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“... É TUDO SOMENTE SEXO E AMIZADE”: CANTORAS BRASILEIRAS COMO MEDIADORAS DE RELAÇÕES AFETIVOSSEXUAIS ENTRE HOMENS GAYS

Rafael Noleto1

Resumo: A partir do pressuposto de que a indústria fonográfica (vinculada a uma indústria cultural com maiores proporções) é um veículo produtor de ídolos e, consequentemente, de fãs, este texto centraliza o foco de análise no âmbito da Música Popular Brasileira (MPB) para chegar à compreensão de como as relações de afeto, que são construídas entre fãs e seus respectivos ídolos em um universo simbólico, são expandidas para a vivência de outras relações de afeto contextualizadas no cotidiano das relações sociais. Assim, inserindo-se nos estudos antropológicos de gênero e sexualidade e baseando-se em etnografia realizada na cidade de Belém (Pará), com homens homossexuais que se reconhecem como fãs de cantoras brasileiras, este trabalho busca problematizar a posição das cantoras da MPB como mediadoras de relações afetivas e sexuais entre seus fãs gays. Dessa forma, questiona-se o suposto status do compositor como principal agente produtor de significados dentro da cadeia produtiva da música, demonstrando-se como os intérpretes – neste caso específico, mulheres – constituem-se também como elementos fundamentais para a produção de significados, relações, emoções e processos de subjetivação vivenciados por um determinado público de espectadores. Palavras-chave: Cantoras brasileiras. Homossexualidade masculina. Música Popular Brasileira.

Este texto objetiva ser uma breve reflexão acerca da pesquisa que desenvolvi durante o processo de formação no mestrado em Antropologia da Universidade Federal do Pará (Noleto, 2012a). Neste trabalho, meu principal objetivo esteve centrado na discussão a respeito de certo imaginário que é construído em torno de cantoras da chamada Música Popular Brasileira (MPB)2 por parte de seus fãs homossexuais. Sendo assim, para compreender melhor esse imaginário, produzi uma etnografia a partir da qual pude refletir acerca de certos qualificadores – muito difundidos em redes de sociabilidade homossexual masculinas – que produzem adjetivações destinadas a categorizar essas cantoras como poderosas, divinas e maravilhosas, catapultando-as à condição simbólica de “rainhas”, “deusas” e “divas”3. O resultado final desta pesquisa deveu-se a trabalho de campo realizado na cidade de Belém (Pará), entre os anos de 2011 e 2012, cujos principais interlocutores foram homens que se autodenominam como homossexuais (ou gays), economicamente pertencentes às classes médias da cidade e compreendidos numa faixa etária entre 27 e 45 anos. Com o objetivo de problematizar

1 Doutorando em Antropologia Social (PPGAS/USP), Mestre em Antropologia (PPGA/UFPA) e Licenciado Pleno em Música (UEPA). [email protected] 2 Sobre a complexidade do termo MPB e seus usos, ver Wisnik (2004, 174-178). 3 Sobre o qualificador “poderosa”, há uma reflexão publicada na revista “Cadernos de Campo” através da qual sintetizo algumas ideias desenvolvidas mais detalhadamente na dissertação de Mestrado (Noleto, 2012b).

