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Ano 20 n. 280 Pesquisa FAPESP junho de 2019 infecções para combater como terapia fecal étestado de microbiota Transplante à lua rumo De novo, astronautas para lá por conta própria astronautas paraláporcontaprópria Terra, tentalevar enquantoaChina querem retornarjuntasaosatéliteda edeoutrospaíses Unidos dos Estados 50 anosdepois,agênciasespaciais junho de 2019 | Ano 20, n. 280 20,n. 2019|Ano de junho democrática livre, aberta e para semanter 30 anos,enfrenta que aweb,aos desafios Os

pesquisadores intriga Brasil jovens no suicídio de taxas de Aumento nas intracraniana medir pressão invasivo para sensor não paulista lança Startup www.revist pesquisas o impactode como ampliar países discutem fomento de45 Agências de a pesquis a da da Apollo astronauta de Pegada .f a pesp.br O Ciência Aberta é um programa de TV mensal, produzido pela FAPESP, que reúne pesquisadores e público em debates importantes sobre temas científicos da atualidade

Os 10 programas já produzidos estão disponíveis no site www.fapesp.br/ciencia-aberta

Uma parceria: @AgenciaFAPESP

@agfapesp

Para participar das gravações, sugestões ou críticas escreva para [email protected] fotolab o conhecimento em imagens

Sua pesquisa rende fotos bonitas? Mande para [email protected] Seu trabalho poderá ser publicado na revista.

A estética da imperfeição

Uma grande diferença de potencial elétrico – 17 mil volts em uma ponta e 0 na outra – estica fibras em fios muito finos, na escala de nanômetros, para compor membranas para filtração de água. Quando não sai perfeita, a eletrofiação forma gotas, aqui flagradas em microscópio eletrônico de varredura. “A membrana perfeita tem o mínimo de gotas possível”, define o químico Guilherme Dognani. O material, que ainda não é produzido em escala industrial no país, pode ser usado para retirar da água contaminantes como metais pesados.

Imagem enviada por Guilherme Dognani, estudante de doutorado na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (FCT-Unesp), campus de Presidente Prudente

PESQUISA FAPESP 280 | 3 junho 280

O astronauta Edwin Aldrin, da Apollo 11, na Lua p. 18

CAPA 36 Financiamento POLÍTICA C&T CIÊNCIA Estados Unidos Agências de fomento tentam antecipar para discutem em São 40 Autonomia 48 Medicina Paulo como ampliar o universitária Transplante de microbiota 2024 retorno à Lua e impacto de pesquisas Decreto de 1989 criou fecal é testado no combate iniciar assentamento modelo de financiamento a infecções permanente que melhorou a qualidade p. 18 das universidades paulistas 52 Ecologia Flores exploram cores e 44 Difusão odores para se esconder ou Projeto brasileiro Com eventos em 85 cidades, atrair abelhas específicas planeja experimento na o Brasil se destacou no festival Pint of Science 55 Ambiente órbita lunar para avaliar Regeneração natural de a vida sob alta radiação florestas em áreas secas p. 22 e úmidas é diferente ENTREVISTAS Em 20 de julho, 58 Paleontologia completam-se 50 anos France Córdova Vertebrados, em tese não adaptados a ambientes da saga tecnológica que Diretora da NSF fala sobre secos, viviam em deserto levou o homem à Lua equidade de há 280 milhões de anos p. 24 gênero na ciência 61 Física p. 28 Capa Estudo amplia a teoria que concepção Mayumi Okuyama prevê interação de matéria foto densa com campos gravitacionais fortes Peter Strohschneider Presidente TECNOLOGIA da DFG defende pesquisas guiadas 62 Internet pela curiosidade As dificuldades que p. 32 a web enfrenta para permanecer um território livre e democrático www.revistapesquisa.fapesp.br

Leia no site todos os textos da revista em português, inglês e espanhol, além de conteúdo exclusivo

vídeo youtube.com/user/pesquisafapesp

p. 12 p.48 Podcasts ajudam a divulgar a ciência no Brasil Formato desperta a atenção de público disposto a se aprofundar em assuntos temáticos 67 Engenharia SEÇÕES bit.ly/igVPodcasts biomédica Sensor não invasivo para 3 Fotolab monitorar pressão dentro do crânio chega ao mercado 6 Comentários

70 Biotecnologia 7 Editorial Pele de tilápia é usada em cirurgias ginecológicas e 8 Boas práticas no tratamento de Relatório propõe queimaduras reforçar mecanismos de autocorreção da ciência

HUMANIDADES 11 Dados Publicações científicas e O eclipse que revolucionou a física 74 Estudos colaborações internacionais Os 100 anos do fenômeno que funcionou como a populacionais primeira prova experimental de teoria de Einstein Aumento nas taxas de 12 Notas bit.ly/igVEclipse suicídio no Brasil mobiliza pesquisadores 88 Obituário Maurício Peixoto (1921-2019) 80 Impunidade Inquéritos e processos 90 Memória penais subsidiam trabalho O físico Sérgio Porto podcast bit.ly/PesquisaBr sobre combate à corrupção contribuiu para a introdução e a aplicação do laser no Brasil Pesquisa Brasil 84 Entrevista Especial Educação Heide Hackman fala 94 Carreiras sobre desafios Pré-iniciação científica é O cientista político transdisciplinares do oportunidade para alunos Daniel Cara e o International Council do ensino médio economista Camillo for Science de Moraes Bassi 97 Resenha debatem alternativas 86 Educação Os quartetos de cordas de para garantir o Pesquisa demonstra Villa-Lobos: Forma e financiamento da influência positiva de função, de Paulo de Tarso educação no país bibliotecas escolares Salles. Por Nahim Marun bit.ly/igPBR24mai19 [email protected] Conteúdo a que a comentários mensagem se refere:

Revista impressa

Reportagem on-line Autonomia Na reportagem “Para tirar o sal da água’’ Sobre a entrevista do reitor Marcelo Kno- (edição 279), a tecnologia pode ser uma Galeria de imagens bel (“O aprendizado da autonomia”, edição alternativa para a carência que existe em par-

Vídeo 279), de fato, todos deveriam saber da impor- te do país. Para as plantas terem uma boa efi- tância e do peso das universidades públicas ciência energética, uma alternativa seria aco- Rádio no cotidiano da população. As pessoas não plar algum tipo de fonte renovável, como a valorizam professores do ensino fundamental , e diminuir o gasto com energia. ou médio nem pesquisadores. Não sabem que José Higo da Silva contatos não morrem com varíola ou apresentam po- liomielite, ou que têm luz elétrica em casa e revistapesquisa.fapesp.br tantos outros benefícios porque houve quem Vídeos estudasse esses assuntos. Há muito ainda a se Aprendi a ouvir podcast quando estava [email protected] divulgar sobre o trabalho de nossos pesquisa- no Japão, em 2017, com Naruhodo (“Pod- PesquisaFapesp dores em todas as áreas de conhecimento. casts ajudam a divulgar a ciência no Brasil”). PesquisaFapesp Lúcia Cruz Ouvia a língua portuguesa enquanto aprendia pesquisa_fapesp sobre ciência, com descontração e seriedade. Pesquisa Fapesp A universidade é a instituição que tem É possível fazer um trabalho sério e divertido. pesquisafapesp ensino, pesquisa e extensão de forma in- Parabéns aos grupos de podcasts da ciência dissociável. Não havendo pesquisa, será cen- apresentados em Pesquisa FAPESP. [email protected] tro universitário ou apenas faculdade. O que Helen Suzuki R. Joaquim Antunes, 727 se quer é transformar as universidades em 10º andar faculdades cuja única função é formar repe- Uma forma deliciosa de divulgar e saber CEP 05415-012 São Paulo, SP tidores de técnicas sem capacidade para ino- mais sobre o universo das pesquisas, dos var ou criar. Para se ter ensino de qualidade pesquisadores, identificando como a ciência Assinaturas, renovação é preciso desenvolver pesquisa, para que a está no nosso cotidiano e nós nem percebemos. e mudança de endereço pesquisa alimente o ensino e a extensão leve Simone Figueiredo Envie um e-mail para a pesquisa para a sociedade. assinaturaspesquisa@ Bruno Abreu Há tantos anos acompanho fielmente o fapesp.br ou ligue para Naruhodo e o Alô, Ciência, podcasts que (11) 3087-4237, divulgam ciência de maneira fácil e com um de segunda a sexta, Drauzio Varella toque de humor. Foi muito boa a sensação de das 9h às 19h A entrevista com Drauzio Varella tem o vê-los pela primeira vez. que mais falta no meio científico: divul- Tamires Oishi Para anunciar Contate: Paula Iliadis gação de qualidade para o público geral (“Pa- Por e-mail: lavra de médico”, edição 279). Sem sensacio- [email protected] nalismo e clickbaits. Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser resumidas Por telefone: Hugo Legramandi por motivo de espaço e clareza. (11) 3087-4212

Edições anteriores Preço atual de capa acrescido do custo de A mais lida do mês no Facebook postagem. Peça pelo e-mail: entrevista Marcelo Knobel [email protected] O aprendizado da autonomia Licenciamento bit.ly/tw279MKnobeL de conteúdo Adquira os direitos de reprodução de textos 38.436 pessoas alcançadas e imagens de Pesquisa FAPESP. 628 reações

Por e-mail: s [email protected] 18 comentários ve a ch Por telefone: s

(11) 3087-4212 172 compartilhamentos am o éo r éo l

6 | junho DE 2019 carta da editora Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

Marco Antonio zago Presidente

Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente

Conselho Superior Os horizontes da ciência Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr Krieger, Ignacio Maria Poveda Velasco, João Fernando Gomes de Oliveira, José de Souza Martins, Marco Antonio Zago, Marilza Vieira Cunha Rudge, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Alexandra Ozorio de Almeida | diretora de redação Ronaldo Aloise Pilli e Vanderlan da Silva Bolzani

Conselho Técnico-Administrativo

Carlos américo pacheco Diretor-presidente

Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico chegada do homem à Lua é pos- te expectativa da sociedade e de gover- fernando menezes de almeida Diretor administrativo sivelmente o feito científico e nos quanto aos benefícios econômicos A tecnológico que mais impactou e sociais da pesquisa. As demandas são o imaginário popular na era moderna. legítimas e a comunidade científica tem issn 1519-8774 Tanto parecia um feito inatingível que por missão endereçá-las, mas é preciso

Conselho editorial até hoje circulam teorias conspiratórias cuidado para não empobrecer o proces- Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, de que tudo não passou de uma mon- so de produção de conhecimento, cujos Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani e Mônica Teixeira tagem norte-americana para capturar resultados muitas vezes são imprevisí- comitê científico corações e mentes ameaçados pelo re- veis e podem vir em prazos dilatados. Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Américo Martins Craveiro, Anamaria Aranha Camargo, Ana gime socialista. A astrofísica France Córdova (que es- Maria Fonseca Almeida, Carlos Américo Pacheco, Carlos Eduardo Negrão, Douglas Eduardo Zampieri, Euclides de Acredite-se ou não, há quase 50 anos colheu sua profissão inspirada no astro- Mesquita Neto, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Francisco Rafael Martins Laurindo, Hernan a cápsula de pouso Águia descia no mar nauta Neil Armstrong), presidente da Chaimovich, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Luiz Nunes de Oliveira, Marco da Tranquilidade, na face visível da Lua, National Science Foundation, principal Antonio Zago, Marie-Anne Van Sluys, Maria Julia Manso Alves, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles e dois astronautas davam seus primeiros agência de financiamento de pesquisa Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral e Walter Colli passos, ou pulos, no único satélite natural básica dos Estados Unidos, destacou Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos da Terra. Um conjunto de fatores levou a no encontro que o progresso da ciên- diretora de redação Alexandra Ozorio de Almeida humanidade a esse feito, como disputas cia depende de financiamento público editor-chefe políticas, militares e tecnológicas entre e que as agências precisam ser capa- Neldson Marcolin nações, objeto de uma das três reporta- zes de demonstrar às pessoas por que Editores Fabrício Marques (Política C&T), Glenda Mezarobba (Humanidades), Marcos Pivetta (Ciência), gens sobre a efeméride que ilustra a capa determinado projeto de pesquisa é im- Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto (Editores espe­ciais), Maria Guimarães (Site), Bruno de Pierro e Yuri Vasconcelos da presente edição (ver páginas 18, 23 e portante (página 28). O filólogo Peter (Editores-assistentes) 24). Inspiradora da curiosidade humana, Strohschneider, que dirige a DFG, so- repórteres Christina Queiroz, Rodrigo de Oliveira Andrade a exploração espacial fascina pessoas no ciedade alemã de amparo à pesquisa, redatores Jayne Oliveira (Site) e Renata Oliveira do Prado (Mídias Sociais) mundo todo e permite a junção de três lembrou a diversidade dos impactos, arte Mayumi Okuyama (Editora), Alexandre Affonso (Editor de atividades essencialmente científicas – a como a ampliação das fronteiras do co- infografia) Felipe Braz (Designer digital), Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Assistentes) descoberta, a compreensão e a aplicação nhecimento, o estímulo a inovações tec- fotógrafo Léo Ramos Chaves desse conhecimento para alcançar um nológicas ou a formação de profissionais banco de imagens Valter Rodrigues determinado fim. altamente qualificados (página 32). Ele Rádio Sarah Caravieri (Produção do programa Pesquisa Brasil) Sem pisar lá desde 1972, os Estados alertou que avaliar projetos com base em revisão Alexandre Oliveira e Margô Negro Unidos querem voltar, agora com a cola- impactos prometidos tende a restringir Colaboradores Augusto Zambonato, Bárbara Malagoli, Carla Aranha, Daniel Almeida, Frances Jones, Karina Toledo, boração de outros países. Com orçamento o espectro da pesquisa, podendo induzir Luisa Destri, Manu Maltez, Márcio Ferrari, Nahim Marun, Nelson Provazi, Rafael Garcia e Renato Pedrosa menor do que na época da Guerra Fria, os proponentes a alinhar suas propostas Revisão técnica Adriana Valio, Célio Haddad, Dario a Nasa conta hoje com a Agência Espa- às expectativas projetadas pelas agências Zamboni, Fábio Kon, Francisco Laurindo, Luiz Nunes de Oliveira e Ricardo Ribeiro Rodrigues cial Europeia e o Canadá. Outros atores ou a formular projetos para solucionar É proibida a reprodução total ou parcial têm a mesma ambição. A , com um problemas já conhecidos. de textos, fotos, ilustrações e infográficos sem prévia autorização A primeira reportagem sobre os 30 programa espacial em ascensão, planeja, Tiragem 30.260 exemplares anos do decreto que garante a estabilida- IMPRESSão Plural Indústria Gráfica sozinha, colocar um taikonauta na Lua. distribuição Dinap de e a autonomia financeira das univer- GESTÃO ADMINISTRATIVA FUSP – FUNDAÇÃO DE APOIO À ** UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO sidades paulistas conta a gênese desse PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, A relação – nem sempre fácil – da arranjo (página 40). O contexto histórico 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, atividade de pesquisa com a socieda- após a redemocratização, com a pauta Alto da Lapa, São Paulo-SP de permeia diversas reportagens desta política altamente favorável a questões Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e inovação edição. São Paulo sediou, no começo de ligadas à educação, e a conjuntura eco- Governo do Estado de São Paulo maio, reunião anual do Global Research nômica de inflação alta, tornando a ges- Council, conselho que reúne agências de tão das instituições de ensino superior fomento de 45 países (página 36). Em um malabarismo constante, levaram ao pauta, o desafio de responder à crescen- arranjo jurídico e orçamentário vigente.

PESQUISA FAPESP 280 | 7 Boas práticas

Mecanismos de autocorreção da ciência

Relatório propõe ações para reduzir quantidade de trabalhos científicos que não são confirmados em estudos posteriores

m relatório divulgado no mês passado falta de transparência na notificação de dados, pelas Academias Nacionais de Ciências, ausência de treinamento adequado e erros UEngenharia e Medicina dos Estados metodológicos podem impedir que pesquisadores Unidos forneceu bases objetivas para ampliar a reproduzam ou repliquem um estudo”, disse o credibilidade do trabalho dos cientistas, com médico. “Órgãos de financiamento à pesquisa, foco na redução da quantidade de pesquisas cujos revistas, instituições acadêmicas, formuladores resultados acabam não sendo confirmados em de políticas e os próprios cientistas têm um papel a estudos posteriores. Intitulado “Reprodutibilidade desempenhar na melhoria da reprodutibilidade e replicabilidade na ciência”, o documento de 196 e replicabilidade, garantindo que os pesquisadores páginas foi encomendado pela National Science sigam práticas de padrão elevado, compreendam e Foundation, principal agência de fomento à ciência expressem a incerteza inerente às suas conclusões básica norte-americana, e é fruto de um ano e continuem a fortalecer a rede interconectada e meio de discussões promovidas por um comitê de conhecimento científico, que é o principal multidisciplinar composto por 13 pesquisadores. impulsionador do progresso no mundo moderno”, De acordo com o médico Harvey Fineberg, afirmou Fineberg, no lançamento do documento. ex-diretor da Escola de Saúde Pública da Para produzir um conjunto de recomendações Universidade Harvard e presidente do comitê que dirigido a pesquisadores, instituições e elaborou o relatório, a confirmação de resultados agências de fomento, os membros do comitê científicos em estudos subsequentes é um consideraram necessário, em primeiro lugar, mecanismo de autocorreção da ciência consagrado definir de forma precisa o significado dos termos e de importância essencial. “Mas fatores como “reprodutibilidade” e “replicabilidade”,

8 | junho DE 2019 que nem sempre são bem acontecer em decorrência de Os responsáveis pelo relatório compreendidos. O conceito de incertezas inerentes às pesquisas criticam a ênfase exagerada reprodutibilidade, segundo o e, nessas situações, não se pode conferida ao chamado valor de p, relatório, vincula-se à capacidade de dizer, necessariamente, que o estudo uma medida que representa a alcançar os mesmos resultados original estivesse errado. “Devido a probabilidade de o efeito observado de um estudo partindo de premissas variabilidades na natureza ou dever-se ao acaso e não aos fatores que idênticas, ou seja, as bases de dados limitações de dispositivos de medição, estão sendo estudados. Um valor de p do trabalho original. Desse modo, os resultados são avaliados de forma menor ou igual a 0,05 é utilizado o problema tem uma dimensão probabilística e o processo de frequentemente como um indicador estritamente computacional, em descoberta científica é incapaz de de significância estatística, que o essencial é ter acesso ao entregar uma verdade absoluta”, pois sugere que os resultados são conjunto de informações e saber diz o relatório, que aponta uma robustos. É preciso avaliar, segundo como foram armazenadas e analisadas. das funções principais dos estudos o comitê, todo um conjunto de A recomendação principal do de replicabilidade: “Afirmações parâmetros, como as distribuições relatório consiste em disponibilizar científicas ganham uma probabilidade das observações e medidas como de forma transparente não apenas maior ou menor de serem verdadeiras proporções e desvios-padrão, os dados que embasaram o trabalho dependendo dos resultados de a fim de avaliar o vigor dos dados inicial como também os métodos, pesquisas que as confirmem”. e as incertezas contidas neles. códigos, modelos, algoritmos e Para ampliar a confiança em softwares utilizados para chegar ao constatação valiosa resultados de pesquisa, o relatório resultado – pode ser útil saber até De acordo com o documento, a sugere que sejam avaliadas evidências mesmo qual foi o sistema operacional constatação de que um experimento acumuladas em diversos trabalhos e a arquitetura de hardware que não é replicável pode inclusive ser científicos – o que permite saber até ampararam a realização do estudo. valiosa para a ciência, ao detectar que ponto resultados encontrados O documento faz sugestões adicionais, efeitos desconhecidos ou fontes podem ser generalizados – em vez de como garantir treinamento adequado de variabilidade não avaliadas. Se não é contentar-se com a verificação de para pesquisadores sobre práticas possível evitar que isso aconteça, tentar estudos isolados. Da mesma forma, de pesquisa computacionais, prover reduzir a quantidade de ocorrências recomenda a autoridades e meios a fim de que grandes conjuntos é importante para evitar desperdício formuladores de políticas públicas que de dados sejam preservados e de tempo e de recursos. Por isso, o evitem a armadilha de desacreditar disponibilizados para estudos relatório sugere aos pesquisadores ou descartar uma conclusão subsequentes e investir em projetos que divulguem seus achados de modo corroborada por diversos trabalhos de pesquisa para ampliar os limites da mais cuidadoso e criterioso. “Eles apenas porque surgiu uma evidência ciência da computação de modo a devem ter o cuidado de estimar e isolada refutando o resultado conhecido. melhorar a capacidade de verificar explicar a incerteza associada aos seus Harvey Fineberg considera exagerada a robustez de trabalhos científicos. resultados, de fazer uso adequado de a ideia corrente de que a ciência vive Também propõe que revistas métodos estatísticos e de descrever uma crise de credibilidade resultante de científicas reforcem políticas e ações seus procedimentos e dados de maneira uma escalada no número de pesquisas que facilitem a confirmação dos clara e completa”, afirma o documento, irreproduzíveis ou irreplicáveis. “Não experimentos descritos em seus que também recomenda evitar existe uma crise. Mas também não há artigos. “Os periódicos poderiam exageros na divulgação dos resultados mais tempo para ser complacente com criar o posto de editor de para não gerar falsas expectativas. o problema”, disse. n Fabrício Marques reprodutibilidade para supervisionar esse trabalho”, disse a engenheira espacial Lorena Barba, da Universidade George Washington, em Washington, que participou do comitê multidisciplinar. Já o conceito de replicabilidade tem mais nuanças. Pressupõe a possibilidade de alcançar respostas convergentes para determinada pergunta científica, mas partindo de

ovazi bases de dados independentes. r Um estudo pode não ser replicável por razões variadas. Quando a causa nelson p é fraude ou viés, os casos em geral a çõ es se relacionam com má conduta. tr us l i Mas o problema também pode

PESQUISA FAPESP 280 | 9 Punição após 40 anos de assédio em Harvard

A Universidade Harvard, dos 1960, Dominguez, de 74 anos, Estados Unidos, cassou o título de graduou-se na Universidade Yale professor emérito do sociólogo e chegou a Harvard em 1968 Jorge Dominguez, especialista para fazer doutorado – quatro em estudos latino-americanos de anos depois, começou a trabalhar sua Faculdade de Artes e Ciências como docente. e vice-reitor de assuntos Ele renunciou ao posto de internacionais da instituição entre professor em junho de 2018, 2006 e 2015, e proibiu-o de dar acusado de assédio por várias aulas e de participar de eventos mulheres no movimento #metoo, em suas instalações. A punição que deu voz a milhares de ocorreu depois de uma acusações de importunação e investigação concluir que ele agressão sexual sofridas no assediou sexualmente pelo menos ambiente acadêmico dos Estados 18 alunas e funcionárias ao longo Unidos. Entre as mulheres que

das últimas quatro décadas. A denunciaram o sociólogo, um ovazi universidade também prometeu destaque foi a cientista política r investigar o comportamento de Terry Karl, 71 anos, hoje professora nelson p seus dirigentes, em meio a críticas emérita da Universidade Stanford, a ção

de que o pesquisador foi mantido que havia acusado formalmente tr us l nos quadros de Harvard e até Dominguez de assédio em 1983 i promovido apesar de repetidas quando era professora assistente denúncias de assédio. de Harvard. Na época, o caso “Nunca fui apoiada pela Em um relatório de 52 páginas resultou em uma punição branda. universidade, nem na época nem divulgado pelo jornal The Boston Dominguez foi suspenso de agora”, escreveu. Segundo seu Globe, a comissão interna que funções administrativas por três relato, depois que Dominguez foi investigou Dominguez apontou anos, mas depois seguiu a carreira punido, em 1983, um dirigente uma “falha institucional normalmente – e envolveu-se em de Harvard sugeriu que ela prolongada”. Informou também novas acusações de assédio. Karl deixasse a universidade e até lhe que o comportamento do faz críticas duras a Harvard. prometeu um posto em Yale. pesquisador era amplamente conhecido, a ponto de as alunas recomendarem umas às outras que não fossem sozinhas a reuniões Transparência em baixa convocadas por ele no final da tarde e usassem roupas largas quando o encontrassem a fim de A maioria das universidades de Já a Universidade Médica de Viena desestimular suas investidas. pesquisa de países da União Europeia deu publicidade aos achados de Claudine Gay, diretora da vem descumprindo uma norma apenas 7% dos 188 ensaios de que Faculdade de Artes e Ciências de estabelecida pelo bloco em 2014, participou. A Áustria, de todo modo, Harvard, afirmou em um e-mail que determina a divulgação de saiu-se melhor do que França, dirigido à comunidade acadêmica resultados de ensaios clínicos até Itália, Suécia e Noruega. As sete que a investigação encontrou 12 meses após sua conclusão. Um universidades desses países um padrão duradouro de levantamento divulgado em abril avaliadas no estudo não divulgaram comportamento em Dominguez mostrou que foram difundidos os resultados de seus ensaios. “As que violava as políticas de como deveriam apenas 17% dos 940 grandes universidades da Europa segurança e de combate à ensaios registrados por 30 grandes não estão se esforçando para discriminação no ambiente universidades de pesquisa europeias. cumprir suas obrigações éticas, educacional. “Estou chocada com O cumprimento da regra foi maior científicas e regulatórias”, diz o as descobertas do relatório e nas três universidades do Reino autor do levantamento, o cientista com o coração partido por aquelas Unido analisadas: 93% dos resultados político Till Bruckner, que que tiveram que aguentar os de ensaios feitos pela Universidade coordena o TranspariMED, grupo comportamentos descritos”, disse. de Oxford e o King’s College London do Reino Unido que promove Cubano radicado nos Estados e 81% dos do University College campanhas para ampliar a Unidos desde o início dos anos London foram apresentados. transparência na pesquisa médica.

10 | junho DE 2019 Publicações científicas Dados e colaborações internacionais

Foram publicados 56.396 trabalhos Colaborações internacionais em 2018 (%) científicos1 com autores sediados no Universidades escolhidas, Brasil e demais regiões2 Brasil, em 2018. Desses, 21.506 (38%) incluíam coautores de outros países. U. Cidade do Cabo 71% ETH Zurique 71% Os índices de colaboração U. Cambridge 67% internacional apresentaram U. Oxford 66% crescimento significativo na última PUC Chile 65% década, passando de 25% para 38%, U. Sorbonne 65% entre 2008 e 2018, para o Brasil U. Chile 61% como um todo. O mesmo movimento U. Lisboa 61% se nota em todas as regiões do mundo. UA Barcelona 60% UFABC 58% A maioria das universidades UA Madrid 58% brasileiras se situa na faixa entre 30% U. Humboldt Berlim 58% e 45% nesse indicador. A exceção é a U. Toronto 57% UFABC, que atinge 58%. USP, MIT 56% Unicamp, UFRJ, UnB e UFSC UC Berkeley 51% apresentam índices acima de 40%. U. Harvard 51% U. Buenos Aires 48% No mundo, as universidades mais UNA México 48% ativas em colaborações internacionais U. Stanford 46% se localizam em países europeus, U. Johns Hopkins 46% com índices acima de 55%. As USP 45% universidades russas são exceção Unicamp 43% entre as europeias e se encontram em U. S. Petersburgo 43% faixa intermediária no indicador. UFRJ 41% UnB 41%

As universidades do Chile estão UFSC 41% bem colocadas, assim como a U. Tóquio 40% Universidade da Cidade do Cabo, U. Michigan 39% na África do Sul, com índices UFRGS 39% acima de 60%. U. L. Moscou 39% Unifesp 39% 38% As principais universidades da U. Kioto UNC Chapel Hill 37% Argentina e do México se situam na Unesp 36% faixa média-alta, com 48% de artigos U. Tsinghua 36% com colaborações internacionais. U. 36% n Brasil U. Tohoku 36% Universidades dos Estados Unidos e UFMG 35% n África do Canadá se colocam em posição UFSCar 35% n América Latina variada, de média a média-alta, U. Nanquim 34% enquanto as asiáticas, da China, n Ásia UFPR 34% Coreia do Sul e Japão, estão entre as n Eua/Canadá UFPE 34% que apresentam menor intensidade n Europa UN Seul 31% de colaborações internacionais.

Notas 1 Publicações dos tipos Article, Proceedings Paper e Review, indexados pelo Incites /WoS/ Clarivate. 2 Foram selecionadas as universidades representativas, líderes em pesquisa, em seus países, com preferência para instituições públicas (exceto no caso dos EUA, que incluem instituições públicas e privadas). No caso do Brasil, o mesmo critério foi adotado. A ordem de instituições com a mesma porcentagem segue os valores antes de arredondamento. Fontes incites/ Web of Science, Clarivate/ ThomsonReuters, dados extraídos em 23 mai. 2019.

PESQUISA FAPESP 280 | 11 Notas

1 Animais e plantas sob risco de desaparecer zzo a er p a Até 1 milhão de espécies de plantas e animais no mundo das áreas oceânicas foram significativamente alteradas População de tigre-de- enfrentam um drástico processo de redução populacio- pelo ser humano para a produção de alimento no último ma ríli 3 -sumatra

nal e perda de hábitat e estão ameaçados de extinção. século. Outros impactos são a exploração descontrola- ves diminui com A abundância de plantas e animais diminuiu ao menos da de espécies, a poluição, as alterações no clima e a redução de 20%, sobretudo no último século, em quase todos os introdução de espécies invasoras. Na Indonésia, Sudeste seu hábitat a ch am os ecossistemas. A conclusão é de um relatório de mais de Asiático, a transformação de florestas em plantações de léo r léo 2 mil páginas, fruto do esforço de 145 pesquisadores de 50 palmeiras para a extração de óleo destruiu o hábitat de países. Eles analisaram quase 15 mil estudos publicados nos orangotangos (Pongo sp) e tigres-de-sumatra (Panthera ons mm últimos três anos sobre o declínio da biodiversidade. Essa tigris sumatrae). Em Moçambique, na África, caçadores tive co tive

é a primeira avaliação global do estado de preservação de marfim mataram 7 mil elefantes entre 2009 e 2011. Já a da natureza feita pela Plataforma Intergovernamental na Argentina e no Chile, na América do Sul, a introdução

sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES). O do castor-americano (Castor canadensis) devastou várias cre / el s A pp s

relatório, que teve entre seus coordenadores o antropólogo espécies nativas de árvores. O documento alerta: se nada a

brasileiro Eduardo Brondízio, da Universidade de Indiana, mudar, as metas globais de conservação e uso sustentável thi M a

Estados Unidos, indica que cerca de 75% das terras e 66% da natureza não serão alcançadas nas próximas décadas. 1 fotos

12 | junho DE 2019 Um funeral da Resistência Alemã, surgirem os aplicativos, para vítimas do que conduziu as análises e 2016, com eles em uso. nazismo em parceria com o Empregando um hospital Charité de modelo de simulação Berlim. À época da computacional, que levou Cerca de 300 amostras guerra, médicos que em conta dados sobre de tecidos humanos de trabalhavam no instituto as viagens realizadas vítimas do nazismo de anatomia dirigido pelas duas empresas, foram identificadas a por Stieve colaboraram obras no sistema viário partir de análises feitas com o regime nazista. e o aumento da durante três anos por Apesar de as população do município, Andreas Winkelmann, investigações não terem os pesquisadores professor de anatomia identificado a quantas 2 estimaram que, sem da Escola Médica de pessoas os restos mortais os automóveis que Brandenburgo, na pertencem, constatou-se Carros de Aplicativos de trabalham com os Alemanha. Os restos que a maioria eram motoristas que aplicativos nas ruas, trabalham com transporte mortais eram de mulheres, parte o aumento teria sido aplicativos, em pioram o trânsito dissidentes assassinados integrante do grupo de São Paulo: bem inferior, de 22% na prisão de Plötzensee, resistência berlinense em São Francisco, (Science Advances, maio). em Berlim, durante a “Orquestra vermelha”. estudo mostrou Os aplicativos de O comportamento agravo nos Segunda Guerra Mundial. Stieve fazia experimentos transporte Uber e Lyft dos motoristas, que congestionamentos Parte dos corpos dos com tecidos genitais de são responsáveis pela estacionam em fila dupla executados nessa executadas para analisar degradação do trânsito ou em locais proibidos prisão foi usada em os efeitos do estresse nas ruas de São para pegar passageiros, experimentos no e do medo no sistema Francisco, um dos foi apontado como Instituto Universitário reprodutivo. Após a principais centros um dos motivos para a de Anatomia de Berlim. guerra, ele não foi urbanos da Califórnia, piora do trânsito. Uber As amostras foram investigado e pôde nos Estados Unidos. e Lyft refutaram os descobertas por prosseguir sua carreira. A conclusão resulta de dados. Alegam que o familiares do anatomista Os restos mortais um levantamento feito estudo não considerou o Hermann Stieve identificados foram por pesquisadores aumento da circulação (1886-1952), enterrados em maio, da Universidade de de veículos de entregas ex-diretor do instituto, no cemitério de Kentucky em conjunto nem a elevação do e encaminhadas em Dorotheenstadt, com a Autoridade de fluxo de turistas na 2016 para o Memorial em Berlim. Transporte do Condado cidade. Os pesquisadores de São Francisco, o esperam que o estudo órgão local de trânsito. ajude autoridades a O estudo indica que os planejarem políticas de O maior painel de arte congestionamentos na mobilidade mais cidade cresceram 62% adequadas para as rupestre de São Paulo entre 2010, antes de grandes cidades.

Em um trabalho de exploração iniciado em 2014, pesquisadores das universidades de São Paulo (USP), Federal do Paraná (UFPR) e Estadual de Campinas (Unicamp) descobriram um painel de arte rupestre de 80 metros de comprimento, em Ribeirão Bonito, no centro do estado de São Paulo. Astolfo Gomes de Mello Araújo, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da pesquisa, afirma que o painel é o maior já encontrado no estado. Nele, estão registradas gravuras que seguem o padrão de outros sítios ar- queológicos da região, lembrando pegadas de pássaros – os chamados tridígitos. Também foram achadas pedras lascadas, ossos de animais e carvão. Em parceria com uma equipe do Centro Interdisciplinar de Imagens Tecnologias Interativas da Escola Politécnica da USP, os pesquisadores rupestres do painel de estão usando escaneamento a laser e outras técnicas de produção de 80 metros imagens para criar modelos virtuais dos sítios encontrados. Em 2015 os encontrado em pesquisadores haviam descoberto o sítio arqueológico mais antigo do Ribeirão Bonito estado, no município de Dourado, com objetos de mais de 12,5 mil anos. 3

PESQUISA FAPESP 280 | 13 Reitor da Unicamp. Também é Vestígios antigos de Unicamp ganha editor-chefe da revista prêmio José Reis Ciência e Cultura, da uso de psicoativos Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência na Bolívia O físico Marcelo Knobel, (SBPC). O Prêmio José Reis reitor da Universidade é concedido em três Estadual de Campinas categorias, que se Uma equipe internacional de antropólogos (Unicamp), foi vencedor revezam: Jornalista em e bioarqueólogos identificou traços de subs- da 39ª edição do Prêmio Ciência e Tecnologia; tâncias alucinógenas em uma bolsa de couro José Reis de Divulgação Instituição e Veículo de de cerca de mil anos encontrada nos Andes Científica, do Conselho Comunicação; e bolivianos. A descoberta ocorreu quando os 1 Nacional de Pesquisador e Escritor. pesquisadores procuravam registros de ocu- Desenvolvimento Neste ano, houve pações antigas em abrigos próximos ao vale Marcelo Knobel, Científico e Tecnológico 91 inscrições. seco do rio Sora, na região de Sur Lípez, na físico, reitor da (CNPq), que neste ano foi Unicamp e Bolívia. Durante os trabalhos, coordenados concedido na categoria divulgador de pela arqueóloga Melanie Miller, da Univer- ciência Pesquisador e Escritor. A sidade de Otago, na Nova Zelândia, encon- comissão julgadora Plano S é traram uma sacola de couro com tábuas ressaltou “a abrangência adiado para de madeira entalhada, tubo de aspiração, e a diversidade de seu 2021 espátulas, tecido colorido e fragmentos de trabalho de divulgação hastes de plantas secas unidas por cordões científica, incluindo o de lã. Os pesquisadores também acharam diferencial das atividades Foi adiada em um ano – uma bolsa de pele animal com idade entre de formação pessoal para de 2020 para 2021 – a 905 e 1.170 anos. As análises revelaram a esta área”. Professor implementação do Plano presença de compostos psicoativos, como titular do Instituto de S, uma iniciativa de cocaína, bufotenina, psilocina, harmina e Física Gleb Wataghin, da acesso aberto proposta dimetiltriptamina – os dois últimos contidos Unicamp, Knobel lidera por 19 agências de na ayahuasca, feita da folha de um arbusto um grupo de pesquisa no apoio à pesquisa de e a casca de um cipó (PNAS, 6 de maio). A Cueva del Chileno Laboratório de Materiais vários países, na maioria suspeita é de que a bolsa fosse usada por na Bolívia, onde e Baixas Temperaturas. europeus. A decisão busca foi achada bolsa xamãs na condução de rituais locais. Eles No campo da divulgação dar mais tempo para com alucinógenos agiriam como intermediários entre o mundo (detalhe) científica, colabora com o que editoras científicas natural e o sobrenatural, atingindo estados Laboratório de Estudos transformem seus títulos alterados de consciência para conectar pes- 2 Avançados em Jornalismo, hoje comercializados por soas vivas com deidades e ancestrais que se coordenou o Núcleo de meio de assinaturas em pensava existir. Segundo os pesquisadores, Desenvolvimento da revistas que possam ser é possível que o xamã que possuía a bolsa Criatividade e foi consultadas livremente na tenha consumido várias plantas diferentes diretor-executivo do internet, em um modelo simultaneamente, de modo a produzir efeitos Museu Exploratório de de negócios no qual os diferentes ou estender suas alucinações. Ciências, todos da custos sejam cobertos exclusivamente por taxas cobradas dos autores dos artigos, sem onerar os leitores. “O ano de 2020 foi considerado ambicioso demais pela comunidade de pesquisadores e as editoras que genuinamente desejam mudanças”, disse à revista Nature Marc Schiltz, presidente da Science Europe, organização que propôs o Plano S. A iniciativa foi lançada em setembro passado e,

3 como propõe uma

14 | junho DE 2019 mudança radical na no início do ano para comunicação científica, coletar sugestões de desencadeou um debate aperfeiçoamento do intenso (ver Pesquisa plano. Outros pontos FAPESP nº 276). polêmicos foram Em linhas gerais, o plano suavizados, como a estabelece que pesquisas proposta de proibir financiadas com recursos publicações em revistas públicos deverão ser híbridas – periódicos de divulgadas em uma revista acesso fechado que científica ou em uma cobram dos autores uma plataforma na internet a taxa extra para divulgar ons mm co

a que qualquer pessoa os artigos em acesso i d e

m tenha acesso sem pagar aberto na web. A k i nada por isso. A regra intenção era que tais / Wi /

n a impõe desafios para periódicos pudessem ser agências de fomento, utilizados até 2023 e, autores e editoras. mesmo assim, se as As agências preveem editoras assinassem rtín Lagu ma rtín el u um aumento dos custos compromissos de ma n dos projetos de transformá-los a 5 i d e

p investigação, pois a integralmente em acesso 4 i k i publicação dos papers aberto. Agora, o prazo

on / w será paga pelos autores. vai até 2024 e serão A geleira m Aletsch, nos o si Muitos pesquisadores, por permitidas revistas j O lento adeus 4 Alpes suíços: sua vez, reclamam da híbridas que não derretimento riles proibição de utilizar tenham firmado esse das geleiras ap à vista . c periódicos de alto compromisso – bastará n m

da impacto, mas que não são que concordem em or de acesso aberto. E as ampliar a quantidade de As geleiras das montanhas do sudoeste da Argenti- cin e j

a revistas, tanto as de papers em acesso aberto na e do nordeste da Espanha estão perdendo gelo rr

ba editoras comerciais como ao longo do tempo, com rapidez e podem desaparecer até o final do l as de sociedades podendo manter o século. Não só elas. Também as das Montanhas n v. a n v. científicas, ressentem-se modelo. Outro recuo Rochosas canadenses e as do sudeste da Nova jua 3 da possibilidade de perder envolve a ideia de tabelar Zelândia, além do glaciar Khumbu, no Himalaia, 2 e

ves receita. O adiamento as taxas cobradas para e do Jakobshawn Isbrae, na Groenlândia, segundo busca dar mais tempo publicar artigos. No lugar, Biblioteca um levantamento de pesquisadores da União para que todos os atores será exigido apenas que de Stuttgart, Internacional para Conservação da Natureza a ch am os na Alemanha: se adaptem. A mudança as editoras sejam (IUCN), da Escola Politécnica de Zurique e da léo r léo prazo maior 1 de data foi um dos frutos transparentes sobre para acesso Universidade de Friburgo, as três na Suíça (Earth’s

fotos da consulta pública aberta seus custos. aberto Future, 29 de abril). Os especialistas usaram dados da literatura científica para estimar a situação de 19 mil geleiras em 46 sítios considerados pa- trimônio mundial. Com o auxílio de modelagem computacional, eles projetaram o que deve ocorrer com elas. Os resultados indicam que as geleiras de até 21 desses sítios podem desaparecer por completo até o final do século, dependendo da intensidade das mudanças no clima. As geleiras são consideradas um dos melhores indicadores de mudanças climáticas, porque seu volume depende da temperatura do ar, da precipitação de neve e da troca de energia com a superfície da Terra. Mesmo em um cenário de baixa emissão de gás carbônico, um dos principais responsáveis pelas alterações climáticas, elas desapareceriam de oito dos 46 sítios analisados. Segundo o estudo, até o final do século, o volume do gelo acumulado

5 nessas geleiras deve diminuir de 33% a 60%.

