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SILA, PRISIONEIRA DO AMOR: A TURCA NA SOCIEDADE BRASILEIRA

Flávia Andrea Pasqualin1

Resumo: Este resumo se propõe a pensar no sucesso das novelas turcas exibidas no Brasil, dada a importância das na sociedade brasileira, ainda que exista um certo preconceito acadêmico sobre elas. Contudo, tem-se como foco principal a análise do papel da personagem protagonista de Sila: prisioneira do amor, em relação aos aspectos culturais e religiosos daquele país, uma vez que se considera a telenovela como promotora de realidades imaginadas que contribuem para a construção do outro. Para tal investigação, optou-se pelo método etnográfico; audiovisual, virtual e convencional realizados por meio de análises das cenas da novela, como também pelo acompanhamento de sua repercussão na rede digital e na sociedade. Assim, espera-se que a compreensão de tais aspectos possa contribuir para conhecermos melhor tanto o país, como também a vida das mulheres que lá habitam, corroborando, dessa forma, na compreensão dos relacionamentos amorosos entre brasileiras (receptoras dessa telenovela) com homens turcos.

Palavras-chave: telenovela; Turquia; gênero; etnografia; relacionamento intercultural.

Esta comunicação faz parte das reflexões elaboradas com base na tese de doutorado “O (des)encanto do casamento intercultural: brasileiras casadas com muçulmanos turcos” que vem sendo desenvolvida desde 2013. Pois, uma brincadeira que sempre aparecia em campo, quando se anunciava o tema da pesquisa era a pergunta, seguida de risos: “você está procurando um Said2?” Intrigada com a repetição da pergunta, decidi me debruçar também sobre o universo das novelas que circulam na televisão brasileira e trazem aos seus telespectadores imagens e histórias sobre a região do Médio Oriente e do Magreb3 ajudando a construir um imaginário social sobre essas culturas que carregam, na grande maioria, o Islã como pano de fundo. Lopes (2003) aponta a presença maciça da televisão nas casas brasileiras e também sua intensa penetração na sociedade brasileira, o que contribui para alimentar um repertório comum por meio do qual as pessoas de diferentes classes sociais,

1 Doutoranda do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Bolsista FAPESP. 2 Said foi o personagem galã da novela , exibida em 2001, pela Rede Globo e escrita por Gloria Perez. Said, interpretado por , era o marido árabe-muçulmano, rico, apaixonado e que cobria a esposa com presentes caros. 3 Os países que compõem o Oriente Médio são: Arábia Saudita, Bahrein, Chipre, Egito, Emirados Árabes, Iêmen , Israel, Irã, Iraque, Jordânia, Kuwait, Líbano, Estado da Palestina, Omã, Qatar, Síria e Turquia. Os países que compõem o Magreb são: Marrocos, Saara Ocidental, Argélia, Tunísia, Mauritânia e Líbia. Grande parte deles têm o Islã como religião praticada pela maioria da população.

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gerações, sexo, raça e religiões se posicionam, sendo a telenovela o produto de maior popularidade e lucratividade da televisão brasileira. De acordo com a autora, a novela constitui-se em veículo privilegiado do imaginário nacional, que tanto expressa dramas privados em termos públicos, como dramas públicos em termos privados. Segundo Fadul (2000), a telenovela foi introduzida na sociedade brasileira, em 1951, primeiramente sendo exibida ao vivo, duas ou três vezes na semana e possuindo um número reduzido de capítulos. A telenovela diária, como conhecemos hoje, só se iniciou em 1963 e desde então, nunca parou. A autora nos informa que, desde a década de 1970, o grande sucesso de público das telenovelas fez com que surgisse os primeiros estudos e pesquisas voltados para a análise do possível papel da telenovela nas mudanças sociais. Em se tratando de novelas com grande audiência, em especial as que abordam a cultura de alguns países do Oriente Médio e do Magreb, temos “O Clone”, novela nacional, ambientada parcialmente no Marrocos, que registrou o ponto mais alto de audiência na TV Globo em uma telenovela e foi exportada para 91 países, conquistando recorde de audiência no Kosovo (Ferreira, 2015). A autora cita Valdigem (2005), o qual diz que em Portugal a novela também obteve sucesso de audiência e ajudou a descontruir estereótipos negativos de muçulmanos portugueses e acrescenta ela, que, fato igual ocorreu no Brasil. Pois, o enredo da novela trazia alegremente alguns costumes marroquinos e aspectos da religião que agradaram o gosto do público, como o marido Said (já mencionado anteriormente) que além de representar um galã, cobria sua esposa Jade (personagem interpretada por ) de joias e provia o sustento da casa. No entanto, Jade não o queria para marido porque era apaixonada por um brasileiro, mas a família não aceitava.