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aspectos relacionados a uma MPB supostamente considerada mais “tradicional”, elitizada e mainstream, trabalhei com fãs das cantoras , , Fafá de Belém, Maria Bethânia, Leila Pinheiro e . Para preservar a identidade desses interlocutores, nomes fictícios foram-lhes atribuídos. Tais denominações correspondem a títulos de obras (escolhidas, em sua maioria, por eles) vinculadas ao universo de suas cantoras prediletas e que, por diversos motivos, foram consideradas como representativas de parte da identidade desses sujeitos. Portanto, os nomes utilizados para fazer referência a todos eles, individualmente, são: Elétrico (27 anos, fã de Daniela Mercury), Tamba-tajá e Atrevido (32 e 35 anos, fãs de Fafá de Belém), Pirata e Brasileirinho (35 e 32 anos, fãs de Maria Bethânia), Fatal (45 nos, fã de Gal Costa) e Pimentinha (aparenta estar na faixa dos 40 anos, embora não revele a idade, fã de Elis Regina). Esta longa reflexão, estimulada a partir das falas e vivências de meus interlocutores em Belém, levou-me a concluir que todas as características responsáveis por elevar tais artistas a uma condição especial (e simbólica) de “divindade” ou “poder” são fatores que extrapolam o campo estritamente musical do som, destacando-se, sobretudo, o valor simbólico que a performance musical ocupa na percepção do público espectador que recebe e consome a obra dessas cantoras. Se a performance musical está estritamente ligada aos usos do corpo na interpretação das obras, abrem-se frestas para que a corporalidade, nos termos em que as ciências sociais a compreendem, seja mais profundamente abordada dentro de estudos que tenham a música como ponto de partida. Contudo, um dos aspectos que perpassou toda a etnografia diz respeito ao fato de que, em larga medida, essas artistas pareciam atuar como mediadoras de relações de afeto, por um lado, entre seus fãs e suas redes de sociabilidade e, por outro lado, entre esses mesmos fãs e outros homens homossexuais com quem mantiveram relações amorosas ou sexuais. Em outros termos, o compartilhamento do gosto por essas cantoras funcionava como um catalisador para que relações afetivas das mais diversas naturezas fossem engendradas por (e entre) esses sujeitos. Desta maneira, a compreensão que compartilho a respeito de noções como “gosto” e “afeto” parte do pressuposto de que o gosto é a sintonia com determinados valores, a qual confere positividade a algumas expressões musicais em detrimento de outras. Valorizar positivamente o rock, o pagode ou a música eletrônica são manifestações de gostos que envolvem não só determinadas sociabilidades, como a preferência por determinadas batidas; (o 4/4, a síncope); determinados timbres e estruturações das canções. Assim, o gosto é da ordem da seleção, manifestando-se como gênero, condicionando um modo de portar-se diante do mundo e de produzir sentido diante de determinados produtos musicais. Essas escolhas pressupõem a expressão de determinados afetos. O afeto é um traço privilegiado da sociabilidade relacionada a determinadas expressões musicais. O corpo e a mediação por ele efetuada são os locais por excelência do sentir. Por isso, ao processo de configuração dos sentidos, é preciso adicionar a sensibilização presente na circulação dos investimentos afetivos e dos

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sentidos musicais. Os afetos e seus correlatos, as paixões, manifestam-se através de percursos narrativos, posicionamentos hierárquicos que podem ser reconhecidos através da repetição de traços presentes não só nas estruturas profundas das modalizações das práticas discursivas, como em seus traços mais visíveis, ou seja, na superfície, nos vestígios dos valores, na manifestação de gostos, enfim, nos processos de produção de sentido que caracterizam o consumo da música (JANOTTI JR., 2004, 196). Dentre meus interlocutores, foram inúmeros os depoimentos acerca da importância central da obra dessas cantoras para o estabelecimento de uma sociabilidade com outros indivíduos homossexuais que também partilham de um apreço por aquilo que é produzido dentro do contexto da indústria cultural que compreende a MPB. Assim, parto do pressuposto de que a sociabilidade pode ser entendida como “uma forma lúdica de sociação” (Simmel, 1983, 169) no intuito de tentar perceber o que este aspecto “lúdico” e aparentemente desinteressado do cotidiano de meus interlocutores poderia informar algo a respeito da vida social de cada um deles. Isto quer dizer que essa sociabilidade, na verdade, é da maior importância para que sejam compreendidos os processos de subjetivação experimentados por esses fãs com vistas a visualizar as maneiras pelas quais o gosto musical pode produzir ou conformar identidades dentro de uma lógica que configura um ethos musical compartilhado por pessoas que se reconhecem em determinado gênero (masculino) e vivenciam determinado tipo de sexualidade (homossexual). Desse modo, depoimentos como os de Fatal e outros fãs cujas vozes aparecem em meu texto etnográfico (Noleto, 2012a) evocam, muito claramente, a noção de que o consumo de determinado tipo de música aliado ao compartilhamento de um gênero e uma sexualidade em comum pode gerar o entendimento da própria rede de sociabilidade como sendo uma “família”. Conecto-me, assim, à ideia de que, além da própria sexualidade e do gênero, o consumo de uma musicalidade específica é um aspecto que possui peso igual no que se refere a produzir certa coesão entre indivíduos que se reconhecem como incluídos em determinado nicho social. Neste sentido, concordo que seja “relevante entender as práticas relacionadas ao consumo como atos sociais através dos quais partilhamos significados, produzimos diferenciações e, consequentemente, construímos um universo inteligível” (França, 2009, 398). Dentro desta lógica, o consumo de música constitui-se como um elemento crucial, sob o ponto de vista destes fãs homossexuais, para criar espaços de inteligibilidade para as subjetividades produzidas a partir da combinação entre identidade de gênero, sexualidade e gosto musical. Assim, esses sujeitos constroem-se a si e aos outros a partir do compartilhamento (e consumo) de práticas, valores e, neste caso, gostos musicais em comum. Pode-se depreender, portanto, que “não só o mercado assume uma importância na vida das pessoas, mas também opera na constituição de identidades e subjetividades por meio de processos de exclusão e diferenciação mediados por relações de poder” (França, 2009, 395).

