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Judge : Homem-Lei

Luís Carlos Nogueira∗ Universidade da Beira Interior

1. "", filme de Danny Can- Mas, apesar do pragmatismo da norma e non que adapta um personagem de culto da da divinização da lei, a tendência do indiví- banda desenhada inglesa das últimas déca- duo é inevitavelmente (mesmo que se aceite das, apresenta-nos a sociedade humana no como suficientemente ordenada a convivên- seu nível mínimo de auto-regulação e, con- cia humana em função da força vinculativa sequentemente, num estado de extremo con- da moral ou da obrigatoriedade coerciva do trolo do indivíduo por uma corporação exte- direito, ou talvez por causa disso) para a rior, misto de entidade política, força policial desregulação, para a criação de situações de e estrutura judicial. difícil administração, aproximadamente de Das inúmeras batalhas que o ser humano caos - seja em função da operatividade das tem travado desde sempre (uma espécie de pulsões ou do enunciado e prática de deso- instância ontológica e disponibilidade prag- bediências. mática que o caracteriza de sobremaneira), São essas desobediências que ao homem um dos principais embates (talvez o princi- abrem possibilidades de auto-definição múl- pal) tem sido o da confrontação com o seu tiplas. A cada momento, colocado perante semelhante. Contraposto a esta constância cada acção específica, há sempre, pelo me- da luta individual ou colectiva, o trabalho nos, uma dualidade de opções: praticar da humanidade nas suas formas de organi- o mal/praticar o bem, fazer/não fazer, vi- zação política, por seu lado, tem sido não ver/morrer, lutar/condescender. O devir hu- mais que o esforço (organizar exige a conju- mano regula-se, se não pela imprevisibili- gação improdutiva de recursos, uma espécie dade, no mínimo por uma previsibilidade de custo sem retorno), a tarefa desmesurada, nunca completamente fechada. Para con- inacabada e insustentável de regulação dessa formar essa possibilidade da acção no sen- propensão, natural ou cultural (motivações tido da concretização de um fim ou de uma de sobrevivência, posse, poder, etc.), para o presumível essência que habitaria a humani- conflito. Ao indivíduo é imposta uma nor- dade, a política e a filosofia incutiram-nos matividade enquadrante (premissa básica da ou ficcionaram ideias mais ou menos fami- sociabilidade). Do indivíduo espera-se uma liares de Bem, de comunidade, de sociedade aceitação. ou mesmo de utopia. Ou seja, delimitações de trajecto, prescrições, pertinências, linhas ∗Abril 1998 de guia para uma transcendência inelutavel-

1 2 Luís Carlos Nogueira mente contingente. O contratualismo, o fu- mediação, o qual aplica sem escrúpulos, co- turo, a escrituração são algumas das fórmu- nhecedor de todas as leis, indiferente a ate- las do Destino. A tarefa pode ficar eterna- nuantes e imune a ambiguidades. É por isso mente incompleta, mas o seu trilho nunca se que julgar e punir confluem num ser do qual apaga. toda a emoção ou arbitrariedade são excluí- Estas construções, ideário que é objecto das como condição fundamental para poder de reconversão cíclica, são, no entanto, de- aplicar, sem erro possível, a pena adequada. masiados frágeis e, ao exporem essa fragi- Trata-se da procura de uma exactidão mate- lidade como evidência, convocam um senti- mática, uma espécie de profissão de fé abso- mento de liberdade (no sentido de denegação luta na mecânica jurisdicional. O arbítrio é, iminente, de rebeldia) tão mais apetecível e nesse sentido, tanto menor quanto toda a sen- sedutor quanto mais burocrática, restritiva se tença está devidamente estipulada nos livros apresenta a sua doutrina. A configuração ju- da lei. rídica ou moral torna-se então dissoluta, in- O que se ganha com a metodologia sumá- tolerável, prestes a ser rejeitada, reprimida, ria, abreviada, de Dredd? Antes de mais, caduca, indiferente. concentrando funções, encurta-se o tempo 2. Judge Dredd é uma entidade onde são que a averiguação policial e a tramitação pro- inseparáveis os níveis judiciais (acusação, cessual implicam, tempo tão mais necessário julgamento, sentença, execução) de adminis- quanto os juizes actuam numa fictícia metró- tração do castigo àqueles que transgridem pole ( 1, um aglomerado de cente- a prescrição accional numa sociedade onde nas de milhões de habitantes resultante da fu- toda e qualquer acção está