DA RECEPÇÃO CRÍTICA À RECEPÇÃO CRIATIVA: *Mestrando em Letras da Universi- DUAS ABORDAGENS DA FICÇÃO NO BRASIL dade Federal de Mato Grosso do Sul, campus Três Lagoas.

Rodolfo Rorato Londero*

Seja na forma de comportamento social (visão de mundo), como de suas expressões artísticas, o cyberpunk apresenta-se como uma rica fonte de pesquisa para aqueles que pretendem compreender a cultura contemporânea, na qual o imaginário maquínico apresenta-se como uma condição sine qua non da existência humana. Adriana Amaral, Visões perigosas

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar a recepção brasileira do cyberpunk, subgênero da ficção científica norte-americana. Entretanto, além de revisar resenhas e posfácios da primeira edição brasileira de duas obras – Piratas de Dados (1990), de Bruce Sterling, e Neuromancer (1991), de –, analisaremos as obras brasileiras que dialo- gam com o gênero norte-americano. Palavras-chave: Ficção Científica – Cyberpunk – Literatura Comparada

Abstract: The objective of this article is to analyze the Brazilian reception of cyberpunk, subgenre of north-American science fiction. However, further to revise lists and postfaces of the first Brazilian edition of two cyberpunks works – Piratas de Dados (1990), by Bruce Sterling, and Neuromancer (1991), by William Gibson –, we will analyze the Brazilians works that dialogue with the north-American genre. Key words: Science Fiction – Cyberpunk – Comparative Literature

Como os críticos brasileiros lêem os produtos da cultura de massa norte-americana? Ou melhor, como os críticos brasileiros lêem o cyberpunk? Pergunta indispensável para pensarmos a respeito das relações culturais forjadas no mundo globalizado, principalmente por envolver a literatura que definiu o imaginário tecnológico contempo- râneo. Além de compreender a recepção da cultura de massa norte- americana, responder esta pergunta é esclarecer como o intelectual brasileiro porta-se diante deste imaginário tecnológico. Surgido na década de 1980, no contexto social e tecnológico norte-americano, o cyberpunk é um subgênero da ficção científica que “[...] associa tecnologias digitais, psicodelismo, tecno-marginais,

R G L, n. 4, fev. 2007. 119 1Interessante pensar como as listas ciberespaço, cyborgs e poder mediático, político e econômico dos de discussão veiculadas na Internet podem ser úteis para um “estudo das grandes conglomerados multinacionais” (LEMOS, 2002: 200). No reações concretas dos leitores”. Por Brasil, o cyberpunk aportou no início da década de 1990, com a tra- exemplo, na comunidade Ficção Ci- entífica, do website de relaciona- dução de Piratas de Dados (1990), romance escrito em 1988 por mentos Orkut, há um tópico sobre Bruce Sterling, e Neuromancer (1991), romance escrito em 1984 por cyberpunk brasileiro, onde encontra- mos “reações concretas” de diver- William Gibson, sendo a obra que estabeleceu as “regras” do gênero. sos leitores. Entretanto, não utiliza- Segundo Machado e Pageaux, um dos níveis do estudo literário remos tal material, pois estenderia demasiadamente nosso trabalho. comparativo é o “[...] propriamente da ‘recepção crítica’. Quando o estudo das reações concretas dos leitores não é possível (correspon- dência de leitores utilizável ou inquérito dirigido ao público alvo), convém reportarmo-nos às revistas, aos jornais e a todo e qualquer testemunho que dê uma ‘leitura’ da obra”1 (1981: 63). Entretanto, além de revisarmos resenhas e posfácios da primeira edição brasilei- ra das obras citadas anteriormente, também analisaremos as obras brasileiras que dialogam com o gênero norte-americano, como, por exemplo, Silicone XXI (1985), de Alfredo Sirkis, Santa Clara Poltergeist (1991), de Fausto Fawcett, e Piritas siderais (1994), de Guilherme Kujawski. Para Nitrini, “[...] o produtor é também um receptor quando começa a escrever” (2000: 171). Ou seja, podemos afirmar que existem dois tipos de recepção: a crítica, praticada pelos críticos, e a criativa, executada pelos artistas. Estas serão as duas abordagens que utilizaremos para compreender a recepção do gênero cyberpunk na literatura brasileira.

As recepções da ficção cyberpunk Começaremos analisando o posfácio da primeira edição brasi- leira de Piratas de Dados, de Bruce Sterling. Assinado por Silvio Alexandre e Fábio Fernandes, o texto contém informações biográfi- cas e bibliográficas. Primeiramente, destacamos os exemplos cine- matográficos de ficção cyberpunk dado pelos autores:

Um bom exemplo dessa nova (e dura) visão do mundo é o filme Blade Runner – O Caçador de Andróides, baseado em um livro de Philip K. Dick, visto que todos os autores cyberpunk são unânimes em situar no filme algumas inspirações visuais mais constantes para o movimento. Os filmes RoboCop e O Exterminador do Futuro poderiam ser outros bons exemplos. (ALEXANDRE; FERNANDES apud STERLING, 1990: 365)

