Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) – Biblioteca do ILC/ UFPA-Belém-PA

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Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários (4.: 2013: Belém, PA)

[Anais do] IV Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários [recurso eletrônico] / Organização: Germana Sales, [et al.]. ---- Belém: Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA, 2013. 626p. : il.

Modo de acesso: Congresso realizado na Cidade Universitária Professor José da Silveira Netto da Universidade Federal do Pará, no período de 24 a 27 de abril de 2013. ISBN: 978-85-67747-01-9 1. Lingüística – Discursos, ensaios e conferências. 2. Literatura – Discursos, ensaios e conferências. I. Sales, Germana, org. II. Título.

CDD -22. ed. 410

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COMISSÃO ORGANIZADORA Dra. Marília de Nazaré de Oliveira Ferreira Presidente da comissão organizadora Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras

Dra. Germana Maria Araújo Sales Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras Vice-Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras

Ma. Cinthia de Lima Neves Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Linguísticos)

Ma.Alinnie Oliveira Andrade Santos (UFPA) Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras Msc. Edvaldo Santos Pereira (UFPA)

Ma. Eliane Costa (UFPA) Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Linguísticos)

Ma. Izenete Nobre (UFPA/UNICAMP)

Jaqueline de Andrade Reis (UFPA)

Juliana Yeska (UFPA) Discente da Faculdade de Letras

Márcia Pinheiro (UFPA) Discente da Faculdade de Letras

Ma. Marília Freitas (UFPA) Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Linguísticos)

Sara Ferreira (UFPA) Discente da Faculdade de Letras

Ma.Silvia Benchimol (UFPA/Campus de Bragança)

Ma. Simone Negrão Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Linguísticos)

Thais Fiel (UFPA) Discente da Faculdade de Letras

Thiago Gonçalves (UFPA/UERJ)

Veridiana Valente Pinheiro (UFPA)

Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Literários)

Wanessa Regina Paiva da Silva (UFPA/UERJ)

COMISSÃO CIENTÍFICA Prof. Dr. Abdelhak Razky (UFPA) Prof. Dr. Alvaro Santos Simões Junior (UNESP) Profa. Dra. Ana Cristina Marinho (UFPB) Profa. Dra. Andréia Guerini (UFSC) Profa. Dra. Antônia Alves Pereira (UFPA/Altamira) Profa. Dra. Aurea Suely Zavam (UFC) Prof. Dr. Benjamin Abdala Júnior (USP) Profa. Dra. Carmem Lúcia Figueiredo (UERJ) Prof. Dr. Daniel Serravalle de Sá (UFPA/Marabá) Prof. Dr. Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti (UFBA) Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho (UFRJ) Profa. Dra. Fernanda Maria Abreu Coutinho (UFC) Profa. Dra. Franceli Aparecida da Silva Mello (UFMT) Profa. Dra. Gláucia Vieira Cândido (UFG) Prof. Dr. Hélio Seixas Guimarães (USP) Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo (UFRN) Prof. Dr. José Carlos Chaves da Cunha (UFPA) Prof. Dr. José Horta Nunes (UNICAMP) Prof. Dr. José Sueli Magalhães (UFU) Profa. Dra. Josebel Akel Fares (UEPA) Profa. Dra. Juliana Maia de Queiroz (UNESP) Prof. Dr. Lucrécio Araújo de Sá Júnior (UFRN) Prof. Dr. Marco Antonio Martins (UFRN) Profa. Dra. Maria da Glória Corrêa Di Fanti ( PUC-RS) Profa. Dra. Maria de Fátima do Nascimento (UFPA) Profa. Dra. Maria Elvira Brito Campos (UFPI) Profa. Dra. Mariângela Rios de Oliveira (UFF) Profa. Dra. Marly Amarilha (UFRN) Profa. Dra. Milena Ribeiro Martins (UFPR) Profa. Dra. Odalice de Castro Silva ( UFC) Prof. Dr. Otávio Rios Portela (UEA) Prof. Dr. Rauer Rodrigues Ribeiro (UFMT) Prof. Dr. Ricardo Pinto de Souza (UFRJ)

Profa. Dra. Rosana Cristina Zanelatto Santos (UFMS) Profa. Dra. Rosângela Hammes Rodrigues (UFSC) Profa. Dra. Silvia Lucia Bijongal Braggio (UFG) Profa. Dra. Simone Cristina Mendonça (UFPA/ Marabá) Profa. Dra. Socorro Pacífico Barbosa (UFPB) Profa. Dra. Soélis Teixeira do Prado Mendes (UFPA/ Marabá) Profa. Dra. Solange Mittmann (UFRGS) Profa. Dra. Stella Virginia telles de Araújo Pereira Lima (UFPE) Profa. Dra. Sulemi Fabiano Campos (UFRN) Profa. Dra.Tânia Regina Oliveira Ramos (UFSC) Profa. Dra. Teresa Cristina Wachowicz (UFPR) Profa. Dra. Walkyria Alydia Grahl Passos Magno e Silva (UFPA) Profa. Dra. Vanderci de Andrade Aguilera (UEL) Profa. Dra. Regina Celi Mendes Pereira da Silva (UFPB/CNPq

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ Prof. Dr. Carlos Edilson de Almeida Maneschy Reitor

Prof. Dr. Horacio Schneider Vice-Reitor

Profa. Dra. Marlene Rodrigues Medeiros Freitas Pró-Reitoria de Ensino e Graduação

Prof. Dr. Emmanuel Zagury Tourinho Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação

Prof. Dr. Fernando Arthur de Freitas Neves Pró-Reitoria de Extensão

Prof. MSc. Edson Ortiz de Matos Pró-Reitoria de Administração João Cauby de Almeida Júnior Pró-Reitoria de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal

Prof. Dr. Erick Nelo Pedreira Pró-Reitoria de Planejamento

INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO Dr. Otacílio Amaral Filho Diretor Geral Dra. Fátima Pessoa Diretora Adjunta

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Dra. Germana Maria Araújo Sales Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras

Dra. Marília de N. de Oliveira Ferreira Vice-Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras

Universidade Federal do Pará Instituto de Letras e Comunicação Programa de Pós-Graduação em Letras

Cidade Universitária Professor José da Silveira Neto Rua Augusto Corrêa, 01, Guamá. CEP 66075-900, Belém-PA Fone-Fax: (91) 3201-7499 E-mail: [email protected] Site: www.ufpa.br/mletras

APRESENTAÇÃO IV CIELLA

É com imensa satisfação que publicamos os textos dos participantes do Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) em sua quarta edição. A primeira versão do evento ocorreu em 2006, no então Curso de Mestrado em Letras (CML). O evento consolidou-se, em edição bianual, e hoje, iniciado pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará, tem como objetivo principal reunir estudiosos das áreas de Linguística e Literatura e de áreas afins para discutir e partilhar os resultados de suas pesquisas e dos trabalhos desenvolvidos, no âmbito de seus programas de pós-graduação e faculdades de letras, envolvendo estudantes de graduação e de pós-graduação. O caráter transversal e interdisciplinar do CIELLA está circunscrito à apresentação de trabalhos e debates nas áreas de Linguagem, Línguas, Literaturas, Culturas e Educação sob vários aspectos. Em 2013, o IV Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (IV CIELLA), ocorreu no período de 23 a 26 de abril de 2013, sob o tema FRONTEIRAS LINGUÍSTICAS E LITERÁRIAS NA AMÉRICA LATINA. Nessa edição, o evento coroa a criação recente do nosso Curso de Doutorado e superamos todas as expectativas, quando a comissão organizadora do evento recebeu um público aproximado de 1200 pessoas, entre estudantes de graduação, de pós-graduação, professores e pesquisadores de instituições locais, nacionais e internacionais, professores da Educação Básica (Ensino Médio e Ensino Fundamental) e profissionais de áreas afins. O Congresso contou com renomados convidados internacionais, considerados referência em suas especialidades, e convidados nacionais e locais que contribuíram para que o evento fosse bem sucedido. O sucesso do evento deveu-se, também, à programação científica que reuniu cerca de oitocentos trabalhos da área de Letras e Linguística, em várias modalidades – Conferências, Mesas Redondas, Minicursos, Simpósios, Sessões de Comunicação, Pôsteres, e Relatos de experiência. A presente publicação, que reúne os trabalhos oriundos do IV CIELLA, conta com 268 textos de docentes e de alunos de graduação e de pós-graduação brasileiros. São 109 textos de Estudos Linguísticos e 159 textos de Estudos Literários, resultantes de pesquisas em desenvolvimento na área de L&L.

A aquiescência do Congresso pela comunidade acadêmica levou-nos a organizar um evento de grande envergadura para as áreas de Letras e de Linguística e, nesta quarta edição consolidamos a internacionalização do evento, que contou com nomes de grande vulto, como Inocência Matta, Inocência Mata (); Rosário Alvarez (Espanha); Rebecca Martinez (Estados Unidos); Enrique Hamel (México); Christine Sims (Estados Unidos); Pilar Valenzuela (Estados Unidos); Rubem Chababo (Argentina); Alicia Salomone (Chile) e Host Nitchack (Chile). Para a concretização do evento, agradecemos o fomento recebido da CAPES e CNPq, além do apoio irrestrito da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, na figura do Pró-Reitor, Prof. Dr. Emmanuel Zagury Tourinho; do Instituto de Letras e Comunicação, na pessoa do Diretor Otacílio Amaral Filho, a quem devemos infindos agradecimentos. A concretização do evendo deveu-se, certamente, ao apoio financeiro, mas ressaltamos a efetiva participação da secretaria, formada por alunos de graduação e de pós- graduação, que cuidaram com esmero para a ocorrência do IV CIELLA. Nosso agradecimento especial aos alunos que conduziram com eficiência a secretaria: Eliane Costa, Márcia Pinheiro, Alinnie Santos, Cinthia Neves, Thais Fiel, Sara Vasconcelos, Wanessa Paiva, Veridiana Valente, Edvaldo Pereira e Jaqueline Reis. Também aos professores do PPGL, alunos e monitores do evento nosso muito obrigada! O CIELLA foi um momento de congregar forças, mas também se configurou como espaço de apresentação não só da quantidade de trabalhos na área de Letras & Linguística, mas da qualidade desses trabalhos, que aqui estão reunidos.

A EXPERIENCIAÇÃO DO INSÓLITO EM ―O REFLEXO PERDIDO‖, DE E.T.A. HOFFMANN 15 ALAN FERREIRA COSTA ANTÔNIO MÁXIMO FERRAZ DAS PÁGINAS DE UM JORNAL PARA AS PÁGINAS DE UM LIVRO: MARQUES 2 DE CARVALHO REESCREVE UM CONTO 23 ALAN VICTOR FLOR DA SILVA GERMANA MARIA ARAÚJO SALES NARRATIVAS ORAIS DA ILHA DE MOSQUEIRO: MEMÓRIA E SIGNIFICADO 36 ALCIR DE VASCONCELOS ALVAREZ RODRIGUES IVÂNIA DOS SANTOS NEVES TRADUÇÕES PORTUGUESAS DE PAUL DE KOCK NO ACERVO DO GRÊMIO 47 LITERÁRIO PORTUGUÊS DO PARÁ ALESSANDRA PANTOJA PAES VALÉRIA AUGUSTI UM CANTO AOS QUATRO CANTOS: O PROCESSO DE UNIVERSALIZAÇÃO 57 DA NARRATIVA O CANTO DA MULHER LOIRA ALEXANDRE RANIERI REFLEXÕES CRÍTICAS ACERCA DO ENSINO DE LITERATURA EM SALA DE 75 AULA ALINE CRISTINA GARCIA LINHA DO PARQUE: O ROMANCE PROLETÁRIO DE DALCÍDIO JURANDIR 86 ALINNIE SANTOS MARLÍ TEREZA FURTADO A INSERÇÃO DA ESCRITA PÓS-COLONIAL NA PRODUÇÃO LITERÁRIA DE 96 DALCÍDIO JURANDIR ALMIR PANTOJA RODRIGUES ENTRE A HONRA E A CIVILIDADE EM O CORONEL SANGRADO 106 ANA CAROLINE DA SILVA RODRIGUES MARLÍ FURTADO O SALTO DA ÍNDIA: ―(RE)VISÕES DO CORPO DAS ÍNDIAS E NEGRAS‖ 116 ANA CHIARA SÉCULO XIX, TRADUZIR PARA EDUCAR: AS PRIMEIRAS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DAS FÁBULAS DE LA FONTAINE 126 ANA CRISTINA CARDOSO CLAUDIA BORGES DE FAVERI A CIRCULAÇÃO DA LITERATURA PORTUGUESA NO RIO DE JANEIRO 135 OITOCENTISTA: UM ESTUDO DAS REVISTAS CORREIO DAS MODAS (1839- 1840) E NOVO CORREIO DE MODAS (1852-1854) ANA LAURA DONEGÁ MÁRCIA AZEVEDO DE ABREU A TRANSFIGURAÇÃO POÉTICA DO CORPO NA LINHA-D’ÁGUA, 146 DE OLGA SAVARY ANDRÉA JAMILLY RODRIGUES LEITÃO ANTÔNIO MÁXIMO FERRAZ ALUÍSIO AZEVEDO: O TRABALHO LITERÁRIO-FOLHETINESCO COMO 155 ESTRATÉGIA DE SOBREVIVÊNCIA E POLÍTICA ILUSTRADA ANGELA MARIA RUBEL FANINI JOÃO HERNESTO WEBER LITERATURA, CIÊNCIA E TESTEMUNHO: NOTAS SOBRE A HIBRIDEZ 166 DISCURSIVA D‘OS SERTÕES, DE EUCLIDES DA CUNHA, E DA OBRA EM PROSA DE RUY DUARTE DE CARVALHO ANITA M. R. MORAES SENHOR DA LUZ: A LIBERTAÇÃO DECORRENTE DO CONHECIMENTO 175

ANTÔNIO ADAILTON SILVA ENSINO DE LITERATURA: O ROMANCE MACAU NO CONTEXTO DO 186 SISTEMA LITERÁRIO NACIONAL MARIA APARECIDA DE ALMEIDA REGO HUMBERTO HERMENEGILDO DE ARAÚJO NAEL ―CENTRO DE CONSCIÊNCIA‖ E ―ESPELHO POLIDO‖, A FIGURA DO 195 NARRADOR EM ―DOIS IRMÃOS‖, DE MILTON HATOUM ASSUNÇÃO DE MARIA SOUSA E SILVA HOMOAFETIVIDADE NA INFÂNCIA E RELAÇÕES DE PODER NA 205 PERSPECTIVA DO CONTO FREDERICO PACIÊNCIA BENEDITO TEIXEIRA FERNANDA MARIA ABREU COUTINHO A LIDA E O LIDADOR: PORTUGAL SOB O SIGNO DA GUERRA 215 BENJAMIN RODRIGUES FERREIRA FILHO O (DES)ENSINO DE LITERATURA NO ENSINO MÉDIO: LETRAMENTO 225 LITERÁRIO E MEDIAÇÕES DOS LIVROS DIDÁTICOS – CONSIDERAÇÕES INICIAIS BONFIM QUEIROZ LIMA PEREIRA MÁRCIO ARAÚJO DE MELO A FESTA PAGÃ: ANÁLISE E REFLEXÃO SOBRE ―DEUS E O DIABO NO RIO 234 DE JANEIRO‖ DE EDUARDO GALEANO BRENO PAUXIS MUINHOS MARIA DO SOCORRO SIMÕES AS MISSIVAS SOBRE A SECA NO IMPÉRIO: LITERATURA E HISTÓRIA NO 244 JORNAL A OPINIÃO. CAMILA M. BURGARDT ―RORAIMA É TERRA BOA‖: MIGRAÇÃO NORDESTINA E CORDEL EM 254 RORAIMA CARLA MONTEIRO DE SOUZA CORES COMO MEDIADORAS DO DIÁLOGO ENTRE ARTE E CIÊNCIA NA 265 CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM CLEICIANE MAIA FERREIRA ALLISON LEÃO MACUXANA: MEMÓRIA, IDENTIDADE E LITERATURA RORAIMENSE 274 CLEO AMORIM NASCIMENTO CARLA MONTEIRO SOUZA IMAGENS DA PRIMEIRA REPÚBLICA NO BRASIL EM LIMA BARRETO 286 CRISTIANE DA SILVEIRA CONFIGURAÇÕES MEMORIALISTICAS DO ESPAÇO FEMININO NOSPOEMAS 297 DOS BECOS DE GOIÁS E ESTÓRIAS MAIS DE CORA CORALINA CRISTIANE VIANA DA SILVA ALGEMIRA DE MACEDO MENDES CENAS PITORESCAS DA INFÂNCIA BRASILEIRA OITOCENTISTA NAS 311 CRÔNICAS DE RAUL POMPÉIA DANILO DE OLIVEIRA NASCIMENTO TODO O ENCANTO DIABÓLICO NA FIGURA DO BOTO AMAZÔNICO 321 DANTE LUIZ DE LIMA SALMA FERRAZ FICTIONAL REALITIES X FACTUAL LIES: THE AMAZON CROSSING SPATIAL 331 AND TEMPORAL BOUNDARIES DAVI SILVA GONÇALVES FAUS(ELIO)TINO: AS CONFLUÊNCIAS ENTRE ELIOT E FAUSTINO 340 DAYANA CRYSTINA BARBOSA DE ALMEIDA IZABELA GUIMARÃES GUERRA LEAL A VOZ DE UM VAQUEIRO EM MEMÓRIAS DO MARAJÓ 350 DÉLCIA PEREIRA POMBO

JOSEBEL AKEL FARES O JORNAL DIÁRIO COMO INSTÂNCIA DE DIVULGAÇÃO LITERÁRIA 358 EDSON TAVARES COSTA O PROCESSO DE TRANSCULTURAÇÃO COMO PRINCÍPIO DA ORALIDADE 369 EM ―BATUQUE‖, DE BRUNO DE MENEZES EDVALDO SANTOS PEREIRA JOSÉ GUILHERME DOS SANTOS FERNANDES A REPRESENTAÇÃO DO POBRE EM DALCÍDIO JURANDIR: A TRAJETÓRIA 377 DE EUTANÁZIO EM CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA JOSÉ ELIAS PEREIRA HAGE MARLI TEREZA FURTADO UM JOGO DE MEMÓRIAS: A CULTURA AFRO-BRASILEIRA NA LITERATURA 386 INFANTOJUVENIL ELISANDRA LORENZONI LEIRIA ROSANE MARIA CARDOSO A VIÚVA SIMÕES E A AUDÁCIA DESSA MULHER: UNIVERSOS 395 CONTRASTANTES ELÓDIA XAVIER A ESCRITA FEMININA EM CADERNOS NEGROS- OS MELHORES CONTOS 400 (1998): UM MERGULHO NO TERRITÓRIO SELVAGEM EMÍLIA RAFAELLY SOARES SILVA ALGEMIRA MENDES DE MACEDO ALFREDO SOB O PESO DA LUCIANA 411 ERIKA GUIOMAR MARTINS DE AQUINO NOS BASTIDORES DA RESISTÊNCIA: 419 JUÓ BANANÉRE NO CONTEXTO DE O PIRRALHO FRANCISCO CLÁUDIO ALVES MARQUES REPRESENTAÇÃO DO CÁRCERE NA POESIA DE RESISTÊNCIA DE 428 CHARLOTTE DELBO (FRANÇA) E LARA DE LEMOS (BRASIL) ÉVILA FERREIRA DE OLIVEIRA VIAGEM PELO ESPACITEMPO DO ENTRE-LUGAR 437 EM CANDOMBLÉ LISBOA FÁBIO RODRIGO PENNA MARIA TERESA SALGADO DE NARRATIVAS E CEREJAS: PARA SEMPRE, OUTRORA 448 FERNANDA COUTINHO ERMELINDA MARIA ARAÚJO FERREIRA A TRANSGRESSÃO NA OBRA DE HILDA HILST: A OBSCENA SENHORA D 460 FERNANDA SHCOLNIK ANA CHIARA IMAGINÁRIO E REPRESENTAÇÃO DO FEMININO NA NARRATIVA MÍTICA 468 DA MATINTAPERERA FERNANDO ALVES DA SILVA JÚNIOR MARIA DO PERPÉTUO SOCORRO GALVÃO SIMÕES MEMÓRIA DA ALTAMIRA DE ANTIGAMENTE 484 FERNANDO JORGE DOS SANTOS FARIAS ANDREIA LUCIANA KNISPEL CÁSSIA SILVA ARAÚJO REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO DA LITERATURA JUVENIL BRASILEIRA: 495 UM ESTUDO DA TRAJETÓRIA EDITORIAL DE A ILHA PERDIDA, DE MARIA JOSÉ DUPRÉ FERNANDO RODRIGUES DE OLIVEIRA MARIA DO ROSÁRIO LONGO MORTATTI ESPAÇO E IDENTIDADE: A PERCEPÇÃO DA PAISAGEM NA PRODUÇÃO 506 LITERÁRIA DE JOSÉ SARAMAGO

FLÁVIA ALEXANDRA PEREIRA PINTO MÁRCIA MANIR MIGUEL FEITOSA NOVAS CONFIGURAÇÕES FAMILIARES NA LITERATURA BRASILEIRA 518 INFANTO-JUVENIL: LEITURA DE MEUS DOIS PAIS, DE WALCYR CARRASCO, E DE OLÍVIA TEM DOIS PAPAIS, DE MÁRCIA LEITE FLÁVIO PEREIRA CAMARGO LITERATURA E HISTÓRIA NA AMAZÔNIA: A RETOMADA HISTÓRICA NO 531 ROMANCE GALVEZ, IMPERADOR DO ACRE, DE MÁRCIO SOUZA FRANCISCO EWERTON ALMEIDA DOS SANTOS MITOPAISAGENS E IDENTIDADES EM THE SLEEPERS OF RORAIMA, DE 544 WILSON HARRIS GABRIEL CAMBRAIA NEIVA ROBERTO CARLOS DE ANDRADE PRODUÇÃO CULTURAL EM RONDÔNIA: A SIGNIFICAÇÃO DO COTIDIANO 555 PELO VIÉS LITERÁRIO GEANEVALESCA DA CUNHA KLEIN GISÉLE MANGANELLI FERNANDES NARRATIVA ORAL EM DEBATE: UMA ANÁLISE ALÉM DAS PALAVRAS DO 567 NARRADOR MARIA GEORGINA DOS SANTOS PINHO E SILVA CARLA MONTEIRO DE SOUZA HERTA MÜLLER. AUTORA ROMENA? DE LÍNGUA ALEMÃ? PRÊMIO NOBEL? 579 GERSON ROBERTO NEUMANN A POESIA E SUA REPRESENTAÇÃO NOS JORNAIS 587 PARAIBANOS DO SÉCULO XIX GILSA ELAINE RIBEIRO ANDRADE ESTÉTICA DA RECEPÇÃO: POR UMA NOVA MANEIRA DE ESTUDAR OS 597 TEXTOS LITERÁRIOS NAS AULAS DE LITERATURA DO ENSINO MÉDIO GISLÃNE GONÇALVES SILVA ANDRÉ TEIXEIRA CORDEIRO O IMAGINÁRIO POÉTICO: UMA ANÁLISE A PARTIR DO POEMA HINOS 606 DIONISÍACOS AO BOTO, DO AUTOR JOÃO DE JESUS PAES LOUREIRO GLENDA DUARTE RENILDA BASTOS

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A EXPERIENCIAÇÃO DO INSÓLITO EM “O REFLEXO PERDIDO”, DE E.T.A. HOFFMANN Alan Ferreira Costa1 (UFPA) Antônio Máximo Ferraz2 (UFPA) (Orientador)

Resumo: A literatura fantástica tem como definição proposta por Tzvetan Todorov, a hesitação diante de acontecimentos ditos insólitos: ocorrências que quebram o cotidiano e deixam o individuo entre duas explicações possíveis, quais são, real ou sobrenatural. No entanto, a realidade com a qual tal evento rompe nunca é questionada. Faz-se necessário, portanto, pensar a relação real/insólito também pelo viés da questão do que é o real. O escritor alemão E.T.A. Hoffmann (1776 - 1822), em suas narrativas, pensa tal relação, como em seu conto O Reflexo Perdido (Das VerloreneSpiegelbild) (1815), no qual um personagem não se vê mais refletido em superfícies especulares. A obra, embora não seja uma das mais reconhecidas do escritor alemão, nos dá a base para os mais diversos questionamentos oferecidos pela chamada Literatura Fantástica. Partindo dos pressupostos da Teoria Literária a respeito Fantástico, o trabalho se põe na verdade como questionador dos rótulos impostos por tal teoria, mostrando que mais do que simplesmente constatar a presença ou não de elementos ―sobrenaturais‖, devemos nos perguntar sobre o significado deste enquanto representação dos limites real/irreal. Palavras-chave: Insólito; Real; Espelho; Hoffmann

Abstract:The Fantastic Literature is defined by TzvetanTodorov as the hesitation before the unusual events: the occurrences that break the everyday and leave the individual between two possible explanations, which are real or supernatural. However, the reality that such breaks an event is never questioned. It is necessary, therefore, to think about the real / unusual also trough by the question of what is real. The German writer E.T.A. Hoffmann (1776 - 1822), in his narratives, thinks about this, as in his short story The Lost Reflection (Das VerloreneSpiegelbild) (1815), in which a character does not see himself reflected in specular surfaces anymore. The tale, is not one of the most recognized masterpiece od this German writer, but it gives us the basis for various questions offered by the called Fantastic Literature. Based on the assumptions of Literary Theory about Fantastic, this article actually intents to educe questions about the labels imposed by this theory, showing more than simply checking for the presence or gap of the "supernatural" elements in a text,

1Mestrando em Estudos Literários pela Universidade Federal do Pará. Pesquisador no Núcleo Interdisciplinar Kairós – NIK. E-mail: [email protected] 2Prof. Adjunto da Graduação e do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Pará – UFPA; Coordenador Núcleo Interdisciplinar Kairós - NIK . E-mail: [email protected] 16 we should ask ourselves about the meaning of this elements while representation of the limitation between real / unreal. Keywords:Unsual; Real; Mirror; Hoffmann

O estudo da chamada literatura fantástica ainda se prende às definições propostas pela Teoria Literária, nas quais se definem as características das narrativas a partir de estrutura puramente textuais. Por exemplo, o que TzvetanTodorov define como pressuposto para um texto tido como fantástico é basicamente a não definição do que é real e o que não o é. Meu projeto preocupa-se em interpretar as obras como uma pergunta da própria obra sobre o que o real. E.T.A Hoffmann, considerado um dos destaques nesse tipo de narrativa, questiona em suas obras não só o que é o insólito, mas também o que é o real. Embora o insólito apareça como fenômeno na literatura através das mais variadas sensações, é através dos olhos que esta é apresentada de maneira mais exuberante. Mas, mais que simplesmente constatar a presença do olhar, devemos questionar o significado deste enquanto representação dos limites real/irreal. Dessa forma devemos percorrer a questão do que representa o espelho, do que seria o real, como acontece a experienciação do insólito na narrativa de Hoffman, e como esta mostra a abertura das questões. O Reflexo Perdido A narrativa O Reflexo Perdido (Das VerloreneSpiegelbild) (1815), de E.T.A Hoffmann, conta a história de um jovem alemão, Erasmo Spikher, que, durante uma estada na Itália, conhece uma florentina chamada Giulietta por quem se apaixona perdidamente, esquecendo a sua mulher e seu filho na Alemanha. Após uma série de desentendimentos, Erasmo é obrigado a fugir da Itália. Esta separação desespera a Erasmo e a Giulietta. Então abraça a Erasmo e pede: ―Ah! se ao menos – sussurrou ela de forma íntima – poderias deixar teu reflexo, e assim ele seria sempre meu e tu serias sempre meu. [...]- Meu reflexo!... quepensas?... Meu reflexo!... – balbuciou Erasmo, desconcertado - Mas como poderias se ele anda comigo a qualquer lugar? - Como podes recusar? – Nada me restará da lembrança, nem mesmo esta imagem que me sorri do fundo do espelho! Nem mesmo a tua imagem pode ficar comigo me acompanhar na pobre vida? (HOFFMANN)3

3 As citações da obra O Reflexo Perdido, foram feitas com base naobra disponível no Project Gutemberg, em alemão, portanto, sem paginação e ano de publicação. Dessa forma todas as citações desta obra, 17

O personagem assim, o faz: deixa se reflexo com a tal Giulietta. Ao se olhar num espelho próximo, não mais se vê. É de se esperar que Erasmo logo se desespere com a ideia de não poder enxergar a si mesmo. Mas existiram outros problemas em sua vida a partir daí. Ele passa a sair somente à noite, evitando qualquer oportunidade de se pôr diante de superfícies especulares. Uma certa noite, em uma hospedaria, descuidadamente se pôs diante de um vidro, e o garçom, ao perceber que Erasmo não tinha sua imagem refletida, gritou: ―– Quem é este homem sem reflexo? É um maldito, um enfeitiçado, ou o Diabo em pessoa! Erasmo salvou-se fechando-se no quarto onde contava poder passar a noite. Todavia, logo depois vieram agentes da polícia dizer-lhe que, em nome dos magistrados, deveria ou mostrar seu reflexo ou deixar a cidade sem perda de tempo. Forçado a fugir através dos campos, para evitar as caravanas que cruzavam o caminho, ele não entrava nos albergues senão ao cair da noite; pedia ao proprietário para cobrir os espelhos.‖ (HOFFMANN) Nota-se que Erasmo era discriminado por onde andava. Não poderia mais ser um respeitável chefe de família, como mais tarde diria sua própria esposa. Então, foi embora e se pôs a caminho em busca de seu reflexo. ―- Meu amigo – disse-lhe ela com doçura – agora sei da aventura que tiveste na Itália. Estou contristada; vê como são astutas as partidas pregadas pelo Demônio, que te roubou o reflexo que eu tanto gostava de ver sorrindo para mim, no espelho! De hoje em diante não podes mais continuar a ser um respeitável chefe de família; todos de apontarão com o dedo. Sugiro que te ponhas a caminho e comeces a viajar em busca do teu reflexo. Tão logo o encontres, conforme espero, apressa-te em voltar. Esperar- te-ei com impaciência e rever-te-ei com alegria. Beija-me e parte com Deus. Lembra-te de enviar, de vez em quando, algum confeito ou brinquedo ao teu filho, para que ele não te esqueça.‖ (HOFFMANN) O conto não é um dos mais conhecidos e estudados, de Hoffmann, mas vi nesse umaoportunidade de trazer a tona não só a questão do sobrenatural, como sempre faz a feitas neste artigo possuirão apenas o nome do autor. Vale ressaltar que existe uma tradução do conto para o português, mas em uma coletânea já esgotada há muitos anos. Existem também traduções feitas em alguns fóruns de internet, mas sem comentários sobre o processo de tradução ou tradutores. Assim, usei como base o texto original, já citado. 18

Teoria Literária, quando rotula obras como sendo do gênero fantástico, mas aquilo que excede os rótulos, as questões do que seja o homem.Nesse caso, a ausência da imagem no espelho faz a Erasmo (e também a nós) uma série de perguntas: quem é aquele que se vê refletido (ou não) no espelho? Quem é você? O que é o homem? O que é o real? Fantástico O termo fantástico é comumente associado como algo oposto ao real, o fictício. O teórico búlgaro, Tzvetan Todorov, em sua obra Introdução à Literatura Fantástica, apresenta uma conceituação do fantástico na literatura, na qual o Fantástico ocorre na incerteza entre o racional ilógico e o irracional lógico, diante da impossibilidade de escolher ou aceitar uma ou outra explicação em uma época em que o sobrenatural, o extraordinário, o insólito era posto à prova pelo poder crescente do racionalismo cientificista. Ele comenta várias obras literárias (a maioria do século XIX) e define o que os caracteriza como fazendo parte de tal gênero: o sobrenatural. Segundo o teórico, a partir de um acontecimento sobrenatural, a narrativa poderia tomar um rumo onde tal texto seria definido como fantástico, estranho, ou maravilhoso. Felipe Furtado compartilha dessa definição: ―Apesar das diferenças existentes entre quase todas as abordagens antes referidas e da diversidade das respectivas conclusões, verifica-se que elas concordam por completo num ponto, pelo menos: qualquer narrativa fantástica encena invariavelmente fenómenos ou seres inexplicáveis e, na aparência sobrenaturais‖ (FURTADO, 1980, p.19). Sobrenatural aqui, são entidades ou ocorrências que ultrapassam a natureza conhecida. Situa-se, geralmente, num plano exterior e ao mesmo tempo superior. De acordo com Filipe Furtado, a tentativa de qualificar elementos deve ser deslocada para o sujeito humano do conhecimento, e melhor nomeada como ―metaempíricos‖ ao invés de sobrenaturais. Ou seja, elementos que pareçam algo além da natureza em determinado momento talvez possam ser explicados racionalmente em outro. Portanto, o termo metaempírico recobre não só as manifestações denominadas sobrenaturais, mais também outras que, mesmo não sendo, podem ser igualmente assustadoras. ―Com ele [o termo meta-empírico] se pretende significar que a fenomenologia assim referida está para além do que é verificável ou cognoscível a partir da experiência, tanto por intermédio dos sentidos ou das potencialidades cognitivas da mente humana, 19

como através de quaisquer aparelhos que auxiliem, desenvolvam ou supram essas faculdades‖. (FURTADO, 1980, p.20). Partindo do termo metaempíricotemos três variantes possíveis, que são dadas pela reação à ocorrência: aceitação, rejeição e dúvida. Conforme Tzvetan Todorov (2004), no maravilhoso (aceitação) a manifestação metaempírica nunca é negada ou posta em dúvida. O estranho (rejeição), por outro lado, evoca a manifestação para uma explicação racional. E, por fim, o fantástico adota a posição de dúvida: nem afirma e nem nega a eventualidade da sua existência, é uma posição ambígua. No caso da narrativa de Hoffmann, a Teoria Literária define que O Reflexo Perdido é um conto fantástico porque não define ao final o porquê de Erasmo perder seu reflexo no espelho. Apesar de sua mulher afirmar que se tratava de uma ―partida pregada pelo demônio‖, não se diz se era mesmo isso ou não, deixando assim, um final ―aberto‖. Mas notemos que em todas essas possibilidades de interpretação, recorremos somente à superficialidade daobra, apenas o seu texto. Mas pensemos também que talvez aí resida o que temos como ponto principal, ao fim da narrativa, quando não se explica o acontecimento, deixa-se que as questões aconteçam como experienciação e não como experiência. Não se toma o partido da ciência, que diz que tal ocorrência é real ou irreal. A narrativa de Hoffmann não coloca como questão apenas o acontecimento insólito como questão, mas sim, a realidade, a existência do homem quando diante da abertura das questões. O fantástico, portanto seria o que toda literatura proporciona, pois através de imagens (do grego, phantásma) são apresentadas as questões. O insólitoa realidade e o espelho

Em seu ensaio, O Estranho (Das Unheimliche) (1919) (cuja melhor tradução para mim, seria O Insólito)4, Sigmund Freud discute como um acontecimento que quebra o cotidiano é encarado pelo homem. Pra ilustração de sua tese, Freud utilizou o conto O Homem da Areia (Der Sandmann) (1817), de E.T.A. Hoffmann, cuja narrativa fala sobre como um personagem da infância do protagonista volta a atormentá-lo na vida adulta, mesmo que não haja nada na narrativa que afirme com todas as letras que o personagem exista daquela forma. Existe, portanto a dúvida quanto aos acontecimentos. Seria real, ou seria apenas

4Unheimlich é o antônimo de heimlich, termo geralmente traduzido como familiar, doméstico, cotidiano. Nos leva a outro termo alemão: Heim, pátria. Portanto heimlich seria o conforto de algo já conhecido, já familiar e habitual, e unheimlich ao contrário, ao desconhecido presente no cotidiano. A dificuldade de tradução do termo leva a muitos equívocos na leitura do texto de Freud, e consequentes erros de interpretação. O próprio Freud, no artigo, afirma que no italiano e no português não há termos correlatos para unheimlich. 20 loucura do protagonista? O importante não é necessariamente, se é real ou irreal, mas o que é o real.

O insólito, portanto, nos dirige no sentido daquilo que não é habitual, mas não apenas no sentido de existirem, ou não, fantasmas, espíritos e outros seres. Podemos partir do que seja o insólito em sua raiz etimológica. Segundo Castro:

―Por isso estamos nos debatendo com a questão do in-sólito. Apelemos para a origem da palavra, que no seu caso corresponde também ao étimo. Sólitus, em latim (de onde se forma a palavra portuguesa) diz o costumeiro, o habitual, aqui-lo que fazemos repetida e cansativamente, aquilo que já se tornou hábito, costume. O prefixo in- indica negação. Portanto, o insólito é simplesmente o não-costumeiro, o não-habitual. A palavra costume diz em português o comportamento de alguém a partir de valores, dos valores e costumes vigentes dentro de um mundo. Por isso, a força e vigor do insólito está em quebrar os valores dominantes, em por em questão um certo mundo.‖ (CASTRO, 2008, p.27)

Assim, aquilo que está fora do habitual, mas ao mesmo tempo, dentro do habitual.

A psicanálise traz a tona constantemente o tema do insólito. E define tal termo como unheimlich, aquilo que não é familiar, e que, dentro do cotidiano, causa temor, ou ―o efeito de estranheza que atinge as coisas conhecidas e familiares, tornando-as motivo de ansiedade.‖ (CESAROTTO, 1996, p.113). Um outro termo viria como tradução de unheimlich: sinistro. Tal termo existe em geral como oposição a destro. A oposição destes polos, nos leva ao ‗estágio do espelho‘, termo cunhado por Lacan, onde há a cristalização do eu, no espelho.

Ainda utilizando-se dos termos da psicanálise, na tentativa de ver a si mesmo, o sujeito busca no espelho a integridade, a busca por um parâmetro externo para ver o seu interior, mas o resultado dessa busca mostra um outro. ―Numa primeira tentativa de identificação consigo mesmo, o sujeito se aliena de si quando, mais se esperava integrar.‖ (CESAROTTO, 1996, p.115). Dessa forma, aquilo que seria familiar, a sua imagem, vira o sinistro, o estranho.

O que apreendemos a partir daí é que a ideia de real e irreal parte do próprio homem. Como diria Alberto Caeiro, ―O universo não é uma idéia minha. A minha idéia de universo é que é uma idéia minha‖ (PESSOA, 2004 p.129). Portanto, se temos o insólito como uma quebra da realidade, essa quebra nos leva a questionar a base de onde partimos, a nossa ideia de realidade. No caso do espelho na narrativa, o insólito acontece com o 21 desdobramento daquilo que o homem é, ou melhor como a pergunta de quem ele é. A imagem que se tem no espelho, não é um outro, mas um desdobramento dele, uma indagação sobre sua existência.

Erasmo não se vê mais no espelho. Mas será que ele realmente não se via? Ao deixar mulher e filhos em sua pátria, e se entregar radicalmente à uma paixão, ele não seria aquilo que via e não via no espelho? Aqui há a questão do espelho (speculum), do especular (speculare), inclusive no sentido de pensar. O espelho é a dinâmica em que Erasmo se vê refletido, desdobrado. Nesse desdobramento, se manifesta o que ele é e o que ele não é. É, portanto, um diálogo o que acontece, isto é, uma movimentação dentro (diá) do logos, da questão.

Assim, o insólito é a fissura na realidade cotidiana, mas devemos entender essa fissura como um questionamento numa via de mão dupla: não questiona-se apenas o insólito como acontecimento inaugural, mas também a própria realidade que se tem por parâmetro. Ou seja, sempre que ocorre um acontecimento inaugural no cotidiano, abre-se uma série de questionamentos à realidade que se tem por verdade (e não seria essa também uma característica de toda a literatura?).

A verdade, a partir do termo grego alethea, nos leva justamente a essa ideia: de que o real, sempre se desvela ao mesmo tempo que se re-vela. Alethea acaba portanto nos levando de volta ao termo unheimlich, que segundo Scheling é ―tudo aquilo que, devendo permanecer oculto, acabou se manifestando.‖ (SCHELING apud CESAROTTO, 1996, p.115). Temos assim um paradoxo: a realidade é notada a partir do que é irreal.

No ensaio do Prof. Manuel Antonio de Castro, intitulado A Realidade e o Insólito, de 2007, observamos essa questão. Neste, o autor coloca a o real e o insólito como um paradoxo, e como tal, uma questão.

Partindo do que se tem por paradigma, chegamos ao conceito. Mas o paradigma é uma determinação da ciência do que é o real e o insólito. Isso no leva a outra questão: o que é o científico? Segundo Castro, ―A ciência é a teoria do real. Como teoria não funda o mundo assim como não funda a realidade, mas cria paradigmas de delimitação de mundos. A cada paradigma corresponde um mundo dentro do mundo.‖ (CASTRO, 2008, p. 11). 22

Dizer que a ciência é uma teoria do real é na verdade uma definição científica, mas sim, filosófica, já que a ciência não se questiona sobre o que ela é.A partir daí podemos voltar às características do que se costuma rotular de literatura fantástica. A Teoria literária afirma que a palavra chave para se entender o fantástico é hesitação. ―‘Cheguei quase a acreditar‘: eis a fórmula que melhor resume o espírito do fantástico. A fé absoluta, como a incredulidade total, nos levam para fora do fantástico; é a hesitação que lhe dá vida‖. (TODOROV, 2006, p.150).

O personagem que se encontra diante do desconhecido, do insólito, fica sempre entre uma ou outra explicação para tal acontecimento. Ou o personagem, e por conseguinte o leitor, se apoia no real, dito pela ciência, onde não existem fantasmas, monstros ou seres espirituais, ou aceita aquilo como parte da existência. Mas o que seria este explicar? E mais importante, como explicar algo, com base naquilo do que não se sabe, nesse caso, o real?

A necessidade de explicar (vinda sobretudo com a ascensão dos ideais positivistas do século XIX) nos leva à diferença entre explicar e experienciar. Quando tentamos explicar algo, por exemplo, a perda da sombra, ou a perda do reflexo no espelho, tentamos na verdade anular a questão, ―resolvê-la numa determinação racional‖ (CASTRO, 2008, p.14).

Já a experienciação se dá como o acontecer da questão, é portanto ―o acontecer do real como realização de mundo, sentido e verdade. Erasmo, ao se entregar, perdeu seu mundo, sentido e verdade, e assim perdeu-se de si mesmo.

Vivemos em um mundo onde só se pode explicar algo a partir da ciência, o insólito, o fantástico, não pode ser explicado. A única realidade aceita é a científica. Daí que Erasmo fica desnorteado, após perder o seu reflexo no espelho. A se despedir da família, sai em busca de seu reflexo (de seu mundo, sentido e verdade). O percurso feito não é descrito, mas ele parte na companhia de uma pessoa que também experienciou o insólito, Peter Schlehmil, um homem que não possuía sua própria sombra5.

5Aqui, o cruzamento com outra obra, A Maravilhosa História de Peter Schlemihl(1814), de AdelbertvonChamisso. Nela, o personagem vende sua sombra em troca de uma bolsa de moedas de ouro, cujo conteúdo era infinito. Em posse da bolsa Peter a sofrer com a discriminação, já que alguém sem sombra só poderia ser um resultado de forças demoníacas. 23

Podemos apreender daí, que o homem sempre vai estar diante de acontecimento inaugurais. A arte é um acontecimento insólito, no sentido de que traz tona questões, indaga a nós mesmos quem somos. Ao ler o conto de Hoffmann, não vamos ler o que aconteceu quando Erasmo saiu em busca de seu reflexo, e nem é necessário. O fato de sair nessa busca, nos leva perguntar a nós mesmos: O que é aquilo que vejo (e não vejo) quando olho meu reflexo no espelho?como buscamos aquilo que somos (e não somos), o nosso próprio?

É diante desse paradoxo que o homem se encontra. A ciência se propôs a explicar o real, mas não consegue delimita-la. Dai a nossa permanente busca pelo o que não compreendemos, pelo o que nos excede. Enquanto questões, elas jamais serão explicadas, mas sim nos levarão a mais questões.

REFERÊNCIAS BATALHA, Maria Cristina. A Importância de E.T.A. Hoffman na Cena Romântica Francesa in: Alea: Estudos Neolatinos, junho/dezembro vol.5, número 002. Rio de Janeiro, 2003. CASTRO, Antonio Manuel de. A Realidade e o Insólito. In: GARCIA, Flávio (org.). Narrativas do Insólito: passagens e paragens. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2008. pp.8 – 31 CESAROTTO, Oscar. No olho do outro – “O Homem da Areia” segundo Hoffmann, Freud e Gaiman. São Paulo: Iluminuras, 1996. COSTA, Gisleyne Cássia Portela. Romantismo: Iluminismo, Nacionalismo e Sentimento. In: Revista Ao Pé da Letra. Vol. 6.2. Disponível em < http://www.revistaaopedaletra.net/volume6-home.html>. FURTADO, Filipe. A construção do Fantástico na Narrativa. Lisboa: Horizonte Universitário, 1980 HOFFMANN, E.T.A. Nachtstücke – Text und Kommentar. Frankfurt am Main: Deutscher Klassik Verlag, 2009; ______. Die Geschichte vom verlorenen Spiegelbilde. Disponível em : ______. O Pequeno Zacarias, chamado Cinabre (Prefácio). Trad. Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ______. Contos Fantásticos – O Vaso de Ouro, Os Autômatos e O Homem da Areia. Trad. Claudia Cavalcanti. Rio de Janeiro: Imago, 1993. 24

MANSUETO KOHNEN, O.F.M. História da Literatura Germânica. Salvador: Editora Mensageiro da Fé, 1962. PESSANHA, Fábio Santana.O insólito na Dimensão do Poético: o movimento de um questionar. In: GARCIA, Flávio (org.). Narrativas do Insólito: passagens e paragens. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2008. pp 32-48. PESSOA, Fernando. Caeiro. São Paulo, Companhia das Letras,2004. RODRIGUES, Selma Calasans. O Fantástico. São Paulo: Ática, 1988. ROSENFELD, Anatol. História da Literatura e do Teatro Alemães. São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1993. ______Letras germânicas. São Paulo: Perspectiva / Edusp; Campinas: Edunicamp, 1993. SAFRANSKI, Rüdiger. Romantik. Eine deutsche Affäre. München: Carl Hanser Verlag, 2007. SCOTT, Walter. Sobre Hoffmann e as Composições Fantásticas. In: HOFFMANN, E.T.A. O Pequeno Zacarias, chamado Cinabre (Prefácio). Trad. Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998. TODOROV, Tzvetan. Introdução a Literatura Fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. ______As Estruturas Narrativas. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.

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DAS PÁGINAS DE UM JORNAL PARA AS PÁGINAS DE UM LIVRO: MARQUES DE CARVALHO REESCREVE UM CONTO

Alan Victor Flor da Silva6

Profa. Dra. Germana Maria Araújo Sales (Orientadora)7

Resumo: O político, diplomata, jornalista e escritor paraense João Marques de Carvalho nasceu em Belém, capital do estado do Pará, em 6 de novembro de 1866, e faleceu em Nice, no sul da França, em 11 de abril de 1900, aos 43 anos. Além do romance naturalista Hortência (1888), sua obra mais conhecida, publicou os livros Contos Paraenses (1889), Entre as Ninfeias (1896) e Contos do Norte (1900). Deixou grande parte de sua produção ficcional, tanto em prosa quanto em verso, não apenas em jornais que fizeram parte da constituição histórica da imprensa jornalística paraense, como Diário de Belém, A Província do Pará e A República, como também em periódicos de pequeno porte e vida efêmera, como Comércio do Pará e A Arena. Entre seus diversos textos ficcionais dispersos em folhas periódicas, Marques de Carvalho publicou na coluna Folhetim do jornal A Província do Pará o conto ―Que bom marido!‖ no dia 25 de dezembro de 1885 e, posteriormente, relançou-o no livro Contos Paraenses, divulgado em 1889. Ao cotejarmos tanto a versão em jornal quanto em livro, percebemos que esse conto foi reescrito, pois sofreu algumas alterações, como inserções, supressões e substituições de palavras, expressões, frases e períodos, além de reconstruções de passagens e parágrafos. Objetivamos, portanto, com este trabalho, analisar a reescritura de um conto publicado primeiramente nas páginas de um jornal e depois nas páginas de um livro.

Palavras-chave: Marques de Carvalho; Reescritura; Conto.

Résumé: João Marques de Carvalho a été politicien, diplomate, journaliste et écrivan. Il est né à Belém, capitale du état du Pará, le 6 novembre 1866, et il est mort à Nice, au sud de la France, le 11 avril 1900, à l‘âge de 43 ans. Au-delà de l'œuvre naturaliste Hortência (1888), son romance plus connu, il a publié les livres Contos Paraenses (1889), Entre as Ninfeias (1896) et Contos do Norte (1900). Il a laissé beaucoup de sa production fictionelle, tant en vers qu‘en prose, en journaux qui ont fait partie de la constituition historique de la presse au Pará, comme Diário de Belém, A Província do Pará et A República, et en petits périodiques de vie éphémère, comme Comércio do Pará et A Arena. Parmi ses divers textes fictionnels épars en feuilles périodiques, Marques de Carvalho a publié dans la colonne Feuilleton du jornal A Província do Pará le conte « Que bom marido! » le 25 décembre 1885 et après il l‘a relancé dans le livre Contos Paraenses, diffusé en 1889. Quando nous comparons les deux versions, tant en jornal qu‘en livre, nous apercevons que ce conte a été réécrit, parce que il a souffert certains changements, comme insertions, suppressions et substitutions des mots, des expressions, des phrases et des périodes. Ce travail, ainsi, a pour objectif d‘analyser la réécriture d‘un conte publié avant dans les page d‘un jornal et après dans les pages d‘un livre.

6 Mestrando em Estudos Literários da Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista CNPq. E-mail: [email protected] 7 Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected] 26

Mots-clés: Marques de Carvalho; Réécriture; Conte.

1. Para início de conversa...

O político, diplomata, jornalista e escritor paraense João Marques de Carvalho nasceu em Belém, no estado do Pará, no dia 6 de novembro de 1866, e faleceu em Nice, no sul da França, no dia 11 de abril de 1910, aos 43 anos. Preocupado com o lugar da produção literária paraense em nível nacional, Marques de Carvalho idealizou e ajudou a fundar em 1900, conjuntamente com outros escritores locais, como Paulino de Brito e seu irmão Antônio Marques de Carvalho, a Academia Paraense de Letras. Publicou, em 1888, a obra naturalista Hortência, cujo enredo apresenta como temática principal um caso de incesto. Segundo Paulo Maués Corrêa (2007), esse romance é considerado o primeiro a representar a paisagem urbana da cidade de Belém. Além de aventurar-se pelo gênero romanesco, Marques de Carvalho publicou alguns livros de contos, como Contos Paraenses (1889), Entre Ninfeias (1896) e Contos do Norte (1900). Considerando-se sua carreira jornalística, contribuiu para diversos jornais que circularam pela capital paraense no século XIX, como o Diário de Belém, A Província do Pará e A República. Além disso, fundou algumas folhas periódicas de pequeno porte e vida efêmera, como Comércio do Pará e A Arena. Nesses periódicos, aliou sua carreira de jornalista à de escritor e deixou grande parte de sua produção ficcional, como poemas, contos e romances. Na coluna Folhetim do jornal A Província do Pará, por exemplo, publicou apenas no ano de 1885 quatro textos em prosa de ficção: o romance ―A leviana: história de um coração‖, além dos contos ―A Cereja‖, ―A comédia do amor‖ e ―Que bom marido!...‖. No rodapé do jornal A República, divulgou em 1887 o romance naturalista ―O Pajé‖. Na coluna Parte Literária do jornal Diário de Belém, ocupando quase totalmente a primeira página, o escritor lançou em 1889 o conto ―O preço das pazes‖. No periódico literário A Arena, destinado apenas à publicação de textos assinados por autores paraenses, publicou em 1887 os contos ―Ao soprar da vela‖, ―História incongruente‖ e ―A medalha do soldado‖. Segundo José Eustáquio de Azevedo (1990), o conto ―Que bom marido!‖ apresenta uma trajetória de publicação interessante. Marques de Carvalho iniciou sua carreira jornalística, em 1884, no jornal Diário de Belém. Em dezembro de 1885, rompeu seus laços 27 com esse periódico, que se recusou a publicar o conto em questão, declarando-o imoral e impublicável. No dia 25 de dezembro de 1885, o escritor paraense o publicou na coluna Folhetim do jornal A Província do Pará e o reproduziu posteriormente, em 1889, no livro Contos Paraenses. A trajetória de publicação do conto ―Que bom marido!‖, narrada por Eustáquio de Azevedo, no entanto, parece não ter muito fundamento por duas razões. Primeiramente, porque o conto não apresenta cenas licenciosas nem censuráveis para ser acusado de imoralidade; em segundo lugar, porque Marques de Carvalho, após o suposto conflito, continuou a contribuir para o jornal Diário de Belém com poemas, artigos jornalísticos e tradução de textos. Independente de o conto ter sido recusado ou não pelo Diário de Belém, o fato é que, ao transpor o conto ―Que bom marido!‖ das páginas do jornal A Província do Pará para as páginas do livro Contos Paraenses, percebemos que Marques de Carvalho fez várias alterações no corpo do texto. Considerando-se, portanto, que essas modificações não foram gratuitas nem aleatórias, objetivamos, com este trabalho, analisá-las para descobrirmos quais foram as intenções que o levaram a fazê-las.

2. A instabilidade dos textos

Dificilmente escrevemos um texto sem que posteriormente façamos várias e exaustivas modificações. Para chegarmos ao texto que julgamos ser o ideal, trocamos frases, períodos e até parágrafos de lugar, substituímos uma palavra por outra mais adequada, suprimimos fragmentos que julgamos ser repetitivos ou dispensáveis, acrescentamos informações que faltavam, corrigimos problemas de concordância e de regência que passaram despercebidos e reconstruímos frases. Em resumo, perdemos alguns minutos elegendo as melhores palavras e algumas horas escrevendo e apagando até conseguirmos o texto perfeito ou quase perfeito, uma vez que quase nunca estamos totalmente satisfeitos com os textos que produzimos. Algumas pessoas, no entanto, acreditam que os escritores não se enquadram nesse grupo, pois eles possuem o dom da escrita e, portanto, escrevem textos impecáveis, de grande excelência, sem nenhuma dificuldade, iniciando-o com a letra maiúscula e concluindo-o com o ponto final. Essa ideia, porém, não passa de um mito, pois, depois da escrita, o texto muitas vezes é reescrito, às vezes até mesmo após a publicação. Roger Chartier (2002), por 28 exemplo, relata a história editorial do romance O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes Saavedra. No capítulo XXV da primeira edição do romance, lançada em 1605, o burro do personagem Sancho Pança é roubado. Quatro capítulos depois, Sancho aparece caminhando a pé, sem o burro, enquanto Dom Quixote aparece montado em seu cavalo, Rocinante. Contudo, sem nenhuma explicação, o burro reaparece no capítulo XLII, como se jamais tivesse sido furtado. Ao perceber o equívoco, Miguel de Cervantes, na segunda edição do romance, publicada apenas alguns meses mais tarde, inseriu duas breves histórias para justificar a reaparição imprevista do burro logo após este ter sido roubado. A primeira história foi inserida no capítulo XXIII e relata como Guinés de Pasamonte roubou o burro enquanto Sancho dormia. A segunda, por sua vez, foi inserida no capítulo XXX e narra como o fiel escudeiro reconhece o ladrão e encontra novamente seu animal. Apesar das modificações que foram feitas, em razão de uma frase que não foi corrigida no início do capítulo XXV, a incoerência ainda persistiu e só foi finalmente corrigida na edição lançada em 1607. A história editorial do romance de Cervantes serve para ilustrar o que Roger Chartier chama de ―instabilidade dos textos‖. Segundo o autor,

As tribulações do roubado, mas sempre presente burro traz dupla lição. Em primeiro lugar, elas nos introduzem na instabilidade dos textos. Suas variantes, estranhezas ou extravagâncias resultam da pluralidade das decisões ou dos erros crassos espalhados pelos diferentes estágios de suas publicações. Os descuidos do autor, os erros dos tipógrafos, as inadvertências dos revisores, tudo contribuiu para a construção dos sucessivos textos do ―mesmo‖ trabalho. (CHARTIER, 2002, p. 40)

Com o surgimento da imprensa por Gutenberg em meados do século XV, acreditou-se que todas as edições de um mesmo texto, ao serem confrontadas, não apresentariam mais variantes, razão pela qual se passou a acreditar na suposta estabilidade dos textos. Entretanto, assim como podemos perceber no exemplo do romance de Miguel de Cervantes, é possível que haja alterações na materialidade do texto ao cotejarmos uma edição com a outra, em virtude dos diversos fatores já apontados por Chartier, como os descuidos do autor, os erros tipográficos e as inadvertências dos revisores. A ideia de que um determinado texto, escrito por um determinado autor, apresenta variantes levanta, segundo Chartier, algumas discussões. Diante das diferentes formas sucessivas em que um trabalho foi publicado, é necessário recuperar o texto tal qual o autor o escreveu, compôs ou idealizou; ou é indispensável que cada encarnação de uma mesma 29 obra seja considerada distinta e deva ser respeitada e compreendida? Roger Chartier é adepto da segunda opinião, pois, para o historiador do livro, nada é mais ilusório e abstrato do que a ideia de que há um texto original, como podemos perceber no excerto a seguir:

O conceito de um ideal texto ―original‖, visto como uma abstrata entidade linguística presente atrás das diferentes instâncias de um trabalho, é considerado uma completa ilusão. Assim, editar um trabalho não deve significar a recuperação desse texto inexistente, mas sim tornar explícito tanto a preferência dada a uma das diversas ―formas registradas‖ do trabalho quanto as escolhas concernentes à ―materialidade do texto‖ – isto é, mostrar suas divisões, sua ortografia, sua pontuação, seu layout etc. (CHARTIER, 2002, p. 41)

A instabilidade, portanto, é uma das principais características dos textos. Embora seja uma prática antiga, é muito comum observarmos atualmente nas capas dos livros as seguintes informações sobre as edições mais recentes: ―revisado‖, ―ampliado‖, ―atualizado‖, ―adaptado‖, entre outros. Essas alterações textuais de uma edição para outra podem ocorrer por múltiplas razões: seja por negligência dos autores, dos tipógrafos ou dos revisores, que precisarão corrigir as incoerências ou os erros ortográficos, gramaticais e textuais nas edições posteriores; seja por um desejo particular do próprio autor, que sente a necessidade de reescrever o próprio texto de acordo com os novos paradigmas, com as novas convenções ou com sua nova forma de perceber e compreender o mundo que o cerca; seja por insistência dos leitores, que muitas vezes se sentem coautores das obras que leem; seja por questões políticas, como no caso do novo acordo ortográfico entre países de língua portuguesa, que entrou em vigor a partir 1º de janeiro de 2009. As diversas formas consecutivas em que um trabalho é publicado, até mesmo as mais estranhas e as mais inconsistentes, conforme conclui Roger Chartier, devem ser compreendidas, respeitas e possivelmente editadas de modo a transmitir o texto em uma das múltiplas modalidades de sua escrita e de sua leitura, pois, assim como o universo dos textos influenciam na percepção e na concepção do mundo, questões históricas, políticas, sociais, ideológicas e linguísticas influenciam tanto na escrita quanto na reescrita dos textos, de tal modo que, na maioria das vezes, essas transformações na materialidade textual não são gratuitas nem aleatórias.

3. Reescrevendo o conto...

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Como já foi aludido anteriormente, Marques de Carvalho publicou, no dia 25 de dezembro de 1885, em um único fascículo, o conto ―Que bom marido!‖ na coluna Folhetim do jornal A Província do Pará e depois o reproduziu no livro Contos Paraenses, em 1889, com algumas modificações. O conto apresenta como temática principal um caso de adultério. A personagem Elvira, uma linda moça de apenas dezoito anos, é casada com Bonifácio, um velho quarentão, amanuense de secretaria e obeso, e mantém um romance com o jovem e galanteador Jacinto apenas por meio da troca de cartas – uma verdadeira relação amorosa epistolar. Na primeira versão da narrativa, encontramos a seguinte epígrafe latina: ―Non concupisces quicquam proximi tui‖. Esse elemento paratextual traz um dos mandamentos da lei de Deus: ―Não cobiçarás coisa alguma do teu próximo‖. Na versão para o livro, Marques de Carvalho substitui a epígrafe em latim por outra em português: ―Não desejarás a mulher do teu próximo‖. Percebemos nas duas versões da narrativa que as epígrafes apresentam uma função moralizante, pois reforçam a ideia de que o adultério não é uma ofensa apenas ao cônjuge, mas também uma desonra a Deus, uma vez que o adúltero ou a adúltera coloca a vontade humana acima da vontade divina. Notamos, porém, que a epígrafe da primeira versão possui um sentido mais abrangente, referindo-se ao fato de que o ser humano não pode cobiçar nada que venha do próximo, incluindo nesse conjunto o marido ou a esposa alheia. A epígrafe da segunda variante da narrativa, por sua vez, é mais específica, pois se restringe apenas à cobiça da mulher de outro homem. É possível inferir, portanto, que Marques de Carvalho tenha substituído a primeira epígrafe por outra porque a segunda estava mais de acordo com a temática central do conto, uma vez que Jacinto era a razão pela qual Elvira estava traindo o próprio marido. Além disso, é provável que, embora talvez não tivesse tido essa consciência ao publicar a primeira versão da narrativa em folhetim, o autor paraense, ao transpor o conto do jornal para o livro, tenha preferido substituir a epígrafe em português pela epígrafe em latim por acreditar que muitos de seus presumíveis leitores não teriam condição suficiente para compreendê-la, justamente por falta de conhecimento acerca da língua latina. Além de substituir a epígrafe, Marques de Carvalho faz inúmeras alterações no corpo do texto, desde a mudança de uma palavra por outra até a reconstrução total ou a inserção de um período. Ao cotejarmos as duas versões, percebemos que as modificações 31 foram feitas por meio de quatro procedimentos: substituição, acréscimo, supressão e reconstrução. Entre todas as alterações feitas na narrativa, há o acréscimo de um período que modifica significativamente a estrutura do conto, como ilustra a citação a seguir.

[Versão do jornal] D'então em deante, apezar d'estes receios, continuaram as cartinhas a passar dos bolsos de Jacintho para o seio d'Elvira, e do seio d'esta para os bolsos d'aquelle. Havia já alguns mezes que o amor dos dois não tivéra outras expansões além d'aquellas innocentes missivas platonicas. (CARVALHO, A Província do Pará, 25/12/1885, p. 2) *** [Versão do livro] D'então em deante, apezar d'esses receios continuaram as cartinhas a passar dos bolsos do Jacyntho para o seio d'Elvira e do seio d'esta para os bolsos d'aquelle. É que houve uma tarde em que Elvira entrou a confrontar o physico do sr. Bonifacio com o de Jacyntho. Esse confronto e as reminiscencias de muitas leituras romanticas déram causa á correspondencia criminosa. Havia já alguns mezes que o amor dos dois não tivéra outras expansões além d'aquellas innocentes missivas platônicas. (CARVALHO, 1889, p. 51, grifos nossos)

Assim, ao confrontar as duas versões, podemos perceber que Marques de Carvalho acrescenta uma informação que sugere que o adultério cometido pela esposa de Bonifácio – a troca de cartas de amor entre Elvira e Jacinto – foi influenciado pela leitura das obras românticas com as quais a jovem esposa tinha contato. Sobretudo nos séculos XVIII e XIX, atribuir a má índole das mulheres à leitura de romances era uma prática muito comum em obras do Realismo/Naturalismo. As discussões em relação aos efeitos que essa espécie de leitura causava em seus leitores eram muito acirradas e geravam diversos embates: de um lado, havia os detratores, que não perdoavam o fato de que um gênero tão sem prestígio ganhasse tantos adeptos; de outro, havia os defensores, que logo arranjavam um contra-argumento para que o romance, associado sempre ao entretenimento, ao deleite e ao ócio, recebesse a mesma importância dos gêneros da Antiguidade firmados pela tradição clássica, como a tragédia e a epopeia (ABREU, 2003). É por essa razão que não é à toa que toda a discussão em torno do romance tenha se tornado objeto de debate dentro do próprio universo romanesco. Na obra Madame Bovary, de Gustave Flaubert, por exemplo, a personagem que dá título ao romance – Emma Bovary – sonhava com um marido que lhe proporcionasse um amor idealizado igual ao qual ela havia lido nos romances. No entanto, ao se casar com Charles Bovary, um homem tranquilo, pacífico e muito dócil, seu sonho não se tornou realidade, uma vez que o marido não se comparava aos heróis das histórias que Emma 32 tanto lera, nem lhe despertava uma paixão tão avassaladora e intensa como a que imaginava.

Antes de casar, ela julgara ter amor; mas como a felicidade que deveria ter resultado daquele amor não viera, ela deveria ter-se enganado, pensava. E Emma procurava saber o que se entendia exatamente, na vida, pelas palavras felicidade, amor, embriaguês, que lhe haviam parecido tão belas nos livros. (FLAUBERT, 2010, p. 51)

Do mesmo modo, no romance O Primo Basílio, de Eça de Queirós, a personagem Luísa era casada com Jorge, levava uma vida muito confortável, pacata e dedicada ao ócio, passava a maior parte dos dias a ler romances. Porém, assim como Emma Bovary, Luísa queria viver as mesmas aventuras que as heroínas dos romances que tivera a chance de ler e vira essa oportunidade em seu primo Basílio. O desejo por viver essas sensações tão intensas era tão forte que Luísa sentia-se mais atraída pela situação proibida em si do que pelo próprio Basílio.

Ia encontrar Basílio no Paraíso pela primeira vez. E estava muito nervosa: não dominar, desde pela manhã, um medo indefinido que lhe fizera pôr um véu muito espesso, e bater o coração ao encontrar Sebastião. Mas ao mesmo uma curiosidade intensa, múltipla, impelia-a, com um estremecimentozinho de prazer. — Ia, enfim, ter ela própria aquela aventura que lera tantas vezes nos romances amorosos! Era uma forma nova do amor que ia experimentar, sensações excepcionais! Havia tudo — a casinha misteriosa, o segredo ilegítimo, todas as palpitações do perigo! Porque o aparato impressionava-a mais que o sentimento; e a casa em si interessava-a, atraía-a mais que Basílio! (QUEIRÓS, 1979, p. 135-136)

Assim como ocorreu com Emma Bovary e Luísa, personagens muito famosas de romances realistas/naturalistas, Elvira cometeu uma espécie de adultério, pois foi supostamente influenciada pela leitura perigosa dos romances, que mostravam um universo totalmente diferente da realidade na qual estava inserida. Elvira era uma mulher muito formosa e tinha apenas dezoito anos e vivia com o marido uma rotina infringível. Além disso, Bonifácio apresentava uma fisionomia grotesca, tinha uma idade já um pouco avançada e não dava uma atenção especial à esposa, ao deixá- la de lado todas as tardes para jogar cartas com os amigos. Jacinto, por sua vez, demonstrava ser a representação desse homem ideal, condizente com o perfil dos heróis das leituras românticas, em razão de sua jovialidade e de seu zelo por Elvira. 33

Defender, portanto, dentro do próprio universo romanesco que as mulheres praticavam o adultério em razão da leitura de romances românticos era uma forma que os escritores realistas/naturalistas encontraram para criticar as concepções do Romantismo, estética literária à qual se opunham veementemente. Não é sem razão, portanto, que os personagens estereotipicamente românticos, em obras realistas/naturalistas, sempre são apagados e ofuscados pelos personagens que estão mais de acordo com os princípios desses dois movimentos literários pós- e anti- românticos. Elvira, por exemplo, é um exemplo de personagem que sofre em razão de sua própria personalidade romântica. Além de trazer para o mundo ficcional da narrativa a discussão a respeito da leitura de romances, percebemos que Marques de Carvalho, ao reescrever o conto, desenvolveu o caráter psicológico de Elvira. O desenvolvimento da psicologia das personagens é uma característica das obras realistas, pois os escritores que seguiam esse modelo estético preocupavam-se com a análise do caráter humano, alcançada por meio da investigação psicológica, social, moral e ideológica. Para atribuir particularidade psicológica às personagens de qualquer narrativa, é necessário que a construção da personagem seja impregnada de questões ligadas aos conflitos internos e externos, aos questionamentos sobre as próprias atitudes, sobre seu comportamento e sobre a própria existência e às incertezas em relação ao passado, ao presente e ao futuro. Assim, bem à maneira das heroínas das obras realistas, Elvira, por meio da voz do narrador, encontra-se no meio de um grande dilema: preservar seu casamento junto ao marido Bonifácio e, consequentemente, sua estabilidade financeira e seu lar, ou entregar-se a uma perigosa aventura de amor, paixão e desejo ao lado do amante Jacinto, como ilustra a citação a seguir:

[versão do jornal] Passavam os dias, passavam os mezes, e Jacyntho era pontual áquella entrevista, na qual Elvira já parecia interessar-se, pois que tambem não deixava de ir para a janella assim que lá na varanda, o sr. Bonifacio, o taberneiro, e o vizinho começavam no passo e no sólo. Jacyntho não era um homem que perdesse a paciencia. (CARVALHO, A Província do Pará, 25/12/1885, p. 2) *** [versão do livro] Passavam os dias, passavam os mezes, e Jacyntho era pontual á entrevista, na qual Elvira já parecia interessar-se, pois que tambem não deixava de ir para a janella assim que, lá na varanda, o sr. Bonifacio, o taberneiro e o vizinho começavam no passo e no bólo. É que a interessante senhora tinha um espirito ardente, phantasista, que não podía se contentar com os sós affagos morosos e frios do velho Bonifacio. Não obstante, nenhum passo mau desejava dar. Entregava-se áquillo a que chamava “uma distracção”, mais para satisfazer uma vaga curiosidade do que para commetter um crime. 34

Jacyntho não era um homem que perdesse a paciencia. (CARVALHO, 1889, p. 48, grifos nossos)

Por meio da voz do narrador, podemos perceber que Elvira, em meio aos próprios conflitos internos, procura motivos para atenuar a culpa que sente por estar traindo o marido e elenca argumentos para justificar sua má conduta. Primeiramente, defende que ela é uma mulher de espírito ardente e, portanto, não pode se contentar com os afagos demorados e frios de Bonifácio. Em segundo lugar, afirma que entregar-se a Jacinto não passa de uma pequena distração, mais para satisfazer uma curiosidade do que para cometer um delito. Ao tentar justificar seu comportamento, notamos que Elvira apresenta certo grau de inteligência e racionalidade, pois astuciosamente procura transferir a culpa pelo adultério que recai sobre si para o marido, com o intuito de que sua falta seja amenizada ou resignada. Na versão folhetinesca da narrativa, percebemos que havia uma ausência total de particularidade psicológica. Porém, na versão em livro, embora o conto tenha sido escrito em terceira pessoa, notamos que a psicologia da personagem feminina central ganhou uma dimensão que anteriormente não existia. Compreendemos, portanto, que as alterações pelas quais o conto ―Que bom marido!‖ passou não foram aleatórias nem gratuitas. Marques de Carvalho objetivava inserir a narrativa dentro da estética realista/naturalista, ao atribuir particularidade psicológica à personagem Elvira e ao transfigurar para o universo ficcional, assim como fizeram Gustave Flaubert e Eça de Queirós, a discussão sobre a leitura feminina de romances. Marques de Carvalho foi um escritor que defendeu e idealizou com veemência o Naturalismo na Amazônia, retrucou severamente as críticas desfavoráveis que foram destinadas a esse movimento estético-literário, censurou os escritores que ainda se mantinham vinculados à escola romântica, rebateu de antemão os presumíveis julgamentos que poderia receber de seus leitores nos prefácios de seus romances, de tal modo que sua vinculação ao Naturalismo, portanto, não pode ser desprezada. No prólogo do romance ―O pajé‖, publicado no rodapé da página do jornal A República, por exemplo, percebemos que o autor paraense se enaltece ao atribuir a si mesmo o título de precursor do Naturalismo no estado do Pará.

É O Pajé o primeiro trabalho de seu gênero escrito por um paraense: cabe-me essa glória, tenho a máxima honra em reclamá-la. Desejei fazer um romance que fosse simplesmente um estudo físico-psicológico desse 35

personagem astucioso e hipócrita que é o terror dos espíritos fanáticos do povo de minha província; para isso, alienei-me da velha escola romântica, desprezei-lhe os abusos e prolixidades, para deixar-me levar pela grande orientação literária da nossa época. (CARVALHO, A República, 18 jan. 1887, p. 3)

Nesse sentido, não podemos ignorar a filiação de Marques de Carvalho ao movimento realista/naturalista. Inferimos, portanto, que o conto ―Que bom marido!‖ foi reescrito pelo autor paraense para aproximar essa narrativa da mais nova estética literária que entrava em voga no Brasil nas últimas décadas do século XIX, pois Marques de Carvalho prova, em artigos jornalísticos da imprensa periódica de Belém no final do século XIX, que leu Émile Zola, Gustave Flaubert, Guy de Maupassant, Eça de Queirós, Franklin Távora, Edmond e Jules de Goncourt, entre outros. O escritor paraense, por conseguinte, demonstra ser um conhecedor dos princípios realistas/naturalistas e um intelectual atento à produção literária não apenas na Amazônia, como também no restante do Brasil e na Europa.

REFERÊNCIAS:

ABREU, Márcia. Os caminhos dos livros. Campinas: Mercado de Letras; Associação de Leitura do Brasil (ALB); São Paulo: FAPESP, 2003. AZEVEDO, José Eustáquio de. Antologia Amazônica. Belém: Livraria Carioca Editora, 1918. ______. Literatura Paraense. Belém: Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves; Secretaria de Estado da Cultura, 1990. CARVALHO, João Marques de. Que bom marido! In: ______. Contos paraenses. Belém: Pinto Barbosa & C. Editores, 1889. ______. Que bom marido!... A Província do Pará, Belém, 25 dez. 1885, p. 2. ______. Da crítica literária. A Arena, Belém, 9 jun. 1887, p. 7-8. ______. O pajé. A Província do Pará, Belém, 18 jan. 1887, p. 3. CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita. Tradução de Fúlvia M. L. Moretto. São Paulo: UNESP, 2002. CORRÊA, Paulo Maués. Leitura mítico-simbólica d‘O banho de tapuia, de Marques de Carvalho. In: CORRÊA, Paulo Maués; FERNANDES, José Guilherme dos Santos (Orgs.). Estudos de literatura da Amazônia: Prosadores paraenses. Belém: Paka-Taku/EDUFPA, 2007. p. 35-53. QUEIRÓS, Eça de. O Primo Basílio. São Paulo: Abril Cultural, 1979. FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Tradução de Fúlvia M. L. Moretto. São Paulo: Abril, 2010.

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NARRATIVAS ORAIS DA ILHA DE MOSQUEIRO: MEMÓRIA E SIGNIFICADO

Alcir de Vasconcelos Alvarez Rodrigues8

Orientadora: Profa. Dra. Ivânia dos Santos Neves9

Resumo:Esteestudoapresenta a análise de narrativas orais de moradores da ilha do Mosqueiro, distrito e balneário de Belém, capital do Pará, transcritas e analisadas com o propósito de demonstrar − principalmente no caso da quase total ausência de documentação – que a oralidade, a História oral, pode ser relevante fonte de geração de dados para a preservação, estímulo e valorização da memória espácio-temporal e humana da ilha, permitindo assim ao pesquisador a apreensão de fatos e informações fidedignos a respeito do funcionamento da estrutura sócio-histórico-cultural da comunidade local. Para isso, buscou-se fundamentação em alguns eminentes autores, cujas contribuições forneceram um norte a esta pesquisa, a partir dos campos de atuação de cada um deles edas linhas teóricas que adotaram, enriquecendo este trabalho, conferindo-lhe caráter interdisciplinar. Tais autores são, entre outros, Vladímir Propp, Claude Lévi-Strauss, Bronislaw Malinowski, Paul Tompson e ClifordGeertz, que, de um modo ou de outro, desenvolveram relevantes pesquisas sobre a oralidade, valorizando, com suas investigações, saberes que eram antes negligenciados pela intelligentsia, até então extremamente escriptocentrista. Além disso, esta pesquisa busca não somente demonstrar que as narrativas orais da ilha de Mosqueiro podem ser consideradas ―documento vivo‖, mas que podem também ajudar no resgate do imaginário popular e na preservação da memória coletiva, incentivando, com isso, a sabedoria popular, principalmente a dos idosos, geralmente vítimas de preconceito, que é alimentado pela mesma sociedade que lhes deveria dar todo o respeito que merecem.

Palavras-chave:Narrativas orais; Ilha do Mosqueiro; Memória; Significado.

ORAL NARRATIVES OF THE ILHA DE MOSQUEIRO: MEMORY AND SIGNIFICATION

Abstract:This study presents analysis of oral narratives of resident men of Ilha do Mosqueiro, transcribed and analysedwith the objective of demonstrate that − principally in almost total non-existence of documentation − the orallity, oral History, it can beimportant data fountain to preserve and to give value to spatial ,temporal and human memory of the island, permitting thus to the searcher the apprehension of the credible facts and informationsregarding the functioning of the culture, history and social structure of the community of the Ilha do Mosqueiro. To this, we are basing in some eminent authors, whose contributions furnished a north to this search, conferringto it interdisciplinary character. This authors are, among others, VladímirPropp, Claude Lévi-Strauss, Bronislaw

8 Mestre em Estudos Literários (UFPA 2009), SEDUC/PA, SEMEC/Belém. E-mail: [email protected] 9 Doutora em Linguística pela UNICAMP (2009), docente da UNAMA. E-mail:[email protected] 37

Malinowski, Paul Tompson e Cliford Geertz that, of a way or of other, developed relevant search about orallity, given value, with their investigations, acquirements after despised for the intelligentsia, until then very scriptocentrist. On the other side, this search to looks for not only to demonstrate then oral narratives of the ilha do Mosqueiro can be considered ―living document‖ but also they can to help in the rescue of the popular imaginary and in the preservation of the collective memory, stimulating, with this, popular wisdom, principally that of the old persons, generally victims of prejudice, who is sustained for the same society that for them would have all respect that they earn.

Keywords: Oral narratives; Ilha do Mosqueiro; Memory; Signification.

1 Introdução

Em Mosqueiro, muitos pessoas lembram ainda com vivacidade dos tempos de infância e das histórias que ouviam dos pais, dos parentes e dos vizinhos, à noite, na frente de suas casas. Há uma enorme diversidade temática nessas narrativas orais na ilha, sejam elas sobrenaturais ou não. Partindo dessa constatação, nasceu esta pesquisa, denominada de Narrativas orais da Ilha deMosqueiro: memória e significado. Ainda resistindo na memória dos mais idosos moradores da Ilha, tais histórias já começam a cair no esquecimento das gerações mais novas. Felizmente, embora de modo esparso, há seus registros gráficos, como é o caso dos livros Mosqueiro, ilhas e vilas (1978), de Augusto Meira Filho; Ilha, capital Vila (1972), de Cândido Marinho Rocha; Mosqueiro:lendas e mistérios (2005), de Claudionor dos Santos Wanzeller, entre outros. Frequentemente veiculadas de forma oral, essas narrativas − que coletamos por meio de gravações feitas em entrevistas e depoimentos informais − contam histórias/estórias, ainda vívidas na memória de muitos mosqueirenses, e vêm de tempos idos de décadas atrás, da época do transporte fluvial, do bonde puxado a burro, da implantação da Fábrica Bitar (de borracha), do trenzinho ―Pata Choca‖ (como o denominava carinhosa e ironicamente o povo), das lamparinas e dos candeeiros, ou mesmo ainda um pouco mais próximo da atualidade, do tempo da usina de força, quando a energia elétrica só era fornecida até às 23:00h; ou quando, após a construção da ponte sobre o Furo das Marinhas (inaugurada em 12/01/1976), a energia − ―a luz‖ −, vez por outra, faltava. Nessa época, anterior à construção de Tucuruí, com os frequentes blackouts, as famílias, e pessoas vizinhas, reuniam-se em frente de suas casas, à espera de voltar a luz. E, para passar o tempo, contavam casos de visagens, assombrações, aparições, fantasmas, matintas, casos de metamorfoses, procissões de almas-penadas, etc. 38

Os mais velhos contavam com extrema vivacidade e imenso prazer esses ―fatos‖, que causavam nos mais novos um misto de curiosidade e medo, satisfação e tensão. Contudo, as gerações mais novas, atualmente, quase que desconhecem essas narrativas (sobrenaturais ou não; anedotas do cotidiano da Ilha, relacionadas ao trabalho doméstico, à pescaria, à caça − antes de ser proibida −, ao futebol, ao serviço público, aos costumes antigos e já desaparecidos, por exemplo), que poderiam correr o risco de se perder por não serem mais veiculadas. Porém, essa riqueza cultural pode e deve ser preservada, não obstante os diversos fatores que concorrem negativamente para tal.

1.1 Estudiosos& oralidade

Para atingir com eficiência o objetivo de analisar narrativas orais, com o intuito de detectar nelas toda uma riqueza de traços sócio-histórico-culturais, que estimulam e preservam a memória espácio-temporal e humana, este artigo pautou-seem estudos de Vladimir Propp (formalismo/funcionalismo), Lévi-Strauss (estruturalismo), Malinowski (‗trabalho de campo‘), Paul Tompson (História oral) e Geertz (interpretativismo e etnoconhecimento), todos esses que, de um modo ou de outro, desenvolveram trabalhos teórico-práticos sobre a oralidade, estudo até então negligenciado pela intelligentsia extremamente escriptocentrista. O estudo desses autores e suas obras constituíram relevante norte para a análise das narrativas de dois informantes (ilhéus de nascimento, septuagenários que viveram a maior parte de seus anos na ilha de Mosqueiro), fato este que constitui o cerne, o motor, a razão de ser deste estudo. No entanto,a postura em geral adotada pelos pesquisadores é a de quase repúdio à prática de usar narrativas orais como fonte de dados relevantes para o conhecimento de uma realidade em geral desprovida de documentação escrita, como se a oralidade não pudesse ser fonte significativa para estruturação de conhecimentos sociais, históricos e culturais. Porém, Paul Thompson (1992, p. 10) discorda desse fato, e conclui ser mais democrática e socialmente consciente a história oral, que tem por sujeito o povo 10, geralmente anônimo e sem vez e voz, quando se trata de uma posição metodológica de estudos conservadora, que só tem olhos para os greatmen.Para esse autor, é extremamente necessário ―[...] preservar a memória física e espacial, como também descobrir e valorizar a memória do homem. A memória de um pode ser a memória de muitos, possibilitando a evidência dos fatos coletivos.‖

10 O homem ordinário, segundo Freud, citado por Michel de Certeau, em A invenção do cotidiano, 1984, pág. 61. 39

Todavia, Thompson é autor bem mais contemporâneo. Por isso, convémreconhecer o trabalho precursor, inovador do russo Vladimir Propp, que publicou, em 1928, a obra Morfologia do conto maravilhoso, em que sistematiza estudos de oralidade a partir da análise formal e funcionalista dos contos de fadas, em cuja estrutura encontra 150 elementos, 31 funções e 7 personagens constantes. Mais tarde, nos anos de 1950, o antropólogo Claude Lévi- Strauss se valerá da pesquisa do autor russo, dando origem à corrente de pensamento chamada de estruturalismo11, para analisar mitos de povos ditos ―primitivos‖. É necessário enfatizar que tal vocábulo (mito), em português, é polissêmico, isto é, engloba inúmeros sentidos (dependendo do contexto em que esteja sendo empregado), dentre os quais este, do estudioso MirceaEliade (2002, p.11):

O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes sobrenaturais, uma realidade passa a existir, seja uma realidade total, o Cosmos, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie de vegetal, um comportamento humano, uma instituição.

É relevante destacar a funcionalidade dessa conceituação de Eliade para compreender com clareza queLévi-Strauss foi quem pela primeira vez adaptou a técnica de análise linguística ao estudo crítico dos mitos de povos ditos ―primitivos‖, para isso cunhando o termo mytème, claramente em analogia com a análise linguística. Em outras palavras, o eminente antropólogo francês ( autor de, entre outras obras, Mitoe significado, 1970; Antropologia estrutural dois, 1996; O pensamento selvagem, 1997), supera a formalidade da análise somente das funções proppianas, na busca do sentido para a criação dos mitos em dada cultura, afirmando refletir-se neles a estrutura das relações sociais do povo que deu origem à narrativa mitológica. Outro relevante trabalho é o do polonês Bronislaw Malinowski, antropólogo que, entre outros ensaios, escreveu Magic, science and religion (and otheressays), de 1954, de cujo texto foi utilizado o excerto ―A coleta e a interpretação dos dados empíricos‖, importante material de orientação sobre o ‗trabalho de campo‘, que tem origem na viagem e permanência desse estudioso durante alguns anos nas ilhas Trobiand (de junho de 1915 a maio de 1916 e depois retorno em 1917), no Pacífico sul, na Oceania, estudando o povo dali, com seus costumes ditos ‗exóticos‘. Na esteira dessas obras precursoras, outras surgiram, de autores que se debruçaram sobre o tema da pesquisa da oralidade. Pode-se destacar, entre outros, citados no livro

11 Segundo o Próprio Lévi-Strauss, estruturalismo seria ―[...] a busca de invariantes ou elementos invariantes entre diferenças superficiais‖ (1978, 20). 40

Cultura, escrita e oralidade, de David R. Olson e Nancy Torrance: Herbert Marshall McLuhan( A galáxia de Gutenberg, de 1962), Jack Goody e Ian Watt ( o artigo ―As conseqüências da cultura escrita‖, 1963) e Eric Havelock ( Prefácio para Platão, de 1963). Não é uma lista exaustiva, portanto. As orientações básicas para o desenvolver da pesquisas advém dos autores citados em primeiro plano: Propp, Lévi-Strauss e Thompson. Clifford Geertz desperta crucial interesse, também, por seu paradigma hermenêutico, por buscar relativizar o conhecimento, que se transforma, assim, de fato, em etnoconhecimento, já que a ‗interpretação‘ dos fatos da cultura de um povo ─ segundo esse autor ─ depende dos dados culturais de quem realiza a tal ‗interpretação‘, sendo de vital importância o lugar , o ângulo onde se põe o pesquisador. Seria injustos não revelarque este trabalho dependeu, também, dos estudos do russo MirceaEliade (Mito e realidade, 1986) para nossas futuras deduções sobre os mitos ―vivos‖ que povoam o imaginário da comunidade à qual se refere a pesquisa. E é bom salientar que tudo a que se reportou até aqui diz respeito a questões teóricas, indicadoras essenciais de um norte para as análise que se seguedo corpus relativo à transcrição de narrativas orais, entre outras que foram registradas em entrevistas com moradores da Ilha de Mosqueiro.

2 Narrativas orais da ilha de Mosqueiro: memória e significado

Os Srs. José Brígido da Trindade (1933-) e José Bentes Bahia (1934-) concederam entrevistas em que relataram inúmeros fatos e prestaram esclarecimentos relevantes, gerando dados de extrema riqueza a ser explorada, de natureza histórica, social, geográfica, pedagógica, religiosa, etc. Abaixo, seguem excertos resultantes de recortes, tanto das entrevistas quanto das análises, tendo em vista a concisão necessária à economia deste texto acadêmico, o que direcionou a alternativa de trabalhar com apenas um informante e sua respectiva narrativa:

Eu gostava de estudar. À noite, pegava a lamparina, acendia a lamparina,e ficava, sabe, estudando. Estudando mesmo. Quando chegava na escola, já tava tudo na cabeça. Então, ia fazer sacanagem... (...) rendia castigo pra gente, né. Por exemplo, no Grupo Velho... Eu comecei a ter raiva de terço, desde aquela altura, que era castigo você rezar o terço... e botava de joelho, que era aquele Cristo que ainda tá lá... desde o Grupo Velho. Botava lá de joelho a gente, sabe. Aquele negócio de ajoelhar no monte de milho, tinha também, aí. Não era fácil, não. 41

Agora, eles não me botavam de joelho porque... eu ia ter de ficar só com um joelho, o outro não tem nada...12 (Ele riu bastante, contagiando também o entrevistador.) Então, tinha uma diretora... uma boa professora, professora Noêmia. Ela teve um problema que ela tinha uma bochecha maior do que a outra. Égua! Mas a mulher, sabe?,era muito inteligente. Mas ela era perversa também. Gostava de dar castigo pra gente. E um dia... o Grupo Velho, ainda... (...)

Aqui o Sr. Brígido revela uma ‗peraltice‘ sua dos tempos de estudante, pela qual foram (ele e colegas) duramente castigados, trancados no banheiro. Outro trecho relevante:

Eu saí em 46. Tenho o diploma e tudo... guardado. Gosto daquele diploma. E, naquelas alturas, no interior, com 13 anos terminava a 5ª série. Era barra! Mas... Agora, Inglês de Sousa... Não sei por que botaram o nome de Inglês de Sousa. Se bem que eu tenho até um livro dele aqui. (...) Herculano Marcos Inglês de Sousa. (...) O que passava pela frente era o trem, né, o trem: uma locomotiva movida a lenha, né, com três, quatro vagões. Um dia vinha com três, vinha com quatro. (...) Então, ela passava lá. Ela vinha lá do Artur, Chapéu Virado, passava pela 3ª Rua. Aí, entrava pela Pratiquara... porque onde é o atual mercado, lá era a estação da...da... porra da maria-fumaça... (...) Ela vinha devagar, sabe? Dava vontade da gente morcegar... (risos) E terminava a aula e poder... Ela passava bem na frente do Grupo e ela sempre devagar, sabe. Dava pra gente pular... Sabe como é... (...) ...estudante... moleque também... (...)

Em sua narrativa, no início, o Sr. Brígidoreporta-se ao uso da lamparina para estudar à noite, o que permite a inferência de que energia elétrica não havia no Mosqueiro daquela época (década de 1940) em que ele era estudante. Só décadas depois éque seria criada, pelo Município de Belém, a Usina de Força, que funcionava irregularmente e deixava de fornecer ―luz‖ após as 23 horas. A partir da energia vinda da hidrelétrica

12 O Sr. Brígido tem deficiência física em uma perna, causada por poliomielite, por não haver vacinação contra a doença ‗naquela época‘. 42 deTucuruí, já na década de 1980, é que passaria a haver energia elétrica na ilha 24 horas por dia. Devido à carência generalizada de infraestrutura fornecida pelos governos (estadual e municipal), a educação só atendia a população até a 5ª série, dita ginasial, naquele tempo, no Grupo Escolar do Mosqueiro (do sistema estadual), chamado comumente pelo povo de Grupo Velho, que mais tarde receberia a denominação de Inglês de Sousa, chamado de Grupo Novo. Essa escola ainda existe: fica na Vila, na R. Tenente Coronel José do Ó (ou, para o povo, 3ª Rua), e atendiatoda a Ilha, tendo os alunos que se deslocar dos pontos mais distantes, quase sempre a pé, e tendo que sair bem cedo, para não perder as aulas. Uma enorme dificuldade. O Sr. Brígidoinforma como era a ‗disciplina‘ escolar na época. Sem quase liberdade alguma, aos alunos eram infligidos castigos físicos, como ficar ajoelhado no monte de milho, ou morais, como ficar rezando o terço, ajoelhado em frente a uma imagem de Jesus Cristo. Claro que se deve evitar interpretações anacrônicas; contudo, quase não se podedeixar de opinar sobre o que se pensa seremequívocos educacionais (no que diz respeito à metodologia e didática de aplicação de medidas ―socioeducativas‖ ‗daquele tempo‘) e religiosa (no que diz respeito à mistura de religiosidade/fé e temor). Ambas − educação e religião −impunham valores por intermédio da opressão, do medo, do terror mesmo. Não poderia dar certo, nem em uma, nem em outra, mesmo em se tratando da religião católica, já que o Brasil é a maior nação católica do mundo; tanto que o entrevistado diz, numa passagem de sua entrevista: ―[...] eu detesto esse negócio de terço [...]‖. Diríamos ser, também, detestável a maneira de ‗estimular‘ os estudantes por meio da sabatina: quem errasse o cálculo, ou uma data qualquer de um fato histórico, apanhava com a palmatória. O entrevistado faz alusão ao trenzinho, uma locomotiva do tipo maria-fumaça, que conduzia de três a quatro vagões, ligando a Vila ao chapéu Virado. Buscando apoio em Brandão; Dantas (2004, p. 69), encontram-se as seguintes informações:

O primeiro transporte oficial aproximando a ‗Vila‘ do ‗Chapéu virado‘ foi inaugurado em 1904, o Ferril-Carril, bonde com tração animal, propriedade de Arthur Pires Teixeira. Com o aumento de passageiros, provocado pela instalação da linha fluvial Belém-Mosqueiro, o Ferril- Carril é substituído por uma pequena locomotiva conhecida como ‗Pata Choca‘ que se encarregava de levar quatro ou cinco vagões.

43

Sobre a denominação Chapéu-Virado, de uma praia, de um bairro e de um antigo hotel, convém lembrar o seguinte: C. Wanzeller (2005, p. 47) explica a denominação deste modo:

[...] Para aquele local, conhecido na época como ‗o lugar onde o chapéu vira‘, convergiam vários caminhos, alguns vindos do interior da ilha e outros que levavam à praia, onde os pescadores moqueavam o peixe. O vento, canalizado por esses caminhos, chegava à clareira com grande violência, arrebatando os chapéus de palha da cabeça dos caboclos desprevenidos e lançando-os a distância.

Já em Brandão; Dantas (2004, 65), encontramos os seguintes esclarecimentos:

Colonos portugueses fabricavam no local chapéus com abas denominadas beiras. Para alguns historiadores a expressão ‗chapéu beirado‘ teria se convertido, com a pronúncia portuguesa, em ‗chapéu birado‘ e depois ‗chapéu virado‘. Outra possibilidade é a da corruptela cabocla que identificava a beira como a parte virada do chapéu.

O informante refere-se a um topônimo: Porto Artur. Era um comendador que possuía um chalé em frente à praia que hoje recebe o nome de Porto Artur, por causa do porto que ficava em frente a sua casa, onde podia aportar o barco que trazia sua família para o aprazível fim-de-semana. Hoje, além da praia, um logradouro também tem seu nome: Trav. Artur Pires Teixeira. A razão de se dar importância a esse ilustre frequentador da Ilha é que foi ele fundador, além da linha férrea, do primeiro e único cinema de Mosqueiro: o Cine Guajarino, que, conforme Pedro Veriano (1999, p. 40), funcionou de 1912 até 1976. O Sr. Brígido falou, ainda, de dois logradouros: a 3ª Rua e a Pratiquara. O nome oficial da 3ª Rua é Tenente Coronel José do Ó. É bem comum na Vila esse fato, pois a grande maioria dos moradores costuma nomear os logradouros de 1ª, 2ª, 3ª, etc., até a 8ª Rua. Porém, todas têm nomes oficiais de personalidades históricas que, de um modo ou de outro, foram relevantes para a história do Mosqueiro de outrora. Pratiquara é o nome de uma travessa importante na Vila, bairro mais antigo da Bucólica (que é outra denominação da Ilha). É de origem tupi o vocábulo e originou-se a partir do principal rio que banha Mosqueiro, o Pratiquara,que , em português, significa ‗rio das pratiqueiras‘. Muitos outros 44 topônimos no Mosqueiro são de origem tupi: Mari-Mari, Ariramba, Carananduba, Sucurijuquara, etc. A expressividade de nosso entrevistado vem de sua espontaneidade ao falar, de seu ótimo humor, da coloquialidade de sua fala. Por exemplo, emprega a palavra ‗morcegar‘ que, segundo Houaiss (2004, p. 1959), significa, no contexto usado, ―[...] embarcar ou saltar de (trem, bonde etc) em movimento.‖ E, de certa forma, sentimo-nos também com vontade de morcegar, tanto o trenzinho, quanto a narrativa contada, tamanha a vivacidade e importância de suas reminiscências.

3 Considerações finais

A resposta que se pretendeu dar com esta pesquisa ése as narrativas orais da Ilha de Mosqueiro constituem ―documento vivo‖, preservando, em sua estrutura, traços sócio- histórico-culturais, ou seja, se podem elas ser fonte de dados fidedigna sobre economia, relações sociais, fatos históricos relevantes, geografia local, hábitos cotidianos, eventos cíclicos festivos tradicionais, variantes lingüísticas, etc. A-gora, com conhecimento de causa, já procedidas as análises das narrativas orais de moradores ilhéus, pode-se afirmar, categoricamente, que em tais narrativas há presença de traços sócio-histórico-culturais que preservam a memória local (no que diz respeito a aspectos tais como economia, relações sociais, fatos históricos relevantes, geografia local, hábitos cotidianos, eventos cíclicos festivos, variantes linguísticas, etc.). No entanto, em grande parte devido a preconceitos contra a oralidade, perdem-se opor-tunidades ímpares, a partir da História oral, de geração de dados para pesquisas em áreas diversas do conhecimento, com amplas possibilidades de produção científica coletiva e interdisciplinar. De outro lado, entende-se que, ao registrar entrevistas e depoimentos de pessoas de idade já avançada, contribui-se para o resgate do imaginário popular e, de certa forma, valoriza-se a sabedoria dessas pessoas, muitas vezes vítimas do preconceito contra idosos, pessoas que geralmente não têm da sociedade a gratidão pela qual fizeram por merecer o respeito que lhes é negado. São, os idosos, um repositório de riqueza cultural e, desse modo, deveriam ser vistas e prestigiadas. De modo algum pode ser considerado lamentável o fato de se realizar pesquisa de campo. O autor desta pesquisa, que tanto prezava o conhecimento apenas livresco e quase que menosprezava a oralidade em sua imensa riqueza de expressão e significado, pensa bem diferente neste momento, pelo muito que aprendeu e apreendeu com a pesquisa, seja 45 ela no segmento a partir do referencial teórico, isto é, bibliográfica, seja a parte da pesquisa de campo − ambas têm igual valor. Por tudo isso, não é à toa que se deve gradecer aos senhores que concederam atenciosa, educada e sinceramente seu valioso tempo, para que com eles o pesquisador pudesse aprender da lição da sabedoria do tempo, da experiência, do conhecimento pragmático, empírico, e, acima de tudo, da humildade e da simplicidade de que, em diversas situações, a academia prescinde. Pôde-se observar que, antes de realizar esta pesquisa, mais importância, em diversas situações, era dadaao macro do que ao micro, sem se perceber o quanto do macrocontexto está contido em um microcontexto, e vice-versa. Aprendeu-se, também, a dar maior relevância ao mito como estruturador das relações sociais. E não seria exagero fazer a assertiva de que o mito quase que direciona o processo de interação social, seja ela em estrito ou abrangente contexto. Assim, conhecer mais a terra de origem e a gente que nela vive,a memória e o significado destas para a própria trajetória de vida, seja a memória intra ou interpessoal, passou a ter, sem dúvida nenhuma, um valor de grau bem superior a antes deste estudo. E pergunta-se: ―Que seria das pessoas sem a memória, seja ela coletiva, ou individual e egocêntrica?‖ ―Nadasão sem a memória. Ela dá sentido à existência, à vida‖. Esta é a melhor resposta que a pesquisa pôde encontrar para essa questão, mas pode não ser a única, claro. E sabe-se que, neste exato momento, estão todos a criar memória para o futuro, fazendo história, todos, a Historyfrombellow. Espera-se, sinceramente que estudo tenha contribuído para preservar a memória espácio-temporal e humana da Ilha de Mosqueiro e estimular o estudo de seu significado para a comunidade local em seu cotidiano processo de interação.

REFERÊNCIAS:

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TRADUÇÕES PORTUGUESAS DE PAUL DE KOCK NO ACERVO DO GRÊMIO LITERÁRIO PORTUGUÊS DO PARÁ

Alessandra Pantoja Paes13 Profª Drª Valéria Augusti (Orientadora) 14

Resumo: Paul de Kock foi um prolífico escritor francês muito popular no século XIX, tanto na França quanto em outros países, sobretudo, por intermédio das traduções de suas obras. Ao consultarmos os catálogos de bibliotecas e livrarias existentes no Brasil durante o Oitocentos veremos que as obras do escritor tinham ampla circulação nessas instituições. Em pesquisa sobre a prosa de ficção presente no acervo do Grêmio Literário Português do Pará, instituição fundada em 1867 pela comunidade portuguesa, observou-se que Paul de Kock se destacava como um dos romancistas franceses com maior número de obras. Grande parcela dessas obras são traduções portuguesas, algumas enviadas diretamente de Lisboa pelo livreiro correspondente do Grêmio Literário Português do Pará em Portugal, Antonio Maria Pereira. O objetivo do presente trabalho consiste em discorrer sobre alguns dados editoriais dessas traduções, dentre os quais se inserem data de publicação, tradutores, editores, locais de edição etc., bem como abordar determinadas questões relativas às mudanças nos títulos de parcela dessas edições portuguesas operadas pelos tradutores. Palavras-chave: Paul de Kock; Traduções portuguesas; Grêmio Literário Português do Pará. Résumé: Paul de Kock a été un prolifique écrivain français très populaire au XIXème siècle, en France ainsi que dans d‘autres pays, surtout à travers des traductions de ses œuvres. En consultant les catalogues des bibliothèques et des librairies existant au Brésil pendant le XIXe siècle, on voit que les œuvres de l'écrivain ont eues grande diffusion dans ces institutions. Dans une recherche sur la fiction en prose dans la collection du Grêmio Literário Português do Pará [Guilde Littéraire Portugais du Pará], une institution fondée en 1867 par la communauté portugaise, on a observé que Paul de Kock s'est imposé comme l'un des romanciers français avec le plus grand nombre d'œuvres. Grande partie de ces ouvrages sont des traductions portugaises, certaines envoyées directement par le correspondant libraire du Grêmio Literário do Pará au Portugal Antonio Maria Pereira. L'objectif de cet article est de discuter de certaines données éditoriaux de ces traductions, entr‘euxs‘insèrent la date de publication, des traducteurs, des éditeurs, local d‘édition, etc., ainsi que de traiter certaines questions relatives aux changements des titres de ces éditions portugaises par les traducteurs. Mots-clés: Paul de Kock ; Traductions portugaises ; Grêmio Literário Português do Pará.