juridicamente pre- são das cidades da costa leste dos EUA, que vista (e onde essa minuciosa prescrição le- apesar da sua hiperbólica dimensão se revela gislativa não consegue operar). Contra o des- exígua), num mundo onde o caos é a figura prezo que o cidadão dedica à lei, aventura-se na qual se inscreve e, de certa forma, se go- a concretização humana da mesma, concen- verna a vida e a convivência/conflitualidade trando num único ser (dispositivo) a respon- dos cidadãos nesse mesmo espaço - daí a sabilidade da sua implementação. morte, se necessária. Na margem social, re- Júri, juiz e executor confundem-se no acto servada às enormes hordas cosmopolitas e de punição do delito numa única figura, Re- excluídas, não há racionalidade nem estabili- presentação e Presença da ordem. Arbitrá- dade. Em face da penúria (de emprego, bens rio ou cirúrgico, o seu modo de acção é, por consumíveis, assumpção moral), a confron- suposição, legítimo. "Eu sou a Lei"é o seu tação armada é uma constante, uma inevi- mais elevado mandamento, e Dredd assume- tabilidade, a desordem é a primeira lei, na- se (crê-se) uma instância terminal que nos tureza adormecida do devir urbano aqui em casos mais extremos não permite apelo ou vigília permanente - a justiça estaria, neste remissão possível - somente a condenação estado de permanente transgressão, em rei- à morte. Dredd é a mais material das figu- terado atraso, sem resposta possível. Isolar ras da Justiça, excluindo o institucionalismo focos de desordem, medida prisional por ex- processual da sua aplicação, aproximando o celência aqui levada a volumes desmesura- criminoso do abstraccionismo legalista sem dos (quarteirões encarcerantes), já não basta.

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Judge Dredd, um mito negativo entre os todo excluída mas assume antes um valor de criminosos da sua metrópole, assume a ló- acção: "eu sou a lei- lei gloriosa, fé cega que gica e a ética da generalidade dos super- porá o próprio Dredd encurralado num pro- heróis: seres que, por um ou outro motivo, cesso de acusação injusto mas que ele não se excluem do espaço social, nem fora da lei pode contrariar. nem a ela absolutamente obedientes (Dredd Nesta figura e no mundo retratado no filme seria, neste aspecto, um caso de certa forma não há qualquer desejo ou espaço para a se- distinto), que desenham para si mesmos uma paração de poderes. Dredd é um projecto ética e um código de conduta ao qual, e ape- radicalmente novo. Nele reside uma crença nas a ele, devem respeito. São a encarnação plena das mais altas instâncias governativas (fantasmagórica, é certo, e viril) de uma es- na depuração genética e intelectual de um ser pécie de deus de justiça infalível na qual a que, mais do que criado, é o resultado de um sociedade pode rever-se e que deverá, mais cálculo laboratorial, supostamente capaz de do que simbolizar ideias de Bem, agir efi- decidir infalivelmente, com total correcção, ciente e exemplarmente contra o crime que uma vez que transporta em si o que de Bom ela por si mesma não está habilitada a con- e de Bem as figuras tutelares da Ordem (os trariar. Tais entidades são, simultaneamente, Juízes) que o pariram traziam em si. a prova da fragilidade e da impotência das Neste mundo de ficção, o Homem tem no sociedades e das suas instituições policiais e espaço hiper-urbano e super-povoado o re- vigilantes para lidar com a desordem e a de- flexo gráfico (quase diríamos estético) e a linquência, carências que revelam uma espé- materialidade de uma configuração social da cie de maldição inescapável de que eles são o qual a secreta utopia de uma sociedade da inverso e a superação: esses super-heróis são fraternidade e da perpetuação da bondade poderosos (normalmente apenas um pouco está completamente arredada. Podemos adi- mais que os criminosos, para nos provar que vinhar a solidão de cada ser humano no es- as forças maléficas e benéficas praticamente paço estranho (infra-humanidade, purgató- se equivalem e evoluem na mesma propor- rio?) das grandes cidades-continente, espé- ção) e são, sobretudo, a figuração de um de- cie de selva ininterrupta ou Babel sobre a sejo, a materialização de um poder sonhado qual nenhum deus já quer descer para cor- (ou múltiplos poderes: imortalidade, impon- rigir ou abençoar pois, adivinhamo-lo, não derabilidade, omnividência, telepatia, muta- detém sequer o poder