Na verdade, é mais sensato considerar Blade Runner (1982) como “precursor imediato” (ANTUNES apud GIBSON, 2003: 6) da ficção cyberpunk, pois, como atesta a citação, o filme inspirou o movimen-

LONDERO, R. R. p. 119-134. 120 to cyberpunk. Adaptação do conto “Do androids dream of eletric 2 A paródia-homenagem deste título originou “Andróides orgânicos terão 2 sheep” (1968), de Philip K. Dick, autor aclamado pelo movimento, cabelos no peito”, de E. R. Corrêa, o filme também é um dos pontos de partida dos escritores brasileiros. conto cyberpunk da antologia Vinte anos no hiperespaço (2003), cujo A primeira obra cyberpunk brasileira, Silicone XXI, de Alfredo Sirkis, estilo lembra amenamente o de sendo um “romance policial futurista” (como divulgado no website Fawcett, principalmente devido às referências à cultura de massa e à do autor), nos remete diretamente ao filme do diretor Ridley Scott, descrição do ambiente. Similar aos cujo protagonista também é um policial, mas numa Los Angeles de escritores cyberpunk norte-america- nos, os brasileiros também destacam 2019. a obra de Philip K. Dick como A respeito do seu contato com a literatura cyberpunk, Fausto referencial. Enfim, como afirma Manfredi, “não é a toa que os Fawcett afirma que “independente do noticiário sobre William Gibson, cyberpunks incluem Philip K. Dick eu acho que comecei a pensar nisso com Philip K. Dick. Aí, enfim, na seleta lista de autores que se sal- vam da espinafração generalizada 3 tem Blade Runner” . Mais adiante, ele afirma que “tinha essa coisa que dirigem à FC tradicional” (1991: de tecnologia que começou com Philip K. Dick – aí tem Blade Runner, 22). que foi quando comecei a me interessar –, mas, na verdade, eu gosta- 3 Em entrevista concedida pessoal- va do Videodrome, do Cronenberg”4. Apesar de não ser citado pelos mente ao autor. críticos brasileiros, o filme de Cronenberg também é fundamental 4 Em entrevista concedida pessoal- para a formação da ficção cyberpunk, pois “even more central to the mente ao autor. Esta fascinação de Fawcett por Cronenberg é notada cyberpunk ethos, however, are the films of David Cronenberg, whose tanto na capa do livro Santa Clara Videodrome (1982) in particular is a central cyberpunk document in Poltergeist, que remete ao cartaz de Videodrome (como confirmado pelo its emphasis on bodily metamorphosis, media overload and destructive escritor em entrevista), quanto na sex”5 (CLUTE; NICHOLLS, 1995: 288). capa do seu primeiro álbum musi- cal, Fausto Fawcett e os robôs Enfim, podemos afirmar que Sirkis e Fawcett não dialogaram efêmeros (1987), onde encontramos diretamente com o movimento cyberpunk, mas com os precursores um recorte do cartaz de Scanners (1981), outro filme de Cronenberg. do movimento, principalmente os precursores cinematográficos. Na Na verdade, esta fascinação ilustra verdade, Pereira nota como a cultura de massa norte-americana foi a relação do escritor com um gêne- ro-irmão do cyberpunk: o responsável pelo renascimento da ficção científica brasileira na dé- splatterpunk (AMARAL, 2005). cada de 1980, período onde identificamos as primeiras obras 5 Tradução livre: “Ainda mais cen- cyberpunks brasileira: tral para o ethos cyberpunk, contu- do, são os filmes de David Cronenberg, cujo Videodrome A marcante presença da cultura de massa norte-americana no (1982) em particular é um docu- Brasil responde em grande parte pelo boom da ficção científica mento cyberpunk central em sua neste momento, com sua enxurrada de séries de televisão, ênfase nas metaformoses corporais, histórias em quadrinhos e principalmente superproduções na sobrecarga midiática e no sexo cinematográficas, os blockbusters. Superproduções destrutivo.” hollywoodianas como Contatos Imediatos de Terceiro Grau (Close encounters of the third kind, Steven Spielberg, 1977); Jornada nas Estrelas (Star Treck: The Motion Picture, Robert Wise, 1979); ET, o Extraterrestre (ET, Steven Spielberg, 1982); Blade Runner (Ridley Scott, 1982) e a primeira trilogia Guerra nas Estrelas (Star Wars, George Lucas, 1977, 1980 e 1983) (2005: 46).