1. Introdução:

Charles Paul de Kock, mais conhecido em terras brasileiras como Paulo de Kock, nasceu em Passy, Paris, em 21 de maio de 1793 e faleceu em 29 de agosto de 1871. Viveu a maior parte de sua vida no Boulevard Saint Martin, onde escreveu e publicou dramas,

13 Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected] 14 Professora do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected] 48 vaudevilles, óperas cômicas e uma quantidade significativa de romances, que fizeram dele um dos romancistas franceses mais populares no século XIX (MIRECOURT, 1856, p.8). Denominado por alguns críticos literários como o ―romancista das cozinheiras‖, Paul de Kock, como assinalou Pinheiro Chagas, ―fez rir mais de uma geração de leitores‖ (KOCK, S.d., p. 5) por meio de seus romances cômicos, gênero no qual se consagrou. Contudo, atualmente o romancista é pouco conhecido. Isso porque Paul de Kock faz parte de um grupo de autores que muito embora tenha tido suas obras amplamente difundidas em sua época foram, de certa maneira, esquecidos pela posteridade, ou pelo menos considerados como escritores de segunda categoria pelas instâncias legitimadoras da produção literária. Uma das razões que explicam tal ―esquecimento‖ reside no fato de esses autores, apesar de muito apreciados pelos leitores em sua época, terem sido pouco valorizados pelos homens de letras, que consideravam suas produções literárias ―menores‖. Assim, grande parte das leituras consideradas ―populares‖ em determinada época não foram consideradas canônicas pelas histórias literárias de seus respectivos países, as quais privilegiaram outros autores como representativos das literaturas nacionais (ABREU, 2008, p. 15). Todavia, se consultarmos os catálogos de livrarias e bibliotecas brasileiras do século XIX, perceberemos que o autor francês tinha ampla aceitação entre os leitores, sobretudo, graças às traduções portuguesas, que sugerem a penetração do romancista francês também entre os habitantes de Portugal. Em pesquisa realizada no acervo do Grêmio Literário Português do Pará, instituição fundada em 1867 pela comunidade portuguesa, no que se refere à presença da prosa de ficção francesa em seu acervo, chama a atenção a quantidade significativa dos exemplares referentes ao escritor Paul de Kock, constando atualmente 87edições disponíveis do romancista, incluindo edições do século XIX e do século XX. Dessas, apenas uma está em língua francesa, sete são edições nacionais publicadas em língua portuguesa e setenta e nove, a maioria esmagadora, são traduções portuguesas. Grande parcela dessas traduções foi enviada diretamente de Portugal ao Gremio Literário Portugues do Pará por Antonio Maria Pereira, livreiro correspondente dessa instituição em Lisboa15.

2. Traduções portuguesas de Paul de Kock nas estantes do Grêmio Literário

15 Conforme as listas de envio de livros remetidos ao Grêmio Literário Português do Pará por Antonio Maria Pereira, documentos que acompanhavam as remessas de obras enviadas de Lisboa para Belém, de Paul de Kock, entre 20 de outubro de 1868 e 26 de maio de 1871 foram remetidos 45 títulos, sem contar os repetidos. Atualmente nem todos os títulos registrados nos documentos referidos se encontram disponíveis no acervo da instituição. Conferir: Listas de envio de livros remetidos ao Grêmio Literário Português do Pará. 49

Português do Pará:

A análise dos dados editoriais das traduções portuguesas de Paul de Kock, atualmente presentes no Grêmio Literário Português do Pará, mostra uma diversidade de tradutores que contribuíram para a difusão das obras do escritor em países onde a língua portuguesa era a língua materna. As traduções portuguesas mais antigas são as realizadas por António Joaquim Nery, um dos primeiros tradutores portugueses de Paul de Kock. Durante a década de 1830 publicou inúmeras traduções de diferentes autores e outros escritos de sua autoria na tipografia de Felipe Nery denominada Typographia de Nery16. Publicou ainda em outras tipografias, como a Comercial Portuense e a Patriótica. Alguns anos depois, já detentor de uma tipografia, passou a editar as próprias traduções em nome da Tipografia que denominou Neryana. (LISBOA, 2012, p. 14) Assim, além de tradutor, Joaquim Nery passou também a exercer o ofício de editor e tipógrafo. A partir de 1841, o essencial de sua produção consistiu em traduzir Paul de Kock, de quem, segundo João Luís Lisboa ―public[ou] mais de duas dezenas de títulos‖ (IBIDEM, 2012, p. 14). Dentre as edições de Paul de Kock presentes no acervo do Grêmio Literário Português do Pará, onze são traduções de António Joaquim Nery referentes ao período em que este já possuía a Typographia Neryana. Essas edições, todas elas editadas pelo próprio tradutor, são todas da década de 1840. Segue abaixo um quadro com todos os dados editoriais referentes às traduções portuguesas de Paul de Kock realizadas por Joaquim Nery presentes no acervo do Grêmio Literário Português do Pará17.

Título do Data de Título da Data de Menção Menção Editor Local de original publica tradução publicaçã do da língua edição ção do o da tradutor de origem original tradução La famille Gogo [183?] A família Gógó 1845 Traducção Não consta Joaquim Typographia (4 tomos) de Nery Nery Neryana La laitière de 1827 A leiteira de 1843-1844 Traducção Não consta Joaquim Typographia Montfermeil Montfermeil (4 de Nery Nery Neryana tomos) Jean [18??] João (4 tomos) 1846 Traducção Não consta Joaquim Typographia de Nery Nery Neryana André le savoyard 1825 André, o 1844 Traducção Não consta Joaquim Typographia saboyano (4 de Nery Nery Neryana tomos) Georgette ou la 1820 Georgetta, ou a 1842 Traducção Não consta Joaquim Typographia

16 Não se sabe, até o presente momento, se há algum parentesco entre Felipe Nery e Joaquim Nery, tendo em vista que ambos tinham o mesmo sobrenome. 17 Optou-se por disponibilizar, ainda, no quadro informativo o título do romance na língua original, bem como o ano da primeira publicação de tais títulos. 50

Nièce du tabellion sobrinha do de Nery Nery Neryana tabellião (4 tomos) Ce Monsieur [183?] Este senhor! (4 1842 Traducção Não consta Joaquim Typographia tomos) de Nery Nery Neryana l’Homme de la [182?] Homem da 1843 Traducção Não consta Joaquim Typographia nature et l’Homme natureza e o de Nery Nery Neryana Police homem civilisado (4 tomos) Le jeune homme [181?] Hum jovem 1846 Traducção Não consta Joaquim Tipographia charmant encantador(4 de Nery Nery Neryana tomos) Magdalena [18??] Magdalena (4 1844 Traducção Não consta Joaquim Typographia tomos) de Nery Nery Neryana Sans cravate ou les [18??] Sem gravata, ou 1845 Traducção Não consta Joaquim Typographia comissionnaires os moços de de Nery Nery Neryana recados (4 tomos)

Conforme se observa no quadro acima, as edições das obras de Kock traduzidas e publicadas por Nery foram sucessivas. Apenas no ano de 1844 publicou e traduziu pelo menos três edições das obras do escritor francês: os quatro tomos de Magdalena, os quatro tomos de André, o saboyano, e os dois últimos tomos de A leiteira de Montfermeil. Denominadas de ―Traducção de Nery‖, essas traduções não fazem referência à língua de origem dos textos originais, tampouco aos textos fontes utilizados pelo tradutor. Contudo, sabe-se que até a década de 1840, várias edições em língua francesa de Paul de Kock, posteriormente traduzidas por Joaquim Nery, já haviam sido publicadas ou reeditadas. Na década de 1830, por exemplo, Gustave Barba, irmão de um dos primeiros editores de Paul de Kock, Jean-Nicolas Barba publicou ou possivelmente reeditou uma coleção de vários romances do escritor já anteriormente publicados por seu irmão, dentre esses se encontram: l’Homme de la nature et l’Homme Police, de 1831; Madeleine, de 1835; Georgette ou la Nièce du tabellion, de 1833; André le savoyard, de 1835; La laitière de Montfermeil, 1836, dentre outros. Mais tarde, na década de 1840, Gustave Barba reeditou todos os romances dessa mesma coleção18. Há que se destacar também a possibilidade da circulação em Portugal de contrafações belgas dos romances de Paul de Kock, publicadas, sobretudo em Bruxelas e que circularam tanto na Europa quanto na América durante o século XIX (MIRECOURT, 1856, p. 57). Atualmente, encontram-se disponíveis online várias edições de Paul de Kock que referenciam, em suas páginas de rosto, Bruxelas, como local de impressão, indicando tratar-se provavelmente de textos contrafeitos. Dentre esses textos encontra-se uma edição de 1844 de La famille Gogo, uma edição de 1837 de André le savoyard, uma edição de 1841

18 Várias edições dos romances de Paul de Kock publicadas por Gustave Barba, sobretudo, nas décadas de 1830 e 1840 estão disponíveis no site: http://archive.org/index.php 51 de Ni jamais, ni toujour dentre outras19. Desse modo, verifica-se ser muito difícil se chegar a uma hipótese dos supostos textos fontes que teriam sido utilizados não apenas por Nery, bem como pelos outros tradutores portugueses já citados. Além de Joaquim Nery, há também outro tradutor que aparece com frequência nas edições portuguesas de Paul de Kock presentes no Grêmio Literário Português do Pará: J. A. Xavier de Magalhães. Este tradutor, que geralmente também desempenhava a função de editor das obras que traduzia, é responsável pela tradução de catorze das edições de Paul de Kock disponíveis no acervo da instituição referida. Dessas, doze foram publicadas pela Typographia de Salles, uma pela Imprensa de Lucas Evangelista Torres e uma pela Imprensa Minerva. Segue abaixo um quadro com todos os dados referentes às traduções portuguesas de Paul de Kock realizadas por Xavier de Magalhães presentes no acervo do Grêmio Literário Português do Pará.

Título do Data de Título da Data de Menção Menção Editor Local de original publicaçã tradução publicaçã do da língua edição o do o da tradutor de origem original tradução Les petits 1867 Os pequenos 1867 Tradutor Não consta J. A. Xavier Typographia ruisseaux regatos formam J. A. de Magalhães de Salles os grandes Xavier de ribeiros Magalhães Le Professeur 1867 O professor 1867 Tradutor Não consta J. A. Xavier Typographia Ficheclaque Ficheclaque J. A. de Magalhães de Salles Xavier de Magalhães Le petit 1871 O rapaz 1871 Tradutor Não consta J. A. Xavier Typographia bonhomne du misterioso da J. A. de Magalhães de Salles coin esquina Xavier de Magalhães L’amoureux [18??] Um namorado 1871-1872 Tradutor Não consta J. A. Xavier Typographia transi caloiro (2vl) J. A. de Magalhães de Salles Xavier de Magalhães Friquette 1873 Friquette 1873 Tradutor Não consta J. A. Xavier Typographia J. A. de Magalhães de Salles Xavier de Magalhães Les étuvistes [18??] O bandido 1866-1867 Tradutor Não consta J. A. Xavier Typographia Giovanni (2vl) J. A. de Magalhães de Salles Xavier de Magalhães Les bains [18??] Os banhos 1868 Tradutor Não consta J. A. Xavier Typographia J. A. de Magalhães de Salles Xavier de Magalhães La journée d'un [18??] O dia de um 1868 Tradutor Não consta J. A. Xavier Typographia monsieur qui homem que não J. A. de Magalhães de Salles n'a pas le temps tem tempo Xavier de

19 Conferir: http://archive.org/details/pauldekock00mireuoft

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Magalhães Les compagnos [186?] Os 1870 Tradutor Não consta J. A. Xavier Typographia de la truffe companheiros J. A. de Magalhães de Salles das Tuberas Xavier de Magalhães Un monsieur [18??] Um Homem 1868 Tradutor Não consta J. A. Xavier Typographia très- tourmenté atribulado J. A. de Magalhães de Salles Xavier de Magalhães La mare [18??] Benjamin Não consta Versão de Não consta J. A. Xavier Imprensa d'Auteuil Godichon Xavier de de Magalhães Minerva (Benjamin Magalhães Godichon) Título [18??] Jorgezinho 1895 Versão de Não consta J. A. Xavier Imprensa de desconhecido Xavier de de Magalhães Lucas Magalhães Evangelista Torres

Conforme se observa no quadro acima as edições referentes às traduções de Xavier de Magalhães para a Typographia de Salles pertencem às décadas de 1860 e 1870. Xavier de Magalhães traduziu sucessivamente mais de um romance por ano conforme os dados expostos acima. Em 1867, por exemplo, concretizou as traduções de: O Professor Ficheclaque, Os pequenos regatos formam os grandes ribeiros e o segundo volume de O bandido Giovanni, todas elas editadas pelo próprio tradutor. Esses dados demonstram que as traduções de Paul de Kock tinham bastante saída no mercado editorial português da época, uma vez que observamos a tradução de várias obras em um mesmo ano. Interessa ainda notar que algumas das traduções realizadas por Xavier de Magalhães foram publicadas no mesmo ano que as edições originais. Esse é o caso de Os pequenos regatos formam os grandes ribeiros (1867), tradução de Les petits ruisseaux (1867); O professor Ficheclaque (1867), tradução de Le professeur Ficheclaque (1873); O rapaz mysterioso da esquina (1871), tradução de Le petit bonhomne du coin (1871) e Friquette (1873), tradução de Friquette (1873). Desse modo, observa-se que determinadas traduções portuguesas de Paul de Kock eram realizadas simultaneamente ao período das publicações das obras originais, fato que ratifica a popularidade de suas obras em Portugal. Alguns títulos das edições traduzidas por Xavier de Magalhães conservam o título original sem traduzi-lo, como é o caso da tradução do romance Friquette, ou são traduzidos para o português conservando dentro dos limites possíveis da língua a semântica do original, nos casos das traduções de La journée d'un monsieur qui n'a pas le temps [18??], traduzido para O dia de um homem que não tem tempo ; Le Professeur Ficheclaque (1867), traduzido para O professor Ficheclaque e Les compagnos de la truffe [18??], traduzido para Os companheiros da tuberas. Contudo, há títulos em que novas informações foram acrescentadas em relação ao original. Esse é o caso de Les petits ruisseaux que foi traduzido para Os pequenos regatos formam 53 os grandes ribeiros. Observa-se que a tradução portuguesa além de traduzir as três primeiras palavras que compõem o título original adicionou mais três a essas formando, ao que parece, uma expressão ou provérbio na língua portuguesa. Já o romance Les étuvistes, publicado em 1857 por Alexandre Cadot foi traduzido para O bandido Giovanni, obra em que o título do original foi completamente alterado, sem, no entanto, haver qualquer informação a esse respeito na edição traduzida. Interessa observar que a edição publicada pela Imprensa Minerva, traduzida por Xavier de Magalhães, publicou a segunda parte da obra La mare d'Auteuil, intitulada ―Benjamim Godichon‖ como se fosse um novo título, visto que transformou o título da segunda parte do romance em título da obra sem fazer qualquer menção ao título La mare d’Auteuil. No que tange à edição publicada pela Imprensa de Lucas Evangelista Torres em 1895, denominada por Xavier de Magalhães de Jorgezinho, se desconhece o romance original que teria servido como texto fonte para essa tradução, dificuldade resultante, sobretudo, em virtude do título adotado pelo tradutor português. Acredita-se que no momento de verter para sua língua materna o título original do romance, ele o tenha modificado completamente tal como fez quando da tradução de Les étuvistes, uma vez que dentre a prosa de ficção de Paul de Kock não foi possivel encontrar título equivalente ou mesmo próximo daquele denominado por Xavier de Magalhães. Algumas traduções portuguesas como as publicadas pela Empresa da História de Portugal em primórdios do século XX silenciam o nome desse importante personagem da história do livro que é o tradutor. Contudo, revelam a prática da tradução ao serem caracterizadas nas páginas de rosto como ―versão portugueza‖. Grande parte dos títulos dessas traduções foi vertida para o português sem, contudo, alterarem significativamente os títulos originais. La fille aux trois jupons (1863), por exemplo, foi traduzida para A menina das três saias, Une jeune homme mystérieux [18??] foi traduzida para Um rapaz mysterioso, Le sentier aux prunes (1864) em português foi intitulada A vereda das ameixas. Todavia, alguns títulos sugerem uma liberdade maior por parte do tradutor. Esse é o caso da tradução de Un monsieur très-tourmenté [18??] vertido em português para Uma vida atribulada. O pronome de tratamento monsieur foi modificado pelo substantivo comum vida. Convém lembrar que Xavier de Magalhães, como já mencionado, também realizou em 1868, trinta e oito anos antes, uma tradução desse romance, o qual intitulou diferentemente da tradução da Empreza da História de Portugal, Um homem atribulado. Já as traduções intituladas Os novos trovadores e O neto de Cartouche, segunda parte do primeiro romance, suprimiram os subtítulos que as compunham, uma vez que os originais das traduções acima foram intitulados Les 54 nouveaux troubadours: suíte des enfants du boulevard e Le petit-fils de Cartouche: suit des enfants du bulervard, respectivamente. Nessas traduções também não há nenhuma menção quanto à língua original nem ao texto fonte que teria sido utilizado pelo tradutor anônimo. Vale atentar para a possibilidade de essas traduções serem na verdade retraduções, visto que todos esses títulos traduzidos pela Empresa da História de Portugal já haviam sido traduzidos anteriormente no século XIX e publicados por outras tipografias e casas editoras como a Typographia de Salles, que nas décadas de 1860 e 1870 publicara traduções de grande parte desses títulos. Das traduções publicadas pela Empreza da História de Portugal, somente a de Um galucho não foi possível verificar se já havia sido realizada anteriormente, visto que por meio desse título não foi possível chegar ao título do romance original, provavelmente por tratar-se de um título com significado bem diverso do original, como tantas outras traduções portuguesas de Paul de Kock. Contudo, não há como saber de fato se essas traduções do século XX são novas traduções ou retraduções, pois como mencionado, elas não fazem referência ao texto fonte utilizado, tampouco mencionam a existência de outras traduções portuguesas anteriores dos títulos de Paul de Kock, ou mesmo assinalam a língua dos romances originais, como se observa no quadro abaixo:

Título do Data de Título da Data de Menção Menção da Editor Local de edição original publicação tradução publicaç do língua de do original ão da tradutor origem tradução La petite Lise 1870 A menina 1907 Não Não consta Henrique Empreza da Lisa consta Marques História de Portugal L'homme aux [18??] O homem dos 1907 Não Não consta Henrique Empreza da trois culottes três calções consta Marques História de (2vl) Portugal La prairie aux 1862 O campo das 1908 Não Não consta Henrique Empreza da coqueticots papoulas (3vl) consta Marques História de Portugal Le sentier aux 1864 A vereda das 1909 Não Não consta Henrique Empreza da prunes ameixas consta Marques História de Portugal La mare [18??] A lagoa 1906 Não Não consta Henrique Empreza da d'Auteuil d’auteuil (3vl) consta Marques História de Portugal La fille aux 1863 A menina das 1906 Não Não consta Henrique Empreza da trois jupons três saias consta Marques História de Portugal Une femme à [18??] A mulher das 1908 Não Não consta Henrique Empreza da trois visages três caras (3vl) consta Marques História de Portugal L’amour qui [18??] Amor que S.d Não Não consta Henrique Empresza da passe et l'amour acaba e amor consta Marques História de qui vient que começa Portugal Gustave ou le (1821) Gustavo, o 1908 Não Não consta Henrique Empreza da mauvais sujet estroina (2vl) consta Marques História de Portugal 55

Título [18??] Um Galucho 1911 Não Não consta Henrique Empreza da desconhecido (2vl) consta Marques História de Portugal Souer Anne [18??] Irmã Anna 1911 Não Não consta Henrique Empreza da (2vl) consta Marques História de Portugal La jolie fille du [18??] Menina bonita 1911 Não Não consta Henrique Empreza da faubourg do arrabalde consta Marques História de (2vl) Portugal Les nouveaux 1864 Os novos 1909 Não Não consta Henrique Empreza da troubadours: trovadores consta Marques História de Les enfants du Portugal boulevard (1 vl) Un petit-fils de 1864 O neto de 1909 Não Não consta Henrique Empreza da Cartouche: Les cartouche consta Marques História de enfants du Portugal boulevard (2vl) Le concierge de 1869 O porteiro da 1906 Não Não consta Henrique Empreza da La Rue Du Rua Du Bac consta Marques História de Bac Portugal Une jeune [18??] Um rapaz 1907 Não Não consta Henrique Empreza da homme mysterioso consta Marques História de mystérieux Portugal Monsieur [18??] O Sr. 1906 Não Não consta Henrique Empreza da Choublanc à la Choublanc á consta Marques História de recherche de sa procura da Portugal femme mulher Un monsieur [18??] Uma vida 1906 Não Não consta Henrique Empreza da très- tourmenté atribulada consta Marques História de Portugal

3. Conclusão:

Muito embora, no presente trabalho não tenha sido possível analisar todas as edições portuguesas de Paul de Kock presentes no Grêmio Literário Português do Pará, apenas por meio das que foram contempladas neste trabalho é possível perceber que houve uma frequência contínua de publicação das obras do escritor em Portugal. Joaquim Nery publicou edições consecutivas na década de 1840. Traduzir Paul de Kock era o essencial de sua produção, e segundo Maria de Lourdes dos Santos, quando Nery ―já não tinha mais romances de Kock para traduzir, o havia de imitar na tentativa de conservar a ‗galinha dos ovos de ouro‘‖ (SANTOS, 1985, p. 5). De Xavier de Magalhães foram no mínimo 14 edições traduzidas, ao longo das décadas de 1860 e 1870, conforme demonstram as edições atualmente presentes no Grêmio Literário Português do Pará. No século XX o romancista também foi consecutivamente editado, sobretudo pela Empresa da História de Portugal, que entre 1905 e 1911 publicou dezoito edições, geralmente mais de uma por ano, como o demonstra o ano de 1906, em que constam cinco edições publicadas por essa empresa. Por meio dessas edições traduzidas podemos verificar, ainda, que muitos dos títulos originais dos romances de Paul de Kock ganhavam novos títulos quando traduzidos para a 56 língua portuguesa. Tal fato nos faz atentar para a questão da tradução e da função do tradutor no século XIX, que não se limitava a simplesmente verter um texto de uma língua para outra. A respeito da função do tradutor no Oitocentos Márcia Abreu assinala: ―seu ofício não se resumia, de forma alguma, à passagem de um texto de uma língua a outra e se desenvolvia numa zona incerta no interior da criação‖ (ABREU, 2008, p. 18). Sem as restrições impostas pela noção de autoria e direitos autorais, durante o século XIX as traduções não tinham qualquer obrigação de fidelidade ao texto original. (VASCONCELOS, 2002, 9-10). Tal fato deixava os tradutores ―livres‖ para realizarem nas obras as intervenções que julgassem necessárias. Assim Les Étuvistes transforma-se em Fidalgos e plebeus e La mare d’Auteuil em Benjamim Godichon. Muito embora não saibamos ainda que outras alterações foram realizadas por esses tradutores além das mudanças de títulos, é possível que corte de capítulos, acréscimo de episódios, etc., tenham sido realizados20. Em virtude das mudanças de títulos, pode-se supor, no entanto, que as traduções portuguesas possam ter operado outras e diversas alterações nos textos originais. Isso implica em pensar que aqueles que liam as obras de Paul de Kock mediados por essas traduções talvez lessem romances muito diversos dos originais escritos pelo autor.

REFERÊNCIAS: ABREU, Márcia. Trajetórias do Romance: circulação, leitura e escrita nos séculos XVIII e XIX. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2008. KOCK, Paul de. Memorias de Paulo de Kock. Tradução de Pinheiro Chagas. Lisboa: C.S. AFRA e Cia. s. d. LISBOA, João Luís. Do editar ao editor: Portugal e as transformações no mundo do impresso no século XIX, p. 12. In: Escola São Paulo de estudos avançados sobre a globalização da cultura no século XIX. Disponível em: www.espea.iel.unicamp.br MIRECOURT, Eugène. Les contemporains : Paul de Kock. 6. ed. Paris: Gustave Havard, Éditeur, 1856. Versão eletrônica. Disponível em: http://archive.org/details/pauldekock00mireuoft RAMICELLI, Maria Eulália. Narrativas itinerantes: aspectos franco-britânicos da ficção brasileira, em periódicos da primeira metade do século XIX. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2009. SANTOS, Maria de Lourdes Lima dos. As penas de viver da pena (aspectos do mercado nacional do livro no século XIX). Análise social, vol. XXI, 1985, pp. 187-227. Disponível em: analisesocial.ics.ul.pt/.../1223477558I9uAH0jy3Un61TI1.pdf VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeira de. Leituras Inglesas no Brasil oitocentista. In: Crop: revista da área de língua inglesa e norte – americana do Departamento de Letras Modernas/ FFLCH. USP, n. 8, 2012, pp. 223-247.

20 Para saber mais acerca dos procedimentos tradutórios realizados durante o Oitocentos no que tange à prosa de ficção conferir: RAMICELLI, Maria Eulália. Narrativas itinerantes: aspectos franco-britânicos da ficção brasileira, em periódicos da primeira metade do século XIX. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2009.

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UM CANTO AOS QUATRO CANTOS: o processo de universalização da narrativa O canto da mulher loira*

A SONG TO THE FOUR CORNERS: the process of universalizing narrative The song woman's blonde

Alexandre Ranieri (UEL/SEDUC-PA)21

Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar o processo de adaptação da narrativa O canto da mulher loira presente no CD-ROM Caleidoscópio Amazônico em comparação com a transcrição da narrativa homônima retirada do livro Belém conta... que deu origem a versão do Caleidoscópio, com vistas a entender o processo de adaptação e tradução da narrativa como fator de universalização da mesma e investigar de que forma a recriação e a tecnologia utilizadas ainda permitem a narrativa conservar traços do "etnotexto" descrito por PELEN (2001) e representar uma "comarca oral" segundo PACHECO (1992). Ou seja, se o mesmo ainda reflete a visão de mundo, usos e costumes, mesmo que esse texto tenha sido recriado num outro formato, para outro fim e público diverso. Portanto, pretende-se entender até que ponto a narrativa, no formato em que se encontra, sofreu um processo de "desenraizamento" (WEIL 1943)ou, até que ponto ela ainda encontra-se enraizada já que ainda conserva traços de "etnotexto" e ainda representa, de certa forma, a "comarca oral" da Amazônia Paraense. Para tanto, usaremos, também, como arcabouço teórico os estudos de autores como ZUMTHOR (2005) e LEVY (1999).

Palavras-chave: Mulher Loira; Caleidoscópio; Narrativa; Universalização.

Abstract: This article aims to analyze the process of adapting the narrative The song woman's blonde in this CDROM Caleidoscópio Amazônico compared to the transcript of the story from the book of the same name Belém conta ... that originated version of Kaleidoscope, aiming to understand the process of adaptation and translation of the narrative as the same universal factor and investigate how technology used to recreate and still allow the narrative preserve traces of "etnotext" described by PELEN (2001) and represent an "oral region" according PACHECO (1992). That is, if it still reflects the worldview and customs, even if the text has been recreated in another format, for another purpose and diverse audience. Therefore, we intend to understand the extent to which the narrative in the format in which it is, underwent a process of "uprooting" (WEIL 1943), or to what extent it is still rooted since still retains traces of "etnotext" and still represents somehow, the "oral region" Amazon of Pará. Therefore, we will use also as theoretical studies of authors such as ZUMTHOR (2005) and Levy (1999).

* Artigo apresentado como requisito parcial para a conclusão da disciplina Texto e Hipertexto, ministrada pelo professor Dr. Alamir Aquino Corrêa. 21 Doutorando em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Estadual de Londrina sob a orientação do Prof.Dr. Frederico Fernandes. Professor licenciado da Secretaria de Educação do Estado do Pará. 58

Keywords: Blond Woman; Caleidoscópio; Narrative; Universalizing.

1. Os primeiros cantos

Segundo Lotman (1975, P.291) a cultura não é um depósito de informações e sim, um mecanismo organizado de modo extremamente complexo e que conserva as informações, elaborando continuamente os procedimentos mais vantajosos e compatíveis, recebendo as coisas novas traduzindo-as para outro sistema de signos. Podemos citar como exemplo disso o "canto das sereias". Segundo uma das muitas hipóteses acerca da "questão homérica" o mesmo (se é que realmente existiu) teria coletado muitas das narrativas orais que circulavam na Grécia Antiga e as compilou em dois livros que chegaram até os nossos dias: Ilíada e Odisseia. No canto XII da Odisseia, Ulisses, ao retornar para Ítaca depois de uma jornada de cerca de dez anos encontra com as sereias do mar. Todavia é alertado para os perigos de escutá-las e pede aos seus companheiros de viagem que o amarrem na proa do navio para que não seja levado pelo canto das sereias. (HOMERO, 2007 p. 150-160) A história é clássica e até hoje encanta e aguça o imaginário em várias partes do mundo. Filmes, representações teatrais, livros em vários gêneros e em variadas épocas, desenhos animados, culturas afro, narrativas orais.... A narrativa que apresentamos, O canto da mulher loira, que foi retirada do CD- ROM22 Caleidoscópio Amazônico: uma aventura de imagens e cores, lançado em 1998, é um exemplo disso: fez vários percursos desde sua provável origem até adquirir o formato multimidiático que se apresenta no objeto analisado. Em relação ao processo que fez com que a narrativa chegasse até a informante do projeto IFNOPAP (O Imaginário nas Formas Narrativas Orais Populares da Amazônia Paraense), nada podemos afirmar com precisão. Claro, podemos imaginar um percurso desde a cultura oral grega Antiga, passando pela Odisseia de Homero, retomando um caráter oral na Idade Média e sendo difundida por toda a Península Ibérica (ou se espalhando pelo mundo através da dominação romana), depois se infiltrando novamente na cultura escrita, chegando ao Brasil através de Portugal até se readaptar novamente a cultura oral da Amazônia paraense. No entanto, essas seriam apenas suposições e nunca teremos a certeza de quais ou quantas maneiras o mito chegou em várias partes do mundo.

22 Disco compacto que possibilita apenas o acesso aos dados, sem permitir que o usuário altere o conteúdo apresentado. 59

O objetivo deste artigo é analisar até que ponto a narrativa O canto da mulher loira é enraizada ou universal, levando em consideração não apenas os primeiros mitos das sereias dos quais temos notícia, mas todo o processo que vai desde a coleta da narrativa até uso da tecnologia digital como suporte multimidiático da história contida no Caleidoscópio Amazônico.

2. Enraizamento e reenraizamento do canto

Sabendo que o presente artigo tem como objetivo analisar essa possível universalização da narrativa em questão é importante ressaltarmos que a sua temática por si só, como vimos anteriormente, já passou por um processo de universalização, tendo em vista que se espalhou por várias partes do mundo antes ou ao mesmo tempo em que se enraizava na cultura oral da Amazônia. No entanto, isso só foi possível graças ao processo atribuído ao suposto Homero de ter adaptado a cultura oral grega antiga às epopeias clássicas Ilíada e Odisséia. Para Pierre Levy (LEVY, 1999, p.115) a escrita condiciona o universal, portanto, segundo ele, não há universalidade sem escrita. Então, seguindo esse princípio, as narrativas de sereias saíram de um estado enraizado na cultura oral popular grega antiga e passaram por um processo de universalização até se enraizar novamente na cultura oral amazônica que, como qualquer outra cultura pautada na memória coletiva, como vimos acima, nas palavras de Lotman, se apropria do que lhe é vantajoso, conforme tentaremos demonstrar no gráfico abaixo:

Oralidade Grega

Ilíadae Odisséia

Navegações Grandes

Expansão romana Cultura de massae senso Sec.do comum XX Narrativas Orais Da Amazônia Domínio e

Enraizamento Enraizament o

Universaliza Gráfico 1: Enraizamento e universalização do canto das sereias ção 60

O gráfico acima mostra um eixo "X" de enraizamento que possui setas apontando tanto para a direita quanto para a esquerda, o que significa dizer que o processo de enraizamento do mito das sereias não segue uma única direção, para ambos os lados pode haver um enraizamento. No entanto, os pontos em que isso ocorre com maior destaque está nas extremidades do eixo. Como não temos como saber onde exatamente começaram a ser difundidos os mitos de sereia, a oralidade grega é nosso ponto de partida. Todavia, deixamos um espaço entre a oralidade grega e o final da seta para a esquerda no intuito de explicitar essa impossibilidade de sabermos se poderia haver algum outro ponto anterior às narrativas orais gregas. Entre o enraizamento a esquerda da tabela e o eixo de universalização ("Y") destacamos alguns processos que contribuíram para tornar o mito universal. Entretanto, é importante destacar que eles não foram os únicos. Temos, por exemplo, as inúmera referências literárias em distintas épocas como o classicismo, o neoclassicismo e até mesmo a modernidade. Temos traços, desde as novelas de cavalaria na Idade Média, passando por autores como Camões até uma infinidade de referências na modernidade como Kafka, por exemplo. As narrativas orais da Amazônia, por outro lado, se encontram no extremo oposto, um ponto em que o mito foi reenraizado em outra cultura distinta e separa pelo tempo. Por certo, devem haver outros processos de enraizamento do mito em muitas outras culturas mas, ou eles já aconteceram, ou acontecem de maneira concomitante a das narrativas orais amazônicas. Por isso que essas narrativas encontram-se tão próximas do eixo de universalidade. Afinal de contas, foi graças a essa universalização que o mito pode ser novamente enraizado em outra cultura. É por conta disso que precisávamos entender esse processo, pois, temos uma narrativa amazônica como objeto deste estudo que, diferente de outras analisadas por mim em outros estudos similares, já parte para um processo de universalização que tem início em sua própria temática.

3. Desenraizamento e reuniversalização do canto

Segundo Jean-Noël Pelen, existe um Etnotexto com E maiúsculo, que seria uma língua de legitimação da comunidade, aquilo que reflete hábitos, usos, costumes, 61

religião, imaginário em que a "comunidade se espelha, se reproduz, se codifica e se decifra, se desenrola e principalmente, se garante e se legitima" (PELEN, 2001, p. 73). Por outro lado, o etnotexto com "e" minúsculo seriam as múltiplas manifestações, consideradas imperfeitas se comparadas com o Etnotexto. Esse suposto etnotexto seria somente um traço (ou traços) do Etnotexto fora do contexto de produção e enunciação propriamente dito. O conceito de Etno e etnotexto se coaduna com o conceito de enraizamento proposto por Simone Weil que afirma que:

O Enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. É uma das mais difíceis de definir. O ser humano tem uma raiz por sua participação real ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. Participação natural, isto é, que vem automaticamente do lugar, do nascimento, da profissão, do ambiente. (WEIL, 1943, p. 411)

Portanto, o processo oposto ao descrito por WEIL e PELEN é o que chamamos de desenraizamento ou universalização tendo em vista que o texto sai de uma coletividade específica fruto do nascimento, da profissão e/ou do ambiente para uma coletividade muito mais ampla. Portanto, a "aldeia amazônica", palco para a narrativa aqui analisada, vai se tornando o que Mcluhan (MCLUHAN, 1972, p.58) chama de "aldeia global". E, para entendermos um pouco melhor como esse processo funciona no Caleidoscópio Amazônico, o gráfico abaixo pode ser esclarecedor.

Etnotexto

Universalida

"Contaçã

Gravaçã o

Áudi

Coleta Animaçã o

Retextualizaçã o Traduç ão ão o" Transcriç de

Enraizament etnotexto o

Gráfico 2: Processo de universalização da narrativa O canto da mulher loira 62

No diagrama acima, temos um eixo X chamado de Etnotextual e um eixo Y poético oral ou etnotextual, no eixo Y encontram-se todas as fases de produção do CD- ROM do Caleidoscópio Amazônico: coleta, gravação, transcrição, retextualização, tradução, gravação de áudio e a produção das animações. No ponto de interseção entre os eixos, temos o momento de plenitude Etnotextual que, no exemplo das narrativas orais amazônicas, é o momento performático único da transmissão oral, quando a avó, por exemplo, conta uma história ao neto ou quando a uma família se reúne na porta de casa para contar histórias aos amigos, parentes e vizinhos, o que Walter Benjamin vai chamar de "experiência que passa de pessoa a pessoa" (BENJAMIN, 1994, p. 197). A contação, portanto, é o momento de maior enraizamento da narrativa, ainda que a sua temática emane de tempos idos. Por outro lado, do último item (Animação) em diante temos um processo de universalização mais acentuado, no entanto, o que acontece depois do encerramento dos trabalhos de confecção do CD-ROM, ainda não puderam ser estudados. Mas podemos prever que, como o CD foi lançado na França e a grande maioria das suas cópias ficaram com a UNESCO, podemos prever que seu processo de universalização alcançou um nível elevado. Se, por outro lado, eles ficaram em gavetas das quais nunca mais saíram, então, de pouco adiantou todo o processo. Num segundo momento, um pouco mais afastado do eixo Etnotextual, temos a coleta da narrativa, feita por um pesquisador treinado e que tem um objetivo diferente da de qualquer membro da comunidade: o estudo, sociológico, antropológico, literário etc., da mesma maneira que o informante, quando se predispõe a contar uma das narrativas de seu cancioneiro pessoal não tem mais a intenção de educar, divertir, ou entreter um dos membros da sua comunidade e que Carlos Pacheco (1992) denominará "comarca oral". Ou seja, por mais próximo que esta fase esteja do Etnotexto pleno ela não o é, pois já perdeu parte do seu sentido para a comunidade. Todavia, ainda que afastado do Etnotexto, para José Carlos Bom-Meihy a coleta ou entrevista ainda reflete a tradição oral:

Ainda que a tradição oral também implique entrevista com uma ou mais pessoas vivas, ela remete às questões do passado longínquo que se manifestam pelo que chamamos de folclore e pela transmissão geracional, de pais para filhos ou de indivíduos para indivíduos. (...) 63

Os casos de tradição oral implicam o uso do que se chama de narrativas emprestadas. Como para explicação do presente a tradição de aspectos transmitidos por outras gerações, dá-se o empréstimo do patrimônio narrativo alheio, quase sempre herdado dos pais avós e dos velhos (BOM-MEIHY, 1996. p. 45). Momento posterior é o da gravação, ele se desprende da fase anterior no momento em que o instante performático no qual o informante conta ao pesquisador o seu relato chega ao fim e fica registrado numa fita k7 de áudio e/ou vídeo ou qualquer mídia que vai ser levada a um ambiente acadêmico onde será estudada ou transcrita (4º momento da escala acima). Sobre o registro em mídia, Paul Zumthor em seu livro Introdução a poesia oral diz:

A transmissão pela mídia implica, em geral, inscrição nos “arquivos” sonoros. O texto é dessa forma liberado das amarras do tempo: no momento da performance, a canção e o poema existem ao mesmo tempo num presente e, virtualmente, num futuro limitado apenas pela existência material do disco ou da fita. Assim que termina a performance acrescenta-se a essa dimensão, e nos mesmos limites, o passado (ZUMTHOR, 1997, p. 6).

Para o autor, existe um momento (presente) no qual a performance da narração acontece - tal qual o momento da encenação teatral . Quando esse momento é gravado em mídia, ele passa a ter um passado arraigado e dependente da existência material do instrumento de armazenamento. A fase de transcrição é outro momento do processo. Daí em diante, a decisão da equipe de pesquisadores de como fazer é importante. Na coletânea Belém conta... os pesquisadores decidiram respeitar o modo de falar do informante, tentando adequá-lo à transcrição escrita, recriando em texto escrito os momentos de oscilação e pausa, por exemplo, usando reticências nesse caso ou colchetes quando não é possível para o pesquisador entender o que foi dito pelo informante. Todavia, a transcrição deixa passar muitas das características do perfil linguístico da comunidade. Em entrevista concedida no dia 24 de julho de 2012, a pesquisadora Socorro Simões, coordenadora do projeto IFNOPAP, afirma que o critério de transcrição não levou em consideração os fatos fonéticos porque o objetivo do projeto era outro que não necessariamente o linguístico. Então, a transcrição foi feita à maneira de um ditado escolar, respeitando a gramática da língua portuguesa, sendo que, ao final da entrevista 64 as palavras que o entrevistador não compreendesse seriam perguntadas ao informante para a formação do glossário. A retextualização é uma recriação da mesma narrativa (ou de várias com o mesmo tema) em que boa parte das marcas de pessoalidade são atenuadas ou pagadas (dependendo do objetivo do texto). Tanto a transcrição quanto a retextualização são processos de escrita e representam um estágio superior no processo de universalização. A primeira ainda se aproxima da oralidade por tentar simular os fatos da língua cotidiana tais como pausas, inversões, coloquialismos... A segunda faz com que a primeira se coadune ao padrão da gramática normativa, facilitando assim a assimilação por lusófonos e possibilitando uma melhor tradução para outras línguas, em especial as do CD-ROM. Pierre Levy afirma que:

“A escrita abriu um espaço de comunicação desconhecido pelas sociedades orais, no qual tornava-se possível das mensagens produzidas por pessoas que encontravam-se a milhares de quilômetros, ou mortas há séculos, ou então que se expressavam apesar de grandes diferenças culturais ou sociais. A partir daí, os atores da comunicação, não dividiam mais necessariamente a mesma situação, não estavam mais em interação direta”. (LEVY 1999, p. 115)

A escrita, como vimos anteriormente, é um fator de universalização dos mais importantes por permitir o registro, muitas vezes, atemporal e ageográfico do que foi contado. Após a retextualização, as narrativas foram traduzidas. Em seguida, a gravação de áudio foi feita ao mesmo tempo em que as animações em flash foram editadas. Ao final, todas as partes foram agregadas às músicas de fundo.

4. O suporte ao canto

O projeto Caleidoscópio, é uma iniciativa da UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization) e da UNAMAZ (Associação de Universidades Amazônicas) que visou à divulgação de obras de domínio público como narrativas orais amazônicas contidas em CD-ROM. O dispositivo digital apresenta quinze narrativas amazônicas recontadas por pesquisadores do projeto todas com links de hipertexto, narradas em português por 65

Úrsula Vidal23, com versões em inglês, espanhol e francês, sendo que apenas cinco delas possuem animações em Flash24. A narrativa conta a história de um pescador que, na praia do "Vai quem quer", na Ilha de Cotijuba, no município de Belém, escuta uma bela canção vinda de uma mulher muito bonita que estava com um espelho admirando-se sentada em uma pedra. A moça se dizia "encantada" e pede ao pescador que lhe retire o encanto. Entretanto, mesmo fazendo todos os procedimentos que a mulher loira havia lhe pedido, no último instante o homem sente medo e acaba não concluindo a tarefa. A transcrição a partir do relato da informante Sandra Correia, encontra-se no livro Belém Conta...(SIMÕES; GOLDER, 1995), antologia de narrativas coletadas pelo projeto no ano de 1994 que deram origem à série Pará conta... que lançou também os livros Abaetetuba conta... e Santarém conta.... O projeto também vislumbrava lançar outros números referentes a outras cidades nas quais houve coleta de narrativas. Fator importante ao processo de universalização da narrativa em questão, a tecnologia empregada na construção do CD-ROM é o que lhe permitiu sair de um estágio puramente oral de transmissão para a multimidialidade na qual se encontra. Assim, é importante descrevermos o suporte digital no qual se encontra a narrativa para posteriormente entendermos a sua importância no processo. Todo o CD foi feito em Flash, programa que trabalhava em princípio, somente com gráficos vetoriais25, no entanto, a partir da sua quinta versão, o Flash 5.0, foi possível criar aplicações completas com botões que interagem com o usuário e hiperlinks para navegação. Vamos descrever alguns deles até percorrermos o caminho necessários para se chegar a narrativa O canto da mulher loira.

23 "Ursula Vidal tem 40 anos, é Jornalista, Apresentadora, Locutora, Diretora e Produtora Executiva. Tem 25 anos de experiência na área da comunicação. Em 1987, começa a trabalhar como locutora, passando pelas rádios Belém FM, Cultura FM e Liberal FM, de Belém do Pará. Em 1989, passa a trabalhar como repórter e apresentadora da TV Cultura do Pará. Ainda como locutora, mas já morando no Rio de Janeiro, trabalhou na Rede Globo de Televisão, durante 4 anos, narrando quadros do programa FANTÁSTICO. Também atuou como locutora das chamadas da Televisão Educativa (TVE Brasil) e da TV digital SKY. De volta a Belém, em 2000, assume a direção de jornalismo do SBT, onde editou e apresentou o "Jornal SBT Pará" por 10 anos. Atualmente dirige e apresenta o programa " Etc & Tal"." (VIDAL, 2012, S/N) 24 Programa utilizado para a criação de animações interativas em gráficos vetoriais. 25 Ou seja, que se movem num eixo x espacial e num eixo y temporal, criando avatares que se movem num espaço e num tempo predefinidos. 66

Figura 1: Abertura do CD-ROM Caleidoscópio Amazônico

De início, ao som do violão de Salomão Rabib26 vemos ao centro uma imagem representativas de todas as histórias contadas no CD. A esquerda um menu com "Apresentação" que pode levar a um texto de apresentação que trata da idealização do projeto e sua abrangência; "O Caleidoscópio Amazônico", com informações sobre as narrativas contidas no dispositivo; "As narrativas", com as histórias propriamente ditas; "Bases de dados", com narrativas do projeto IFNOPAP e algumas teses e dissertações feitas a partir desse material. Por fim, o botão "Sair" encerra o aplicativo. Abaixo, temos links que levam a versões em inglês, francês e espanhol, além de um botão, com uma nota musical que serve para diminuir ou aumentar o volume em todo o programa tanto da música de fundo quanto das narrações. Há também, no canto inferior esquerdo, um link que leva até os créditos. Clicando em "As narrativas":

26 Músico violonista paraense de renome internacional 67

Figura 2: Submenu de narrativas

Temos outro menu que exibe as cinco primeiras narrativas além de botões, representados por botos da Amazônia, que levam, de maneira cíclica a outras cinco narrativas tanto para frente quanto para trás. Abaixo, um botão de retorno ao menu inicial. Acessando o botão "O canto da mulher loira" temos acesso a narrativa que será melhor descrita adiante em comparação com a sua transcrição original.

5. O canto da mulher loira

O botão acima especificado nos leva imediatamente a narrativa que, como podemos ver abaixo possui imagens de fundo com a mulher loira em várias poses, uma barra de rolagem estilizada, um botão de retorno ao menu anterior e um botão e um botão com uma nota musical tal qual o do menu inicial, mas que, quando clicado dá inicio a narração na voz grave de Ursula Vidal.

68

Figura 3: O canto da mulher loira

A narrativa é uma das dez, presentes no CD-ROM, que não possui animações em flash. Caso contrário, haveria um botão a mais para se inicializar a apresentação concomitante a narração e a leitura do texto. Sobre a voz de Ursula é importante ressaltar que mesmo tendo nascido no Pará, a pessoa quem empresta a sua voz para a narração dificilmente seria caracterizada como nativa do Estado. Sua voz trabalhada, de quem, durante quatro anos foi narradora do programa Fantástico da Rede Globo de televisão em muito pouco lembra o sotaque tipicamente paraense. A escolha da voz foi feita, supostamente, por sua beleza e timbre únicos. Então, um traço da multimidialidade que poderia, de certa forma, resgatar o ato de se contar histórias como uma experiência sonora próxima da espontaneidade não se cumpre pois, uma voz tão bem trabalhada e que apenas lê (ainda que dando certa interpretação) o que foi escrito, acaba por afastar ainda mais o texto do seu enraizamento e mandá-lo mais adiante no processo de universalização. 69

A música de fundo Depois da chuva do Maestro Tó Teixeira27 tão pouco contribui para uma identificação de um nativo pois, como autor de música erudita, suas composições nunca circularam entre as camadas mais populares. O som exótico lembra a Amazônia, mas não a população que faz circular as lendas e mitos e sim uma Amazônia turística envolta nos mistérios que a música parece representar. A narrativa começa com a frase " Aquela senhora conta essa história e diz que é verídica." em comparação com versão transcrita temos o seguinte:

Bem, isso foi um causo que uma senhora contou. Ela falou que foi verídico, lá na ilha do Cotijuba. Que foram dois senhores pescar. Eram pescadores mesmo e, quando eles chegaram lá, nesta ilha, no "Vai Quem Quer". Eles pescando... Aí, um ouviu um canto muito bonito. Aquele canto, um canto lindo mesmo, e ele disse: - Quem é que tá cantando? Aí ele foi, foi, foi, ... Ele deixou o outro lá e foi remando para onde vinha aquela música e aquele canto maravilhoso. Quando ele viu, uma mulher muito bonita. (SIMÕES; GOLDER, 1995, p. 43).

É interessante observar que a mesma formula narrativa que exime a responsabilidade do narrador sobre o que está sendo narrado é utilizada, todavia de maneiras diferentes. No primeiro caso, o pronome demonstrativo "aquela" é utilizado na função de pronome indefinido. "Aquela", nesse caso, não aponta ninguém em especial. O autor da recriação se aproveita da impessoalidade da variante de prestígio para fazer esse jogo com o leitor. No segundo caso, uma senhora é indicada como autora do causo, a expressão "uma senhora" tem a mesma carga semântica, nesse caso, de "aquela senhora". Tendo em vista que no momento da gravação o informante tinha o entrevistador bem na sua frente não seria possível usar esse recurso pois, normalmente, se deve apontar para a pessoa a quem se refere como "aquela". Sobre essa formula a Socorro Simões diz:

A aceitação pacífica da inter-relação entre dois mundos, o do natural e do sobrenatural, manifesta-se na enunciação com marcas impressivas de testemunhos da verdade do tipo: "eu vi", "aconteceu com o meu avô", "ele conta até hoje", "a azagaia ainda está atrás da minha porta", "foi verídica mesmo, todo

27 Antônio Teixeira do Nascimento Filho violonista erudito paraense de que morreu em meados do Século XX 70

mundo conhece", "e o Raimundo, esse meu marido, viu uma matinta" (SIMÕES, 2011, p. 191).

Então, mesmo sendo uma recriação, o primeiro texto reflete uma particularidade da cultura oral paraense. O autor decidiu deixar esse traço mesmo reestruturando a narrativa. A expressão "Região do Cotijuba" encontra-se em destaque porque é um hiperlink, clicando nele, abre-se a seguinte janela com informações sobre, e uma foto da vila de Cotijuba e da praia do "Vai Quem Quer":

Figura 4: Região do Cotijuba

Qualquer pessoa que resida na cidade de Belém, conhece (ainda que apenas tenho ouvido falar) a ilha de Cotijuba. Não haveria necessidade de incluir um link para explicar onde fica, o acesso e as atrações se o CD tivesse sido feito para circular na capital do Estado. O que nos leva a crer que, o mesmo foi feito para pessoas de fora. Inclusive, adjetivos e informações meramente turísticas podem ser observadas tais como 71

"paraíso", "charmoso", "passeio de charrete", "city-tour"... reforçam a ideia de que o objeto não foi feito para o público local. Ainda levando em consideração os trechos acima é, no mínimo curioso, constatar a diferença na descrição do canto. No segundo caso, não há dúvidas sobre a beleza do canto, no entanto, sua sobrenaturalidade não é sequer sugerida, enquanto que no primeiro a expressão "não existia" já o sugere. O pescador depois de encontrar com a mulher loira que cantava tão bem, descobre que a moça, metade mulher, metade peixe era encantada. A bela mulher lhe pede ajuda para desfazer o encanto. Pelen nos diz que um dos deveres das narrativas orais é "definir os limites entre o mundo natural e o mundo sobrenatural, o aqui e o além, e são os contos de fadas, as lendas e as narrativas de experiência (narrativas fantásticas)" (PELEN, 2001, p. 56). Dando continuidade:

Figura 5: O canto da mulher loira

Na transcrição:

Ele conversou com ela e foi embora. Quando foi no dia em que ela marcou, ele veio. Como eles saem de madrugada para pescar, neste dia ele saiu mais cedo. A mulher dele disse: - Poxa, Fulano, tu vais saindo tão cedo. Então, ele falou que não era para falar para ninguém aquilo. Não era para contar nem para o amigo dele. Aí quando chegou naquele dia, ele levou a corda e ajeitou aquele pau bem grande mesmo, e a mulher dele: - Para quê isso? 72

Ele: -Não, eu vou levar, que eu vou ver se eu faço uma pesca boa.(SIMÕES; GOLDER, 1995, p. 44).

O senso comum não acusa problemas no entendimento da palavra "pescadores". A mesma encontra-se no léxico da língua portuguesa em qualquer região do Brasil, então, por que a mesma precisou, no CD-ROM, de uma explicação para o seu significado? Podemos supor que para as versões em outras línguas a explicação em torno do nome poderia se fazer necessária, mas por um equívoco da equipe, a explicação também acabou sendo usada em português. O que reforça tal ideia é a apresentação do CD:

Observando a apresentação do CD, vemos que suas pretensões são em escala mundial e, portanto, o público-alvo não é o brasileiro, em específico, mas pessoas e instituições de outros países, o que explica, em partes, alguns hiperlinks parecem tão óbvios aos falantes da língua portuguesa. 73

É provável que os organizadores do projeto tenham, portanto, se preocupado em demonstrar ao grande público de outros países que a pesca é uma das principais atividades dos caboclos da região amazônica, a qual ainda tem territórios inexplorados e vive, em grande parte de culturas de subsistência. Não nos preocupamos, neste artigo, com as diferenças, algumas vezes óbvias, existentes entre os textos, tais como: repetições e desvios a norma culta, comuns na fala cotidiana e que procuram ser simulados na transcrição - que por si só, a meu ver, já demonstram o enraizamento da narrativa- e sim, tentamos analisar as adaptações que levaram ou não em consideração o perfil cultural da sociedade em questão.

6. Aos quatro cantos

Procurando justificar o presente artigo trago à luz um dos questionamentos de Pelen: [...] se a literatura oral dos nossos dias tende a diminuir, quais foram as instituições de produção e de reprodução do sentimento da comunidade que a substituíram. Seguindo qual dinâmica e por quê? Por outro lado, quais são os seus polos de resistência? (PELEN, 2001, p. 70).

A afirmação do autor é indiscutível e já vinha sendo afirmada por Walter Benjamin no início do século XX. Com o advento da microinformática, essa tradição parece diminuir ainda mais. No entanto, iniciativas como as do Caleidoscópio não seriam esses polos de resistência, ainda que representem ao mesmo tempo uma espécie de "fossilização"? Essa "fossilização" e a versão para uma plataforma informatizada não contribuiriam para uma universalização de fatos restritos de uma comunidade, em prol de uma comunidade cada dia mais globalizada? Sobre isso Marshall McLuhan nos diz:

[...] certamente as descobertas eletromagnéticas recriaram o "campo" simultâneo de todos os negócios humanos, de modo que a família humana existe agora sob as condições de uma "aldeia global". Vivemos num único espaço compacto e restrito em que ressoam os tambores da tribo. E isto, em tal grau, que a preocupação pelo "primitivo" é hoje em dia tão banal quanto a do século dezenove pelo "progresso" e igualmente irrelevante para os nossos problemas (MACLUHAN, 1972, p. 58). 74

Então, quando encontramos numa narrativa como O canto da mulher loira, um determinado fato específico da região norte ou do município de Abaetetuba descrito, no qual notamos traços de culturas diversas ao redor do mundo, não estamos inserindo a narrativa nessa aldeia global, em que "primitivo" se torna irrelevante? Na análise, observamos muitos desses traços comuns a muitas culturas, assim como encontramos muito de específico e etnotextual. Talvez a análise de outras narrativas do corpus possa nos ajudar a entender um pouco melhor esse processo em que o enraizamento é aos poucos substituído pela universalização.

REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221. BOM-MEIHY. José Carlos. Manual de história oral. São Paulo: Edição Loyola, 1996. HOMERO. Odisseia. Trad. Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Martin Claret, 2007. LOTMAN, Iúri. Tipologia della cultura. Milano: Bompiani, 1975. MACLUHAN, Marshall. A galáxia de Gutenberg. São Paulo: Editora Nacional, 1972. PACHECO, Carlos. La comarca oral: la ficcionalizacion de la oralidad cultural en la narrativa latinoamericana contemporanea. Caracas : Ediciones La Casa de Bello, 1992. PELEN, Jean-Noël. Memória da literatura oral. A dinâmica discursiva da literatura oral: reflexões sobre a noção de etnotexto. Trad. Maria T. Sampaio. In: Projeto História – Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História (PUC-SP), v.22, pp. 49-77, 2001. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. p. 157-167. SIMÕES, Maria do Socorro; GOLDER, Christophe. Belém conta... Belém: CEJUP, 1995. SIMÕES. Maria do Socorro. Memória e marcas de enunciação na voz do contador de narrativas amazônicas. In: EWALD, Felipe Grüne... et al (org). Cartografias da voz: poesia oral e sonora: tradição e vanguarda. São Paulo: Letra e Voz. Curitiba: Fundação Araucária, 2011. WEIL, S. (1943) A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Antologia organizada por Ecléa Bosi. 2.ed.ver. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996, pp. 413-440. ZUMTHOR, P. Introdução à poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997. CD-ROM CALEIDOSCÓPIO Amazônico: uma aventura em imagens e cores. Produção: Ana Prado e Osmar Aruok. Local: Belém -PA, 1998. CDROM. Entrevista SIMÕES, Maria do Socorro.Professora da UFPA. Entrevista concedida a Alexandre Ranieri. Belém, 24 jul. 2012. Gravação digital 50min estéreo. Sites VIDAL, Ursula. Apresentação. Disponível em: http://www.vozfeminina- ursulavidal.com.br/index.php/apresentacao. Acesso em 28/12/2012 às 19h40.

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REFLEXÕES CRÍTICAS ACERCA DO ENSINO DE LITERATURA EM SALA DE AULA

Aline Cristina Garcia

Resumo: O ensino da Literatura está tangenciado por uma crise, a qual é ocasionada de um lado por estratégias de ensino inadequadas e, de outro, pelo advento da cultura de massas e seus pseudo (ou não) benefícios. Diante dessa constatação, buscamos a compreensão da crise da Literatura nessa nova era - no mundo globalizado e digital. E, no início desse percurso, ressaltamos que toda crise aponta para dois caminhos: um é do perigo e o outro, o da oportunidade. Sendo assim, nesse artigo, procuramos pontuar os perigos e as oportunidades, para o ensino da arte literária, que esse novo tempo, conduzido pela globalização, pelas evoluções tecnológicas e pelas mudanças sociais e comportamentais, gera. Enfocaremos a importância da assunção da Literatura enquanto objeto estético e não como objeto histórico ou moral, pois é importante pontuar que o texto literário dialoga e poetiza a história social, mas nunca a reproduz fielmente. Sendo assim, é preciso promover o ensino da Literatura focalizando-a enquanto produção estética, e não enquanto retratos históricos articulados por uma linguagem bem elaborada; e, ainda evidenciar que sua função é promover, antes da formação moral, a experiência estética. Além disso, refletiremos como a literatura dialoga com outras linguagens, mas não pode ser substituída por elas. Finalmente, o texto se volta para uma reflexão sobre a relação entre a Literatura e a escola, seus problemas e suas soluções.

Palavras-chave: Realidade Educacional; Magia literária; Reflexões; Sala de aula.

Abstract: The teaching of literature is tangent to a crisis, which is on one side caused by inadequate teaching strategies and on the other, by the advent of mass culture and its pseudo(or not) benefits. Given this finding, we seek to understand the crisis of literature in this new era-ina globalized and digital world. And at the begin ning of this journey, we emphasize that every crisis points to two ways: one is the dangerand the other, opportunity. Therefore, in this paper, we point out the dangers and opportunities for the teaching of literary art, this new era, driven by globalization, the technological and social change, and behavioral causes. Focused on the importance of the assumption of Literature as an aesthetic object rather than an object of historical or moral, it is important to point out that the literary text dialogues and poet social history, but never reproduces faith fully. There fore, it is necessary to promote the teaching of literature while focusing on the aesthetic production, and not as historic portraits linked by a well-designed language, and still show that its function is to promote, before the formation of moral, aesthetic experience. In addition, we will reflect how literature speaks too their languages, but can not be replaced by them. Finally, the text turns to a discussion on the relationship between literature and school, their problems and their solutions.

Keywords: Educational Reality; Literary Magic; Reflections; The classroom.

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INTRODUÇÃO Nossas preocupações com a arte literária se despontam nos textos que os livros didáticos apresentam aos alunos. Textos vagos e redimensionados que não transmite ao leitor a palavra viva, a dialética, à concepção de palavra enquanto signo variável e flexível. Na tentativa de analisar as relações entre a literatura² e a escola tentaremos desmistificar alguns conceitos para compreender o ensino da literatura em nossa sociedade, cujo estudo, permite formar cidadãos capazes de não só ―ler‖ o mundo, mas também ―ler‖ a si mesmos e aos outros. Isso porque a recepção dos textos literários nos faz pensadores da própria vida. Sabendo que a literatura é a única arte que dialoga com todas as outras linguagens. O ato de ler torna-se um processo abrangente e complexo, um processo de compreensão e de intelecção de mundo, onde envolve uma característica essencial e singular do homem desde a sua capacidade simbólica e de interação com o outro pela mediação da palavra. Nessa perspectiva vamos esboçando recursos que podem solucionar esse fracasso escolar que é o ensino de textos literários. Entre idas e vindas por textos e autores literários vamos ―caracterizando‖ os sabores e dissabores do ensino da literatura. É como se fosse uma montanha-russa, há prazeres e desprazeres. E nessa trajetória, vamos fazendo algumas reflexões acerca do ensino da literatura em sala de aula. Buscaremos tornar mais nítidas as relações entre literatura e educação. Como se sabe, essas relações são antigas, mas vamos centrar nossa atenção em como se tem ensinado literatura no Brasil e as consequências dessa tarefa na formação dos leitores literários.

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______²A literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós mesmos. E isso se dá porque a literatura é uma experiência a ser realizada. 78

1- REFLEXÕES CRÍTICAS ACERCA DO ENSINO DE LITERATURA EM SALA DE AULA

A literatura é um discurso carregado de vivência íntima e profunda que suscita no leitor o desejo de prolongar ou renovar as experiências que veicula. Constitui um elo privilegiado entre o homem e o mundo, pois supre as fantasias, desencadeia nossas emoções, ativa o nosso intelecto, trazendo e produzindo conhecimento. Ela é criação, uma espécie de irrealidade que adensa a realidade, tornando-nos observadores de nós mesmos. Ler um texto literário significa entrar em novas relações, sofrer um processo de transformação. (CHIAPPINI, 1998, p. 22-23)

Para explorar a realidade educacional literária, pintamos um quadro com poucas cores, muitos rabiscos e uma incógnita a desvendar. Neste cenário perturbado que vamos à busca da verdade... À busca de despertar o prazer pela leitura. Sendo necessário que o ensino da Literatura efetive um movimento contínuo de leitura, partindo do conhecido para o desconhecido, do simples para o complexo, do semelhante para o diferente, com o objetivo de ampliar e consolidar o repertório cultural do aluno. Cabe aqui o deleite de contar um pouco sobre histórias de grandes personalidades literárias que fizeram à diferença no Brasil. Um dia, José de Alencar, com sua simplicidade, sentara ao lado de sua mãe e de outras mulheres da família para ler em voz alta folhetins açucarados, que elas ouviam, às lágrimas, enquanto costuravam e faziam tarefas domésticas. No mesmo panorama, descrevo a viagem ao sertão, essa que Guimarães Rosa pedia notícia de tudo e tudo anotava ―ele perguntava mais que padre‖, consumiu ―mais de 50 cadernos de espiral, daqueles grandes‖, com anotações sobre a flora, a fauna e a gente sertaneja, seus usos, costumes, crenças, linguagem, superstições, versos anedotas, canções, casos, estórias... Surge então uma nova efervescência na crítica literária, um novo êxito de público. Essas duas transcrições literárias partem do estilo de cada autor. E para Massaud (2000, p. 43) ―só a literatura pode expressar o redemoinho profundo que constitui a essência e a existência do homem posto em face dos grandes enigmas do Universo, da Natureza e de sua mente‖. Ler implica troca de sentidos não só entre o escritor e o leitor, mas também com a sociedade onde ambos estão localizados. Compartilhar visões de mundo entre os homens no tempo e no espaço é uma boa pedida para explicar um pouco dessa magia literária. É nessa interação e necessidade que se busca a verdade, quanto, ao ensino de literatura e o seu aprendizado... O prazer de ler. 79

Na leitura e na escritura do texto literário encontramos o senso de nós mesmos e da comunidade a que pertencemos. A literatura, como afirma Cosson (2011, p.17) nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós mesmos. Nada mais é que uma experiência a ser realizada! De fato, é o texto literário que possibilita ao leitor mergulhar no universo ficcional; identificar-se com personagens, fatos históricos e culturais; vivenciar injustiças sociais; conhecer lugares e épocas anteriores ao seu nascimento; experimentar a catarse e, quando voltar à tona, encontrar-se numa terceira margem, da qual poderá rever-se, ampliando seu conhecimento de mundo e de si mesmo. Considerando que a literatura é a representação ficcional de todo um imaginário coletivo, o leitor, aparentemente preso nas malhas do texto, salta para a vida e para o real na medida em que a leitura da palavra escrita pode conduzi-lo a uma interpretação do mundo. Disso podemos depreender que o papel do professor é acima de tudo inserir o aluno num universo cultural literário, como afirma Perissé (2003, p.91):

A cultura literária é uma das melhores influências que podemos provocar em nós mesmos, e praticamente a única se quisermos escrever com mais segurança, com mais agudeza. Cultura é cultivo, é cultivar-nos, é receber com bom grado e desenvolver em nós o que outras pessoas já pensaram, já disseram, já escreveram. A formação cultural é a condição para desenvolvermos nossos talentos adormecidos, nossas inclinações ainda mal conhecidas, nossos raciocínios ainda esboçados, nossa criatividade talvez um pouco tímida, nossa originalidade necessitando crescer em intensidade.

Em outras palavras, o aluno ao ser inserido nessa cultura literária terá todas as possibilidades de escrever melhor, produzir ciência e, acima de tudo, de ser um cidadão crítico. Mas a grande dificuldade de ensinar literatura não reside somente no fato dos professores não trabalharem com o texto em sala de aula, muitos até o fazem. O problema maior está em como esse texto é trabalhado. Até que ponto a prática dessa leitura é significativa para o leitor? Quantos alunos conseguem realmente ultrapassar a etapa da simples decodificação dos signos, passar ao nível da compreensão e chegar, de fato, a interpretação do texto? Sabemos que a existência da literatura só toma corpo por meio da prática da leitura, portanto o leitor não pode deixar de exercer seu papel no processo da criação literária. O texto literário exige não só o leitor comum, que lê sem nenhum compromisso com o ―fazer literário‖, mas também cobram àqueles leitores capazes de seguir os passos de leitores 80 profissionais, os quais, além de sentir a poeticidade do texto literário, conseguem analisá-la, descrevê-la ou interpretá-la. Para isso, é preciso que nossos professores leiam as obras em sala com seus alunos de uma perspectiva crítica, ou melhor, é necessário que nossos professores sejam leitores críticos e conheçam os meios para se entrar num texto literário. Nesta perspectiva que Cosson (2011, p. 45) elaborou estratégias para o ensino de literatura; uma sequência básica do letramento literário: motivação, introdução, leitura e interpretação. Cada passo, com sua responsabilidade de inserir o aluno neste universo! Ao seguir as etapas, o professor sistematiza seu trabalho e oferece ao aluno um processo coerente de letramento literário. O ato de ler é um processo abrangente e complexo; é um processo de compreensão, de intelecção de mundo que envolve uma característica essencial e singular ao homem: a sua capacidade simbólica e de interação com o outro pela mediação da palavra. Por isso, o bom professor não motiva seus alunos a decifrar signos e sim a compreender todo o seu contexto, como já mencionado anteriormente. Trazemos agora outro exemplo de obra que com sua linguagem rica, sobressaiu as demais na Semana da Arte Moderna - A obra Macunaíma (1965), de Mário de Andrade, escrito pelo autor em suas férias junto com o cheiro da natureza, junto com as frutas e aves... Mangas, abacaxis e cigarras de Araraquara; um brinquedo. Alusões sem malvadeza ou sequência... Existe a fantasia! Não se escutava as proibições, os temores, os sustos da ciência ou da realidade – apitos dos policiais, breques por engraxar... Assim, surge o herói sem nenhum caráter. São histórias intrigantes, que despertam atenção dos interlocutores de plantão. Os textos de Manoel de Barros comparados com doces de cocos... Quanta beleza em sua linguagem... Quanta fantasia na sua arte de transcrever sentimentos! Como pudera dizer que ―a quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso‖ torna-se prazeroso elevar essa fruição. Só a literatura pode oferecer a imaginação pela ficção, independente da falta de público, da carência das escolas... Uma coisa é certa - não podemos viver sem essa imaginação! Portanto, a literatura aparentemente destrói o real ao enunciar um mundo construído pela palavra. A Literatura Brasileira, desde os jesuítas, já mudou muito no Brasil. Cada século, ano, traz algo de novo no mercado. E convenhamos, que ao passar dos anos, os textos literários se tornaram ainda mais fragmentados, ainda mais desvalorizados. Alguns estudiosos previram até a morte dos livros e do hábito de ler devido o avanço do cinema, 81 da televisão, dos videogames, da internet, tudo isso iria tornar a leitura obsoleta. Retrato, pintado ao vivo! Recentemente a Revista Veja (2011, nº. 2217, p. 99 - 108) divulga a nova geração que descobre o prazer em ler. Muitos jovens já sentem gosto em perder (ou ganhar) horas em uma livraria, assim, como confessam que eram leitores imaturos, na época do Ensino Médio, tempos em que professores cobravam uma interpretação de Machado de Assis. Além do mais, o mercado livresco juvenil se expandiu, as vendas dos sucessos globais, como Harry Potter, Crepúsculo e Percy Jackson, já invadem o gosto da moçada. Barthes (1971, p. 13) em meio a suas pesquisas já dissera que ―a literatura não é mais sentida como um modo de circulação socialmente privilegiado, mas como uma linguagem consciente, profunda, cheia de segredos, dada ao mesmo tempo como sonho e como ameaça.‖ Dois caminhos distintos que se guia o leitor. O texto literário é um labirinto de muitas entradas, cuja saída precisa ser construída uma vez e sempre pela leitura dele. Ao mediador, é necessário que ele se abstenha de seu papel de guardião do saber, sem abdicar, contudo, de sua condição de leitor mais experiente. Essa competência pré- estabelecida pressupõe que o professor trabalhe efetivamente a leitura da obra literária com seus alunos. Outra de nossas responsabilidades enquanto mediador de leitura é desenvolver a noção de que a Literatura dialoga e poetiza a história social, mas nunca a reproduz fielmente e, devemos, por isso, promover o ensino da arte literária enquanto objeto estético, não enquanto objeto histórico, pois ―quando se estuda a sociedade, conforme as imagens literárias, sempre se assimilam formas falsas e distorcidas, porque a obra de arte nunca reflete a realidade em toda a sua plenitude e em toda a sua verdade‖ Vigotski (2003, p.228). Isso ocorre, segundo Vigotski (2003, p. 228) porque a literatura é uma recriação da realidade, ela ―representa um produtosumamente complexo, elaborado pelos elementos da realidade, ao qual aporta um conjunto de elementos totalmente alheios‖. Portanto, estudar a obra de arte como um objeto estético significa possibilitar ao aluno a vivência estética da obra, a percepção e a leitura criadora do texto, uma atitude estética autônoma, flexível, independente de regras morais fragmentadas por textos pobres exibidas no material didático, que, muitas vezes, posiciona-se enorme, colossal, no mais alto degrau em que se postaram os saberes promovidos por sua história pessoal, e, em decorrência disso, apresenta uma visão disforme (aos olhos do aprendiz que não comunga com essas experiências e deforma a poética do objeto artístico). Esse procedimento dá 82 vazão aos resultados negativos tanto para o professor quanto para o aluno, por que como nos elucida Vigotski (2003, p. 221):

Subtende-se que, com esse critério, a obra de arte fica desprovida de seu valor independente, transforma-se em uma espécie de ilustração de uma tese moral geral; toda a atenção concentra-se justamente nesse último aspecto, e a obra de arte fica fora da percepção do aluno. Na verdade, com essa concepção não se criam nem educam atitudes e hábitos estéticos; não se comunica a flexibilidade, a sutileza e a diversidade das formas às vivências estéticas; pelo contrário transforma-se em regra pedagógica a transferência da atenção do aluno para seu significado moral.

Confere ao ensino de Literatura uma natureza completamente díspar dos seus objetivos verdadeiros: a compreensão da arte em seus sentidos: original _ a arte catártica; clássico _ a arte pelo próprio processo de composição artística: processo equilibrado, perfeito, a arte pela arte; romântico _ a explicitação subjetiva dos momentos do processo de emaranhamento sentimental em que se reconcebe a catarse; realista_ a arte como instrumento de denúncia e, até mesmo do sentido moderno, como todo o processo de desconstrução e reconstrução purista ou antropofágica. O ensino da Literatura está tangenciado por uma crise, a qual é ocasionada de um lado por estratégias de ensino inadequadas e, por outro, pelo advento da cultura de massas e seus pseudo, ou não, benefícios, os quais foram elencados por Bosi, em Os estudos literários na Era dos Extremos, como: projeção direta do prazer ou do terror, a desmaterialização da literatura pela imagem visual, a transparência que nega a mediação, a substituição dos efeitos poéticos do significado e do significante pelos efeitos imediatos e especiais, ou seja, a mídia, em função do interesse popular no imediato, no sintético (interesse que a ela mesma educou), no simplificado e traduzido, transforma um capítulo de um livro em uma cena de cinco minutos e, nesse processo de condensação acaba por valorizar o enredo em detrimento da poética, o que destitui o texto de sua função literária. Bosi, (1994, p. 109-110) por meio da Sociologia da Literatura e da Estética da recepção, busca entender a relação entre o escritor e o público nessa Era dos Extremos:

O indivíduo-massa, a personalidade construída a partir da generalização da mercadoria, quando entra no universo da escrita (o que é um fenômeno deste século), o faz com vistas ao seu destinatário, que é o leitor-massa, faminto de uma literatura que seja especular e especular. Autor e leitor perseguem a representação do show da vida, incrementado e amplificado. Autor-massa e leitor-massa buscam a projeção direta do prazer ou do terror, do paraíso do consumo ou do inferno do crime _ uma literatura transparente, no limite sem mediações, uma literatura de efeitos imediatos e especiais, que se equipare ao cinema documentário, ao jornal televisivo, à reportagem ao vivo... O filme, imagem em movimento, teria tornado supérflua, para não dizer indigesta, a descrição miúda... Uma cena de um minuto supriria, no cinema, o que o 83

romancista levou mais de uma dezena de páginas para compor e comunicar ao seu leitor.

A reflexão sobre o estudo atenta para o fato de que não se pode ignorar o advento dessas ―culturas de massa‖, produtora de adaptações e bestsellers; é essa linguagem que, se por um lado, afastar nossos alunos da profundidade literária, por outro, é uma forma de representação que mimetiza a história social, de certa forma, produz a arte catártica do homem contemporâneo e, por ser a linguagem que o representa é com ela que, primordialmente, estabelecerá diálogos e será nela, reconhecer à presença do que satisfaz seus interesses e suas necessidades. O desafio aqui é (re) descobrir o sentido e a posição que a literatura ocupa na sociedade, quais são seus principais modos de representar tempos e espaços, quais são suas principais indagações e anseios. E, quanto mais indefinido, maior é a vontade de reconhecer cientificamente sua natureza e seu locus literário. Por mais que procuremos encontrar o lugar do romance na literatura brasileira contemporânea, ele será sempre oscilante, tal como é a realidade hodierna. O que nos instiga a investigar o processo literário – é o desafio de compreender essa esfinge que se coloca a nossa frente em forma de arte literária.

CONCLUSÃO:

Vivemos em um mundo de fronteiras difusas. Um mundo acostumado ao trânsito entre espaços, tempos e linguagens, por onde uma multidão se movimenta continuamente como em um formigueiro, onde operárias correm de um lado a outro sem, no entanto, sair do lugar. Na literatura brasileira contemporânea, devido a suas profundas mudanças cronotópicas, o individuo acaba por vivenciar o deslocamento entre ‗eu‘ e mundo, pois não conhece os lugares de origem, configurando-se num desterrado em sua própria terra, podemos até dizer que o poeta moderno está condenado a viver no subsolo da história, a solidão define o poeta moderno. Isso faz dele, um ser de cisões, descolado de uma identidade, vivendo a todo o instante um processo de transculturação. Podemos até confirmar que―a literatura é um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito‖.Cândido (2000, p.68) 84 já respondia aos mestres, que indagavam ―o que é literatura? Por que a linguagem da revista, da bula, de remédio, do comentário esportivo ou do manual de instruções não é literária?‖ Há muitos questionamentos sobre a literatura, desde a sua função, como a sua transmissão. Como já dissera, anteriormente, este é um cenário perturbado e elucidativo. E quando questionado, o seu ensino em sala de aula... Surge uma série de apontamentos e reflexões para quebrar certos tabus, que ainda existem. Essas indagações, entre outras, causadoras de nossa angústia, conduziram esta pesquisa reflexiva em busca de alternativas para mudar este panorama. Não elaboramos ―receitas de aulas de literatura‖, até porque, não existem fórmulas mágicas capazes de reverter esse quadro. Apenas ressaltamos a importância de ensinar literatura, a sua função de formar cidadãos críticos capazes de julgar a si mesmo e ao mundo, quando se tem conhecimento. Cosson (2011, p. 29) aponta o maior segredo da literatura, que é justamente o envolvimento único que ela nos proporciona em um mundo feito de palavras. O conhecimento de como esse mundo é articulado, como ele age sobre nós, não eliminará seu poder, antes o fortalecerá porque estará apoiado no conhecimento que ilumina e não na escuridão da ignorância. O romance é a representação literária do devir humano, dos processos que levam à mutação do ser e do mundo – é isso que ele procura insistentemente através de seus espaços imagéticos e lingüísticos. Por isso, ele se configura como um espaço aberto, sem fronteiras, pois somente assim ele poderá assimilar a vida em sua plenitude e degradação. E aos mediadores de leitura cabe criar as condições para que o encontro do aluno com a literatura seja uma busca plena de sentido para o texto literário, para o próprio aluno e para a sociedade em que todos estão inseridos. E, sobretudo, porque o hábito de leitura, além ser prazeroso, nos fornece instrumentos necessários para conhecer e articular com proficiência o mundo feito de linguagem.

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CHIAPPINI, Lígia. Aprender e ensinar com textos didáticos e paradidáticos. 2ªed. São Paulo: Cortez, 1998. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2011. MOISÉS, MASSAUD. A criação literária: poesia. 14ª ed. São Paulo: Cultrix, 2000. PERISSÉ, Gabriel. A arte da palavra: como criar um estilo pessoal na comunicação escrita. Barueri, SP: Manole, 2003. VYGOTSKI, L.S.Psicologia pedagógica. Trad. Claudia Schileing. Porto Alegre: Artmed, 2003.

PERIÓDICO:

VEJA, Editora Abril. Ed. nº 2217 – ano 44, nº 20. 18 de maio de 2011.

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LINHA DO PARQUE: O ROMANCE PROLETÁRIO DE DALCÍDIO JURANDIR

Alinnie Santos28

Profa. Dra. Marlí Tereza Furtado (Orientadora)29

Resumo: Em 1934, foi usada pela primeira vez a expressão Realismo Socialista para designar o estilo artístico oficial da União Soviética – cunhado por dirigentes e artistas da URSS. Essa estética se estendeu também a outros países por meio de seus partidos comunistas. No Brasil, muitos romances proletários foram escritos sob o enfoque de tal estilo encomendados pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). Dentre os escritores que aceitaram essa incumbência, figura o autor paraense Dalcídio Jurandir (1909-1979), membro do PCB desde sua juventude. Esse escritor, conhecido pela publicação dos romances que compõem o chamado Ciclo do Extremo Norte, escreveu também o romance de temática proletária Linha do Parque (1959). Essa obra narra a história de duas gerações do movimento operário na cidade de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, no decorrer da primeira metade do século XX. Este trabalho, portanto objetiva analisar a referida narrativa a fim de identificar as características do Realismo Socialista, bem como do romance histórico presentes no texto dalcidiano, além de refletir sobre as manifestações ideológicas presentes nessa obra. Investigar esse romance se faz necessário para melhor compreender o direcionamento da literatura brasileira naquele período.

Palavras-Chave: Romance Histórico; Linha do Parque; Realismo Socialista.

Abstract: In 1934 the term to designate the Socialist Realism was used at forst time to designate the official artistic style of the Soviet Union. This aesthetic has also extended to other countries by their communist parties. In Brazil, many proletarian novels were written under the focus of such style commissioned by the Brazilian Communist Party (PCB). Among the writers who have accepted this mandate there was Dalcídio Jurandir (1909- 1979), a member of the PCB since his youth. This writer known for publishing the novels that make up the so-called cycle of Extremo Norte, also wrote the novel Linha do Parque (1959), a story of two generations of the labor movement in the city of Rio Grande, in Rio Grande do Sul, during the first half of the twentieth century. This study aims to examine this narrative in order to identify the characteristics of Socialist Realism and also the historical novel present in Dalcídio texts and reflect on the ideological manifestations present in this work. It is necessary to investigate this novel to understand the direction of Brazilian literature in that period.

Keywords: Historical Romance; Linha do Paque; Socialist Realism.

28 Mestranda em Estudos Literários na Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 29 Professor do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected] 87

1. Introdução

O escritor paraense Dalcídio Jurandir (1909-1979) escreveu os dez romances que compõem o chamado Ciclo do Extremo Norte – Chove nos Campos de Cachoeira (1941), Marajó (1947), Três Casas e um Rio (1958), Belém do Grão Pará (1960), Passagem dos Inocentes (1963), Primeira Manhã (1967), Ponte do Galo (1971), Os Habitantes (1976), Chão de Lobos (1976) e Ribanceira (1978), os quais tematizam sobre a vida e o cotidiano na Amazônia paraense. No entanto, sua trajetória literária não se limitou a esse conjunto de obras. Dalcídio escreveu textos para diversos jornais e revistas, tanto no Pará, como também no Rio de Janeiro, dentre os quais podemos destacar: O Imparcial, O Estado do Pará e Crítica; revista Escola, Novidade, Terra Imatura e A Semana, O Radical, Diretrizes, Diário de Notícias, Voz operária, Correio da Manhã, Tribuna Popular, O Jornal, Imprensa Popular, revista Literatura, revista O Cruzeiro, A Classe Operária, Para Todos, Problemas e Vamos Ler. Além disso, por ser um militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), recebeu a incumbência deste de escrever um romance de temática proletária, sob os postulados do Realismo Socialista, estética oficial da União Soviética entre as décadas de 1930 e 1960, a qual pretendia divulgar os ideais socialistas e enaltecer o governo soviético e que se estendeu aos demais países por meio de seus partidos comunistas. O romance Linha do Parque, escrito nos anos iniciais da década de 1950 e somente publicado em 1959, foi o resultado da referida encomenda. A obra narra a história do operariado na cidade de Rio Grande (RS) no período de 1895 a 1952, apresentando duas gerações de trabalhadores, uma que seguia as ideias anarquistas e outra que defendia o comunismo. Nessa narrativa, as mulheres operárias lideram e participam ativamente de greves e motins, tendo em vista melhores condições de trabalho e por salários mais dignos nas fábricas que trabalhavam. Por essa atividade, elas se colocam em pé de igualdade com os homens membros da União Operária, possuindo a mesma importância desses trabalhadores na organização do movimento operário. Sendo assim, este trabalho tem por objetivo analisar a referida narrativa a fim de identificar as características do Realismo Socialista, bem como do romance histórico presentes no texto dalcidiano, além de refletir sobre as manifestações ideológicas presentes nessa obra.

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2. O Realismo socialista no Brasil

Cunhado na União Soviética de Lênin, o Realismo Socialista foi um estilo artístico que defendia a exaltação ao governo soviético, bem como a divulgação dos seus ideais por meio da arte. Em 1934, essa estética foi criada em comum acordo com políticos, como Andrei Jdanov e artistas, como o escritor Máximo Gorki, mas com o passar dos anos, o Realismo Socialista tornou-se uma camisa de força ideológica para os artistas filiados, como atesta Dênis de Moraes:

O zdanovismo esmagaria a atividade criadora, subordinando-a a cânones dogmáticos. A literatura e a arte deveriam exercer papel exclusivamente pedagógico, difundindo os esforços para a construção de um ―mundo novo‖ e de um ―homem novo‖ nos países socialistas. Em lugar da cultura burguesa ―decadente e degenerada‖, escritores e artistas se empenhariam em edificar a ―cultura proletária‖, a única capaz de desmistificar os valores morais da classe dominante e sustentar o caráter revolucionário da obra de arte. As inovações estéticas passariam a ser condenadas como anti-soviéticas e contra-revolucionárias. (MORAES, 1992, p.259).

Essa doutrina não ficou restrita somente à União Soviética, mas também foi divulgada para outros países por meio de seus partidos comunistas. No caso do Brasil, especificamente, o Partido Comunista Brasileiro (PCB)30 começou a seguir e difundir a referida doutrina, por volta do ano de 194531, com o auxílio dos escritores e artistas filiados a ele. No caso do Brasil, a postura sectária foi adotada para que os artistas e intelectuais filiados ao Partido fizessem uso do Realismo Socialista nas suas produções. Dessa maneira, o autor que não escrevesse suas obras aos moldes desse estilo artístico, era

30 É interessante ressaltar que desde a sua origem até o inicio dos anos 1960, o partido chamava-se Partido Comunista do Brasil, com a sigla PCB. Como em 1962, um novo partido político foi criado com a designação anterior do PCB e que existe até os dias atuais, optamos neste trabalho, por fazer uso do atual nome do PCB, Partido Comunista Brasileiro. 31 Em sua dissertação de mestrado, Mônica da Silva Araújo, afirma que já em 1945, os periódicos comunistas apresentavam críticas ao Realismo Socialista, nos levando a entender que essa estética já havia chegado ao solo brasileiro nesse ano: “Podemos afirmar com certeza que as teses do realismo socialista passam a ser divulgadas no Brasil pelo PCB a partir de 1945. Note-se que o importante trabalho de Denis de Moraes, intitulado O Imaginário Vigiado, focaliza o ano de 1947 como o marco inicial da divulgação do realismo socialista no Brasil. Mas (...) estas teses ganham na imprensa comunista pelo menos dois anos antes.” (ARAÚJO, Mônica da Silva. A arte do Partido para o Povo: o Realismo Socialista no Brasil e as relações entre os artistas e o PCB (1945-1958). Rio de Janeiro: UFRJ, 2002 – dissertação de mestrado). 89 violentamente criticado e provocado. Leandro Konder apresenta um exemplo dessa crítica:

A Carlos Drummond de Andrade, [Osvaldo] Peralva atribuía opinião favorável ao emprego da bomba atômica, simpatia pelos intelectuais nazistas e vocação de traidor, classificando-o como anticomunista raivoso, para quem a lealdade jamais constituiu uma pedra no meio do caminho. (KONDER, 1980, p.85).

Há de se salientar que esse estilo artístico passou a vigorar oficialmente no Brasil a partir de 1948, quando o Comitê Central impôs tal estilo como padrão estético que deveria ser utilizado em suas obras por todos os artistas filiados ao PCB, a fim de se disseminar a ideologia socialista no País, por meio de uma arte com objetivos sociais e revolucionários, na visão dos dirigentes comunistas. Nos anos posteriores, a direção comunista adotou uma política cultural que seguia à risca todos os postulados do Realismo Socialista. As editoras do Partido publicaram biografias de líderes e artistas revolucionários, além de romances de escritores socialistas brasileiros, ao quais cultuavam a figura do herói, seja ele personificado em um líder revolucionário, ou um operário que luta por melhores condições de trabalho e salários mais dignos nas fábricas. Assim, na Literatura, em função dessa exigência, muitos romances proletários foram escritos e publicados no Brasil sob a égide do estilo artístico soviético, ao quais objetivavam difundir a ideologia socialista entre os leitores brasileiros. Entre os escritores que escreveram esse tipo de narrativa ficcional, podemos mencionar Jorge Amado com a trilogia Os subterrâneos da Liberdade (1954); Alina Paim com as obras A Hora Próxima (1955), Sol do Meio Dia (1960) e A Correnteza (1979) e Dalcídio Jurandir que escreveu Linha do Parque (1959), nosso objeto de análise neste trabalho. Apesar de uma considerável produção desse tipo de romance em solo brasileiro, o estilo artístico soviético não se conciliava com a realidade aqui encontrada. Ora, se o Realismo Socialista, de modo geral, era uma estética que servia como instrumento de exaltação ao governo socialista e para legitimação do Estado Soviético, como um escritor brasileiro poderia escrever seus romances aos moldes do que propunha essa estética, ambientando suas histórias em um País capitalista? Além disso, como subjugar as particularidades do processo criativo de um autor e do fazer literário a uma fôrma pré-estabelecida? 90

Os artistas e intelectuais brasileiros não compreenderam ao certo como aplicar o realismo socialista à literatura aqui produzida. Apesar disso, o PCB coagia seus membros a aderir a essa estética na produção de sua arte. Os que se recusavam sofriam a acusação de ter se contaminado com a literatura burguesa e de que não queriam defender os ideais dos comunistas. Foi nesse contexto que Dalcídio Jurandir escreveu o romance Linha do Parque.

3. O Romance Proletário Linha do Parque

Em meio à escritura e publicação dos romances do Ciclo do Extremo Norte, Dalcídio Jurandir é solicitado pelo PCB, na década de 1950, a escrever um romance aos moldes do Realismo Socialista. Linha do Parque é o resultado desse trabalho. Para a construção dessa obra, o romancista paraense viajou até a cidade de Rio Grande (RS) para a realização de pesquisas sobre a atuação do movimento operário no início do século XX nessa cidade. O romance proletário de Dalcídio Jurandir, no entanto, curiosamente, não agradou os dirigentes do Partido, os quais rejeitaram editar a obra que eles próprios haviam encomendado. O romance somente foi publicado alguns anos mais tarde, no final da década de 1950, por empreendimento do próprio escritor:

Mesmo os romances de encomenda tropeçaram na censura partidária e custaram a ser editados. Alina Paim e Dalcídio Jurandir tiveram que mudar os seus, várias vezes, por ―inconveniências‖. [...] Linha do Parque adormeceu anos nas gavetas dos dirigentes e permaneceu inédito até 1959, o que permitiu a Dalcídio elaborar a versão final sem os rigores do início da década. (MORAES, 1994, p. 162).

Em 1959, então, Linha do Parque é finalmente publicado por uma editora comunista. Nesse período, os dirigentes do PCB não adotavam mais uma postura sectária em função do seu descontentamento com as ideias stalinistas. Além disso, o Partido havia passado por uma reorganização e agora estava mais aberto ao diálogo com os seus membros, o que fez com que a obra de Dalcídio fosse publicada, inclusive sendo traduzida e editada também na União Soviética, no ano de 1961. Essa obra, obviamente, não faz parte do Ciclo do Extremo Norte e destoa do restante de sua produção literária, primeiramente por não ser ambientada nem na capital paraense, nem na Ilha do Marajó – espaços recorrentes nos seus demais livros – como também pelo fato de o escritor abrir mão, em seu romance proletário, do seu estilo, da 91 sua técnica narrativa e da densidade que atravessa os outros dez romances de sua autoria. Dessa forma, é como se o autor de Linha do Parque fosse outro escritor que não Dalcídio Jurandir, como foi percebido por Nunes:

Linha do Parque, está fora do ciclo, é uma outra escrita. Dalcídio não podia afinar com o realismo socialista, prescrito pelo Partido, sem trair seu sonho da juventude. E para não traí-lo ou trair-se fez-se outro escrevendo Linha do Parque. Sem pseudônimo. Outrou-se, como diria Fernando Pessoa, na criação de uma escrita romanesca diferente (...). O autor é aí uma outra personalidade literária, diferente. Um heterônimo. (NUNES, 2009, p. 324).

Sendo assim, esse romance não só pela sua temática, como também pela forma em que foi escrito, diferencia-se da face mais conhecida do romancista paraense. Dalcídio pretendeu conciliar o sonho de produção do seu projeto literário com a sua fidelidade ao que lhe era ordenado pelos dirigentes comunistas. Essa conciliação somente foi possível com a escritura de um romance deslocado das demais obras. Nessa obra, é narrada a história de duas gerações de trabalhadores que exerceram as suas atividades na cidade de Rio Grande, no estado do Rio Grande do Sul, durante toda a primeira metade do século XX e aderiram aos ideais dos movimentos operários. A narrativa tem início com a chegada do espanhol Iglezias, em 1895, com o objetivo de espalhar suas ―ideias‖ na América Latina. O espanhol, então, aproxima-se da União Operária e tenta divulgar o anarquismo entre os seus membros, apoiando a prática de motins e greves nas fábricas em que eles trabalhavam. Os operários, mesmo sem compreender o anarquismo em sua plenitude, começam a realizar greves nos seus locais de trabalho, com destaque para a primeira paralisação mencionada na obra, feita exclusivamente por mulheres, para proteger uma das operárias que recebeu ameaças de ser suspensa de suas atividades na fábrica. Além disso, os membros da União Operária da cidade realizavam também manifestações nas ruas, exigindo melhores condições de trabalho, o que fez com que eles fossem presos e seus familiares perseguidos e vigiados pela polícia. Após a fase anarquista, Ângelo, filho de Iglezias, continua o trabalho iniciado por seu pai, mas com algumas diferenças, pois o anarquismo nesse momento passa a ser questionado e criticado e as novas concepções socialistas passam a ser defendidas pelos participantes do movimento operário. Dessa forma, ocorre uma divisão entre os membros de tal movimento, pois parte deles defendia que as concepções anarquistas ainda deveriam ser mantidas como base 92 das suas atividades, e outra parte achava que essas ideias não se enquadravam mais nas ações que o movimento operário pretendia executar. A divisão gerou dissensões entre os operários, mas o socialismo acabou por prevalecer na União Operária. O grande desfecho do romance é o ―conflito da Linha do Parque‖ ocorrido no dia 1º de Maio de 1950, que deveria ter sido apenas uma passeata feita pelos operários, mas que se transformou em um confronto com a polícia, o qual culminou com a morte de alguns dos manifestantes. Na descrição desse enredo, podemos perceber os motivos que fizeram com que o romance proletário dalcidiano, como também observar como o autor põe em prática o Realismo Socialista em sua obra. Esse romance não apresenta apenas o cotidiano de trabalho de seus personagens, mas também evidencia os seus dramas pessoais, como problemas familiares, amores não correspondidos, doenças e até mesmo o conflito psicológico de alguns que pensaram em desistir de participar do movimento operário. Esses dramas mostram os trabalhadores não como os heróis idealizados que o Realismo Socialista queria, mas como seres humanos comuns com seus embates e limitações e que ansiavam e lutavam por melhores condições de trabalho nas fábricas. Porém, muito mais do que um elogio ao governo socialista – que era, grosso modo, o que pretendia o estilo artístico soviético –, e de apresentar os operários como heróis idealizados, Dalcídio, nesses escritos, adapta a estética de Jdanov à realidade brasileira, denunciando as mazelas sociais e as condições precárias de trabalho e de vida desses trabalhadores, mostrando todo o sofrimento pelo qual eles passavam para poder sobreviver, sem dar um ―final feliz‖ para seus personagens. Nessa obra, os personagens são apresentados como pessoas comuns, com problemas pessoais e profissionais, que aderiram ao anarquismo e depois ao comunismo, simplesmente como uma alternativa para melhorar a situação dificultosa de trabalho nas fábricas. Além disso, o romance mostra que nem todos os operários tinham certeza se deveriam seguir os ideais socialistas, pois muitos personagens chegaram a pensar até mesmo em desistir do movimento operário. O texto dalcidiano apresenta ainda outras dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores socialistas, que, por seu envolvimento com tais ideias sofrem prisões e tem suas vidas e as de seus familiares controladas pela polícia, dificultando ainda mais a manutenção de seus empregos nas fábricas, como também a defesa dos ideais socialistas e o trabalho desenvolvido na União Operária. 93

Nessa obra, o autor paraense mostra uma realidade triste, cruel e sofrida, vivida pelo operariado gaúcho, evidenciando a pobreza desses homens e mulheres. O escritor não deu aspectos folhetinescos aos seus personagens, nem tampouco idealizou os operários, nem engrandeceu em todo o momento as suas virtudes, como era de se esperar em um romance proletário baseado na estética do Realismo Socialista. Dessa forma, por não encontrar na obra de Dalcídio um texto que seguisse à risca os postulados do Realismo Socialista, o Partido não aceitou publicá-lo. E, por sua postura intransigente na época apenas emite uma nota composta de uma única frase, demonstrando seu posicionamento sobre o romance em questão. Além disso, como veremos no terceiro capítulo, no início da narrativa os operários defendiam o anarquismo. Iglezias um dos mais importantes personagens do romance, que tem seus feitos lembrados e exaltados, mesmo depois de sua morte, é um militante anarquista. Muito depois, os trabalhadores aderem ao comunismo, mas sempre recordando o passado e os líderes anarquistas. É provável, então, que a direção do Partido Comunista Brasileiro, ao ler os manuscritos do romance proletário do escritor paraense, não tenha aprovado a descrição do movimento anarquista presente no livro. Assim, esse pode ter sido um dos motivos que fez com que fosse vetada a publicação dessa obra.

4. Considerações Finais

A direção comunista brasileira estava tão obcecada em seguir os ditames dos soviéticos que encomendou a escritura de romances a alguns autores filiados ao PCB, exigindo que estes adotassem os postulados da doutrina jdanovista em sua narrativa. Porém, algumas dessas obras foram censuradas pelo próprio Partido que rejeitou publicá- las, sem emitir uma explicação para essa recusa. Tendo em mente a postura sectária do Partido na época, é possível entender os motivos que levavam os dirigentes comunistas a desistir da publicação de obras que eles próprios tinham encomendado, pois, provavelmente, na visão deles, esses romances apresentavam certas inconveniências com relação ao estilo artístico soviético, já que tais obras não atenderam exatamente as expectativas que o PCB depositara nelas. Em outras palavras, a direção comunista queria que se produzisse no Brasil um tipo de romance que somente fazia sentido em uma sociedade comunista, uma vez que, como já dissemos, o Realismo Socialista surgiu para, de modo geral, exaltar e enaltecer o socialismo em uma 94 comunidade na qual estava em vigor. Assim, era tarefa difícil para o escritor brasileiro construir uma narrativa sob essa estética, mas ambientada em uma sociedade capitalista. O romance Linha do Parque, do paraense Dalcídio Jurandir escrito na década de 1950, foi uma das obras que sofreu a censura partidária e somente foi publicado anos depois de sua finalização, após o término da onda de sectarismo do PCB. O autor paraense estava comprometido com as questões defendidas pelo Partido, tanto que esse comprometimento se desdobrou em seu trabalho literário com a publicação de tal romance. Essa obra também evidencia o posicionamento político-ideológico do escritor, uma vez que ele por meio de seu livro pode discutir e denunciar questões sociais relativas à situação da classe operária no Brasil. Mesmo assim, Dalcídio não foi capaz, com o seu extenso romance proletário, de agradar os líderes comunistas brasileiros. Não é possível saber ao certo o porquê desse romance não ter sido aceito para publicação pelo PCB, já que este emitiu um parecer sobre a obra de apenas uma linha que pouco ajuda a entender a opinião da direção do Partido sobre a narrativa. Podemos apenas fazer conjecturas, tais como: a ênfase ao anarquismo no primeiro momento da narração pode ter desagradado os dirigentes da obra; Linha do Parque não foi escrito sob todas as regras do Realismo Socialista e isso fez com que o romance não fosse publicado. Apesar da dificuldade em conciliar o estilo jdanovista com a realidade brasileira, encontramos em Linha do Parque algumas teses defendidas por essa estética: esse romance segue a ordem cronológica dos acontecimentos históricos, de 1895 a 1952. Além disso, esse livro não está centrado nos dramas e problemas pessoais dos personagens, apesar de estes surgirem no decorrer da obra, tanto que alguns operários desaparecem completamente da narrativa, sem a apresentação do seu desfecho. A ênfase de Linha do Parque está na história do movimento operário rio-grandense na primeira metade do século XX. Sendo assim, todos os personagens, bem como suas histórias pessoais, servem apenas como um instrumento para a narração dos acontecimentos e eventos que marcaram a história do operariado naquela cidade. Outro aspecto do Realismo Socialista presente na obra é a presença do herói positivo, honesto e que fielmente luta em prol da causa do proletariado e que incentiva os outros trabalhadores a se juntar a ele na luta do movimento operário. Iglezias, na primeira geração, e seu filho Ângelo, na geração seguinte, defendem a qualquer custo ideias que buscavam auxiliar os operários a conseguir melhores condições de trabalho nas fábricas. Todavia, não encontramos nessa narrativa uma exaltação ao modo de vida e ao governo de uma sociedade socialista, talvez porque isso fosse muito distante da realidade 95 vivida pelo leitor brasileiro. No lugar do elogio, há um forte tom de crítica na obra à condição miserável de vida e de trabalho dos operários nos diversos setores e tipos de fábricas da cidade, como também há a descrição da movimentação dos trabalhadores para a execução de greves e motins, apontando que esse era o único caminho que eles poderiam trilhar para conseguir a vitória sobre a classe dominante. Dessa maneira, o Realismo Socialista se configura no texto dalcidiano como uma denúncia social das mazelas enfrentadas pelo proletariado brasileiro.