PESQUISA FAPESP 280 | 15 Uma baleia com patas de 42 milhões de anos

Na praia de Meia Lua, sul do Peru, a 200 metros (m) de onde haviam sido encontrados há dois anos os fósseis de Mystacodon selenensis, o mais antigo parente das baleias modernas, com estimados 36 milhões de anos, pesquisadores belgas, peruanos, italianos e franceses desenterraram os ossos de uma baleia Representação anfíbia com 4 m de comprimento, quatro patas e cauda (Current Biology, abril). artística da baleia anfíbia Denominada Peregocetus pacificus, que significa “a baleia viajante que atingiu o Pacífico”, é uma espécie de baleia anfíbia, a primeira do Pacífico e do hemisfério Sul. Ela deve ter vivido por volta de 42 milhões de anos atrás e ilustra a fase em que as baleias ainda não haviam se adaptado inteiramente à vida marinha. De acordo com os pesquisadores, liderados por Olivier Lambert, do Instituto Real de Ciências Naturais da Bélgica, as baleias Peregocetus deviam sair do mar para dar à luz ou descansar. Seus membros favoreciam o nado e não eram muito adequados à locomoção em terra. Os cetáceos quadrúpedes originaram-se no sudeste da Ásia há mais de 50 milhões de anos a partir de mamíferos terrestres. 1

Conselho Europeu Mortes por AVC da Faculdade de de Pesquisa tem caem 30% em Medicina do ABC, esse novo presidente 15 anos levantamento foi feito com base em registros de mortalidade O engenheiro italiano De 1997 a 2012, disponíveis no sistema Mauro Ferrari assumirá, o número de mortes nacional de informações em janeiro de 2020, a por acidente vascular sobre saúde, mantido presidência do Conselho cerebral (AVC) entre pelo Ministério da Saúde. Europeu de Pesquisa brasileiros com 18 a 49 De acordo com o (ERC), que apoia grupos anos de idade diminuiu trabalho, a queda de de pesquisa de excelência cerca de 30%. Entre os mortalidade segue uma Mauro Ferrari em várias áreas do homens, passou de 4.707 tendência verificada em

assumirá em d oro conhecimento. Ferrari janeiro de 2020 óbitos em 1997 para outros países e decorre 2 substituirá o matemático 3.320 em 2012. Redução da melhoria nos zielle teozielle a francês Jean-Pierre em nanomedicina, semelhante ocorreu tratamentos contra a r Bourguignon, no cargo por criar nanopartículas entre as mulheres – o hipertensão arterial ento e g

desde 2014. Com 59 anos, que transportam número baixou de 4.437 em todos os níveis m sci

Ferrari graduou-se em medicamentos até os para 3.171 (Scientific socioeconômicos e do a o n matemática pela tumores, Ferrari Reports, 27 de fevereiro). alerta para fatores de g ie Universidade de Pádua, na matriculou-se em Coordenado pelo risco para o AVC, como

Itália, e fez o doutorado medicina em 2002, aos fisioterapeuta Laércio da a dieta rica em gorduras amp 4 d em engenharia mecânica 43 anos, mas não Silva Paiva, professor de origem animal. As nic na Universidade da concluiu o curso. No ano mortes por AVC a / u Califórnia, em Berkeley, seguinte, o Instituto Evolução dos óbitos representavam 3,3% do e oliveir nos Estados Unidos. Nacional do Câncer dos Melhora no tratamento e medidas de prevenção total de óbitos entre os el d A morte da esposa, em Estados Unidos o colocou reduzem mortes por AVC entre 18 e 49 anos homens com 18 a 49 Rafa 3

1995, vítima de um tumor, à frente da Aliança para a 5.000 anos em 1997. Em 2012, 4.707 levou-o a abandonar Nanotecnologia contra o eram 2,1% . Entre as iller n Homens 4.500 os estudos sobre o Câncer. À revista Nature, n Mulheres mulheres, a proporção 4.437 4.114 rnell m movimento das galáxias e Ferrari disse que sua 4.000 passou de 8,3% para da voltar-se à área médica. formação multidisciplinar 4.011 5,2%. Nesses 15 anos, 3.500 3.320 “Senti que tinha que fazer pode ajudá-lo a cerca de metade das ri 2 a ri enn algo contra o câncer”, estabelecer bons 3.000 3.171 mortes por AVC ocorreu erto g erto disse ao jornal espanhol relacionamentos com na região Sudeste, b 2.500 a l El País. Considerado um pesquisadores que atuam 1997 2003 2012 onde vivem 42% 1

dos pioneiros nos estudos em diferentes áreas. Fonte Paiva, l. s. et al. Scientific reports. 2019 dos brasileiros. fotos

16 | junho DE 2019 Plantas com raízes mineradoras

Os campos rupestres da serra do Cipó, em Minas Gerais, estão entre os terrenos menos nutritivos do mundo. Ali, uma diversidade surpreendente de plantas – estima-se que um terço das espécies nativas brasileiras – cresce, frequentemente, sobre rochas. Analisando essas plantas, pesquisadores vêm descobrindo maneiras criativas de buscar nutrientes (ver Pesquisa FAPESP nº 229). A novi- dade agora vem de duas espécies (Barbacenia tomentosa e B. macrantha) da família das velosiáceas, a mesma a que pertencem as canelas-de-ema. As raízes de B. tomentosa e B. macrantha têm extremidades repletas de pelos que secretam ácidos capazes de corroer as rochas e liberar fosfatos, compostos que contêm fósforo, elemento quí- mico necessário para a multiplicação celular e o cresci- mento da planta (Functional Ecology, 9 de março). Aos poucos, as raízes penetram as rochas e se entranham nelas, absorvendo fósforo. Essas raízes ganharam um nome oficial: raízes velozioides. A identificação desse mecanismo exigiu o uso de microscópio tradicional e eletrônico, além de uma série de técnicas, como fluo- rescência de raios X e cromatografia. Coordenado pelo biólogo Rafael Oliveira, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o estudo mostra uma função nova das raízes dessas plantas. “Elas desempenham um papel no intemperismo de rochas e na formação de solos que até então não era reconhecido”, diz. “Os geólogos con- sideram que a água, o vento e a temperatura cumprem esse papel. Aparentemente as plantas podem produzir efeitos mais importantes do que imaginávamos.”

A planta Barbacenia macrantha e suas raízes entranhadas na rocha, vistas ao microscópio (à dir.)

3 4

PESQUISA FAPESP 280 | 17 capa O retorno à Lua

Estados Unidos tentam antecipar para 2024 o regresso ao satélite natural da Terra, agora, com a meta de iniciar um assentamento permanente

Ricardo Zorzetto

Lua cheia, fotografada pela sonda lunar Reconnaissance Orbiter

18 | junho DE 2019 pouco mais de um mês de comple- tar 50 anos da chegada do homem à Lua, intensifica-se a movimen- tação no setor aeroespacial para permitir o retorno ao satélite na- Atural da Terra. Nas últimas semanas, duas em- presas privadas norte-americanas, a Blue Origin e a Lockheed Martin, apresentaram o desenho de módulos de pouso capazes de transportar astronautas de uma estação espacial a ser ins- talada na órbita lunar à superfície do astro e, dali, de volta a essa estação, à qual se acopla- rão os foguetes lançados da Terra. Em 1o de maio, a Boeing concluiu uma versão de testes em tamanho real da estação que a Nasa, a agên- cia espacial norte-americana, planeja instalar na órbita lunar a fim de servir de base para a exploração do satélite terrestre e um possível envio de missões interplanetárias. Em 20 de julho de 1969, um domingo, dois astronautas norte-americanos pisaram a super- fície poeirenta da Lua em decorrência de uma acirrada corrida de demonstração de poder mi- litar e tecnológico entre os Estados Unidos e a extinta União Soviética. Como antes, o desejo de voltar ao satélite terrestre envolve de novo interesses políticos, marcados pela capacidade de mobilizar os recursos humanos e financeiros para alcançar a meta, além da busca pela pri- mazia tecnológica. O discurso oficial, porém, trata dos objetivos científicos e de planos de exploração de riquezas naturais e criação de uma cadeia econômica envolvendo atividades como mineração, comunicação, transporte de cargas e passageiros, entre outras possibilidades. Cinco décadas após a primeira alunissagem, os Estados Unidos continuam sendo os protago- nistas de um possível retorno à Lua, dessa vez ameaçados pela China. No plano mais imediato, a ideia de ir à Lua e estabelecer uma base por lá está embebida, nos Estados Unidos, de um sentimento de orgulho nacional, além da am- bição do presidente Donald Trump de deixar uma marca grandiosa de sua passagem pela Casa Branca. Pouco após assumir a presidência dos Estados Unidos em 2017, eleito pelo Partido Republicano, ele demonstrou o desejo de gerar um legado na área espacial quase tão marcante quanto o do democrata John Kennedy, que, no início dos anos 1960, convenceu o país a levar o homem à Lua como forma de mostrar a supe- rioridade tecnológica norte-americana frente à

União Soviética, que liderava a corrida espacial NASA

PESQUISA FAPESP 280 | 19 (ver reportagem na página 24). Em abril de 1961, China, Índia, Europa e Israel). Os Estados Uni- os soviéticos foram os primeiros a enviar um ser dos, no entanto, foram os únicos a colocar pes- humano ao espaço, o cosmonauta Yuri Gagarin. soas na superfície lunar e continuam sendo um Ainda em 2017, ao pedir o orçamento da Nasa dos poucos países com tecnologia, conhecimento e estabelecer o objetivo de levar seres humanos e dinheiro para repetir o feito, embora surja no a Marte na década de 2030, Trump perguntou a cenário outra potência econômica determinada Robert Lightfoot Jr., à época administrador em a demonstrar poderio tecnológico: a China, que exercício da agência espacial, se não seria possí- tem um setor espacial em ascensão. vel realizar a missão antes do fim de seu primeiro mandato, em 2020. O diálogo, ocorrido na Casa as duas últimas décadas, a agência espacial Branca, foi descrito por Cliff Sims, ex-oficial de chinesa (CNSA) instalou, por conta pró- comunicação de Trump, no livro Team of vipers N pria, duas estações espaciais (Tiangong (Equipe de víboras), publicado neste ano. Pouco 1 e 2) na órbita da Terra, levou 11 astronautas depois, Trump restabeleceu o Conselho Nacional chineses (taikonautas) ao espaço e enviou nove do Espaço (NSC), órgão da presidência que deter- missões não tripuladas à Lua, das quais sete fo- mina as diretrizes espaciais norte-americanas, e ram bem-sucedidas e colocaram sondas na órbita definiu uma meta mais modesta: levar astronau- lunar ou naves em sua superfície. A mais recente, tas à Lua até 2028. Em março deste ano, o plano a Chang’e 4, pousou em janeiro deste ano uma mudou, e a viagem foi antecipada para 2024 – nave e um jipe-robô no lado distante do satélite possivelmente na esperança de que ocorra ao terrestre. “Hoje, a China é o único país que tem fim de um eventual segundo mandato de Trump. razões fortes para levar seres humanos à Lua”, Voltar à Lua até essa data, dessa vez para es- Representação afirma o engenheiro mecânico José Bezerra Pes- tabelecer uma base de exploração por lá, é uma artística da cápsula soa Filho, pesquisador aposentado do Instituto meta audaciosa com prazo exíguo. Em seis dé- Órion, que deverá de Aeronáutica e Espaço (IAE), estudioso da servir para o cadas, cerca de 130 missões tripuladas ou não transporte de história e da política da corrida espacial. “Ela foram enviadas ao satélite terrestre por um clube astronautas da se estabelecerá como potência global definitiva seleto (Estados Unidos, União Soviética, Japão, Terra à órbita lunar quando um de seus taikonautas puser os pés lá.” A nova missão norte-americana rumo à Lua re- cebeu em maio o nome oficial de Artêmis, deusa grega da natureza e da caça, irmã gêmea do deus Apolo, que emprestou o nome ao programa tri- pulado da Nasa dos anos 1960. Para que Artêmis não fique no papel, a agência norte-americana e as empresas que colaboram com ela terão de apertar o passo e receber investimento pesado. É preciso completar o desenvolvimento do Space Launch System (SLS), um superfoguete capaz de alcançar a Lua, que, se tudo der certo, deve voar pela primeira vez no próximo ano. Também é necessário concluir os testes da cápsula Órion, o meio de transporte dos astronautas da Terra ao Gateway, a estação espacial a ser construída na ór- bita lunar. Essa estação deverá estar parcialmente pronta até 2024, para permitir repetidos pousos lunares em módulos reutilizáveis que ainda não existem – nas missões Apollo, as naves desciam uma única vez e depois retornavam à Terra. “O presidente desafiou a Nasa a desembarcar a primeira mulher americana e o próximo homem americano no polo Sul da Lua até 2024, para, em seguida, estabelecer uma presença sustentada na Lua e ao seu redor até 2028”, contou William Gerstenmaier, administrador associado de Explo- ração e Operações Humanas da Nasa, à Pesquisa FAPESP. Em entrevista por e-mail, ele afirmou que os esforços serão liderados pelos Estados Unidos, com envolvimento significativo de par- ceiros internacionais. A Agência Espacial Euro- peia (ESA), por exemplo, já provê os sistemas de

20 | junho DE 2019 A proximidade da Lua também pesa a favor de usá-la como campo de provas. A distância que a separa da Terra varia de 363 mil a 405 mil quilô- metros, que podem ser percorridos em três dias. Já Marte, nos períodos de maior proximidade, fica 130 vezes mais longe, a 55 milhões de quilômetros de distância, o que representa ao menos nove me- ses de viagem. “A Lua é onde, juntos, desenhare- mos, desenvolveremos e testaremos os sistemas que, por fim, nos ajudarão a enviar astronautas ao planeta vermelho”, afirma Gerstenmaier. Ir à Lua não exige o desenvolvimento de tec- nologias completamente inovadoras, segundo Oswaldo Loureda, fundador e diretor-técnico da Acrux Aerospace Technologies, startup brasileira especializada na produção de pequenos foguetes, drones e estruturas para microssatélites. Desde o programa Apollo, sabe-se chegar lá. “O desafio atual são o cronograma e os custos”, afirma. Tão importante quanto concluir o desenvolvimento de um foguete poderoso é completar os testes para a certificação de que as cápsulas em desenvolvimen- propulsão e de energia da cápsula Órion, e o Ca- Concepção to são seguras para transportar seres humanos. nadá deve fornecer parte da robótica do Gateway. artística do Agências espaciais, especialistas e amantes da foguete SLS, exploração do espaço elencam outros interesses “Criamos padrões de interoperabilidade interna- atualmente em cionais que permitirão que qualquer nação par- desenvolvimento científicos para justificar um retorno à Lua e a ticipe de nossos planos”, explicou Gerstenmaier. construção de uma base para ocupação humana. Um é investigar a geologia do astro, possivelmen- Por que voltar te formado há cerca de 4,5 bilhões de anos dos Em dezembro de 1972, os astronautas da , pedaços de rocha remanescentes do impacto de Eugene Cernan e Harrison Schmitt, foram os úl- um planeta chamado Theia, do tamanho de Mar- timos seres humanos a pisar a Lua. Demonstrada te, contra a Terra. A ausência de atmosfera (não a superioridade dos Estados Unidos no espaço, o venta nem chove por lá) preservaria estruturas programa Apollo, que consumira parte importan- na paisagem lunar que ajudariam a compreender te do orçamento norte-americano, foi encerrado. a evolução do Sistema Solar. Ima- Desde então, ninguém mais esteve lá. O desejo gina-se, por exemplo, que as crate- de retornar, porém, não desapareceu. Depois de ras lunares sejam cicatrizes de um a Nasa investir em missões não tripuladas (mais Para retornar à intenso bombardeio de meteoros baratas) para outros destinos no Sistema Solar, ocorrido há 4 bilhões de anos – na em 2004, George W. Bush solicitou à agência um Lua, será preciso Terra, esses sinais foram apagados plano de exploração tripulada com retorno à Lua concluir o pelo intemperismo e pela movi- até 2020 e Marte como destino final. Estimativas mentação das placas tectônicas. iniciais indicaram que esse programa, o Constel- desenvolvimento “Vejo a Lua como um portal lation, consumiria em 10 anos US$ 230 bilhões para a exploração do espaço pro- (valores de 2004). Houve avanços iniciais, mas, do foguete SLS fundo”, diz o engenheiro espacial ante a necessidade de recursos vultosos, Barack Antônio de Almeida Prado, espe- Obama o encerrou em 2009, mantendo o desen- e da cápsula cialista em manobras orbitais e volvimento do foguete SLS e da cápsula Órion. Órion trajetórias espaciais do Instituto Os entusiastas enumeram razões para voltar à Nacional de Pesquisas Espaciais Lua. Uma é que há muito a aprender antes de mirar (Inpe). A gravidade na Lua é seis alvos mais desafiadores, como Marte. Por exemplo, vezes inferior à terrestre. Por essa sabe-se pouco sobre o que ocorre com o corpo hu- razão, a superfície lunar ou esta- mano após longos períodos em ambiente de baixa ções espaciais em sua órbita permitiriam lançar gravidade e exposto à radiação cósmica. Mesmo naves e sondas maiores e com mais massa do que os astronautas que permaneceram mais tempo no a partir da Terra, abrindo caminho para missões espaço, na antiga estação russa ou na ISS (Es- mais distantes e longas.

nasa tação Espacial Internacional), não passaram tempo Interesses econômicos também guiam o retor-

ens suficiente em baixa gravidade e expostos à radiação no e a possível colonização do satélite terrestre.

i mag para simular a vida na Lua ou uma viagem a Marte. Estudos sugerem que a Lua teria uma quanti-

PESQUISA FAPESP 280 | 21 dade importante de minerais raros. Lá, haveria dade e libera os Estados para levá-la adiante. Na também grandes concentrações de hélio 3, uma ausência de um consenso internacional, Nakaho- versão do elemento químico hélio rara na Terra do projeta que a ocupação e a exploração lunar e que, em princípio, permitiria realizar reações seguirão os moldes do que ocorreu na Antártida. termonucleares, com a liberação de muita ener- Em documento assinado em 1959, os 12 países gia. Da água congelada nas crateras do polo Sul, que reclamavam posse de partes continentais da seria possível extrair oxigênio para os astronautas Antártida se comprometeram a suspender suas e hidrogênio para ser usado como propelente dos pretensões por tempo indeterminado. O texto foguetes. Empresas privadas nos Estados Unidos estabelece que outros países que desejem parti- e na Europa e países como a China já vislumbram cipar das discussões sobre o continente devem formas de explorar esses recursos, em uma possí- demonstrar que realizam pesquisas científicas vel corrida mineralógica que movimentaria uma substanciais na região. “Se houver um tratado economia trilionária. Esse cenário, porém, depen- nesses moldes, o Brasil só será ouvido caso se de do barateamento das viagens por meio do uso mostre capaz de desenvolver pesquisas relacio- de naves e foguetes reaproveitáveis. nadas à Lua”, diz Nakahodo. Por ora, sem programas governamentais des- estabelecimento de uma colônia humana tinados a estudar a Lua, o Brasil conta com um lunar poderia ainda servir de experimen- projeto privado, o Garatéa-L, que pretende enviar O to sociológico e antropológico, na opinião um nanossatélite para a órbita lunar (ver reporta- do engenheiro e empreendedor brasileiro Sidney gem na página ao lado). “Colocar um equipamento Nakahodo, cofundador e diretor-executivo da próximo à Lua e manobrá-lo pode permitir ao país New York Space Alliance, startup sediada nos entrar para um clube restrito”, afirma Carlos Au- Estados Unidos que fomenta o desenvolvimen- gusto Teixeira de Moura, presidente da Agência to de startups espaciais. Professor da Escola de Espacial Brasileira (AEB). “Seria uma demonstra- Administração Pública e Relações Internacionais ção de capacidade técnica que nos daria alguma (Sipa), da Universidade Columbia, Nakahodo voz em um cenário internacional futuro.” projeta que os moradores de assentamentos hu- Antes que essas possibilidades se tornem rea- manos fora da Terra poderiam criar novas formas lidade, no entanto, é preciso recuperar a capa- de organização social e de exploração econômica, cidade de voltar à Lua, algo que não será tão fá- O jipe-robô regidas por um arcabouço legal que ainda estaria -2, cil quanto Trump desejaria. Em 16 de maio, um por ser definido. fotografado pela projeto de lei da Câmara dos Representantes dos O Tratado do Espaço Sideral, de 1967, impede sonda chinesa Estados Unidos – o equivalente à Câmara dos que seus signatários reclamem a posse de territó- Chang’e 4, que Deputados brasileira – adicionou US$ 1 bilhão pousou em rios em outros corpos celestes. Também estabe- janeiro na face ao orçamento da Nasa para o ano fiscal de 2020. lece que a exploração deve beneficiar a humani- distante da Lua Com o acréscimo, a agência deve receber cerca de US$ 23 bilhões, o equivalente a cerca de 0,5% dos gastos federais norte-americanos, muito dis- tante dos 4% consumidos no auge do programa Apollo. Mesmo com a suplementação, a verba da agência deve ser insuficiente para o retorno à Lua até 2024 – alguns especialistas estimam que seriam necessários acréscimos anuais de US$ 5 bilhões a US$ 8 bilhões pelos próximos anos para atingir a meta. A verba adicional aprovada em maio é quase 40% inferior à solicitada por Trump. Na véspera da aprovação, congressistas do Partido Democra- ta, de oposição ao governo, viram com descon- fiança a emenda orçamentária da Casa Branca. “Vou reservar meu julgamento sobre o plano ge- ral de pouso na Lua até que o Congresso receba informações mais concretas sobre a iniciativa”, declarou a deputada democrata Eddie Bernice Johnson, do Texas, que preside o Comitê de Ciên- cias da casa. Segundo reportagem de 16 de maio da revista SpaceNews, especializada em política e negócios do setor espacial, Johnson está inte- ressada em conhecer algo ainda não revelado:

o custo total e os detalhes técnicos da missão. n nasa

22 | junho DE 2019 Missão lunar brasileira

Projeto Garatéa-L planeja colocar na órbita do satélite terrestre experimento para avaliar a resistência da vida sob alta radiação

Representação artística ucas Fonseca retornou ao Brasil dor da Terra, passando por períodos de da sonda Garatéa-L em 2013 e descobriu que sua for- maior e de menor exposição à radiação mação profissional teria pouca espacial, vinda em especial do Sol. Na L aplicação prática no país. Gra- Terra, o campo magnético e a atmosfera duado em engenharia mecatrônica pela protegem seres vivos e equipamentos da senvolvido pelo Instituto Tecnológico de Universidade de São Paulo (USP) em São radiação espacial. Aeronáutica (ITA) e testado em labora- Carlos, ele fez mestrado em engenharia O resultado das medições automáticas tório pelo Instituto Nacional de Pesqui- aeroespacial no Instituto Superior de dos seis meses de operação será enviado sas Espaciais (Inpe). Ele será uma versão Aeronáutica e Espaço da França e tra- à Terra por sinais de rádio. “Se os mi- aprimorada de dois nanossatélites: o Ita- balhou por quase três anos na Agência crorganismos sobreviverem no espaço, sat e o Sport. Lançado em 2018, o primei- Espacial Alemã (DLR), em um projeto faremos testes em laboratórios na ten- ro coleta dados de temperatura, umidade da Agência Espacial Europeia (ESA). Lá, tativa de identificar quais mecanismos e pressão em 900 estações instaladas em integrou uma missão pioneira, a , bioquímicos os protegem da radiação”, território brasileiro. Já o Sport, em de- que pousou uma sonda na superfície de conta Fonseca, diretor de operações da senvolvimento em parceria com a Nasa um cometa. Sem mercado para atuar Airvantis e responsável por captar o fi- e duas outras instituições norte-america- em missões espaciais por aqui, Fonseca nanciamento da missão. Essas informa- nas, deverá ficar pronto em 2020 e será decidiu empreender: buscou parceiros ções podem ser úteis para diminuir a ex- usado para fazer medições da ionosfera. e abriu a empresa Airvantis, sediada em posição humana à radiação ou minimizar Localizada acima de 60 km, essa camada São Carlos. Também criou a Garatéa-L, a seus danos em viagens espaciais longas. da atmosfera sofre a influência das tem- primeira missão planejada para colocar pestades solares, que podem danificar uma sonda brasileira na órbita da Lua. extremófilos satélites e afetar a orientação de aviões. A Garatéa, palavra que em tupi-gua- Atualmente, Rodrigues e sua equipe se- “A Garatéa será um nanossatélite mais rani significa busca-vidas, é uma missão lecionam os microrganismos mais ade- avançado do que o Sport. Seu hardware científica sofisticada, apesar do porte mo- quados para integrar o experimento. Em e seu software precisarão suportar um desto e do custo baixo para o setor (US$ testes com balões que voaram a 25 quilô- nível bem mais alto de radiação”, afirma 10 milhões, que estão sendo levantados). metros (km) de altitude, os pesquisado- o engenheiro mecânico Luís Loures, do Em um nanossatélite com 7 quilogramas res avaliaram a resistência de três espé- ITA, que coordena o desenvolvimento e o tamanho de uma caixa de sapatos, cies de fungos e uma de bactéria, todos do Sport. Se seu desenvolvimento der Fonseca e colaboradores de quatro insti- extremófilos, a condições de umidade e certo, a Garatéa-L tem uma chance de tuições brasileiras planejam instalar um temperatura muito baixas e altos índices ser lançada em 2022. n Ricardo Zorzetto experimento biológico. O grupo coorde- de radiação ultravioleta. Duas espécies nado por Fabio Rodrigues, do Instituto de fungo (Naganishia friedmannii e Exo- Projeto de Química (IQ) da USP, pretende veri- phiala sp) sobreviveram em maior quan- Programa de pesquisa de observação e previsão de cin- ficar se bactérias e fungos extremófilos, tidade do que a bactéria Bacillus subtillis, tilação (Sport) (nº 16/24970-7); Modalidade Projeto

que vivem em ambientes extremamente segundo artigo publicado em 2018 na Temático; Pesquisador responsável Mangalathayil Ali ace

p Abdu (Inpe); Investimento R$ 3.727.020,43.

s inóspitos, sobrevivem no espaço. Applied and Environmental Microbiology. a Na órbita da Lua, Garatéa acompa- O experimento da Garatéa-L deve ser Os demais trabalhos consultados para esta reportagem

é garat nhará o astro em sua trajetória ao re- montado em um nanossatélite a ser de- estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 280 | 23 Da guerra ao espaço

Em 20 de julho, completam-se 50 anos da chegada do homem à Lua, uma saga tecnológica e militar com reviravoltas

s disputas políticas e milita- Ápice da corrida espacial, a ida à Lua rios secretos (entre eles o Zond), no lado res foram o motor dos avanços exigiu um investimento pesado no de- soviético. O objetivo era preparar astro- científicos e tecnológicos que senvolvimento de tecnologias que per- nautas e cosmonautas para resistirem às A levaram o homem ao espaço mitissem construir um foguete potente condições da viagem e, se preciso, operar e e, há 50 anos, à Lua. No domingo 20 o suficiente para vencer a gravidade ter- até fazer reparos nas naves durante o voo. de julho de 1969, os astronautas norte- restre e impulsionar uma cápsula a cerca Só o programa Apollo, o mais conhecido, -americanos Neil Armstrong (1930-2012) de 40 mil quilômetros por hora para além teria consumido de 1960 a 1972 US$ 163 e Edwin Aldrin deixaram o módulo de da órbita do planeta. A cápsula tinha de bilhões, em valores de 2008. comando e serviço sob o controle de Mi- estar preparada e ser resistente o sufi- Todo esse esforço, porém, começou chael Collins e, horas mais tarde, a bordo ciente para, no retorno, ser freada pelo um quarto de século antes, como resul- do módulo de pouso Águia, desceram atrito da atmosfera terrestre e aquecida tado de uma acirrada disputa política e no mar da Tranquilidade, na face lunar a alguns milhares de graus Celsius, sem militar entre os Estados Unidos e a União sempre visível a partir da Terra. O feito fritar seus ocupantes. Do ponto de vista Soviética após o fim da Segunda Guerra histórico foi acompanhado por milhões operacional, foi preciso investir no in- Mundial. Ambos os países haviam saído de pessoas no mundo, via transmissão tenso treinamento físico e emocional da política e tecnologicamente mais fortes televisiva, e marcou o fim da corrida equipe que faria as viagens, em geral ex- da guerra, na qual foram aliados contra espacial entre os Estados Unidos e a -pilotos de caça. Foi assim que nasceram a Alemanha e os outros dois países do ex-União Soviética, as duas potências programas como o Mercury, o Gemini e Eixo, Japão e Itália. Com a capitulação econômicas e militares da época. o Apollo, no lado norte-americano, e vá- alemã, em 8 de maio de 1945, os quatro

24 | junho DE 2019 países que partilhariam o território ger- no livro The Smithsonian history of space produção do V-2 para a União Soviética. mânico após a Conferência de Potsdam, exploration, de 2018. “Antes do conflito, Em outubro do ano seguinte, os soviéti- em agosto, estavam atrás dos espólios de o progresso na área de foguetes havia si- cos testaram seu primeiro míssil. guerra. Estados Unidos, França, Reino do errático, mas a iminência da guerra Em termos de poder de destruição a Unido e União Soviética tinham interes- serviu para destacar o potencial militar distância, a União Soviética estava atrás se especial em uma arma alemã que, mais da tecnologia.” dos Estados Unidos. Só em 1949, os so- tarde, ajudaria o ser humano a chegar ao Após a derrota alemã, oficiais da inteli- viéticos testaram sua primeira bomba espaço. Essa arma era o foguete V-2 (Ver- gência norte-americana iniciaram rapida- atômica, que, além de mais pesada, exigia geltungswaffe Zwei, arma da vingança mente a operação Clipe de Papel, que le- o uso de aviões, navios ou submarinos dois), um míssil de 14 metros de altura, vou para os Estados Unidos pesquisadores para chegar à América do Norte e atin- capaz de viajar acima da velocidade do e técnicos alemães altamente capacitados, gir o país que se tornava seu principal som e levar 1 tonelada de explosivos a incluindo parte do time de von Braun. Em oponente. Com a piora nas relações com centenas de quilômetros de distância. setembro, um mês após os Estados Unidos os ex-aliados, Stalin criou um programa Seu criador era o jovem e talentoso lançarem bombas atômicas sobre Hiro- de desenvolvimento de mísseis de longo engenheiro alemão Werner von Braun shima e Nagasaki, no Japão, von Braun alcance, coordenado por Korolev, um (1912-1977), que se tornaria o maior de- e quase 120 colaboradores auxiliaram os habilidoso engenheiro e gestor. A partir senvolvedor de foguetes do mundo, até norte-americanos a remontarem e testa- do V-2, os soviéticos desenharam mísseis mesmo dos que levaram o homem à Lua. rem os V-2 levados da Alemanha. Natu- cada vez mais potentes, até chegar ao R-7, Von Braun e seus colaboradores começa- ralizados norte-americanos, os alemães o primeiro míssil balístico intercontinen- ram a trabalhar para o exército alemão começaram, alguns anos depois, a projetar tal. O R-7 era capaz de alcançar os Esta- em 1932, antes da ascensão de Hitler, mísseis mais avançados e de maior alcan- dos Unidos, mas só poderia ser lançado e, dois anos mais tarde, já tinham dese- ce, como o Redstone, mais tarde usado no de alguns pontos da União Soviética. nhado os primeiros mísseis impulsio- treinamento dos primeiros astronautas. Enquanto os Estados Unidos começa- nados por foguetes. Em 1937, o grupo vam a usar os mísseis em pesquisas dos criou o V-2, do qual foram produzidas O início da corrida efeitos da atividade solar na Terra, pla- 6 mil unidades nos dois últimos anos da Embora houvessem ocupado a parte nejavam lançar um satélite para coletar guerra, em grande parte por prisioneiros oriental da Alemanha, onde estavam as dados geofísicos da Terra e iniciavam de campos de concentração. Um quarto fábricas de V-2, os soviéticos foram mais programas para levar seres humanos deles foi lançado contra a Inglaterra e lentos. Em seu livro, Launius relata que, ao espaço, Korolev vislumbrou uma jo- outro tanto contra outros países, cau- logo após o final da guerra, o líder so- gada de marketing. Convenceu Nikita sando danos consideráveis. No início de viético Josef Stalin (1878-1953) enviou à Krushev (1894-1971), sucessor de Stalin, 1945, com a aproximação dos exércitos Alemanha ocupada uma equipe coorde- a substituir o material explosivo de um aliados, von Braun percebeu que a guerra nada por Sergei Korolev (1907-1966) para R-7 por um satélite simples e colocá-lo estava perdida e decidiu se entregar aos entrevistar engenheiros e técnicos que no espaço. Em 4 de outubro de 1957, foi norte-americanos com os documentos haviam participado da produção do V-2 lançado o , o primeiro objeto técnicos sobre os mísseis. e que não tinham sido capturados pelos artificial na órbita do planeta – o satélite “A Segunda Guerra Mundial mudou outros aliados. Os soviéticos recupera- esférico de 84 quilogramas emitia um bip tudo no campo de desenvolvimento de ram material para reconstruir 12 mísseis rastreável no mundo todo por operado- foguetes”, escreve Roger D. Launius, his- e, em outubro de 1946, levaram cerca de res de rádio. “Esse feito teve um impacto nasa toriador-chefe da Nasa de 1990 a 2002, 200 alemães que haviam trabalhado na simbólico importante”, explica o enge-

Foto tirada pelo astronauta Neil Armstrong mostra sua própria sombra (à esq.) e o módulo de pouso da Apollo 11

PESQUISA FAPESP 280 | 25 Os diretores de voo da Gerald Griffin, Eugene Kranz e Glynn Lunney (na primeira fila, a partir da esq.) comemoram o pouso dos astronautas na água

levará certo tempo para alcançá-los”, disse Kennedy. O voo de Shepard, em maio daque- le ano, não atingiu a órbita, assim como o voo seguinte, realizado em julho por Virgil Grissom (1926-1967), cuja cápsula, após o retorno, afundou no oceano – ele foi resgatado a tempo por um helicóptero. Só em fevereiro de 1962, os norte-ame- ricanos voltariam a sentir orgulho. John Glenn (1921-2016), a bordo da cápsula nheiro mecânico José Bezerra Pessoa Fi- 1958 a Nasa, unificando sob a administra- Friendship7, completou três voltas ao re- lho, pesquisador aposentado do Instituto ção de uma agência civil todos projetos dor da Terra. Em junho do ano seguinte, de Aeronáutica e Espaço (IAE), em São relacionados ao setor espacial. Menos de os soviéticos voltariam a incomodar no- José dos Campos, e estudioso da história uma semana depois, Eisenhower estabe- vamente, colocando a primeira mulher, e da política da corrida espacial. “Mostrou leceu como meta para a agência colocar Valentina Tereshvova, no espaço. aos Estados Unidos que a União Soviética um norte-americano no espaço. Em seus primeiros meses de gover- tinha condições de atingi-los com armas De 1958 a 1963, sete pilotos de caça no, Kennedy amargava outros contra- nucleares em meia hora.” foram treinados para ir ao espaço no pro- tempos, como o apoio à frustrada ten- Um mês depois do Sputnik, os sovié- jeto Mercury. Menos de um mês antes de tativa de invadir Cuba. Ainda em abril ticos lançaram um foguete com a cadela o astronauta Alan Shepard (1923-1998) de 1961, ele pediu a seu vice, Lyndon a bordo, colocando o primeiro ser fazer o primeiro voo até a alta atmosfera, Johnson (1908-1973), que consultasse a

vivo no espaço. Eles marcavam o segun- os soviéticos surpreenderam novamen- Nasa sobre a possibilidade de os Esta- onso do gol, antes que os Estados Unidos con- te. Em 12 de abril de 1961, o cosmonauta dos Unidos realizarem um feito difícil a ff re seguissem pôr em órbita seu primeiro Yuri Gagarin (1934-1968) completou uma de ser alcançado pelos soviéticos. Com d an satélite, o Explorer 1, em janeiro de 1958. órbita ao redor da Terra a bordo da nave a garantia da equipe de von Braun de x A le

