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LEITURAS DE MUNDO A PARTIR DAS MEDIAÇÕES NA RECEPÇÃO DAS BRASILEIRAS

SONIA MARIA DAVID MARRAFA (UERJ), KATIA DE SOUZA E ALMEIDA BIZZO (PROPED/UERJ).

Resumo Este trabalho tem por objetivo realizar uma reflexão sobre a relação existente entre as telenovelas brasileiras e seus receptores crianças e professores do Município do Rio de Janeiro, que foram nossos interlocutores em nossas pesquisas. Enfocar esse gênero televisivo dentro do contexto escolar e promover o entrelaçamento das vozes de professoras e alunos visa desvelar a leitura de mundo realizada por eles, enquanto telespectadores, levando–se em conta que, segundo as pesquisas, o público feminino e o infantil elevam índice de audiência das telenovelas. Como aporte teórico–metodológico este estudo trará as contribuições de Gatti (2005) com o grupo focal, Bakhtin (2003) sobre alteridade, discurso dialógico e Benjamin (1994) com sua concepção de memória e narrativa, autores que nos ajudarão a aprofundar a nossa reflexão sobre o lugar do pesquisador. Além desses, estarão presentes neste trabalho Roberta Manuela Andrade (2003), Esther Hamburger (1998) e Maria Imacolatta Lopes (2002), que fundamentarão a abordagem da . Sob as orientações da técnica do grupo focal, formamos duas frentes de pesquisa: a primeira com professores de Educação Infantil de diferentes escolas que nas entrevistas discorreram sobre a docência nas telenovelas brasileiras, recorrendo às suas memórias e trazendo impressões destas narrativas ficcionais a partir das tramas assistidas. A segunda frente de pesquisa foi com crianças de 5 a 7 anos, que falaram sobre personagens infantis e cenas de telenovelas. Alguns obstáculos surgiram no decorrer da pesquisa que, no lugar de serem considerados entraves, foram aproveitados para enriquecer o trabalho em questão, levando–se em conta que a telenovela ainda carrega uma forte dose de preconceito. Ambas as frentes de investigação trarão informações importantes sobre o que pensam nossos interlocutores quando o assunto é telenovela e a importância dessas mediações nas leituras que fazem do mundo, tanto dentro como fora da escola.

Palavras-chave: telenovela, crianças, professoras.

Este trabalho tem por objetivo realizar uma reflexão sobre a relação existente entre as telenovelas brasileiras e seus receptores crianças e professoras do Município do Rio de Janeiro, que foram nossos interlocutores em nossas pesquisas. Enfocar esse gênero televisivo dentro do contexto escolar e promover o entrelaçamento das vozes de professoras e alunos visa desvelar a leitura de mundo realizada por eles, enquanto telespectadores, levando-se em conta que, segundo as pesquisas, o público feminino e o infantil representam a maioria do índice de audiência das telenovelas[1].

Por outro lado, esse programa de massa que atinge um grande público, de todas as classes sociais e econômicas do Brasil, carrega um preconceito que leva à ideia de que o telespectador de novela se aliena das questões sociais e de que não busca bons programas televisivos para assistir. Para entender o porquê desta imagem sobre telenovela e seus telespectadores é necessário entender a origem destas tramas ficcionais e entendê-las dentro do contexto sociopolítico do nosso país. A partir de um olhar mais aprofundado sobre o tema, torna-se mais viável descortinar o véu do preconceito que assola nossa cultura e entender os motivos, apesar de todas as críticas feitas ao gênero narrativo em questão, pois é notório que esse gênero televisivo apresenta um alto índice de audiência, principalmente formado por mulheres e crianças, sendo uma grande influência no cotidiano do povo brasileiro. Afinal, falamos de um gênero, que em um único capítulo é capaz de entreter telespectadores que equivalem a 200 Maracanãs lotados (FERNANDES, 1997).

A telenovela em nosso cotidiano

A sociedade, desde o seu surgimento, é formada por individualidades e por saberes e atitudes coletivas. Para que a relação entre os saberes se proliferasse, possibilitando a formação individual e coletiva de cada grupo social e da sociedade como um todo, foi necessário, e ainda é, que se compartilhassem as narrativas, fruto dos discursos singulares ou de um grupo de indivíduos. Dessa forma obtém-se a cultura de cada grupo ou região, através da constituição de uma identidade coletiva a partir das narrativas disseminadas. As telenovelas ajudam a atender a essa demanda social e, para entendê-las melhor, é necessário compreender as suas raízes.