Neste período também surgiram filmes de ficção científica que, ao contrário dos citados por Pereira (obviamente, com exceção de

R G L, n. 4, fev. 2007. 121 6 Na verdade, divergências também Blade Runner), se aproximam da temática cyberpunk: Rollerball – ocorrem entre escritores de mesma nacionalidade, pois, para usarmos os Os Gladiadores do Futuro (Rollerball, Norman Jewison, 1975), Fuga termos de Bhabha (2003), a nação é de Nova Iorque (Escape from New York, John Carpenter, 1982), Tron um espaço pedagógico onde convi- vem culturas performáticas. Porém, – Uma Odisséia Eletrônica (Tron, Steven Lisberger, 1982), além dos tais divergências não são evidentes referidos anteriormente. como aquelas notadas entre escrito- res de nacionalidades diferentes. Apesar de pertenceram à cultura de massa norte-americana, tais filmes formam aquilo que Ortiz (2000) denominou “memória inter- nacional-popular”. Para ele, “afirmar a existência de uma memória internacional-popular é reconhecer que no interior da sociedade de consumo são forjadas referências culturais mundializadas” (ORTIZ, 2000: 126). Entretanto, tais “referências culturais mundializadas” são assimiladas diferentemente, como nota o próprio Ortiz ao analisar o faroeste italiano. Assim, o fato de escritores de nacionalidades dife- rentes (norte-americana e brasileira, no nosso caso) indicarem os mesmos precursores, mas produzirem obras peculiares, serve como exemplo da seguinte noção que norteia os estudos literários compa- rativos: “A idéia de influência em si deve ser relacionada diretamen- te com a situação geral do país receptor” (MACHADO; PAGEAUX, 1981: 83). Ou seja, apesar de, por exemplo, William Gibson e Fausto Fawcett indicarem o filme Blade Runner como inspiração, suas res- postas são diferentes, pois vivem situações culturais, sociais e eco- nômicas diferentes6. Mas retornemos ao texto de Alexandre e Fernandes para desta- car outro trecho, no qual comenta-se a respeito do segundo romance de Sterling, The Artificial Kid (1980):

Imaginem um mundo chamado Reverie (que, em inglês, muito sugestivamente, significa devaneio), onde as pessoas alcançam tranqüilamente a idade de duzentos anos e os jovens, para não se sentirem esmagados pelo peso enorme da experiência das gerações mais antigas, se entregam de corpo e alma à arte do combate, que mistura o código de honra samurai à técnica cibernética e ao fetichismo yuppie; não uma laranja mecânica, mas eletrônica. Esse livro de Sterling poderia ser chamado de “Guia Básico para o Leitor Cyberpunk”. Nele encontram-se praticamente todos os tópicos que depois seriam explorados por ele próprio e pelos integrantes do Movimento. (ALEXANDRE; FERNANDES apud STERLING, 1990: 369; grifo nosso)

Não por acaso, Alexandre e Fernandes apresentam o romance de Sterling como uma possível releitura de Laranja Mecânica (1962), de Anthony Burgess. No prefácio da terceira edição brasileira da obra de Burgess, o próprio Fernandes explica esta relação entre Laranja Mecânica e o movimento cyberpunk:

LONDERO, R. R. p. 119-134. 122 7 Em entrevista concedida pessoal- mente ao autor. Se o mundo globalizado e tecnológico – mas ainda pobre – que Burgess nos deixa entrever nas páginas de seu livro mais famoso 8 Tradução livre: “[...] é uma histó- lembra o Sprawl e a Ponte, os cenários mais famosos da literatura ria cyberpunk precoce sobre um cyberpunk de William Gibson, não é por acaso. Os escritores anti-herói num futuro dominado pela cyberpunks devem muito de suas temáticas a Laranja Mecânica mídia.” – a comparação entre a alta tecnologia das classes mais favorecidas e a dura e suja realidade dos prédios onde a classe operária se amontoa; a opressão do Estado; o uso de drogas, tanto para diversão e fuga da realidade quanto para lavagem cerebral (2004: xiv).

Aqui confirmamos novamente que alguns escritores brasileiros não dialogaram diretamente com o movimento cyberpunk, mas com os precursores do movimento, pois Fawcett, por exemplo, indica Laranja Mecânica como “o livro da minha vida”7. Na verdade, na música “Chinesa Videomaker”, do álbum Fausto Fawcett e os robôs efêmeros (1987), ele e Laufer homenagearam a obra de Burgess ao reinterpretar a “Técnica Ludovico”, exatamente nos seguintes ver- sos:

Meia-noite e quarenta ela coloca o rapaz no centro de um telão de 360º com os olhos esbugalhados por grampos especiais Meia-noite e quarenta e cinco ela liga o telão e os olhos do rapaz começam a ser massacrados por incessantes imagens de telejornais Meia-noite e cinqüenta, ela começa a chupar o rapaz Ela chupa um rapaz massacrado por telejornais Ela chupa, ela chupa

É interessante notar nesta reinterpretarão a mudança de postura diante dos meios de comunicação: enquanto na década de 1960 Burgess via os meios de comunicação como fonte de coerção, na década de 1980 Fawcett e Laufer os vêem como fonte excessiva de informação, além do forte apelo sedutor. Enfim, outra característica do universo de The Artificial Kid, não mencionada por Alexandre e Fernandes, é a presença marcante da tecnologia midiática. Como nota Gunn, o romance de Sterling “[...] is an early cyberpunk tale about an antihero in a media-dominated future”8 (1988: 117). Neste ponto, The Artificial Kid aproxima-se de Santa Clara Poltergeist, onde também identificamos uma paisagem de mídia (TAVARES, 1992), mas isto se deve, como ressaltamos an- teriormente, aos precursores em comum de Sterling e Fawcett. Também identificamos no texto incluso na primeira edição bra- sileira de Piratas de Dados os prenúncios de uma idéia que Fernandes

