessas duas línguas que observamos, a partir da coleta das narrativas com os falantes atuais do Nheengatu no Médio Rio Amazonas.

6.7.1 O Léxico Similar entre o Nheengatu e o Sateré-Mawé

Durante o trabalho de campo, um detalhe chamou atenção. Algumas vezes, quando os falantes estavam transcrevendo a narrativa, eles se questionavam se aquela palavra era em Nheengatu ou em Sateré-Mawé. Outra situação foi quando analisamos uma lista de palavras dada por eles em Nheengatu e verificamos que muitas eram similares ou exatamente iguais ao Sateré-Mawé. No quadro 18, listamos algumas dessas palavras:

Quadro 18- Léxico comparativo Nheengatu/Português.

Léxico Nheengatu Sateré-Mawé186 Enxada pururé purure Faca kisé kise Farinha uí u:’i Guaraná waraná ~waranã warana Milho awatʃi awati Pato ipek ipe:ka Pente kiwa kiwa

186 Dados coletados nos trabalhos de Silva (2005, 2010).

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Pote kamutʃi kamũti Remo apukuitá apukuita Fonte: Baseado em Silva (2010).

Das palavras citadas no quadro, Silva (2010) já havia relatado que pururé, kisé e awatʃi

eram empréstimos do Nheengatu para o Sateré-Mawé. A autora afirmou, ainda, que esse tipo de incorporação de léxico acontecia em maior número e os falantes de Sateré-Mawé não identificavam o empréstimo. Para confirmar que as palavras do quadro 18 eram empréstimos do Nheengatu para o Sateré-Mawé, verificamos esses léxicos no Dicionário de Língua Geral Amazônica (MÜLLER et al., 2019), nos trabalhos de Seixas (1853), Hartt (1872) e Couto de Magalhães (1876):

Quadro 19 – Léxico comparativo Nheengatu/Português considerando os registros históricos da língua indígena.

Léxico Nheengatu Sateré- Dicionário de Pe. Seixas Hartt Couto de Mawé187 LGA (1853) (1872) Magalhães ([1756] 2019) (1876) Enxada pururé purure pyruré goaçú - - - Faca kisé kise kycé quicé kysé kicé Farinha uí u:’i oí uí oí uhí Guaraná waraná ~waranã warana - - uaraná uaraná Milho awatʃi awati abatí auatí - auatí Pato ipek ipe:ka ipeca apyába ipéca - - Pente kiwa kiwa aieacapýc queuauá kyuáua kiuáua (pentear se) Pote kamutʃi kamũti camutí camutí kamutí camuti Remo apukuitá apukuita iapucuitába apucuitáua opokutáua apucuitáua Fonte: Elaborado pela autora (2021). Observando os dados do quadro 19, as palavras kisé (faca), uí, (farinha), awatʃi (milho), kamutʃi (pote) e apukuitá (remo) foram incorporados ao léxico do Sateré-Mawé da Língua Nheengatu. Sobre a palavra pururé (enxada), apesar de encontrarmos esse léxico somente no Dicionário de Língua Geral Amazônica, a ocorrência é muito similar à palavra usada no Nheengatu e no Sateré-Mawé, Pyruré goaçú. Em kiwa (pente), usada por ambas as línguas, verificamos que as referências anteriores do Nheengatu apresentam realizações semelhantes.

187 Dados coletados nos trabalhos de Silva (2005, 2010).

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Um dado interessante é da palavra para “pato”. Inicialmente, identificamos a influência do Nheengatu no léxico ipe:ka (pato), em Sateré-Mawé. Entretanto, ao analisarmos com mais detalhes esses dados, ficou evidente que, tanto em Sateré-Mawé, quanto nas fontes históricas do Nheengatu, há a realização de ‘a’ no final da palavra. Porém, isso não ocorreu nas transcrições feitas pelos falantes atuais do Nheengatu no Médio Rio Amazonas, ipek. Em trabalhos preliminares (LIMA-SCHWADE, 2014), registramos a ocorrência do segmento /k/ em coda silábica no Nheengatu do Médio Rio Amazonas. Entretanto, nenhum outro segmento consonantal foi encontrado nessa posição. Assim, naquele trabalho, não consideramos CVC como tipo silábico da língua. Uma das possibilidades apresentadas para a ocorrência da oclusiva velar [k] no cenário fonético foi o contato com o Sateré-Mawé, considerando que esta língua possui o padrão silábico CVC, com a ocorrência de seis outros segmentos consonantais em coda silábica /p, t, k, m, n, ɲ/ (SILVA, 2010).

Quadro 20- Oclusiva velar [k] em Coda Silábica no Nheengatu do Médio Rio Amazonas.

Nheengatu188 Português ipek pato karuk urina musikpiri três monok cortar Fonte: Elaborado pela autora (2021).

Por fim, sabemos que o guaraná é uma fruta muito importante para os Sateré-Mawé. Bettendorff ([1699], 1990, p. 36), em sua Crônica dos padres da companhia de Jesus no Estado do Maranhão, relatou a relação dos Andirazes e o guaraná: Tem os Andirazes em seus mattos uma fructinha que chamam guaraná, a qual seccam e depois pisam, fazendo della umas bolas, que estimam como os brancos o seu ouro, e desfeitas com uma pedrinha, com que as vão roçando e em uma cuia de agua bebida, dá tão grandes forças, que indo os indios á caça, um dia até outro, não têm fome, alem do que faz urinar, tira febres e dôres de cabeça e câimbras. Do prestimo que tem para provocar urina me consta; do mais não sei de certo se não pelo comumente ouço dizer.

Nunes (1954), em Os índios Maués, também registou sobre o cultivo e uso dessa fruta, bem como a história do guaraná. No vocabulário apresentado por ele, o nome da fruta em Sateré-Mawé é uaraná. Ao observarmos os dados apresentados, verificamos que nas referências da Língua Geral Amazônica, ou Nheengatu, esse léxico só aparece nos dados do século XIX, ou seja, não há como consideramos que seja empréstimo do Nheengatu para o

188 Lima-Schwade (2014).

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Sateré-Mawé. Na verdade, a citação do padre Betterndorff sobre o guaraná entre os Andirazes, ainda no século XVII (BETTERNDORFF [1699], 1990), confirma que a fruta já era utilizada pelos Sateré naquela época, provavelmente antes da chegada dos falantes de Nheengatu na região. Iniciamos este capítulo relatando a situação linguística do Nheengatu no Médio Rio Amazonas. Apesar de ser falada apenas pela geração mais velha, a língua ainda vive na região e apresenta elementos linguísticos que indicam a persistência do uso dessas formas na variedade do Nheengatu do Médio Rio Amazonas, como a vogal central alta ‘i’ e a aspiração na flexão verbal na primeira pessoa do singular sujeito. Além disso, observamos palavras em Nheengatu, usadas pelos falantes na região, que indicam um léxico característico dessa variedade, como o verbo iwasẽn e o termo Suassureçá, para designar uma fruta da região. Entretanto, encontramos também elementos linguísticos que mantiveram apenas uma única forma de realização, como a posposição irũ, que não manteve a ocorrência irumo, existente ainda hoje no Alto Rio Negro. Por fim, fizemos algumas considerações acerca do contato entre o Nheengatu e o Sateré-Mawé, na região do Médio Rio Amazonas. Finalmente, é importante ressaltar que o registro dessas narrativas na variedade atual do Nheengatu, no Médio Rio Amazonas, favoreceu a ativação da memória lexical dos falantes, contribuindo, dessa forma, para o processo de fortalecimento da língua na região.

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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa realizada sobre o Nheengatu falado no Médio Rio Amazonas teve como objetivo principal verificar se há uma linha de continuidade histórica e de transmissão cultural linguística, unindo os falantes de Nheengatu do século XVIII aos falantes atuais da língua na região. A proposta foi estudar essa variedade, ressaltando os aspectos culturais e linguísticos, a partir da comparação entre os registros escritos do Nheengatu nos séculos XVIII e XIX e o registro atual da língua. Buscamos, ainda, favorecer a ativação da memória lexical dos atuais falantes do Nheengatu, a fim de contribuir com o processo de fortalecimento da língua. Em consonância com os objetivos, fizemos um panorama da história da Língua Nheengatu na Região Amazônica e, posteriormente, da história no Médio Rio Amazonas, buscando, nas referências históricas, de que forma se estabeleceu como língua majoritária da região até o século XVIII. Mesmo após o declínio e substituição pela língua portuguesa, encontramos falantes do Nheengatu espalhados pela Região Amazônica, resultado da política linguística tão intensa no período colonial. Além disso, contextualizamos etnograficamente os falantes do Nheengatu no Médio Rio Amazonas, buscando traçar o perfil dessa comunidade de fala: quem são, como chegaram lá e de que forma mantiveram a língua na região. Nosso estudo abrangeu a região do Médio Rio Amazonas, mais precisamente os municípios de Parintins e Barreirinha, no Estado do Amazonas, incluindo o Rio Andirá − que se encontra à margem direita do Paraná do Ramos, afluente do Rio Amazonas −, usado como referência para marcar a relação dos falantes do Nheengatu com este rio. Os falantes em questão, no entanto, habitam a zona urbana (as sedes dos referidos municípios de Parintins e Barreirinha). Assim, não houve necessidade de coleta de dados no Rio Andirá. Nessa região, o Nheengatu não é mais falado diariamente, pois há poucos falantes e todos acima de quarenta anos, ou seja, a língua está presente apenas nas gerações mais velhas. Dos cinco falantes que conseguimos identificar, três participaram da pesquisa: dois homens e uma mulher, todos integrantes da mesma família que aprenderam o Nheengatu como primeira língua, além de também serem falantes de Sateré-Mawé e de Português. Em seguida, detalhamos as etapas da pesquisa, especificando o corpus utilizado, os critérios para a seleção dos falantes, os procedimentos realizados no trabalho de campo. O corpus principal de investigação foi a obra Poranduba Amazonense, de João Barbosa Rodrigues (1890) e o Dicionário de Língua Geral Amazônica, publicado em 2019, mas com dados do século XVIII. Além dessas obras, serviram de parâmetro dois materiais do padre Manoel Justiniano de Seixas, o Vocabulário da Língua Geral para o uso do Seminário Episcopal do