REFERÊNCIAS:

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A INSERÇÃO DA ESCRITA PÓS-COLONIAL NA PRODUÇÃO LITERÁRIA DE DALCÍDIO JURANDIR32

Almir Pantoja Rodrigues33

Resumo: A tentativa de compreender os problemas sociais postos pela colonização europeia e suas consequêniciasresultaram no aparecimento dos estudos Pós-Coloniais. Na perspectiva da descentralização, o Pos-colonialismo ―coloca alternativas epistemológicas centralizadas em três blocos de questões que são: a crítica ao modernismo como teologia da história, busca de um lugar de enunciação híbrido pós-colonial e crítica à concepção de sujeito das Ciências Sociais‖ (COSTA, 2009, p. 118). Vale mencionar que o Orientalismo de Edward Said (1978) ajudou estabelecer o campo da Teoria Pós-Colonial ao examinar a construção do outro oriental pelos discursos europeus do conhecimento. A partir desse momento, a escrita Pós-Colonial transformou-se numa tentativa de intervir na construção da cultura e do conhecimento e para os intelectuais que vêm de sociedades pós-coloniais, de escrever seu caminho de volta numa história que anteriormente fora escrita pelos de fora. É esse contexto que estamos transpondo para a Amazônia e situando Dalcídio Jurandir como uma voz que entre a sua ―gente miúda‖ procura denunciar as malezas sociais do Marajó, do interior da Pará e da periferia de Belém, pois sabemos que a produção literária de Dalcidiana apresenta resquícios da crise social e política provocada. Afinal, o escritor recorreu à estética literária como campo de luta, para expressar a sua indignação social e incorporar nas páginas ficcionais brasileiras o humano amazônico. Dessa forma, podemos estabelecer relações comparativas entre Dalcídio Jurandir e o pensamento Pós-Colonial, pois da mesma maneira que essa teoria procura desconstruir os essencialíssimos, referência epistemológica, criticar as concepções dominantes de modernidade, o escritor desconstrói os paradigmas estabelecidos por uma elite dominante que controlou o sistema social amazônico do século XX. Assim, a proposta deste artigo objetiva mostrar que Dalcídio Jurandir tornou-se uma forte voz na literatura aos moldes dos estudos Pós-Colonial e tem contribuído com estudos acadêmicos em diferentes áreas do conhecimento, a exemplo da Antropologia.

Palavras chave:Dalcídio Jurandir; Literatura; Pós-colonialismo.

Abstract:The attempt to understand the social problems posed by European colonization and its consequences resulted in the emergence of Post-Colonial Studies. In view of decentralization, the Post colonialism "puts epistemological alternatives centered on three blocks of issues that are critical to modernism, as the theology of history, seeking a place of hybrid postcolonial criticism enunciation and the concept of the subject of Social Sciences "(COSTA, 2009, p. 118). It is worth mentioning that Edward Said's Orientalism (1978) helped to establish the field of Postcolonial Theory to examine the construction of the other Eastern European discourses of knowledge. Thereafter, the Post-Colonial writing became an attempt to intervene in the construction of culture and knowledge and intellectuals coming from post-colonial societies, to write their way back into a story that had been previously written by foreigners. It is this context we are transposing to the Amazon and placing DalcídioJurandir as a voice amongst his "short people" aiming to denounce the social problems of Marajó, Pará‘s countryside and the outskirts of Belém, because we know that the literary production of Dalcídio shows remnants of the social and

32Artigo apresentado ao IV Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA). 33Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Pará UFPA. E-mail: [email protected] 97 political crisis provoked. After all, the writer turned to literary aesthetics as a battlefield, to express their outrage and social pages incorporate the human fictional Brazilian Amazon. Thus, we establish relations between comparative DalcídioJurandir and the Postcolonial thought and therefore the same way that this theory seeks to deconstruct the essentialisms, epistemological reference, and to criticize the dominant conceptions of modernity, the writer deconstructs paradigms established by a ruling elite that controlled Amazon social system of the twentieth century. Thus, the purpose of this article is to show that DalcídioJurandir became a strong voice in the mold of Postcolonial literature studies and has contributed to academic studies in different fields of knowledge, as in Anthropology.

Keywords: DalcídioJurandir; Literature; Post-colonialism.

1. Introdução Este artigo tem a intenção de apresentar algumas considerações a respeito da trajetória literária de Dalcídio Jurandir como resultado de um fazer etnográfico cuja fundamentação teórica adquiriu sustentação nos estudosda escritaPós-Colonial. A ideia de desenvolver um projeto de pesquisa a partir da trajetória literária do escritor marajoara surgiu da leitura do artigo História e Literatura no regime das águas: práticas culturais afroindíginas na Amazônia Marajoara,34 autoria de Agenor Sarraf Pacheco,35onde o autor menciona que:

A grande fonte de informação dalcidiana baseou-se em suas vivências de infância e adolescência, narrativas que ouviu a mãe, o pai, vizinhos parentes e amigos contaram sobre os habitantes dos municípios de Ponta de Pedras, Muaná e Cachoeira do Arari, lugar onde morou durante 12 anos. (PACHECO, 2009, p. 412-413).

Do mesmo modo, Jurandir sofreu influências de leituras de obras nacionais e estrangeiras, correspondências com amigos literatos, etnólogos e folclorista. Um aspecto que impressiona na forma como o romancista deu luz a seus romances é a grande preocupação com o levantamento de informações, a comprovação das narrativas. Não na perspectiva de checar os fatos, mas no sentido de saber se as práticas culturais eram recorrentes naquele determinado espaço. (PACHECO, 2009, p. 413).

34 Artigo publicado na Amazônica – Revista de Antropologia, vol. I, ISSN 184-6215, setembro de 2009. Esta revista é um periódico científico transnacional, voltado a promover o debate, a construção do conhecimento e a veiculação de resultados de pesquisas científicas relativas às populações amazônicas, nos quatro campos da Antropologia. 35 Doutor em História Social (PUC-SP, 2009), Professor Adjunto II, da Universidade Federal do Pará (UFPA), coordenador do Grupo de Pesquisa em Estudos Culturais na Amazônia (GECA/CNPq/UFPA).

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As proposições de Pacheco apresentam fortes indícios de que Dalcídio Jurandir além de ter sido um grande literato na Amazônia no século XX, viveu uma experiência diferenciada em sua trajetória como escritor, pois para compor suas obras, preocupava-se em valorizar vivências compartilhadas e levantar informações de fatos e rituais constituintes dos modos de vida amazônicos. Aos moldes da Teoria Pós-Colonial, DalcídioJurandir, por meio de uma abordagem sociologia, em suas páginas ficcionais, emerge vozes de sujeitos marginalizados, excluídos socialmente, vistos pela perspectiva do colonizado, fato que nos permite inserir a escrita de Pós-Colonial num contexto Amazônico. Para melhor compreender como redigiu o rico acervo literário que legou à literatura brasileira e amazônica é preciso realizar um estudo sistemático que respondam as principais indagações levantadas sobre o tema deste estudo: Como se constituiu a experiência antropológica no fazer literário de Dalcídio? De que maneira apropriou-se dos contatos estabelecidos em circuitos familiares, intelectuais e políticos para o seu fazer literário? Que fontes de pesquisa serviram de informação para o escritor compor seu processo de criação literária? De que maneira, é possível estabelecer uma intersecção entre a Teoria Pós-Colonial a Literatura de Expressão Amazônica produzida por DalcídioJurandir? Considerando a importância que o escritor tem para o mundo das letras, especialmente aquele que foi sendo constituído na Amazônia, este estudo propõe como tema principal analisar influências e sentidos da trajetória de vida social, intelectual e política de Dalcídio Jurandir na construção do seu projeto literário, pois estudos preliminares realizados em leituras de seus romances, documentos escritos e textos acadêmicos de estudiosos que se debruçaram sobre o conjunto de sua obra apontam que a produção literária do escritor seguiu pegadas de práticas de pesquisas antropológicas, especialmente em etapas constituintes do método etnográfico, sob o olhar teórico da escrita Pós-Colonial.

2.Uma visão panorâmica sobre as pesquisas dalcidianas

Um levantamento sobre as pesquisas em torno do romancista e poeta amazônico Dalcídio Jurandir aponta que há uma variedade de trabalhos acadêmicos a respeito do escritor nortista voltados para a questão estética. São pesquisas que se debruçaram em explorar metáforas, aspectos narrativos, representação ficcional, análise das personagens, 99 categoria temporal. Sem dúvida, são estudos que dentro do universo literário têm um valor inquestionável e que contribuíram para uma nova recepção da obra dalcidiana. Pressler (2004) informa que em 1984 aparece o primeiro trabalho acadêmico estético sobre Dalcídio Jurandir. Trata-se da primeira dissertação de mestrado, defendida por Enilda Tereza N. Alves, na PUC/Rio de Janeiro, intitulada Marinatambola: construindo o mundo Amzônico com apenas Três Casas e um Rio, seguida de Olinda Bastos Nogueira explora o universo da Psicanálise, com uma tese de doutorado apresentada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), intitulada: Dalcídio Jurandir: Revelação do Norte Sul.A partir de 1998, começaram a surgir em Belém trabalhos de divulgação enfatizando o código estético literário, de estudiosos como Paulo Nunes, Marli Furtdo e José Arthur Bogéa. Nunes (1998), na dissertação de mestrado intitulada Aguanarrativa: uma leitura de Chove nos Campos de Cachoeira, apresenta um estudo que traz à tona um texto único nas mais variadas produções literárias brasileiras cuja intenção é, por meio da narratologia, restaurar moisacos. Em 2002, a Professora Marli Furtado36 defende na UNICAMP a tese Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir. De acordo com a pesquisa, ―a obra de Dalcídio Jurandir, escrita entre 1939 e 1978, quebra como tradição literária sobre a Amazônia, marcada pela grandiloquência de imagens, na tentativa de revelar uma Natureza opulenta e majestosa. Ao seguir a trajetória do protagonista Alfredo, de menino do interior e rapaz urbano, o autor traça um painel da Amazônia pós período áureo do ciclo da borracha e nos leva as fantasmagóricas desse ciclo econômico na região.‖ (FURTADO, 2002). Após o trabalho de Furtado, Bogéa publica Bandolim do diabo: Dalcídio Jurandir: fragmentos, (2003), editadopela editora Paka-Tatu que ajuda a legitimar o nome e a produção literária do escritor não apenas como uma produção literária regionalista, mas enfatizando a relevância de uma Literatura de Expressão Amazônica que ultrapassa os limites da dependência, fazendo dela o marco diferencial para se transformar em universal. Na Universidade da Amazônia, surgem dissertações de Mestrado e a tese de doutorado de Paulo Ornela.O Curso de Mestrado em Letras, da Universidade Federal do Pará, investe em Projetos Acadêmicos, junto aos Projetos de Iniciação Científica e Trabalhos de Conclusão de Cursos (TCC).

36A Professora Marli Tereza Furtado é uma das principais autoridades a respeito de Dalcídio Jurandir, na área dos Estudos Literáriose desenvolve um movimento acadêmico por excelência em torno do escritor, na Universidade Federal do Pará.

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Dentre uma infinidade de pesquisas sobre Dalcídio, apresento, numa sequência cronológica, algumas dissertações que contribuíram para a divulgação do esquecido Dalcídio Jurandir. Cito: Cidade e antíteses: uma leitura do romance Passagem dos Inocentes de Dalcídio Jurandir (2005), de Marcos Monteiro de Almeida, Tra[D]ição e o jogo da diferença em Marajó, de Dalcídio Jurandir (2006), de Guilherme dos Santos Júnior, Marajó: espaço, sujeito e escrita (2007), de Ivone dos Santos Veloso, De Cachoeira a Belém: a inflexão das ilusões de Alfredo (2008), de Paulo Jorge de Moraes Ferreira, Três Casas e um rio de Dalcídio Jurandir (2008), de Marcilene Pinheiro Leal, Espaço ficcional no romance Ponte do Galo, de Dalcídio Jurandir (2009), deAlcir de Vasconcelos Alvarez Rodrigues e O Grotesco em Dalcídio Jurandir:Chove nos campos de Cachoeira e três casas e um rio (2011), da pesquisadora Viviane Dantas Moraes. Em 2012,surge um novo trabalho sobre Dalcídio Jurandir. Trata-se do livro intitulado A Obra de Dalcídio Jurandir e o Romance Moderno (2012), organizado pelo professor Wenceslau Otero Alonso Jr. que contém oito artigos que foram escritos no período de 2010 / 2011. É um livro que nasceu de um dos projetos do Professor Alonso Jr. cuja ideia central residiu em verificar o quanto Dalcídio Jurandir estava sintonizado com as experiências mais significativas - em termo de novas pesquisas estéticas – da literatura nacional e universal do século XX, para então, explicar, em parte, o seu processo criativo. Por último, foi publicado mais um olhar acadêmico sobre o renomado escritor marajoara. Na ocasião do 18º Fórum Paraense de Letras (UNAMA) que aconteceu em setembro de 2012, foi feito o lançamento da Revista Asas da Palavra, nº 26, que homenageou mais uma vez o escritor nortista. Paulo Nunes, na apresentação da revista, afirma que ―Dalcídio Jurandir é um dos mais vigorosos escritores brasileiros da contemporaneidade, por isso talvez seja o único que até hoje mereceu por três vezes integrar esta Asas da Palavra”. A revista comemora os cento e doze anos do nascimento do escritor e apresenta dezoito artigos e ensaios que são resultados de estudos acadêmicos sobre a obra dalcidiana cujas autorias pertencem a autoridades intelectuais que desenvolvem pesquisas sobre o escritor amazônico. Como se observa, o movimento acadêmico que surgiu sobre Dalcídio Jurandir ajudou a tirar o escritor do vazio do esquecimento e da desvalorização que outrora fora cometido pela crítica literária brasileira.

3- Dalcídio Jurandir: um literato antropólogo na Amazônia

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Atualmente, é inegável a contribuição que o literato Dalcídio Jurandir tem para o mundo das Letras. Dentre os autores da Amazônia do século XX, sem dúvida, o escritor é um dos mais destacados na área ficcional que devido ao seu grau de importância, levou Jorge Amado a fazer a seguinte declaração sobre o marajoara: ―Romancista que não se parece com nenhum outro dos grandes ficcionistas brasileiros‖ (BOGEA, 2003, p. 40). No entanto, uma análise sistemática da obra dalcidiana composta pelo famoso Ciclo do Extremo Norte aponta que a produção romanesca do autor foi construída, em seu bojo, a partir de pesquisas feitas pelo próprio escritor sobre a região investigada, pois os costumes, as crenças, os hábitos e os aspectos físicos dos povos que habitaram a Amazônia do século XX constituem matéria prima do romance dalcidiano. É essa atitude de investigador, pesquisador e conhecedor da cultura marajoara e de Belém do Pará que se intenta investigar e compreender o escritor como um literato antropólogo da Amazônia. Trata-se de uma temática que apesar de ainda se manifestar de forma tímida é um caminho a ser percorrido e que oferece conteúdo para discussão, análise e pesquisa que irão dar a figura de Dalcídio, uma nova roupagem. É o olhar sobre Dalcídio como um literato antropólogo que viveu na Amazônia do século XX. A vida social da Amazônia é uma das grandes temáticas da literatura produzida por Dalcídio Jurandir. A narrativa do Ciclo Extremo Norte mostra uma abordagem sociológica e antropológica das peculiaridades da vida no Marajó. Dalcídio Jurandir, caminhando em experiências etnográficas ao utilizar vivências compartilhadas durante sua vida marajoara e sua grande paixão pelo mundo amazônico, construiu um cenário da vida social do homem amazônida. De uma forma geral, o Ciclo Extremo Norte aborda duas grandes temáticas: ―a exclusão – seja do homem em relação ao universo e à sociedade, seja da população cabocla da região amazônica em relação à sociedade nacional brasileira - e a hibridação como processo social‖ (CASTRO, 2007, p. 23). Pacheco (2009) também registra suas impressões a respeitodas abordagens temáticas do projeto literário de Dalcídio que estãotematizadas no universo marajoara ao afirmar que:

Utilizando-se, com virtuosidade, de uma linguagem cujas marcas da oralidade regional são preservadas, Dalcídio traz à tona as dimensões de vivências de diferentes grupos sociais, em suas maneiras desiguais de viver as contraditórias dimensões de miséria social, riquezas e esbanjamento. As histórias, aventuras e desventuras da região são contadas a partir da valorização de ações 102

e reações de personagens do seu mundo real, consentindo-lhes o direito de falar, gritar, reclamar e deixar conhecer seus sofrimentos, conquistas, intrigas, projetos, em meio a uma natureza peculiar que dita regras de convivências. (PACHECO, 2009, p.413).

As palavras de Pacheco mostram o quanto Dalcídio conhecia os pormenores, os ―segredos‖ do Marajó, da natureza, de uma forma muito particular. Essa intimidade do escritor com a Amazônia, em especial com o Marajó e Belém que se apresentam nas páginas dos seus romances, deixa claro que o literato era um profundo conhecedor da realidade, do mundo amazônico: linguagem, folclore, crenças, sofrimentos, problemas sócias, costumes, hábitos, aspectos físicos do povo que habitou a Amazônia do século XX. Um estudo sistemático sobre a produção dos romances dalcidianos mostra que a pesquisa sobre a Amazônia muito contribuiu para a produção do seu ciclo romanesco, pois desde sua juventude o escritor viajava pelo interior do Marajó e por cidades do estado do Pará. Nessas andanças, ele registrava tudo o que percebia no que se referem ao espaço geográfico, crenças, costumes, profissões, como se observa no livro Dalcídio Jurandir: Romancista da Amazônia, organizado por Benedito Nunes.

Uma etapa importante do processo de criação de Dalcídio era a pesquisa sobre a Amazônia em geral e, em específico, sobre Marajó e Belém: os hábitos do povo, as lendas, os ditos e crenças populares, a geografia e diversas profissões, etc. Tudo ajudava a compor seus romances, tudo era matéria para sua reelaboração ficcional, como esclarece em carta de 1956 para Ritacínio: ―Apenas tomo dados sobre os quais trabalho com a invenção e a possibilidade de novos episódios e incidentes ou situações‖ (NUNES, 2006, p. 162).

Nunes (2009) informa que em 1940 Dalcídio exerceu o cargo de Inspetor Escolar em Salvaterra e a função exigia que ele viajasse pelos interiores em visitas às escolas da região. Em seguida, foi convidado a trabalhar no Recenseamento, em Santarém e devido as obrigatoriedade da função que lhe tinha sido delegada, o escritor teve que viajar 15 dias pela Amazônia. No período de viagem, ele escreveu uma carta a esposa Guiomarina. O conteúdo da carta ratifica o homem Dalcídio atento aos detalhes da cultura, do contexto amazônico que lhe cercava e que lhe serviram como fonte de inspiração para sua composição literária.

Fizemos uma viagem de 15 dias pela enorme Amazônia. Pensei em poemas, no romance e na guerra. Estive em Terra Santa, lugar a 103

beira do lago algodoal. Maravilhoso [...] Estive em Faro, mas não vi os pajés nem choquei pedras ou caroço como diziam. Vi a boca do Rio Nhamunda que leva a gente pros índios, montanhas, cachoeiras e castanhais virgens. Estive em Oriximiná, pequena cidade á boca do Trombetas outro grande rios que nos leva pros mucambos antigos de pretos, índios, cachoeiras, as Guianas. Gostei de Faro [...], o rio que leva também para o Espelho da Lua, o lago onde a lenda diz que as Amazonas buscavam os muiraquitãs para na hora do amor darem aos homens. [...] (NUNES, 2009, p. 75).

O espírito de investigação, o desejo de comprovar, conhecer ou confirmar as práticas culturais da região que viveu, transformaram as vivências de Dalcídio em experiências antropológicas sobre a Amazônia do século XIX. Pacheco (2009) atesta a atitude de pesquisador do escritor:

O romancista escreveu ainda ter dormido uma noite no tapari de um amigo para assistir ao drama dos viradores da madeira. Durante a madrugada, acordou para acompanhar a viragem noturna, espetáculo dos troncos humanos, curvos e viciosos, atracados a um toro imenso que não quer subir um lombo de terra, que escorrega do trilho ou corre numa descida. (PACHECO, 2009, p. 419)

Como se observa, no fazer literário de Dalcídio há uma experiência antropológica, pois o escritor utiliza-se de uma etapa do método etnográfico: a observação participante. Para produzir seus romances o escritor investiga a cultura, o modo como as pessoas executam as suas funções e práticas culturais que diferem dos paradigmas da perspectiva europeia, do não colonizador. Na Revista Asas da Palavra, nº 17, de 2004, Audemaro Taranto Goulart, no artigo Marajó:sob o signo da antropologia e da estética, menciona a dimensão antropológica da obras de Dalcídio, em particular o Marajó, a partir do jogo literatura e antropologia.

Começo, pois, dizendo do que me seduziu nesse livro e que são as instigantes ligações que ele revela com mundos e valores que, a princípio, parecem estar inteiramente separados no tempo e no espaço. À medida que a leitura da narrativa evoluía, ia ficando mais nítida, para mim, sua dimensão antropológica. Os ecos de Totem e Tabu, de Freud, soavam mais alto a cada página e eu ia confirmando a importância do texto de Dalcídio na evocação desse sentido revelador do trânsito que o homem realizou da natureza para a cultura, como se deu a transformação do indivíduo em sujeito do mundo simbólico. (ASAS DA PALAVRA, 2004, P. 17). 104

Goulart (2004) descreve como se dá a relação Antropologia e Literatura nos romances marajoaras. Dalcído utilizando-se do signo estético, primeiramente seduz o leitor com uma narrativa atraente para registrar, documentar, relatar suas vivências, isto é, aquilo que viu, investigou e conheceu nas páginas de seus romances:

...a obra de Dalcídio é tão instigante que que poucos não se deixam seduzir por ela. Entretanto, não há como negar que o próprio das obras de qualidade é justamente isso: lançar o canto de sereia – representado numa narrativa atraente – e, logo em seguida, quando já tem o leitor enredado na sua sedução, pôr em relevo um mundo enigmático que confronta o leitor com o desafio de sua decifração (GOULART, 2004, p. 34).

Dalcídio trabalha com pesquisas, memórias, jornais, documentos históricos, depoimentos e por meio de observações, através da vivência entre os povos da Amazônia, conseguiu recolher informações que lhe foram úteis não somente para composição do seu ciclo romanesco, mas, inseridas nas páginas de seus romances, no sentido de servir como material de análise e estudo em diversas áreas do saber humano: História, Sociologia, Antropologia, por exemplo. Em síntese, a leitura dos romances dalcidianos leva-nos a defender a tese de que Dalcídio Jurandir foi um literato-antropólogo na Amazônia do século XX, que investigou a cultura, as histórias, os hábitos, as relações sociais e familiares, a decadência econômica, as riquezas e exuberância do universo amazônico.

4- A Inserção da escrita Pós-Colonialna Produção Literária de Dalcídio Jurandir

Os Estudos Pós-Coloniais surgiram da tentativa de compreender os problemas postos pela colonização europeia e suas consequências. Nesse sentido, as instituições e experiências Pós-Colonial, da ideia de nação independente à ideia da própria cultura, misturam-se com as práticas discursivas do Ocidente. A partir dos anos 80, o aparecimento cada vez maior de textos impulsionou o debate sobre a relação entre a hegemonia dos discursos ocidentais, as possibilidades de resistência e a formação dos sujeitos colonial e pós-colonial: sujeitos em mesclas, que surgem da superimposição de línguas e culturas conflitantes. Nessa perspectiva da descentralização, o Pós-Colonialismo ―coloca alternativas epistemológicas centralizadas em três blocos de questões que são: a crítica ao modernismo 105 como teologia da história, busca de um lugar de enunciação híbrido pós-colonial e crítica à concepção de sujeito das Ciências Sociais‖ (COSTA, 2009, p. 118). Vale mencionar que o Orientalismo de Edward Said (1978) ajudou a estabelecer o campo da Teoria Pós-Colonial ao examinar a construção do outro oriental pelos discursos europeus do conhecimento. A partir desse momento, a escrita Pós-Colonial se transformou numa tentativa de intervir na construção da cultura e do conhecimento e para os intelectuais que veem de sociedades pós-coloniais, de escrever seu caminho de volta numa história que anteriormente fora escrita pelos de fora. De acordo com Sérgio Costa (2006) ―os estudos Pós-Coloniais não constituem propriamente uma matriz teórica única‖. Trata-se de uma variedade de contribuições com orientações distintas, mas que apresentam como característica comum o esforço de esborçar, pelo método da desconstrução dos essencialismos, uma referência epistemológica crítica às concepções dominantes da modernidade. Influenciado por um pensamento marxista, leninista e humanista, Dalcídio construiu um projeto literário que buscava mudanças sociais em favor da sua sofrida gente marajoara. Nota-se que o literato surge como uma voz responsável e ansiosa por mudanças sociais, no sentido de desconstruir estereótipos criados pela modernidade em relação à cultura amazônica, pois sua escrita literária ―é marcada pela subversão, em temas e formas ao expressar a experiência de povos colonizados, em uma espécie de contra escrita colonial (SANTOS, 2010, p. 343). É esse contexto que estamos transpondo para a Amazônia e situando Dalcídio Jurandir como uma voz que entre a sua ―gente miúda‖, expressão de próprio punho do autor, procura denunciar as malezas sociais do Marajó, do interior da Pará e da periferia de Belém, pois sabemos que a produção literária de Dalcídio apresenta resquícios da crise social e política provocada. Afinal, o escritor recorreu à estética literária como campo de luta, para expressar a sua indignação social e incorporar nas páginas ficcionais brasileiras o elemento humano amazônico. Dessa forma, podemos estabelecer uma relação entre Dalcídio Jurandir e o pensamento Pós-Colonial, pois da mesma maneira que essa teoria procura desconstruir os essencialismos, referência epistemológica, critica às concepções dominantes de modernidade, Dalcídio procura também desconstruir, por meio de um pensamento marxista, os paradigmas estabelecidos por uma elite dominante que controlou o sistema social amazônico do século XX. 106

A literatura de Dalcídio a partir de sua trajetória de vida, histórica e política apresenta por meio de suas personagens os problemas sociais, os sofrimentos e as dores vividos pelo homem amazônico. Assim, o escritor surge como uma voz cuja intenção é a desconstrução de uma sociedade dominante. Nesse sentido, é possível observar pontos de intersecção entre o texto literário de Dalcídio e a teoria Pós-Colonial. A ficçãodalcidiana apresenta uma inter-relação com pensamento Pós-Colonial ao propor em seus romances a descrição do mundo amazônico, do seu povo, visto pela perspectiva do colonizado, pois o olhar de Dalcídio sobre a vida em movimento vai de encontro ao pensamento europeu cartesiano e iluminista que ―constituem-se de polaridades entre o Ocidente – civilizado, adiantado, desenvolvido, bom – e o resto – selvagem, atrasado, subdesenvolvido, ruim (COSTA, 2006, p. 119). Do contraste desse binarismo, nasce das páginas de Dalcídio a intersecção entre o escritor marajora e a teoria Pós-Colonial. De forma não intencional, Dalcídio Jurandir propõe ―uma arqueologia pós-colonial da modernidade‖ com o intuito de reinserir as histórias e experiências dos historicamente marginalizados, conforme sugere HomiBhabha (1998), além de ―criar um tempo e espaço novos, in-between, indo além das observações das relações culturais que asseveravam as impurezas, os hibridismos e as mesclas culturais e disfarçam a dominação existente nos centros de poder‖.

5- Considerações finais

Tendo em vista estudos preliminares realizados a partir de uma significativa pesquisa bibliográfica foi constatado que DalcídioJurandir não é somente o artista da palavra, mas um pesquisador, um antropólogo que por meio da ficção deixou um rico material de pesquisa que descreve minuciosamente o Chão de Dalcídioe o tornou uma forte voz na literatura brasileira de expressão amazônica aos moldes dos estudos Pós-Colonial, além de contribuir, academicamente, com o avanço de estudos científicos em diversas áreas do conhecimento, em particular a Antropologia. É uma pesquisa que tem como área de concentração a Antropologia Social e está direcionada para a discussão de uma temática amazônica, considerado a relação antropólogo e sujeitos sociais, respectivamente. Dalcído Jurandir descreve o homem amazônida, em particular os sujeitos marajoaras do século XX, além de trabalhar com representações de natureza entre sociedades ocidentais e tradicionais da Amazônia ao longo 107 do tempo para compreender a diversidade cultural dos povos tradicionais sob as óticas nativas e acadêmicas. Para finalizar enfatizo que estassingelas considerações são apenas o início de uma discussão que tem um vasto campo em torno de pesquisas acadêmicas sobre o escritor marajoara Dalcídio Jurandir, com ênfase na relação Literatura e Antropologia na Amazônia.

REFERÊNCIAS: ASSIS, Rosa (Org.) Estudos comemorativos Marajó: Dalcídio Jurandir: 60 anos. Belém: Editora UNAMA, 2007.

BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. A cidade dos encantamentos: pajelança, feitiçaria e religiões afro- brasileiras na Amazônia. A constituição de um campo de estudo, 1870-1950. Dissertação de Mestradoem História, Unicamp, Campinas/ SP, 1996.

FURTADO, Marli Tereza. Universidade Estadual de Campinas. Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir. Tese (doutorado em Letras) – UNICAMP 2002.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

LIMA, Luiz Costa. Documento e ficção. In: LIMA, Luiz Costa. Sociedade e Discurso Ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento limitar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

NUNES, Benedito. Dalcídio Jurandir: romancista da Amazônia. Belém: Secult, 2006.

PACHECO, Agenor Sarraf.Em El corazón de laAmazonia: identidades, saberes e religiosidades no regime das águas marajoaras. Tese de Doutorado, Programa de Pós Graduação em História Social, PUC-SP, São Paulo, 2009.

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ENTRE A HONRA E A CIVILIDADE EM O CORONEL SANGRADO Ana Caroline da Silva Rodrigues37 Profª Drª Marlí Furtado (Orientadora)38 Resumo: No século XIX as ideias positivistas, em que o racionalismo e o cientificismo prevaleciam, traziam uma nova forma de pensar e encarar os problemas em sociedade. Essa nova ordem se chocou com a tradição e os costumes de lugares que estão distantes tanto geograficamente quanto socialmente dos centros urbanos. Na literatura produzida sobre a Amazônia, durante esse período, esse aspecto aparece, quase sempre, em conflito, pois as leis vindas da nova ordem social se mostram insuficiente para satisfazer a manutenção dos costumes e acabam gerando um desequilíbrio nas relações entre os indivíduos. Na obra O Coronel Sangrado, isto pode ser visto no embate que existe entre a busca da Honra e o perdão, na história dos personagens Miguel Fernandes e Tenente Ribeiro que no passado foram inimigos e agora se reencontram com o retorno de Miguel, após este ter passado um tempo longe da cidade de Óbidos. Diante disso, este trabalho busca analisar as diferenças entre os pensamentos ditados pelo Positivismo e os pensamentos do homem da Amazônia e da ordem social o qual está inserido concentrando-se na temática da Honra e nos conceitos de civilização. A análise também considerará importante o deslocamento sofrido pelo personagem Miguel, evidenciando as consequências desse distanciamento da terra natal e as mudanças ocorridas nas suas formas de pensar e agir. Para a análise serão utilizadas teorias sobre o Naturalismo (Coutinho e Bosi), Regionalismo (Ligia M.Leite), Exílio (Edward W. Said) e Civilização (Tzvetan Todorov). Palavras- Chave: Regionalismo, Civilização, Deslocamento. Abstract: In the nineteenth century positivist ideas, in which rationalism and scientism prevailed, brought a new way of thinking and the problems facing society. This new order clashed with the traditions and customs of places that are distant both geographically and socially from urban centers. In literature produced over the Amazon during this period, this aspect appears almost always in conflict, because the laws coming from the new social order are shown insufficient to meet the maintenance of customs and end up generating an imbalance in relations between individuals. In the work Colonel Bled, this can be seen in the clash that exists between the pursuit of honor and forgiveness, in the history of the characters and Lieutenant Miguel Fernandes Ribeiro who were enemies in the past and now are reunited with the return of Miguel, after it has passed time away from the town of Obidos. Thus, this paper seeks to examine the differences between positivism and thoughts dictated by the thoughts of man of the Amazon and the social order which is inserted concentrating on the theme of Honor and the concepts of civilization. The analysis will also consider important the displacement suffered by the character Miguel, showing the consequences of distancing the homeland and the changes in their ways of thinking and acting. For the analysis will be used theories of Naturalism (Coutinho and Bosi) Regionalism (Ligia M.Leite), Exile (Edward W. Said) and Civilization (Tzvetan Todorov). Keywords: Regionalism, Civilization, Displacement.

1. Introdução

Num momento em que as ideias do Naturalismo tinham destaque na literatura brasileira, Inglês de Sousa desempenhou um importante papel na exibição do espaço

37 Mestranda em Estudos Literários (UFPA) E-mail: caroline [email protected] 38 Professora do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected] 109 amazônico perante o cenário nacional, visto que por meio de suas obras é possível ver, não somente, o espaço descrito, mas uma sociedade que até então tinha sua imagem pouco mostrada ou ainda estigmatizada na constituição do povo brasileiro. Assim temos, em suas obras, configurada a literatura regional sobre a qual Afrânio Coutinho define pela influência de ―maneiras peculiares da sociedade humana estabelecida naquela região e que a fizeram distinta de qualquer outra‖ (COUTINHO, 1969,p.220). Dentre as obras produzidas pelo autor, ressaltaremos, neste trabalho O Coronel Sangrado e demonstraremos de que forma este tipo de conflitos de valores acontece. O autor natural da cidade de Óbidos, onde se passa a história, buscou descrever por meio de suas obras, o cotidiano do homem da Amazônia, intitulando o conjunto de sua obra ―Cenas da Vida no Amazonas‖. A crítica literária assim o descreve: Causídico respeitável e perito em letras de câmbio, Inglês de Sousa não foi menos escrupuloso como narrador de casos amazônicos com que antecipou o próprio Aluísio no manejo da prosa analítica. As datas de publicação de seus primeiros romances,1876 (O Cacaulista) e 1877 (O Coronel Sangrado) fazem-no contemporâneo dos regionalistas, Taunay e Franklin Távora, mas Inglês de Sousa já mostrara nessas páginas de juventude um temperamento frio, inclinado ao exame dos ―fatos‖, (BOSI, 2006,p.192-193).

Examinar os fatos era uma das principais características do Naturalismo. Assim, comumente é possível ver esse exame por meio da fala dos próprios narradores dos romances que não somente descrevem, mas também emitem suas opiniões e juízos de valores acerca das situações apresentadas. Especificamente, tratando-se de uma obra que se enquadra também como obra regionalista, este item se revela como um diferencial, posto que é possível cristalizar opiniões, por vezes, preconceituosas acerca do homem do meio rural ou revelar assim uma imagem dele mais próxima do real, na descrição das ações inseridas dentro da cultura local e não dissociadas desta. Essa forma de produção é mais complexa do que simplesmente a descrição dos espaços, como outrora era associado ao Regionalismo: É preciso, então, ultrapassar o critério conteudístico e levar em conta o modo de formar, observando como certas obras, para além do assunto regional, buscam harmonizar tema e estilo, matéria prima e técnica, revelando mais do que paisagens, tipos ou costumes, ―estruturas cognoscitivas‖ e construindo uma verdadeira linhagem de representação/apresentação dos brasileiros pobres de culturas rurais diferenciadas (LEITE, 1994, p.668)

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Adicionados a estes, na estética Realista e Naturalista temos a linguagem objetiva, o cientificismo, o materialismo, determinismo, entre outros, utilizados a fim de tornar a narrativa fria e lenta, consistindo em descrever o comportamento do homem no seu espaço, chegando assim, no romance experimental. E é neste tipo de romance em que aparecem os conflitos do homem frente ao meio em que se vive. Em O Coronel Sangrado, Inglês de Sousa exibe o conflito interior de Miguel Fernandes, personagem protagonista. Na obra, vemos o retorno de Miguel à cidade de Óbidos, da qual ele teve que sair, forçadamente, após uma briga com um inimigo de sua família (este fato foi descrito no romance anterior: O Cacaulista). Passados mais de cinco anos na cidade de Belém, ele, agora, retorna e a população da cidade espera que ele se vingue do seu antigo inimigo fato que não acontece, pois Miguel depois do tempo que esteve fora, volta com valores diferentes, frustrando as expectativas das pessoas. 2. O retorno à terra

Na viagem de retorno para a cidade de Óbidos, Miguel manifesta sua ansiedade de rever sua terra natal. Ao escrever para um amigo que partira para o Maranhão ele destaca: ―Depois de mais de cinco anos de exílio ia eu rever a família, os amigos da meninice, aquelas grandiosas terras do Amazonas que nunca se cansa a gente de admirar, e que uma vez vistas deixam na alma uma impressão profunda e duradoura‖ (SOUSA, 2003, P.42). O tempo que passara em Belém trouxe muitas mudanças na vida do personagem, posto que ele teve contato com um espaço em que os valores sociais destacados eram baseados na ciência, nos valores próprios do Positivismo, no Humanismo, entre outros, e não privilegiavam as tradições locais, por isso ele sente-se exilado. Segundo Edward Said (2003), ―o exílio é uma solidão vivida fora do grupo: a privação sentida por não estar com os outros na habitação comunal‖ (SAID, 2003, p.50). Isso faz com que o indivíduo se sinta um ―estranho‖ dentro do novo grupo tornando também o espaço em um lugar desagradável. Vemos isso em outro trecho da carta de Miguel: ―Fora com impaciência viva que eu aguardara o dia da saída do vapor, sorvendo o vermelho pó da aborrecida Belém. Eu ia rever o Amazonas(...)A minha imaginação, excitada pelos livros e pela incerta recordação do passado, que deixara a descuidada infância, prometia-me uma mundo de magníficas realidades,um paraíso de água e de verdura, em que, livre dos atentados do homem, se revelava a natureza com toda a força e poesia!‖ (SOUSA, 2003, p.42).

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A cidade de nascimento de Miguel (Óbidos) aparece, agora, como refúgio da modernidade do século XIX porque é nela em que o personagem estará ―livre dos atentados do homem‖. Nesse caso, o lugar do exílio (Belém) é posto quase como ficcional posto que ―o novo mundo do exilado é logicamente artificial e sua irrealidade se parece com a ficção‖ (SAID, ano, p.54), ao passo que o lugar de origem (Óbidos) é colocado como a possibilidade de se encontrar ―um mundo de magníficas realidades‖ ainda que isso seja baseado em ―incerta recordação do passado‖. Outro ponto a ser destacado aqui é o acesso aos livros, símbolo do conhecimento institucionalizado, objeto este mais presente na vida cotidiana dos habitantes das capitais e que passou também a fazer parte da vida de Miguel no tempo em que esteve em Belém: ―No Pará, Miguel fora empregado na casa de um excelente homem que o tratou como filho. O rapaz teve, pois, tempo de instruir-se lendo alguma coisa‖ (SOUSA, 2003, p.68). O acesso às leituras o acaba colocando frente às mudanças exigidas a fim de que seu modo de pensar e agir se enquadrem a ordem social estabelecida na cidade de Belém, que aqui aparece como o símbolo de transformações no pensamento advindos da Modernidade. Desta forma, há uma dualidade na descrição de Miguel, a qual pode ser entendida como a síntese da imagem do próprio personagem, que resiste às transformações impostas pela sociedade do lugar de exílio (ainda que involuntariamente), evidenciada na descrição do narrador:

O corpo era elegante, não dessa elegância afetada dos nossos ridículos goumeux; mas de uma elegância natural, quase selvagem. Via-se que a vida das cidades dificilmente moldara à sua feição uma natureza virgem. Por vezes, pelos movimentos bruscos que como descuidadamente o assaltavam, via-se perfeitamente aparecer o filho do mato sob o invólucro mentiroso do cidadão. Um observador veria sob as vestes da moda bater o peito do matuto ingênuo e simples. Para os que o cercavam, porém, o passageiro do Madeira era um moço do tom que viera trazer da capital as últimas modas e as últimas notícias. Era um objeto de inveja, porque decerto excitaria a imaginação de todas as moças da terra. (SOUSA, 2003, p.42) (grifo do autor)

Miguel se destaca por se diferenciar dos demais de forma peculiar, isso acontece de forma natural e inerente à sua essência. Mesmo quando ele tenta se parecer com os habitantes do novo espaço, no seu modo se vestir, por exemplo, se torna algo mentiroso. No entanto, para os seus conterrâneos, a marca da diferença era vista como um privilégio para poucos e por isso objeto de desejo. SAID afirma, ainda que para aquele que sai do seu 112 lugar de origem ―os hábitos de vida, expressão ou atividade no novo ambiente ocorrem inevitavelmente contra o pano de fundo da memória dessas coisas em outro ambiente (SAID, 2003, p.59)‖. Dessa forma o personagem tem em sua vivência dois ambientes, os quais são reais e se dão conjuntamente se contrapondo um ao outro.

3. O ressurgimento do conflito

O retorno de Miguel faz renascer a história não acabada entre ele e o tenente Ribeiro, desestabilizando a situação de tranquilidade que estava instaurada desde sua ida para Belém. Por este motivo a expectativa sobre a sua chegada é a dúvida sobre os motivos de sua volta, os quais se justificariam pelo desejo de vingança do rapaz. Mas a incerteza sobre a sua decisão evidenciam a visão da comunidade sobre aquele que se distancia por longo tempo, pois este não é mais reconhecido como igual entre eles, estando passível de receber as influências diferentes dos conceitos tradicionalmente valorizados na terra como o respeito aos mitos, a manutenção da honra, o crédito aos mais velhos, mesmo quando estes entram em choque com os pensamentos do saber científico, etc. Neste caso, essa expectativa ‗tensa‘ chega a se aproximar com a da chegada de um estrangeiro que por ter valores ainda desconhecidos pode causar medo e ameaça para as comunidades tradicionais. Já o personagem fugindo do conflito que vive de não pertencer à cidade de Belém, deposita neste retorno a oportunidade de encontrar consigo mesmo, em sua terra natal. Mas ao chegar, Miguel se depara com uma terra diferente da idealizada onde a ambição pelo poder político, os conflitos pelas terras, os casamentos arranjados estão presentes e os comportamentos são justificados pelas posições que cada indivíduo quer representar para a sociedade local. Na cidade de Óbidos quem o recebe é o tenente-coronel Severino de Paiva que também tem como inimigo o tenente Ribeiro e por isso planeja ajudar Miguel numa possível tentativa de vingança. No entanto, ao falar sobre o assunto, obtém de Miguel a seguinte resposta: - Senhor tenente-coronel; penhora-me muito o interesse que me toma pela minha causa e o afã que mostra em querer vingar-me das injúrias de homem. Mas cumpre-me fazer, desde já, uma declaração. Eu não voltei para esta terra com projetos de vingança, não. Há muito tempo, que esqueci as injúrias que recebi, e por forma alguma desejo lembrar-me delas agora. O que me trouxe a Óbidos foi o natural desejo de rever a terra do meu nascimento e de abraçar a minha pobre mãe e obter dela o perdão da minha falta. (SOUSA, 2003, p.61)

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A reação de Miguel deixa Severino de Paiva bastante desapontado, pois além de ajudá-lo na vingança, queria envolvê-lo na política da cidade lançando-o como vereador e aliado de seus interesses. Além disso, também pretendia casamento para a sua filha. A posição de Miguel é explicada pelo narrador da seguinte maneira: O rapaz tomara, muito antes de voltar a Óbidos, e logo ao projetar essa volta, a resolução de esquecer tudo o que se passara com a família Ribeiro. Queria esquecer as injúrias recebidas. Era isto efeito do poderoso impulso da civilização, que lhe alargara a órbita estreita das ideias. Mas já dissemos que, se a civilização lhe modificara as ideias, não havia tido grande influência sobre seus sentimentos. (SOUSA, 2003, p.68) (grifo nosso)

Aqui, temos claramente a diferença que se faz entre o ambiente da sociedade da capital e do povo das cidades interioranas. Segundo Todorov ―o civilizado é quem sabe reconhecer plenamente a humanidade dos outros‖ só podendo receber esse qualificativo após transpor duas etapas: ―no decorrer da primeira, descobre-se que os outros têm vida modos de vida semelhantes aos nossos; e, durante a segunda etapa, aceita-se que eles sejam portadores de uma humanidade semelhante à nossa‖ (TODOROV, 2010, p.32-33). Assim, essas definições implicam a identificação entre os indivíduos. Todorov ainda ressalta a definição de Kant sobre a ideia de civilização, definido-a por ―pensamento ampliado‖, conceito coincidente com o utilizado pelo narrador que fala em ―alargar a órbita estreita das ideias‖. O autor ainda explica que o termo ―civilizado‖ não deve ser atribuído a pessoas, mas às atitudes tomadas por elas, sendo desta forma uma característica transitória no indivíduo e não fixa, como querem os que se beneficiam das diferenças de classes sociais. Nesse sentido, também, civilização está atrelado à análise fria e racional dos fatos na qual as ideias devem ser postas de modo mais amplo sem grande influência de suas emoções e qualquer atitude que não sejam baseadas neste conceito é posta como um atraso ou regresso na constituição do sujeito, passando assim a um patamar inferior no que tange aos valores sociais ditados pelas cidades civilizadas. Mesmo assim, o personagem se vê, por vezes, em conflito consigo mesmo porque embora querendo esquecer-se das humilhações do passado, teme por sua imagem na cidade de Óbidos, em que o perdão pode representar a falta de coragem, medo ou fraqueza. Na oportunidade em que esteve frente a frente com seu antigo inimigo- o tenente Ribeiro- Miguel é recebido por ele como um amigo e relembra de seu antigo amor, Rita (filha de Ribeiro que já está casada com o Alferes) e teme sofrer as mesmas humilhações do passado: 114

Na melindrosa situação em que estava era preciso todo o cuidado, necessitava de toda a atenção para não incorrer naquilo que o moço mais temia: o ridículo. Precisava apresentar-se de forma que impusesse o respeito que lhe era devido. Que mostrasse que o homem de hoje não era mais a criança de outro tempo. No fundo do coração de Miguel havia, porém, um sentimento cuja voz se fazia ouvir baixinho, mas repetidas vezes. Era a vaidade. O moço entendia que não lhe era possível deixar de tirar uma desforra passada. (SOUSA, 2003, p. 84) (grifos meus)

No excerto, vemos que a preocupação do personagem com a sua imagem perante a sociedade de Óbidos se dá não mais tendo como base a instrução recebida na capital, mas nos valores que são reconhecidamente importantes pela sociedade de sua cidade natal. Desta forma, se o Perdão é valorizado por uma comunidade que privilegia a razão, neste caso ele poderia levá-lo a exposição ao ridículo, tão temida por ele. Outro ponto a ser destacado é o ressurgimento do sentimento da Vaidade que o fez sair de Óbidos para Belém, o qual insistentemente o levava para a conclusão de que ―não lhe era possível deixar de tirar uma desforra passada‖ (SOUSA, 2003, p. 84). Esse impasse sofrido pelo personagem dura todo o romance, mas tem sua resolução definitiva baseada no amor dele por Rita que fica livre de impedimentos após a morte do Alferes Moreira, marido da moça. Por fim, Miguel abandona todas as regalias oferecidas pelo Tenente Severino de Paiva, para casar-se com seu antigo amor entrando para a família de seu inimigo de outrora. Esse tipo de desfecho revela, segundo a crítica literária, a tendência ainda forte de uma influência do período romântico na produção de Inglês de Sousa e coloca a subjetividade como centro das decisões. Porém, também podemos ver que a utilização da razão na tomada das decisões, especificamente no ato de esquecer e perdoar as ofensas sofridas no passado revela o período de transição de um estilo literário para o outro na obra do autor paraense. No romance, a subjetividade do amor toma como base a racionalidade para se justificar e se consumar. Este tipo de comportamento nos mostra a assimilação dos conceitos sociais próprios da cidade, em que se valoriza a boa convivência entre os homens a fim de se chegar ao idealismo de fraternidade, e também revela como o personagem usa isso ao seu favor no intuito de realização emocional, mas sempre preocupado com a imagem dele perante a sociedade da cidade de Óbidos. 4. Considerações Finais

O personagem Miguel é a imagem das identidades resultantes dos processos migratórios, dados de forma planejada ou não. Esses deslocamentos fizeram com que 115 surgissem novos pensamentos e práticas sociais, transformando, também, as estruturas já existentes. Muitos foram os autores que abordaram essa temática na literatura produzida na Amazônia, podendo citar, além de Inglês de Sousa, Dalcídio Jurandir, Abguar Bastos, entre outros, e grande parte deles passaram por processos migratórios similares a de seus personagens. Não queremos, aqui, equiparar os objetivos de autores e personagens, visto que as obras não se tratam de autobiografias, mas vale ressaltar a importância desses escritos ficcionais na construção e reconhecimento da identidade da sociedade que vive na Amazônia, a qual até os dias atuais, ainda passam pelos mesmos processos.

REFERÊNCIAS: BOSI, Alfredo. História Concisa da literatura brasileira- 43 ed. – São Paulo: Cultrix, 2006. COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Record, 1969.

LEITE, Lygia C. Moraes. Velha Praga? Regionalismo Literário Brasileiro. In.: América latina: Palavra,literatura e cultura. Org. Ana Pizarro. Vol.II. Emancipação do Discurso. São Paulo: editora Unicamp, 1994. SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2003. SOUSA, H. M. Inglês de. O Coronel Sangrado. – Belém: EDUFPA, 2005 – (Coleção Amazônia) TODOROV, Tzvetan. O medo dos bárbaros: para além dos choques das civilizações. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. – Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

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O SALTO DA ÍNDIA: “ (RE)VISÕES DO CORPO DAS ÍNDIAS E NEGRAS”

Ana Chiara39

Resumo: examino a performance O Confete da índia , de Andre Masseno, em suas variáveis figurações do corpo da índia/índio, do corpo da negra/negro, como metonímias ―presentificadas‖ da cultura brasileira, em termos da assimilação, tensão ou confronto, levando em conta o idealismo da tradição identitária nacional, de modo aberto e exposto à dúvida. Estas imagens de corpos atravessam, oferecendo resistência, o contínuo cultural, e, a partir delas, penso o corpo da cultura e corpos na cultura num recorte temporal que se concentra no modernismo/e no chamado pós-modernismo. Palavras chave : Performance, corpo, índia (o), negra(o) Resumé : j‘examine la performance O Confete da Índia, d‘André Masseno, avec ses variables de figurations du corps de l‘indienne/indien, du corps de la noire/ noir en tant que métonymie ‗‘présentifiées‘‘ de la culture brésilienne en termes d‘assimilation, de tension ou de confrontation, en prenant en compte l‘idéalisme de la tradition identitaire nationale, de façon ouverte et exposée au doute. Ces images de corps traversent, tout en offrant une résistance, le continuum culturel, c‘est à partir de celles-ci que je pense le corps de la culture et les corps dans la culture dans un découpage temporel se concentrant dans le modernisme/ et dans ce qui est appelé le post-modernisme. Mots clés : performance, corp, indienne, nègre.

1. Preâmbulo

Salto. Substantivo masculino, ação ou efeito de saltar; pulo, (1) movimento brusco, com expansão muscular, pelo qual o corpo se eleva do solo para ultrapassar certo espaço ou recair no mesmo lugar; (2) movimento de reflexão por efeito de queda numa superfície, ricochete (de um projétil); (3) espaço ou altura que se vence com um salto [...] ; (4) queda d´água; (5) ato de sair à estrada para roubar, assalto, pilhagem saque; (6) mudança rápida de posição ou de situação; (7) (por extensão) transformação abrupta; (8) tacão de calçado; (9) intervalo, espaço de tempo; (10) fig. movimento vibratório, trepidação, agitação, palpitação; (11) cópula do cavalo ou touro padreação; (12) erro tipográfico [..]; (14)subida abrupta da voz fora de compasso; (15) qualquer intervalo melódico que ultrapasse a segunda; (16) rede para apanhar certos peixes [...] (HOUAISS, 2001, p.2504). A frase ―O salto da índia‖ guarda, neste trabalho, a maioria destes sentidos como uma mina de guerra enterrada num solo instável, pronta para explodir em muitas direções: histórica, cultural, corporal, erótica, extática e de gênero. É uma

39 Professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ/ Pesquisadora CNPq) 117

frase performática, no sentido de afetar o outro, querendo que salte também de seu escudo de saber, de seu conforto social ou de gênero. Querendo ser um projétil em ricochete a partir dos corpos indígenas ou negros que compõem o imaginário histórico da nação brasileira desde a chamada Primeira Carta, a qual dava notícias ao rei das terras encontradas e que, escrita por Pero Vaz de Caminha, eternizou uma imagem de terra selvagem, erótica e gentil à espera da ‗Europa civilizada‘: ―A feição deles é serem pardos maneira d`avermelhados de bons rostros e bons narizes bem feitos. Andam nus sem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma cousa cobrir nem mostrar suas vergonhas e estão acerca disso com tanta inocência como têm de mostrar o rosto‖ [...]‖ (CAMINHA, Pero Vaz apud. BOSI, 1979, p.17) . Desde então, a partir das circunstâncias de uma cultura iletrada, a formação iconográfica da nação brasileira abusa (em amplos e vários sentidos) da figura da indígena (aqui chamada ambiguamente de índia), para estabilizar uma noção de afabilidade (ou de cordialidade), recalcando certa feição melancólica assim como face violenta do colonizador branco e europeu. Seguiram-se, por exemplo, a essa primeira fabulação imagética, com caráter edênico das cartas dos viajantes nos séculos 17 e 18 duas posições sobre os indígenas a formarem um acervo de imagens verbais e pictóricas. Por um lado, a via realista dos registros que fiéis à observação in loco a partir do contato com os selvagens por parte de expedições missionárias. Ideologicamente uns os representavam idealizados como dóceis e podendo receber a carga religiosa e cultural do colonizador e outros a vertente dos que desejando a repressão dos ―bárbaros selvagens‖ os ―pintavam‖ como bugres, nômades, irrecuperáveis. No início do século XIX, com a vinda da Corte para o Brasil chegam as missões artísticas40. Repetindo as esterotipias do corpo indígena, o do negro será apresentado nas telas do imaginário tropical de modo equívoco. A vinda de Nicolas- Antoine Taunay, na condição de pintor (principalmente de paisagens) é exemplar como exemplo da ficcionalização destes corpos nos quais a violência sofrida será disfarçada. Lilia Schwarz, em seu estudo sobre o período demonstra a elisão do corpo do negro, pela estratégia do deslocamento para a periferia da tela, criando algo como os ―trópicos improváveis‖ :

40 Debret, Spix, Martius, Rugendas e Weed. 118

―Só quem não conhece as telas italianas de Taunay pode considerar suas paisagens brasileiras ´cópias perfeitas da natureza tropical‘ [...] A ambivalência de Taunay estará toda presente em suas telas, que fazem um jogo duplo entre apresentar e esconder. Ao mesmo tempo que as pinturas revelam a escravidão, não a trazem para o centro da tela.‖ (SCHWARCZ, 2008,p.257)

Se, por exemplo, considero as virgens mortas, destaco o quadro ―Moema‖, de Vitor Meirelles 41, inspirado na necrofilia simbolista (e baudelaireana) do final do século e de influência romântica dos escritores brasileiros. O pintor catarinense fixa uma imagem de índia de segundo grau, não realista, como a sucessão dos trágicos corpos das índias mortas na e pela literatura42, usados como estratégia para a construção da idéia de nação. Pintores que talvez sequer tenham tido a experiência de ver índias reais, ou por pintarem na Europa, aonde iam também em missões ou por conta do tamanho o genocídio indígena perpetrado pela colonização eurocêntrica o que os distanciava cada vez mais do contato com essa população. No quadro de Meireles, tepidez, lascívia, entrega amorosa convivem ainda no triste corpo afogado que veio dar à praia, depois da infrutífera tentativa da índia Moema de reencontrar seu amor português como reza o poema Caramuru de Santa Rita Durão. Moema pintada, antes voluptuosa do que cadáver, oferece seu corpo ao estrangeiro tal qual a terra e cultura locais. Também a morte trágica de Lindóia, pintada, em 1882, por José Maria de Medeiros (1849–1925) vem corroborar para a associação de amor e morte nos enredos de fundação tema amplamente explorado. No adiantado do século XIX, também Iracema, urdida pela fábula literária de José de Alencar, criador da língua literária brasileira insiste neste modelo de infelicitação amorosa que contribui para o panorama latinoamericano comum, conforme indica Doris Sommer43. Todavia, não trato, neste trabalho, exclusivamente deste corpo representado para a simbologia do surgimento da pátria. São outros os corpos que saltam para dentro destas linhas. Também seria necessária a retomada de textos basilares sobre a cultura brasileira – como o ―Estilo tropical‖ (ARARIPE Jr, In. ACÍZELO, 2011) ou ―O homem Cordial‖ de Raízes do Brasil (BUARQUE DE HOLLANDA, 1933) - no sentido de se compreender o modo como a morte, a melancolia e o tédio conformam o

41 Vítor Meireles de Lima, Florianópolis, Santa Catarina, 1832 – Rio de Janeiro, 1903 42 Basílio da Gama, Santa Rita Durão, José de Alencar e José de Alencar, por exemplo. 43 Doris Sommer em SOMMER, D. ―Amor e pátria na América Latina: uma especulação alegórica sobre sexualidade e patriotismo?.‖ In: Papéis avulsos n. 10. Rio de Janeiro: CIEC-UFRJ, 1989, p. 1 Estuda essa construção de imagens de nação a partir de imagens de jovens nativas apaixonadas pelo elemento invasor (o estrangeiro) e traidoras de suas tribos. Ver também ―Iracema ou A fundação do Brasil‖ IN. RIBEIRO. Renato Janine. A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 119

estado de privação do sujeito indígena ou negro e se inscrevem com disfarces insidiosos, até então subvalorizados, no discurso da cordialidade brasileira, como vírus inoculado no corpo da cultura da alegria. André Masseno, o artista de O Confete da índia, reflete, em suas pesquisas, sobre essas questões no artigo, ―Sabores e dissabores de uma realidade tropical‖ (2012):. O tropical é muitas paisagens, e uma delas é a de ser uma resposta à dominação histórica, cultural e econômica do imperialismo sobre o território latino-americano; ou pode ser o tropical um traço estilístico dos vencidos, que o transforma em linguagem no esforço de extirpar o engasgo deixado pelo contínuo banho de sangue dado em prol de um discurso unilateral da História.44 2. O Salto da ìndia

Um corpo toma de assalto o espaço de um retângulo e faz com que outros corpos desejantes se colem às paredes/ um corpo em transe suga o ar deixando um vácuo irrespirável em torno como se todo o ar estivesse sendo exalado dos pulmões/ um corpo se arrasta, se esfrega, grita, corre, respinga suor, excreta mijo, cospe/ enquanto outros corpos, cujos nojo, espanto, piedade só podem se manifestar em músculos tesos, mãos atadas, sorrisos, em olhares que se desviam da manifestação de um excesso, restam estáticos, contidos, espremidos contra muros, na expectativa de uma queda, de cacos de uma garrafa, um ferimento, restos de arroz, feijão, milho cuspidos, restos de sidra espirrando nas roupas, um tombo por cima,/ com um grito ‗get out’ libertando, soltando, convocando demônios/ corpo-música, corpo-rítmico- corpo singular, corpo-coletivo, corpo- isso, corpo- aquilo, um corpo alucinado entre corpos contidos/ um corpo extático, envultado por entidades - multidão, lugar de passagem dos gestos culturais, dos confetes da índia (da Índia?) / corpo macunaímico em mímicas diversas, colagem de máscaras, de poses, corpo perverso polimorfo, corpo - proteiforme, corpo- cultura, corpo-político, corpo- endemoniado

44 Masseno continua: ―O tropical seria, também, a condição para uma reivindicação ético- política bastante cara ao movimento tropicalista, no qual se inserem as escritas de José Agrippino de Paula, Torquato Neto e Capinam [...]. Seus textos, em vez de descrever fidedignamente a realidade brasileira daqueles anos, optam pelo jogo ironicamente festivo e espetacularizado da vida. O tropical surge não como ilusão, mas sim como nossa crua/cruel configuração do real[...] com sua espetacular e assombrosa exuberância melancólica e vertiginosa. O tropical se apresenta como estilo e noção disparadores de escritas do/com o real – este aqui compreendido não como fato, mas sim como espaço de experiências. O tropical torna-se local de uma língua ferida devido ao sabor desesperado e suculento do fruto tropical; espaço ofegante diante da diversidade excessiva de uma paisagem dispendiosa e repleta de son(h)o. (MASSENO, 2012, p. 74)

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contra corpos-policiados, corpos de espectadores, corpos expectadores, corpos-que- não-dançam-não-gritam-não-fodem-não-podem-não-explodem/ enquanto um corpo convite, corpo que seduz, corpo que chama, corpo em chamas, corpo xamã, corpo-desbunde contra estes corpos domesticados/ um corpo-animal, corpo- cobra/ corpo tudo pode/ tudo fode, fode com tudo, corpo-deboche/ corpo- a- corpo contra corpo-social deixando exposto o código de conduta que se implantou como um chip sob a pele dos chamados cidadãos de respeito/. Ao artista é permitido ‗pirar‘ (enlouquecer) porque entra e sai da experiência, porque a conduz. A platéia obedece às regras da não interferência para não se entregar também sem volta, para não manifestar seu corpo numa comoção erótica e/ou extática. Eis a equação corporal exposta: o teatro, a performance como "miroitement", como "éclat" (DIDI_HUBERMAN,2008, 86-87) dos corpos do público, do corpo-público. Trato aqui da performance O Confete da índia concepção, direção, coreografia e execução de André Masseno e realizada nos dias 10 a 20 de setembro de 2012 no Solar de Botafogo e nos dias 05 e 06 de Outubro no Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro45. No centro de um retângulo, envolto por um saco de lixo preto, encontra-se um corpo do qual só se vêem as canelas equilibradas sobre enormes saltos de um sapato vermelho, ele dança ao ritmo da canção portuguesa ―milho verde‖, o público está em pé, encostado às paredes. Daí por diante serão sucessivas coreografias (e sucessivos saltos mutações) com trocas de música, de roupa, ingestão de bebidas, de comida, com urina e suor em cena. Neste trabalho o corpo do artista é levado a extremos incômodos. Não raro se podem ver arranhões, esfoladuras na pele, num circuito de dentro (o suor, o sangue, a urina) para fora (a superfície da pele, poros, furos), desdobramentos, desdobras, de um exercício de corpo-pensamento, saltos, sobressaltos, assaltos, pilhagem da cultura brasileira, de seus estereótipos, de seus clichês, ao mesmo tempo em que se faz o desmonte dessas imagens congeladas e reatualizadas no ritual xamânico do transe cultural, de seus trânsitos. Não se trata de uma remissão ao passado, nem de uma projeção do futuro, o tempo da performance é um aqui e agora, uma anarqueologia, no sentido que aponta Hilan Besusan,( 2012) , ou seja, no sentido que revê as teorias eufóricas e também as disfóricas do corpo

45 Essa performance foi premiada com o Prêmio Funarte Klauss Vianna de Dança 2011 e FADA 2011 - Fundo de Apoio à Dança, da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro. 121

cultural brasileiro, projetando este corpo numa deriva incondicional, a deriva da ficção. A performance do êxtase n´‖O Confete da índia‖ nada deve à moral. Religiosa, mergulhada até a medula num ritual, é profana, ou ainda de profanação do que é tomado como sagrado em nossa cultura, efetuando-se de maneira desafiadoramente blasfema e perturbadora, como ânsia de complementaridade, de abarcar o todo (de uma história?), mas trazendo em si inoculado o vírus de uma conseqüente derrelição, de desamparo e de vazio. As leituras dos místicos (Santa Teresa D´Ávila, São João de La Cruz) ajudam a compreender o êxtase, neste espetáculo, como ―violento processo de extropecção de si/ introspecção de uma possessão‖ no qual o corpo, em agitada comoção exterior fora do âmbito do ‗em-si mesmo identitário‘, mergulha numa experiência do sensível, em processo de contraposição ao desgaste dos ―usos do corpo‖ efetuados na mediania midiática da cultura brasileira histórica e contemporaneamente .

Neste caso, de O Confete da índia, a figura ambígua em cena (homem/mulher/ animal/ coisa), embora exposta em toda a superfície da pele quando nua, guarda algo como uma sede de profundezas, abismações, quando, sob o saco de lixo que a envulta, ou quando, sob a máscara carnavalesca de um Clóvis46 ou sob uma peruca, traz em si um enigma indecifrável, ou quando, soltando o grito gutural, incomoda por reação contrária ao excesso de superfície e ao superficial desmonta nossos clichês de representação como um salto, subida abrupta da voz fora de compasso.

O corpo desta índia impõe-se como necessidade de reagir à atividade frenética e/ou totalmente exteriorizada e banal que pode ser encontrada nas imagens da cultura chamada midiática. Assim de um extremo total da introversão/ devoração de estereotipias da cultura brasileira, ela/ele salta ao movimento contrário da extroversão total por meio dos líquidos, dos gritos, das expressões faciais. São os estados gloriosos do corpo47. Nesse corpo, desdobram-se os caminhos que vão da arte de experimentação ou encenação do erótico ao campo da presentificação da morte (o corpo some, desaparece ao final). O corpo- índio- índia- negro- negra- homem- mulher do performer, no movimento de alçar-se e de desmaiar, arrastando- se pelo chão imundo, perturba todas as noções de física, contraria a ordem do

46 Os Clovis ou Bate-bolas são fantasias que cobrem todo o corpo e com uma máscara só com orifícios comuns às brincadeiras carnavalescas da periferia carioca.l, 47 Cf. a exposição de foros de Arthur Omar:‖Antropologia da face gloriosa” 122

mundo, desmente a moral que separa gozo e beatitude, excesso e privação, deleite e nojo. A graça aparece numa dimensão ao mesmo tempo divina (dos caboclos e dos orixás) e profana (dos mascarados, das dançarinas de dancing, dos corpos alucinados nas boates), como um apelo irrecusável aos sentidos, como materialização poética do coração de um país, aqui indicado pela retomada da metáfora oswaldiana de Pindorama, terra das palmeiras, espaço não oficial, mas culturalmente exposto, como um desafio à razão, que poucos podem atingir.

A experiência do público de estar espionando uma dimensão vedada às pessoas comuns raia o silêncio total, é incomunicável, nela implodem as palavras, as palavras perdem a capacidade comunicativa, se ditas são potências. O corpo da índia também se potencializa, torna-se dádiva, entrega total. Como diz Bataille a propósito do sol, excede, mas também pode queimar se tocar o corpo público. Nesta coreografia do desejo, tudo ameaça se romper. E o público teme tocar o nada. Junto da experiência radicalmente arrebatadora do êxtase, sobrevém a da transgressão como no domínio da poderosa literatura da crueldade sadiana, com seu opressivo clima de violência e da vontade maníaca voltada para o mal, assim como da positivação do excesso erótico de um melancólico, como Bataille em seus festins mortíferos, pensados aqui como antecessores tal como desfiadas e desafiadas na desafiadora performance. Sendo assim, as imagens das índias mortas são convocadas por força da música e da longa peruca. Elas surgem pobrezinhas, as infelizes, e sarcásticas, depravadas, como corpos fantasmáticos do passado cultural, envultadas, sozinhas, abandonadas, a fazerem simpatias de sedução como a de coar café na calcinha. Quem essas índias querem conquistar? Que assalto, pilhagem, que revirão atópico insinuam?

Mas não só d´O Confete da índia quero tratar. Falo a partir de figuras de corpos de índios, de negros, mas também de outros corpos. Volto a 1945, quando um poeta paulistano encosta o peito no peito escuro do rio Tietê. Peito com peito, abraço indissolúvel na densidade negra da noite, Mario de Andrade escreve ―Meditação sobre o Tietê‖48, um testamento-testemunho, lamento, mantra político, como se adivinhasse a contração fatal do coração exausto, pesado, devastado, contraído e enfartando. O poeta modernista mergulha rio adentro, em 330 versos contrariados. Neste admirável e sombrio poema, as águas escuras do rio preparam o mergulho do poeta heroico, do vanguardista da pauliceia desvairada, do poeta arlequinal, do poeta

48 Todas as referências do poema referem-se à edição de Poesias Completas,1972, e serão indicadas por MT e a página. 123

que ―ouviu‖ histórias de Macunaíma, herói sem caráter, herói de nossa gente. No poema-suicida se pressente a uiara, a moça do furo na nuca nas águas da lembrança, misto de indígena, de negra e encantada, ela puxa o herói para um mergulho mortífero e contaminador. Também a índia de salto n´O Confete repete os movimentos coleantes e sedutores da uiara, citados do filme Macunaíma 49de Joaquim Pedro de Andrade, no qual se podia pressentir o furo na nuca da moça sob o movimento ondulante dos cabelos. Por este furo na nuca da moça, o herói foi tragado ao fundo do rio e despedaçado; pelo furo do negrume denso do rio na Meditação, as esperanças do poeta, no poema, esvaem.

Se as figuras de índio românticas, como Iracema, foram revisitadas por Mario de Andrade em Macunaíma, envenenando o herói modernista com a melancolia final do livro e do poema ―Meditação‖, Masseno, ao coreografar O Confete da índia, revisita anarqueologicamente (cf. Besusan, 2012) os anos 70, no corpo de Gal Costa, convocada à performance d´O Confete e reatualizada em trilhas musicais dance. Gal Costa, a única tropicalista a ficar no Brasil enquanto os outros foram obrigados a se exilarem é apropriada por Masseno na revisão dos anos 70. No corpo entidade tropical, Gal Costa revisita a guarânia ―Índia‖, composta pelos paraguaios Assunción Flores e Manoel Ortiz Guerreiro e rgravada, no início de 1953, por Cascatinha e Inhana. A regravação de Gal, em 1973, apontava ironicamente para certa falsificação e embaralhamento das fronteiras latinoamericanas, a maioria à época ensaguentadas por ditaduras. Sua interpretação guarda um sabor amargo e espinhento como o dos frutos tropicais, metáforas do país de Pindorama e sua fantasia é vermelho-sangue como o pensamento de Masseno no artigo citado. Em 73, os produtos vendidos na fronteira paraguaia eram considerados falsos. A falsa índia guardava, portanto, a imagem falsificada do herói romântico junto à de vítima explorada. São sobreposições difratadas de um corpo sem alívio, um corpo também sem uma origem certa, a índia de Masseno é um corpo esgotado que se enche e se esvazia sem nunca estar pleno. Contrapõe-se à derrisão momentânea dos saltos dessa índia, a figuração de uma negra na obra de Mario de Andrade50. Em carta a Carlos Drummond (1924), o poeta paulistano recortara de um cortejo carnavalesco a imagem de uma negra cuja alegria imprime forte impressão em seu espírito: ―Dançava com religião. Não olhava

49 “Macunaíma”, filme de Joaquim Pedro de Andrade, de 1969, baseado em obra homônima (1924) de Mario de Andrade. 50 Referência ensaística de Silviano Santiago. 124

para lado nenhum. Vivia a dança. E era sublime. [...] Aquela negra me ensinou o que milhões, milhões é exagero, muitos livros não me ensinaram. Ela me ensinou a felicidade‖ (apud. Santiago, 2006, p.69) . O corpo da negra na dança se desembaraça dos códigos culturais esgotados e faz emergir uma aparição, ou aquilo que Gumbrecht (2010) explica como produção de presença. Esta figura do corpo em transe da negra afetou Mario e, provavelmente, o leitor daquela carta, provocando-o com o desejo e a inveja dessa vivência tão magnificamente plena, ao mesmo tempo individual (não olhava para lado nenhum) e coletiva (dançava com religião). O corpo da negra contamina com a potência de perder-se um pouco na multidão dos corpos. O corpo da negra ensimesmado não se afoga, nem se sobressalta, ele gira. Como contraponto à atitude corporal tensa e quase fixa de Mario em ―Meditação‖, a índia de O Confete fará também da fricção de seu corpo roçando, por vezes, o do público, uma estratégia corporal para a desmontagem de estereótipos, usando o saco de lixo, como um parangolé de Hélio Oitica, os dois vestidos de noite, máscara e peruca para repensar o meio tropical em seus cruzamentos com a estética pop. È o modo como a índia de André Masseno se desequilibra no salto alto, no modo como entre a dança e o salto (pulo ou queda) ela parece instável, isso reflete a própria instabilidade da criação de nossos mitos de origem, de uma busca que do passado ficcionalizado salta para uma projeção de país do futuro, como um grande negaceio de nossas responsabilidades para com o presente. Evoco – para finalizar este conjunto de corpos emblemáticos da cultura nacional- a presença de um negro junto à índia romântica e à negra no desfile de carnaval. Este negro encarna no corpo de poeta Itamar Assumpção que surgiu nas noites do Teatro Lira Paulistana, em 1980, como um dos nomes da cena alternativa, conhecida como Vanguarda Paulista, cujos poetas eram chamados ―Malditos‖51. Assumpção recusou-se a submeter sua carreira ao controle do sistema fonográfico, corpo que se esquivou ao sistema, este crioulo com sotaque paulistano-paranaense, dicção e divisão harmônica singularíssima entre o samba, o soul, o jazz e outras influências afrolatinas, aproxima-se de Mario pela identificação com a cidade de São Paulo, metonímia do Brasil. Assim como o coração de Mario de Andrade, o coração de Itamar ficou identificado, ligado, às veias da cidade. Na letra de ―Persigo São Paulo‖, ele confessa: ―Não, não/ São Paulo é outra coisa/Não é exatamente amor/ É identificação absoluta‖. De algum modo, estes dois poetas encarnaram uma

51 junto a Arrigo Barnabé, Grupo Rumo, Premê (Premeditando o Breque), dos Pracianos - Dari Luzio, Pedro Lua, Paulo Barroso, Le Dantas & Cordeiro e outros. 125

possibilidade tradutória da experiência das ruas da cidade; uma possibilidade tradutória da cultura nacional. Se para o modernista de 22, século XX, o herói de nossa gente é sem caráter, polimorfo perverso, piá com cabeça grande, consciência na ilha de Marapatá, para o maldito dos anos 80/90 do século XX, o herói é isca de polícia, Negro Dito, senha para o século XXI. Não se trata mais da Antropofagia Cultural, do Oswald, amigo do Mário, nem sequer da atual política afirmativa das cotas. Trata-se de uma possibilidade erótica, de sedução do outro, de (con)fusão com o outro, possibilidade irônica de uma transa, de tesão. No caso dos poetas da Vanguarda Paulista, no caso de Itamar, o furo por onde passar, o muro a saltar, passava a ser a cicatriz do muro de Berlim, não uma cerca, não o que cerca, mas naquilo que liberta o próprio desejo e mobiliza para o outro, mobilizando o outro. No corpo musical de Itamar Assumpção, o caminho, não é mais atalho, é atrapalho e a mistura étnica, fusão globalizada. Na letra de ―Aculturado‖, Itamar ironicamente aponta para a confusão cultural do brasileiro: ―Culturalmente confuso/Brasileiro é aculturado/ Líbio, libanês, árabe turco/ Acha farinha do mesmo saco/ Não saca croata, curdo/ Não saca iugoslavo /Nem belga, nem mameluco/ Não saca Platão, nem Plutarco‖52. Registro o viés crítico de Itamar, para positivar a palavra confusão, no que etimologicamente traz de desrecalque e fusão. Vinda diretamente do «lat[im] confusĭo,onis, "ação de juntar, reunir, misturar"; neste sentido a desordem cultural, o vazio avacalhado, para ser redundante, cede vez à capacidade da experiência do poeta de desafiar a ordem imposta, de misturar as influências e de atrapalhar as definições e rótulos. Não se trata mais de antropofagia, de digestão, assimilação da cultura do outro, de acesso ao que falta, mas de inversão de pólos, de oferecimento, de dádiva e de gozo. Do mesmo modo que a índia de Masseno vomita o excesso pleno de gozo/morte trans-antropofágicos, o que este negro, este preto, este crioulo tinha a dizer, por exemplo, em Berlim, em 1993, no Podenville, aos europeus? Disse: Ich liebe disch, de modo afirmativo, de quem sabe ter feito um trabalho ―às próprias custas‖ (título de um dos seus CDs, de 1989). O corpo deste herói posmoderno, cibernético, peito nu, óculos espaciais, índio, africano ensina ao outro o gozo

52 Essa aculturação confusa se aproxima do conceito de avacalhado para o comportamento cultural brasileiro, que foi tomado de empréstimo, por Silviano Santiago, a Rogério Sganzerla. Silviano Santiago define assim a avacalhamento da cultura: “Qualifico o pensamento crítico e arte avacalhados, se for verdade que na etimologia do verbo avacalhar, como atesta o dicionário,está a noção de vazio, de vácuo. O avacalhado é aquilo que o cidadão desprovido, falto de recursos, experimenta ao buscar acesso ao que ambiciona” (SANTIAGO, 2011, 37) 126 diferente, gozo do diferente. E o gozo é a dimensão estética da sustentabilidade, como disse Marina Silva no evento Back to Black de 2011. Na letra de ―Ir para Berlim‖, Itamar brinca: ―Vc quer por mar/ Ir para Berlim/ Quer mudar de ar/ Qualquer coisa assim/ Mas é melhor levar/ limão,/ Feijaozin/ Café, guaraná/ meu cuidar sem fim [...]‖ Podia ser a tópica romântica da saudade no exílio, mas creio que não. São outros tempos para os poetas de São Paulo. A letra da canção continua com a sedução para que o outro/a não se vá : ―Tudo que tenho é Lou Reed/ possível que cê duvide/Alzira, Zélia, Daúde/ Cássia, sua mãe e swing.‖. Termina com um dar de ombros bem humorado ―Tudo que tenho é humilde/Sou do mato/ Sou mulato/ Alfiderzen‖. É um outro coração, não o coração do sacrifício da índia, do artista do poeta, não o coração transtornado de Mario de Andrade, mas o coração-tesão: Ich liebe dich frau /em Tubigen Munique ou Gerdau/ Duzist / meine gau/ genau genau Silviano Santiago cita, no artigo ―Destino: Globalização. Atalho: Nacionalismo. Recurso: Cordialidade‖ ( ANDRADE, 2011) , um poema de Adão Ventura, cuja metáfora central retoma a imagem do coração ferido e tumultuado de Mario de Andrade, dizem os versos de Adão Ventura: ―para um negro/a cor da pele/é uma faca/que atinge/muito mais em cheio/o coração‖. Este poema traduz séculos de exclusão e lutas, unindo, no sentido adorniano, o individual ao coletivo; entretanto, apesar de bela e cortante, a imagem da faca no coração, ainda faz com que o negro apareça de forma vitimizada tal como os quadros de índias citados anteriormente. Contra este coração exposto, crístico, proponho a bela metáfora da orquídea de Itamar. Assim como Tom Zé, que ganhou a vida como jardineiro em São Paulo durante uma época, também como Lenine, é sabido que Assumpção cultivava orquídeas, essa singular, e difícil, espécime de flor, entre o selvagem e a jardinagem, entre a força da natureza e a ordem da cultura, flor que não serve para cura, não serve para os chás, só embeleza a vida. Esta flor rara – a orquídea – plantada, por Itamar, numa lata de óleo de cozinha - fura camadas de ressentimento e melancolia, encarna o artístico, o bem simbólico a conquistar, cultivar e oferecer. O Confete da índia expõe juntos num só todos estes corpos como o Nu descendo a escada, de Duchamp, entre gritos de dor e de gozo, numa conjunção de tempos, ela atinge em cheio, como explosão, o coração da cultura brasileira. Assim como uma flor exótica, macho nos pistilos e fêmea em suas fendas, como uma orquídea 127

cultivada e selvagem, N´O confete um corpo em espiral dança, grunhe, num reino onde se abolem as diferenças entre o alto e o baixo, o macho e a fêmea, o humano e o animal, a selva bruta e o urbano demoníaco, subindo e descendo do salto. A índia é transformação abrupta; tacão de calçado; intervalo, espaço de tempo; movimento vibratório, trepidação, agitação, palpitação; padreação de cavalo e égua, cópula; erro tipográfico; subida abrupta da voz fora de compasso; qualquer intervalo melódico que ultrapasse; rede para apanhar certos peixes. Vinda de não sei onde, a índia bamboleia, coleia, inferniza e some não se sabe pra onde. A índia somos nós. A índia é aqui. Referências bibliográficas: ADORNO, Theodor W. ―Palestra sobre lírica e sociedade‖ In. Notas de Literatura. trad. e apresentação de Jorge M.B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed.34, 2003. (65-89) ANDRADE, Mario. Aspectos da literatura brasileira. 6ed. São Paulo: Martins,1978. ______. Poesias Completas.3ª ed.São Paulo Martins; Brasília:INL,1972. ______. ―carta de 20 de janeiro de 1944‖ In. Correspondência Mario de Andrade e Manuel Bandeira, org e notas : Marco Antonio Moraes. São Paulo: EDUSP: IEB, 2001, p.670). ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Estilo tropical. In: SOUZA, Roberto Acízelo de (org.). Uma ideia moderna de literatura: textos seminais para os estudos literários (1688-1922). Chapecó: Argos, 2011. p. 232-5. BOSI, Alfredo. Historia Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo:Cultrix, 1979. DIDI_HUBERMAN, Georges. La peinture incarnée.suivi de Le chef-d´oeuvre inconnu par Honoré de Balzac. Paris:Editions de Minuit, 2008. HOLANDA, Sergio Buarque de.‖O Homem Cordial‖. In. Raízes do Brasil. 21 ed.Rio de Janeiro:José Olympio,1989 GIL, José. ―Lê corps du Danseur‖ In. Revista Contracampo, número 5, Pós-Graduação em Comunicação, segundo semestre de 2000, páginas 7 a 19. GUMBRECHT, Hans Ulrich Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir, Rio de Janeiro: Ed PUC /Contraponto, 2010. MASSENO, André. ―Sabores e dissabores de uma realidade tropical.‖ In: CHIARA, Ana e ROCHA, Fátima Cristina Dias (org.). Literatura Brasileira em Foco V: Realismos. Rio de Janeiro: Casa Doze, 2012. pp.: 61-75. NIETZSCHE; Ecce Homo Como se chega a ser o que se é. Trad. e prefácio José Marinho. 5ª ed. Lisboa: Guimarães ed.1984. RIBEIRO. Renato Janine. ―Iracema ou A fundação do Brasil‖ In.. A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,2000. SANTIAGO, Silviano. Ora (direis) puxar conversa.: ensaios literários. Belo-Horizonte. Belo Horizonte: EdUFMG, 2006. ______―Destino: Globalização. Atalho: Nacionalismo. Recurso: Cordialidade‖ In: DUARTE, Eduardo de Assis; FONSECA, Maria Nazareth Soares (orgs.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Vol.4. Belo Horizonte: EDUFMG, 2011, p.161-183. SCHWARCZ, Lilian Moritz . O sol do Brasil : Nicolas- Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. SOMMER, D. ―Amor e pátria na América Latina: uma especulação alegórica sobre sexualidade e patriotismo?.‖ In: Papéis avulsos n. 10. Rio de Janeiro: CIEC-UFRJ, 1989, p. 1

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Discografia de Itamar Assumpção: Caixa preta: SESC/SP

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SÉCULO XIX, TRADUZIR PARA EDUCAR: AS PRIMEIRAS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DAS FÁBULAS DE LA FONTAINE Ana Cristina Cardoso Profa. Dra. Claudia Borges de Faveri (Orientadora)

Resumo: Há no Brasil uma tradição clássica de tradução que começou no século XIX. As primeiras traduções brasileiras das fábulas do autor francês Jean de La Fontaine datam justamente dessa época. Pesquisar sobre tradução é ao mesmo tempo conhecer história literária e fazer história da tradução, desvendando o texto traduzido, revelando o tradutor e observando as possíveis influências dessas traduções na cultura de chegada. No livro A prova do estrangeiro (2002: 14) Antoine Berman afirma que ―Fazer a história da tradução é redescobrir pacientemente essa rede cultural infinitamente complexa e desconcertante na qual, em cada época, ou em espaços diferentes, ela se vê presa. E fazer do saber histórico assim obtido uma abertura de nosso presente‖ (grifo do autor). Visamos neste trabalho apresentar os primeiros tradutores de La Fontaine no Brasil, assim como apontar o(s) objetivo(s) com os quais essas traduções foram realizadas. Por que e para quem traduzir as fábulas lafontainianas? Quem são os seus tradutores? Quais são e de quando são essas traduções? Quais as editoras que publicavam as traduções das fábulas

Palavras-chave: La Fontaine; História da tradução; Século XIX.

Abstract: There is in Brazil a classic translation tradition which has begun in the XIX century. The first Brazilian translations of the fables of French author Jean de La Fontaine date from this time. Searching on translation is at the same time knowing literary history and making the history of translation, unveiling the translated text, revealing the translator and observing the possible influences of these translations in the target culture. In the book A prova do estrangeiro (2002: 14) Antoine Berman says "To write the history of translation is to patiently rediscover the infinitely complex and devious cultural network in which translation is caught in each period or in different settings. And it is to turn the historical knowledge acquired from this activity into an opening of our present "(emphasis added). In this paper, we aim to present the first Brazilian translators of La Fontaine, as well as to show and analyze the objective(s) with which these translations were made. Why and to whom were La Fontaine‘s fables translated? What are and from when are these translations? Which publishers published the translations of the fables?

Keywords: La Fontaine, History of translation, XIX Century.

1. Introdução

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Este trabalho tem como principal fonte de pesquisa o acervo da Biblioteca Nacional do Brasil. Nossa investigação foi iniciada nos catálogos online dessa instituição e em seguida foi realizada uma pesquisa in loco. O século XIX foi o século no qual as traduções lafontainianas começaram a ser editadas e realizadas no Brasil. O livro mais antigo de traduções de La Fontaine que encontramos na Biblioteca Nacional é o do clérigo português Filinto Elísio, datado de 1839. Embora a obra Fábulas escolhidas de La Fontaine seja a primeira tradução em português a circular pelo Brasil, não será objeto de estudo no presente trabalho, uma vez que temos por objetivo apresentar as primeiras traduções realizadas por tradutores brasileiros. Com isso, não deixamos de reconhecer a sua importância na história das traduções lafontainianas no Brasil. Iniciaremos este estudo apresentando em ordem cronológica, as primeiras traduções verdadeiramente brasileiras, assim como seus tradutores. Em seguida, veremos por que e para quem foram feitas essas traduções e para terminar, apontaremos as editoras e os mecenas que publicaram/fomentaram as traduções.

2. Os primeiros tradutores brasileiros de La Fontaine e suas traduções

1. Justiniano José da Rocha Collecção de Fabulas imitadas de Esopo e de La Fontaine – 1ª edição de 1852. Após a primeira edição brasileira das fábulas lafontainianas, traduzidas pelo português Filinto Elísio, temos na pessoa do professor, escritor, político e jornalista Justiniano José da Rocha o primeiro tradutor brasileiro dessas fábulas. Justiniano José da Rocha nasceu no Rio de Janeiro em 1811 e faleceu na mesma cidade em 1862 (CARDIM : 1964, 07-11, 88). Fez os estudos secundários na França e ao retornar formou-se em Direito no ano de 1833, em São Paulo. Figura atuante no jornalismo brasileiro durante o Segundo Império, foi grande defensor e partidário do Partido Conservador. O jornalista e membro da Academia Brasileira de Letras, Elmano Cardim comenta, na introdução da biografia de Justiniano, que o biografado

merecia ser melhor conhecido, para que sobre a sua personalidade se viesse a formar um conceito justo, desfeitas muitas das dúvidas existentes sobre a sua vida, retificadas algumas inexatidões, revelados fatos e dados que pudessem contribuir para um melhor juízo de sua atuação na sociedade brasileira e do seu papel de jornalista, que o foi por vocação, marcando pelo seu valor uma época na imprensa brasileira. (CARDIM, 1964: 01)

É certo que a obra de Cardim contribuiu para que se fizesse um melhor juízo da atuação de Justiniano como jornalista no Brasil dos Oitocentos e que desde então vários estudos sobre o jornalista foram realizados. Localizamos uma quantidade considerável de trabalhos acadêmicos, entre artigos e dissertações de mestrado, onde vemos reconhecida a importância do jornalista, do professor, do escritor e do parlamentar que foi Justiniano. 131

Porém, pouco se sabe do seu trabalho como tradutor, suas traduções são sempre citadas, é verdade, mas pouco analisadas ou estudadas. Na bibliografia de Justiniano, apresentada por Cardim (1964: 137 e 138), encontramos uma lista de traduções por ele realizadas. Além das traduções elencadas, Cardim (1964: 138) comenta, sem listar, que Justiniano traduziu outros romances que foram publicados em folhetim no Jornal do Comércio não somente durante a época em que foi redator, de 1839 a 1840, mas também depois como colaborador desse jornal. No acervo da Biblioteca Nacional do Brasil (doravante BN), existem quatro exemplares da tradução, Collecção de Fábulas imitadas de Esopo e de La Fontaine, de autoria de Justiniano José da Rocha. Desses quatro exemplares pertencentes à BN, três estão catalogados no acervo Obras Raras – a 1ª edição publicada em 1852, que inclusive faz parte da coleção D. Thereza Christina Maria; a 3ª edição publicada em 1863 e outra publicação de 1873 sem número de edição. Já o quarto exemplar – 8ª edição de 1907 – está catalogado no acervo Geral-Livros. Contrariamente ao tradutor português que traduz as fábulas em verso, o primeiro tradutor brasileiro as traduz em prosa. Conforme anunciado no título da obra, as fábulas de Justiniano são uma imitação daquelas de Esopo e de La Fontaine. O tradutor, na realidade, escreve textos curtos em prosa, com a moralidade quase sempre apresentada de forma explícita no parágrafo final do texto. Ao cotejar três das quatro edições da tradução de Justiniano existentes na BN, pudemos observar que da primeira para a terceira edição de 1868, foram realizadas modificações quanto à ordem das fábulas, quanto à ortografia e também quanto ao título de algumas delas. Diferentemente das traduções de Filinto Elísio, nunca encontramos nas coletâneas de fábulas de autores diversos, uma única versão de fábula de Justiniano. Estudiosos reconhecem a existência da tradução realizada pelo brasileiro, mas não encontramos, como já comentamos anteriormente, pesquisas sobre o tema nem tampouco traduções de fábulas de Justiniano alhures. Só vimos traduções de Justiniano na sua própria coleção de fábulas. Esse fato nos chama atenção porque sabemos que até 1908 essa coleção de fábulas foi reeditada pelo menos oito vezes. A edição do século XX traz na capa o comentário de que aquela edição era ―muito melhorada com numerosas vinhetas, adaptada para leitura nas escolas‖.

2. João Cardoso de Meneses e Sousa - Barão de Paranapiacaba Fábulas de La Fontaine – 1ª edição de 1883. João Cardoso de Meneses e Sousa, o Barão de Paranapiacaba, é considerado, de fato, o primeiro tradutor brasileiro de La Fontaine. É como se a Coleção de Fabulas imitadas de Esopo e de La Fontaine, de autoria de Justiniano, não existisse enquanto tradução, suas reiteradas edições são ignoradas. Uma possível explicação para o reconhecimento do Barão como primeiro tradutor das fábulas lafontainianas é o fato de ele ter traduzido, em verso, o conjunto completo de fábulas do autor francês. O Barão de Paranapiacaba nasceu na cidade de Santos em 1827 e faleceu em 1915 no Rio de Janeiro aos 88 anos. Formou-se em Direito na capital paulista em 1848. Foi professor em escolas particulares santistas, morou em Taubaté, tendo ali ensinado no liceu da cidade as matérias de geografia e história. Em seguida mudou-se para o Rio de Janeiro, advogou até 1858 e depois entrou para o funcionalismo público. Trabalhou no Tesouro Nacional até aposentar-se como diretor geral dessa instituição. Foi também deputado por Goiás, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do Conservatório Dramático do Rio de Janeiro. Em 1883 por decreto imperial recebeu o título de Barão de Paranapiacaba. 132

Na sua História da literatura: contribuições e estudos gerais para o exato conhecimento da literatura brasileira, Sílvio Romero (1980) afirma que o Barão de Paranapiacaba nunca teve um temperamento literário e menos ainda poético. Segundo esse autor, o Barão passou o sentido das fábulas, mas a poesia evaporou-se. Ele critica ainda as notas da tradução. Para Romero elas são longas demais e apenas repetem notas explicativas, de mitologia, de autores franceses. O primeiro volume da tradução das fábulas lanfontainianas do Barão de Paranapiacaba foi publicado pela primeira vez em 1883. Em 1886 saiu uma segunda edição do primeiro volume e em 1887 foi publicado o segundo volume. O primeiro volume contém os seis primeiros livros do texto fonte e o segundo volume os outros seis livros. A tradução das fábulas do Barão foi dedicada a Sua Majestade o Imperador do Brasil. Na dedicatória (1886: 06, 07) a D. Pedro II, o Barão reclama para si a autoria das traduções: A presente versão, Senhor, é toda e exclusivamente de lavra própria, em verso rimado, com raríssimas excepções, variando o metro quanto possível e sem repetição na mesma peça poética de rima de igual desinência, condição esta que até hoje nenhum poeta se impôz.

Ele comenta a difícil tarefa de traduzir: Que tenacidade de esforços, que apuros de paciência tive de empregar para conduzir ao fim esse difficilimo empenho! Mas, louvado seja Deus, está concluída a versão. Entrego-a à proteção de Vossa Magestade Imperial, rogando-lhe seja benévolo, attenta a reconhecida impossibilidade de reproduzir fielmente numa transladação o gênio gaulez, a naturalidade, a graça e belleza do Homero da Poesia Franceza.

Mostra-se convencido de que a língua portuguesa se presta àquele tipo de tradução e anuncia que o 2° volume está no prelo: Demais, estou convencido que nossa formosa língua se presta como nenhuma a encerrar a Idea em curtos períodos cadenciados, como o fizeram Babrius, ou Gabrias e Loqman nos apologos de sua lavra. O 2° volume está no prelo.

Após a dedicatória à D. Pedro II, a edição de 1886 traz vários prefácios que foram publicados na primeira edição de 1883. Esses prefácios escritos pelo Barão vão da página XI até a página LXXVIII. Eles estão separados por temas: I - Algumas palavras ao leitor; II – Esboço sobre a fábula; III – Juízos sobre La Fontaine; IV – Si convém ensinar fabulas e de cor as crianças e V – Mythologia. Na primeira parte do prefácio, Algumas palavras ao leitor, o Barão não se furta a criticar Filinto Elísio. Segundo ele, o português ―desfigurou‖ La Fontaine, e se o fabulista francês ―pudesse erguer-se do tumulo, talvez que intentasse contra seu traductor processo de contrafacção‖ (PARANAPIACABA 1886: 16). Mas logo em seguida reconhece, no entanto, que não houve por parte do tradutor português a intenção de cometer tal crime. Nas outras partes, o Barão explica o que vem a ser a fábula, defende o gênio de La Fontaine e argumenta que as crianças devem aprender as fábulas de cor, criticando inclusive a crítica feita a esse respeito por J.J. Rousseau na sua obra La Fontaine et les 133

Fabulistes. Para terminar o prefácio, faz uma longa explanação sobre mythologia e se defende de uma crítica que lhe fora feita quanto às notas que ele escrevera na sua obra Camoneana Brazileira também adotada pelo Governo Imperial. Depois desse longo e demasiadamente explicativo prefácio, o Barão inicia finalmente a tradução, começando pela dedicatória feita por La Fontaine a Monsenhor o Delphim. O segundo livro das traduções foi publicado em 1887, pela mesma editora com o apadrinhamento do Imperador. A apresentação é feita por Ferreira Vianna, magistrado, jornalista e político. Vianna declara ao Barão: ―A tua traducção é um verdadeiro original; a propriedade da expressão, a harmonia do verso e a elegância da phrase vernacula nunca faltaram á elevação do pensamento do grande poeta‖ ‖ (PARANAPIACABA 1887: 05, 06)

3. Por que e para quem traduzir as fábulas? A função educativa da tradução das fábulas é claramente anunciada pelos dois tradutores brasileiros do Século XIX. Tanto Justiniano José da Rocha, quanto o Barão de Paranapiacaba, dizem nos seus prefácios que têm como meta tradutória a utilização das suas traduções nas escolas. De fato, eles traduziram com o intuito de educar a mocidade. Embora se refira à tradução das Escrituras Sagradas, Bassnett aponta no capítulo 2 do seu livro Estudos de Tradução: fundamentos de uma disciplina o caráter educativo da tradução. Para a autora (BASSNETT, 2003:91) ―O papel educativo da tradução das Escrituras vem de muito antes dos séculos XV e XVI‖. Bassnett (2003:92) comenta ainda sobre o entendimento da tradução como uma atividade que tem um papel moral e didático a desempenhar. Identificamos em Justiniano José da Rocha e no Barão de Paranapiacaba essa compreensão da tradução como instrumento educativo e moralizante da qual fala Bassnett. A 1ª edição da Collecção de Fabulas imitadas de Esopo e de La Fontaine de Justiniano José da Rocha, datada de 1852, foi dedicada a S. M. o Imperador D. Pedro II e oferecida à mocidade das escolas. Na dedicatória ao Imperador, Justiniano (1852: 02) diz não ter nenhum merecimento por aquela tradução e que foi ―o pensamento de utilidade que o inspirou, e o desejo de dar às escolas um livro de leitura, adaptado ao espírito dos seus jovens frequentadores‖. A utilização da sua tradução na instrução dos jovens estudantes brasileiros é o leitmotiv da sua obra, essa ideia é reforçada por Justiniano no prefácio. O tradutor comenta que uma vez que fora excluída da coleção de leitura do curso de instrução primária a coleção de fábulas de Esopo, ele achou por bem oferecer uma nova versão mais agradável e cativante de fábulas. Segundo Justiniano, a exclusão da versão anterior a sua, era compreensível, pois aquela versão de fábulas era enfadonha e nunca poderia cativar a atenção dos meninos. Ainda no prefácio, o autor critica a versão antecedente e justifica a sua versão. Não se poderia dessa antiga collecção de fabulas escolher as melhores, dar-lhes mais simplicidade, mais movimento na narração, mais justeza na moralidade, não se poderia, em uma simples imitação, pedir a Lafontaine algumas das suas composições, e fazer um livro util à infância, e adaptado á instrução pública? A resposta a essa pergunta que nos fizemos, foi a collecção de fábulas que ahi segue. Temos a convicção de haver procurado fazer um livro util; não temos porém o desvanecimento de o haver conseguido. Offerecendo esse opusculo á infância, trabalho inglório, cujo único merecimento está no seu pensamento que o dictou, e que 134

apresentamos como desculpa da inferioridade da execução, de sobejo remunerados nos acharemos se, despertando com o nosso exemplo, os nossos litteratos comprehenderem que á mocidade, tão privada de bons livros que deleitando a instruão, formem-lhe o gosto, e deem-lhe o amor da leitura, devem elles parte de seu tempo e do seu talento. (1852: 04)

A tradução do Barão de Paranapiacaba, assim como a tradução de Justiniano, teve um caráter educativo. Essa tradução é o segundo livro do Barão que faz parte da coleção Bibliotheca Escolar da Imprensa Nacional. A primeira obra desse autor a fazer parte dessa coleção foi a Camoniana Brasileira de 1886. Ambas as obras foram adotadas nas aulas primárias e eram financiadas pelos cofres públicos.