Vostok 1. Em seguida ao voo, o presidente que seria possível levar um homem à co fi Um longo percurso norte-americano John Kennedy (1917- Lua e trazê-lo de volta, em 25 de maio Incomodado com o avanço do país co- 1963) fez um discurso cumprimentando daquele ano, Kennedy fez um discurso OG Rá INF munista, o então presidente norte-ame- os soviéticos e reconhecendo a desvan- impactante. “Acredito que esta nação nasa ricano, o general Dwight Eisenhower tagem de seu país. “Estamos atrás... e as deve comprometer-se a atingir o obje- s oto

(1890-1969), criou em 1º de outubro de notícias vão piorar antes de melhorar, e tivo, antes que esta década termine, de f

Pioneiros no espaço Missão Missão Soviéticos lideraram os primeiros anos da disputa com os norte-americanos soviética norte-americana

Out. 1957 Jan. 1958 Abr. 1961 Jun. 1963 Primeiro Primeiro satélite Yuri Gagarin é o Primeira mulher no satélite artificial americano primeiro homem espaço (Valentina (Sputnik 1) (Explorer 1) no espaço Tereshkova)

Nov. 1957 Set. 1959 Abr. 1962 Cadela Laika, Primeira Primeira nave primeiro ser sonda lunar a atingir o lado vivo no espaço () oculto da Lua () ()

1957 1958 1959 1960 1961 1962 1963 1964

26 | junho DE 2019 pousar um homem na Lua e devolvê-lo -se, leram os primeiros versos do Gêne- grande salto para a humanidade”, disse em segurança à Terra”, afirmou ao Con- sis, deixando em silêncio e com os olhos Armstrong ao pisar o solo lunar. gresso norte-americano. E prosseguiu: marejados os integrantes do comando da Em duas horas, ele e Aldrin planta- “Nenhum projeto de espaço neste pe- missão, em Houston. ram a bandeira norte-americana, cole- ríodo será mais impressionante para a Houve ainda duas missões de teste – taram rochas e fizeram fotos. Ao partir, humanidade, ou mais importante para uma na órbita terrestre e outra na lunar deixaram uma parte do módulo com a a exploração espacial no longo prazo. E – antes de o homem pôr, de fato, os pés mensagem: “Aqui, os homens do planeta nenhum será tão difícil ou caro de rea- na Lua. Em 16 de julho de 1969, a cápsu- Terra puseram os pés na Lua pela pri- lizar”. Era o início do programa Apollo. la Apollo 11 partiu da Flórida, impulsio- meira vez, em julho de 1969. Viemos em Em paralelo ao projeto Mercury, en- nada pelo foguete Saturno 5, projetado paz em nome da humanidade”. cerrado em 1963, a Nasa treinou os astro- sob o comando de von Braun, levando Nos anos seguintes, outras seis naves nautas no projeto Gemini para realizar os astronautas Neil Armstrong, Edwin foram à Lua, das quais cinco pousaram. manobras de acoplamento em órbita, Aldrin e Michael Collins para a Lua. Col- Uma explosão no tanque de oxigênio da- necessárias para ir à Lua e retornar dela. lins permaneceu a bordo do módulo na nificou o módulo de serviço da Apollo 13 Nesse meio tempo, missões robóticas dos órbita lunar, enquanto Armstrong e Al- e obrigou os astronautas James Lovell, Estados Unidos e da União Soviética fo- drin desceram à superfície do satélite Fred Haise e John Swigert (1931-1982) a ram enviadas ao satélite da Terra, nova- no módulo apelidado de Águia. “[É] um retornar sem descer no satélite natural mente com os soviéticos saindo à frente. pequeno passo para [um] homem, um da Terra. Segundo o historiador Roger Em janeiro de 1967, em um voo simu- Launius, as missões seguintes instalaram lado em solo, a Apollo 1, que seria lan- cerca de 50 equipamentos na superfície çada semanas mais tarde, pegou fogo e Local de pouso das lunar e geraram dados publicados em matou asfixiados os astronautas Virgil missões tripuladas mais de 10 mil artigos científicos. Elas Grissom, Edward White (1930-1967) e também trouxeram 400 quilogramas de Roger Chaffee (1935-1967). Com o revés, rochas, analisadas por quase 60 labora- a Nasa mudou os planos e realizou uma tórios. Na , os astronautas David série de voos sem tripulantes, com a na- Scott e James Irwin (1930-1991) encon- ve controlada remotamente. Só em 21 traram uma rocha de 4 bilhões de anos, Apollo 15 de dezembro de 1968, os astronau- Apollo 17 hoje conhecida como Pedra Gênesis. tas Frank Borman, James Lovell Mar das Mar da O desinteresse do público e os Chuvas e William Anders deixariam o Serenidade cortes orçamentários do início Cratera Mar das planeta a bordo da e, Copérnico Crises dos anos 1970, durante a Guer- na véspera de Natal, entrariam Mar da ra do Vietnã, levaram a Nasa a Tranquilidade na órbita lunar. Em uma das 10 cancelar as três missões finais voltas ao redor da Lua, Anders do programa. Oceano das tirou uma foto que se tornaria Tempestades Em dezembro de 1972, Euge- icônica: a Terra emergindo no ne Cernan (1934-2017) e Harri- horizonte lunar, hoje conheci- Apollo 11 son Schmitt, da Apollo 17, foram da como Earthrise (o nascer da os últimos a pisar a superfície da Terra). Antes de encerrar as trans- Lua. Deste então, ninguém mais vol- missões para o comando da missão tou. Com a morte de Korolev em 1966 naquela noite, os três astronautas en- Cratera Tycho e problemas para desenvolver o foguete viaram uma mensagem de Natal a quem N-1, capaz de alcançar a Lua, os soviéticos os acompanhava em terra. Revezando- nunca colocaram um cosmonauta lá. n Ricardo Zorzetto

Fev. 1966 Dez. 1968 Jul. 1969 Jul. 1971 Abr. 1972 Primeiro pouso controlado 1ª missão Primeiros 3ª missão na 5ª missão na na Lua () tripulada a orbitar homens na Lua (Apollo 14) Lua (Apollo 16) a Lua (Apollo 8) Lua (Apollo 11)

Dez. 1969 Jul. 1971 Dez. 1972 2ª missão Estreia do Última missão tripulada jipe lunar tripulada à Lua (Apollo 12) (Apollo 15) (Apollo 17)

1965 1966 1967 1968 1969 1970 1971 1972

PESQUISA FAPESP 280 | 27 Entrevista France Córdova

Para entender a natureza das coisas

Diretora da National Science Foundation fala sobre a importância de financiar a ciência básica e analisa a contribuição das ciências humanas para a sociedade

Bruno de Pierro*

France Córdova: “É preciso demonstrar oi o astronauta norte-ameri- visora de texto, incluindo uma passagem por que um projeto de pesquisa é importante cano Neil Armstrong, em sua pelo jornal Los Angeles Times, Córdova para as pessoas” histórica viagem à Lua em julho concluiu, em 1979, o doutorado em as- de 1969, que inspirou a jovem trofísica no Instituto de Tecnologia da France Córdova, na época com Califórnia (Caltech), em Pasadena. F21 anos, a mudar radicalmente os rumos Ao longo de quatro décadas, assumiu de sua carreira profissional. O feito rea- diversas posições de liderança, como cendeu um antigo interesse por astro- a de cientista-chefe da agência espa- nomia, justamente quando se formava cial norte-americana (Nasa) – foi a pri- em literatura inglesa na Universidade meira mulher e a pessoa mais jovem a Stanford, nos Estados Unidos – o predo- desempenhar essa função, entre 1993 mínio masculino no ambiente acadêmico e 1996 –, de chanceler da Universidade a havia desencorajado de cursar física. da Califórnia, em Riverside, em 2002, Depois de trabalhar como redatora e re- e de reitora da Universidade Purdue, em

28 | junho DE 2019 2007. Em 2014, o presidente Barack Oba- Nascida em 1947 em Paris, filha de A senhora foi cientista-chefe da Nasa e ma escolheu-a para dirigir a National mãe irlandesa e pai mexicano, France atualmente comanda a agência de fo- Science Foundation (NSF), principal Córdova esteve em São Paulo entre os mento com um dos maiores orçamentos agência de apoio à pesquisa básica dos dias 1º e 3 de maio para participar do do mundo. De que forma a NSF apoia Estados Unidos, com orçamento su­ 8o Encontro Anual do Global Research programas para estimular a participa- perior a US$ 8 bilhões, o equivalente a Council (GRC), que reuniu dirigentes de ção feminina na ciência? R$ 32 bilhões. Sob sua direção, a agência agências de apoio à pesquisa de 45 paí- A equidade de gênero é uma grande financiou, por exemplo, o projeto Ligo ses. Em entrevista à Pesquisa FAPESP, preocupação e temos várias ações em (Laser Interferometer Gravitational- ela falou sobre equidade de gênero na andamento. Em muitas áreas, incluindo -Wave Observatory), que detectou ondas ciência e o impacto da pesquisa básica a minha, física, a representação feminina s gravitacionais em 2015, rendendo um na sociedade e comentou as ambições do ainda é muito baixa, assim como nas en- chave s prêmio Nobel dois anos mais tarde a três Plano S, uma iniciativa de acesso aberto genharias e na matemática. O problema físicos norte-americanos que lideraram para publicações científicas lançada pela é menor nas ciências biológicas e sociais.

Léo ramo Léo a pesquisa. Comissão Europeia. Podemos dizer que, nos Estados Uni-

PESQUISA FAPESP 280 | 29 dos, o panorama está mudando de forma com baixo nível socioeconômico. Ou constante, mas lentamente. A NSF tem apresentam alguma estratégia para o um programa chamado Advance, que treinamento da próxima geração. Por- investe em abordagens sistêmicas para tanto, estamos interessados em saber o aumentar a participação e o avanço das impacto que a pesquisa pode ter em um mulheres nas áreas de ciência, tecnolo- período mais curto de tempo. Todas as gia, engenharia e matemática [Stem]. O Boa parte de propostas enviadas à NSF precisam in- objetivo é encorajar as mulheres a buscar cluir um plano indicando como os dados postos de liderança nas universidades. nosso portfólio serão preservados e geridos e outro, de Fui pesquisadora principal desse pro- compõe-se de impacto, que deve envolver escolas e grama quando dirigia a Universidade buscar o alcance público. Os astrôno- Purdue. Quando fui para a NSF, teve iní- pesquisas mos, por exemplo, criaram as chamadas cio o programa Includes [acrônimo para star parties, que convidam a população “inclusão de comunidades de aprendizes movidas pela a observar o céu noturno. de descobridores sub-representados em engenharia e ciência em toda a nação”], curiosidade O financiamento público de pesquisas que envolve mais de 70 programas-piloto e nem temos nas áreas de ciências humanas, como por todo o país com diferentes estra- sociologia e filosofia, vem sendo ques- tégias para ampliar a representação da ideia de quais tionado em muitos países, incluindo mulher e de outras minorias. os Estados Unidos e o Brasil. Como de- descobertas monstrar o impacto dessas áreas? Qual é a ambição do Includes? A NSF não financia projetos em filosofia, Ele abrange desde programas de compu- vão surgir mas apoiamos estudos em economia e tação para crianças até estratégias para a partir delas comportamento social. Na área de eco- aumentar o número de faculdades e dis- nomia, já financiamos pesquisas que ciplinas em áreas estratégicas. Algumas vieram a ganhar o prêmio Nobel. Um dessas ações são lideradas por grupos trabalho que encomendamos às Acade- comunitários, outras por universidades, mias Nacionais de Ciências, Engenharia fundações e sociedades científicas. Cria- e Medicina dos Estados Unidos identifi- mos uma rede para que esses projetos se cou uma série de casos que evidenciam comuniquem. Recentemente, concede- como as pesquisas em comportamento mos um financiamento para que os par- social têm colaborado com disciplinas ticipantes se reúnam, troquem experiên- como as ciências da computação, aju- cias e aprendam boas práticas uns com dando-as a interpretar, por exemplo, os outros. Nossa expectativa é de que gia para fugir do trânsito. Aprende-se à por que há usuários da internet que co- isso possibilite ganhos de escala dessas medida que se experimenta a estrada e metem abusos ou fraudes. Com isso é iniciativas para que não morram quando encontra pessoas solícitas e capazes de possível entender que nem sempre as o projeto acabar. Queremos descobrir dar boas orientações. É possível tentar pessoas utilizam a tecnologia da forma como fazer projetos que se tornem, de coisas novas: contornar o obstáculo ou mais apropriada. Isso reflete uma ques- fato, exemplos de boas práticas de mo- tentar atravessá-lo. Tenho tido muitos tão social, não tecnológica. Muitos pro- do que sejam replicados em muitos ou- desafios pelo caminho. Algumas vezes jetos sobre segurança cibernética finan- tros lugares. encontrei pessoas apegadas a posições ciados pela NSF envolvem especialistas de poder. Mas sempre há quem possa em comportamento social. Há estudos Que obstáculos a senhora teve de en- te apoiar e é preciso aceitar essa ajuda. segundo os quais mais da metade das frentar para alcançar posições de li- mortes causadas por desastres naturais, derança? A reunião do GRC deste ano discutiu como terremotos e furacões, ocorre Tenho a opinião de que todos temos de- formas de avaliar o impacto econômico porque as vítimas não souberam tomar safios, não importa quem você seja ou e social da ciência. Como fazer isso em as melhores decisões no momento de qual trabalho esteja fazendo. Um mo- relação à pesquisa básica? escapar do perigo. Apoiamos pesquisa- torista de caminhão, por exemplo, está Não é preciso adivinhar o impacto que a dores para desenvolver métodos capa- sujeito a muitos percalços quando vai pesquisa básica terá em 10 ou 100 anos, zes de auxiliar as pessoas a responder de uma parte a outra do país. Sempre há até porque no caso da pesquisa movida corretamente aos alertas de desastre e obstáculos. Mas, evidentemente, mulhe- pela curiosidade é difícil saber qual será isso exige conhecimento sobre compor- res na área de ciência e tecnologia en- seu resultado. Mas é preciso demonstrar tamento humano. frentam tipos particulares de desafios. por que um projeto de pesquisa é impor- Quando se é um motorista de caminhão, tante para as pessoas. Cerca de 50% das Há um grau de interdisciplinaridade aprende-se com colegas de profissão em propostas que recebemos mencionam também em estudos sobre inteligência quais lugares não deve parar, qual es- impactos como aumentar a represen- artificial, não? trada pegar, qual é a melhor tecnolo- tatividade das mulheres ou de pessoas Sim, e o campo do comportamento social

30 | junho DE 2019 tem se mostrado essencial no desenvol- O Congresso tem garantido o orçamen- buscar apenas o lucro, mas também fazer vimento de novos algoritmos. Grandes to da NSF nos últimos anos. Mas, por avançar certas áreas de pesquisa impor- empresas, como a Amazon, estão preo- enquanto, estamos esperando a decisão tantes para o país. Mas isso não substitui cupadas em identificar e corrigir vieses final. Ainda não está claro se o Congres- o financiamento público, é apenas parte discriminatórios embutidos em algo- so e a Casa Branca poderão chegar a um de nosso portfólio. As empresas procu- ritmos de inteligência artificial. Esta- acordo sobre os gastos em 2020, antes do ram retorno no curto prazo, precisam mos realizando chamadas em parceria início do ano fiscal, no dia 1º de outubro dar satisfação e rentabilidade aos acio- com a empresa para financiar projetos de 2019. Estamos gratos pelo dinheiro nistas. Em nosso caso, muitos de nossos que reúnam cientistas da computação e que recebemos e sempre informamos o acionistas nem sequer nasceram. São especialistas em comportamento social Congresso sobre o que já fizemos com nossos netos e bisnetos que vão se be- para encontrar soluções. os recursos que recebemos. neficiar da pesquisa que estamos finan- ciando e conduzindo hoje. Boa parte de Na sua avaliação, estamos em um bom O que pode acontecer se o corte for nosso portfólio compõe-se de pesquisas momento para fazer ciência, conside- aprovado? movidas por curiosidade e nem temos rando que há pessoas em posição de po- Se aprovado, é claro que haverá corte ideia de quais descobertas vão surgir a der que negam as mudanças climáticas nas atividades da NSF. Sempre buscamos partir delas ou quanto tempo levaremos e que movimentos anticientíficos, como ser mais eficientes e efetivos. Estamos para nos beneficiar dos resultados. o terraplanismo, ganham adeptos? fazendo mais parcerias, com empresas Sim. Quanto mais elementos anticientí- como Amazon e Boeing, por exemplo, Qual é a sua avaliação sobre a reunião ficos surgem, mais temos de acelerar a como forma de expandir nossa base de do GRC realizada em São Paulo? ciência. Não somos uma agência regu- recursos. Muitas vezes o setor priva- Eu aprendi muito com o GRC. Esta é a latória. Não estabelecemos regras sobre do é capaz de fazer coisas que o finan- sexta reunião de que participo e sempre o que fazer com a ciência e também não ciamento público não pode. Empresas faço mais amigos. Em cada reunião esco- elaboramos políticas públicas. A NSF é e fundações privadas podem oferecer lhemos tópicos diferentes para discutir. uma agência de fomento à pesquisa e a prêmios a pesquisadores ou promover O que o GRC faz melhor é reunir finan- melhor forma de desfazer mitos e en- competições. Governo e indústria devem ciadores de pesquisa para conversar so- tender a verdadeira natureza das coisas trabalhar juntos e as parcerias público- bre os desafios comuns e quais soluções é financiando pesquisas sobre como o -privadas podem ser aprofundadas. Não funcionaram bem. É muito interessante planeta funciona. poder levar esse conhecimento para casa e discutir como aplicá-lo. Um dos temas discutidos na reunião do GRC foi a questão do acesso aberto às Como as discussões realizadas no even- publicações científicas. Qual a posição to poderão ajudar as agências a desen- da NSF sobre o Plano S, que propõe a volver melhor seu trabalho? divulgação imediata na web de artigos Perguntei aos integrantes do governing financiados com recursos públicos? board [conselho diretor] como suas agên- Estamos, no momento, seguindo a po- cias têm se beneficiado e eles disseram lítica de acesso aberto estabelecida em que as discussões do GRC permitem ala- 2016, sob a administração anterior. Isso Nem sempre vancar as ações que desenvolvem em não significa que não possa haver mu- seus países. Quando os participantes se danças no futuro. Atualmente, a NSF as pessoas reúnem e chegam a acordos sobre deter- determina que os artigos que resultem utilizam a minados princípios, como fizeram nova- de projetos financiados pela agência se- mente este ano em relação à avaliação jam disponibilizados em acesso aberto tecnologia da de impacto da pesquisa, isso realmente um ano após sua publicação. Esta é a faz a diferença. É uma motivação para posição oficial da NSF no momento. O forma mais as agências seguirem nessa direção. O acesso aberto é uma questão importan- GRC tem grupos de trabalho voltados te e estamos discutindo, mas ainda não apropriada e para assuntos específicos, como equi­ temos uma posição oficial em relação isso reflete uma dade de gênero na ciência e acesso aber- ao Plano S. to. Não há outra organização capaz de questão social, reunir as principais agências de fomento O governo dos Estados Unidos está pro- do mundo em torno dessas questões. O pondo um corte de 12% no orçamento não tecnológica progresso da ciência depende de finan- da NSF, mas a Câmara dos Deputados ciamento e as agências precisam ser ca- do país fez uma contraproposta, suge- pazes de demonstrar os benefícios da rindo um aumento de 7% das verbas pesquisa para as pessoas que oferecem para a agência em relação ao ano pas- os recursos. n sado. Qual é sua expectativa em rela- ção a isso? *Colaborou Karina Toledo, da Agência FAPESP

PESQUISA FAPESP 280 | 31 Entrevista Peter Strohschneider

Liberdade para buscar o desconhecido

Presidente da Sociedade Alemã de Amparo à Pesquisa, a DFG, diz que é preciso preservar o espaço de pesquisas guiadas pela curiosidade dos cientistas

Rodrigo de Oliveira Andrade

filólogo alemão Peter Strohsch- Por que o GRC decidiu discutir as expectativas neider, de 63 anos, defende que o em relação aos impactos econômicos e sociais apoio equilibrado a todas as áreas da pesquisa? do conhecimento é essencial para O GRC lida com a relação entre ciência, pesqui- qualquer país comprometido com sa, sociedade e economia desde que foi criado. Já Oo desenvolvimento no longo prazo. No entanto, tratou dela em diferentes ocasiões, mas a decisão destaca o potencial das ciências humanas: “Sem concreta de começar a discutir esse assunto de elas, estaríamos condenados a uma visão ingênua modo mais amplo se deu na reunião do último e limitada sobre as sociedades e suas dinâmicas ano, em Moscou, na Rússia. Decidiu-se à época e desafios”. Presidente da Sociedade Alemã de que o tema da reunião de 2019 deveria ser como Amparo à Pesquisa (DFG), principal agência de as agências de financiamento poderiam lidar com fomento à ciência básica no país, ele esteve em essas expectativas. São Paulo no início de maio para o 8º Encontro Anual do Global Research Council, o GRC (ver Qual a importância dessa discussão hoje? reportagem na pág. 36). Na entrevista a seguir, O aumento das expectativas sobre impactos so- Strohschneider fala sobre as expectativas das ciais e econômicos da pesquisa não é algo novo. sociedades em relação aos impactos econômicos O debate sobre se a ciência deveria se preocupar e sociais de pesquisas, tema central do encontro, e apenas em buscar a verdade, por meio de um co- a importância de manter um ecossistema equili- nhecimento puro e integrado, ou almejar obter s

brado de financiamento, no qual sejam contem- resultados que pudessem ter alguma utilidade ve a ch plados projetos talhados para gerar novos pro- prática se desenvolve desde que a ciência existe. s

dutos e tecnologias e também aqueles guiados A questão com a qual os sistemas de pesquisa es- a mo

apenas pela curiosidade intelectual dos cientistas. tão tendo de lidar nos últimos anos não envolve r Léo

32 | junho DE 2019 Na DFG, Strohschneider atua para manter um ecossistema equilibrado de apoio a pesquisas que gerem inovações incrementais e disruptivas

apenas o crescimento de expectativas sobre impactos sociais e econômicos, mas também sobre impactos diretos e imediatos. O aumento dessas expec- tativas não reflete necessariamente uma deficiência da pesquisa, mas uma mudança do discurso acerca de expec- tativas políticas e justificativas sociais para o financiamento da ciência.

Há riscos ao se adotar o impacto eco- nômico e social como critério para decidir se um projeto deve ou não ser apoiado? A questão não é se a pesquisa deve ou não ter impacto. Nenhum pesquisa- dor reivindicaria o direito de desen- volver um trabalho se não esperasse que ele pudesse ter algum impacto. Da mesma forma, nenhuma sociedade espera que os cientistas se dediquem a projetos que não tenham potencial de impacto. Não é essa a questão, pois não há pesquisa inócua em relação ao seu impacto. No entanto, as pesquisas podem apresentar diferentes tipos de impacto, como ampliar as fronteiras de algum tipo de conhecimento, con- tribuir para o desenvolvimento das sociedades, estimular inovações tec- nológicas ou promover a formação de mão de obra científica qualificada. A questão principal é como as agências de financiamento podem lidar ou res- ponder a essas expectativas sociais e econômicas.

E como o GRC tratou essa discussão? Optamos por nos concentrar em duas abordagens. Uma delas consiste em discutir se os impactos sociais e econô- micos podem ser adotados pelas agên- cias financiadoras como um critério no processo de decisão de financiamento de um projeto. Em outra frente, ava- lia-se se esses impactos deveriam ser adotados como um critério de avalia-

PESQUISA FAPESP 280 | 33 ção das pesquisas concluídas ou ainda preciso estar aberto a essa abordagem, em desenvolvimento. Ambas as abor- que tem o potencial de produzir o que dagens exigem uma reflexão cuidadosa chamo de novo-novo, não o velho-novo por parte das lideranças das agências de ou o novo que eu já esperava. Os sistemas financiamento. de pesquisa das sociedades modernas Os regimes não podem focar apenas em inovações Por quê? incrementais, que promovam pequenas Os riscos de se implementar critérios autocráticos melhorias ou atualizações em produtos, de avaliação dos impactos de pesqui- temem a serviços, processos ou métodos já exis- sas concluídas ou em desenvolvimento tentes. Precisam investir também em são consideravelmente menores quando liberdade das projetos que possam resultar em inova- comparados aos riscos de se adotar cri- ções disruptivas, um conhecimento que térios durante o processo de decisão de ideias e o debate não se esperava obter quando se inicia- financiamento de projetos de pesquisa. ram os esforços de pesquisa. Um projeto representa uma promessa. intelectual Decidir se um projeto será financiado promovido nas Como as agências financiadoras po- com base no impacto esperado significa dem ajudar governos e tomadores de tentar antever algo que nem sequer co- universidades decisão a compreender e valorizar o meçou e não se sabe se existirá. Não se investimento nesse tipo de pesquisa? pode dizer que isso seja uma base sólida e vão sempre Deixando claro que existem diferenças de avaliação. Além disso, haveria o risco entre os sistemas sociais, políticos, eco- de os proponentes tentarem alinhar a tentar restringir nômicos e científicos que constituem seleção de seus tópicos de investigação sua autonomia as sociedades modernas e que cada um às expectativas de impacto futuro das desses sistemas trabalha com princípios agências. Isso restringiria o espectro de próprios e distintos uns em relação aos suas pesquisas e a produtividade de seus outros. Por exemplo, no âmbito do sis- autores, uma vez que os estimulariam a tema educacional, as universidades, as formular projetos apenas para solucionar escolas primárias e secundárias, os jar- problemas já conhecidos. Um sistema dins de infância, cada um trabalha com de financiamento científico moderno e nem problemas que elas julguem rele- um tempo próprio, específico em relação produtivo precisa estar aberto ao finan- vantes naquele momento. É fundamental aos seus objetivos. Assim como o siste- ciamento de pesquisas que se debrucem que parte do financiamento não obedeça ma educacional, o sistema de pesquisa também sobre questões desconhecidas às hierarquias de relevância pública e também trabalha com um tempo próprio. pela sociedade. expectativa de impacto e seja investida Ocorre, no entanto, que o sistema de pes- de modo autônomo, com o objetivo de quisa precisa de tempo e financiamento. Como isso vem sendo tratado pela DFG? preparar a sociedade para problemas Ele também trabalha com base em pers- Não muito diferente do que a FAPESP que ela ainda não conhece. pectivas de longo prazo. É importante está fazendo. Nosso orçamento é de € que os governos e tomadores de decisão 3 bilhões por ano. Esse valor vem so- Por que é importante manter o finan- percebam essas diferenças e entendam bretudo de impostos, dinheiro público ciamento à pesquisa guiada pela curio- que as sociedades entrarão em colapso repassado pelo governo federal e tam- sidade intelectual dos cientistas? se elas não forem capazes de lidar com bém pelos 16 estados alemães. Apenas É comum as sociedades questionarem a os sistemas que as compõem. No final uma pequena parcela da nossa receita aplicação do dinheiro público nesse tipo das contas, esse argumento, apesar de advém de recursos privados. No entan- de pesquisa, privilegiando atividades que mais complexo, tende a ser mais perti- to, independentemente do tamanho do deem um retorno visível e imediato, ain- nente para os políticos e tomadores de orçamento, o objetivo basilar de toda da mais em tempos de crise econômica e decisão do que o discurso alternativo, agência de financiamento, nacional ou escassez de recursos. No entanto, é im- baseado em promessas relacionadas aos estadual, deve ser o de criar e manter portante manter o financiamento porque possíveis impactos da pesquisa. O risco um ecossistema equilibrado de pesquisa a pesquisa guiada pela curiosidade tem dessas promessas é que nem todas se- e financiamento, no qual sejam contem- o condão de produzir um tipo realmente rão cumpridas em prazos que possam pladas as pesquisas feitas com o objetivo novo de conhecimento, um conhecimen- ser previstos. de gerar novos produtos e tecnologias to capaz de ir além das expectativas ini- e também as guiadas pela curiosidade ciais do cientista e da agência financiado- Por exemplo? intelectual dos pesquisadores. É impor- ra. Vivemos em sociedades, economias e A cura do câncer vem sendo reivindica- tante que as agências estabeleçam esse culturas fortemente baseadas na noção da por cientistas de todo o mundo nos equilíbrio, ainda que seja legítimo que as de renovação, inovação e progresso, e os últimos 50 anos. No entanto, ainda hoje, sociedades esperem que estudos finan- sistemas de pesquisa constituem a prin- as pessoas morrem por conta de com- ciados com dinheiro público tragam um cipal máquina responsável pela produ- plicações associadas ao câncer. O que a retorno tangível e imediato ou solucio- ção do conhecimento transformador. É sociedade assimila disso é que algumas

34 | junho DE 2019 das promessas feitas pelos sistemas de Como podemos explicar esse fenômeno? Qual a importância de preservar a au- pesquisas foram exageradas, e isso não Tem a ver com pelo menos dois fato- tonomia das universidades diante des- ajuda a gerar uma relação de confiança res, na minha avaliação. Um deles diz se cenário? entre esses sistemas e a sociedade e seus respeito ao fato, observado ao longo da Eu diria que as universidades são as má- governantes. Pelo contrário. história, de os regimes autocráticos ou quinas por meio das quais as sociedades ditatoriais tradicionalmente terem medo modernas produzem suas dinâmicas Como a DFG lida com esse assunto e da liberdade das ideias e do debate inte- internas. Vez por outra, isso pode de- que lição países como o Brasil poderiam lectual promovidos nas universidades. O sencadear revoluções estudantis, mas tirar da experiência alemã? outro ponto envolve a falta de compreen- não por culpa do sistema universitá- Não sei ao certo que lição o Brasil pode- são por parte desses governos do que é rio, e sim de um processo inerente ao ria tirar, mas posso dizer, em relação ao uma universidade e qual a sua função. funcionamento dessas instituições no sistema de pesquisa e de ensino superior Isso está diretamente relacionado ao âmbito das sociedades modernas. Elas da Alemanha, que os políticos aceitam e fato de esses governos negligenciarem são dinâmicas, produzem tensões e mu- compreendem que a atuação seja feita as complexidades intrínsecas às socie- danças de pensamento entre gerações. de forma integrada e complementar, de dades modernas. Ao fazerem isso, igno- Isso contribui para que as pesquisas modo a promover o equilíbrio entre o que ram, ou são incapazes de compreender, avancem, para que relações sejam re- chamamos de ciência básica e aplicada. como funciona um sistema de pesquisa vistas. A autonomia das universidades Nesse sentido, o financiamento feito pelo atual. Basta pegarmos o exemplo das é o princípio basilar desse processo. Os Ministério Federal da Educação e Pesqui- humanidades. Eu estou convencido de governos autocráticos têm medo desse sa da Alemanha torna-se complementar sua importância no desenvolvimento das tipo de dinâmica e dessa capacidade de ao sistema da DFG. Claro que vez ou ou- sociedades modernas. Compartilho da mudança e vão tentar de todas as formas tra enfrentamos pressões para mostrar o ideia de que as sociedades seriam sim- restringi-las, interferindo na autonomia impacto social ou a relevância econômica plesmente incapazes de se desenvolver das universidades. dos projetos que financiamos. No geral, e prosperar sem as humanidades. Sem porém, os líderes alemães compreendem elas, estaríamos condenados a uma visão Como avalia a declaração de princípios a importância de se ter um programa que ingênua e limitada acerca das sociedades aprovada na reunião do GRC? atue de forma autônoma em relação ao e suas estruturas, dinâmicas e desafios. Fiquei muito contente com ela. Espero financiamento de diferentes tipos de pes- que contribua para o aprimoramento do quisas, sejam elas orientadas por progra- debate sobre as expectativas da socie- mas temáticos e, portanto, aplicadas, ou dade em relação aos impactos das pes- guiadas pela curiosidade. quisas e ajude a orientar os membros do GRC. A questão é como tomar as melho- Em um discurso na reunião do GRC, o res decisões, como elaborar prioridades senhor mencionou riscos relacionados para o sistema de pesquisa, como torná- à onda de governos populistas em di- -lo equilibrado e plural em cada um dos versos países. Quais são esses riscos? As pesquisas países-membros do GRC. Está cada vez mais claro que a ascensão de governos populistas ou de novas for- guiadas pela O senhor acha que isso pode ser aplicado mas de políticas autocráticas está asso- curiosidade têm em países com contextos tão diferentes? ciada, entre outras coisas, ao surgimen- Creio que sim. Claro que será preciso to de movimentos anti-intelectuais ou o condão de adaptar ou modificar alguns pontos pa- anticientíficos. Os casos envolvendo as ra que possam ser implementados em mudanças climáticas e as vacinas são os produzir um tipo cada contexto. São princípios, não leis mais comuns, mas nas últimas décadas concretas. A proposta é que ajudem a passamos a testemunhar esse fenômeno de conhecimento orientar o processo de decisão. Nós os também no âmbito dos estudos de gêne- que vai além das formulamos de modo claro e objetivo ro e das discussões sobre a importância para serem facilmente implementados das ciências humanas e da autonomia expectativas pelos membros do GCR. Em um mo- das universidades. O caso da Turquia é mento em que a liberdade de pesquisa exemplar. Desde a tentativa frustrada dos cientistas e está sob pressão e cresce o ressenti- de golpe de Estado, em julho de 2016, o mento em relação a temas como mu- presidente Recep Erdoğan vem promo- das agências de danças climáticas globais, o papel do vendo demissões em massa de acadêmi- financiamento GRC torna-se ainda mais importante. cos, com base em alegações duvidosas de Minha expectativa é de que os princí- ligações com o terrorismo. Na Hungria, o pios endossados na reunião favoreçam primeiro-ministro Viktor Orbán reduziu o estabelecimento de uma rede de fi- os recursos ou privatizou universidades, nanciadores capaz de contribuir para censurou conferências com temas que um sistema internacional de pesquisa não eram de seu agrado. livre, aberto e produtivo. n

PESQUISA FAPESP 280 | 35 Financiamento

Benefícios do investimento em ciência

Reunião do Global Research Council em São Paulo tratou do desafio de lidar com as expectativas crescentes da sociedade em relação aos impactos da pesquisa

Fabrício Marques, com Agência FAPESP

erca de 50 dirigentes de organizações de lidar com cobranças para que a seleção e a análise dos fomento à pesquisa de 45 países reuniram-se resultados de projetos científicos sejam orientadas em São Paulo entre os dias 1º e 3 de maio para pelo impacto que podem alcançar. Nos últimos anos, C discutir políticas de financiamento à ciência os sistemas de avaliação vêm sendo pressionados a e compartilhar experiências no 8º Encontro Anual mensurar de forma mais ampla os efeitos positivos do Global Research Council (GRC), entidade criada gerados pela pesquisa. Em vez de se ater exclusiva- em 2012 para estimular a cooperação entre agências mente à qualidade dos projetos, à robustez de seus e semear boas práticas de gestão. A reunião foi or- resultados e ao mérito dos pesquisadores – critérios ganizada conjuntamente pela FAPESP, pelo Consejo que nortearam o avanço da ciência por muito tempo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas –, a avaliação vem incorporando outras dimensões, (Conicet), da Argentina, e pela German Research como a possibilidade de subsidiar políticas públicas e Foundation (DFG), da Alemanha. de gerar aplicações com valor comercial ou potencial O tema do evento foi o desafio de responder a expec- para melhorar a qualidade de vida das pessoas. Isso tativas crescentes de governos e sociedades em relação criou novas tensões no trabalho das agências de fomen- aos benefícios econômicos e sociais da pesquisa – e de to, que vêm se tornando intensas em diversos países.

36 | junho DE 2019 Plenária do GRC no Hotel Renaissance, em São Paulo: agências compartilham experiências sobre gestão e financiamento

Uma declaração de princípios endossada pelos parti- O físico Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor cipantes do evento mostrou os contornos desse desafio. científico da FAPESP, lembrou que os benefícios da O documento pontua que nenhuma pesquisa é livre de pesquisa, às vezes, aparecem tardiamente e mencionou impacto, mas ressalta que os ganhos podem aparecer o Google como exemplo da dificuldade de medir o im- de várias formas, como o avanço do conhecimento, a pacto. “Os dois criadores foram bolsistas da National formação de profissionais de alto nível e a produção de Science Foundation [NSF] em 1994, em um programa inovações. Embora considerem naturais e legítimas as que visava criar bibliotecas digitais e métodos para cobranças para que o investimento público em pesquisa a classificação de livros. Em 1998, desenvolveram o produza resultados palpáveis, os signatários observam algoritmo que ranqueia páginas de internet. Em 1999, que o impacto nem sempre é previsível – ele pode ser tentaram vender a empresa por U$ 1 milhão, mas nin- mais ou menos intenso que o esperado ou demorar guém se interessou. Baixaram o preço para U$ 700 s mais para ocorrer do que se gostaria. E ressaltam que mil. Ninguém quis. Se fôssemos avaliar o impacto do have c s descompassos entre expectativa e realidade não repre- Google naquele momento, seria considerado um fra- amo sentam uma fraqueza dos sistemas de ciência e tecno- casso”, contou Brito Cruz, que no encontro foi eleito

léo r léo logia, tampouco um déficit de qualidade das pesquisas. chair do Governing Board do GRC.

