O Comércio De Marfim No Congo E Loango, Séculos XV – XVII Anais Do Museu Paulista, Vol
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Anais do Museu Paulista ISSN: 0101-4714 [email protected] Universidade de São Paulo Brasil de Carvalho Soare, Mariza "Por conto e peso": o comércio de marfim no Congo e Loango, séculos XV – XVII Anais do Museu Paulista, vol. 25, núm. 1, enero-abril, 2017, pp. 59-86 Universidade de São Paulo São Paulo, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=27351198005 Como citar este artigo Número completo Sistema de Informação Científica Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto http://dx.doi.org/10.1590/1982-02672017v25n0103 "Por conto e peso": o comércio de marfim no Congo e Loango, séculos XV – XVII1 Mariza de Carvalho Soares2 1. Este texto integra a pes- quisa do meu projeto de produtividade do CNPq (2014-2017) e dialoga com grupo de pesquisa sobre RESUMO: O artigo descreve a implantação do comércio de marfim na costa centro-ocidental marfins africanos, em que africana entre 1490 e 1620. Essa região tem sido estudada do ponto de vista do comércio se integra, reunido no pro- jeto “Marfins Africanos no atlântico de escravos, mas não existem estudos dedicados ao marfim. O comércio do marfim Mundo Atlântico: uma rea- bruto aparece na historiografia como referência passageira. Já a circulação do marfim lavrado valiação dos marfins luso- -africanos”, financiado atra- tem sido estudada a partir de objetos encontrados nos museus europeus, ponto final de uma vés da FCT – Fundação para longa cadeia diplomática e comercial. Tomando como referência o comércio de marfim nos a Ciência e a Tecnologia, portos da costa do Congo e Loango, o texto estabelece o contexto africano de acesso ao PTDC/EPHPAT/1810/2014, coordenado pelos professo- marfim antes do crescimento do comércio de escravos na região, destacando sua importância res José da Silva Horta (Uni- no conjunto das atividades econômicas da época. versidade de Lisboa), Peter Mark (Wesleyan University) e Vanicleia Silva Santos PALAVRAS-CHAVE: Marfim. Loango. Comércio. Congo. África centro-ocidental. (UFMG). Agradeço aos pa- receristas da revista e a Joseph Miller pela leitura ABSTRACT: This article describes the organization of the ivory trade in West Central Africa do texto, correções e suges- between 1490 and 1620. The region has been scrutinized by scholars working on the Atlantic tões enviadas. slave trade, but not on the ivory trade. Carved ivory studies, by the way, approach art objects 2. Professora do Programa that correspond to the end of a long chain of diplomatic and commercial exchanges, frequently de Pós-graduação em Histó- without exact provenance and date of the referred objects. The paper focuses on the trade of ria da UFF, curadora da co- leção Africana do Museu raw ivory in Loango and Congo presenting the context of trade, and its commercial relevance Nacional e pesquisadora Id among other commodities in order to demonstrate the importance of the ivory trade in those ports do CNPq. E-mail: <marizac before the growth of the slave trade. [email protected]>. KEYWORDS: Ivory. Loango. Trade. Kongo. West Central Africa. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.25. n.1. p. 59-86. jan.-abril 2017. 59 3. Em 1841 foi publicada na Introdução França a Encyclopédie du commerçant. Seus verbetes foram escritos por diversos Até o século XIX dava-se o nome de marfim (ivoire, ivory) apenas aos autores sob a direção geral de Gilbert Guillaumin, diretor da segmentos de dentes de elefante, fossem eles brutos ou lavrados. O dente inteiro obra, que assinava apenas M. (monsieur) Guillaumin. Para e o osso da mandíbula eram chamados “marfil”. A palavra marfil deriva de fil, que efeitos de citação, indico a em árabe quer dizer elefante.3 Desde a Antiguidade há registro da presença de direção da obra: Guillaumin (1841, p. 1.213); Bluteau marfim de elefante africano na Europa, indicando sua inserção no comércio (1712-1728. v. 5); Silva, Anto- transcontinental através do Mediterrâneo.4 No Renascimento o marfim foi uma nio Moraes e (1813, v. 2). matéria-prima pouco explorada e só a partir do século XV voltou a ser valorizado, 4. No sítio arqueológico de especialmente na França. Dieppe (porto francês da Normandia) abastecia grande Valencia de la Concepción 5 (Sevilha, Espanha) foi en- parte da Europa com mercadorias ultramarinas, inclusive o marfim africano. contrada uma oficina onde O cronista português Gomes Eanes de Zurara (1410-1474) narra as se trabalhava marfim de elefante asiático na primei- primeiras décadas da exploração da costa africana. Descreve os elefantes, sua ra metade do terceiro mi- lênio antes da era comum. carne e os artefatos feitos com seu couro, assinalando que “os ossos não se Ver Calvo et al. (2013, p. aproveitam em nenhuma coisa, antes os lançam