Imagem 1: Said (Disponível em https://www.flogao.com.br/o_clone/137242634)

É preciso dizer que, ainda hoje, algumas mulheres, nas redes sociais, chamam de Jade as demais mulheres que estão se relacionando com homens da região do Oriente

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Médio. As primeiras afirmam que as demais pensam que irão viver “num cenário de novela” – referindo-se as belas roupas, paisagens e homem apaixonado e provedor. As vestimentas e as maquiagens utilizadas por Jade permanecem inspirando algumas muçulmanas brasileiras. De acordo com Ferreira (2015), a personagem possuía um modo ímpar de usar o lenço, que deixava à mostra os brincos, algo que não é usual entre as muçulmanas, as quais procuram usar joias por baixo dos lenços, contudo, a autora ainda relata que este modelo passou a ser visto com maior frequência nas comunidades islâmicas de São Paulo, principalmente entre as mulheres mais jovens e solteiras.

Imagem 2: Jade (Disponível em: http://dicastruquesmaquiagem.blogspot.com.br/2011/01/maquiagem-da-jade-da- novela-o-clone.html)

Tempos depois, em 2012, é veiculada a novela “”, a qual também foi transmitida em horário nobre4 na TV Globo e contou com autoria de (mesma autora de “O Clone”). “Salve Jorge” teve parte de sua trama ambientada na Turquia, em especial explorando as regiões de Istambul e Capadócia. A novela discorreu sobre o tráfico de mulheres brasileiras para a Turquia, embora, na realidade o país não apareça na rota de destino dessas mulheres e sim países como Espanha, Itália, Holanda, França, Alemanha, Estados Unidos e Japão (Matos, 2015). No entanto, a ficção trouxe no seu enredo, a história de Bianca (interpretada por Cléo Pires), brasileira que em viagem a Turquia se apaixona por Zyah (interpretado por ), um guia turístico da Capadócia. Zyah é viúvo e cuida sozinho de seu filho. É um homem orgulhoso de suas tradições. Bianca é uma mulher independente e moderna. A moça volta a Turquia para viver sua paixão e além da dificuldade de conciliar visões de mundo tão diferentes, ela enfrenta a família do turco, que não aprova o romance. Há também a rival Ayla (interpretada por Tânia Kalill) que pertence a cultura de Zyah e portanto, conhece e compreende as tradições do local e é a

4 Horário que compreende o período do jantar, no qual há maior audiência devido ao fato de que, grande parte da população, nesse período, já retornaram de seus trabalhos.

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preferida pela família. Depois de viver a paixão com Bianca e esta dizer que não se adapta aquela vida tradicional, Zyah se casa com Ayla. Bianca se arrepende e tenta reatar com Zyah. Mas, Zyah termina a novela ao lado de Ayla, celebrando a gravidez da esposa, e Bianca volta para o Brasil (Memória Globo, s.d).

Imagem 3: Bianca e Zyah Disponível em: http://wp.clicrbs.com.br/noveleiros/2012/11/19/salve-jorge-bianca-vai-pra-cama- com-zyah-e-abandona-stenio/?topo=52,1,1,,186,e186