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Ao problematizar aspectos relativos à vivência da homossexualidade em cidades como e São Paulo nos anos 1950, James Green (2000) já havia apontado para o fato de que o hábito de comparecer às apresentações na estação de rádio ou aos eventos organizados pelo fã-clube colocava os homossexuais em contato próximo com outros que compartilhavam as mesmas paixões e interesses. Amizades eram estabelecidas, e aqueles que desconheciam a topografia homossexual do Rio de Janeiro ou de São Paulo eram iniciados numa subcultura por meio desses contatos. [...] Em suma, para muitos homossexuais, os fãs-clubes e as apresentações ao vivo nas rádios e, mais tarde, os programas de auditório na TV forneceram um sentimento de família e o de pertencer a um grupo. As cantoras tornaram-se figuras maternais simbólicas que graciosamente recebiam presentes, tais como utensílios domésticos, de seus ardorosos fãs. A coesão social formada nesses clubes e platéias, assim como a adoração coletiva de seus ídolos ajudaram muitos homossexuais a enfrentar o isolamento que a hostilidade social lhes impunha com tanta frequência (GREEN, 2000, 272) Dessa forma, é possível notar como tais afinidades que conectam o gosto musical à sexualidade e ao gênero dos indivíduos pode ser produtora de estilos de vida e significações que dão sentido e fazem emergir um ethos diretamente ligado a um universo sexual compartilhado. Outro aspecto a ser problematizado, diz respeito à classe social de meus interlocutores. Neste sentido, é preciso mobilizar a compreensão do gosto musical como um aspecto de distinção social (Bourdieu, 2007) constantemente acionado pelos sujeitos para marcar suas posições nas escalas de prestígio sob o ponto de vista socioeconômico. Vale lembrar a pesquisa em que Carmen Dora Guimarães (2004 [1977]), apoiada na definição de “classe” proposta por Bourdieu (2001 [1974]), lança mão da categoria “grupo de status” para destacar as relações de sentido, geradas por indivíduos em contextos de interação social, que conformam a identidade de determinado grupo ou rede de sociabilidade. Para a autora, a noção de “grupo de status” seria mais apropriada para expressar a vivência de certa identidade de classe que é partilhada entre determinados sujeitos em seus cotidianos. Por outro lado, o termo “classe”, na perspectiva de Bourdieu (2001 [1974]), estaria carregado de significações que remetem a conflitos gerados dentro das relações de poder – aspecto que a autora optou por não ressaltar já que seu campo etnográfico destinava-se a entender os aspectos simbólicos (e não conflituosos) que contribuíam para construir noções relativas aos marcadores de “cultura” e “requinte” associados a um estilo de vida supostamente mais elitizado. A rede de sociabilidade analisada por Guimarães era composta por homens homossexuais com relativo sucesso profissional, boa escolaridade e situação socioeconômica que permitia sua inserção nas camadas sociais médias, pois partilhavam de todo um ethos de classe que combina gosto, poder aquisitivo e outros fatores que marcam o pertencimento a uma determinada classe social. Sob a ótica desta autora, “estilo de vida, código moral e ético são, entre outros, os critérios que conferem status de normalidade à identidade homossexual, invertendo a condição de