PESQUISA FAPESP 280 | 37 A astrofísica France Córdova, diretora da NSF, Representantes a principal agência de apoio à pesquisa básica de agências de 45 nações dos Estados Unidos, enfatizou que é mais valio- participaram so demonstrar a importância de um projeto pa- dos três dias de ra as pessoas do que tentar adivinhar o impacto discussões que ele terá. Segundo ela, a preocupação com os benefícios da ciência permeia o trabalho dos pesquisadores. “Cerca de 50% das propostas que recebemos mencionam impactos como aumentar a representatividade das mulheres ou de pessoas com baixo nível socioeconômico. Ou apresentam alguma estratégia para o treinamento da próxima geração”, afirmou (ver entrevista na página 28). sociedades conscientes Segundo a declaração de princípios, lidar de for- ma positiva com as expectativas sobre os impac- tos econômico e social é importante para tornar as sociedades mais conscientes sobre os benefícios da ciência e aproveitar melhor essa contribuição. “Em alguma medida, os sucessos da ciência le- varam as nações a acreditar no poder do conhe- cimento para desenvolver suas sociedades”, ob- servou o biólogo Molapo Qhobela, presidente da National Research Foundation, da África do Sul. “À medida que mostramos que esse poder pode mudar a vida das pessoas, elas esperam que isso sua instituição rejeita adotar o impacto social aconteça e passam a demandar mais.” como critério para seleção de projetos porque A questão central é encontrar um equilíbrio no isso comprometeria o ímpeto dos pesquisadores financiamento a pesquisas com impacto econô- de correr riscos e o interesse da instituição de mico e social, que respondem à cobrança investir em pesquisas transdisciplinares. “Con- pelo retorno do financiamento público à sideramos que nossa responsabilidade é de que ciência, e a projetos de investigação inte- a pesquisa encontre os mais altos estágios de ressados primordialmente em fazer avan- Uma base qualidade e excelência”, disse, pontuando que a çar o saber. “É preciso considerar tanto Áustria tem outra agência de fomento dedicada os retornos sociais e econômicos como a científica em a aplicações da ciência. virtude da pesquisa orientada pela curio- todas as A declaração de princípios ressalta a necessi- sidade, voltada a ampliar as fronteiras do dade de investir em pesquisas de todos os cam- conhecimento, como elementos essen- disciplinas pos do conhecimento, inclusive em áreas que ciais para fomentar o desenvolvimento podem não despertar interesse da sociedade em de ecossistemas nacionais vibrantes de permite um momento específico. Isso porque a natureza pesquisa”, considerou o filólogo alemão dos desafios muda ao longo do tempo e é preciso Peter Strohschneider, presidente da DFG enfrentar novos estar preparado para enfrentá-los. “Manter uma (ver entrevista na página 32). desafios que ampla base de conhecimento é um pré-requisito O GRC defende a primazia do mérito para responder oportunamente quando surgem científico na seleção de projetos para fi- surgem na novos desafios da sociedade”, diz o documento. nanciamento e recomenda separar os pro- O encontro também deu voz a outras discussões. cedimentos de avaliação de excelência e sociedade Representantes de agências de fomento da Amé- os de impacto. De acordo com a declara- rica Latina debateram a necessidade de ampliar ção, o benefício econômico e social é um o financiamento para manutenção de grandes critério útil para induzir pesquisa aplica- instalações científicas, como a fonte de luz sín- da, mas pode gerar efeitos colaterais indesejados crotron brasileira Sirius, que está sendo finalizada se for adotado de modo indiscriminado em ciência em Campinas (SP), e o Laboratório Argentino de básica – evitando, por exemplo, que um pesqui- Feixes de Nêutrons (LAHN), em Ezeiza, na Região s sador apresente um projeto de escopo amplo ou Metropolitana de Buenos Aires. “O custo de ma- have c arriscado por receio de que ele seja mal avaliado. nutenção é muito alto. Será preciso obter recursos, s amo O ecólogo Klement Tockner, presidente da de diferentes fontes, para que essas infraestruturas léo r léo

Austrian Science Fund (FWF), agência que fi- estejam permanentemente a serviço de multiusuá- s oto nancia pesquisa básica na Áustria, explicou que rios da comunidade científica latino-americana e f

38 | junho DE 2019 em um de seus programas ao investir em estraté- gias para prevenir vieses de gênero na avaliação de projetos. Outra iniciativa, da National Natural Science Foundation of China (NSFC), elevou para 40 anos a idade limite para participar de dois de seus programas. Com isso, o número de inscrições femininas cresceu 51% – a maternidade, como se sabe, costuma atrasar a carreira das pesquisadoras. “Os estudos de caso dão um quadro do estado atual da participação das mulheres em pesquisas cien- tíficas e indicam o que fazer para implementá-la”, disse a matemática Phethiwe Matutu, da National Research Foundation South Africa.

acesso aberto Em um encontro paralelo à reunião, foram apre- sentadas iniciativas para estimular o acesso aber- to a publicações científicas. Enquanto o Brasil mostrou o alcance da biblioteca virtual SciELO, criada em 1997 e que hoje reúne quase 300 re- vistas científicas franqueadas livremente na web, Colleen Campbell, pesquisadora da Max Digital Library, apresentou a Open Access 2020 Initiative, que busca realocar recursos hoje gastos com a assinatura de periódicos para apoiar mo- delos de negócio sustentáveis de acesso aberto. internacional. Para isso, será preciso assegurar uma Arianna Becerril, diretora da Rede de Revistas maior cooperação entre as agências de fomento Científicas da América Latina e Caribe, Espanha à pesquisa da região”, disse Jorge Tezon, gerente e Portugal (Redalyc) – biblioteca digital que adota de desenvolvimento do Conicet, principal agência modelo parecido com o do SciELO –, falou sobre de fomento à pesquisa da Argentina. a AmeliCA, plataforma que busca promover o A importância de ampliar o espaço das mulheres acesso aberto na América Latina e no hemisfério na pesquisa também mobilizou os participantes Sul, enquanto o sul-africano Molapo Qhobela, do encontro. O Grupo de Trabalho sobre Gênero mostrou a African Open Science Platform, uma do GRC compilou 53 casos de promoção da parti- infraestrutura para a colaboração em pesquisa. cipação feminina, distribuídos por 28 países. Um “Nós, financiadores de pesquisa, não podemos dos exemplos foi o da NSF, que desde 2001 inves- Tezon, do Conicet, resolver sozinhos a questão do acesso aberto, tiu US$ 315 milhões para ampliar a inclusão e a Brito Cruz, mas somos um elemento essencial e precisamos equidade de gênero na força de trabalho científica da FAPESP, e trabalhar juntos, assumir a responsabilidade de dos Estados Unidos. Na Nova Zelândia, o Conse- Strohschneider, nosso papel no sistema acadêmico”, disse David da DFG, fizeram lho de Pesquisa em Saúde conseguiu ampliar em um balanço Sweeney, presidente da Research England, um 16% o contingente de pesquisadoras candidatas do evento braço da principal agência de financiamento à pesquisa do Reino Unido, o UK Research and Innovation, incumbido de promover transferên- cia do conhecimento científico para a sociedade. Sweeney apresentou o Plano S, iniciativa apoiada por um consórcio de agências, por meio da qual, a partir de 2021, todas as publicações científicas resultantes de pesquisas financiadas com recursos públicos passarão a ser divulgadas exclusivamente em acesso aberto (ver Pesquisa FAPESP nº 276). O encontro do GRC de São Paulo foi o primei- ro realizado no Brasil. As três edições anteriores ocorreram em Moscou, na Rússia, Ottawa, no Canadá, e em Nova Délhi, na Índia. O próximo encontro, em maio de 2020, terá como sede Dur- ban, na África do Sul, e vai abordar o engajamento público com a ciência e as pesquisas orientadas para responder a desafios globais e regionais.n

PESQUISA FAPESP 280 | 39 política c&Ty

Esta é a primeira reportagem de uma série sobre os 30 anos da autonomia financeira das universidades A construção estaduais paulistas do futuro Decreto de 1989 criou um modelo original de financiamento que permitiu o crescimento extraordinário das universidades estaduais paulistas

Fabrício Marques

arranjo jurídico e orçamentário que das maiores universidades de pesquisa do país, garantiu estabilidade no financia- respeitando a liberdade de gestão e preservan- mento das universidades estaduais do o ambiente acadêmico da disputa por verbas paulistas completou três décadas de com outros órgãos públicos e áreas de governo. funcionamento. No dia 2 de feve- Hoje, USP, Unesp e Unicamp respondem juntas Oreiro de 1989, o então governador de São Paulo, por 35% de toda a produção científica nacio- Orestes Quércia (1938-2010), assinou o Decreto nal indexada na base de dados Web of Science. nº 29.598, que estabelecia a autonomia de gestão Curiosamente, as regras definidas naquele de- financeira para as universidades de São Paulo creto são ainda hoje excepcionais, pois o modelo (USP), Estadual de Campinas (Unicamp) e Esta- jamais vicejou fora de São Paulo. Nenhum outro dual Paulista (Unesp), reservando um percentual estado adotou princípios semelhantes, tampouco fixo de 8,4% da arrecadação do Imposto sobre as universidades federais chegaram a gozar de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) autonomia financeira. Também é notável que a para custear as três instituições. O Conselho dos regra se ampare em um simples decreto – cogi- Reitores das Universidades Estaduais Paulistas tava-se que a Constituição Estadual ou a legis- (Cruesp), criado dois anos antes, ficou encarrega- lação ordinária tratassem do assunto, mas isso do de organizar a distribuição dos recursos – em não aconteceu. um primeiro momento, a USP recebeu 4,46%, a Mesmo assim, o modelo vem sendo reafirma- Unicamp, 2%, e a Unesp, 1,94%. do, ano a ano, nas leis orçamentárias aprovadas O decreto de 1989 tornou-se um marco no sis- pela Assembleia Legislativa e foi chancelado por tema de ensino superior brasileiro por produzir todos os governadores – dois deles, Luiz Antonio um modelo capaz de sustentar e fortalecer três Fleury Filho e Mário Covas (1930-2001), am-

40 z junho DE 2019 va Constituição Federal. O artigo 207 da Car- ta promulgada em 1988 estabelece “autonomia O governador didático-científica, administrativa e de gestão Orestes Quércia financeira e patrimonial” para as universidades assinou o decreto e diz que elas “obedecerão ao princípio de indis- da autonomia (íntegra ao lado) sociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. diante de reitores, O físico José Goldemberg, reitor da USP entre como José 1986 e 1990, lembra que a versão preliminar des- Goldemberg, da se artigo desenhado na Assembleia Constituinte USP, e do secretário de Ciência e continha uma ressalva que comprometia ou ao Tecnologia Luiz menos postergava o seu objetivo. “O final do ar- Gonzaga Belluzzo tigo informava que a autonomia seria implantada ‘na forma da lei’. Isso remetia a discussão para a legislação comum e adiava sua implantação, o que aconteceu, aliás, com muitos outros artigos da Constituição”, recorda-se. O reitor da USP aproveitou a proximidade com o então senador Mário Covas, sub-relator da Constituinte com quem trabalhara na gestão do governador An- dré Franco Montoro (1983-1987), e convenceu-o da importância de remover o adendo e manter a autonomia como uma regra geral. “Da forma como foi aprovado, não era mais necessário re- gulamentá-lo”, conta Goldemberg. O decreto da autonomia faz referência ao artigo pliaram o percentual dedicado às universidades, 207. Mas a decisão do governador Orestes Quércia que desde 1995 corresponde a 9,57% do ICMS. também teve razões particulares e conjunturais. “Essa reafirmação também distingue São Paulo A crise da década de 1980 produziu surtos de in-

ess dos demais estados e mostra a importância que flação alta e uma sucessão de planos econômicos r p

ha as universidades têm na sociedade paulista”, diz que tentaram em vão controlá-la. Esse ambiente ol o linguista Carlos Vogt, reitor da Unicamp entre gerava perdas salariais e elas alimentaram greves 1990 e 1994. “Ninguém até hoje ousou profanar que paralisaram as universidades estaduais pau- / F cellos n esse santuário.” listas em anos anteriores. “O governador sentiu sco A conquista da autonomia financeira pelas que as pressões por verbas e reajustes seriam o Va i universidades estaduais paulistas se enquadra recorrentes. Ele não tinha intimidade com o am- ss Cá no contexto histórico da redemocratização do biente acadêmico, mas, baseado no bom senso,

fo t o país e, em particular, da elaboração de uma no- teve a ideia de reservar um percentual da arre-

pESQUISA FAPESP 280 z 41 cadação e deixar para os reitores os bônus e os científica. “A FAPESP nasceu de ônus de administrar esses recursos”, recorda-se um movimento em favor da inte- Frederico Mazzucchelli, professor do Instituto ligência, da produção científica e de Economia da Unicamp, que era secretário de cultural que permeou a Assem- Economia e Planejamento do governo paulista. A agenda da bleia Constituinte de 1947. Isso Segundo o economista, Quércia comunicou a criou um paradigma que diferen- ele sua ideia no meio de uma viagem de avião. pesquisa e das ciou o estado e foi uma referência “O governador me disse: ‘A gente dá o dinheiro universidades importante para que se estabele- para eles e acabou’.” cesse o movimento no sentido da ganhou força criação da autonomia financeira azzucchelli procurou o secretário de das universidades”, afirma o lin- Ciência e Tecnologia Luiz Gonzaga Bel- nos anos 1980 e guista, presidente da Fundação Mluzzo, seu colega da Unicamp, e os dois entre 2002 e 2007. passaram a trabalhar em uma proposta. “Curio- era valorizada Não foi por coincidência, ob- samente, a reação inicial dos reitores não foi fa- na Assembleia serva Vogt, que, oito meses de- vorável. Eles ficaram assustados e desconfiados. pois do decreto de Quércia, a no- Apenas o reitor da Unesp Jorge Nagle ficou entu- Legislativa, va Constituição Estadual paulista siasmado já no primeiro momento. Nossa briga ampliou de 0,5% para 1% a fração foi mostrar aos reitores que aquilo era uma coisa lembra Aloysio da receita tributária estadual des- importante”, lembra. Foi preciso também vencer tinada à FAPESP, incorporando o vozes contrárias dentro do governo. O então se- Nunes Ferreira investimento em desenvolvimen- cretário de Administração Alberto Goldman opôs- to tecnológico às atribuições da -se à vinculação de recursos por considerar que Fundação. “A agenda da pesquisa ela impõe agendas de setores a governos demo- e das universidades ganhou força craticamente eleitos, mas foi voto vencido. Após naquela época e era valorizada pe- várias rodadas de discussões com os reitores e los deputados estaduais do PMDB, secretários de governo, chegou-se à fórmula dos que eram maioria na Casa”, recor- 8,4% do ICMS, que representavam a média do que da-se o então líder do governo na as universidades haviam recebido nos três anos Assembleia Legislativa Aloysio Nunes Ferreira, anteriores. “O reitor da Unicamp Paulo Renato autor da emenda que ampliou o percentual de Souza [1945-2011], que havia sido secretário da recursos para a FAPESP na Constituição pau- Educação anos antes, ajudou a fazer os cálculos”, lista. Segundo ele, outras iniciativas em favor recorda-se Goldemberg. da ciência marcaram os governos Montoro e Em fevereiro de 1989, quando o decreto ficou Quércia, como a criação da carreira de pesqui- pronto, o governador chamou os reitores a seu sador científico e a revitalização dos institutos gabinete e oficializou o modelo. O geólogo Paulo estaduais de pesquisa. “A redemocratização deu Milton Barbosa Landim, que havia acabado de impulso às reivindicações da universidade. O assumir o cargo de reitor da Unesp em substitui- governador Quércia, um político que ganhou ção a Nagle, lembra que o governador mencionou expressão justamente na redemocratização, era a pressão das universidades como uma de suas sensível a isso”, afirma. motivações. “Ele foi claro em dizer que, por conta O efeito prático da autonomia é que as uni- da autonomia didático-pedagógica que as uni- versidades puderam se organizar e planejar seu versidades já detinham, não tinha ingerência no desenvolvimento. Segundo José Goldemberg, seu funcionamento. E considerou que, então, era foi possível dar sequência ao esforço, que se ini- melhor que a autonomia também fosse financeira ciara em meados dos anos 1980, de reformular e os reitores cuidassem também dos problemas as carreiras de docentes e técnicos em moldes dos professores e dos salários.” mais adequados para a universidade. Também Na opinião de Carlos Vogt, a discussão so- acabou a necessidade de sair de “chapéu na mão” bre os motivos do governador é secundária: “O em diversos órgãos do governo para garantir re- importante é que havia um contexto que levou cursos para as instituições. “Eu me lembro de ter à autonomia e o governador tem o mérito de de conversar com a Secretaria de Administração assinar o decreto. Isso é o que fica e seus des- sobre as regras de pagamento de diárias e horas dobramentos são importantes até hoje para as extras para motoristas que levavam diretores de universidades”. Vogt atribui o modelo a uma unidades da USP do interior para São Paulo”, experiência particular do estado de São Paulo, conta Goldemberg. Após o decreto, a Unicamp que foi a criação da FAPESP, em 1962, apoiada lançou seu Projeto Qualidade, que incentivou os à época em um fundo patrimonial formado pelo professores a obterem, no mínimo, o doutorado. governo e na vinculação de 0,5% da arrecadação “Metade do corpo docente naquela época era de de impostos do estado para financiar a pesquisa professores-mestres. Hoje são praticamente todos

42 z junho DE 2019 O balanço dos 30 anos INDICADORES DE PRODUTIVIDADE 1989 2017 % var.

de autonomia Receitas do Tesouro (R$ milhões 2017)* 6.052 9.116 51 Docentes 11.065 10.914 -1,4 A evolução de indicadores das três universidades estaduais Funcionários 35.167 27.593 -22 paulistas desde que passaram a gozar de autonomia financeira, Vagas na graduação 12.584 22.169 76 em 1989 – só o número de docentes e de funcionários caiu Alunos matriculados 80.325 188.453 135 Graduação 57.055 118.920 108

16,14 | Publicações Pós-graduação 23.270 69.533 199 Web of Science Títulos concedidos 9.238 27.589 199 Graduação 6.900 15.976 132 Pós-graduação (total) 2.338 11.613 397 Mestrado 1.571 6.311 302 Doutorado 767 5.302 591 Publicações científicas 1.064 17.175 1.514

* Valores médios de 2017, corrigidos pelo IGP-DI

com a incorporação de uma grande unidade, a Universidade Municipal de Bauru. E a média dos três anos não considerou isso”, lembra Lan- dim. O problema foi atenuado com as decisões dos governadores Fleury e Covas de elevarem o percentual em 1990 e 1995, ainda que o acrésci- mo tenha sido distribuído entre as três univer- 6,91 | Títulos de doutorado sidades. “Foi a Unesp que esteve mais à frente Base dessas articulações”, diz o ex-reitor. Ele atribui à 1989 = 1,00 autonomia a consolidação da Unesp. “Tínhamos como espelho a USP e a Unicamp, que eram as duas melhores do país, e a estabilidade dos re-

4,02 | Títulos de mestrado cursos nos ajudou a moldar a nossa qualidade.” 2,99 | Matrículas de PG decreto da autonomia financeira trazia 2,32 | Títulos de graduação 2,08 | Matrículas de graduação uma recomendação que não foi seguida. 1,76 | Vagas de graduação O Sugeria-se que as universidades não ul- 1,51 | Receita do Tesouro trapassassem com gastos de pessoal 75% dos re- 0,99 | Docentes cursos recebidos do Tesouro. Em anos recentes, 0,78 | Funcionários o crescimento dos gastos com salários e a queda na arrecadação de impostos decorrente da crise 1989 1995 2000 2006 2012 2017 econômica as obrigaram a utilizar reservas e a

Fontes Incites/ Web of Science/ Clarivate (tipos: Article, Proceeding fazer cortes, porque o comprometimento com Paper e Review). Anuários USP, Unicamp, Unesp salários superou o total dos repasses. “Se há al- go de que me arrependo foi não ter brigado para que a recomendação fosse uma obrigatorieda- doutores”, observa Vogt. “Mesmo um ambiente de”, afirma José Goldemberg. “Na época, acha- de turbulência econômica, como o que se seguiu mos que ficaria estranho o governo nos obrigar ao Plano Collor, em 1990, pode ser enfrentado a fazer algo no texto de um decreto que nos ga- pelas universidades com a garantia dos recursos.” rantia autonomia.” Segundo o ex-reitor da USP, Alguns conflitos perduraram. A Unesp, a mais o comprometimento dos recursos com salários jovem e descentralizada das universidades es- tornou-se um inimigo da autonomia universitária. taduais paulistas, ressentia-se do quinhão do “Para exercer uma gestão realmente autônoma, ICMS que lhe coube. “O cálculo foi feito com é preciso ter uma margem de recursos que per- base no que as universidades haviam recebido mita ao reitor investir no rejuvenescimento da nos três anos anteriores, mas a Unesp foi sacri- universidade e no investimento em áreas emer- ficada porque pouco antes do decreto, em agosto gentes. Com a crise, os atuais reitores perderam de 1988, seus custos fixos aumentaram bastante muito dessa capacidade.” n

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Com eventos em 85 cidades, o Brasil se destacou no Pint of Science, festival que acontece em 24 países

Carla Aranha Ciência entre goles de cerveja a penúltima semana de maio, bares e finalmente consegui entender melhor esse de 85 cidades brasileiras ofereceram assunto, que parece bem complexo”, conta a aos clientes um programa inusitado: advogada Paula Silva, de 28 anos. Nno lugar de música ao vivo, a atração No Delirium Café, no bairro de Pinheiros, em eram pesquisadores de vários campos do co- São Paulo, os temas abordados eram múltiplos: nhecimento, que apresentavam seus trabalhos times de pesquisadores de diversas áreas – da e respondiam a perguntas dos frequentadores, física quântica à ciência do esporte, passan- entre goles de cerveja. Era o festival Pint of do por vulcanologia e mudanças climáticas – Science, criado no Reino Unido em 2013 e hoje propuseram-se, nas noites dos dias 21 e 22, a realizado simultaneamente em 24 países, como peregrinar de mesa em mesa e responder a Espanha, Tailândia, Canadá, Estados Unidos todo tipo de pergunta. “Foi uma delícia con- e Costa Rica – em nenhum deles o evento es- versar sobre ciência em um bar lotado”, diz palhou-se por tantas cidades como no Brasil. o físico Paulo Artaxo, do Instituto de Física Violência urbana, jogos digitais, arqueologia, da Universidade de São Paulo (USP), um dos línguas indígenas e comunicação foram alguns participantes. dos múltiplos temas abordados no festival. O festival expandiu os seus limites. Em São Boa parte do público é formada por leigos. Paulo, pela primeira vez houve eventos do Pint “Levar informação científica para pessoas que of Science na zona leste da cidade. Pesquisa- não estão familiarizadas com a ciência é um dores de diferentes áreas se reuniram para um dos nossos objetivos”, diz a bióloga Natalia papo sobre ciência no Armazém 77, bar locali- Pasternak Taschner, coordenadora nacional zado no tradicional bairro da Penha. Eles apre- do festival. sentaram seus trabalhos e discutiram, entre No dia 22, uma quarta-feira chuvosa e de outros temas, os cortes impostos pelo governo trânsito intenso em São Paulo, dezenas de pes- para o financiamento da ciência e tecnologia e soas chegaram antes das 19h ao bar Tubaína, educação no país. No dia 21 de maio, a psicólo- no bairro da Bela Vista, para assistir a palestras ga Elizabete Cruz, da Escola de Artes, Ciências sobre exoplanetas e a formação do Universo. e Humanidades (EACH) da USP, falou sobre O local estava lotado – quem não conseguiu os processos de gestação e parto e sua relação um lugar, procurou ouvir do lado de fora, na com questões de raça e gênero. Em seguida, as calçada. Rogério Rosenfeld, vice-presidente farmacêuticas Jeanine Vargas e Elizabeth Fer- da Sociedade Brasileira de Física e professor reira, ambas da Faculdade de Ciências Farma- da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e cêuticas da USP, apresentaram o conceito de Adriana Valio, coordenadora de pós-graduação doenças negligenciadas, com foco em doença em ciências e aplicações geoespaciais da Uni- de Chagas e leishmaniose, explicando suas versidade Mackenzie, falaram sobre a expan- causas, consequências e tratamentos. Para fe- são do Universo e planetas em outras galáxias. char a noite, o bioquímico Maurício Baptista, Até os garçons pararam para ouvir. “Queria do Instituto de Química da USP, expôs alguns saber mais sobre as estrelas anãs e o Universo resultados de suas pesquisas envolvendo os

Ciência entre

No Delirium Café, em São Paulo, o festival teve apresentações (na página ao lado) e rodízio de cientistas nas mesas, como o físico goles de cerveja Paulo Artaxo (à esq.) Léo Ramos Chaves Fotos

pESQUISA FAPESP 280 z 45 bar Garage, Rock & Beer, com Thiago Matos Pinto, especialista em ciência da computação do campus Nilópolis do Ins- tituto Federal do Rio de Janeiro. O Pint of Science foi criado em maio de 2013 em Londres por dois pesqui- sadores do Imperial College, o biólogo Michael Motskin e a neurocientista Pra- veen Paul, especialistas em doenças de- generativas. A ideia surgiu um ano antes, No Armazém 77, no bairro quando eles convidaram pacientes de da Penha, o Pint of Parkinson, Alzheimer e esclerose múl- Science chegou à zona leste de São Paulo tipla para conhecer o laboratório onde trabalhavam e suas pesquisas. “Sempre tivemos vontade de comunicar ao públi-

1 co do que trata o nosso trabalho, de uma 2 maneira simples e acessível, e a interação com os pacientes em 2012 mostrou que isso é possível”, diz Praveen Paul. A du- pla procurou donos de pubs em Londres e apresentou a eles a ideia de levar cien- tistas para falar sobre suas áreas em dias da semana, entre segunda e quarta-feira, quando os bares costumam ficar mais vazios. A conta é paga pelo cliente – o pub fica responsável pelo equipamento audiovisual e de som. “Muita gente foi e vimos que nossa ideia seria um sucesso”, conta Motskin. Com a ajuda de colegas, Motskin e Paul criaram um site para divulgar o Pint of Science. A intenção era promover a ideia no Reino Unido e difundir o con- A peça Mary e os monstros ceito do festival para outros países, com efeitos da luz solar visível na pele. Ele marinhos antecedeu o objetivo de aproximar os cientistas e também discutiu a importância do uso a fala de pesquisadores a sociedade em um ambiente informal. na Taverna Medieval, de filtros solares para a saúde da pele. em São Paulo Pesquisadores de outros países ficaram sabendo do evento e resolveram repro- a mesma noite, a hamburgue- duzi-lo. “É importante comunicar o que ria Taverna Medieval – ponto já é o conhecimento científico, desfazer Ntradicional do Pint of Science no preconceitos e mostrar que os cientistas

bairro paulistano da Vila Mariana – esta- são pessoas comuns, como todo mundo”, ves va repleta de convivas compartilhando diz Natalia Pasternak. mesas sem deixar um assento vago. Ali Kyenrab. A abertura da noite foi uma A primeira edição brasileira aconteceu

ouviram, vários deles usando os capace- apresentação resumida da peça teatral em 2015, em dois bares de São Carlos, no Rama Ch éo os tes com chifres que fazem parte da am- Mary e os monstros marinhos, do grupo interior de São Paulo, por iniciativa da bientação bem-humorada, sobre como Companhia Delas, que conta a história jornalista Denise Casatti, do Instituto de 3,4 e 6 L ue a neurociência embasa a pesquisa sobre da inglesa Mary Anning, descobridora de Ciências Matemáticas e de Computação a k gr c

bem-estar e puderam refletir sobre mo- fósseis no século XIX, atividade inédita (ICMC) da USP. Ela obteve autorização ri dos mais saudáveis de se viver. Os pales- para uma mulher à época. dos mentores britânicos, conversou com

trantes eram a psicobióloga Elisa Kozasa Na cidade gaúcha de Alegrete, o bar os donos dos bares e cuidou da progra- / pat ggo a

(vestindo o que afirmou ser um manto Tio Bola Cervejas Especiais teve apre- mação. No ano seguinte, Natalia Paster- ré l medieval, dentro do espírito irreveren- sentações sobre nanotecnologia, modela- nak assumiu a coordenação. Em 2016,

te do evento), pesquisadora do Instituto gem atmosférica e mudanças climáticas. o Pint of Science foi realizado em sete 2 e 5 and

Já em Belém, as atividades se espalha- cidades, entre elas São Paulo, São Car- les do Cérebro do Hospital Israelita Albert a

Einstein, e o engenheiro-agrônomo Car- ram por quatro bares e abordaram temas los, Campinas e Belo Horizonte. “Era s ta er los Henrique Amaral de Souza. Só ao fim como dietas e Amazônia. Moradores de quase uma ação entre amigos, que esta- b ro

o público soube que ele é também mon- Nilópolis, na Baixada Fluminense, apren- vam fazendo um esforço conjunto para 1

ge budista – usa o nome lama Rinchen deram um pouco sobre neurociência, no promover o festival no país”, lembra a Fotos

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bióloga. “O desafio maior foi convencer Para os organizadores e pesquisado- os estabelecimentos comerciais a partici- res envolvidos no evento, a participação par, porque ninguém conhecia o evento e crescente do público e a diversidade de não entendiam por que queríamos falar Cenas do festival no temas contribuíram para impulsionar a sobre ciência em um bar ou restaurante Brasil: 2 mil voluntários divulgação científica. “Quanto maior o em plena segunda ou terça-feira.” organizam a programação número e a qualidade dos canais utili- e escolhem os bares zados para transmitir o conhecimento, m 2017, alcançou 22 cidades brasi- melhor”, diz Alicia Kowaltowski, tam- leiras e, no ano passado, 56 muni- bém do Instituto de Química da USP. Ecípios sediaram o evento. Em três Em 2016, ela abordou os mecanismos anos, o festival cresceu a ponto de ter oi- do metabolismo do corpo humano no to coordenadores regionais e uma equipe restaurante Tartar & Co, em São Paulo, nacional de 10 pesquisadores, que aten- e no ano seguinte voltou a participar do dem a um público de centenas de pes- festival, dessa vez na Pizzaria Dona Fir- soas e filas de pesquisadores desejosos rando sua apresentação, que teve a co- mina, no bairro de Moema. Gostou das de participar. Cerca de 2 mil voluntários, laboração da filha Ana Luiza, à época experiências e espera repeti-las. “Gostei entre cientistas, jornalistas e analistas da com 13 anos. A adolescente teve a ideia muito de poder usufruir da oportunidade comunicação, colocaram o festival de pé de desenhar um ônibus de dois andares, de estar com o público trocando ideias neste ano. Todos doam seu tempo para a com um motorista, sentado, e um cobra- de uma forma tão agradável sobre o que realização das palestras e a escolha dos dor subindo e descendo os degraus, para acontece com o nosso corpo”, afirma. bares. As sugestões de temas a serem mostrar a diferença na atividade física Ao menos uma parte dos participan- apresentados são analisadas durante me- diária realizada por cada um deles. “Ela tes que assiste aos eventos acaba se en- ses pelos coordenadores. É tomado um gosta de ciência e lê muito”, diz a pesqui- gajando nos assuntos, gerando novas cuidado especial para haver um equilí- sadora. “É ótimo poder envolver as novas interações com os pesquisadores. Des- brio entre temas científicos complexos gerações na busca pelo conhecimento.” de o ano passado, uma vez por mês é e outros com os quais o público já tem Despertar a curiosidade e levantar realizada uma conversa de 20 minutos algum contato. questionamentos é um dos objetivos do sobre física com pesquisadores da área Os pesquisadores em geral saem feli- Pint of Science. O bioquímico Walter no bar Tubaína, organizada pelo Cen- zes com essa troca. “Aprendemos a nos Colli, do Instituto de Química da USP, tro Internacional de Física Teórica/ comunicar de uma maneira acessível, participou da edição do evento em 2016 Instituto Sul-americano para Pesquisa para que todos entendam, ao invés de no qual fez uma apresentação sobre bio- Fundamental (ICTP/SAIFR), que tam- usar termos científicos com os quais es- tecnologia e segurança alimentar. “Mui- bém promove eventos sobre ciência no tamos acostumados”, diz Patricia Brum, tas vezes, há um desconhecimento sobre Instituto Moreira Salles, em São Paulo. do Departamento de Biodinâmica da o significado das palavras, o que acaba “Observar o interesse das pessoas e o Escola de Educação Física e Esporte da criando ideias equivocadas”, afirma. “É o quanto o festival abre as portas para o USP. Ela explicou as atividades do seu que acontece, por exemplo, com o termo conhecimento é muito gratificante”, diz laboratório e o impacto do exercício fí- ‘transgênicos’. Pouca gente sabe real- Natalia Pasternak. n sico no organismo em um bate-papo no mente do que se trata e a maioria tem

Finnegan’s Pub, em São Paulo, em 2017. medo, por acreditar ser algo prejudicial *Colaboraram Maria Guimarães e Rodrigo de Oliveira Patricia conta que ficou meses prepa- à saúde, o que está longe da verdade.” Andrade

pESQUISA FAPESP 280 z 47 ciência MEDICINA y

Bactérias contra doenças

Transplante de microbiota fecal e alimentos com microrganismos vivos são testados no combate a infecções

C arlos Fioravanti

V ersão atualizada em 10/06/2019

48 z junho DE 2019 lterar a população de microrganismos tos gerados pelo uso do microbioma motivaram que habitam o intestino humano com a abertura, em 2012, da OpenBiome, organização fins terapêuticos é uma área de pes- não lucrativa norte-americana que opera como A quisa em alta. Mais de 500 pessoas no um banco público de fezes para transplantes. No mundo já se submeteram ao transplante de mi- Brasil, a Universidade Federal de Minas Gerais crorganismos do intestino, a chamada microbiota, (UFMG) criou, em setembro de 2017, o Centro para tratar uma infecção recorrente causada pela de Transplante de Microbiota Fecal. bactéria Clostridium difficile que nem sempre de- Desde o início de 2018, o centro mineiro fez o saparece com o uso de antibiótico. Reconhecido TMF para tratar infecções por C. difficileresis - em 2013 por uma decisão provisória da FDA, a tentes a antibióticos em seis pessoas, das quais agência de alimentos e medicamentos dos Estados cinco apresentaram bons resultados. A técnica Unidos, mas ainda sem o status de procedimento não funcionou em uma das mulheres, que de- médico, o transplante de microbiota fecal (TMF) pois voltou ao tratamento por antibióticos e não consiste na transferência de fezes de um doador apresentou mais diarreias; uma das hipóteses saudável para uma pessoa doente, geralmente cogitadas para explicar esse resultado é que o por colonoscopia, para repor a microbiota e res- transplante possa ter favorecido a ação dos anti- tabelecer o equilíbrio do organismo. A eficácia bióticos. Como nem a doação nem o transplante dessa técnica contra C. difficile pode atingir 90%, estão regulamentados no Brasil, há muito a ser embora o tempo de duração dos benefícios seja feito. “Ainda não sabemos ao certo como selecio- incerto. Além das bactérias, fazem parte da mi- nar doadores”, reconhece o gastroenterologista crobiota intestinal vírus, fungos e vermes. Daniel Terra, gerente do centro. “Temos de ser Evidenciada em laboratório nos últimos anos, muito cautelosos.” Um grupo inicial de 134 vo- a capacidade de as bactérias eliminarem outras luntários foi selecionado por meio de entrevistas bactérias e fortalecerem as defesas ou regularem e de exames que rastrearam agentes causadores o metabolismo do organismo em que se abrigam de infecções, principalmente C. difficile; no final, está sendo avaliada em cerca de 150 testes clíni- restaram apenas dois doadores. cos em andamento principalmente nos Estados A Faculdade de Medicina da Universidade Es- Unidos; se avançarem, poderiam representar tadual Paulista (Unesp), em Botucatu, tratou duas novas estratégias de tratamento para doenças pessoas por TMF, com sucesso em um dos casos. intestinais, câncer, diabetes e transtornos psi- O primeiro, em junho de 2014, era um homem quiátricos. As perspectivas de novos tratamen- de 85 anos que procurou o hospital com uma he-

Placa de cultura com Yersinia pseudotuberculosis, que pode causar uma infecção benéfica no organismo humano s ave h c os os am léo r léo

pESQUISA FAPESP 280 z 49 morragia digestiva. A causa era um sangramento 1 no duodeno, logo estancado, mas apareceu uma infecção urinária e cinco dias após uma intensa diarreia. Os médicos identificaram C. difficilee diagnosticaram colite pseudomembranosa, não resolvida com sucessivos antibióticos. Com a colaboração do biólogo Josias Rodri- gues, do Instituto de Biociências da Unesp, tam- bém em Botucatu, a equipe do gastroenterologista Fernando Romeiro recolheu fezes da filha do pa- ciente oito horas antes do transplante, o primeiro realizado na universidade. O material foi diluído em soro fisiológico, filtrado e implantado por co- lonoscopia na porção inicial do intestino grosso. “Não sabíamos se e quando o paciente poderia melhorar, porque já estava bem debilitado”, re- A bactéria latou Romeiro. Um dia depois do transplante, o Clostridium difficile, combatida com o homem de 85 anos já se sentava na cama e se ali- transplante de mentava normalmente, sem cólicas nem diarreia. microbiota fecal Exames não identificaram as toxinas de C. difficile nas fezes e ele deixou o hospital três dias depois. O outro caso foi o de um rapaz de 17 anos que dução e sua ação no organismo. “Não sabemos se chegou ao hospital com diarreia sanguinolenta as bactérias consumidas como probióticos con- e dores abdominais. O diagnóstico revelou uma seguem efetivamente colonizar o intestino e ter doença inflamatória intestinal chamada reto- os mesmos efeitos em todas as pessoas”, alerta a colite ulcerativa. Como os medicamentos não pesquisadora Caroline Ferreira, da Universidade funcionaram, submeteu-se a um TMF, com fezes Federal de São Paulo (Unifesp) em Diadema. Ela doadas pelo pai. Depois de 30 dias, os sintomas verificou que a atividade das bactérias varia de reapareceram. Oito meses depois foi feito outro acordo com a genética do organismo em que se transplante, que também não resolveu. O rapaz instalam. A suplementação alimentar com Bifi- então ingressou em um estudo clínico de avalia- dobacterium adolescentis reduziu parcialmente ção de um novo fármaco, que aplacou parcial- a alergia respiratória em camundongos da linha- mente sua doença. gem genética Balb/c, mas praticamente não teve “Hoje sabemos que o transplante de microbio- efeito nos de outra linhagem, a C57BL/6, como ta fecal deve ser repetido algumas vezes por se- descrito em abril de 2018 na Beneficial Microbes. mana, para as bactérias se fixarem no intestino”, Os benefícios das bactérias ainda não estão comenta a também gastroenterologista da Unesp claros e os resultados das pesquisas às vezes são Ligia Sassaki, coordenadora desse trabalho, pu- contraditórios. Em 2015, um grupo da Universi- blicado em fevereiro na Journal of International dade Federal do Rio Grande do Sul apresentou Medical Research. Segundo ela, talvez o melhor um estudo na revista Nutrition and Cancer mos- não seja um doador único, mas uma combinação trando que as 23 pessoas que haviam passado por de fezes de doadores selecionados. Os médicos cirurgias de câncer abdominal e receberam uma pretendem avaliar em seus pacientes, assim que mistura de quatro bactérias – Bifidobacterium possível, o efeito de fibras vegetais, que mostra- bifidum, Lactobacillus acidophilus, L. rhamno- ram ação anti-inflamatória em experimentos com sus e L. casei – por 14 dias apresentaram uma modelos animais realizados pelo biólogo Luiz taxa três vezes menor de infecções e um tempo Stasi, também da Unesp de Botucatu. de internação 50% menor que o grupo controle, também de 23 participantes. P robiÓticos Da mesma forma, as relações entre a micro- Outra linha de pesquisa explora os efeitos dos biota e o câncer ainda são incertas. “Tomar pro- alimentos e bebidas com microrganismos vivos, biótico pode não ser uma boa estratégia para os probióticos, como os iogurtes. Não é uma abor- quem vai fazer imunoterapia”, observa a biólo- dagem nova: no livro O prolongamento da vida, de ga Diana Nunes, pesquisadora do A.C.Camargo 1906, o imunologista ucraniano Elie Metchnikoff Cancer Center. No início de abril, ela assistiu à (1845-1916) argumentava que o consumo de leite palestra da médica Jennifer Wargo, pesquisadora fermentado preparado com Bacillus bulgaricus – do MD Anderson Cancer Center da Universida- ou seja, iogurte – poderia ajudar a viver mais. Os de do Texas, em um congresso sobre câncer em probióticos são fáceis de produzir e usar, mas Atlanta, nos Estados Unidos. Wargo apresen- ainda há debates sobre a padronização da pro- tou os primeiros resultados de seu estudo com