4. As editoras

A figura do mecenas é muito importante quando se trata das traduções brasileiras das fábulas de La Fontaine realizadas no século XIX. Para Lefevere (2007: 34) o mecenato pode ser exercido por aquele que está no poder, ou próximo ao poder. O mecenato controla o sistema literário fomentando ou impedindo a circulação das obras no sistema. No caso das traduções lafontainianas foi o Imperador D. Pedro II que não somente autorizou a sua impressão e circulação, mas favoreceu a sua adoção pelas Escolas Primárias. Ainda segundo Lefevere (2007: 34) ―O mecenato está comumente mais interessado na ideologia da literatura do que em sua poética, poder-se-ia dizer que o mecenas ―delega autoridade‖ ao profissional no que diz respeito à poética‖. A obra Fábulas de La Fontaine do Barão de Paranapiacaba, foi impressa no Rio de Janeiro pela Imprensa Nacional. Quanto à tradução de Justiniano, várias foram as editoras, mas entre elas figura a Typographia Nacional.

5. Conclusão

Conforme anunciado, nosso objetivo era apresentar os primeiros tradutores brasileiros de La Fontaine no Brasil. Ao longo deste trabalho mostramos cronologicamente, as primeiras traduções brasileiras das fábulas, assim como seus tradutores. Em seguida, analisamos por que e para quem foram feitas essas traduções e para terminar, comentamos sobre a importância da figura do mecenas quando da publicação dessas traduções. Embora tenha circulado no Brasil uma tradução portuguesa de 1839 de fábulas do autor francês, a primeira tradução realizada no Brasil foi aquela de Justiniano José da Rocha de 1852. A primeira tradução em verso das 240 fábulas foi a do Barão de Paranapiacaba de 1883. Como foi dito, as duas traduções visavam educar a juventude. Para terminar, gostaríamos apenas de relacionar os componentes do sistema tradutório do Século XIX do nosso estudo, ou seja: obra traduzida / função da tradução / figura do mecenas. Sendo assim, temos como obra traduzida uma obra de caráter moralista ideológico – As Fábulas de La Fontaine - como função tradutória a educação, traduzir para educar e como mecenas o representante do poder, o Imperador D. Pedro II. 135

REFERÊNCIAS:

BASSNETT, Susan. Estudos de tradução: fundamentos de uma disciplina. Tradução de Vivina de Campos Figueiredo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. CARDIM, E. Justiniano José da Rocha. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964. LEFEVERE, André. Tradução, reescrita e manipulação da fama literária. Tradução de Claudia Matos Seligmann. Bauru, SP: Edusc, 2007. NASCIMENTO, F. Manuel do. Fábulas escolhidas entre as de Jean de La Fontaine. Rio de Janeiro: Typographia, Chalcographia e Livraria da Educação de C.H.-Furay, 1839. PARANAPIACABA, Barão de. Fábulas de La Fontaine. Vol. I. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. ______Barão de. Fábulas de La Fontaine. Vol. II Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1887. ROCHA, Justiniano José da. Collecção de fábulas imitadas de Esopo e de La Fontaine. Rio de Janeiro: Typographia Episcopal de Agostinho de Freitas Guimarães, 1852. ______Collecção de fábulas imitadas de Esopo e de La Fontaine. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1863. ______Collecção de fábulas imitadas de Esopo e de La Fontaine. Rio de Janeiro: Typographia Cinco de Março, 1873. ______Collecção de fábulas imitadas de Esopo e de La Fontaine. Rio de Janeiro: F. Alves, 1907. ROMERO, Sílvio. História da literatura: contribuições e estudos gerais para o exato conhecimento da literatura brasileira. Rio de Janeiro: JoséOlímpio, 1980.

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A CIRCULAÇÃO DA LITERATURA PORTUGUESA NO RIO DE JANEIRO OITOCENTISTA: UM ESTUDO DAS REVISTAS CORREIO DAS MODAS (1839-1840) E NOVO CORREIO DE MODAS (1852-1854)

Ana Laura DONEGÁ53

Profa. Dra. Márcia Azevedo de ABREU54

Resumo: A história editorial brasileira no século XIX teve profundas conexões com o que acontecia na Europa nesse período. Obras do Velho Mundo circulavam amplamente deste lado de cá do oceano, o que favorecia o contato dos leitores com a produção além-mar e fortalecia os laços culturais do Brasil com o exterior. Além de enviar livros para o mercado nacional, a Europa marcava presença com a imprensa periódica, uma vez que alguns de seus jornais e revistas eram vendidos em estabelecimentos comerciais localizados no Rio de Janeiro ou mesmo nas províncias. Periódicos lançados em território brasileiro costumavam copiar indiscriminadamente matérias e artigos desses impressos europeus sem fornecer qualquer indicação sobre a fonte. A prática era assegurada devido à inexistência de leis protetoras dos direitos autorais, mas mesmo assim causava polêmica entre os letrados. A fim de compreender melhor o papel da imprensa nacional na difusão da cultura de origem europeia, selecionamos para análise duas revistas femininas editadas pelos irmãos Eduardo e Henrique Laemmert na corte brasileira Oitocentista, o Correio das Modas e o Novo Correio de Modas. Nosso recorte recairá sobre as narrativas ficcionais de origem portuguesa difundidas pelas duas impressões em questão e sobre o papel da cultura lusa na intermediação entre o Brasil e outros países europeus.

Palavras-chave: Eduardo e Henrique Laemmert; Correio das Modas e Novo Correio de Modas; Literatura portuguesa.

Abstract: The Brazilian editorial history of the nineteenth century was strongly connected with the European one. Books published in the Old Continent were commonly sold on the other side of the ocean too, making it possible for Brazilian readers to be in contact with that production and strengthening the cultural relations between Brazil and Europe. Besides sending books to the national market, Europe had a major presence in the periodical press, since some of its newspapers and magazines were sold in Rio de Janeiro and even in the provinces. Periodicals published in Brazil usually copied texts and articles from the European publications without giving any information about the sources. There were no laws preventing this practice – although it was criticized by the writers of the time – which made it an usual occurrence. Aiming to understand the role played by the national press in the cultural diffusion of European materials, we selected two Brazilian magazines for our study, both published by the Laemmert brothers Eduardo and Henrique in Rio de Janeiro at that time: Correio das Modas and Novo Correio de Modas. We intend to analyze the fictional texts written originally in Portugal and published by both magazines in order to understand the role played by the Portuguese culture in the intellectual relation established between Brazil and Europe.

53 Doutoranda em Teoria e História Literária na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista CNPq. E-mail: [email protected]. 54 Professora do Departamento de Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E- mail: [email protected]. 137

Key-words: Eduardo and Henrique Laemmert; Correio das Modas and Novo Correio de Modas; Portuguese litterature.

1. A imprensa feminina dos irmãos Laemmert

Entre os diversos comerciantes estrangeiros que participaram do mercado de livros no Brasil Oitocentista, merecem destaque as figuras de dois irmãos provenientes de Rosenberg – cidade situada no território hoje conhecido como Alemanha –, chamados Eduardo e Henrique Laemmert. A trajetória dos Laemmert no país teve início em 1827, quando Eduardo chegou ao Rio de Janeiro para trabalhar como representante na filial de uma livraria francesa. Alguns anos mais tarde, inaugurou seu próprio estabelecimento comercial e convidou o irmão mais novo para fazer parte dos negócios. Juntos, eles abriram uma oficina tipográfica, chamada Tipografia Universal, que se tornou especialmente famosa pela publicação de almanaques e guias com informações úteis para o cotidiano dos moradores da corte e das províncias – o Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro e as Folhinhas de Laemmert (HALLEWELL, Laurence, 2005, p. 239- 248; EL FAR, Alessandra, 2006, p. 19-20). O investimento em obras destinadas a públicos amplos rendeu-lhes lucros surpreendentemente altos e ainda renome entre autoridades e instituições. Contudo, Eduardo e Henrique Laemmert não se limitaram às impressões acima mencionadas. Pelo contrário, o projeto editorial dos irmãos foi, além de ambicioso, bastante diversificado. Eles investiram também em livros didáticos, científicos e históricos, em obras de referência – como dicionário e enciclopédias –, em traduções de clássicos infantis e em manuais técnicos autoinstrutivos sobre temas variados, incluindo agricultura, culinária, etiqueta e medicina. Além disso, participaram do mercado de belas letras, ajudando a resguardar árcades brasileiros – como Tomás Antonio Gonzaga e José Bonifácio – e a impulsionar a carreira de escritores iniciantes – como Gonçalves Dias e Sousândrade, que a essa altura estreavam no mundo das letras e publicavam seus primeiros livros. O trabalho dos irmãos europeus com a literatura pode ser igualmente averiguado nos dois periódicos femininos impressos pela Tipografia Universal, entre os anos de 1839 a 1854. No dia 05 de janeiro de 1839, o estabelecimento lançou o Correio das Modas: jornal critico, litterario, das modas, bailes, theatros etc. Dedicada ao sexo feminino, a revista trouxe modelos de figurino e debuxos de bordados para as assinantes, bem como narrativas ficcionais, poesias e charadas. Inicialmente teve periodicidade semanal, saindo sempre aos sábados. O êxito entre as leitoras fez com que ela logo passasse a aparecer duas vezes por semana, sempre às quintas-feiras e aos domingos. Ao todo, somou 131 138

fascículos, dos quais pouco mais da metade chegaram aos nossos dias, porque somente o primeiro semestre de 1839 e o segundo semestre de 1840 foram conservados. Alguns anos mais tarde, os Laemmert voltaram a participar da imprensa periódica feminina. No começo de 1852, eles publicaram o hebdomadário Novo Correio de Modas: novellas, poesias, viagens, recordações historicas, anedoctas e charadas. A revista apresentou inúmeras diferenças em relação a sua antecessora, a começar pela presença de outros nomes entre os redatores e colaboradores. Ademais, trouxe matérias que não haviam aparecido nas páginas do Correio das Modas, como, por exemplo, viagens e recordações históricas. Por fim, teve outra organização, sendo iniciada com uma narrativa e finalizada com a exposição de uma gravura de moda, exatamente o contrário do que ocorrera com a anterior. Dessa forma, o adjetivo ―novo‖ não parecer ter sido utilizado como mero acessório. Ele indica a intenção de retomar um periódico e de alterá-lo parcialmente por meio de algumas inovações. Apesar das diferenças, as duas publicações apresentaram textos ficcionais imbuídos de finalidades práticas, que visaram à moralização, à instrução e ao entretenimento das leitoras. Tais narrativas tiveram origens diversas: algumas foram escritas por autores nacionais (engajados em impulsionar a ainda recente literatura brasileira) e outras, por estrangeiros, principalmente do continente europeu. Ao acolherem essas produções importadas e as difundirem na capital do Império, O Correio das Modas e o Novo Correio de Modas exerceram o papel de mediadores entre o Brasil e a Europa. Em outras palavras, eles ajudaram na circulação da produção literária do Velho Mundo desse lado de cá do Atlântico e estimularam o contato dos habitantes do Rio de Janeiro com culturas diferentes. A apropriação de textos estrangeiros era uma prática recorrente na imprensa da época, permitida devido à inexistência de leis que regulamentassem a atividade, protegessem os autores e lhes garantissem os direitos sobre suas produções. De acordo com Ramicelli, a medida tinha a finalidade de ―enriquecer o meio cultural brasileiro, reconhecidamente incapaz de fornecer por si só toda a variada matéria cultural de que um periódico se alimenta‖ (RAMICELLI, Maria Eulália, 2004, p. 2-3). É possível, no entanto, que em certos casos decorresse mais de comodismo do que de qualquer objetivo patriótico. Ao menos é o que indica a introdução da narrativa ―A morte de uma filha‖, publicada pelo Correio das Modas, no dia 16 de fevereiro de 1839. Segundo o tradutor Josino do Nascimento Silva, a ―falta de talento próprio‖ teria feito com que ele optasse por utilizar um texto de um dos ―mais elegantes escritores Franceses‖: ―Mas o artigo... É verdade! Em falta de talento próprio, deve aproveitar- se o alheio. O artigo que vos ofereço, é d‘um dos mais elegantes escritores Franceses, e, para me servir da linguagem e comparações de autores antigos, é uma rosa colhida no jardim do amor paterno e materno. Li-o no Journal des Enfants e chorei... (...). O Periódicos dos Meninos é uma das mais belas Coleções de novelas que hei visto, e não se persuada alguém que são histórias para acalentar crianças. (...)‖ (SILVA, 139

Josino do Nascimento, ―A morte de uma filha‖, Correio das Modas, Rio de Janeiro, 16/02/1839, n. 7, p. 51).55

A menção feita pelo tradutor ao Journal des Enfants foi uma exceção. Quando folheamos as revistas impressas pela Tipografia Universal – assim como outros periódicos lançados no Brasil no século XIX –, raramente deparamo-nos com dados como esse. Na maioria das vezes, não se indicava nem a fonte utilizada, nem mesmo o nome do autor, de modo que o leitor da época não conseguia diferenciar se se tratava de uma tradução ou de uma produção própria dos periódicos. Para superar ao menos parte dessa lacuna, avaliar de que maneira as publicações dos Laemmert colocaram os leitores brasileiros em contato com a ficção estrangeira, descobrir quem eram os autores mais recorrentes, os assuntos abordados e as fontes utilizadas, buscamos a origem de 278 narrativas veiculadas pelo Correio das Modas e pelo Novo Correio de Modas, sendo 96 da primeira revista e 182 da segunda. 56 Nossos dados indicaram que a França ocupou posição de destaque: se considerarmos tanto os textos publicados em livros, quanto os lançados na imprensa sob assinatura de algum escritor francês, podemos estipular que os textos originários desse país compuseram ao menos 33,09% do total difundido pelos periódicos. Esses números fizeram da nação francesa a maior fornecedora da seção dedicada à prosa de ficção das duas impressões. Em segundo lugar, apareceram as narrativas escritas por ingleses, com 12,59%; em terceiro, as redigidas por brasileiros, com 12,23%; em quarto, as de origem portuguesa, com 7,19% e, em quinto, as de língua alemã, com 4,32%. Embora em menor número, textos inicialmente escritos em espanhol, italiano, polonês, russo e árabe também compuseram o rol da ficção em prosa divulgada pelos periódicos.

2. Narrativas portuguesas no Correio das Modas e no Novo Correio de Modas

Depois da França e da Inglaterra, Portugal foi o país europeu com maior contribuição nos espaços dedicados às narrativas nos periódicos. Os textos em prosa de ficção exportados pelos lusitanos compuseram 8,33 % do total encontrado no Correio das Modas e 6,60 % do total localizado no Novo Correio de Modas. O compartilhamento de um mesmo idioma entre as duas nações certamente esteve por detrás desses índices, uma vez que a reprodução de textos escritos em língua portuguesa eliminava os gastos decorrentes com a tradução. O mesmo não acontecia com as narrativas redigidas em idiomas

55 Optamos por atualizar a ortografia de acordo com as normas do português do Brasil hoje em vigor. Mantivemos inalterados apenas os nomes dos periódicos, dos livros e dos títulos das narrativas. 56 Localizamos a origem de 65,62% das narrativas do Correio das Modas (ou seja, 63 textos) e de 79,12% do Novo Correio de Modas (ou seja, 144 textos). Algumas narrativas não foram encontradas durante a pesquisa, mas mesmo assim elas constam nesses valores, porque ajudam a representar o total publicado pelas revistas. 140 estrangeiros, as quais demandavam a intermediação de um profissional qualificado a passar o conteúdo para o português. Nesse sentido, Portugal oferecia uma vantagem a mais em relação a outros países europeus, pois a cópia de matérias originárias da imprensa lusitana era ainda mais fácil e barato. Como seria de se esperar, tal prática não agradou os literatos portugueses: um dos autores mais ―pirateados‖ desse momento, Almeida Garrett, chegou a tentar estabelecer uma série de acordos internacionais a fim de proibir as contrafações. Antonio Feliciano de Castilho mudou-se para o Rio de Janeiro numa tentativa de acompanhar de perto as impressões ilegais de suas obras e minimizar as perdas. Pinheiro Chagas foi ainda mais longe que os outros dois e redigiu uma carta aberta, endereçada ao imperador D. Pedro II, exigindo o reconhecimento da propriedade literária por parte das autoridades brasileiras (ZILBERMAN, Regina, 2002, p. 11-12). Os editores lusos também não viram com bons olhos a atividade. Isso porque os leitores brasileiros constituíam um importante mercado para as publicações da antiga metrópole e a existência de cópias indevidas acabava repercutindo negativamente em suas finanças. O principal fornecedor português do Correio das Modas foi o jornal lisbonense O Beija-flor: semanario d’ instrucção e recreio dedicado ao bello sexo. A metáfora em torno do título do periódico não é aleatória: no primeiro número, de 15 de agosto de 1838, ele revelou a intenção de atuar como o pássaro cujo nome lhe servia de título, visitando diversas publicações em busca do melhor ―néctar‖ literário: ―Haverá o maior cuidado e escrúpulo em não repetir aquilo que o que os outros Jornais publicarem, nem reproduzir suas ideias. Esta advertência porém se entende tão somente a respeito dos Jornais Portugueses contemporâneos, porque o BEIJA-FLOR não será todo original. – O seu título metaforicamente derivado d‘uma ave do Brasil, que voejando de flor em flor delas extrai o mel para seu sustento, está indicando que ele irá buscar quanto houver de melhor dentro da órbita que se propôs girar, em qualquer parte que ele exista; e por isto muito estimaria ter correspondentes que lhe enviassem suas produções quando sejam escritas no sentido do Jornal‖ (―Prólogo‖, O Beija-flor, Lisboa, 15/08/1838, n. 1, p. 1).

Ao que parece, apenas matérias de origem portuguesa escaparam de serem reproduzidas pelo jornal – provavelmente devido ao objetivo de não causar atritos com as publicações conterrâneas, já indignadas com as contrafações brasileiras. Entre as narrativas de origem estrangeira veiculadas nas páginas d‘ O Beija-Flor, encontramos, por exemplo, ―The fisherman of Scharpout. Two chapters from an old story‖, uma produção de G. P. R. James, que foi lançada no The keepsake, em 1836 (JAMES, G. P. R., ―The fisherman of Scharpout. Two chapters from an old story‖, The keepsake, London, Paris, Berlin, 1836, p. 133-156). Dois anos mais tarde, em 24 de outubro de 1838, o periódico português publicou uma tradução, intitulada ―O pescador de Ostend‖, sem indicar qualquer informação a respeito de sua origem (―O pescador de Ostend‖, O Beija- 141 flor, Lisboa, 24/08/1838, n. 11, p. 81-86). Um ano mais tarde, entre 29 de novembro e 03 de dezembro de 1840, foi a vez do Correio das Modas proceder da mesma forma, copiando o texto apresentado pela publicação lusitana (―O pescador de Ostend‖, Correio das Modas, Rio de Janeiro, 29/11/1840, n. 44, p. 346-352 e 03/12/1840, n. 45, p. 353- 355). Vale dizer ainda que, logo após seu lançamento na Inglaterra, o texto foi reproduzido pelo periódico norte-americano Museum of foreign literature and science (―The fisherman of Scharpout. Two chapters from an old story‖, Museum of foreign literature and science, Philadelphia, january to june 1836, v. XXVII, p. 151-156). Os periódicos português e brasileiro tiveram diversos pontos em comum: ambos dirigiram-se principalmente ao público feminino e veicularam anedotas e charadas para o divertimento das leitoras. Mais significativa, porém, foi a intenção de educá-las moralmente, recorrente tanto n‘ O Beija-flor quanto no Correio das Modas. De acordo com o jornal luso, os artigos apresentados em suas páginas objetivavam corrigir a má educação da época, salvando ―almas por ventura bem formadas, corações sensíveis nascidos para a virtude, jovens infelizes roubados à sociedade, da qual poderiam ser brilhante adorno‖. Sendo assim, a publicação empenhar-se-ia em oferecer ―um sopro da vida pura‖, capaz de ―abrir nos corações um manancial de virtudes sociais‖ por meio da seleção de textos contendo ―quadros da moral e da virtude‖ (―Prólogo‖, O Beija-flor, Lisboa, 15/08/1838, n. 1, p. 1). A escolha d‘ O Beija-flor como manancial para as narrativas não parece ter sido fortuita: se os redatores pretendiam colaborar com a elevação moral de suas assinantes, nada melhor do que selecionar títulos veiculados em um jornal com a mesma preocupação. Ao longo de seu período de existência, o Correio das Modas reproduziu oito narrativas retiradas do jornal português O Beija-Flor: ―A esposa na adversidade‖; ―A fugida do castelo de Lochlevin‖; ―Seymour e Harley. Historia inglesa‖; ―Os dois irmãos‖; ―Uma viagem a Saumur‖; ―A donzela do Tarso‖; ―A casa de Boscovel‖ e a já mencionada ―O pescador de Ostend‖ (O Beija-flor, Lisboa, edições de 04/09/1838, 12/09/1838, 19/09/1838, 26/09/1838, 24/10/1838, 05/12/1838, 15/08/1840, 22/08/1840, 19/12/1840 e 26/12/1840, respectivamente; Correio das Modas, Rio de Janeiro, edições de 29/11/1840, 03/12/1840, 06/12/1840, 10/12/1840, 17/12/1840, 20/12/1840, 24/12/1840, 27/12/1840 e 31/12/1840, respectivamente). O Novo Correio de Modas seguiu o mesmo caminho trilhado por sua antecessora, utilizando textos extraídos dos seguintes periódicos lusitanos: Revista Popular: seminario de litteratura, sciencia e industria – ―O pagamento de uma divida‖; ―O chim na exposição de Londres‖ e ―Os velhos retratos. Novella‖ –; O Panorama: jornal litterario e instructivo – ―O passeio do phantasma. Lenda do século XV‖ e ―O conde de Penhacerrada‖ – Archivo popular: leituras de instrução e de recreio – ―O vampiro‖ – e O Recreio: jornal da familia – ―Suzana Herbez, intitulada filha natural de Carlos X‖ (Revista Popular, Lisboa, edições de janeiro e abril de 1852; O Panorama; Lisboa, edições de 1842 e 1843; Archivo popular, Lisboa, edição de 06/08/1842; O Recreio, Lisboa, edição de abril de 1836; Novo Correio de Modas, Rio de Janeiro, edições de 2 o. sem. de 1852, n. 3, 2o. sem. de 1852, n. 8-9, 1o. sem. de 1853, n. 2 e n. 9, e 2o. sem. de 1854, n. 10, 18 e 25). Conseguimos descobrir o nome de cinco escritores portugueses cujos textos foram difundidos pelo Novo Correio de Modas. O primeiro deles foi Alexandre Herculano, o único que teve seu nome vinculado a uma narrativa. Nessa altura, ele já era um escritor reconhecido, por isso a estratégia poderia ter o objetivo de atrair a atenção do leitor que costumava ler seus textos. ―O castelo de Faria (1373)‖ apareceu nas páginas da revista no primeiro semestre de 1852 (HERCULANO, Alexandre. ―O castelo de Faria (1373)‖. Novo Correio de Modas, Rio de Janeiro, 1o. sem. de 1852, n. 5, p. 33-36). 142

Trata-se de uma narrativa histórica que descreve o feito heróico realizado pelo alcaide Faria na luta contra o domínio do reino de Castela. De acordo com Viana, um texto encontrado na Crônica de Dom Fernando, de Fernão Lopes, serviu de inspiração para o autor português, que utilizou algumas passagens da crônica para compor uma nova versão do evento (VIANA, Liane Cunha, 1996, p. 158). Ainda segundo a pesquisadora, a narrativa veio a lume pela primeira vez no periódico O Panorama, em 1838, que, como vimos anteriormente, constituiu uma importante fonte para o Novo Correio de Modas. Entretanto, é mais provável que os redatores da revista brasileira tenham utilizado o texto localizado na obra Lendas e narrativas, de 1851. Dois números após a veiculação da narrativa, o cronista D. Sallustio emitiu o seguinte parecer a respeito do livro do escritor: ―(...) não quero deixar de recomendar às minhas estimadíssimas leitoras o 2º. Vol. de Lendas e Narrativas, que o ilustre autor do Eurico acaba de publicar em Lisboa, e de que há alguns exemplares no Rio de Janeiro. É um livro precioso este. Como tudo quanto é filho do estudo daquele vasto talento, este livro é mais um monumento glorioso para a literatura portuguesa.‖ (D. SALLUSTIO, ―Chronica da Quinzena‖, Novo Correio de Modas, Rio de Janeiro, 1o. sem. de 1852, n. 7, p. 55).

No mesmo semestre em que foi veiculado o texto de Herculano, apareceu a narrativa ―As tres deosas. Charada em prosa‖, escrita pelo romancista, poeta e folhetinista Antonio Pedro Lopes de Mendonça (MENDONÇA, Antonio Pedro Lopes de, ―As tres deosas. Charada em prosa‖, Novo Correio de Modas, Rio de Janeiro, 1o. sem. de 1852, n. 19, p. 148-150). Conta a história de um jovem desafiado a escolher a mais bonita entre três moças cobiçadas por todos os mancebos de um baile. Lembrando-se da lenda em torno da Guerra de Tróia, ele preferiu seguir um caminho diferente do trilhado por Páris e afirmou ser incapaz de se decidir. Três narrativas de origem portuguesa publicadas pelo Novo Correio de Modas saíram da pena de uma mulher. A portuense Maria Peregrina de Sousa foi autora dos seguintes textos veiculados pelo periódico no decorrer de 1854: ―O homem dos provérbios‖; ―Uma vida amargurada‖ e ―O cavalheiro do Cruzado Novo e o cavalheiro do botão de rosa‖. Pouco conhecida entre os leitores contemporâneos, a escritora colaborou em jornais como Arquivo Popular, Restauração da Carta, Revista Universal Lisbonense, Íris e Aurora (PEREIRA, Esteves, RODRIGUES, Guilherme, 1904-1915, p. 1061). De acordo com as informações apresentadas na biografia da autora feita por Antonio Feliciano de Castilho, as narrativas copiadas pela revista brasileira apareceram inicialmente no Periódico dos Pobres, em 1848 (CASTILHO, Antonio Feliciano de, 1861, p. 273-312). ―O homem dos provérbios‖; ―Uma vida amargurada‖ e ―O cavalheiro do Cruzado Novo e o cavalheiro do botão de rosa‖ giram em torno da temática familiar, tratando de temas como amores proibidos, desavenças conjugais e conflitos entre pais e filhos. A primeira narrativa traz a história de Luiza e Roberto, dois irmãos de criação que se apaixonaram perdidamente. Como não passava de uma agregada da família, que havia sido acolhida por piedade, a menina procurava resistir ao sentimento. O jovem casal somente conseguiu se casar depois que foi revelado que Luiza também tinha ascendência nobre, pois descendia de um poderoso conde (Novo Correio de Modas, Rio de Janeiro, 1o. sem. de 1854, n. 3-6). A segunda narrativa trata da desventura de um jovem rapaz que planejava assassinar a própria mãe, julgando-se abandonado quando bebê. Na realidade, ela havia sido enganada, porque lhe disseram que o filho morrera durante o parto. Quando a verdade veio à tona, mãe e filho se reconciliaram. Contudo, o pai do 143

rapaz não perdoou a antiga mulher e procurou atingi-la com um punhal. Quem tomou o golpe foi o filho, que acabou morrendo para a tristeza de todos (Novo Correio de Modas, Rio de Janeiro, 1o. sem. de 1854, n. 16-18). Por fim, a terceira narrativa conta a história de amor de Adelaide e Pedro. Inicialmente o romance foi proibido pela família da moça, porque o rapaz tinha má fama e morava em uma casa muito singular, com uma fachada humilde e um interior esplendoroso. A tia de Pedro interferiu e disse aos pais de Adelaide que tudo não passava de uma estratégia de seu irmão para não se apegar demasiadamente ao dinheiro. Diante dessa explicação, o casamento do jovem casal se realizou (Novo Correio de Modas, Rio de Janeiro, 2o. sem. de 1854, n. 1-5). Além de ter ocupado o posto de um dos principais fornecedores de textos em prosa de ficção para o Correio das Modas e o Novo Correio de Modas, Portugal atuou ainda como mediador entre o Brasil e a Europa.57 Tomemos como base, por exemplo, a narrativa ―Joana, ou um amor contrariado‖, publicada pelo segundo periódico, no primeiro semestre de 1852. Trata-se de uma tradução de ―Comment on se fait aimer de sa femme‖, de Charles Monselet, título originalmente veiculado na Revue pittoresque: Musée littéraire rédigé par les premiers romanciers et illustré par les premiers artistes, de 1850. A narrativa original começa com o seguinte parágrafo: ―Le vieux braconnier ne se metait jamais em campagne sans être escorté de son chien et de as fille. Son chien était um animal fort laid, fort sale et fort intelligent, auquel il avait donné le nom ironique de Gendarme. Quant à sa fille, elle s‘appelait Jeanne. Vous avez vu de ce belles et fortes natures chez les Arlésiennes et chez les Basquaises. Elle portait firèment ses dix-sept ans écrits en flammes noires dans sés yeux curieux et grands, et dans ses cheveux tordus en cable, débordant par derrière sur le cou. Un beau brin de fille, disaient les paysans en parlant d‘elle, et cet éloge robuste, Jeanne ne l‘avait pas volé. Seulement, trop de dédains peu-être éclatait sur sa lèvre d‘un rouge sombre cerise écrasée, aux parfums enivrants; ce front, traversé dans son sommet par um pli grave et baigné d‘ombre vers les temps, accusait peut-être une énergie trop virile, mais em revanche, dans le duvet rose de ses joues, et surtout dans la fossette de son menton, il y avait suffisament de quoi faire oublier le sérieux de certaines lignes, l‘aspect de certains contours. As gorge aurait brisé trois corsets de marquise. Jeanne était grande et la mieux faite de toutes les paysannes qui dansaient le dimanche la sabotière sous les chênes‖ (MONSELET, Charles, ―Comment on se fait aimer de sa femme‖, Revue pittoresque, Paris, 1850, p. 24).

É provável que a narrativa tenha entrado no Brasil por intermediação da Revista Popular, a qual reproduziu uma tradução do referido texto francês, intitulada ―O que fez um marido para que sua mulher o amasse‖, em 1852. A versão brasileira apresenta, assim como a lusitana, algumas diferenças em relação ao texto original de Charles Monselet. Logo no começo, encontramos o enxugamento da descrição da personagem Joana: ―(...) O caçador, já velho, nunca ia bater mato, sem levar consigo o cão e a filha. O cão era feíssimo e sujo: mas tinha muito instinto e chamava-se Gerdarme. A filha chamava-se Joana, era de boa estatura, forte, vermelha: tinha dezessete anos, olhos pretos e formosos cabelos com que fazia

57 A respeito da influência da cultura portuguesa como intermediária entre o Brasil e a França, consultar: PONCIONI, Cláudia. Emile Zola em português: um estudo das traduções de Germinal no Brasil e em Portugal. São Paulo: Annablume, 1999. 144

uma trança, que andava sempre caída no pescoço. Era uma guapa moça, como lhe chamavam os portugueses das cercanias, e a mais airosa das que dançavam ao domingo debaixo dos castanheiros‖ (―O que fez um marido para que sua mulher o amasse‖, Revista Popular, Lisboa, 1852, p. 28).

―(...) O caçador, já velho, nunca ia bater mato, sem levar consigo o cão e a filha. O cão era feíssimo e sujo: mas tinha muito instinto e chamava-se Gerdarme. A filha chamava-se Joana, era de boa estatura, forte, vermelha: tinha dezessete anos, olhos pretos e formosos cabelos com que fazia uma trança, que andava sempre caída no pescoço. Era uma guapa moça, como lhe chamavam os portugueses das cercanias, e a mais airosa das que dançavam ao domingo debaixo dos castanheiros‖ (―Joana, ou um amor contrariado‖, Novo Correio de Modas, Rio de Janeiro, 1o. sem. de 1852, n. 18, p. 137).

O desfecho da narrativa também comprova que a versão publicada pelo Novo Correio de Modas foi realizada a partir da tradução portuguesa. O texto d‘ O Panorama termina com um trecho curioso, não localizado no original, dedicado a comentar o comportamento da protagonista e sua tentativa de assassinar o marido: ―Vejam o que faz às vezes um tiro, quando é dado a tempo, e por uma mulher que tem mão certa. Mas não sirva este exemplo, para as mulheres, casadas contra sua vontade, tratem os maridos como se fossem cotovias ou patos bravos‖ (―O que fez um marido para que sua mulher o amasse‖, Revista Popular, Lisboa, 1852, p. 30).

O mesmo excerto está presente na versão encontrada no Novo Correio de Modas. Isso não significa, no entanto, que os textos reproduzidos pelos periódicos sejam exatamente os mesmos. Os redatores da revista brasileira efetuaram algumas mudanças na narrativa da Revista Popular com o objetivo de adaptá-la para o português do Brasil. Eles substituíram, por exemplo, a terminação do pretérito perfeito ―-ram‖ por ―-rão‖, como era mais usual na imprensa nacional no período. Assim a sentença: ―Ahi vai uma a qual faltaram bem poucas formalidades para apparecer sob a rubrica de tribunaes‖ foi trocada por ―Ahi vai uma à qual faltárão bem poucas formalidades para apparecer sob a rubrica de tribunaes‖. Além disso, escolheram outro título para a história, dando ênfase ao papel da protagonista e a seu sentimento em relação ao amado. Mesmo assim, tais modificações foram pouco significativas. Quando se tratava de utilizar um texto saído de periódicos lusitanos, o mais comum era mantê-lo praticamente idêntico ao original, restringindo as mudanças à grafia de algumas palavras e, no máximo, ao título.

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REFERÊNCIAS CASTILHO, Antonio Feliciano de. ―Maria Peregrina de Sousa‖. Revista contemporânea de Portugal e Brasil. Lisboa: Escritório da Revista contemporânea de Portugal e Brasil. Abril de 1861. p. 273-312. EL FAR, Alessandra. O livro e a leitura no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil. Tradução de Maria da Penha Villalobos, Lólio Lourenço de Oliveira e Geraldo Gerson de Souza. 2a. edição. São Paulo: EDUSP, 2005. PEREIRA, Esteves, RODRIGUES, Guilherme. Portugal: Dicionário Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico. Lisboa, João Romano Torres. 1904- 1915. v. VI. PONCIONI, Cláudia. Émile Zola em português: um estudo das traduções de Germinal no Brasil e em Portugal. São Paulo: Annablume, 1999. RAMICELLI, Maria Eulália. Narrativas itinerantes: aspectos franco-britânicos da ficção brasileira em periódicos do século XIX. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. VIANA, Liane Cunha. ―‗O castelo de Faria‘: resistência à ‗perda‘ do passado e da identidade nacional‖. Revista Itinerários: narrar e resistir. n. 10. Araraquara: UNESP, 1996. p. 155-166. ZILBERMAN, Regina. ―Eça entre os brasileiros de ontem e hoje‖. In.: Eça e outros: diálogo com a ficção de Eça de Queirós. ZILBERMAN, Regina et al. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. p. 7-19.

Periódicos consultados Archivo popular: leituras de instrução e de recreio (1839-1842) Correio das Modas: jornal critico, litterario, das modas, bailes, theatros etc. (1839-1840) Museum of foreign literature and science (1836) Novo Correio de Modas: novellas, poesias, viagens, recordações historicas, anedoctas e charadas (1852- 1854) O Beija-flor: semanario d’ instrucção e recreio dedicado ao bello sexo (1838) O Panorama: jornal litterario, cientifico e instructivo (1840-1843) O Recreio: jornal da familia (1836) Revista Popular: seminario de litteratura, sciencia e industria (1852) Revue pittoresque: musée littéraire rédigé par les premiers romanciers et illustré par les premiers artistes (1850) 146

The keepsake (1836)

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A TRANSFIGURAÇÃO POÉTICA DO CORPO NA LINHA- D‟ÁGUA, DE OLGA SAVARY

Andréa Jamilly Rodrigues Leitão 58

Prof. Dr. Antônio Máximo Ferraz (Orientador) 59

Resumo: O presente trabalho intenta perquirir a transfiguração poética do corpo à luz do elemento da água nos poemas ―Signo‖ e ―Só na Poesia?‖ da obra Linha-d’Água (1987), de Olga Savary. A saber, interpretar o modo pelo qual a dinâmica da água se manifesta na escritura dos poemas, sobretudo em relação à recriação dos corpos na união erótica, no sentido de conjugar e integrar o ser humano ao domínio da natureza, como uma possibilidade autêntica de reconciliação (PAZ, 1994). O movimento das águas transmuta-se no envolvimento sinuoso dos corpos, levando à plenitude a comunhão amorosa, e, por outro lado, eclode fecundamente na própria construção da poesia. Em diálogo com a hermenêutica de Paul Ricoeur (1990), toda obra de arte opera a proposição de mundo, revelado diante do texto, no próprio tecer da linguagem. Há a projeção de novas dimensões e possibilidades de realização do ser-no-mundo, as quais instauram, ao mesmo tempo, novos sentidos à dinâmica da existência do homem. Sendo assim, Linha-d’Água manifesta, por meio das construções metafóricas de seus poemas, uma nova experiência do homem com o mundo. Pois, ao transfigurar o corpo dos amantes sob a mobilidade e a fluidez do signo das águas, a poesia de Olga Savary encena a possibilidade de recuperação do vínculo originário entre o ser humano e a natureza.

Palavras-chave: Corpo; Água; Transfiguração poética.

Abstract: This paper attempts to assert the poetic transfiguration of the body in the light of the water element in the poems "Signo" and "Só na Poesia?" of the book Linha-d’Água (1987), by Olga Savary. Namely, the way we interpret the dynamics of water is manifested in the writing of poems, especially in relation to recreation bodies in erotic union, in order to combine and integrate the human in realm of nature, as a real possibility of reconciliation (PAZ, 1994). The movement of water is transmuted in engagement winding bodies, leading to completion communion loving and, on the other hand, breaks fruitfully in the construction of poetry. In dialogue with the hermeneutics of Paul Ricoeur (1990), every work of art operates the world proposition, revealed before the text, weaving in own language. There is a projection of new dimensions and possibilities of realization of being in the world, which instauram, while new meanings to the dynamics of human existence. Therefore, Linha-d’Água manifests through the metaphorical constructions of its poems, a new man's experience with the world. Well, to transfigure the body of lovers under the mobility and fluidity of the sign of the waters, the poetry of Olga Savary enacts the possibility of recovering the original link between human and nature.

58 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected] 59 Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected] 148

Keywords: Body; Water; Transfiguration poetic.

1. Introdução

A escritora paraense Olga Savary (1933) possui uma extensa e rica produção literária, distribuída em diversos livros premiados pela crítica. A fim de contribuir para a expansão da fortuna crítica da rica produção literária da escritora, a proposta deste trabalho intenta perquirir a transfiguração poética dos corpos à luz da dinâmica do elemento da água, de modo a lançar um novo olhar acerca do corpo e suas inter-relações com a sexualidade e a experiência amorosa. O percurso interpretativo desenvolve-se a partir dos poemas ―Signo‖ e ―Só na Poesia?‖, da obra Linha-d’Água (1987). Dentro do universo literário da escritora, a obra em questão compartilha ―da sua obsessiva procura de integrar à sua poética a sensualidade e os movimentos da natureza. Mas, neste caso, a presença ecológica [...] se torna bem mais forte, quase primitiva‖ (LUIZ, 1987). Sendo assim, este trabalho remete à possibilidade de interpretar o modo pelo qual a ―presença ecológica‖ se manifesta na escritura dos poemas, especificamente em relação à figuração e à recriação poética do corpo sob o vigor da união erótica, no sentido de conjugar e integrar o ser humano ao domínio do mundo natural, a uma instância originária onde vigora a plena unidade entre eles. A fluidez do movimento das águas transmuta-se no envolvimento sinuoso dos corpos, levando à plenitude a comunhão amorosa, e, por outro lado, eclode fecundamente na própria construção da poesia. A riqueza da escritura poética de Olga Savary reside na construção metafórica dos poemas que, ao incorporar e transfigurar o humano sob o vigor dos elementos vitais do mundo natural, opera o movimento de retorno à sua origem, à sua raiz telúrica, como uma possibilidade autêntica de reconciliação com a natureza (PAZ, 1994). Em alguns poemas, inclusive, há a incorporação de vocábulos de origem tupi, os quais recuperam a memória de uma convivência harmônica e divinatória com a natureza. Além disso, em diálogo com a hermenêutica de Paul Ricoeur (1990), a obra Linha-d’Água projeta uma nova experiência do homem com o mundo. Pois, ao transfigurar o corpo dos amantes em consonância com o movimento das águas, encena a possibilidade de recuperação do vínculo originário entre o ser humano e a natureza.

2. Água e movimento: a figuração poética do corpo

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Na poética corporal de Olga Savary, o elemento primordial da água encena o dinamismo e a envergadura da união erótico-carnal, a entrega ―desaguada‖, absoluta e visceral dos amantes com singular plasticidade, ao mesmo tempo que evoca o fundamento primitivo, a origem, a própria dinâmica da existência nas suas mais diversas dimensões e manifestações. Desse modo, a água manifesta a gênese, a ―fonte de vida, a origem da energia se formando‖ 60 no corpo dos amantes, que pulsa em meio às emanações do espírito de Eros. Como está aludido em um dos versos do poema ―Çaiçuçaua‖ – do Tupi: amor, amado –, que também integra a obra em questão de Olga Savary, ―em tua água sim está meu tempo,/ meu começo‖ (SAVARY, 1987, p. 27). No seio da natureza repousa o acontecer pleno do amor, sob as emanações do espírito de Eros, na medida em que conduz o ser humano às origens, à morada originária, ao reencontro da unidade perdida. A experenciação corporal não somente do sentimento amoroso, mas também da própria sexualidade proporciona a reconciliação do homem com o mundo natural, em que aquele se reconhece como hŭmus 61 – que significa solo, terra –, de onde germina a vida, ou seja: se compreende sendo em meio ao movimento orgânico cíclico e incessante, transfigurando-se nas próprias forças vitais da natureza:

A idéia de parentesco dos homens com o universo aparece na origem da concepção do amor. É uma crença que começa com os primeiros poetas, permeia a poesia romântica e chega até nós. A semelhança, o parentesco entre a montanha e a mulher ou entre a árvore e o homem, são eixos do sentimento amoroso. O amor pode ser agora, como foi no passado, uma via de reconciliação com a natureza. Não podemos nos transformar em fontes ou árvores, em pássaros ou touros, mas podemos nos reconhecer em todos eles (PAZ, 1994, p. 193).

Em relação à recriação poética dos corpos, a pesquisadora Angélica Soares, interpretando a poética de Olga Savary, comenta que o envolvimento carnal dos humanos metamorfoseia-se paralelamente no dinamismo dos fenômenos vitais do mundo natural, cuja mútua correspondência – além de restabelecer o vínculo originário – instaura uma real conexão e sincronia no diálogo entre as suas manifestações. Diz a autora:

Perfeitamente inseridos na dinâmica natural, os corpos dos amantes se conectam e se complementam, na entrega plena e recíproca. Pela integração entre o ser humano e a Natureza, a linguagem dos corpos não é apenas deles, mas do mar, do animal, da flor, do fruto (SOARES, 1999, p. 63, grifo do autor).

60 Trecho do poema homônimo, que inicia a obra Linha-d’Água (SAVARY, 1987, p. 17). 61 Inclusive, o termo latino hŭmus está relacionado etimologicamente com a palavra homem. As referências etimológicas citadas neste trabalho podem ser conferidas no estudo feito por José Pedro Machado (1995). 150

Como se poderá ver mais adiante, a transfiguração poética dos corpos – à luz dos elementos pertencentes à realidade natural – vislumbra a encenação poético-ontológica do princípio da unidade entre o ser humano e a natureza, do vigor que o reconduz às suas raízes telúricas, ao espaço ecológico 62 em que desde sempre esteve, tornar a ser o que simplesmente já se é, na medida em que reconhece e ressalta o seu próprio corpo enquanto hŭmus; levando-o, assim, a uma experiência primordial e originária. No poema intitulado ―Signo‖, vê-se a importância da figuração dos elementos naturais, tais como o ar, a terra e a água, na tessitura da obra poética de Olga Savary. Estes contribuem para a encenação de uma convivência harmônica entre a natureza e o homem e, mais do que isso, se incorporam à própria envergadura dos corpos amantes em meio à comunhão amorosa. Há, porém, a predominância da substância da água, como se pode notar abaixo no poema transcrito em sua íntegra:

Há tanto tempo que me entendo tua, exilada do meu elemento de origem: ar, não mais terra, o meu de escolha mas água, teu elemento, aquele que é o do amor e do amar.

Se a outro pertencia, pertenço agora a este signo: da liqüidez, do aguaceiro. E a ele me entrego desaguada, sem medir margens, unindo a toda esta água do teu signo minha água primitiva e desatada. (SAVARY, 1987, p. 26).

O elemento da água, enquanto ―aquele que é o do amor e do amar‖ por excelência, acaba por se sobrepujar sobre os demais com a sua vastidão líquida indomável, na sua vazão implacável, ―sem medir margens‖. A entrega desmedida e ―desaguada‖ desemboca na união dos corpos, os quais se transmutam, sob o vigor da encenação erótica, no próprio movimento das águas. Estas, por sua vez, evocam o princípio originário da vida, o fundamento ―primitivo‖ da criação. Neste sentido, a fluidez do signo das águas alude à diluição das formas humanas, que se configuram livres e ―desatadas‖ no instante da cópula carnal, em direção à unidade e à plenificação do amor. Segundo Marlene de Toledo (2009, p. 84), a qual se debruçou significativamente sobre o conjunto da obra da escritora paraense, ―o erotismo explode em Linha-d’Água, como, de resto, em toda a poesia savaryana, como vida, energia. A natureza é mais que natureza: é a natureza do corpo, a água do corpo, a água do orgasmo‖. A natureza vigora

62 Compreende-se o radical eco- a partir do sentido do grego oíkos, que significa casa. 151 na constituição carnal do homem em meio à potência erótica dos amantes, a vida se derrama no esplendor da figuração do corpo. Em suma, a poética da escritora paraense conduz o ser humano à reconciliação com as forças vitais da natureza, ou melhor, com a natureza do seu próprio corpo. O poema ―Só na Poesia?‖, por sua vez, estrutura-se em forma de diálogo, iniciando em tom de questionamento, o que já se figura desde o título. Segue abaixo, na íntegra:

Eu te pareço bela ou bela é só minha poesia quando só assim me entrego?

Depois de derrubada, foi em mim que te ergueste fortaleza – fortaleza de água, de igapó e igarapé (a que me comparas).

Então aposso-me do teu rio que corre para minhas águas e me carrega ao momento de entrega: ensolarada. (SAVARY, 1987, p. 30).

A beleza, referida na primeira estrofe, reside não somente no plano físico ou estético, mas que diz respeito ao próprio, à poesia de cada um que se deixa descortinar, revelar na intensidade da entrega amorosa: ―Eu te pareço bela ou bela/ é só minha poesia quando/ só assim me entrego?‖. Não diz respeito ao belo que paira na esfera do sublime – sob um viés platônico –, mas à experiência de busca pela instância criativa, na qual se constitui não somente o operar inaugural da arte, mas da própria existência. Em suma, ao conhecimento e à sabedoria que acometem a dimensão concreta do corpo, conduzindo-o a um momento de revelação: a carne se faz palavra. Mais do que apenas a conjugação de palavras, a poesia acontece no encontro erótico das águas, no enlace sinuoso dos corpos, na vida que vige potencialmente em cada homem. A própria metáfora sexual, tecida ao longo do poema, revela a poesia operando, na medida em que possibilita o ―comparar‖, ou melhor, o transfigurar da materialidade dos corpos no movimento das águas em meio à pulsão erótica do envolvimento carnal. Octavio Paz (1994, p. 12) revela uma forte ligação entre o erotismo e a poesia, chegando a exprimir, por meio de sua genuína veia literária, que ―o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal‖. O corpo constitui-se como a tessitura de um texto, como o espaço da criação e do lavrar dos sentidos; ao passo que a poesia se realiza no corpo da linguagem, na fecundidade do gesto criador, no movimento de cópula de sonoridades, de imagens e de 152 metáforas. Neste sentido, o escritor mexicano defende a existência de uma instância inventiva e criativa que impulsiona tanto a fruição da pulsão sexual quanto a dimensão da criação: ―O erotismo é sexualidade transfigurada: metáfora. A imaginação é o agente que move o ato erótico e o poético. É a potência que transfigura o sexo em cerimônia e rito e a linguagem em ritmo e metáfora‖ (PAZ, 1994, p. 12). Na segunda estrofe, após ser ―derrubada‖, despida e deflorada na nudez do seu corpo, o ser feminino revela-se plenamente, à luz da atividade fecunda de semeadura. O ―tu‖ da interlocução, com sua força e vigor, erige a sua ―fortaleza‖, o seu domínio na encenação erótica, o qual não se sustenta, uma vez que os corpos se encontram regidos e se interpenetra sob o movimento intermitente e incessante do fluxo das águas: ―fortaleza de água, de igapó/ e igarapé‖. A cópula sexual constitui-se mais do que simplesmente a soma de dois corpos envolvidos pelo ardor do desejo, mas a abertura para o momento ―ensolarado‖ e resplandecente de comunhão carnal entre duas existências que se entregam e se autodesvelam na vigência plena do amor, o qual os reúne em uma unidade, a partir da posse concreta das águas do amante no movimento vertiginoso de encontro e de entrega: ―Então aposso-me do teu rio/ que corre para minhas águas‖. Deste modo, a poesia opera aberturas e revelações, remetendo à dignidade humana nas suas possibilidades inaugurais e criativas de realizar-se, seja pela dimensão iniciática do corpo, seja pelo engendrar fecundo da própria arte. A obra de arte alude à imagem de um corpo verbal que se manifesta em um movimento instaurador de sentido no espaço da poíēsis. A partir de uma dimensão erótica, a linguagem é o próprio corpo, em cujo tecido a escritura imprime suas marcas. A palavra é a instância onde vigora a fecundidade do gesto criador, constituindo-se como a semente na qual o élan de fertilidade promove o germinar do poético, o desabrochar do corpo-mundo na vivacidade plena da poesia, na vigência da unidade da criação. A arte, mediante a comunhão amorosa do escritor com a palavra, engendra as potencialidades criativas e genuínas da existência humana, reconstruindo e renovando os sentidos sempre moventes da realidade, sem jamais esgotá-la. Mesmo porque a própria realização poética encontra-se regida sob o movimento incondicionado do elemento da água, o qual não se deixa estagnar, fixar ou delimitar pelas ―garras‖, pelas margens do registro escrito:

Poesia: fera absoluta, escorregadia enguia, água, bicho sem pêlo 153

onde poder agarrar. 63

3. Entre metáforas e transfigurações, a encenação do ser-no-mundo

Segundo Paul Ricoeur (1990), a tarefa da hermenêutica é reconstruir a dinâmica interna do texto e, por outro lado, restabelecer a possibilidade de a obra projetar-se na configuração de um mundo no espaço da escritura. Ricouer defende, à luz de uma teoria ontológica da compreensão, a noção de ―mundo do texto‖ e o empenho de interpretação consiste em reconhecê-lo dentro de um horizonte possível de significação. Em outras palavras, toda obra de arte opera a proposição de mundo, revelado diante do texto, mediante o próprio tecer da linguagem. A força manifestativa da linguagem é capaz de restituir, em absoluto, a dimensão fundadora ao universo literário. Neste sentido, a experiência com a linguagem possibilita reconstruir o real em diferentes vigências e matizes. A criação é, aqui, entendida essencialmente enquanto ficção, no sentido de modelar, fabricar, esculpir, plasmar de sentidos em uma determinada figuração. Cada obra literária configura a sua própria poíēsis criativa, a sua própria interpretação acerca do mundo, constituindo-se como a irrupção de uma realidade inaugural que é a do texto. A experiência da criação poética instaura a configuração de imagens e metáforas, as quais revelam novas dimensões e horizontes de significação acerca da existência do ser humano, doando-se na abertura extra-ordinária fundada pelo mundo de cada obra literária. Para Paul Ricoeur (1990, p. 57), é

pela ficção, pela poesia, [que] abrem-se novas possibilidades de ser-no- mundo na realidade quotidiana. Ficção e poesia visam ao ser, mas não sob o modo do ser-dado, mas sob a maneira do poder-ser. Sendo assim, a realidade quotidiana se metamorfoseia em favor daquilo que poderíamos chamar de variações imaginativas que a literatura opera sobre o real.

Neste sentido, a obra de arte projeta novas dimensões e possibilidades de realização do ser-no-mundo – termo emprestado de Martin Heidegger, da obra Ser e Tempo –, as quais instauram, ao mesmo tempo, novos sentidos e modos figurativos à dinâmica da existência do homem em meio à realidade a sua volta. Em relação à obra Linha-d’Água manifesta, por meio das construções metafóricas de seus poemas, uma nova experiência do homem com o mundo. Pois, ao transfigurar o corpo dos amantes em consonância com o movimento

63 Trecho do poema ―Catêretê‖ (SAVARY, 1987, p. 34). 154 regenerador 64 da água, a poesia de Olga Savary encena a possibilidade de renascer, mediante o movimento de recuperação da unidade originária entre o ser humano e a natureza; de operar o retorno ao estado primordial do Paraíso; e, assim, de desfazer a condição de exílio do homem, como comenta o escritor Octavio Paz (1994, p. 196):

Ao nascer, fomos arrancados da totalidade; no amor sentimos voltar à totalidade original. Por isso as imagens poéticas transformam a pessoa amada em natureza – montanha, água, nuvem, estrela, selva, mar, onda – e, por sua vez, a natureza fala como se fosse mulher. Reconciliação com a totalidade que é o mundo.

Além disso, dentro do projeto literário de Olga Savary, vislumbra-se o reconhecimento da experiência amorosa a partir da manifestação plena da sexualidade na e pela dimensão física do corpo. Deste modo, conduz à reconciliação com a natureza do seu próprio corpo, com a raiz telúrica do homem, cumprindo o seu destino humano em meio ao devir e à medida inexorável do tempo, ao movimento incessante e contingente da realidade das coisas, que constitui a própria dinâmica da vida:

O amor humano, quer dizer, o verdadeiro amor, não nega o corpo nem o mundo. Tampouco aspira a outro e nem se vê como caminhando em direção a uma eternidade para além da mudança e do tempo. O amor é amor não a este mundo, mas sim deste mundo; está atado à terra pela força da gravidade do corpo, que é prazer e morte (PAZ, 1994, p. 185, grifo do autor).

A transfiguração poética do corpo presente nos poemas interpretados manifesta, metaforicamente, uma estrutura de realização do ser-no-mundo, a saber, a própria condição do homem no mundo que habita. Assim, evoca não uma dimensão supraterrena, imutável e atemporal, porém a realização concreta, ambígua e perecível do ser humano. Este que é e está sempre sendo num constante vir-a-ser, a partir da vigência do princípio vital que rege a existência na Terra, do fluxo contínuo e cíclico do acontecer da realidade, sob a mobilidade e a fluidez do signo das águas. Como já anunciava um dos poemas da obra Sumidouro (1977):

Não falo mais do céu fora de alcance; falo do que os pés alcançam, falo da terra que me cabe, da terra que me cobre e que me basta. 65

64 Segundo Mircea Eliade (2008, p. 110), ―o contato com a água comporta sempre uma regeneração: por um lado, porque a dissolução é seguida de um ‗novo nascimento‘; por outro lado, porque a imersão fertiliza e multiplica o potencial da vida‖. 65 Trecho do poema ―Quarto de nuvens‖ (SAVARY, 1998, p. 141). 155

4. Considerações finais

A riqueza da escritura poética de Olga Savary reside, portanto, na reconfiguração do erotismo e do corpo em meio ao vigor imperante da natureza, dos elementos que compõem as forças do mundo natural, cujo tônus vital proporciona o retorno do homem ao lugar em que desde sempre já esteve: a terra. Sobretudo, os poemas ―Signo‖ e ―Só na Poesia?‖ realizam a reconciliação do homem com o seio telúrico, a sua morada originária, lembrando que o homem é húmus. Neste sentido, sob o vigor do elemento da água, há a evocação da realização concreta, ambígua e perecível do homem, o qual sempre é e está sendo no interior da dimensão inexorável do tempo, do fluxo incessante das coisas, como manifestação autêntica da dinâmica do seu próprio existir, da sua própria condição de ser- no-mundo. Sendo as metáforas criadoras de realidades, por excelência, as que se apresentam nos poemas da escritora paraense articulam uma nova relação do homem com a natureza, em que estes se encontram plenamente reconciliados, confundindo-se em suas próprias manifestações. Deste modo, a poesia de Olga Savary possibilita uma verdadeira imersão nas águas originárias do ser humano nas suas mais diversas possibilidades de realização. Entre metáforas e imagens, experiências e descobertas, o homem perfaz a sua travessia em comunhão com a sua própria natureza: cíclica, contraditória e contingente.

REFERÊNCIAS:

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SAVARY, Olga. Linha-d’Água. São Paulo: Massao Ohno/Hipocampo, 1987. ______. Repertório selvagem: obra reunida – 12 livros de poesia (1947-1998). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional/Multimais/Universidade de Mogi das Cruzes, 1998. SOARES, Angélica. A paixão emancipatória: vozes femininas da liberação do erotismo na poesia brasileira. Rio de Janeiro: Difel, 1999. TOLEDO, Marleine Paula Marcondes e Ferreira de. Olga Savary: erotismo e paixão. Colaboradores Heliane Aparecida Monti Mathias e Márcio José Pereira de Camargo. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2009.

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ALUÍSIO AZEVEDO: O TRABALHO LITERÁRIO- FOLHETINESCO COMO ESTRATÉGIA DE SOBREVIVÊNCIA E POLÍTICA ILUSTRADA

Profa. Dra. Angela Maria Rubel Fanini66

Prof. Dr. João Hernesto Weber (Orientador) 67

Resumo: Nesta comunicação apresenta-se o resultado de pesquisa junto aos romances- folhetinescos de Aluísio Azevedo (Condessa Vésper, Girândola de Amores, Filomena Borges, Mattos, Malta, Mata, A mortalha de Alzira e Livro de uma sogra), concluindo que a publicação dessas obras obedecia a, basicamente, dois propósitos. O escritor, por não ser funcionário público, precisava sobreviver materialmente de sua produção literária e, então, escrevia romances ―industriais‖, publicados em jornais da Corte, que agradavam ao público e assim podia se manter no Rio de Janeiro. Entretanto, afora essa direção material, essas publicações, em vários periódicos, também visavam a educar um público leitor pouco afeito a romances de análise cuja linguagem se vinculasse a um ideário real-naturalista. Essa dupla orientação das obras em tela é, inclusive, informada pelo próprio escritor em prefácio a um dos romances mencionados, ou seja, o literato tinha consciência de que sua linguagem, nas obras mencionadas, era de caráter híbrido entre o real-naturalista e o folhetinesco. O veículo impresso dava-lhe notoriedade visto que primeiramente os romances se publicavam em forma de folhetim e, posteriormente em forma de livro, funcionando como uma maneira de comprovar sua aceitação. A crítica, majoritariamente, desvaloriza esses romances, considerando-os subliteratura. Entretanto, a leitura apurado dos mesmos, levou-nos a perceber que neles há a concretização de um projeto ilustrado- pedagógico do escritor que objetivava inserir passagens de romance de análise dentro dos romances-folhetins a fim de ilustrar o leitor aos poucos devido ao fraco contexto de leitura da época.

Palavras-chave: Romance-folhetim brasileiro; Trabalho do escritor; Aluisio Azevedo.

66Professora Dra. da Universidade Tecnológicca Federal do Paraná (UTFPR). Apoio Fundação Araucária- Paraná. E-mail: [email protected] 67 Professor Dr. do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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Abstract: This paper is a rereading of the serialized sensation novels Condessa Vésper (1882), Girândola de amores (1882), Filomena Borges (1884), Malta, Mattos ou Mata? (1885), A mortalha de Alzira (1894) and Livro de uma sogra (1895), written by Aluísio Azevedo, a 19th century writer regarded as the forerunner of realist-naturalist narrative in Brazil. These novels have been classified as sub-literature by Brazilian literary historians. A closer reading of these works, under a theoretical perspective that articulates literary form and socio-historical reality, revealed that the hybrid literary discourse does not indicate lack of consistency on the writer’s part, but rather, formalizes the real contradiction lived by the Brazilian society in the 19th century, caught between slavery and liberalism, the latter linked to a conservative renewal project – and thus attached to the realist-naturalist discourse – and the former, linked to an outdated conservative project, and therefore attached to the universe of romantic values. It can also be seen that Aluísio Azevedo’s hybrid language was used to materialize the writer’s illuminist-bourgeois project that consisted in educating the reading public, prompting them to realize the immaturity, weakness and deception of the romantic language, by gradually feeding them realist-naturalist literature in serialized sensation novels. Theses novels also support a material demand because literature was a mean of living for Aluisio. He abandons literature when he reaches a public work.

Key words: Brazilian serialized sensation novels; The work of the writer; Aluisio Azevedo.

Neste estudo, investigamos, majoritariamente, os romances de Aluísio Azevedo considerados, por boa parte da crítica literária canônica,68 como romances subliterários69 no conjunto da produção artística do escritor. A cronologia dessa produção romanesca de Aluísio abarca as seguintes obras: Uma lágrima de mulher (1880); Memórias de um condenado, renomeado A Condessa Vésper (1882); Mistérios da Tijuca, renomeado Girândola de amores (1882); Filomena Borges (1884); Mattos, Malta ou Matta? (1885); A mortalha de Alzira (1894); Livro de uma sogra (1895). A fortuna crítica da obra de Aluísio Azevedo tem se ocupado, especialmente, do conjunto de romances considerados literários e relevantes (O mulato, Casa de pensão, O cortiço) para a história da Literatura Brasileira. Estudos sobre a produção considerada folhetinesca são, no entanto, escassos. Acreditamos que esses romances, que se acham fora do cânone, têm interesse cultural visto que se constituíram em formas vivas de comunicação social na sociedade oitocentista, pois foram publicados em jornais de renome (O Paiz;; A Gazetinha; Folha Nova; Gazeta de Notícias; A Semana), sendo lidos por uma quantidade considerável de leitores. Constituíram-se quase como um fenômeno de literatura de massa e esse fato é relevante para quem estuda a produção literária como um processo cultural interligado às outras esferas sociais. O apreço por um determinado discurso literário revela o valor social, político e histórico desse discurso atribuído pela comunidade que o lê. Esse discurso

68 Antonio Candido, Alfredo Bosi, Lúcia Miguel-Pereira, Nelson Werneck Sodré, Afrânio Coutinho, Massaud Moisés. 69 Além desse termo que desqualifica a obra já desvalorizada quando considerada menor, outros epítetos são usados para depreciar essa produção, tais como: de ―caráter industrial,‖ ―mercadológica,‖ ―literatura de massa,‖ ―folhetinesca‖ etc. 159 literário produzido, apreciado, lido, criticado, polemizado, pode revelar as imbricações entre literatura e sociedade. O discurso literário tanto refere o mundo real quanto nele intervém, sendo, portanto, um registro valioso para se compreender uma dada época histórica e suas relações com a literatura. Sabemos que o jornal no século XIX era importante veículo de comunicação e muitos escritores ali publicavam seus romances e suas opiniões no espaço destinado para tanto, ou seja, o espaço do folhetim. Os escritores adquiriam popularidade e visibilidade a partir de sua aparição nos jornais. Muitos dos romances saíam primeiro no jornal e depois em forma de livro. Aluísio Azevedo foi bastante consciente das condições de produção e de leitura de sua época e isso incluía uma visão bem nítida de seu público leitor. O escritor sabia para quem estava escrevendo e os romances-folhetins70 não eram dirigidos para a crítica literária e sim para o público leigo que via na literatura um meio de entretenimento e talvez também de acesso a algum conhecimento. Ler os romances-folhetins estrangeiros ou nacionais era, na época, parte da cultura letrada da sociedade alfabetizada oitocentista, não somente no Brasil como em França e Inglaterra de onde advinham boa parte dos romances importados. Um sem número de situações narrativas no romance do século XIX brasileiro faz menção a esse tipo de leitura entre os personagens, atestando um fato social, quer seja, a leitura de folhetins. O público exigia obras românticas e a crítica exigia romances realistas. A solução encontrada por Aluísio foi a elaboração de um discurso ―híbrido‖71 entre as duas estéticas.

70 Os romances aqui estudados foram publicados em forma de folhetim em rodapés de jornais brasileiros e revistas ilustradas (A Gazetinha; Folha Nova; Gazeta de Notícias; A Semana; O Paiz;). A definição romance-folhetim, no entanto, comporta outros aspectos além do fato de se vincular à publicação em periódicos. Essa adjetivação também comporta uma definição ideológico-estilística. O vocábulo folhetim, designando um tipo de romance, tem estado culturalmente marcado a partir, sobretudo, de valores negativos. Boa parte dos estudos em teoria literária definem a narrativa folhetinesca em contraposição à literatura ―de qualidade‖. O romance folhetim é apreendido como artefato literário simples, apresentando uma estrutura discursivo-ideológica que se repete em qualquer obra denominada de folhetim. Os componentes reiterados, majoritariamente, são: o enredo é movimentado e inflacionado por inúmeras peripécias; as personagens são elaboradas de modo maniqueísta; a realidade social é simplificada e não é capturada em suas contradições; a mensagem é conservadora, atendendo a um projeto ideológico da classe dominante; a linguagem é menos sofisticada; a condição cronotópica não provoca modificação de ordem biológica; social, psicológica nas personagens. Porém, muitos desses aspectos se encontram em um sem número de romances e teríamos uma exemplificação muito vasta tanto no tempo como no espaço. 71 Aluísio Azevedo, em prefácio à obra Mistérios da Tijuca, foi o primeiro a definir a sua estética como híbrida entre o romantismo e o real-naturalismo. Esse prefácio será objeto de estudo mais adiante. Eugênio Gomes afirma que há desconhecimento por parte da crítica sobre esse prefácio: ―Por via de regra, a crítica não comentava os romances enquanto estes eram publicados em forma de folhetins, de modo que essa passagem [o prefácio] reveladora, suprimida de O mistério da Tijuca, ao sair com outro nome em livro, parece ter passado despercebida completamente a todos os que se ocuparam dessa ficção. Quando, mais tarde, alguns críticos passaram a estranhar a dosagem de romantismo que Aluizio Azevedo aplicara em suas criações, modeladas pela ciência experimental, através do documento humano, conforme as regras de Zola, não faziam mais do que escancarar a 160

Isso desagradava a crítica, pois os romances considerados subliterários, além de incorporarem os novos paradigmas discursivos (realismo/naturalismo), apresentavam, também, uma linguagem menos determinada pelos ―preceitos do bem escrever,‖ não seguindo um certo ordenamento e protocolo impostos ao discurso literário, incorporando toda sorte de expedientes literários rocambolescos, folhetinescos e fantasiosos que se afastam do ideário racional-burguês da narrativa real-naturalista.No entanto eram lidos e considerados pelo público. Já que não se dirigia para uma audiência social oficial (a crítica canônica), o escritor se permitia trabalhar com uma linguagem mais plural, mais multifacetada, não atada à camisa de força da estética real-naturalista. Essa simbolizava, naquele momento, o centro, a força centrípeta que tentava uniformizar e homogeneizar o discurso literário; em contraposição, os romances-folhetins eram marginais, gravitando fora do centro oficial da crítica, constituindo-se em forças centrífugas para o universo romanesco. A divisão qualitativa da obra de Aluísio Azevedo entre dois conjuntos de romances diferenciados não impedia, no entanto, que o público leitor transitasse de um conjunto a outro visto que tanto os romances considerados literatura menor quanto os romances autorizados pela crítica eram publicados em rodapés de jornais e em revistas e a eles o público tinha acesso indiscriminadamente. Prova disso é que os críticos liam os romances- folhetins, nem que fosse para desqualificá-los. Embora houvesse esse trânsito livre de leitura, a divisão da obra aluisiana pela crítica já se inicia no tempo do escritor, uma vez que a crítica contemporânea ao escritor passa a estabelecer uma tipologia classificatória, excluindo do cânone certas obras. Essa divisão se intensifica quando as historiografias da literatura brasileira posteriores operam uma desqualificação dos romances-folhetins, ora silenciando sobre a existência dessas obras, ora depreciando-as, recuperando certo discurso crítico oitocentista que desvaloriza esses romances. Esse espaço democrático dos periódicos em que não havia discriminação que categorizasse os romances hierarquicamente por valores estéticos diferenciados fazia com que o leitor dos romances de rodapé se deparasse com discursos romanescos díspares e talvez em menor ou maior grau, dependendo de seu cabedal cultural, percebesse a diversidade de estilos. A simultaneidade dessa publicação diferenciada propiciava um confronto lingüístico de onde surge uma visão dialógica da produção de Aluísio Azevedo. porta que o romancista deixara voluntariamente aberta. Fora ele, na verdade, o primeiro a denunciar o hibridismo de sua estética de transição. Que não tinha a esperança de evitar esse hibridismo é coisa que igualmente deixara fora de dúvida, pois confiava a quem viesse depois o exercício da arte naturalista.‖ (O hibridismo estético de Aluísio Azevedo, Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 4 out. 1954) 161

Já não se lerá a sério o romance O homem, que é o mais ortodoxo no sentido de seguir as teses deterministas, do final do século XIX, pois essas são parcialmente desacreditadas no romance A mortalha de Alzira, por exemplo, e carnavalizadas em Livro de uma sogra. A problemática da histeria feminina em O homem é tratada a partir das lentes cientificistas da época. O discurso literário aí abriga o científico para se legitimar. Já em A mortalha de Alzira, o histerismo feminino é dado em uma chave fantasiosa e fora dos padrões da lógica. Em Livro de uma sogra, o romance de tese é carnavalizado. O confronto ocorre também entre a leitura de Casa de pensão e Filomena Borges, ambas publicadas no mesmo ano, 1882, esta uma forma arquitetônica cômica, aquela uma obra em que predomina uma arquitetura dramática e séria. Em Filomena Borges, inclusive, há a satirização da linguagem e do ideário românticos. A heroína é vítima de um bovarismo que aprendeu nos livros românticos. A visão do conjunto da produção literária de Aluísio Azevedo mostra inclusive que o escritor tinha consciência das limitações da estética realista e isso nos é revelado se lermos a produção considerada menor, por exemplo, Mattos, Malta ou Matta?. Nessa obra, encontramos um outro escritor, pois elabora uma linguagem mais plural onde se questiona de modo bem jocoso, simpático e divertido a relação de desajuste entre as palavras e as coisas. Condessa Vésper ou Memórias de um condenado explicita os perigos da visão romântica de mundo e de como essa interfere na tomada de decisão desatrosa para os personagens. Em Girândola de Amores o Romantismo també é fruto de crítica. Entretanto o que ocorre nesses romances é que se instituem por uma linguagem híbrida que abrigam toda sorte de expediente folhetinesco e também um outro discurso que critica tais expedientes. É a linguagem do folhetim sendo agenciada e ao mesmo tempo criticada. A linguagem dessas obras, em matizes diferentes é bivocal, pois nela concorrem duas vertentes discursivas, ou seja, vale-se da narrativa folhetinesca e rocambolesca e simultaneamente critica essa narrativa. Ora pende para o rocambolesco, ora para o sério. A historiografia acadêmica mais lida nos cursos de Letras, negando validade estética a esses romances, fez com que se estabelecesse uma cisão entre a obra considerada literária e artística e a obra denominada subliterária, folhetinesca e mercadológica. Essa cisão fundamenta-se em uma concepção de linguagem literária homogênea, discriminando parte da obra de Aluísio Azevedo em que a linguagem se institui de modo mais plural no sentido de abrigar registros de linguagem bastante díspares (o humor, a paródia, a carnavalização, a hibridização) em comparação à linguagem dos romances considerados literários. Observamos que a obra do escritor é desigual, afastando-se de uma totalidade homogênea, mas percebemos que se constitui como uma totalidade heterogênea no sentido de que entre 162 as obras singulares, incluindo os dois conjuntos, estabelece-se um diálogo e um confronto. Dessa interação pudemos detectar um sentido literário, político e pedagógico que permeia a obra em sua totalidade. Aluísio Azevedo, por diversas vezes, explicitou um conteúdo programático para a sua produção literária que consistia tanto em fazer literatura empenhada (CANDIDO, 1981) em dizer e construir a nação quanto em informar e ilustrar o leitor via literatura, inclusive pela via dos romances-folhetinescos. Embora não parcelamos a obra de Aluísio Azevedo, analisando-a em sua totalidade, não negamos a divisão que há na obra de Aluísio Azevedo, inclusive explicitada por ele mesmo em vários prefácios das obras consideradas subliterárias. Percebemos que Aluísio Azevedo não é ingênuo em relação à linguagem, tomando-a como um simples código que se bem manejado pode apresentar a realidade tal qual ela é. A linguagem é ininterruptamente problematizada, quer nos romances-folhetins, quer em prefácios introdutórios que destacam a necessidade de se deixar para trás o código romântico, quer, ainda, pela vontade de o autor elaborar uma linguagem real-naturalista que capte a realidade de modo mais fidedigno ou, ainda, quando o escritor ultrapassa tanto um código quanto o outro, carnavalizando-os, desprendendo-se do monologismo. A produção ―subliterária‖ revela um prisma marcadamente metalinguístico, o que não ocorre na produção valorizada pela crítica acadêmica. É nesse sentido que lemos a obra literária de Aluísio Azevedo, ou seja, como um conjunto de romances diferentes entre si, mas que apresentam um certo fio condutor que se institui primeiramente pela problematização da linguagem e posteriormente pela tentativa de estabelecer uma linguagem transparente e de nomenclatura do real. É como se os romances-folhetins servissem de crítica da linguagem e preparassem a vinda dos romances literários em que a linguagem documental deveria se constituir no último estágio de um projeto literário-político exitoso e atingido plenamente. Aluísio Azevedo viveu e escreveu, nas últimas décadas do século XIX, em um tempo histórico em que as contradições sociais, políticas e econômicas se acirravam. O embate entre paradigmas diferentes estava posto e a obra de Aluísio Azevedo registra uma luta discursiva entre o romantismo e o real-naturalismo. Essa tensão entre paradigmas diferentes é registrada, especialmente, a partir de uma linguagem ―híbrida‖ presente nos romances folhetinescos, como já mencionado. Essas décadas são objeto de vários estudos históricos em que aparecem como momentos importantes para a história nacional no sentido de que provocam mudanças de paradigmas. As mudanças que aconteceram nesse período não romperam totalmente com o passado e é nesse sentido que pudemos entender o ―hibridismo‖ da produção aluisiana, 163 refletindo simultaneamente o passado que persiste e o novo que se impõe. O passado regido pela economia escravista agro-exportadora dos senhores de terras, vinculado a uma dimensão romântica idealizadora e conservadora, e o presente, atrelado à economia liberal, ao modelo norte-americano de democracia e associado ao cientificismo e ao real- naturalismo. São duas perspectivas diferentes para a nação e requerem linguagens diversas. Nesse sentido, percebemos que a linguagem ―híbrida‖ de Aluísio Azevedo se vincula diretamente à realidade social das duas últimas décadas em que a contradição entre o escravismo e o liberalismo é estrutural da sociedade brasileira. Enquanto os valores conservadores, monológicos, unilaterais e homogeneizantes de um romantismo idealizador ainda perduram, o discurso real-naturalista, embora se dirija para o futuro, prometendo o progresso, também não deixa de se vincular a um projeto conservador e autoritário. Desse modo, tanto o romantismo como o real-naturalismo, ambos homogeneizantes e monologizantes, podem conviver no interior do mesmo enunciado romanesco, embora um aponte para o passado e outro para o futuro. A obra aluisiana formaliza essa realidade contraditória entre o conservadorismo e a modernidade, ora vinculando-se a um passado não totalmente inativo, preservando-o e fortalecendo-o, ora objetivando mudar essa realidade, instaurando o discurso real-naturalista, apegado a um projeto de nação modernizante e conservador. Esse ir e vir da obra considerada menor entre um paradigma e outro, constituindo-se como um discurso ―híbrido‖, em algumas obras consideradas subliterárias, é rompido por uma visão carnavalizada que se afasta da imposição de um centro discursivo monológico. Aluísio Azevedo foi um dos primeiros a atentar para a linguagem híbrida de sua obra, pois elaborava seu texto consciente de dirigi-lo a duas audiências distintas: o gosto popular dos leitores e o gosto da crítica. Aluísio Avezedo, quando da estréia do folhetim Mistério da Tijuca, entremeou a publicação com uma análise crítica sobre o hibridismo discursivo de sua produção, texto já citado anteriormente neste ensaio. O escritor expõe a sua arte poética, enfatizando que o intuito da publicação dos folhetins é nobre, pois visa a familiarizar o leitor para a literatura naturalista. O escritor se desculpa antecipadamente da escritura dos folhetins, mas passa a enobrecê-los. Temos aí um jogo do ficcionista, pois há duas audiências para a sua fala: endereça à crítica e aos leitores ávidos por romances- folhetins. Para aquela se desculpa da escritura de literatura de massa, mas passa a enobrecer essa produção à medida que enfatiza o caráter híbrido da obra cujo intuito é oferecer boa literatura, em doses homeopáticas, para o leitor. Aí temos o caráter pedagógico do projeto. Os folhetins então se salvam, pois não visam apenas à literatura comercial e de diversão 164 fácil. Há todo um projeto pedagógico que orienta essa produção. Já para os leitores, essa explicação funciona como um alívio da má consciência, pois o autor lhes assegura que estão lendo folhetins e também se instruindo, reforçando o princípio horaciano da arte, em que educar e divertir são faces da mesma moeda. Há ainda outra faceta dessa explicação de Aluísio Azevedo, pois o leitor, acostumado a folhetins meramente de episódios aventurescos, é avisado antecipadamente de que o livro pode descontentá-lo, pois é uma adaptação do gênero. O caráter híbrido pode não satisfazê-lo, mas é já anunciado para o consumidor. Retomemos algumas passagens desse prefácio:

E já que avançamos tanto, diremos logo com franqueza que todo o nosso fim é encaminhar o leitor para o verdadeiro romance moderno. Mas isso – e o prestidigitador apresenta ostensivamente os derradeiros truques – já se deixa ver, sem que ele o sinta, sem que ele dê pela tramóia, porque ao contrário ficaremos com a isca intacta.(...) É preciso ir dando a coisa em pequenas doses, paulatinamente: um pouco de enredo de vez em quando; uma ou outra situação dramática de espaço a espaço, para engordar, mas sem nunca esquecer o verdadeiro ponto de partida – a observação e o respeito à verdade. Depois, as doses de romantismo irão diminuindo gradualmente, enquanto que as do naturalismo se irão desenvolvendo; até que um belo dia, sem que o leitor o sinta, esteja completamente habituado ao romance de pura observação e estudo de caracteres. (...) No Brasil, quem se propuser a escrever romances consecutivos, tem fatalmente de lutar com grande obstáculo - é a disparidade que há entre a massa de leitores e o pequeno grupo de críticos. Os leitores estão em 1820, em pleno romantismo, querem o belo enredo, a ação, o movimento; os críticos porém acompanham a evolução do romance moderno em França e exigem que o romancista siga as pegadas de Zola e Daudet. (...) Por conseguinte, entendemos que, em semelhantes contingências o melhor partido a seguir era conciliar as duas escolas, de modo a agradar ao mesmo tempo ao gosto do público a ao gosto dos críticos; até que se consiga por uma vez o que ainda há pouco dissemos - impor o romance naturalista. Mas, enquanto não chegarmos a esse belo posto, vamos limpando o caminho com nossas produções híbridas, para que os mais felizes, que porventura venham depois, já o encontrem desobstruído e franco. (AZEVEDO, Introdução, Girandola de Amores, s/d)

O romance publicado em forma de folhetim em jornais diários ou semanais, no entanto, apresenta algumas características formais. O meio jornalístico imprimia certa padronização aos romances que se publicavam em forma de folhetins. O período da publicação 165

(diariamente); o objetivo da publicação (aumentar a vendagem do jornal, majoritariamente) e a audiência a que se destinam os folhetins interferiam na estruturação discursiva da narrativa. Essa interferência ocorre em vários níveis, pois a linguagem do folhetim tende a ser menos sofisticada, visto que é influenciada pela linguagem jornalística e pelo público menos letrado e erudito. A publicação diária em um mesmo espaço da página interfere na montagem da fábula visto que esta é picotada, dada em capítulos mais ou menos com a mesma extensão. Os folhetins deveriam ser atraentes e cativar o público para manter ou aumentar a vendagem dos jornais. Nesse sentido precisam se estender no tempo, prendendo a atenção da audiência. Isso se mantém, sobretudo, a partir do uso do suspense e da repetição de situações estereotipadas que mantêm o interesse do leitor e promovem a identificação. Outro fator explicativo da publicação de romances que agradassem o público, com certeza, vincula-se à questão material e de sobrevivência. Aluísio Azevedo não detinha um emprego público como a maioria de seus contemporâneos também escritores. Desse modo, tinha que viver da literatura e isso era bastante difícil no Brasil, país que tinha quase 90% de anlfabetos no final do século XIX. Daí que a escritura de romances-folhetins consecutivos também servisse para a sua subsistência. A vida frugal que levava com a venda dos livros é atestada por Coelho Neto na obra A conquista em que as agruras e penúrias por que passava Aluísio e outros escritores é relatada. A dependencia material exclusivamente da pena literária era sofrível para eles. Esse lado comercial da publicação aluisiana é também comentado por vários críticos. Exemplifica-se a seguir:

(...) Aluísio Azevedo elabora os seus romances em pouco mais de um decênio, e elabora-os sobre a pressão da necessidade, passando do folhetim romântico mais vadio aos livros em que capricha na feitura e em que se realiza. Confessa, em documentos íntimos, o drama de subsistência que o força a compor Mistérios da Tijuca, quando desejaria escrever os grandes romances do tipo de O cortiço, mas, quando encontra solução prática para o problema, abandona a pena e, vivendo no estrangeiro, nem faz folhetins e nem escreve literatura autêntica. Aluísio é um exemplo, no naturalismo brasileiro, do escritor que trabalha constrangido pela fórmula e que vacila entre o desregramento romântico, a que se submete demasiado facilmente, embora lamentando o fato, e o espartilho naturalista, que o deixa peado, a que obedece a contragosto. Não poderia haver contenção absoluta na obediência, daí a mistura de elementos românticos, quando a vigilância afrouxa, e de elementos simpáticos ao autor, quando os costumes aparecem e ele os faz desfilar. (SODRÉ, 1982. p. 390)

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Assim, interrompida em plena maturidade, entremeada de romances fabricados tendo em vista apenas o lucro, a obra de Aluísio Azevedo não realizou inteiramente a vocação de seu autor. Em dezesseis anos de atividade literária produziu doze romances, dez peças de teatro, que variaram do drama à revista, um volume de contos, sem falar nas colaborações na imprensa. De tudo isso só ficaram O Cortiço, O Mulato e Casa de Pensão, sendo que destes apenas o primeiro é realmente um grande livro. Os outros, mesmo aqueles que fez caprichadamente como O Homem, O Coruja, Filomena Borges e O livro de uma sogra, são hoje, a bem dizer, ilegíveis. Mas O Cortiço basta para lhe assegurar a posição de primeiro plano na nossa literatura.( MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 142) (Grifos nossos)

Alfredo Bosi também vai de certo modo reforçar essa tradição crítica que divide a obra de Aluísio Azevedo entre os folhetins mercadológicos e a obra séria. Desta elege O cortiço como a melhor produção. Nas palavras de Alfredo Bosi:

Em Aluísio Azevedo a influência de Zola e Eça é palpável; e, quando não se sente, é mau sinal: o romancista virou produtor de folhetins. Aliás, trata-se de um caso raro e precoce de profissionalização literária: Aluísio Azevedo - disse Valentim Magalhães - é no Brasil talvez o único escritor que ganha o pão exclusivamente à custa de sua pena, mas note-se que apenas ganha o pão: as letras no Brasil ainda não dão para a manteiga. Essa luta com a pena pelo pão certamente explica o desnível entre seus romances sérios (O Mulato, Casa de Pensão, O Cortiço) e os pastelões melodramáticos de „pura inspiração industrial”, no dizer de José Veríssimo (Condessa Vésper, Girândola de Amores, a Mortalha de Alzira...). E talvez à mesma causa se possa atribuir o estranho abandono das letras que se lhe nota a partir dos quarenta anos, quando entra para a carreira diplomática e se elege membro da Academia recém-fundada. ( BOSI, 1984. p.210) (Grifos nossos)

Percebe-se nessas passagens a crítica em relação ao lado comercial da produção aluisiana. Entretanto não concordamos com ela em sua totalidade uma vez que, ao analisarmos as obras de modo detalhado e monograficamente, vimos que há aí uma intenção pedagógica por parte do autor em fornecer ao público leitor uma narrativa mais simples para cativá-lo e depois lhe ofertar obras mais complexas, alfabetizando-o literariamente como já referido. Além disso, essas obras tem uma linguagem híbrida entre o romantismo e o real-naturalismo, espelhando uma realidade social em embate entre essas perspectivas culturais. Além disso, Aluísio está ciente de que o real- naturalismo é uma camisa de força e se embate contra ela. Em passagem na obra A Mortalha de Alzira, Aluísio endereça uma crítica feroz aos naturalistas. Parece que sente 167

alívio em redigir narrativas em que a ordem e a lógica se rompem. O próprio Aluísio Azevedo, em prefácio à obra A mortalha de Alzira, sob o pseudônimo de Vítor Leal, critica severamente a narrativa real-naturalista cujo objetivo fizera parte de seu projeto ilustrado. Na citação a seguir, nesse prefácio, Vítor Leal mantém, inicialmente, um discurso educado e civilizado para o seu interlocutor: os naturalistas. Entretanto, no desenvolvimento de sua crítica ao ideal impassível dos naturalistas, passa a insultá-lo por intermédio de uma linguagem agressiva e extremamente satírica. O discurso real- naturalista é caricaturizado e desentronizado, sobretudo o seu caráter fatalista e pessimista:

O romance, quando digno desse nome deve desenrolar diante de nossos olhos sublimes quadros e edificantes exemplos de moral e honra, e não cenas banais e ridículas da vida de todo dia, da vida terra-a-terra que nenhum interesse pode despertar em quem quer que seja, como também nenhum ensinamento pode trazer àqueles que lêem com louvável fim de se instruir, formando e desenvolvendo conjuntamente seu caráter. O romance deve, ao mesmo tempo que deleitar o espírito, confortar o coração. Foi isso que o entenderam os bons mestres da primeira e melhor metade do século e é assim que eu igualmente o entendo. (...) Vamos, senhores naturalistas, façam uma grande bagagem de tudo quanto é brilhante, de tudo que é formoso e de tudo que é balsâmico! Carreguem com o Sol que é a cor, carreguem com as flores que são o perfume, carreguem com as aves que são a música; carreguem com a mulher que é o amor e a vida. Vamos! Dispam-lhe de toda a natureza! Rasguem-lhe os vestidos, furem-lhe os olhos. Arranquem-lhe os cabelos! Vamos, senhores naturalistas, apaguem as estrelas, mandem dar uma mão de piche sobre o azul do céu! Corram a pontapés as rosas e as borboletas! Vamos, levem tudo isso que é poesia e que não fique senão a podridão e o mal. Querem fazer da terra um lameiro vil, nauseabundo? Pois, então, que arranquem a alma e convertam-nos o coração, em máquina de julgar e não de sentir. (...) Se me acoimarem de visionário, direi que mais iludido é aquele que supõe alcançar glórias pervertendo o gosto do público com as repugnantes descrições de cenas escabrosas. (BROCA,1991.p.162)

Afora essas explicações, entendemos, baseados no contexto cultural oitocentista brasileiro, que a publicação de tais obras também atendia a um propósito material. A obra folhetinesca também responde a um propósito de sobrevivência material, fazendo com que Aluísio Azevedo seja um dos primeiros escritores a viver da pena, contribuindo para que se estabelecesse o mercado dos bens simbólicos na sociedade brasileira. Aluísio Azevedo tinha um acurado senso das condições de produção cultural de sua época, pois sabia para quem 168 escrevia. A sua produção tinha uma audiência bastante concreta e o seu discurso se formalizava em boa parte de acordo com o leitor, como pudemos averiguar pelos próprios depoimentos do autor. Consta que Aluísio Azevedo também foi um bom publicitário de sua obra, pois fazia, dentro dos limites dos meios promocionais de seu tempo, toda uma campanha publicitária anterior ao lançamento de seus livros. Havia, portanto, uma preocupação com a leitura e a venda dos livros que se efetivava em estratégias publicitárias. A questão da sobrevivência material de Aluísio via literatura vai cessar quando, finalmente o escritor consegue um cargo píublico que tanto almejara. A partir desse momento, passa a exercer a profissão de vice-consul e daí por diante nada mais publica em termos de discurso literário. Liberta-se das Letras e inclusive, atesta essa libertação como a melhor solução para a sua vida. A passagem seguinte comprova essa despedida e também contem precioso documento sobre a parca qualidade de nossa vida de leitores à medida que informa qua a existência material via produção literária é um suplício e um sacrifício no século XIX. Em confidência Coelho neto, queixa-se de ser escritor:

Dão-me as letras para viver mas eu é que sei como vivo! Digo-te apenas que no dia – que aliás não espero – em que conseguisse alguma coisa que me garantisse o teto e a mesa, deixava de mão pena, papel e tintas e tôdas essas burundangas, que só têm servido para me incompatibilizar com o clero, a nobreza e o povo. De letras eu estou até aqui. Os editôres enriquecem como os fazendeiros de outrora: à custa dos escravos. O Garnier, por exemplo, dizem-se que tem milhões e dá-me seiscentos mil réis chorados pela edição de um romance. O meu ideal é um emprego público, coisa aí como amanuense ou escriturário, com vencimentos certos. (MAGALHÃES JÚNIOR, 1957)

Finalizamos com uma última passagem em que se revela um escritor amargurado com as Letras que muito o ocuparam, mas pouco lhe deram. O excerto demonstra que Aluísio era bem consciente sobre o contexto cultural e literário do Brasil oitocentista. Às vésperas de embarcar para seu primeiro pôsto consultar, em Vigo, a 1º de janeiro de 1896, escreve, por exemplo, dêste modo, a Eduardo Ribeiro, seu companheiro de lutas jornalísticas no Maranhão: (...) o demônio desta vida de escrevinhador fêz-me da tinta preta e da folha branca os terríveis espectros do meu tormento; de sorte que – escrever – tem sido até hoje aqui no Rio a minha grilheta, muito pesada e pouco lucrativa, da qual livro pulsos e tornozelos sempre que posso‖. Da mesma data é este final de carta a outro amigo, Pedro Freire: Recomenda a teus filhos que evitem a carreira das letras no Brasil – é um aviso de amigo experimentado. (LIMA, 1960)

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REFERÊNCIAS AZEVEDO, Aluisio. A Condessa Vésper. São Paulo: Livraria Martins Editora, s/d. AZEVEDO, Aluisio.Girândola de amores. São Paulo: Livraria Martins Editora, s/d. AZEVEDO, Aluisio. Casa de pensão. 6. ed. São Paulo: Ática, 1991. AZEVEDO, Aluisio. Filomena Borges. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1977. AZEVEDO, Aluisio. Philomena Borges. São Paulo: Livraria Martins Editora, s/d. Introdução de Antonio Candido. AZEVEDO, Aluisio. A mortalha de Alzira. São Paulo: Livraria Martins Editora, s/d. AZEVEDO, Aluisio.O livro de uma sogra. 12. ed. São Paulo: Livraria Martins Editora/ Brasília: INL, 1973. AZEVEDO, Aluisio. Mattos, Malta ou Matta?. [ apresentação por Plínio Doyle; prefácio por Josué Montello; pósfácio por Alexandre Eulálio]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 3.ed. São Paulo: Cultrix, 1984. BOSI, Alfredo.. Araripe Júnior: Teoria, crítica e história literária. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Edusp, 1978. BROCA, Brito. Naturalistas, parnasianos e decadistas: vida literária do realismo ao pré- modernismo. Campinas: Editora da Unicamp, 1991. CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira (Movimentos decisivos). 6. ed. v.2. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1981. GOMES, Eugenio. O hibridismo estético de Aluizio Azevedo. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 4 set. 1954. LIMA, Herman. Alguns aspectos de Aluísio Azevedo. Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 21 fev. 1960. MAGALHÃES JUNIOR, R. O centenário de Aluizio Azevedo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 dez.1957, p.2., 3.º Caderno e 29 dez. 1957, p. 4, 3º Caderno. MAYA, Alcidez. A obra de Aluizio Azevedo. Suplemento Literário de A Manhã, Rio de Janeiro, v. 2, p.173-174., 5 abr. 1942. MENEZES, R. Aluísio Azevedo: uma vida de romance. 2.ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1984. MIGUEL-PEREIRA, Lucia. História da literatura brasileira: prosa de ficção (de 1870 a 1920). São Paulo: Itatiaia/Editora da Universidade de São Paulo, 1988. MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira: realismo. v.3. São Paulo: Cutrix/ Editora da USP, 1983. NETO, Coelho. A conquista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985. SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1977. SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. 8. ed. São Paulo: Difel, 1982. WEBER, João Hernesto. Caminhos do romance brasileiro: de A Moreninha a Os Guaianãs. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990. WEBER, João Hernesto. A nação e o paraíso: construção da nacionalidade na historiografia literária brasileira. Florianópolis: Ed. UFSC, 1997.

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LITERATURA, CIÊNCIA E TESTEMUNHO: NOTAS SOBRE A HIBRIDEZ DISCURSIVA D‟OS SERTÕES, DE EUCLIDES DA CUNHA, E DA OBRA EM PROSA DE RUY DUARTE DE CARVALHO

Profa. Dra. Anita M. R. Moraes72

Resumo: Nesta comunicação pretendo traçar paralelos entre Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, e aspectos da produção em prosa do escritor e antropólogo angolano Ruy Duarte de Carvalho. Pretendo lidar com passagens selecionadas de Como se o mundo não tivesse leste (1977), da trilogia Os filhos de Próspero (2000-2009) e de Vou lá visitar pastores (1999). Meu interesse será investigar o teor testemunhal da produção de ambos os autores, distantes no tempo por cerca de um século. Tomarei, assim, como elemento de comparação, o fato de ambos denunciarem crimes de máxima brutalidade: o extermínio de populações ―resistentes‖ ao chamado ―progresso da civilização‖. No caso angolano, dos povos nômades do sul de Angola, em particular os kuvale; no caso brasileiro, da população de Canudos. Euclides da Cunha e Ruy Duarte de Carvalho testemunharam eventos de extrema violência, e, para denunciá-los, desenvolveram um discurso híbrido, entrecruzando o literário e científico. Será, contudo, o modo como diferem na elaboração desta hibridez entre ciência e literatura que me interessará particularmente investigar.

Palavras-chave: civilização e barbárie; discurso ficcional e não-ficcional; ideologia do progresso; literaturas de língua portuguesa.

Abstract: In this paper I intend to draw parallels between Os sertões [Rebellion in the Backlands] (1902), by Euclides da Cunha, and aspects of the prose production of the Angolan writer and anthropologist, Ruy Duarte de Carvalho. I intend to deal with selected passages from Como se o mundo não tivesse leste [As if the World had no East] (1977), the trilogy Os filhos de Próspero [Prospero‘s Sons] of (2000-2009) and Vou lá visitar pastores [I'm Off to Visit Shepherds] (1999). My interest is to investigate the proportion of testimony in the production of both authors, separated in time by about a century. I will also take, as a point of comparison, the fact that both authors denounce crimes of the greatest brutality: the extermination of populations "resistant" to the so-called "progress of civilization". In the case of Angola, the nomadic peoples of southern Angola, in particular the Kuvale; in the Brazilian case, the Canudos population. Euclides da Cunha and Ruy Duarte de Carvalho witnessed events of extreme violence, and in order to denounce them, they developed a hybrid discourse, interweaving the literary and the scientific. It is, however, the manner in which they differ in the development of this hybrid between science and literature that I am particularly interested in investigating.

Keywords: civilization and barbarism; fictional and non-fictional discourse; ideology of progress; literatures in Portuguese.

72 Professora de Teoria da Literatura na Universidade Federal Fluminense (UFF) E-mail: [email protected] 171

1.

Em 2006 o escritor angolano Ruy Duarte de Carvalho publicou Desmedida: crônicas do Brasil, espécie de relato de viagem pelo Rio São Francisco. Trata-se de um livro curioso: à narrativa da viagem articula-se o relato de leituras feitas pelo autor, produzindo-se uma trama densa de discursos e representações sobre o sertão brasileiro. Dentre os textos referidos por Ruy Duarte de Carvalho, encontra-se Os sertões, de Euclides da Cunha. Destaco o seguinte comentário:

É assim que tudo me vem apoiar quando coloco Os sertões na tal categoria de ‗certos livros‘ a que desde sempre venho aludindo quando me detenho em modalidade de escrita. São livros desses, os tais certos livros. Convocam tudo, vários saberes e várias vias de apreensão e expressão, de que resulta um produto que responde simultaneamente à expectativa do entendimento e da emoção. Para além, portanto, das transdisciplinaridades. Um convocacionismo. Uma poligrafia, quer dizer, uma escrita que actua em vários terrenos, e mesmo diversos. Uma actuação da palavra não limitada por campos disciplinares nem por delimitações institucionais. (...) Em Os sertões, andei a ler, há um enorme lastro de erudição, há intuições poderosas, fantasia e razão crítica, poesia e ciência, uma dialética entre o descobrir e o encobrir, explicar e murmurar, elucidar e iludir, espaço dado ao incomensurável, ao desmedido, ao irracional, ao horroroso, ao esmagador, indizível, paradoxal. (...) E é também um grande livro, insisto, pela volta que Euclides leva, em Canudos. (CARVALHO, 2006; p.287-288).