R G L, n. 4, fev. 2007. 123 exploraria 14 anos depois em sua dissertação de mestrado: a ficção cyberpunk como atualização do conceito mcluhaniano de aldeia glo- bal. De fato, o termo “aldeia global” é citado duas vezes no texto. Para Fernandes,

Gibson exerce uma função profética bastante semelhante à de McLuhan ao criar o conceito de aldeia global em Understanding Media. E, entre os escritores de ficção científica, é ele quem parece ter compreendido melhor o que McLuhan quis dizer, criando em Neuromancer um mundo praticamente todo interconectado, onde as minorias têm vez e voz (a um ponto tal que coloca talvez até mesmo em discussão a definição de minorias) e as casas dessa aldeia são regidas acima de tudo pelo paradigma da variedade. Ninguém é igual a ninguém, ou por outra: em termos de posse e utilização de tecnologias, uns são mais iguais que outros (2004: 24; grifos do autor).

Como vimos anteriormente, Neuromancer é o alicerce da ficção cyberpunk. O conceito de aldeia global também transparece em sua narrativa através da movimentação rápida e constante do protagonis- ta Case pelas cidades do mundo: de Tóquio para o BAMA, do BAMA para Istambul, de Istambul para a colônia espacial Freeside. Esta movimentação não se desenvolve nas ficções cyberpunks brasileiras: as narrativas ocorrem, freqüentemente, apenas em cidades brasilei- ras, como as megalópoles São Paulo e . Assim, a fic- ção cyberpunk brasileira atualiza, na verdade, a reinterpretarão do conceito mcluhaniano feita por Lemos: “Com a contração do planeta pelos novos media digitais, transformamo-nos não numa única al- deia global, mas em várias e idiossincráticas aldeias globais, devido principalmente à implosão do mundo ocidental pelo efeito das tecnologias micro-eletrônicas” (2002: 76; grifo do autor). Ou seja, cada megalópole é uma aldeia global, pois nela convivem várias cul- turas nacionais. Esta noção evidencia-se na descrição de Copacabana feita por Fawcett no conto “Copacabana Hong Kong”, da coletânea Básico instinto (1992):

Toda quinta-feira chegam na praia do Lido embarcações escoltadas por surfistas militares. É o boat-people internacional. O primeiro-mundo resolveu expulsar, jogar nos oceanos centenas de imigrantes delinqüentes: espanhóis-sarracenos, iugoslavos- croatas, iranianos-persas, iraquianos-assírios, fenícios-libaneses, turcos-otomanos, chineses-mulçumanos, asiáticos em geral. Proliferação de submundos. (1992: 36).

Enfim, para o Coletivo NTC, “como o planeta tornou-se emi-

LONDERO, R. R. p. 119-134. 124 nentemente urbano, hoje são as cidades que se organizam como na- ções. No interior delas algumas etnias aglutinam-se de acordo com a origem de seus membros” (1996: 191-192). Após discutir alguns pontos do texto de Alexandre e Fernandes, analisaremos agora duas resenhas brasileiras do romance de Sterling: “Cyberpunk – integração de contradições” (1992), de Roberto Cau- so, e “Dupla cyberpunk” (1995), de Finísia Fideli. Primeiramente, destacamos o seguinte comentário de Causo a respeito do movimen- to cyberpunk: “Mas o movimento já está extinto e sua influência exa- ta ainda não foi medida, embora pareça ter tido o mesmo destino do movimento anterior, a New Wave dos anos sessenta: foi assimilado pela ficção científica como mais um conjunto de possibilidades, en- tre tantos outros” (1992: 20; grifo nosso). Este comentário nos ajuda a compreender a produção nacional, pois o cyberpunk é explorado pelos escritores brasileiros como um “conjunto de possibilidades”, ou seja, sem compromisso com as “regras” do gênero. Isto se deve em grande parte, como veremos adiante, à chegada tardia do gênero no país, já extinto e com temas desgastados. Em Piratas de Dados, a descrição de países do “terceiro mun- do” é um ponto destacado pelos críticos brasileiros, porém Causo é o único a formular a seguinte conclusão:

Este é um livro importante. Não só por ter vencido o John W. Campbell Memorial Award de 1989 e ter sido finalista do Hugo e Nebula, mas também por excursionar pela fantástica terra, sempre esquecida pela ficção científica, das nações marginais e afastadas do idílio tecnicista da FC. E por mostrar a nós, escritores e leitores do Brasil, país do Terceiro Mundo, que nossa ficção científica pode alcançar resultados tão interessantes se explorarmos nossa própria realidade na interface com as nações desenvolvidas. (CAUSO, 1992: 22-23)

Na verdade, no caso específico da ficção cyberpunk, o Brasil parece ser o espaço ideal para caracterizar as desigualdades sociais, econômicas e tecnológicas descritas pelo gênero. De fato, como no- tam Alexandre e Fernandes no texto que analisamos anteriormente, “há dezenas de citações ao Brasil nos livros cyberpunks e Bruce Sterling, o principal articulador e ideólogo do movimento, já afirmou que adora assistir à tevê brasileira por meio de sua antena parabóli- ca” (apud STERLING, 1990: 366). Num artigo sobre Santa Clara Poltergeist, Lemos (1993) afirma que

R G L, n. 4, fev. 2007. 125 9 Em entrevista concedida pessoal- o Brasil encarna bem as transfigurações por que passa a nossa mente ao autor. sociedade contemporânea e a fórmula “informática mais candomblé” é um bom retrato do país. A diversidade e a pluralidade cultural, a crise política e econômica, o convívio entre bolsões de riqueza e de pobreza, de desenvolvimento tecnológico e de carência básica, só para citar alguns exemplos, nos coloca diante dessa “transfiguração”.