Na busca das origens da telenovela, chegamos aos contos de “As mil e uma noites” que narram uma série de histórias orais, de origem oriental, tendo suas versões mais antigas no século X. Até os dias de hoje tais contos são divulgados em diferentes culturas, por diferentes narrativas (orais, escritas...) e em diferentes línguas.

O segredo de Sheherazade, protagonista dos contos de “As mil e uma noites”, estava em interromper a trama no clímax, deixando o sultão na expectativa de saber o que aconteceria em seguida. Nas telenovelas, essa estratégia para prender a atenção do telespectador é chamada de “gancho”. O gancho causa suspense e instrumentaliza o receptor com dados para que ele possa supor o desfecho da situação, pensar em alternativas e, como consequência, ficar ansioso para se certificar sobre o que realmente acontecerá com a trama ou até se surpreender com alguma ação inesperada na história.

Outra estratégia utilizada por Sheherazade para prender o interesse do sultão diz respeito ao ritual criado para narrativa de suas histórias. O mesmo espaço, horário e duração da história causa fidelidade na relação narrador e ouvinte. Apesar do suspense gerado, há a certeza de que no dia seguinte, no mesmo horário e local, a trama terá continuidade. Esse comprometimento cria um elo de confiança e cumplicidade entre as partes. Com a relação de fidelidade criada, a trama narrada ganha novos valores e a ficção alcança um espaço na imaginação do ouvinte.

Além deste molde, a telenovela também é pensada dentro de contextos reais, o que contribui com a confusão entre real e ficcional na mente do receptor, já que este recorre à sua realidade para buscar o entendimento da narrativa, ou seja, o suspense diário da história leva o espectador a buscar respostas e soluções para a trama, colocando-o no papel de co-autor da narrativa e podendo, este, diariamente, se certificar se suas sugestões estarão de acordo com os acontecimentos que se sucedem. Como diz Costa (2000), falamos de uma narrativa que ordena, revela e media a relação entre a consciência humana e a realidade. Há um pacto implícito de confiança que leva o receptor a pensar na veracidade dos acontecimentos, apesar de, racionalmente, saber que se trata de uma história ficcional.

Para melhor dialogar com os telespectadores, a Rede Globo, principal emissora brasileira no gênero de telenovelas, criou um sistema de feedback com os telespectadores, que definiu tais programas como “obras abertas” e que possibilitou criar mecanismos para captar e expressar padrões legítimos, ou não, de comportamento humano (HAMBURGER, 1998).

As telenovelas, por sua vez, também passaram a ser alvo de discussão em outros ambientes, produziram revistas de “fofocas”, especulando futuros acontecimentos em tais programas, especulando sobre o caráter dos personagens e, assim, se tornando assunto nacional. Além de toda a produção da mídia em cima do tema, grupos de discussão foram formados para deixar estes folhetins eletrônicos ainda mais sintonizados com seus telespectadores.

Segundo Ismael Fernandes (1997),

hoje se reconhece a telenovela como uma instituição nacional. [...] A telenovela tornou-se uma arte respeitável em suas particularidades. Uma arte popular, brasileira, com vida própria, desenraizada dos conceitos filosóficos e acadêmicos com que tentam interpretá-la. Não há erudição em seus efeitos. Tampouco existe a pretensão, dos homens que fazem a telenovela brasileira, em transpor a barreira da arte popular para se embrenhar no restrito e fechado círculo da intelectualidade (p.21).

A definição de Fernandes aponta o fato de haver mais de 40 milhões de brasileiros, no mesmo horário, assistindo à mesma cena, apesar de se situarem em diferentes locais, dia após dia.

A telenovela narra a ação enquanto espetáculo a que se assiste (literalmente ou não) da plateia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar. O narrador pós-moderno atua tal qual um repórter ou um espectador de uma ação alheia que os empolga, emociona, seduz etc. Esta narrativa característica da telenovela é que Santiago (1989) denomina de narrativa pós-moderna, pois se utiliza de uma escrita ficcional, formada por diálogos que se desenrolam via um meio de comunicação de massa que é a televisão.

Segundo Santiago (1989), este narrador contemporâneo transmite sua sabedoria em decorrência da observação da experiência alheia, onde o real e o autêntico se consistem nas construções de linguagem e este narrador pós-moderno tem consciência disso. A narrativa telenovelesca é entrecortada, informativa, produzida para um veículo de massa que é dependente da tecnologia audiovisual.

