<<

O que é que uma diva tem? Cantoras brasileiras, vozes, corpos e poderes vistos por entendidos

Rafael da Silva Noleto

resumo Dentro de certas redes de sociabilida- me perseguiram e é provável que ele mesmo te- de homossexual, o adjetivo “poderosa” é frequen- nha sido um (per)seguidor de Maria Bethânia temente acionado como um marcador destinado à ao longo de todos estes anos, talvez seja hoje classificação, hierarquização, comparação, qualifica- um fã sexagenário que continua a gritar (ago- ção e representação de ídolos femininos admirados ra mais rouco) ou, quem sabe, tenha apenas se por homens homossexuais. Partindo de etnogra- eternizado ocasionalmente por ter comparecido fia realizada em Belém (Pará), este texto objetiva àquela única apresentação de Maria Bethânia compreender quais as noções de poder articuladas no dia em que seu show fora gravado em 1969. por homens homossexuais – com identidade e per- Abandonando estas especulações, o fato é formance de gênero reconhecidas, por eles, como que, em todos os álbuns gravados ao vivo e lan- masculinas – para designar suas cantoras favoritas. çados por Bethânia até hoje, há sempre uma Evidenciando que, na maioria dos discursos, esse voz masculina que grita adjetivos como “po- “poder” das cantoras transcende predicados estri- derosa”, “divina”, “maravilhosa” ou outros que tamente musicais e se revela inscrito na totalidade lhes seja equivalente. Essas vozes masculinas performática de seus corpos, este artigo visa discutir ficaram guardadas em mim. Essas vozes anô- acerca dos “poderes”, “perigos”, “centralidades” e nimas não se dirigem apenas à Maria Bethânia, “periferias” do corpo. mas a outras vozes femininas que cantam e que palavras-chave Homossexualidade. Perfor- encontram nos homossexuais um público con- mance. Cantoras Brasileiras. MPB. Corpo. sumidor fiel, que se reconhece nelas. Não pretendo dizer que o fã anônimo que gritou “Maravilhosaaaa!!”, em 1969, seja um homossexual. Não tenho meios para realizar “Nós somos apenas vozes” – Percursos tal afirmação, mas posso dizer que este tipo metodológicos de adjetivo é frequentemente verbalizado por homossexuais como um qualificador ou mar- cador de status que localiza suas cantoras pre- - Vai, Bethâniaaa! Maravilhosaaaa!! diletas dentro de uma cultura musical gay. As Essas palavras, gritadas enfaticamente e vozes abstratas que estão gravadas nestes discos, embevecidas de encantamento, são as palavras tornam-se, agora, concretas para mim à medi- de um fã anônimo, mas que, para mim, fora da que me aproximo delas – através de meus eternizado pelo registro, ao vivo, de um show interlocutores reais – para estabelecer um di- da cantora Maria Bethânia, lançado em LP no álogo com e sobre elas. São vozes que falam a ano de 1969 e intitulado simplesmente como respeito de vozes. Nesta pretensão de dar voz “Maria Bethânia ao vivo”. As palavras deste fã aos “meus” “nativos”, intuo que talvez eu tenha cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 1-360, 2012 46 | Rafael da Silva Noleto encontrado uma forma de exorcizar estas vozes Obviamente, Malinowski escrevia em con- de meus ouvidos ou, provavelmente, eu apenas texto histórico diferente deste em que minha esteja procurando outra maneira de gritar jun- pesquisa se desenvolve, possuía outros objeti- to com elas. vos para realizar sua empreitada, analisava uma O poder de encantamento, atribuído pelos sociedade que não compartilhava do modelo fãs à música dessas cantoras, torna inevitável de organização social em que estamos enreda- uma associação metafórica com o universo da dos e, principalmente, realizava suas análises a magia. Malinowski (1976), ao analisar e expli- partir de perspectivas teóricas funcionalistas, car as funções e o uso da magia por parte do as quais, ele mesmo, ajudou a inaugurar na Trobriand, afirmou que Antropologia. Com todas as diferenças que se possam tornar evidentes entre a sua pesquisa e esta que faço, considero válida a utilização da Em todos esses atos mágicos o objeto é colocado metáfora da “magia” para falar deste universo bem ao alcance da voz, em uma posição adequa- musical de “encantamento”. da. Freqüentemente o objeto é colocado dentro Em minha etnografia, as “feiticeiras” são de um recipiente ou envoltório, de modo que a mulheres cantoras, os “feitiços” são canções, voz penetre em um espaço fechado e se concen- a “virtude” é a voz, os “recipientes fechados” tre sobre a substância que vai ser encantada (Ib., são casas de espetáculo e os “enfeitiçados” não Idem, p. 300) são objetos, mas homens homossexuais. Utilizo essa imagem de magia, encantamento ou feiti- çaria para iniciar as reflexões acerca dos atri- O intuito de Malinowski ao discorrer so- butos de poder e carisma, relacionados a essas bre a magia trobriand era ressaltar – além da “cantoras-feiticeiras”, que pretendo discutir ao importância vital que o encantamento (ou longo destas páginas. feitiçaria) tinha para toda a organização so- Antes de evidenciar o perfil e os critérios cial daquele grupo – que, para os nativos das de escolha dos “enfeitiçados” que se tornaram ilhas Trobriand, “a força da magia não reside interlocutores deste trabalho, desejo refutar nas coisas; ela está dentro do homem e só pode qualquer tipo de essencialização ou vinculação escapar através da voz” (Ib., Idem, p. 303). A equivocada que possa existir entre o gosto mu- exposição do autor deixa claro que, na compre- sical deles e as suas homossexualidades. Este ensão difundida entre “seus” nativos, “é a voz texto não parte de um pressuposto essenciali- do recitador que transmite a virtude” (Ib., p. zador que atribui o gosto por cantoras – e mais 302), materializada em qualidades transferidas precisamente por essas cantoras que serão, aos aos objetos, atividades econômicas e pessoas poucos, apresentadas – a uma condição pré- por meio dos poderes mágicos do feiticeiro. via para marcar a homossexualidade de meus Para os trobriand, “a mente, nanola – termo interlocutores. Entendo que os estudos queer que compreende a inteligência, o poder de dis- propõem, justamente, uma desnaturalização da criminação, a capacidade para aprender fórmu- compreensão dos sujeitos e dos gêneros. Assim, las mágicas, e todas as formas de habilidades recuso uma naturalização do gosto por essas não manuais, bem como as qualidades morais cantoras como sendo uma ontologia homosse- – situa-se em algum ponto da laringe” (Ib., xual por compreender a crítica queer quando Idem, p. 303). afirma que “os resquícios de essencialismo na

cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 45-63, 2012 O que é que uma diva tem? Cantoras brasileiras, vozes, corpos e poderes vistos por entendidos | 47 teoria social permanecem em um conceito (ou ras, atrizes, modelos, apresentadoras de TV e pressuposto) que perpassa a maioria de suas personalidades da mídia) ocupam nas redes correntes até os nossos dias: a normalidade” de sociabilidade homossexual das quais faço (Miskolci, 2009, p. 162). Portanto, não quero parte ou com as quais mantenho contato. produzir um “homossexual normal”, marcado Essas mulheres se constituem como assunto pelo fato de gostar de cantoras, ao mesmo tempo constante entre homossexuais, sendo objeto em que produziria um “homossexual anormal” de análise desses sujeitos, ativando o uso de por não compartilhar deste tipo de preferência uma semântica que cria “teias de significados” musical. Vale lembrar que essas cantoras pos- (Geertz, 1989), concedendo um status sócio- suem públicos heterogêneos, compostos por cultural de inteligência e refinamento àqueles faixas etárias, classes sociais, orientações sexuais, homossexuais que dominam os códigos de nacionalidades e raças distintas entre si. Não pre- uma cultura musical (e junto a ela uma cultura tendo esconder a multiplicidade de fatores iden- literária, estética, “fashionista”2) que demanda titários que circundam o público dessas artistas, saberes específicos, valorizados nessas relações embora esteja trabalhando com o preceito de de sociabilidade. Não tenho meios precisos que os próprios fãs dessas cantoras as classificam para afirmar que esses aspectos sejam ou não como “cantoras gay”1. Considerando que “a con- valorizados entre pessoas heterossexuais de ma- cepção fortemente polarizada dos gêneros escon- neira hegemônica, mas posso sugerir que, no de a pluralidade existente em cada um dos pólos” contexto da homossexualidade masculina, o (Louro, 1997, p. 52), é importante destacar que, domínio desses códigos e a demonstração de assim como existem diversas feminilidades e um conhecimento vinculado à arte e à moda masculinidades, configuram-se também várias são amplamente valorizados, constituindo-se homossexualidades. Creio que exista, dentro em marcadores de status e, portanto, perce- dessas homossexualidades, uma multiplicidade bidos como um “capital cultural” (Bourdieu, de gostos, preferências e identidades que não ne- 2007) dos sujeitos que integram essas redes. cessariamente sejam perpassadas por uma relação Parece necessário esclarecer a concepção de entre o sujeito gay e a arte. Entretanto, acredito sujeito “homossexual” com a qual venho tra- que, para os sujeitos homossexuais que, especifi- balhando. No intuito de enfatizar o caráter po- camente, se reconhecem como fãs dessas canto- lissêmico que esta categoria denota, recorro ao ras apresentadas a seguir, há certas convergências trabalho de Fry e MacRae (1985) para concor- de pensamento que demonstram a existência de dar com a afirmativa de que “não há nenhuma um imaginário construído em torno delas. verdade absoluta sobre o que é a homossexuali- Para serem convidados a colaborar com este dade e que as ideias e práticas a ela associadas são trabalho, os interlocutores precisaram preencher produzidas historicamente no interior de socie- os seguintes requisitos: ser homem, ­homossexual, dades concretas e que são intimamente relacio- reconhecer-se com uma identidade de gênero nadas com o todo dessas sociedades” (Ib., Idem, masculina, fã de uma cantora e não desenvolver p. 10) [grifo dos autores]. Carrara e ­Simões atividades profissionais relacionadas à música. (2007), apontam para o momento em que A escolha do homossexual masculino como principal sujeito desta pesquisa se deu pelo fato de que percebo o grande espaço que Mary McIntosh reuniu evidências sociológicas muitas mulheres de destaque social (canto- e históricas disponíveis em 1968 para sugerir cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 45-63, 2012 48 | Rafael da Silva Noleto