50 z junho DE 2019 gota, artrites, pneumonia e outras infecções res- piratórias em modelos animais. Dois outros pro- bióticos, Lactobacillus casei e Propionibacterium freudenreichii, reduziram a mucosite, inflamação dos tecidos de revestimento da boca, garganta e intestino, comum em pessoas que passam por tratamentos quimioterápicos contra o câncer, como detalhado em um artigo de setembro de 2018 na Frontiers in Microbiology. Dietas à base de pectina, um tipo de fibra vegetal, ou com ace- tato, um ácido graxo (gordura) de cadeia curta produzido em abundância por essa espécie de bactéria, também levaram a resultados positivos em modelos animais. Inversamente, uma dieta pobre em fibras agravou as doenças. “Alguns tipos de infecção, quando não são fa- tais, podem beneficiar o organismo”, diz a biomé- dica Denise Fonseca, da Universidade de São Pau- lo (USP). Em um estudo publicado na revista Cell em 2015, quando fazia um estágio de pós-dou- torado nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos, ela verificou que a bactéria Yersinia pseudotuberculosis causava lesões nos vasos linfáticos do intestino, responsáveis pelo transporte de partículas de gordura chamadas quilomícrons, e interferia em sua absorção. Ao mesmo tempo, causava uma inflamação crônica no tecido adiposo de camundongos. Esse efeito, no entanto, não era ruim. Os animais ganhavam peso e aumentavam a sensibilidade à insulina pelo 2 tecido adiposo, a absorção de glicose, e, portanto, a capacidade de aproveitar carboidratos. Isolamento de Outras espécies de bactérias da microbiota in- microrganismos 46 pessoas com câncer, indicando que tomar pro- testinal – avaliadas em colaboração com a imu- intestinais de nologista Yasmine Belkaid, do NIH, e o biólogo camundongo em bióticos livremente reduzia em 70% a resposta laboratório da USP à imunoterapia. Vinicius de Andrade Oliveira, da Universidade No chamado trato gastrointestinal, o canal que Federal do ABC, mostraram uma capacidade ain- se estende da boca ao ânus, vivem cerca de 100 da maior que a de Yersinia para melhorar o me- trilhões de bactérias, uma quantidade 10 vezes tabolismo de açúcares em animais alimentados maior que a de células humanas. Entre tantos com dietas à base de carboidratos, favorecendo micróbios, uma das estrelas do momento é Bifido- o ganho de peso. “Essa estratégia poderia ser bacterium longum, espécie inofensiva que habita o eventualmente útil no contexto da desnutrição, intestino e a vagina. Em um estudo publicado em em parte causada pela baixa absorção dos ali- fevereiro na revista Nutrition, pesquisadores do mentos”, diz Fonseca. Centro de Pesquisa em Alimentação e Nutrição “Temos de rever nosso conhecimento à luz das de Roma mostraram sua capacidade de aumentar descobertas recentes sobre a microbiota”, con- as populações de um tipo de células de defesa, clui o biólogo Dario Simões Zamboni, professor os linfócitos, que normalmente caem com o en- da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão s velhecimento, em um grupo de 45 pessoas com Preto. “Não somos um organismo isolado, mas ave h pelo menos 75 anos de idade, em comparação um conjunto de organismos”, diz ele. n c os os com o grupo controle, de 34 pessoas. am léo r léo

2 Ee f itos variáveis Projeto r e h Novamente, os resultados devem ser vistos com Cicatriz imunológica pós-infecção intestinal aguda e desenvolvimento c r de desordens metabólicas: Estudo das interações entre a microbiota

s A cautela. “Os efeitos variam de acordo com as es- e sistema imunológico do mesentério (nº 15/25364-0); Modalidade me a pécies e linhagens de Bifidobacterium”, observa a Jovem Pesquisador; Pesquisadora responsável Denise Morais da bióloga Angélica Vieira, da UFMG. Em seu labora- Fonseca (USP); Investimento R$ 1.690.720,55. CDC / J 1 s tório, ela usou uma linhagem de B. longum isolada Os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados oto f de crianças sadias para testá-la no tratamento de na versão on-line desta reportagem.

pESQUISA FAPESP 280 z 51 Ecologia y

uando voa pelo campo uma Anfitriãs abelha vê, ao longe, composi- ções em tons de verde. O co- Qlorido só se revela de perto. Exceto o vermelho, invisível para ela. Já as aves têm nos olhos um arsenal maior seletivas de estruturas que lhes permitem enxer- gar o vermelho. As cores são o principal modo de comunicação entre plantas e Flores exploram cores e odores para se polinizadores, mas a percepção por olhos humanos não basta para entender a com- esconder ou atrair abelhas específicas plexidade desse relacionamento. Vem dessas diferenças sensoriais a noção, já antiga, de que flores polinizadas por Maria Guimarães aves tendem ao vermelho, e aquelas que

V ersão atualizada em 10/06/2019 As amplas paisagens dos campos rupestres abrigam um mosaico repleto de biodiversidade

nos campos rupestres da serra do Cipó, vê essas relações ecológicas. “Foi um em Minas Gerais. Ela mediu o espectro da achado espetacular que as cores possam luz refletida pelas flores e outras partes servir como filtro floral”, diz o biólogo das plantas e relacionou ao seu principal alemão Klaus Lunau, da Universidade de polinizador, conforme artigo publicado na Düsseldof, especialista em polinização e edição de abril da revista New Phytologist coautor do estudo. “É uma novidade que em parceria com colegas da Alemanha e atrair polinizadores seja apenas uma das São Carlos e de Minas Gerais. funções das cores das flores, que também De volta ao laboratório, Camargo per- possam servir para espantar herbívoros e cebeu diferenças na luz refletida por flo- outros visitantes indesejados”, completa. res conforme o polinizador habitual, rei- Três particularidades do campo rupes- terando a importância da cor na atração. tre tornam sua vegetação de baixa esta- Aquelas visitadas por beija-flores emitem tura, com curiosas estratégias de sobre- comprimentos de onda mais longos, in- vivência no solo pobre e pedregoso em visíveis para abelhas. Ela construiu dia- que cresce (ver Pesquisa FAPESP nº 229), gramas representando o espaço visual ideal para esse estudo de comunidades de de aves e abelhas e plotou neles as flores polinizadores. É um ecossistema caracte- conforme seu polinizador, mapeando rizado por grande diversidade de plantas, como os animais enxergam as flores. Os que têm abelhas e beija-flores como os resultados indicam que a maior parte principais polinizadores e onde, por ser das flores polinizadas por beija-flores uma vegetação aberta, as flores são visí- não é vista como colorida pelas abelhas, veis de longe com um bom contraste em sejam elas vermelhas (mais frequente- relação ao pano de fundo, favorecendo mente), amarelas ou brancas. Os beija- a comunicação visual. As pesquisadoras -flores veem todas as cores, contrariando da Unesp esperam repetir o mesmo tipo o dogma de que gostam de vermelho, e de análise para outros ambientes, como são especialmente atraídos por contras- florestas, com outro repertório de espé- tes marcantes. “Flores vermelhas não são cies e condições distintas, para verificar facilmente detectadas pelas abelhas, e se as conclusões se mantêm. percebemos que evitá-las pode ser im- Para Camargo, um diferencial do estu- portante porque nas flores polinizadas do foi ter confirmado, na natureza, a hi- por beija-flores elas podem roubar o néc- pótese da exclusão de abelhas e padrões tar sem polinizar”, diz Camargo. de coloração já descritos para atraí-las. As pesquisadoras também perceberam Morellato completa que agora será pos- que marcações conhecidas como guias sível avançar mais no entendimento de se beneficiam da ação das abelhas têm de néctar – linhas, pontos ou manchas, como se organizam as interações no mais frequentemente flores amarelas. Há nem sempre visíveis aos olhos humanos, campo rupestre. mais, porém, do que atrair polinizadores, que funcionam como trilhas demarca- de acordo com o grupo liderado pela bió- das – aparecem em 52% das flores de Vs i ão noturna loga Patrícia Morellato, da Universidade abelhas e em 26% daquelas polinizadas Além de afirmar que o olhar modificado Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro. por beija-flores. “Os guias otimizam a sobre a polinização poderá trazer novi- A novidade é que a invisibilidade sele- manipulação, porque permitem que as dades em estudos futuros, Klaus Lunau tiva pode ter seus benefícios, excluindo abelhas direcionem sua ação e passem destaca a importância da diversidade visitantes indesejados. menos tempo andando pela flor”, diz brasileira. “Muitas questões estão sem A ecóloga Maria Gabriela Camargo, Camargo, explicando por que as marca- resposta porque a maior parte dos es- durante pós-doutorado no laboratório ções seriam favoráveis para os insetos e tudos foi feita com abelhas europeias e

a camargo a de Morellato, chegou a essa conclusão para as flores. duas espécies de mamangavas, ignoran- l e depois de analisar as cores de flores (283 Um colorido que esconde a flor em do a grande diversidade não só desses espécies) polinizadas por animais (244 vez de atrair, selecionando o visitante, gêneros, mas também de abelhas sem

maria gabri maria espécies de abelhas e 39 de beija-flores) representa uma mudança em como se ferrão e solitárias.” Ele tem contribuído

pESQUISA FAPESP 280 z 53 Alves-dos-Santos se interessou pelo as- sunto quando seu aluno Guaraci Duran Cordeiro, estudando o cambuci (Cam- pomanesia phaea, árvore típica da Mata Atlântica), percebeu que as flores já ti- nham sido visitadas quando ele chegava às 6 horas. Encontrou quatro espécies de abelhas noturnas ativas nas flores a partir de quando abriam às 4h30. As espécies noturnas de abelhas foram em grande parte ignoradas até agora. “Abelhudo não sai à noite”, brinca a pesquisadora. Mais recentemente, o grupo da USP tem es- tudado as flores do gua- Flores de raná (Paullinia cupana), configuração que abrem na madru- aberta, como esta Luxemburgia, são gada, por volta de 2h, e típicas para documentado várias es- polinização por pécies de polinizadores abelhas noturnos. Em pomares escuros, onde os pes- quisadores não conse- guem enxergar as flo- res, as abelhas seguem as trilhas quími- cas por meio das antenas e se orientam perfeitamente para o que interessa. Em parceria com o biólogo Stefan Dötterl, da Universidade de Salzburgo, na Áus- tria, o grupo da USP está destrinchando quimicamente esses odores, conforme mostram em artigo de julho de 2018 na Frontiers in Plant Science. A proporção entre os componentes químicos pode ser crucial para filtrar as espécies de abelhas atraídas, potencializando uma relação O fundo dos tubos mais produtiva. “As abelhas do gênero alongados de Augusta longifolia, Apis tendem a visitar flores da mesma de cor invisível para planta, o que não é útil para espécies que abelhas, só pode ser exigem polinização cruzada”, exemplifi- atingido por ca a pesquisadora, referindo-se à neces- beija-flores sidade de o pólen de uma planta fertilizar outro indivíduo. “Outras abelhas variam mais entre plantas.” n

para a redução desse desconhecimento detectaram que as preferências não são em parceria com a bióloga Isabel Alves- homogêneas. A primeira espécie tendia Projetos -dos-Santos, do Instituto de Biociências a escolher azulados, enquanto a segunda 1. Combining new technologies to monitor phenology da Universidade de São Paulo (IB-USP), não parecia ter preferência por cores es- from leaves to ecosystems (nº 13/50155-0); Modalidade em experimentos conduzidos no apiário. pecíficas, de acordo com artigo publica- Parceria para Inovação Tecnológica (Pite); Convênio Microsoft Research; Pesquisadora responsável Leonor “Aqui as condições são boas para expe- do em setembro de 2018 na PLOS ONE. Patrícia Cerdeira Morellato (Unesp); Investimento R$ rimentos porque podemos treinar, ali- Embora a cor seja a principal forma de 1.842.134,97 (FAPESP). mentar e manipular as abelhas”, conta sinalização das flores, aparentemente 2. Diversidade florística e padrões sazonais dos cam- pos rupestres e Cerrado (nº 10/51307-0); Modalidade ela. “Dois estudantes do Klaus vieram outros sentidos podem ser mais impor- Parceria para Inovação Tecnológica (Pite); Convênio a camargo a l

da Alemanha, e no final do período de tantes para Melipona. Vale-Fapemig-FAPESP; Pesquisadora responsável Leo- e nor Patrícia Cerdeira Morellato (Unesp); Investimento R$

estudo as abelhas os seguiam de um lado Nos últimos anos, o grupo da USP co- gabri

para outro no jardim!” Eles examina- meçou a explorar a vida noturna das abe- 441.438,71 (FAPESP). a mari

ram duas espécies de abelhas sem ferrão, lhas. Sem luz para ser refletida, à noite Os artigos e projetos consultados para esta reportagem s oto

Partamona helleri e Melipona bicolor, e as cores deixam de cumprir seu papel. estão listados na versão on-line. f

54 z junho DE 2019 ambiente y Como as florestas renascem

Em áreas secas, as árvores de madeira dura são as primeiras a se regenerar naturalmente, ao contrário do que ocorre em zonas úmidas

Rafael Garcia

ma colaboração internacional que reúne 85 pesquisadores de 16 países está ten- tando entender melhor os mecanismos Ude regeneração de florestas tropicais da América Latina que foram desmatadas. O grupo, batizado de 2ndFOR, relata em seu mais recente estudo que a dinâmica de mudanças progressivas, ao longo do tempo, na composição das espécies de árvores, processo denominado sucessão florestal, ocorre de maneira diferente em função do nível de umidade predominante nas áreas desflorestadas. Em um artigo publicado em 22 de abril na revista científicaNature Ecology & Evolution, os cientistas mostram que, nas florestas tropicais mais úmidas, as primeiras espécies a ressurgir em áreas desma- tadas são as de madeira mais leve e mole, que cres- cem mais rapidamente e apresentam menor valor comercial. Num segundo momento, recuperam-se as de madeira mais densa e dura, que demoram mais para se desenvolver e alcançam preços mais elevados. Esse comportamento era esperado, pois Árvore de embaúba está de acordo com a visão tradicional sobre o pro- na Amazônia cesso natural de regeneração florestal em áreas brasileira, espécie que é uma das degradadas. Mas, nas florestas mais secas, ocorre primeiras o contrário: inicialmente, reaparecem as árvores a se regenerar

fabio colombini fabio de madeira densa e, em seguida, as mais leves. em áreas úmidas

pESQUISA FAPESP 280 z 55 “Ficamos surpresos ao ver padrões de sucessão totalmente opostos para flores- A geografia da regeneração tas em zonas chuvosas e secas”, afirma Estudo foi feito em 1.400 fragmentos de floresta Lourens Poorter, ecólogo da Universi- dade de Wageningen, na Holanda, pri- de 50 sítios da América Latina meiro autor do estudo. Os pesquisadores também analisaram florestas situadas em um clima intermediário, a meio cami- nho entre o úmido e o seco. Nesse caso, n observaram que a regeneração inicial Florestas secas n inclui igualmente árvores de madeira Florestas úmidas mais densa como mole. No longo prazo, Sítios estudados após algumas décadas de regeneração, tanto as florestas de áreas secas como as úmidas tendem a apresentar espécies arbóreas dos dois tipos. Espécies de Espécies de madeira dura madeira leve Sequestro de carbono Crescimento Crescimento As conclusões do trabalho da rede 2nd- lento rápido FOR se baseiam em um corpo de dados robusto o suficiente para permitir com- Toleram condições Não sobrevivem parações entre florestas tão diferentes adversas, como em áreas de pouca quanto a Mata Atlântica paulista, em um sombra e seca água e luz clima relativamente úmido, e o Petén mexicano, em uma zona árida. O gru- Normalmente com Costuma ter po usou dados de mais de 1.400 frag- madeira mais escura madeira clara mentos de floresta analisados em 50 dos seus 58 sítios de pesquisa. Os locais de amostragem foram escolhidos por terem florestas secundárias, regeneradas de forma natural, com idades distintas de crescimento. Foram observadas desde áreas do Pará, desmatadas há 10 anos, até fragmentos de floresta no Panamá, que estão crescendo depois de terem sido Florestas Árvores de madeira Em seguida, quando o Com o tempo, destruídos e abandonados há 100 anos. secas dura são as primeiras a ambiente se torna menos espécies dos dois tipos A importância de reservar áreas de flo- se regenerar. Elas desafiador, ressurgem as passam a coexistir resta para regeneração tem crescido nas resistem à falta de água árvores de madeira leve últimas décadas, sobretudo por causa da questão climática. À medida que o plane- ta demora mais e mais para reduzir seu Campo ritmo de emissões de dióxido de carbono desmatado (CO2), as florestas secundárias se tornam mais importantes na política de mitiga- ção do aquecimento global. Árvores em crescimento absorvem mais carbono. Melhorar o entendimento sobre o pro- cesso de regeneração de áreas desma- Florestas Com muita água e luz Em um segundo Como nas florestas tadas fornece novos subsídios para os úmidas solar no ambiente, as momento, recuperam-se secas, os dois tipos de formuladores de políticas. As novas in- espécies de madeira leve as espécies de madeira árvores se restabelecem formações podem ajudar a decidir quais lideram a regeneração dura no ambiente úmido áreas devem ser priorizadas e quais es- tratégias de recomposição florestal são mais eficazes. “Com base nesse conhe- Área cimento, se formos fazer um plantio em desflorestada uma área de solo degradado, podemos escolher algumas espécies arbóreas com madeira mais densa, antevendo a falta de água que as plantas vão enfrentar no

56 z junho DE 2019 Floresta seca na região de Chanela no México

local”, afirma o engenheiro-agrônomo Pedro Brancalion, da Escola Superior de Agricultura Luís de Queiroz da Univer- sidade de São Paulo (Esalq-USP), de Pi- racicaba, coautor do estudo do 2ndFOR. O grau de umidade das florestas tro- picais, em última instância, pode alterar drasticamente a forma com a qual uma área desmatada inicia seu processo de regeneração. Algumas espécies de plan- tas precisam da proteção fornecida pelo ensolarados. Elas são as primeiras a rea- de prospecção de novas substâncias e dossel da floresta para não ressecarem parecerem nas florestas úmidas. biomateriais, sem falar na importância quando expostas em excesso à luz solar. As mudanças climáticas são talvez o que as matas têm para a manutenção Por isso, nas florestas secas, as árvores de principal fator que motiva a adoção de dos modos de vida de comunidades lo- madeira densa – de crescimento lento, políticas públicas em prol da regenera- cais. Mesmo quando se leva em conta mas mais tolerantes à escassez de água – ção de áreas de florestas desmatadas. Um apenas a biodiversidade, análises feitas são as mais importantes na fase inicial grupo de 30 países já incorporou a seus pela rede 2ndFOR indicam que há ma- de recuperação. Depois que elas se esta- planos de mitigação a recomposição de neiras diferentes de medir o sucesso de belecem, as espécies de madeira menos 91 milhões de hectares de florestas até restauração de uma floresta. dura, que perecem mais facilmente em 2020, área do tamanho da Venezuela. Um trabalho do grupo publicado em razão do estresse hídrico, vêm a reboque. Até 2030, segundo uma meta global as- março de 2019 na revista Science Advan- Nas florestas chuvosas, como não há sumida no âmbito do Acordo de Paris ces indica que, em média, as florestas períodos de grandes secas, as madeiras para reduzir as emissões de CO2, 350 secundárias tropicais precisam de 20 menos densas largam na dianteira na pri- milhões de hectares de florestas degra- anos para recuperar 80% da riqueza de meira etapa de recolonização, pois são dadas teriam de ser recuperadas. Como espécies encontradas em uma floresta mais eficazes em absorver nutrientes e isso será feito, ninguém ainda sabe. madura preservada. Para apresentar a crescer. Isso explica, por exemplo, por Segundo estudos da rede 2ndFOR, es- mesma configuração de espécies de uma que a capoeira (mata que cresce depois tratégias de restauração florestal com in- mata conservada, a escala de tempo é de uma floresta ter sido cortada) em cli- tervenção direta, que envolvem o plantio maior. “Apesar de as florestas regene- mas mais chuvosos, como na Amazônia, de mudas, nem sempre compensam. A rantes recuperarem rapidamente boa é repleta de embaúbas, plantas leves de degradação de solo, a competição com parte das espécies, pode levar séculos madeira oca, enquanto as florestas des- plantas invasoras e eventuais incêndios até que venham a ter as mesmas espécies ommons matadas em clima mais seco se rege- podem comprometer os resultados dessa da mata original”, comenta Brancalion. dia C e neram a partir de espécies de madeira abordagem. “Se possível, a restauração “Na verdade, não sabemos se isso um dia densa e dura, como o pau-ferro. florestal deve contar com a regeneração será possível, porque nem sempre temos natural, a chamada restauração passiva. ideia da real diversidade que existia em e 09 / Wikim “Estilo de Vida” Ela é mais barata e leva a uma vegeta- muitas áreas desmatadas.” n drak

aE A dinâmica da recomposição florestal de- ção mais diversificada e resiliente”, diz oto pende de diferenças no metabolismo que a ecóloga Ima Vieira, do Museu Paraen- influenciam o “estilo de vida” das árvores. se Emílio Goeldi, instituição afiliada ao Projeto As espécies com estratégias denominadas 2ndFOR. “Apenas em áreas degradadas Cronossequência e efeito da paisagem na sucessão affonso f affonso conservadoras são favorecidas em am- onde a regeneração natural é difícil, o secundária de florestas tropicais (nº 14/14503-7); Mo- dalidade Bolsa de doutorado; Pesquisador responsável xandr e bientes com menor disponibilidade de plantio de árvores é uma boa alternativa.” e Pedro Brancalion (USP); Beneficiário Ricardo Gomes al recursos naturais, como em solos pobres, A absorção de carbono não deve ser César; Investimento R$ 168.055,58. em lugares com pouca luz e água. Assim, a única motivação para restaurar flores- Artigos científicos ra çõ es t ganham precedência nas florestas de clima tas, afirmam os pesquisadores. Flores- POORTER, L. et al. Wet and dry tropical forests show us l relativamente mais seco. As que apresen- tas estão associadas à melhoria do solo opposite successional pathways in wood density but o e i tam estratégias aquisitivas são favorecidas e à qualidade da água para consumo. A converge over time. Nature Ecology & Evolution. 22 abr. 2019. á ficgr o em ambientes com mais recursos, como biodiversidade que elas sustentam abri-

f ROZENDAAL, D. M. A et al. Biodiversity recovery of Neo- nn i terrenos mais férteis e locais chuvosos e ga um potencial ainda pouco explorado tropical secondary forests. Science advances. 6 mar. 2019.

pESQUISA FAPESP 280 z 57 Paleontologia y

Um estranho no Grand Canyon

Pegadas fósseis de 280 milhões de anos são o primeiro registro de vertebrados, em tese, não adaptados a ambientes secos em um antigo deserto

Marcos Pivetta

Ve rsão atualizada em 06/06/2019

ão muito longe da Trilha do Eremita, uma das mais conhecidas rotas de caminhada do Parque Nacional do Grand Canyon, Nno estado norte-americano do Arizona, um bloco de arenito de 4,6 metros (m) de compri- mento por 2,2 m de altura foi encontrado em 2013. A pedra gigante despencara de uma das encostas que pontuam a paisagem árida e montanhosa da região. Esse bloco provém de rochas sedimen- 2 tares formadas pelo processo de compactação e cimentação dos grãos de quartzo de um deserto que existiu ali há aproximadamente 280 milhões de anos, no início do período Permiano. Em uma das faces do bloco, havia quatro trilhas de pegadas fossilizadas, vestígios deixados por animais da pré-história que andaram por aquelas paragens quando havia um deserto com dunas formadas pelo vento. Em outras seis localidades da região, também em rochas do Permiano da formação geológica denominada Arenito Coconino, foram achados mais 12 conjuntos de rastros semelhan- tes. Paleontólogos do Brasil, dos Estados Unidos e da Alemanha estudaram as pegadas fósseis e Rastros de animal em bloco chegaram a uma conclusão inesperada: os ves- de arenito (à esq.) tígios foram produzidos por animais peculiares que pertenceu a que, em teoria, não deveriam ter vivido em um antigo deserto que deserto, pois não fazem parte do grupo reconhe- existiu no Parque Nacional do Grand cidamente apto a sobreviver e se reproduzir longe Canyon (acima), nos de ambientes úmidos, os amniota. 1 Estados Unidos

58 z junho DE 2019 As pegadas fossilizadas representam esperávamos encontrar o registro desses corpulento lagarto, com patas curtas, os o primeiro registro conhecido de um animais em rochas provenientes de um diadectomorfos são considerados como enigmático grupo extinto de vertebra- paleodeserto.” animais de transição entre os anamnio- dos denominados diadectomorfos, qua- Os anamniotas são vertebrados cujos tas e os amniotas. “Antes dessas pegadas, drúpedes que tinham algumas caracte- embriões não são revestidos por mem- pensávamos que apenas alguns tipos de rísticas de anfíbios e outras de répteis, branas (o âmnio, o cório e o alantoide) amniotas viviam em desertos antigos”, and Canyon and em um deserto. “Essa é a evidência mais que lhes servem de proteção contra o diz Spencer Lucas, curador da seção antiga de colonização de um ambiente ressecamento e choques mecânicos. Seus de paleontologia do Museu de Histó-

ional do Gr do ional desértico por vertebrados anamniotas, ovos são desprovidos de uma casca rígi- ria Natural e Ciência do Novo México, c

e na e que não estavam, em princípio, aptos a da. Essa característica obriga esses ani- em Albuquerque, outro autor do estudo. u q viver em locais tão áridos”, comenta o mais, hoje representados pelos peixes “Agora sabemos que os habitantes desses a r p paleontólogo Heitor Francischini, que e anfíbios, a viver dentro ou perto da ambientes eram muito mais diversos.”

ini 2 ch ini hoje faz estágio de pós-doutorado na água, onde depositam diretamente seus Francischini foi chamado para estudar c is Universidade Federal do Rio Grande do ovos. Os amniotas, que hoje incluem os as pegadas fósseis encontradas no bloco an r F r Sul (UFRGS), principal autor do arti- répteis, os mamíferos e as aves, gestam de arenito em 2017, quando, como parte go que descreve as pegadas, publicado seus filhotes dentro do próprio corpo ou de uma bolsa-sanduíche do seu douto- Heito s 1 no periódico científico Paläontologische depositam na terra seus ovos, que têm rado, passou uma temporada no museu oto f Zeitschrift em 13 de maio deste ano. “Não casca dura. De aparência que lembra um norte-americano sob supervisão de Lucas.

pESQUISA FAPESP 280 z 59 Ilustração de como NEVADA teria sido o animal Grand que deixou as Las Vegas Canyon pegadas fósseis no Parque Nacional do Grand Canyon C ALIFÓR Local onde os

rastros foram NO

NIA encontrados V

O

o MÉ d ARIZONA Como o brasileiro estuda icnofósseis, ves- a r o l Phoenix XIC tígios deixados por animais que perma- o C

o O

i necem preservados nas rochas, os rastros R encontrados no Grand Canyon se torna- Vertebrados ESTADOS UNIDOS ram objeto de um novo trabalho. A su- cessão de pegadas, associadas ao gênero anamniotas Tucson Ichniotherium, foi produzida por animais não geram adultos e juvenis que tinham cinco dedos MÉXICO sem garras. Seu tamanho varia entre 11 e embriões com 37 centímetros, indício de que esses seres 0 100 200 podiam passar de 1 m de comprimento. membranas km Esse tipo de pegada é comumente encon- trado na Europa e com menor frequência que os na América do Norte e na África. protejam do que incomum, esse tipo de acomodação também pode ter ocorrido no passado. ancestral comum ressecamento Desde 1918, um ano antes de o par- Sua descoberta em rochas associadas a que nacional ter sido criado, a região do um paleodeserto, se for corroborada por Grand Canyon apresenta registros de pe- outros achados semelhantes, talvez possa gadas fósseis. Segundo Vincent Santucci, levar a uma nova revisão na classificação coordenador do programa de paleonto- dos diadectomorfos, grupo que tem sido provavelmente teriam que ser capazes de logia do Serviço Nacional de Parques dos alvo de reavaliações à medida que sur- se reproduzir como hoje fazem os am- Estados Unidos, esse tipo de vestígio é gem mais evidências sobre seu provável niotas, seja dando à luz a seus filhotes descoberto com regularidade nessa área modo de vida. Atualmente, eles são con- ou botando algum tipo de ovo com cas- do Arizona. “Há uma abundância de pe- siderados como o grupo mais próximo ca”, pondera o paleontólogo Juan Carlos gadas fósseis no Arenito Coconino, o que dos primeiros amniotas, que surgiram Cisneros, da Universidade Federal do sugere que muitos vertebrados viviam onso por volta de 350 milhões de anos atrás. Piauí, que estuda répteis dos períodos nesse antigo deserto”, comenta Santucci, a ff r e Ambos os grupos são vistos como muito Permiano e Triássico e não participou que também assina o novo estudo. “Mas alexand próximos em termos evolutivos e teriam do trabalho sobre as pegadas fósseis do nenhuma delas, até então, se parecia com descendido de um ancestral comum. No Arizona. “Contudo, nunca foram encon- a de um diadectomorfo.” n

entanto, cada linhagem teria seguido um trados ovos desse grupo de animais com eto MAPA caminho distinto, sendo, aparentemente, casca. Por isso, essa questão continua em e Paes N e Paes apenas os amniotas especializados em aberto.” Há ainda outra possibilidade: ho- Artigo científico r se reproduzir sem a presença de água. je existem alguns anfíbios anamnióticos FRANCISCHINI, H. et al. On the presence of Ichniotherium Pelo menos, essa é a interpretação mais adaptados a desertos, que se reproduzem in the Coconino Sandstone (Cisuralian) of the Grand Canyon and remarks on the occupation of deserts by a çã O Voltai

clássica. “A presença de diadectomorfos por meio de ovos sem cascas e que não non-amniote tetrapods. Paläontologische Zeitschrift. tr us l em um ambiente árido significa que eles são incubados no corpo dos pais. Ainda 13 mai. 2019. i

60 z junho DE 2019 Física y Fluidez no espaço-tempo curvo

Estudo amplia o poder explicativo de teoria que prevê interação de matéria densa com campos gravitacionais fortes

m artigo a ser publicado no perió- Ilustração da fusão dico Physical Review Letters, três de duas estrelas de nêutrons, cenário físicos brasileiros provaram dois em que a teoria Eteoremas matemáticos que refor- Israel-Stewart çam a chamada teoria Israel-Stewart, explica a concebida nos anos 1970 para prever a movimentação interação de fluidos viscosos – líquidos, de fluido viscoso gases ou plasmas que apresentam resis- tência a seu fluxo – movendo-se a velo- cidades próximas à da luz e interagindo de que as equações de Israel-Stewart em harmonia com a relatividade em cer- com campos gravitacionais extremamente pudessem ser usadas para estudar es- tas situações. Mas as soluções propostas fortes. Os cálculos feitos pelos pesqui- se fenômeno, até a publicação do nosso pareciam simplistas demais para prever sadores demonstram a compatibilidade trabalho ninguém sabia se elas de fato consistentemente como fluidos viscosos da teoria de Israel-Stewart com a rela- estavam corretas se fossem aplicadas se comportam quando a estrutura do tividade geral de Albert Einstein (1879- nesse caso”, diz Marcelo M. Disconzi, da espaço-tempo pode se dobrar e formar 1955), inclusive para situações em que o Universidade Vanderbilt, em Nashville, singularidades, regiões em que a matéria espaço-tempo é curvo e há formação de nos Estados Unidos, coautor do estudo. e a energia se comprimem em um único matéria ultradensa. Um exemplo é a coli- O terceiro nome a assinar o trabalho é ponto. “Nossa prova matemática mostra são, seguida de fusão, de duas estrelas de Fábio S. Bemfica, da Universidade Fe- que a teoria de Israel-Stewart é poderosa nêutrons, corpos celestes extremamente deral do Rio Grande do Norte (UFRN). o suficiente para descrever o transporte compactos e energéticos. Desde os anos 1940, várias propos- de matéria nesse cenário extremo”, co- “A viscosidade é uma característica tas para formular uma teoria de fluidos menta Noronha. n Marcos Pivetta

monnet universal dos fluidos que descreve sua viscosos compatíveis com as ideias de i . S resistência ao fluxo, como ocorre quando Einstein foram feitas. Essas tentativas, t y / A si o mel escorre nas paredes de um reci- no entanto, esbarravam sempre em um Projeto er iv piente. Fenômenos semelhantes também problema: violavam o princípio de cau-

n Física hadrônica em colisões nucleares de altas ener- gias (nº 17/05685-2.) Modalidade Projeto Temático;

te U estão presentes nas fusões de estrelas de salidade, fundamental na teoria da rela- a nêutrons”, explica Jorge Noronha, do tividade. Há quase meio século, os físicos Pesquisador responsável Jun Takahashi (Unicamp); a St Investimento R$ 1.644.757,82. Instituto de Física da Universidade de Werner Israel, canadense, e John Ste- Artigo científico São Paulo (IF-USP), um dos autores do wart (1943-2016), britânico, resolveram, BEMFICA, F. S. et al. Causality of the Einstein-Israel- GO / SonomGO I trabalho. “Embora existisse uma expec- aparentemente de forma parcial, o pro- -Stewart Theory with bulk viscosity. Physical Review F / L S Letters. No prelo. N tativa grande na comunidade científica blema ao criarem uma teoria que estava

pESQUISA FAPESP 280 z 61 tecnologia internet y

O futuro da web

Ao completar 30 anos, a tecnologia que transformou o mundo moderno enfrenta desafios para continuar sendo um território livre, democrático e plural

Yuri Vasconcelos

web tornou-se balzaquiana. Em mar- bio Kon, professor do Instituto de Matemática e ço deste ano, a World Wide Web, ou Estatística da Universidade de São Paulo (IME- simplesmente www, completou três -USP) e editor-chefe do Journal of Internet Ser- décadas de existência. Sua invenção vices and Applications. A ferramenta idealizada mudou a cara da internet, massificou pelo cientista britânico, segundo Kon, foi decisiva Aseu uso e provocou profundas transformações na para a popularização da internet, que tem hoje maneira pela qual as pessoas se relacionam e os 4,4 bilhões de usuários, quase 60% da população negócios acontecem. A ideia brotou da cabeça do global. “A rede trouxe muitas coisas boas e pra- físico britânico Tim Berners-Lee, quando tinha ticamente não conseguimos mais viver sem as 33 anos e era pesquisador da Organização Euro- comodidades que ela nos proporciona”, opina. peia para a Pesquisa Nuclear (Cern), na Suíça. “Mas, por outro lado, ela amplifica alguns fenô- Naquela época, a internet, uma rede conectada menos negativos e indesejados que já existiam de computadores localizados em diferentes luga- na sociedade.” res, já operava havia duas décadas, mas de forma A ideia que originou a web, destaca o cientista bem diferente. Com recursos restritos, era usada da computação Roberto Marcondes César Júnior, principalmente para troca de informações entre do grupo Ciência de Dados do IME-USP, tem pesquisadores da área acadêmica. Não existiam uma gênese interessante que revela a impor- sites, redes sociais nem ferramentas de busca. tância da pesquisa básica para consolidação de “A www permitiu a fácil interconexão de dados grandes projetos científicos. “Ao ler a sugestão distribuídos ao redor do globo e transformou-se de Berners-Lee para criação de um sistema de em um componente fundamental da internet compartilhamento de dados de pesquisa, seu su- moderna”, afirma o cientista da computação Fa- perior imediato no Cern, Mike Sendal, destacou