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Pará (1858) e a Doutrina Cristã (1875), que auxiliaram nas análises, considerando que o autor possivelmente coletou dados na região. Ressaltamos que foi a partir da obra de Rodrigues (1890) que selecionamos as narrativas coletadas no Médio Rio Amazonas ainda no século XIX. Escolhemos quatro narrativas e algumas cantigas que foram transcritas para o Nheengatu atual pelos falantes da língua na região: “O curupira e uma mulher”; “O Jurupari e as moças”; “A Mucura e a Ariramba”; “A origem das Plêiades”; “Cantigas do Çairé” e “Cantigas do Makuru”. A partir da sistematização dos dados coletados, analisamos alguns sinais de obsolescência, bem como marcas de persistências encontradas nas narrativas, coletadas junto aos falantes atuais da língua. Identificamos a ocorrência da vogal central alta ‘i’ e a aspiração na flexão verbal na primeira pessoa do singular sujeito. Constatamos que esses dois elementos linguísticos, presentes na variedade do Nheengatu do Médio Rio Amazonas, não ocorrem no Alto Rio Negro, local onde a língua ainda hoje é falada cotidianamente. Assim, são característicos da variedade do Médio Rio Amazonas. Além disso, observamos palavras em Nheengatu, usadas pelos falantes na região, que indicam um léxico característico dessa variedade, como o verbo iwasẽn e o termo Suassureçá, para designar uma fruta da região. Observamos, ainda, que a posposição irũ não manteve a ocorrência irumo, existente ainda hoje no Alto Rio Negro. Finalmente, tratamos sobre o contato entre o Nheengatu e o Sateré-Mawé, língua indígena com que divide o mesmo espaço geográfico. Sobre essa relação linguística, encontramos similaridade entre o léxico de ambas as línguas. A partir dessa semelhança, buscamos nos registros históricos estabelecer a origem desses empréstimos. Nas palavras iguais/similares que conseguimos identificar em ambas as línguas, identificamos empréstimos do Nheengatu. Não encontramos, nos dados coletados, palavras utilizadas no Nheengatu emprestadas do Sateré-Mawé. Entretanto, identificamos ocorrências linguísticas que só permanecem na variedade do Nheengatu do Médio Rio Amazonas, devido ao contato com o Sateré-Mawé, como a vogal central alta ‘i’. O registro dessa variedade do Nheengatu na região do Médio Rio Amazonas é de grande importância, pois atualmente está presente somente nas gerações mais velhas, sendo classificada como língua agonizante ou moribunda, podendo deixar de existir nas próximas gerações. Entretanto, a contribuição deste estudo não foi apenas fazer o registro da língua atual na região, mas também motivar a geração mais nova, ou seja, filhos e netos dos falantes de Nheengatu do Médio Rio Amazonas, a conhecer e aprender a língua dos antepassados e, consequentemente, a história da família. Sabemos que ainda ficaram questões para serem resolvidas que poderão ser contempladas em pesquisas futuras. Por fim, esperamos contribuir para o conhecimento das línguas indígenas brasileiras e, principalmente, as amazônicas.

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159

ANEXOS

ANEXO 1 – Quadro dos diretores das aldeais de índios da província do Amazonas, inserido no relatório da Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas de 1858.

160

ANEXO 2 – Quadro dos diretores das aldeais de índios da província do Amazonas, inserido no relatório da Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas de 1864.

161

ANEXO 3 – Mapa da Amazônia organizado em 1870 pela Amazon Steam Navigation Company Limited e completado em 1893 por Luiz R. Cavalcanti de Albuquerque

162

ANEXO 4 – Narrativas coletadas na região do Médio Rio Amazonas por João Barbosa Rodrigues ([1890], 2017).

1) LENDAS MITOLÓGICAS

CURUPIRA YEPÉ CUNHAN IRUMO o curupira uma mulher e (RIO AMAZONAS) Yepé apegaua o ricu, paá, chemericó, o ricu tayra miri cuaira189 eráin. Um homem tinha, dizem, mulher, tinha filho pequeno tenro, ainda

Cuá apegaua yepé ara o ço u camonó i o iuanti Curupira irumo. Este homem um dia foi caçar ele encontrou-se Curupira com.

Curupira, paá, o iucá aé. O Curupira, contam, matou ele.

Ariri, paá, o pirare nhaan apegaua petêra rupi; Depois, dizem, abriu aquele homem meio pelo; ariri, paá, o iuúca i pêá pêa; ariri, paá, iuêre iuúca i cerora camichá depois, contam, tirou seu fígado; depois, dizem, ainda tirou sua calça e camisa o mundéua cecé; ariri, paá, i o muácuaema aé uana o ço vestiu em si; depois, dizem, ele disfarçou-se logo foi nhaan apegaua cuêra remericó pêre, o cenoi: aquele homem que foi mulher tu com, e chamou:

-Uaimi! Uaimi!...Mamé taá re icó?190 -velha velha Onde que tu estás?

-Cu çucui chá icó. - Aqui está eu estou.

189 Abreviatura de Ikó, estava, ayra, tenro, pequeno. 190 Abreviam a frase dizendo Matarecô.

163

Aé ana, paá, o uiqui oca cuara queté. Ariri, paá, Ele já, dizem, entrou casa dentro para. Depois, dizem, o maité i mena arama, mahy cuité, paá inti o maan cecé pensou seu marido mesmo, como então, dizem não olhou nele.

- Cu çucui cha rure çoó-cuêra ceen uaá, iure rememue cha arama. - Aqui está eu trouxe carne gostosa que, vai cozinhar mim para.

Aé ana, paá, u meen ichupé i pêá pêá o iuúca uaá i mena cuêra. Ela já, dizem, deu lhe o fígado tirou que dela marido que foi.

Aé ana o mechire, ramé uana o çu o iuúca iú, Ela logo assou, quando já foi tirou farinha, aé ana o apêca membira aitá irumo, ele logo assentou-se filho eles com, iuêre o apêca Curupira, tupé arpe, aé ana o nheen: também assentou-se Curupira esteira em cima, ele já disse:

-Yá ço yá umbaú -Vamos nós comer

Aé ana aintá o maú yepé uaçu. Ariri Curupira o nheen: Logo eles comeram juntos. Depois, o Curupira disse:

- Cuêre cha ço putare cha quîre. Irure tayra i cha arama u quîre ce irumo - Agora eu ir quero eu dormir. Traz filho mim para dormir migo com.

Aé ana, paá, Curupira o inó quiçaua opé. Ele, logo, dizem, Curupira deitou-se rede na.

Aé ana, paá, nhaan cunhan o rure tayra o meen ichupé. Logo, dizem, aquela mulher trouxe filho deu a ele.

164

O quîre o ço o maan cecé, o maan catu iarpe. Dormiu foi olhar nele, olhou bem em cima.

Aé ana, paá, u nhenhê: “Cuá inti ce mena, Ela logo, dizem, falou: “Este não meu marido, cuá inti ce mena, cuá Curupira”. este não meu marido, este Curupira”.

Aé ana, paá, i o mocaturu i maan etá panacu upé; Ela logo, contam, ela arrumou dela coisas panacu no; aé ana o ço o iuúca i membira i chii o ço o iuoca inuá ela logo foi tirar seu filho dele foi tirar pilão umbure tayra recoiara i potiá ape, aé ana o pecêca i panacu, botou filho em lugar dele peito no, ela já pegou seu panacu, i maan etá irumo uaá umbure i cupepe, suas coisas com que pôs suas costas na, u pecêca tayra u çupire i poti ape didima191 apé, aé ana o ço ana. pegou filho carregou seu peito no tipoia na, ela logo foi embora.

Ariri çacacuera iunto o paca nhaan Curupira, Depois, em seguida logo acordou aquele Curupira, aé ana, paá, o puama o cema ocara queté onheen: ele já, dizem, levantou-se saiu fora para e disse:

-Ah! o ganane i ché nhaan cunhan. Ah! enganou me aquela mulher.

191 Vocábulo do dialeto Uapichana, que corresponde à tipoia Tupi.

165

Aé ana o cecare o çacema: Ele logo procurou gritando:

-Uaimi! Uaimi! Mamé taá re icó? -Velha! Velha! Onde que tu estás?

Aé ana, paá, o maan Curupira ure çacacuera. Ela logo, contam, viu Curupira vir no encalço.

Aé ana, o iáuau i chii. Aé ana, paá, u nhana Ela logo, fugiu dele. Ele logo, dizem, correu nhaan192 cunhan o iupire mambui iua193 recé, çacanga queté aquela mulher subiu mambuizeira na, galho pelo iuaté aap o puitá u queiiri194 o iapeçaca Curupira ure, alto lá ficou calada escutando o Curupira vir, o cêca uirpe u cenõe: chegar em baixo chamar:

-Uaimi! Uaimi! Mamé taá re icó? - Velha! Velha! Onde, que tu estás?

Yapé muirá racanga arpe Uacuráu nhengare: “Mambui! Num árvore galho em cima acurau cantou: “ Mandui!

Manbui!”195 Curupira u cendó icó o máeté nheengare icó, “Mandui!” o Curupira ouvindo estava pensou cantando estava, inti o cuau, Curupira inti o maan cunhan recé, aé iana o iuuire. não soube, o Curupira não viu mulher a, ele já voltou.

192 Pronunciam também iáan. 193 É o nome dado aos Louros, árvores dos gêneros Nectandra e Aydendrum da família das Lauráceas. 194 Também pronunciam quirirento. 195 Este notívago parece no canto dizer esta palavra, que também, como já vimos, é o nome de uma árvore.

166

Cunhan o maan Curupira o iuuire, aé ana o êiyr, A mulher olhando o Curupira voltar, ela logo desceu, o nhana uiqui caá pupé. correu e entrou mato no.

Aé ana, paá, Curupira o nheen: “ Nhaan cunhan u ganane iché”. Ele logo, dizem, o Curupira disse: “Aquela mulher enganou me”.

Aé ana o iuuire o nhana çacacuera o cenoe aé: Então voltou correu atrás chamou ela:

-Uaimi! Uaimi! Mamé taá re icó? -Velha! Velha! Onde que tu estás?

Aé ana, paá, cunhan o nhana iuêre muirá açu rupetá queté, Ela logo, dizem, a mulher correu outra vez árvore grande tronco para, nhaan muirá o ricó i cuara uaçu, aquela árvore tinha seu buraco grande, nhaan i cuara chii o pure cururu Cunauaru.196 daquele buraco dele saltou sapo Cunauaru.

-Ah! Cunauaru! Cha putare re peceru iché Curupira chii. -Ah! Cunauaru! Eu quero tu livres me Curupira do.

Aé ana, paá, Cunauaru o munhan tupaçama i pira Ele logo, dizem, Cunauaru fez corda seu corpo icica chii uara197 i rupi uana nhaan cunhan o iupire muirá cuara queté.

196 O sapo cunauaru faz, no oco dos paus, o ninho com resina de breu branco, que acama com o peito, formando um grande cilindro furado no centro; aí dorme e aí depõe os ovos no tempo da enchente. É crença que a resina é feita pelo sapo, que é boa, quando queimada, para dores de cabeça, assim como, que o sapo trazido para casa dá felicidade a quem o criar. Cunauaru icica é corruptela de kundá, enrolada, enroscada, u karô ele guarda, icica, resina. 197 Esta dicção não tem tradução e denota frequência, existência, continuação de alguma ação.