que, embora desejos e comportamentos homos- ­música brasileira. A intenção foi fugir de as- sexuais pudessem existir em diferentes épocas sociações óbvias como, por exemplo, poderia e sociedades, somente em algumas se produ- ocorrer se minha pesquisa abrangesse homens zia uma identidade homossexual específica, com identidades e performances de gênero conforme preocupações com as definições e os consideradas femininas, cujos ídolos seriam limites do que é aceitável em termos de conduta facilmente apontados como “modelos ideais” sexual (Ib., Idem, p. 82). para que estes sujeitos “aprendam” formas de ser mulher. Butler (2010) compreende a orientação Entretanto, minha pesquisa dialoga, majo- homossexual como uma das maneiras alterna- ritariamente, com homens homossexuais que tivas de vivência da sexualidade, afastando-se pouco se identificam com o gênero feminino de amarras heteronormativas que alinhavam em suas performances corporais, são sujeitos os gêneros em sistemas de inteligibilidade, os que não necessariamente desejam “ser” mulher quais pressupõem certa continuidade – di- ou performatizar “como se fosse” uma mulher. recionada à orientação heterossexual – entre Tais interlocutores buscam nessas cantoras uma sexo, gênero, performance de gênero e desejo referência de vida que é acionada para articular sexual. A autora acredita que a experiência da sociabilidades e explicar seus próprios trânsitos homossexualidade – ou de outras sexualidades dentre os grupos homossociais3 dos quais fa- não pautadas na heteronormatividade – articu- zem parte. Mesmo nesta configuração anterior- la a produção de “‘sujeitos’ que não apenas ul- mente discutida, esses homens realizam jogos trapassam os limites da inteligibilidade cultural de “negociações” entre “feminilidades” e “mas- como efetivamente expandem as fronteiras do culinidades” nos quais inscrevem em seus cor- que é de fato culturalmente inteligível” (Ib., pos – e em suas performatividades como um Idem, p. 54). todo – traços performativos de suas cantoras Diante da polissemia identificável no con- favoritas, promovendo assim uma imbricação ceito de homossexualidade, procurei trabalhar de gestos, palavras, modos de ser, estar e vestir com o pressuposto de que meus interlocutores oriundos da mistura dos universos do fã e da se reconhecem como homossexuais. Tal reco- cantora. nhecimento está fortemente pautado no fato Durante a elaboração deste trabalho em seu de que eles se identificam como homens que, âmbito teórico e empírico, um questionamen- predominantemente, mantêm relações afetivo- to em especial apareceu: como manter uma -sexuais com outros homens. presença duradoura dentro do campo quando Há um aspecto que deve ser mencionado e se realiza uma etnografia urbana, perpassada que se refere ao fato de que escolhi homens ho- por vários fatores que impedem o estabeleci- mossexuais que se reconhecem em identidades mento de uma relação de convivência contínua de gênero masculinas. Essa opção foi uma ten- com os “nativos”? O legado de Malinowski tativa de compreender melhor o universo social (1976) e sua fundamental contribuição para de homens gays cuja performance e identida- o estabelecimento de um método de pesqui- de de gênero são assumidas como masculinas, sa em Antropologia, aliada à leitura que, na- mas que apresentam como principal referência quele período de questionamentos, eu fazia da cultural, comportamental ou mesmo intelec- obra de Maybury-Lewis­ (1990), me levaram a tual, mulheres cantoras de grande destaque na tentar encontrar maneiras de estar, senão fisi-

cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 45-63, 2012 O que é que uma diva tem? Cantoras brasileiras, vozes, corpos e poderes vistos por entendidos | 49 camente, mas virtualmente próximo de meus dora, mas que lance com regularidade álbuns interlocutores. Talvez eu tivesse a esperança de circulação nacional; que tenha nascido no fantasiosa de colecionar histórias e exemplos Brasil ou que, sendo estrangeira, seja reconhe- que, futuramente, me serviriam como ferra- cida como uma cantora “brasileira” (Carmen mentas utilizáveis para produzir um texto tão Miranda é um exemplo) e, por fim, que seja rico de acontecimentos e emoções como a reconhecida por seus fãs homossexuais como narrativa de Maybury-Lewis. Mas, ao pensar um ícone relacionado ao imaginário gay. nisso e (naquele momento) ter esses dois au- Sendo músico e homossexual, tive que li- tores como paradigmas do “estar lá” (Geertz, dar, no decorrer deste processo, com as van- 2009), fui conduzido a encontrar formas de tagens e desvantagens de pesquisar dentro de manter uma presença mais constante na vida um universo que, para mim, é tão familiar. As de meus interlocutores. Claramente inspirado desvantagens se resumiam ao temor de não na problematização feita por Martin (2006) e conseguir o distanciamento (e o “estranhamen- nas soluções por ela encontradas para ultrapas- to”) necessário para elaborar uma teoria a partir sar certos limites encontrados na realização de daquilo que é empiricamente familiar, fazendo uma etnografia em contextos urbanos, recorri com que esses fatos etnográficos fossem perpas- à internet e ao telefone como uma extensão de sados por uma ciência antropológica que lhes possibilidades do “estar lá”. E foi, a partir disso, conferisse inteligibilidade e legitimidade no que pude coletar outros depoimentos, ainda mundo acadêmico. “O estranhamento passa a mais espontâneos, fora do formalismo (mesmo ser não só a via pela qual se dá o confronto implícito) de uma entrevista gravada, fortalecer entre diferentes ‘teorias’, mas também o meio os laços de confiança com os interlocutores e, de auto-reflexão” (Peirano, 1990, p. 4) a partir principalmente, aprofundar minhas análises. do qual, gradativamente, fui construindo hi- Seis (06) vozes masculinas foram selecio- póteses e fortalecendo uma forma “externa” de nadas para dialogar comigo. Seus nomes ver- olhar para o familiar. dadeiros foram omitidos para preservar suas Em contrapartida, houve vantagens quanto identidades. Os novos nomes escolhidos estão à familiarização com meu “lócus” etnográfico diretamente relacionados ao universo musical da homossexualidade e da canção popular. Eu da cantora eleita, por cada um deles, como ído- sabia falar “a língua do santo” (Silva, 2006). lo. Foram selecionadas denominações que fazem Refletindo sobre etnografias desenvolvidas em referência a gravações, álbuns e aspectos relativos terreiros de religiões de matriz africana, Vagner à trajetória artística dessas intérpretes. Os nomes Gonçalves da Silva (Ib.) ressalta a importância que usarei para fazer referência a todos eles em de “dominar” certos códigos culturais e lin- sua individualidade são: Tamba-tajá e Atrevido güísticos da realidade pesquisada para que se (32 e 35 anos, fãs de Fafá de Belém), Pirata e possa empreender um diálogo bem sucedido Brasileirinho (35 e 32 anos, fãs de Maria Bethâ- com os interlocutores durante o exercício etno- nia), Fatal (45 nos, fã de Gal Costa) e Pimenti- gráfico. Para o autor, “dominar” esses códigos nha (não revela a idade, fã de ). de conduta e de linguagem significa, metafo- No contexto desta pesquisa, entende-se ricamente, saber “falar a língua do santo”, pos- como cantora uma mulher que exerce profis- sibilitando uma melhor inserção no campo e sionalmente a atividade do canto (seja popular um entendimento mais profundo do sentido ou erudito); vinculada ou não a uma grava- dos discursos coletados nas entrevistas. Falar a cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 45-63, 2012 50 | Rafael da Silva Noleto