A história da personagem Bianca foi inspirada na trajetória da bailarina carioca Maria Clara Süssekind, a qual participou na novela fazendo o papel de uma cigana que ensinava dança do ventre para Bianca. Diz Maria Clara; “Vim pela dança e fiquei por um grande amor... Aqui eles valorizam princípios que já se perderam” (Lobo, 2012). Assim como Maria Clara e Bianca, realidade e ficção tendem a se misturar nesse novelo que é a vida. E, nessas linhas tênues que vão se entrelaçando e construindo realidades imaginadas, surgem relatos como: “Quando cheguei em Istambul, uma grande surpresa. Achei a cidade linda, fiquei encantada com as pessoas, com a cultura e arquitetura. A Turquia é um país muçulmano e encontrei um país super europeizado, moderno e cosmopolita” (Ortiz, 2012).Esse depoimento foi dado por uma das pessoas que integraram a equipe de consultores da autora na novela “Salve Jorge”. O título da reportagem é “Temos uma percepção errada do Islã”. Como pode ser evidenciado no próprio depoimento, a consultora, relembrando sua primeira estadia no país, diz ter ficado surpresa ao se deparar com um local islâmico e moderno, como se isso não fosse possível. De acordo com Said (1990) a televisão, os filmes, a mídia em geral, oferece informações cada vez mais padronizados e acrescento eu, estereotipadas, no que diz respeito ao Oriente, que acabam por intensificar a lógica imaginativa sobre esse lugar “misterioso”, chamado Oriente. No entanto, é preciso tomar cuidado com ideias generalizantes como chamar a Turquia de um país “super europeizado”, pois cidades

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como Istambul, Ancara e Izmir não representam a realidade das demais cidades daquele país, em especial, no tocante ao universo feminino. Seria como dizer que São Paulo representa a realidade brasileira. Impossível. El Hajjami (2008) acrescenta que a questão da igualdade entre os sexos, questão muito presente no ocidente, coloca países de população muçulmana em questão quanto as relações sociais entre os sexos, e inclui-se a Turquia aqui, principalmente na esfera privada. Para a autora, as condições de inferioridade que estão confinadas boa parte das mulheres nas sociedades muçulmanas são oriundas principalmente da hegemonia de uma mentalidade historicamente patriarcal que faz mau uso das leituras corânicas para legitimar as situações de dominação, de violência e de exclusão em relação às mulheres. As novelas turcas exibidas pela Rede Bandeirantes, no Brasil, apresentam um pouco do universo feminino vivido naquele país. Com milhões de telespectadores em todo o mundo, inclusive em países como a Arábia Saudita, as personagens femininas que se mostram empoderadas tornam-se fonte de inspiração para as demais (Nawa, 2017). Segundo a autora, as novelas refletem a realidade tanto quanto ajudam a moldá- la, contudo faz críticas no sentido de que, embora algumas histórias busquem encorajar os direitos das mulheres, elas, frequentemente, reforçam, de forma silenciosa o status quo da mulher controlada pelo homem, pois, a identidade dessas mulheres estão sempre construídas em função de um homem, como por exemplo; a mulher que vai trabalhar fora de casa porque o marido a apoia. Abu-Lughod (2003) diz que no Egito, assim como em outros contextos pós- coloniais, formas culturais como o melodrama televisivo, exibido pelas indústrias nacionais de televisão, são consideradas instrumentos eficazes de desenvolvimento social, consolidação nacional e “modernização”, já que contribuem para moldar, como se deseja, o comportamento das pessoas. Contudo, as novelas não cumprem apenas a função de “regular” comportamentos. As novelas turcas, em especial, despertaram os olhares femininos brasileiros para outras paisagens e retomaram hábitos esquecidos. Essas novelas já foram descartadas pelos canais mais prestigiados da América Latina porque os executivos dessas empresas não achavam que uma história turca poderia conquistar o exigente público latino-americano, até que um diretor, Patricio Hernández, colocou no ar 'Las mil e una noches' no Chile e o sucesso foi instantâneo. A trama de Onur e Sherazade abriu as portas para outras histórias turcas, que acabaram se tornando uma verdadeira febre no continente americano (Blastingnews, 2016). No Brasil, em setembro

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de 2015, “As mil e uma noites” também foi a primeira novela turca a ser veiculada em rede nacional e conquistou milhares de fãs.