62 z junho DE 2019 no documento que a proposta era ‘vaga, mas es- timulante’”, conta Marcondes. “Para ele, a ideia ainda não estava muito clara, e foi preciso mais alguns anos de pesquisa em laboratório para que o www se concretizasse e se transformasse na ferramenta que viria a revolucionar o mundo.” Outro aspecto apontado pelo pesquisador é a importância da web para o avanço das pesquisas em inteligência artificial (IA). “Alguns dos algo- ritmos de IA existentes hoje têm raiz em estudos iniciados muitos anos atrás. A criação da World Wide Web disponibilizou na rede uma grande quantidade de informações, permitindo que os algoritmos trabalhassem numa escala de dados muito superior, processo essencial para o refi- namento deles. Sem a invenção de Berners-Lee, goli a talvez estivéssemos bem atrasados em relação à m a l a revolução de IA”, destaca Marcondes. a r Nas comemorações dos 30 anos da web, Ber- ners-Lee expressou preocupação com os rumos

traçãO bárb que a internet está tomando e fez um apelo para o us il estabelecimento de uma nova ética para lidar com

pESQUISA FAPESP 280 z 63 os problemas surgidos a partir dela. Em entrevista à rede britânica BBC, ele ex- A ferramenta que mudou o mundo ternou o temor de que ela caminhe para Doze momentos importantes da história da internet e da web um futuro disfuncional. De acordo com o cientista, o escândalo envolvendo a con- sultoria Cambridge Analytica, do Reino Unido, acusada de usar dados privados de 87 milhões de usuários do Facebook 1981 para finalidades políticas durante a cam- O protocolo TCP/IP vira a panha presidencial dos Estados Unidos linguagem padrão da em 2016, revelou quão frágil é a priva- rede; o termo internet é cidade dos usuários na rede mundial de usado pela primeira vez computadores. Em carta aberta divulgada em 12 de 1969 março passado, dia da efeméride, Ber- Surge nos EUA ners-Lee listou três áreas específicas a Arpanet de disfunção que, para ele, estão pre- (Rede da Agência para judicando a web: intenções maliciosas, Projetos de Pesquisa como hacking e assédio on-line; projetos Avançada), precursora duvidosos, entre eles modelos de negó- da internet no mundo cios que recompensem cliques; e con- 1988 sequências negativas não intencionais A FAPESP cria o projeto da rede, com destaque para discussões da Rede ANSP (Academic agressivas e polarizadas. Para combater Network at São Paulo), esses desvirtuamentos, o físico britânico que três anos depois lançou o projeto Contract for the web, um se tornaria a primeira conjunto de princípios com o objetivo rede brasileira a de fortalecer a liberdade e a abertura da 1973 integrar-se à internet internet (ver box na página 65). A Arpanet realiza as primeiras conexões internacionais com neutralidade de rede a Inglaterra e a Noruega 1989 “Precisamos de um novo contrato para a Tim Berners-Lee lança web, com responsabilidades claras e rígi- o conceito da World das para que aqueles que detêm o poder Wide Web possam agir melhor”, declarou Berners- -Lee durante a última Web Summit, maior conferência europeia sobre tecnologia da internet, ocorrida em Londres no fim de 2018. “Algumas questões de regulamen- sociado a conteúdos, serviços, aplicações tes das mudanças geradas pela internet, tação têm que envolver governos. Outras ou dispositivos particulares. sobretudo nos relacionamentos interpes- claramente incluem as empresas. Se você “Desde sua origem, a internet se pro- soais, nos modelos de negócio e no que é provedor de acesso, precisa se compro- pôs a ser plural e de acesso amplo, ou ela chama de monetização de dados pes- meter a entregar neutralidade de rede. Se seja, as pessoas conectadas teriam aces- soais. “Como estudiosa do tema, percebo é uma companhia de rede social, precisa so a todo tipo de conteúdo que lhes in- que, com a proliferação das redes sociais garantir que as pessoas tenham controle teressa, independentemente de filtros e em escala global, como Facebook e sites sobre seus dados.” controle de tráfego dos pacotes de da- de relacionamento, as pessoas passaram A neutralidade da rede menciona- dos”, ressalta a advogada Cíntia Rosa a se preocupar mais com a quantidade da por Berners-Lee, segundo a Coali- Pereira de Lima, da Faculdade de Di- de relacionamentos, desconsiderando a zão Global pela Neutralidade de Rede, reito de Ribeirão Preto da USP e líder qualidade deles”, avalia a especialista. No que reúne ativistas de vários países, é o do grupo de pesquisa Observatório do campo das relações comerciais, segundo princípio segundo o qual o tráfego da Marco Civil da Internet no Brasil. Gra- ela, a internet e a www alteraram subs- internet deve ser tratado igualmente, ças à neutralidade da rede, por exem- tancialmente a forma de contratação de sem discriminação, restrição ou interfe- plo, uma operadora não pode reduzir produtos e serviços, que se tornou cada rência, independentemente do emissor, a velocidade de acesso a determinado vez mais abstrata e automatizada. recipiente, do tipo ou conteúdo. Com site nem cobrar para que o usuário usu- “Os contratos de compra e venda no isso, pretende-se garantir que a liberda- frua de certo serviço na internet, como comércio eletrônico são muitas vezes de dos usuários não seja limitada pelo a oferta de streaming da Netflix. lesivos ao consumidor. Eles são elabo- favorecimento ou desfavorecimento de A pesquisadora se preocupa também rados de forma proposital para desesti- transmissões do tráfego da internet as- em apontar alguns problemas decorren- mular a leitura pelo internauta, que na

64 z junho DE 2019 1990 Apresentado o 2004 navegador pioneiro Lançamento do WorldWideWeb Facebook. Quinze 2018 anos depois, a maior Berners-Lee lança o rede social do Contract for the planeta agrega 2,3 Web, um conjunto 1993 bilhões de usuários de princípios para Estudantes da Universidade corrigir o que ele de Illinois em chama de Urbana-Champaign (EUA) “disfuncionalidades” criam o primeiro navegador da rede web gráfico, o Mosaic

1998 2007 Larry Page e Sergey Brin Steve Jobs cria o iPhone, criam a ferramenta de que acelerou a Contrato para a web busca Google. Antes dele, massificação da outros buscadores já computação móvel por Os princípios que todos devem haviam sido lançados, mas meio dos smartphones seguir para recolocar a internet sem o mesmo sucesso nos eixos

Governos Garantir que todo mundo possa se 2014 conectar à rede e participar ativamente Promulgado o Marco Civil da dela Internet, lei federal que Manter a internet disponível, regula o uso da rede no Brasil o tempo todo, com acesso aos internautas Respeitar o direito fundamental dos indivíduos à privacidade

maior parte das vezes fecha o negócio no de alta concentração, com algumas EMPRESAS sem saber que o contrato contém cláu- plataformas, como Facebook, Google Tornar a internet acessível sulas abusivas ou renúncia de direitos”, e Twitter, atraindo a atenção da maio- a todos, garantindo que ninguém destaca. Por fim, no tocante à monetiza- ria dos usuários. Isso é negativo porque seja excluído ção dos dados dos usuários, Lima avalia poucas corporações acumularam mui- Respeitar a privacidade e os dados que eles passaram a ser considerados to poder e passaram a ter acesso a uma pessoais dos consumidores commodities. “Os dados pessoais tor- elevada quantidade de informações dos Desenvolver tecnologias que deem a i naram-se informações valiosas para o internautas”, afirma. vazão ao melhor da humanidade d e p marketing direto, sendo muitas vezes Belli alerta para um fato associado ao iki usados de forma indiscriminada pelas fenômeno de concentração, que é a exis- CIDADÃOS ke / w Ser criadores e colaboradores na web c

r empresas visando exclusivamente a ob- tência de certa opacidade sobre o funcio- a tenção de lucro.” namento dessas organizações, privadas e para que seu conteúdo seja rico e l Cl

au relevante

P Especialista em direito digital e pro- fechadas. Os dois fatores, concentração fessor de governança e regulação da in- e opacidade, facilitam a manipulação Construir comunidades que fo t o ternet na FGV Direito Rio, na capital dos usuários, por exemplo, por meio da façam um debate civilizado e respeitem a goli a

l dignidade humana

a fluminense, Luca Belli concorda com a disseminação de fake news. “Há uma

a m Lutar pela web para que ela

r avaliação de que é preciso trazer a inter- relação direta entre desinformação e net de volta aos trilhos. “Ela foi concebi- aglutinação de plataformas. É muito mais permaneça uma plataforma aberta e da como uma rede transparente, descen- fácil espalhar boatos em quatro ou cinco pública para pessoas em todos os lugares do mundo, agora e no futuro

traçã o bárb a tralizada e distribuída, mas nos últimos aplicativos dominantes, que agregam a us il quatro ou cinco anos vemos um fenôme- maior parte dos usuários das redes so- Fonte contractfortheweb.org Glossário Muita gente confunde internet e web, mas elas são diferentes

Internet Rede de computadores espalhados pelo mundo interconectados pelo protocolo TCP/IP, criado pelos norte-americanos Vint Cerf e Robert Kahn no início da década de 1970

Web Uma das ferramentas para acessar a internet. A web (ou www) utiliza o protocolo HTTP para fazer a transferência de informações e depende de navegadores para Tim Berners-Lee: preocupação com as disfuncionalidades da internet funcionar

HTTP ciais, do que disseminá-los em um gran- PROCESSO CIVILIZATÓRIO Sigla em inglês de protocolo de de número de diferentes plataformas de Um dos pioneiros da internet no país, o transferência de hipertexto (informação médio ou pequeno porte.” engenheiro eletricista Demi Getschko, exibida em formato digital, que pode Segundo o especialista, para reverter presidente do Núcleo de Informação e conter dados em formato de imagem, esse quadro e fazer com que a internet Coordenação do Ponto BR (NIC.br), som, vídeo etc.). Idealizado por Tim volte a ser um ambiente mais aberto e responsável por coordenar o registro Berners-Lee no início dos anos 1990, competitivo, é preciso adotar medidas de nomes de domínio na internet bra- funciona associado ao protocolo TCP/IP que garantam a portabilidade, a intero- sileira, admite que a rede mundial de peracionalidade e a segurança dos da- computadores enfrenta problemas, mas dos. Portabilidade é o direito que o inter- defende que o que se vê nela, conforme nauta tem de levar seus contatos, fotos, já expresso pelo matemático norte-ame- mensagens e tudo o mais de uma rede ricano Vint Cerf, um de seus fundado- 1980 (ver Pesquisa FAPESP nos 180 e 221), social para outra, enquanto interopera- res, é a representação do que existe no a forma de corrigir desvios é por meio de cionalidade é a fixação de padrões que mundo real. “A internet é uma espécie um processo civilizatório e educacional. permitem a exportação e importação de de espelho da sociedade. Atacar a in- “Precisamos amadurecer e conscientizar dados entre as plataformas. ternet, quebrar o espelho, não adianta os usuários. É muito bom que todos este- A portabilidade já está prevista na Lei nada. A realidade vai continuar exis- jam falando – no passado, pouquíssimos Geral de Proteção de Dados Pessoais, tindo”, opina. falavam e todo mundo ouvia de vez em marco legal para a privacidade na inter- A popularização da rede, conforme quando.” Hoje todos falam, lembra Gets- net no país aprovado em 2018 e que vai Getschko, permitiu enxergar coisas que chko, porque a web e a internet permi- entrar em vigor no próximo ano. Mas antes não eram vistas. “A maioria das tiram. “Evidentemente, isso gera certo a definição dos padrões técnicos para pessoas envolvidas com ela é do bem, ruído. Mas prefiro ouvir essa cacofonia implementá-la depende da criação de mas existe uma exuberância, uma ânsia ao silêncio”, diz o cientista. “Sou otimista uma autoridade nacional de proteção de de participar do processo, de falar sem quanto ao futuro da internet.” n dados, o que ainda não ocorreu de fato pensar, que com o tempo, esperamos, – apesar de ter sido instituída por uma vai assentar”, pondera. “Não sou muito medida provisória do governo no início favorável à legislação em excesso. Tenho Projetos do ano, ela não existe concretamente. dúvidas sobre a qualidade e a eficiência 1. Sistema integrado de informações em ciência e

tecnologia para o estado de São Paulo e Rede ANSP s

“Até que essa autoridade comece a fun- de normatizações para corrigir os ex- o ge (n 94/03675-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Re- a m cionar, é impossível fazer a portabilidade cessos na rede. Como ela não tem fron- gular; Pesquisador responsável Nelson de Jesus Parada; de dados”, aponta Belli. Para ele, também teiras, qualquer legislação local tende a Investimento R$ 7.889.773,58. etty I 2. Interligação de instituições de ensino, pesquisa e desen- é fundamental a implementação de um falhar. E sempre haverá alguém que se volvimento do estado de São Paulo a Rede ANSP: estudo arcabouço sólido de cibersegurança, que comporte fora das normas.” de viabilidade e projetos dos sistemas de comunicação o RINI / AFP / G

de dados possíveis de serem utilizados (n 94/03598-1); FF defina com precisão comportamentos Para o presidente do NIC.br, que este- O Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador E C ilícitos, a fim de combater a ação de hac- ve diretamente envolvido com a chegada responsável Nelson de Jesus Parada; Investimento C BRI kers e evitar violação de informações. da internet no Brasil, no fim dos anos R$ 49.780,00. FA

66 z junho DE 2019 ENGENHARIA BIOMÉDICA y Crânio preservado

Chega ao mercado dispositivo não invasivo criado por startup paulista para monitorar a pressão intracraniana

Frances Jones

s médicos intensivistas do Hospital Sírio-Libanês, na capital paulista, con- tam desde o ano passado com um novo Odispositivo que monitora de forma não invasiva um parâmetro importante em pacientes de Unidades de Terapia Intensiva (UTI). Um pe- queno sensor colocado na cabeça, sobre o cabelo, e preso por uma faixa (head band), transmite dados sobre a pressão intracraniana via cabo a um monitor à beira do leito de pessoas que sofreram traumatismo craniano ou acidente vascular cerebral (AVC), apresentam hidroce- falia ou tiveram outras patologias cerebrais – os chamados pacientes neurocríticos. Resultado de um esforço de pesquisa iniciado há 12 anos no Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP) e apoia- do pela FAPESP por meio de cinco auxílios do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Em- presas (Pipe), o aparelho tem atraído a atenção de neurologistas e ganhado prêmios por seu ca- ráter inovador. Ele consegue monitorar a pressão dentro do crânio sem a necessidade de furar a calota craniana e inserir um sensor no interior do cérebro, o procedimento mais utilizado para a medição (ver Pesquisa FAPESP nº 221).

O sensor é preso na cabeça do paciente por uma faixa Léo Ramos chaves

pESQUISA FAPESP 280 z 67 A brain4care, startup que desenvolveu empresário Horácio Lafer Piva, presi- e comercializa essa solução, já firmou dente do conselho da Klabin, produtora um segundo contrato com a Rede D’Or, e exportadora de celulose e papel. Com rede hospitalar com unidades no Rio isso, o fundo se tornou o sexto sócio da de Janeiro, em São Paulo e em outras empresa. “É a primeira vez que a família capitais. Há também seis negociações faz um investimento fora do negócio de para venda do dispositivo praticamente papel e celulose”, declarou Piva ao jornal concluídas e outras 20 em estágio menos Valor Econômico. “Somos muito focados avançado, de acordo com Plínio Targa, na companhia e por isso não desviamos sócio e CEO da empresa. Segundo ele, a nossa atenção. Mas esse é um projeto brain4care, cuja sede fica em São Carlos, com um propósito maior: estamos dan- no interior paulista, deve atingir o equi- do acesso a um novo sinal vital que é a líbrio financeiro da operação brasileira pressão intracraniana.” com a comercialização de 180 sensores. Como indica a fala de Piva, os sócios A expectativa é de que esse objetivo seja da brain4care querem contribuir para alcançado em meados de 2020. que a pressão intracraniana, também O projeto que deu origem ao dispo- chamada de PIC, seja tão acessível quan- sitivo nasceu a partir de uma inquieta- to os cinco sinais vitais hoje comumente ção pessoal do físico e químico carioca avaliados pelos médicos – temperatura, Sérgio Mascarenhas Oliveira, professor 1 pressão arterial, frequência cardíaca, aposentado da USP, hoje com 91 anos. O físico Sérgio frequência respiratória e dor. “O novo Em 2006, ele foi diagnosticado com hi- Mascarenhas, nome da empresa surge nesse contexto. drocefalia, enfermidade caracterizada da USP, inventor Nasce como uma marca que propõe que, do dispositivo pelo acúmulo de líquido no cérebro. Ini- olhando para o cérebro, você pode cuidar cialmente, no entanto, os médicos acha- da sua saúde em geral”, explica Targa. vam que o cientista sofria de doença de “Com o avanço de nossas pesquisas, Parkinson. Inconformado com a difi- descobrimos que a pressão intracraniana culdade para chegar ao diagnóstico, o está relacionada não apenas a distúrbios que normalmente requer um procedi- neurológicos, como trauma craniano, mento invasivo para sua confirmação, hidrocefalia e tumor cerebral, mas tam- Mascarenhas iniciou no ano seguinte as bém a doenças cardiológicas, eclâmpsia pesquisas nos laboratórios do IFSC-USP [quadro de hipertensão em mulheres que resultariam na criação do sensor. grávidas] e patologias relacionadas ao O desenvolvimento teve participação marca global”, diz Targa, que entrou no fígado, por exemplo”, diz o executivo. de pesquisadores de diversas institui- negócio em 2016 como investidor-anjo ções, como as faculdades de Medicina ao lado do empresário Carlos Bremer, SOLUÇÃO WIRELESS da Universidade Federal de São Carlos ambos engenheiros formados na USP Os empreendedores esperam que, em (UFSCar) e da USP de Ribeirão Preto, de São Carlos. “Estamos desenvolven- breve, o dispositivo esteja disponível além de médicos do Hospital São João, do um plano estratégico para entrar no em clínicas e até em ambulâncias. Em da Universidade do Porto, em Portugal. mercado norte-americano. Queremos fevereiro deste ano, a empresa obteve Em 2014, Mascarenhas e dois colegas, começar a operar lá a partir de 2020”, autorização da Agência Nacional de Vigi- o farmacêutico-bioquímico Gustavo Fri- afirma o CEO, ressaltando que patentes lância Sanitária (Anvisa) para comercia- gieri Vilela, que foi seu aluno de doutora- relacionadas ao dispositivo já foram con- lizar uma nova versão do sensor, agora do na USP de São Carlos, e o engenhei- cedidas nos Estados Unidos e na Europa. wireless, que dispensa monitor e uso ro Rodrigo Andrade, decidiram criar a No final de 2017, a empresa recebeu de cabos. Os sinais são transmitidos via startup, que até abril último se chamava um aporte de US$ 5 milhões do fundo de bluetooth do aparelho para um celular, Braincare. “A brain4care agora é a nossa investimentos Miletus, encabeçado pelo tablet ou computador. Um aplicativo permite a visualização dos dados em tempo real na beira do lei-

to e, ao mesmo tempo, envia-os para a s v e nuvem, onde são processados e um rela- O desenvolvimento do sensor contou tório é gerado automaticamente, ficando cha s acessível a médicos e enfermeiros mes- ramo com a participação de pesquisadores de Léo mo a distância. Para os hospitais, cada 2

sensor tem o custo de R$ 3,5 mil mensais. y an y a

diversas universidades públicas o

Nesse período, eles podem fazer quantas l B e u

monitorações forem necessárias. ig M O modelo de negócio com foco na 1

prestação de serviço com equipamento fo t os

68 z junho DE 2019 Os dados da pressão intracraniana do paciente são mostrados em um tablet ou monitor à beira do leito

2 em comodato (um tipo de empréstimo), sensor entrega informações na forma de está desenhando um projeto de pesquisa assim como a estratégia para tornar a gráficos que mostram tanto a morfolo- para comparar o dispositivo da brain4ca- PIC um novo sinal vital, foi concebido no gia do pulso da pressão intracraniana – re com as outras tecnologias disponíveis Vale do Silício em 2017 quando a startup como ocorre em um eletrocardiograma para se monitorar a PIC à beira do leito. foi acelerada pela Singularity University, – quanto a tendência da PIC ao longo Além desse estudo, existem outros 28 em um centro de inovação com sede na Ca- do período monitorado. Por causa dessa andamento relacionados ao uso do apa- lifórnia. O aporte do fundo de investi- restrição, a inovação da brain4care não relho e pressão intracraniana, de acordo mentos Miletus permitiu a montagem é empregada no Sírio de forma isolada com Plínio Targa. de uma estrutura operacional mais pro- e independente, mas em conjunto com Essas pesquisas envolvem cerca de fissional em São Carlos e a abertura de outros exames, entre eles doppler trans- 300 pesquisadores, incluindo profissio- um escritório em São Paulo. “Com isso, a craniano, avaliação ultrassonográfica nais de universidades como USP de Ri- brain4care deixou de ser uma startup de da bainha de nervo óptico, tomografia beirão Preto, UFSCar, Federal de São pesquisa para passar a ser uma empresa e eletroencefalograma. Paulo (Unifesp) e de Stanford, nos Esta- operacional”, destaca Targa. “Existe, sim, um grande potencial pa- dos Unidos. “Na nossa visão, a investiga- ra uso do aparelho, e não tenho a menor ção científica é core do nosso negócio. Se DESAFIOS FUTUROS dúvida de que a brain4care está traba- tem gente interessada em fazer pesquisa No Sírio-Libanês, os três aparelhos ad- lhando para o seu sensor entregar um científica sobre pressão intracraniana, quiridos pela instituição monitoram pa- resultado numérico, por meio de um al- nós somos parceiros”, diz Targa. n cientes da neuro-UTI. “Estamos muito goritmo matemático, que mostre o valor animados com a parceria”, ressalta o absoluto da medida da pressão”, avalia intensivista José Mauro Vieira Júnior, Vieira Júnior. “Isso é relevante porque Projeto diretor de qualidade e segurança do hos- muito do que fazemos hoje em dia é ba- Desenvolvimento de um equipamento para monitora- pital. De acordo com ele, o dispositivo seado em valores da PIC. É a partir deles mento minimamente invasivo da pressão intracrania- na (nº 08/53436-2) Modalidade Programa Pesquisa ainda tem limitações, como o fato de que se chega ao diagnóstico de hiperten- Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador não gerar um valor absoluto da pressão são intracraniana.” O médico intensivis- responsável Sérgio Mascarenhas Oliveira (Sapra/S.A.); dentro do crânio – em pessoas sadias, ta destaca também que “a comunidade Investimento R$ 654.281,90. ela deve variar de 5 a 15 milímetros de médica aguarda com ansiedade evidên- Artigo científico mercúrio (mmHg). No monitoramento cias clínicas robustas que comprovem o MASCARENHAS, S. et al. The new ICP minimally invasi- convencional, feito de forma invasiva, real valor do dispositivo na aplicação à ve method shows that the Monro-Kellie doctrine is not o resultado do exame é dado em for- beira do leito”. valid. Acta Neurochirurgica. 2012. ma numérica, o que não ocorre com o Dentro do Sírio, um grupo liderado Os demais projetos mencionados estão listados na ver- produto da brain4care. Por enquanto, o pelo neurointensivista Fábio Machado são on-line.

pESQUISA FAPESP 280 z 69 BIOTECNOLOGIA y Na pele da tilápia

Material biológico já conhecido para o tratamento de queimaduras começa a ser usado em cirurgias ginecológicas

Centro de Atenção Integral à nascer sem o canal vaginal ou com ele Saúde da Mulher da Univer- pouco desenvolvido. A mesma equipe já sidade Estadual de Campinas havia operado com êxito uma mulher que O(Caism-Unicamp) foi palco de teve de reconstruir a vagina por causa um procedimento experimental inédi- de sequelas de um câncer ginecológico. to no fim de abril. Pela primeira vez, ci- “A opção que a paciente trans tinha era rurgiões usaram pele de tilápia-do-nilo fazer um autoenxerto com segmento de (Oreochromis nicoticus) na reconstru- intestino, uma cirurgia extremamente ção do canal vaginal de uma paciente agressiva, demorada e com complicações transexual que havia se submetido, anos a longo prazo”, diz Bezerra. “O uso da pe- atrás, a uma malsucedida cirurgia de re- le de tilápia permite uma operação mais designação sexual, passando de homem a simples, rápida e menos invasiva. O epi- mulher. O procedimento é fruto de uma télio da pele de tilápia funciona como ar- A pele do peixe passa extensa pesquisa sobre o uso da pele de cabouço e suporte para o desenvolvimen- por um rigoroso tilápia para finalidades médicas iniciada to do epitélio vaginal, com elasticidade, processamento até ser liberada para fins há quatro anos no Núcleo de Pesquisa e dimensão e funcionalidade adequadas.” medicinais Desenvolvimento de Medicamentos da Tanto na cirurgia feita na Unicamp Universidade Federal do Ceará (NPDM- quanto nas realizadas no Ceará, nas mu- -UFC), em parceria com o Instituto de lheres com a síndrome de Rokitansky, as Apoio ao Queimado (IAQ), de Fortaleza. pacientes ficam cerca de uma semana A paciente trans, cuja identidade foi com um molde acrílico envolto na pele preservada, procurou a equipe do cirur- de tilápia dentro do canal vaginal. De- gião Leonardo Bezerra, do Departamen- pois a prótese é retirada e a pele do peixe to de Saúde Materno-Infantil da UFC, deixada no local. “O colágeno [da pele após saber dos bons resultados do uso de da tilápia] vai sendo destruído, as molé- pele do peixe na reconstrução vaginal – culas são ‘quebradas’ e a pele do animal técnica conhecida como neovagina – de é incorporada ao tecido. Isso faz com 10 mulheres portadoras de um raro dis- que células presentes no canal vaginal túrbio congênito, a síndrome de Mayer- se diferenciem em outras, formando o -Rokitansky-Kuster-Hauser, que as faz epitélio vaginal”, explica o médico Ma-

70 z junho DE 2019 noel Odorico de Moraes, coordenador adquira características femininas, o que se tratar de um item barato – em geral, do NPDM e professor da Faculdade de reduz o tamanho do pênis. Com isso, so- é descartado pela indústria pesqueira. O Medicina da UFC. Não há necessidade bra pouca pele de pênis e a vagina fica uso de curativos biológicos para tratar de medicar os pacientes com drogas imu- pouco funcional”, conta Leonardo Be- feridas e queimaduras não é novidade no nossupressoras, pois o material biológico zerra, da Faculdade de Medicina da UFC. mundo. Além da própria pele humana, não é colocado dentro da cavidade abdo- disponibilizada por bancos de pele, usa- minal, mas na vagina, que é uma exten- REDE DE PESQUISA -se pele de porco, entre outros materiais. são da pele humana. “Até hoje não houve Moraes lidera desde 2015 a pesquisa com Hoje, a linha de pesquisa com a pele nenhum caso de rejeição”, diz Moraes. pele de tilápia, ao lado do cirurgião plás- de tilápia tem a participação de 189 cola- A equipe cearense tem sido bastante tico Edmar Maciel, presidente do IAQ. O boradores distribuídos em sete estados e procurada por pacientes transexuais que estudo teve início quando eles abraçaram outros seis países – Estados Unidos, Ale- fizeram cirurgia de redesignação sexual uma ideia original do cirurgião plástico manha, Holanda, Colômbia, Guatemala e de homem para mulher, com resultados Marcelo Borges, professor da Faculda- México. “Todos eles são coordenados por insatisfatórios, pela técnica clássica, na de de Medicina de Olinda (PE). Após ler nosso grupo”, afirma Maciel. O material c qual se usa a pele do próprio pênis pa- uma reportagem sobre artesanato feito biológico é objeto de 43 projetos de pes-

/ uf aga ra a construção da neovagina. “Ocorre com pele de tilápia, Borges imaginou que quisa conduzidos dentro e fora do Brasil. r r b que, antes da cirurgia, elas fazem um poderia usar o material para tratar quei- Além do bem-sucedido tratamento de to k i v tratamento hormonal para que o corpo mados por ser muito rico em colágeno e queimados e da reconstrução de vagina,

pESQUISA FAPESP 280 z 71 estão sendo estudados outros usos do material em procedimentos odontoló- gicos e veterinários. “Até agora deposi- tamos cinco pedidos de patente no Bra- sil e no exterior”, diz Maciel. Entre os produtos em teste, destacam-se scaffolds (suportes estruturais), biomaterial pro- jetado para ser empregado na produção de válvulas cardíacas e telas para reparos de tendões e hérnias abdominais. “Só para scaffolds, há mais de uma dúzia de possíveis empregos diferentes”, informa o cirurgião plástico. O material biológico utilizado pelos pesquisadores é fornecido pelo banco de peles de tilápia da UFC, construído 1 pela empresa Biotec Solução Ambiental Curativo com a pele do peixe é usado para tratar paciente vítima de queimadura com patrocínio da Enel, distribuidora de energia elétrica no Ceará. Pioneiro no Brasil, o banco atualmente é manti- resquício de odor do material, embora usados exigem troca diária. Os feitos do com apoio do Centro Universitário mantenha o desenho característico da com pele de tilápia podem ser substi-

o Christus (Unichristus), instituição pri- pele do peixe. Antes da liberação para tuídos em intervalos de tempo maiores, s vada de ensino superior de Fortaleza. As uso clínico, as peles passam por testes de poupando o incômodo para o paciente, on a ff

peles, provenientes de peixes criados em qualidade microbiológicos, histológicos material e mão de obra hospitalar. Os e dr an tanques de água doce, são doadas pela e de toxicidade celular. médicos e pesquisadores relatam re- x

empresa de pescados Bomar, de Itarema, dução de custos, diminuição no tempo ALE co

cicatrização mais rápida fi no litoral cearense. de cicatrização e de dor com o curativo á

Antes da aplicação nos pacientes, o De acordo com Odorico Moraes, entre biológico. og r f n i

material passa por um rigoroso proces- os 300 pacientes tratados para quei- O possível efeito analgésico interessou c so de limpeza, descontaminação e este- madura até hoje, 30 deles crianças, não a um grupo de doutorandos de periodon- / uf aga rilização nos laboratórios da UFC (ver houve nenhum caso de infecção. O Mi- tia da Faculdade de Odontologia de Bau- r infográfico abaixo). No Instituto de Pes- r b nistério da Saúde está estudando a in- ru da Universidade de São Paulo (FOB- to k quisas Energéticas e Nucleares (Ipen), clusão da pele de tilápia no tratamento -USP). Eles desenvolvem um estudo-pi- i 2 v em São Paulo, as peles são submetidas de queimados pelo Sistema Único de loto para o uso do curativo biológico em a radioesterilização em um irradiador Saúde (SUS). Em geral, a terapia para procedimentos cirúrgicos periodontais, r maciel ma r industrial multipropósito, construído queimaduras é feita com sulfadiazina que envolvem os tecidos de proteção e d e pelo Ipen com auxílio da FAPESP. A la- de prata, uma pomada antimicrobiana suporte dos dentes, como gengiva e osso. s 1 oto vagem e a esterilização retiram qualquer e cicatrizante, sendo que os curativos “Estamos bem animados e a expectativa f

Como é feito o processamento Pele passa por vários processos antes de ser utilizada em procedimentos médicos

1 PREPARAÇÃO DA PELE 2 LIMPEZA 3 DESCONTAMINAÇÃO Na empresa de pescados que Pesquisadores raspam o A pele é incubada fornece o material aos material para retirada de sob agitação constante pesquisadores da UFC, restos de músculo e à temperatura a pele é retirada fazem o recorte da pele, ambiente em quatro do peixe por que é transferida para diferentes soluções de uma máquina, frascos onde será descontaminação lavada e descontaminada armazenada em uma caixa Pele isotérmica Músculo Agitador

Frascos com as peles

72 z junho DE 2019 Pesquisadora do banco de peles de tilápia da UFC faz a limpeza e o recorte do material

2

é alta com relação à possibilidade de ti- Outro experimento envolvendo a pe- pectativa é verificar se a pele da tilápia rar a dor do paciente”, declara Gustavo le de tilápia deverá ocorrer com o envio vai mesmo se transformar em epitélio Manfredi, doutorando da FOB. de amostras ao espaço em um foguete, vaginal. “Não se sabe se a transforma- Uma aplicação inusitada ocorreu no em junho deste ano. A ideia partiu do ção desse tecido vai ocorrer do mesmo exterior. Após tomar conhecimento da Clube de Astronomia Louis Cruls, de modo como nas mulheres com síndrome pesquisa no Brasil, a veterinária Jamie Campos dos Goytacazes, no norte flu- de Rokitansky”, diz o ginecologista da Peyton, da Universidade da Califórnia minense, participante do projeto Cubos Unicamp Luiz Gustavo Oliveira Brito, em Davis, nos Estados Unidos, usou a no Espaço, que tem parceria da Nasa, a que participou da operação. pele de tilápia para tratar de dois ursos agência espacial dos Estados Unidos. “A cirurgia não é nova, mas o material e um leão-da-montanha feridos em in- “Vamos analisar se a estrutura molecu- é diferente”, ressalta. Em outros lugares, cêndios florestais na Califórnia. Segundo lar e as proteínas da pele de tilápia, em afirma, usa-se membrana amniótica (da informações da universidade, os ursos especial o colágeno tipo 1, sofrerão al- placenta) ou material sintético, feito de começaram a andar logo após a aplicação terações após ficar na estratosfera, sob látex. Ele acredita, no entanto, que, se do curativo biológico nas patas feridas, baixa pressão e intensa radiação”, conta houver uma empresa interessada, a pele sugerindo um efeito imediato na melhora o médico Edmar Maciel, do IAQ. de tilápia poderá ser uma boa alternativa. da dor. Um dos ursos acabou comendo Com relação à cirurgia realizada na “Tudo depende da viabilidade do produ- a nova pele, mas a rápida recuperação paciente transexual em Campinas, que to.” Brito, Bezerra e equipe trabalham surpreendeu os veterinários americanos. passava bem em meados de maio, a ex- em um artigo científico relatando o caso, que será submetido para publicação no segundo semestre. n Frances Jones 4 DESIDRATAÇÃO 5 RADIOESTERILIZAÇÃO O material é congelado No Ipen, em São Paulo, a pele sofre radiação a -80 oC durante ionizante por cinco horas para eliminar 16 horas, liofilizado microrganismos. Depois de ser reidratada Projeto (desidratado) com soro fisiológico, está pronta para uso Construção e implantação de irradiador industrial mul- tipropósito de Co-60 (nº 97/07136-0); Modalidade e embalado Envelopes com Programa Equipamentos Multiusuários; Pesquisador a vácuo em a pele liofilizada responsável Leonardo Gondim de Andrade e Silva (Ipen); envelopes Investimento R$ 1.868.012,76. plásticos Artigos científicos MORAES, M. O. et al. Study of tensiometric properties, microbiological and collagen content in nile tilapia skin Liofilizador submitted to different sterilization methods. Cell and Tissue Banking. v. 19, ed. 3, p. 373-82. set. 2018. BEZERRA L. R. P. S. et.al. Tilapia skin fish: A new bio- logical graft in gynecology. Revista de Medicina da UFC. Fontes Carlos Roberto Koscky Paier (UFC) e Monica Mathor (Ipen) v. 58. n. 2. 2018.

pESQUISA FAPESP 280 z 73 humanidades estudos populacionais y ntre 2000 e 2012, 49,4% dos 172 paí- ses da Organização Mundial da Saúde (OMS) registraram quedas superiores a 10% nas taxas de suicídio. Na contra- mão dessa tendência, no Brasil houve Eum aumento de 10,4%, com crescimento signifi- cativo entre a população jovem. Estatísticas mais recentes do Ministério da Saúde indicam que as mortes autoprovocadas na faixa etária de 10 a 14 anos subiram 40% entre os meninos e 30% entre as meninas, entre 1997 e 2015. “Conflitos psíquicos, abuso de álcool e drogas, exposição à violência, além da escassez de políticas públicas Juventude integradas para a prevenção de comportamentos suicidas são algumas hipóteses para esse panora- ma”, analisa a antropóloga Sandra Garcia, coor- denadora do Núcleo de População e Sociedade do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), que desde o ano passado pesquisa o extraviada fenômeno no Brasil. Anualmente são registrados 1 milhão de sui- cídios no mundo e, para cada morte, informa Garcia, estima-se a ocorrência de pelo menos 20 tentativas sem êxito. A partir da análise de Pesquisadores buscam dados do Ministério da Saúde, pesquisadores do Cebrap e do Núcleo de Estudos de População explicações para o aumento “Elza Berquó” (Nepo) da Universidade Estadual nas taxas de suicídio de Campinas (Unicamp) identificaram que, no Brasil, o suicídio foi a quarta causa de morte en- cometido por jovens no Brasil tre indivíduos de 15 a 29 anos, entre 2011 e 2016, com números quatro vezes superiores para os homens (9 mortes por 100 mil habitantes) em relação às mulheres (2,4 mortes por 100 mil ha- bitantes). À exceção do grupo etário de 15 a 19 Christina Queiroz anos do Centro-Oeste, em todas as regiões do país as mulheres tentam mais vezes acabar com Versão atualizada em 25/06/2019 a vida do que os homens. “Entre meninas de 10 a 14 anos da região Nordeste a incidência de casos de automutilação chega a 39,7%”, informa Garcia. A pesquisadora também chama a atenção para o aumento entre os indígenas. “Entre essa popu- lação, a proporção de mortes por suicídio para cada 100 mil habitantes é de 12, o dobro da mé- dia nacional (5,7)”, diz. Segundo a pesquisadora, historicamente, o Sul do Brasil registra a maior u maltez u

man quantidade de suicídios, com 12 mortes por 100

mil habitantes ao ano. “Há 10 anos, na região çãO a t Norte do país esse valor era de 7. Agora também u l i s r chegou a 12 suicídios por 100 mil habitantes, crescimento que foi motivado pelo aumento do suicídio indígena”, analisa. Em relação ao pa- norama global, a antropóloga observa que, nos países de alta renda, a mortalidade por suicídio é 3,5 vezes maior entre os homens. Por outro lado, a incidência de ideias suicidas é maior en- tre as mulheres. Apesar da tendência de cresci-

pESQUISA FAPESP 280 z 75 mento, no Brasil a prevalência de suicídio segue subestimada devido à baixa notificação de casos ou erros de classificação. Algumas mortes são consideradas “acidentais” ou registradas como “causa indeterminada”, seja por conta de erros de notificação ou mesmo por omissão da própria família, relata Garcia. Responsável por estabelecer essa nova linha de investigação no Cebrap, a demógrafa Elza Ber- quó, professora emérita da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), conta que decidiu incluir o tema do suicídio nos estudos demográficos depois de identificar dois fenômenos: o aumento de jovens HIV positivo e o avanço de casos de gravidez indesejada. “Por que esses fenômenos ocorrem em um momento em que os adolescentes podem se prevenir uti- lizando, por exemplo, preservativos ou pílula do dia seguinte?”, pergunta. Ao buscar respos- tas, Berquó levantou a hipótese de que os jovens passaram a querer correr riscos como forma de encontrar sentido para suas vidas.