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estigmatizado” (Guimarães, 2004 [1977], 84). Desta citação é possível intuir que, de acordo com Guimarães, muitos homossexuais buscavam adotar um estilo de vida socialmente visto como “refinado” ou “prestigioso” (sob os pontos de vista simbólico e socioeconômico) com o intuito de desqualificar o caráter “desviante” comumente atribuído à homossexualidade. Com base nisso, voltando-me para minha própria pesquisa (Noleto, 2012a), concluí que a identidade musical partilhada por meus interlocutores funciona também como um mecanismo de ressignificação da própria identidade homossexual, deslocando a homossexualidade de um suposto vínculo estreito com uma vida sexual que teria preeminência em relação a outros aspectos da vida social desses sujeitos. Desta forma, o sujeito homossexual não seria tão negativamente julgado por suas práticas sexuais, mas por outros elementos que compõem a sua identidade e integram a sua subjetividade como, por exemplo, o gosto musical. É importante destacar que, apesar de ter trabalhado com homossexuais das camadas médias de Belém, o gosto por essas cantoras de MPB não pode ser meramente resumido como acessível ou compartilhado apenas por pessoas das camadas médias e altas da sociedade em geral. Em trabalho de campo paralelo a este, tive oportunidade de conhecer travestis e homossexuais, moradores de periferia e com baixo poder aquisitivo, que se reconhecem como fãs dessas mesmas cantoras de MPB, embora não disponham do capital financeiro necessário para consumirem plenamente seus produtos (álbuns e shows) nem para se deslocarem para outros Estados do Brasil a fim de acompanhar as apresentações dessas cantoras nas mais diversas casas de espetáculo. Do mesmo modo, não é possível circunscrever o gosto por estas cantoras a uma faixa etária específica e mais elevada, isto é, um gosto específico de homossexuais mais “velhos”. Se observarmos bem, a maioria destes interlocutores (e de outros fãs que se correspondem pelo Facebook) possui uma grande distância etária com relação às suas cantoras favoritas. Portanto, não pertencem à mesma geração etária dessas cantoras. Esses fãs tiveram, em geral, seu primeiro contato com a obra dessas artistas durante a infância, embora essas mulheres não tenham desenvolvido trabalhos voltados para o público infantil. Por outro lado, percebe-se que o público dessas intérpretes continua se renovando como, por exemplo, no caso mais recente em que Gal Costa (sempre ligada a musicalidades “jovens”) lançou o álbum “”, produzido por em 2011, que dialoga com sonoridades eletrônicas e que, por conta disso, trouxe à tona todo o passado de Gal Costa ligado a essas musicalidades “jovens” (como o rock) com as quais o Tropicalismo sempre dialogou. Nas plateias de Gal Costa é possível perceber um grande número de fãs (homossexuais ou não) muito jovens. Aliás, nas comunidades virtuais, presentes em sites como