Kehl (1986) destaca que a telenovela, apesar de ser uma representante do gênero de ficção, traz no seu desenrolar uma constante, que é a experiência de vida de seus telespectadores, já que através de suas narrativas ela traz as situações tal qual o telespectador vivencia diariamente. Com base na perspectiva da presença da telenovela no cotidiano das professoras e das crianças e das narrativas construídas na relação existente entre o que se assiste e o que, de fato, se vive, resolvemos formar grupos de discussão para ouvir nossos interlocutores.

O grupo focal ajudando a construir narrativas

A técnica do grupo focal vem fazendo parte das pesquisas que priorizam a fala dos seus interlocutores e por isso este trabalho recorre a esta técnica para ouvir crianças e professoras, criando um espaço de reflexão que leve a uma análise crítica da telenovela. Gatti (2005: 7) aponta que “no âmbito das abordagens qualitativas em pesquisa social, a técnica do grupo focal vem sendo cada vez mais utilizada” e acrescenta que esta é “uma técnica de levantamento de dados muito rica para capturar formas de linguagem, expressões e tipos de comentários de determinado segmento.” (GATTI, 2005: 12).

Assim formamos alguns grupos focais. As professoras e os alunos que fizeram parte deste estudo foram constituídas por professoras da educação infantil e alunos de 5 a 7 anos, de escolas públicas e privadas, de diferentes bairros e classes socioeconômicas da cidade do Rio de Janeiro. Partindo do pressuposto de que a investigação narrativa permite a utilização de diversos instrumentos para a produção dos dados, tal estratégia foi escolhida porque esse tipo de discussão permite que se possa conhecer e problematizar as “representações, percepções, crenças, hábitos, valores, restrições, preconceitos, linguagens e simbologias prevalentes no trato de uma dada questão por pessoas que partilham alguns traços em comum” (GATTI, 2005: 11).

Por sua vez, também existe uma diferença de posições que facilita o distanciamento necessário para nos vermos como pesquisadoras e ver os sujeitos dos grupos focais, como os pesquisados. Descobrir novos olhares, novos sentidos que só são possíveis de serem vistos à distância, através dos nossos valores no encontro com os valores dos pesquisados: esse é o conceito de exotopia de Bakhtin, falado por Amorim (2003), presente na relação dialógica que buscamos estabelecer com nossos interlocutores.

Nesta perspectiva, possibilitamos espaços de dialogia para que, através da discussão, todos pudessem reconstruir suas leituras de mundo, já que, em outros momentos, pouco dialogam sobre o que elaboram a partir destes programas.

Com tudo isso, a atuação nos grupos focais traz à tona a responsabilidade ética de relacionar os estudos realizados com a especificidade de cada encontro, de cada diálogo. Assim, somos responsáveis pela teoria e pela estética deste trabalho e nosso ato, por ser consciente, já é social e de comunicação (VOLOSHINOV & BAKHTIN, 1976). Vamos então ao compartilhar de algumas reflexões surgidas nesses encontros.

A narrativa das professoras sobre a telenovela

A narrativa das professoras traz a oportunidade de ouvir suas vozes, suas experiências, permitindo aflorar de sua memória as reminiscências que têm sobre a telenovela e sobre a personagem docente que nela é personificada, sendo possível, então constatar como significam e ressignificam esta personificação. A vivência de narrar é em si libertadora, pois é uma forma de troca de experiência coletiva. Benjamin (1996) destaca em seus ensaios a importância dessa maneira de se trocar experiências e aponta que todos os narradores recorrerem às experiências transmitidas de pessoa a pessoa. Da mesma forma, a telenovela capta facilmente a atenção do seu público, pois trazer o cotidiano para a tela permite que ocorra o entrelaçamento da ficção com a realidade.

É fácil verificar que a telenovela está presente no cotidiano das professoras ouvindo suas vozes. Quando falam sobre o hábito de assistir à telenovela[2] muitas professoras, a princípio, negam o fato, mas a seguir começam a narrar e:

Grupo: Todas admitem que já haviam assistido telenovelas.

Profª10: Ah, todo mundo vê.

Profª 11: Eu vejo desde pequena.

Profª 3: Eu vi em preto e branco. Olha, eu vi “O Direito de Nascer”, entendeu?

Profª 5: Quando eu era mais nova eu assistia.

Profª 8: Engraçado, hoje eu assisto mais novelas.

Quanto melhor forem as experiências do narrador, melhor será a sua narrativa, pois, afinal, o ato de narrar e de ouvir histórias é uma característica do ser humano que precisa ser preservada. Para Benjamin (1996: 201), “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência de seus ouvintes”.