167

resina do ela por já aquela mulher subiu árvore buraco para.

Curupira u cêca u cenõe: O Curupira chegou chamou:

-Uaimi! Uaimi! Mamé taá re icó? - Velha! Velha! Onde que tu estás?

Cunauaru o nheen: O Cunauaru disse:

-Cu çucui aé. -Aqui está ela.

Aé ana, paá, nhaan cunhan iururé cururu çupé inti richare o iupire Curupira. Ela logo, contam, aquela mulher pediu sapo ao não deixar subir o Curupira.

- Tenhen re cequeié, cha iucá putare aé. - Não te amedrontes, eu matar quero ele.

Aé ana, paá, Cunauaru, o quetica i icêca198 muirá rupetá recé. Ele logo, dizem, o Cunauaru esfregou sua resina árvore tronco no

Aé ana Curupira oiare nhaan muirá recé i o mutá icêca199 iaua rupi, Ele já o Curupira encostou-se áquela árvore na ele grudou resina pelo pelo. aé ana, paá, aap o manu. Então, dizem, aí morreu.

Aé ana, nhaan cunhan o êiyr membira irumo, aé ana i uiuire çoca queté. Ela logo, aquela mulher desceu filho com, ela correu casa para.

198 Por icika. Chamo a atenção do leitor para a irregularidade da pronúncia não só dos diferentes lugares, como mesmo na do mesmo conto, como, por exemplo, na palavra Korupira, que ora está escrita Curupira, ora Corupira. Escrevo conforme vulgarmente escrevem, porque para mim adotei e proponho a ortografia com K. 199 Este fato nos lembra um caso semelhante do conto do Macaco e o moleque de cera.

168

YURUPARI CUNHAN MUCU ETÁ IRUMO O Yurupari moças e as (RIO MADEIRA) Cuchi ima, paá, curumi uaçu etá u cêca yepé tuiué oca opé u nhehê, Outrora, contam, uns mancebos chegaram dum velho casa na e falaram,

paá, etá cunhan mucu etá çupé. contam, eles moças às

-Pe i u mucaturu orandé curi yá çu yá temiare, -Vocês se arrumem amanhã iremos apanhar peixe,

pe munhan meyú pêça... yé...200 ramé curi yá çu. vocês façam beijus meia-noite (depois de) quando iremos

Aap iunto ipó u icó Yurupari u cenó aitá u purangueta. Aí perto talvez estivesse o Jurupari ouvindo eles conversarem.

Aé ana, paá, curumi açu etá renondé u cêca Yurupari. Então, dizem, dos moços antes chegou o Jurupari.

Aé ana ué in aé cunhan mucu etá cupê: Então disse ele moças às:

-Pe i u mocaturu, apecatu mamé yá çu uaá. - Vocês se arrumem, longe onde vamos que.

Aé ana u çu ana yurupari irumo Eles já foram o Jarupari com.

Aitá racacuera u cêca curumi açu etá u purundu: Delas em seguida chegaram os mancebos perguntando:

200 Os tapuios têm o costume de demorar a pronúncia de uma palavra quando querem dar uma ideia de demora, distância, tempo, etc. Assim, quando dizem apec atu dizer longe, mas se dizem apeca...tu... querem dizer muito longe. Aqui na lenda os moços disseram peça...yé..., isto é, muito depois da meia noite.

169

-Mamé taá icó cuá cunhan mucu etá yá çu arama? - Onde que estão estas moças irmos para?

I u canhema aitá paia, aitá manha, upáin mira etá. Delas assustou-se delas o pai, delas a mãe, toda gente.

Aé ana coema cunhan mucu etá u maan Yurupari recé, puchi uera i marice tepê. Então de manhã as moças olhando Jurupari no, feio sua barriga funda.

-Aé ana Yurupari u nhehê cunhan mucu etá çupé: - Então Jurupari falou moças às:

-Cuire iché pe mena. - Agora eu vocês marido.

Aé ana, paá, cunhan mucu etá u iachió. Então, dizem, as moças choraram.

Iui cuara açu Yurupari opé çoca. Mahi cuité aramé Gruta do Jurupari a casa. Como então nesse tempo upáin uirá etá çoó etá u purunguetá mira irumo, todos os pássaros e animais conversavam gente com, u ure Caran u çaçau aitá ara rupi yepé cunhan mucu ué in: veio Carão passando delas cima por uma moças disse:

-Ce ramonha, Caran, re raçu iché ce manha roca opé? - Meu avô, Carão, tu levas me minha mãe casa na?

Caran u nhehê: Carão falou:

-Erê! Cha raçu indé ne manha roca opé, ariri cha iuire cha iure i piama ne amu. - Sim! Eu levo tu tua mãe casa em, depois eu outra vez eu volto buscar tua parente.

170

Yurupari u çu, paá, uatá, intimaan çoca opé. O Jurupari foi, dizem, passear, não casa em.

Ure ramé u cecare cunhan mucu etá inti ana u acema. Veio quando chegou as moças não já achou.

CONTOS ZOOLÓGICOS MICURA ARIRAMBÁ IRUMO 201 Mucura a Ariramba e a (RIO AMAZONAS) Micura u ricó, paá, taira mena Arirambá. A Mucura tinha, contam, genro Ariramba.

Arirambá u çu paraná me u iumu pirá, u cêca ipaua opé aap O Ariramba foi rio no flechar peixe, chegando lago no lá

u mamé ricó muirá u eauêca paraná arpe aap, u çárô pirá u iumu arama. onde havia pau abaixado rio em cima lá, esperou o peixe flechar para.

Arirambá u çu rami curuten uara u iuêre, ne rain çaichu çarô O Aribamba lá quando depressa voltava, não ainda a sogra esperava

u cêca uana. Yepé ara opé i paia u cenõe taira: chegava. Um dia em dele pai chamou a filha:

- Ce raira, mahy taá ne mena u iucá pirá? - Minha filha, como que teu marido mata peixe?

-Mahy mu taá ce paia? U iupire muirá u eauêca - Como fazer que meu pai? Ele sobe pau abaixado

parará arpe u muoapu maracá

201 Mucura é o marsúpio conhecido no sul por Sariguê ou Gambá, como já vimos, o Didelphis azarae e ariramba é um sindáctilo, conhecido por martim-pescador, do gênero Alcedo. Neste conto nos dá o índio o motivo do pixé ou cantiga do gambá.

171

rio no e toca o maraca.202

- Yaué cerá? Iché yaué iuire cha iucá pirá - É assim? Eu assim também eu mato peixe.

Ariri, paá, ué in che mericó çupé: Depois, dizem, disse mulher à:

-Uaimi! Yá çu yá iumi pirá? - Velha! Vamos flechar peixe?

- Yá çu, tuyué. - Vamos, velho.

Aé uana, paá, aetá u çu, u cêca ipaua opé. Micura Então, dizem, eles foram, esperar lago no. O Mucura

tuyué u iupire muirá ape. velho subiu pau no.

Aé uana, paá, u iupire muirá ape u moapu maracá u çarô pirá. Então, dizem, subiu pau no tocou o chocalho e esperou o peixe.

Ne copocó u iucuao pirá, Tucunaré ramunha ichupé. Não tardou apareceu peixe, o Tucunaré avô lhe.

Aé uana, paá, u pure cecé pirá, u çóuante203 u mucuna aé micura tuyué. Então, dizem, saltou nele peixe, encontrou engoliu ele mucura velho.

- Uhn! Ce mena! Pirá ramunha mucuna uana. - Uhn! Meu marido! O peixe avô engoliu já.

Aé uana, paá, uaimi u nhana oca queté.

202 Alude ao canto que na realidade assemelha-se muito ao som de um chocalho. 203 Isto é: esperou o bote saltando ao mesmo tempo.

172

Então, dizem, a velha correu casa para.

Aé uana, paá, çacema: Então, dizem, gritou:

-Ce membyra! Pirá ramunha u mucuna uana ne paia. - Minha filha! O peixe avô engoliu já teu pai.

Aé uana, paá, ué in i mena çupé: Então, contam, disse seu marido ao:

-Có re maan ce paia pirá mucuna uana. - Vai ver meu pai peixe engoliu já.

Aé uana, paá, u nhana, u çu, u cêca aap. Então, dizem, correu, foi, chegou lá.

- Mamé taá? - Onde que?

-Iquê. Aqui.

-Aé uana, paá, iupire, ne copocó u iucuáo pirá ramunha. Entaõ, dizem, subiu, não tardou apareceu o peixe avô

Aé uana u iumu, u iucá u cequei iui queté. Ele já flechou, matou puxou terra para.

Aé uana ué in che mericó çupé: Então disse mulher à:

-Irure quicé. - Traz a faca.

U pecêca quicé umboé pirá marica, u acema, paá, çateua

173

Pegou a faca partiu peixe bariiga, achou, dizem, o sogro

micura pirá marica opé, u manu u putare uana. mucura peixe barriga na, morrer querendo já.

Aé uana, paá, aetá u raçu oca queté. Aé uana, paá, u puitá arama, Então, dizem, eles levaram casa para. Ele já, dizem, ficou para,

i yaué çaua puchi, i nema nhaan pirá marica racoçaua chii. assim rabo feio, ele fedorento aquele peixe barriga calor do.

CONTOS ASTRONÔMICOS E BOTÂNICOS CYIUCÉ204 YPERUNGAUA205 Das Plêiades a origem (Vila Bela) Cuchiyma u ricó yepé ucaúçaiçu u iauáu cemericó çuhy. Antigamente havia um encantado fugiu mulher da.

“Ce re nheeng putare ramé ce irumo rereçó curi çacacuera pe rupi, “Me tu falar quiseres quando comigo irás atrás caminho pelo,

ce pe urubu pepora curi, re uacema arara pepó maiahiua etá rapé”. o meu caminho urubu pegadas , tu achares arara penas das coisas más caminho”.

Cyiucé paia u chiare ramé ce remirecó ipuruáçá irumo. Das Plêiades o pai deixou quando a mulher gravidez com.