A admiração pela obra de Euclides da Cunha revela uma espécie de identificação: trata-se de um tipo de livro que aposta em cruzamentos discursivos como os que o próprio autor angolano produz em sua escrita. Pretendo explorar aqui esta convergência de projetos, sugerindo que tanto Os sertões como a produção em prosa de Ruy Duarte de Carvalho (aqui não tratarei de sua poesia) cruzam fronteiras disciplinares e mesclam diferentes tipos de discurso para lidar com desafio semelhante: testemunhar eventos de violência perpetrados em nome do ―progresso da civilização‖. De certa maneira, para falar do que se passa no sertão brasileiro e no deserto do Namibe, é preciso ―convocar tudo‖. Já em ―As águas do Capembáua‖, conto que integra o volume Como se o mundo não tivesse leste, de 1977, estamos diante de um texto literário de forte teor testemunhal: a política colonial portuguesa afetando a organização social de pastores do sul de Angola, impedindo a transumância (prática de nomadismo própria de atividade pastoril em equilíbrio com o regime das secas e das chuvas do Namibe) e, com isso, produzindo precariedade e fome. 172

Ao estabelecer propriedades em território angolano, cercando-se terrenos para a criação de ovelhas caracul, os portugueses e seus parceiros sulafricanos transtornam o manejo do gado local, situação que se torna crítica em regime de seca. A descrição do fenômeno climático ecoa passagens da primeira parte d‘Os sertões. Nas palavras do narrador- personagem do conto:

A seca é um drama que ciclicamente se repete nas calcinadas vastidões desses dilatados suis. (...) Apartam-se os horizontes. Os montes ganham distância, mergulhados numa espessa e nebulosa atmosfera, ofuscante em si mesma, opressiva de brumas e poeiras. Dir-se-ia que o ar coalha em goma, poalha de cal, fumaça de enxofre. (...) O sol: uma luz crua, distante, ardendo indefinidamente no céu limpo, como se a sua regular jornada, o seu nascer e pôr-se, não dissesse respeito à terra e aos homens, um sol sozinho, metido em si mesmo, esquecido da companheira e dos filhos, vistos assim distantes como coisa alheia, silhuetas negras na crosta crestada de um chão que é seco e se transmuda em pó. (...) (CARVALHO, 2006; p. 29-30)

Tanto n‘Os sertões como no conto ―As águas do Capembáua‖, temos populações que desenvolveram estratégias de sobrevivência em meio adverso. Curiosamente, é de seca e manejo do gado que se trata nos dois casos. O narrador-personagem do conto angolano é técnico agrícola que vai trabalhar na propriedade dos brancos, participando, portanto, do programa colonial que deveria levar ―progresso‖ à região (trata-se, inclusive, de traço autobiográfico, já que o autor foi regente agrícola na juventude, tendo trabalhado com rebanhos de ovelhas em Angola e morado em Londres, como o narrador-personagem do conto); Euclides da Cunha é repórter do Estado de São Paulo, tendo publicado antes de ir a campo dois artigos em que argumentava ser Canudos ―A nossa Vendéia‖. O narrador- personagem de ―As águas do Capembáua‖ descobre, contudo, que as cercas da fazenda teriam afetado as populações pastoris de forma perversa, conduzindo-as à fome; Euclides da Cunha levará ―uma volta‖, como diz Ruy Duarte de Carvalho, ao testemunhar o contraste entre a coragem do sertanejo e a brutalidade dos soldados (lembremos da pavorosa prática da degola testemunhada por Euclides). Será somente aos poucos, e em decorrência de uma série de coincidências, que o narrador-personagem do conto de Ruy Duarte de Carvalho poderá conhecer os eventos que se sucederam na fazenda antes de sua chegada. O conto resvala para o policial, estratégia que será retomada pelo escritor na trilogia Os filhos de Próspero. Penso que o traço detetivesco das ficções deste escritor angolano está associado a uma meta específica: 173 representar o modo como os pastores, com o auxílio de seus adivinhos (os kimbandas), estabelecem relações entre eventos. No caso do conto em questão, os pastores investigam as causas para a seca. A seca, claro sinal de descontentamento dos antepassados segundo os kimbandas consultados, teria como causa a mudança da onganda (local sagrado) para a criação da tal fazenda dos brancos. Penso que o andamento policial permite interessante efeito: o leitor se engaja em atitude de desvendamento paulatino de causas secretas, semelhante ao que se passa com os pastores empenhados na prática da decifração. Estamos, certamente, no domínio da ficção. E se trata de recorrer à ficção para representar uma racionalidade ―outra‖, que entende o mundo como pleno de significados a serem desvendados. Como virá a sugerir o autor em Vou lá visitar pastores: ―Navegamos em pleno na glória do pensamento analógico, recurso patrimonial de artistas e pastores.‖ (CARVALHO, 1999; p. 353) O conto ―As águas do Capembáua‖ parece-me conter em gérmen a obra futura do autor – penso especialmente em Vou lá visitar pastores e na trilogia Os filhos de Próspero. Atravessa também essa produção posterior a denúncia de crimes cometidos contra os povos pastores que habitam território angolano: repetidos massacres, desde o século XIX, culminando na guerra de extermínio dos kuvale em 1940-1941, são referidos. Esta guerra é mencionada repetidamente. Vejamos uma passagem: A guerra dos Mucubais, para os Portugueses, terá sido o remate de um processo de eliminação de um obstáculo à sua plena soberania e a um arbítrio que remontava às primeiras questões e ações de razia e contra- razia, sensivelmente a meados do século passado [XIX], portanto. Para os Kuvale ela revelou-se uma razia final contra eles desencadeada, já que 95% do gado que detinham lhes foi extorquido, e sobretudo, talvez, uma rusga despropositadamente devastadora. Foi uma guerra que arrancou tudo, gado e gente, e por isso é referida como a guerra de Kakombola: kakombola é arrancar uma coisa, arrancar tudo, não deixar nada. Morreu muita pessoa. Aqueles que iam sendo agarrados eram depois conduzidos presos, aquele que estava cansado era morto, aquele que não andava depressa era morto também. Às mulheres, matavam só as que não queriam dormir com eles. (CARVALHO, 1999; p. 79)

Ao final dessa citação, em itálico, surge voz de testemunha do massacre, ouvida por Ruy Duarte de Carvalho. Minha sugestão é que, para lidar com este evento e, especialmente, para tratar da resistência kuvale, Ruy Duarte de Carvalho entrecruza modalidades discursivas, atravessando as fronteiras entre literatura e ciência. Destaco que na obra de Ruy Duarte de Carvalho ganha destaque a resistência kuvale: tanto em Vou lá visitar pastores como na trilogia Os filhos de Próspero, trata-se de testemunhar a resistência e a reconstrução da sociedade kuvale. O brutal massacre não foi 174 testemunhado diretamente pelo autor, que registra os relatos dos mais velhos e se empenha em pesquisa documental para produzir o seu próprio relato. O testemunho do autor, contudo, é da assombrosa capacidade de reorganização dessa sociedade pastoril: após a guerra de extermínio, os prisioneiros levados para as fazendas de São Tomé foram, aos poucos, regressando e recuperando seu rebanho. Surpreendentemente, o presente kuvale é resultado desse esforço bem sucedido de recuperação. Certamente, as pressões permanecem, não sendo possível prever a capacidade de resistência dessa sociedade diante de futuras investidas para exploração econômica de seu território. Certa caracterização negativa, estereotipada, vigente no cenário nacional angolano certamente aponta para resquícios da hostilidade que caracterizava a atitude colonial. As atribuições de atraso, primitivismo, imoralidade (roubo e abuso de bebida), seriam, segundo o autor, as mais recorrentes (CARVALHO, 1999; p. 298). O perigo apontado é, hoje como ontem, a expansão do modo de vida ocidental (e da economia capitalista, portanto), cuja ideologia permanece sendo a do ―progresso da civilização‖. Vejamos: O Mwatyipula é, nos tempos que correm, um homem próspero que para tal tem que atuar de acordo com a gramática que lhe garante precisamente essa prosperidade, seja ela aplicada à gestão dos recursos naturais, à dos bois à do seu lugar nas grelhas institucionais ou as relações com o impalpável. Uma prosperidade, aliás, que se processa à margem do progresso e das ideologias do crescimento que o pregam. Progresso e prosperidade não são sinônimos, e também a isso nós, observadores, somos chamados a estar atentos se queremos preservar alguma lucidez e não nos reconhecermos palermamente condicionados pela atitude etnocêntrica que a educação, a ideologia e a cultura tudo fizeram para nos inculcar. (CARVALHO, 1999; p. 298)

Dos livros de Ruy Duarte de Carvalho aqui referidos, Vou lá visitar pastores (1999) é o que mais se assemelha a Os sertões. Trata-se de um ensaio etnográfico da sociedade kuvale, ensaio que antecede a trilogia Os filhos de Próspero. Apesar de ter elementos que podem ser tidos como ficcionais (como o recurso a um interlocutor, Felipe), o empenho em situar o interlocutor/leitor no ―presente kuvale‖ mantém certa similaridade com o empenho de Euclides da Cunha: revelar ao Brasil o sertanejo. Como sabemos, o sertanejo fora vítima dos equívocos da ―ideologia do progresso‖. Este é justamente o crime testemunhado pelo autor: em nome da civilização, a regência da barbárie – o massacre da população de Canudos. Também Euclides da Cunha enfatiza a assombrosa capacidade de resistência do sertanejo, como sabemos. Penso, contudo, que as diferenças entre as obras são mais importantes: em Vou lá visitar pastores, as ideias de nação e de progresso são objeto de clara e contundente crítica; no caso d‘Os sertões, de engenhosa reformulação, mantendo-se vigorosas. 175

2. A interpretação de Luiz Costa Lima d‘Os sertões, desenvolvida em Terra Ignota, sugere uma tensão subjacente à escrita desta obra, tensão devedora de uma aposta absoluta na ciência por parte de Euclides da Cunha, aposta que produziria uma hierarquização interna dos tipos de discurso – científico e literário – em termos de tema e ornato, centro e margem, estando, o literário, relegado à condição de ornato/margem. Contudo, como argumenta o estudioso, a resistência do objeto à investida científica (a própria ―terra ignota‖ torna-se figura deste objeto resistente) por vezes conduz o texto a um funcionamento diverso, em que a hierarquia pretendida é subvertida. Nesses casos, produz- me um discurso outro, em que o literário passa a funcionar autonomamente, não se submetendo à condição ilustrativa (de ornato). Forma-se, então, o que Costa Lima chama de ―subcena‖. Miriam Gárate apresenta a proposição de Costa Lima da seguinte maneira: Segundo Costa Lima, Euclides da Cunha teria se esforçado em combinar a expressão científica com a expressão literária dispondo ambos os registros em diferentes lugares, de modo a configurar uma hierarquia específica no interior da obra. O exame pormenorizado dessa hierarquia leva o crítico a desenvolver uma série de oposições organizadas em duplas: tema-ornato, centro-margem ou borda e, em linhas gerias, a camada poética assume o lugar do ornamento, da margem, da borda, enquanto que o discurso científico é tema, centro, cena. (...) Mas haveria certas zonas do livro em que essa economia da escrita é extravasada, gerando o que o autor denomina de subcena – em outras palavras, gerando um ‗texto sem disposição discursiva‘, insubmisso à hierarquia mencionada e implicitamente questionador da mesma, espécie de ‗terceiro modo de expressão, não integrado nem ao descritivismo científico, nem à fantasia do literato‘ (Terra ignota, p. 172). (GÁRATE, 2001; p. 115-116)

Costa Lima entende que há imagens no texto euclidiano que extrapolam o objetivo da descrição, produzindo-se ―massas imagéticas‖ que passam a funcionar por conta própria. Sugiro que a resistência do objeto – o próprio massacre – pressiona o discurso euclidiano; ou seja: é seu teor testemunhal que reorganiza o discurso de maneira imprevista, produzindo-se esse regime de excessos que seria a ―subcena‖. Afinal, é o massacre que, pavoroso, se insinua: as plantas chamadas cabeças-de-frade anunciam e ecoam os corpos dos massacrados (CUNHA, 1979; p. 40)73; a terra em que a vida ainda se preparava

73 ―Aparecem, de modo inexplicável, sobre a pedra nua, dando, realmente, no tamanho, na conformidade, no modo por que se espalham, a imagem singular de cabeças decepadas e sanguinolentas jogadas por ali, a esmo, numa desordem trágica.‖ (CUNHA, 1979; p. 40) 176

(CUNHA, 1979; p. 23)74 assemelha-se à nova raça que surgia. Para Costa Lima, ―verificando-se o estágio quanto à vida em que se encontrava a própria terra, alarga-se imageticamente o caráter de denúncia. Destruiu-se o que, permanecendo isolado, em um estado de incubadeira, podia ser líquen e homem.‖ (COSTA LIMA, 1997; p. 172) A leitura costalimiana é arguta ao evidenciar um problema, que seria próprio da intelectualidade brasileira como um todo (devedora, segundo o autor, do gesto euclidiano): a esquivança da reflexão teórica, da discussão sobre os próprios pressupostos de que parte. Para Costa Lima, a tensão do texto euclidiano decorre da recusa a se colocar em questão a própria teoria científica de que o autor partia. Nas palavras de Luiz Costa Lima: A subcena era elemento de desvio que possibilitava ao autor não ser... mero copista. Mas é exatamente isso que sua concepção de ciência quer que ele seja. Acentue-se pois a tensão que atravessa Os sertões. Sua importância não está em recuperar Euclides para a literatura mas sim em mostrar um traço que ele próprio não consegue domar. Indomável, esse traço é extremamente minoritário. Pois devemos admitir: Euclides termina por soterrá-lo. Seria ele ao invés estimulado caso pudesse haver-se conectado às dúvidas e impasses plantados na cena textual. Mas, em vez de enfrentá-los, Euclides deles se desvia. (COSTA LIMA, 1997; p. 187)

Mantendo a ciência como discurso totalizante e absoluto, Euclides não se permite questionar as premissas evolucionistas e racialistas com que lidava, premissas que se mantêm operantes n‘Os sertões apesar de não permitirem a compreensão do massacre – pois que, se mantidos os pressupostos rácico-evolucionistas, o massacre surge como evento ―catalizador‖ de inevitável ―evolução‖ das sociedades humanas. Euclides, ao invés de colocar a teoria em questão, adapta-a: os mestiços sertanejos seriam retrógrados; os mestiços proteiformes do litoral, degenerados. A explicação rácico-evolucionista se mantém e o crime ganha alcance novo: o massacre dos sertanejos de Canudos foi o assassinato de uma nova raça que surgia, de uma sub-raça que formaria a nacionalidade brasileira, por parte de mestiços, estes sim, degenerados. Com esta engenhosa inversão dos polos (pois que, mesmo que retrógrado, o sertanejo, por ter se mantido isolado no interior, protegido de novas mestiçagens, seria já um tipo humano mais equilibrado que os mestiços litorâneos), a ciência se mantém ilesa; mas há consequências: Euclides da Cunha recorre ao mito, inventa um mito de origem (fracassada) da nacionalidade, que no âmbito da armação discursiva, faz do literário mais que ornato. Entendo que a tensão notada por Costa Lima no texto euclidiano não se apresenta na escrita de Ruy Duarte de Carvalho. Aproximadamente um século separa a produção de

74 ―Acredita-se que a região incipiente ainda está preparando-se para a vida: o líquen ainda ataca a pedra, fecundando a terra. E lutando tenazmente com o flagelar do clima, uma flora de resistência rara ali entretece a trama das raízes (...).‖ (CUNHA, 1979; p. 23) 177 cada um dos autores, século em que a teoria antropológica não apenas abandonou os pressupostos biológicos com que Euclides operava, como se tornou autorreflexiva. A autorreflexividade da antropologia, que se radicaliza a partir de Clifford Geertz – com A interpretação das culturas (1973) – e ganha formulação pós-moderna com James Clifford – de que se destaca Writing Culture: the Poetics and Politics of Ethnography (1986), certamente cria um ambiente propício para articulações não-hierárquicas entre literatura e ciência, em que a própria ciência se apresente como construto, tendo dimensão textual, espessura e limites. Não será construindo uma hierarquia entre os domínios discursivos que a escrita de Ruy Duarte de Carvalho articulará ciência e literatura, ao contrário. O literário não surge como ilustração do científico, mas como recurso para colocar a ciência em evidência: constroem- se personagens, tramas, que contextualizam o conhecimento científico, colocando em cena os agentes de construção deste conhecimento – que se faz, então, necessariamente parcial, marcado pela experiência de um sujeito individual, limitado. Além disso, via ficção exploram-se outras formas de pensamento, como o analógico (o mundo pleno de significados dos pastores ressurge, como vimos, no traço policial dos enredos de ―As águas do Capembáua‖ e dos romances que compõem a trilogia Os filhos de Próspero). Não me parece, nesse sentido, haver tensão na escrita de Ruy Duarte de Carvalho, mas sim trânsito e costuras entre os domínios discursivos, que permitem a revisão de suas próprias fronteiras. A leitura de Terra Ignota permite, assim, que se destaquem diferenças entre a escrita de Euclides da Cunha e a de Ruy Duarte de Carvalho. Podemos pensar que o que seria minoritário e recalcado n‘Os sertões, o pensamento especulativo, ganha espaço, esparrama- se, na obra de Ruy Duarte de Carvalho (em especial em As paisagens propícias e A terceira metade). No entanto, a pressão do inapreensível – o próprio massacre de Canudos – daquilo que não se podia apreender pelos regimes de verdade/discurso então vigentes, produzira a subcena. Penso que Ruy Duarte de Carvalho está atento para esse comportamento imprevisto do discurso euclidiano, notando-o em termos de excesso, de desmedida. Em sua própria escrita, é nele que aposta.

REFERÊNCIAS:

CARVALHO, Ruy Duarte de. Os papéis do inglês. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. (Primeiro volume da trilogia Os filhos de Próspero) ______. Vou lá visitar pastores. Lisboa: Cotovia, 1999. 178

______. Como se o mundo não tivesse Leste. Lisboa: Cotovia, 2003. ______. As paisagens propícias. Lisboa: Cotovia, 2005. (Segundo volume da trilogia Os filhos de Próspero) ______. Desmedida: crônicas do Brasil. Lisboa: Cotovia, 2006. ______. A terceira metade. Lisboa: Cotovia, 2009. (Terceiro volume da trilogia Os filhos de Próspero) CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998. ______. Writing culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1986. COSTA LIMA, Luiz. Terra Ignota. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Abril Cultural, 1979. GÁRATE, Miriam Viviana. Civilização e barbárie n’Os sertões. Campinas: Mercado de Letras/FAPESP, 2001. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro : LTC, 1989.

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SENHOR DA LUZ: A LIBERTAÇÃO DECORRENTE DO CONHECIMENTO

Antônio Adailton Silva75

Resumo: O objetivo do artigo é interpretar uma obra da banda inglesa Iron Maiden, Lord of light. A tradução literal de ―Lord of light‖ é ―Senhor da Luz‖. E ―Senhor da Luz‖ guarda o sentido atribuído a Lúcifer, cujo significado é ―portador da luz‖. Trata-se do discurso de um eu-lírico refletindo sobre as relações entre a humanidade e seus atos receosos ou destrutivos, devido a sua ignorância, permeada pela fé. Interpreta-se a luz como aquilo que possibilita conhecer, sendo extensão de refletir. Assim, a ignorância pode ser superada, e os homens podem buscar explicações não metafísicas para fenômenos diversos. Contudo, há instâncias que se esforçam para terem a primazia de dizer o que deve ou não ser estudado e conhecido pelos demais. Bastante metafórico, o texto dá indícios de que a criação de entes malignos sobrenaturais pode servir para justificar maldades, tradição típica da religião cristã. Transferir a própria culpa para tais seres, que dependem somente da fé, dá àqueles que cometem atos cruéis a tranquilidade de serem perdoados nos casos em que se arrependam. Lúcifer, na obra examinada, ao invés de ser entendido como um ente a ser evitado por ter se desviado do caminho, simboliza o guia humano capaz de lançar luzes sobre o mundo. Ele ilumina e permite ver o escondido, dando poder ao homem através do conhecimento, libertando-o da ignorância a que está submetido por não ousar contra aqueles que se dizem representantes de Deus na terra.

Palavras-chave: Lúcifer; Luz; Conhecimento.

Abstract: The objective of this paper is interpreting a work of the English band Iron Maiden, Lord of light. The literal translation of ―Lord of light‖ into Portuguese is ―Senhor da luz‖. ―Lord of light‖ keeps the meaning given to Lucifer, whose meaning is ―The light- bringer‖. It is the discourse of self-lyrical reflecting on the humanity relationships and his acts fearful or destructive, due to their ignorance, permeated by faith. The light is interpreted as something that enables to acquire knowledge, being a extension to reflect. Thus, the condition of ignorance can be overcome, and men can seek non metaphysical explanations for various phenomena. However, there are instances that effort to have the primacy to say what should or should not be studied and known by others. Quite metaphorical, the text hints that the creation of evil supernatural entities can serve to justify committed evil, typical tradition of the Christian religion. Transferring own fault for such beings, which depend only on the faith, gives those who commit cruel acts the tranquility of being forgiven when they repent. Lucifer, in the present work, rather than being understood as a being that should be avoided for strayed from the path, symbolizes the human guide able to shed light on the different objects in the world instead. He enlightens and enables anyone to see the hidden, empowering man through knowledge, freeing him of ignorance he is submitted due not to dare against the ones who call themselves God representatives on earth.

Keywords: Lucifer; Light; Knowledge.

1. Introdução

75 Mestre em Ensino de Língua e Literatura na Universidade Federal do Tocantins (UFT). E-mail: [email protected]. 180

No texto analisado, Lord of light, os autores empregaram a palavra ―luz‖ com os significados de conhecimento e de vida, dois elementos positivos. Para fazer a sua abordagem, contudo, introduziram a figura do diabo, vista como o que há de mais negativo dentro da cultura cristã. Ele é tomado na obra como sendo o fator determinante para o alcance do conhecimento e o usufruto de uma vida vivida com sabedoria. A figura central do poema é Lúcifer. Ele oferece ao seu enunciatário a verdade através de revelações. Ao se pronunciar, ele afirma a existência de um ―plano estranho‖. Tanto Lúcifer quanto a humanidade não seriam mais do que parte desse plano, objetos e não sujeitos. Buscando o sentido mais amplo da obra, infere-se aqui que parte da humanidade, por ter se rendido a esse plano, o que equivale a seguir intransigentemente os preceitos bíblicos, nega-se a ver tudo o que há fora do projeto original (Bíblia). E por isso não consegue viver a vida plenamente, com sabedoria, mesmo com o exemplo dado pelo próprio Lúcifer, que optou pela autonomia, ―afastou-se do caminho‖. A punição por sua ousadia é usada como exemplo ameaçador contra a humanidade. ―Causar medo‖, diz Muchembled (2001, p. 32), era ―uma obsessão diabólica em fins da Idade Média‖. Uma forma de desencorajar o abandono do ―plano‖. Possivelmente, a maior metáfora do poema é a importância de se libertar por meio da inquietude, da dúvida, da ousadia, do conhecimento, da razão, da sabedoria, para viver a vida mais plenamente. Dar a vida ao Senhor da luz, como sugere a letra da canção, pode ser uma metáfora que representa esta ideia de busca da própria liberdade. A análise do texto é interpretativa. O desenvolvimento do artigo é dividido em três partes principais. Inicia com uma discussão sobre a terminologia que envolve o ser considerado a fonte de todo mal, inimigo de Deus e tentador do homem. Coloca-se em questão a equivalência de sentidos entre os nomes Lúcifer e Satanás. Este é citado na Bíblia, aquele não. A sua equivalência de sentido, portanto, precisaria ser esclarecida para que o poema analisado pudesse ser interpretado a contento. A seguir é discutida a questão que se coloca entre medo e liberdade, tema recorrente no poema. No que diz respeito ao plano referido (―plano estranho‖), o homem deve cumpri-lo a contento, no sentido de se manter unido àquele que elaborou o projeto. Trata-se da noção de pecado e arrependimento, o que na obra recebe tratamento de transferência (―todos os nossos pecados atribuímos a você‖). Lúcifer, por ser considerado o inspirador de todo mal, é o ser a quem se atribuem os pecados humanos. A parte final da discussão é a interpretação do poema. Trata-se da interpretação de um objeto estético, da parte literária de uma canção. Apesar de seus autores terem 181 escolhido como metáfora a Bíblia e diversos de seus elementos, a letra da canção apenas chama a atenção para o fato de que o homem é o único responsável pelos problemas que ele próprio enfrenta. E que a alternativa mais viável para superar seus conflitos e dificuldades é assumir sua ignorância e libertar-se dela.

2. A questão da (in)equivalência entre Lúcifer e Satanás

Lúcifer é uma palavra que remete, inevitavelmente, à religião cristã, cujos preceitos estão contidos no livro denominado ―Bíblia Sagrada‖. Os seguidores dessa religião defendem a existência de um Deus único, criador do universo, eterno, onipotente e onipresente, chamado também de ―Pai‖, ―Senhor‖ ou simplesmente de ―Criador‖. O livro deixa evidente ainda a existência de uma entidade não pertencente ao mundo físico, mas capaz de influenciar o homem, criado por Deus à sua imagem. Tal entidade teria sofrido uma consequência conhecida como ―queda‖. Luther Link afirma ser controversa a sua causa: ―Mas quem é exatamente expulso? E por quê? Diferentes pessoas em diferentes épocas dão respostas diferentes‖ (LINK, 1998, p. 172). Seja por orgulho ou por tentativa de ―estabelecer seu próprio reino independente‖, no final foi ―expulso por seu superior enraivecido‖ (LINK, 1998, p. 175). Caiu juntamente com diversos outros anjos que partilhavam de suas ideias. Trata-se de Satanás, descrito na Bíblia como uma antítese de Deus, capaz de inspirar ações danosas, por meio de tentações. Ao fraquejar e cometer atos contra as leis de Deus, o homem comete o que se denomina de pecado. São célebres duas tentações relatadas na Bíblia. A de Jó, homem muito rico, íntegro, reto e temente a Deus. Vítima de uma espécie de aposta entre Deus e Satanás (Jó 1:12. ―Pois bem!, respondeu o Senhor. Tudo o que ele [Jó] tem está em teu poder; mas não estendas a tua mão contra a sua pessoa‖), ele resistiu às mais duras investidas, como a perda de suas terras e posses (Jó 1:14-17), doença grave (Jó 2:7 ―lepra maligna‖) e até mesmo a morte dos próprios filhos (Jó 1:18,19). A outra foi a de Jesus, filho de Deus. Conforme o Evangelho de Mateus (Mateus 3:1) e o de João (5:17 a 5:27), Jesus foi tentado por Satanás no episódio conhecido como ―Tentação de Cristo‖. O Evangelho de Mateus (Mateus 4:10) relata que Jesus respondeu ―para trás, Satanás, pois está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás‖ (BÍBLIA SAGRADA CATÓLICA, 2013, p. 915). 182

A palavra ―Lúcifer‖ não aparece em Bíblias traduzidas para línguas vernáculas. Satan, segundo Link (1998), é uma palavra hebraica e significa ―adversário‖; e nos Evangelhos de Lucas e Mateus, o diabo é chamado Diabolus, que foi traduzida para o Latim como Diabolos. Sua origem é grega e significa ―acusador‖, ―difamador‖ (LINK, 1998). E, segundo esse autor, ―Diabo‖ também é designado por dáimon em grego, ou demônio, e assim é referido em Apocalipse 12:9. Logo, apesar das diferentes circunstâncias em que tais denominações surgiram, tornaram-se equivalentes. Mas e quanto a Lúcifer? Se tal nome não consta no livro que contém toda a doutrina da religião cristã, tal associação, aparentemente, seria, no mínimo, absurda ou indevida. Tal fenômeno merece esclarecimento. ―Bíblia‖ é uma palavra de origem grega. ―A Europa Medieval‖, diz Burgess (1996, p. 52), ―conhecia a Bíblia em latim‖. A versão do seu texto em latim é a mais clássica, e teria sido fruto do trabalho de São Jerônimo (347 dC – 420 dC), tradutor dos textos originais, escritos em aramaico, grego e hebraico. Segundo Maria Esther Maciel (2001, p. 55), ―[...] o nome Lúcifer, usado para identificar o anjo satânico da luz, foi uma contribuição de São Jerônimo para o léxico religioso, aparecendo, pela primeira vez, nessa acepção, na Vulgata, como substitutivo da expressão grega ‗Phosphorus’, presente na Septuaginta‖. Durante muitos anos não houve Bíblia escrita em outra língua, sendo, por isso, acessível apenas aos que denominavam o seu código escrito, especialmente os membros da Igreja Católica. Houve muitas iniciativas para traduzir a Bíblia: a de John Wyclif, por volta de 1380; a revisão por John Purvey da tradução de Wyclif, por volta de 1395; a de William Tyndale, em 1525 (tradução do Velho Testamento do grego para o inglês) e em 1535 (tradução do Velho Testamento do hebraico para o inglês); a tradução autorizada pelo rei Jaime I (King James), da Inglaterra, por 47 eruditos por ele designados, de 1604 a 1611 (BURGESS, 1996); e Lutero, que traduziu o Novo Testamento para o alemão em 1521. Em 1532 faz o mesmo com o Velho Testamento (HENRY THOMAS, 1982). Link (1998, p. 28) também assegura que ―Lúcifer – como o nome do diabo – não está nas escrituras. Lúcifer, na verdade, não é nome de ninguém: significa apenas ‗o que leva a luz‘‖. O nome Lúcifer não é mais do que o resultado de um processo de derivação de palavras que, em Latim, são grafadas como ―lux‖ ou ―lucis‖, ambas relacionadas à luz. Em Isaías 14:12, há o seguinte registro: ―quomodo cecidisti de caelo lucifer qui mane oriebaris corruisti in terram qui vulnerabas gentes‖ (THE BIBLE LATIN VULGATE, 2013, grifos meus). Sua versão na Católica diz: ―Então! Caíste dos céus, astro 183 brilhante, filho da aurora! Então! Foste abatido por terra, tu que prostravas as nações!‖ (BÍBLIA SAGRADA CATÓLICA, 2013, p. 703, grifos meus). Entretanto, há um grave engano na interpretação como tentativa de atribuir o nome ―Lucifer‖, mencionado no Livro de Isaías, a Satanás. Naquele versículo a referência feita é ao rei da Babilônia, o que pode ser verificado em dois outros versículos do mesmo capítulo: ―3. Quando o Senhor te tiver aliviado de tuas penas, de teus tormentos e da dura servidão a que estiveste sujeito, 4. cantarás esta sátira contra o rei de Babilônia, e dirás: Como? Não existe mais o tirano! Acabou-se a tormenta!‖ (BÍBLIA SAGRADA CATÓLICA, 2013, p. 703, grifos meus). O nome Lúcifer, portanto, é o fruto de uma construção humana decorrente de uma tradução da Bíblia para o Latim vulgar. Seu significado mais próximo em português é ―o que leva a luz‖. Não há qualquer incidência sua na Bíblia traduzida para línguas vernáculas, e mesmo assim passou a ser equivalente de Satanás. Mais do que um simples nome, ganhou status de um personagem que, mesmo não sendo bíblico, passou a ocupar um lugar cada vez maior e mais significativo especialmente nas sociedades ocidentais, onde o cristianismo predomina como religião.

3. Tentação, pecado, culpa, medo, arrependimento e absolvição: transferência

Lúcifer é referido como o oponente de Deus. Ousou contra o seu criador, foi punido com a expulsão do paraíso celestial, e agora é visto como a origem de todo mal. Por essa ótica, o ser humano tende a ser bom. Quando comete algum mal, o faz por ter sido tentado e não ter resistido, uma vez que lhe cabe a opção de não aceitar as propostas de Satanás, a exemplo do que fez Jesus no deserto. Resta, contudo, ao homem, a opção do arrependimento, uma forma bastante conveniente e atraente de apagar da própria história os episódios de males cometidos por si e obter o perdão de Deus. Gregório de Matos (1992) abordou esse tema em um de seus poemas: AO MESMO ASSUMPTO E NA MESMA OCCASIÃO

Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado Da vossa piedade me despido, Porque quanto mais tenho delinqüido, Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto um pecado, A abrandar-vos sobeja um só gemido: Que a mesma culpa que vos há ofendido, 184

Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada Glória tal e prazer tão repentino Vos deu, como afirmais na Sacra História:

Eu sou, Senhor, ovelha desgarrada; Cobrai-me; e não queirais, Pastor Divino, Perder na vossa ovelha a vossa glória.

Irônico, o poema delata um comportamento hipócrita e oportunista de um eu-lírico que, conhecedor da Bíblia (―Sacra História‖) e do jogo de conveniência entre pecar e ser perdoado em caso de arrependimento, mostra que, do modo como são difundidas essas noções pela religião cristã, pode-se depreender que Deus (―Pastor Divino‖) apenas participa de um jogo no qual é controlado pelo homem (―vossa ovelha‖). Deus, nesse caso, é manipulado pelo homem, que pode acioná-lo através do arrependimento (―um só gemido‖), independentemente da natureza do pecado (ou crime) cometido. Pullella (2013), em matéria para o site Brasil 247, relatou o seguinte discurso do Papa Francesco, em 17 de março de 2013: "O Senhor nunca se cansa de perdoar, nunca! Nós é que nos cansamos de pedir perdão" e "Vamos pedir a graça de nunca cansar de pedir perdão, porque ele nunca se cansa de perdoar". Esse discurso corrobora a ideia de que Deus se empenha em perdoar, por mais que se peque, como disse o eu-lírico de Gregório de Matos. O poeta, de certa forma, não foi tão irônico. Eis o que a própria Bíblia relata, em Atos dos Apóstolos 3:17-19: 17. Agora, irmãos, sei que o fizestes por ignorância, como também os vossos chefes. 18. Deus, porém, assim cumpriu o que já antes anunciara pela boca de todos os profetas: que o seu Cristo devia padecer. 19. Arrependei-vos, portanto, e convertei-vos para serem apagados os vossos pecados (BÍBLIA SAGRADA CATÓLICA, 2013, p. 1023, grifos meus).

Matos apenas interpretou a Bíblia e poetizou tal interpretação: está à disposição do homem pecar, arrepender-se e alcançar o perdão divino. O poema torna-se profano ao atribuir a Deus enorme sentimento de prazer (―Glória e tal prazer‖) em perdoar grandes pecadores, dada a afirmação de que o empenho de Deus cresce na medida em que é maior a delinquência do pecador. Um gemido é suficiente para abrandar a ira do Senhor, denotando o caráter da submissão de Deus às regras que Ele mesmo criou. Há em Lucas 15:4-7 uma construção com sentido semelhante ao posto pelo poeta: 4. Quem de vós que, tendo cem ovelhas e perdendo uma delas, não deixa as noventa e nove no deserto e vai em busca da que se perdeu, até encontrá-la? 5. E depois de encontrá-la, a põe nos ombros, cheio de júbilo, 185

6. e, voltando para casa, reúne os amigos e vizinhos, dizendo-lhes: Regozijai-vos comigo, achei a minha ovelha que se havia perdido. 7. Digo-vos que assim haverá maior júbilo no céu por um só pecador que fizer penitência do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento (BÍBLIA SAGRADA CATÓLICA, 2013, p. 1166, grifos meus).

Célebre também é o episódio da Bíblia Sagrada Católica (2013, p. 919), em Mateus 8:28-32: 28. No outro lado do lago, na terra dos gadarenos, dois possessos de demônios saíram de um cemitério e vieram-lhe ao encontro. Eram tão furiosos que pessoa alguma ousava passar por ali. 29. Eis que se puseram a gritar: Que tens a ver conosco, Filho de Deus? Vieste aqui para nos atormentar antes do tempo? 30. Havia, não longe dali, uma grande manada de porcos que pastava. 31. Os demônios imploraram a Jesus: Se nos expulsas, envia-nos para aquela manada de porcos. 32. Ide, disse-lhes. Eles saíram e entraram nos porcos. Nesse instante toda a manada se precipitou pelo declive escarpado para o lago, e morreu nas águas.

Envolvido nesta tensão da batalha entre Deus e seu opositor, o homem vive o conflito de ter que atender a um e resistir ao outro. Na história em que predominou a hegemonia da Igreja Católica, e mesmo onde os puritanos dominaram, não foram poucas as atrocidades cometidas contra pessoas acusadas de seguir do diabo. Convictos de serem representantes de Deus, julgaram e mataram. Levar a sério a suposta ligação com o diabo pode ter fundamentação na Bíblia. Mas não se pode transferir demônios para porcos, o que determinava a morte de inocentes. Tal procedimento foi um artifício perfeito para calar vozes contrárias à Igreja. Podem ter ocorrido também por ignorância e medo. Viver assim assemelha-se a um aprisionamento. Sem liberdade para ir além do texto sagrado, das interpretações pelos ―representantes de Deus‖, não se vê que o homem comete maldades, mas não por inspiração de um ser sobrenatural. Transferir culpas em nada contribui para se aprimorar a si mesmo.

4. Senhor da luz: um inspirador anjo que escolheu o próprio caminho

A canção Lord of light (SMITH; HARRIS; DICKINSON, 2006) é a nona faixa do álbum A matter of life and death, lançado pela banda inglesa Iron Maiden em 28 de agosto de 2006 (IRON MAIDEN, 2013). A faixa tem duração de 07 minutos e 23 segundos. A letra possui 37 versos distribuídos em sete estrofes, sem contar as repetições. A tradução a seguir, realizada pelo próprio autor do presente artigo, foi feita buscando a melhor 186 equivalência de sentidos entre o idioma inglês e o português. Os versos foram numerados. Optou-se por não repetir o refrão (versos 21 a 24). SENHOR DA LUZ

[01] Há segredos que você guarda [02] Há segredos que você guarda [03] Há segredos que você conta para mim [quando está] sozinho [04] Eu não posso alcançar coisas que eu não posso ver [05] Você não vê esse mundo estranho do mesmo modo que eu vejo [06] Não negue a mim o que eu sou [07] Nada está escondido, você é que falha em ver a verdade [08] Estas são coisas que você não pode revelar. [09] Estas são coisas que você não pode revelar.

[10] Nós somos parte de um mesmo plano estranho [11] Por que a carnificina da irmandade do homem? [12] Sacrifício hediondo do inferno [13] Rastro de fogo indica o caminho [14] Montes de corpos, todos queimando como se fossem um só [15] Vingar-se é viver no passado [16] É tempo de olhar para dentro de um novo milênio.

[17] Caminho em espiral conduz através do labirinto [18] Descendo até o submundo ardente [19] Rastro de fogo indica o caminho [20] Lúcifer foi apenas um anjo que se afastou do caminho.

[21] Liberte sua alma e deixe-a voar [22] Dê a sua vida ao Senhor da luz [23] Guarde seus segredos e chova sobre mim [24] Tudo o que eu vejo são mistérios

[25] Não somos merecedores de seus olhos negros e brilhantes [26] Nós juntamos demônios no espelho todo dia [27] A ponte de escuridão lança uma sombra sobre todos nós [28] E todos os nossos pecados a você atribuímos neste dia

[29] Outros esperam sua vez, suas vidas foram feitas para durar [30] Use a sua sabiamente enquanto a luz está se extinguindo rapidamente [31] Liberte a sua alma e deixe-a voar [32] A minha foi capturada, eu não posso tentar [33] O tempo retorna novamente para punir a todos nós.

[34] Nós fomos expulsos pela mão sangrenta de nosso pai [35] Nós somos estranhos nesta solitária terra prometida [36] Nós somos sombras de um espírito profano [37] Em nosso mundo de pesadelo, o único em quem nós confiamos.

O poema foi dividido em seis partes. Na primeira (estrofe 01), o vocábulo ―você‖ (enunciatário) é empregado em sete dos nove versos, e subentendido no verso 06 (―Não negue‖). Lúcifer, o eu-lírico, enfatiza a importância de guardar segredos e solicita sigilo sobre algumas revelações. A palavra ―luz‖ pode ser aquilo que possibilita enxergar, logo, 187 conhecer. Esse mundo complexo é mesmo difícil de compreender. Muitos não fazem esse movimento intelectual, preferem o mundo sensível, contentam-se com o senso comum. Usando a sua ―luz‖, conhecimento sobre assuntos incompreensíveis para o ser humano (―segredos‖, ―Você não vê‖), Lúcifer ajudará o seu interlocutor a ver o que deseja revelar. Na primeira revelação (verso 04), alerta que não pode compreender coisas que não vê. Na segunda, diz que não ―vê‖ (interpreta) esse ―mundo estranho‖ como o enunciatário, uma crítica sobre a limitação humana em compreender a realidade. E a terceira é que a verdade, tão evidente, não é captada pelo homem. Tais afirmações mostram que o diabo construído pelo Iron Maiden é um ser limitado (ele não vê tudo), averso ao mundo, chamado por ele de ―estranho‖, e ciente de que o homem se recusa a assumir seus defeitos (―falha em ver a verdade‖). Trata-se, pois, de uma variação em relação ao diabo ubíquo descrito por Muchembled (2001, p. 27): ―Capaz de estar em toda parte ao mesmo tempo‖. Na parte 02, afirma existir um ―plano estranho‖ (verso 10), no qual se inclui juntamente com a humanidade (―nós‖). Questiona os motivos que levam os homens a se destruírem mutuamente (―carnificina‖), qualificando o resultado como sacrifício pejorativo (―hediondo‖). Nos versos 13 e 14, afirma que a história da humanidade (―caminho‖) é marcada pela destruição de vidas (―montes de corpos, todos queimando‖), repetindo-se ao longo do tempo (―como se fossem um só‖). Nos versos 15 e 16 fala da dificuldade do homem para aprender com a história, repetindo erros (―vingar-se‖). Recomenda ―olhar para dentro de um novo milênio‖ (verso 16); apesar do progresso, persistem comportamentos justificáveis por ignorância ou negligência. Os versos 17, 18 e 19 reforçam a ideia dos erros recorrentes, uma humanidade perdida (―labirinto‖), andando em círculos (―caminho em espiral‖), e do mundo como um lugar onde viver é sofrer (―submundo ardente‖). Falando de si na terceira pessoa, tenta convencer que são exageros o que dizem sobre ele. O vocábulo ―foi‖ indica que não é mais um anjo, e ―apenas‖ atenua a magnitude que o homem lhe atribui. Ter se ―afastado do caminho‖ encerra a sua discordância do plano original. Sua insatisfação foi não ter a permissão para contestá-lo. Na terceira parte, sugere ao enunciatário que liberte sua alma e deixe-a voar. Os versos das partes 01 e 02 procuram construir a humanidade como uma espécie manipulada, que repete os mesmos erros, incapaz de ver a verdade e aprender. O homem pode ser mais feliz (―voar‖), desde que enxergue a si próprio como um ser autônomo (―alma liberta‖). Basta seguir as recomendações do Senhor da luz. Na parte 04 (verso 25 a 28), o enunciatário das três primeiras passa a enunciador. Concorda com as reflexões de Lúcifer, e conclui que a humanidade não é digna de ―seus 188 olhos negros e brilhantes‖. Ao ter suas formas definidas pelo homem, o diabo ganhou olhos negros e brilhantes (MUNCHEMBLED, 2001), e tal é a menção feita pelo Iron Maiden. O verso 26 alude a outra marca cristã, a não assunção das próprias culpas, atribuindo-as a seres sobrenaturais (―demônios‖). A metáfora do ―espelho‖ é a consciência da própria culpa. Contudo, o verso 28 reforça a ideia da transferência. Lúcifer é o alvo, o que se constata pelo pronome ―você‖ neste mesmo verso. ―Nós juntamos demônios no espelho todo dia/A ponte de escuridão lança uma sombra sobre todos nós/E todos os nossos pecados a você atribuímos neste dia‖. Ou seja, mesmo tendo consciência de suas fraquezas e erros (―demônios‖), o homem prefere se esconder por trás de subterfúgios (―ponte de escuridão‖), como transferir as próprias culpas para entes sobrenaturais. Para racionalizar esse procedimento, os homens se associam no compartilhamento desse engano intencional. É a busca da paz de espírito forjada (―nossos pecados atribuímos a você‖) na incapacidade de assumir erros. Na quinta parte (versos 29 a 33), Lúcifer retoma o discurso, contestando a crença de que a vida é longa; ―esperar a própria vez‖ indica que certos homens escolhem viver esperando alguma grande recompensa, uma relação com a cultura de fazer o bem visando ao paraíso. Sabe, contudo, que a vida é curta (―luz se extinguindo rapidamente‖). Por isso, é preciso ―usar a vida com sabedoria‖. Aconselha o enunciatário a superar suas limitações para ser livre, o que não pode mais fazer, sua ―alma foi capturada‖, provável alusão à queda. Afirma, por fim, que o homem, por não aprender com suas experiências, vive à mercê de sua ignorância e teimosia (―o tempo retorna para punir a todos nós‖). A expulsão referida no verso 34 alude à queda e ao desterro do Éden (―nós‖). ―Mão sangrenta de nosso pai‖ refere-se a Deus, mas atribuindo-Lhe valor pejorativo, incapaz de perdoar falha de seres ingênuos. ―Sombras de um espírito profano‖ é uma referência ao mesmo tempo amargurada e irônica ao fato de o homem ter sido criado à imagem (―sombra‖) de Deus, que, de forma rancorosa, é chamado de espírito ―profano‖ ao invés de ―santo‖. Contudo, nesse mundo de sofrimento (―mundo de pesadelo‖), é nesse Deus que a humanidade prefere confiar (―o único em quem confiamos‖).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Lúcifer (Satanás) é o arquétipo do questionamento, da não aceitação passiva de verdades. Seus questionamentos incomodaram aquele que exigia plena concordância, suscitando a ira do seu Senhor e a consequente punição. Tal é o comportamento de certas 189 autoridades constituídas. Por não suportarem questionamentos, procuram doutrinar as pessoas desde cedo para assentir. Na metáfora da queda, Deus é a autoridade; Satanás é o subordinado, o que deveria receber ordens sem duvidar nem questionar. Tal é a tendência de se formar a imagem de Lúcifer. Muchembled (2001, p. 10), contudo, apresenta uma noção do diabo que se aproxima bastante da traçada liricamente pelo Iron Maiden: Encerrar a figura de Satã em uma definição filosófica ou simbólica do Mal que todo ser humano tem que enfrentar também não nos traz uma chave de interpretação suficiente. A não ser para os pensadores desejosos de descobrir uma unidade profunda da natureza humana, válida para todos os tempos e lugares.

A música de Lord of light tem a marca do lamento e da revolta. Sua letra tem a súplica para que a humanidade se esforce para evoluir como espécie através da libertação por meio do conhecimento ("Liberte sua alma e deixe-a voar/Dê a sua vida ao Senhor da luz"). Não aceitar verdades cegamente, pois nenhuma é eterna. Tudo muda, não há por que ser irredutível. Na abordagem, contudo, fica patente a compulsividade dessa espécie em reprocessar os mesmos velhos erros ("Vingar-se é viver no passado"). Trata-se da espiral referida na canção. O passado volta sempre.

REFERÊNCIAS BÍBLIA SAGRADA CATÓLICA. O Velho Testamento. O Novo Testamento. Disponível em: . Acesso em: 17 mar 2013. BURGESS, Anthony. A literatura inglesa. São Paulo: Ática, 1996. IRON MAIDEN. A matter of life and death. Disponível em: . Acesso em: 13 mar 2013. LINK, Luther. O diabo: a máscara sem rosto. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. MACIEL, Maria Esther. São Jerônimo em tradução: Júlio Bressane, Peter Greenaway e Haroldo de Campos. Revista Aletria. Belo Horizonte: UFMG, 2001, p. 53-59. MATOS, Gregório de. Obra Poética. 3ª ed., Rio de Janeiro: Editora Record, 1992. MUCHEMBLED, Robert. Uma história do diabo: séculos XII-XX. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2001. PULLELLA, Philip. Deus nunca se cansa de perdoar. Sítio eletrônico Brasil 247. Disponível em http://www.brasil247.com/pt/247/mundo/96438/Deus-nunca-se-cansa- de-perdoar.htm. Acesso em: 17 mar 2013. SMITH, Adrian; HARRIS, Steve; DICKINSON, Bruce. Lord of light. In: IRON MAIDEN. A matter of life and death. England: EMI, 2006. 1 CD-ROM. THE BIBLE LATIN VULGATE. Disponível em: . Acesso em: 13 fev 2013. 190

THOMAS, Henry. Lutero. In: VIDAS NOTÁVEIS. Vol. 2. Porto Alegre: Globo, 1982, pp. 1-12.

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ENSINO DE LITERATURA: O ROMANCE MACAU NO CONTEXTO DO SISTEMA LITERÁRIO NACIONAL

Maria Aparecida de Almeida Rego76 Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo77

Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar uma proposta de estudo do romance Macau (1934), de Aurélio Pinheiro, escritor norte-rio-grandense, inserido no contexto do chamado ―Romance de 30‖ do movimento modernista da literatura brasileira, período em que as literaturas regionais contribuiram para a formação do próprio Modernismo brasileiro. Apresentaremos também uma leitura deste romance em sala de aula de Ensino Médio. Para isso faremos uso das ideias de Cosson (2009) que concebe letramento literário com um conjunto de práticas sociais na construção de sentidos do mundo e Compagnon (2009) e Candido (1995) ao verem a literatura como ferramenta que instrui deleitando e torna-se fator indispensável para a humanização. Estudos como esse contribuem para o processo de formação da tradição literária do Rio Grande do Norte e torna possível entender o texto literário como um meio de aprofundar discussões relacionadas ao desenvolvimento do sistema literário nacional, sem perder de vista a sua aplicabilidade ao ensino de literatura brasileira.

Palavras-chave: Literatura; Ensino; Romance Macau.

Abstract: The objective of this work is to present a propose of study of the novel Macau (1934), from Aurelio Pinheiro, norte-rio-grandense writer, inserted in a context named ―Novels from 30´s‖, from the modernist movement of the Brazilian literature, once that the locals literatures produced on this time contributed to the formation of the Brazilian Modernism. It´s presented also a reading of this novel to the High School level education. For this it will be used the ideas of Cosson (2009) that conceives literary literacy as a group of social practices in the building of the senses to the world and Compagnon (2009) and Candido (1995) in the way that all theses authors see literature as tool that instructs delighting and also becoming a necessary factor to humanization process. Studies like this one contribute with the formation process of the literary tradition of Rio Grande do Norte and it becomes available the study of the literary text as a way of to deepen the discussions related to the development of the national literary system in conformity with its applicability with the teaching of Brazilian literature.

Keywords: Literature; Teaching; Macau novel

Introdução

As reflexões acerca das práticas de ensino com o texto literário vêm se consolidando nos últimos anos, a exemplo de Paulino e Cosson (2009), Pinheiro (2006), Compagnon (2009), dentre outros que apresentam possibilidades de maior aproximação do

76 Aluna de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). [email protected] 77 Orientador. Professor Titular vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPgEL/UFRN). [email protected] 192 leitor ao texto literário. No âmbito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no que se refere às pesquisas sobre a literatura e cultura do Rio Grande do Norte, estudos anteriores já contemplam análises das representações literárias ocorridas no estado no contexto da moderna literatura brasileira. Esses estudos confirmam a presença do movimento modernista no Rio Grande do Norte e os efeitos da modernização no estado. A partir dessas pesquisas, o romance Macau (1934), de Aurélio Pinheiro, encontra-se como uma das representações da prosa no contexto dos anos 1930 e em consonância com o romance de 30 em relação ao cânone consagrado pela historiografia literária brasileira. Nesse cenário, além de Aurélio Pinheiro, também se destacaram os escritores norte-rio- grandenses Polycarpo Feitosa (1867-1955) e José Bezerra Gomes (1911-1982). Aurélio Pinheiro inicia na prosa com o romance O desterro de Umberto Saraiva (1926). Tal romance foi digno de prêmio da Academia Brasileira de Letras de 1926. A segunda obra é Gleba Tumultuária (1927) e, em seguida, com a publicação de Macau (1934) 78, o escritor recebeu observações de Agripino Grieco, crítico literário em atuação à época, que apresenta a importância do ficcionista: ―Mesmo sem estar empenhado em caçar ridículos, colheu minúcias bem expressivas de uma estreita vida municipal que é uma espécie de intimação à mediocridade‖ (GREICO, 1935, p. 96-97). Neste sentido, o trabalho ―Ensino de Literatura: o romance Macau no contexto do sistema literário nacional‖ se propõe a apresentar uma relação desse romance no contexto literário dos anos 30, com a intenção de ampliar a compreensão do processo literário brasileiro nas suas manifestações regionais e nas suas implicações com o processo de modernização da sociedade. Apresentaremos ainda resultados de uma leitura do romance Macau por alunos de 3ª série do Ensino Médio do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), Campus Zona Norte, Natal.

Macau e os anos de 1930

O romance Macau, por meio de um narrador que relata os fatos sem participar da história, sem apresentar marcas de subjetividade, apresenta a cidade de Macau/RN. A voz responsável pelo registro da narração demonstra ser a de uma pessoa esclarecida. De início, delineia a viagem do jovem macauense Aluísio, recém-formado em Direito, no Recife, de

78 A partir de um estudo comparativo com as três edições do romance (1934, 1983, 2000), identificamos que a 1ª edição, publicada pela Aderson-editores/Rio de Janeiro, apresenta a ausência do capítulo XIV. Tal capítulo corresponde ao convite que o Oliveira envia ao Coronel Teotônio, por intermédio do capanga Chico Torto, para propor o início do processo contra José Ribeiro. Este capítulo também revela o quanto o rábula humilhava sua esposa por esta desconhecer determinados vocábulos. 193 volta à sua terra natal, onde irá exercer a profissão submetendo-se aos jogos políticos. O leitor tem ciência do trajeto da viagem; do estilo de vida que o jovem estudante adotava durante os anos da faculdade; de umas férias vividas em Macau em que toma conhecimento da falência financeira do pai, Coronel Edmundo, ex-dono de manadas incontáveis de gado e de montanhas de sal. A narrativa mostra ao leitor a mudança de comportamento de Aluísio, que, mesmo contra seus princípios, se submete às vilezas da política macauense para conseguir trabalho na tentativa de reerguer a família: – Justamente hoje estou nervoso, e a hipocrisia desse povo que esteve aqui aborreceu-me ainda mais. Em Natal disseram-me que eu procurasse aproximar-me do Oliveira. [...] É estúpido! É cruel! Tenho repugnância desse homem. E sou forçado a bater-lhe à porta, a sorrir, a recalcar os escrúpulos. [...] Que poderá fazer um advogado oposicionista numa terra em que não há oposição, nem civismo, nem dignidade, nem vergonha, dominada há mais de vinte anos por uma família? (PINHEIRO, 2000, p. 78).

Esse fragmento situa a chegada do Aluísio a Macau, onde irá residir e exercer a função de Promotor. O enredo é todo marcado por intrigas pessoais e políticas; jogos de interesses e favoritismo, fruto do coronelismo sob o qual vivem as principais personalidades da cidade, inclusive o promotor, em um espaço provinciano e limitado. À medida que o enredo se desdobra, o narrador descreve as paisagens, os lugares da cidade, as regiões salineiras, a instalação de empresas, laboratório químico e alguns aspectos de desenvolvimento da cidade. Percebe-se o quanto Macau está em consonância com os processos de desenvolvimento brasileiro ocorridos nas primeiras décadas do século XX e como o narrador descreve a configuração modernizante na cidade. Nessa teia narrativa, em que personagens interagem, revelando os conflitos entre o ritmo de vida provinciano e o ritmo de vida de um espaço em modernização, encontra-se a presença do químico Dr. Moreira: Químico da usina de sal recentemente instalada ao fim da cidade, junto ao aterro. Simples, modesto, acanhado, sempre às voltas com exames e maquinismos, vivendo para a sua Química, [...] jamais se adaptara ao meio estreito e mexeriqueiro do lugar. Era baixo, corcunda, risonho excessivamente cortês. Verdadeiro sábio, com a simplicidade e a ingenuidade dos sábios, [...] vivia a cometer gafes sem conta naquela sociedade maliciosa e ignorante (PINHEIRO, 2000, p. 72).

O fragmento acima dá conta de um dos elementos do processo de modernização identificados no romance. O Dr. Moreira reside em Macau, mas por vim de um espaço mais citadino não faz parte das intrigas locais por seu tempo ser ocupado em atividades científicas. A partir desse conflito, identificamos os lampejos de modernização que a cidade recebe por consequência da indústria do sal. 194

O romancista apresenta uma obra significativa, inserida no contexto das primeiras décadas do século XX da literatura brasileira. O romance referido se apodera de motivos sociais locais (a cidade Macau) para estruturar a teia narrativa que constitui representações da cultura brasileira e dos conflitos sociais nele apresentados, considerados, de certo modo, nacionais, por exemplo, a política dos coronéis e a industrialização. Neste sentido, é preciso considerar a literatura sob uma perspectiva histórica, seguindo uma tradição literária apontada por Candido: As obras não podem aparecer em si, na autonomia que manifestam, quando abstraímos as circunstâncias enumeradas; aparecem, por força da perspectiva escolhida, integrando em dado momento um sistema articulado e, ao influir sobre a elaboração de outras, formando, no tempo, uma tradição (CANDIDO, 2000, p. 24).

No plano da cultura e da literatura, a década de 1930, no Brasil, é considerada marco histórico. As reformas que ocorrem no ensino, na cultura e na política e, sobretudo, uma tomada de consciência foram reflexos do movimento renovador da década anterior. Para Candido (1987, p. 182), ―os anos 30 foram de engajamento político, religioso e social no campo da cultura‖. Nesse contexto, verifica-se ―a extensão das literaturas regionais e sua transformação em modalidades expressivas cujo âmbito e significado se tornaram nacionais, como se fossem coextensivos à própria literatura brasileira‖ (CANDIDO, 1987, p. 187). Naquele momento da literatura brasileira, o romance do Nordeste representava a própria realidade da região. Os escritores, consciente ou inconscientemente, estavam imbuídos ideologicamente e a prosa se voltava às questões da cor local, com interesses pelas expressões linguísticas tipicamente brasileiras, pelas regiões geográficas e, principalmente, pelos conflitos sociais e políticos como objetos preferenciais para a prosa romanesca. Da mesma forma que os poetas da primeira geração modernista procuravam se afirmar através de um livro de poema inaugural, os romancistas de segunda geração modernista, em várias regiões do país, mostravam essa afirmação através da prosa de cunho sociológico, fosse apresentando a seca, e/ou as desigualdades sociais. Entretanto, caberia ao romance conciliar o social com o estético, como bem defende Candido: A preocupação absorvente com os ―problemas‖ (da mente, da alma, da sociedade) levou muitas vezes a certo desdém pela elaboração formal, o que foi negativo. Posto em absoluto primeiro plano, o ―problema‖ podia relegar para o segundo plano a sua organização estética, e é o que sentimos lendo muitos escritores e críticos da época (CANDIDO, 1987, p. 196 – Grifo do autor).

195

A observação apresentada pelo crítico é pertinente, já que o romance de 30 representava a passagem do ―projeto estético‖, conquista dos anos 20, para o ―projeto ideológico‖, encaminhamentos dos anos 30 (LAFETÁ, 2000). O que justifica também essa preocupação ideológica é o caráter empenhado que o romance brasileiro apresenta. Bosi (2003, p. 217) afirma que ―só em torno de 30, e depois, o Brasil histórico e concreto, isto é, contraditório e já não mais mítico, seria o objeto preferencial de um romance neo-realista e de uma literatura abertamente política‖. A partir dessa compreensão, observamos o romance Macau em diálogo com essa tradição por dar conta de um pensamento ideologicamente preocupado com as questões sociais e políticas. Tomaremos como referência de literatura empenhada a filiada direta ou indiretamente à concepção marxista, por ―reconhecer que a forma artística é produto do ‗conteúdo‘ social, mas ao mesmo tempo lhe atribui um alto grau de autonomia‖ (EAGLETON, 2011, p. 79). Nesse mesmo entendimento, em A teoria do Romance, Lukács (2000) afirma que o romance surge quando a harmonia entre homem e natureza é desconstruída e que os maiores artistas são aqueles que conseguem recapturar e recriar a totalidade harmoniosa da vida humana. Nessa direção, Candido (1995) aponta que a literatura empenhada no Brasil se deu com maior forma nos anos 30: No Brasil isto foi claro nalguns momentos do Naturalismo, mas ganhou força real, sobretudo no decênio de 1930, quando o homem do povo com todos os seus problemas passou a primeiro plano e os escritores deram grande intensidade ao tratamento literário do pobre (CANDIDO, 1995, p. 255).

Nesse sentido, no romance Macau gente do povo tem relevância na voz do narrador, por apresentar figuras sociais desfavorecidas pela configuração política da sociedade. Este trabalho adota a concepção de literatura centrada na convicção ética do autor revelada ao exprimir sua visão de mundo através da expressão artística tecida na relação literária com o contexto social e cultural. A teoria da narrativa apresentada por Walter Benjamin (1985) estabelece o pressuposto de que prática política e atividade narrativa estão juntas. No ensaio Sobre o conceito de história, o crítico apresenta uma reflexão, seguindo a concepção materialista de que a história é ―capaz de identificar no passado os germes de uma outra história, capaz de levar em consideração os sofrimentos acumulados e de dar uma nova face às esperanças frustradas‖ (BENJAMIN, 1985, p. 08). Os estudos de Benjamin apóiam as análises dos processos de modernização presentes no romance Macau. A Estética da Recepção de Hans Robert Jauss ressalta a importância do crítico para determinar o valor artístico de uma obra literária. Para Jauss (1994), a história da literatura é 196 um processo que necessita de autor, leitor e crítico, os quais conferem a atualização da obra por meio da recepção ―que se realiza na atualização dos textos literários por parte do leitor que os recebe, do escritor, que se faz novamente produtor, e do crítico, que sobre eles reflete‖ (JAUSS, 1994, p. 25). Nesse sentido, um dos elementos-chave dos horizontes de expectativas defendidos por Jauss é a coexistência do escritor, do crítico e do leitor para se constituir a história literária. Da mesma forma, para Candido (2000), uma obra literária não vive sem produtor e receptor.

Ensino de Literatura

Algumas pesquisas recentes, a exemplo de Martins (2006), sobre os desafios enfrentados pelos professores de Literatura no Ensino Médio, e Pinheiro (2006), sobre as reflexões e estratégias do uso do livro didático de Literatura no Ensino Médio, ambos do livro Português no Ensino Médio e formação de Professor, apresentam o modo como o ensino da literatura vem se configurando nas escolas de Ensino Médio e como o texto literário é lido ou não no contexto escolar. Historicamente, o texto literário foi usado na escola para fins didáticos como: formar leitores, ensinar a escrever bem e estudar as regras gramaticais. Dessa forma, a literatura foi usada por muito tempo para fins de estudo da língua vernácula. Diante dessa exposição, percebemos que a função da literatura, de construir e humanizar, não deve ser vista como secundária. Nesse caminho, o letramento literário é uma prática social que deve ser inserida no contexto escolar. Como qualquer outro conhecimento, a literatura exige compromisso e clareza quanto aos objetivos de ensino e de discussão sobre como a escola irá desenvolver essa atividade sem tirar a função humanizadora da arte literária. Nessa direção, a teoria desenvolvida por Theodor W. Adorno, sobre literatura e educação, dará um embasamento para encaminhar o sentido de uma educação dirigida a uma autorreflexão crítica a partir do enfrentamento da consciência reificada ou coisificada que gera ―a inaptidão à existência e ao comportamento livre e autônomo em relação a qualquer assunto‖ (ADORNO, 2006, p. 60). Candido (1995) considera a literatura uma necessidade universal que precisa ser satisfeita, e a inclusão desta disciplina nos currículos escolares é fundamental para o processo educacional de uma sociedade. Compagnon (2009) apresenta o ensino da literatura como responsável pela transmissão e preservação de experiências, por formar leitores melhores e capazes de combater a barbárie. Assim, a 197 integridade espiritual, adquirida a partir da literatura, pode ser garantida pelo acesso ao deleite intelectual proporcionado pelo objeto literário.

Salinas: de Macau à sala de aula

Uma experiência recente de estudo sobre o romance Macau deu-se em turmas de 3ª série do Ensino Médio dos cursos subsequentes Eletrônica e Técnico em Comércio do IFRN, Campus Zona Norte, Natal/RN. Na ocasião o professor de Língua Portuguesa (a disciplina de Literatura, nesta instituição, está inserida no currículo de Língua Portuguesa) ministrava conteúdos referentes ao modernismo brasileiro, anos 30, e fez a indicação de leitura do romance Macau por ser considerada uma obra que representa tal movimento no contexto da literatura norte-rio-grandense. Foi apresentada uma versão do romance em PDF, uma vez que a última edição (2000) encontra-se esgotada. Com a utilização dos recursos tecnológicos todos os alunos tiveram acesso ao texto literário na íntegra. Por desenvolvermos pesquisa de mestrado com o romance Macau, fomos convidados a dialogar com os alunos a respeito do enredo e de seu objeto de pesquisa com o romance. Como suporte teórico para a abordagem do texto literário em sala de aula foi utilizado alguns elementos da sequência didática apresentada por Rildo Cosson (2009) em Letramento Literário, em que concebe a literatura como uma prática social acertada ao ensino de forma significativa para os alunos. A conversa foi intercalada por questionamentos acerca do romance e de seu autor, foram apresentados alguns aspectos que compuseram o cenário político, social e econômico do país nas primeiras décadas do século XX, além de alguns aspectos identificados no romance que serão investigados durante a pesquisa acadêmica, entre eles os elementos que compõem a temática da modernidade presente na narrativa. Tais informações são vistas a partir da presença da tradição oral representada pela figura do velho Sousa, simbolizando a resistência à modernização79; o conflito marcante entre o arcaico e o novo, representado pelos papéis sociais do bacharel e do rábula, traço este desenvolvido pelo movimento modernista nacional iniciado na década anterior e, por fim, a política do coronelismo ameaçada pela chegada da democracia. Tais elementos são desenvolvidos no espaço de uma cidade interiorana que recebe a indústria salineira com todo seu aparato com consequências que possivelmente representam o declínio da

79 Segundo Benjamin (1985), o processo de modernização presente nas sociedades capitalistas acarreta na diminuição da transmissão de experiência de uma geração à outra. 198 produtividade artesanal do sal, apresentando novos processos em que estão conflitantes o artesanal e o industrial80. O diálogo serviu para subsidiar a leitura dos alunos e aumentar seus conhecimentos sobre traços marcantes do romance. Tiveram oportunidades de identificar alguns elos intertextuais presentes em Macau com outros romances da mesma década, por exemplo, com os romances de José Lins do Rego que registram o momento de transformação social e econômica na decadência dos engenhos com a chegada das usinas, consequência do processo de industrialização. Sobre a obra de José Lins do Rego, o livro Literatura Brasileira: um diálogo com outras literaturas e outras linguagens, do Ensino Médio, apresenta um comentário do crítico Peregrino Júnior: José Lins do Rego nos põe diante dos olhos [...] o conflito dos patriarcas rurais com os jovens bacharéis fracassados, a luta do progresso da industrialização contra o atraso feudal (a usina devorando o bangüê); o espetáculo dramático do fanatismo popular e as tropelias heroicas dos bandoleiros soltos a fazer justiça com as próprias mãos, truculentos e brutais; as intrigas miúdas da política municipal [...] (PEREGRINO JÚNIOR, 1975, p. 17 apud CEREJA; MAGALHÃES, 2009, p. 470).

Identificamos no romance Macau também a figura de bacharéis, até antes de Aluísio, fracassados, o processo de industrialização do sal e as intrigas miúdas de uma política municipal ainda presa às práticas do coronelismo, mas que também enfrenta transformações. Embora o romance Gabriela, Cravo e Canela (1958), de Jorge Amado, tenha sido publicado em décadas posteriores, foi possível aos alunos fazerem uma aproximação dessa trama com o romance Macau por seu enredo ser ambientado na década de 1920 e ter sido adaptado, recentemente, para minissérie da rede Globo. Os alunos argumentaram que ambos apresentam a situação política do coronelismo, a presença de um julgamento, representando o espaço da razão como propício para resolver os conflitos (não mais o jagunço), e a presença das personagens ―solteironas‖ que ora são mostradas como puritanas por transmitir ao leitor desconhecimento de idade e de sexo, ora são modernas, como D. Fefinha, que funda em Macau um centro político-social em sua casa. A interpretação leva à conscientização de que o aluno, enquanto leitor, está inserido em uma comunidade discursiva que amplia seus horizontes de leitura. A ―contextualização presentificada‖ (COSSON, 2009) faz correspondência da obra com o momento presente da leitura. Aqui o papel do leitor é fundamental, pois ele irá fazer relações da leitura com elementos de seu mundo social.

80 Esses aspectos são analisados por Schwarz (1987) em ―A carroça, o bonde e o poeta modernista‖. 199

Como resultado desse estudo, os alunos apresentaram a recepção do romance em respostas a atividades encaminhadas, nas quais estão explícitas as capacidades de várias habilidades, dentre elas, interpretativa, perceptiva e argumentativa. A seguir, estão transcritos fragmentos das atividades dos alunos que serão identificadas por E1 (estudante 1), E2 (estudante 2) e E3 (estudante 3):

[...] A obra retrata uma cidade do interior bem estruturada para a época, com um sistema político bem delineado a ponto de ser motivo de disputa entre alguns dos personagens. A economia da cidade representada gira em torno da indústria do sal, muito lucrativa na época, e também das embarcações, pois, pelo fato de a cidade ser litorânea, elas também contribuíram para a geração de trabalho remunerado. [...] (E1)

[...] Podemos perceber a divisão de classes na sociedade macauense no romance. Divide-se entre as famílias tradicionais, algumas relativamente abastadas, outras falidas; famílias emergentes que alcançaram algum status social; famílias pobres, que prestam algum tipo de serviço aos mais favorecidos economicamente; os comerciantes bem sucedidos e os profissionais liberais como o médico e o químico. Esse cenário mostra a luta pelo poder e status entre os personagens em decadência e os que desejam ascender socialmente. [...] (E2)

[...] Alguns personagens tornam-se tão próximos do leitor quanto são do narrador. Um deles é Teotônio, o rábula mais famoso da região, que nunca perdera uma batalha no modesto tribunal da cidade e sua fama alcançava grande parte do interior do estado do Rio Grande do Norte. Como sobrevivia desses embates jurídicos, era natural que se preocupasse com a chegada do Dr. Aluísio à cidade, pois como o jovem possuía o título de bacharel, Teotônio almejava desqualificá-lo para que ele não representasse uma ameaça. Apesar de suas ações de profissional antiético, era fato a vaidade intelectual impregnada em Teotônio, mas é também fato que mudava de lado político de acordo com suas necessidades com a mesma naturalidade com que caminhava nas ruas e fazia mexericos na cidade. [...] (E3)

Considerações finais

Longe de esgotar questões voltadas aos estudos sobre o romance Macau, bem como ao ensino de literatura, o presente trabalho apresentou alguns encaminhamentos pertinentes sobre o romance na década de 1930, a presença da prosa regionalista como extensão da prosa brasileira e o estudo do texto literário em sala de aula. Tais aspectos mostram a pertinência de pesquisas de âmbito acadêmico quanto aos estudos literários voltados para a compreensão do moderno romance brasileiro. Deixa-se claro que as escolhas temáticas enfocadas nesse trabalho não são as únicas a serem exploradas no romance em questão. O importante é proporcionar conhecimentos sobre a literatura do Rio Grande do Norte, a partir de leituras e pesquisas que possibilitem 200 conhecimentos da memória cultural e da tradição literária brasileira, conforme Bueno (2006, p. 27) afirma: ―É possível projetar para discuti-los, muitos dos elementos que fizeram do romance de 30 um passo decisivo de nossa tradição literária, cujos efeitos se espalham até hoje por toda a cultura brasileira‖. Levam-se em consideração os elementos formadores dessa tradição literária, objetivando aproximar as pesquisas acadêmicas ao ensino, tornar o aluno um leitor consciente de seu papel enquanto observador e crítico, fazer reflexões sobre a obra lida, sabendo externar seus posicionamentos, além de adquirir o diálogo com outros textos. Nessa perspectiva, torna-se possível formar um estudante leitor e escritor proficiente. Ainda, como iniciativa do grupo de pesquisadores vinculados ao Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-Rio-Grandenses, da UFRN, pretendemos, por meio do site Portal da Memória Literária Potiguar (), disponibilizar a pesquisadores e ao público em geral o texto do romance Macau na sua integralidade, por se tratar de uma obra de domínio público. Assim, a disponibilidade virtual de acesso gratuito permitirá aos leitores uma experiência estética para reflexão sobre o efeito atual da obra para consolidar uma compreensão do desenvolvimento histórico da recepção do texto de Macau.

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202

NAEL “CENTRO DE CONSCIÊNCIA” E “ESPELHO POLIDO”, A FIGURA DO NARRADOR EM “DOIS IRMÃOS”, DE MILTON HATOUM81

Assunção de Maria Sousa e Silva 82

Resumo: Nael é o fio condutor de uma narrativa memorialística cujo objetivo primordial talvez seja a busca do narrador pelo conhecimento de sua origem e de sua história. Todavia no intento de percorrer sua labiríntica busca, este personagem-narrador nos lega uma história de histórias construídas por uma junção de estratégias em que vigora o jogo edificador da experiência estética. Tais recursos resultam em um romance moderno, aglutinador de faces e interfaces discursivas intercaladas sob a tensão de vozes enunciativas que o margeiam. O romance Dois Irmãos, do escritor amazonense Milton Hatoum reverbera a memória do passado, “fantasmas de retratos” que indiciam sentidos fortalecedores da subjetividade do personagem-narrador, mas também sentidos que redimensionam a realidade do contexto social e político amazonense. Para discorremos sobre essas configurações, embasaremo-nos nas considerações sobre o narrador, sobretudo na sua função e perspectiva narrativa, enquanto sujeito que aglutina um “conjunto de forças que se potencializam”, levando em conta as indicações de Wayne Booth, em Retórica da ficção”, de Walter Benjamim, em “O narrador Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” cujas abordagens ajudam a elucidar aspectos que prevalecem no romance de Hatoum como estratégias discursivas e de Wolfgang Iser, em O jogo do texto.

Palavras-chave: Narrador; Memória; Vozes; Romance; Dois irmãos.

Abstract: Nael is the thread of a memorial narrative whose primary objective is perhaps the narrator's quest for knowledge of its origin and its history. However in an attempt to navigate their labyrinthine search, this character-narrator leaves us with a story of stories constructed by a combination of strategies that force the game builder of the aesthetic experience. These features result in a modern novel, unifying faces and interfaces discursive merged under the strain of enunciative voices that border it. The novel „Two Brothers‟, by amazon writer Milton Hatoum, echoes the memory of the past, "ghost pictures" suggest that empowering sense of subjectivity character-narrator, but also senses that resize the reality of the social and political Amazon (Baziliannorthernregion) context. To carry on about these settings, we have base in consideration of the narrator, especially in its function and narrative perspective, as a subject that brings together a "set of forces that leverage," taking into account the indications of Wayne Booth in Rhetoric of Fiction", Walter Benjamin in "The Storyteller considerations on the work of Nikolai Leskov” whose approaches help to elucidate aspects prevailing in the novel Hatoum as discursive strategies and Wolfgang Iser in “The play of the text..”

81 Este artigo é parte de um estudo mais detido sobre o narrador no romance supracitado, desenvolvido para disciplina Teorias Críticas do Programa de Doutorado em Literatura de Língua Portuguesa – PUC Minas. 82 Doutoranda em Letras na Pontifícia Universidade Católica de Minas (PUC MINAS). Bolsista FAPEPI. E- mail: [email protected]. 203

Keywords: Narrator. Memory; Voices; Novel; Dois Irmãos.

1. Introdução

No poema epígrafe que Milton Hatoum acolhe e introduz o romance Dois Irmãos, Drummond reclama a materialidade do espaço familiar. A liquidação83 enuncia a venda da casa com as lembranças, os pesadelos, os pecados, o bater de portas e os imponderáveis. O poema de uma estrofe traduz com finura e concisão o sentido primevo do romance de Hatoum. A história contada é também a história da casa da família libanesa vendida com suas lembranças e seus imponderáveis e a tragédia ali passada é senão em razão de encantos, desejos e pecados. A casa é a metonímia da cidade flutuante que também é demolida em vista ao progresso da cidade de Manaus. No entanto, a casa para além do espaço físico, ensombreado com a seringueira centenária, traz a rasura do conceito moral-afetivo de lar, porque envolvido de sonegações, transgressões e danosa tensão e rivalidade entre os seus habitantes. O enredo são histórias que se entrecruzam através de eixos estruturantes caracterizados pelo desejo, ansiedades, carências e orfandades. Assim acontece com Zana, a matriarca, Halim, o pai, os gêmeos, Omar e Yagub e Domingas. Todos estão ligados umbilicalmente pelo crivo da orfandade e quando não pela carência de afeto como Rânia e Nael, o personagem-narrador. Dito isso, é válido ressaltar que tais prerrogativas apresentam-se como fato positivo para a construção das estratégias discursivas que o narrador vai assegurar. O narrador, construção e participe da voz autoral, re-conduz o contar por entrecortes espácio-temporais, flashbacks, intercalamentos entre presente, passado, passado do passado no presente, como a deixar valer o domínio da memória. Mas esse narrador-personagem talvez não contasse essa história sem as vozes assonantes que com ele vivenciaram os acontecimentos, por isso Halim representa um co-narrador porque contribui sobremaneira para preencher até o possível as lacunas impregnadas na memória do narrador. Desta forma, entendemos que o narrador se caracteriza como centro de consciência e espelho polido, visto que aglutina os fios e une as pontas, reconhece os jogadores e suas jogadas para então construir o seu jogo próprio como narrador performático. Sobre estes enfoques e para iluminar teoricamente este

83 Liquidação é o título do poema de Carlos Drummond de Andrade, publicado no livro Boitempo, 1968. 204 trabalho, recorremos às ideias de teóricos importantes no campo da discussão da presença do narrador no texto ficcional: Walter Benjamim (1994), no seu ensaio “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” e Wayne Booth (1980), em Retórica da ficção que precisamente nos esclarece sob o papel e perfil do narrador e seus modos de narrar. É deste autor, portanto, que aceitamos a configuração de narrador como “centro de consciência” e “espelho polido” no jogo edificante da experiência estética, e Wolfgang Iser (2000), em “O jogo do texto”.

2 O narrador e seus efeitos de sentido

Em Retórica da ficção, Booth (1980) trata dos tipos de narradores e delineia o que seriam narradores dramatizados e não-dramatizados; observadores e agentes narradores, para em seguida deter-se nas funções e comportamento do narrador no romance moderno. Inicialmente o teórico aponta que a diferença mais importante do efeito narrativo seja o modo como o narrador é dramatizado individualmente e de suas características serem compartilhadas pelo autor. Aceitando a linha de raciocínio de Booth (1980), o narrador-personagem de Dois Irmãos estabelece determinadas conduções narrativas que nos fazem pensar em sua dimensão dramatizada. Daí indagarmos: que aspectos de narrador dramatizado podemos identificar em Nael? Nael está qualificado para narrar a história à medida que ele conta o que ouviu, viu e vivenciou. Está apto a fazê-lo pela “perplexidade com que viveu” assim como entende Walter Benjamim (1994:201) quando trata do narrador ao analisar a obra de Nikolai Leskov. A disposição do narrador de recolher o esquecido pelo tempo de sua memória e da memória daqueles que viveram as histórias confere a ele a legitimidade que todo narrador tende a se sustentar. Por outro lado, Booth enfoca que

a ficção moderna, os narradores não acreditados mais importantes são os “centros de consciência” na terceira pessoa, através dos quais os autores filtram as suas narrativas”. Estes são, então, “refletores” como James Joice lhe chamou, podem ser espelhos muito polidos que reflectem experiência mental complexa, os „olhos da câmara‟ bastante torvos, inclinados para os sentidos (...) mas que cumprem precisamente a função de 205

narradores confessos – embora possam acrescentar intensidades próprias.(BOOTH, 1980: 68-9)

Temos de convir que isto se realiza pelo distanciamento que tais elementos impõem-se no ato de contar. Em Dois Irmãos, como já visto, Nael não conta sozinho, portanto, não traz o estatuto de onisciência. Ele dispõe de outros co-narradores que mais se assemelham aos contadores de histórias filiados a dois grupos já esclarecidos por Benjamim: do imigrante e do mestre sedentário. Desta forma, focando o olhar sobre a presença e a relação de intimidade de Halim e Nael, inferimos que Halim representa esse contador de história necessário e produtivo como fornecedor da matéria discursiva que Nael vai transformar em experiência estética. Os narradores secundários: Halim, Domingas, principalmente, contam suas versões dos episódios mais por um gesto utilitário (necessidade) de mostrar e contar sua experiência no mundo em que atuam do que por e para construir um jogo discursivo, uma atitude performática que resulte no texto ficcional, como faz Nael. É através de interconexões que Nael vai tecendo seu discurso ficcional em conjunto com as vozes dos sujeitos movedores dos eixos estruturantes dos quais tentamos esboçar na primeira parte deste artigo.

Isso Domingas me contou. Mas muita coisa do que aconteceu eu mesmo vi, porque enxerguei de fora aquele pequeno mundo. Sim, de fora e às vezes distante. Mas fui o observador desse jogo e presenciei muitas cartadas, até o lance final. (HATOUM, 2006:23)

O narrador de Dois Irmãos não se limita a descrever cenas, ele vai além, costura os episódios, forja mistérios e enigmas para responder a indagações como: qual sua origem? quem é seu pai? Como se entrecruzam as pontas do contado e se preenche as lagunas que deságuam em mistérios? A voz autoral constrói este narrador que embaralha o contar no tempo, do presente volta ao passado e do passado do passado volta ao presente, deixando o leitor em sobressaltos para, em seguida, quando a tensão amortece, este, novamente, se estende sobre o episódio com outras nuances, a fim de desenrolar o fio que ficou em suspenso. Noutra medida, percebemos o macro jogo que se realiza entre o texto, o autor e nós leitores, a partir daquela interconexão a que se refere Iser (2002) cujo processo desemboca em algo que até então não existia. O jogo do texto está em insinuar e ao 206 mesmo tempo despistar o leitor. O constante movimento do narrador sobre os fatos que vêm a sua memória, na mente dos demais personagens e nas ações que empreendem lacunas que devem ser preenchidas pelo leitor.

Os autores jogam com os leitores e o texto é o campo do jogo. O próprio texto é resultado de um ato intencional pelo qual o autor se refere e intervém em um mundo existente, mas, conquanto o ato seja intencional, visa a algo que ainda não é acessível à consciência. (ISER, 2002: 107)

Isso aponta para a construção textual, composição para Iser, em que o texto é “composto de um mundo que ainda há de ser identificado e que é esboçado de modo a incitar o leitor a imaginá-lo e, por fim, a interpretá-lo” (ISER, 2002:107). A encenação do narrador de Dois Irmãos pelo modo como articula os eixos narrativos no tempo permite-nos reforçar a ideia de jogo que enuncia o “mundo repetido no texto” assentado os elementos intratextuais que espelham o mundo extratextual. Aceitamos, então, o que Iser enuncia:

Jogo do texto, portanto, é uma performance para um suposto auditório, e como tal, não é idêntico ao jogo cumprido na vida comum, mas, na verdade, um jogo que se encena para o leitor, a quem é dado um papel que o habilita a realizar o cenário apresentado. (Iser, 2002:116)

Diz ainda:

O jogo encenado do texto não se desdobra, portanto, como um espetáculo que o leitor meramente observa, mas é tanto um evento em processo como um acontecimento para o leitor, provocando seu envolvimento direto nos procedimentos e na encenação. (Iser, 2002:116)

Temos, portanto, um modelo de representação em Dois Irmãos que nos garante visualizar pistas do narrador desnudando prováveis sentidos advindos da atuação dos sujeitos atuantes. Visto isso, o leitor de Dois Irmãos necessita também fazer um exercício de recolhas e atenção no mundo encenado para compreendê-lo e interferir na busca dos efeitos de sentidos e entender o projeto ali colocado em construção. O próprio 207 autor, Milton Hatoum, assevera que o romance é construído pelo crivo da memória: a memória presente e a memória da cidade:

sempre me impressionou a destruição da cidade, do patrimônio histórico, dos espaços habitados da infância, e na infância de gerações (...) alargar um pouco o drama familiar e transformar bem numa espécie de tragédia humana, tragédia de minha cidade que pode ser metáfora de tantas cidades da América Latina. É, vamos dizer, uma perspectiva (...) histórica, na medida em que um dos irmãos, espécie de ideólogo do regime militar, ditadura, aparece também no conflito de outro irmão que ficou em Manaus. (Entrelinhas, Programa TV Cultura)

Pela memória também o autor recupera o diálogo intertextual conduzido pela epígrafe de Carlos Drummond de Andrade e pelo personagem professor Antenor Laval, quando, antes de ser preso apresenta para os alunos o poema “Os cegos” de Baudelaire, revelando, desta forma, as vias de sentidos em que a narrativa se fixa; como também quando evidencia o pano de fundo do enredo: a segunda guerra mundial, o golpe de 64, a expansão e decadência de Manaus na vida dos personagens. São, portanto, esses pontos que estão problematizados pela via do não dito, ou do apenas prenunciado que redimensionam a visão do duplo e acentua o mistério e o enigma: a história da tragédia da família, a origem de Nael e a orfandade dos personagens e seus desatinos. Nael parece ter consciência de si como narrador. Apresenta de forma precisa, em mais de um momento, sua relação vital com a escrita. Quando escreve a história já é professor e no decorrer da vida vai recolhendo os projetos de Yaqub, guardando os poemas avulsos de Laval, envolvendo-se emocionalmente sobre história com a de Pocu, quando o mesmo vai à procura de Omar e vê dois amantes morando sozinho em paz no barco. Nesta passagem, Nael mostra sua consciência quanto ao que está em jogo quando se narra: o sentido de verdade, a convicção de quem narra e o que o legitima. A experiência de leitura de Nael está agregada a sua experiência de escrita e a sede de re- constituição da memória já referida neste trabalho. Para escrever, ele também lê o mundo, as personagens, espreita os sujeitos e com isso movimenta seu tabuleiro. Com o episódio de Pocu, Nael aproveita para os breves momentos de reflexão sobre a escrita, sobre a medida e os limites entre o que é invenção e realidade; sobre o que viria a ser verdade ou mentira nas palavras de um narrador. Era preciso convicção no contar. Pocu é como um marujo que carrega consigo a arte de narrar, inebriado de um eloquência vivaz conta com uma verdade íntima. O que estatui a história como 208 história de verdade é o fato de um leitor ou ouvinte pensar sobre ela? Cada um ao seu modo. Nael expõe as agruras de escrever, visto que o tempo é o senhor da memória e a morte graveto para a combustão que faz acender o desejo de trazer o passado dissipado.

Naquela época, tentei em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer também é cúmplice delas. Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras, disse Halim durante uma conversa, quando usou muito o lenço para enxugar o suor do calor e da raiva ao ver a esposa enredada ao filho caçula. (HATOUM, 2006:183)

O tempo é que conduz a verdade das palavras emitidas, relembra o narrador na esteira do personagem, co-narrador Halim. É do tempo que se elabora o produto – texto – composição enunciativa a expor/contrapondo presença/ausência do narrador- personagem na feitura do “mundo repetido”. Pelo tempo é que se revela, a partir da intenção da voz autoral, a forma como o narrador se posiciona, alternando com menos ou mais distanciamento sua função narrativa.

Algumas considerações finais

O romance Dois Irmãos de Milton Hatoum nos oferece leituras instigantes. Depende do leitor a escolha de que caminhos seguir. Nós optamos por ler o romance atentando para a forma como o narrador se posiciona e põe-se a narrar, por parecer de grande propósito entender o projeto e o percurso trilhado para edificar a narrativa. Os eixos aqui ventilados foram meios encontrados para cobrir as várias faces que a história interpõe. O narrador-personagem Nael, imbuído de contar, em tempos futuros o que foi fraturado no passado, recorre à memória para trazer à tona vivências, disputas e rivalidades movidas pelo amor e ódio, mas, sobretudo, pelo desejo, visto que todos estão desnutridos, forjados em carência e por isso se vale de construção de sentidos para tecer a construção de agenciamentos. Para além, as vozes que confluem para o “centro de consciência” que se configura no narrador são advindas e, ao mesmo tempo, 209 provocadoras de reflexões, de anseios e de desilusões sobre a sociedade nos quais estão incluídos. A trajetória decadente da família em que não encontramos sinal de harmonização ou prosperidade, a não ser de forma efêmera e frágil, está intimamente ligada à trajetória do narrador-personagem que se vale das várias vozes para compor sua memória e assim narrar. No entanto, Nael não narra apenas para contar uma história como prestação de contas com o passado, ele narra com um propósito construtivo, edificador, ciente de seu papel e de suas funções. Mas isso não consiste em uma autonomia, já que ele também é fruto de uma construção ficcional e não se enquadra em uma narrativa tradicional em que o narrador paira sobre a história com controle e domínio. Nael conta a partir de sua precária existência, e aquilo que não sabe de fato acolhe dos demais sujeitos, co-narradores como Halim e Domingas, por exemplo. Sob este efeito, ele usa estratégias importantes em relação ao contado. A presença / ausência na narrativa é o recurso principal nas relações que se estabelecem. Nael expressa o olhar dos outros sobre si, a indiferença de Zana e de Omar reforça sua figura de ser à margem e isso nos moldes tradicionais não seria prerrogativa para quem é o centro aglutinador e refletor de luzes nos acontecimentos, no entanto ele o é. Nael reflete sobre seu lugar, expõe sua posição de intruso na casa e na família; e confessa ao leitor que para Zana ele é apenas “um rastro dos filhos dela” (HATOUM, 2006:28). Então, podemos dizer que ele está no mundo indiferente a si e é daí que ele tira sentido para enredar. Significativa é a passagem do romance sobre as roupas herdadas de Yagub ao narrador-personagem: “mas a roupa dele me esperou crescer e foi se ajustando ao meu corpo; as calças, frouxas, pareciam sacos; e os sapatos, que mais tarde ficaram um pouco apertados, entravam meio na marra nos pés: em parte por teimosia, e muito por necessidade. O corpo é flexível” (HATOUM, 2006:30). Os sentidos são flexíveis e aplanados pelo tempo. A roupa esperando Nael crescer simboliza o próprio transcurso do tempo para a maturidade dos sentidos das coisas e suas apropriações. Outro aspecto a ressaltar na narrativa de Hatoum é a dualidade. A narrativa enverga-se pela condição dual (presença /ausência) do narrador; pela rivalidade emaranhada de semelhanças e dessemelhanças entre os irmãos, pelo caráter paradoxal e comovente de Halim, enfim, existências de personagens com defeitos e virtudes nivelados. Omar e Yagub não são totalmente maus, nem totalmente bons. Como também, o próprio narrador empenha-se em narrar pelo caráter da dualidade: é isso e 210 aquilo, o “aqui mas ao mesmo tempo o ali”, conforme o próprio autor ressalta na entrevista “É preciso coragem para escrever”, postada no Youtube. Por fim, o narrador-personagem de Dois Irmãos emitindo duplamente a visão de dentro e de fora imprime suas subjetividades e revigora o tom híbrido na forma de contar. Nael é narrador-personagem do enredo, mas inegavelmente exerce o papel de escritor, trazendo à tona suas memórias guardadas, “soterradas, petrificadas em estado latente” para depois materializar-se em composição ficcional cuja configuração é plural, tão instigante e envolvente.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond. Boitempo, José Olympio, 1968. BAUDELAIRE, Charles. Os cegos. (Trad. Ivan Junqueira) 1988, p.178. Disponível em http://www.plataforma.paraapoesia.nom.br/ermelinda_ensaios4.htm, acessado em 21/10/2012. BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221. BOOTH, Wayne. C. A Retórica da Ficção. Lisboa-Portugal: Arcádia. Trad. Maria Teresa H. Guerreiro, 1980. DELEUZE, G. O abecedário de Gilles Deleuze. In. Deleuze em entrevista a Claire Parnet, em 2005, sobre sua obra e parceria com F.Gattari. Disponível em, http://www.oestrangeiro.net/index.php?option=com_content&task=view&id=67&Itemid =1, acessado em 11/02/2013. HATOUM, Milton. Dois Irmãos. São Paulo: Companhia Das Letras, 2006. ______. É preciso coragem para escrever. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=vCnOyUn9Ui0, acessado em 08/09/2012. ISER, Wolfgang. O jogo do texto. In. A literatura e o leitor. 2ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

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HOMOAFETIVIDADE NA INFÂNCIA E RELAÇÕES DE PODER NA PERSPECTIVA DO CONTO FREDERICO PACIÊNCIA

Benedito Teixeira¹

Profª. Drª. Fernanda Maria Abreu Coutinho²

Resumo: A comunicação que iremos apresentar tem o objetivo de mostrar como a homoafetividade na infância é apresentada na literatura brasileira moderna, enfatizando de que forma as relações de poder perpassam os relacionamentos homoafetivos durante a fase que se convencionou chamar infância e/ou pré-adolescência. Por meio da análise literária do conto Frederico Paciência, de Mário de Andrade (in: Contos Novos, 1947), única narrativa em que o escritor modernista aborda, mesmo que tangencialmente a homossexualidade, pretendemos identificar os mecanismos de poder que atravessam a narrativa. Na Literatura Brasileira, o tema da homoafetividade na infância aparece pela primeira vez ainda no século XIX, com O Ateneu (1888), de Raul Pompéia, seguido por mais experiências em outros contos e fragmentos, que pretendemos citar durante esta pesquisa. Para analisar as relações de poder, que surgem no conto de Mário de Andrade, adotaremos uma perspectiva foucaultiana. Michel Foucault defende a ideia de que o poder é exercido por pessoas ou grupos através de atos de soberania, dominação ou coerção. Para ele, o poder apresenta-se de forma difusa, diluído nas relações sociais.

Palavras-chave: homoafetividade, infância, poder, Foucault, Frederico Paciência

Abstract: The communication that we will present to show how homoaffectivity in childhood is presented in modern Brazilian literature, emphasizing how the power relations permeate the homoaffective relationships during the phase what is conventionally called childhood and / or pre-teens. Through the literary analysis of the short story "Frederico Paciência",by Mário de Andrade (in: Contos Novos, 1947 ), single narrative in which the modernist writer approaches, even tangentially the homosexuality, we intend to identify the mechanisms of power which cross the narrative . In Brazilian literature, the theme of homoaffectivity in childhood first appeared in the nineteenth century, with O Ateneu (1888), by Raul Pompéia, followed by further experiments in other short stories and fragments, wich we intend to cite during this research. To analyze the power relations that arise in the short story by Mário de Andrade, we will adopt a Foucaultian perspective. Michel Foucault defends the idea that power is exercised by persons or groups through acts of sovereignty, domination or coercion. For him, power is presented in a diffuse way, diluted in the social relations. Keywords: homoaffectivity, childhood, power, Foucault, Frederico Paciência

A descoberta homoafetiva durante o período caracterizado como infância e/ou transição para a adolescência é marcada tanto na vida real como no mundo da narrativa ficcional por relações de poder potencializadas pela estigmatização e pela proibição existentes desde a Antiguidade. Esse tipo de relacionamento carrega duas fontes de rejeição: o próprio fato de se materializar entre pessoas do mesmo sexo e o peso oriundo da questão etária, tendo em vista que o período de descoberta sexual/afetiva marca uma 212 quebra do paradigma que considera a infância como uma fase em que relações de cunho afetivo-sexual são consideradas inaceitáveis.

Mesmo na Grécia Antiga, apesar da aceitação dos relacionamentos entre meninos (erômenos) e rapazes mais velhos (erastes), sendo estes últimos uma espécie de protetores dos primeiros, a manifestação de afeto público e físico não era tão naturalizada como se pensa. Segundo K. J. Dover, em A homossexualidade na Grécia Antiga (2007), entre os gregos havia uma atitude complacente da sociedade com respeito ao desejo homossexual, com manifestações claras na literatura e nas artes plásticas. No entanto, havia limites estabelecidos nas normas que regiam os costumes gregos, em especial em Atenas, sobre a pederastia, já que o termo ―homossexual‖ só surgiu no século XIX com o advento das intervenções psiquiátricas no campo das análises sobre os casos de pessoas que faziam sexo com outras do mesmo sexo.

Dover (2007) mostra que o ―aceitável‖ pela sociedade ateniense daquele período era que as relações homossexuais ocorressem entre parceiros em idades diferentes – o erastes, mais velho e ―ativo‖, protetor, e o erômenos, mais jovem e ―passivo‖, protegido. Fora desse padrão, a homossexualidade era pouco tolerada, tendo em vista que esse tipo de relação deveria ser provisória, já que, ao ficar mais velho, o natural era que o erômenos casasse com uma mulher, tivesse filhos e se tornasse um erastes. Outro ponto de vista dos gregos naquele período era que as relações sexuais entre esses dois polos poderiam não ocorrer obrigatoriamente, com o erômenos sendo orientado a resistir às investidas do erastes.

A partir da era judaico-cristã os valores de proibição e de anti-naturalização do comportamento homoafetivo ficaram cada vez mais rigorosos. O tema passou a representar um tabu. A condenação da prática homoafetiva está presente na Bíblia desde o relato de Sodoma e Gomorra (Gn 19: 4-5) e no período dos Juízes (Jz 19: 22). Moisés também fez referências a essa prática sexual entre o povo de Israel (Lv 18: 22; 20:13), considerando-a passível de punição com a morte. No Novo Testamento, a referência clássica à homoafetividade está na epístola de Paulo aos Romanos (Rm 1: 26 e 27).

Em se tratando da correlação da homoafetividade com o período caracterizado como infância, a barreira sociocultural é ainda maior. No contexto da idade infantil esse tabu é reforçado tendo em vista que criança e sexo ainda são duas dimensões para muitos 213 indissociáveis e, quando detectada essa relação, deve ser reprimida, tal como afirma Michel Foucault, em História da Sexualidade I: a vontade de saber (1988):

As crianças, por exemplo, sabe-se muito bem que não tem sexo: boa razão para interditá-lo, razão para proibi-las de falarem dele, razão para fechar os olhos e tapar os ouvidos onde quer que venham a manifestá-lo, razão para impor um silêncio geral e aplicado. Isso seria próprio da repressão e é o que a distingue das interdições mantidas pela simples lei penal: a repressão funciona, decerto, como condenação ao desaparecimento, mas também como injunção do silêncio, afirmação da inexistência e, consequentemente, constatação de que, em tudo isso, não há nada para dizer, nem para ver, nem para saber. (FOUCAULT, 1988, p.10)

O próprio conceito de infância e sua existência ao longo da história passaram e vêm passando por diversas transformações e formas de definição. Na Antiguidade, o Estado ideal defendido por Platão teria a responsabilidade de educar as crianças, consideradas criaturas ríspidas, astutas e insolentes. Fernanda Coutinho, em Imagens da infância em Graciliano Ramos e Antoine de Saint-Exupéry (2012), explica:

Por esta razão, caberia ao Estado ideal uma prática pedagógica de teor coercitivo, e, assim, a pólis platônica só adotará a criança como base, em função da necessidade de moldar-lhe o caráter. Já em A República, o modelo educacional segregara-a do convívio dos demais, salvo dos preceptores, na intenção de fazê-la alcançar o reto caminho do Bem, da Verdade e da Justiça. (COUTINHO, 2012, p. 25).

Em História social da infância e da família (1981), Philippe Ariès avalia que, até o século XIII, a infância ainda não havia sido descoberta. As crianças eram consideradas pequenos adultos, ignorados em suas singularidades. Ou seja, ela ainda não existia no mundo medieval e sua existência como sujeito social seria, na verdade, resultado de transformações culturais recentes trazidas pelo modernismo (ARIÈS, 1981, p. 28).

Colin Heywood, em Uma história da infância: da Idade Média à época contemporânea no Ocidente (2004) resgata o status que a infância veio adquirindo ao longo do tempo na sociedade ocidental e constata que: ―a infância é pois, em grande medida, resultado das expectativas dos adultos‖. (HEYWOOD, 2004, p. 21). ―Idade da deficiência‖, ―adultos imperfeitos‖. Assim os pequenos eram vistos aos olhos dos adultos desde a Antuiguidade. De um olhar menos atento na época medieval, a infância ganhou, com o advento do Cristianismo, um cuidado maior: era preciso educá-los de acordo com os preceitos da 214

Bíblia. E essa visão ―instrutiva‖ e ―educacional‖ foi reforçada pelo surgimento do capitalismo na Europa ocidental, entre os séculos XV e XVIII, e, logo depois, pelo Iluminismo e os primeiros românticos.

Na análise final, Locke não escapa de maneira alguma de uma concepção negativa sobre a infância, o que se pode ver em seu desejo de desenvolver a capacidade de raciocinar nas crianças já a partir de uma idade precoce, ―até mesmo desde o próprio Berço‖. Com o descuido, a desatenção e a alegria que lhe são característicos, as crianças precisavam de ajuda: eram ―pessoas fracas sofrendo de uma enfermidade natural‖. (HEYWOOD, 2004, p. 38).

A infância seria, para os filósofos das Luzes, um ―domínio perdido‖, que, por meio da educação, é considerada fundamental para a criação do ―self adulto‖. A partir do século XX, com o surgimento do conceito de ―adolescência‖ e a consolidação da América como polo econômico e cultural no mundo ocidental, a preocupação dos estudiosos com a infância americana ganhou importância. Como afirma Heywood:

G. Stanley Hall preocupava-se com o fato de que a América, como ―terra anistórica‖, estivesse especialmente em risco: ―nunca os jovens foram expostos a tais riscos de se deixar perverter e possuir como em nossa própria terra e em nossa época‖. Ele apontava especificamente para ―a vida urbana crescente, com suas tentações, precocidades, ocupações sedentárias e estímulos passivos‖. Uma forma óbvia de inverter a maré era cuidar da saúde, da educação e da moral da geração que surgia: ―a criança de hoje tem a chave para o reino de amanhã‖, nas palavras de um jornal britânico de 1910. (HEYWOOD, 2004, p. 44).

O historiador defende que a infância passava a merecer uma abordagem que a via como um constructo social. Portanto, era salutar reprimir sua sexualidade e prolongar sua educação em escolas e faculdades. Ser ―frágil e vulnerável‖, a criança e/ou o adolescente tinha que ser mantida longe das tentações do mundo adulto e submetida a uma disciplina rigorosa.

Mesmo que, a partir do século passado, as teorias da psicanálise freudiana tenham admitido que há sim manifestações de sexualidade na infância, essas constatações na vida real e nos textos da literatura brasileira a partir do fim do século XIX, com O Ateneu (1888), de Raul Pompéia, são permeadas pelos valores da religião, da pedagogia, da medicina e da psiquiatria em tons repressivos, em que o silêncio tenta escamotear e esconder aqueles sentimentos proibidos e considerados anormais, como bem retrata Michel Foucault em 215 seus estudos sobre a vigilância, a punição, as relações do chamado micropoder e a anormalidade.

João Silvério Trevisan, em Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade (2011), resgata o histórico dessa repressão sexual no Brasil ancorada na heteronormatividade, e que pode ser vista, mesmo que sutilmente, nos registros literários que tratam da questão. A visão religiosa, importada da forte dominação católica na Península Ibérica, imperou no Brasil desde a fase de colônia portuguesa e se defrontou com os habitantes nativos da nova terra, cujas práticas chocaram os cristãos recém- chegados. Segundo Trevisan (2011), a prática que mais chocava o europeu era a do ―pecado nefando‖, da ―sodomia‖ e da ―sujidade‖.

A prática contrária ao preceito bíblico da reprodução foi considerada durante todo o período colonial como crime gravíssimo e sem prescrição. Multas, prisão, confisco de bens, banimento, trabalho forçado, marcação a ferro, execração, açoite público, castração, amputações, forca, morte na fogueira, empalhamento e afogamento eram algumas das punições reservadas aos praticantes do pecado nefando. Segundo Michel Foucault, em História da sexualidade I: a vontade de saber (1988): ―Na lista dos pecados graves, separados somente por sua importância, figuravam o estupro (relações fora do casamento), o adultério, o rapto, o incesto espiritual ou carnal, e também a sodomia ou a ―carícia‖ recíproca‖. (FOUCAULT, 1988, p. 39).

Mesmo que com o surgimento do Império, as penas para esse comportamento tenham se abrandado no Brasil, passando a vigorar o que até hoje se chama ―atentado público ao pudor‖, ―não seria absurdo imaginar que as inúmeras, reiteradas e violentas proibições à sexualidade desviante talvez tenham engastado no desejo homossexual um pânico arquetípico, quase ao nível da pulsão‖. (TREVISAN, 2011, p. 163).