Quando perguntadas sobre personagens docentes que se recordavam, no início, as professoras tiveram dificuldades em citar o nome de algumas personagens, segundo elas devido ao pouco destaque da personagem e pelo número pequeno de personagens docentes nas telenovelas, mas aos poucos foram lembrando, umas complementando a resposta da outra, outras vezes substituindo o nome da personagem pelo nome do ator /atriz. Isto fica claro nas narrativas que se seguem:

Profª 2: Não estou lembrando de ninguém, não.

Profª 3: Professor? Não me lembro.

Profª 1: É difícil, não é?

Profª 8: Estou lembrando da professorinha do Sassá Mutema; a Maitê Proença (nome da atriz).

Profª 5: Era Clotilde, gente? Acho que era Clotilde, sim.

Profª 6: O Nuno Leal Maia (nome do ator) foi um professor. Na novela tinha muita criança.

Profª 10: Ah! A professora Helena do Carrossel.

Coro: Carrossel, ah! (com uma boa reminiscência).

Profª 4: Tem a Cléo Pires (nome da atriz), ela era professora.

Profª 8: Tinha a Gabriela Duarte (nome da atriz), que tentava representar uma diretora de uma escola pública.

A telenovela, por sua audiência, cria um mundo onde as pessoas participam da vida alheia e alimentam o imaginário social sobre esta ou aquela profissão. Ao discutir a relação entre telenovela e as professoras de educação infantil dentro de um contexto sociocultural, observamos que a história da telenovela tem um caminho entrelaçado com a história da profissão docente, já que ambas são povoadas por um público destacadamente feminino. A narrativa trazida pela telenovela possibilita a composição do cotidiano das mulheres, porque se faz presente através do enredo, das personagens, do figurino, da estética e da moda.

A personagem docente que vem fazendo parte do enredo da telenovela demonstra o reflexo do posicionamento que a sociedade tem com relação à sua importância dentro da trama e a respeito disso as professoras assinalam que:

Profª 1: Mas toda vez que eu vejo um professor na telenovela é sempre sem destaque.

Profª 2: E o nome vem sempre no diminutivo: professorinha... Profª 3: Ah... Professor é sempre coadjuvante. Nunca é protagonista.

Profª 4: Ah, eu acho que o professor nunca ganhou um papel de destaque e foram em poucas as novelas que tinha esse personagem.

Profª 10: Ou seja, ser professor ou outra coisa, dá no mesmo.

Vejamos o que as professoras dizem a respeito de como as personagens docentes são estereotipadas:

Profª 5: Vocês já repararam as roupas das professoras? Sempre aquela coisa humilde, aquele casaquinho...

Profª 6: E os óculos? Professor tem que usar óculos. Será que não observaram que o perfil do professor hoje em dia mudou?

Profª 7: Tem que parecer mais velha. É a imagem que se tem.

Profª 8: A figura do professor algumas vezes é muito caricata, estereotipada, outras vezes é o certinho, o bonzinho, servindo como pano de fundo.

Algumas professoras trazem exemplos sobre a moda que foi influenciada pela telenovela:

Profª 13: Lembram da Babalu com aquela faixa na cabeça?

Profª 12: Dancin Days! As meias lorex, sandália e calça jeans!

Profª 15: O esmalte azul da Rakely.

Profª 10: A novela tem essa coisa de fazer moda, seja na fala, nas roupas ou nos adereços.

Profª 9: Lembra das alças do sutiã da Lara, que estava sempre exposto?

Profª 16: Na novela é o tempo inteiro falando o que a gente tem que vestir, comer, falar. O que é chique e o que não é.

A personagem professor/a que vem fazendo parte das narrativas telenovelescas demonstra o reflexo do posicionamento que a sociedade tem com relação à representação da docência. No caso das crianças, as polêmicas levantadas foram outras. Vamos a elas.

A criança e a telenovela: construindo narrativas

Ao perguntar às crianças sobre o que assistem na televisão, num total de 26 sujeitos que assistiam novelas, apenas três relataram esse gosto espontaneamente. Os outros 23 participantes da pesquisa só disseram assistir quando a pergunta foi mais direta: “Você assiste às novelas?”. Antes dessa pergunta, eles listavam vários desenhos animados ou outros programas infantis e até mesmo taxavam os canais que assistiam, quando estes eram de programas destinados apenas à faixa etária a qual pertencem.