204 Como sempre, conservo aqui a pronúncia própria do lugar em que ouvi os contos. 205 Uma prova da influência dos contos da imigração portuguesa, na região amazônica, quando a população então era toda europeia e indiana, está neste conto que passou aos mamelucos e, mais tarde deste a seus descendentes brancos. Enquanto estes, pela Língua Geral ou em português, repetem o Cyuicy yperungaua ou A origem das Sete Estrelas, os brancos das outras províncias, que não conheciam o mito amazonense, contam as histórias dos Trois cheveux d’or du diable, de Grimm, do Bicho Majaléo, dos Três coroados, do Príncipe das Palmas Verdes ou do Limão verde, que segundo Teófilo Braga, é a mesma Paraboinha de ouro, ou El príncipe Jalma, do Chile. A passagem da mulher em casa da mãe da onça é aquele aqui fede a sangue real é um enxerto português feito no conto indígenas, tirado daqueles que acima citei, onde em todos se encontra uma passagem semelhante e a frase igual, que fielmente o tapuio reproduz na sua língua. Esta mesma frase está nos Contos zulos, do Dr. Callaway, no conto da Papa-gente Uzembini e no fec, fo, fum, I small the blood of na inghishman.

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Yepé ara u çó pe rupi u cecare i mena taina etá uachió i marica opé. Um dia foi caminho pelo procurar seu marido os filhos choraram dela barriga na.

-Opain maá u chipiaca uaá u yururé, i manha çuhy ipeayua, -Todas as coisas vêm que pedem, a mãe deles zangou-se, taina etá recé u iacaua. Nhaan recé inti pecema uana os filhos com ralhou. Por isso não saem já pê u arama maan pe putare uaá. vocês comer para as coisas vocês querem que.

U iacáu riré intiana u nheeng taina etá. Auhuana u çu Ralhou depois que não falaram as crianças. Somente foi arama mahiyua etá rapé rupi i peayua recé taina etá. Uceca para das coisas más caminho pelo zangada com as crianças. Chegou yauarité manha roca popé. da onça mãe casa na.

-Maa taá re ure i piama quêrupi? Ce membyra etá mira puchi reté. -O que tu vens buscar por aqui? Meus filhos gente má muito.

-Cha yure que rupi ce aryia ce mena racacuera. -Eu venho por aqui minha avó meu marido no encalço.

U nheen iché arama cha yure arama çacacuera urubu Disse me para eu vir para atrás urubu pepora curi, ce rapé, arara pepó rupi mahiyua etá rapé cha yure. pegadas, meu caminho, arara penas pelo coisas más caminho eu vim.

-Ah! ce temiareron! Aé cué ce membyra etá u ceca i peayua çe irumo. -Ah! minha neta! Aí estão meus filhos chegando deles zangados comigo.

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Yure quê queté cha iumime iné igaçaua uirpe enti arama aintá ne repiaca. Vem para aqui eu esconder- te panelão embaixo não para eles te enxergarem.

U ceca yepé membyra. “Ah! ce manha! iquê nema moacara tuhy”. Chegou um filho. “Ah! minha mãe! Aqui fede real a sangue”.

- Ah! ce membyra! Uaá taá i mu uceca quê rupi? - Ah meu filho! Quem que há de chegar por aqui? apecatu cha icó? I manha porandu ichupé. – Maá mutaá longe eu estou? Mãe perguntou lhe. – O que que re munhan curi yepé cunhan u iucuau ramé ce queté? tu farias uma mulher aparecer quando mim para?

“Ah! ce manha! Maa mutaá cha munhan? Tenupá u puitá ne “ Ah! minha mãe! O que eu fazia? Deixava ficar tua camarara arama”. amiga para.”

Ariré u ceca a muitá maá yaué u nheen tenoné Depois disso chegaram outros a mesma coisa disseram o primeiro uceca uaá nheeng, yaué tenhen çacacuera u nheen. Yepé ara chegou que disse, assim também após disseram. Um dia timaan u iucá aintá u ú arama, i peayua u iucá aintá cunhan nada mataram eles comer para, eles zangados mataram a mulher icó i manha irumo. I manha u ururé i çupiá ceremá rama. estava sua mãe com. Deles a mãe pediu deles os ovos criar para.

U pececa çupiá etá u inu catu, u cema pó-mocoin Tomou os ovos guardou bem, saíram sete

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taina etá yepé taina cunhan. I iumunhan ariri u nheen aitá crianças uma menina. Elas cresceram depois disseram

manha yaué tacuri206 ya upêca yá manha? – Yá çu yá munhan mãe como tacuri nós vingaremos nossa mãe? – Vamos nós fazer

cepetu pachiuba207 çuhy yá iamuné nhaan tipy aqueté maá taá espeto paxiúba de nós espetarmos naquele fundo ali que

arama yá iucá arama, yané manha repêcaçara. para matarmos para, nossa mãe vingadores.

Taina etá uçu yaçuca u ceca yauarité etá. As crianças foram banhar-se e chegaram as onças.

-Maá taá pe munhan taina etá? “Timaan”. Ya yaçuca yá icó. - O que que vocês fazendo meninos? “ Nada”. Nos banhando nós estamos.

-Iche yure cha yaçuca putare pe irumo. “Eré cuté”. - Eu vim me banhar puro vocês como. “Está bom”.

Yané miraira recé yapor quê queté tepy yma queté, Nós criancinhas por saltamos aqui para baixio para,

penhen peturuçu recé pepor queté quaá tepy uaá queté. vocês grandes por saltem para aquele fundo que para.

U por aintá yg pype aap u puitá, u manu opain yg pype cepetú recé. Saltaram água funda aí ficaram, morreram todas água funda espeto no.

Taina etá u çu ana u apêca itá aarpe. Yauareté u ceca taina etá pyre. As crianças foram se embora assentaram-se pedra em cima. A onça chegou as crianças ter com.

206 É uma espécie de formiga. 207 Palmeira do gênero Iriartea. Da madeira negra fazem os índios os seus arcos e as pontas das flechas, por ser muito flexível e forte.

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“Maá taá pê munhan?” “O que que vocês fazem?”

-Timaan. Yá iumuçarai yá icó. “Aramé cha iumuçarai -Nada. Nós brincando estamos. “Então eu brincar putare yuire ne irumo”. – Eré cuté! quero também vocês com”. – Pois bem!

I u apeca itá arpe u munhan maá yá munhan yá icó. Assenta pedra em cima faz o que nos fazendo estamos.

-Maa arama taá cuté? – “Yá munhan i miraira arama yá mian”. - Que para que então? – “Nós fazemos pequeninos para nossos grãos”.

- Aramé cha putare i miraira arama ce mian. - Então eu quero pequenino para meu grão.

“Aramé ré munhan curi çupé açu yá munhan yá icó. “Então tu farás igual fazendo nós estamos.

U tucá aintá itá irumo i mian arp, aap i u manu, paua, Bateram todos pedra com deles os grãos em cima, aí ela morreu, acabou, aap i u puitá. U iuire taina etá yauarareté manha roca queté. aí ela ficou. Voltaram os meninos da onça mãe casa para.

Ariri uçu paraná remehê pe u çaan muruirá, u çaan care, Depois foram rio beira pela arremedar todos os pássaros, arremedar mandaram, intá i quiyuire, nemaan i puranga aintá ichupé. U çaan aintá care Caran. eles sua irmã, nada bonito eles para. Arremedar eles mandaram o Carão.

I puranga reté uacema aintá Caran nheengara u nheen: Bonito bem acharam eles do Carão a cantiga e disseram:

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“re chepiaca, ramé curi ceiyucy ure ramé icó, “ Espreira, quando as Plêiades saindo quando estiverem,

eré peteca curi ne pepó, inti ara ne pepó u cucui. tu sacudirás tuas asas nunca tuas penas cairão.

Re chepiaca ceiyucy u cema ramé eré nheengara curi”. Espreita as Plêiades nascerem quando tu cantarás”.

Caran u peteca i pepó u çu ana i quiuira etá u monó208, O Carão sacudiu suas asas e foi se embora seus irmãos mandaram,

aintá u iupire iuaca queté ceiyucy arama. eles subiram céu para Plêiades para.

CANTIGAS Cantigas do Çairé

De madrugada no fim da festa (Parintins, antiga Vila Bela da Imperatriz) S. Francisco, S. Miguel S. Francisco, S. Miguel

Curumi açu poranga Mocetão bonito.

U erecó i balança i pópe, Estão sua balança na mão,

Iané anga pesarçara Nossa alma o que pesa

Angaturama pesarçara

208 Metamorfosearam as irmãs em pássaro e eles foram para o firmamento, onde se transformaram em estrelas.

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Alma boa o que pesa

Carai uéué angaturama. Anjo espírito bom. Cantigas do Makuru

Acutipuru 209 (Parintins) Acutipuru re puru Acutipuru tu emprestas

Ne ré pocêi cuá taira çupé O teu sono este filho à

Inti u quire putare Não dormir quer

Re puru uquir arama. Tu emprestas dormir para.

Andirá (Parintins) Andirá yurupari, O morcego é o demônio

Umucu ce ratá Apagou meu fogo;

Cururu mirá catu, O sapo é gente boa,

U mundeca ce ratá

209 É um roedor do gênero Sciurus, que compreende várias espécies conhecidas no sul por caxinguelês. Acreditam ser um animal encantado, donde o nome de cutia emprestada (acuti, puru).

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Acendeu meu fogo.

Jacurutu 210 (Todo vale do Amazonas) Yacurutu re puru ne repocé Jacurutu tu emprestas teu sono.

Taina pitanga u quire arama. Filho pequenino dormir para.

Sururina (Vila Bela) Çururina211 re munguera212 ne membyra Sururina tu fazes dormir tua filha

Yá çu arama yá mundá maniaca Nós irmos para roubar mandioca

XIV (Vila Bela) - Murucututu ne manha ne renõe. - Murucututu tua mãe te chama

- Puité munhan çe nupan putare recé - Está mentindo me

210 Nome da coruja Strix macurutu, Vieill. 211 Corruptela de çurury, conhecida também por inambu añanga, galináceo das capoeiras que, sobretudo, nas noites de luar, com seu piar triste, marca as horas. 212 Corruptela de mbokér ou mokér.

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ANEXO 5 – Compêndio de Doutrina Cristã do padre Manuel Justiniano de Seixas publicado por Francisco Bernardino de Souza (1875)213

Auá taa yanê munham. - Quem nos criou?

Tupana. - Deus

Maarama cuité yane munham Tupana? - Para que nos creou Deus?

Yacuáo arama aê, saicu arama, puranquê arama ichupe, qua-a rupi yaique arama euaca opé - Para o conhecer, amar e servir e por este meio alcançaremos a vida eterna.

Tupana yane munhan será catuçaua rãma? - Deus nos creou para nos fazer eternamente felizes?

Em em; Tupana yanê munhan catuçaua rama. - Sim; Deus nos creou para nos fazer felizes.

Ma á cuite ya munhan catuçaua rama ya icó? - E o que devemos fazer para sermos eternamente felizes?

Ya yumué rame yumué çaua Christan. -Seguir a doutrina christã

Ma á cuite yumué çaua christan ? - Qual é a doutrina christã?