Saúde mental Calcula-se que mais de 90% dos casos de suicídio estejam associados à existência de algum trans- torno mental, incluindo depressão, transtorno bipolar e esquizofrenia. Estudo desenvolvido por pesquisadores das instituições norte-americanas San Diego State University, Florida State Univer- sity, Lynn University e Pomona College analisou a incidência de transtornos mentais e casos de suicídio em adolescentes e adultos nos Estados Unidos. A pesquisa identificou que, entre 2005 e 2017, as taxas de depressão aumentaram 52% Perfil do jovem suicida entre adolescentes de 12 a 17 anos e, de 2009 a 2017, subiram 63% entre adultos de 18 a 25 anos. Mortes conforme faixa etária 6.640 Nessa faixa etária, o mesmo estudo constatou entre 2014 e 2016, no Brasil suicídios que houve aumento de 71% nos registros de so- frimento psicológico grave entre 2008 e 2017. Tais tendências de crescimento são fracas ou inexistentes em adultos com mais de 26 anos, o que indica mudança geracional na incidência de 2.148 transtornos mentais. O estudo sugere que o au- suicídios mento do sofrimento psicológico entre os mais 417 jovens pode estar relacionado com o uso de co- suicídios municação eletrônica e mídias digitais, além de redução nas horas de sono. 10 a 14 anos 15 a 19 anos 20 a 29 anos “No Brasil, identificamos que a depressão está atingindo pessoas mais jovens, cada vez mais so- 55% 72% 82% Homens Homens Homens litárias e imediatistas. É uma geração que recor- re à automutilação como forma de representar a dor”, afirma o psiquiatra Neury José Botega, 44,8% 49,3% 48,4% Pardos Pardos Pardos da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Guilherme Vanoni Polanczyk, do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP 56,8% 36,3% 30,7% (FM-USP), explica que, em determinados casos, 4 a 7 anos 8 a 11 anos 8 a 11 anos de estudo de estudo de estudo um transtorno mental não tratado ou tratado de forma indevida pode culminar em suicídio. Fontes Sistema de informações sobre mortalidade (SIM) / MS / Sandra Garcia e Tirza Aidar

76 z junho DE 2019 Avanço dos casos Crescimento percentual da taxa de suicídios por 100 mil habitantes segundo a faixa etária, no Brasil

1980/1990 1990/2000 2000/2012

40,0% 33,5% 33,3%

23,5% 22,0% 18,1% 18,8% 15,2% 16,2% 12,9% 7,7% 2,4% 2,6%

-0,8% -3,7% -6,4% -4,7%

-18,3%

10-14 anos 15-19 anos 20-29 anos 30-59 anos 60+ anos Total

Fontes SIM / MS

transtornos recebem tratamento, mas no Brasil o atendimento cai para cerca de 18%”, informa. De acordo com ele, os transtornos mentais sur- gem a partir da combinação de fatores genéticos, biológicos e ambientais. “Ainda não há possibili- dade de intervenções curativas”, diz. Por outro lado, cada vez mais estudos procuram desen- volver estratégias de prevenção, na medida em que o reconhecimento e a intervenção precoce garantem uma melhor evolução dos quadros clí- nicos. “Prejuízos no vínculo mãe-bebê, como, por exemplo, em casos de depressão materna, aban- dono e violência, representam situações de alto Atentos a esse panorama, pesquisadores do Ins- risco para a ocorrência de transtornos mentais tituto de Psiquiatria (IPq) da FM-USP, da Univer- ao longo de toda a vida”, diz. sidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Uni- O projeto sob a coordenação de Polanczyk en- versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), volve a identificação de adolescentes grávidas que integram o Instituto Nacional de Psiquiatria que vivem em situações de extrema pobreza em do Desenvolvimento (INPD), analisaram o desen- São Paulo. “Acompanhamos essas jovens desde o volvimento de 2.511 crianças de 6 a 12 anos matri- primeiro trimestre de gestação até o bebê com- culadas em escolas públicas de Porto Alegre e São pletar 2 anos, elaborando ações para melhorar os Paulo e identificaram 651 delas com algum tipo de vínculos afetivos, evitando situações de abuso e transtorno mental como ansiedade, fobias, déficit violência”, explica o pesquisador, lembrando que de atenção, hiperatividade e esquizofrenia. “Des- 75% dos adultos com transtornos mentais apre- sas, 81% nunca receberam tratamento psiquiátrico sentaram os primeiros sintomas antes dos 18 anos. ou psicológico. Verificamos também que crianças Polanczyk recorda, ainda, que a psiquiatria da pardas apresentaram maiores chances de não se- infância e da adolescência representa um campo rem tratadas, quando comparadas com as crianças científico novo, com os primeiros estudos feitos

brancas”, afirma o psicólogo Daniel Fatori, pós- por universidades europeias apenas na década -doutorando no IPq e um dos autores do trabalho. de 1960. No Brasil, médicos de saúde da família Polanczyk explica que cerca de 14% das crian- e pediatras têm treinamento limitado em ques- manu maltez manu ças e adolescentes do mundo possuem algum tões de saúde mental de crianças e adolescentes. tipo de transtorno mental. “Em países desen- São poucos os que sabem, por exemplo, avaliar a

ilustraçãO volvidos, cerca de 35% das crianças com esses ocorrência de ideias suicidas.

pESQUISA FAPESP 280 z 77 Dificuldade adicional, pontua Sandra Garcia, e adolescentes entre 9 e 17 anos no Brasil utili- envolve a Portaria nº 104 do Ministério da Saú- zavam a internet em 2017, o que corresponde a de. Publicada em janeiro de 2011, ela determina 24,7 milhões de pessoas. “Cerca de 80% desses que autoridades médicas municipais notifiquem usuários possuem o hábito de navegar todos os compulsoriamente todas as tentativas e os casos dias. Embora estejam totalmente conectados, de suicídio registrados. Apesar de a iniciativa podem estar isolados. Ou seja, se atravessam um ter propiciado melhor controle da incidência de processo de depressão ou angústia, quando se violência autoprovocada, seu formulário é falho. desconectam talvez não encontrem suporte ade- Não prevê, por exemplo, a inclusão de informação quado, o que tende a aguçar o sofrimento”, ana- sobre tentativas anteriores. “Ter um histórico de lisa a antropóloga do Cebrap. Apesar da inexis- tentativa prévia representa o mais importante tência de estudos que evidenciem relação direta indicador para o suicídio. O formulário deveria entre o uso abusivo de tecnologia e a ocorrên- exigir esse dado”, afirma. cia de sintomas depressivos ou ansiosos, Polan- Levantamento feito pelo Centro Regional de czyk considera necessário avaliar não apenas o Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da número de horas que os jovens passam em frente Informação (Cetic) mostra que 85% das crianças a telas de computador, tablets e celulares, mas também o conteúdo acessado. “A pergunta que devemos fazer é: quem faz uso de qual conteú- do? Um adolescente com sintomas depressivos que, por exemplo, tem dificuldades sociais pode Determinantes buscar na internet situações que reflitam ou po- tencializem seu estado emocional em sites que para o suicídio incentivam a automutilação ou mesmo o suicí- dio”, alerta o psiquiatra.

Sociodemográficos população vulnerável

• Desemprego A situação socioeconômica do país é outro fator • Migração que pode estar relacionado ao aumento dos sui- • Isolamento social cídios. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra • Guerras e conflitos armados de Domicílio (Pnad) divulgada em 2017, 23% dos jovens brasileiros de 15 a 29 anos – ou seja, 11,2 Psicológicos milhões de um total de 48,5 milhões – não estu- davam nem trabalhavam em 2016. Entre 2016 e • Conflitos interpessoais 2017 houve um crescimento de 5,9% desse con- • Perda de familiares ou amigos tingente, sendo a maioria pobre e com baixa es- • Mudanças políticas e financeiras colaridade, dois terços do sexo feminino e a me- • Discriminação tade delas com filhos. Além disso, 41% dos jovens brasileiros abandonam o ensino médio antes de Condições Clínicas sua conclusão, conforme dados do Instituto Bra- • Transtornos mentais sileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Jovens • Depressão e alteração de humor à margem do sistema de ensino e do mercado de • Alcoolismo trabalho e sujeitos às vulnerabilidades econômi- • Dores crônicas e lesões graves cas e sociais estão mais expostos a problemas mentais e ao abuso de substâncias lícitas e ilíci- Fonte MS tas”, enfatiza Garcia, do Cebrap. Atenta às oscilações socioeconômicas que ocorreram no Brasil entre 2006 e 2015, pesqui- sa desenvolvida na Unifesp também identificou correlação entre desemprego, crise econômica e suicídio. Um dos autores do trabalho, o psiquiatra Elson Asevedo, da Escola Paulista de Medicina, conta que o estudo reconheceu a vulnerabilida- de da população entre 15 e 19 anos. “Observamos

que, em momentos de crise econômica, os sui- cídios aumentaram nessa faixa etária”, informa, explicando que, além de dados do Ministério da manu maltez manu Saúde, a pesquisa trabalhou com informações sobre o Produto Interno Bruto (PIB) per capita,

taxas de desemprego e o Coeficiente de Gini, que ilustraçãO

78 z junho DE 2019 relatou sofrimento em decorrência de situações Taxas brutas de suicídio de violência ou desamparo familiar, conta Antú- nez. Todos que aceitaram foram encaminhados Por 100 mil habitantes entre 15 e 29 anos, em 2012 para atendimento nos institutos de Psicologia ou Psiquiatria da instituição. “Além de tratar es- ses jovens, estamos produzindo conhecimento. Japão 18,4 Atualmente, há quatro pesquisas de doutorado Chile 16,5 e pós-doutorado sendo conduzidas a partir dos Argentina 13,8 casos que chegam ao escritório”, informa. Estados Unidos 12,7 Em relação às políticas públicas para a redução Suécia 11,9 das taxas de suicídio, Neury Botega, da Unicamp, Noruega 10,2 lembra que, para serem efetivas, elas precisam considerar as peculiaridades históricas, sociais Canadá 10,0 e econômicas de cada país. De acordo com ele, Suíça 7,6 em nações como China e Índia, em que eram Brasil 6,7 altas as taxas de suicídio entre as mulheres, os México 6,0 percentuais caíram à medida que se acomodou Reino Unido 5,9 o processo de urbanização. “Nas cidades, com Senegal 4,3 mais liberdade, o papel social das mulheres foi mudando. Muitas passaram a viver com mais Portugal 3,8 autonomia em relação aos maridos”, diz. Países Gana 3,4 como Áustria e Austrália, que registravam eleva- Itália 3,4 das taxas de mortes autoprovocadas por armas Espanha 3 de fogo, colocaram em prática campanhas de FontMS e O desarmamento, enquanto o Reino Unido, com percentuais elevados de suicídios entre idosos, criou um projeto de atenção à população acima mede a desigualdade. Outro achado envolve o de 60 anos. “Na Rússia, a redução dos suicídios crescimento do suicídio nas capitais. “Enquan- está associada a leis para restringir o uso de ál- to o suicídio de adolescentes aumentou 13% no cool e, na Suécia, que nos anos 2000 enfrentou Brasil, nas capitais o percentual correspondente recessão econômica, a estratégia envolveu um foi de 24%”, diz. “Nas grandes cidades, as pes- programa de apoio aos desempregados”, com- soas estão mais expostas a fatores de risco para para o pesquisador da Unicamp. transtornos mentais, como a violência, e costu- No Brasil, as políticas para prevenção do suicí- mam ter menos laços de coesão social.” dio estão concentradas no Ministério da Saúde, incluindo a Portaria nº 104 de 2011 e campanhas C aminhos para a prevenção de conscientização. Até recentemente, o país Algumas universidades têm criado programas não contava com legislação de alcance nacio- para lidar com a situação. A USP, que no ano pas- nal, situação que mudou no final de abril com a sado registrou ao menos quatro casos de suicí- promulgação da Lei nº 13.819/19, que instituiu a dios envolvendo seus alunos, conta desde julho Política Nacional de Prevenção da Automutila- com o Escritório de Saúde Mental. “Em contato ção e do Suicídio. Desde então, escolas públicas com familiares, amigos e professores dos alu- e privadas são obrigadas a notificar os conselhos nos que tiraram a própria vida, constatamos que tutelares sobre casos de violência autoprovocada, os atos tiveram motivações distintas. Dois dos mesmo que não confirmados. Para Sandra Garcia, casos envolveram jovens que apresentavam al- do Cebrap, tal obrigatoriedade pode ser prejudi- gum tipo de transtorno mental e pareciam estar cial em situações em que o sofrimento do jovem com dificuldades para lidar com frustrações, mas está associado a abusos cometidos por familiares, outro surpreendeu toda família e comunidade uma vez que o conselho tutelar tem o dever de escolar”, conta Andrés Eduardo Aguirre Antú- acionar os responsáveis sempre que notificado. nez, vice-diretor do Instituto de Psicologia (IP) “As escolas precisam trabalhar em conjunto com da USP e coordenador do escritório. “É preciso os serviços de saúde para acolher esses jovens”, estar atento a pessoas que andam muito isola- diz. Asevedo, da Unifesp, vê a nova lei com bons das e verbalizam que a vida não vale a pena. O olhos. “Ela coloca o assunto como prioritário na suicídio pode ser cometido em um impulso, em agenda do governo e favorece o desenvolvimen- situações que representam um enigma até mesmo to de políticas públicas integradas”, finaliza. n para o clínico mais experiente”, diz. A maioria

dos 115 estudantes que passaram pelo escritório Os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados em seus seis primeiros meses de funcionamento na versão on-line.

pESQUISA FAPESP 280 z 79 direito y

A Justiça que tarda, mas (aparentemente) não falha

Combate à corrupção é estudado a partir do trâmite de inquéritos policiais e processos penais

Luisa Destri

impunidade em casos identifi- A pesquisa “Justiça criminal, impuni- cados de corrupção no Brasil dade e prescrição” reuniu, além do coor- pode ser inferior a 5%. Esse é denador, seis pesquisadores e quatro esta- A o percentual de processos que, giários, com o objetivo de buscar indícios entre 2010 e 2016, em varas pertencen- de impunidade no que se convencionou tes aos estados de Alagoas, São Paulo denominar Sistema de Integridade bra- e Rio de Janeiro e ao Distrito Federal, sileiro. O SI, como se tornou conhecido, deixaram de ser julgados em razão da é composto por instituições judiciárias e lentidão da Justiça. “A prescrição é vista policiais destinadas ao cumprimento da pelo senso comum e retratada na mídia lei nos casos de crimes de corrupção e como um mecanismo pelo qual se evita lavagem de dinheiro. “O termo está rela- que acusados de crimes sejam levados a cionado, na ciência política, ao estudo da julgamento, beneficiando os infratores qualidade da democracia e à perspectiva ao estender prazos”, observa o cientista de preservação da integridade da admi- político José Álvaro Moisés, professor nistração pública”, informa Moisés, que do Departamento de Ciência Política aponta o sistema como responsável pelo da Universidade de São Paulo (USP) e desencadeamento da operação Lava Ja- coordenador de estudo desenvolvido to em 2008. Para compreender como as pelo Núcleo de Políticas Públicas da instituições brasileiras vêm enfrentando instituição (NUPPs) em parceria com a impunidade desde esse momento, os es- a Associação Brasileira de Jurimetria forços dos pesquisadores se dividiram em (ABJ). “Partimos desse ponto de vista dois eixos principais: o mapeamento do para verificar se a impunidade realmen- fluxo e da duração de inquéritos policiais te ocorre e qual sua dimensão”, explica. e processos penais, envolvendo crimes

80 z junho DE 2019 desse tipo e a identificação do perfil dos atores que operam no SI. Com auxílio da tecnologia de informa- ção, em tribunais de primeira instância foram coletados dados de mais de 4 mil processos, envolvendo crimes como cor- rupção ativa e passiva, tráfico de influên- cia, lavagem de dinheiro, entre outros. Todos os processos foram classificados segundo um dos seis possíveis desfechos: ativo, quando o caso segue em andamen- to, denúncia arquivada, condenação, ar- quivado sem resolução do mérito, resul- tados mistos (condenação e absolvição) e prescrição. Nos tribunais de Justiça de São Paulo e do Rio de Janeiro, de onde saíram as maiores quantidades de casos da amostra – 1.625 e 1.010, respectiva- mente –, 3% dos processos prescreveram. O índice mais elevado de prescrição, ou seja, 10%, ocorreu no Tribunal de Justiça do Distrito Federal: em três de 31 ações o Estado perdeu a oportunidade de julgar a responsabilidade de investigados por crimes dessa ordem em razão da longa duração dos processos. “A pesquisa é um marco no debate sobre a impunidade no Brasil”, comen- ta o cientista político Rogério Arantes, Universo também do Departamento de Ciência Política e pesquisador do Instituto de da pesquisa Estudos Avançados (IEA-USP). “Segu- ramente a opinião pública brasileira, que Sistema de Integridade (SI) não acredita no funcionamento da Jus- Composto por instituições tiça porque os crimes prescrevem, espe- judiciárias e policiais destinadas raria um percentual muito mais alto do ao cumprimento da lei nos que o encontrado pelo estudo”, avalia. casos de crimes de corrupção e Para a socióloga Ludmila Ribeiro, pro- lavagem de dinheiro fessora do Departamento de Sociologia e pesquisadora do Centro de Estudos Crimes & processos de Criminalidade e Segurança Pública • Corrupção ativa e passiva (Crisp) da Universidade Federal de Mi- • Tráfico de influência nas Gerais (UFMG), ainda que o índice • Lavagem de dinheiro esteja abaixo do que se poderia esperar, não se trata de uma boa notícia. “A pres- Processos & desfechos crição é algo que não deveria acontecer. Ativo, quando o caso segue É o Estado mostrando toda a sua inefi- em andamento ciência: os agentes abrem um processo, mas perdem a oportunidade de punir o Denúncia arquivada responsável por determinado crime por- Condenação que demoram tempo demais”, afirma.

Arquivado sem resolução nalisando a proporção de cada do mérito

etapa de tramitação de um pro-

Resultados mistos cesso judicial – que ao todo leva, a çãO A tr (condenação e absolvição) em média, 6,5 anos –, a pesquisa con- ilus augusto zambonato Prescrição cluiu que o maior tempo é dedicado à instrução do processo, isto é, à reunião de provas por parte do juiz. Na inter-

pESQUISA FAPESP 280 z 81 pretação de Ribeiro, que assim como Arantes não integra a equipe do proje- to, o dado mostra que a prescrição não é causada pela interposição de recursos por parte da defesa – que desse modo produziria intencionalmente demora no processo –, e, sim, pela ineficiência sistêmica do Poder Judiciário. Considerada alta, a taxa de arquiva- mento chamou a atenção dos pesqui- sadores. No universo analisado, um em cada cinco processos foi encerrado sem que houvesse decisão judicial. “A rigor, não se pode dizer que o arquivamento é impunidade, pois o Estado de fato agiu naquele caso: após o inquérito policial, um integrante do Ministério Público ou um juiz decidiu pelo arquivamento. A taxa é enorme, mas talvez esteja rela- cionada a questões meramente técnicas, não associadas à impunidade”, avalia Fernando Corrêa, cientista de dados e diretor-técnico da ABJ. Na opinião de Arantes, entender por que os processos são arquivados é uma boa questão para investigações futuras.

pesquisa também analisou mais nesses casos. “Como o inquérito policial de 3 mil decisões judiciais em é sigiloso – e não público como a maio- A tribunais de segunda instância, ria dos processos judiciais –, não temos nos mesmos estados de Alagoas, Rio de como saber por que há tantas suspeitas Janeiro e São Paulo e no Distrito Federal, que não resultam em crimes ou em in- com o objetivo de compreender se o foro dicação de acusado”, observa Ribeiro. privilegiado, ao permitir que processos A prescrição envolvendo autoridades públicas trami- é algo que não Atores em debate tem em instância superior, implicaria O segundo eixo do estudo, voltado à gargalos. A conclusão foi de que cerca deveria acontecer. identificação do perfil dos atores que de 45% dos pedidos de foro privilegia- trabalham no combate à corrupção, foi do não são admitidos, o que, segundo os É o Estado desenvolvido com a aplicação do méto- pesquisadores, seria um indício de inefi- do Q, uma “ferramenta de captação de ciência do sistema, já que as razões para mostrando toda subjetividades”, na definição do coor- a negação do pedido estão previstas na a sua ineficiência, denador da pesquisa. A metodologia legislação – quando ocorre a perda de consiste em um formulário eletrônico mandato, por exemplo, fazendo com que diz Ludmila com afirmações sobre a área de ativi- o processo passe novamente à primeira dade pesquisada, neste caso a atuação instância, ou quando compete à Justiça Ribeiro da Justiça criminal e a corrupção. Ao Eleitoral conduzi-lo. “Se as regras fos- preenchê-lo, cada um dos responden- sem outras, talvez o sistema fosse mais tes classificou as informações de duas eficiente. Isto é, poderia haver menor maneiras: organizando-as conforme a número de interrupções da tramitação relevância que lhes atribui e apontando dos processos, o que por sua vez poderia tre 2003 e 2018, com identificação de seu grau de identificação, em uma escala acarretar uma investigação mais rápida”, autoria em 38% deles e conclusão de que que vai de -5 (discordo completamente) afirma Corrêa. em 57% dos casos, apesar da denúncia, a +5 (concordo completamente). No que diz respeito à Polícia Federal, não houve crime ou o indivíduo apon- As afirmações eram tanto de caráter os números chamaram a atenção dos tado como responsável não o era de fa- geral – “o salário mínimo no Brasil é pesquisadores. Em um tempo médio de to. Ainda que o dado global sugira alta justo”, “a lei é igual para todos”, “a po- 936 dias de investigação, cerca de 2,5 eficiência, o índice é visto com ressal- breza e a desigualdade estão na raiz da anos, foram solucionados 95% de 3.885 vas. Para a professora da UFMG, seria corrupção” – quanto específico, volta- inquéritos instaurados e concluídos en- preciso investigar o que de fato ocorre das a mecanismos jurídicos – “a prisão

82 z junho DE 2019 igualitaristas houve 8% de prescrição, enquanto essa taxa ficou em 3% entre contratualistas; estes, porém, arquiva- ram mais processos (19% contra 8%) e condenaram menos (40% diante de 46%). Além de o universo considerado ser pequeno, trata-se de um método não amostral, indutivo, que relaciona crenças e comportamentos. Por isso, os pesqui- sadores alertam que as conclusões não podem ser estendidas para a totalidade da Justiça brasileira. “O método indica que a maneira como o grupo expressa Polícia Federal questões envolvidas na atuação profis- sional é uma tendência no interior dessa Tempo médio de investigação 936 dias comunidade analisada”, explica Moisés. Para Veríssimo, os resultados encon- trados refletem o debate jurídico atual, 95% como a prisão após condenação crimi- de 3.885 inquéritos nal em segunda instância, em discussão em segunda instância combate a cor- instaurados e no Supremo Tribunal Federal (STF). “A rupção”, “a prisão cautelar é injusta”, concluídos entre questão que resume o teor do questio- “a condução coercitiva fere direitos”. 2003 e 2018 foram nário poderia ser: que tipo de garantias O objetivo era duplo: apreender a visão solucionados individuais e a que custos individuais do respondente sobre sua atividade e se podem aplicar aos fluxos da Justi- o modo como insere sua atividade na ça? Esse é o debate que o Judiciário está sociedade. De acordo com o cientista fazendo hoje”, explica o cientista polí- político José Veríssimo, pesquisador do tico do NUPPs. Também para Arantes NUPPs, “ao convidar o participante a 38% os perfis encontrados coincidem com montar um mapa bastante complexo de deles com as principais discussões a respeito de circunstâncias e de opiniões acerca de identificação de como se deve dar o combate à corrup- sua atividade laboral, o método privilegia autoria ção: “Um grupo de atores acredita que o modo como ele entende sua atividade a Justiça deva funcionar de acordo com cotidiana”. O conjunto de assertivas foi as regras processuais e garantir a todos elaborado coletivamente pela equipe os envolvidos o pleno direito de atuação que, como hipótese, estabeleceu dois que essas regras conferem. Para outro tipos de atores: os garantistas-contra- grupo, a Justiça deve aportar algo novo, tualistas e os garantistas-igualitaristas, indo além das regras em busca de um definidos, respectivamente, como aque- objetivo final”. les que privilegiam a visão do indivíduo gera impunidade e que a multiplicidade­ Desenvolvida em aproximadamente perante a lei e aqueles que “reconhecem de recursos causa a prescrição”, segun- um ano, a partir do início de 2018, a pes- que desigualdades estruturais desafiam a do o relatório da pesquisa. Já os 13 ga- quisa inova ao realizar um levantamento Justiça no sentido de que a lei seja ‘igual rantistas-igualitaristas não apostam em inédito de informações processuais, obti- para todos’”. fluxos e procedimentos mais rápidos das com auxílio de ferramentas computa- como resposta para efetividade e garan- cionais descritas em detalhes no relatório mbora tenha sido enviado a 1.842 tia da Justiça e “demonstram-se contrá- que está disponível no site do CNJ, como destinatários, entre magistrados, rios, por exemplo, à condução coercitiva, parte da série Justiça Pesquisa. “Entre os Epromotores, procuradores e dele- menos críticos à política como fator de trabalhos desenvolvidos pela ABJ, este é gados da Polícia Federal, o questionário controle do Judiciário e extremamente um estudo atípico. Aqui há várias cama- foi respondido por apenas 40 pessoas. propensos a uma avaliação estrutural das de interpretação e muito material Os dados passaram, então, por dois mo- das circunstâncias que envolvem situa- para discussão”, completa Corrêa. Além mentos de análise. Em primeiro lugar, ções de crime”. do relatório final, os dados da pesquisa os tipos ideais, desenhados na etapa de No segundo momento, os dados ob- também podem ser consultados na página elaboração do questionário, foram ajus- tidos a partir dos questionários foram da ABJ, na internet (https://abj.org.br/). n tados, permitindo à equipe estabelecer combinados à primeira parte da pes-

augusto zambonato algumas correlações: entre os 27 garan- quisa, isto é, os pesquisadores obser- tistas-contratualistas se acredita que “a varam o andamento de processos sob Estudo a çõ es

tr prisão em segunda instância combate responsabilidade dos juízes que respon- MOISÉS, J. A. (coord.). Justiça Criminal, impunidade e prescrição. Conselho Nacional de Justiça. On-line. 2019. ilus a corrupção, que a lentidão processual deram ao questionário. Resultado: entre

pESQUISA FAPESP 280 z 83 Entrevista Heide Hackmann

Conhecimento unificado

Organizações de ciências naturais e sociais se reúnem em conselho internacional para fomentar pesquisas transdisciplinares

riado em julho de 2018, o In- Por que os dois conselhos se fundiram? por uma disciplina científica isolada- ternational Science Council O ICSU existia desde 1931. O ISSC, desde mente. É necessário buscar respostas (ISC) é uma organização não 1952. Ao unir as culturas das ciências na- com base no conhecimento integrado Cgovernamental com sede em turais e sociais, o novo conselho pretende para resolver problemas como a fome, Paris, na França, que nasceu da fusão incentivar a busca por soluções integra- as desigualdades sociais e as mudanças entre um conselho voltado às ciências das e inovadoras para desafios globais. climáticas. O ISC pretende promover o naturais, o International Council for Também queremos atuar como porta-voz diálogo interdisciplinar entre as ciên- Science (ICSU), e outro dedicado às da ciência no mundo. Representamos cias nos três níveis: global, nacional e ciências sociais, o International Social cerca de 40 associações científicas inter- regional. A cooperação será mais efetiva Science Council (ISSC). Em entrevista nacionais, além de 140 organizações na- à medida que se amplie a articulação com à Pesquisa FAPESP, a CEO do ISC, a sul- cionais, incluindo sindicatos, conselhos formuladores de políticas públicas, toma- -africana Heide Hackmann, doutora em acadêmicos e de pesquisa. No Brasil, a dores de decisão e líderes empresariais. ciência e tecnologia pela Universidade Academia Brasileira de Ciências [ABC] e de Twente, na Holanda, conta que a a Associação Nacional de Pós-graduação Quais são os desafios metodológicos e união das organizações visa fomentar e Pesquisa em Ciências Sociais [Anpocs] práticos do novo conselho? pesquisas transdisciplinares em áreas fazem parte da nossa rede. A socióloga O ISC reúne as ciências naturais e sociais como desenvolvimento sustentável e política Elisa Reis, professora titular da na mesma esfera institucional, mas ainda tecnologias digitais, além de ampliar a Universidade Federal do Rio de Janeiro, é um desafio criar oportunidades concre- articulação entre o conhecimento cientí- é vice-presidente do conselho. tas para que essas áreas atuem conjunta- fico e a formulação de políticas públicas. mente na resolução de problemas. Para Hackmann esteve em São Paulo em maio Qual a importância do desenvolvimento os próximos três anos, estabelecemos para participar da reunião do Global de pesquisas integradas? áreas prioritárias em que desejamos cau- Research Council (GRC), um encontro Os desafios para garantir o desenvolvi- sar impacto global. Uma delas envolve anual de agências de fomento de todo o mento sustentável e erradicar a pobreza, os 17 objetivos de desenvolvimento sus- mundo (ver reportagem na página 36). por exemplo, não podem ser superados tentável do planeta, estabelecidos pela

84 z junho DE 2019 a disseminação de desinformação. Nossos integrantes se articulam em todo o mun- do para assegurar a presença da ciência em debates políticos que envolvam, por exemplo, o Acordo de Paris, assinado por 195 países com o propósito de reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Produ- zimos relatórios para a ONU que servem de base para alguns de seus programas, entre eles ações para reduzir os riscos de desastres naturais e socioambientais. Co- patrocinamos iniciativas internacionais como a rede International Network for Government Science Advice [INGSA], que conecta cerca de 5 mil pesquisadores envolvidos na criação e no compartilha- mento de políticas públicas elaboradas com base em evidências científicas. O INGSA é uma plataforma colaborativa para intercâmbio de políticas, capaci- tação e pesquisas entre organizações de assessoria científica.

E em relação à liberdade científica, qual deverá ser a atuação do ISC? Salvaguardar a liberdade e promover a responsabilidade científica, o rigor e a relevância das pesquisas também cons- tituem prioridades do conselho. Que- remos mostrar que o avanço da ciência é um bem público em qual- quer país. Para isso, temos um comitê que trabalha para Hackmann: intenção de ampliar a articulação garantir a liberdade de ir e entre a produção vir, de associação, de expres- científica e a elaboração são e de comunicação entre de políticas públicas os cientistas.

Que desafios enxerga para a ciência no Brasil? Recebemos com preocupação as declara- ções vindas do Ministério da Educação sobre a proposta de retirar financiamento para o ensino de filosofia e sociologia nas universidades públicas. Uma eventual Organização das Nações Unidas [ONU] para fomentar estudos transdisciplina- interrupção de recursos para essas áreas para serem atingidos até 2030. O papel res. Temos um programa com duração afetaria a rede interdisciplinar de ideias do conhecimento científico consiste em de cinco anos para apoiar a produção de críticas que circulam entre os pesquisa- encontrar caminhos que garantam o uso pesquisas sobre sustentabilidade global dores em diferentes partes do mundo. As sustentável e igualitário dos recursos desenvolvidas por cientistas em início inovações oriundas de estudos em filoso- naturais. Outra área diz respeito às tec- de carreira na África. fia e sociologia são fundamentais para re- nologias digitais, que estão revolucio- solver problemas enfrentados pela socie- nando os meios pelos quais a informa- O ISC pretende participar do processo dade, além de proporcionar diversidade ção e o conhecimento são adquiridos, de formulação de políticas públicas? de ideias e habilidades importantes para armazenados, comunicados e utilizados. Queremos ampliar a articulação entre o desenvolvimento nacional e a compe- Precisamos entender as oportunidades a produção científica e a elaboração de titividade econômica. O ISC pretende h aves

s c s e os desafios que surgiram com a cha- políticas públicas, por meio da criação de agir, por intermédio de seus integrantes, mada revolução digital. Pretendemos, estruturas institucionais que permitam toda vez que o exercício da ciência for ram o o n lé ainda, criar iniciativas internacionais compartilhar conhecimento e neutralizar ameaçado. Christina Queiroz

pESQUISA FAPESP 280 z 85 educação y

Espaços de aprendizagem

Bibliotecas escolares exercem impacto positivo entre os alunos, principalmente nos de famílias de baixa renda, indica estudo

Márcio Ferrari

á duas datas previstas em lei de 142.573) com bibliotecas ou salas de segundo duas variáveis apuradas pelo para a universalização das bi- leitura que participaram da Prova Brasil MEC: as taxas de aprovação e evasão, bliotecas nas escolas públicas em 2015. Os resultados iniciais do estudo, levantadas pelo censo educacional, e as Hdo Brasil. Pela Lei nº 12.224, intitulado “Retratos da leitura – Bibliote- médias do Saeb. Ambas são divulgadas de 2010, todas as unidades de ensino ca escolar”, foram anunciados em abril. a cada dois anos pelo Instituto Nacional devem estar equipadas com bibliotecas “Temos duas conclusões principais”, de Estudos e Pesquisas Educacionais até 2020; pelo Plano Nacional da Edu- informa a socióloga Zoara Failla, geren- (Inep) do MEC. O Ideb tem escala de cação (PNB), até 2024. Parece difícil te de pesquisas do IPL. “A primeira é 0 a 10, servindo como um ranking das imaginar que qualquer um desses prazos que bibliotecas e salas de leitura pro- escolas. Já a escala Saeb é um medidor será cumprido. Segundo o Censo de 2017 movem melhor desempenho dos alunos de aprendizagem dos alunos e vai de 0 do Ministério da Educação (MEC), 61% em português e matemática. A outra é a 500, para cada disciplina. das escolas ainda não têm bibliotecas. que o impacto se torna maior conforme Nas instituições de regiões mais vul- Além disso, desde 2015 está suspensa aumenta a vulnerabilidade social das neráveis o impacto chega a 0,5 no Ideb. a distribuição de livros pelo Programa regiões em que as escolas se inserem.” Para efeito de comparação, entre 2015 Nacional do Livro e do Material Didático O objetivo principal foi correlacionar os e 2017 o Ideb do país cresceu 0,3 ponto. (PNLD) do governo federal. dados obtidos na aplicação de questio- A escala Saeb também indica avanços. Para avaliar o impacto das bibliotecas nários presenciais com os resultados de O desempenho em português aumenta no aprendizado dos alunos e pesar quais desempenho medidos pelo Sistema de 5 pontos, na comparação entre a esco- são os fatores que garantem um funcio- Avaliação da Educação Básica (Saeb) la em que a biblioteca funciona melhor namento eficaz, o Instituto Pró-Livro e pelo Índice de Desenvolvimento da e aquela em que funciona pior. Esses 5 (IPL) – fundado em 2006 por associa- Educação Básica (Ideb). O índice Saeb pontos equivalem a meio ano de aprendi- ções nacionais de editoras – promoveu é composto pelos resultados da Prova zado entre a 5ª e a 9ª séries. Outro dado pesquisa em 17 estados do país envol- Brasil e da Avaliação Nacional da Edu- significativo se refere à presença de um vendo cerca de 500 escolas (de um total cação Básica (Aneb). O Ideb é calculado bom acervo nas bibliotecas escolares,