“língua do santo” é compreender certas catego- teiro de perguntas a fim de que essas questões rias e expressões utilizadas pelos interlocutores, aparecessem “espontaneamente” na entrevista pois “não saber o significado dessas palavras é sem que eu tivesse a necessidade de ler o ro- estar alijado da compreensão mínima dos ter- teiro na frente do interlocutor. Esta foi uma mos de reconhecimento do grupo” (Ib., Idem, saída para proporcionar o estabelecimento de p. 48). Conhecendo “de perto” certos códigos um diálogo em que o interlocutor não se sen- da linguagem homossexual e estando a par da tisse entrevistado (embora soubesse que estava realidade musical vivenciada por meus interlo- inserido numa entrevista), preso a um sistema cutores, percebi como vantagem o fato de que de perguntas e respostas e submetido a respon- eu podia falar o mesmo “idioma” que eles. der a uma determinada quantidade de questões Ao contatar os interlocutores para realizar as que esses tipos de roteiro estabelecem. Tentei entrevistas e, portanto, “perseguir pessoas sutis proporcionar uma sensação de fluidez em que com perguntas obtusas” (Geertz, 1989, p. 20), as perguntas não fossem percebidas – à primei- eu sugeria que os locais onde ocorreriam os di- ra vista – como uma sequência lógica, mas que álogos fossem escolhidos pelo entrevistado. Na fossem sentidas como se tivessem surgido “no dúvida ou indiferença deste, eu escolhia o local calor da hora”, originadas somente a partir do com base naquilo que seria mais prático para o que estava sendo dito pelo entrevistado naque- meu deslocamento e mais “rentável” para as en- le momento. As entrevistas nunca seguiram trevistas, ou seja, lugares de fácil acesso e sem a mesma ordem de perguntas. As indagações muitas interferências externas como barulho apareciam em uma sequência aleatória, apro- ou intenso fluxo de pessoas. Quando entrei em veitando as “deixas” dos discursos emitidos, contato com Pirata e pedi a ele que escolhesse o encaixando-se nas frestas situadas entre a car- local de sua entrevista, ouvi a seguinte pergunta: reira da cantora e vida do interlocutor. Essa foi “Onde Bethânia iria?” À qual ele mesmo res- uma tentativa de amenizar a sensação de “ser pondeu: “Ah! Tem que ser um lugar que tenha entrevistado”. natureza... Pode ser no Parque da Residência?”4. Apresentadas todas estas vozes, as condi- Percebi que, para todos os interlocutores, ções de trabalho e a forma como a pesquisa foi falar de seu universo musical e de sua cantora conduzida, sinto-me à vontade para iniciar a favorita constituía um grande prazer compará- exposição destes diálogos e das reflexões que vel ao que, para um torcedor, constitui imensa fui estimulado a ter a partir deles. Passemos, satisfação a oportunidade de falar de esporte e portanto, à discussão das noções de “poder”, de seu time predileto. Mas estas falas não eram frequentemente vinculadas a essas cantoras por vazias, antes, eram reflexivas. Constituíam-se seus fãs, na forma do adjetivo “poderosa”, um em falas que, a partir das perguntas realizadas, qualificador direcionado à classificação, hierar- eram orientadas a refletir sobre as sociabilida- quização, comparação, qualificação e represen- des homoafetivas envolvidas em suas experiên- tação dessas artistas. cias musicais e a pensar nas próprias palavras cotidianamente usadas para dizer algo sobre Poderosa por quê? suas cantoras prediletas. No intuito de deixar as entrevistas mais fluidas, utilizei uma estratégia que consistia em Inicialmente, é importante frisar que esta estudar detalhadamente (e previamente) o ro- etnografia tem como principal intuito a com-

cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 45-63, 2012 O que é que uma diva tem? Cantoras brasileiras, vozes, corpos e poderes vistos por entendidos | 51 preensão de três grandes qualificadores fre- se ao site de compartilhamento de vídeos www. quentemente acionados por fãs homossexuais youtube.com] atrás da Gal cantando essa músi- para designar suas cantoras prediletas, são eles ca. Olha... [pausa enfática] eu vi ela cantando “poderosa”, “divina” e “maravilhosa”. Esses “Dê um Rolé” naquele show “O sorriso do gato adjetivos nem sempre aparecem configura- de Alice”. Menino, a mulher tá po-de-ro-sa! dos dessa maneira nas falas dos interlocutores Não tá? Gente, o que é aquilo? Essas cantoras com quem dialoguei, mas surgem em sinôni- de hoje em dia não tem peito pra cantar que mos equivalentes – muitas vezes em formato nem a Gal... de substantivo e não adjetivo – que concedem status de poder, divindade ou glamour a estas artistas. Sendo assim, uma cantora pode ser Ao escolher a denominação “po-de-ro-sa” chamada de “rainha” (numa alusão a uma figu- para referir-se a Gal Costa, separando as síla- ra de poder ou ao adjetivo “poderosa”), “deusa” bas da palavra para dar destaque a este quali- (referindo-se a uma condição de divindade) ou ficador, ao mesmo tempo em que afirma que ainda glamourosa (dizendo respeito a um status “as cantoras de hoje em dia não têm peito pra de refinamento estético da arte e daperforman - cantar que nem a Gal”, Pirata define que o po- ce desenvolvida por essas mulheres ou ainda ao der de Gal Costa está ligado à forma de cantar. modo elegante com o qual esses ídolos se com- Esta “forma de cantar”, neste caso, não está portam em suas aparições públicas). Portanto, circunscrita à emissão da voz, mas percebida de uma forma ou de outra, essas cantoras são no uso do corpo na performance, visto que o constantemente elevadas à condição imaginá- vídeo que provocou esta opinião de Pirata foi ria de “rainhas”, “deusas” e “divas”, justamen- extraído de um dos espetáculos mais teatrais da te por serem detentoras de um saber musical carreira desta artista. A palavra “peito”, usada e corporal específicos, valorizados por seus fãs por Pirata, adquire também um entendimento homossexuais. dúbio, pois era neste show que Gal Costa exibia Neste artigo, a discussão estará centra- os próprios seios – como é de conhecimento lizada na compreensão do significado da noção público devido à repercussão que este espetácu- de poder, utilizada no entendimento de meus lo teve em 1994 – no instante em que cantava interlocutores. Pirata relatou um caso interes- a música “Brasil” (de , George Israel e sante para começarmos esta abordagem: Nilo Romero). Assim, ao dizer que “as cantoras de hoje em dia não têm peito pra cantar que nem a Gal”, o substantivo “peito” ganha status (PIRATA) - Eu tava conversando com uma de sinônimo do adjetivo “coragem”. A tradu- amiga e ela me falou que adorou a gravação de ção correta do sentido empregado por Pirata “Dê um Rolé” [composição de Moraes Moreira em sua construção discursiva diz respeito a um e Galvão feita na época da existência do gru- fator de poder atribuído, por ele, à Gal Costa po “Novos Baianos”] que a Roberta Sá5 fez. Eu devido a sua maneira de cantar e a sua coragem disse pra ela que a gravação da Roberta Sá pode de performatizar, cenicamente, este canto. até ser bonita, mas que, pra mim, essa música Pretendo, nesta etapa, compreender o sig- marcou com a Gal [Costa]. Essa música é a nificado das palavras e da semântica utilizadas cara da Gal, né? [perguntando como que para por esses fãs homossexuais para designar os si mesmo] Aí, tá. Fui pro You Tube [referindo- seus ídolos como “poderosas”. Em conversa cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 45-63, 2012 52 | Rafael da Silva Noleto