213 O cônego Francisco Bernardino de Souza (1875, p. 92) publicou o capítulo preliminar do Compêndio de Doutrina Cristã, escrito pelo padre Manuel Justiniano de Seixas.

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Yumué çaua christan aê yane muê ua-á yané yara Tupana Yezu Christo apostol, itá muçá pucai ua-á; Tupaoca cuêre yane mué. - A doutrina christã e a doutrina de Jesus Christo, que os apóstolos pregaram e a igreja nos ensina.

Ma-á cuite oica yanê yara Yezu Christo moeçauo opé? - O que contém a doutrina de Jesus Christo?

Yanê yara Yesu Christo moé çaua ricó – 1º. Supiçara ita ya yuiare arama cê cê; - 2º. Satamè caçara yanungatu arama; - 3º. Quaá rupi Tupana putare yanê reco catu rama. - A doutrina de Jesus Christo contém: 1º. As verdades que devemos crer; - 2º. A lei que devemos guardar; -3º. Os meios que Deus estabeleceu para nos santificar.

Ma me cuite yauacema supiçaua itá ya ruiarearama cê-cê? - Onde se acham as verdades que devemos crer?

Supiçaua itá ya uacema opain catu ruiar arama cê-ca symbolo apostolo itá pupé. - As verdades que devemos crer se acham em resumo no symbolo dos apóstolos.

Mame cuite yuptaçuca yumueçaua yunungatu arama? - Onde está contida a lei que devemos guardar?

Satamecaçaua yunun gaturama yupetaçuca Tupana e Tupaoca Mondoçara itá pope. - A lei que devemos guardar está contida nos mandamentos de Deus e da igreja.

Ma á cuite pêlêra itá Tupana inum yane catuçaua rama? - Quaes são os meios que Deus estabeleceu para nos santificar?

Pêlêra itá Tupana inum yane catuçaua rama aê rapa-á yumueçaua, Sacramento itá irumo. - Os meios que Deus estabeleceu para nos santificar são: a oração e os Sacramentos.

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ANEXO 6 – Narrativas coletadas por João Barbosa Rodrigues (1890) em regiões diferentes do Rio Amazonas

Yurará 214 UIRÁUAÇU IRUMO A tartaruga o gavião e

(RIO NEGRO)

Cuchi yma, paá, yepé yurará u iucá uirauaçú. Antigamente, contam, que uma tartaruga matou o gavião

U chiare chemericó yepé taira meri Deixou mulher e um filho pequeno

Taira u çu u caamunu cenemue iauaué215 u acema O filho ia caçar camaleão sempre achava

uirà pepó. U ceca oca opé u purundu i manha çupé passaro pennas chegando casa em perguntou d’elle mãe á.

__ Auá pepó cha u acema caá pe cha çu iauaué cha caamunu? - Quem pennas eu acho matto no eu vou sempre caçar

= Cembira, ne paia u manu uaá = Meu filho, de teu pai morreu que.

U quiriri, iunto u mucaturu peá pe. I u munhan Calou-se, somente guardou coração no. Elle crescendo

u çu, icó u pêtá curumi uaçu foi, estava a ficar moço

Yepé ara u çu u caamunu i uanti yurara-y está irumo. Um dia foi caçar ele encontrou tartaruguinhas com.

Ariri yurará-y etá u neeng ichupé : Depois tartaruguinhas disseram lhe :

__ Yá çu u iaçoca216 yandé irumu ? __ vamos banhar nosco com ?

Aé uana ué in : Logo disse :

214 Yurará é o nome genérico que dão aos chelonios aquáticos, como no Perú dão o de Charapa e Charapilla, e para designar espécies tem nomes especiaes, como o de tracayá, pitiú, akambeua, akanguçu, arapuca, etc. 215 Por yaué yaué. 216 No Pará dizem iaçuca.

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- Yá çu. - vamos.

Aé uana, paá aitá u iaçoca, u iaçoca upé, u pecêca Então, dizem, que elles se banharam, banhar no, pegar

putare aitá i poampé irumo. queria ellas suas unhas com.

Aetá ué in ichupé Ellas disseram a ele :

- Aretá ce aria iucá ne paia. - Por isso minha avó matou teu pai.

= Cuêre çupi cha cuau ana auá u iucá ce paia. = Agora devéras eu sei quem matou meu pai.

I u munhan, turuçu ana aé uana u nhenhê : Elle cresceu, grande já elle já disse:

“Cha çu cha çaan ce querembaua çaua.” “Eu vou experimentar minhas forças.”

Aé uana, paá, u çu u çaan querembaua çaua mirity217 Logo, dizem, foi experimentar a força merity

ruan recé. U cêca, mundeau i poampé u muçaca arama, grêlo no. chegou, metteu suas unhas arrancar para,

u çaa, u cêquei, ne u muçaca. U nhenhê: experimentou, puchou, não arrancou fallou :

“Ne rain ce querimbaua.” Ariri amó ei u çu iuêre “Não ainda minha forçar.” Depois outra vez foi também

u çaan querembaua çaua, aé uana u mucaça, u nhenhê : experimentou força, então arrancou disse :

“Cuêre querimbaua uana. Cuêre çupi cha çu cha i u yurará “Agora força já. Agora devéras eu vou vingal o

ce paia ambyre ; cuêre cha çuru, mairamé i aria yurará u cêma.” meu pai defunto; agora eu espero, quando d’ellas avó tartaruga sahir.”

Yepé ara, paá yurará aria u muçain tupé arpe Um dia, dizem, tartaruga avó espalhou esteira em cima

217 É uma bela palmeira a Mauritia flexuosa, Mart., cujo grelo dá fibras muito fortes empregadas em tecidos e redes

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Paricá218 ; ariri, u ricu amana, uitu irumo, aé uana ué in Paricá ; depois, houve chuva, vento com, ella já disse

che meriauru etá çupé : netas ás :

- Pe coin pumatêre, pe mongui arama amana chii. - vocês vão ajuntar, vocês recolher para chuva da.

Yurará etá inti aitá u çu pire cuan i pocê, arecé Tartaruguinhas não ellas foram carregar elle pesado, por isso

aé uana aitá cenõe : então ellas chamaram:

- Ce aría iure u petumu yandé. - Minha avó vem ajudar-nos.

Aetá aria u cema ure arama u petumu che meriareru, D’ellas avó sahiu foi para ajudar as netas,

uiará uaçu u maiana u maan u cema, aé uana u pere i o gavião vigiando vio sahir, então saltou d’ella

arpe, çupire uirá uaçu Pequiá219 racanga queté. em cima, carregou o gavião pequiá galho para.

Aé uana yurará uaimi ué in uirá uaçu: Então tartaruga velha disse gavião:

- Cuêre cha çu cha manu re cenõe care ne anama etá - Agora eu vou morrer chamar mandar teus parentes

ure arama u maan cha manu. venham para ver eu morrer.

Aé uana uirá uaçu etá anama ure upáin, muêre uirá etá Então do gavião os parentes vieram todos, todos os pássaros

u cêca, aé uana aetá u petumu u iucá yurará uaimi. chegaram, então elles ajudaram a matar tartaruga velha.

Muêre uirá etá u iucá uaá u pêta nheen imparauá Todos os pássaros mataram que ficaram só misturado,

218 Fructo da piptedeira colubrina, cujas sementes soccadas e amassadas dão o pó inebriante de que se servem os gentios em suas festas ( Murais ) ou como remedios ( Mauhés ). 219 É o Cariocar brasilienses cujo fructo dá excellente óleo, que assemelha-se muito á gordura da tartaruga na cor e consistência.

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amó pêtá piranga; nhaan u cutuca uaá i pirêra recé outros ficaram vermelhos; aquelles bicaram que seu casco no

u petá i tiu irumo pichuna ; amó u cutuca uaá i ficaram seu bico com preto ; outro beliscou que seu

peá piara u pêtá çuquire, iaué paua yurará iucaçara etá, figado ficou verde, assim acabaram tartarugas assassinos,

yaué paua ana, aitá, u pêtá cuchiyma, ara etá. assim acabaram já, ellas, ficaram antigamente, tempo muito.

TRADUCAO DA LENDA ANTECEDENTE

Contam que, nos tempos primitivos, uma tartaruga matára um gavião, que deixou mulher e um filho pequeno. Chegando em casa perguntou á sua mãe: - De quem são as pennas que eu acho sempre no matto, quando vou caçar? - Meu filho, são de teu pai, que morreu. Calou-se elle e concentrou-se. Cresceu e estava quasi moço. Um dia foi caçar e encontrou umas tartaruguinhas. Estas disseram-lhe: -Vamo-nos banhar? Elle disse: - Vamos Dizem que se banharam e no banho, elle queria pegal-as com as unhas. Ellas disseram-lhe: - Por isso minha avó matou teu pai. - Agora sei quem, verdadeiramente, matou meu pai. - Vou experimentar minhas forças. Dizem que experimentou-as no grelo do merity. Chegou e metteu as unhas para a arrancar. Experimentou, puxou e não o arrancou. Disse: - Não tenho ainda forças. Foi outra vez experimentou-as. Então arrancou o grelo e disse: - Agora já tenho força. Agora vou deveras vingar meu defunto pai. Esperarei a sahida da avó das tartarugas. Dizem que um dia aquella espalhou paricá em cima de uma esteira. Houve depois chuva de vento, e ella disse ás netas: - Vocês não ajuntar para recolher da chuva o piricá. As tartaruguinhas não foram, por ser aquelle pesado, e por isso chamaram: - Minha avó, venha ajudar-nos. A avó sahiu e foi ajudar as netas. O gavião estava vigiando, e, vendo-a sahiu, saltou-lhe em cima e a carregou para um galho de pikiá. Então a velha, tartaruga disse ao gavião: - Como vou morrer agora, mandar chamar teus parentes para que venham me ver morrer. Vieram, então todos os parentes do gavião. Chegaram todos os passaros e ajudaram a matar a velha tartaruga. Os passaros que a mataram, ficaram sarapintados. Outros ficaram vermelhos. Aquelles que beliscaram o casco ficaram com o bico preto; outros beliscaram o fígado ficaram verdes.

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Assim acabaram as tartarugas assassinadas; assim se acabaram Desde então os passaros ficaram pintados.