Imagem 4: Onur e Sherazade Disponível em: http://www.worldpurchases.com.br/p-4576029- Box%20Novelas%20Turcas%20Sila%20+%20Fatmagul%20+%20Mil%20e%20Uma%20Noites%20Co mpletas%20e%20Dubladas

Onur (interpretado por Halit Ergenç) e Sherazade (interpretada por Bergüzar Korel) fizeram o par romântico da trama que foi inspirada no livro “As mil e uma noites”. Sherazade era arquiteta – em uma grande construtora em que Onur Aksal era um dos donos, viúva e mãe de um garotinho de 5 anos. Ela havia se casado com um homem de família tradicional, mas perdeu o marido em um acidente de carro. A família de seu ex-marido foi contra o casamento e, por isso, não recebia qualquer tipo de assistência quando seu filho Kaan teve leucemia e precisou de dinheiro para pagar uma cirurgia muita cara. Desesperada para salvar o filho, Sherazade resolve pedir dinheiro emprestado para seu patrão, Onur Aksal, o qual oferece o dinheiro em troca de uma noite com ela. Como o sultão Chariar, após uma traição (seu pai morre na cama de uma outra mulher, que não sua mãe), Onur diz não acreditar mais nas mulheres e as queria apenas por prazer, mas ele acaba por se apaixonar por Sherazade após a fatídica noite e faz de tudo para poder conquista-la. Depois de muito sofrimento, Onur e Sherazade se casam. Nas redes sociais, na ocasião da novela, as telespectadoras postavam: “Não se encontra mais ‘homens’ tipo esse Onur”, “Onur Aksal é o homem que toda mulher gostaria de ter, amoroso, cuidadoso”, “Quero um HOMEM é desse”. Depois de “As mil e uma noites”, cujo título em turco foi “Binbir Gece” (Noites Árabes) foi a vez de “Fatmagül: a força do amor”, em turco Fatmagül'ün Suçu Ne? (Que culpa tem Fatmagül?), considerada a novela turca de maior sucesso em todos os países árabes, Oriente Médio e na própria Turquia (Lima, 2016).

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Imagem 5: Fatmagül Disponível em: http://www.resumodanovela.net.br/band/fatmagul/

A novela contou a história de Fatmagül (interpretada por Beren Saat), a qual era noiva de Mustafá e acabou sendo atacada por quatro homens e estuprada. O noivo a deixou, sua casa foi incendiada e ela ainda precisava se casar com um dos violentadores para que a sua reputação não fosse manchada. Diferentemente das demais protagonistas de outras tramas, seu objetivo não era viver um grande amor e sim reconstruir sua vida. De acordo com Lima (2016), a história é inspirada no livro homônimo do autor Vedat Türkali, publicado nos anos 70 e foi escrito para denunciar o machismo da sociedade turca5, que por lei, um estuprador que se casasse com sua vítima ficava impune desse delito. Foi a partir do debate gerado pelo livro, que a lei começou a ser repensada. Assim, com as novelas turcas mantendo o ibope da Rede Bandeirantes em alta, não demorou para emissora divulgar a próxima novela que se chamou “Sila – prisioneira do amor”.

Imagem 6: Sila e Boran Disponível em: http://filestore72.info/download.php?id=5e2a7302

A novela conta a história de Sila (interpretada por Cansu Dere) uma jovem que quando pequena foi vendida pelo pai a uma rica família de Istambul para que ele pudesse pagar o tratamento de saúde do irmão. Em Istambul, ela foi criada como uma jovem ocidental: entende-se aqui por acesso fácil aos estudos, namorado e vestuário.