com Fatal, pude observar que suas representa- promover uma sublimação da própria voz. Fa- ções de poder estão, de algum modo, relacio- tal ainda sugere que esse poder também pode nadas, mais especificamente, com dois pólos ser medido pela atuação de Gal Costa no mo- específicos da carreira de Gal Costa: o grito e vimento Tropicalista. Para ele, o fato de ter se a delicadeza. tornado uma porta-voz da Tropicália durante o exílio de e , confere à cantora um grau de importância que a coloca (RAFAEL) – E se tu fosses definir a Gal com num patamar superior, mas também revela uma alguma palavra, algum adjetivo... Que adjetivo artista que não apenas canta, mas grita, reme- tu usarias para dizer: a Gal é “isso”? tendo-nos ao período em que gravava canções (FATAL) – Uma diva. vinculadas ao universo do Rock’n Roll. (RAFAEL) – Diva... E o que é que uma diva tem? Em contrapartida, para Atrevido, Fafá (FATAL) – Poder. Ela [Gal Costa] é a perfeição! de Belém poderia ser classificada como “po- Porque a voz dela é algo sublime, é algo invejá- derosa” por conta de características que estão vel. Parece que a Gal não faz força pra cantar... além da forma com que canta e mais ligadas ao (RAFAEL) – Mas esse poder está na voz ou em fator “atitude”. outras características? (FATAL) – Eu acho que tá na voz e também no que ela representa pra Música Popular Brasilei- (ATREVIDO) – Eu gosto de ver ela atuando, ra. Até [pel]a própria situação em que ela virou cantando no palco. Mesmo que o povo diga: uma porta-voz do Tropicalismo. Então, através “Ah! Ela não consegue alcançar as mesmas no- da voz dela, o Caetano [Veloso] falava o que ti- tas que antigamente...”. Não consegue mesmo, a nha vontade e o [Gilberto] Gil também. Ela le- gente vê. Mas eu gosto da atitude dela. Eu gosto. vava a coisa de brigar com o Regime Militar, né? Ela tem presença de palco, né? Ela chega descal- Brigar com o governo, alertar as pessoas, gritar ça, dançando... Isso é forte, tá entendendo? Eu com as pessoas: “Acorde, o mundo tá aí! Acho acho legal isso de ver! Ter essa presença, ter essa que precisa fazer alguma coisa pra mudar”. atitude. Ela é uma mulher de atitude. Isso não tem o que questionar. Ninguém tem tanta atitu- de. O fato de ela ser daqui também, eu acho, né? O discurso de Fatal confronta duas gran- Como disse uma vez o que des subdivisões identificadas na carreira de Gal lembra dela chegando no cenário [profissional Costa: a sutileza e a agressividade. Ao mesmo da MPB], com as grandes cantoras... Elis vindo tempo em que Fatal a associa aos vocábulos do Rio Grande do Sul, né? A Gal e a Bethânia da “perfeição” e “sublime”, atribuindo à sua for- Bahia, né? Outras de São Paulo e ma de cantar um caráter “invejável”, também a e ela era a única sereia da Amazônia. Eu achei vincula aos verbos “brigar” e “gritar”, evocan- legal isso. Eu acho que pela questão do regio- do um caráter “agressivo” para suas interpre- nalismo também, por saber que ela é daqui, né? tações. Suas palavras possibilitam inferir que, tais características, são somente acessíveis às divas, entendendo-se por este qualificador uma Ao ser indagado quanto aos “poderes” iden- artista de grande apuro técnico, segura de seu tificados por ele em Fafá de Belém, ­Atrevido desempenho musical como cantora, capaz de respondeu que

cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 45-63, 2012 O que é que uma diva tem? Cantoras brasileiras, vozes, corpos e poderes vistos por entendidos | 53

(ATREVIDO) – Ela é a única representante de exemplo, ter uma suíte exclusiva em cada um uma região que despontou no cenário nacional. dos dois hotéis mais luxuosos de sua cidade na- Ela traz o nome dessa região no nome porque tal. Este fã considera como estratégica a associa- Belém é a Amazônia. Então, por isso também... ção que a cantora possui com o cenário político é vinculada com a política... porque move o local, regional e nacional, o que, certamente, país. Eu acho que ela tem de tudo um pouco. pode abrir-lhe oportunidades profissionais. [risos]. Finalmente, as palavras de Atrevido deixam (RAFAEL) - O que seria o poder da Fafá? O escapar que Fafá de Belém possui outra carac- “poderosa”? terística que lhe é favorável: o carisma6. Esta (ATREVIDO) – Poderosa? Se ela chegar aqui qualidade se traduz na expressão “esse poder de e ter, nos hotéis de Belém, nos dois melhores chamar o público, esse apelo”. Pode-se inferir [hotéis] uma suíte permanente pra ela. que, no fundo, esse seja um dos “poderes” mais (RAFAEL) – Isso é poder? importantes na hierarquia de Atrevido, pois ele (ATREVIDO) – Isso é... uma influência, um o define como “o poder das cantoras mesmo”. poder. Outro poder que ela tem: chegar aqui, Sob lógica semelhante à de Atrevido, Bra- fazer um show e ter esse poder de chamar o pú- sileirinho enfatiza a “presença” de Maria Be- blico, esse apelo. Tem sim. O poder da cantora thânia como um fator diferencial em suas mesmo, né? A influência. Tem isso. performances e como um atributo de “poder” que o inspira em seu cotidiano.

A fala de Atrevido evidencia a importância concedida ao que ele chama de “atitude”. Este (BRASILEIRINHO) – Eu acho Bethânia mui- substantivo está ligado à expressão “presença de to guerreira, forte! Uma presença muito forte! palco”, utilizada em sua definição. Para ele, ter [Bethânia é] de chegar [num lugar] e... “Che- presença de palco é ter domínio sobre o corpo, guei! Pode vir o resto!”. Por eu ser muito tímido, é fazer uso desse corpo para produzir uma re- procuro me espelhar nessa presença dela. Ela me presentação de força, exteriorizada pelo aspecto ajuda bastante. Quando eu tenho que chegar gestual, entendendo-se como gestual a própria num local e tô meio acanhado, eu sempre penso força da voz, mesmo que esta voz esteja impos- na presença de palco dela. sibilitada de cantar adequadamente. Entretan- to, a voz deve emitir entusiasmo, energia vital e, principalmente, deve sair de uma dimensão Há dois outros exemplos pertinentes para etérea – como Fatal reivindicou um caráter chegar a algumas conclusões acerca dos atri- de sublimação para a voz de Gal Costa – para butos de poder relativos às cantoras. Durante conectar-se com fatores mais ligados a uma di- uma entrevista com o interlocutor Pimentinha mensão terrena, traduzidos pelos pés descalços e uma conversa informal com Tamba-tajá, dois de Fafá de Belém a reforçarem sua personagem momentos diferentes da carreira de Gal Costa cabocla e amazônica. foram acionados: Em suas reflexões acerca dos atributos de poder de seu ídolo, Atrevido deixa transparecer que esse poder se revela em prováveis “home- (PIMENTINHA) – Rafael, tu já viste o Pho- nagens” prestadas a Fafá de Belém como, por no 73, né? A Gal tá liiiinda...!!! Eu adoro a Gal cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 45-63, 2012 54 | Rafael da Silva Noleto