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Facebook e Orkut, é possível verificar a presença de muitos fãs na faixa etária dos 20 anos, fãs que apresentam grande importância para o compartilhamento de informações disponíveis nessas comunidades dedicadas a cantoras como Maria Bethânia, Elis Regina, Fafá de Belém, Daniela Mercury, Leila Pinheiro, Simone, Zizi Possi etc. Outro aspecto relevante a ser discutido aqui é a presença do repertório dessas cantoras nas vidas afetivas e sexuais de meus interlocutores4. Desse modo, foram constantes as falas de que a música cantada por essas artistas sempre está ligada a um relacionamento amoroso ou a um momento de intimidade vivido com alguém. Esse repertório é responsável, portanto, pela ativação de lembranças e pela produção de sentidos que dão especial significado às relações e às sexualidades vivenciadas por estes homens homossexuais. Assim, nos depoimentos de interlocutores como Tamba-tajá aparecem, inclusive, a menção a músicas supostamente mais apropriadas para “beijar, passear com o namorado ou mesmo terminar o namoro”. Ao contrário de fazer uso da música para lembrar-se de alguém, um de meus interlocutores, Pirata, contou-me que, em alguns períodos de sua vida, utilizava a música para tentar esquecer-se de seus relacionamentos fracassados. Atrevido revelou que, certa vez, ofereceu a letra de uma determinada música para um de seus relacionamentos passageiros ao qual denominou como uma simples “paixonite”. Em outros momentos de minha etnografia, houve relatos de interlocutores como Pimentinha e Brasileirinho nos quais os seus namorados, ainda que não gostassem de suas cantoras prediletas (respectivamente Elis Regina e Maria Bethânia), acabavam “aprendendo a gostar delas”. Neste sentido, é possível inferir que, além das trocas afetivas e sexuais, há também uma troca musical que perpassa esses relacionamentos, gerando, assim, aprendizados múltiplos. Este fato fica muito evidente na fala de Fatal, que, na época, estava namorando um rapaz muito mais jovem que gostava de reggae, mas não apreciava o repertório de sua cantora predileta: Gal Costa. Entretanto, Fatal admitiu que, quando estavam juntos em seu carro, o seu namorado era menos flexível no sentido de se permitir ouvir o repertório de Gal Costa, ao passo que Fatal cedia mais

4 Andréa Moraes Alves (2010), ao estudar relações e biografias de mulheres lésbicas acima dos 60 anos de idade, nos mostra, através da fala de uma interlocutora o quanto as cantoras podem operar como mediadoras de relações afetivossexuais. No depoimento de uma de suas informantes há a presença fundamental de uma cantora na biografia que apresentou à pesquisa. Segundo a entrevistada, seu primeiro relacionamento afetivossexual com uma mulher começou através da troca de cartas cujo objetivo principal era compartilhar o gosto pela cantora Maysa. A partilha do gosto musical serviu como ambientação para o compartilhamento de informações que tangenciam a subjetividade dos indivíduos envolvidos na relação. Configura-se, dessa forma, uma relação entre dois sujeitos (duas mulheres) que é mediada por uma terceira pessoa-chave: a cantora. Os pontos de identificação entre o fã e o artista são, na verdade, o elemento motivador da relação e traduzem um pouco dos comportamentos sociais que são moldados a partir da referência que se atribui a uma determinada pessoa pública.

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vezes à possibilidade de ter que ouvir reggae. A este aspecto, Fatal atribuiu uma explicação geracional baseada no fato de que seu namorado era “bem mais novo” para gostar dessas músicas e, por isso, seria menos paciente para ouvi-las. Por outro lado, a associação de Fatal com o reggae emprestava-lhe certo caráter jovial, livrando-lhe, parcialmente, do estigma negativo da velhice e agregando-lhe as vantagens positivas da identidade de “coroa” ou “homem de meia idade” (Simões, 2004). Por fim, Elétrico contou-me que o fato de ter ido sozinho ao carnaval de Salvador para ver o seu ídolo, a cantora Daniela Mercury, foi a gota d‟água para causar o fim do relacionamento com um de seus namorados, que também era fã da cantora. O namorado em questão ficou com ciúme pelo fato de que acreditava que Elétrico o trairia com outra pessoa no carnaval porque “no trio de Daniela só tem gay” (palavras de Elétrico). Assim, é possível notar o grau de presença e mediação das cantoras na vida desses sujeitos homossexuais, visto que o compartilhamento do gosto por sua obra pode tanto promover aproximações quanto, pelo contrário, resultar em separações de casais. Obviamente, a cantora não deve ser responsabilizada pela felicidade ou infelicidade do casal. No entanto, deve-se observar o quanto a relação do casal é perpassada por um repertório específico que se faz presente no dia a dia de um relacionamento que, de alguma forma, foi favorecido pela afinidade de possuir gostos musicais em comum. Nos que diz respeito às relações sexuais, a grande maioria destes interlocutores compartilhou o fato de que, quase invariavelmente, a música precede o ato sexual, mas não é parte integrante dele. Neste sentido, a música parece operar como um elemento preliminar, impregnado de romantismo e, ao mesmo, de sedução. Porém, de alguma forma, mesmo que a música seja vista, por estes interlocutores, como algo que pode auxiliar no processo de erotização do ambiente (no sentido de “dar um clima” para o momento que antecede a relação sexual) ela é percebida como algo que pode atrapalhar o ato sexual em si, ocasionando a desconcentração dos parceiros no instante exato em que o sexo acontece. O que é importante ressaltar, neste caso, é o fato de que esses fãs homossexuais acreditam que compartilhar um gosto por essas cantoras de MPB pode informar algo sobre suas sexualidades. Assim, essas artistas e suas vozes parecem fazer parte de todos os níveis de relações íntimas vividas por estes fãs, isto é, a música produzida por estas cantoras figura como um ponto favorável de afinidade para que eles estabeleçam relações em termos de amizade e afetividade. Por outro lado, em suas vidas públicas, seja no ambiente de trabalho, estudo ou lazer, meus interlocutores são