5 Essa prática também se encontra em outros países da região, tais como Índia, Paquistão, dentre outros.

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Depois de muitos anos, já moça, seu pai biológico reaparece pedindo para que vá visitar sua mãe biológica sob o pretexto de que ela estava muito doente. Contudo, o verdadeiro motivo para levar Sila a Mardin6 era para que a jovem se casasse, a fim de pagar uma dívida de sangue7, que seu irmão havia adquirido com a principal família da tribo. Então, Sila é obrigada pelo irmão a se casar com o líder da tribo. Revoltada, faz várias tentativas fracassadas de fuga. No entanto, com o passar do tempo e depois de muito contestar os costumes locais, ela vai se apaixonando pelo próprio marido após presenciar atitudes éticas e bondosas de Boran. Pensar nas dificuldades de adaptação cultural vivenciadas por Sila, dentre elas; o casamento contra sua vontade e contra seu consentimento, a liberdade “vigiada”, vestimentas, o impedimento feito pelo pai para que a irmã menor não estudasse, a supremacia masculina, dentre outros, me faz pensar em meu próprio objeto de estudo: o casamento intercultural. Sendo Sila uma ficção, temos Cansu Dere na realidade. A atriz, em entrevista8 para Rede Bandeirantes, disse que, assim como sua personagem – com a qual ela se identificava bastante – ela nunca havia visitado a região leste do país. Cansu diz: “foi muito difícil para mim passar um tempo alí”. Ela ainda ressaltou que a novela tenta apresentar o personagem de uma maneira mais estética, e que na vida real as histórias são bem mais fortes, referindo-se a cultura machista e violenta. Vale dizer, novamente, que a Turquia é muito grande e possui culturas e tradições muito diferentes e que o machismo não pertence a um ou outro país, ele está presente em todos os países onde a educação é falha, como por exemplo, o Brasil – país que mais mata LGBTs9 no mundo. Sendo assim, traçado esse panorama sobre as novelas veiculadas na TV brasileira sobre países situados na região do Oriente Médio e adjacências, podemos estabelecer algumas ideias em comum. Primeiramente, em todas elas, tanto as de produção brasileira como as de produção turca, vemos a influência da família na escolha do parceiro. E isso se verifica em campo também, os pais possuem importância primordial na vida dos filhos e dificilmente um jovem de família muçulmana irá contrair matrimônio com alguém que os pais não aprovam. Portanto, ser apresentada a família do noivo é sinal de que essa pessoa possui boas intenções com a futura esposa. Outro fator observado é que as produções brasileiras exploram a virilidade do homem

6 Provincia situada no sudeste da Turquia, grande parte de sua população é da etnia curda. 7 Associada a “limpar” a honra de uma família. 8 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ihqfev4I4v0. Acessado em: 05/07/2017. 9 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros.

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dessa região e utilizam marcadores histórico-culturais como a sedutora dança do ventre para compor a cena. Nas novelas brasileiras, Islã e dança do ventre aparecem misturados, mas é sabido que uma muçulmana não irá dançar para outros homens que não o seu marido. Podemos identificar também a presença do homem na posição de cuidador da esposa. É fato que no Islã, o homem como provedor financeiro da família é preceito religioso, mas devo salientar que muitos homens muçulmanos que buscam casamento na internet não possuem situação financeira satisfatória, o que o impossibilita de firmar casamento em seu país e o impulsiona na busca por uma mulher estrangeira. Nas novelas turcas, a personagem principal é sempre uma mulher, tanto quanto já anuncia a maioria dos títulos. Essas mulheres possuem identidades forte e estão sempre questionando a ordem estabelecida. Se por vezes elas buscam seus direitos e sua liberdade, por outras também buscam na figura masculina o complemento que parece faltar em suas vidas, com exceção de Fatmagul. No entanto, personagens e telespectadoras parecem endossar o que Dowling (2002) afirma em seu livro “Complexo de Cinderela” quando diz que “o desejo inconsciente dos cuidados de outrem – é a força motriz que ainda mantém as mulheres agrilhoadas. [...] Como Cinderela, as mulheres de hoje ainda esperam por algo externo que venha transformar sua vida.” (p.26) Há ainda, bastante explorado nas novelas turcas, a supremacia do homem sobre a mulher, como fica evidente em Sila, a qual possui toda sua vida modelada em função da vida do irmão. Em “As mil e uma noites” e “Fatmagul” , a culpa da traição e do estupro recai sobre corpos femininos. Contudo, refletir sobre as dificuldades encontradas pela personagem Sila – uma turca da região oeste, que se casa com Boran – um turco da região leste do país, e depois ouvindo a própria atriz dizendo sobre suas dificuldades em permanecer na região apenas para as gravações, me faz pensar nas brasileiras que se casam com homens de realidades tão distintas. Uma realidade imaginada, criada por histórias e cenários inventados para encantar o gosto do público. Muitas vezes, casam-se por procuração, sem nunca ter visto o marido antes ou apenas tê-lo visitado uma vez, assim como, sem dominar um idioma em comum. Mulheres que deixam trabalho, filhos, família ou assumem o risco de “importar” um marido. Kristeva (1988) cita Leda da Motta (s.d), a qual diz que “os apaixonados estão enamorados ou de si mesmo ou de um outro ideal. E