­cantando com a Bethânia, rodopiando, pare- cobranças recaem, sobretudo, sobre a qualida- cendo uma louca com aquela flor no cabelo, de da emissão de sua voz e o alcance de sua aquela saia... Foi um momento muito poderoso extensão vocal. Nas performances citadas por de todas elas... [referindo-se a Gal Costa, Maria esses fãs, Gal Costa não canta da forma que Bethânia e Elis Regina – artistas que participa- lhe seria desejável como cantora, ou seja, com ram da série de shows intitulada “Phono 73” e re- a “perfeição” técnica que lhe é atribuída pela gistrada em vídeo pela gravadora Phonomotor]. crítica. Pelo contrário, na primeira performance (RAFAEL) – A Gal estava rouca... (1973), sua voz está rouca e a emissão das no- (PIMENTINHA) – Ela não tava cantando tas é comprometida pelos rodopios que executa nada, mas tava maravilhosa! [risos] no palco. Na segunda apresentação (1979), sua qualidade vocal é também comprometida pelo seu intenso deslocamento no palco e, talvez, A fala de Tamba-tajá faz referência a outra pela falta de preparo físico compatível com a performance de Gal Costa: atividade de cantar satisfatoriamente enquanto performatiza. Porém, na percepção destes inter- locutores, o corpo, em sua totalidade, fala por (TAMBA-TAJÁ) – Já assististe o “Mulher 80”, si. A sensualidade é também valorizada e a in- né? [programa da TV Globo, gravado em 1979 tenção da mensagem é percebida mesmo que o e lançado em 2008 no formato DVD]. A Gal canto esteja prejudicado por algum outro fator. tá poderosa cantando aquela música... “Eles se A partir do contato com esses depoimentos amam de qualquer maneira, à vera...” [cantaro- que constroem uma relação entre corpo e no- la]. Gente, eu fico impressionado! Ela corre no ção de poder, sinto-me estimulado a dialogar palco, pra lá e pra cá, canta, bate no peito. Acho com os postulados de Mary Douglas (1991) lindo! E ela tá vestindo só um pano que cobre os acerca das zonas de poder e de perigo do cor- peitos, bem sensual... po, pois, de acordo com esta autora, “o cor- po humano [...] é matéria de simbolismo; [...] reproduz, a uma pequena escala, os poderes e Tais declarações dadas por Pimentinha e perigos atribuídos a uma estrutura social.” (Ib., Tamba-tajá (fãs de Elis Regina e Fafá de Be- p. 138). Ao trabalhar com este universo musi- lém, respectivamente), incitam à conclusão cal, pretendo mostrar que grande parcela des- de que, na percepção deles, o atributo que sas intérpretes está diretamente relacionada a confere poder a uma cantora, constituindo-a performatividades e partes de seus corpos que, como “ídolo”, é o domínio que ela tem sobre inspirando-me em Douglas (Ib.), seriam ava- o corpo em cena e a capacidade de transfigu- liadas por mim como zonas de “poder e de pe- rar esse domínio num artifício provocador de rigo”, pois apresentam elementos que denotam um magnetismo que prenda a atenção da pla- comportamentos “poluidores” associados à se- teia. Os discursos dos interlocutores são sin- xualidade não conjugal, homossexualidade, re- tomáticos da importância dada ao corpo e de ligiosidades não cristãs e vinculação com estilos como o valor da corporalidade cênica supera de vida “alternativos”, como veremos a seguir. a estima que, geralmente, é dedicada à voz de Uma observação atenta ao registro, em ví- uma cantora. Principalmente, se essa intérprete deo, do show “Maria Bethânia Ao Vivo – As é Gal Costa (citada nas duas falas) em que as Canções que você fez pra mim” (dirigido por

cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 45-63, 2012 O que é que uma diva tem? Cantoras brasileiras, vozes, corpos e poderes vistos por entendidos | 55

Walter Salles e ) pos- suas formas corporais “grandes” e pelo exagero sibilita verificar a atenção dispensada a certas de sua gargalhada. Essas referências ao corpo partes do corpo como os pés, dedos das mãos, e à gestualidade aparecem nos depoimentos antebraço (fartamente adornado por pulseiras dos interlocutores com quem dialoguei e são, de prata e ouro) e cabelo. Os diretores esfor- frequentemente, acionadas como atributos de çaram-se em produzir imagens que captassem poder ou marcadores que identificam a “atitu- a expressividade das mãos da cantora a fazer de” de suas cantoras prediletas. A seguinte fala “desenhos” no ar, intensificando suas emoções de Atrevido transparece adjetivações que inter- interpretativas, incitando um gestual de reve- seccionam percepções corporais, sexualidade e rência para com seu público e para consigo noções de poder. mesma. O mesmo acontece com a captação de imagens direcionadas aos pés, nas quais Ma- ria Bethânia aparece correndo pelo palco ou, (ATREVIDO) – Eu acho legal as atitudes dela ainda, alongando uma de suas pernas para os [Fafá de Belém] como mulher. Ela chegou [co- lados direito ou esquerdo, tocando o chão ape- meçou a carreira] numa época em que o cená- nas com a ponta dos dedos de seu pé enquanto rio brasileiro, qual era? Muitas cantoras, todas canta notas fortes, impulsivas, aliadas a pala- esquálidas, magras... – [como, por exemplo] a vras de impacto coincidentes com mudanças Bethânia, a Gal... – e lésbicas! E ela [a Fafá de bruscas nos arranjos musicais que revestem as Belém] chegou gordinha, peituda, dando gar- canções. galhada e gostando de homem... [risos] Isso é Pirata identifica em Maria Bethânia uma atitude! Estás me entendendo? E eu gosto disso, “força” interpretativa que lhe atribuiria o sta- dessas coisas dela, eu gosto bastante. tus de “poderosa” a partir da relação corporal construída entre a cantora e a música que in- terpreta. Para Atrevido, os aspectos diferenciais que Fafá de Belém apresentou, quando do seu lan- çamento no mercado de cantoras nacional, não (PIRATA) - Se for falar da força dela no pal- estiveram estritamente localizados na música co, eu falaria... eu acho que [Maria Bethânia] é ou em suas interpretações vocais, mas, princi- poderosa. Olha, no DVD do [show] “Marico- palmente, nos predicados apresentados pelo seu tinha”, ela cantando “Fera Ferida” [composição corpo, no uso do corpo como produtor de ima- de Roberto e ], pra mim aquilo gem e no ato de tornar explícita sua heterosse- é tão forte. E no final, ela se estapeia mesmo. xualidade que, no contexto do mercado musical Ela dá uns tapas no peito que o microfone capta da época (transição entre os anos 1970 e 1980), [o som]. [A Bethânia] é uma mulher que canta contrastava com a homossexualidade predomi- mesmo, que não tem medo do que ela tem que nante atribuída, pelos fãs e jornalistas, às “gran- cantar. Se for uma coisa [música] sofrida, ela vai des” cantoras da Música Popular Brasileira. e enfrenta aquilo. Outro exemplo notório e atual refere- -se à percepção consciente que as cantoras constroem de si mesmas. Em 01 de outubro Fafá de Belém, por sua vez, é sempre as- de 2010, ao apresentar o show “Gal Total” em sociada aos seus próprios seios, lembrada por São Paulo, a cantora Gal Costa, no intervalo cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 45-63, 2012 56 | Rafael da Silva Noleto entre duas músicas, falava da roupa escolhida pensar, de modo análogo, no uso das cores para cantar naquele show e respondia, indireta- na maquiagem e figurinos das artistas. Para mente, à cobrança de seus fãs e dos jornalistas o autor, “a cor vermelha está associada com a para que ela adotasse outro figurino, diferente noção de vitalidade, energia e intensidade” e daquele que já usava em todos os shows daquela geralmente “é aplicada nos pontos periféricos longa turnê, que já se prolongava por mais de do corpo que estão em contato direto com o três anos7. Gal Costa disse: mundo exterior”, podendo-se exemplificar tais áreas periféricas como sendo “mãos e pés e os órgãos sensoriais da face” (Ib., p. 123, tradução (GAL COSTA) – Eu não preciso de roupa não. minha). O cabelo já tá grande... Vocês [fãs] vão reparar É interessante observar como essas associa- é no cabelo! Porque vocês sabem que o cabelo ções entre cor, roupa, acessórios e partes do e a boca são as minhas marcas. Não é a roupa, corpo representam noções de repressão e inten- né? [Faz expressão de desdém] A roupa não é sificação que habitam um terreno que está num nada. [O que importa] é a voz, cabelo e boca. E nível inconsciente, mas que, de alguma forma, acabou! [aplausos e gritos do público]. surgem explícitas seja na composição visual de um figurino destinadoa uma apresentação ar- tística ou na formulação estética da pintura cor- A fala da cantora deixa clara a percepção poral de uma determinada população indígena. que possui acerca da associação existente entre Geertz (1997) apropriou-se dos conceitos partes de seu corpo e atributos de poder. É nes- psicanalíticos de experiência-próxima e expe- te aspecto que sugiro um diálogo mais estreito riência-distante, utilizados por Kohut (apud com os trabalhos de Terence Turner (1980) e Geertz, 1997), para afirmar que “as pessoas Mary Douglas (1991), pois a composição vi- usam conceitos de experiência-próxima es- sual da obra de Gal Costa evoca, ciclicamente, pontaneamente, naturalmente, por assim di- o uso de sua boca, quase sempre pintada por zer, coloquialmente; não reconhecem, a não um batom cuja cor é vermelha, nas capas de ser de forma passageira e ocasional, que o que seus álbuns. disseram envolve ‘conceitos’” (Ib.). De acordo Apesar de ter pesquisado em contexto indí- com a exposição de Geertz, as noções de ex- gena (entre os Kayapó), as conclusões de Teren- periência-próxima e experiência-distante dife- ce Turner (1980) auxiliam a pensar nas relações rem entre si porque a primeira diz respeito às entre cor, corpo e significado. Utilizo a con- denominações mais usuais, triviais ou comuns cepção de Turner (Ib.) acerca da roupa e dos utilizadas pelos seres humanos para definir seus acessórios corporais como uma “pele social”, sentimentos e vivências; já a segunda refere às acionada pelos indivíduos de um grupo, para designações científicas sobre esses mesmos fe- compreender que, na performance artística, o nômenos da experiência humana traduzidos figurino é também um demarcador dos dife- racionalmente a partir de uma elaboração à luz rentes “espaços” ocupados e “papéis” desempe- de uma linguagem técnica. nhados pelo artista e pelo público. No entanto, Seguindo este raciocínio, é possível sugerir Turner (Ib.) associa cores usadas na pintura que, muitas vezes, essas noções de repressão e corporal dos Kayapó com diferentes partes do intensificação identificadas por Turner entre os corpo e estados de espírito, o que é útil para Kayapó são utilizadas e vivenciadas no corpo,

cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 45-63, 2012 O que é que uma diva tem? Cantoras brasileiras, vozes, corpos e poderes vistos por entendidos | 57 como uma experiência-próxima, sem que se podem ser percebidas como tal de acordo com perceba com total clareza toda a formulação o ponto de vista do observador e da cultura conceitual que se esconde por trás do uso de na qual está inscrito. A partir dessa concepção cores (pintura), roupas e acessórios para ador- instável do conceito de “centro” e “periferia”, nar certas partes do corpo. Da mesma maneira, sugiro que as partes do corpo acionadas por um artista pode utilizar determinada composi- cantoras como Fafá de Belém, Gal Costa e ção de cores, roupas e adereços com certo nível Maria Bethânia (considerando o período his- de consciência conceitual, mas sendo passível tórico em que essas cantoras foram lançadas de não conseguir perceber toda a complexidade no mercado fonográfico) foram mobilizadas na de significados que sua imagem pode imprimir condição de “margens” e não de “zonas cen- diante da percepção de seus interlocutores. O trais”, pois ostentam elementos “poluidores” uso da roupa e de todo o seu aparato acessório (Ib. Idem) que sugerem uma desestabilização por parte do performer pode ser realizado de da ordem social hegemonicamente aceita ao maneira “intuitiva”, envolvendo significações legitimar “personagens” que, em geral, são es- sobre as quais não se tem total dimensão de tigmatizadas pela sociedade como “sapatão”, sua representação, caracterizando, dessa for- “vulgar”, “maconheira”, ”macumbeira”, “baia- ma, a vivência de conceitos no corpo que, na na”, “cabocla”, “”, “safada”, “hippie” etc. verdade, são resultantes de um saber ligado a Durante a formação de uma imagem públi- uma experiência-próxima, a uma consciência ca para Fafá de Belém (seios), Gal Costa (boca e cotidiana. cabelo) e Maria Bethânia (mãos, pés e cabelo), Assim, interpreto que os lábios de Gal Costa foi notável a articulação realizada entre estas e sua constante associação com o uso de batom cantoras e determinadas partes de seus corpos. vermelho estão, de certa forma, associados aos Entretanto, pretendo demonstrar, neste mo- conceitos de repressão e intensificação descri- mento, as motivações que me levam a crer que tos por Turner, na medida em que servem para essas partes do corpo foram mobilizadas como reforçar a fabricação de sua condição feminina “zonas marginais” interessantes para compor a como uma cantora marcada pela intensidade imagem pública dessas artistas. e sensualidade de suas performances dentro de Começando por Fafá de Belém e conside- um contexto politicamente repressor e machis- rando que em 1975 (ano de seu lançamento na- ta: a Ditadura Militar que estava instaurada cional) não havia no Brasil uma cultura maciça no Brasil no momento em que o Tropicalismo de aumento dos seios através de intervenção (movimento musical ao qual a cantora estava cirúrgica, é possível sugerir que os seios da can- vinculada) eclodiu. O objeto de maquiagem tora foram acionados como “zonas marginais” (batom) e a cor vermelha foram, ciclicamente, do corpo, pois além de divergirem dos padrões evocados em sua obra nos álbuns “FA-TAL” estéticos hegemônicos e socialmente desejáveis (1971); “Gal Tropical” (1979); “Profana” entre mulheres “respeitáveis”, os seios de Fafá (1984) e “O sorriso do gato de Alice” (1993)8. de Belém eram constantemente evocados em Aproximando-me das contribuições de seu material publicitário como deslocados das Mary Douglas (1991), entendo que o conceito funções “naturais” de reprodução e amamen- de “margens do corpo” não se configura como tação. Assim, a imagem de Fafá de Belém foi algo determinado ou fixo. Pelo contrário, as zo- construída como uma mulher “farta”, “abun- nas corporais “centrais” e “periféricas” do corpo dante” de desejos e “cheia de amor para dar”, cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 45-63, 2012 58 | Rafael da Silva Noleto sendo os seios os principais marcadores desse Hélio Oiticica ao desenvolver a capa e o design modelo de mulher sexualmente ávida e, por gráfico doLong Play (LP) “LEGAL” (1970), esse motivo, “poderosa” e “perigosa”. Desloca- no qual havia uma fotografia onde, dentro dos dos de suas funções maternas e considerando cabelos de Gal, estão contidos vários ícones, o período historicamente mais conservador em da cultura brasileira e mundial, pertencentes que esse deslocamento foi produzido, os seios ao imaginário dos jovens como, por exemplo, foram utilizados para denotar “funções margi- Gilberto Gil, Waly Salomão e James Dean. São, nais” vinculadas ao sexo não reprodutivo e ao na verdade, fotos de personalidades e eventos prazer desvinculado do casamento. A veicula- sociais que representam as tensões políticas, so- ção da imagem de Fafá de Belém como uma ciais e artísticas de uma época e que, neste caso, “personagem” pouco ligada às convenções de também estavam representadas implicitamente conjugalidade exigidas para uma mulher “de pela rebeldia dos cabelos da cantora (Noleto, respeito”, simbolicamente, desestabilizava a in- 2011, p. 4-5). serção desta “personagem” no sistema de “sexo/ gênero” (Rubin, 1975) socialmente aceito em nossa sociedade. Neste momento histórico, o uso de um ca- É interessante notar que até mesmo seu re- belo desgrenhado simbolizava rebeldia de com- pertório foi mobilizado neste sentido. O bolero portamento e estabelecia fortes ligações com os “Sob medida” – composto por movimentos hippie, rock e black power, vigen- e gravado por Fafá nos anos 1970 – descreve tes na época. A vinculação com estas realidades a realidade de uma mulher “bandida” e “sol- “sócio-musicais” identificava o sujeito como ta na vida” que exerce certo “domínio” sobre situado dentro de um contexto “marginal” de o homem amado através de predicados sexuais sociabilidade, optando por formas alternativas vinculados à vulgaridade e ao descompromis- de vida e afetividade. É neste sentido que pre- so conjugal. Isto quer dizer que a personagem tendo alinhavar o uso do cabelo de Gal Costa a “Fafá de Belém” foi construída a partir de pres- uma noção de “periferias do corpo”. supostos que negam a condição da mulher O mesmo pode ser percebido quanto ao “fiel”, “passiva” e, principalmente, “discreta”. uso da boca nas capas dos álbuns desta canto- De certa maneira, uma mulher à margem do ra. Num contexto de ditadura militar, a boca padrão comportamental legitimado na época. de Gal Costa foi utilizada, pela primeira vez Com relação à Gal Costa, é necessário tam- na capa do LP “FA-TAL: Gal a todo vapor” bém considerar o momento histórico em que (1971) como um elemento que denota uma sua boca e seus cabelos foram utilizados como ampla simbologia. Este álbum representantes de sua identidade performática. O ano de 1970 marcou a primeira vez em que os cabelos da cantora foram evocados como um É repleto de simbologias a começar da capa símbolo de rebeldia na capa do álbum “LeGal”. ilustrada com a boca de Gal Costa por trás do microfone que usa para cantar. Além do forte apelo sexual da boca (que se tornaria, a partir A utilização do cabelo como um recurso cênico, de então, emblema representativo da presença carregado de significações simbólicas associadas física da cantora), a foto dá margem a interpre- a Gal Costa, foi explorada pelo artista plástico tações de que a boca pode ser usada para cantar,

cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 45-63, 2012 O que é que uma diva tem? Cantoras brasileiras, vozes, corpos e poderes vistos por entendidos | 59