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O DILUVIO220 (Lenda dos Pamarys, Abederys e Katauichys)

(RIO PURU’S)

Yaué iuire, paá cochiima u caima ramé arauira. Assim também, contam outr’ora perdeu-se quando o mundo

Yepé yacy aitá u cenõe teapó iauté queté iui uirpe, Uma lua elles ouviram ruído cima por da terra debaixo,

aitá marauna, coaracy, paá, piranga u puitá çuaquire, itauá d’elles agouro o sol, dizem, vermelho ficou, azul, amarelo,

yaué iuire, paá, yacy. Cuaá çoó etá u iumunana mira etá assim tambem, dizem, a lua. Estas caças misturaram-se a gente

irumo, intiana, paá, ucequeié mira etá chii, yauarité upáin com, não dizem, temiam a gente da, as onças toda

çoó. Yepé yacy riré teapó reté uana Aé uana, paá, aitá caça. Um mez depois ruido grande já. Então, contam, elles

u maan pituna uçu u ricó iui chii iuaca recé, uitu aiua viram a noute grandes (trevas) havia terra da céo ao, trovoada,

amana irumo u imucuhy catu, paá, ara iui, aitá u caima chuva, com esmigalhar bem, dizem, o dia a terra, elles perdidos

uana icó, amu mira etá u manu, intiana u maan maá já estavam, outra gente morreu, não se viam porque

recé i puchi reté, paá. Aé uana paraná açu u iumunham (estava) feito bem, dizem, Então o mar cresceu

220 Foi encontrada na America do sul a tradicção do diluviu, não só no Perú e no Chile, segundo nos referem Herera e Ovalle, como no Brazil, Simão de Vasconcelos, que nos apresenta Tamanduáré ou Tamandaré como o Noé, brasileiro, que parece ser o mesmo Coxcos, dos Aztecas. Entre os Katauichys, Pamarys e Abederys, do Rio Purús, encontrei tambem a tradicção, porém menos bíblica. Os salvos das aguas foram Uaçu e Sofara, que por instincto natural se refugiaram no cimo de uma grande arvore, como Tamandaré, por conselho dos pagés,se refugiou no grelo de uma palmeira. Durante o diluvio os grelos da arvore se adoçaram e serviam de alimento aos dous. Ao indios citados, annualmente, em julho,fazem, pelas praias, grandes festas, nas quaes os tuichauas referem sempre a tradicção de seus antepassados a fim de perpetual-a. Entre as tradicções, figura a do diluvio, que aqui apresento. Os Pamarys ainda hoje moram em casas ambulantes ou balsas, sobre as aguas do rio e dos lagos, com receio de um novo diluvio.

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uçu, paá uana ipepe iui. Muirá açu etá racanga muito, dizem, já afundou a terra. Das arvores grandes os galhos

inti maan uçu ipipe, aape mira etá iupire, iumacé irumo não foram ao fundo lá a gente subio, fome com

aintá u manu, iruçanga irumo ; amana petuna pucuçaua. morreram frio com; chuva noute toda.

Aé uana u puitá Uaçu chemericó irumo, Sofará iuire u puita Então ficou Uaçu mulher com, Sofará também ficou

che mericó irumo. Aitá ramé u cecare teon-uera etá mulher com. Elles quando desceram cadáveres

caun-uera ni yepé u acema. ossos nem um acharam.

Ariri, paá, aintá u ipanmanguetá: Depois d’isso, dizem, elles imaginaram:

“ I catu ipó yá munhan yané ruca paraná arpe, maá rece “ E’ bom talvez fazermos nossa casa do rio em cima, para que

u y munhan ramé iuire paraná yá iupire arama Paraná agua crescer quando tambem do rio subirmos para rio

irumo.” Ariré, cuité, çantan uana aintá u máan iui, com.” Depois d’isso então, dura já elles vendo a terra,

intiana aintá u manduare anhu ana ten. Pamari etá u munham não elles lembraram-se só já d’ella. os pamarys fazem

ráin aintá ruca paraná arpe. ainda d’eles casa rio em cima.

TRADUCÃO DA LENDA ANTECEDENTE

Tambem contam que, antigamente, foi assim que o mundo se acabou Uma vez ouviram ruído por cima e por baixo da terra. Dizem que o sol e a lua, como agouro, ficaram vermelhos, azues e amarellos. A caça misturou-se coma gente, sem ter medo, isto é, as onças e todos os animaes ferozes. Um mez depois ouviram um estrondo maior. Viram então, contam, que as trevas iam da terra ao céo, com trovoada e grande chuva esmigalhando o dia e a terra. Perderam-se uns, outros morreram sem ver porque, contam, que estava tudo muito feio. As aguas então cresceram muito e dizem que submergiu a terra, ficando só de fóra os galhos das grandes arvores. Para ahi o povo subiu e morreu de fome e de frio, chovendo todo o tempo da escuridão.

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Escaparam então Uaçu e a sua mulher também. Quando desceram não acharam nem um só cadaver ou ossos. Então tiveram depois muitos filhos. Contam que depois elles imaginaram: - Será bom, talvez, fazer nossas casas em cima do rio para quando as aguas crescerem nós com o rio subirmos. Vendo depois a terra endurecida não se lembravam mais d’isso. Ainda hoje os Pamarys fazem casas em cima do rio.

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ÇUAÇU MANYIUA 221 Veado A maniveira do

( RIO SOLIMÕES)

Yepé caamondoçara u apêca u çuru che miara yepé Um caçador assentado esperava a caça uma

Iui cuara ruaqui, u cenoe Surucucu222 u purunguetá che Cova perto de, ouviu a Surucucu conversar sua

mericó irumo. U neeng, paá, chemericó çupé: mulher com. Fallava, contam, mulher á:

__ Cha çuú ana mira cupichaua ra pepe. - Eu mordi Já gente roça caminho no.

Chemericó, paá, u çuachara: A mulher, dizem, respondêra:

__ Re chipiá curi aitá u acema inti çuaçu manyiua. -Você veja elles achem não do veado a maniveira.

Aintá u acema aramé indé curi rem anu. Elles acharem quando morrerás.

Aé uana cuité nhaan apegaua u cecare çuaçu manyiua. Logo então aquelle homem procurou do veado a maniveira.

Ariré coité Surucucu u çuú yepé mira. Depois d’isso então a Surucucu mordeu um individuo.

Aé uana u chiarei arpe çuaçu manyiua Logo deixou em cima do veado a manivera.

221 Esta arvore, que, cresce pelas terras pretas e vargens, pelas informações que me deu o velho pratico Manuel Urbano da Encarnação, é um poderoso contraveneno da peçonha das cobras. Citou-me muitos factos e é o que usa nas suas excursões. Os tapuyos trazem as sementes enfiadas em collares no pescoço contra vertigens e convulsões. É uma Euphorbiacea, do genero Manihot. 222 É o Trigonocephalus lanceolatus.

190

Aé uana i catu. Ariri u çu u cenoe nhaa boia cuara Logo elle bom. Depois foi chamou aquella cobra buraco

opé, u cenoe, paá teapó u i eréereo u icó, chemericó, paá, no, chamou, dizem, ruído de viravoltas estava a mulher, dizem,

neeng ichupé: fallava a ella:

- Re chepiá raá aintá u acema uana çuaçu manyiua, - Veja que elles acharam já do veado a maniveira,

cuêre re manu. agora tu morres.

Ariré u manu Depois d’isso morreu

TRADUCCAO DA LENDA ANTECEDENTE

Estava um caçador assentado ao pé de um buraco na terra esperando a caça e ouviu um surucucu conversando com a mulher. Contam que elle dizia á mulher: - No caminho da roça eu já mordi gente. Dizem que a mulher respondeu: __Olha que elles hão de achar a maniva do veado e quando acharem tu morrerás. Então o homem procurou a maniva do veado. Depois d’isso o surucucu mordeu uma pessoa, que immendiatamente pôz em cima da maniva do veado e logo ficou bôa. Depois foi ouvir a cobra no buraco e dizem que ouviu o barulho d’ella estar retorcendo-se. A mulher, contam, dizia-lhe: - Olha que elles já acharam a maniva do veado. Agora tu morres. Depois d’isso morreu.

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CURUPIRA CAIMA ETA IRUMO O curupira e os perdidos (TEFFÉ)

Mocaen223 taina yepé paya o mumbere caa peterpe, teára Dous filhos um pai botou matto no meio gulosos

Reté, itiana u cêca aintá remiú i o poi arama aintá. Verdadeiros e não já chegar elles comida elles dar de comer para elles.

223 Por mocoin.

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Ariré aintá o puitá caa pe o caima. Açuhy aintá o iupire Depois d’isso elles ficaram matto no perdidos Depois elles subiram

Muirá uaçu recé. Açuhy o maan Curupira ra’á. Uyé o oço páo grande no. Depois viram do Corupira o fogo. Desceram foram

arama tatá recé. Aé ana o acema Curupira a mocaen çoô cuera. para fogo onde. E’ já acharam Corupira moqueando Carne.

Aintá iumacy icó. Aé ana o iururé Curupira chii, Elles fome estavam. E já pediram Corupira moqueando

I mocaen chiuara224. seu moqueado pedaço.

- Ce remonha, re meen cha ú ne remiara? - Meu avô, tu dás me comer tua caça?

- Eré. - Sim.

O monuca ana ce timan roôcuera. O meen, aintá o ú. cortou da perna carne. Deu elles comeram.

- Maa rupi ce rapé ce ramonha? - Por onde meu caminho meu avô?

Aé ana Curupira o çuachara. E’ já Corupira respondeu.

- Qui rupi re çu, qui rupi re çu, re çaçaua muirá uaçu - Aqui por tu vás, aqui por tu vás, passa pao grande

uerampi. Ariré re yereo, re yereo re iuire ce rapiá uira queté ! baixo por. Depois vira, vira e voltar meus escrotos baixo para !

Aé ana taina etá o çu yá timana u cecare ça pé. E já meninos foram rodear chegaram no caminho.

Ne o acema. Não acharam.

Aé ana acema iuére Curupira roca opé. Aintá o porandu Elle já sahiram outra vez Corupira na casa Elles perguntaram

224 Chiuara, do que existia.

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iuére chupé. outra vez a ele.

- Ce ramonha ! Maa queté ce rapé? - Meu avô ! Onde que meu caminho?

- Ne yá o acema. - Não nós achamos.

Curupira o çuachara. Corupira respondeu.

- Yaué tenhen! -_ Assim mesmo!

Ariré u ço ana anitá. O monhana curuçá 225 mirim Depois d’isso foram-se embora elles. Fizeram cruzinhas

etá Curupira rapé opé. Do Corupira caminho no.

Curupira o çáru, inti ánitá o iucuáo. Corupira esperou, não elles appareceram.

Aé ana o ço aintá racacuera o çacema o ço o icó. Elle já foi d’elles atraz gritando foi estava.

- Ce roô cuera ! ce roô cuera !... çoô cuera o çuachara __ Minha carne ! minha carne!... A carne respondia

ichupé - Oho ! O Caima etá i marica opé. a elle - oho ! do perdido barriga na.