Quando respondiam gostar de telenovelas, a conversa tornava-se mais sucinta, com poucas palavras e um ar de estranhamento, deixando claro que eles não se sentiam à vontade para relatar tais hábitos. O poder de tais programas, atrelados à sua veiculação em rede nacional, traz à tona outras polêmicas: o que deve e o que não deve ser mostrado nas tramas e quem devem ser os telespectadores. Tem como controlar e decidir quem é o receptor?

O entretenimento televisivo não é voltado apenas para os adultos. As crianças ficaram maravilhadas com o novo meio de comunicação, desde a sua origem, e se debruçavam diante do aparelho para assistir o que era transmitido. Dessa forma, ainda na década de 50, já existiam questões sobre a necessidade de criar regras para assistir à televisão, principalmente quando se tratava dos telespectadores mirins.

Seduzidas pelos programas televisivos, as crianças já buscavam burlar os horários de dormir, dentro das regras familiares, pretendendo continuar acordadas com seus familiares, assistindo à televisão (PEREIRA, 2006). Hoje, mesmo com uma abertura maior em relação aos critérios utilizados pelas famílias, do que deve ou não ser assistido na televisão, quando indagadas sobre o que assistem, as crianças ficam incomodadas e preferem citar programas destinados ao público infantil, como ilustra o diálogo abaixo:

Ad: O que você vê na televisão?

Cr: Pra que você quer saber?

Ad: Porque eu tô fazendo uma pesquisa pra saber o que vocês assistem na tv.

Cr: Pra quê?

Ad: Porque eu faço uma pesquisa em outro lugar para descobrir o que as crianças gostam de assistir na tv.

Cr: Ah! Tá bom. Você quer canal ou nome do programa? Ad: Você é quem sabe.

Cr: Disney Chanel, O point do Mickey, Zack Cody (soletrou este nome) e O Menino Maluquinho.

Ad: E você gosta de ver novela?

Cr: (Balançou a cabeça dizendo que sim, com ar de quem ficou sem graça).

Ad: Qual que você gosta?

Cr: .

Ad: Ué? Mas na hora da Cabocla você tá na escola.

Cr: É, mas tipo assim, nos feriados.

Ad: Que outras novelas você vê?

Cr: e Desejo Proibido.

Ad: Essa acabou, né?

Cr: É. Não. Desejo Proibido não. Cabocla também não. Anota também Nick... (Falou mais uma série de programas infantis).[3]

No encontro com os grupos focais, nos quais todos os telespectadores infantis admitiam assistir às telenovelas, alguns diálogos foram destacados para trazer à tona algumas reflexões sobre o que esses receptores elaboram a partir do que assistem e discutem sobre as telenovelas.

Temas sobre o bem e o mal apareceram com frequência, explicitando formas de compreender e de julgar as atitudes morais e éticas presentes em tais programas, como mostra o diálogo a seguir:

Ad.: E elas são legais? São do bem e do mal?

Cr1: A Donatela não é.

Cr2: Essa aqui é do mal.

Cr1: Não é nada, ela é do bem.

Cr2: Ela chorava por causa da mãe dela.

[...]

Ad.: E A Flora? Ela é legal na novela?

(Alguns disseram que sim e outros disseram que não).

Ad.: É ou não é? Por que não? Cr3: Ela matou aquele cara. O médico.

Cr4: E botou a culpa na Donatela.

Cr5: Eu gosto dela. Ela é bacana.

Ad.: A Flora é bacana? O L. disse outra coisa dela!

Cr6: Não é nada. Ela é do mal.

Cr5: Ela tem poder?

Cr6: Ela pegou a arma e matou.

Cr5: Matou?!!![4]

Em outro momento, ainda na discussão sobre os personagens da telenovela “”, as crianças narraram sobre comportamentos de diferentes gerações:

Ad: (separando as cartas da Camila, da Maria do Céu e da Mariana) Como é que vocês sabem que ela é criança?

Cr2: Porque é pouquinho pequena.

Ad: Vocês me disseram que a Camila é criança, a Mariana é adolescente e a Maria do Céu é adulta. Como é que vocês sabem que ela é criança, que ela é adolescente e que ela é adulta?

Cr1: Porque ela é pequena, ela é média e ela é grande.

(Ficam pensando e repetindo pequena, média e grande).

Ad: E a Lara?

(A discussão continua entre eles).

Cr5: O adolescente vai crescendo, vai aprendendo mais bobagem, mais bagunça.