A indefinição do conceito de ―infância‖ que percorre toda a história ocidental também permite visões diferenciadas de como tratar o sujeito infante em relação à sexualidade. No entanto, a partir do século XIX, com a separação cada vez maior do mundo dos adultos imposta às crianças seja pela religião, pela psiquiatria, pela medicina, pela educação escolar, a submissão moral aos adultos e ao Estado aumentou 216 consideravelmente. Trevisan (2011) cita o exemplo do domínio médico sobre as práticas educacional, familiares e afetivo-sexuais a partir do século XIX:

Brandindo a pederastia como uma forma de admoestação e um exemplo negativo, a higiene médica extraía dela consequências preventivas, para fins educacionais; e, com isso, buscava domesticar melhor a infância, impondo uma educação cientificamente programada, através da qual os meninos deveriam se esmerar em exercícios físicos para evitar a efeminação, e aprender a amar o trabalho, para evitar uma perigosa indolência moral. (TREVISAN, 2011, p. 174).

O tempo das punições e dos castigos selvagens havia terminado, mas toda essa longa trajetória do exercício do poder de repressão sobre a sexualidade desviante contribuiu para formar sujeitos auto-reprimidos, obedientes, medrosos e silenciosos. Recorremos ao que Michel Foucault, em Vigiar e punir (1987), chama de microfísica do poder. ―Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições (...)‖. (FOUCAULT, 1987, p. 26).

Diante desse pequeno resgate histórico sobre o tratamento que a homossexualidade e a infância receberam ao longo de séculos no Ocidente, fica mais claro perceber que a literatura, enquanto arte da escrita ficcional e, portanto, licenciada para fazer um recorte que inclusive subverta a realidade histórica, na verdade é considerada um excelente registro de como a sociedade brasileira vem tratando a questão da homoafetividade na infância.

Nesse trabalho, trazemos à tona como a literatura brasileira em prosa aborda as relações homoafetivas que acontecem com personagens em idade de descoberta sexual, mais precisamente no período de transição entre a infância e a adolescência. E este artigo é parte da pesquisa de Mestrado que pretendemos realizar, mapeando o que na narrativa literária brasileira já foi abordado, mesmo que parcialmente, sobre essa questão, e mostrando como a narrativa trata esse tipo de relacionamento. Analisar neste trabalho o conto Frederico Paciência, de Mário de Andrade, (in Contos novos, 1947), do ponto de vista das relações de poder que envolvem a questão da descoberta afetiva entre pessoas do mesmo sexo, com base principalmente nos estudos de Michel Foucault sobre o exercício do poder entre os indivíduos, é apenas uma pequena parte de um esforço maior de pesquisa.

Mário de Andrade se destaca na literatura brasileira por ser um dos expoentes do Modernismo, movimento caracterizado no cenário artístico brasileiro a partir da década de 217

20 do século passado por promover na pintura, na literatura e na música, questionamentos sobre o que se apresentava na realidade social e política brasileira. Em se tratando de Frederico Paciência, o conto faz parte de uma coletânea lançada pós-morte do autor, em 1947, e apresenta um texto mais intimista e introspectivo de Mário de Andrade. É a primeira e única manifestação do autor sobre o tema da homoafetividade.

No geral, a literatura brasileira que aborda a temática homoerótica ou homoafetiva tem evoluído quantitativamente, nesse aspecto, desde o século XIX, quando surgiram os primeiros romances dedicados total ou parcialmente ao tema, a exemplo de O Ateneu (1888) e Bom-crioulo (1895), de Adolfo Caminha. Em especial na literatura contemporânea, a partir da segunda metade do século XX, esse tipo de literatura tem aparecido e crescido, principalmente no segmento "best-seller", mas também no que a crítica chama "alta literatura". O recorte dado para a infância nos apresenta novos desafios.

Em Frederico Paciência, as relações de poder, seja na escola, na rua, na família, a repressão e a auto-repressão em torno da descoberta homoafetiva, manifestam-se na voz de um narrador em primeira pessoa, Juca, que num tom de memória, constrói uma narrativa repleta de interrupções, confusões, impressões sentimentais conturbadas sobre a relação entre dois garotos, ele e Frederico Paciência, que se conhecem na escola. Mesmo que a narração parta do próprio protagonista, percebe-se que o discurso assume uma posição de submissão aos valores heteronormativos presentes entre os adultos, com claras manifestações desse poder e desse controle descritos por Foucault, que não estão apenas nos aparelhos de Estado, não partem apenas do soberano em direção aos seus súditos, mas aparecem como uma tecnologia de poder sobre os corpos, sobre as almas.

A história dessa microfísica do poder punitivo que se exerce mais do que se recebe seria então uma genealogia ou uma peça para uma genealogia da ―alma‖ moderna. A ver nessa alma os restos reativados de uma ideologia, antes reconheceríamos nela o correlativo atual de uma certa tecnologia do poder sobre o corpo. Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno, na superfície, do interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos – de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência. (FOUCAULT, 1987, p. 28). 218

Ou seja, para o estudioso francês, quanto mais natural for a mecânica de exercício desse poder mais eficiente ele será. (FOUCAULT, 1987, p. 87). E é isso que se apreende na narrativa andradiana de Frederico Paciência. A repressão ao despertar da homoafetividade parte, principalmente, do inconsciente do próprio Juca. A todo instante, ele quer o outro, mas o rejeita ao mesmo tempo.

Na visão de Juca, Frederico era a ―aspiração ao nobre, ao correto‖, o modelo de perfeição masculina, de imitação, contraponto à sua feição ―fraca‖ e ―feia‖; à sua falta de espontaneidade, de coragem; sua tendência aos vícios e à preguiça. Desde o começo do texto, o sentimento erótico confuso de Juca por Frederico aparece mesmo que sutilmente, quando ele afirma: ―Senti logo uma simpatia deslumbrante por Frederico Paciência, me aproximei franco dele, imaginando que era apenas por simpatia. (...). Tive ânsias de imitar Frederico Paciência. Quis ser êle, ser dêle, me confundir naquele esplendor, e ficamos amigos‖. (ANDRADE in DAMATA, 1967, p. 83).

―Único‖ amigo. A narrativa destaca o adjetivo único com ênfase porque esse único talvez queira dizer um algo mais que um amigo. Além disso, o erotismo se apresenta nos momentos em que Juca se pega absorto na beleza do companheiro. ―Frederico Paciência estava maravilhoso, sujo do futebol, suado, corado, derramando vida‖. Rapidamente, a narrativa evoca o sentimento de rejeição por parte do outro e de auto-rejeição, de vergonha da parte de Juca. ―Me olhou com uma ternura sorridente. Talvez houvesse, havia um pouco de piedade. Me estendeu a mão a que mal pude corresponder, e aquela despedida de costume, sem palavras, me derrotou por completo . Eu estava envergonhadíssimo, me afastei logo, humilhado, andando rápido para casa, me esconder‖. (ANDRADE in DAMATA, 1967, P. 85).

O narrador chega a denominar a infância, com um tom negativo, a relação entre os dois amigos. ―O pior é que Frederico Paciência depusera tal confiança em mim, me fazia tais confissões sobre instintos nascentes que me obrigava a uma elevação constante de pensamento. Uns dias quase o odiei. Me bateu clara a intenção de acabar com aquela ―infância‖. Mas tudo estava tão bom‖. (ANDRADE in DAMATA, 1967, p. 85).

Supomos que essa comparação entre a relação homoafetiva que crescia entre os dois e a fase caracterizada como ―infância‖ remete ao histórico de repressão e exclusão que 219 a idade que antecede a vida adulta sofre desde muitos séculos no Ocidente. Foucault (2001) em Os anormais: curso no Collège de France (1974/1975) trata dessa questão das práticas de exclusão dos leprosos na Idade Média, remetendo a outros grupos historicamente rejeitados pela sociedade ocidental.

Em suma, eram de fato práticas de exclusão, práticas de rejeição, práticas de ―marginalização‖, como diríamos hoje. Ora, é sob essa forma que se descreve, e a meu ver ainda hoje, a maneira como o poder se exerce sobre os loucos, sobre os doentes, sobre os criminosos, sobre os desviantes, sobre as crianças, sobre os pobres. Descrevem-se em geral os efeitos e os mecanismos de poder que se exercem sobre eles como mecanismos e efeitos de exclusão, de desqualificação, de exílio, de rejeição, de privação, de recusa, de desconhecimento; ou seja, todo o arsenal dos conceitos e mecanismos negativos da exclusão. (FOUCAULT, 2001, p. 54).

Pressionado pelos valores da sociedade, o próprio Juca rejeita a relação que se torna cada vez mais intensa com Frederico Paciência. Ao mesmo tempo em que o deseja eroticamente – ressalte-se que a consumação da relação sexual entre os dois não fica clara em parte alguma da narrativa – Juca quer excluí-lo de sua vida. ―Em mim, fiz mais foi calcular depressa quantos anos faltava para me livrar do meu amigo‖. (ANDRADE in DAMATA, 1967, p. 85).

O episódio em que Juca empresta um certo livro proibido para Frederico, ―Histórica da prostituição da Antiguidade‖, ilustra a impregnação de que o tema da sexualidade estava sujeito no contexto e época em que se passa a narrativa. Como se representasse um ritual de silêncio, um pacto pela exclusão de tais sensações eróticas de suas vidas, o livro foi destruído por Juca.

E as ruas foram sujadas pelos destroços irreconstituíveis da ―História da Prostituição na Antiguidade‖. Eu sabia que ficava um veneno em Frederico Paciência, mas isso agora não me inquietava mais. Êle, inteiramente entregue, confessava, agora que estava liberto do livro, que ler certas coisas apesar de horríveis, ―dava uma sensação esquisita, Juca, a gente não pode largar. (ANDRADE in DAMATA, 1967, P. 89).

Foucault (1988) assinala bem esse poder que obriga os indivíduos a reprimir certas sensações, em especial a que estão relacionadas com o sexo:

Dir-me-ão que, se há tanta gente, atualmente, a afirmar essa repressão, é porque ela é historicamente evidente. E que se falam com uma tal profusão e há muito tempo, é porque essa repressão está profundamente firmada, possui raízes e razões sólidas, pesa sobre o sexo de maneira tão rigorosa, que uma única denúncia não seria capaz de liberar-nos; o trabalho só pode ser longo. E tanto mais longo, sem dúvida, quanto o que é próprio do poder – e, ainda mais, de um poder como esse que funciona em nossa sociedade – é ser repressivo e reprimir 220

com particular atenção as energias inúteis, a intensidade dos prazeres e as condutas irregulares. (FOUCAULT, 1988, p. 15).

No momento da narrativa andradiana em que a relação do poder repressivo dos outros sobre a amizade dos dois garotos se manifesta com mais veemência, Frederico e Juca recorrem à agressão física para reagir. A literatura apresenta-se como mais um registro histórico de como se tratam as questões que envolvem contatos homoafetivos, em especial no contexto escolar. A punição explícita e selvagem deu lugar a um suplício silencioso, proveniente de múltiplas fontes e situações de persuasão, como bem destaca Foucault em Vigiar e punir (1987). Vejamos trecho do conto que aborda essa situação:

Diante de uma amizade assim tão agressiva, não faltaram bôcas de serpentes. Frederico Paciência, quando a indireta do gracejo foi tão clara que era impossível não perceber o que pensavam de nós, abriu os maiores olhos que lhe vi. Veio uma palidez de crime e êle cegou. Agarrou o ofensor pelo gasganete e o dobrou nas mãos inflexíveis. (...). Frederico Paciência só grunhia: ―Êle me ofendeu‖, ―Êle me ofendeu‖. Afinal – todos já tinham tomado o nosso partido, está claro, com dó de Frederico Paciência, convencidos da nossa pureza – afinal uma frase de colega esclareceu os podres. (ANDRADE in DAMATA, 1967, P. 89).

Logo depois é o próprio Juca quem vai acertar as contas com o colega difamador, na busca por resgatar a ―pureza‖ da relação que mantinha com Frederico Paciência e sua honra de ―homem-feito‖. Depois de dar uma surra no adversário, ele afirma: ―Não era glória nem vanglória, nem volúpia de ter vencido, nada. Era um equilíbrio raro – êsse raríssimo de quando a gente age como homem-feito, quando se é rapaz... Puro. Impuro‖. (ANDRADE in DAMATA, 1967, p. 91).

O episódio da ação repressiva do colega nos remete ao que Foucault (1988) argumenta sobre o controle da sexualidade infantil, que foi reforçado a partir do século XIX pelas campanhas contra a masturbação durante a infância. Esforço que mobilizou as sociedades ocidentais em torno do sexo das crianças, com mecanismos fortes de vigilância em casa, nas escolas, na rua, espalhando o medo e a culpa. Prazer e poder andavam lado a lado, numa constante interpenetração.

Prazer em exercer um poder que questiona, fiscaliza, espreita, espia, investiga, apalpa, revela; e, por outro lado, prazer que se abrasa por ter que escapar a esse poder, fugir-lhe, enganá-lo ou travesti-lo. Poder que se deixa invadir pelo prazer que persegue e, diante dele, poder que se afirma no prazer de mostrar-se, de escandalizar ou resistir. (FOUCAULT, 1988, p.45).

Tal episódio também nos faz voltar a destacar a ―microfísica do poder‖ que Foucault detectou nos mínimos detalhes das interações entre os indivíduos que se passam 221 no cotidiano. O poder não precisa do direito ou da violência para ser exercido. É um poder disciplinar que tem o objetivo ao mesmo tempo de reprimir, corrigir e produzir saber, produzir uma verdade e ser produzido por essa verdade. Roberto Machado, em prefácio da 25ª edição brasileira de Microfísica do poder (1979) explica:

O que Foucault chamou de microfísica do poder significa tanto um deslocamento do espaço da análise quanto do nível em que esta se efetua. Dois aspectos intimamente ligados, na medida em que a consideração do poder em suas extremidades, a atenção a suas formas locais, a seus últimos lineamentos tem como correlato a investigação dos procedimentos técnicos de poder que realizam um controle detalhado, minucioso do corpo – gestos, atitudes, comportamentos, hábitos, discursos. (FOUCAULT, 1979).

O próprio Foucault explica essa questão da manifestação do poder que advém de certas verdades institucionalizadas pela sociedade, sendo uma dessas verdades a rejeição ao padrão homoafetivo nas relações.

O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (não é – não obstante um mito, de que seria necessário esclarecer a história e as funções – a recompensa dos espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que souberam se libertar). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ―política geral‖ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 1979, p. 12).

A ocorrência do primeiro beijo entre os dois amigos trouxe à tona novamente a ambiguidade que permeava a relação, cada vez mais forte e cada vez mais arriscada. ―Precisamos tomar mais cuidado‖, constataram, após o beijo. Num misto de atração irresistível e rejeição daquele sentimento, a relação de amizade entre Juca e Frederico Paciência durou até perto da transição para a fase adulta, ou seja, os 18 anos.

E esta técnica, feita de afastamentos e paciências, naquele estádio de verdades muito prêto e branco era uma pequena, voluntária desagregação impensada. De maneira que adquiríamos uma convicção falsa de que estávamos nos afastando um do outro, por incapacidade, ou melhor: por mêdo de nos analisarmos em nossa desagregação verdadeira, entenda quem quiser. No colégio éramos apenas colegas. De noite não nos encontrávamos mais, ele estudando. (ANDRADE in DAMATA, 1968, p. 89).

O próprio título do conto, ―Frederico Paciência‖, nome que é repetido na narrativa de 18 páginas ao todo 57 vezes, pode ser tomado como uma metáfora do que nos apresenta a narrativa sobre a descoberta homoafetiva de dois garotos na São Paulo da primeira metade do século XX. Paciência para suportar uma verdade que submetia a 222 relação a um poder disciplinador. Paciência, em fim, que durou o suficiente para marcar para sempre a memória do narrador. REFERÊNCIAS: ANDRADE, Mário de. Frederico Paciência. In: DAMATA, Gasparino (Org.). Histórias do amor maldito. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1968. ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flaksman. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1981. COUTINHO, Fernanda. Figurações da infância. In: ______. Imagens da infância em Graciliano Ramos e Antoine de Saint-Exupéry. Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil, 2012 DOVER, Kenneth James. A homossexualidade na Grécia antiga. Tradução de Luís Sérgio Krausz. São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2007. FOUCAULT. Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 25. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1987. ______. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. ______. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. ______. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001. HEYWOOD, Colin. Uma história da infância: da Idade Média à época contemporânea no Ocidente. Tradução de Roberto Cataldo Costa. Porto Alegre: Artmed, 2004. LOPES, Denilson. Uma história brasileira. In: ______. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 2011.

223

A LIDA E O LIDADOR: PORTUGAL SOB O SIGNO DA GUERRA84

Benjamin Rodrigues Ferreira Filho85

Resumo: Na Península Ibérica, durante o século XII, está em andamento um período de terríveis batalhas entre cristãos e seguidores do Alcorão, pois desde o ano 711 os árabes tinham iniciado a conquista de terras de Espanha e os povos ali estabelecidos lutavam pela ; a Dinastia de Borgonha da Coroa Portuguesa é fundada a partir de lutas internas, que dividem o Condado Portucalense e lançam Dom Afonso Henriques contra sua própria mãe, Teresa. No conto ―A morte do Lidador‖, Alexandre Herculano se refere aos últimos combates do cavaleiro Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador, que morre, em luta contra os islâmicos, aos noventa e cinco anos de idade. No Quarto Livro de Linhagens, onde se encontra a narrativa ―De dom Gomçallo Meendez da Maya o Lidador e das batalhas que ouue‖, é narrada, da mesma maneira, a morte heróica do guerreiro lusitano. Este cavaleiro também é personagem do romance O bobo, de Herculano, onde aparece, mais uma vez, como um combatente valente e orgulhoso. Tendo como ponto de partida os referidos textos literários, este trabalho aborda o tempo histórico do estabelecimento do Reino de Portugal, sob Dom Afonso Henriques (Dom Afonso I, que reina de 1139 a 1185): trata-se de um tempo de guerra e carnificina, quando os portugueses lutam para reconquistar as terras lusitanas dos árabes e pretendem organizar o seu reino.

Palavras-chave: Portugal; Idade Média; Guerra.

Abstract: On the Iberian Peninsula, during the XIIth Century, a period of intense battles was underway between Christians and the followers of the Koran. Such battles had been waged since the year 711, when the Arabs began to conquer lands belonging to and the population who had established their livelihoods on these lands fought to reconquer their losses. During the same time period, the Portuguese House of Burgundy was founded, based on internal fighting which divided the and lanced Don Afonso Henriques to battle against his own mother, Teresa. In the story The Death of the Lidador , Alexandre Herculano refers to the last battles fought by the knight Gonçalo Mendes da Maia, known as the Lidador for his fearlessness, who dies at the age of ninety- five in battle against the followers of . In the Quarto Livro de Linhagens, a peerage book compiled in Portugal in the Medieval period in which the lineages of the nobility were recorded, one finds the narrative De dom Gomçallo Meendez da Maya o Lidador e das batalhas que ouue, in which the heroic death of the Portuguese knight is told in the same manner. The same knight is also found as a character in the romance The Fool , written by Herculano, where he once again appears as a valiant and proud combatant. Taking as reference the above-mentioned literary texts, this paper addresses the turmoil of the historical period in which the is established, under the leadership of Don Afonso Henriques (Don Afonso I, who reigns from 1139 to 1185): it is a time of war and carnage, when the Portuguese must fight to reconquer Lusitanian lands from the Arabs and organize their reign.

84 Este trabalho está ligado ao Projeto de Pesquisa ―Brasil e Portugal: o processo colonial‖, desenvolvido na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Campus Universitário de Rondonópolis, por sua vez vinculado ao Grupo de Pesquisa ―As vicissitudes da civilização brasileira‖, cadastrado no Cnpq desde 2010. 85 Professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Campus Universitário de Rondonópolis. E-mail: [email protected] 224

Keywords: Portugal; ; War.

O primeiro rei de Portugal, Dom Afonso Henriques (Dom Afonso I), reina de 1139 a 1185 e, quando inaugura a Coroa Portuguesa, vive muitos efeitos da longa história daquela terra peninsular. Um dos principais problemas que enfrenta é a presença dos árabes, chegados aos sítios de Espanha desde 711, período em que os godos estavam estabelecidos na faixa territorial em que hoje se assenta Portugal. Os godos, por sua vez, tinham instalado o seu poder no local no contexto das chamadas Invasões Bárbaras, que destituíram o domínio romano. Antes dos romanos estavam os celtiberos e antes dos celtiberos havia vida humana no chão que é Portugal desde a Idade da Pedra. Toda história se perde em um passado longínquo, na escuridão irrecuperável. E as vibrações de tempos muito distantes chegam até o presente. Qualquer presente. O passado está perdido, mas todo passado é presente. Assim, ainda está em andamento a constituição do Reino de Portugal. Afonso Henriques derrota Teresa, sua mãe, na Batalha de São Mamede (1128); proclama-se rei após a Batalha de Ourique (1139), quando, segundo a lenda, Cristo teria aparecido em pessoa para ele, o que dá à tradição portuguesa um aspecto religioso bastante saliente e este estímulo venerando (entre todos os outros, evidentemente) justifica os combates e as carnificinas. ―Mas já o Príncipe Afonso aparelhava / O lusitano exército ditoso, / Contra o mouro que as terras habitava / De além do claro Tejo deleitoso‖, canta Luís de Camões, em Os lusíadas (1988, p. 87; canto III, estrofe 42). A bênção e a espada se estreitam e a união da arma com a fé perdura durante os séculos, como registra Fernando Pessoa, em Mensagem (2010, p. 27): ―Pai, foste cavaleiro. / Hoje a vigília é nossa. / Dá-nos o exemplo inteiro / E a tua inteira força! // Dá, contra a hora em que, errada, / Novos infiéis vençam, / A bênção como espada, / A espada como bênção!‖. O historiador, o ficcionista, o poeta e o leitor vivem, em suas figurações, o momento em que nasce essa dinastia, que traça uma história. Os movimentos sociais, políticos, econômicos e culturais relacionados aos lusitanos se dão, em forma de presente pulsante, na dinâmica de cada aproximação — cognitiva e emocional. Dom Afonso Henriques vive, por exemplo, em O bobo, de Alexandre Herculano, enfrentando sua própria mãe, como futuro rei fundador. E sua figura e suas ações são elementos orgânicos de uma história. Em ―Arras por foro de Espanha‖, o povo, ―envolto nos seus eternos farrapos‖, insatisfeito com o envolvimento afetivo do rei Dom Fernando com Dona Leonor Teles (que não pode deixar de ser político, perigosamente político), 225 manifesta a sua cólera, na praça pública; e vemos, então, no conto e na história, a dialética do poder popular, ―ridículo e feroz‖, ―sublime e terrível‖, promissor e decepcionante (HERCULANO, 1985, p. 148). Componentes importantes da cultura portuguesa, essas imagens estão em vigor, presentemente. Como indaga Walter Benjamin (1994, p. 223), ―Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?‖. O passado, então, como aquilo que efetivamente aconteceu, de uma forma e não de outra, está vivo e é presente. A Guerra do Peloponeso ocorreu, Roma ocorreu, as Cruzadas ocorreram; e as consequências e vibrações do havido se prolongam. A Guerra do Peloponeso ocorre, Roma ocorre, as Cruzadas ocorrem. O Brasil é colonizado por Portugal e não por Espanha, França ou Holanda. Cada cena histórica — como drama representado, como quadro real — está ainda em andamento. A cada leitura (interpretação do acontecimento), o drama histórico pode ganhar nova roupagem e novos sentidos, porém não é da energia de sua realização existencial, latejante, que devem provir os textos, historiográficos ou literários, que os registram, mesmo que o acesso ao fenômeno seja problemático, mesmo que a história seja precária, mesmo que tudo seja invenção e que este mesmo drama histórico esteja definitivamente perdido? Se o olhar só pode ser turvo e não pode compreender nunca o que acontece, nem por isso deixam de se realizar, vivas, as coisas. Uma vez que a história ocorreu, ela é inevitável; uma vez que é inevitável, porque ocorreu, ela perdura no tempo humano; uma vez que perdura, é sempre presente. No século XII, em Portugal, cristãos e árabes se enfrentam; aproximam-se e se afastam; influenciam-se e se matam mutuamente. A guerra entre cristãos e mouros é um componente tão importante da Idade Média ibérica que a cor vermelha do sangue derramado está presente em todo o quadro geral, juntamente com o cotidiano das povoações, com o seu funcionamento social e os seus apuros. Basicamente, portanto, há os confrontos entre cristãos e árabes, porém há também: convivência, escravidão de ambos os lados, cristãos a serviço de árabes, árabes a serviço de cristãos, cristãos contra cristãos, árabes contra árabes. A dinâmica humana que se afigura, então, não é simplesmente de conflitos binários; nunca é assim, pois a história é sempre múltipla e complexa. ―Nas terras onde se ia desagregando o domínio sarraceno ou naquelas que os cristãos conquistavam não se ‗restaurou‘ propriamente uma estrutura política anteriormente existente‖, afirma José Hermano Saraiva; ―Em vez disso‖, continua, ―nasciam poderes novos que se iam moldando ao sabor das circunstâncias, poderes representados por chefes 226 locais entre os quais se estabelecia uma hierarquia nem sempre bem definida, intercalada de episódios de submissão e de rebeldia‖ (1991, p. 41). A situação política na península Ibérica, pois, não é nada estável. Ainda de acordo com José Hermano Saraiva (1991, p. 42),

Alguns nobres governavam terras por nomeação dos reis, outros por as terem eles próprios conquistado ou ocupado; nas tradições da nobreza de Espanha ficaram muitos vestígios dessa nobreza que entendia não dever nada aos reis. Os títulos desses governadores eram os de condes ou de dux; eram um misto de proprietários e de guerreiros, de governadores e de salteadores. Faziam a guerra quando o rei os chamava, compareciam nas reuniões mais solenes que ele mandava reunir. Mas não faltam exemplos de eles próprios fazerem guerra entre si ou contra o rei e até ao lado dos reis mouros contra os reis cristãos. Quando Almançor, no fim do século X, foi a Compostela arrasar a cidade (que por essa altura se tornara centro de peregrinações) e roubar os sinos da catedral, ia acompanhado por condes cristãos.

O governo de Dom Afonso Henriques sobre o Condado Portucalense começa com a luta contra sua própria mãe que, morto o conde Dom Henrique (marido de Teresa e pai de Dom Afonso Henriques), une-se ao conde de Trava (Fernando Peres), o que resulta em tendência de ligação com a Galiza e de submissão a Leão e Castela. Como o Condado Portucalense está mais propenso à independência política de que à obediência a Leão e Castela, as próximas etapas são, efetivamente, a luta entre Dom Afonso Henriques e sua mãe (batalha de São Mamede, em 1128) e sua autoproclamação como rei (em 1139 ou 1140). Este reinado, primeiro da Coroa Portuguesa, é assim resumido por Albert-Alain Bourdon (2011, p. 17): Dom Afonso Henriques —

viria a alcançar a independência de Portugal. Após ter expulsado Teresa, sua mãe, que procurava ligar Portugal à Galiza, recusou-se a prestar homenagem ao primo Afonso VII, que em 1137, pelo tratado de Tui, reconheceu a sua autoridade até a fronteira do rio Minho. Mas só o prestígio alcançado na luta contra os mouros lhe viria a permitir a plena realização dos seus desígnios. Em 1139, segundo a tradição, obteve a célebre vitória de Campo de Ourique. Foi na sequência desta batalha que tomou o título de rei, que Afonso VII só lhe reconheceu em 1143, pelo tratado de Zamora. E só em 1179 o papa Alexandre III confirmou o título. Do Minho ao Mondego estendia-se assim o jovem reino de Portugal, que, além de Guimarães, a capital, e Braga, a metrópole eclesiástica, compreendia duas cidades já importantes, Porto e .

Trata-se de um reinado marcado por muito empenho, tomado pela guerra, banhado de sangue. Entre os cavaleiros a serviço do rei, dedicados aos esforços das pelejas cruéis, destaca-se o lendário Dom Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador. 227

Em O bobo, de Alexandre Herculano, a figura do Lidador aparece acompanhada das melhores considerações. Ainda anônimo, pois no momento o narrador esconde do leitor a identidade do personagem, assim vem qualificado Gonçalo Mendes da Maia: ―era um cavaleiro que mostrava ter pouco mais de trinta anos, membrudo, alvo, cabelos anelados e louros — um verdadeiro nobre da raça germânica dos visigodos‖ (1967, p. 34). Adiante, agora identificado e distinto, o Lidador recebe, por parte do narrador, outros qualificativos elogiosos: ―era o célebre Gonçalo Mendes da Maia, ao qual, em verdes anos, extremadas gentilezas de armas tinham feito dar o apelido de Lidador, de que por toda a sua larga vida ele se havia de mostrar constantemente digno‖ (1967, p. 37). Em O bobo, o Lidador é um nobre muito preocupado com a situação política que lança Dom Afonso Henriques contra Dona Teresa e o conde de Trava e, embora se esforce para que não ocorra o levante do filho contra a mãe, não tem nenhuma dúvida em apoiar o seu suserano. A narrativa ―De dom Gomçallo Meendez da Maya o lidador e das batalhas que ouue‖ está no Livro de linhagens do Conde Dom Pedro — o escrito aqui considerado consta na Antologia de textos medievais de José Pereira Tavares (1957, p. 233-237) e a grafia adotada obedece a essa edição. O texto do livro de linhagens, sucinto e positivo, já tem no início o sinal de adição, indicando que o herói nobre empreendeu mais batalhas e obteve mais vitórias do que está narrado na obra (―e vemçeo muitas lides de que aqui nom falamos‖). Em Beja, como cavaleiro encarregado da guarda da cidade, Gomçallo Meendez da Maya enfrenta duas batalhas, uma contra o grupamento de Almoliamar, outra contra os guerreiros de Alboaçem (rei de Tanger), que chegam para auxiliar Almoliamar. Quando enfrenta Almoliamar (que é um homem extraordinariamente forte, pois ―avia tall força que em todo homem que posesse a lamça nom lhe valia armadura que se lhe nom quebrasse que lha nom metesse pelo corpo‖), o Lidador o mata, porém também é golpeado, mortalmente. Ferido, seus companheiros o recolhem, contentes pela vitória parcial, mas já apreensivos, por avistarem as hostes de Alboaçem, que correm em auxílio dos árabes. Informado sobre a chegada da tropa inimiga, abatido pelas lesões, o Lidador chama os seus fidalgos e dialoga com eles. Primeiramente, diz que todos sabem como foi vontade de Deus que Dom Afonso Henriques (―dom Affomso Amrriquez‖, no texto) o nomeasse guarda da fronteira de Beja; aqui, a marca da vassalagem: acima do merecimento de Gomçallo Meendez da Maya está a vontade do rei. O Lidador entende que cada um daqueles nobres guerreiros portugueses merece comandar a defesa de Beja; mas, dada a urgência da hora perigosa, em que o inimigo vem velozmente, cresce em número e força e não permite uma longa assembleia, ele pede que lhe permitam emitir o seu parecer sobre a 228 situação. Todos concordam, pois, ali, não são apenas companheiros de luta que estão diante de um guerreiro ferido, mas sim camaradas que amam o cavaleiro batido. O Lidador, então, pede um ―dom‖, solicita que lhe concedam o que requer. A resposta comum é que não há o que peça o Lidador que eles todos não outorguem, pois todos estão certos de que o pedido só pode ser razoável, só pode implicar em mais honra para todos. O Lidador sabe que está mortalmente ferido, sabe que perde as forças, mas esconde isso de seus amigos; tudo é urgente, pois a vida está se acabando e é preciso resolver questões políticas de organização da guerra contra os árabes; o seu pedido é que, perecendo ele na peleja, que seja substituído por Dom Egas Gomes de Sousa, nobre ―de boa linhagem e de gramdes bomdades‖. Casado com Dona Gontinha Gonçalves, Dom Egas Gomes de Sousa é genro do Lidador. O rosto de Gomçallo Meendez da Maya perde cada vez mais a cor; Affomso Ermigic Bayam percebe sua fraqueza crescente e lhe diz que se desarme e sossegue, a um canto, de onde veja os seus companheiros morrerem ou vencerem o inimigo, que outra cena não há para contemplar senão a destruição da guerra. A resposta do Lidador é que Deus não queira que ele esconda sua força enquanto ela possa durar e ser usada a favor de seus amigos, de tais amigos. Os mouros se aproximam rapidamente, sabendo que a batalha com os homens de Almoleymar atingiu a força dos cristãos e portanto favoreceu os islâmicos, facilitando a vitória árabe. Então Gomçallo Meendez da Maya se ergue e pronuncia: Guerreiros! — ―senhores, estes mouros veem com gram loucura, vaamollos rreçeber‖! Lançam-se à batalha. Logo o Lidador cai de sua montaria, fraco, mais ferido ainda, porém imediatamente ajudado pelos amigos, ―que já o nom podiam vimgar se ali o nom vimgauam‖. A força do afeto pelo cavaleiro aumenta a força da violência; a força da amizade multiplica o ímpeto contra o inimigo. E a luta se faz, determinante, partindo armas e armaduras, despedaçando os corpos humanos, lançando ao chão o sangue que antes corria nas veias e dava vida à carne. Os estragos são tantos e de tal ordem que cristãos e mouros, vendo os sinais do embate, não podem crer que os golpes ali desferidos tenham vindo de ação humana. Os corpos humanos, jogados ao chão, estão dilacerados, cortados pela metade, aos pedaços; também jazem por terra os cavalos, animais que não decidem pela razão de que lado político ou religioso estão, apenas obedecem aos homens, mas perecem igualmente. Não faltam cadáveres nos campos de batalha. Diz a lenda que o próprio Santiago lutou ao lado dos portugueses. Corre entre o povo que os golpes que causaram tais destroços só podem ter sido feitos em uma ocasião maravilhosa, fantástica, sobrenatural, no caso, Santiago, com a força de Deus, teria agido ali. Consta no Livro de linhagens do Conde Dom Pedro (TAVARES, 1957) que — ―a verdade foy esta‖ — estes golpes 229

―forom dados por os muy boos fidallgos com ajuda de Santiago‖. Os mouros são derrotados. O Lidador é encontrado morto pelos seus amigos de armas. Tristeza e dó é o que podem oferecer, dignos e altivos, porém acabrunhados, os cavaleiros portugueses. O defunto (agora o Lidador é apenas um morto) é recolhido dignamente, com as honras que merece. Tinha noventa e cinco anos de idade. Era chamado já há bastante tempo de Lidador. Agora é um cadáver de guerreiro e é chamado pelos amigos de ―o boo velho lidador‖. Olham para o seu corpo morto e verificam que suas feridas, tão grandes, estão em partes fatais. Perguntam-se como pôde a força do herói durar tanto, se tão frágil ele estava; e testemunham a lenda do Lidador. A fama dessa batalha junta-se à fama de feitos anteriores e logo vai adicionar mais heroísmo à tradição popular e literária do Lidador e dos cavaleiros portugueses — à tradição popular, à lenda e ao mito do nobre português, alimento forte do nacionalismo dos lusíadas. É por isso que Vitorino Nemésio (1967) entende que, depois, já no século XIX, Alexandre Herculano, como historiador e escritor romântico, tem a intenção de usar o passado (o heroísmo pretérito) para encorajar os homens do presente, ao olhar de Herculano tão inferiores e mesquinhos, em relação aos nobres portugueses da Idade Média. O conto de Alexandre Herculano, ―A morte do Lidador‖ (1985, p. 107-118) tem marca temporal específica e precisa, julho de 1170, e começa com a voz de Gonçalves Mendes da Maia, que reclama de pajens e cavaleiros as armas e apetrechos de guerra, para celebrar, no campo de batalha, os seus noventa e cinco anos de idade. Parecem ser palavras imprudentes, tanto que Mem Moniz chama a sua atenção, alertando que Almoleimar ronda os arredores de Beja, munido de armas que superam dez vezes os aparatos bélicos dos portugueses. O Lidador, porém, desdenha da sensatez de Mem Moniz, alegando que o rei não o encarregou da defesa de Beja para ficar no castelo espreitando de longe os inimigos, ―como velha dona‖, vigiando se chegam, para logo correr, fechar as portas e ladrar de cima contra eles, ―como usam os vilãos‖. Entusiasmados, todos os cavaleiros riem, e então é a vez de Mem Moniz mandar a precaução às favas, atirar violentamente o guante ao chão e dizer que não fica no castelo enquanto houver lidas contra mouros; ele desafia o Lidador para disputar quem primeiro atinge os inimigos; e a tropa sai; os ferros das armaduras percutem no chão de mármore e logo a cavalaria aumenta os ruídos da partida, na iminência da guerra. O narrador de Herculano convida o olhar do leitor para um passeio pelos campos de Beja, cultivados por escravos mouros, e a voz histórica deste mesmo narrador considera os séculos de luta entre cristãos e árabes na Península Ibérica. O momento é de ameaça, os confrontos estão prestes a ocorrer. As duas facções de guerreiros 230 logo se encontrarão. Almoleimar está muito próximo e a tropa portuguesa avança. Mais de uma vez Alexandre Herculano se refere a números: seriam trinta fidalgos portugueses unidos a cerca de trezentos escudeiros e pajens; do lado mouro, o contingente é cinco vezes maior. ―A rudeza e a força da raça gótico-romana iam, ainda uma vez, provar-se com a destreza e com a perícia árabes‖, alerta o narrador. ―Encontraram-se! Duas muralhas fronteiras, balouçadas por violento terremoto, desabando, não fariam mais ruído, ao bater em pedaços uma contra a outra, do que este recontro de infiéis e cristãos‖: a voz do narrador é partidária. A guerra, plena, pode espalhar destruição e morte. Armas são quebradas, carnes são rasgadas, ossos são partidos e os homens se matam entre si. Durante os combates, Mem Moniz responderá, não apenas uma vez, à brincadeira do Lidador, feita logo no início da ação do conto, no castelo de Beja, demonstrando que ficou sentido, talvez ofendido, pois tomou contra si a imagem da velha que vigia de longe os mouros e grita contra eles, protegida pelos muros, como vilão ordinário. O melindre entre os dois acaba sendo um ponto afetivo importante do conto, sendo que Lourenço Viegas (o Espadeiro) intervém energicamente e parece resolver a questão. Palavras, palavras: tanto acalmam quanto ferem. Claro que Almoleimar e o Lidador se encontram no campo de batalha e se enfrentam. Na luta, Almoleimar morre e o Lidador fica ferido de morte. A imagem de Herculano é marcante, porque, contra os ódios recíprocos e contra a definitiva impossibilidade de reconciliação, o escritor chama a atenção para a união dos sangues inimigos: ―Ainda mais uma vez a mesma terra bebeu nobre sangue godo misturado com sangue árabe‖. Tanta repulsa, tanta ira entre os homens, para tudo acabar na solidariedade odiosa dos sangues inimigos unidos: ―Onde está o ódio entre esses homens próximos, abraçados, cujos sangues se procuram, pintando o mesmo desenho no chão desolado?‖ (FERREIRA FILHO, 2008, p. 180). O Lidador desfalece no campo, é socorrido e levado para um lugar seguro, enquanto a labuta, agora em gradação descendente, continua aumentando o número de mortos. ―O tinir dos golpes era já muito frouxo e sumia-se no som dos gemidos, pragas e lamentos que soltavam os feridos derramados pela veiga ensanguentada‖. Chegam, porém, novos guerreiros mouros; e o Lidador se ergue, fraco, mas revigorado pela cólera, para matar quantos possa e morrer lutando, como bom cavaleiro e como cristão dado às armas. De fato, antes de cair, morto, sobre o chão da Espanha banhada em sangue, Gonçalo Mendes da Maia, como guerreiro, faz estragos; suas forças, contudo, se esgotam e sua vida chega ao fim. Em O bobo, sua voz poderosa já havia proclamado, em presságio: ―eu, o homem que, ao abrir os olhos no mundo, a primeira luz que vi foi o reflexo brilhante de armas polidas, e que espero, ao cerrá-los para sempre, vê- 231 las reluzir no volver derradeiro deles‖ (HERCULANO, 1967, p. 44). De volta ao conto, eis a morte do Lidador, sob o foco romântico do escritor-historiador e dos olhos atentos do leitor. A notícia se espalha e entre os portugueses também espalha lágrimas. A peleja, contudo, não acabou. A tropa de Ali-Abu-Hassan chega à praça de guerra. A luta se intensifica. Gritando o nome do Lidador, o Espadeiro mata Ali-Abu-Hassan. Os mouros, em número muito maior, fogem. Cabe citar a imagem do sombrio retorno dos guerreiros, depois do combate:

Os portugueses, senhores do campo, celebravam com prantos a vitória. Poucos havia que não estivessem feridos; nenhum que não tivesse as armas falsadas e rotas. O Lidador e os demais cavaleiros de grande conta que naquela jornada tinham acabado, atravessados em cima dos ginetes, foram conduzidos a Beja. Após aquele tristíssimo préstito, iam os cavaleiros a passo lento, e um sacerdote templário, que fora na cavalgada, com a espada cheia de sangue metida na bainha salmeava em voz baixa aquelas palavras do livro da Sabedoria‖.

Sim, a guerra é santa — o conflito é religiosamente aberto e o final do conto é litúrgico. As palavras do livro da Sabedoria, em latim, são divinas: ―Justorum autem animae in manu Dei sunt, et non tangent illos tormentum mortis‖. Antônio José Saraiva e Óscar Lopes ([S.d.], p. 688) consideram em Alexandre Herculano ―certo culto do cavaleiresco, bem mais incoerente num homem que se dizia ‗burguês dos quatro costados‘, do que no seu modelo, Walter Scott, que era um passadista intencional‖; e dizem ainda que ―Os belos lances de armas que o burguês de 1840 ligava à recordação dos brasões extintos, a defesa da honra à ponta de espada ou de punhal, etc., enchem muitas páginas do autor da Voz do profeta‖. De fato, Herculano parece valorizar, como Friedrich Nietzsche, a ―alma nobre‖, orgulhosa e superior. Em Além do bem e do mal (1998, p. 181; seção 265), Nietzsche desfia: ―Com o risco de desagradar a ouvidos inocentes eu afirmo: o egoísmo é da essência de uma alma nobre, quero dizer, aquela crença inamovível de que, a um ser ‗tal como nós‘, outros seres têm de sujeitar-se por natureza, e a ele sacrificar-se‖. Em uma passagem anterior, o severo filósofo alemão elucida que ―A casta nobre sempre foi, no início, a casta de bárbaros: sua preponderância não estava primariamente na força física, mas na psíquica — eram os homens mais inteiros (o que em qualquer nível significa também ‗as bestas mais inteiras‘ —)‖ (1998, p. 170; seção 257). Como escritor romântico, Alexandre Herculano glorifica o passado lusitano, querendo assim elevar um pouco o presente decadente de seu tempo (século XIX). Em ―A morte do Lidador‖, o narrador declara: ―Quem hoje ouvir recontar os bravos golpes que no mês de julho de 1170 se deram na veiga da fronteira de Beja, notá-los-á de fábulas 232 sonhadas‖; explica, em seguida: ―porque nós, homens corruptos e enfraquecidos por ócios e prazeres de vida afeminada, medimos por nosso ânimo e forças as forças e o ânimo dos bons cavaleiros portugueses do século XII‖; e, finalmente, enfatizando a imagem do prolongamento das vozes e dos rumores históricos no tempo, conclui: ―e todavia, esses golpes ainda soam, através das eras, nas tradições e crônicas, tanto cristãs como agarenas‖ (HERCULANO, 1985, p. 116). Embora o desejo sanguinário de vingança do escravo mouro que cultiva a terra portuguesa não deixe de aparecer em ―A morte do Lidador‖ — ―esperava ele salvação ou, ao menos, vingança; ao menos, um dia de combate e corpos de cristãos estirados na veiga para pasto dos açores bravios‖ (HERCULANO, 1985, p. 109) —, a perspectiva cristã, que pretende espalhar sua fé pelo mundo todo, prevalece, claro. O ponto de vista islâmico, entretanto, pode defender igual missão universal: ―os árabes, a partir da morte de Maomé, se sentiram encarregados de transmitir sua mensagem aos não-árabes, missão essa que lhes conferiu para sempre um sentimento de superioridade‖ (SOURDEL, 2011, p. 26). Verdade sagrada de um lado, verdade sagrada de outro. A realidade é que essas questões — políticas, econômicas, religiosas, culturais — não estão esgotadas ainda hoje (2013), tempo que também não eliminou a guerra, nem inúmeros outros problemas, tão antigos quanto o próprio homem (e que parecem derivar exatamente dele, homem). Neste mundo essencialmente econômico, as disputas de interesses, os conflitos políticos, os choques culturais, os embates de poderes e tantos outros agravos grassam sobre a Terra, enquanto as vidas humanas grafam suas histórias belas e terríveis. Nas redes dos enredos, continuamente há contas a acertar e a guerra é sempre atual.

REFERÊNCIAS:

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet; prefácio: Jeanne Marie Gagnebin. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BOURDON, Albert-Alain. História de Portugal. Lisboa: Texto & Grafia, 2011.

CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1988.

FERREIRA FILHO, Benjamin Rodrigues. Comédia negra e outros assombros: política, história e guerra na ficção de Rubem Fonseca. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. Disponível em: http://www.letras.ufrj.br/ciencialit/trabalhos/2008/benjamimferreira_comedianegra.pdf. Acesso em 9 de março de 2013.

HERCULANO, Alexandre. O bobo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967. 233

_____. Contos. 2. ed. Introdução e seleção: Fernando Correia da Silva. São Paulo: Cultrix, 1985.

NEMÉSIO, Vitorino. Prefácio. In: HERCULANO, Alexandre. O bobo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, p. 5-10.

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. 2. ed. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

PESSOA, Fernando. Mensagem. São Paulo: Abril, 2010.

SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. 14. ed. Mem Martins: Europa- América, 1991.

SARAIVA, Antônio José; LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. 3. ed. Porto: Porto Editora, [s.d.].

SOURDEL, Dominique. História do povo árabe. Tradução: Cândida Leite Georgopoulos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.

TAVARES, José Pereira. Antologia de textos medievais. Lisboa, Sá da Costa, 1957.

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O (DES)ENSINO DE LITERATURA NO ENSINO MÉDIO: LETRAMENTO LITERÁRIO E MEDIAÇÕES DOS LIVROS DIDÁTICOS – CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Bonfim Queiroz Lima Pereira86

Prof. Dr. Márcio Araújo de Melo (Orientador)87

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo apresentar algumas considerações sobre uma proposta de pesquisa e análise do processo de escolarização da literatura em escolas de ensino médio da rede estadual de ensino do município de Xinguara no estado do Pará. Nosso interesse em investigar o referido assunto se justifica pela tentativa de contribuir com os debates a respeito do uso de textos literários e dos livros didáticos de Português no ensino de literatura, práticas estas norteadas por relações muito complexas, que carecem de estudos, reflexões de discussões. Como esta pesquisa encontra-se em fase inicial o que propomos aqui é refletir sobre a importância do ensino de literatura para a formação de leitores literários, principalmente no ensino médio, pois será para muitos estudantes o último contato sistemático com tal disciplina. Articulamos tais reflexões em dois momentos: primeiro levantaremos considerações a respeito do termo letramento e sua aplicabilidade no campo dos estudos literários e depois abordaremos algumas considerações a respeito da escolarização da literatura e o papel do livro didático de língua portuguesa nesse processo de ensino.

Palavras-chave: Ensino de literatura, Letramento literário, Livro didático.

Abstract: The present work has as objective to present some considerations about a proposal of research and analysis of the process of schooling of the literature in schools of high school of the state network of teaching of the county of Xinguara in the state of Pará. Our interest in investigating the referred subject is justified by the attempt of contributing with the debates about the use of literary texts and of the textbooks of Portuguese in the literature teaching, these practices guided by very complex relations, that lack of studies, reflections and discussions. As this research is in the initial phase what we propose here is to reflect about the importance of the literary teaching for the formation of literary readers, mainly in the high school, because it will be for many students the last systematic contact with such subject. We articulate such reflections in two moments: firstly we raise considerations about the term literacy and its applicability in the field of the literary studies and after we will discuss some considerations about the schooling of the literature and the role of the textbook of in this teaching process.

86 Mestranda em Ensino de Língua e Literatura do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Tocantins. E-mail: [email protected] 87 Professor do Programa de Pós-graduação em Ensino de Língua e Literatura, da Universidade Federal do Tocantins. E-mail: [email protected]

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Keywords: Literature teaching, Literary literacy, Textbook.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este trabalho apresenta uma proposta de investigação científica em andamento, intitulada ―O (Des)Ensino de Literatura no Ensino Médio: letramento literário e mediações dos livros didáticos‖, cujo objetivos são: compreender como se dá o processo de escolarização da literatura em escolas estaduais de ensino médio no município de Xinguara, estado do Pará, investigando a presença do livros didáticos de língua portuguesa nas aulas de literatura e sua influência no processo de formação do leitor. Pretende ainda, para melhor compreender o espaço da literatura no ensino escolar, levantar e descrever as orientações para o ensino de literatura nos documentos oficiais como os Parâmetros e Orientações Curriculares Nacionais dentre outros. As considerações a serem apresentadas foram organizadas em duas seções. Num primeiro momento são apresentados alguns pressupostos teóricos que embasarão está pesquisa, num segundo momento apresentaremos algumas discussões relevantes a respeito do ensino de literatura e do livro didático.

2. LETRAMENTO E LETRAMENTO LITERÁRIO

Nas últimas décadas do século passado, houve uma modificação profunda na maneira de se compreender a leitura e a escrita. A linguagem passou a ser vista como um processo dinâmico e o letramento começou a ser discutido no meio educacional brasileiro. Conforme Magda Soares (2010) o vocábulo letramento foi usado pela primeira vez no Brasil, por Mary Kato, no texto publicado pela editora Ática, No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística, em 1986. Dois anos depois, passou a representar um referencial no discurso da educação, ao ser definido por Tfouni (1988) em Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso e retomado em publicações seguintes. A partir de então, o termo tem despertado uma ampla discussão entre os estudiosos de diversas áreas, como: Educação, Antropologia, Linguística e, mais recentemente, dos Estudos Literários, gerando, dessa forma, inúmeras concepções, pois um consenso em relação a uma única definição de letramento torna-se impossível, já que tal conceito envolve aspectos ideológicos, operacionais e políticos. 236

De acordo com Soares (2010), é difícil estabelecer uma linha divisória que determine quais indivíduos são letrados e quais seriam iletrados, pois ―o letramento é uma variável contínua, e não discreta ou dicotômica‖ (p.71). Ainda segundo Soares, na busca por traçar essa linha divisória, vários autores tentaram definir o conceito de letramento nos últimos anos, porém acabaram enfatizando apenas uma das dimensões do letramento: ou a individual ou a social. Quando é focalizada apenas a primeira dimensão, o letramento é visto como a posse individual de tecnologias complementares aos atos de ler e escrever; quando enfatizado na perspectiva social pode ser definido como ―o conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social‖ (SOARES, 2010, p. 72). Em suma, Magda Soares considera que o letramento ―é um contínuo, variando do nível mais elementar ao mais complexo de habilidades de leitura e escrita e de usos sociais‖. (SOARES, 2010, p. 89). Assim a inserção social do indivíduo está condicionada a compreensão dos usos sociais da leitura e da escrita, desta forma ser letrado e ser alfabetizado são condições relacionadas, porém diferentes. Encontramos indivíduos alfabetizados que não são capazes de utilizar a leitura e a escrita socialmente, não letrados, chamados por muitos autores de analfabetos funcionais; e muitos indivíduos analfabetos, que mesmo não tendo domínio do código escrito, não tendo passado pelo processo de escolarização, apropriam-se desse código em diversas práticas sociais. Um exemplo dessa apropriação, citado por Magda Soares (2010), é o ditado de uma carta feita por um analfabeto, em que são utilizadas todas as convenções desse gênero textual. Dessa forma, o letramento não acontece apenas na escola, podem-se observar inúmeras formas de letramento. Isso significa usos da escrita em diversos ambiente como no trabalho, em associações de bairro, clubes, em comunidades religiosas, no ambiente familiar, entre outros. Não existe, assim, um único tipo de letramento. Considerando o letramento como conjunto de práticas sociais que usam a escrita como sistema simbólico, para finalidades específicas e para contextos específicos, percebe- se que este conceito pode ser utilizado no campo dos estudos literários quando se compreende a escrita e a leitura dentro das especificidades do texto literário. Uma definição para o letramento literário é encontrada nas Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio: ―podemos pensar em letramento literário como estado ou condição de quem não apenas é capaz de ler poesia ou drama, mas dele se apropria efetivamente por meio da experiência estética, fruindo-o.‖ (BRASIL, 2006, p. 55). 237

Assim o letramento literário não é apenas a condição de ser capaz de ler e compreender textos literários, mas aprender a gostar de ler literatura, e fazê-la por escolha, pela descoberta de uma experiência única em cada leitura, associando este ato ao prazer estético. Para Paulino (1999, p. 16) ―o letramento literário, como outros tipos de letramento, continua sendo uma apropriação pessoal de práticas de leitura/escrita, que não se reduzem à escola, embora passem por ela‖. Essa passagem pela escola é muito importante para formação do leitor de literatura e requer uma apreciação a parte.

3. A ESCOLARIZAÇÃO DA LITERATUARA

O ensino de literatura que se desenvolve hoje nas escolas está aquém do desejado por muitos professores, literatos e até dos próprios alunos. Pois o que se ensina na maioria das aulas é a história da literatura, a gramática e a teoria literária através das tão estudadas ―escolas literárias‖. O conceito de literatura tomado como base para o ensino escolar difere muito do desejado por Todorov e Candido, para esse: A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos reorganiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade. (CANDIDO, 2004, p. 186).

E para aquele: ―A literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo‖. (TODOROV, 2009, p. 23). ―Ela nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno sentido e mais belo‖ (TODOROV, 2009, p. 24). Se essa não for a visão adotada pelos educadores, a literatura perde o real motivo de existir. E como consequência temos crianças e adolescentes que não leem textos literários com grande frequência, a não ser naquelas situações em que as leituras são cobradas pela escola ou num processo seletivo. A descaracterização da literatura no processo de ensino vem suscitando inúmeras discussões, inclusive, a respeito da sua permanência, como disciplina, no currículo escolar, porém, para Rildo Cosson e Magda Soares esse não deve ser o foco do debate, e sim como tornar tal ensino mais eficaz:

[...] devemos compreender que o letramento literário é uma prática social e, como tal, responsabilidade da escola. A questão a ser enfrentada não é se a escola deve ou não escolarizar a literatura, como bem nos alerta Magda Soares, mas sim como fazer essa escolarização sem 238

descaracterizá-la, sem transformá-la em um simulacro de si mesma que mais nega do que confirma seu poder de humanização (COSSON, 2009, p. 23)

A escola tem adotado uma postura tradicional em relação ao ensino de literatura, que acaba distanciando os alunos da leitura literária, pois na maioria das aulas o texto não tem o seu sentido construído na interação autor/leitor, seu significado vem pronto de acordo com crítico, o livro didático, e/ou o professor. A esse respeito Martins (2006, p. 85) afirma ser ―preciso que a escola amplie mais suas atividades, visando à leitura da literatura como atividade de construção e reconstrução de sentidos‖. A literatura pode ser veículo de conhecimento e formação, desde que este não seja o seu fim e sim uma de suas possibilidades, como afirma Todorov: ―todos os ‗métodos‘ são bons, desde que continuem a ser meios, em vez de se tornarem fins em si mesmos‖ (2009, p. 90). Além disso, nenhum procedimento de interpretação ou leitura literária deve desprezar ou descaracterizar sua natureza. Venturelli (2002) afirma que a questão da leitura do texto literário para os professores é uma obrigação burocratizada, não passa de uma tarefa muitas vezes sistematizada e enfadonha que nada tem de relação com a vida do aluno. Segundo o autor, a escola tornou a leitura do literário uma prática fossilizada, que não prepara o aluno para constituir sentido para o texto literário.

Ler não é mais produzir significado, entrar no texto para reescrevê-lo e por meio dele captar as sondas que o autor lançou sobre dores e alegrias humanas. Literatura, na escola, é questão de enredo e personagem, título e características. É vista como se os autores tivessem uma fórmula mágica, a qual se submeteriam para produzir o texto. Linguagem, visão de mundo, diálogo com a tradição e com as outras produções não são levados em conta. (VENTURELLI, 2002, p. 151).

No ensino médio a responsabilidade de ensinar literatura é significativa, já que esses três últimos anos na escola são decisivos para a formação do gosto literário, com exceção dos estudantes que farão o curso Letras, é a última vez que terão aulas dessa disciplina. Embora a escola não seja o único lugar de formação de leitores literários, se o aluno sai da escola não gostando de tal leitura será mais incerta a adoção dessa prática em sua vida cotidiana. Como afirma Cosson (2006, p. 26), ―a leitura fora da escola está fortemente condicionada pela maneira como ela nos ensinou a ler‖. Desta forma, o ensino de literatura não deve atender apenas às demandas que os processos seletivos propõem, deve respeitar o aluno como um leitor em potencial, 239 oferecendo-lhe diversos textos, inclusive textos que estejam próximos de sua realidade histórico-social, a fim de fornecer caminhos para que ele possa construir sua identidade, enquanto leitor, além de se tornar um sujeito ―agindo sobre o mundo para transformá-lo e, para, por meio de sua ação, afirmar sua liberdade é fugir à alienação‖, como afirma Chiappini, (2005, p. 109).

3.2 O ENSINO DE LITERATURA E O LIVRO DIDÁTICO

Tratando da intervenção da escola na formação do gosto estético Bourdieu (apud MARTINS, 2013, p. 03) salienta que há uma inclinação da pedagogia em procurar ―substitutivos à experiência direta, oferecendo atalhos ao longo encaminhamento da familiarização‖ com as obras. A atitude historicamente constituída na escola para o ensino de literatura costuma adotar a postura destacada por Bourdieu, pois utiliza o livro didático como substituto às obras literárias. Ademais é bom ressaltar que o agravante a essa situação, segundo Egon Rangel (2005), é que na maioria das vezes, o aprendizado literário na escola fica restrito totalmente ao livro didático, que, para muitos alunos, é o único meio de acesso ao texto literário:

[...] muitos brasileiros escolarizados dependem do LD, pois este tem sido o principal meio de acesso ao mundo da escrita. E o LDP, com suas atividades de estudo de texto, o instrumento por excelência de aprendizagem da leitura e de concepção do que deva ser uma boa leitura‖ (RANGEL, 2005, p.131).

Em seu artigo ―Reflexões sobre o livro didático de literatura‖, Pinheiro (2006) relata sua própria experiência enquanto professor iniciante de língua materna, para quem os livros didáticos foram um verdadeiro socorro a sua falta de prática com o ensino escolar, porém com o passar do tempo verificou a ineficácia e incompletude de tais manuais. Pinheiro (2006) discute uma série de questões envolvendo a utilização do livro didático no ensino de literatura, dentre as quais destacamos o seu caráter mercadológico, embora seja grande a diversidade de livros e reedições, a maneira de conceber o ensino de literatura e a apresentação dos textos aos alunos tem pouca alteração, pois não há uma boa aceitação dos manuais inovadores. Outra problemática elencada por Pinheiro refere-se ao modelo seguido nos livros didáticos para o estudo da literatura, não se estuda as obras em particular, estuda-se a história da literatura. ―Por eleger uma formação de caráter enciclopédico, acaba-se por se 240 conhecer muito pouco cada obra, sobretudo no que ela tem de singular‖ (PINHEIRO, 2006, p. 110). Além disso, ―sabe-se, pelas pesquisas recentes, que é durante a interação que o leitor mais inexperiente compreende o texto: não é durante a leitura silenciosa, nem durante a leitura em voz alta, mas durante a conversa sobre aspectos relevantes do texto‖. (KLEIMAN, 2007, p.24). Infere-se, a partir dessa afirmação, a importância das atividades de leitura realizadas em sala de aula, sobretudo aquelas relacionadas com a compreensão do texto. Ressaltando a importância da interação para compreensão do texto por parte do leitor em formação, observa-se que, mesmo que o texto seja lido na integra pelo aluno, a mediação é necessária para que todos os sentidos possam ser integralizados. Tem-se, então, que investigar como é feita essa mediação pelo livro didático, que muitas vezes nem ao menos disponibiliza o texto na integra para o aluno, e se a mediação feita pelo professor corresponde às necessidades de formação de leitores literários.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como vimos, a escola é um dos principais meios onde se efetuam as práticas de letramento literário, dessa forma o livro didático – que muitas vezes é o único recurso utilizado pelo professor – é a principal via de acesso dos alunos ao mundo da literatura, porém o modo como à escola conduz o processo de formação de leitores literários deve ser reavaliado, segundo Pinheiro (2006), visando a busca de alternativas para um ensino realmente capaz de motivar os alunos à leitura por prazer.

Na visão de alguns autores como Bordini & Aguiar (1983, p. 17), por exemplo, os problemas do ensino de literatura não estão nos conteúdos trabalhados em sala de aula, mas no modo como eles são abordados, dada a ausência de uma discussão metodológica capaz de auxiliar a prática pedagógica. (PINHEIRO, 2006, p. 91)

Nota-se, portanto a relevância de realizarem-se mais estudos dedicados a esse ensino, para que se tenha uma dimensão de como se desenvolve nas escolas e nos livros didáticos as práticas de letramento literário. Muitas outras questões permeiam o processo de escolarização da literatura, tais como o espaço das aulas de literatura na matriz curricular, a formação docente, as bibliotecas escolares, a relação com as novas tecnologias, entre outras. As que 241 apresentamos aqui são apenas as primeiras inquietações que se apresentam em nossa pesquisa, que deverá se aprofundar, buscando realizar uma investigação relevante que contribua com o trabalho efetivo em sala de aula.

REFERÊNCIAS:

BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, Departamento de Políticas de Ensino Médio. Orientações Curriculares do Ensino Médio. Brasília:MEC/SEB, 2006.

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. 4. ed. São Paulo: Duas Cidades, 2004.

CHIAPPINI, Ligia. Reinvenção da Catedral: língua, literatura, comunicação: novas tecnologias e políticas de ensino. São Paulo: Cortez, 2005.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Editora Contexto, 2009.

KLEIMAN, Angela. Oficina de leitura: teoria e prática. 11 ed. São Paulo: Pontes, 2007.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Compreensão de texto: algumas reflexões. In: BEZERRA, Maria Auxiliadora; DIONISIO, Angela Paiva. (Orgs.) O livro didático de português: múltiplos olhares. 3 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005

MARTINS, Aracy. Algumas reflexões sobre a relação literatura/escola. Disponível em: www.anped.org.br/reunioes/24/T1008587950265.doc. Acesso em: 08/03/2013.

MARTINS, Ivanda. A literatura no ensino médio: quais os desafios do professor?. In: BUZEN, Clécio; MENDONÇA, Márcia (orgs). Português no ensino médio e formação de professor. São Paulo: Parábola editorial, 2006.

PAULINO, Graça. Letramento Literário: cânones estéticos e cânones escolares. Caxambu-MG: ANPED. Texto encomendado: GT 10 - Alfabetização Leitura e Escrita. Texto eletrônico, 1999. 242

PINHEIRO, Hélder. Reflexões sobre o livro didático de literatura. In: BUZEN, Clécio; MENDONÇA, Márcia (orgs). Português no ensino médio e formação de professor. São Paulo: Parábola editorial, 2006.

RANGEL, Egon. Letramento Literário e Livro Didático de Língua Portuguesa: Os Amores Difíceis. In PAIVA, Aparecida; MARTINS, Aracy; PAULINO, Graça; VERSIANE, Graça (orgs). Literatura e letramento: espaços, suportes e interfaces – O jogo do livro. Belo Horizonte: Ceale; Autêntica, 2005.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Tradução de Caio Meira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

VENTURELLI, Paulo. A leitura do literário como prática política. In: Revista Letras, Curitiba, n. 57, p. 149-172. jan./jun. 2002.

243

A FESTA PAGÃ: ANÁLISE E REFLEXÃO SOBRE “DEUS E O DIABO NO RIO DE JANEIRO” DE EDUARDO GALEANO

Breno Pauxis Muinhos88

Prof. Dr. Maria do Socorro Simões (Orientadora) 89

Resumo:O jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano utiliza como cenário a América Latina em muitos de seus textos. Os assuntos traçam desde a política (fortemente discutida em As Veias Abertas da América Latina) do período colonial, passando pela devoção religiosa latino-americana, traçando heróis e vilões de nossa cultura, até reflexões críticas e apaixonadas sobre o futebol. E é sobre religiosidade, Literatura e futebol que esta comunicação se debruçará. Em Futebol ao sol e à sombra, tradução de Eric Nepomuceno, o premiado escritor uruguaio desvela as maravilhas do jogo e suas personagens, e as amarguras e maquinações políticas e comerciais que cercam a "festa pagã". Na presente comunicação, a crônica Deus e o Diabo no Rio de Janeiro será o objeto de enfoque, no qual irá se observar e analisar os elementos religiosos (das particularidades de determinados símbolos religiosos ao sincretismo latente) e literários (apontando estilo e recursos utilizados) presentes em tal texto.

Palavras-chave:Eduardo Galeano; Literatura & Futebol; Literatura & Religião;

Abstract: The Uruguayan journalist and writer Eduardo Galeano uses Latin America as setting in many of his texts. The subjects are about the colonial period politic (especially in As Veias Abertas da América Latina), the Latin-American religious devotion, the heroes and the villains from our culture, and the critics reflections and passionate about football. It‘s about religious, Literature and football what this communication will discuss. In Futebol ao sol e à sombra, Eric Nepomuceno translation, the awarded Uruguayan writer reveals the wonders of the game and its characters, the bitterness and commercial-politics machinations what are around the ―pagan festival‖. In this presentation, the chronicle Deus e o Diabo no Rio de Janeiro will be the focus object, that will be note and analyze the religious elements (particularities from determinate religious symbols and latent syncretism) and literary ones (observing style and resources utilized) presents in the text.

Keywords: Eduardo Galeano; Literature & Football; Literature & Religion.

1. Introdução

Embora, atualmente, possa ser percebido como um elemento intrínseco da cultura popular brasileira e de diversas nações latino-americanas, é fato que o futebol não é um esporte originário do Brasil ou de qualquer outro país americano. A história do

88Mestrando em Estudos Literários na Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected] 89Professora do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail:[email protected] 244 desenvolvimento do futebol brasileiro não é muito diferente da de outros países sul- americanos, aonde o esporte chegou vindo da Europa. O processo de introdução e difusão do esporte vai ocorrer de uma maneira complexa, ainda que similar, de início, em muitos desses países. As relações culturais das quais irá se atrelar serão complexas e pertinentes e alvo de diversos estudos e pesquisas. É inegável a produção de símbolos que se observa em torno do futebol: hinos, livros, crônicas, poemas, enciclopédias, almanaques, bandeiras, escudos e suas relações com o campo religioso:

O autodiscurso da ―coisa‖ é aceitável, sim. Ele é possível somente no campo das ciências humanas, pois só ali a linguagem e suas formas de expressão do humano são possíveis. Só o humano pode nela – na linguagem – habitar. [...] […] As ciências que se orientam por uma diretriz notadamente hermenêutica, ao reconhecerem que as dinâmicas humanas fazem apelo a um processo de decodificação de suas múltiplas expressões (arte, arquitetura, religião, política, economia etc.), passam a ter certo protagonismo no campo das ciências humanas. Esse é o caso da teologia. Portanto, o discurso crível das ciências sobre a religião não deve somente levar em conta os seus estabelecimentos sociais, a sua face mais observável ou mesmo, como não é raro, do ponto de vista metodológico, aquilo que ideologicamente, em tese, a religião esconderia – esse é um dos pressupostos da sociologia. (CONCEIÇÃO, 2011, p. 891)

Os estudos símbolos religiosos devem ser avaliados a partir de um estudo religioso. Existem instrumentos que apenas o campo da Ciência da Religião pode trabalhar. Todavia um texto literário que possua ambos os elementos pode ser avaliado com visões advindas tantoda Teoria Literária quanto dos estudos a respeito de religiosidade. Todos compõem uma grandiosidade de significados atribuídos a um grupo – a uma comunidade, que está associada a contextos mergulhados em religiosidade. Não são poucos os que já estudaram essas manifestações em torno do futebol; exemplo:

Um vazio assombroso: a história oficial ignora o futebol. Os textos de história contemporânea não o mencionam, nem de passagem, em países onde o futebol foi e continua sendo um símbolo primordial de identidade coletiva. Jogo, logo sou: o estilo de jogar é uma maneira de 245

ser, que revela o perfil próprio de cada comunidade e reafirma seu direito à diferença. Diz-me como jogas que te direi quem és: há muitos anos que se joga o futebol de diversas maneiras, expressões diversas da personalidade de cada povo, e o resgate dessa diversidade me parece, hoje em dia, mais necessário do que nunca. Estes são tempos de uniformização obrigatória, no futebol e em tudo mais. (GALEANO, 2009, p. 204)

Em Futebol ao sol e à sombra (2009), do jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano, percebe-se que o futebol na América Latina é mais do que um simples esporte. Apesar de muitos escritores nacionais como Lima Barreto e Graciliano Ramos terem-no entendido como banalidade, ao criticar as competições e disputas, muitos também o defenderam, considerando-o não somente como uma metáfora da guerra (ou da vida – ou de ambas), mas como representação cultural de um povo. Leonardo Pereira (2000) demonstra que o futebol foi alvo de inúmeros debates por parte dos escritores brasileiros e que, progressivamente, se transformou em um elemento fundamental para a construção da identidade nacional no início do século XX. O futebol, praticado todos os dias em todo país, e algumas vezes ignorado por estudiosos, foi alvo, no entanto, da atenção de diversos cronistas pertencentes ao cenário literário nacional. Em suas crônicas, atribuíram os mais diversos sentidos ao esporte, desde sua chegada ao Brasil no início do século XX. De Coelho Neto e Lima Barreto, escritores que confrontaram opiniões sobre o ―fidalgo sport‖, a Carlos Drummond e Nelson Rodrigues, que escreveram diversas crônicas sobre os triunfos, derrotas e personagens do esporte, assistimos à consagração de um esporte que se tornou símbolo da identidade nacional, arrebatando milhões de brasileiros. Eduardo Galeano trata de personagens essenciais ao futebol: a bola, o estádio, o árbitro, o jogador, o torcedor. Constantemente há paralelos com outras manifestações culturais:

Quando termina a partida, o torcedor, que não saiu da arquibancada, celebra sua vitória, que goleada fizemos, que surra a gente deu neles, ou chora sua derrota, nos roubaram outra vez, juiz ladrão. E então, o sol vai embora, e o torcedor se vai. Caem as sombras sobre o estádio que se esvazia. Nos degraus de cimento ardem, aqui e ali, algumas fogueiras de fogo fugaz, enquanto vão se apagando as luzes e as vozes. O estádio fica sozinho e o torcedor também volta à sua solidão, em um eu que foi nós; o torcedor 246

se afasta, se dispersa, se perde, e o domingo é melancólico feito uma quarta-feira de cinzas depois da morte do carnaval. (GALEANO, 2009, p. 15)

Ainda que ao compor a tese se necessitar o assumir de um papel de pesquisador, a vontade empregada deverá ser inabalável como o torcedor assinalado por Eduardo Galeano. Decerto que a motivação para desenvolvê-lo, será pautada na personificação deste torcedor, contemplado pelos textos (escritos ou não) de outros torcedores: trançando paralelos constantes e relevantes, ao exemplo de Paul Tillich (apud SILVA, 2006, p. 106): ―(...) o elemento religioso na cultura é a profundidade inexaurível de uma criação genuína. Podemos chamá-lo de substância ou fundamento a partir do que vive a cultura.‖

2. “DEUS E O DIABO NO RIO DE JANEIRO” As referências diversas sobre a religiosidade latino-americana são esboçadas no texto a partir de situações que envolvem os três grandes clubes do Rio de Janeiro: Vasco da Gama e a maldição de Arubinha, o Flamengo e o padre Goes, o Fluminense e o padre Romualdo. O ponto de partida para a discussão do texto é o cristianismo e seu sincretismo com as diversas manifestações religiosas presentes no Rio de Janeiro.

Certa noite de muita chuva, enquanto morria o ano de 1937, um torcedor inimigo enterrou um sapo no campo do Vasco da Gama e lançou sua maldição: - Que o Vasco não seja campeão por doze anos! Se existir um Deus no céu, que o Vasco não seja campeão! O nome deste torcedor de um time humilde, que o Vasco da Gama tinha goleado por 12 a 0, era Arubinha. Escondendo um sapo de boca costurada nas terras do vencedor, Arubinha estava castigando o abuso. (GALEANO, 2009, p. 68)

O sapo e a má sorte são elementos comumente associados, não somente nos cultos religiosos afro-brasileiros, todavia tal paralelo parece bem difundido em diversas outras culturas:

El sapo es para nosotros senónimo de fealdad y de torpeza. Muy distintas significaciones tiene en Asia. Los chinos han visto, durante toda la antigüedad, un sapo en la luna: la mujer de Yi-el-Buen-Arquero, que se 247

ha fugado tras haberle hurtado la droga de la inmortalidad que él había recibido de la Reina Madre de Occidente, llega a La Luna y se transforma allí en sapo. Desde entonces es su divinidad. Lo que podría asimilarse, al menos a título de curiosidad, al antiguo proverbio referido por Littré: «Ki erapaud aime, lunelte (lunita) ti semble.»» También un sapo devora la luna en el momento de los eclipses. Aunque la tradición china parece a veces dudar entre um aspecto yin y un aspecto yang del sapo, es el primero el que predomina, lo que se explica por la predilección del animal por los refúgios sombríos y húmedos. El sapo por outra parte no siempre se distingue perfectamente de la rana, y el viejo sapo, a condición de haber sido secado, permite como ella obtener la lluvia. Además, el sapo protege de lãs armas y las devuelve al tirador. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1986, p. 910)

Observa-se, portanto, uma associação poderosa do animal aos caminhos tortuosos aos quais ele pode levar. Ainda que, segundo o narrador, o Vasco tenha se libertado da maldição um pouco mais cedo do que o esperado: ―Finalmente, em 1945, o time ganhou o troféu do Rio e quebrou a maldição. Tinha sido campeão pela última vez, em 1934. Onze anos de seca. / - Deus nos fez um descontinho – declarou o presidente.‖ (GALEANO, 2009, p. 69). O padre Goes é um personagem que garante vitória ao Flamengo, que passava por um momento ruim, na década de cinquenta, se os jogadores participarem das liturgias antes de cada jogo:

Assim, o Flamengo conquistou o campeonato três anos seguidos. Os times rivais protestaram ao cardeal Jaime Câmara: o Flamengo estava usando armas proibidas. O padre Goes se defendeu alegando que não fazia mais que iluminar o caminho do Senhor, e continuou rezando junto com os jogadores seu rosário de contas vermelhas e pretas, que são as cores do Flamengo e de uma divindade africana que encarna ao mesmo tempo Jesus e Satanás. Mas no quarto ano, o Flamengo perdeu o campeonato. Os jogadores deixaram de ir à missa e nunca mais rezaram o rosário. O padre Goes pediu ajuda ao papa, que nunca respondeu. (GALEANO, 2009, p. 69)

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O pedido de benção e iluminação é feito ao lado dos jogadores por parte do padre Goes. Mas o rosário de contas pretas e vermelhas é um elemento essencial: as cores do Flamengo e de Exu. Uma divindade que o narrador associa a Jesus e Satanás. Entretanto há uma complexidade diferenciada para aqueles que estudam tais manifestações:

O santuário natural, conhecido como um espaço mágico-religioso, reproduz-se nos territórios sacralizados conhecidos como ―terreiros de candomblé‖, enquanto espaço ritual, social e físico, onde organizam-se, simbolicamente, as divindades do universo afro-brasileiro enquanto patrono das águas, do ar, do fogo; os ancestrais, etc. É neste conjunto representativo das divindades que um elemento intermediador, singular, manifesta-se: EXU. (SODRÉ, 2009, p. 3)

A associação promovida pelo narrador é comum a muitos cristãos que tentam compreender o complexo papel de tal entidade nos diversos cultos afro-brasileiros.

Exu: Representante das potências contrárias ao homem. O Diabo na tradição afro-brasileira, embora alguns considerem que Exu foi errônea e precipitadamente assimilado ao diabo pela Igreja Católica, incapaz de compreender seu complexo papel na tradição afro. Para se conseguir alguma coisa é preciso antes fazer um despacho para Exu, para que ele não atrapalhe. É também chamado de Homem da Encruzilhada. O bode, o galo e o cão são animais sacrificados a Exu. Suas cores são o vermelho e o preto. (DEL DEBBIO, 2004, p. 93)

O padre Romulado frequentava os treinos, os jogos e era sócio do Fluminense. Era surdo; tal condição nos permite levantar alguns elementos exteriores ao texto: no panorama medieval europeu, havia diversas superstições com relação aos surdos: desde azar à inocência.

O padre Romualdo, em troca, obteve permissão do Papa para se tornar sócio do Fluminense. O padre assistia a todos os treinos. Os jogadores não gostavam nem um pouco. Fazia doze anos que o Fluminense não ganhava o campeonato do Rio e era de mau agouro aquele passarinhão de plumagem negra ali de pé, na beira do campo. Os jogadores o 249

insultavam, ignorando que o padre Romualdo era surdo de nascença. (GALEANO, 2009, p. 70)

Os nobres, para não dividirem suas heranças com outras famílias, realizavam muitos casamentos entre os próprios familiares e isso acabava por provocar o aumento do nascimento de pessoas surdas. A problemática é que, de acordo com os preceitos da Igreja Católica, a alma somente poderia ser salva se os cristãos realizassem o ritual de Confissão, ou seja, revelar seus pecados aos sacerdotes. Com tal preocupação em incluir os surdos de famílias nobres à cristandade – como também reafirmar o vínculo entre o Clero e a Nobreza – que acontece o início das tentativas de educá-los e torná-los indivíduos aptos a uma comunicação mais próxima da dos outros (FRIZANCO & HONORA, 2009).

Um belo dia, o Fluminense começou a ganhar. Conquistou um campeonato, e outro, e outro. Os jogadores já não podiam treinar a não ser à sombra do padre Romualdo. Depois de cada gol, beijavam a sua batina. Nos finais de semana, o padre assistia às partidas da tribuna de honra e murmurava sabe-se lá o que contra o juiz e o adversário. (GALEANO, 2009, p. 70)

3. CONCLUSÃO

O futebol, praticado todos os dias em todo país, e algumas vezes ignorado por estudiosos, foi alvo, no entanto, da atenção de diversos cronistas pertencentes ao cenário literário nacional. Em suas crônicas, atribuíram os mais diversos sentidos ao esporte, desde sua chegada ao Brasil no início do século XX. De Coelho Neto e Lima Barreto, escritores que confrontaram opiniões sobre o ―fidalgo sport‖, a Carlos Drummond e Nelson Rodrigues, que escreveram diversas crônicas sobre os triunfos, derrotas e personagens do esporte, assistimos à consagração de um esporte que se tornou símbolo da identidade nacional, arrebatando milhões de brasileiros. Conclui-se o presente trabalho como o torcedor assinalado por Eduardo Galeano. Decerto que a motivação para desenvolvê-lo, foi semelhante à personificação deste 250 torcedor, contemplado pelos textos de muitos outros torcedores. Textos pequenos que se assumem como próprios do tempo, de seu tempo; as crônicas. Nenhum outro gênero poderia ser mais adequado para expressar a melancolia, revolta ou felicidade proporcionadas pelo futebol. Como o torcedor de Eduardo Galeano, que se vai ao término do espetáculo esportivo, afirmo que este estudo não está concluído por ora, pois existem muitos jogos/estudos ainda a serem realizados.

4. REFERÊNCIAS:

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Diccionario de los Simbolos. Barcelona: Editorial Herder: 1986. CONCEIÇÃO, Douglas Rodrigues da. A religião em cena: Perspectivas de investigação. Belo Horizonte: Horizonte, 2011. Disponível em: DEL DEBBIO, Marcelo. Demônios: A Divina Comédia. São Paulo: Daemon Editora, 2004 FRIZANCO, Mary L. E. HONORA Márcia. Livro ilustrado de Língua Brasileira de Sinais: Desvendando a comunicação usada pelas pessoas com surdez. Ciranda Cultural, 2009. GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra [trad. De Eric Nepomuceno e Maria do Carmo Brito]. 3ª ed. Porto Alegre: L&PM Pocket: 2009. SILVA, Antonio Almeida Rodrigues da. Teologia da cultura: A essência do incondicionado nas multiformes expressões culturais. Revista Eletrônica Correlatio: São Paulo, 2006. Disponível em: SODRÉ, Jaime. Exu – A forma e a função. Revista VeraCidade Ano IV, Nº 5: Salvador, 2009. Disponível em: < http://www.veracidade.salvador.ba.gov.br/v5/pdf/artigo4.pdf>

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AS MISSIVAS SOBRE A SECA NO IMPÉRIO: LITERATURA E HISTÓRIA NO JORNAL A OPINIÃO.

Camila M. Burgardt90

Resumo: O presente trabalho é resultado de leituras empreendidas durante uma pesquisa PIBIC/CNPq91, e tem como objetivo pensar o gênero epistolar tendo como corpus, em específico, algumas cartas publicadas acerca da seca de 1877-79 no órgão paraibano A Opinião, à época Imperial da década de 70. Pretendemos compreender qual era o lugar desse gênero literário no século XIX, de acordo com os manuais de epistolografia que apregoavam uma série de prescrições e normas para esses escritos tão utilizados e necessários naquela época, para regularizar a função secular de comunicação à distancia que as cartas exerciam há muito tempo, sobretudo, nos jornais da época. Para tanto, percorremos o caminho histórico do conceito de literatura, do conceito das epístolas, o papel e a importância das missivas naquele século. No que tange ao momento histórico paraibano, o fenômeno climático da seca, procuramos compreendê-lo através das cartas e dos documentos históricos da época, bem como levando em consideração a nossa fonte de pesquisa, o jornal. Portanto, procuramos com essa investigação estabelecer a relação do contexto histórico e do contexto literário nas produções epistolares no século XIX. Para tanto, nos valemos dos estudos sobre a literatura e a arte epistolar de Roquette (1860), Abreu (2003), Tin (2005), Barbosa (2007; 2010), e dos estudos sobre o contexto histórico de Almeida ([1923] (1994)), Almeida (1978), e Mello (1995).

Palavras-chave: Literatura e História; Gênero epistolar; Século XIX.

Abstract: This work is the result of readings taken during a PIBIC/CNPQ research and aims to reflect about the epistolar gender having as corpus, in particular, some letters published on the 1877-1879 drought in the paraibano newspaper A opinião at the time of the Imperial 70‘s. We aim to understand what was the place of this literary gender in the nineteenth century, according to the epistolography manuals which prescribed a series of requirements and standards for those writings so used and necessary at that time, in order to regulate the secular function of distance communications, which these letters exercised for a long time, especially in newspapers. Therefore we followed the historical path of the literature concept, the epistles concept, the role and importance of missives in that century. Regarding the historical moment in Paraiba and the climatic phenomenon of drought, we seek to understand it trought the letters and historical documents of the time, as well as taking into consideration our research source, the newspaper. Therefore, this research tried to establish the relationship of the historical and literary context in nineteenth-century epistolary productions. For this, we use studies of literature and art of epistolary by Roquette (1860), Abreu (2003), Tin (2005), Barbosa (2007, 2010), and studies on the historical context of Almeida ([1923] (1994)), Almeida (1978), and Mello (1995).

Keywords: Literature and History; Epistolary Gender; XIX Century.

1. Introdução

90 Mestranda em Letras na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]. Trabalho realizado sob orientação da Prof.ª Dr.ª Socorro de Fátima Pacífico Barbosa 91 O jornal como fonte para uma história da literatura paraibana no oitocentos: a escrita epistolar. Pesquisa financiada pelo CNPq durante os anos 2008-2010, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Socorro de Fátima Pacífico Barbosa. 252

O conceito de literatura passou por algumas mudanças ao longo dos anos e, mesmo hoje, este conceito ainda não está definido, pois não há um consenso sobre ele entre os estudiosos da área (ABREU, 2003). No século XVIII, o termo literatura relacionava-se à habilidade do indivíduo ler e, por meio disto, ter um conhecimento que abrangia vários ramos do saber como matemática, filosofia, retórica, gramática, entre outros, formando um grande conjunto de textos que levava o leitor, como bem cunhou Diderot e D‘Alembert em sua Enciclopédia (ABREU, 2003, p. 14), à literatura, ao conhecimento, à ciência. Dentre esses vários escritos, até o século XIX, as cartas também eram consideradas como gênero literário e, por isso, apresentavam certa rigidez formal que era passada aos leitores através dos manuais, escritos desde a Antiguidade, que versavam sobre a arte de escrevê-las. Esses manuais, em grande parte, consistiam em um farto exemplário de cartas trocadas entre pessoas consideradas cultas e letradas e que eram tomadas como modelo da boa escrita, como, por exemplo, o do Padre José Inácio Roquette escrito já em meados do século XIX. Assim, esse breve estudo pretendeu compreender qual era o lugar do gênero epistolar no século XIX, sobretudo nos jornais da época, em especial durante um fenômeno climático, no periódico paraibano A Opinião, pois percebemos a recorrência das missivas e notícias que eram divulgadas, sempre em decorrência do constante ‗sol abrasador‘, que castigava o solo paraibano entre os anos de 1877 a 1879. Para isso, é necessário compreender a natureza e o lugar das cartas até o século XIX, que se apresentam como uma relevante fonte de pesquisa do momento literário e histórico pelo qual as sociedades paraibana e brasileira passavam.

2. O gênero epistolar e a Literatura

A literatura, mesmo hoje, não apresenta um significado claro e específico dentro das artes literárias, pois os teóricos buscam uma acepção única e definitiva suscitando definições divergentes entre si. Observamos com clareza esta dificuldade até mesmo em um dicionário comum como é o Houaiss eletrônico, que apresenta cerca de oito conceitos bem diferentes para o mesmo termo. À época Imperial o termo ‗literário‘ tinha um sentido bem diverso do atual e para compreendermos melhor o percurso histórico desse termo ao longo do tempo, recorremos a Abreu (2003), que disserta sobre o caminho que os escritos e suas classificações 253 percorreram desde que esse vocábulo foi cunhado pela famosa Enciclopédia de Diderot e D‘Alembert (1751-1772) até os dias atuais. O termo literatura, no século XVII, significava ―[...] conhecimento e não um conjunto de escritos. Fazia-se uma tênue distinção entre os campos: ao mesmo tempo em que se separavam Belas-Letras, buscava-se mostrar sua ‗íntima união‘.‖ (ABREU, 2003, p. 15, grifo da autora). Mesmo no século XIX esse conceito de literatura era válido e corrente e juntava-se a ele também ―[...] o ‗conhecimento‘ de um conjunto vasto de saberes, os quais se distinguem em termos de amenidade e utilidade.‖ (ABREU, 2003, p. 18), junto com as categorias de ‗gosto‘ e ‗beleza‘, assim, a nossa compreensão atual do termo enfrentou uma série de circunstâncias desconcertantes, próprias à rigidez conceitual em qualquer área do conhecimento. Barbosa (2010), afirma que nesse percurso conceitual da literatura as missivas já ocupavam o lugar de escritos denominados abrangentemente de literatura, pois segundo o cônego Fernandes Pinheiro em seu Curso de Literatura Nacional, publicado em 1862, a literatura estava dividida em duas grandes seções: a ‗clássica‘ que imitava os modelos que nos legou a antiguidade e a ‗romântica‘ que era fiel às ideias das sociedades modernas. Desse modo, o gênero epistolar era tido como objeto literário, visto que existia manuais que regulavam a forma mais ou menos estável do gênero e que circulavam com grande prestígio até fins do século XIX. Esses manuais ou mesmo os tratados de retórica surgiram para regular a função secular de comunicação à distância que as cartas exerciam há muito tempo. Essa escrita tão necessária deveria ter suas próprias regras que seriam do conhecimento de quem precisava escrevê-las, apesar de ser uma escrita restrita aos letrados, para que seu entendimento fosse, na medida do possível, claro. Assim, alguns desses escritos eram tão especializados, refinados e esteticamente tão bem feitos que se tornaram modelos para uma escrita, por excelência, dos ‗homens de letras‘. Portanto, podemos constatar através dos periódicos do dezenove a diversidade de escritos que eram considerados como literatura até o século XIX que ia desde o político ao recreativo, passando pela escrita científica.

2.1 A arte epistolar Os primeiros jornais que circularam pelo país já contavam com a publicação das missivas, e nesse suporte elas ganharam um espaço respeitado e considerável, pois, a pedido dos editores, os leitores podiam tornar-se colaboradores dos periódicos com a publicação de suas cartas. Assim, os jornais do século XIX, ―[...] mais que arquivos de 254 textos, representaram, [...], o instrumento pelo qual circulou a cultura letrada da província.‖ (BARBOSA, 2007, p. 15). Com Gómez (2002), compreendemos como se dava a prática da escrita epistolar e suas funções desde o início do século XVII, na Espanha, como também em outros países. Da sua importância, descrição e da função presentificadora oriunda da oralidade que a antecede. Da mesma forma, os paraibanos se guiavam na escrita de suas cartas, de acordo com os manuais que circulavam pelo mundo. Esses manuais, como o do Padre José Inácio Roquette, em seu livro Novo Secretario Portuguez ou Codigo Epistolar, de 1860, utilizavam como exemplo as cartas de pessoas importantes da época para explicar sua tessitura, suas regras e conveniências, pois a arte da escrita epistolar ganhava cada vez mais uma rigidez textual que a caracterizaria enquanto gênero textual. Tin (2005) faz um apanhado das referências epistolares, resgatando muitos homens da Era Clássica e do Renascimento que pensaram sobre a arte epistolar e teorizaram sobre esse gênero, sempre enfatizando os modelos da Antiguidade como exemplos a serem imitados e seguidos. O autor afirma que a Escola de Bolonha e outras escolas transformaram a arte de escrever cartas, devido às circunstâncias, em algo mais rígido e formal atrelando-a ainda mais à retórica medieval, que trata das regras de composição das cartas e se concentra no exórdio e nos ―enfeites‖, isto é, nos tropos e figuras de linguagem. As cartas eram divididas de acordo com três gêneros de causas tradicionais da retórica: demonstrativo, que consistia no elogio e no vitupério, ou seja, elogiar ou depreciar uma pessoa, um objeto ou um lugar; deliberativo, que ―[...] compreende muitas espécies de cartas, e realmente são as cartas suasórias e dissuasórias, exortatórias e não-exortatórias, petitórias, monitórias, amatórias [...].‖ (TIN, 2005, p. 122-123); e, por último, o judicial, em que suas funções mais importantes são a de acusação e defesa de uma pessoa ou de uma ação, assim buscamos verificar em que medida essas regras e definições cabem às cartas escritas pelos paraibanos ao periódico A Opinião, de 1877. Mesmo com várias prescrições sobre a arte de escrever cartas, Tin (2005, p. 56) finaliza observando que ―[...] Em suma, a carta é um gênero proteiforme, ao qual é ridículo e vão querer impor uma forma e uma figura únicas, o que não significa que seja um gênero sem limites. [...]‖. Segundo Barbosa (2010), ―[...] A carta foi por excelência o gênero pelo qual a escrita se mascarou, ao confundir o espaço público e o privado, o anônimo com o famoso e se constituir como ficção, quando era história.‖ (p. 3). Nesse sentido, compreendemos o 255 jornal como um espaço acessível para algumas pessoas, principalmente para os letrados e, por conseguinte, também pelo autor letrado ‗comum‘ das cartas que eram publicadas nele, pois havia uma grande variedade de sujeitos e de modos de escritos que eram aceitos pelos editores dos jornais, desde os mais cultos aos mais coloquiais. O uso do autor anônimo foi muito bem aceito e, por vezes, respondia por apelidos, tais como ―O veterano da liberdade‖, ―um estimado amigo e colega‖, ―carta particular‖, * ―Justus‖, ―O sertanejo‖, ―L.‖, e mesmo símbolos como ―* *‖ entre outros, e isto visto somente nas cartas de um ano do jornal analisado, A Opinião. A esse tipo de leitor-autor que Barbosa (2010, p. 4) chamou de repórter observamos que ―[...] ao escrever sua carta ao redator, seleciona o assunto e escreve a matéria e nesta prática de escrita o que é mais interessante é o fato de muitas vezes esta já ter sido matéria de outro jornal.‖. Uma prática também comum era terminar a carta pedindo a ajuda ou o favor de uma autoridade, como, por exemplo, o ‗presidente da província‘, como veremos adiante. Por conta dessas diversas circunstâncias, buscamos uma leitura das missivas que nos forneça uma chave para uma compreensão relevante sobre a escrita epistolar do século XIX, que se apresenta como uma fonte de pesquisa para compreendermos o momento literário e histórico da época, para isso vamos adentrar o momento histórico representativo que foi o ano de 1877 para todo o atual Nordeste brasileiro e que ficou marcado no imaginário popular como uma das piores seca já enfrentadas até então.

3. A Paraíba em 1877

Segundo Almeida (1994), o atual Nordeste brasileiro sofreu com a chamada ―seca grande‖ que começou em 1877 e perdurou até fins de 1879. Foi uma época em que os famintos migraram para as cidades mais desenvolvidas, como Mossoró, no Rio Grande do Norte, por exemplo. Na Paraíba a situação não foi diferente e acarretou a morte de centenas de pessoas pela fome ou pelas doenças que se alastravam como uma epidemia. As finanças da província eram precaríssimas e, devido aos repiquetes92 dos anos anteriores, a seca instalou-se e propagou-se rapidamente por todo o interior da província. No dia vinte e oito de Abril de 1877, o presidente da província, Drº Esmerino Gomes Parente, convocou várias pessoas, sem distinção política, a fim de ajudá-lo a encontrar os

92 São pequenas manifestações de secas, ocorreram nos anos de 1851, 1853, 1860, 1865, 1866, 1869 e 1870. 256 meios adequados para socorrer os famintos e criou a comissão de socorros. (Relatório dos presidentes de província – Biblioteca de Chicago) Do interior da Província chegavam muitas cartas relatando as consequências da inaptidão do governo em cuidar dos seus, dando, por exemplo, notícias de assaltos e assassinatos a que veio somar-se a miséria. Na cidade de Campina Grande partiu do vereador Irineu Jóffily93 a ideia de apelar para o governo provincial para que ele concordasse com a construção de uma cadeia pública e que enviasse uma remessa em dinheiro para começar as obras que empregariam os homens que ainda tinham forças para trabalhar a pedir esmolas. Na mesma época, também ocorreu à construção do Paço Municipal de Campina Grande, graças ao juiz de direito Meira Henriques que fazia parte da comissão de socorros. (ALMEIDA; 1978) Não à toa esta seca em específico não só rendeu muito para os periódicos da época como também serviu de pano de fundo ou mesmo de personagem inanimado para a construção de romances como Os retirantes (1879), de José do Patrocínio (1853-1905); A fome (1890), de Rodolfo Teófilo (1853-1932); e Luzia-Homem (1903), de Domingos Olímpio (1850-1906), além de ter inspirado outras narrativas e escritores consagrados. Nessas obras observa-se que a crença religiosa do sertanejo na providência divina o faz suportar resignado, como ‗obra‘ ou ‗castigo‘ de Deus as suas adversidades e, nesse sentido, eles deveriam padecer toda e qualquer humilhação, até mesmo dos poderes públicos, que muito se omitiam na ajuda aos mais carentes. Nesse contexto histórico em que a Paraíba estava inserida, percebemos que a questão da seca, no jornal A Opinião era tratada do ponto de vista do jornal, órgão dirigido pelo Partido Liberal que já vinha de alguns anos na situação de oposição, por isso era importante para os dirigentes utilizarem esse espaço com o intuito de atacar o governo, representado pelo Partido Conservador, esmiuçando as desgraças o máximo possível a fim de direcionar a opinião da população de maneira geral. Assim, a seca de 1877-79 é fruto de uma construção histórica e social e não apenas um fenômeno natural. No rol dos exemplares pesquisados observamos não só várias cartas que retratam o problema da seca, mas também, em outras matérias do periódico, notamos o registro constante das consequências em vários exemplares, como podemos observar na coluna Noticiario (sic), a matéria intitulada Fome e peste94, de 17/05/1877, no trecho que segue:

93 Irineu Jóffily (1843-1902) foi jornalista, redator, advogado, político, geógrafo, pesquisador e promotor paraibano. 94 Transcrita respeitando a tipografia e a ortografia da do jornal e da época. 257

Fome e peste. – Uma carta recebida do Catholé do Rocha da-nos a triste certeza de que é cada vez peior o estado dos sertões da provincia. A secca continua devoradora, a mortandade dos gados, a fome e miseria da população menos favorecida, augmenta de dia em dia. Os famintos de mà indole, reunidos a alguns salteadores de profissão, [...] (sic) (grifos nosso)

Raros são os exemplares que não trazem alguma notícia ligada direta ou indiretamente a esse fenômeno natural, que traz consigo tantas sequelas ruins a população, utilizando uma linguagem carregada de significados fortes e termos tristes para retratar o sofrimento do paraibano, na expectativa de sensibilizar o leitor e as autoridades perante o horror sofrido pela população.