Por “transfiguração”, Lemos refere-se aos acontecimentos que originaram a sociedade pós-moderna. Assim, por ser a “expressão literária paradigmática” (KELLNER, 2001: 381) da pós-modernidade, a ficção cyberpunk é mais bem representada por espaços que deno- tem este paradigma, como o Brasil. Porém, antes de interpretar o país como um “laboratório da pós-modernidade” (MAFFESOLI apud LEMOS, 1993), devemos compreender as implicações desta inter- pretação. A respeito da cultura brasileira na década de 1980, Bueno afirma o seguinte:

De quebra, e conseqüência de nossa fragilidade cultural, ainda tentaram desmontar a cena introduzindo o figurino ‘pós- moderno’, ou seja: o Brasil, que nunca foi de fato moderno, faria seus o impasse e o esgotamento dos países industriais avançados, fechando assim mais um ciclo de colonização nos trópicos subdesenvolvidos (1990: 8; grifo nosso).

Não é isto que acontece quando interpretamos o Brasil como um “laboratório da pós-modernidade”? De fato, o próprio Fawcett afirma ter “[...] implicância com o termo ‘pós-moderno’. Eu acho que a gente não saiu do moderno: você só tem crise, crise e crise do moderno, o tempo todo”9. Talvez, no caso do Brasil, o que ocorra seja realmente uma crise da modernidade, uma hipomodernidade, pois as instituições modernas do país são deficientes e, portanto, nunca se realizam plenamente para que haja um esgotamento, uma pós- modernidade. Até no caso dos países industriais avançados, o termo “pós-modernidade” parece inválido, pois o que ocorre é uma intensi- ficação da modernidade, uma “hipermodernidade” (LIPOVETSKY, 2004). Na verdade, como afirma Jameson, “[...] o pós-modernismo deve, claramente, ser entendido em um sentido mais restrito, e de fato mais exclusivamente estilístico, do que o sentido mais histórico e sociológico em que, de maneira geral, tem sido usado” (1994: 216). Será como estilo que nos referiremos ao pós-modernismo mais adi- ante. As afirmações anteriores não desconsideram o Brasil como es- paço ideal para caracterizar a ficção cyberpunk, apenas confirmam o

LONDERO, R. R. p. 119-134. 126 que dissemos anteriormente, que “as ‘influências’, as repercussões 10 Tradução livre: “Os anos noventa não vão pertencer ao cyberpunk. efetuam-se essencialmente segundo a medida das necessidades do Nós vamos estar aí trabalhando, mas contexto receptor” (KAISER, 1989: 266-267). Ou seja, se o cyberpunk não somos o movimento, já não so- mos nem sequer nós mesmos. Os norte-americano é a “expressão literária paradigmática” daquilo que anos noventa vão pertencer à gera- se denominou pós-modernidade, isto não significa que a versão bra- ção que está chegando, aqueles que cresceram nos anos oitenta.” sileira também o é. Como afirma Causo (s/d), a ficção cyberpunk brasileira “[...] vai oferecer uma resposta própria de um país que vive 11 Entretanto, devemos afirmar que a própria produção norte-americana, situação diferenciada de desenvolvimento cultural e científico, onde a partir da década de 1990, realiza a modernização ainda esbarra em fatores que remetem aos modelos uma releitura crítica da produção original: o pós-cyberpunk. Segundo de nossa colonização”. Amaral (2005), as rupturas do pós- Agora vejamos a resenha de Fideli. Nela, a autora afirma que cyberpunk são: personagens engajados, ênfase sobre a Piratas de Dados “[...] já apresenta uma crítica ao movimento biotecnologia e presença de uma Cyberpunk, como sinal de amadurecimento de seu autor” (FIDELI, tecnocracia. Exemplos de ficção pós-cyberpunk são os filmes Códi- 1995: 55). Escrito em 1988, quando o movimento encontrava-se pra- go 46 (2004), do diretor Michael ticamente extinto, o romance de Sterling revisa criticamente a temática Winterbottom, e Aeon Flux (2005), da diretora Karyn Kusama. cyberpunk. Por surgirem neste período, final da década de 1980, as obras brasileiras também revisam o movimento, mas ao invés de cri- 12 As linhas gerais deste projeto fo- ram formuladas inicialmente num ticarem seriamente, elas criticam parodiando. Num texto sobre o fanzine comandado por Sterling. movimento no México, Ramírez (2005) cita como epígrafe a seguin- Segundo Alexandre e Fernandes, “nos meados da década de 80, te afirmação de Sterling: “Los noventa no van a pertenecer al Sterling lançou um jornalzinho cha- cyberpunk. Nosotros vamos a estar ahí trabajando, pero no somos el mado Cheap Truth, sob o pseudôni- mo de Vicent Omniaveritas, e usou movimiento, ya no somos ni siquiera nosotros. Los noventa van a esse espaço para descarregar todo pertenecer a la generación que está llegando, aquellos que crecieron seu descontentamento com a FC que se produzia na época e que, para ele, 10 en los ochenta” . Com esta epígrafe, além de reverenciar o principal parecia incapaz de evoluir com as doutrinador do gênero, o autor mexicano apropria-se da afirmação cada vez maiores e mais rápidas mudanças na tecnologia e na socie- para produzir uma interpretação própria, qual seja: o cyberpunk na dade” (apud STERLING, 1990: década de 1990 é uma releitura do cyberpunk original, norte-ameri- 366). cano, realizada pelas demais culturas nacionais11. Diferentemente do texto incluso na primeira edição brasileira de Piratas de Dados, o posfácio de Neuromancer, assinado por Sil- vio Alexandre, apresenta nenhuma informação bibliográfica e pou- cos dados biográficos de William Gibson. Na verdade, o autor dedi- ca-se mais a comentar questões gerais da ficção científica do que propriamente o romance. Entretanto, tal manobra endossa o projeto literário de Gibson e do movimento em geral12: “[...] Gibson pensava antes em criticar e combater deliberadamente aspectos da Ficção Ci- entífica que considerava reacionários, fora de moda e entediantes” (ALEXANDRE apud GIBSON, 1991: 252). Se Gibson e os demais integrantes do movimento (Bruce Sterling, Lewis Shiner, John Shirley e Rudy Rucker) criticavam aspectos da ficção científica, é porque