Ad: E criança não aprendeu nada disso, ainda. Criança não faz bobagem nem bagunça?

Cr5: Faz. Mas adulto faz mais, briga mais.

Cr2: Um dia, meu pai bateu... (silêncio)

Ad: Adulto briga mais que criança? Cr5: Adolescente.

Ad: Quem briga mais, aqui? Adolescente, adulto ou criança?

Cr5: Adolescente.

Ad: Adolescente briga mais?

Cr5: É.

Ad: Ele disse que adolescente faz muita besteira, muita bagunça, né? Faz mais besteira que criança e mais besteira que adulto, não foi isso? Quem concorda com ele? Quem acha também isso?

Cr3: Eu.

Ad: Criança faz besteira?

Cr5: Ah, faz um pouquinho, não é?

Ad: Mas só um pouquinho, M.?

Cr2: Adulto faz mais. Sabe por quê? Por causa da idade.

Ad: Como assim, por causa da idade? O adulto que tem muita idade faz muita bagunça?

Cr2: Faz.

Cr5: Adolescente faz bobeira.

Outros temas foram abordados durante os encontros, permitindo maiores reflexões sobre o que era transmitido nestes programas e muito poderia ser relatado neste trabalho, mas por hora ficamos com esses exemplos para mostrar a importância de discutir sobre o que se assiste nas telenovelas com as crianças. Se é certo ou errado não vem ao caso, mas não se pode negar que elas assistem, portanto precisamos dialogar e fazer emergir as vozes até então abafadas destes telespectadores.

Conclusão

A técnica do grupo focal, segundo Bernadete Gatti, ofereceu condições para que sustentássemos este trabalho através de um diálogo rico entre nossos interlocutores. Foi assim que os inúmeros diálogos que surgiram durante os encontros com os grupos levaram às reflexões relevantes como, por exemplo, o que consideram certo ou errado, valores morais, vida familiar, modismo, o que é real ou ficcional etc. A telenovela pode influenciar o pensamento infantil e do adulto, mas não tem o poder de descartar todas as experiências, reflexões e análise de cada telespectador. Martín-Barbero (2008) diz que o contexto, as leituras de mundo, os diálogos e as experiências reais de cada um mediam essa recepção.

Além da contribuição que tivemos para a nossa pesquisa, ficou claro que o espaço de discussão proporcionou também novas possibilidades de nossos interlocutores recriarem suas próprias realidades, a partir das novas leituras de mundo, geradas através do que assistem em relação constante entre o que vivem e a telenovela. É a ficção alimentando a realidade e a realidade alimentando a ficção e nós, pesquisadoras, buscando dialogar com essas relações tão presentes em nossas vidas.

Referências bibliográficas

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MARTÍN-BARBERO, Jesús. IV Seminário Internacional Obitel – Mercados globais, histórias nacionais. In: Transcrição, tradução e notas de PEREIRA, Rita Marisa Ribes. Imagem no exterior: telenovela, migração e mutação em diálogo com Martín-Barbero. Jornal eletrônico Educação & Imagem. Ano I, n.9, nov-dez, Rio de Janeiro: Topdesk, 2008.

PEREIRA, Rita Marisa Ribes. O que é infantil nos programas infantis? In: Debate: televisão, gêneros e linguagens. Programa Salto para o futuro. Rio de Janeiro: Secretaria de Educação à distância & TVEscola. Boletim 10, junho de 2006.

SANTIAGO, Silviano. O narrador pós moderno. In: Nas malhas das letras. São Paulo: Companhia das letras, 1989.

VOLOSHINOV, V. N. & BAKHTIN, M. M. Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética sociológica). Tradução de Cristóvão Tezza do texto original: Discourse in life and discourse in art (concerning sociological poetics). In: ______. Freudianism. A Marxist critique. New York Academic Press, 1976. (Trad. do russo de I. R. Titunik).

Site visitado: http://comercial.redeglobo.com.br/informacoes_comerciais_manual_ basico_de_midia/manual_basico_publico.php, no dia 11 de março de

2008.

[1] Informações retiradas da página http://comercial.redeglobo.com.br/informacoes_comerciais_manual_basico_de_mid ia/manual_basico_publico.php, no dia 11 de março de 2008.

[2] As professoras quando se referem à telenovela a nomeiam como novela.

[3] “Ad” significa “adulto” e “Cr” significa “criança”.

[4] Diálogo com um dos grupos focais a partir de cartas de personagens da novela “A Favorita”, transmitida, na época da pesquisa, pela Rede Globo, às 21h.