calar, denunciar ou até relacionar-se sexualmen- que a valorização de suas mãos e pés em todo o te (Noleto, 2010, p. 23-24). seu material discográfico, vídeos e material pu- blicitário, pode também ser interpretada como uma simbologia que ativa “margens” do corpo. Baseado nessa polissemia produzida em Na interpretação que tento sugerir, as mãos po- torno da boca, principalmente no que diz res- dem ser ressignificadas como partes do corpo, peito à sua condição de possível emissora de simbolicamente, capazes de lançar feitiços, acio- discursos (cantados ou falados) dentro de um nar poderes, apontar caminhos e empunhar “ar- contexto em que o país vivia sob tutela de um mas de guerra”, a exemplo da orixá guerreira da regime não democrático, pretendo sugerir que cantora, Yansã, à qual Maria Bethânia­ é frequen- a boca de Gal Costa também pode ser perce- temente associada (Passos, 2008). bida como uma zona periférica do corpo (e, Com relação aos pés descalços, até hoje ado- portanto, uma representação de “poder e de pe- tados por Maria Bethânia em seus shows, eles rigo”), pois implicitamente incitava discursos e podem ser considerados como fortes símbolos comportamentos discordantes dos padrões he- de seu vínculo com a religiosidade e cultura gemônicos da época. africana, evidenciando conexões com as danças O mesmo raciocínio é utilizado para ana- empreendidas nos rituais de candomblé e nos lisar as mãos e os pés de Maria Bethânia. de roda do recôncavo baiano (região Fortemente vinculada ao candomblé, Maria onde nasceu), todas elas dançadas com os pés Bethânia foi uma cantora pioneira na Música descalços. Além disso, cantar com pés descalços Popular Brasileira no que diz respeito a colo- não era, na época em que M­aria Bethânia­ ini- car a sua religiosidade como um fator relevante ciou essa prática, uma atitude esperada dentro para a constituição de sua obra. É notável em da performance musical de qualquer cantora. seu repertório a grande quantidade de grava- Vale lembrar que Gal Costa, neste mesmo pe- ções de “pontos de santo” que remetem ao culto ríodo, também utilizava os pés descalços como dos orixás africanos. Apesar de hoje o Brasil ser recurso performático, embora essa atitude es- considerado um Estado laico, a predominância teja também relacionada ao universo under- histórica do catolicismo entre as camadas bran- ground do rock. cas e ricas da população contribuiu para que as O que há em comum entre estes três exem- religiões afro-brasileiras fossem estigmatizadas plos de Fafá de Belém, Gal Costa e Maria Be- como crenças “inferiores”, “primitivas”, “mar- thânia é que essas partes do corpo podem não ginais” e até “maléficas”. Ao mesmo tempo em ser necessariamente percebidas, na atualidade, que foram estigmatizadas, essas religiosidades como zonas periféricas, detentoras de “poderes” também tiveram – seguindo o raciocínio de e “perigos”. A crescente exploração midiática Douglas (1991) – suas capacidades mágicas re- da imagem da mulher exercendo sexualida- conhecidas, visto que “o poder mágico atribuí- des não reprodutivas e a maior abertura para do à macumba e ao candomblé é um corolário a promoção do respeito à diversidade religiosa da posição socialmente marginal de seus produ- (sobretudo a partir da Constituição Federal de tores” (Fry, 1982, p. 49). Maria Bethânia, por- 1988) faz com que seios, bocas e religiosidades tanto, desde o início de sua carreira em 1965, não cristãs deixem de ser percebidos como fa- sempre esteve ligada à imagem de “cantora ma- tores de marginalidade. Porém, para os fãs des- cumbeira”. A partir desta constatação, analiso sas cantoras é importante o reconhecimento de cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 45-63, 2012 60 | Rafael da Silva Noleto que essas artistas foram, um dia, consideradas frequência, características de “poder e perigo” “marginais” e transgressoras. Sugiro que decor- a essas partes do corpo evocadas no discurso re daí o fato de que ainda hoje essas cantoras performático dessas mulheres. Isto é, parece mantenham ativadas essas simbologias em tor- haver um encontro de “marginalidades” que no de seus corpos: como uma forma de evocar permite um reconhecimento e identificação a constituição de suas trajetórias como figuras entre o aspecto “marginal” da sexualidade dos públicas aliadas aos parâmetros da transgressão. fãs e as prováveis “marginalidades” presentes A partir da composição de um contrapon- nas trajetórias artísticas dessas intérpretes. Na to entre a presente pesquisa e as conclusões de realidade, ao identificar esse encontro (ou em- Douglas (1991), é possível inferir que a percep- patia) entre supostas marginalidades, pretendo ção e as conceituações de poder manifestadas situar esse fato como um derivado da própria pelos meus interlocutores ao longo das entre- expressão da lógica queer: apropriar-se daquilo vistas, são condizentes com a compreensão de que é considerado, socialmente, como abjeto que “se é verdade que tudo simboliza o corpo, para, a partir disso, “desenvolver uma analítica também é verdade [...] que o corpo simboli- da normalização” (Miskolci, 2009, p. 151). A za tudo.” (Ib., p. 145). As partes do corpo que aproximação com o socialmente marginal se- são, geralmente, percebidas pelos interlocuto- ria, nestes termos, o caráter queer que dá signi- res como identificadoras de “poderes” ou que ficado às performances dessas artistas aos olhos são reforçadas pelas próprias cantoras nas ca- de um público homossexual. pas de seus álbuns, nos vídeos de seus shows ou Internacionalmente, é possível exemplifi- mesmo em suas entrevistas, são interpretadas, car que cantoras como Cher, Madonna e Lady neste trabalho, como zonas periféricas do cor- GaGa – pertencentes a três gerações diferentes po porque denotam comportamentos social- – assiduamente se utilizam de aspectos “mar- mente e historicamente marginalizados. ginais” de seus corpos e suas biografias para Assim, ainda na perspectiva de Douglas produzir performances. Estas cantoras são am- (Ib. Idem), “seios”, “boca”, “cabelo”, “dedos”, plamente reconhecidas pelo público homosse- “mãos” e “pés”, podem ser interpretados tan- xual como mulheres “poderosas” pelo uso que to como extensores da expressividade vocal fazem de seus corpos, sexualidades e discursos quanto como zonas de “poder e perigo” ativa- durante o fenômeno da performance musical. das na performance dessas artistas. Tais zonas Nestes casos, assim como nos exemplos brasi- de “poder e perigo” são fragmentos do corpo leiros, há uma identificação, entre fã e cantora, percebidos, por estes homossexuais com quem pautada na não conformidade aos padrões he- mantive contato, como fatores que realçam gemônicos de comportamento, simbolizados uma condição de poder. E com esta configura- por figurinos ousados, letras de canções ho- ção sugiro que, provavelmente, a própria orien- moafetivas e pelo destaque dado ao exercício tação homossexual de meus interlocutores seja de uma sexualidade não reprodutiva. Sendo influente nesta percepção dessas zonas do cor- assim, considero que há, para os fãs gays, uma po, que considero como “periféricas”, como identificação mais imediata com relação aos fa- um dos maiores atributos de poder utilizados tores que podem ser considerados como margi- por essas cantoras. Sugiro que por terem sido nais nessas cantoras. historicamente estigmatizados por suas sexuali- É nesta perspectiva que trabalho com uma dades, os fãs homossexuais atribuem, com mais visão homossexual (e masculina) específica

cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 45-63, 2012 O que é que uma diva tem? Cantoras brasileiras, vozes, corpos e poderes vistos por entendidos | 61 sobre certas cantoras da MPB, pois é muito Nestes termos, o poder das cantoras está comum ouvir opiniões divergentes destas, so- situado no corpo, um corpo que também é bretudo emitidas por mulheres heterossexuais voz, mas que não se resume a ela. Ao longo que não compartilham desses padrões de femi- do trabalho de campo, era para o corpo que os nilidade e beleza ostentados por essas artistas. É discursos apontavam. Foram recorrentes depoi- comum encontrar opiniões em que os cabelos mentos que indicavam sinais de “poder” perce- de Gal Costa e Maria Bethânia são considera- bidos nos corpos e nos comportamentos dessas dos como “horríveis e secos”, os seios de Fafá artistas. Exemplos disso são as referências que de Belém – principalmente antes da populari- meus interlocutores faziam a gestos, olhares, zação dos implantes de silicone para aumento poses, roupas, modos de falar, formas de rir e, dos seios através de intervenção cirúrgica – vis- sobretudo, à imagem estética dos corpos osten- tos como “exagerados” e, ainda, as cores dos tada por essas intérpretes em seus shows, apari- batons escolhidos por Gal Costa como “muito ções públicas em eventos, ensaios fotográficos chamativas”. Se submetidas à apreciação de e apresentações em programas de televisão. Os seus fãs homens heterossexuais, mulheres ho- discursos revelavam uma valorização das “téc- mossexuais e mulheres heterossexuais, prova- nicas corporais” (Mauss, 1974) como atribu- velmente, essas cantoras teriam essas partes de tos de poder tanto “dentro” quanto “fora” da seus corpos reconhecidas e valorizadas (ou des- performance musical. Isso implica dizer que tal valorizadas) a partir de diferentes sistemas de entendimento demonstra a existência de uma valoração. São sistemas complexos que coinci- imbricação entre técnicas cotidianas de um fa- dem e divergem entre si, entrecruzando valores zer corporal (Ib. Idem) e técnicas extra-cotidia- morais, sexualidades e subjetividades diversas nas de um fazer performático voltado para a para produzir uma avaliação acerca de “pés música (Laboissière, 2007), possibilitando arti- descalços”, “seios avantajados”, “cabelos alvo- cular a noção de que a performance não começa roçados”, “bocas avermelhadas”, dentre outras nem se encerra no show, mas se expande para configurações corporais apresentadas por essas outras realidades em que a cantora atua. intérpretes. Em depoimento concedido por um de meus entrevistados, Pimentinha, fica clara a va- lorização dos aspectos corporais de Elis Regina What have a diva got? Brazilian female quando este evidenciou grande satisfação ao singers, voices, bodies and powers viewed discorrer sobre o show “Essa Mulher” (1979) by experts no qual, em suas palavras, abstract Within certain homosexual so- cial networks, the adjective “powerful” is of- (PIMENTINHA) - Elis deixou o cabelo cres- ten operated as a marker for the classification, cer, ficou mais feminina, botou flor no cabelo, comparison, qualification and representation investiu num lado ‘mais mulher’ pra fazer esse of female idols admired by gay men. Based on show. Ela topava essas coisas. Ela era esperta! ethnography conducted in Belém (Pará), this Se tinha que mudar pra vender mais, mudava paper aims to understand what are the notions mesmo. E eu acho ela liiinda e poderosa nesse of power articulated by gay men - with identity momento...! and gender performance recognized, by them, cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 45-63, 2012 62 | Rafael da Silva Noleto as masculine - to describe their favorite female rismático” – em seu envolvimento – represente uma singers. Showing that, in most speeches, this oposição aos valores cultivados nesses centros da vida social. No caso das cantoras abordadas neste artigo, “power” of female singers transcends strictly acredito que elas desempenharam funções, de certa musical predicates and it is revealed rooted in forma, opositoras a ideias hegemônicas de feminili- all performance of their bodies, this paper dis- dade, sexualidade e religiosidade no período históri- cusses about the “powers”, “dangers”, “centrali- co em que foram lançadas no mercado fonográfico ties” and “peripheries” of the body. brasileiro. Daí, talvez, a proximidade com a ideia de carisma e a possibilidade de enxergá-las como canto- keywords Homosexuality. Performance. ras “marginais” não porque estejam à margem, mas Female Brazilian Singers. MPB. Body. porque se opõem aos “centros”. 7. O video que contém esta fala foi por mim registrado e disponibilizado no link: http://www.youtube.com/ watch?v=BCrQ3eoqI5g Notas 8. Ver artigo “Gal Costa e o tropicalismo no femini- no: corpo, subjetividade e sexualidade no discurso performático” no qual analiso possíveis intersecções

1. Esta classificação não diz respeito à orientação sexual entre performance musical, erotismo e sexualidade. das cantoras, mas à orientação sexual da maioria de Disponível em: http://www.xcaas.org.ar/grupostra- seus fãs, de acordo com os depoimentos fornecidos bajosesiones.php?eventoGrupoTrabajoCodigoSelecci por meus interlocutores. onado=GT49 2. Utilizo esse termo para designar um conhecimento referente ao mundo da moda (ou, em inglês, ao uni- verso “fashion”) através do qual se pode reconhecer as tendências futuras, o passado e o presente da moda. Referências bibliográficas 3. O termo é usado no mesmo sentido em que Carmen Dora Guimarães (2004) o emprega em “O homos- BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julga- sexual visto por entendidos”. Relações homossociais mento. São Paulo: EDUSP; Porto Alegre: Zouk, 2007. consistem em vínculos não necessariamente sexuais BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e sub- entre sujeitos que integram uma rede de sociabilidade versão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Bra- homossexual. sileira, 2010.

4. O Parque da Residência é o antigo local onde todos CARRARA, Sérgio; SIMÕES, Júlio. Sexualidade, cultu- os políticos eleitos como governadores do Estado ra e política: a trajetória da identidade homossexual do Pará eram conduzidos a fixar residência durante masculina na antropologia brasileira. Cadernos Pagu, seus mandatos. Localizado no bairro de São Braz, n. 28, jan/jun, 2007. em Belém, atualmente, este local foi transformado DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo: ensaio sobre as noções em ponto turístico da cidade, abrigando um teatro, de poluição e tabu. Tradução de Sónia Pereira da Silva. um restaurante, uma sorveteria e um parque com Lisboa: Edições 70, 1991. algumas espécies de plantas e orquídeas expostas ao FRY, Peter. Para inglês ver. Rio de Janeiro: Zahar Editores, público. O palacete onde antigamente moravam os 1982. governadores é utilizado como sede da Secretaria de FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexuali- Estado de Cultura do Governo do Estado do Pará. dade? (Coleção Primeiros Passos, n. 26). São Paulo: 5. Cantora lançada, nacionalmente, nos anos 2000 e Abril Cultural e Editora Brasiliense, 1985. considerada como pertencente à chamada “nova ge- GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de ração” de cantoras de MPB. Janeiro: LTC, 1989. 6. Geertz (1997) aprofunda a discussão sobre os atri- ____. O saber local: novos ensaios em antropologia interpre- butos simbólicos do carisma ao defini-lo como “um tativa. Petrópolis: Vozes, 1997. sinal de envolvimento com os centros que dão vida ____. Obras e vidas: o antropólogo como autor. Tradução à sociedade” (p. 186), mesmo que o indivíduo “ca-

cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 45-63, 2012 O que é que uma diva tem? Cantoras brasileiras, vozes, corpos e poderes vistos por entendidos | 63

de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. Pará, Belém, 2010. GUIMARÃES, Carmen Dora. O homossexual visto por ____. Gal Costa e o tropicalismo no feminino: corpo, entendidos. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. subjetividade e sexualidade no discurso performático. LABOISSIÈRE, Marília. Interpretação Musical. São In: CONGRESO ARGENTINO DE ANTROPO- ­Paulo: Annablume, 2007. LOGÍA SOCIAL, X, 2011, Buenos Aires. Anais... LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 2011. uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, Disponível em: http://www.xcaas.org.ar/grupostra- 1997. bajosesiones.php?eventoGrupoTrabajoCodigoSelecci MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Oci- onado=GT49. Acesso em: 15 fev. 2012. dental. São Paulo: Abril Cultural, [1922] 1976. PASSOS, Marlon Marcos Vieira. Oyá-Bethânia: os mitos MARTIN, Emily. A mulher no corpo: uma análise cultural de um orixá nos ritos de uma estrela. Dissertação (Mes- da reprodução. Tradução de Júlio Bandeira. Rio de Ja- trado) – Programa de Pós-Graduação em Estudos neiro: Garamond, 2006. Étnicos e Africanos, Universidade Federal da Bahia, MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Vol. II, São Salvador, 2008. Paulo: EPU/EdUSP, 1974. PEIRANO, Mariza. A favor da etnografia. Série Antropo- MAYBURY-LEWIS, David. O selvagem e o inocente. logia, UnB, nº 102, 1990. Campinas: Editora Unicamp, 1990. RUBIN, Gayle. The Traffic in Women. Notes on the “Po- MISKOLCI, Richard. Teoria queer e a sociologia: o de- litical Economy” of Sex. Toward an Anthropology of safio de uma analítica da normalização. Sociologias. Women. REITER, Rayna (ed.). New York: Monthly Porto Alegre, ano 11, n. 21, jan/jun: 150-182, 2009. Review Press, 1975. NOLETO, Rafael da Silva. Meu nome é Gal: um grito SILVA, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia: feminino no Tropicalismo. Trabalho de Conclusão de trabalho de campo e textos etnográficos nas pesquisas an- Curso (Licenciatura em Música) – Centro de Ciên- tropológicas sobre religiões afro-brasileiras. São Paulo: cias Sociais e Educação, Universidade do Estado do EDUSP, 2006. TURNER, Terence S. The social skin. In: CHERFAS, J. Not Work Alone. (ed.). London: Temple Smith, 1980.

autor Rafael da Silva Noleto Mestrando / PPGA-UFPA

Recebido em 26/03/2012 Aceito para publicação em 01/10/2012

cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 45-63, 2012