86 z nononononono DE 2019 com crescimento de 6 pontos em por- Ter um responsável pela biblioteca que tuguês e 10 pontos em matemática. Em desenvolva atividades relacionadas ao relação ao Ideb o aumento é de 0,4 ponto. projeto pedagógico aumenta o desempe- O economista Sérgio Firpo, professor nho dos alunos em português em 4 pontos do Insper, realizou o trabalho de me- nas notas do Saeb, de acordo com o estudo todologia, amostra e análise com três Bibliotecas e do IPL. Nas escolas de regiões mais vul- colegas do instituto. Sua interpretação neráveis a magnitude da correlação sobe é que o ensino público, ao constituir bi- salas de leitura para 16 pontos na escala Saeb. Entretanto, bliotecas escolares, supre aquilo que as promovem a finalidade básica da formação de leito- famílias mais ricas oferecem a seus filhos res, que é o interesse pela literatura e não em casa. “Muitos alunos vêm de contex- melhor apenas o uso de livros didáticos, ainda não tos que não têm a cultura do livro, mas é bem atendida. A pesquisa mostra que terão que se inserir em uma sociedade desempenho apenas 40% dos profissionais das biblio- em que o livro é fundamental, mesmo tecas escolares indicam sempre literatura com o avanço das tecnologias digitais”, dos estudantes aos estudantes. “É nessa etapa do ensino diz Regina Zilberman, professora do Ins- em português que as crianças estão mais propensas a se tituto de Letras da Universidade Federal tornarem leitoras, desde que incentiva- do Rio Grande do Sul (UFRGS). e matemática das”, adverte Campello. Uma das intenções da pesquisa, ex- cinco tópicos plica Failla, é oferecer subsídios para a A primeira fase do estudo do IPL foi de- adoção de políticas públicas, preferen- limitar a amostra a ser pesquisada de cialmente com debate prévio. “Se fos- acordo com as notas obtidas em portu- se necessário escolher os dois fatores guês e matemática, formando um grupo mais importantes para tornar as biblio- das melhores escolas e outro das piores. tecas mais eficientes, os investimentos Essas amostras foram organizadas em Considerando-se o impacto da quali- deveriam ser em tecnologia e na forma- quatro níveis de indicadores socioeco- dade do acervo no aprendizado, o ganho ção de mediadores”, diz Campello. Das nômicos. Partiu-se então para entrevistas no índice Saeb é de 6 pontos em portu- escolas pesquisadas, 61% não possuem com diretores, professores de português guês e de 10 em matemática; no Ideb é computadores. Quanto aos mediadores, e responsáveis pelas bibliotecas. de 0,4 ponto. Os dados também sugerem a pesquisa revela que 52% dos respon- Os questionários abordaram cinco tó- alguma desatenção com os acervos das sáveis por bibliotecas são professores picos: espaço físico; acervo; atendimento bibliotecas. Uma parcela de 62% dos en- e apenas 12% bibliotecários. Segundo e perfil do responsável pela biblioteca; trevistados responsáveis por bibliotecas Campello, uma biblioteca escolar ideal serviços e atividades curriculares e ex- considerou seus acervos compatíveis deveria combinar a formação generalista tracurriculares; e recursos eletrônicos com a quantidade de alunos, mas 60% e organizadora dos bibliotecários com o que deem acesso a outras bibliotecas. Os não souberam informar quantos eram conhecimento das disciplinas curricu- parâmetros foram definidos em 2008 em os títulos e exemplares existentes. Ape- lares pelos professores. trabalho conjunto do Conselho Federal nas 47% declararam catalogar o acervo Em breve os dados da pesquisa devem de Biblioteconomia e do Grupo de Estu- com frequência. estar disponíveis para consulta na Plata- dos em Biblioteca Escolar da Escola de Segundo Zilberman, da UFRGS, des- forma Pró-Livro, no site da instituição. Ciência da Informação da Universidade de os anos 1980, quando a discussão em “Nossa expectativa é dar acesso às ta- Federal de Minas Gerais (UFMG), coor- torno da formação de leitores começou belas para que especialistas avaliem as denado pela professora Bernadete Cam- a se aprofundar, as bibliotecas escola- respostas com mais profundidade”, diz pello, da própria UFMG. Constatou-se res passaram a ser vistas por teóricos e Failla. “A multiplicidade de dados não que em 37% das escolas as bibliotecas ou pesquisadores também como espaços de permite estabelecer relações de causa e salas de leitura são de uso compartilhado aprendizado e promoção de atividades. efeito, mas produz indicativos bastante com outras atividades. Na correlação en- Na pesquisa do IPL, 44% dos profissio- confiáveis de correlações. Quanto mais tre o espaço físico e o Ideb, as escolas com nais responsáveis por espaços de leitu- as análises forem refinadas, mais claros melhores condições atingem 0,2 ponto ra afirmaram que suas atividades estão serão os mecanismos do impacto das bi-

léo ramos chaves léo no Ideb acima das escolas do fim da lista. ligadas aos conteúdos de sala de aula. bliotecas no aprendizado”, avalia Firpo. n

pESQUISA FAPESP 2xx z 87 obituário y

Dedicação plena à matemática

Maurício Peixoto foi um dos criadores do Impa

Carlos Fioravanti

Matemático é autor do Teorema de Peixoto, na área de sistemas ntegrante da primeira geração de matemáti- passou de ano e decidiu que seguiria alguma pro- dinâmicos cos profissionais do Brasil, Maurício Matos fissão que dependesse da matemática. Peixoto foi um dos fundadores do Instituto Como os cursos universitários de matemática Ide Matemática Pura e Aplicada (Impa), na eram raros – o primeiro surgiu em 1934 na então década de 1950. O Impa foi a primeira unidade recém-criada Universidade de São Paulo (USP) –, de pesquisa do Conselho Nacional de Desen- Peixoto optou por cursar a Escola de Engenharia volvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Universidade do Brasil, atual Universidade presidida pelo pesquisador de 1979 a 1980. Ele Federal do Rio de Janeiro. Formou-se em 1942, também dirigiu a Academia Brasileira de Ciên- terminou o doutorado em 1945 e conseguiu o re- cias (ABC), de 1981 a 1991. Natural de Fortaleza, gistro de engenheiro, mas não quis trabalhar na no Ceará, Peixoto morreu no Rio de Janeiro em área. Preferiu ensinar matemática até ser contra- 28 de abril, aos 98 anos. tado em 1947 pela Escola de Engenharia. “Ele acreditava na matemática quase como Por três ocasiões lecionou nos Estados Uni- um sacerdócio, ao qual se dedicava de maneira dos. Foi professor visitante na Universidade de plena”, contou o matemático Marcelo Viana, Chicago (1949-1951), Universidade de Princeton diretor-geral do Impa. Em 2010, Viana pronti- (1957-1958) e Universidade Brown (1964-1970). ficou-se a fazer uma seleção de artigos de Pei- Depois deu aulas no Instituto de Matemática e xoto, então com 89 anos e professor emérito do Estatística (IME) da USP (1973-1978). Quando instituto. “Depois de fugir de mim, ele pergun- voltou do primeiro período no exterior, em 1952, tou se não poderia esperar mais um ano ou dois, foi um dos que propuseram a criação do Impa, porque estava fazendo um trabalho que seria ao lado de dois ex-colegas de faculdade: o per- culminante de sua obra. Parecia que o tempo nambucano Leopoldo Nachbin (1922-1993) e o não passava para ele.” carioca Lélio Gama (1892-1981). A habilidade de Peixoto para a matemática Peixoto especializou-se em geometria e topolo- mostrou-se primeiramente de modo inverso, ao gia, ramo da matemática que estuda propriedades ser reprovado nas provas dessa disciplina na se- espaciais que não se alteram quando os objetos gunda série do primeiro grau (atual ensino fun- que as possuem passam por certas espécies de damental) no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. transformação contínua. “Apesar de ser um ma- Nas aulas de reforço, porém, contagiou-se com temático puro, ele sempre conseguia transformar o entusiasmo do professor. Recuperou as notas, em figuras geométricas os conceitos que preten-

88 | junho DE 2019 O Impa, no Rio, surgiu em 1952 da proposta de Lélio Gama, Leopoldo Nachbin e Peixoto

dia passar”, observou o matemático Pedro Leite na área de sistemas dinâmicos”, afirmou Viana. da Silva Dias, diretor do Instituto de Astronomia, Segundo ele, o trabalho de Peixoto teve também Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG-USP). importância histórica, porque fortaleceu a inte- O pesquisador do Impa criou o Teorema de ração com os matemáticos das universidades de Peixoto, apresentado em artigos publicados em Chicago e da Califórnia (UC), em Berkeley, nos 1959, 1962 e 1963. O teorema retomava o conceito Estados Unidos, motivando-os a trabalhar mais de estabilidade estrutural de sistemas dinâmicos, intensamente nessa área e a receber jovens como proposto em 1937 por dois sovié- o mineiro Jacob Palis. O então estudante Palis fez ticos, o físico Aleksandr Aleksan- o doutorado na UC (1967) e, anos depois, presidiu drovich Andronov (1901-1952) o Impa (1993-2003) e a ABC (2007-2016). Embora e o matemático Lev Pontryagin Peixoto era amigo do matemático Candido Li- (1908-1988). Sistemas – fenôme- ma da Silva Dias, professor do IME-USP e pai de formado em nos que envolvem objetos em in- Pedro Dias. “Eles varavam a noite conversando engenharia, teração causal – são dinâmicos sobre política e matemática. Aprendi com eles a se comportam estados que se importância de as pessoas se articularem, ape- o pesquisador transformam ao longo do tem- sar das divergências, em busca de objetivos mais po segundo uma lei matemática. amplos”, comentou. preferiu ensinar Um sistema dinâmico é estrutu- No final de 2007, ao assumir uma das diretorias ralmente estável se uma ligeira do Laboratório Nacional de Computação Cientí- matemática modificação na lei de transfor- fica (LNCC), Pedro Dias pediu para conhecer a mação de seus estados não afeta escola rural de que Peixoto cuidava, em Petrópo- suas propriedades topológicas. O lis, no Rio, que recebia apoio do instituto desde teorema demonstrado por Peixo- a gestão anterior. “Lembro do brilho dos olhos to enuncia condições matemáti- do Maurício ao mostrar o local e falar da meni- cas necessárias e suficientes para nada da roça, como ele dizia”, contou. O LNCC que uma espécie de sistemas di- manteve o apoio ao liberar técnicos para instalar nâmicos, chamados bidimensionais autônomos, ou consertar equipamentos e redes de compu- seja estruturalmente estável. tadores na escola, que Peixoto havia herdado de sua primeira mulher, Marília Chaves (1921-1961), léo ra chaves m os léo Segundo o matemático Tiago Carvalho, do 2 Departamento de Computação e Matemática da também engenheira e matemática – a primeira USP de Ribeirão Preto, o teorema pode ser apli- mulher a ingressar na ABC, em 1951. go Que i roz go i cado para entender fenômenos como o funciona- Peixoto casou-se três vezes. Além de Marília

odr mento de máquinas, reações químicas, relações Chaves, com Maria Lucia Alvarenga e com Alci- R s 1 entre predador e presas ou a evolução de doen- léa Augusto. Teve quatro filhos, Martha, Marcos, oto f ças. “Esse foi o primeiro teorema de alto nível Elisa e Ricardo. n

PESQUISA FAPESP 280 | 89 memória

1

Feixe contínuo de luz laser produzido por Porto em seu laboratório na Universidade do Sul da Califórnia, em Los Angeles, no final da década de 1960

O físico que olhava as luzes

Sérgio Porto contribuiu para a introdução e a aplicação do laser em diversas áreas no Brasil

Rodrigo de Oliveira Andrade

laser era uma tecnologia ainda pouco físicos e historiadores da ciência o principal conhecida nos anos 1950, no Brasil e no responsável por alguns dos avanços das pesquisas Omundo. A possibilidade de usar sobre essa tecnologia no mundo, bem como sua radiação para estimular a produção de introdução no Brasil e aplicação em várias áreas partículas de luz de modo concentrado em um do conhecimento para além da física. feixe contínuo restringia-se a filmes e séries de Sérgio Pereira da Silva Porto (1926-1979) era ficção científica. Poucos foram os cientistas filho de pescadores de Niterói, no Rio de Janeiro, que conseguiram, àquela época, enxergar as onde nasceu. Graduou-se em química na antiga múltiplas possibilidades de pesquisa e Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) da aplicação que o laser poderia vir a ter. Um Universidade do Brasil – atual Universidade deles foi o físico brasileiro Sérgio Porto, morto Federal do Rio de Janeiro – aos 20 anos de idade. há 40 anos. Ainda hoje ele é considerado por Mudou-se para os Estados Unidos logo em

90 | junho DE 2019 2

O físico seguida para fazer o doutorado (no destaque), analisaram parte do trabalho de Porto em física na Universidade Johns ao lado de professores do e suas contribuições para a introdução Hopkins, em Baltimore. De volta ao ITA no início do laser no Brasil em artigo publicado Brasil, em 1954, iniciou sua carreira dos anos 1960 na Revista Brasileira de Ensino de como professor de mecânica Física. Freire explica que as condições estatística no Departamento de Física de trabalho nas instituições científicas do Instituto Tecnológico de e universidades deterioravam-se à Aeronáutica (ITA), em São José dos época no Brasil e isso contribuiu para Campos, interior de São Paulo. que Porto aceitasse o convite para Foi no ITA, em meados de 1959, que aproveitá-las todas muito bem para trabalhar no Bell Labs. o físico brasileiro entrou em contato redefinir sua própria inserção no Ao ir para os Estados Unidos, Porto pela primeira vez com as bases campo científico.” soube se colocar no lugar certo, na teóricas do laser, por meio de um O entusiasmo de Porto pelo laser hora certa. As pesquisas envolvendo a

A A artigo publicado na revista Physical resultou, naquele mesmo ano, na vinda nova tecnologia ganharam cada vez Review pelos físicos Arthur Schawlow de um grupo de pesquisadores do mais destaque a partir do início dos ca do IT (1921-1999) e Charles Townes Bell Labs para dar algumas palestras anos 1960 no mundo. Ao mesmo iote

bl (1915-2015), ambos do Bell Telephone no ITA. “Na visita, o físico brasileiro tempo, o físico brasileiro pôde a Bi Laboratories, ou Bell Labs, companhia foi convidado para voltar para trabalhar e interagir com alguns dos com forte tradição de pesquisa básica os Estados Unidos e trabalhar com mais destacados pesquisadores dessa ervo d ervo c A orientada para a tecnologia situada em Townes e Schawlow”, destaca área – vários deles foram mais tarde a 2 Nova Jersey, nos Estados Unidos (ver Freire. O primeiro ganhou o Nobel laureados com o Nobel de Física por órni f i Pesquisa FAPESP nº 151). “Porto ficou de Física em 1964 pelas suas suas contribuições para o avanço das a cal muito animado com a nova ótica dada contribuições no campo da eletrônica pesquisas sobre o laser, como o à luz e passou a fazer vários quântica, o que levou à construção de holandês Nicolaas Bloembergen seminários sobre o assunto no ITA”, osciladores e amplificadores baseados (1920-2017) e o soviético Aleksandr de do sul d a id conta o físico e historiador da ciência no princípio maser-laser. Já o Mikhailovich Prokhorov (1916-2002). s Olival Freire Junior, do Instituto de segundo foi laureado com o Nobel Segundo o físico Ado Jorio, do niver

a u Física e pró-reitor de Pesquisa da de Física em 1981, pelas suas Departamento de Física e pró-reitor

ivo d ivo Universidade Federal da Bahia contribuições para a espectroscopia de Pesquisa da Universidade Federal u rq (UFBA). “A leitura desse artigo lhe eletrônica de alta resolução. de Minas Gerais (UFMG), foi no Bell a abriu várias janelas de oportunidades Freire e o historiador da ciência Labs que Sérgio Porto desenvolveu

fo t os 1 ao longo de sua carreira e ele soube Walker Lins de Santana, da UFBA, uma de suas principais linhas de

PESQUISA FAPESP 280 | 91 Em seu laboratório no Bell Labs, em 1966, usando laser para obter o espalhamento Raman

1 pesquisa e também onde o físico Filho, para o laboratório brasileiro teve seus anos mais norte-americano”, comenta Santana, produtivos. Suas contribuições que estuda a história do laser no Brasil envolveram o uso do laser no chamado e as contribuições de Porto nesse efeito – ou espalhamento – Raman, sentido desde o mestrado, defendido fenômeno observado Nos Estados em 2006 no Programa de experimentalmente em 1928 pelo Unidos, Porto se Pós-graduação em Ensino, Filosofia e físico indiano Chandrasekhara História das Ciências da UFBA. Venkata Raman (1888-1970), Nobel de projetou como Física em 1930. A técnica passou a ser liderança mundial formação de novos físicos usada para se obter informações Anos mais tarde, em 1967, Porto acerca da estrutura molecular de nas múltiplas recebeu outro convite, dessa vez diversos materiais. formas de para se tornar professor titular de O espalhamento acontece quando física e engenharia elétrica na partículas de luz (fótons) se chocam aplicação do laser Universidade do Sul da Califórnia com moléculas de gás, líquido ou (USC), em Los Angeles. “Ele aceitou sólido. Seu uso no estudo das o convite e, tal como no Bell Labs, propriedades dos materiais era algo fez da USC um centro de formação limitado em laboratórios justamente de físicos brasileiros.” Segundo Jorio, pela dificuldade de se obter uma boa e a estratégia contribuiu para o intensa fonte de luz monocromática. surgimento de vários núcleos de física p ca m Porto soube identificar o potencial da O achado foi publicado em 1962 na de estado sólido no Brasil, os quais nova tecnologia que despontava para revista Journal Optical Society America tinham o laser e a espectroscopia rq / Uni / a rq i suprir essa lacuna. “Ao aplicar a e despertou grande interesse da Raman como alicerces principais. s / radiação laser para produzir o efeito comunidade científica internacional. “Porto tinha essa característica de se al Raman, ele conseguiu gerar o “O laboratório de Porto no Bell Labs se dedicar aos alunos que ele acreditava entr ivo c ivo espalhamento de forma clara e nunca tornou um dos mais importantes no ter potencial”, comenta o engenheiro u antes obtida”, esclarece Jorio. “Por campo da espectroscopia de estado eletrônico José Ellis Ripper Filho, meio desse trabalho, tornou-se sólido”, destaca Jorio. O prestígio que conheceu o físico brasileiro em 2 e 3 a rq possível usar a espectroscopia Raman o levou ao cargo de supervisor de fins da década de 1950, durante labs ll para se obter informação química e pesquisas da empresa. “Ele se valeu da sua graduação no ITA. “Esse foi o e a b estrutural de quase qualquer material, posição para recrutar jovens físicos meu caso”, ele conta. “Ele me orientou noki permitindo sua identificação em brasileiros, entre eles Rogério Cezar muito, colaborando para o

poucos segundos.” de Cerqueira Leite e José Ellis Ripper desenvolvimento da minha carreira.” fo t os 1

92 | junho DE 2019 2 Porto (à dir.), Zeferino Vaz (centro) e Carlos Antonio Rocca, secretário da Fazenda de São Paulo, em 1974

A então recém-criada Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por meio de Velloso e Zeferino Vaz (1908-1981), reitor da universidade no período, foi a única que concordou com as condições exigidas. A ideia era fazer da Unicamp um Bell Labs. Por lá, a partir de 1972, Porto dedicou-se à atividade de pesquisa e à formação de pesquisadores por meio de trabalhos com o laser e suas aplicações, os quais contribuíram para a criação do Departamento de Eletrônica Quântica no Instituto de Física Gleb Wataghin, em 1974. As pesquisas e o ambiente intelectual cultivado por Porto na Trabalhando O período que passou nos Estados Unicamp atraíram vários estudantes, no Instituto de Unidos contribuiu para que Porto entre eles o físico Carlos Henrique de Física da Brito Cruz, atual diretor científico da Unicamp na se projetasse internacionalmente década de 1970 como uma liderança nas múltiplas FAPESP, que viria a se tornar reitor formas de aplicação do laser. “Mesmo daquela universidade entre 2002 e assim, ele tinha expectativa de 2005. Ele foi para a Unicamp para retornar de vez ao país, desde que fazer seu doutorado e trabalhar ao alguma instituição de pesquisa lado de Porto no início de 1979, seis oferecesse as mesmas condições de meses antes da morte do físico. trabalho das quais desfrutava nos O trabalho de Porto e sua equipe Estados Unidos”, destaca Freire. também contribuiu para o avanço de O contexto político e econômico várias áreas para além da física de que viabilizou seu retorno começou a matéria condensada, como a química, se desenhar em 1968, no governo a engenharia e a medicina, que passou militar de Artur da Costa e Silva a usar o laser como ferramenta (1967-1969). Segundo Freire e Santana, cirúrgica em áreas como oftalmologia, houve à época grandes investimentos otorrinolaringologia, ginecologia e em áreas consideradas estratégicas cardiologia. Um exemplo prático de para o país, e o governo federal teve suas pesquisas foi o desenvolvimento interesse em trazê-lo de volta para de técnicas de desobstrução de o Brasil ao conhecer seu projeto de artérias por meio da destruição de uso do laser para o enriquecimento ateromas com o uso do laser. isotópico do urânio. “João Paulo dos Sérgio Porto morreu em junho de Reis Velloso [1931-2019], então 1979, em Novosibirsk, na antiga ministro do Planejamento, ficou União Soviética, aos 53 anos de idade. responsável pelas negociações entre o Ele teve um ataque cardíaco governo e o físico”, destaca Freire. fulminante durante uma partida de Para voltar, Porto exigiu a contratação futebol com pesquisadores de vários de 30 doutores, laboratórios países que participavam de uma apropriados e US$ 2 milhões para conferência de física laser. Para Olival financiamento de pesquisas. As Freire, Porto morreu no auge universidades de Brasília (UnB) e de da sua atividade intelectual e deixou São Paulo (USP) negociaram, mas as uma valiosa contribuição científica 3 conversas não avançaram. para a física no Brasil. n

PESQUISA FAPESP 280 | 93 carreiras

educação Fazendo pesquisa na escola

Pré-iniciação científica permite que estudantes vivenciem experiências acadêmicas ainda no ensino médio

possibilidade de ter acesso contribui para o desenvolvimento da e as análises feitos pelos estudantes. a conhecimento científico carreira dos jovens e para a imagem No entanto, quando essa interação A acerca de determinado das instituições que nela investem. é bem-sucedida, os alunos tendem a tema costuma ser associada à Um dos benefícios seria o de se engajar nos trabalhos da equipe”, graduação e ao seu aprofundamento, propiciar aos estudantes a segundo artigo assinado por a pós-graduação. Pouco conhecida, oportunidade de testemunhar a Subhamoy Das, neurocirurgião a pré-iniciação científica permite aplicação prática de conceitos da Universidade Stanford, nos que estudantes do ensino médio e aprendidos na escola. A experiência Estados Unidos, e colaboradores. fundamental tenham a oportunidade também possibilitaria a Também destacam que a de experimentar o fazer acadêmico constatação de que boa parte do pré-iniciação científica possibilita antes mesmo de ingressar em um trabalho feito em laboratório está a desconstrução da imagem curso superior – e são muitos os baseada no que é discutido e estereotipada de um profissional benefícios associados a essa prática. estudado em sala de aula. inacessível fechado em um A conclusão é de um grupo de Os autores reconhecem que laboratório que parte da sociedade pesquisadores norte-americanos. integrar os estudantes às atividades tem sobre os cientistas e suas áreas Em artigo publicado em abril de laboratório pode ser algo de atuação, além de contribuir para a na PLOS Computational Biology, desafiador, e afirmam que o esforço capacitação dos jovens para que eles discutem como universidades contribui para disseminar a cultura depois possam buscar oportunidades e centros de pesquisa podem científica. “Leva tempo para que os de pesquisa na graduação. oferecer uma experiência científica pesquisadores consigam explicar Essa modalidade de pesquisa é significativa para alunos do ensino conceitos, ensinar técnicas e bastante disseminada nos Estados médio e como essa atividade supervisionar os experimentos Unidos. Por lá, várias instituições de

94 | junho DE 2019 ensino superior contam com programas desse tipo, e as escolas costumam incentivar seus estudantes a fazer pré-iniciação científica, acumulando experiência que poderá servir como diferencial no ingresso ao ensino superior. No Brasil, a modalidade ainda não é muito difundida. Poucas são as instituições de ensino superior ou pesquisa com programas voltados a esse público jovem. É o caso da Universidade de São Paulo (USP), que desde 2016 oferece o Programa de Pré-iniciação Científica e de Pré-iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação, com o fito de promover a cultura científica e tecnológica entre estudantes de 15 anos ou mais sob orientação de professores das áreas de ciências humanas, exatas e biológicas. Há pelo menos 17 anos, na cultura científica na sociedade”, No Brasil, a pesquisadora passou Universidade Estadual de Campinas afirma. As atividades promovidas a aceitar alunos a partir de 15 anos (Unicamp) os alunos do ensino no ICMC-USP respeitam um em seu laboratório de genética médio podem fazer a pré-iniciação cronograma que não compromete a molecular. “Eles me procuram científica por meio do Programa rotina escolar do aluno, ela explica. interessados em participar das Institucional de Bolsas de Iniciação Outro pesquisador que investe atividades de pesquisa”, informa. Científica para o Ensino Médio nesse tipo de iniciativa é o Lopes-Cendes explica que (Pibic-EM). Eles também podem neurocientista Norberto Garcia entrevista cada candidato para entrar em contato com a realidade Cairasco, da Faculdade de Medicina apresentar as atividades de seu acadêmica pelo Programa Ciência & da USP de Ribeirão Preto. grupo, conhecer as áreas de Arte nas Férias, realizado todos os Ele já orientou quatro alunos de interesse e verificar se já anos em janeiro, fevereiro e julho. pré-iniciação científica. Todos desenvolveram algum experimento Desde 2016 a matemática Cynthia participaram de atividades em em suas escolas. de Oliveira Lage Ferreira, do laboratório e realizaram projetos, Eles então passam a fazer parte Instituto de Ciências Matemáticas e depois apresentados em suas de um dos núcleos de pesquisa do de Computação (ICMC) da USP, em escolas. Para Cairasco, a laboratório, recebem tarefas e São Carlos, orienta alunos do ensino pré-iniciação científica “mostra aos prazos de entrega. “As atividades médio da escola estadual Álvaro jovens que as universidades públicas são avaliadas em reuniões Guião. “Os selecionados recebem pertencem a todos e que eles podem semanais”, informa. Ela diz que uma bolsa mensal de R$ 100 por frequentá-las, beneficiando-se conversa antes com os estudantes um ano, oferecida pela Conselho do conhecimento ali produzido. para definir os dias e horários em Nacional de Desenvolvimento Na avaliação da médica Iscia que estarão nos laboratórios, de Científico e Tecnológico [CNPq]”, Lopes-Cendes, da Faculdade de modo que as atividades não conta. “Eles têm aulas e participam Ciências Médicas da Unicamp, comprometam sua rotina escolar. de seminários sobre matemática e a pré-iniciação científica pode Vários fazem trabalhos que depois programação e fazem exercícios contribuir para que o estudante são apresentados em congressos práticos em laboratórios de assuma responsabilidades e inicie científicos. Quando os resultados informática.” No fim, elaboram um um processo de amadurecimento das atividades efetivamente relatório detalhando o que científico. Ela conta que começou a contribuem para uma pesquisa aprenderam e as atividades que orientar jovens alunos após voltar publicada, eles também assinam, em desenvolveram ao longo do período. de seu doutorado na Universidade coautoria, os artigos científicos.n Segundo Ferreira, a iniciativa McGill, no Canadá. Lembra que Rodrigo de Oliveira Andrade pretende apresentar aos alunos as essa era uma prática comum e bem possibilidades de cursos e carreiras. organizada por lá. “Houve casos daniel almeida daniel Artigo científico “Queremos aproximar esses jovens de estudantes que participaram de Lescak, E. A. et al. Ten simple rules for providing a mea- a ção

tr e sua comunidade da universidade congressos com trabalhos sobre ningful research experience to high school students. us l i e dos pesquisadores para criar uma genética e neurociência”, diz. PLOS Computational Biology. v. 15, n. 4, p. 1-7. abr. 2019.

PESQUISA FAPESP 280 | 95 perfil essoal

Aprender a poupar p arquivo

Brasileiro radicado nos Estados Unidos promove educação financeira em escolas públicas

O carioca Paulo Costa sempre sonhou em cursar graduação no exterior. Em setembro de 2009, prestes a concluir o ensino médio no Colégio Militar do Rio de Janeiro, resolveu buscar instituições fora do país. Seu plano era cursar engenharia química, por influência do pai. “Queria ir para a França, mas, como não dominava o francês, resolvi me concentrar em Livro escrito universidades dos Estados Unidos”, por Costa é hoje usado em aulas conta. Precisou correr contra o relógio de matemática para concluir todos os trâmites e educação exigidos pelas universidades antes do financeira fim daquele ano. Para ganhar tempo, recorreu ao programa Oportunidades Acadêmicas, Decidiram fazer uma pesquisa os professores para usar o ensino da que auxilia estudantes com científica para avaliar o nível de matemática para explicar noções e dificuldades econômicas no processo educação financeira da população conceitos de economia, como taxas seletivo de programas de ensino brasileira. Costa voltou para o Brasil de juros, inflação, empréstimos e superior em instituições e, sob orientação de Fraga, iniciou o dívidas.” Ele elaborou o material e a norte-americanas. Inscreveu-se em projeto. Para financiá-lo, recorreu à secretaria promoveu o treinamento 17 universidades. Ele já havia iniciado B3, a Bolsa de Valores de São Paulo, de professores de 12 escolas públicas a graduação em engenharia química, que aceitou apoiar a iniciativa. A da cidade do Rio. “Até o começo de na Universidade Federal do Rio de pesquisa envolvia um questionário 2014, pouco antes de o projeto ser Janeiro (UFRJ), quando os resultados com perguntas sobre educação descontinuado, tínhamos atuado em começaram a ser divulgados, no início financeira, conhecimento 20 escolas”, relembra. de 2010. Costa foi aceito em Yale, matemático, investimentos e dívidas. De volta aos Estados Unidos, em Connecticut, com uma bolsa “Contratamos uma empresa para Costa concluiu a graduação em maio integral — estudar lá custa cerca de aplicá-lo em 2 mil pessoas em de 2014. Logo em seguida, iniciou R$ 150 mil por ano. diferentes regiões do país”, informa o mestrado e, depois, o doutorado, Aos 19 anos, mudou-se para os Costa. “Verificamos que o nível de ainda em andamento, na área de Estados Unidos. Em Yale, desistiu do educação financeira do brasileiro é finanças comportamentais na curso de engenharia química após baixo, entre outras coisas, porque o Universidade Harvard. Ele segue assistir, por engano, a uma aula de nível de educação matemática no desenvolvendo seu projeto de economia. “Saí da sala certo de que era país também é baixo”, destaca. Com educação financeira para jovens, que aquilo que queria fazer”, conta. Foi base nos dados obtidos, e sob em 2016 se transformou no livro durante uma pesquisa de verão, na orientação de Fraga, Costa elaborou Aprendendo a lidar com o dinheiro instituição, em meados de 2011, que outro projeto para usar a matemática (BEĨ), parte do projeto “Por quê – um de seus professores o apresentou em aulas de educação financeira, e Economês em bom português”. ao economista brasileiro Armínio vice-versa, para jovens de escolas “Queremos inseri-lo na base Fraga, ex-presidente do Banco Central. públicas do Brasil. curricular das escolas públicas do “Ele me sugeriu trabalhar com Fraga também o colocou em Brasil”, explica. “Começamos questões ligadas à educação financeira contato com a Secretaria de em Goiás, em 2017, e agora já e desenvolver algum trabalho nesse Educação do Rio de Janeiro. “A ideia estamos também em escolas de sentido no Brasil”, recorda. era fazer um livro didático e treinar Pernambuco e São Paulo.” R.O.A.

96 | junho DE 2019 resenha

Sobre a identidade musical brasileira

Nahim Marun

Editora da Universidade de São Paulo pu- um breve flerte com o estilo rapsódico no quinto blicou recentemente um estudo de gran- quarteto, o modelo formal haydniano é definiti- A de fôlego sobre os quartetos de cordas de vamente adotado do sexto ao oitavo quarteto. O Heitor Villa-Lobos (1887-1959). Com este traba- nono e décimo dialogam com o expressionismo lho, o autor Paulo de Tarso Salles se afirma co- de Berg (1885-1935) e Bartók. No estilo tardio dos mo um dos maiores estudiosos villalobianos da sete últimos Quarteto, o equilíbrio dos movimen- atualidade. Em estilo fluente, o texto foi burila- tos é mantido e os elementos da música popular do por quase uma década. Revisa em detalhes a brasileira são magistralmente amalgamados aos literatura existente para, em seguida, nos trazer modelos da tradição europeia. reflexões reveladoras de cada um dos quartetos. O terceiro capítulo, “Simetria, harmonia e for- Durante o romantismo, o gênero quarteto de ma”, é o mais técnico de todos. Analisa o caráter, cordas experimentou um certo esgotamento es- a harmonia, forma, contraponto e as influências Os quartetos tético devido, em parte, à excelência da prolífica estéticas presentes em cada movimento. Propõe de cordas de produção da Primeira Escola de Viena, integra- um mergulho nos recentes conceitos analítico- Villa-Lobos: da por Haydn (1732-1809), Mozart (1756-1791) -musicais, como a teoria dos conjuntos e os diagra- Forma e função Paulo de Tarso Salles e Beethoven (1770-1827). No século XX, con- mas matemáticos. Salles nos surpreende ao revelar Edusp comitantemente ao surgimento do neoclassi- uma nova face do compositor, capaz de congre- 376 páginas cismo, ocorreu uma reavaliação importante da gar uma intuição fenomenal a um pensamento R$ 46,40 obra de Haydn, que favoreceu a aproximação de formalista consciente e muito bem estruturado. Villa-Lobos com o grande mestre dos quartetos O fascinante universo matemático dos palín- de cordas. Compositores como Milhaud (1892- dromos, espelhamentos, rotações e translações de 1974), Bartók (1881-1945), Schönberg (1874-1951), estruturas se funde aos estilos cariocas, ao choro, Chostakovitch (1906-1975) e especialmente Villa- ao samba, à modinha, ao estilo infantil, ao canto -Lobos se voltaram ao tradicional agrupamento. de Xangô, à capoeira, ao estilo ameríndio, ao es- Assim, a constituição clássica de dois violinos, tilo nordestino, ao estilo caipira. Assim, o último viola e violoncelo se confirmou como uma das e interessantíssimo capítulo arremata de forma formações mais importantes e duradouras da convincente e minuciosa a análise dos elementos música de câmara. que constituem a sintaxe do compositor. Salles Os 17 quartetos de cordas de Villa-Lobos for- expõe o mundo emocional de Villa-Lobos que se mam o maior grupo da produção do compositor. A espraia generoso na escritura dos quartetos. A maior parte dos quartetos permanece fiel à forma combinação dessa palheta afetiva ao mais puro desenvolvida por Haydn: dois movimentos rápi- pensamento estruturalista constituiu a essência dos que emolduram um movimento lento e um da genialidade do compositor. scherzo. As analogias dos métodos composicio- Villa-Lobos criou parte significativa da identi- nais dos dois músicos continuam; na adaptação dade musical brasileira. Sua música possui uma da forma sonata, na intertextualidade do discurso, força tão incomensurável que não podemos se- no monotematismo, nas reprises alteradas e nas quer imaginar um Brasil sem a ascendência de técnicas de desenvolvimento. sua obra. Sua arte moldou consideravelmente Os quartetos de cordas de Villa-Lobos foram nossa percepção da realidade sonora. A Alma compostos em dois períodos distintos e distan- brasileira de Villa-Lobos é livre, plural, comple- tes 14 anos entre si. Os quatro primeiros foram xa e vigorosa. Nos intolerantes dias que vivemos, escritos entre 1915 e 1917 e os 13 seguintes após sua música veemente exorta o retorno das pautas 1931. Os primeiros quatro apresentam uma tex- inclusivas, o respeito pelo meio ambiente, bem tura musical densa e virtuosística. O primeiro como a dignificação das raças e crenças forma- em forma de suíte, o segundo e o terceiro com doras da cultura brasileira. os princípios da forma cíclica francesa de Fran-

ck (1822-1890) e d’Indy (1851-1931) e o quarto Nahim Marun é professor do Instituto de Artes da Universidade já se aproximando do modelo classicista. Após Estadual Paulista (Unesp).

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y SaÚDE ciência

Mais uma possível causa do

autismo - ciência SaÚDE y gência é normal ou superior à média e a aquisição da linguagem se dá sem proble Inflamação reduz mas, mas são comuns os gestos repetiti- vos e a falta de controle em movimentos conexões de neurônios delicados. Esses transtornos atingem cerca de 1% das crianças na Inglaterra Maisobtidos em uma laboratório e nos Estados Unidos – não há estudos a partir de células do detalhados sobre sua frequência no Brasil Pesquisa FAPESP – e são quatro vezes mais comuns entre Você sabia possíveldente de crianças com o meninos do que entre meninas. A partir de dentes de leite doados - transtorno neurológico por crianças com e sem autismo, os que nosso site o conteúdo nãocausa termina do aqui grupos liderados pelos neurocien tistas brasileiros Patricia Beltrão Diego Freire Braga, da USP, e Alysson R. Muotri, tem material da Universidade da Califórnia em San Diego, nos Estados Unidos, confirmaram que uma inflamação em células cerebrais exclusivo e autismo chamadas astrócitos pode estar associa- entes de leite que chegam ao da ao desenvolvimento de uma forma textos laboratório dos pesquisadores grave desse transtorno. Mais importante:todo- o conteúdo do projeto “A fada do dente”, Inflamação reduz - ao menos em laboratório, o controle da na Universidade de Sãogência Paulo é normal inflamação ou superior nos àastrócitos média e areverteu alte D aquisição da linguagemrações que se ela dá provocasem proble nos neurônios, Os textos produzidos conexões de(USP), neurônios estão ajudando a conhecer me - da revista lhor as alterações que podem ocorrermas, mas no são comunsas células os responsáveisgestos repetiti por- transmitir vos e a falta de controle em movimentos obtidos em laboratóriocérebro em algumas formas de autismo,- e armazenar informações no cérebro e todos os meses pela delicados. Esses transtornos atingem a partir de célulasum conjunto do de distúrbios de origem que se encontram mais imaturas nessaimpressa? - nossa equipe podem ser neurológica que se manifestamcerca na de in 1% dasforma crianças de autismo. na Inglaterra dente de criançasfância e com podem o prejudicar, eme nos maior Estados ou UnidosComo – não seria há arriscado estudos e antiético ex detalhados sobre sua frequência no Brasil adquiridos por editoras menor grau, as capacidades cognitiva, trair as células do cérebro das crianças, cunha anna transtorno neurológicode comunicação e de interação– e são social, quatro vezesos pesquisadores mais comuns seentre valeram de uma al-

que desejem utilizá-los além da habilidade motora.meninos De causas do que entreternativa meninas. engenhosa para recriá-las em

ainda pouco conhecidas, o autismoA partir – de ou dentes laboratório. de leite doados Eles recuperaram algumas- ilustraçãO em livros didáticos por crianças com e célulassem autismo, do interior os de dentes que caem Diego Freire os transtornos do espectro do autismo, como preferem os especialistasgrupos liderados– inclui- pelosnaturalmente neurocien -na infância e usaram com quadros tão variados quantotistas obrasileiros autismo Patriciapostos Beltrão químicos para fazê-las regressar x Notícias, vídeos, clássico, marcado por dificuldadesBraga, da USP, seve e Alyssona um R. estado Muotri, mais versátil, a partir do ras de linguagem e de interaçãoda Universidade social, ou da Califórnia em San a síndrome de Asperger,NossoDiego, na qual nosbanco a Estados inteli- Unidos, confirmaram galerias de imagens e entes de leite que chegam ao que uma inflamação em células cerebrais laboratório dos pesquisadorese 2018 chamadas astrócitos pode estar associa- 50 z janeiro D de imagens podcasts Imagens do projeto “A fada do dente”, da ao desenvolvimento de uma forma Dna Universidade de São Paulopossui grave desse um transtorno. Mais importante: (USP), estão ajudando a conhecer me- ao menos em laboratório, o controle da lhor as alterações que podem ocorrer no vastoinflamação acervo nos astrócitos reverteu alte- xTodas as edições cérebro em algumas formas de autismo, rações que ela provoca nos neurônios, um conjunto de distúrbios de origemde asfotos células responsáveis por transmitir neurológica que se manifestam na in - e armazenar informações no cérebro e integrais com opção fância e podem prejudicar, em maior compostoou que se encontram de mais imaturas nessa menor grau, as capacidades cognitiva, forma de autismo. de comunicação e de interação social,temas variados de folhear na tela Como seria arriscado e antiético ex- além da habilidade motora. De causasligados trair as células do cérebro das crianças, ainda pouco conhecidas, o autismo – ou os pesquisadores se valeram de uma al- ou em dispositivos os transtornos do espectro do autismo,a ciênciaternativa engenhosa e para recriá-las em como preferem os especialistas – inclui laboratório. Eles recuperaram algumas quadros tão variados quanto o autismotecnologia células do interior de dentes que caem móveis clássico, marcado por dificuldades seve - naturalmente na infância e usaram com- annacunha ras de linguagem e de interação social, ou postos químicos para fazê-las regressar a síndrome de Asperger, na qual a inteli- a um estado mais versátil, a partir do

ilustraçãO x Edições traduzidas 50 z janeiro De 2018 para inglês e espanhol

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