4. As cartas no jornal A opinião, de 1877

O corpus do trabalho conta com 33 exemplares do jornal A Opinião, de maio a dezembro de 1877, fundado na capital, era um órgão dirigido pelo diretório do Partido Liberal, publicado duas vezes por semana e impresso na Typographia (sic) dos herdeiros de José Rodrigues da Costa. Araújo. No exemplar número oito, do dia 24/05/1877, o periódico divulga na coluna sobre notícias que o jornal O Cearense ―[...] estimado orgão da imprensa liberal do norte [...]‖ (sic), relata aos seus leitores a publicação do periódico A Opinião, e transcrevem na íntegra a notícia publicada no referido jornal, nomeando os responsáveis pelo periódico:

O diretorio liberal depois do passamento de seu illustre presidente, commendador Felisardo (Toscano de Brito), ainda não foi completado. Compõe-se hoje dos Srs. – Dr. Antonio da Cruz Cordeiro, presidente interino, Jeronymo Cabral Rodrigues Chaves, secretario, Dr. Antonio Manoel de Aragão e Mello, Padre Felippe Benicio da Fonceca Galvão, João José Botelho e Benjamin Franklin de Oliveira e Mello. [...] Cabe-nos, entretanto, fazer uma rectificação: são também membros do Directorio Liberal d‘esta provincia os nossos dignos correligionarios Dr. João Leite Ferreira, Dr. Vicente do Rego Toscano Barreto e capitão Antonio da Costa Rego Moura. (sic)

Nesse recorte, foi encontrado um total de 37 cartas que versavam sobre diversos assuntos, desde temas políticos a religiosos, incluindo a situação da seca no interior do estado, até solicitações de restauração da verdade sobre cartas publicadas em outros jornais. 258

Dentre essas cartas, devido a brevidade do trabalho, três95 foram selecionadas, enquanto representativas desse momento histórico que foi a seca de 1877-79. O Padre Roquette, em seu livro Novo Secretario Portuguez ou Codigo Epistolar, de 1860, faz um apanhado sobre a arte de escrever cartas e traz normas e modelos para 24 tipos diferentes de cartas e situações, nesse manual ele afirma tratar somente das cartas particulares e assim as define:

As cartas de que tratâmos neste opusculo, e para a composição das quaes nos propomos a dar algumas regras e modêlos, são as privadas e particulares que se escrevem entre amigos, parentes ou conhecidos, sem tenção que se publiquem, ou sejão de simples amizade e respeitosa cortezania, ou sobre negocios particulares ou publicos. (p. 19) (sic)

Mesmo o padre tendo definido as cartas particulares como aquelas que não se tem intenção de publicá-las, percebemos que todas as cartas encontradas no periódico respeitam as normas e prescrições propostas por este manual de epistolografia que se baseia nos ―[...] modelos mais perfeitos que existem desd‘a antiguidade até nossos dias. [...]‖(sic) (p. 21) Do total de nossas cartas, trinta e sete, dezesseis tratam direta ou indiretamente da questão da seca. Outras também tratam das consequências causadas diretamente por ela, como as poucas chuvas que estão caindo na região, a agricultura da cidade que sofre com as poucas chuvas e que tendem a desaparecer com o passar dos dias, o crescimento desordenado dos retirantes que ali buscam abrigo, a ação dos criminosos, que andavam pelas cidades matando e roubando sem nenhum temor, o desespero das pessoas com relação à escassez dos gêneros alimentícios não só em decorrência da seca que os ataca, mas também porque tem de dividi-los com os animais, questões de saúde, o sofrimento dos sertanejos e o clamor pela ajuda do presidente da província, isto é, dos poderes constituídos é recorrente, a violência utilizada pelos soldados em suas diligencias entre outros. A carta publicada em 31/05/1877, mas datada do dia 19/05/1877, exemplar número 10, encontra-se na coluna Noticiario (sic), sob o título Febres. Trata-se de um extrato, isto é, aquilo que foi extraído de determinado lugar, neste caso da ―carta de um amigo‖ e, quando o editor diz isso confere legitimidade a notícia visto que se aproxima do escritor, que se refere a um correspondente da cidade de Cabaceiras. Roquette (1860,

95 As cartas mantêm a grafia da época, bem como os erros de tipografia, ortografia e impressão oriundos do jornal. 259 p.403) a enquadraria nas chamadas cartas de participação ou notícia, e se caracterizam pelas notícias ‗indiferentes‘, como o padre afirma:

As cartas que chamámos indifferentes são as de noticias pliticas, ou d'outra especie; não pedem a ordem seguida nem o estylo relevado das gazetas, pelo que, sem mais cremonia que fazer separação dos paragraphos, se tratão ellas differentes assumptos singélamente sem transições. (sic)

A referida carta se enquadra nas cartas noticiosas de natureza pública, como podemos observar esse tipo de carta proposta pelo padre era muito comum de se encontrar no periódico A Opinião de 1877, que num total de 36 cartas, 10 se encaixam nessa categoria. A missiva em questão versa sobre a questão da saúde na cidade de Cabaceiras. O autor não só dá notícias, mas também clama por ajuda, como podemos observar no trecho que segue:

«Só da Divina Omnipotencia esperamos recursos, ou [...] aos males que nos apprimem.» Vê-se, pois, que é horrivel o estado da população de Cabaceiras - Flagellada pela fome e pela peste! É de crer que o Exm. Sr. presidente tome em consideração tamanha calamidade e remetta para alli ao menos medicamentos.» (grifos nossos) (A OPINIÃO, 31/05/1877, p. 2)

A ausência da citação do nome do presidente da província, em específico, em várias cartas encontradas, pode ser justificada pelo grande número de homens que ocuparam esse cargo num curto período de tempo, cinco nomes só no ano de 1877. (MELLO, 1995) Com relação às prescrições que eram feitas as missivas até o século XIX, elencadas anteriormente, podemos afirmar, que essa carta se enquadra dentro do gênero deliberativo, bem como várias outras que seguem este modelo, pois mesmo sendo fragmentos, observamos o seu caráter persuasivo, petitório em relação ao socorro dos flagelados da seca da localidade em que se vive. Essas cartas passaram pelo crivo do editor do jornal e, dessa forma, percebemos que ele as transformou em uma notícia, inserindo-as por meio de uma breve explicação, selecionando partes dela para o público. Nessa seleção, o editor ressaltou a narratio, isto é, a apresentação dos fatos, e a petitio, em que se pede alguma coisa, no caso, a ajuda das autoridades. Essa escolha não foi casual, pois permitiu que a carta se transformasse em uma ‗reportagem‘, como assim 260 menciona Barbosa (2010), e a ser publicada na coluna intitulada Noticiario (sic), como notamos na abertura da carta – ―Febres: - De carta de um amigo de Cabaceiras, datada de 19 do corrente, extrahimos o seguinte: [...]‖ (sic) (A OPINIÃO, 31/05/1877, nº10, p. 02). Este tipo de introdução das missivas é muito comum, como podemos observar na abertura de outras cartas:

Bananeiras - Carta de um amigo dessa villa, escripta á 3 do corrente, diz-nos: (sic) (A OPINIÃO, 14/06/1877, nº14, p. 02)

Ingá - São desanimadôras as noticias que acabamos de receber dessa comarca. As lavouras, que ainda restam, e que teem podido resistir ao sol, estão servindo de pasto ao gado para ali retirado do sertão em numero avultadíssimo. Eis o que a respeito diz-nos uma carta de 12 corrente: - (sic) (A OPINIÃO, 19/07/1877, nº24, p. 03)

Campina Grande - Um amigo escreve-nos dessa comarca, em 11 do corrente, o seguinte: (sic) (A OPINIÃO, 18/11/1877, nº58, p. 01-2)

Um fator importante, quando analisamos essas cartas, é perceber como estes escritos nos fornecem uma dimensão social dos mais variados setores da sociedade, seja ela na questão da saúde, da segurança pública, da falta de víveres ou das injustiças cometidas, por exemplo, naquele momento histórico em que é escrita. É importante ressaltar que a questão da seca não se reduz só à falta de chuvas. Ela traz consigo muitas consequências sérias para o sertanejo e nas cartas em questão podemos mais ou menos visualizar as dificuldades enfrentadas pelos sertanejos. Devemos levar em conta que nossas cartas não são de cunho oficial, mas também não são pessoais, pois segundo Barbosa (2010) o ―leitor-repórter‖ sabia da publicação e as mandava com essa finalidade, a de ser lido e ouvido. Estruturalmente, percebemos que as cartas, de certo modo, obedecem a uma tradição retórica a qual pertence a ars dictaminis, isto é, a arte de redigir documentos ou cartas que nasceu a partir do momento em que as artes epistolares da antiguidade não satisfaziam mais as necessidades de seus escritores criando, assim, normas mais rígidas e formais para a tessitura das epístolas. Ao mesmo tempo também podemos observar algumas mudanças na ordem de suas partes, por exemplo, bem como uma adaptação aos objetivos que cada autor tinha ao escrever a missiva.

5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES 261

Constitúe o genero epistolar pela universalidade dos assumptos que póde abranger verdadeira pedra de toque do talento do escriptor. Não ha quem não faça uma carta; poucos porém sabem conservar-se no justo meio que lhe é prescripto pelo bom gosto. (sic) Cônego Fernandes Pinheiro.

Após uma breve apreciação do periódico A Opinião, do ano de 1877, bem como de extratos de algumas missivas, relatados em nosso trabalho observamos que as cartas eram inseridas nos jornais nas mais diversas sessões, como ―Correspondencias‖ (sic),

―Noticiario‖ (sic), ―Publicações Solicitadas‖ ou ―Colaboração‖, nem sempre destinados unicamente às cartas, mas sim um lugar em que era comum encontrá-las. Elas eram consideradas, de acordo com o breve levantamento bibliográfico do termo literatura, um gênero literário devido ao fato de que esse termo denominava de forma abrangente um vasto conjunto de saberes, também associado às categorias de ‗gosto‘ e beleza‘.

Assim, chegamos aos manuais de epistolografia que apregoavam uma série de prescrições e normas para esses escritos tão utilizados e necessários naquela época, para regular a função secular de comunicação à distância que as cartas exerciam há muito tempo.

Verificamos ainda, que mesmo no fim do século XIX, em 1877, as normas da ars dictaminis, ainda vigoravam em maior ou menor grau, a medida da necessidade e dos objetivos do autor dessas missivas com as quais trabalhamos.

Constatamos a importância não só literária, mas também histórica que esses registros, escritos a partir do ponto de vista das vítimas da ‗seca grande‘, enquanto denunciadores de uma triste situação, até mesmo de abandono por parte das autoridades, representam enquanto documentos literários e históricos da Paraíba do fim do século XIX.

Diante das considerações acima expostas afirmamos que o uso corrente do gênero epistolar no suporte jornal e também das cartas não oficiais sobre os mais diferentes assuntos, além de ser uma prática comum e corrente, visto que foi um artifício que circulava em todos os meios sociais, também influenciaram sobremaneira na conduta das 262 pessoas e no direcionamento da língua e cultura da época, pois segundo Barbosa (2007, p.

38), a carta nesse veículo ―possuía a qualidade de promover o debate dos mais variados assuntos‖.

REFERÊNCIAS

ABREU, Márcia. Letras, Belas-Letras, Boas Letras. In: BOLOG-NINI, Carmem Zink (Org.). História da literatura: o discurso fundador. Campinas: Mercado de Letras, ALB, FAPESP, 2003. (Coleção Histórias de Leitura).

ALMEIDA, José Américo de. A Paraíba e seus problemas. 4ª Ed. Brasília: Senado Federal, [1923]1994.

ALMEIDA, Elpídio de. História de Campina Grande. 2ª Ed. Campina Grande-PB: Editora Universitária / UFPB, 1978.

BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Literatura e periódicos no século XIX: perspectivas históricas e teóricas. Porto Alegre: Nova Prova, 2007.

______. A espada das palavras: a escrita epistolar nos periódicos luso-brasileiros do século XIX. In: Anais do 5º Colóquio do Pólo de Pesquisa sobre as Relações Luso- brasileiras. Disponível em . Acesso em 17/04/ 2010.

HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Hoauiss 1.0. Editora Objetiva. Junho, 2009.

MELLO, José Octávio de Arruda. História da Paraíba: lutas e resistências. 2.ª Ed. João Pessoa: Editora Universitária / UFPB, 1995.

ROQUETTE, José Inácio. Novo Secretario Portuguez ou Codigo Epistolar. 3ª Ed. Pariz: Vª. J.-P. Aillaud, Monlon e Cª, 1860.

TIN, Emerson (Org.). A arte de escrever cartas. Campinas: Editora da Unicamp, 2005.

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“RORAIMA É TERRA BOA”: MIGRAÇÃO NORDESTINA E CORDEL EM RORAIMA Carla Monteiro de Souza* A Amazônia Brasileira é um lugar de migrantes, de muitos e diferentes que buscam na região o sonho mítico do paraíso e da terra das riquezas sem fim. Os migrantes chegam à região, empurrados por circunstâncias diversas, situadas em conjunturas socioeconômicas que historicamente que aproximam as regiões Nordeste e Norte. O movimento constante de entrada de nordestinos na Amazônia enseja trocas culturais e engendra modos de viver, que se apresentam sob os mais diversos formatos artísticos e que dão sentido a experiência complexa de migrar. Este trabalho aborda os cordéis ―Vida de cutião‖ (2008) e ―Roraima terra bendita‖ (2009), da autoria de Otaniel Mendes de Souza, um maranhense radicado em Roraima desde 1982. Discute a relação entre memória, história e narrativa nestes textos, evidenciando questões relativas à experiência migratória a (re)significação dos vínculos com os lugares de origem e de destino, ressaltando o acentuado caráter autobiográfico das duas obras. Palavras-chave: Cordel; Migrações; Roraima

The Brazilian Amazon is a place of migrants, many and different in the region seeking the mythical dream of heaven and earth riches without end. Migrants arriving in the region pushed by several circumstances, situated in social economic situations that historically near the Northeast and North. The constant motion input northeastern Amazon entails cultural exchange and engenders ways of living, which are presented in the most diverse and artistic formats that give meaning to experience migrating complex. This paper addresses the strings "Cutião Life" (2008) and "Roraima blessed land" (2009), authored by Otaniel Mendes de Souza, a maranhense rooted in Roraima since 1982. Discusses the relationship between memory, history and narrative in these texts, highlighting issues relating to migratory experience (re) signification links with the places of origin and destination, highlighting the sharp character of the two autobiographical works. Keywords: Cordel; Migration; Roraima

Este artigo tem como objetivo suscitar a discussão sobre a presença nordestina em Roraima, através da apresentação de alguns aspectos e algumas reflexões sobre a questão, levando em conta em primeira instância a imagem cunhada pela geógrafa Ana Lia Vale, que Roraima é um grande mosaico social (2005). A partir de uma abordagem historiográfica da questão, visando dar a conhecer a sociedade regional e a importância das migrações nordestinas em sua constituição, será discutida uma das formas como estas identidades se expressam, tomando como base dois livretos de cordel produzidos por um migrante maranhense radicado em Roraima Otaniel Mendes de Souza, intitulados ―Vida de Cutião‖ (2008) e ―Roraima, Terra Bendita (2009)‖. Roraima é o estado brasileiro localizado mais ao norte. Possui uma extensa fronteira internacional, com a República Bolivariana da Venezuela e a República Cooperativista da Guiana. Nesta tríplice fronteira confinam três línguas nacionais,

* Doutora em História. Professora do Curso de História e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRR. 264 português, espanhol e inglês, e várias línguas indígenas. Esta região foi município do Amazonas até 1943, quando passou a ser Território Federal do Rio Branco (em 1962 passou a chamar-se TF de Roraima), o qual foi transformado em estado em 198896. Localizado em uma região de parcas ligações com o restante do país, Roraima tem a menor população do Brasil, concentrada na capital, Boa Vista. Nos 15 municípios existentes na atualidade, convivem uma população formada por não índios, migrantes e seus descendentes, e indígenas de várias etnias. O seu perfil socioeconômico aponta para uma economia baseada no serviço público e no setor de serviços, bem como em atividades rurais, como a pecuária, as lavouras de produtos alimentícios e a produção de subsistência97. Neste contexto, historicamente o poder público e as iniciativas e ações governamentais têm um forte papel, inclusive no que diz respeito ao povoamento e às migrações, característica esta compartilhada com outros estados amazônicos. O estudo do povoamento da Amazônia e de Roraima em especial, na sua dimensão estrutural e conjuntural, permite afirmar que existe uma espécie de ―corredor de acesso‖ entre as regiões Nordeste e Norte. Estes são condicionados em grande parte pela expansão dos meios de transporte e de comunicação e pela quantidade e qualidade dos estímulos engendrados pela dinâmica econômica e geopolítica que historicamente visam ocupar o ―vazio‖ amazônico, que findam por criar as chamadas condições de atração de nordestinos. Fazendo uma projeção histórica, os estudos sobre várias épocas mostram que os nordestinos há muito povoam a Amazônia e estão em Roraima desde os primórdios de sua ocupação. Neste caminho, nos deteremos na migração que liga o Nordeste à Roraima na atualidade, traçando um sucinto painel que permita dimensionar a sua abrangência e importância na sociedade local. Segundo dados do IBGE98, boa parte dos migrantes que chegam à Roraima são provenientes da própria Região Norte (Pará e Amazonas) e, principalmente, do Nordeste, destacando-se os maranhenses. Quanto aos maranhenses, além de sua realidade socioeconômica excludente, também podemos arrolar como fatores facilitadores da migração a proximidade geográfica com o Pará e o fato de parte do território do Maranhão integrar a Amazônia Legal. No geral, os migrantes que vieram para Roraima nas últimas quatro décadas podem ser caracterizados como populações provenientes de áreas do interior, onde os padrões de vida tendem a ser baixos, devido a fatores como a concentração fundiária, economia frágil e instável, mercado de trabalho acanhado etc.

96 Sobre estas informações ver: Barros, 1995; Oliveira, 2003; Santos, 2004; Souza, 2004. 97 A esse respeito ver: Secretaria Estadual de Planejamento, http://www.seplan.rr.gov.br. 98 Ver: Censos Demográficos de 1980, 1991, 2000, 2010. 265

Argumentamos, ainda, que o ato de migrar implica a interação de dois planos: um fundamentado nas relações sociais, estruturalmente relacionado à fatores socioeconômicos e políticos; outro relacionado ao plano individual, que, em última instância, determina a decisão de migrar. Por sua complexidade intrínseca, acreditamos que na análise das migrações devemos considerar que a decisão pelo deslocamento envolve a ponderação de prós e contras, bem como a ação das redes de contato e de informação. Nas entrevistas com migrantes por nós, realizadas até hoje, verificamos que sonho e realidade por vezes se confundem, principalmente frente àquelas situações limite que tornam a vida insustentável, o que aponta para a necessidade da análise das questões subjetivas, afetivas e psicológicas (SOUZA, 2005). Historicamente os deslocamentos dos nordestinos e a sua decantada necessidade e capacidade de migrar, independentemente do estado de origem, são tradicionalmente associados ao fenômeno da seca. Ainda que os vetores dos fluxos migratórios venham se alterando, ainda hoje se atribui ao Nordeste o rótulo de região atrasada e subdesenvolvida, lugar de mão de obra barata e desqualificada pronta para migrar. No bojo da relação centro-periferia os discursos e as práticas regionalistas instituíram uma ―verdade‖ sobre as regiões, que permanece baseada em certos padrões, características, estereótipos, epítetos e símbolos que, se por um lado, baseiam-se em argumentos e aspecto factíveis, por outro, desfiguram-na. Construída historicamente, a ideia que nomeia e define cada região brasileira se naturaliza, ainda que se operem mudanças socioeconômicas, políticas e culturais visíveis. Este processo de formulação e instituição das regiões está introjetado sobremaneira na sociedade brasileira, no plano coletivo, social e individual. A comparação entre a parte Norte e a Sul do Brasil – nomenclatura genérica que vigorava antes da atual divisão por regiões – é fundamental na compreensão da construção da ideia do Nordeste como região. Seus contornos remontam ao final do século XIX e início do XX, momento em que a ciência passa a ocupar lugar de destaque na explicação dos fenômenos naturais e dos processos sociais. No Brasil, a construção das ideias regionalistas foi fundamentada no discurso sobre o imperativo da modernização para romper com a herança colonial e promover o progresso, e pelas disputas entre as elites políticas locais. Albuquerque Jr., em seu trabalho já clássico intitulado A invenção do Nordeste, explica que o meio ambiente e a seca eram a principal justificativa para quase tudo no Nordeste, inclusive para a propensão para migrar imputada ao homem nordestino (1999, p. 38-39). 266

Complementando, Haesbaert explica que isso também fundamenta as explicações do porque historicamente o migrante nordestino procura os grandes centros ou as frentes de expansão agrícola, como a Amazônia. (1997, p.82). No entanto, como referido acima, por mais evidentes que sejam os fatores estruturais que justifiquem uma migração, esta sempre dependerá em boa parte da escolha pessoal entre partir e ficar e de que haja uma relação de complementaridade entre o lugar de origem e o lugar de destino. Nesta seara, a migração de nordestinos para a Amazônia ganha característica de fluxo na época do primeiro boom da borracha e a partir daí vem se mantendo, momento em que se consolida a visão de que as possibilidades de povoamento e ocupação de Região Norte historicamente estão associadas aos problemas estruturais do Nordeste. Em tempos mais recentes ganhou notoriedade na máxima proferida do presidente militar Emílio Garrastazu Médici: ―levar os homens sem terra do Nordeste para as terras sem homens da Amazônia‖ (OLIVEIRA, 1991, P. 74). No tocante a Roraima, os nordestinos sempre desempenharam um papel fundamental na configuração da sociedade local. Destaca-se, entretanto, que ainda há poucos trabalhos que fazem distinção entre as migrações provenientes dos vários estados do Nordeste. Nos estudos sobre a questão prevalece o uso da categoria englobante ―nordestinos‖, que aqui também será adotada, mesmo sabendo dos sérios riscos das generalizações. Segundo o geógrafo Rogério Haesbaert, a construção de uma ―identidade nordestina‖ se baseia no que ele define como uma transposição geográfica. Explica que a identidade nordestina construída a partir das imagens do sertão semiárido, transformaram o habitante do semiárido e da caatinga no elemento definidor da população daquela região do Brasil. Para ele, esta identidade tem um caráter extremamente ambíguo, já que está presente no discurso da elite política e da burguesia regional, mas também fora da região, configurando a ―mentalidade‖ dos que convivem com ―migrante nordestino‖. Neste caminho, observa que a maioria da população local da região se identifica muito mais com seu estado de nascimento (HAESBAERT, 1997, p.72-84). Esta identidade nordestina homogeneizadora, portanto, não abrange as múltiplas referências culturais e identitárias vivenciadas e (re)significadas cotidianamente pelos sujeitos que vivem na região e pelos que migram. Contudo, não se pode negligenciar que o ―nordestino‖ é uma construção simbólica e identitária bastante sólida e que se perpetua por meio de uma série de mecanismos de divulgação e de atualização. O nordestino popularizado pela mídia de massa tem um 267 sotaque padronizado, apresenta uma série de comportamentos e certas características marcantes, sendo apresentando geralmente como uma espécie de sertanejo standartizado. As manifestações culturais e identitárias nordestinas não estão imunes a esse processo histórico, antes se movem no seu interior, seguem algumas rotas e se constituem por meio de formas e linguagens socialmente consolidadas, como o cordel, reconhecidamente uma forma de expressão nordestina. Segundo estudos clássicos sobre e da cultura brasileira, como os produzidos por Manuel Diégues Jr e Luiz da Câmara Cascudo, a literatura de cordel se caracteriza com uma das expressões mais genuínas da cultura popular brasileira. Sua origem remonta à literatura oral, às trovas lusas e francesas, às formas variadas de dizer em verso, rimadas e ritmadas. Luciany Santos historia brevemente a institucionalização entre este tipo de literatura e a cultura nordestina. Explica que, até meados do século XX, literatura de cordel ―era reconhecida pelos produtores e consumidores nordestinos como versos, folhetos ou romances e eram vendidos nas feiras livres em bancas ou expostas no chão‖. No período de 1960 a 1970 ―a expressão ‗literatura de cordel nordestina‘ passa a ser empregada pelos estudiosos‖, denominação que passa a ser empregada também pelos poetas populares. Neste período, a sistematização de estudos e pesquisas sobre o tema – tendo como um dos centros irradiadores a Fundação Casa de Rui Barbosa – definiu ―uma historiografia sobre a literatura de folhetos brasileira‖, bem como a formação de um ―quadro acadêmico que legitimou e canonizou poetas, regras, conceitos e denominações sobre a literatura de cordel‖ (2010, p. 78-79). Definitivamente o cordel estava consagrado como um dos marcadores identitários da cultura nordestina no sentido englobante. Neste contexto, a vinculação entre a literatura de cordel e as migrações de nordestinos ganha contornos de objeto de estudo. Os livretos se estabelecem como um recurso legitimado para o migrante se expressar, para falar de suas experiências, suas dores, conquistas e saudades, para contar sobre os caminhos trilhados, as partidas e as chegadas, o ser e o estar em outro lugar que não o seu de origem. Todorov, no seu livro ―O homem desenraizado‖ (1999), fala do estranhamento e da busca por se encontrar no lugar de adoção. As estratégias para deitar raíz neste outro lugar, vivenciar as contradições e os conflitos decorrentes do deslocamento, se inserir social, econômica e culturalmente remetem a ideia de que um movimento constante de desenraizar e enraizar, que se dá em via de mão dupla, entre o migrante e sua bagagem cultural e existencial e a sociedade local, que varia de acordo com situações específicas de migração e de vida. 268

Pensando nisso, apresentamos o autor dos cordéis ―Vida de Cutião‖ (2008) e ―Roraima, Terra Bendita‖ (2009), Otaniel Mendes Oliveira, natural de São José das Curicas, zona rural do município de Vitorino Freire, no Maranhão, vive hoje na vila Central, município de Cantá, Roraima. Em entrevista concedida a Nogueira, em abril de 2011, explica que já andou por vários lugares: sua primeira passagem por Roraima se deu em 1970, onde ficou até 1978, quando por uma desilusão amorosa migrou para Rondônia, retornando apenas em 1982 (2011, p. 54-55). Na entrevista supracitada conta que aos três anos de idade empreendeu sua primeira migração, quando a família migrou para Pindaré-Mirim, para trabalhar na produção de tiquira, uma aguardente feita de mandioca. Sobre a saída da família de Pindaré-mirim evidencia um fenômeno típico de muitas regiões rurais brasileiras: ―os fazendeiros iam comprando os terrenos [os que forneciam a mandioca], então, a busca por matéria prima ficava mais distantes e ela era feita no lombo de animais‖, ou seja, a expansão das fazendas engole os pequenos produtores, sufoca a produção e estrangula o mercado de trabalho. A partir dai recorda a sua trajetória e, luz da lembrança dos deslocamentos empreendidos, afirma que ―o nordestino vive buscando melhorar de vida, e a vida dele é buscar‖ (NOGUEIRA, 2011, p. 55). Segundo Nogueira, para o cordelista, ―entre as idas e vindas, Roraima se constituiu na terra bendita, o lugar dos sonhos e da segurança‖. Isso fica explícito na maneira como Seu Otaniel se apresenta no cordel Vida de Cutião: ―Otaniel Mendes de Souza / Maranhense de verdade / Fazendo quarenta anos / Que moro nesta cidade / Por tudo que já passei / Felicidade encontrei / Estou vivendo à vontade!‖ (2008, p. 2). Este conjunto de versos que compõe a apresentação do livreto, reúne os elementos que caracterizam a migração: o local de origem, o local de destino, a trajetória, o tempo transcorrido e os resultados alcançados. Interessante registrar que após a breve apresentação, o livreto conta com um prefácio, de uma página, assinado pelo jornalista roraimense José Aroldo Pinheiro, no qual realça as qualidades do autor. Este foi o primeiro cordel do Seu Otaniel e nos fala das agruras e do cotidiano do trabalhador que vive em um lote em uma área de assentamento para pequenos proprietários, localizado em uma vicinal, em Roraima. Logo nos primeiros versos define o que é ser ―cutião‖ logo na primeira página após o prefácio: Vou contar uma história / Quero que prestem atenção / É sobre um homem que trabalha / Para defender o seu pão / No mato vive sozinho /Sem mulher sem carinho / É chamado cutião (2008, p. 4). A vida de cutião é dura! Seu Otaniel se utiliza de termos fortes e carregados de 269 sentidos que remetem a ideia de sofrimento, de sacrifício, de abandono, de carência: ―É uma vida solitária (…) Oh! Que vida precária!‖ (2008, p. 5). Ao longo do texto o cotidiano de solidão e o trabalho exaustivo exigido pelas lides com a terra, aliado às vicissitudes impostas pelo meio ambiente e pelo clima da região, dão forma a versos que são, ao mesmo tempo, um lamento e uma exaltação de algumas virtudes como a coragem, a tenacidade, a falta de preguiça, a capacidade de suportar as agruras, que nos remetem à máxima euclidiana que ―o sertanejo é, antes de tudo, um forte‖. Neste livreto Seu Otaniel dá ênfase à vida vivida no local de destino. Da escrita emerge o cotidiano, colorido com as tintas fortes do presente em curso. Toques de amargura coexistem com os de bom humor. Nas duas primeiras páginas após o prefácio fala sobre ser um ―cutião‖, da vida solitária que leva: ―Mulher lhe faz muita falta / Porque é dura a solidão / Sempre sozinho no mato Ele é um verdadeiro ermitão / Olha pra sua figura / E vê a vida dura / Apela pra sua própria mão‖ (2008. p. 4). A partir disso, nos retrata um dia na sua vida de ―cutião‖, do amanhecer, passando pela tarde e chegando a noite. Amanhece o dia: ―Com muita coragem e fé/ Ele come até em pé/ Pegando o enxadão‖. No meio do dia: ―O sol quente e fatigante/ Volta pra casa apressado/ Com uma fome daquelas/ Quando descobre a panela/ O feijão está queimado‖. Na volta para casa: Que uma etapa venceu/ Mas tem que preparar/ Alguma coisa pra jantar/ Porque o almoço perdeu‖. E no dia seguinte começa tudo de novo: ―A noite inteira dormindo/ Amanhece o dia sentindo/ Que está recuperado‖. No fim de semana: Se manda pra currutela/E vai tomar um traguinho. O caráter autobiográfico está absolutamente manifesto. No entanto, esta é a sua vida e também a de um sem número de migrantes estabelecidos nas vicinais e projetos de assentamento espalhados por Roraima e pela Amazônia. A memória dos dias condensada no texto segue um ciclo, dando força aos versos que nos contam sobre a vida de inúmeros brasileiros que penetraram a fronteira do humano, como José de Souza Martins (2009) bem caracterizou a expansão recente da ocupação da Amazônia. Este caráter coletivo que pode ser lido nos versos de Seu Otaniel reivindica uma experiência de quem já passou e viveu em vários lugares, lembrando o que afirma Halbwachs, que ―o espaço é uma realidade que dura (…), é nele que nosso pensamento tem de se fixar para que essa ou aquela categoria de lembranças reapareça‖ (2006, p. 170). Neste caso, os espaços por onde o autor passou e o espaço onde vive se fundem em sua memória narrada no cordel, dando vida e identidade a um certo tipo de indivíduo e a um certo tipo de existência, aquela do ―cutião‖. 270

Diferentemente do primeiro, o livreto Roraima: terra bendita parece se inscrever em uma outra fase da vida do autor. Maior em número de páginas – este tem 29, o anterior, 10 páginas – o texto revela um homem mais solto ao escrever e otimista para falar sobre a realidade vivida em Roraima. O próprio título, anuncia o tom de exaltação do texto, um tanto laudatório e ufanista também. A edição mais bem cuidada conta com agradecimentos, apresentação, dedicatória e prefácio e, ainda, com a chancela do SESC/RR e da XIX Feira de Livros do SESC, Federação das Indústria de Roraima-FIERR, dentre outros patrocínios. Nos dois primeiros conjuntos de versos inicia se referindo ao Brasil e ao Norte: ―No norte do Brasil / Encontramos coisas sem fins (sic) / Saindo Rio Branco Acre / Chegando a Tocantins / Passando pelo Pará / Encontramos o Boi Bumbá / Nas terras de Parintins (2009, p. 5). A partir daí se dedica a cantar Roraima, partindo da fronteira norte – na qual o estado confina com a Venezuela – passeia por muitas áreas do estado. Enumera os lugares emprestando-lhes características: ―Encontramos Pacaraima/Com seus bonitos lavrados‖; É também no Jundiá/Que existe barreira‖; ―Rorainópolis: uma cidade/De crescimento constante‖; É São João da Baliza/Lá tem muito produtor; ―Caroebe é muito bom/É a terra da banana‖. Sem fazer distinções político-administrativas, entre cidades, vilarejos, ou simples povoados, imprime nos lugares por onde passa sua escrita marcas identificadoras elogiosas em sua maioria. Não obstante, o texto é pontuado por versos que podem ser traduzidos como comentários afinados com a conjuntura regional de produção do texto e, também, com as parcerias estabelecidas pelo autor: ―Tem muita gente estrangeira / De olho em nossa riqueza / Com muito ouro e diamante / E nós vivendo na pobreza / Se não prestar atenção / Vamos acabar na mão / Da burguesia inglesa (2009, p. 13). Os cinco conjuntos de versos seguintes tratam do mesmo tema: a cobiça estrangeira pela Amazônia e por Roraima em especial. É bom lembrar que este foi um período de intensa polarização política e ideológica em Roraima, em função da demarcação em área contínua da Terra Indígena Raposa Serra Sol, cujo processo redundou na retirada de todos os não-índios da área, e mexeu sobremaneira com os interesses dos grandes fazendeiros de arroz que lá atuavam, fato que mobilizou a elite política e econômica local contra esta demarcação. Um dos eixos principais do discurso que fundamentava este movimento era aquele que alertava para a existência de poderosos interesses internacionais por trás da demarcação. Esse discurso teve uma repercussão muito grande na sociedade local, notadamente entre aqueles que viviam da terra. E foi repetido à exaustão pelos meios de comunicação e 271 em todos os espaços onde se abordava o assunto, partidários de ambas as posições levavam a cabo discussões acaloradas e Seu Otaniel entra neste circuito: ―Tem muitas ONGs estrangeiras / Com grande área de terra / Pra tomar nossa Amazônia / Eles fazem até guerra / Mas nós vamos expulsar / E não deixar mais entrar / Este papo se encerra‖ (2009, p. 13). De maneira explicita os versos de Seu Otaniel repercutem este momento e o autor, como tantos outros, toma posição: ―Depois que apareceu / Estrangeiro interessado / Que índio tem que viver / Em território isolado / Daí começou a crise / Assim que os índios dizem / O estrangeiro culpado‖ (2009, p. 26). Neste sentido, Guillen se refere ao poeta de cordel como ―um grande narrador da vida cotidiana nordestina‖, alguém que toma posição sobre o que narra (2002), ele é um comentador que utiliza as palavras com habilidade. A forma como o cordel é composto nos leva a encará-lo como um texto espontâneo, tributário da oralidade rimada, embora, por excelência, fundamente-se na arguta observação social, na crítica, observando-se o engajamento radical às temáticas postas à sociedade no calor da hora. Observa-se, no entanto, que a espontaneidade e a agilidade do cordel não implicam a ausência de objetivos bem definidos a serem veiculados. As temáticas se vinculam aos seus autores e aquilo que cerca, este é o mote para compor os versos, falar do local e do cotidiano. No ―passeio‖ que faz por Roraima, o autor se debruça sobre os vários lugares roraimenses, com familiaridade e benevolência. Como vimos acima, a mensagem é que cada canto de Roraima oferece algo que pode ser apreciado, que merece ser destacado e enaltecido. O conjunto destas partes forma Roraima, a terra bendita mencionada no título. Isto nos leva a ressaltar novamente que mudanças se operaram na vida de Seu Otaniel e na forma como ele se coloca em Roraima. Se no primeiro livreto observamos um homem encerrado em uma realidade restrita, comandada por um ciclo natural do amanhecer ao anoitecer, dos dias e das semanas, contada com laivos de amargura e certo desencantamento, no segundo, vemos um homem livre, que ―sobrevoa‖ um espaço amplo, a área estadual, e conta o que vê de forma dinâmica e otimista. Pontua o seu ―passeio‖ pelos lugares, enumerando as suas gentes: ―Gente do Brasil inteiro / Pode prestar atenção / Tem gente do Paraná / E também do Maranhão / Tem paulista e capixaba / Sulista que não se acaba Grande miscigenação‖ (2009, p. 7). Fala da diversidade de gentes, ou seja, dos muitos migrantes: ―Tem gente de toda parte / Deste Brasil de meu deus / Maranhense e cearense / Descendente de europeu / De gente que mora ali / Estou dizendo para ti / Tem gente até dos zezéus‖ (2009, p. 11) Contudo, o que fica claro neste segundo livreto é a mudança operada na escrita do 272 autor. Muda a temática, o que não é novidade para a literatura de cordel, dinâmica e pautada em temas do cotidiano, próximos os autores; muda também a forma de escrever e de abordar lugar que foi adotado pelo autor. Fica patente uma mudança na relação do autor com Roraima, ou melhor, na maneira como Seu Otaniel vê Roraima e se vê neste lugar onde vive: ―Roraima é terra boa / Assim está na escrita / Todos que chegam aqui / É claro que acredita / E logo que vem chegando / Chega pulando e gritando / Roraima terra bendita‖ (2009, p. 27). Seu Otaniel se vê e se coloca como migrante nordestino, como maranhense e como roraimense: ―Eu sou feliz não importa / Aquilo que alguém pense / Quem me conhece sabe / Que eu sou maranhense / Eu só quero ser feliz / Até brigo com que diz / Que eu não sou roraimense‖ (2009, p. 27.) Neste texto se declara integrado, inserido, pacificado, principalmente se levarmos em conta o livreto anterior. Silva, na leitura que faz das ideias de Stuart Hall, explica que, na contemporaneidade, ―as identidades não são nunca unificadas‖, mas ―cada vez mais fragmentadas, fraturadas, (…) multiplamente construídas ao longo dos discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicos‖. Exposta a uma historicização radical, a identidade estaria ―constantemente em processo de mudança e transformação‖ (2000, p. 108). Os processos migratórios engendram transformações naquilo que se é, na maneira como o indivíduo se vê e se coloca no mundo. Define também as formas empregadas para explicar e compreender a sua trajetória, ou seja, o quê fala e como fala. O autor lança mão de uma forma socialmente reconhecida para falar de si e do mundo que o cerca. O cordel, como manifestação legítima e legitimada da cultura popular brasileira e da nordestinidade, somada ao talento e a habilidade de Seu Otaniel com as palavras e as rimas, traz para si uma identidade nordestina, mas também maranhense e roraimense, sem prejuízos ou aparentes hierarquizações. Nos dois livretos, a bagagem cultural migrante do autor compõe um quadro que mostra, por um lado, o migrante sofrido e exposto às vicissitudes e sacrifícios condizente com a visão consagrada do migrante nordestino, e de outro, o migrante integrado, inserido, conhecedor e partícipe da sociedade de destino há mais de 25 anos. REFERÊNCIAS: ALBUQUERQUE, D. M. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife/São Paulo: Fundação Joaquim Nabuco/Cortez, 1999. BARROS, N.C.C.. Roraima: paisagens e tempo na Amazônia setentrional. Recife: Editora Universitária (UFPE), 1995. GUILLEN, I. C. M. Cantadores das viagens. a literatura de cordel e a experiência da migração nordestina para a Amazônia. 2002. 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CORES COMO MEDIADORAS DO DIÁLOGO ENTRE ARTE E CIÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM.

Cleiciane Maia Ferreira99

Prof. Dr. Allison Leão (Orientador) 100

RESUMO

A investigação dos pressupostos teóricos sobre o fenômeno cromático na poesia e na arte, especificamente na pintura, se fundamentam, entre outras abordagens, nas contribuições de Johann Wolfang von Goethe, em seu Farbenlehre, A Teoria das Cores – um diário de estudos prolongados que apresenta tanto o rigor do discurso científico, quanto o refinamento literário. Esta ambivalência que as cores proporcionam em suas manifestações implicam em dois gêneros de discurso: um científico e outro poético investigados neste artigo em duas literaturas especificas e abordadas por Willi Bolle em ―Amanhecer no Amazonas. Cultura e natureza a luz da Teoria das Cores de Goethe‖, publicado na revista científica Literatura Interfaces Fronteiras pela UEA Edições. São elas, Viagem pelo Brasil, de Carls Friedrich Philipp von Martius e O turista aprendiz de Mário de Andrade. A pesquisa como um todo se orienta a pensar na relação dialética entre o discurso rigoroso objetivo da ciência e arte mediado pelo fenômeno cromático experienciado em meio à natureza.

Palavras-chaves: Ciência; Poesia; Cores.

ABSTRACT

The investigation of the theoretical assumptions about the phenomenon color in poetry and art, specifically painting, are based, among other approaches, the contributions of Johann Wolfgang von Goethe, in his Farbenlehre, The Theory of Colours - a diary study shows that prolonged both the rigor of scientific discourse, as the literary refinement. This ambivalence that colors provide in its manifestations imply two kinds of discourse: a scientific and other poetic investigated in this paper in two specific literature and addressed by Willi Bolle in "Dawn on the Amazon. Culture and nature in light of Goethe's Theory of Colours ", published in the journal Interfaces Borders for UEA Literary Editions. They are, by Brazil Travel, Carls Friedrich Philipp von Martius and The apprentice tourist Mário de Andrade. The research as a whole is oriented thinking in dialectical relationship between discourse rigorous objective science and art mediated by chromatic phenomenon experienced in nature.

Keywords: Science; Poetry; Color.

99 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras e Artes pela Universidade do Estado do Amazonas - UEA. E-mail: [email protected],br 100 Professor do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade do Estado do Amazonas – UEA .E-mail: [email protected] 275

INTRODUÇÃO

Ao buscar entender a relação entre discurso cientifico e metafórico literário incluindo o fenômeno cromático do amanhecer, a pesquisa acabou se norteando ao inicio do pensamento sistematizado sobre cores. Tomando como ponto de partida o Renascimento, acabamos percebendo que antes se tornará necessário entender a análise comparativa da relação entre pintura e poesia neste período. A influencia do humanismo nos remete ao aforismo ―a pintura é a poesia calada e a poesia é a pintura que fala‖, ut pictura poesis; a recicprocidade entre pintura e poesia. O aporte científico de um estudo sobre cor é verdadeiramente percebido quando Goethe, em contraposição a teoria física de Newton, escreve ― Teoria das Cores‖. Os trabalhos de Goethe, em Teoria da Cores, denotam o reciprocidade entre discurso científico e poético, pois a própria construção do texto tem, ao mesmo tempo, caráter científico com conotações literárias dos experimentos realizados ao ar livre, sobretudo, durante amanhecer. Semelhante ao que acontece com Goethe, no artigo de Willi Bolle, Amanhecer no Amazonas. Cultura e natureza e luz da Teoria de Goethe, publicada pela revista científica Amazonas: Literatura, Interfaces Fronteiras, o diálogo entre ciência e arte são demonstrados pelo autor em duas literaturas especificas: a primeira emViagem pelo Brasil de Carls Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptist von Pix e a segunda em O turista aprendiz de Mário de Andrade, ambas como relatos de viagem, apresentam a intenção da descrição científica objetiva paralela a uma linguagem metafórica e literária diante do amanhecer na região amazônica.

CORES COMO MEDIADORAS DO DIÁLOGO ENTRE ARTE E CIÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM.

O estudo sobre a cor de modo geral é algo passível de diversas variáveis de pensamento sobre as suas manifestações na pintura e na poesia; além do uso metódico e subjetivo na história da arte. Ao longo dos tempos, observamos que existiram poetas e pintores que realizam suas obras inspirados por um motivo ou tema. Inicialmente, alguns destes motores de inspiração advêm de uma relação de dialética entre duas manifestações de arte, a pintura e a poesia. Em outros momentos, percebemos que o uso da cor, mesmo em literaturas com objetivos científicos, confere aspectos de refinamento literário. Pensando na relação entre pintura e poesia, devemos relembrar a renascença, sobretudo, a arte italiana. A pintura, neste período, estabelece a relação direta com os temas épicos gregos. As manifestações artísticas são percebidas pela sistematização das cores que começam ainda com os pintores medievais. Os reformadores de Veneza interessavam-se menos pela cor que pelo desenho, considerando seu uso um ornamento adicional à obra. Entretanto, os pintores venezianos não consideraram o uso da suplementar. Giovanni Bellini, por exemplo, ao pintar o altar-mor em 1505, na igreja de S. Zacarias, expôs sua intenção de considerar o uso da cor sob uma perspectiva diferente destacando uma riqueza em cores, além do caráter subjetivo de 276 interpretações. A utilização de uma perspectiva humanista faz com que os pintores conseguissem criar espaços reais em superfícies planas (telas ou paredes), dando a noção de profundidade e volume graças a técnicas de cores e luz, as quais permitem destaque de alguns pontos e disfarce de outros. Os artistas renascentistas inspirados pelos épicos gregos retrataram musas, ninfas entre outras personagens que pertencem a este contexto mitológico greco romano. Giorgione (1478?- 1510) ao pintar tempestade, estabelece um diferencial ao reproduzir harmoniosamente o jogo de luz e cor. Daí a possibilidade de ser a obra tempestade uma representação da história de uma mulher com seu bebê que fora expulsa e que é acordada por um pastor no ermo. Mas além da simbologia que possa conter a obra, o que chama atenção é como a paisagem que é ilustrada: como tema autônomo e não como pano de fundo para as figuras que a compõem; o quadro é uma combinação harmoniosa de luz e cor. Dessa forma, podemos dizer que Giorgione pensou verdadeiramente na natureza. (...) a terra, as árvores, a luz, o ar, as nuvens, e os seres humanos com suas cidades e pontes – como um todo indivisível. De certo modo, isso foi um avanço quase que tão grande para o novo domínio na arte de pintar quanto a invenção da perspectiva o fora antes. Doravante, a pintura era mais do que a soma de desenho e colorido. Era uma arte com suas próprias leis e estratagemas secretos. (COMBRINCH, 331p) Na renascença a arte vale em muito pelo que ela representa, ou seja, pelo significado que ela contém. Contudo, esta mesma verdade pode ser superada pelo ornamento que carrega consigo: movimento, luz, cor, profundidade e volume. Tudo isso são dados importantes que compõem a obra para possíveis significações. Esta relação entre poesia e pintura foi bastante discutida entre os séculos XVI a XVIII, quando ocorreram sobre várias interpretações da Poética de Aristóteles (sobre o conceito de mímeses) e o aforismo de Simônides, ―a pintura é a poesia calada e a poesia é a pintura que fala‖, ut pictura poesis. O objeto de inspiração artística dos pintores era calçada na literatura grega. Em 1766, Lessing em seu livro ―Laconte‖, abre a discussão sobre o princípio na qual a qualidade essencial da arte é a ideia. Segundo ele, a sincronia no espaço da pintura, e a sucessão do tempo na poesia são, ambas, fenômenos físicos. Sobre os trabalhos de Lessing, Goethe acentua esta distinção contrapondo não só poesia e pintura, mas também, pintura e desenho. Segundo ele, pitamos com cores; esta é, portanto, o objetivo (início e fim) da pintura. Somente nos séculos XIX, com romantismo, a polêmica entre pintura e poesia tem uma aparente trégua. O desenvolvimento da poesia lírica e da pintura, especificamente, se dará frente à oscilação entre estes dois pólos enquanto manifestações de arte. As artes plásticas, de modo geral, tem uma aparente vantagem em relação às outras artes nesta libertação, visto que sua natureza objetiva e pura força-nos um estímulo poderoso independente dos sentidos: ou fala algo, ou não fala; e ainda, fala de forma diferente em uma dimensão prática da cor. A poesia, porém, fala de maneira mais vaga, estimula o sentimento de cada um, segundo a natureza de cada leitor. Torna-se 277 ainda mais complexa a recepção do leitor quando a poesia trás consigo ornamento de subjetivação, a cor. O estudo sobre a cor expressa na literatura remete a uma análise que se desdobra novamente em duas vertentes principais: arte e ciência; as quais estabelecem uma relação de complementaridade na medida em que se observa tanto um discurso cientifico quanto literário em obras que investem no aprofundamento do conhecimento sobre as cores em geral. Isto é percebido em ―Teoria das Cores‖ de Goethe (1810). Sobre a relação de cor e arte, J. W. Goethe ainda na introdução faz uma reflexão sobre as cores de modo geral. Dizíamos que a totalidade da natureza se revela ao sentido da visão através da cor, agora, por estranho eu pareça, afirmamos que o olho não vê alguma coisa, uma vez que somente claro, escuro e cor, constituem, juntos, aquilo que distingue para a visão de um objeto de outro e uma parte de um objeto de outra. E assim construímos o mundo visível a partir do claro, do escuro, e da cor, e com eles, também tornamos possível a pintura, que é capaz de produzir, no plano, um mundo visível muito mais perfeito que o real. (GOETHE APUD GIANONTTI, 2011) Para entender a Teoria das Cores de Goethe é necessário conhecer previamente os tipos de experiências por ele descritos, ou melhor, como o fenômeno da cor se articula com a experiência da cor. É preciso esclarecer que sua obra não visa particularmente às artes plásticas; a obra tem tanto um aspecto filosófico quanto prático. Na obra, Goethe causa certa confusão no leitor devido à apresentação dos conceitos da teoria em uma estrutura de fragmentos dispersos no texto. Há certa dificuldade de interpretação decorrente deste estilo que ora apresenta um rígido discurso científico, ora um refinamento poético: Certa vez, durante o entardecer, ao entrar numa hospedagem, uma moça corpulenta de feições resplandecentes, cabelos negros e um corpete escarlarte seguiu-me ate o quarto; de um acerta distância, observei-a atentamente na penumbra. Logo que se virou para sair, vi contra a parede branca um rosto preto, rodeado por um brilho claro, e as vestes dessa figura perfeitamente nítida pareciam um lindo mar verde. (GOETHE, 65p) Goethe procurou sua investigação ao ar livre, pois, segundo ele, a cor deve ser pensada na sua relação com o órgão específico da visão, o olho, onde este olhar encontra a natureza; o foco é a analise sobre a cor na luz em contraposição a teoria física de Newton, o qual procurava derivar a cor da luz. Quando Goethe fala observando os acontecimentos da natureza, ao ar livre, denomina seu método de Arquefenômeno, ou seja, o fenômeno primordial (Urphänomem). Para ele, fenômeno cromático se dá através da interrelação polarizada entre luz e escuridão. Neste meio entre luz e escuridão as cores nascem e isto é o arquefenômeno na formação das cores. A metodologia de Goethe, seu estilo de questionar e seu comprometimento em descobrir, faz com que se lance aos experimentos e também solicita o mesmo ao leitor. O discurso que usa, sem mostrar de pronto as conclusões, quer fazer o convite ao leitor sobre o caminho a trilhar na experimentação, vivenciando as observações do fenômeno cromático. Goethe pretende manter a 278 questão sobre a verdade da criação ao nível da natureza, neste caso, ―estetizada‖ para preservar a consciência como ponto de referência para o conhecimento, mesmo que isto o torne ainda mais poético. Natureza não é, para ele, o que decorre dos experimentos; mas sim, o que reside no conceito de cor. A aurora e o entardecer, por exemplo, fora por ele observados em diversos momentos como tentativa do registro, ora com tons mais analíticos, ora com nuances literárias. O vermelho da aurora e do crepúsculo surge pelo mesmo motivo. Brilhando através de uma intensa massa de vapores, o sol se anuncia através de um vermelho. A medida que desponta, o brilho se torna cada vez mais claro e amarelo.(GOETHE, 89p.) Devido ao grande prestígio físico inglês, os estudos de Goethe ficaram durante muito tempo em descrédito pela comunidade científica até o século XX quando os pintores modernos Paul Klee e Kandinsky retomam suas observações. Der Blaue Reiter (o cavaleiro azul), foi um movimento fundado por Wassily Kandinky e Franz Marc. O nome representa a denúncia a permanência de laços com a cultura simbolista. A interioridade passa a ser entendida como força a espiritual e evolui para abstração mais rigorosa. Paul Klee, experimentador eclético, adere ao movimento. Os artistas escolhem a via da abstração, tentado exprimir sentimentos e sensações através da cor. Ao tentar propor que as cores tem uma linguagem específica, inaugura também as formas de abordá-las, aquilo que numa proposta fenomenológica significa a necessidade de adequarmos a arte a uma linguagem apropriada de expressão. Na sexta parte de ―Teoria da Cor‖, apesar da descrição técnica aplicada com caráter enciclopedista, Goethe analisa a relação entre cor e pintura; trata, especificamente, dos efeitos estéticos e morais. Goethe parece preceder aquilo que os modernos enfatizaram grandemente: a cor como possibilidade de expressão autônoma, garantindo a legitimidade das artes plásticas em relação e poesia e vice versa. É nesse sentido que a cor pode ser distinguida da poesia. A experiência cromática na pintura não poderá ser pensada da mesma forma que a experiência cromática na poesia: ―Alegra-me ver como poesia e artes plásticas podiam se influenciar reciprocamente (...). Somente num ponto não tem a menor clareza, o colorido.‖ (GOETHE APUD GIANNOTTI, 2011). Na quinta seção, procura analisar as diferentes relações com diversas disciplinas, entre elas com a história natural. Segundo ele, essa disciplina tende a ser uma dedução de manifestações dos fenômenos naturais a partir de fenômenos exteriores: ―(...) apresentando-se ao olho em uma grande variedade, a cor se torna, na superfície dos seres vivos, uma parte importante dos signos exteriores através dos quais percebemos o que se passa no interior deles.‖ (GOETHE APUD. GIANNOTTI, 2011). Semelhante ao que acontece com Goethe quanto à investigação científica e a narrativa poética, o artigo de Willi Bolle, Amanhecer no Amazonas. Cultura e natureza e luz da Teoria de Goethe, publicada pela revista científica Amazonas: Literatura, Interfaces Fronteiras, mostra este diálogo entre ciência e arte em duas literaturas específicas: Viagem pelo Brasil de Carls Friedrich Philipp von Martius e 279

Johann Baptist von Pix e O turista aprendiz de Mário de Andrade, ambas como relatos de viagem, apresentam a intenção da descrição cientifica objetiva paralela a uma linguagem metafórica e literária diante do amanhecer na região amazônica. Carls Friedrich Philipp von Martius, é um naturalista botânico, contemporâneo ao romantismo que empreendeu uma viagem pelo Brasil no período de 1917 a 1820. Tem como companheiro nesta viagem o zoólogo Johann Baptist von Pix. Ambos se formaram em contato com a obra de Goethe ―A história e a filosofia da natureza‖ e seus conhecimentos geográficos advém dos estudos de Alexander von Humboldt. Em Viagem pelo Brasil, o autor pausa o discurso científico rigoroso para inserir uma folha de seu diário íntimo em que manifesta características particulares de sensações diante do amanhecer em um terraço da casa em que esteve hospedado em frente ao rio Amazonas na região do Pará em agosto de 1823. O lugar sagrado, onde todas as forças se reúnem harmonicamente e ressoam como canto triunfal, amanhece sensações e pensamentos. (..) Cada vez mais claro torna-se o ar; o dia começa; uma indizível majestade paira sobre a natureza: a terra está esperando o noivo.(Martius, 1981) Inicialmente, ao autor esclarece o porquê da linguagem por ele escolhida, relato de viagem, e faz isso extensamente em uma introdução de quase mil páginas. O gênero representava para ele, a mediação perfeita entre ciência e arte. Neste momento, o autor documenta sua tendência ao ―espírito de compreensão‖ diante da experiência. As evidências dos traços estilísticos de subjetivação são expressos pela identificação do Eu no texto. Diariamente lanço-me na meditação do grande e indizível quadro da natureza e, embora seja fora do meu alcance compreender sua finalidade divina, ele me enche de deliciosas emoções. – São três horas da madrugada; levanto-me da rede e não consigo mais dormir de excitação; abro as venezianas e olha para a noite escura e solene. Magníficas brilham as estrelas, e o rio resplandece como o reflexo da lua poente. Como tudo é quieto e misterioso em torno de mim! Ando de lampião para a fresca varanda e contemplo os meus amigos queridos, as árvores e os arbustos em redor da casa. (MARTIUS, 1981) Ao amanhecer, o autor atribui características metafóricas literárias na construção do texto, percebidos nos versos destacados por Willi Bolle: ―O lugar sagrado, onde todas as forças se reúnem harmoniosamente e ressoam como canto triunfal, amadurece sensações e sentimentos‖. Neste ponto a evidência da tentativa de Martius em captar uma nova percepção calçada no subjetivismo do amanhecer. A tentativa de captar a linguagem da natureza dos fenômenos cromáticos ligados ao amanhecer e de traduzí-los em meios literários são percebidos na descrição do amanhecer na evidente mediação entre percepção científica e estética. Neste ponto, Willi Bolle retira do texto Viagem pelo Brasil, os trechos em que há o aparente diálogo entre discurso exato cientista e sensibilidade literária pautada nas manifestações das cores. As formas das árvores aproximam-se cada vez mais; o terral, que se levanta do leste, agita-nos lentamente e já aparecem reflexos róseos nas copas, lembrando abobadas dos troncos de Caryocar, Bertholeia e Symphonya. Os falhos e as folhas agitam-se; sonhadores despertam e banham no ar fresquinho da manha; besouros voam, mosquitos 280

zumbem, pássaros cantam, macacos trepam gritando nas brenhas; as mariposas retiram-se lucifugas a noite da mata; nos caminhos há movimento, os roedores fogem para o pardieiro e a irara pérfida se afasta de mansinho do galinheiro, no qual o pomposo galo anuncia a manha‖. (MARTIUS, 1981) O segundo texto mencionado no artigo de Willi Bolle é o de Mário de Andrade, um representante do modernismo brasileiro. O turista Aprendiz é fruto de uma viagem que faz a região amazônica em 1927. Neste livro o autor segue a descrição do nascimento das cores numa escola entre a escuridão e o aparecimento da luz do sol, seguindo a linha de Goethe sobre a polarização entre luz e escuridão. Em Mario de Andrade, particularmente, este diálogo entre ciência e arte, entremeado pelas cores é percebido no poema Crepúsculo Matinal. Nele, as cores atuam associadas ao ar, aos sons e temperaturas. O autor segue a mesma trajetória de Martius ao incluir as cores no texto literário e segue a linha dos Tableaux de la nature, quadros da natureza de Alexander von Humboldt. No Brasil, o tableau de Mario de Andrade é o seu jornal de viagem focado na descrição representativa da paisagem brasileira. A obra esta dividida em duas partes: o prelúdio entre as trevas e, a segunda, o surgimento das cores específicas. Na primeira parte, o poeta anuncia as cores assegurando o estado inicial de escuridão. Gradativamente são inseridas as cores com a progressão da luz. O texto inicial é, para Willi Bolle, ―a gênese das cores ou a sua cosmogonia‖ enfatizada pela sensação de retardamento do nascimento da cor propriamente dita. No poema as cores são protagonistas do texto e antropomorfizadas junto com a natureza. A segunda parte do texto é inteiramente dedicada ao aparecimento efetivo das cores que se apresentam em cinco movimentos diferentes começando pelo primeiro movimento composto pelas cores novas; o segundo pelas cores emphatici (remetendo a Goethe); o terceiro movimento é representando como um jogo de cores. Os próximos movimentos não pertencem mais ao céu, e sim, a superfície do rio e, finalmente, a última fase, novamente o azul e diversas cores em plural. No primeiro movimento, as cores novas são aquelas em que o olhar está disposto a receber depois da escuridão. A primeira cor que surge é o azul como resultado da luz do sol. A gradação da cor faz surgir novas cores em seguida, o rosa, definida por ele como ―sem graça‖. A próxima manifestação de cor é o amarelo que discretamente vai ficando branco. Em seus versos, o autor diz: O azul se define, cor de enfeite de Nossa Senhora. (...) Um roseado muito sem graça, trêmulo, malteiro se arroja no ar e logo tem um desmaio sem alarde, vira duma amarelo incolor e acaba ficando branco. É só o tempo de acender um cigarro e até o azul nítido de há pouco foi branqueado e também temos um agradável céu branco, com nuvens de cinza adiante. E é só. (ANDRADE, 1986) No segundo movimento, a narrativa de Mário de Andrade, reteme a teoria de Goethe sobre as cores emphatici. O surgimento das cores se dão por meio a gradação de luz. O movimento de cores parte do roxo para o escarlate. Esta cor é, para Goethe e Mário de Andrade, o grau máximo de intensificação produzindo extrema energia. Todas as cores convergem para tons roseados de bordas 281 douradas. O terceiro movimento é o conjunto de cores. As nuvens e a natureza, de modo geral, são personificadas: ―As nuvens criam coragem. Até longe, bem no alto céu, vejo um farranchon delas, todas vestidas de luz clara, são laranjas perfeitos e uns brancos louros com ar de vida infantil.‖. (ANDRADE, 1983). No quarto movimento, os fenômenos cromáticos situam-se na superfície do rio e o espetáculo descrito no céu é novamente visto no espelho das águas dos rios num espectro de cores que parte do ―azul vivíssimo‖ para gradativamente revelar cores em formas plurais (rosas, marrons, verdes laranjas e amarelos). Depois de apresentadas as cores, o desaparecimento delas é mediada pelo amarelo reforçada pela claridade refletida das águas. Em ambas as literaturas mostram aparentemente como as cores nascem em meio natural através da dinâmica polarizada entre luz e escuridão, tal qual a proposta de Goethe. Depois dos apontamentos de Bolle, sobre a recorrência das cores nas literaturas, outro apontamento é lembrando pelo autor segundo a proposta de goetheana sobre o surgimento das cores: a observação da natureza, que a partir do século XIX esteve a margem devido ao experimentalismo científico que a época vivenciava. Mas que as artes preservariam em suas manifestações entre elas, novamente, a pintura; e neste caso, a pintura de paisagens. A pintura de paisagem é no século XIX, sobretudo na Alemanha, a representação do contexto político das nações. O componente nacional do Romantismo tinha grande influência sobre a formação da identidade das nações, sobretudo, no Brasil com os artistas modernistas, como Mário de Andrade. Segundo Bolle, ―A paisagem é um lugar da natureza construído pelo olhar do observador‖, o arquefenômeno é o amanhecer. Dessa forma, o diálogo verbal objetivo da ciência com a linguagem poética culminam em um objeto específico de arte, a pintura abstrata (não figurativa) da natureza. Que, enfim, a cor autorize uma interpretação mística, é fácil de perceber. Pois como o esquema que permite a representação da variedade cromática remete a relações primordiais, que pertencem a intuição humana quanto a natureza, não há duvida de que e possível utilizar de algum modo as ligações primordiais, que não se apresentam de modo tão forte e variado ao sentidos. (GOEHTE APUD GIANNOTTI, 2011) A natureza cada vez mais ―estetizada‖, com fins de se chegar ao conhecimento, paralelamente, torna-se cada vez mais poética. Willi Bolle, seguindo os passos de Goethe e aceitando o convite implícito na Teoria Cores, relata que sua preparação sobre o tema se deu de uma experiência empírica do amanhecer do rio Amazonas. Podemos dizer que, Goethe é, portanto, tanto um poeta que pesquisa a natureza? Eis a possível mediação entre ciência e arte, em que ambas, servindo-se da representação de cores inseridas no discurso que carregam, trazem consigo o motivo que, além de se inspirarem mutuamente, inspiram outras manifestações, entre elas, a pintura de paisagem.

CONCLUSÃO 282

A Teoria das Cores de Goethe não definiu seu gênero. A oscilação entre linguagem cientifica ou poética da obra é adequada (no sentido pragmático) para esclarecer o fenômeno que lhe compete; o qual não aparece somente na descrição física do surgimento e desaparecimento da cor, mas inscrito no olhar do observador, melhor dizendo, na retina. A linguagem simbólica da obra faz parte desta impressão que poderíamos definir como única: uma linguagem única das cores, aquilo que Wittgenstein tanto criticou devido aos conceitos sucessivos de identidade de cor convencionados pela sociedade. O que Wittgenstein não atentou foi para o objetivo de Goethe sobre os conceitos independentes de cor: ―nada pode ser exterior a nos, o mundo se reflete no sujeito‖, Goethe não desvincula o homem do mundo. As manifestações das cores se dão através do órgão da visão. Ele diz que ―o olho é sola‖, ou seja, olhar deve sua existência à luz do mundo manifesto na natureza. REFERÊNCIAS BOLLE, WILLI. Amanhecer no Amazonas. Cultura e natureza a luz da Teoria das Cores de Goethe. In: CAVALHEIRO, Juciane (Org.). Literatura Interfaces, Fronteiras. Manaus: UEA Edições, 2010. FERRARI, Silvia. Guia de história da arte contemporânea. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Editorial Presença, 2001. GOETHE, J. W. Doutrina das Cores. Tradução de Marco Giannotti. São Paulo: Nova Alexandria, 2011. GOMBRICH, E.H. A história da arte. Tradução de Álvaro Cabral. 16º ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

SPIX, J. B von; MARTIUS,C.F.P. von. Viagem pelo Brasil. 3 ed. Tradução de Lúcia Furquim Lahmeyer. S

283

MACUXANA: MEMÓRIA, IDENTIDADE E LITERATURA RORAIMENSE

Cleo Amorim Nascimento101

Carla Monteiro Souza (orientadora)102

Resumo: Os sujeitos trazem em sua essência a soma das histórias vividas, a memória, à qual eles recorrem na tentativa de buscar suas representações identitárias no convívio diário com a coletividade social. Inúmeros estudos vêm buscando explicar como a memória é constituída e qual a sua importância para a construção das identidades dos indivíduos. Portanto, este artigo busca apresentar algumas considerações teóricas acerca da memória, sua relação com a história e a identidade social a partir do discurso poético. Na produção literária roraimense, elege como objeto de análise o poema Macuxana, do cantor, compositor e poeta Zeca Preto, a fim de apontar características da cultura roraimense referentes aos processos históricos de migração, colonização e o seu contato com a cultura indígena fortemente arraigada no estado, e como estes aspectos que compõem a memória e a história de Roraima estão representados na literatura regional. Nesta perspectiva, o artigo busca, a partir da análise do poema em foco, mostrar como a literatura roraimense a partir da década de 1980, por intermédio do Movimento Cultural Roraimeira, passou a divulgar a cultura regional, na intenção de reavivar costumes, rememorar fatos históricos e difundir a cultura e a identidade roraimense.

Palavras-chave: Memória; História; Identidade; Literatura Roraimense.

Resúmen: Los sujetos aportan en su esencia la suma de las historias vividas, la memoria, la cual utilisan para tratar de conseguir sus representaciones de identidades en su contacto diario en la colectividad social. Numerosos estudios han tratado de explicar cómo se forma la memoria y cuál es su importancia para la construcción de las identidades de los individuos. Por lo tanto, este artículo trata de presentar algunas consideraciones teóricas acerca de la memoria y su relación con la historia y la identidad social apartir del discurso poetico. Desde la producción literaria roraimense, elige como objeto de análisis el poema Macuxana, del cantante, compositor y poeta Zeca Preto, con el fin de señalar las características de la cultura roraimense que se refieren a los procesos históricos de la migración, colonización y su contacto con la cultura indígena muy arraigada en el estado, y cómo estos aspectos que conforman la memoria y la historia del Estado de Roraima están representados en la literatura regional. En esta perspectiva, el artículo busca en el análisis interpretativo del poema en foco, mostrar cómo la literatura roraimense apartir de los años 1980, a través del Movimiento Cultural Roraimeira, comenzó a publicar la cultura regional, en un intento de revivir las costumbres, recordar hechos históricos y difundir la cultura e identidad roraimense.

Palavras clave: Memoria; Historia; Identidad; Literatura Roraimense.

101 Aluna do Mestrado em Letras, na linha de pesquisa Literatura, Artes e Cultura Regional, do PPGL da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 102 Doutora em História. Professora do Dep. de História da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e do Mestrado em Letras do PPGL da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Pesquisadora do Grupo de Estudos Literários (UFRR). E-mail: [email protected] 284

1. Introdução

Os estudos sobre a memória têm tentado há muito explicar qual a importância do ato de lembrar e qual a relação das lembranças com a construção das identidades dos sujeitos. A memória é parte importante na compreensão do sujeito enquanto partícipe de uma sociedade, o lembrar confere ao sujeito o poder de relacionar o que viveu ao tempo hodierno, ao passo que confirma sua presença e define seu sentimento de pertencimento ao lugar que escolhe como referência de identificação. A memória remete o sujeito as suas origens, é um processo interativo e dinâmico que se constrói individual e coletivamente à medida que o indivíduo interage com as práticas discursivas em seu meio social, e nesta interação social constroem-se gradativamente as identidades. Portanto, os estudos teóricos aqui destacados visam conceituar e classificar a memória, explicar a sua relação com a história e a identidade social à luz de teóricos como Halbwachs (1990), Pollak (1992), Bosi (1994), Bergson (1999), Cuche (2002), Hall (2002), Mello (2010) e Souza (2010). E para discutir como esta relação encontra-se disposta dentro da literatura regional roraimense, a análise do poema Macuxana, do poeta, cantor e compositor Zeca Preto, servirá de base para mostrar a preocupação dos artistas locais em divulgar a história, a cultura e a identidade desta localidade tão peculiar, que abriga em seu seio a diversidade e a pluralidade.

2. Memória, história e identidade social

A palavra memória vem do termo latim memoria, que traz como significado a ―faculdade de reter as ideias, impressões e conhecimentos adquiridos anteriormente (FERREIRA, 2004, s.p‖), e abriga ainda em seu cerne significativo os termos lembrança, reminiscência, recordação. E assim, ao longo das décadas, este termo vem ganhando inúmeras atribuições históricas, afetivas e artísticas entre outras. O registro de testemunhos, depoimentos e narrativas orais, como afirma Alberti (2005 Apud SOUZA, 2010, p. 2), permitem acessar as ―histórias dentro da História‖. Neste contexto fica claro observar a estreita ligação entre a memória e a história, pois ambas são constituídas a partir de depoimentos, testemunhos e registros perpassados entre gerações ao longo do tempo. Em definição que corrobora este pensamento, Mello (2010, p.5) afirma:

285

A memória é sempre historicamente datada e, portanto, moldada no tempo histórico. Ela está sempre reorganizando o passado, pautada por projetos individuais ou coletivos que garantem inteligibilidade para um presente no qual as identidades se mantêm em constante reelaboração, em função dos conflitos entre o projeto pessoal com outros projetos individuais e coletivos.

Rememorar e narrar, escrita ou oralmente, requer um contínuo relacionamento solidário e interativo com outras lembranças, a configuração de contextos, de paisagens, de lugares que, como ―cenários‖, abrigam e dão sentido ao que está sendo lembrado e contado (SOUZA, 2010, p.2). O que implica dizer que as memórias e relatos históricos não se dão de maneira isolada, pois estas só adquirem sentido quando são frutos da interação entre as lembranças e relatos dos indivíduos, e as lembranças e relatos do contexto social no qual este indivíduo esteja inserido. Com relação a ligação entre a memória e o passado cabe citar a contribuição do importante teórico dos estudos sobre a memória, Henri Bergson, que em seu livro intitulado Matiére et Mémoire (1896), traduzido para a língua portuguesa como Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito (1990), elenca fatores que conceituam a fenomenologia da lembrança, e define, portanto a memória como processo de conservação do passado. Para Bergson (1990, p.170) ―nossas lembranças formam uma cadeia do mesmo tipo, e que nosso caráter, sempre presente em todas as nossas decisões, é exatamente a síntese atual de todos os nossos estados passados‖. De acordo com o teórico o fenômeno da lembrança estaria relacionado ao ato de deixar aflorar do passado o que estava submerso, ou seja, ―a memória permite a relação do corpo presente com o passado (BOSI,1995, p.46)‖. Destarte, a memória seria vista, portanto como ―o lado subjetivo de nosso conhecimento das coisas (BERGSON 1990 apud BOSI, 1995, p.47)‖, o que daria a memória o ato de lembrar cabível a cada indivíduo sem que necessariamente precise da influência de outros para existir, a menos que seja para fins de ―adestramento cultural‖, o que Bergson define como memória-hábito. Em contrapartida a ideia de memória enquanto atividade subjetiva, Maurice Halbwachs, ―principal teórico das relações entre memória e história pública (BOSI, 1995, p.53)‖ atribui à memória um caráter de coletividade no qual se dá o processo de reconstrução do passado. Em seus estudos, Les cadres sociaux de lá memoire e La memóire collectiva, Halbwachs dedica-se exploração do que ele define como ―quadros sociais da 286 memória‖, pois segundo este teórico ―o maior número de nossas lembranças nos vem quando nossos pais, nossos amigos, ou outros homem, no-las provocam (HALBWACHS 1990 apud BOSI, 1995, p.54)‖. Nessa afirmação Halbwachs se contropõe ao caráter subjetivo da memória disposto por Bergson, e apresenta a memória como um processo no qual se pode reconstruir lembranças e experiências do passado. Em consonância a este pensamento Mello (2010, p.3) afirma: ― as lembranças e experiências vividas permitem a reconstrução de trajetórias de vidas que ganham significado na medida em que são ordenadas numa relação com o passado‖. Ainda de acordo com esta vertente, Halbwachs (1990 apud BOSI, 1995, p.55) acrescenta que: ―A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual‖. Diante disso, fica claro que passado e presente então não aparecem como momentos rigorosamente distanciados, mas como elos que se vinculam por intermédio das lembranças. Para POLLAK (1992, p. 204) ―a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade de coerência de uma pessoa de um grupo em sua reconstrução de si‖. São, portanto, nas lembranças construídas a partir da coletividade de representações que povoam as consciências dos sujeitos que ocorrem as identificações pessoais, ou seja, os indivíduos se reconhecem como pertencentes às imagens, representações ou símbolos sugeridos pelas situações vividas, e constroem as suas identidades.

3. Movimento Cultural Roraimeira: Identidade Roraimense

Na década de 1980, um grupo de artistas locais preocupados em discutir o problema da identidade cultural roraimense organizou um movimento cultural comprometido com a produção de uma arte baseada nos elementos da vida e da paisagem local. Este movimento foi batizado como Movimento Cultural Roraimeira, sendo que a expressão que deu nome a este movimento ―Roraimeira‖ é uma homenagem a Música de mesmo nome, composta pelo cantor e compositor paraense Zeca Preto, considerada pelos artistas locais como a primeira canção que fala do povo e da paisagem de Roraima (OLIVEIRA; SOUZA; WANKLER, 2009). Nesta década, a cidade de Boa Vista recebia um intenso processo migratório em decorrência da busca pelo garimpo de ouro pelos garimpeiros advindos de várias partes do 287 país, de indígenas que vinham para a capital, motivados pelos conflitos com estes garimpeiros, pois as zonas de garimpo situavam-se nas áreas indígenas, e das levas de migrantes, especialmente nordestinos, trazendo também seus costumes e tradições (OLIVEIRA; WANKLER; SOUZA, 2009, p.31). Esse intenso processo migratório e os conflitos ocasionaram um choque entre as diferentes culturas desses povos, implicando em mudanças nas identidades pessoais e causando deslocamento ou descentralização do sujeito (perda de um ―sentido de si‖), Hall (2002) afirma que esse deslocamento pode vir a desencadear uma crise de identidade, ocasionada pelo duplo deslocamento dos indivíduos tanto do seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos. Para Woodward (2000, p.22):

Essa dispersão das pessoas (...) produz identidades que são moldadas e localizadas em diferentes lugares e por diferentes lugares. Essas novas identidades podem ser desestabilizadas, mas também desestabilizadoras. (...) identidades que não têm não têm uma ―pátria‖ e que não podem ser simplesmente atribuídas a uma única fonte.

Com relação a esta desestabilização das identidades por conta do convívio de diferentes culturas em um mesmo lugar Cuche (2002, p.176) afirma: ―(...) as estratégias de identidade podem manipular e até modificar uma cultura que não terá então quase nada em comum com o que ela era anteriormente‖. Preocupados com a difícil tarefa de definir um perfil cultural para essa região, devido a pluralidade de culturas conviventes em Roraima, um grupo de artistas composto pelos poetas, cantores e compositores Eliakin Rufino, Zeca Preto e Neuber Uchôa, dentre outros, iniciaram o Movimento Cultural Roraimeira que buscou por intermédio da junção de várias expressões artísticas (música, literatura, dança, entre outras) construir uma identidade cultural para o povo de Roraima, conforme afirma o próprio Rufino quando diz:

No movimento Roraimeira nós tentamos esboçar uma fisionomia cultural para cá, porque até então se dizia que aqui não tinha cultura, isso era um comentário recorrente. Talvez a nossa grande contribuição, do roraimeira, é acabar com a crise de identidade que Roraima padecia (OLIVEIRA; WANKLER; SOUZA, 2009, p. 28).

Daniels 1993 (apud WOODWARD, 2000, p.23) explica que: ―Para lidar com a fragmentação do presente, algumas comunidades buscam retornar a um passado perdido, ordenado ... por lendas e paisagens, por histórias de eras de ouro, antigas tradições, (...) e 288 destinos dramáticos localizados em terras (...) cheias de paisagens e locais sagrados...‖. E foi exatamente isso que as manifestações artísticas organizadas a partir do Roraimeira buscaram expressar em sua produções. Cumpre destacar que este movimento cultural teve duas fases distintas, na primeira que cumpriu o período de 1980 a 2000, as produções artísticas deste período buscavam destacar elementos da paisagem natural, a imagem do índio como figura importante das origens do estado e as diversas origens, costumes e tradições trazidas pelos migrantes. Na segunda fase, após o ano de 2000, e que se estende até a atualidade, houve uma acentuada mudança nas produções artísticas que tiveram como característica marcante posturas de tom crítico ou irônico. As produções já não fazem apenas alusão às belezas naturais, mas mesclam elementos de Roraima com a Amazônia, e até mesmo, de outros estados do país ou situações de representação nacional (OLIVEIRA; WANKLER; SOUZA, 2009). Vale ressaltar que neste artigo será dada ênfase a uma das produções que se enquadra na primeira fase deste movimento, pois o objeto de análise deste estudo é um poema que trata de fatos históricos, aspectos da colonização do estado de Roraima, exaltação das belezas naturais e representação da cultura indígena.

4. Macuxana: memória, identidade e literatura roraimense

A expressão macuxana é um neologismo criado pelo poeta Zeca Preto que faz a junção de duas grandes etnias que compõem a população indígena do estado de Roraima, os Macuxis, grupo indígena de maior população no estado, ―a estimativa da população Makuxi (ano base 2000) distribuída no estado é de 16.500 pessoas (COSTA E SOUZA, 2005, p.46)‖, e os Wapixanas, ―segundo maior grupo indígena do Estado de Roraima, estimado em 6.500 pessoas habitando em Roraima (COSTA E SOUZA, 2005, p.43)‖. Esta expressão foi cunhada pelo poeta para nomear o poema Macuxana, no qual por intermédio de um discurso poético e laudatório descreve fatos que estão ligados a ocupação e urbanização do estado como a corrida do ouro, ocorrida na década de 80, retrata os processos históricos da colonização e ocupação inicial desta região pela ordem religiosa dos carmelitas e o contato com as etnias indígenas presentes no estado, bem como também descreve as belezas naturais peculiares a esta região. Macuxana

Nesse mundo de lendas o tempo passou De real só Roraima você que ficou 289

Seu folclore existe não ressuscitou Não confunda não tema o tempo revelou Do rio Branco o boto saiu pra dançar Cobra grande respeita Mãe D'água Iemanjá Cunhantã já dormiu ao som do maracá Senhora Wapixana pode descansar Mas domingo eu tô lá no Caracaranã Pra matar a saudade meu amor Carmelita me pacificou me ensinou A rezar, a cantar, compreender quem eu sou De Rio Branco a Roraima Cresceu, tu cresceu Contador de histórias desapareceu És meu norte, meu livro, meu canto no cio Água grande levando os amores de abril Macuxana pescando encanto pra viver São remadas de ubá no meu entardecer (PRETO, Zeca. Macuxana. Disponível em: http://letras.terra.com.br/zeca-preto)

Neste ponto cabe ressaltar que o poeta Zeca Preto não é natural do Estado de Roraima, nasceu em Belém (PA) e vive em Boa Vista acerca de 30 anos. Portanto, faz-se necessário elencar os seguintes questionamentos: Como explicar os relatos históricos que compõem seus discursos poéticos? Qual o seu grau de conhecimento acerca dos processos antigos da colonização do Estado que aparecem nos versos de seus poemas? Michael Pollak (1992, p.202), um dos grandes estudiosos da memória, apresenta elementos definidos por ele como acontecimentos, os vividos pessoalmente ou aqueles ―vividos por tabela‖. Segundo o teórico tais acontecimentos desencadeiam a projeção ou a identificação dos indivíduos com a memória do grupo social no qual estão inseridos. Mas, afinal o que seriam os acontecimentos vividos por tabela? Estes acontecimentos são então definidos pelo teórico da seguinte maneira:

(...) são os acontecimentos (...) vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou, mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não. Se formos mais longe, a esses acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os eventos que não se situam dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo (POLLAK, 1992, p.202).

Alguns dos acontecimentos descritos pelo poeta Zeca Preto no poema Macuxana são parte de uma memória construída por tabela, ou seja, por mais que ele descreva fatos que datam de muito antes de sua vinda para o Estado, o seu convívio com os poetas da região como Eliakin Rufino e Neuber Uchôa, o fez desenvolver um sentimento de apego e 290 identificação, fazendo com que eles se projetasse nas suas composições a um passado herdado, e que ele por intermédio do seu eu poético interpreta e canta como vivenciado, sentido em sua plenitude, conforme descrito na análise que se segue. Nos versos 1 e 2: ―Nesse mundo de lendas o tempo passou/De real só Roraima você que ficou‖, há uma referência a corrida do ouro, a ilusão de enriquecimento fácil que atraiu muitos migrantes para o estado de Roraima na década de 1980, mas precisamente no período de 1987 a 1990, atraídos pela ideia de grandes jazidas de ouro que estariam ainda inexploradas no estado. Nesse período a população quase dobrou o número de habitantes. Cumpre informar que alguns anos depois a desarticulação do garimpo pôs fim a está ilusão coletiva, e a realidade de Roraima passou atrair migrantes por outros meios (OLIVEIRA; WANKLER; SOUZA, 2009). ―Seu folclore existe não ressuscitou/ Não confunda não tema o tempo revelou (v. 3 e 4)‖, nestes versos o eu poético ratifica a existência do folclore roraimense que envolve lendas, danças e costumes particulares a esta região, e que posteriormente são elencados no poema. ―Do rio Branco o boto saiu pra dançar/ Cobra grande respeita Mãe D'água Iemanjá (v. 5 e 6)‖, aqui transparece o imaginário mítico que versa sobre as lendas que povoam o imaginário dos contadores de história das tribos indígenas do estado, e que interligam as lendas do estado às lendas de outros estados da região amazônica, pois ―os costumes e tradições trazidos pelos migrantes foram somados a cultura indígena já existente, contribuindo assim para o pluralismo cultural – marca da identidade roraimense (OLIVEIRA; WANKLER; SOUZA, 2009, p. 32)‖. Segundo a lenda o boto, peixe encontrado nos rios da Amazônia, se transforma em um belo e elegante rapaz durante a noite, quando sai das águas à conquista das moças às margens dos rios, quando vão tomar banho ou mesmo nas festas realizadas nas cidades próximas aos rios. O Boto vai aos bailes e dança com elas, que logo se envolvem, se apaixonam e engravidam deste rapaz. É por esta razão que ao Boto é atribuída a paternidade de todos os filhos de mães solteiras, nascidos nas regiões ribeirinhas (AFCA, 2012103). A Lenda da cobra grande povoa o imaginário popular da Amazônia, adotando diferentes conotações de acordo com a região em que é contada: é Boiúna, protetora do Rio Branco, em Boa Vista-RR; nos rios Solimões e Negro (Amazonas), aparece como a

103 Associação Folclórica e Cultural de Ananindeua (PA). Disponível em: Acesso em: 20. jun 2012

291 cobra grande, fruto de um cruzamento sobrenatural entre uma mulher indígena e uma visagem (espírito); no Acre, é uma entidade mítica, que se transforma em uma linda moça, que durante as noites de São João seduz rapazes inocentes (COÊLHO, 2012. s.p). A cobra grande respeita a mãe D‘água, a sereia das águas amazônicas, que segundo a lenda da região atrai os homens pela sua beleza e os leva para o fundo do mar. Percebe-se ainda nestes versos a confluência das lendas, o ir e vir por histórias que perpassam fronteiras geográficas, uma só lenda viaja por determinadas culturas e as une ao mesmo tempo em que as diferencia em algumas particularidades. Quando diz: ―Cunhantã já dormiu ao som do maracá / Senhora Wapixana pode descansar (v. 7 e 8)‖, se reporta as tradições indígenas nas quais a cunhantã (menina, moça) dorme ao som do maracá, espécie de chocalho indígena, que no poema embala o sono da cunhantã. O chocalho provavelmente é tocado pela Senhora Wapixana, que conta histórias antigas da tribo e canta cantigas herdadas da sua cultura para que a cunhantã durma, e então ela possa descansar. O eu poético nos versos: ―Mas domingo eu tô lá no Caracaranã / Pra matar a saudade meu amor (v. 9 e 10)‖ refere-se à ida ao lago do caracaranã, importante ponto turístico da região que resguarda belezas naturais intocáveis, no poema ele aparece como a fonte de deleite para o poeta matar a saudade da forma antiga e pacífica de viver, da Roraima de antigamente, o seu verdadeiro amor. Nos versos: ―Carmelita me pacificou me ensinou/ A rezar, a cantar, compreender quem eu sou (v. 11 e 12)‖, há uma referência ao processo de colonização do estado, no qual os carmelitas foram designados para a evangelização dos silvícolas da região e que fundaram a Freguesia de Nossa Senhora do Carmo (1858) que posteriormente originou a cidade de Boa Vista. No entanto, cumpre informar que no poema aparece uma versão idealizada, utópica do que fora realmente o processo de missionamento carmelita no rio Branco. Na tentativa de ―civilização‖ dos indígenas as missões religiosas, enviadas pela coroa portuguesa, eram encarregadas de catequisar os indígenas, ou seja, doutriná-los na fé católica, e para tanto alfabetizavam os gentios na língua portuguesa, e assim aos poucos os índios iam sendo destituídos de suas tradições religiosas, da sua língua e de seus costumes, e viviam ―sob o domínio da influência lusitana (Costa e Souza, 2005, p34)‖. ―De Rio Branco a Roraima Cresceu, tu cresceu / Contador de histórias desapareceu (v. 13 e 14)‖, estes versos trazem a narrativa da criação do estado, que de acordo com Souza (2010) deu-se à partir de 1943, ano da criação do Território Federal do Rio Branco, 292 e que a partir de 1962, passou a chamar-se Território Federal de Roraima, e no dia 05 de outubro do ano de 1988 foi elevado a condição de Estado, passando então a chamar-se legalmente como Estado de Roraima (VERAS, 2009). O crescimento do estado unido à grande miscigenação proporcionada pelo contato dos indígenas com migrantes foi modificando as culturas indígenas, bem como diminuindo a prática da contação de histórias. Entre os indígenas é comum a escolha de uma pessoa específica para contar as histórias, uma pessoa mais velha, a qual ―neste momento de velhice (...) resta-lhe, (...) uma função própria: a de lembrar. A de ser a memória da família, (...) do grupo (BOSI, 1995, p.63)‖. A respeito deste costume Halbwachs (1990 apud BOSI, 1995, p.63) afirma: ―Nas tribos primitivas, os velhos são os guardiães das tradições, (...) porque eles as receberam mais cedo que os outros (...) e dispõem de lazer necessário para fixar seus pormenores ao longo de conversações com outros velhos, e para ensiná-los aos jovens (...)‖. Sua função, portanto é manter vivas as lembranças dos costumes, tradições e crenças indígenas, para que os mais novos possam identificar-se e reafirmarem a sua identidade indígena. Quando o eu poético diz: ―És meu norte, meu livro, meu canto no cio/Água grande levando os amores de abril / Macuxana pescando encanto pra viver/São remadas de ubá no meu entardecer (v. 15 à 18)‖, ele assinala Roraima como ponto norteador, faz referência ao livro que o poeta Zeca Preto escreveu, o Beiral, no qual ele por intermédio de muitos poemas canta seu deslumbramento e sua paixão pelo Estado. Faz-se também referência as águas do Rio Branco que levam e trazem pessoas, e com elas sonhos e amores. A Macuxana pesca neste grande Rio o alimento pra sua sobrevivência bem como os encantos pra viver, as histórias de sua tribo que narram e significam a sua própria existência.

5. Considerações finais

Pretendeu-se neste artigo salientar os aspectos relevantes para a compreensão do fenômeno da memória e a sua importância para a construção da identidade de um povo. De acordo com Pollack (1992, p. 204 ) ―a memória é um fenômeno construído social e individualmente, (...) podemos também dizer que há uma ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de identidade‖, pois à medida que lembramos significamos e resignificamos o sentimento de pertencimento a uma determinada cultura. 293

As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado histórico com o qual elas continuariam a manter uma certa correspondência. Elas tem a ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos (HALL, 2000). É importante ressaltar que no contexto roraimense a literatura tem cumprido esse papel de divulgadora dos fatos sociais que favorecem a compreensão de alguns aspectos culturais do estado de Roraima, que surgiram no passado, mas que se vinculam ao presente, e que são de grande importância para a construção da identidade. Portanto, é importante compreender que a memória não é um fenômeno isolado, mas um conjunto de lembranças construídas individual e coletivamente, e que se molda ao que Halbwachs define como ―quadros sociais da memória‖, num movimento constante que perpassa o espaço-tempo cronológico. Manter contato com a memória permite ao indivíduo ―a compreensão das relações dialógicas que ocorrem entre as suas representações identitárias, (...) no processo de leitura de mundo entre o tempo presente e o tempo passado (SANTOS, 2005, s.p)‖, pois é por intermédio das relações sociais que os indivíduos estabelecem com os outros que eles moldam suas opiniões, constroem suas histórias de vida e assumem as suas identidades.

6. Referências Associação Folclórica e Cultural de Ananindeua (PA). Disponível em: Acesso em: 20. jun 2012.

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295

IMAGENS DA PRIMEIRA REPÚBLICA NO BRASIL EM LIMA BARRETO Cristiane da Silveira104

Resumo: Este trabalho possui como objetivo refletir sobre os (des)encontros entre a história e a literatura, e partindo dessa discussão compreender os primeiros anos da República no Brasil, tomando como fonte os escritos de Lima Barreto e as reflexões instigadas por suas narrativas literárias, em especifico do romance Recordações do escrivão Isaías Caminha. A atualidade da produção literária de Lima Barreto vem despertando crescente interesse entre pesquisadores, pois sua literatura constitui-se num testemunho singular de seu tempo. Os escritos de Lima Barreto traz a tona os sentimentos instigados com o advento da República. Neste trabalho nos deteremos nas figuras marginais do que denominamos cidadão periférico, ou seja, sujeitos que viviam à margem da sociedade, mas que em seu cotidiano criavam ações singulares para se inserirem no meio econômico, social e político. A trajetória do personagem Isaías Caminha nos permite interessantes reflexões sobre a discussão da literatura como fonte para a pesquisa em história.

Palavras-chave: Lima Barreto; Cidadão Periférico; Primeira República.

Abstract: This work aims to reflect on the (mis) matches between history and literature, and starting this discussion to understand the early years of the Republic in Brazil, using as source the writings of Lima Barreto and reflections instigated by their literary narratives, specific in the novel Memories Registrar Isaiah walks. The actuality of the literary production of Lima Barreto is attracting growing interest among researchers because their literature constitutes a unique witness of his time. The writings of Lima Barreto brings out the feelings instigated by the advent of the Republic. In this paper we will consider the marginal figures of what we call citizen peripheral, ie individuals who lived on the margins of society, but in their daily actions created to fit into the natural environment economic, social and political. The trajectory of the character Isaiah Walk allows us to interesting reflections on the discussion of literature as a source for historical research.

Keywords: Lima Barreto; Peripheral Citizen; First Republic.

5. Introdução

Nosso intuito neste trabalho foi pensar a história do Brasil, em suas primeiras décadas republicanas, a partir de um romance. Essa proposta carrega um duplo objetivo: refletir sobre os (des)encontros entre a história e a literatura, e partindo dessa questão compreender os primeiros anos da República no Brasil, tomando como testemunho o romance e as reflexões instigadas pelas narrativas literárias. As ―mãos/olhar‖ que nos guiou no destrinchar dos fios dessa história foram os de Lima Barreto, em especifico do romance Recordações do escrivão Isaías Caminha. Sabemos que estamos lidando com uma história que não a sacralizada pelos discursos daquele momento, no entanto, se fizeram presentes no cotidiano de muitos os homens e mulheres. Aqui

104 Professora do curso de História da Universidade do Estado do Amazonas. E-mail: [email protected] 296 também buscamos a ação-reação do sujeito que denominamos de cidadão periférico, ou seja, aquele que vivia às margens da sociedade, mas que encontrava formas singulares, e por vezes inusitadas, de se inserirem no meio econômico, social e político que os excluía diariamente. Para alcançar as reflexões propostas o presente texto se divide em três momentos. No primeiro apresentamos algumas questões pertinentes ao instigante debate sobre o usos da literatura como fonte para a pesquisa histórica. Num segundo, buscamos Lima Barreto no seu tempo, arriscamos algumas interpretações sobre o geral da sua obra, e como suscitou diferentes olhares ao longo da construção do debate que se coloca na contemporaneidade brasileira. Já no terceiro momento, nos voltamos para a análise do romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha.

6. Enlaces entre a história e a literatura

A literatura como fonte para a pesquisa em história suscita discussões, visto que a produção literária ao transitar entre a ficção e a realidade, permite-nos uma (re)leitura dos aspectos e das semelhanças da realidade vivida numa temporalidade passada. Marc Bloch (1997), Walter Benjamim (2005), Nicolau Sevecenko (1993) nos guiam na compreensão do(s) uso(s) da literatura para a construção do conhecimento histórico, possibilitando-nos ampliar nosso entendimento sobre o conhecimento histórico e suas fontes. Mesmo não sendo historiador, Walter Benjamim (2005), filósofo e crítico literário, foi expressão importante na renovação historiográfica ocorrida a partir dos anos de 1930. Viveu num momento de profunda crise política, de violência, de horror e de destruição praticada pelo nazismo. Sua obra difusa e inacabada tornou-se singular no pensamento intelectual contemporâneo, e nos surpreende com novo entendimento sobre a história, sendo esta com pés fincados no momento presente, mas inovadora, pois rompe com a ideia de contínuo e progresso. Negar esse fenômeno, significa compreender que o progresso não é um processo natural, mas que muitas outras possibilidades se colocam no tempo passado e presente.

Ao analisar as teses da História, Löwy (2005) chama a atenção para o fato de que Benjamim nos fala sobre uma postura que nega o progresso como fenômeno natural, mas que para além desse fato, ele não é inevitável e irresistível. Neste sentido, é possível vislumbrar um caminho que traz a tona outros rumos para a escrita da história, que não por meio da contínua busca progresso, mas da descontinuidade e da possibilidade do novo vir a 297 ser, que em certa medida instiga a se pensar a história a partir de outros marcos, que não as comumente usada no discurso dos vencedores, ou como nos coloca Benjamim, numa história à contra-pelo. Benjamim critica a história escrita pela ótica das classes dominantes e aponta para a necessidade da reação das classes oprimidas para a transformação da história e do tempo presente. Para o autor ―A história é objeto de uma construção, cujo lugar não é formado pelo tempo homogêneo e vazio, mas por aquele saturado pelo tempo-de-agora (Jetzeit)‖ (BENJAMIM, 2005, p.119). Aqui temos um novo olhar sobre a história que nos instiga a pensar sobre as fontes, que é um instrumento que nos permite construir outras perspectivas de história que não a que nos é constantemente passada pela ótica dominante. Nesse sentido a obra literária torna-se fonte estratégica, pois consegue em muitos momentos recuperar pensamentos e sonhos do momento em que foi construída. Para Nicolau Sevecenko (1993) a produção da obra literária está associada ao seu contexto histórico, refletindo em suas narrativas angústias e sonhos de agentes sociais contemporâneos à sua criação, mesclando elementos de ficção e realidades possíveis, pois o escritor não está além de seu tempo, mas junto com ele, olhando-o de modo singular, mas o que escreve está colocado nas múltiplas possibilidades de realidades a serem vividas. A obra de ficção lida com ações sonhadas, com sentimentos compartilhados, com a intermediação entre o real e as aspirações individuais e coletivas, e talvez por isso, ao tornar-se documento para a se construir narrativas sobre a história fabrica um artefato que ao revelar a fala de sujeitos que se encontram fora do que é socialmente aceito ou desejável, muitas vezes é interpretado como fonte de menor valor. A obra literária constitui-se como parte do mundo, das criações humanas e transforma-se em relato de um determinado contexto histórico-social. Por isso, ―qualquer obra literária é evidência histórica objetivamente determinada – isto é situada no processo histórico‖ (CHALLOUB e PEREIRA, 1998, p.07). Ao lidar com o testemunho literário estamos trabalhando com uma evidência história que permite problematizar os anseios e os sonhos de quem viveu no passando, e nos permitem lidar com as falas que muitas vezes se foi colocada como marginais na sociedade e por isso se perderam no ar rarefeito da História.

7. Lima Barreto e sua produção literária

298

Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no dia 13 de maio de 1881, nos subúrbios do Rio de Janeiro, local que passou toda sua vida. Neste contexto, a sociedade brasileira passava por processo de reestruturação social e econômica e crescente conturbação política, pois foi a última década do regime monárquico. Sua morte, em novembro de 1922, foi outro marco importante da história brasileira, pois foi momento de grande efervescência intelectual, com a Semana de Arte Moderna e os novos rumos trilhados pela literatura brasileira, atrelado ao contexto político. A obra de Lima Barreto é vasta, constituída por romances, crônicas e contos. Paula Beigueman (1997) em artigo comemorativo dos 100 anos da morte de Lima Barreto fala da sua incontestável importância na literatura brasileira. Se em vida o escritor encontra dificuldades para publicar, o mesmo não acontece após sua morte. Em 1956 uma reedição das obras completas foi lançada; dirigida por Francisco de Assis Barbosa (São Paulo: Brasiliense), com a colaboração de Antonio Houaiss e Cavalcanti Proença. A posição que Lima Barreto adotou frente a seu tempo foi, então, de crítica aos seus contemporâneos, seja pela passividade, buscando a re-ação por parte das classes oprimidas, seja para trazer a tona a realidade de infertilidade intelectual e política pela qual o país vivia. Assim, Lima Barreto foi integrante de pequena parcela da população brasileira, que por meio de sua escrita teceram ferozes críticas ao país com o fim do trabalho escravo e a instauração da República, evidenciando os (des)encontros e as injustiças sociais, na maioria das vezes tramadas a partir da raça e da posição social. Em seu tempo e ao longo da história literária do Brasil, a criação de Lima Barreto foi vista como obra de menor envergadura, muitas vezes, mal acabada. A partir dos anos de 1930 foi que se processou, no pensamento brasileiro, crítica mais apurada sobre a real significação da produção do romancista para o entendimento das relações travadas no Brasil do início do século XX, principalmente no que diz respeito à realidade vivida pelos homens e mulheres negros e pobres. Assim, a atualidade da produção literária de Lima Barreto foi despertando crescente interesse entre pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, pois constituiu-se num testemunho singular de seu tempo. Não esqueçamos que os escritos de Lima Barreto traz a tona os sentimentos instigados com o advento da República, num misto de alegria e tristeza. Alegria por ser um momento em que todos acreditavam que o país iria se acertar e caminhar em passos firmes para uma realidade de modernidade e progresso. Tristeza, pois, muito cedo os tipos marginais, leia-se aqui: os ex-escravos, os homens e as mulheres pobres e os mulatos, começaram a perceber que não chegara o momento de uma realidade menos opressora e 299 com melhores possibilidades de vida. Naquele período os ideais de branqueamento e o preconceito social eram fortes. Assim, sua figura (porque mulata), sofre muito do preconceito e hostilidade dirigida aos pretos e mulatos, de maneira geral, aos pobres.