de a destruir. Numa ci- ção biológica ou sobrenatural, imutabilidade dade que cresce por si, como um organismo moral) pelo homem comum que a vulnerabi- indomado, a entropia é o único modo de a lidade carnal e ética não lhe possibilitam. descrever e explicar. A arbitrariedade indi- Contra as estratégias institucionais de po- vidual abdica da comunicação ou da política der e administração, ou melhor, conden- universal para se dar como concertação de sando todas essas estratégias, Dredd é sobre- interesses grupais, onde o conflito pode to- tudo um aplicador (operador), alguém para mar várias formas que podem ir da sobrevi- quem o julgamento e a punição se inscrevem vência ao egoísmo, do territorialismo à gra- num processo extremamente sumário e con- tuitidade. tínuo, e do qual a subjectividade não está de 3. Que ser se pode substituir a Deus num www.bocc.ubi.pt 4 Luís Carlos Nogueira mundo onde a primeira e inevitável carência consciência"elevadíssimos e a sua natureza é a de ordem? Só um ser nascido da mais torna-se quase orgânica e personalizada. Se pura, benigna, vontade e do saber mais expe- as armas utilizadas pelos marginalizados na rimentado (com o discernimento para equa- sua constante luta armada, nas suas tarefas cionar, sem erro, misericórdia e crueldade) de terrorismo e carnificina permanente pos- que o homem conseguiu subtrair da sua his- suem já um elevado poder destruidor, mas tória de recontros e oposições. Uma fabri- de certo modo mantendo ainda uma estável cação absolutamente científica onde a cate- familiaridade, as armas utilizadas pelos jui- goria da humanidade só pode ser medida de zes quase se furtam à nossa imaginação: elas dois modos não exclusivos - não mais que não são já um prolongamento do corpo mas um resíduo ou que um excesso: Judge Dredd integram-se nele como peças híbridas, tecno- e Rico, gémeos, são as faces antagónicas (ca- logia e organismo em contacto e interrelação ricaturas ou sermões?) de um mesmo risco. - só uma pessoa pode usar determinada arma A saber: a tecnologia e o conhecimento que porque é através do reconhecimento do có- podem criar o juiz mais imperturbável po- digo de ADN que ela se torna operacional dem também criar o mais nefasto ou ganan- (importa aqui talvez referir que tem sido no cioso criminoso; um só existe porque é lem- campo da BD, impalpável e multi-possível, brado (ou requisitado) pelo outro. Se um que mais se tem "pensado"e imaginado o al- se reclama a vida, Rico, orgulhosa e exacer- cance, poder e natureza das armas e dos seres badamente (des)humano, o outro assume-se que povoam as suas narrativas). como a lei (Dredd: alteridade, mediação). A velha e saudosa imagem do pistoleiro Podíamos ver esta parábola como o reino do do Oeste ou do snipper mais extremoso ga- pleno artifício, um mundo onde um holo- nham aqui contornos exponenciais: já não grama pode ser mortífero, se não estivesse é uma identificação exterior (afectiva) entre a nossa realidade neste fim de século satu- utensílio e utente, feita de um conhecimento rada de esboços destas ficções mais ou me- proveniente da experiência, que aqui dá sen- nos prováveis. É essa capacidade escalonada tido ao conjunto - é antes do interior do pró- e utópica de usar a tecnologia como instru- prio organismo, da mais profunda singulari- mento para atingir todas as metas que faz, dade biológica que vêm os mecanismos de num momento de desespero, um juiz-chefe fusão entre homem e arma. Os níveis de in- enunciar com plena clareza essa visão da po- junção entre máquina e corpo atingem então tência que habita a tecnologia: "play god", parâmetros extremamente elevados, mas não como se o excesso de saber (e de poder) irreais. Importaria, de certo modo, a este res- fosse uma ultrapassagem irremediável (irre- peito, reconstituir o modo de inscrição e evo- versível) dos próprios limites do humano: ao lução das armas na história da humanidade homem não estaria reservada qualquer via de desde o arco e a flecha até ao míssil mais so- regresso desse lugar diabólico da tecnopolis fisticado e às armas imaginárias enunciadas e da tecnicização antropológica. em filmes e narrativas várias e mesmo avan- A alta tecnologia é, aliás, um dos aspec- çar o último desafio a vencer: a incorpora- tos mais interessantes que povoam esta obra: ção da arma no corpo, tornando-os unidade a computadorização atingiu níveis de "auto- bélica absoluta.