longe”. Assim, já no início da era 1579-1592). moderna, o marfim africano entra regularmente em Portugal, através do circuito 5. Guillaumin (1841, p. atlântico.6 Complica sua identificação e percursos o fato de boa parte das esculturas 1.213). vindas de Goa ser lavrada com marfim de Moçambique.7 O marfim costuma ser 6. Zurara (ou Azurara) foi cro- classificado em vários tipos segundo o tamanho, a cor (e mudança de cor), a nista da Casa de Bragança. Zurara (1973). António Brá- densidade e condições de preservação (ressecamento). A Europa preferia o marfim sio, editor da maior compila- bruto africano por ser mais claro, menos denso e amarelar menos que o asiático, ção de documentos africanos, 8 transcreve esse trecho e ano- facilitando o entalhe e polimento. Segundo a Encyclopédie du commerçant, o ta que Zurara tinha conheci- mento do comércio de mar- marfim da costa atlântica africana costuma ser dividido em dois grupos: o marfim fim, feito pelos árabes no do Senegal, que geralmente é branco, mas que frequentemente apresenta Marrocos. Brásio (1981- 1988). A obra referida está rachaduras em consequência das condições do clima e transporte (como o marfim composta em três séries (I, II, do Egito);9 e o marfim da Guiné (Serra Leoa e rio Benim), o mais procurado. III), com volumes no interior de cada série (1, 2, 3), e em A Encyclopédie du commerçant menciona ainda uma terceira área que cada volume há documentos chama de “Angola”, à qual dá pouca atenção. Na costa atlântica centro-ocidental numerados (doc. 1). A citação completa das três séries está os grandes dentes (vindos da savana) são mais raros; ali se encontram com mais nas referências. O comentário facilidade dentes de elefantes da floresta medindo, em média, dois ou três pés citado está em MMA-II, v. 1, doc. 7, nota 4, p. 30. (entre 60 e 90 centímetros). Na verdade, Angola nunca foi um importante 7. As primeiras remessas fornecedor de marfim; o fornecimento se concentrava nos portos ao norte do rio de marfim africano para a Zaire, sendo o principal deles o Loango.10 Esse artigo mostra que o mais acurado Índia datam pelo menos de 1505, quando os portu- é falar em três e não em duas grandes áreas de comércio e produção de objetos gueses instalaram uma fei- de marfim na costa atlântica africana. A terceira, que aqui demarco como a costa toria na Ilha de Moçambi- que. Esse comércio se do Loango e Congo (parte do Gabão, República Popular do Congo, República manteve ao longo do tem- Democrática do Congo e Angola), tem sido menosprezada. po. Para o século XVI, ver Axelson (1973). Sobre a arte africana em marfim, merecem destaque os trabalhos de William Fagg.11 Na sequência, Ezio Bassani e outros vêm dando continuidade ao 8. Usa-se também o termo marfim para os dentes de tema, sob diferentes abordagens. Detenho-me aqui aos trabalhos dos historiadores hipopótamo que chegam a 12 pesar 3 quilos e apresentam Peter Mark e José Horta. O trabalho desses autores se concentra no estudo de um marfim muito branco objetos de marfim encontrados na Europa, ponto final de uma longa cadeia que não escurece. Ver diplomática e comercial que levou o marfim africano aos consumidores e 60 Anais do Museu Paulista. v. 25. n.1. jan.-abril 2017. colecionadores europeus. Curiosamente, o comércio do marfim não despertou o Guillaumin (1841, p. 787) e Hecht (2000). interesse dos historiadores africanistas que vêm se dedicando ao circuito comercial do ouro, dos escravos, dos tecidos e de outras mercadorias. Meu propósito neste 9. Guillaumin (1841, p. 1.213). artigo é justamente estabelecer o contexto de acesso ao marfim na costa do Loango 10. Por esse motivo as pre- e Congo, da chegada dos portugueses ao início do século XVII. sas esculpidas do Loango Do ponto de vista da história do continente africano, o texto preenche são geralmente pequenas. Na página do Brooklyn uma lacuna historiográfica. Autores consagrados da historiografia africanista com Museum consta um dente obras que analisam a presença europeia na África centro-ocidental no período aqui lavrado de 99,1 cm de com- primento (número 35.679), abordado, como David Birminghan, Ann Hilton, Phillys Martin e Jan Vansina, identificado como Vili (co- abordam tangencialmente o tema. Essa pouca atenção deriva não de um descaso, merciantes do Loango). Há de se distinguir entre as mas do recorte estabelecido por esses autores que privilegiam o impacto (maior ou presas da floresta e as da menor) do comércio de escravos junto aos povos africanos.13 savana, através da floresta, trazidas pelas caravanas Em 1482, por ocasião da construção do Castelo da Mina (atual Vili. Não encontrei ima- gens ou descrições de mar- Gana), os negócios ali estabelecidos pelos portugueses já abarcavam ouro, fim lavrado no Loango no marfim e escravos.14 No mesmo ano o explorador Diogo Cão chegou ao rio século XVII.