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reconhecidos como fãs dessas artistas, assumindo-se nesta condição em redes sociais e nos mais diversos contextos públicos de interação social. De acordo com alguns relatos colhidos em campo, foi possível verificar que há, entre o fã e a cantora, uma relação quase metonímica na qual o primeiro passa a ser um desdobramento da segunda, representando sua imagem, trazendo sua memória às redes de sociabilidade homossexual que integra. Também vale dizer que toda essa sociabilidade construída em torno dessas intérpretes favorece princípios de reciprocidade, através dos quais estes fãs trocam presentes, favores, ingressos, hospedagens e até mesmo a possibilidade de ter acesso à cantora favorita por meio de outros fãs que já a conhecem. Nas redes sociais disponíveis na internet, não é raro observar que estes fãs compartilham vídeos e arquivos de áudio entre si, oferecem músicas um ao outro e disponibilizam fotos, textos e comentários acerca dessas artistas. Essas trocas funcionam como um reforço dos laços de afetividade entre estes homens e aparentam ser também uma espécie de doação de si ao outro. Como bem nos indica Mauss (2003 [1925]), em sua análise sobre trocas cerimoniais em sociedades “arcaicas”, “se coisas são dadas e retribuídas, é porque se dão e se retribuem „respeitos‟ – podemos dizer igualmente „cortesias‟. Mas é também porque as pessoas se dão ao dar, e, se as pessoas se dão, é porque se “devem” – elas e seus bens – aos outros” (Mauss, 2003 [1925], 263) [grifos do autor]. Ainda é necessário ressaltar que a relação estabelecida entre esses fãs e suas cantoras prediletas é inteiramente mediada por uma indústria cultural que “produz” essas artistas e as insere num mercado industrial de produção musical (Adorno, 2002; Morelli, 2009). Dessa forma, são construídas carreiras e imagens públicas que chegam aos consumidores finais (fãs ou pessoas que não acompanham sistematicamente essas cantoras, mas que consomem produtos relacionados a elas e se interessam, ainda que vagamente, por suas obras) e constituem uma trajetória profissional que pode, ou não, ser bem sucedida. Contudo, meu principal interesse aqui não é adentrar na produção de uma carreira dentro deste segmento da indústria cultural, mas sim tentar captar o olhar do fã a respeito de seu ídolo. Destaco ainda que, ao longo do tempo, esses fãs acumulam um vasto conhecimento sobre as carreiras dessas artistas. Assim, colecionam todos (quase todos ou o máximo que conseguem comprar) os produtos que estas artistas lançam no mercado, incluindo-se neste rol LPs, compactos de vinil, CDs, fitas cassete, fitas em VHS, DVDs, Blu-ray, revistas, cartazes, encartes de jornal, ingressos, autógrafos, fotografias e uma série de outros arquivos. Todo este material iconográfico serve como uma espécie de guia que permite acesso a amplos dados sobre a trajetória artística