R G L, n. 4, fev. 2007. 127 13 Expressão inglesa que significa eles dialogavam com a tradição literária do gênero, inclusive e prin- “domínio do fã”; freqüentemente denomina a comunidade de aficio- cipalmente com a tradição norte-americana. Para Sterling (1988), os nados pela ficção científica. escritores cyberpunks foram provavelmente a primeira geração que cresceu no “seio da tradição literária da ficção científica”. Tal situa- ção não se verifica entre os escritores cyberpunks brasileiros – exceto talvez entre aqueles que pertençam ao fandom13, como Bráulio Tavares e Fábio Fernandes –, pois, apesar de conhecerem (e, mesmo assim, minimamente) a tradição literária da ficção científica estrangeira, eles desconhecem a “tradição” brasileira. Segundo Causo, “o que se la- menta em toda história da ficção científica brasileira é a ausência de uma evolução formal e temática que nos permitisse ter uma ficção científica madura, capaz de contribuir para as letras nacionais como um todo” (1993: 14). É justamente a falta de diálogo com a “tradi- ção” brasileira que resulta nesta “ausência de uma evolução formal e temática” e, conseqüentemente, produz obras dependentes. De acor- do com Candido,

Um estágio fundamental na superação da dependência é a capacidade de produzir obras de primeira ordem, influenciada, não por modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores. Isto significaria o estabelecimento do que se poderia chamar um pouco mecanicamente de causalidade interna, que torna inclusive mais fecundos os empréstimos tomados às outras culturas (1989: 153).

Discutido alguns pontos do texto de Alexandre, vejamos agora três resenhas brasileiras do romance de Gibson: “De como William Gibson reinventou a FC” (1991), de Lúcio Manfredi, e “Cyberpunk – integração de contradições” (1992) e “Dupla cyberpunk” (1995), de Roberto Causo. Primeiramente, apesar dessa comparação ser percebível no próprio nome do movimento, Manfredi é o único a proferi-la: para ele, Neuromancer é

[...] um vórtice de acontecimentos ininterruptos, narrados numa linguagem feroz que não é de modo algum despropositado comparar com as jaculatórias punks da década de 70, onde o niilismo aparente esconde muito mal as preocupações éticas, políticas e filosóficas subjacentes. Neuromancer é o London Calling da FC. Ou será London Calling o Neuromancer da música pop? (MANFREDI, 1991: 22)

London Calling é o grande sucesso da banda punk inglesa The Clash. Entretanto, o sufixo punk do termo cyberpunk também se re- fere ao “[...] lado da contracultura, do protesto, do não-controle, do