O cêca paraná re meêpe ucê y u cêna rama Curipira Chegaram do rio na beira beberem agua, vomitar para do Corupira

roô cuera. a carne.

Curupira o çacema ure o icó. Çoô cuera o çuachara O corupira gritando veio andando. Carne respondeu

ichupé, iui arpe uana. a elle da terra em cima já.

Taina etá o iaçáu uana coanua quité, coema queté Os meninos atravessaram já para outro lado para, manhã pela

225 Cruz. Palavra portuguesa tupinizada pelos missionarios.

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ana. Aé ana Curupira u nheen: __ Pe cuáu catu pe yauáu. já Então o Corupira disse: __ Vocês souberam bem fugir.

Ceno mo cha ú páu tenhen226. Se assim não fosse eu comia todos vocês.

Açuhy taina etá o ço ana o cecare aintá rapé. Aé Depois os meninos foram-se embora procura d’elles caminho. Elle

ana o acema acuti o quetyca o icó i maníaca o nheengare o icó. já acharam cutia ralando estava sua mandioca e cantando estava.

‘‘Acuti pitá canhen227.’’

O Caima etá u cêca u purandu ichupé. Os perdidos chegaram e perguntaram a ella.

- Maá taá re munhan ce aría? - O que tu está fazendo minha avó?

- Cha quetyca ce maniaca, che meriareru etá. - Estou ralando minha mandioca, meus netos.

- Mamé taá ne cupichaua, ce aría? - Onde que tua roça, minha avó?

- Inti ipecatu. Iqué nhunto, o çuachara. Querupi pe - Não é longe. Aqui perto, respondeu. Por aqui vocês

çó çatamyica re ço, re cema curi ne manha roca opé. vão direito vão, sahirão tua mãe casa em.

Aintá o ço ana. O çoanti macaca irumo o ú icó iuá Elles foram logo. Encontraram macaco com comendo estavam fructa

aintá manha caapoêra opé. Auaitá 228 o porandu içuhy. d'elles da mãe na Elles perguntaram a ella.

- Mamé taá ce manha roca, macaca? Macaca o çuachara. __ Onde que minha mãe casa, macaco? Macaca respondeu.

- Inti ramé pé iucá iché cha umbéu penhen arama, __ Não se vocês matam me eu conto vocês para,

226 Como no sul o Corupira no Amazonas não atravessa rios. 227 Palavras de dialecto que desconheço. 228 Por aetá.

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mamé pé manha roca. Onde caminho mãe da casa

Taina etá o çuachara: Os meninos responderam:

- Inti maan yá iucá indé, re mucámeen yané rapé.__ - Não matamos te tu mostras nosso caminho. __

- çatamiyca recó iquí nhunto ana ne rapé. - Direito vae aqui perto já teu caminho.

Auitá o ço, u cema uana i manha roca opé. I manha Elles foram, acharam sua mãe casa em. D’elles

Inti uana u çáru aintá. A mãe não já esperava os.

TRADUCCÃO DA LENDA ANTECEDENTE

O corupira e os perdidos

Um pai botou no meio do matto dous filhos por serem verdadeiros gulosos e não chegar para elles a comida e para não lhes dar de comer. Depois disto ficaram perdidos no matto. Depois subiram para um páo grande, viram o fogo do Corupira. Desceram e foram para onde estava o fogo. Acharam o Corupira moqueando carne. Estavam com fome, e pediram um pedaço do moqueado do Corupira. - Meu avó, tu me dás tua caça para comer ? - Sim. Cortou carne da perna e deu para que elles comessem. - Por onde é meu caminho, meu avô ? O Corupira respondeu : - Tu vás por aqui... tu vás por aqui... passa por baixo de um páo grande; depois vira, vira e volta por baixo de meus testiculos. Os meninos foram fazer a volta, chegaram ao caminho e não o acharam. Sahiram outra vez; encontraram o Corupira em casa. Perguntaram-lhe de novo: - Meu avó, onde é o caminho. Nós não o achamos. O Corupira respondeu : - É esse mesmo. Depois disso, elles foram-se embora, fizeram umas cruzesinhas pelo caminho. O Corupira esperou, mas elles não appareceram. Foi então atraz delles gritando: - Minha carne! Minha carne! A carne respondeu lhe da barriga dos perdidos: - Ohô! Chegaram elles á beira do rio e beberam agua para vomitarem a carne do Corupira. O Corupira andava gritando e a carne respondeu-lhe já na terra. Já pela manhã os meninos atravessaram para o outro lado. Então o Corupira disse: - Vossês souberam fugir bem, e, se assim não fosse, eu comeria vocês.

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Depois os meninos foram-se embora, á procura do caminho. Acharam uma cutia, que estava ralando mandioca e cantando:

« Acuti pitá canhen. » Chegaram os perdidos e perguntaram-lhe: - Que estás fazendo, minha avó? - Estou ralando mandioca, meus netos. - Onde é tua roça, minha avó - Não é longe. É aqui perto, respondeu. Vossês vão por aqui direito e sahirão em casa de sua mãi. Foram-se logo embora. Encontraram um macaco que comia fructas na capoeira da mãi delles. Perguntaram-lhe: - Macaco, onde é a casa de minha mãi? O macaco respondeu: __ Se vossês não me matam, eu direi onde é o caminho da casa de sua mãi. Os meninos responderam. - Não te matamos. Mostra-nos o nosso caminho. __ Vão direito; aqui perto é o caminho. Foram e acharam a măi em casa. A mãi já não os esperava.

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ANEXO 7 – História da Mucura e do Acurau, coletada por Nunes Pereira (1954)

HISTÓRIA DA MUCURA E DO ACURAU

Um casal de mucuras velhas só tinha duas filhas, moças e bonitas. Quando elas chegaram à idade de casar, seus pais a deram ao Acurau e ao Caraxué. O Acurau levantava-se muito cedo e ia logo para a roça, mas o Caraxué ficava dormindo até alta hora do dia. Os sogros do Acurau estavam muito contentes com êle e não se cansavam de gaba-lo, censurando, porém, o preguiçoso Caraxué, grande dorminhoco, que só tarde do dia ia para a roça. Isso, porém, não era bem a verdade. O Acurau trabalhava sòmente enquanto o sol não esquentava, porque quando o sol estava no alto, êle se escondia entre a folhagem de uma árvore. Ali dormia à vontade. O Caraxué, embora começando a trabalhar com o sol quase no meio do céu, não descansava nunca, brocando, roçando, encoivarando, queimando o mato plantando o guaraná, o milho e a mandioca. Já à noitinha era que voltava para casa. Seus sogros, enganados pelo Acurau, não se cansavam de elogiá-lo e de censurar o Caraxué. Um dia os velhos resolveram ir ver a roça do genro Acurau. Foram. E em pouco tempo haviam percorrido tôda a roça do Acurau. Procurando-o, em seguida, foram encontrá-lo dorminhocando num pau, na sombra de uma ramagem. Voltaram, então, para casa e, contando tudo à filha, aconselharam-lhe que abandonasse o Acurau. A filha obedeceu aos velhos. O Acurau foi-se embora. Apareceu o Ariramba e propôs à mulher do Acurau viver com ela. A mucura aceitou e os velhos aprovaram a união que o Ariramba lhe propunha. O Ariramba disse à mulher que não sabia trabalhar, mas sabia bem pescar. A mulher aceitou assim mesmo o Ariramba. No dia seguinte ao da primeira noite em que haviam dormido juntos, o Ariramba disse à mulher: -Vamos, minha velha. Pega o aturá para carregar o peixe que eu vou pescar. A mulher, com o aturá às costas, seguiu o Ariramba até á beira do rio. Subindo a um pau, bem à beira d'água, o Ariramba sacudiu um maracazinho (marari- hin). Logo apareceu um tucunaré, depois outro, e mais outro, e tantos outros, que o Ariramba pescava e jogava ao aturá que a companheira tinha às costas, até vê-lo cheinho. Só assim voltaram para casa. Os pais da mucura, ao ver a quantidade de peixes que o Ariramba havia pescado, ficaram assombrados e perguntaram à filha: - Como já, então, teu companheiro pescou tantos tucunarés? - Ora, pescando... - Pescando como! - E' fácil. Depois de trepar num pau, bem à beira d'água, sacudiu o seu maracazinho e os tucunarés foram vindo. - Bem, disseram os velhos. E, à noite, na rêde, combinaram que no dia seguinte iriam tentar uma pescaria igual. E assim fizeram. A mucura velha pôs um aturá às costas e o companheiro dela a seguiu até à beira do rio. La subiu êle a um pau e sacudiu o seu maracá Veio um tucunaré, mal ouviu o toque do maracá.

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E o Mucura velho, ao ver o peixe, atirou-se do alto do pau sôbre ele, mas foi cair-lhe direitinho na boca. O tucunaré engoliu o Mucura velho. A companheira, vendo o que acontecera ao velho, correu e foi chamar a filha e pedir ao Ariramba que lhe salvasse o marido. O Ariramba foi salvar o sogro. Subiu a um paul, tocou o seu maracazinho e veio o tucunaré com o Mucura velho no bucho. O Ariramba pescou o tucunaré, rasgou-lhe o bucho com o bico e as garras e tirou de dentro o velho quase morto. O velho voltou para casa e aconselhou à filha que abandonasse o Ariramba. A filha, obedecei ao velho, abandonou o companheiro. O Ariramba foi embora. Veio o Camaleão, então, propôs casamento à antiga mulher do Acurau e do Ariramba. A mucura aceitou a proposta do Camaleão e os velhos aprovaram a resolução da filha. O Camaleão, como o Ariramba, preveniu a mulher de que não sabia trabalhar, mas, também, era bom pescador. Dormiram juntos. E na manhã seguinte, pondo um aturá às costas, a mucura acompanhou o Camaleão à pescaria. Chegados à beira do rio, o Camaleão mandou a mulher fazer uma fogueira. A mulher fêz. O Camaleão, metendo-se entre as chamas da fogueira, sapecou bem o corpo todo e atirou- se n'água. Com o corpo todo chamuscado, as peles do Camaleão atraíram os peixes, principalmente os tucunarés gordos que as iam bicorando e devorando. Isso facilitava ao Camaleão pegá-los para os jogar ao aturá da mulher. Ao voltarem êles para casa, os velhos mucuras viram o aturá cheio de peixes e procuraram saber com a filha como o marido dela pescara tantos tucunarés. A filha contou o que vira o marido fazer. Á noite, na rêde, os Mucuras velhos combinaram ir pescar à maneira do Camaleão. E foram. A velha levava um aturá às costas. E, chegando à beira do rio, o mucura velho mandou a mulher fazer uma fogueira e sapecou o corpo todo nas chamas, ficando com a cauda pelada Como as queimaduras doessem muito, o mucura velho voltou a casa para curar-se. E brigou com a filha, aconselhando-a a deixar o companheiro. A filha assim fêz. O Carrapato (uéuát-uató) sabendo que a mucura, moça e bonita, havia deixado o marido, foi propor-lhe casamento. A mucura aceitou, porque o Carrapato, embora não soubesse fazer roça como o Acurau, nem pescar como o Ariramba e o Camaleão, sabia apanhar frutos. No dia seguinte, depois de dormir juntos, o Carrapato convidou a mulher para ir com êle apanhar frutos. E a levou para o pé de uma castanheira com um aturá às costas. Aí subiu à arvore e pôs-se a jogar os ouriços no aturá da mulher, até enchê-lo. Depois, agarrando-se a uma fôlha da castanheira, atirou-se de um galho na direção de aturá. Aparecendo em casa com o aturá cheio de castanhas, os sogros do Carrapato perguntaram à filha como haviam apanhado tantas castanhas, A filha contou tudo o que o marido fizera, À noite, na rêde, os velhos combinaram ir no dia seguinte apanhar castanhas, Foram. A mucura velha ficou ao pé da castanheira, com o aturá às costas. O velho subiu à arvore e lá do alto começou a jogar ouriços no aturá, até enchê-lo.