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nos dois casos hipnotizados. Sujeitos plenos, sim, porque o amor é um sentimento oceânico, mas pleno do seu próprio discurso amoroso." Portanto, embora muitas vezes alertadas por pessoas ao seu redor, essas brasileiras persistem, resistem e insistem em suas histórias de amor. Durante, a execução dessa pesquisa, não foram poucos os encantamentos dos romances iniciais que tive acesso, como também não foram poucos os desencantos que presenciei após alguns meses de relacionamento, quadros de depressão profunda ou de necessidade de intervenção policial. Todavia, produzir conhecimento para que, em especial, as mulheres possam ter acesso a uma realidade menos distorcida e/ ou alterada pelos pré- conceitos em torno da cultura islâmica, é além de um desafio acadêmico, mas pessoal também porque me encontro na condição de mulher, ainda que eu não esteja buscando um Said.

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LIMA, Barbara dos Anjos. (2016). 6 provas de que Fatmagül é a novela mais feminista já feita. Nova Cosmopolitan. Disponível em: http://cosmopolitan.abril.com.br/celebs/6- provas-de-que-fatmagul-e-a-novela-mais-feminista-ja-feita/. Acessado em: 06/07/2017 LOBO, Thais. ( 2012) Conheça a Turquia que aparecerá em ‘Salve Jorge’ e foi reproduzida em cidade cenográfica. O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv/conheca-turquia-que-aparecera-em- salve-jorge-foi-reproduzida-em-cidade-cenografica-6471336#ixzz4mCGv8mSL . Acessado em: 05/07/2017. LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. (2003) Telenovela brasileira: uma narrativa sobre a nação. Comunicação & Educação, São Paulo, n. 26, p. 17-34, apr. ISSN 2316- 9125. Disponível em: . Acesso em: 07 july 2017. doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9125.v0i26p17-34. MATOS, Évilin. (2015) Mulheres são exploradas sexualmente em 66% dos casos. Jornal do Comércio. Disponivel em: http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2015/11/cadernos/jornal_da_lei/465396-o-genero- feminino-e-explorado-sexualmente-em-66-dos-casos.html Acessado em: 05/07/2017. MEMÓRIA GLOBO, s.d. SALVE JORGE. Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/salve-jorge/salve- jorge-bianca-e-zyah-choque-cultural.htm. Acessado em: 04/07/2017. NAWA, Fariba. (2017) Turkish soap operas' portrayal of women stirs controversy. Disponível em:https://www.usatoday.com/story/news/world/2017/04/27/turkish-soap- operas/100968196/ . Acessado em: 06/07/2017 ORTIZ, Fabiola. (2012) Temos uma percepção errada do islã. TV e famosos. Disponível em: http://celebridades.uol.com.br/noticias/redacao/2012/10/29/temos-uma- percepcao-errada-do-isla-diz-malga-di paula.htm?cmpid=copiaecola&cmpid=copiaecola. Acessado em: 02/07/2017. SAID, E. W. (1990) Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras.

Sila, prisoner of love: the Turkish soap opera in Brazilian society Abstract: This abstract proposes to think about the success of the Turkish novels exhibited in , given the importance of soap operas in the Brazilian society, although there is a certain academic prejudice about them. However, the main focus is the analysis of the role of the protagonist of Sila: prisoner of love, in relation to the cultural and religious aspects of that country, since the soap opera is considered as a promoter of imagined realities that contribute to the construction of the other. For this investigation, the ethnographic method was chosen; Audiovisual, virtual and conventional through analysis of the scenes of the novel, as well as the monitoring of its repercussion in the digital network and in society. Thus, it is expected that the understanding of such aspects may contribute to better understanding about the country and the lives of the women living there, thus corroborating the understanding of the love relationships between Brazilians (recipients of this novel) and Turkish men. Keywords: "soap opera" "Turkey" "gender" "ethnography" "intercultural relationship"

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