LONDERO, R. R. p. 119-134. 128 underground, da atitude dos hackers, da experiência empírica das 14 Segundo o autor de Neuromancer, “o problema com perguntas sobre as tribos urbanas ligadas à tecnologia” (AMARAL, 2005: 93), enfim, a ‘influências’ é que elas são usual- uma cultura de resistência. mente feitas para encorajar você a falar sobre os seus escritos como se 14 15 Como Gibson , Fawcett também utiliza estilos musicais, o rap você tivesse crescido em um mundo e o funk, para narrar Santa Clara Poltergeist, por exemplo. Talvez circunscrito por livros. Eu fui influ- enciado por Lou Reed, por exemplo, cyberfunk seja um termo adequado para denominar as obras brasilei- tanto quanto fui influenciado por ras, pois, como o punk nos países anglófonos, o funk também repre- qualquer escritor de ‘ficção’” (apud AMARAL, 2005: 112). Lou Reed senta, no Brasil, uma cultura resistente à cultura oficial ou dominante foi vocalista e guitarrista da banda (YÚDICE, 2004). Porém, a denominação cyberfunk, por ser mais punk norte-americana Velvet Underground. adequada aos romances e contos de Fawcett, pode excluir os demais romances cyberpunks brasileiros16. 15 No romance-diário Copacabana lua cheia, já no segundo parágrafo, Agora vejamos as resenhas de Causo. Em “Cyberpunk – Fawcett afirma que “não adianta, integração de contradições”, o autor afirma que “o resultado artístico meu pensamento é nervoso rap de groove” (2001: 8), talvez como jus- de Neuromancer é forte, inovador, visionário e rico em implicações. tificativa do seu estilo peculiar. Também como fusão de uma estética pós-moderna com a imagética 16 Causo (s/d) propõe o termo da FC, o resultado é impressionante — o que reforça a crença de que tupinipunk, também usado pela teó- a junção da ficção literária à ficção científica pode dar um bom casa- rica norte-americana Elizabeth Ginway (2005). Entretanto, a deno- 17 mento” (CAUSO, 1992: 26; grifo nosso). Entretanto, tal fusão ocorre minação é infeliz, pois retira do ter- apenas parcialmente, pois mo original justamente o prefixo (cyber) que se refere ao universo tecnológico contemporâneo, tema de Neuromancer é tradicional quando dá atenção ao argumento, à convergência dos romances personagem e à narrativa (não é metaficção), mas é pós-moderno cyberpunks brasileiros. A denomina- no modo como combina e implode os gêneros, misturando ficção ção também mantém o sufixo do ter- científica com história de detetive, roman noir com aventura high- mo original (punk) que se refere a tech e western (a principal personagem, Case, é descrita como um movimento musical e cultural de caubói de computador), trama de negócios, mito e fantasia pouca relevância no cenário brasi- (KELLNER, 2001: 388). leiro. Por fim, ao referir-se aos tupiniquins, Causo retorna (e refor- ça) à ideologia romântico-naciona- Em “Dupla cyberpunk”, Causo afirma que a literatura pós-mo- lista que se verifica no projeto lite- rário de apenas um escritor derna é “[...] conhecida por não enfatizar as características mais va- cyberpunk brasileiro: Ivan Carlos lorizadas pela literatura tradicional, como profundidade psicológica, Regina, mais notadamente em “O caipora caipira”, conto da coletânea leveza de estilo e elegância narrativa” (1995: 54). Certamente, Gibson, O fruto maduro da civilização em Neuromancer, não valoriza a “leveza de estilo”, porém há preo- (1993). Como afirma Lucas, “[...] toda vez que a literatura brasileira cupações com a “profundidade psicológica” das personagens, princi- envereda pelo caminho da auto-afir- palmente nos questionamentos existenciais de Case, e com a “ele- mação, procura nos resíduos indianistas do nosso nativismo a fon- gância narrativa”, principalmente no modo como os capítulos são te mais próxima” (1976: 23). Enfim, arranjados. Assim, Neuromancer não é totalmente pós-modernista, como cyberfunk, a denominação tupinipunk pode excluir os demais enquanto algumas obras brasileiras são. No prefácio de Piritas side- romances cyberpunks brasileiros. rais, por exemplo, Kujawski afirma que o “esteticismo exacerbado 17 Este casamento entre ficção lite- da conduta narrativa” de sua obra acaba “[...] supervalorizando o es- rária e ficção científica já era espe- tilo em função do mote da história e transformando a linguagem em rado por Fausto Cunha há 20 anos atrás. Em “Uma ficção chamada ci- protagonista” (1994: 13). Isto também é válido para Santa Clara ência”, o autor afirma que o “retor- no ao literário” é o único meio de retirar a ficção científica (segue)... R G L, n. 4, fev. 2007. 129 ...(continuação)“[...]do Poltergeist, onde a linguagem se sobressai entre personagens super- marginalismo cultural a que se lan- çou com a noção ingênua da ciência ficiais e enredo simples. Enfim, esta valorização da linguagem em como forma e como filosofia primei- detrimento da narrativa torna as obras de Fawcett e Kujawski verda- ra” (CUNHA, 1972: 28). deiramente pós-modernistas, pois apenas a valorização da linguagem não as diferencia das obras modernistas. Ainda em “Dupla cyberpunk”, Causo conclui a resenha da se- guinte maneira:

Depois de Neuromancer, o que era um movimento revolucionário que pretendia renovar a ficção científica foi incorporado por ela e hoje são muitas as obras dentro da linha Cyberpunk – que alcançou tamanha difusão que hoje muitos se referem ao movimento como uma tendência de comportamento, e não como um modo de se fazer FC. Filmes e histórias em quadrinhos, e até mesmo RPGs (Shadowrun, Cyberpunk 2020, GURPS Cyberpunk...) apareceram para explorar o novo filão. Mas ainda é preciso voltar a Neuromancer para saber como tudo começou (1995: 54).