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Depois, apertando uma fôlha de castanheira ao peito, jogou-se de um galho abaixo, na direção do aturá, mas, como era muito gordo (ikêp) e pesado, esborrachou -se no chão. A velha voltou sòzinha para casa.

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APÊNDICE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (Segundo as determinações do Conselho Nacional de Saúde - Resoluções CNS nº 304/2000 e nº. 510/2016)

TUPI DO RIO ANDIRÁ: O NHEENGATU NO MÉDIO RIO AMAZONAS

Pesquisadora Responsável: Micheli Carolini de Deus Lima Schwade Número do CAAE: 18774819.7.0000.8142

Você está sendo convidado(a) a participar como voluntário(a) da pesquisa: Tupi do Rio Andirá: O Nheengatu no Médio Rio Amazonas, orientado por um Linguista profissional, professor doutor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Prof. Dr. Wilmar da Rocha D’Angelis, sob a responsabilidade da pesquisadora Micheli Carolini de Deus Lima Schwade. Este documento, chamado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE, visa assegurar seus direitos como participante. Ele foi elaborado em duas vias, uma que ficará com você e outra com a pesquisadora responsável. Durante a leitura desse termo você pode esclarecer suas dúvidas. Se houver perguntas antes ou mesmo depois de assiná-lo, você poderá esclarecê-las com a pesquisadora. Se preferir, pode levar este Termo para casa e consultar seus familiares ou outras pessoas antes de decidir participar. Se você não quiser participar ou desejar retirar sua autorização, a qualquer momento, não haverá nenhum tipo de penalização ou prejuízo.

A JUSTIFICATIVA E OS OBJETIVOS

A finalidade da pesquisa é realizar um estudo sobre a língua Nheengatu como ela foi conservada e é falada no Médio Rio Amazonas. Com a colaboração de falantes como você, pretende-se estudar como a língua está sendo falada atualmente nessa região, e comparar isso com registros antigos do Nheengatu feitos mais ou menos entre os anos 1700 e 1900. Naqueles escritos antigos se pretende encontrar elementos linguísticos e culturais dos antepassados dos atuais falantes de Nheengatu da região do Médio Rio Amazonas para identificar as características dessa língua na região, e verificar se é possível provar uma continuidade da transmissão dessa língua, desde aquela época até os dias de hoje.

OS PROCEDIMENTOS Aceitando participar, você participará de um grupo de estudos de dicionário e livros escritos em Nheengatu e sobre o Nheengatu do Médio Rio Amazonas. Nesse grupo, serão lidas e discutidas as narrativas ou histórias na língua, que foram registradas antigamente nessa região, e que foram publicadas por João Barbosa Rodrigues em Poranduba Amazonense, em 1890, e será estudado o dicionário de língua geral amazônica do século XVIII.

DESCONFORTOS E RISCOS Essa pesquisa não apresenta riscos previsíveis. Caso você não se agrade de alguma coisa, ou não se sinta bem por causa de referência a determinadas palavras ou de assuntos surgidos durante a pesquisa, o estudo desse conteúdo será interrompido imediatamente, sem qualquer prejuízo. Não há qualquer outro risco previsto.

BENEFÍCIOS Esta pesquisa não traz benefícios diretos e imediatos para quem participar dela, a não ser a oportunidade de desenvolver maior conhecimento sobre aspectos da língua, integrando um

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grupo de estudos especializado, formado por falantes nativos e uma linguista. Espera-se que a pesquisa contribua com os falantes de Nheengatu do Médio Rio Amazonas por desenvolver um tipo de estudo que valoriza o conhecimento local e que busca fortalecer a autonomia dos pesquisadores locais. Outro benefício indireto desta pesquisa será a sua contribuição para o processo de fortalecimento de sua língua.

GARANTIA DE ESCLARECIMENTO, LIBERDADE DE RECUSA E GARANTIA DE SIGILO: Você será esclarecido(a) sobre a pesquisa em qualquer aspecto que desejar. Você é livre para recusar-se a participar. Se aceitar participar, você também é livre para desistir da pesquisa e retirar seu consentimento a qualquer momento. A sua participação é voluntária e a recusa em participar não irá acarretar qualquer prejuízo. O seu nome será mantido em sigilo e não aparecerá em qualquer publicação que for feita sobre as descobertas desse trabalho, a não ser que você mesmo prefira que seu nome seja divulgado, como reconhecimento de seus conhecimentos e de sua colaboração na pesquisa.

CUSTOS DA PARTICIPAÇÃO, RESSARCIMENTO E INDENIZAÇÃO POR EVENTUAIS DANOS: A participação no estudo não acarretará custos para você e não será disponível nenhuma compensação financeira. Você é livre para deixar de participar da pesquisa a qualquer momento. Você tem a garantia de indenização, caso sofra qualquer dano que seja diretamente decorrente da sua participação na pesquisa.

ARMANEZAMENTO DOS DADOS: Os dados reunidos durante o estudo colaborativo estarão armazenados em arquivo digital de acesso restrito por tempo indeterminado e serão disponibilizados para você, que poderá solicitá- los a qualquer momento. Para outras pessoas, não indígenas, os dados serão disponibilizados apenas por meio da autorização da pesquisadora responsável.

CONTATO E ESCLARECIMENTOS: Em caso de dúvidas sobre o estudo, você poderá entrar em contato com os pesquisadores Micheli Carolini de Deus Lima Schwade e Wilmar da Rocha D’Angelis, segundo dados abaixo:

Pesquisador Responsável: Ms. Micheli Carolini de Deus Lima Schwade, aluna do Programa de Pós-Graduação em Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem – IEL, da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Telefone: (92) 41413979 Cel.: (92) 999734580. E-mail: [email protected]

Professor Orientador: Prof. Dr. Wilmar da Rocha D’Angelis. Professor do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem– IEL, da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP e Líder do Grupo de Pesquisa “InDIOMAS” – Conhecimento de línguas indígenas e de línguas de sinais na relação Universidade & Sociedade. Telefone: (19) 3521.1511. Cel.: (19) 998119.3771. E-mail: [email protected]

Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da UNICAMP Em caso de denúncias ou reclamações sobre sua participação e sobre questões éticas do estudo, você poderá entrar em contato com a secretaria do Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais (CEP-CHS) da UNICAMP das 08h30 às 11h30 e das 13h00 às 17h00 na Rua Bertrand Russell, 801, Bloco C, 2º piso, sala 05, CEP 13083-865, Campinas – SP; telefone (19) 3521-8936 ou (19) 3521-7187; email: [email protected] O CEP é constituído por um

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grupo de profissionais de diversas áreas, com conhecimentos científicos e não científicos que realizam a revisão ética inicial e continuada da pesquisa para mantê-lo seguro e proteger seus direitos.

Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) está diretamente ligada ao Conselho Nacional de Saúde (CNS). A CONEP tem como principal atribuição o exame dos aspectos éticos das pesquisas que envolvem seres humanos. Como missão, elabora e atualiza as diretrizes e normas para a proteção dos sujeitos de pesquisa e coordena a rede de Comitês de Ética em Pesquisa das instituições. É responsabilidade da CONEP avaliar e acompanhar os protocolos de pesquisa em áreas temáticas especiais como: genética e reprodução humana; novos equipamentos; dispositivos para a saúde; novos procedimentos; população indígena; projetos ligados à biossegurança e como participação estrangeira.

Em caso de denúncias ou reclamações sobre sua participação e sobre questões éticas do estudo, você também poderá entrar em contato com a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) 08h às 20h (atendimento on-line), e-mail: [email protected]. Endereço: Esplanada dos Ministérios, Bloco "G" - Edifício Anexo - 1º Andar - Ala "B" - Sala 104-S - CEP: 70.058-900 ou pelos telefones: (61) 3315-5878 - Telefax: (61) 3315-5879.

CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO: Esse Termo de Consentimento Livre e Esclarecido deverá ser assinado por você, caso concorde em participar, e pelo pesquisador responsável. Uma via desse Termo de Consentimento será entregue a você pelo pesquisador, assinada por você e pela pesquisadora, e rubricada em todas as páginas por ambos. Você pode pedir qualquer esclarecimento adicional, a qualquer momento da sua participação na pesquisa, ou mesmo depois de encerrada, diretamente à pesquisadora ou ao orientador dela. Após ter recebido esclarecimentos sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar, aceito participar e declaro ter recebido uma via original deste documento rubricada em todas as folhas e assinada ao final, pela pesquisadora e por mim:

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Nome do (a) participante: ______Data: ____/_____/______. (Assinatura do participante ou nome e assinatura do seu responsável legal)

Você autoriza a utilização da sua imagem e som de voz, na qualidade de participante no projeto de pesquisa intitulado Tupi do Rio Andirá: O Nheengatu no Médio Rio Amazonas?

( ) não, não autorizo a divulgação da minha imagem e/ou voz ( ) sim, autorizo a divulgação da minha imagem e/ou voz

RESPONSABILIDADE DO PESQUISADOR: Asseguro cumprir as exigências da resolução 466/2012 CNS/MS e complementares na elaboração do protocolo e na obtenção deste Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Asseguro, também, ter explicado e fornecido uma via deste documento ao participante. Informo que o estudo foi aprovado pelo CEP perante o qual o projeto foi apresentado e pela CONEP, quando pertinente. Comprometo-me a utilizar o material e os dados obtidos nesta pesquisa exclusivamente para as finalidades previstas neste documento ou conforme o consentimento dado pelo participante.

______(Assinatura do pesquisador)

Local: ______Data: ______/_____/______