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dessas mulheres. Esses itens também operam como moeda de troca, pois, de certa maneira, circulam entre os fãs e, quando possível, são copiados ou disponibilizados na internet para que mais pessoas tenham acesso. Entretanto, é importante dizer que o fato de ser fã de uma cantora de MPB não implica que uma pessoa seja homossexual. Essas artistas possuem públicos heterogêneos e, quando surgiram no cenário musical brasileiro, não foram lançadas para atender às demandas de um mercado gay. Porém, é importante lembrar que, embora tenham fãs das mais diversas orientações sexuais, religiosidades, idades, raças e classes, tais artistas são muito relevantes em determinados contextos de sociabilidade homossexual masculina, constituindo-se como um dos principais assuntos entre esses sujeitos e como uma espécie de “senha de acesso” a redes de sociabilidade específicas. Nenhuma dessas cantoras presentes em minha pesquisa – Maria Bethânia, Leila Pinheiro, Elis Regina, Gal Costa, Fafá de Belém e Daniela Mercury – é reconhecida amplamente como compositora. Embora Maria Bethânia, Gal Costa e Fafá de Belém tenham escrito ou colaborado com algumas poucas e raras composições, não possuem um número significativo de obras que as dessem visibilidade no âmbito da composição musical. Por outro lado, Daniela Mercury e Leila Pinheiro são, dentre essas mencionadas, as artistas que mais parecem produzir neste sentido, ainda que não sejam lembradas, em um primeiro momento, como compositoras, mas sim por suas interpretações. Na maior parte das gravações realizadas por essas intérpretes, suas vozes estão à serviço de composições alheias, em geral, feitas por homens. Sem adentrar na densa problemática que pode ser suscitada a partir da discussão das relações de gênero quando as atividades da interpretação e da composição são tematizadas, noto que meus interlocutores não ignoram a fundamental inserção dos compositores na vida profissional dessas cantoras. Pelo contrário, a partir do conhecimento que tem sobre suas carreiras, esses fãs muito raramente (ou quase nunca) mencionaram, durante a pesquisa, algo do tipo “estou ouvindo a música de Fafá de Belém ou Elis Regina”. Dito isto, sinto-me à vontade para concluir que, embora saibam exatamente da atuação de homens compositores na trajetória dessas cantoras, os fãs com quem convivi deslocavam o campo de valoração da atividade artística para o âmbito da interpretação musical e, obviamente, para os usos do corpo em cena. Dessa maneira, todo este trabalho (Noleto, 2012a) foi uma tentativa de problematizar a importância da figura do intérprete na cadeia produtiva da música, descentralizando a figura dos compositores como sendo os únicos (ou os principais) focos produtores de significados dentro deste processo de produção de música – ao contrário do que muitos estudos acadêmicos sobre música

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parecem ressaltar. Assim, este estudo consegue apontar, a partir de um segmento específico de fãs, como os intérpretes (cantoras) constituem-se como mediadores não apenas da relação entre compositor e ouvinte, mas também das relações de ouvintes para com outros ouvintes. Essas intérpretes são, neste caso, importantes agentes produtores de significado na cadeia produtiva da música, favorecendo a produção de estilos de vida, modos de percepção da vida social e afetividades dos mais variados tipos.

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WISNIK, J. M. Sem receita: ensaios e canções. São Paulo: Publifolha, 2004. "... it's all just sex and friendship ": Brazilian female singers as mediators of sexual and emotional relationships among her gay men fans

Abstract: Assuming that the phonographic industry (bonded to a cultural industry with widest proportions) is a producer vehicle of idols and hence fans, this text presents the focus of analysis in the Brazilian Popular Music (MPB) to get the understanding of how the relationships of affection, which are built among fans and their idols in a symbolic universe, are expanded to the other experiences of affection contextualised in everyday social relations. Thus, inserted in anthropological studies of gender and sexuality and based on ethnography performed in Belém (Pará), with gay men who recognize themselves as fans of Brazilian female singers, this paper seeks to discuss the position of the MPB‟s female singers as mediators of emotional and sexual relationships among their gay fans. Thereby, the supposed composer‟s status as main producer of meanings within the production chain of music is questioned, showing up as singers - in this case, women - are also fundamental elements for the production of meanings, relationships, emotions and subjective processes experienced by a particular audience of spectators. Keywords: Brazilian female singers. Male homosexuality. Brazilian Popular Music.

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