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O belicismo é uma espécie de segunda los úteis, retóricas e argumentações, persua- pele estética deste mundo sobrelotado, um sões e fraudes. mundo de gangsterismo e agressividade À escassez de tempo junta-se a burocrati- quase animal (os bens e o emprego escas- zação em catadupa das relações sociais, uma seiam e guerrear é a actividade principal) espécie de governação total das experiências, onde a impotência das autoridades instituici- resultante da tentativa de implementação de onalizadas é irremediável e a ideia de cidada- uma nova ordem: a tradição legalista e es- nia não passa de um continente para uma re- criturária que, pelo menos, desde Moisés se tórica vazia. A paz é um anseio, a guerra uma assume como modelo de solidificação da jus- perpetuação. Incêndios, "riots", explosões, tiça encontra-se aqui num patamar altíssimo guerras de quarteirões, apelos à reciclagem (tudo está discriminado e registado no livro alimentar, neons, miscegenização étnica são que Dredd simbolicamente venera e enal- elementos de uma espécie de iconografia que tece, com as suas cláusulas, artigos, arruma- sintetiza ou descreve este mundo epidemica- ção numérica, etc.). mente violento em busca obsessiva e, obriga- Há ainda um esforço estratégico de vigi- toriamente, frustrada de pacificação. O pa- lância permanente, uma espécie de radiogra- raíso, de tão afastado, nunca chegará talvez fia pormenorizada de todos os espaços urba- a ser mencionado ou, se calhar, nem mesmo nos, método que, apesar da sua constância, recordado - o passado e o futuro são cortinas se revela impotente. O sonho da omnividên- negras, intransponíveis, excertos de um devir cia está bem patente na distribuição zonal e mergulhado na completa desestabilização da sectorial da população - de entre essas zonas forma das relações humanas. uma há que pelo seu carácter segregacionista 4. Numa sociedade sempre à beira da se destaca: a Terra Amaldiçoada, local es- implosão e do extermínio, a justiça vê-se trangeiro na medida em que neste conceito debilmente colocada entre a facultação da resiste ainda uma possibilidade de signifi- liberdade e a inevitabilidade da repressão: cação, refúgio (ou depósito) dos mais peri- as execuções sumárias tornam-se "inevitá- gosos marginais, habitado, entre outros, por veis"(como diz Dredd, resguardado pela sua mutantes impiedosos e selváticos canibais. dignidade inquebrantável). A ética é uma Uma espécie de cidade pretensamente ine- questão de oportunidade, refere Rico no seu xistente ou manifestamente ignorada, contí- mais elementar realismo. gua com Megacity mas cuidadosamente in- A escassez de tempo para averiguação comunicável, materialização de uma certa de culpas e inocências institui a pena capi- concepção de mundo apocalíptico (e lugar tal como medida recorrente numa sociedade onde os juizes cumprem um dos seus últi- onde a tolerância está no seu grau último mos destinos: levar a paz aos bárbaros, a de desvanecimento e onde a confiança não esse Inferno inóspito onde resta abandonado é mais que um fantasma bondoso mas em- o ícone inanimado de uma ideia em tem- palidecido. "Sou inocente", diz o criminoso, pos esvoaçante: a estátua da Justiça com inevitavelmente - "sabia que ias dizer isso", a sua venda nos olhos, mutilada como um riposta Dredd invariavelmente. Não há pala- cadáver cuja integridade vai sendo carco- vras verdadeiras ou sinceras, apenas vocábu- mida). Em certo sentido, também aqui, no www.bocc.ubi.pt 6 Luís Carlos Nogueira universo da mais radical excomunhão, esta- ríamos perante duas imagens de um mesmo conceito: Megacity não seria mais que o ou- tro lado, hiper-habitado e dinâmico, sôfrego mas não de última penúria, um inverso da Terra Amaldiçoada. Num mundo de ruínas e desilusões, de fac- ções, ostracismo e detritos, Dredd tem re- pulsa até pelas palavras: ele não quer ou- vir o que o acusado tem para dizer, numa inclemência por vezes bem próxima do fas- cismo. Juntamente com as palavras, Dredd afasta também as emoções porque a Justiça não deixa caber na sua operatividade a pai- xão e qualquer desordem afectiva traz em si um capital de perturbação cuja mensurabili- dade e amanho são difíceis - como se com- prova no embate entre Dredd e o seu nega- tivo, Rico, em que aquele se vê obrigado a escolher entre a carne fraterna (o sangue) e o Livro. Só na solidão reside a imunidade à culpa e a devoção da justeza. Dredd não é mais que a sua missão, fora da qual não lhe advém qualquer sentido e carece de preen- chimento. Ele é lei, puramente lei, intransi- gentemente lei, apenas lei.

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