Além de retomar o que havia dito na resenha de Piratas de Da- dos – a assimilação do cyberpunk pela ficção científica –, Causo tam- bém aponta para aquilo que ocasionou a extinção do gênero: a gran- de difusão. Tal condição revela outra faceta da recepção do gênero na literatura brasileira. A respeito da ficção cyberpunk estrangeira, Amaral afirma o seguinte:

No início da década de 90 começaram os anúncios da morte do cyberpunk enquanto um movimento literário. As temáticas centrais utilizadas pelo grupo original vão sendo apropriadas e repetidas à exaustão por diversos outros autores, tornando-se clichês do subgênero e invadindo jogos de RPG, letras de música, videoclipes, jogos de computador, programas de TV e muitos outros meios (2005: 104).

Assim, podemos afirmar que a ficção cyberpunk estrangeira, a partir da década de 1990, encontra-se automatizada. Segundo Reis,

[...] deve observar-se que a comunicação artística se encontra automizada, quando as mensagens enunciadas são facilmente decodificadas, uma vez que os mecanismos de enunciação que as geram foram assimilados (e mesmo, em certos casos, trivializados) pela comunidade em que essas mensagens circulam: perfeitamente automizada é quase sempre a produção e recepção de certa poesia ultra-romântica, do romance policial ou do romance cor-de-rosa e (noutros domínios e linguagens) de muitas telenovelas ou de filmes como os westerns de qualidade inferior. Por força da habituação, os seus receptores conhecem perfeitamente os mecanismos de funcionamento de tais mensagens, afetadas por um índice elevado de redundância.

LONDERO, R. R. p. 119-134. 130 Porque não inovam nem surpreendem, elas tendem a cultivar o estereótipo [...] (2001: 157; grifos do autor).

Entretanto, não podemos utilizar tais dados como critérios valorativos sem criar fatalmente uma estética cibernética, onde o belo ocorre quando há mais informação do que redundância. Devemos encarar a automatização como um fato literário. Assim, quando Reis afirma que “a automização pode, contudo, ser superada, quando um romancista, um poeta ou um cineasta subvertem a rotina, recorrendo a signos e códigos inovadores ou derrogando os que se encontram rotineiramente estabelecidos [...]” (2001: 158; grifos do autor), na verdade, devemos entender que a automatização pode ser reaproveitada, e não superada. De fato, interpretar a produção artísti- ca automatizada como repertório e não como obstáculo a ser supera- do é compreender a arte pós-modernista, que utiliza os gêneros automatizados – quase sempre, gêneros da cultura de massa (roman- ce policial, de aventuras, de ficção científica, etc) – na composição da obra. Porém, retornando ao debate da ficção cyberpunk, podemos afir- mar que, devido ao desgaste dos temas originais, ou seja, a automatização da produção estrangeira, os romances brasileiros, quase todos produzidos no início da década de 1990, apresentam, além de temas próprios condizentes à realidade do país, paródias dos temas originais. Segundo Kellner, “[...] o processo de criação/dissemina- ção/assimilação do cyberpunk foi tão rápido que a paródia e o pastiche já se tornaram táticas costumeiras de criação narrativa” (2001: 417). Assim, a produção norte-americana, automatizada, é reaproveitada pela produção brasileira como repertório de criação artística.

Considerações finais Ao longo do artigo, indicamos aspectos da ficção cyberpunk valorizados pela crítica brasileira e mostramos como são desenvolvi- dos pelo artista brasileiro. Para enriquecer o trabalho, poderíamos comentar detalhadamente as resenhas e críticas das obras brasileiras – como, por exemplo, “Uma FC sem clichês” (1992), resenha de Santa Clara Poltergeist por Bráulio Tavares, e “Tupinipunk: cyberpunk brasileiro” (s/d), crítica à ficção cyberpunk brasileira por Roberto Causo –, mas isto extrapolaria nossos objetivos, pois se trataria de um estudo de recepção da recepção, ou melhor, de recepção de se-

R G L, n. 4, fev. 2007. 131 gundo grau. A partir do prefácio da nova edição brasileira de Neuromancer (2003) e das listas de discussão veiculadas na Internet, também poderíamos analisar a recepção atual do gênero, mas isto estenderia demasiadamente nosso trabalho. Mas como o artista brasileiro porta-se diante do imaginário tecnológico proposto pela ficção cyberpunk? Formulada no início do artigo, esta pergunta comporta duas respostas, análogas a dois tipos de intertextualidade abordados por Sant’Anna (1991): estilização e paródia. Em alguns casos, a produção cyberpunk brasileira desvia toleravelmente da produção norte-americana, como no uso da lin- guagem e na descrição de um mundo dominado pela mídia. Em ou- tros casos, há um desvio total, como nas paródias dos temas originais da ficção cyberpunk. Enfim, a recepção do gênero na literatura brasi- leira parece revelar-se através de divergências temáticas e conver- gências estéticas e ideológicas.

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