8. Pelas margens ou uma cidadania às avessas? Uma análise da trajetória do escrivão Isaías caminha

Em Recordações do Escrivão Isaías Caminha Lima Barreto narra a trajetória de um personagem mulato, que saindo do interior do Estado do Rio de Janeiro, transfere-se para a capital em busca do sonho de se tornar um grande poeta. A cidade carioca significava para Isaías um instrumento de coroação de suas qualidades intelectuais: Quando acabei o curso do liceu, tinha uma boa reputação de estudante, quatro aprovações plenas, uma distinção e muitas sabatinas ótimas. Demorei-me na minha cidade natal ainda dois, dois anos que passei fora de mim, excitado pelas notas ótimas e pelos prognósticos de minha professora, a quem sempre visitava e ouvia. Todas as manhãs, ao acordar-me ainda com espírito acariciado pelos nevoentos sonhos de bom agouro, a sibila me dizia ao ouvido: "Vai, Isaías! Vai!... Isto aqui não te basta... Vai para o Rio!... . (BARRETO, 2001, p.122) Na passagem acima evidencia os sonhos que agitavam o jovem Isaías Caminha. Temos, então, um sujeito que acreditando em seu potencial e nas condições de igualdade da sociedade, busca caminhos para o seu reconhecimento no meio intelectual, nesse momento ainda não percebe que seu nascimento humilde o fazia inferior no que ele acreditava ser uma situação de igualdade. A partir dessa premissa, a realidade experimentada, em muito distanciou-se, num primeiro momento, do sonho que o motivou a sair de sua terra natal. Com a chegada ao Rio de Janeiro Isaías vive momentos de intenso sofrimento e de privações econômicas e sociais. Essas o fez se deparar com os (des)encontros do sonho de ser escritor. A realidade das primeiras décadas na republicana brasileira arrastava Isaías para longe do ideal sonhado. Assim, segue o desabafo do jovem Isaías Caminha, que dirigindo-se meio sem rumo pelas ruas da capital, sem perspectivas de uma vida melhor e impedido de conquistar uma colocação que lhe possibilitasse o mínimo necessário para sua sobrevivência, mesmo que as expectativas estivessem abaixo das suas qualificações, percebendo, assim, toda a injustiça social reinante: Veio-me um assomo de ódio, de raiva má, assassina, destruidora; um baixo desejo de matar, de matar muita gente, para ter assim, o critério da minha existência de fato. Depois dessa violenta sensação na minha natureza, invadiu-me uma grande covardia e um pavor sem nome: fiquei amedrontado em face das cordas, das roldanas, dos contrapesos da sociedade, senti-os por toda a parte, graduando os meus atos, anulando 300

os meus esforços, senti-os insuperáveis e destinados a esmagar-me, reduzir-me ao mínimo, a achatar-me completamente [...] Saltara dos meus desejos heróicos para imaginar expedientes com que saísse da miséria em perspectiva. Aceitaria qualquer coisa, qualquer emprego [...]. (BARRETO, 2001, p.82) Essa situação poderia tanto representar o relato da própria vivência de Lima Barreto, como também a de qualquer outro cidadão em suas condições que sai em busca de uma colocação no mercado de trabalho, mas encontra pouca ou nenhuma oportunidade. Na citação estão expressos os sentimentos que povoavam os pensamentos de Isaías, que ao andar pelas ruas da cidade, sente-se aprisionado, asfixiado. Neste sentido verificamos que a sensação de aprisionamento do personagem é tão fortemente sentida, que, para expressá-la Lima Barreto utiliza-se de elementos de tortura ligadas ao cárcere – cordas e roldanas. Esses são facilmente remetidos a lembranças do tempo da escravidão negra no Brasil. O racismo camuflado vivenciado na realidade de Isaías não ameniza sua dor, mas sugere uma sensação de pequenez perante a sociedade. Por isso, Isaías, nesse momento, acreditava ser incapaz de romper, facilmente, essas amarras e conquistar seu sonho de reconhecimento intelectual. Para além do aprisionamento social, torna-se perceptível a indignação do personagem que sente o preconceito da cor da sua pele. E assim, mesmo pensando nas formas de rompê-lo, Isaías se vê esmagado em todos os âmbitos de sua vivência – política e econômica – , pelo preconceito, na medida em que este era também um inimigo silencioso, que se escondia por entre as brechas de uma sociedade dita igualitária. A luta travada por Isaías foi contra toda uma longa tradição conservadora que não se desfez com a abolição do trabalho escravo na sociedade brasileira. Isso significava ir de contra o imaginário social que considerava o negro e o mulato como um animal domesticável. As sensações de medo, incapacidade e aprisionamento ressaltada na fala do personagem Isaías, acima citada, demonstram como estavam enraizados os (pré)conceitos sociais, tornando ainda mais difícil a vontade/missão de rompê-los. E, assim, mesmo que num primeiro momento essa insatisfação levasse os cidadãos marginais, como no exemplo de Isaías, à ação, logo o desejo de libertar-se das amarras impostas pelo sistema republicano da época era vencido pelas várias barreiras encontradas em um cotidiano de misérias e injustiças. Um olhar atento ao processo de finalização do trabalho cativo no Brasil demonstra que ele se deu, principalmente, por motivos econômicos e não por princípios humanitários, o que dificultou ainda mais a vivência dos ex-escravos, que eram lançados ao mercado de 301 trabalho livre sem grandes expectativas de sobrevivência. Conforme afirma Ianni105, houve uma série de fatores que contribuíram para o fim da escravidão negra no Brasil, dentre os quais o início da industrialização e o impulso à imigração, situação que acenava para a imposição das relações capitalistas no país. Isaías Caminha deixa vir à tona uma realidade que demonstra que a legalização da abolição do trabalho escravo não trouxe consigo outro imaginário sobre os pretos e os mulatos, mas manteve o preconceito e o mesmo negativismo sobre as pessoas de cor. Assim, ―à medida que os negros e mulatos eram libertos, carregavam consigo atributos do grupo original. Na cor, na especialização profissional, no universo verbal, no modo de vestir-se, de comportar-se, levavam atributos socialmente definidos como específicos dos ex-escravos” (IANNI, 1988, p.209). Os efeitos da tempestade da escravidão negra ainda não haviam se desfeito. O personagem Isaías e seu criador Lima Barreto, que se viram forçados a trabalhar muito jovens, depararam-se com a seguinte realidade: Sendo obrigado a trabalhar, o trabalho era-me recusado em nome de sentimentos injustificáveis. Facilmente generalizei e convenci-me de que esse era o proceder geral. Imaginei as longas marchas que teria que fazer para arranjar qualquer coisa com que viver; as humilhações que teria que tragar; e de novo, me veio aquele ódio (...) Revoltava-me que me obrigassem a despender tanta força de vontade, tanta energia com coisas que os outros poucos gastavam. Era uma desigualdade absurda, estúpida, contra a qual se iam quebrar o meu pensamento angustiado e os meus sentimentos liberais que não podiam acusar particularmente o padeiro. Que diabo! eu oferecia-me, ele não queria! que havia nisso demais! / Era uma simples manifestação de um sentimento geral e era contra esse sentimento, aos poucos descobertos por mim, que eu me revoltava. (BARRETO, 2001, p.101) O aflorar dos sentimentos de revolta, ódio e frustração toma conta do íntimo de Isaías, pois percebera como fora enganado. A exigência que a sociedade fazia aos excluídos como ele não era a mesma dirigida aos trabalhadores de melhor posição social. Para a sociedade da época, Isaías era apenas mais um jovem mulato que transitava pelas ruas da cidade e, por isso, era alvo fácil de injustiças e incompreensão. A personagem Isaías Caminha traz à tona elementos que denunciam a exclusão social presente nos primeiros anos da República. Essa situação instiga-nos à reflexão de que o preconceito dos homens brancos para com os negros, cristalizando a imagem do negro como inferior, apenas capaz de desempenhar funções indignas para o homem branco (o trabalho braçal) e, sendo então considerado inapto ao trabalho livre. Neste sentido, valores

105 Ressaltamos que vários foram os pesquisadores que se debruçaram sobre essa temática, entre eles citamos: FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. (3 vls.) São Paulo: Ática, 1978. SALLES, Iraci Galvão. Trabalho, progresso e a sociedade civilizada: o Partido Republicano Paulista e a política de mão de obra (1870-1889). São Paulo: HUCITEC; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1986. 302 como capacidade intelectual e física deixam de possuir créditos e o mercado de trabalho ficava à mercê do preconceito e de uma violenta política de exclusão social capaz de calar as necessidades e os direitos de acesso dos ex-escravos e homens e mulheres pobres ao mercado de trabalho. Na trama do romance, Isaías pretendia desempenhar uma função qualquer, inclusive busca por uma colocação que não necessitavam de nenhuma qualificação – como de acompanhante de cestos de pães. Essa função certamente lhe renderia parcos rendimentos: - Foi o senhor que anunciou um rapaz para ... / - Foi; é o senhor? Respondeu-me logo sem dar tempo de acabar. / Sou, pois não. / O gordo proprietário esteve um instante a considerar, agitou os pequenos olhos perdidos no grande rosto, examinou-me convenientemente e disse por fim, voltando as costas com mau humor: / - Não me serve. / - Por quê? Atrevi-me eu. / - Porque não me serve. (BARRETO, 2001, p.101) O diálogo entre o “mulato” e o “patrão” se fez rapidamente. Porém, as qualidades de Isaías em nenhum momento foram questionadas, pois a marca de sua possível serventia estava marcada em sua pele. Na passagem, está presente a luta de Isaías para conquistar seu próprio espaço, por isso ele não se calou diante da primeira resposta negativa do dono do estabelecimento, e tentou travar com ele um diálogo. Isaías é vencido não pelo medo, mas por uma imposição maior, que era social e de difícil ruptura, a descaracterização/negatividade da figura do negro e do mulato diante de uma sociedade cujo conservadorismo dos tempos da escravidão ainda estava latente. Assim, é que nos anos que antecederam e nos que sucederam a abolição da escravidão negra no Brasil foram marcados pelo significativo aumento da imigração de trabalhadores europeus, o que ocasionou uma explosão demográfica expressiva no Brasil106. Assim, houve partir da segunda metade do século XIX uma revolução no mercado de trabalho e no imaginário brasileiro da época, consolidando-se a idéia de que os trabalhadores de direito eram os brancos vindos de diversos países como Portugal, Itália, Espanha e, mais tardiamente e em menor número Japão. Em função disso, o trabalhador nacional pobre, negro e mulato, começava a enfrentar uma realidade ainda mais cruel que a vivida na escravidão, pois encontravam-se com poucas perspectivas de inserção no mercado de trabalho107.

106 De acordo com José Murilo de Carvalho a população do Rio de Janeiro quase dobrou entre 1872 e 1890, passando de 266 mil a 522 mil. A cidade teve ainda de absorver uns 200 mil novos habitantes na última década do século. Só no ano de 1891, entraram 166.321 imigrantes, tendo saído para os estados 71.264. (CARVALHO, 1985, p.119). 107 Realidade essa que era ainda mais violenta com a imagem de depreciação que se consolidava a respeito do negro, demarcando de antemão o seu lugar no corpo social: O negro e o mulato passaram a ser discriminados como ex-escravos, como trabalhadores não qualificados, como aqueles que deveriam ficar trabalhando nas ocupações rejeitadas pelos 303

Cabia aos imigrantes assumirem as posições mais qualificadas e, conseqüentemente, melhor remuneradas, enquanto os ex-escravos sofriam uma marginalização cada vez mais visível nos espaços (re)construídos na concepção de cidade moderna e civilizada. E nesse contexto o trabalhador nacional perdia a possibilidade de se inserir no mercado de trabalho e sofria cotidianamente a frustração de ser um cidadão que vivia na periferia da República brasileira. Mas voltemos ao nosso romance. Até o momento seguimos o caminho de Isaías perdido por entre as injustiças econômicas e sociais presentes nas primeiras décadas republicanas no Brasil. Mas agora veremos outros elementos para se pensar a trajetória desse cidadão periférico. A reviravolta em sua vida começa por um acaso - o suicídio do jornalista Floc na redação do Jornal -, pois a partir desse episodio Isaías, começa a fazer parte de um circulo restrito de amizade do diretor e com isso "ganha" uma colocação como jornalista, o que lhe rende algum dinheiro e certa posição social, afastando-o da antiga vida de privações e marginalidade:

E toda essa modificação tão imprevista no meu viver, viera-me do suicídio do Floc. Tendo surpreendido na casa da Rosalina, em plena orgia, o terrível diretor, vexei-o. Nos primeiros dias ele nada me falou; mas já olhava mais, considerava-me, preocupava-o no seu pensamento [...]. Certo dia o gerente, espantado e cobiçoso, notificou-me que eu ia servir na expedição e o meu ordenado estava aumentado de cinqüenta mil réis. (BARRETO, 2001, p.248) A mudança se faz de maneira repentina. E se olharmos atentamente não seguiu critérios que colocavam em evidência a sua capacidade intelectual. Isaías apenas foi avisado que seu salário e posição mudaram a partir daquele momento. Se antes Isaías era invisível aos olhos de quem o cercava em seu ambiente de trabalho, a nova posição gera atitudes de re-ação, mas também de ação individual para se fazer respeitar: Nos primeiros dias lutei com alguma dificuldade. Os colegas receberam- me mal. Sonegavam-me as notas, procuravam desmoralizar-me, ridicularizar-me diante dos empregados. Há neles em geral uma hostilidade pelos novos. Sentem que o ofício é fácil e se eles ainda por cima o facilitarem, perderão em breve o prestígio. Levei alguns furos, mas dei outros, graças às relações que travei com um sargento protocolista do Estado-Maior. Leporace quis destituir-me, mas Loberant não o permitiu. (BARRETO, 2001, p.248-249) Uma re-ação latente é a do sujeito que já possui certo privilégio na sociedade e se vê ameaçados por Isaías e sua antiga posição social, e aqui temos a figura de Leporace. No entanto, acreditamos que a re-ação mais interessante de ser analisada é a do próprio

brancos. É claro que assim se limitaram a continuam a limitar-se as condições de circulação social do negro e do mulato. IANNI, Octavio. Escravidão e Racismo. 2ª Ed., São Paulo: Hucitec, 1988, p.146. 304

Caminha. Para se fazer jornalista, Isaías, mesmo que não seja respeitado de início, se movimenta para conseguir se manter na posição, os laços de amizade estabelecido são essenciais, mas há de se ressaltar a sua ação para se fazer respeitar enquanto jornalista. Há, assim, um briga corporal com outro jornalista e nesse movimento as reflexões de Isaías são iluminadoras para compreendermos seu lugar na sociedade: Na delegacia, a minha vontade era de rir de satisfação, de orgulho de ter sentido por fim que, no mundo, de orgulho de ter sentido por fim que, no mundo, é preciso o emprego da violência, do murro, do soco, para impedir que os maus e covardes não nos esmaguem de todo. Até ali, tinha eu sido a doçura em pessoa, a bondade, a timidez e vi bem que não podia, não devia e não queria ser mais assim pelo resto de meus dias em fora. Ria-me, pois tive vontade de rir-me, por ter descoberto uma cousa que ninguém ignora. Felizmente não foi tarde... (BARRETO, 2001, p.248) Aqui temos a re-ação de Isaías, que a partir de um ato de violência física contra outro jornalista, começa o seu "despertar" para a realidade de opressão e desigualdade que havia vivido, mas também para o fato que o momento que vivia lhe permitia lutar contra ela. Palavras como doçura, bondade e timidez revelam, naquele contexto, sua anterior posição na sociedade, essas que o colocavam numa posição de inferioridade perante os outros. O rir-se, no entanto, para um sujeito que fora privado de tantas benesses da sociedade capitalista, indica o início de outra realidade econômica e mesmo social. Enfim, compreendemos que o personagem Isaías Caminha se faz exemplo esclarecedor desse cidadão periférico, ou seja, os sem lugar na sociedade brasileira moderna, pois sendo pobre, mulato e recém chegado do interior ao Rio de Janeiro, o jovem moço se vê jogado na mais completa miséria, sem possibilidade imediata de transpor as barreiras do preconceito de cor e posição social. No entanto, esse cidadão construiu - ou foi construído pelo acaso - instrumentos, ao longo de sua trajetória, para romper com as fortes barreiras impostas pela sociedade. O seu viver é conflituoso, pois não se distancia de fato de sua antiga situação, mas ruma para uma posição mais estratégica na sociedade. Essa realidade viabilizou, em certa medida, a inserção de um sujeito da classe marginalizada no círculo de relacionamento do diretor do jornal. Mas para além desse fato, ao analisar sua trajetória de vida, Isaías sente-se frustrado, pois em seu refletir não experimentou uma vivência muito digna, mas isto é assunto para outro momento.

REFERÊNCIA BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto 1881-1922. 7ª ed., Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada, 1988. 305

BEIGUEMAN, Paula. Leia Livros Ano IV, 15 de maio de 1981. CARVALHO, José Murilo de. O Rio de Janeiro e a República. In: Revista Brasileira de História. ANPUH, v.5, nº8/9, setembro de 1984/abril de 1985, p.119. CHALLOUB, Sidiney e PEREIRA, Leonardo de Lima. A História Contada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. FIGUEREDO, Carmem Lúcia Negreiros. Lima Barreto e o fim do Sonho Republicano. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. HOUAISS, Antônio, NEGREIROS, Carmem Lúcia (cordenadores). Triste Fim de Policarpo Quaresma. Edição Crítica Espanha: ALLCA XX, 1997, (Colección Archivos: 1ª, 30). IANNI, Octavio. As metamorfoses do escravo. 2ªed. São Paulo; Hucitec/Curitiba: Scietia et Labor, 1988. SEVECENKO, Nicolau. Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na 1ª República. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1983. VASCONCELLOS, Eliane (org). Recordação do Escrivão Isaías Caminha. In: Prosa Seleta. BARRETO, Lima. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.

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CONFIGURAÇÕES MEMORIALISTICAS DO ESPAÇO FEMININO NOS POEMAS DOS BECOS DE GOIÁS E ESTÓRIAS MAIS DE CORA CORALINA

Cristiane Viana da Silva108 Profa. Dra. Algemira de Macedo Mendes (Orientadora)109

RESUMO: O presente artigo teve como objetivo fazer uma breve análise das configurações memorialísticas do espaço feminino tendo como objeto de estudo a obra Poemas dos becos de goiás e estórias mais, de Cora Coralina. Nele, a sensibilidade poética de Ana Lins do Guimarães Peixoto Brêtas, captou o cotidiano de Vila Boa através da experiência de sua exclusão. Observa-se como a poeta registrou, através da memória dos becos, a história de mulheres do interior de Goiás no Brasil dos séculos XIX e XX. O presente estudo teve como aporte teórico Barbosa (2002), Delgado (2003) e Yokozawa (2002), Bosi (1994), dentre outros. PALAVRAS – CHAVE: Literatura. Memória. Mulher.

RESUMÉ: Cet article vise à donner une brève analyse des paramètres mémorialistes des espaces féminines où l'objet de l'étude est l'oeuvre Poemas dos becos de goiás e estórias mais, de Cora Coralina. Dans ce document, la sensibilité poétique de Ana Lins Guimarães Bretas Peixoto a capté la vie quotidienne de Vila Boa travers l'expérience de leur exclusion. On peut noter comment Cora Coralina a enregistré, par la mémoire des ruelles, l'histoire des femmes à l'intérieur de Goiás au Brésil dans les XIXe et XXe siècles. La recherche a comme apporte théorique Barbosa (2002), Delgado (2003), Yokozawa (2002), Bosi (1994), entre autres. MOTS-CLÉS : Littérature. Mémoire. Femme.

Introdução

A história da mulher brasileira é marcada pelo estabelecimento da ordem patriarcal que, legitimada pela religião cristã ocidental, transmitiu o silenciamento do feminino em todas as esferas sociais. A mulher do Brasil oitocentista, formada e constituída socialmente nesta ordem, era subordinada e dependente do pai ou do marido, sendo feita propriedade do homem e silenciada por ele.

108 Aluna do Mestrado Acadêmico em Letras da UESPI 109 Professora adjunta da Universidade Estadual do Piauí /Mestrado em Letras/ Universidade Estadual do Maranhão / E-mail: [email protected]. 307

A educação de meninas no Brasil Colônia se dava em seminários e conventos, embora não houvesse, a rigor, escolas propriamente ditas (BONNICI, 2007). Aos homens, instruíram-se a leitura e aritmética e, mais tarde, os mais promissores eram enviados a Portugal para estudar teologia ou direito; às segundas ensinavam-se alguns trabalhos manuais estereotipados, como música, bordados e orações. O estereótipo feminino era o da timidez, recato, silêncio e comportamento passivo constituíam o foco de atenção das instrutoras para a manutenção do padrão falocêntrico. Rompendo com os padrões da época falocêntrica, nasce Ana Lins do Guimarães Peixoto Brêtas, ou ainda Cora Coralina, grande poetisa do Estado de Goiás. Em 1903 já escrevia poemas sobre seu cotidiano, tendo criado, juntamente com duas amigas, em 1908, o jornal de poemas femininos A Rosa. Em 1910, seu primeiro conto, Tragédia na Roça, é publicado no Anuário Histórico e Geográfico do Estado de Goiás, já com o pseudônimo de Cora Coralina. Em 1911 conhece o advogado divorciado Cantídio Tolentino Brêtas, com quem foge. Vai para Jaboticabal (SP), onde nascem seus seis filhos: Paraguaçu, Enéias, Cantídio, Jacintha, Ísis e Vicência. O presente artigo tem como objetivo portanto, fazer uma breve análise das mulheres ambientalizadas na obra de Cora Coralina. Alongevidade da autora contribuiu para que sua obra manifestasse distintas influências e retratasse elementos que, em conjunto, possibilitam recompor as relações entre gêneros, classes e gerações, as representações dos modos de vida, valores e crenças, enfim, as mediações entre os indivíduos e a sociedade na qual esteve inserida. As imagens tecidas através de sua criatividade ampliam as perspectivas de análise das lutas travadas nos séculos XIX e XX no interior brasileiro e, em um diálogo entre texto poético e contexto sócio-histórico, denunciam e refletem entraves e belezas, desnudando múltiplas e silenciadas nuanças da sociedade goiana. Para Barbosa (2002), a memória é o fio que Cora Coralina utiliza para esboçar o plano do livro: a poetisa acredita na memória capaz de recuperar o passado coletivo, mas reconhece que essa tarefa é desempenhada a partir de uma perspectiva particular: a memória da mulher, da mulher anciã, da mulher que escreve para recriar e poetizar sua própria vida. O amálgama entre autobiografia e memorialismo está na tessitura da escrita e dos depoimentos de Cora Coralina, que são, ao mesmo tempo, momentos de construção de uma memória autobiográfica e uma forma específica de criação da memória coletiva. 308

Em todos seus livros, ela "escreve e assina os autos do Passado" ao compor poemas e contar histórias cujos enredos emergem do jogo da linguagem com as múltiplas camadas do tempo, interligando o passado, o presente e o futuro pela memória que reconstitui os espaços da cidade de Goiás. A escrita da memória de Cora Coralina transfigura as casas, o rio, os becos, as paisagens em matéria literária e em marcos da memória que se abrem ao rememorar infinito do tempo entrecruzado com a vida. A paisagem urbana emerge entrelaçada a poeta, tornando-se espessa de múltiplos sentidos, temporalidades e memórias. (BARBOSA, 2002). A cidade de Goiás se transformou em palco para o estabelecimento desta memória repleta de significados, captados e reconstruídos por Coralina entre um exercício de afetividade e percepção crítica. Para Machado (2000), constata-se que dentre as cenas repletas de conteúdo sociológico, as imagens do beco se sobressaem no imaginário da autora. Em vários poemas e contos a vida da cidade é traduzida a partir da vida nos becos, dos personagens que neles residem e circulam, das relações e reações que provocam como palco ou bastidor. Após definir a caracterização do lugar, dos personagens e destinos, em uma espécie de considerações iniciais sobre a cidade-vida e suas relações, Coralina deteve sua análise na tematização de um beco em especial, o Beco da Vila Rica, fonte de um rico imaginário em virtude talvez de ser o mais próximo de seu cotidiano, que interage com os fundos da Casa Velha da Ponte. Eis o poema: No beco da Vila Rica tem sempre uma galinha morta. Preta, amarela, pintada ou carijó. Que importa? Tem sempre uma galinha morta, de verdade. Espetacular, fedorenta. Apodrecendo ao deus-dará. No beco da Vila Rica, ontem, hoje, amanhã, no século que vem, no milênio que vai chegar, terá sempre uma galinha morta, de verdade. Escandalosa, malcheirosa. Às vezes, subsidiariamente, também tem - um gato morto (CORALINA, 2003, p. 96). De acordo com Machado (2000) a ideia do beco pode ser considerado como algo representativo da tradição. É o lugar da degradação, do resíduo que agride pelo mau cheiro e pela perenidade. Esta perenidade é caracterizada pela autora quando destaca as 309 origens do desprezo pelos becos e realiza a projeção futura: ―ontem, hoje, amanhã, no século que vem, no milênio que vai chegar terá sempre uma galinha morta‖. Suas imagens remetem ao imobilismo de Goiás, ao conservadorismo onde o passado e o presente fecham as perspectivas de mudanças. Cora Coralina aparentemente oferece no poema dois eixos sociologicamente significativos. O primeiro é a ampliação da descrição do lugar: o beco como representativo do conservadorismo e como baliza da cidade, referência e limite. O segundo eixo caracteriza a função dos becos como meio de as mulheres circularem e lugar dos segregados, revelando o modo de vida do elemento feminino, que deveria ser ―resguardado a sete chaves‖, não se expondo, traduzida na autorização dos mais velhos para sair e entrar pelos portões dos becos, cobertas com o xale e através das janelas de tabuleta. O beco como baliza tanto significa uma referência quanto um limite. De acordo com Gomes (2004), as mulheres sempre tiveram um papel de destaque na cidade de Goiás, tanto na participação doméstica, quanto fora do lar, e a vida de Cora Coralina teria contribuído para que a poetisa se tornasse um marco na luta pela expansão feminina na cidade. Todavia, conforme referido, era apenas uma falsa ideia de matriarcado visto que: através do exercício da autoridade, adquire muito poder no espaço doméstico e acaba por adquiri-lo, também, no espaço público, na medida em que consegue independência econômica através do trabalho que exerce fora de casa. [...] Por outro lado [...] as mulheres elevam a figura e a força do homem, reforçando sua construção de mandonismo masculino; e os homens, por sua vez, valorizam a mulher, estabelecendo-se, a partir daí, um espírito de cumplicidade e amizade. A vilaboense/matriarca comporta-se como uma pseudoprisioneira, reforçando, no homem, uma característica machista que visa atender a costumes tradicionais, mais do que à própria realidade (BITTAR, 2002, p.160-162).

A escrita da memória de Cora Coralina compõe movimentos de apropriação da cidade como forma de encontrar-se a si mesma. Em um único movimento, o trabalho mnemônico delineia um mapa afetivo e a autobiografia da poeta, tal como na poesia Minha Cidade: Goiás, minha cidade... Eu sou aquela amorosa de tuas ruas estreitas, curtas, indecisas, entrando, 310

saindo uma das outras. Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa. Eu sou Aninha. (Cora Coralina, 2003, p. 34 à 36)

No poema supracitado é possível analisar em um dado momento, que Cora Coralina afirma que é a mulher que ficou velha e esquecida. Assim sendo, o esquecimento, aqui, pode ser configurado abandono, rejeição e exclusão. Consequências vis de uma velhice. O poema supramencionado ainda pode refletir que a identidade assumida pela posição enquanto mulher enriquece seu discurso, como sujeito que refez sua caminhada, se colocando no lugar do outro, sempre defendendo e assumindo o sofrimento, o esquecimento, a indiferença para transformar em discurso poético. Voltando ao século XIX, Michelle Perrot, em seu estudo, fala sobre o prazer da leitura tolerado ou furtivo, único jeito das mulheres se apropriarem do mundo, do universo exótico das viagens e do universo erótico dos corações, já que a leitura foi para as mulheres da burguesia, muitas vezes obrigadas a ficar em casa, uma ocupação, uma evasão, um acesso ao sonho, à história e ao mundo (PERROTT, 1998, p.32). No começo do século XX, em pleno processo da desestruturação própria do Modernismo Brasileiro, surge, no cenário literário, a voz inovadora de Cora Coralina. Sem sair do espaço privado, reservado somente às mulheres, a poeta avança para o espaço público, antes reservado aos homens, liberando-se não só das amarras literárias do século anterior, mas também fazendo da conquista da palavra escrita importante capital cultural na luta pela resistência social à exclusão. Cora não fugindo do espaço doméstico e da vida familiar, ou seja, do privado, lança para o espaço público seu viver privado, usando das estratégias para burlar os impedimentos, nos passos de uma atitude bem picaresca. A solidariedade da vida e sua representação são celebradas, ao mesmo tempo em que a autora desarticula a linguagem, na construção de uma poesia sem malabarismos e invencionices gramaticais, resgate simples do seu viver. Descreve alguns costumes sociais, como por exemplo, os rituais de mandar portador de confiança para solicitar a liberação para visitas, passeios ou participar de festas religiosas. São rituais que, conforme relata a poetisa, foram ―conservados através de gerações‖ e contribuem para a visualização do cotidiano e da mentalidade da mulher de sua época: Andar pelas ruas. Atravessar pontes e largos, 311

as moças daquele tempo eram muito acanhadas. Tinham vergonha de ser vistas de ―todo o mundo‖... [...] Era comum portador com este recado: - ―Vai lá na prima Iaiá, fala pra ela mandar abrir o portão, depois do almoço, que vou fazer visita pra ela...‖ (CORALINA, 2003, p.105)

Ao analisar o poema supracitado, é possível perceber que as mulheres não deveriam ―andar pelas ruas, atravessar pontes e largos‖ e nem serem ―vistas de todo o mundo‖. Em Becos de Goiás, a autora acenou as características gerais dos becos e sua função de repositório dos marginalizados na primeira metade do século XX. Segundo Brito (2007), a imagem do beco evidencia a consciência crítica da poetisa. É o relicário da história e, por isso, os sentimentos provocados para intitular seu primeiro livro Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. A partir dos becos, Coralina construiu as outras estórias e histórias revelando Goiás, como cidade e Estado, para além da Serra Dourada e dos limites do Paranaíba. É nesse sentido que ela faz uma literatura causadora de tensões, em que denuncia a situação de descaso e abandono dessas pessoas pela justiça social, levando o leitor a refletir sobre o assunto. Ao tematizar a vida deles, principalmente das mulheres, também está falando de si mesma e, nesse momento, há a desconstrução de sua mundividência, que é baseada na cultura patriarcal, e, assim, a poeta se desloca, também, para margem. Essas informações aparentemente fortalecem a afirmação de que a história dos becos seria a ―estória da cidade mal contada‖, pois não se encontra inserida nos ―autos oficiais do passado‖. Para Cora Coralina, a história da cidade se pauta no conservadorismo, em um conjunto de discursos característicos da involução e do preconceito, pois dialoga com a das vidas destinadas ao confinamento nos becos. Portanto, deve ser lida não apenas nos registros oficiais, mas em seus interstícios, nas relações cotidianas de classe, gênero, poder, cor e geração: Interessante nesse sentido é a opção da autora pela palavra estória para denominar a sua produção, seja a vazada em verso ou em prosa. Hoje nos parece imprópria a distinção entre história/estória. Isso porque já caiu no vulgo que a história, mesmo e, sobretudo, aquela escrita com H, não passa de uma interpretação do passado, sendo, portanto,relativa, ficcional, e que a estória, assumidamente ficcional, muita vez, desvela o passado de uma maneira muito mais ―verdadeira‖ que as histórias que se querem factuais. [...] Mas Cora escreve em uma época em que essa diferença ainda é sustentada e a poetisa mantém a denominação de estórias para os autos do passado por ela 312

recuperados literariamente. [...] Negando-se a ser uma historiadora e assumindo-se como uma legítima contadora de estórias, Cora termina por subverter a memória coletiva oficializada,por promover um rearranjo da história. [...] A estória, em Cora, é contra a história. Contra uma história e uma memória coletiva uniformizadoras e opressoras (YOKOZAWA, 2002, p. 6-7).

As reflexões da poetisa ultrapassam a definição dos becos como baliza/referência da história, retratando-os também como baliza/ limite. Inicialmente, um limite físico representado pelos muros, portões e pelo lixo que incomodava. Depois um limite social, demonstrado pelas proprietárias dos muros - velhas donas herdeiras da tradição que se protegiam da vida/morte dos becos através do exercício de repor as telhas destruídas e manter seus portões fechados - e pelas pessoas que neles viviam ou aproveitavam do que o lixo poderia oferecer como as boninas utilizadas pelas meninas pobres: Velhos portões fechados. Muros sem regra, sem prumo nem aprumo. (Reentra, salienta, cai, não cai, entorta, endireita, embarriga, reboja, corcoveia... Cai não. Tem sapatas de pedras garantindo.) Vivem perrengando de velhas velhices crônicas. Pertencem a velhas donas que não se esquecem de os retalhar de vez em quando. E esconjuram quando se fala em vender o fundo do quintal, fazer casa nova, melhorar. E quando as velhas donas morrem centenárias os descendentes também já são velhinhos. Herdeiros da tradição - muros retelhados. Portões fechados (CORALINA, 2001a, p. 97-98).

A referência às ―velhas donas herdeiras da tradição‖ indica a ideia de um aparente matriarcado na cidade de Goiás. A preponderância da autoridade feminina é citada devido a um grande número de mulheres solteiras - havia uma ―lei familiar em Goiás, uma das filhas renunciar ao casamento para cuidar dos pais na velhice e reger a casa‖ (CORALINA, 2003, p. 91) - e viúvas, em virtude dos homens geralmente se ocuparem com trabalhos fora da cidade. Cora Coralina ocupava lugar privilegiado na sociedade, pois pertencia a uma família de certa tradição na velha Villa Boa de Goyaz, e era detentora da fala, a qual usou para dar 313 voz aos marginalizados como menores abandonados, presidiários, lavradores e mulheres do povo: lavadeiras, prostitutas entre outros. De acordo com Pinheiro (2003) Cora Coralina fez parte do grupo de mulheres que se bateram contra a postura hegemônica masculina e contra os limites impostos pelo machismo. Ela criou estratégias femininas para gerar possibilidades de resistência social à exclusão e fazer mudar a História. Cora percebeu sua exclusão do espaço público e explicitou, em suas obras, seu papel social, onde são planteados problemas de práticas institucionais e da situação da mulher na sociedade, de ontem e de hoje: A Lavadeira Essa Mulher... Tosca.Sentada. Alheada... Braços cansados Descansando nos joelhos... olhar parado, vago, perdida no seu mundo de trouxas e espuma de sabão - é a lavadeira. Mãos rudes, deformadas. Roupa molhada. Dedos curtos. Unhas enrugadas. Córneas. Unheiros doloridos passaram, marcaram. No anular, um círculo metálico barato, memorial. Seu olhar distante, parado no tempo. À sua volta - uma espumarada branca de sabão Inda o dia vem longe na casa de Deus Nosso Senhor o primeiro varal de roupa festeja o sol que vai subindo vestindo o quaradouro de cores multicores. Essa mulher tem quarentanos de lavadeira. Doze filhos crescidos e crescendo. Viúva, naturalmente. Tranqüila, exata, corajosa. Temente dos castigos do céu. Enrodilhada no seu mundo pobre. Madrugadeira. Salva a aurora. Espera pelo sol. 314

Abre os portais do dia entre trouxas e barrelas. Sonha calada. Enquanto a filharada cresce trabalham suas mãos pesadas (...) Cora Coralina (2003, p. 205-207)

Para Lima (2011) a lavadeira é para Cora símbolo de força e luta da mulher que precisa se sustentar e os seus filhos. Ela ganha destaque no poema A lavadeira. A lavagem de roupa era uma das principais atividades econômicas praticadas por mulheres pobres em Villa Boa de Goyaz. Ao valorizar as lavadeiras, é como se Cora estivesse se vendo nelas, pois também teve de sustentar a si e os seus filhos nos diferentes espaços em que viveu, sendo agricultora, comerciante e doceira. O referido autor afirma que o poema tem 58 versos. Os versos são curtos, dando um ritmo ágil aos poemas, como se estivesse reproduzindo o processo da lavagem de roupas. Quanto ao desenvolvimento dos poemas, há descrições físicas das lavadeiras e do seu ofício. O eu lírico ressalta a pobreza dessas mulheres, geralmente viúvas com ―filharada‖ para criar, como fator determinante para escolha dessa profissão e sob um mesmo espaço poemático, a autora funde objetos de trabalho – ―tina d‘água‖, ―ferro de brasa‖, ―prendedores‖ – às angústias e necessidades da lavadeira, que de certo modo, se combinam com suas atividades e preocupações. Cora Coralina também faz referências as prostitutas: Mulher da Vida Mulher da Vida, minha Irmã. De todos os tempos. De todos os povos. De todas as latitudes. Ela vem do fundo imemorial das idades e carrega a carga pesada dos mais torpes sinônimos, apelidos e apodos: Mulher da zona, Mulher da rua, Mulher perdida, Mulher à-toa. Mulher da Vida, minha irmã. Cora Coralina (2003, p. 201- 204)

No poema supramencionado a presença de uma ―mulher da vida‖, no discurso coraliniano é posto de lado, como minha irmã. Em muitos momentos a figura da prostituta é recordada por Cora como uma mulher da vida, mas não como o sujeito secundário, mas igual, ou seja, de acordo com Cora, minha irmã. 315

A voz de Cora Coralina se levanta na defesa das prostitutas no poema supracitado escrito em ―contribuição para o Ano Internacional da Mulher – 1975‖, a poeta lembra que as prostitutas sempre existiram na história da humanidade. Embora seja ―De todos os tempos./De todos os povos‖, não respeitadas na sociedade, sendo denominadas por apelidos pejorativos como ―Mulher da zona,/Mulher da rua,/Mulher perdida,/Mulher à- toa‖. Além dessas humilhações psicológicas, ela denuncia o descaso público e social em relação a elas, nos idos da segunda metade do séc. XX, pois ―Nenhum direito lhes assiste./Nenhum estatuto ou norma as protege‖. Mas mostra que as prostitutas superam todos maus tratos e ―Sobrevivem como a erva cativa dos caminhos‖, que são ―pisadas‖, entretanto ―renascidas‖. Ao substituir ―erva daninha‖ por ―erva cativa‖, metaforicamente a poeta as reabilitam e simultaneamente aponta para a condição delas: cativas, prisioneiras dos preconceitos e descasos sociais. Todas as Vidas é um poema composto por 59 versos curtos e de ritmo oscilante, cujas seis estrofes recriam, em cada uma delas, vários tipos femininos: uma ―cabocla velha‖, ―a lavadeira‖, ―a mulher do povo‖, ―a mulher roceira‖ e ―a mulher da vida‖. Estas mulheres humildes são representadas pelo eu lírico, que assimila as dificuldades financeiras e qualidades – como a honestidade, a disposição pelo trabalho – das lavadeiras e das mulheres roceiras; a simplicidade da mulher do povo; o sofrimento das mulheres da vida. Ao transmutar-se nesses seres obscuros, ―está incorporando possibilidades de criar novos seres, consubstanciando o próprio ser na essência do outro‖ (FERNANDES, 1992, p. 177) e conclui que tem ―a vida mera das obscuras‖. Assim, ―entre todas as mulheres, gênero condenado por longo tempo ao limbo do esquecimento, a poeta se sensibiliza, sobretudo, com aquelas sobre as quais pesa um silêncio ainda maior, aquelas que, além de mulheres, constituem a escória da sociedade a que pertenceu Cora‖ (YOKOZAWA, 2002, p. 8). O que leva Cora a se identificar com as ―obscuras‖ é o fato de ela ser, também, essa ―mulher do povo‖ que fora lançada à margem pela velha sociedade vilaboense, devido à sua postura bem à frente do seu tempo e transgredir algumas normas de educação feminina daquela época. Como dito antes, Cora se ligou a um homem casado e fugiu com ele par São Paulo, onde constituiu família. Viúva,voltou à cidade de Goiás 45 anos depois e tornou-se doceira. Segundo Zolin (2005) as mulheres fizeram emergir uma tradição literária feminina até então ignorada pela história da literatura. Assim sendo, é possível perceber que Cora 316

Coralina, acuada e submetida à imagem e representação da ―verdadeira mulher‖, encontrou na literatura a forma de expressar suas leituras de mundo e denunciar os construtos sociais que permeavam a sociedade de seu tempo. Assim, as criações de Cora Coralina, apresentam uma autora e mulher produzida no gênero e produtora de literatura, pois sua poesia expressa o cotidiano das mulheres no âmbito familiar e nos demais espaços de sua sociedade. Mulheres confrontadas e modeladas pelos rígidos preconceitos da época, conformadores do modelo normativo de mulher de sua época, como ela mesma poeticamente descreve: Sobrevivi, me recompondo aos bocados, à dura compressão dos rígidos preconceitos do passado. Preconceitos de classe, Preconceitos de cor e de família. Preconceitos econômicos, Férreos preconceitos sociais. (Coralina, 1976, p.12-13)

A singularidade autobiográfica das obras de Cora Coralina elucida vários momentos de sua vida pessoal. Seus versos poéticos expressam e reafirmam como as mulheres eram conformadas pelas representações de gênero, constitutivas da organização da sociedade vilaboense, dentre outras, como as de classe, cor, raça, escolaridade, religião, geração etc. O uso de pseudônimo pela autora parece constituir uma de suas táticas de resistência, pois, segundo Zolin (2005), era preciso se valer de pseudônimos masculinos para escapar às prováveis retaliações a seus escritos, assim ao ocultar o nome oficial encharcado de todos os estereótipos que sua condição de mulher, dona de casa e do interior goiano carrega, parece tornar visível o de sua criação, livre de amarras e de rótulos, libertária o bastante para despojar-se de preconceitos e criar o novo. Nessa mesma direção, é possível notar o trabalho do escritor Saturnino Pasquero Ramón (2003), que, ao transitar entre o biográfico e o literário numa perspectiva psicológica, traçou algumas projeções sobre Cora Coralina, instigando o leitor a repensar o mito de Aninha através da linguagem poética de seus versos. Para esse autor, o nome em todas as culturas, têm um caráter mágico e sagrado e, nesse sentido, o enigma do pseudônimo de ―Cora Coralina‖ representou o seu talismã, fortificou e valorizou o metafórico de sua poesia. Ele acredita que: O pseudônimo Cora Coralina acaba sendo uma senha, um sinônimo, equivalente a lavadeira do Rio Vermelho... o substantivo cora ou, popularmente, quarar, com seu significado de branquear roupas, expondo-as ao sol. Libertária sim, pois com a fantasia magnânima e com êxtase da poesia, lava a sujeira, os 317

monturos da vida, o pó da mesquinhez humana... as lavadeiras, em sua grandeza, fazem o cotidiano mais limpo e perfumado. Cora, a lavadeira do Rio Vermelho, purga a mesmice do cotidiano, elevando todos os sonhos‖. (Ramón, 2003, p.24)

Com efeito, é significativo que se tenha uma leitura poética e política das lavadeiras do Rio Vermelho, expressa no poema em que as homenageia. Cora Coralina desenha essas mulheres sofridas e fortes a partir de várias marcas impelidas em seus corpos e gestos na experiência das lavadeiras, das mães, das viúvas, das trabalhadoras, das mulheres, dos indivíduos, isto é, Cora em processo paródico, dialoga com essas mulheres e pode-se dizer que suas obras se organizam a partir da preocupação da linguagem.

Essa mulher... Tosca. Sentada. Alheada ... Braços cansados Descansando nos joelhos ... Olhar parado, vago, Perdida no seu mundo De trouxas e espumas de sabão - é a lavadeira. Mãos rudes deformadas. Roupa molhada. Dedos curtos. Unhas enrugadas. Córneas. Unheiros doloridos Passaram, marcaram. No anular, um círculo metálico (Coralina, 2003, p.205-209)

No poema sobredito, segundo Teixeira (apud Denófrio, 2006, p. 38) ―pela poesia de Cora pode ver (...) a mulher na sua realidade, em seu cotidiano esquecido, como tema público‖. As identidades assumidas em Cora legitimam seu discurso originário. Em Cora transcendem todas as vozes femininas de sua sociedade machista patriarcal, onde o lugar da mulher se recria ao lar, dona de casa, esposa, mulher submissa aos comandos do esposo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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O texto poético de Cora Coralina traz à tona a paixão pela juventude e a maturidade dos seus anos mais avançados em um lirismo aparentemente tão singelo, mas tão marcante quanto os lugares e as pessoas que aparecem nos seus textos. E é nesse tempo-espaço que esta poeta vivencia discriminações familiares, sofre desamparos e perdas, conhece o amor, rebela-se contra a moralidade de sua família. Os textos de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas revela a posição de uma mulher frente ao seu tempo. Mulher forte e defensora da vida em todas as suas dimensões. A formação discursiva de Cora permite assumir as mais diversas vozes de um discurso autêntico e marcado por uma ideologia. Cora fala da vida do campo, da cidade, da memória, das coisas cotidianas, da mulher e das memórias dos becos de Goiás. Cora Coralina permite que o seu leitor decifre um Brasil com total autonomia de expressão, através de sua poesia histórica e memorialística. Burlando os becos da vida, a autora investe no desejo de se livrar da discriminação sócio-cultural contando, com seu discurso feminino e sinestésico, fatos da brasilidade cotidiana. Em resumo, a escrita de Coralina apresenta personagens, na sua maioria, mulheres do povo (caboclas velhas, lavadeiras, cozinheiras, roceiras e prostitutas). A partir de sua poética, Cora Coralina conseguiu revelar entraves acenados e negligenciados pela historiografia, descrevendo nas tematizações e denunciando através dos personagens, cenas e bastidores significativos à compreensão da sociedade goiana. Além da obra se constituir em representação da sociedade em Goiás entre os séculos XIX e XX, a própria vida da escritora, seu compromisso com os obscuros e sua crítica social, dentre outras características que podem justificar as inúmeras abordagens testemunhadas em sua herança.

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CENAS PITORESCAS DA INFÂNCIA BRASILEIRA OITOCENTISTA NAS CRÔNICAS DE RAUL POMPÉIA.

Danilo de Oliveira Nascimento110

RESUMO: Durante a última década do século XIX, Raul Pompéia (1863-1895) publicou uma série de crônicas no Jornal do Comércio, na Gazeta de Notícias, no Diário de Minas de Juiz de Fora em que relata a presença de crianças como vítimas e autoras de crimes e como participantes de festas populares e religiosas. A frequência de tais relatos possibilitou ao cronista perceber sua conformação ao esquema de reprodução de notícias e adequação à retórica folhetinesca na escritura das crônicas nas quais ele carregou no tom sensacionalista e melodramático. A repetição dos mesmos temas e dos mesmos relatos instigou a postura desdenhosa do cronista que rotulou tais crônicas de Cenas Pitorescas, rótulo a partir do qual se destacam tanto a ironia que descontrói, veladamente, o modelo em voga quanto acentua a imagem marginal e marginalizada da criança relatada. A presente comunicação, portanto, pretende discutir a imagem da infância que rouba, mata, dança e reza que se reflete em crônicas publicadas em folhas noticiosas cujo modelo de impressa foi o francês. Palavras-chave: Crônicas; Infância; Raul Pompéia. ABSTRACT:Duringthelastdecadeofthe 19thcentury, Raul Pompéia (1863-1895) published a series ofchronicles in Jornal do Comércio, Gazeta de Notíciasand in Diário de Minas from Juiz de Fora. In these papers, Pompéia describes the presence of children as victims and authors of crime, as well as children who participate in popular and religious events. Pompéia, with the frequency of these descriptions, realized his resignation to news reproduction and serial rhetoric adjustment in the writing of chronicles. Due to these factors, he overused a sensationalist and melodramatic tone in his writings. The repetition of the same topics and descriptions instigated a disdainful posture in the writer who labeled these chronicles CenasPitorescas(Picturesque Scenes). The irony is accentuated in these topics and descriptions. This model can be a veiled deconstruction of the irony as well as an accentuation of the marginal and the marginalized image of the described child. The present communication aims to discuss the image of the childhood who steal, kill, dance and pray. This image is reflected in published chronicles in newspapers, which model of press was French. Keywords: Chronicles; Childhood; Raul Pompéia. Introdução: Reconhecido pelos leitores e aclamado pela crítica literária como autor de um único romance, O Ateneu (1888), Raul Pompéia (1863-1895) publicou durante os anos de 1886 a 1895, nos rodapés do Jornal do Comércio, da Gazeta de Notícias, do Diário de Minas, de Juiz de Fora – MG e entre outros jornais, uma série de crônicas em que relata, com acentuada frequência,situações de abandono da criança, da orfandade, da exploração do trabalho infantil e da exploração sexual da criança;em que manifesta deslumbramento com respeito à participação de crianças em festas religiosas, natalinas e popularese também crônicas em

110Prof. Adjunto de Teoria Literária e Literatura Brasileira do Departamento de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso.

Mestre e Doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas – SP.

321 que discuti os problemas sociais e educacionais da criança e propaga os ideais republicanos de formação educacional, artística e política da criança brasileira das duas últimas décadas do século XIX. Como produtos culturais consumidos na hora do ócio e para o entretenimento, os noticiários e crônicas folhetinizadas acentuam a imagem da infância marginal e marginalizada na vida e também na leitura descartável da vida.Apesar de condicionado a este sistema de reprodução de folhetins, notícias e crônicas, Raul Pompéia mostra sua indignação com respeito à situação da infância brasileira e cuja condição, ainda que pincelada de tom sensacionalista e melodramático nas páginas de jornal, possibilita revelá-la como vítima indefesa do sistema sociale o cronista como sujeito que, ao ironizar a retórica folhetinesca, coloca-se próximo da criança real agredida, abandonada e órfã. Neste sentido, o folhetinista cede lugar, aos poucos, ao repórter que se atribui estatuto de historiador do cotidiano urbano e substitui, também aos poucos, aquela retórica folhetinesca ao tom memorialístico, uma vez que traz para as crônicas ou suas memórias pessoais e familiares ou seus valores pessoais e políticos sobre a infância. 1. Cenas Pitorescas da infância nas crônicas de Raul Pompéia.

Ao relato frequente de festas populares e religiosas e de crimes em que se percebe a presença da criança e do adolescente, Raul Pompeia rotulou de Cenas Pitorescas, tal rótulo traduz sua crítica mordaz ao sistema de reprodução de notícias, ao modelo de rubrica, à realidade social, educacional e criminal da infância e da adolescência, mas também indica a natureza do texto, sempre no limite entre o documental e o jornalístico; o ficcional e o literário, assim comoa aproximação do cronista Raul Pompéia com as artes plásticas e a valorização do olhar e do visual, esta mais evidente em sua prosa ficcional, como se nota, por exemplo, em O Ateneu. A utilização do termo pitoresco nas crônicas de Raul Pompéia como referência às festas populares brasileiras e especifica e sarcasticamente ao alto índice de crimes praticados por crianças e adolescente e crimes contra tais faixas etárias ultrapassa aquela visão de que a crônica deve ―captar o lado engraçado das coisas, fazendo do riso um jeito ameno de examinar determinadas contradições da sociedade‖ (SÁ, 2002, p. 23). Nas crônicas pompeianas, o termo traz consigo certa carga semântica relacionada às artes plásticas, neste sentido, pitoresco é adjetivo cunhado a partir de ―pitoresca‖, categoria de pintura de paisagem que traduz a natureza representada como algo acolhedor e generoso, mas também irregular, imperfeito, mutável e relativo. A utilização do termo em sua função adjetiva traz consigo outras flexões de sentido e aplicação trata-sedesinônimo de exótico e 322 folclórico e que adotado pelo cronista identifica a presença da criança e do adolescente nas festas populares e no mundo do crime como elementos que constituem a própria paisagem pitoresca social do Rio de Janeiro.

1.0 Cenas Pitorescas criminais.

Da leitura dos registros constantes de situações criminais podemos notar uma acentuada ênfase à ficcionalização ou ―folhetinização da informação‖ (MEYER, 2005, p.225)que configura as rubricas de jornais nesse momento histórico da imprensa brasileira. A ficcionalização do registro já se indica e já é indicada pelo próprio cronista como processo e produto do pitoresco uma vez que remete às instâncias das artes plásticas, do turismo, da literatura e até do drama, por sua vez a utilização do termo ―pitoresco‖ traduz a ironia de Raul Pompéia tanto com respeito ao que se registra quanto com respeito ao meio a partir do qual se registra. A crônica é rubrica pitoresca porque produto brasileiro e carioca, como afirma e reafirmar uma dezena de críticos e historiadores literários brasileiros, e também porqueregistra situações sociais, políticas, econômicas e criminais caracteristicamente brasileiras, como ironiza Raul Pompéia. Neste sentido, ao lado da paisagem natural pitoresca do Rio de Janeiro, temos a paisagem social e cultural da cidade tão pitoresca quanto a primeira e na qual, as crônicas figuram como uma espécie de ―ponto‖ ou ―objeto‖ turístico (Ibidem, 2005, p.76) muito valorizado por leitores pitorescos que apenas se satisfazem com o relato ficcionalizado dos ―fatos criminais‖ e com o vislumbre das ―cenas criminais‖. Ainda que gênero brasileiro e carioca, a denominação de Cenas Pitorescas especialmente para aquelas crônicas que relatam crimes e atrocidades implica na alusão à ―literatura pitoresca francesa‖ (CHEVALIER, 1978, passim) cujos tipos e gêneros tinham como tema crimes urbanos e cujo ―halo‖ ficcional se nutria de dados estáticos da criminalidade urbana parisiense do século XIX, especialmente àqueles referentes ao infanticídio e ao abandono de crianças. Essa literatura, ao transformar os dados estatísticos criminais em matéria ficcional, se configura como crônicas de viagens às avessas, tétricas pinturas de paisagens que representa perseguidores e perseguidos, fortes e fracos, viciados e virtuosos. 323

A apropriação do ―gênero‖ ou ―modelo‖ pode significar a permanente busca de artistas e escritores brasileiros por formas e modos de representação da realidade local em conformação com os padrões artísticos da Europa Ocidental, neste caso, a França. No entanto, é a aparente cópia do modelo que proporciona ao cronista ironizar a importação de costumes estrangeiros, como por exemplo, os duelos teatralizados de rapazes, os raptos consentidos pelas donzelas, a dramatização de crimes passionais ou suicídios e as ações de aparente natureza criminal cujos autores e atores se inspiravam em leituras rocambolescas.A paródia ao modelo de escritura de texto comporta a paródia à exportação de costumes sociais especialmente entre jovens estudantes e da elite, desse modo, para o relato de situações postiças e teatrais apenas um modelo de texto que além de se mostrar flexível em aceitar os mais diversos códigos discursivos e textuais, revela que a dificuldade de estabelecer limites entre o documental e o ficcional; o jornalístico e o literário decorrem de uma realidade que se apresenta fictícia e ficcionalizada. Neste contexto, ―fábrica de publicidade‖, ―romanesco‖ ―sensação de sucesso‖, ―assuntos ardentes‖, ―ocorrências de sensação‖são expressões que o cronista utiliza para se referir às crônicas de crimes forjados pela juventude leitora dos Crimes de Paris, enquanto que ―noveleiros‖ e ―fabricantes de publicidade‖ aos cronistas que ao escreverem sobre práticas criminais teatrais ou teatralizadas ou sobre situações criminais reais tanto banalizam as grandes obras literárias quanto diluem o fato criminal e a individualidade de criminosos e de vítimas. Além das crônicas sobre rapazes duelistas e moças susceptíveis ao rapto representando no ―teatro da vida social‖, há aquelas sobre escândalos familiares, assassinatos e suicídios como consequência dos ―dramas de amor‖, das ―represálias de ciúme feroz‖ e das ―intrigas sanguinárias‖que suprem diretamente ―as necessidades instintivas do público‖ (ANGRIMANI, 1994, passim) ou, segundo o próprio Raul Pompéia, que satisfazem o ―sentimento grosso‖ dos leitores ―que tem a alma pronta para as emoções violentas e súbitas‖ (POMPÉIA, 1982, p.203, vol. 6). Como um dos elementos que faz parte deste sistema, o leitor é rotulado,por Raul Pompéia,como ―diletantes de sangue‖, tal denominação irônica considera o interesse de alguns leitores por crônicas através das quais satisfazem o prazer de visualizar cenas escabrosas e chocantes de pura carnificina, prazer que já se manifesta nas crianças leitoras, cuja ―candura de uma carinha angélica‖ disfarça o prazer pela leitura de noticiários de crimes rotulados, por Raul Pompéia, de ―a Tragédia do Barba Azul‖.(Idem, 1983, p. 32-3, vol.7)

É também em razão do interesse pelos leitores em visualizar o crime, a cena do crime, atores e vítimas que as crônicas de crime parecem semelhantes, no que se refere ao 324 modo de descrição, àquelas em que Raul Pompéiavisita as galerias de artea ênfase no ato de olhar e na conjugação do olhar do cronista e do leitor. Se ao leitor das crônicas de arte é possibilitado usufruir visualmente das pinturas de artistas plásticos, expostas em galerias visitadas pelo cronista – uma vez que seus comentários críticos sobre as pinturas são relatos de minuciosa descrição das telas -, aos leitores de noticiários também é possibilitado ―estar na cena do crime‖, porque o cronista a visita e a descreve.É da leitura das minúcias descritivas que se cria a sensação de que o nosso olhar se funde ao olhar do cronista uma vez que ele está, aparentemente, presente na cena do crime. Essa sensação não resulta em impressões visuais e sensoriais apenas, provoca outra impressão no leitor, a de que ele acompanha junto com o repórter-cronista os trabalhos de investigação criminal. Neste sentido, muitas crônicas se constituem tanto do relato das etapas destes trabalhos quanto da representação do ofício de profissionais responsáveis em cada uma destas etapas. Ele é repórter, é fotógrafo, é médico legista, mas é também psicólogo e pintor, uma vez que a representação do cadáver considera, além da descrição da autopsia propriamente dita, a dissecação psicológica para a sua idealização do corpo dissecado como ornamento artístico. As notícias sensacionais de crimes que satisfaz a curiosidade popular por detalhes e minúcias ainda que salientem a imagem do cronista repórter e do cronista psicólogo criminal não perdem seu caráter de mercadoria que se simula ato simbólico de violência e que, por isso, serve de exemplo para o que Freitas(1997) rotulou de ―violência simbólica‖ contra a infância e a adolescência. Neste contexto, Raul Pompéia, ao relatar os mais diversos casos de violência doméstica contra a infância pobre, abandonada e negra, aponta tais relatos como outro modo convencional e consentido de sacrifício de crianças, modo que o faz aludir a Moloque, divindade a quem os fenícios ofereciam crianças em sacrifício.

1.1 Cenas Pitorescas Festivas.

Como um dos seus temas mais recorrentes, o registro da presença de crianças e adolescentes em festas revela o prazer do cronista Raul Pompéia em assistir à participação delas nos eventos, admirá-las como elementos que deflagram o espetáculo visual de cores e nuanças, assim como o prazer de Pompéia em instituir o registro como sua versão pessoal dos acontecimentos, como uma constituição de uma paisagem impressa sob ―um evidente matiz subjetivo‖ (BULHÕES, 2007, p. 140), o que caracteriza o cronista como um artista plástico, além de ―historiador‖ do cotidiano. Mais do que registro de acontecimentos sociais e familiares ou de festas religiosas e populares, as crônicas nas quais se evidencia a presença da criança se diferenciam das 325 demais no instante em que Raul Pompéia pode expressar seus sentimentos sobre a infância e sua própria memória da infância que além de agregarem à representação dos sentimentos e desejos infantis, singularizam a volta para o ser e sentir criança e para o desejo de experimentar os desejos da infância. Tais crônicas se nutrem, portanto, das recordações pessoais especialmente àquelas que registram festas no âmbito familiar, como por exemplo, as festas natalinas, mas elas também possibilitam ao cronista fugir daqueles temas da realidade do cotidiano, ―do drama da vida com suas pesadas grosserias graves ou cômicas‖ (POMPÉIA, 1983, p. 436, vol.9). Desse modo, a imagem da criança feliz das festas, dos mitos, das fadas, dos ―risos argentinos‖ não se dissocia da imagem do cronista, que se reconhece como adulto e no mundo dos adultos, em que só é possível reviver a infância apenas como fato que compõe o contexto de escritura das crônicas natalinas: (...) só de ver ao redor de uma mesa onde se abrisse um grande jornal atravessado da crônica folhetinesca das crianças formar-se um nimbo dourado de cabecinhas loiras, inquietas (...) Escrevamos (...) as crianças rainhas da hora. (Ibidem, p. 61) Nos relatos dos acontecimentos festivos, o cronista relativiza e afrouxa sua postura de observador distanciado, quando opta pela primeira pessoa do discurso e quando, sobretudo, carrega o texto de informações pessoais, neste sentido, suas crônicas servem de exemplo para aquela compreensão de que as crônicas podem ser um ―gênero menor‖ quando demonstram a interligação entre literatura e vida e aproximação com os leitores reais no instante em que ―consegue sem querer transformar a literatura em algo íntimo com relação à vida de cada um‖ (CÂNDIDO, 1992, passim). A aproximação não decorre apenas da identificação do leitor com os temas das crônicas ou com as experiências da infância, do período escolar e das festas familiares como o natal e o entrudo, mas também de linguagem acentuadamente sinestésica que deve provocar a delícia visual de ser criança: ―um grande esplendor convidativo de brilhantes cofres de confeitos e áureos adereços de árvores do natal e turbilhões de anjinhos de cromo‖. (POMPÉIA, 1983, p. 463, vol.9) O discurso adocicado sobre as festas natalinas que atrai o leitor imediatamente o conduz a experimentar as críticas amargas do cronista com respeito à importação do modelo europeu de comemoração do natal em pleno verão tropical e suas considerações filosóficas sobre a existência humana. Da crítica aos costumes importados, o cronista elogia aqueles que souberam adequar a comemoração do nascimento de Cristo à realidade climática brasileira: ―Os povos do Norte foram mais inteligentes no Brasil. (...) Criaram-se os bailes rústicos das lapinhas, as danças pastoris do Norte, meio religiosas, meio lascivas, onde se aproveita para folguedo e deleite.‖ (Idem, 1982, p. 130, vol. 6). Além dessas críticas 326 de costumes, as festas natalinas e religiosas possibilitam a manifestação de uma consciência senão trágica pelo menos fatalista, a de que a comemoração do nascimento de Cristo implica a meditação de ―tristíssimas lembranças‖ do infanticídio promovido por Herodes, assim como a visualização do ―pobre corpozinho tenro e frágil, rosado da nudez e do frio matinal, exposto à inclemência do desabrigo do seu berço‖. (Ibidem, p. 220) A expressão de melancolia e de pessimismo do cronista, no entanto, não bloqueia seu olhar estetizante sobre o registro de festas populares religiosas ou Dia de Finados, pelo contrário acentua a representação pictórica da celebração da morte e da comiseração cristã. Trata-se de registros nos quais se notasua forte atração visual pelo colorido das roupas, pela movimentação dos fiéise, sobretudo pela liturgia em que a se destaca a presença do corpo pálido e esquálido de crianças inocentes, de feição doentia, as quais o cronista parece impor o estatuto de pequenos anjos ou pequenos cadáveres. Seduzido pela visualidade da liturgia, Raul Pompéia descreve-a sob o efeito de encantamento meio profano meio místico, que quase o converte ao culto de crianças divinizadas em espetáculo de ternura infantil. Se não há conversão, há confissão e há iluminação, uma vez que o registro se assemelha à profissão de fé de um cronista que confessa adorar a imagem da infância. Tal confissão ilumina não apenas a representação do ritual, mas aquele que o representa como uma criança deslumbrada com a iluminação da liturgia, desejosa de participar do evento. Desejo semelhante àquele de uma criança perdida, que busca voltar-se para junto da mãe. Senão criança junto a outras crianças, ao menos cronista que expressa sensação de êxtase diante da liturgia, visualmente experimentada, como seus personagens pintores da sua prosa ficcional no ato da pintura de telas: Essa permanente ênfase na percepção visual sobre aspectos e fatos das festas populares e religiosas redunda na constituição de textos acentuadamente visuais, ou seja, feitos para os olhos e para o prazer visual. O olho que pinta identifica tanto certa tendência às artes plásticas, quanto certo prazer voyeur de relatar, por exemplo, as festas carnavalescas de rua ou de clube:―(...) nós que vemos apenas o espetáculo dessa alegria forçada (...) vamos também em espírito e em ideia, promiscuamente, foliões entre foliões, e nos alegramos de ver e de assistir, como se tomássemos parte...‖ (POMPÉIA, 1983, p. 183, vol. 9) O repórter, atrás da folia e das notícias sobre o Carnaval, no instante em que reconhece a festa como celebração da felicidade, da inversão e das aparências, estabelece distinção notável entre a mocidade do comércio e a mocidade das letras. Se Raul Pompéia celebra o carnaval e alude à mocidade do comércio, que brinca o carnaval como ―os 327 representantes efetivos da alegria pública‖ (Idem, 1982, p. 208-10, vol. 6.), também critica a melancolia e a sisudez dos jovens intelectualizados, marcas que os identificariam artistas e que os distinguiriam socialmente: ―A mocidade letrada acha gosto em ser triste e passar por triste‖ (Ibidem, p. 208-10). Desse modo, mais do que crítica sobre a participação ou não na festa, é crítica sobre a admissão de certos códigos, trejeitos e posturas, que identificariam o jovem talentoso, ainda que sob a aparência de velhos cansados e tristes: ―Arranja, logo que pode uma miopia às pressas, que desculpa os óculos precoces, o grave apêndice de senilidade e aros de tartaruga que lhes garante um bom acolhimento entre os velhos (...)‖. (Ibidem, p. 208-10) A alegria contagiante, decorrente das aparências sedutoras do Carnaval, também inspira o sarcasmo e a ironia em relação aos vários discursos, propagados pela elite moral e intelectual da sua época, contra a festa popular, em nome da civilidade e dos bons costumes; discursos que são reflexos do ―processo de aburguesamento da paisagem carioca‖ (SEVCENKO, 2003, p. 47). Irônico ao reconhecer, também, que o país só funciona depois do Carnaval, o cronista reproduziu a concepção da festa como a mais republicana de todas, uma vez sincera no acolhimento tanto da ―gentinha miúda‖ quanto das classes mais altas, que participam das festividades, movidas por uma curiosidade de fachada, semelhante à daquela donzela que, atrás das cortinas da janela de sua casa, observa absorta a ―suntuosidade do impudor‖ (POMPÉIA, 1983, p. 45, vol. 8) do carnaval de rua, ―e que, solidária com tudo isso pela atenção, olhos piscos, narinas trêmulas, lábios em febre, aplaude tudo com todas as veias da sua admiração‖ (Ibidem, p. 46). Ao se apropriar dos discursos difundidos por literatos e jornalistas sobre o carnaval, como uma festa da ―inversão e da permissividade‖, ou da ―maledicência e da pornografia‖ (PEREIRA, 2004, p. 47), o cronista parodia-os e os rotula de ―caricatura da moralidade da high life‖, porque são sintomas de ―hipocrisias forçadas da gravidade‖ de ―um tipo qualquer metido a circunspecto‖ (POMPÉIA, 1983, p. 276, vol. 7), cuja vontade reprimida de participação e cuja alegria recalcada acabam, vez ou outra, explodindo em ―horrorosos furúnculos‖ de hábitos factualmente condenáveis, como o rapto de crianças e adolescentes ou a exploração do corpo da criança pelo homem adulto em bailes carnavalescos, situação que ele considera como uma das causas do suicídio de crianças e adolescentes: (...) Lembra- se do menino suicida?... O carnaval seria uma fábrica de monstros dos tais (...) E viam todos a criança sorrindo com os grandes olhos úmidos, e o seio à mostra na cava decotada do corpete (...) O carnaval é um perigo perigosíssimo. Para que metermos em apuros os inocentes? (POMPÉIA, 1983, p. 53, vol. 7) 328

Considerações finais. Publicadas nas duas últimas décadas do século XIX, momento altamente significativo da Puericultura e da Pedagogia, dos estudos nas áreas da Psicanálise, da Sociologia e da História Social, as crônicas de Raul Pompéia podem, sem sombra de dúvida, ser considerada exemplar, no que tange à representação da infância e da adolescência e aos sentimentos e problemas referentes a tais faixas etárias.Ao lado de O Ateneu, de contos e de novelas que narram os sofrimentos das faixas etárias e dos abusos contra elas, as crônicas se destacam como instrumento utilíssimo para ele emitir seus pontos de vista sobre a condição da infância e da adolescência; para fazer suas denúncias sobre exploração de menores; e, sobretudo, para ecoar discursos das mais diversas áreas de conhecimento sobre a necessidade de cuidar de tais faixas etárias, especialmente daquelas desprovidas de lar, de assistência e da presença do Estado, objetivando, dessa forma, a manutenção da ordem e do progresso. Nas crônicas de Raul Pompéia, percebe-se o empenho de republicanos a favor de tais faixas etárias, pois são reconhecidas como importantes na consolidação do regime que se instaurava no final do século XIX. Assim como sua ficção, as crônicas de Raul Pompéia sinalizaram, acentuadamente, cada uma a seu modo e conforme seus códigos, a condição da infância e da adolescência e o sentimento do cronista e dos narradores para com ambas as faixas etárias. Além de elas servirem de material que esclarece aspectos uma da outra, elas se geram uma da outra e emprestam temas uma da outra. Como repórter do cotidiano, Raul Pompéia, em princípio, valorizou o espaço urbano e suas cenas como matéria coletada em ritmo de reportagem. No ato da elaboração da rubrica, o cronista se resolve como escritor de ficção, mas não resolve a natureza de seu texto, sempre no limite do jornal e da literatura. Nesse sentido, as crônicas não são apenas ―laboratório‖ da ficção, elas são matéria-prima da ficção, se entrosam na ficção. Das crônicas, surge O Ateneu. Nele, os fatos recebem nome de ficção no subtítulo de seu único romance publicado: Crônicas de Saudade. Da realidade às páginas do jornal, e dessas à prosa de ficção oitocentista, a prática do jornalismo literário, segundo Arnst (2001), influenciou decisivamente a vida cultural brasileira e lançou as bases do nosso romance romântico e realista. A relação entre novelas, contos e crônicas, possível dentro dos limites das folhas noticiosas da imprensa, muitas vezes dificulta a classificação de textos a partir da teoria dos gêneros, porque permite uma série de reapropriações e de empréstimos, especialmente no que diz respeito ao tema: o relato folhetinizado de crianças roubadas ou exploradas no ambiente doméstico ou de trabalho parece mais adequadamente real quando tema de narração de alguns de seus contos. De outro modo, o jornal vende a infância abandonada, 329 prostituída e explorada sob os laivos de um melodrama ou de um folhetim francês. As notícias de crimes contra a infância e a adolescência são produtos da ―ficcionalização‖ ou da ―folhetinização‖ da realidade relatada e referida.

REFERÊNCIAS: ANGRIMANI, Danilo. Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismona imprensa. São Paulo: Summus Editorial, 1994. ARNST, Héris. A influência da Literatura no Jornalismo. Rio de Janeiro: E-papers. 2002. BULHÕES, Marcelo. Jornalismo e literatura em convergência. São Paulo: Ática, 2007. CÂNDIDO, Antônio. A vida ao rés-do-chão. In: Setor de Filologia da FCRB. A crônica: ogênero, suafixação e suas transformações no Brasil. Campinas – SP: Editora da Unicamp. 1992. CHEVALIER, Louis. Classes laborieuses et Classes dangereuses. Paris: Hachette, 1978. FREITAS, Marcos Cezar de (org.). História Social da Infância no Brasil. São Paulo: Cortez Editora, 1997. MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2005. PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O Carnaval das Letras. 2. ed. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2004. POMPÉIA, Raul. Crônicas I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/OLAC/FENAME, 1982, vol. 6. _____. Crônicas II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/OLAC/FENAME, 1983, vol. 7. _____. Crônicas III. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/OLAC/FENAME, 1983, vol. 8. _____. Crônicas IV. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/OLAC/FENAME, 1981, vol. 9. SÁ, Jorge. A crônica. 6. ed. São Paulo: Ática, 2002. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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TODO O ENCANTO DIABÓLICO NA FIGURA DO BOTO AMAZÔNICO Prof. Msc. Dante Luiz de Lima111 Prof. Dra. Salma Ferraz (orientadora)112 Resumo: Os mistérios da Amazônia fascinam e encantam, deste lugar enigmático com muita vegetação, animais exóticos, rios grandiosos e igarapés de águas geladas surgem várias lendas que povoam o imaginário dos habitantes locais, principalmente os ribeirinhos. Uma das lendas mais instigantes é a do boto, que com seus sortilégios enfeitiça a mente das mulheres bonitas e assusta os homens viris da região amazônica. Neste trabalho fazemos a análise da figura do boto como sendo uma criatura diabólica, que com seu carisma e poder de sedução leva as moças solteiras e até mesmo as mulheres casadas à perdição. Comparo a figura do boto a de um íncubo não onírico que tem dotes maléficos e características claramente luciferianas: como o poder da sedução, a beleza angelical e a capacidade de metamorfosear-se, dentre outras que ressaltaremos no corpo deste trabalho. Para que façamos essa leitura usaremos como fontes primárias dois contos de escritores paraenses, o primeiro é O Baile do Judeu de Inglês de Souza (1892), o segundo é A lenda do Boto (2009) de Alberto MoiaMocbel, nativo e residente da cidade de Cametá. A escolha de tais contos evidencia o fato de que a lenda do boto sobreviveu ao tempo, haja vista que mais de cem anos separam a publicação dos contos. Também abordaremos algumas outras características do boto que não estão presentes nos contos, mas que estão vivas nas narrativas orais dos habitantes da região amazônica, sendo que para tal nos embasaremos em materiais já publicados com depoimentos de moradores locais e também teóricos que estudam o folclore brasileiro. Palavras Chaves: Boto, Amazônia, Diabo, Lenda Abstract: The mysteriesof the Amazon regionfascinateand delight people, from thisenigmaticplacewith lots of greenery, exotic animals, magnificentriversand streamsoficy waterappearsseveral legendsthat inhabitthe imagination oflocals, especially those who live by the river. One of themost intriguingtalesisthe story of thedolphin (Boto), which with itscharmsbewitchesthe mindofbeautiful women andscares the virile men fromthe Amazon region. In this study we analyzethe figure of thedolphin (Boto)as being adiabolicalcreaturewho, withhis charisma andpowers of seductiontakestheunmarried girlsand even the married womento perdition. We comparethe figure ofthedolphin (Boto)to a non-oneiric devil who has evilpowers and oustandingLuciferiancharacteristics: such as the powerof seduction, angelic beautyand the ability tometamorphose, among others thatwe will highlightin the bodyof this study. In order to accomplishthiswe will useas primary sourcestwo short storiesby writersfrom Pará, the first one isO Baile do Judeuby Inglês de Souza(1892), the second one is A lenda do Boto(2009)by AlbertoMoiaMocbel, native andresidentin the town of Cametá. The choiceof thesestorieshighlightsthe fact thatthe legend of thedolphinsurvived the time, considering that more than a hundredyears separatethe publications. We alsodiscusssome other featuresofdolphinthat are not presentin the stories, buttheyare alivein theoral narrativesof the inhabitantsof the Amazon region, and for thiswe will base ourselvesonmaterial already published with the testimony of local residentsand alsotheoristswho studyBrazilian folklore.

Key Words: Boto, Amazon, Devil, Legend

111 Professor da Universidade Federal do Pará, atualmente doutorando em Teoria Literária na Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected] 112 Professora do programa de Pós Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. E- mail: [email protected] 331

A região amazônica não é apenas um dos lugares mais exóticos do mundo, mas é também fonte de inspiração para escritores e poetas, que muitas vezes baseados em narrativas orais, passam para a palavra escrita as lendas e os mitos criados pelo povo da região. A fertilidade mental do povo amazônico é facilmente justificável pela situação geográfica desta área da AméricaLatina onde a natureza é exuberante,possui rios grandiosos, igarapés de águas frias e escuras, furos sinuosos, animais e insetos de tamanhos e formas variadas e uma situação climática que propicia longas pausas para reflexão e contemplação de tudo em que está em volta. Todos estes fatores são atenuantes para que a imaginação crie não somente crie asas, mas vá muito mais além, como justifica João de Jesus Paes Loureiro:

Na realidade amazônica o mundo físico tem limites sfumatos, fundidos ou confundidos com osupra-real, daí por que nela homens e deuses caminham juntos pela floresta e juntos navegam sobre os rios. Situam-se no impreciso limite entre aquilo que é e aquilo que poderia ser, nesse sfumatopoetizante que interpenetra o real e o imaginário (LOUREIRO, 2001, p. 94).

Portanto, levando-se em consideração as palavras de Loureiro, podemos afirmar que o onirismo (in)voluntário do habitante da região amazônica é algo inerente a sua própria natureza, pois os mesmos parecem inebriar-se com a imensidão de mistérios que o cercam, o fictício passa a ter o status de verdadeiro e vice-versa. Deste universo multifacetado e místico surgiram várias mitos e lendas que povoaram e ainda povoam o imaginário popular, dentre estas destacamos a lenda do boto, a qual será a fonte primária deste estudo. O boto, chamado por alguns de Don Juan das águas113, já foi cantado em verso e prosa, normalmente ele éassociado a um homem galante e muito bem apessoado que leva à perdição mulheres indefesas que entregam a ele seus corações e também seus corpos sedentos de amor e desejo, como explica Loureiro: ―O Boto é um encantado da metamorfose por excelência, expansão de uma espécie de êxtase dionisíaco, que deixa as mulheres fora de si mesmas, fazendo-as esquecer todas as normas para seguir somente o impulso ardoroso desse ser de puro gozo, é de amor sem ontem nem amanhã‖ (LOUREIRO, 2001, p.208). Esse prazer exacerbado proporcionado por essa entidade vinda das águas, possivelmente tem origens nefastas. Portanto, neste estudo compararemos

113 “O Boto-vermelho é o Don Juan das águas, sedutor de moças donzelas e mulheres casadas” (LOUREIRO, 2001, p. 208).

332 o boto à figurade um demônio que possui todos os encantos diabólicos, pois suas características luciferinas são bastante evidentes e serão expostas no corpo deste trabalho. Para que façamos esta leitura usaremos dois contos de escritores paraenses, que provavelmente baseados em narrativas orais, escreveram a lenda do boto de acordo com seus pontos de vistas. Os contos escolhidos foram O Baile do Judeu de Inglês de Souza (1892) e A lenda do Boto (2009) de Alberto MoiaMocbel, nativo e residente da cidade de Cametá. A escolha de tais contos deu-se pelo fato de ambosescritores serem paraenses, o que pode vir a legitimar suas narrativas, pois sendo moradores da região eles têm um conhecimento mais aprofundado sobre a lenda que se propuseram a escrever. Outro fator determinante para tal escolha foi a data em que tais contos foram escritos, o primeiro no final do século XIX e o segundo no início do século XXI,este fato mostra que a lenda do boto sobreviveu ao tempo, haja vista que mais de cem anos separam as duas publicações. Finalmente, levou-se também em consideração a abordagem inovadora que cada autor deu a seu protagonista, destacando de antemão que o boto de Inglês Souza é um ser quase que disforme, opondo-se a maioria das narrativas orais que rezam que o cetáceo metamorfoseado em homem é um ser bastante atraente. Mocbel, por sua vez, nos traz o boto convencional, bonito e sexualmente ativo, isto é, aquele que veio emprenhar a inocente menina ribeirinha da região amazônica. Mas por que dentre tantos animais o boto foi escolhido para personificar o irresistível homem sedutor da região amazônica? Segundo Loureiro (2001) são várias as explicações, a começar pelo modo com que a criatura se move dentro das águas, seus movimentos lembram os movimentos rítmicos da cópula, isto é, o animal não parece estar nadando e sim se deleitando com o que está fazendo, neste sobe e desce dentro dos rios o boto parece estar espreitando suas vítimas e ao mesmo insinuando o prazer que pode lhes proporcionar. Além disso, segundo o mesmo autor, a cabeça do boto tem uma semelhança com a glande masculina, essa característica fálica do boto pode ter cooperado para dar mais intensidade na criação do mito. Portanto, como podemos notar, mitos como o do boto parecem nascer da contemplação da natureza e suas possíveis (re)significações. Afinal, o mistério é parte integrante da vida de todo ser humano pensante, pois ao deslumbrar-se com o mundo que o cerca, fica procurando explicações e fazendo elucubrações para compreender a ―realidade‖ que o cerca. A lenda do boto vem somar especulações sobre o mundo metafísico que tanto nos instiga. Apesar de haver todo um romantismo envolvendo a figura do Don Juan Amazônico, também podemos encontrar neste sercaracterísticas diabólicas, pois: ―Muitas vezes, especialmente na literatura, o Anjo abatido apresenta-se 333 como uma criatura polida e benigna, como um gentil-homem que conhece a arte de fazer corte às damas e aos varões. Mostra, quando quer, ser um hábil conviva, um adulador obstinado‖ (PAPINI, s/d, ps.224,225). Sendo assim, o boto amazônico, com sua capacidade de frequentar a sociedade e passar-se por um cidadão comum e com seu grande poder de encantamento, pode indubitavelmente serequiparado a uma das criaturas das trevas, com poderes sobrenaturais equiparados ao do próprio diabo. O boto na maioria das narrativas orais e escritas é um rapaz bonito e loiro. Se levarmos em consideração a aparência física dos habitantes da região amazônica, nos perguntaremos porque ele não tem características regionais, seria muito mais sensato, uma vez que ele faz parte do imaginário amazônico e como se sabe a maioria dos habitantes da região tem traços herdados dos povos indígenas. Segundo Cascudo apud Veloso, Silva e Valente: [...] como nenhuma figura encantada, marítima ou fluvial, tivesse os atributos do boto nos séculos XVI, XVII, XVIII, as lendas e proezas que lhe são atestadas seriam de origem branca e mestiça, com projeção nas malocas indígenas ribeirinhas e não saídas destas (CASCUDO, 2000, s/p). Sendo assim, podemos deduzir que a criação do mito não tem suas raízes no folclore amazônico, mas sim que foi trazida do além-mar pelos colonizadores europeus e provavelmente foi adaptada pelos habitantes locais para justificar o nascimento de crianças que não tinham uma paternidade definida e depois foi também usada pelos povos amazônicos para legitimar filhos procedentes de relações ilícitas, muitas vezes incestuosas.A partir daqui podemos começar a nossa associação do boto com a figura luciferiana, pois como o ser humano tem dificuldades em aceitar seu lado obsceno teve que inventar uma criatura mais terrível que ele para assumir suas culpas, o diabo vem cumprir este papel. A seguir começaremos aanálise dos contos levando-se em consideração que estamos explanando sobre uma figura maligna e não um inocente Don Juan dos rios. Começaremos explorando o que os dois contos tem em comum, ambos falam de um ser que vem das profundezas dos rios, um lugar escuro e misterioso que aguça a curiosidade dos seres humanos. Este lugar pode ser associado ao inferno, que por não ser um lugar telúrico, nos leva a reflexão sobre o mundo metafísico. Que segredos o fundo dos rios e o inferno nos reservam? Sobre os rios os exploradores aquáticos já podem nos dar bastantes informações, mas lembremos de aqui estamos falando de fantasia e misticismo,portanto nossas mentes podem ir além dos fatos relatados pela ciência. Sendo o boto uma criatura pertencente ao panteão do imaginário podemos fazer várias ponderações sobre esse reino 334 aquático, inclusive podemos compará-lo a um inferno não incandescente, que ao invés de fogo possui apenas a escuridão e um guardião (demônio) sedutor que em noites de lua cheia sai a procura de vítimas. O inferno, por sua vez, como é de conhecimento popular, é regido por um príncipe maldito que comanda uma legião de demônios que também deixam seus habitats para vir a terra para induzir os mortais ao pecado. Lembremos também que Satã foi e ainda é mostrado de várias formas, inclusive como um ser aquático, segundo Kelly (2008) o diabo foi também retratado como um monstro marinho alegórico, uma combinação de dragão de múltiplas cabeças chamado Leviatã. Sendo assim nosso boto também pode ser considerado um Leviatã amazônico. Outro ponto em comum entre os contos é o local da aparição do boto, ele aparece em uma festa dançante (baile), aliás, esse ser, supostamente aquático, tem desenvoltura de um exímiobailarinho quando metamorfoseado em homem. De acordo com Loureiro: A festa é um dos momentos recorrentes e cíclicos, como um refrão, nas aparições do Boto. Seja a festa dançante comum no interior da Amazônia, seja a festa anual do santo padroeiro. Costuma ser comentado o nascimento de filhos do boto nove meses após a festa do padroeiro (LOUREIRO, 2001, p. 219).

Esta é mais uma características que pode ser atribuída ao diabo, pois divertimento parece não sãoser atributos de um bom cristão. Existe inclusive um ditado popular que diz que quando as pessoas vão a um baile elas vão montadas no diabo, mas quando voltam o diabo é que vem montado nelas, esta observação, provavelmente de origem religiosa, vem mostrar que bailes não são aprovados por Deus, nosso suposto criador. Portanto, a aparição do boto em um evento desta natureza é mais uma pista da sua origem maligna, além disso, o objetivo dele não é apenas dançar, mas também seduzir alguma mulher carente e levá-la a cometer o pecado da luxúria, para depois abandoná-la com um filho ilegítimo nas mãos. Os contos se diferem quanto a descrição do boto, na narrativa de Mocbel ele é descrito da seguinte forma: Seria meia-noite quando um rapaz, bem parecido, claro, de olhos azuis, trajando fato branco e gravata verde, aproximou-se de Marieta e a convidou para dançar. Marieta 335

prontamente aceitou e, coisa estranha, sentiu um arrepio no corpo. Já no conto O Baile do judeu ele é mostrado da seguinte forma: Às 11 horas da noite , quando mais animado ia o baile, entrou de repente um sujeito baixo, feio, de casacão comprido e chapéu desabado, que não deixava ver o rosto, escondido também pela gola levantada do casaco. Foi direto a dona Mariquinhas, deu-lhe a mão, tirando-a para uma contradança que se ia começar.

Como podemos perceber temos dois botos distintos nas duas descrições, um loiro bonito e europeizado e outro feio com ares de brasileiro, especialmente pela baixa estatura. Como o objetivo deste estudo é comparar a figura do boto ao diabo, a explicação poderia ser encontrada na evolução da figura Luciferiana através dos tempos. Como sabemos Lúcifer era o anjo mais bonito e perfeito do reino dos céus, o processo de transformação de sua imagem em um a figura horrenda foi cristalizado na Idade Media, Cousté, estudioso desta área explica que: [...]o Diabo sofreu um processo de degradação física que deve ser atribuída principalmente à imaginação popular. O deslumbrante ser que nos fala a Bíblia adquiriu, aos olhos do povo, características físicas em correspondência com a sua moral depravada: se ele é corrupto, mentiroso, inimigo de Deus e dos homens, perjuro, sacrílego, violador, maligno no mais alto grau, deverá necessariamente ser horrendo, disforme e repulsivo como nenhuma outra criatura (COUSTÉ, 1996, p.32). Analisando-se a explanação de Cousté e partindo-se do pressuposto que o boto é o diabo vindo das águas, podemos dizer que a criatura (re)criada por Inglês de Souza tem características do diabo que foi idealizado na Idade Média, isto é, feio e repulsivo, mas mesmo assim, perigoso por seu alto poder de sedução. Em contrapartida o boto Mocbeliano tem as características angélicas que Lucífer possuía quando habitava o empíreo, bonito e atraente. Sendo assim, podemos dizer que na maioria das narrativas sobre o Boto temos um demônio com características angelicais, isto é, um ser belo, mas que no fundo 336 tem uma índole maldita, mas que no conto de Inglês de Souza o boto extenua fisicamente a maldade que lhe é inata. Em ambos os contos o boto seduz a mulher que escolheu e a leva a perdição, pois como o diabo usa de vários artifícios para engambelar suas vítimas, principalmente quando estas são do sexo feminino e que de acordo com Nogueira: Incorporando, pois, todas as crenças da Antiguidade, amplificado pelo discurso da Igreja. O Diabo preside a vida da comunidade cristã. Em toda parte se vê o diabólico, o mundo inteiro é por ele invadido. E sua vítima é por excelência, a mulher(NOGUEIRA, 2002,p. 42). Desta forma, podemos afirmar mais uma vez que o boto pode ser comparado ao diabo, pois suas vítimas são sempre mulheres. Nos contos em questão as seduzidas são Marieta, jovem bonita de dezoito anos que acaba sendo engravidada pelo boto e termina seus dias cuidando do filho e sonhando com amado que jamais retornou. Cousté ao falar da performance sexual do diabo explica que: ―Como se trata de um excepcional amante, seu desaparecimento deixa a vítima em permanente ansiedade e nostalgia [...]‖ (COUSTÉ, 1996, p. 46)114. Especula-se que, especialmente durante a Idade Média, muita mulheres se entregavam ao tinhoso e com ele tinham momentos inesquecíveis de luxúria, depois eram abandonadas e ficavam lamentando a ausência do amado infernal, portanto, Marieta pode ser comparada a essas mulheres frustradas da era medieval que ficaram a espera desse amor utópico e maldito.No conto de Inglês de Souza a seduzida é dona Mariquinhas, jovem bonita e recém-casada com um tenente-coronel, a qual acaba sendo levada para o fundo das águas pelo amante cetáceo. Como podemos notar as duas mulheres em questão sofreram consequências por se envolverem com o maligno, uma foi condenada a solidão e a outra parece ter sido levada a morte, pois a história termina com ela sendo arrastadapela criatura para dentro do rio, o próprio narradoradmite que o ser que levou dona Mariquinhas é diabólico: ―E em vez de ser homem era um boto, um grande boto, ou o demônio por ele, [...]‖. Desta forma, é bastante plausível se comparar a figura do boto a de um demônio. Os botos de ambas narrativas se deixam denunciar pelas suas características sobrenaturais e que podem ser associadas a figura do diabo. No conto de Inglês de Souzaa revelação acontece da seguinte forma: ―No meio dessa estupenda valsa, o homem deixa cair o chapéu, e o tenente-coronel, que o seguia assustado para pedir que parasse, viu com

114Cousté refere-se aqui a figura do diabo, que na nossa leitura pode ser o próprio boto. 337 horror que o tal sujeito tinha a cabeça furada.‖ O furo na cabeça é algo bastante recorrente nas narrativas orais e escritas em que o boto aparece, pois de acordo com Loureiro: ―Nessa nova e eventual condição, o único sinal identificador que guardam é um buraco no meio da cabeça, por ordem respiram com certo ruído‖ (LOUREIRO, 2001, p. 208). Por isso o boto sempre usa um chapéu para esconder tal deformidade. Este furo em sua cabeça, também pode ser considerado uma manifestação demoníaca, afinal nem um ser vivo apresenta tal característica, este detalhe vem mostrar que os demônios são capazes de camuflar muito bem suas características sobrenaturais, o chapéu torna-se um artefato de primeira necessidade para estas criaturas das trevas, o boto para esconder para esconder seu orifício e o diabo para esconder suas guampas115. Outra hipótese que podemos levantar é que o boto possuia um corno que foi arrancado e no lugar ficou apenas o buraco. A maioria das representações, principalmente da era medieval, mostram o diabo com dois chifres, mas há algumas em que ele aparece apenas com um grande corno sobre a cabeça. Já no conto de Mocbel o boto é delatado por seus pés: ―De repente alguém gritou Ei!... Cuidado pessoal!... Cuidado!... Ele não é gente!!!... É um boto!!!... É um boto encantado!!!... Olha o pé dele!... Olha o pé dele!... O carcanha é pra frente!...‖ Como pode ser observado o boto aqui lembra bastante o curupira, que é considerado um demônio das matas. Lembremos que a partir da Idade Média a iconografia do diabo sofreu grandes transformações, do anjo belíssimo criado por Deus pouca coisa restou. A partir de então o diabo poderia assumir qualquer forma, desde que fosse feio. Tais representações invadiram o imaginário popular de tal modo, que a partir de então o maligno poderia estar presente em qualquer criatura que não possuísse a estética almejada pelos olhos humanos, inclusive em pessoas com deficiências físicas. O estético parece estar sempre associado ao benéfico, por essa razão é que a iconografia de Jesus Cristo sempre mostra um homem de beleza celestial e o diabo como um ser abominável. Nogueira explica que: As representações dos inimigos desenvolveram-se numa quase ilimitada variedade de formas grotescas e fantasmagóricas, uma vez que esses seres de pesadelo simbolizam um crime contra o Criador e, portanto, contra a Sua Criação: a Natureza. Demônios com anatomias animais ou semi-humanas ou deformadas: coberto de pelos ou escamas, com cabeças demasiadamente grandes ou demasiadamente pequenas em relação ao corpo, dotados de

115 Alusão a música de Raul Seixas: Eu nasci há dez mil anos atrás. “E pra aquele que provar que eu to mentindo eu tiro meu chapéu”. 338

olhos saltados[...] [...]enfim quantas outras monstruosidades a imaginação pudesse criar (NOGUEIRA, 2002, ps.63,64).

Portanto, os calcanhares invertidos do Boto Mocbelianosão também uma marca de sua monstruosidade e diabolismo. É interessante notar que os demônios, apesar de ter astúcia e o poder da metamorfose, jamais conseguem esconder todas suas marcas de bestialidade. O Boto do conto em questão, mesmo mantendo sua beleza angelical, não conseguiu esconder seus pés disformes e o do conto de Inglês de Souza não conseguiu camuflar o buraco na cabeça. Podemos assim dizer que os contos trabalhados nos mostram dois botos muito similares quanto ao poder de sedução, característica obviamente diabólica, mas que fisicamente e na maneira de se trajar se contrapõem. O boto mocbeliano possui a beleza angelical do anjo caído, inclusive, veste-se de branco, cor normalmente associada aquilo que é puro e celestial. Em contrapartida o boto de Inglês de Souza é feio e baixo, características que nos levam a pensar sobre a deformação que Lúcifer sofreu durante os séculos para que se tornasse repugnante aos olhos da humanidade. Quanto aaltura do monstrengo podemos especular que talvez Inglês de Souza quisesse dar ao seu boto uma maior brasileirade, uma vez que não é uma característica dos habitantes dar região amazônica ter uma estatura elevada, mas ao mesmo isto pode ser visto de uma maneira bastante preconceituosa, isto é, o boto não é o monstro europeu que veio roubar e seduzir a mulher ingênua do interior brasileiro, mas é sim produto da nossa terra. Dessa maneira derrubasse-se aquela ideia que o diabo vem sempre do estrangeiro ou terras desconhecidas. Finalmente uma observação deve ser feita sobre os título dos contos, o deMocbel é bastante explícito e não deixa dúvidas do que a narrativa vai tratar A Lenda do Boto, já o de Inglês de Souza é intitulado O Baile do Judeu, título que a princípio não revela muita coisa, mas que durante a leitura nos mostra um anti-semitismo por parte do narrador: ―Era de supor que ninguém acudisse ao convite do homem que havia pregado as bentas mãos e os pés de Nosso Senhor Jesus Cristo em uma cruz‖ [...]. Supõe-se que uma criatura das trevas não apareceria em uma festa se o local estivesse sob a proteção de Deus, mas como o povo judeu é acusado de ter assassinado Jesus Cristo, tal local estaria à mercê de demônios, uma vez que supostamente traíram o suposto criador de todas as todas coisas, levando seu único filho à morte. Finalizamos esta análise nos questionando sobre os mistérios da vida e nos perguntado até que ponto a realidade não é ficcional, e até que ponto o ficcional não é verdadeiro. O porquê de algumas narrativas orais e escristas serem chamdasde mitos e 339 lendas e outras tão ficcionais quantos estas serem chamadas de ―verdadeiras‖, como as históriascontadas no livro mais lido e mais estudado de todos os tempos, a Bíblia. Sendo assim, Lúcifer , o maior vilão de todos os tempos, sai do texto bíblico e migra para a literatura, com disfarces variados, e como argumenta este trabalho, devido as características sombrias, o boto poderia ser um dos seus demônios.

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FICTIONAL REALITIES X FACTUAL LIES:

THE AMAZON CROSSING SPATIAL AND TEMPORAL BOUNDARIES

Davi Silva Gonçalves116

Resumo: De acordo com Derrida a literatura é uma instituição contra-institucional que pode ser tanto subversiva quanto conservadora (58), enquanto que, para Foucault, o discurso não ‗é simplesmente aquilo que traduz conflitos ou sistemas de dominação, sendo esse discurso o próprio conflito (53). Tendo isto em mente, o objetivo desse estudo é demonstrar como, no romance The Brothers, o desenvolvimento diaspórico e híbrido dos personagens e, de certa forma, do próprio Milton Hatoum permitem que essa ficção seja capaz de contradizer discursos hegemônicos acerca do progresso e desenvolvimento da região amazônica que se provam falaciosos, apesar de persistentemente privilegiados e, sendo assim, erroneamente considerados ―não-fictícios‖. No romance, personagens marginalizados que não acreditam nem endossam as estórias contadas pelo imperialismo parecem tentar propor outras possibilidades quanto ao futuro, apesar de terminarem a narrativa completamente suprimidos pelos discursos neocolonizadores. Quando traduzido para a língua inglesa, o potencial de questionamento contra-hegemônico do romance, originalmente chamado Dois Irmãos, é empoderado consideravelmente já que sua zona de impacto é ampliada incomensuravelmente; o retrato da Amazônia, logo, se aproxima do mundo material e significante e se distancia do mundo mítico e exótico onde ela inicialmente era concebida. A contemporaneidade é um momento de crise, e, para passar por tais crises, mitos são inúteis, como Said argumenta, já que mitos apresentam problemas como se estes já estivessem sido analisados e solucionados (312). Afinal de contas, como Hatoum demonstra, a atmosfera sonhadora que sempre acompanhou aqueles que apoiaram e apoiam a ocidentalização da Amazônia acaba chocando inevitavelmente nos cruéis mas inerentes efeitos colaterais de tal processo.

Palavras-chave: Amazônia; Tempo; Espaço; Hatoum.

Abstract: According to Derrida ―literature is a counter-institutional institution that can be both subversive or conservative‖ (58), while Foucault poses that ―discourse is not simply that which translates struggles or systems of domination, but is the thing for which there is struggle‖ (53). That taken into account, the objective of this study is to show how, in the Brazilian novel The Brothers, Milton Hatoum‘s and his characters‘ diasporic and hybrid identities help this fictional piece to debunk specious hegemonic discourses of progress and development in the Amazon that have been persistently privileged and inaccurately regarded as ―nonfictional‖. In the novel, marginalised characters who do not believe or endorse the tales told by Imperialism endeavour to propose other possibilities of future but end up being discredited and suppressed by the supremacy of neocolonising discourses.

116 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Língua Inglesa, Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - [email protected] 341

Nevertheless, when translated into English in 2002 The Brothers‘s potential for questioning official discourses is considerably empowered since its impact zone is immeasurably broadened; the portrait of the Amazon thus becomes closer to the material world and farther from a myth. Contemporaneity is a time of crises, and to overcome such crises myths seem to be useless, as Said agues, since they represent problems ―as already analysed and solved‖ (312). Ultimately, and as Hatoum demonstrates, the fanciful atmosphere that has accompanied those who supported the westernisation of the Amazon inevitably impinges upon the callous but inherent byproducts of such process.

Keywords: Amazon; Time; Space; Hatoum.

1. Introduction: Who are The Brothers? In the beginning of The Brothers, Nael, the son of an Amerindian sold to a Lebanese woman, already gives readers some clues about the fact that the brothers Omar and Yaqub do not have many things in common. Besides growing up much more attached to Yaqub, not exactly physically but through some sort of platonic esteem: ―I grew up with Yaqub‘s photos, listening to his mother reading his letters. In one of the photos, he posed in an Army uniform; a sword again, but this time the two-edged weapon made the reserve officer look all the more formidable‖ (HATOUM,2000,p. 53), since this first moment the narrator is already aware that one of the brothers must be his father, and for the reader it is clear that he prefers the one who fits best in the hegemonic model, one that represents everything that is admirable and respectful in a gentleman: ―For years, this image of the dashing young man in uniform was imprinted on me. An Army officer, a future engineer from the Polytechnic School…‖ (HATOUM, 2000, p. 53). This crystal clear image, that here the narrator shares with the readers, is forged by the context of that specific moment. There seems to be an important analogy between Yaqub‘s portrait and the relations of power being reinforced in Brazilian society, he, in a way, represents the hands of military; which also comprises the idea of future, of improvement, of strength. Moreover, it is interesting to ponder upon his choice to become an Engineer and not a doctor or lawyer, perhaps the writer wants us to think of Yaqub as the embodiment of construction of a new country, as that who constructs and sets the framework for a new country to be born. Also, in that historical moment, most medical students would be involved in resistance activities one way or another. Likewise, his not going to the university–where critical thinking and theoretical reflections are ubiquitous–but to the polytechnic school might be due to his sole intention to become a tool, to deal with material and concrete 342 issues in this mission of nation reconstruction. Yaqub does not seem to be interested in questioning the system, he just wants to become on top of it as soon as possible. The boastful nature of Yaqub‘s construction as a character is reinforced by this story is told by Nael that ―one morning, in August 1949, the twins‘ birthday, Omar asked for money and a new bicycle. […] Yaqub refused the money and the bicycle. He asked for a gala uniform for Independence Day. It was his last year at the College, and now he was going to parade with the others, with a sword by his side‖ (HATOUM, 2000, p. 30). Yaqub, who is about to travel to the Lebanon, seems to be pretty attracted to the chance of performing and exhibiting his westernised adulthood as much as possible. He is getting ready for progress, for the future, for the great revolutions of development. Omar, on the other hand, seems to be much more attached to the present, to the now, and is afraid of leaving Manaus, he does not seem to see any future elsewhere. Omar prefers to pursue happiness therein, through simple, ludicrous and pleasurable activities as we can see on the following excerpt. While Yaqub‘s happiness depends on the performance of his mission, on Independence day ―Omar was looking at the spectacle from his bicycle, a slightly dopey look on his face, and a strange smile, whether of resentment or mockery there was no way of knowing. He took no notice of the parade, or of Independence‖ (HATOUM, 2000, p. 33). Taking ―no notice of the parade, or of Independence‖ does not necessarily imply that Omar‘s indifference is a sign of resignation, but perhaps one of conscious skepticism. He does not seem to be attracted to the progressive tale as Yaqub seems to be. Incorporating the regime, Yaqub‘s image becomes one of primary importance for him: ―He [Yaqub] was already smart in mufti, so you can just imagine how he looked in his white uniform with gold buttons, his epaulettes decorated with stars, his leather belt with a silver buckle, his spats and white gloves, and the shining sword he gripped in front of the mirror in the drawing room‖ (HATOUM, 2000, p. 31). A metaphorical connection, conscious or not, between the portrait of Yaqub and the portrait of Brazil seems to be gradually articulated by Nael‘s observations. Yaqub sustains his image as an ideological icon, admiring his reflection as representative of a great and shinny future, to which he is willing to fight for–even if that means functioning as a hammer in the hands of the regime. Just like the future of the country, Yaqub‘s own image, covered by beautiful and glowing details, is nothing but a façade. The surface might seem pure and innocent, but the ―shining sword‖ that accompanies the package makes us remember that all that exuberance does only thrive for 343 it is implemented through violent means. Moreover, in the final part of this quotation we can see a clear reference by Nael interconnecting Brazil and Yaqub:

The parade in his gala uniform had been Yaqub‘s farewell: a little show put on for the family and the city. In the Salesian College they had a ceremony in his honour. He got two medals and ten minutes of speeches: he was also praised by the Latinists and mathematicians. The faculty knew that their ex-pupil had a glorious future ahead of him; at that time, both Yaqub and Brazil itself seemed to have a promising future (HATOUM, 2000, p. 32).

Besides foreshadowing Yaqub‘s future hideous actions, since the ―glorious future ahead of him‖ is one that will be achieved through the implacable destruction of his parents and siblings lives, this quotation shows us how, although being twins, the brothers represent pretty distinct realms of Brazilian historical layers. And if ―both Yaqub and Brazil itself seemed to have a promising future‖ we can think about this idea of ―future‖ as problematic, at least, if you will. At this moment both Yaqub and Brazil are in the process of ―development‖, and I would say there is a high level of blind faith endorsing both their paths. I use the word faith because faith has no basis on evidence, and this has been exactly the case if one stops to think about underdeveloped countries in Latin America, whose processes of development are much more intricate than is generally perceived. According to Galeano (1997, p. 245), ―Latin American underdevelopment is not a stage in the road to development, but the counterpart of development elsewhere; the region ‗progresses‘ without freeing itself from a structure of ‗backwardness‘‖. He sees our victories as symbolic, and ―the symbols of prosperity are symbols of dependence. Modern technology is received as railroads were received in the past century, at the service of foreign interests which model and remodel the colonial status of these countries‖ (GALEANO, 1997, p. 245). The isolated Amazon might be backward but it is, at the same time, more independent than the integrated Amazon. Yaqub is looking for a future dictated by others, where people, no matter how many possessions or accumulated wealth they have, have no freedom. Just like a wax statue when set under the sun, the illusion of freedom offered by capitalism, by neoliberalism, by this future so eagerly expected, melts as soon as it is exposed. The layers of development depend on an ongoing wave of a self-destructive circle game that has no place to stop, when everything gets melted a new statue is built. Likewise, western progress has not only decimated values which had been shared by Amazonians before its chaotic arrival, but also created brand-new symbols of modernity, things that 344 stand for principles which are far more abstract than their materialistic representations. From his childhood to his adulthood, Yaqub will work hard to share those values. His intention seems to be of killing his past, he wants to be identifiable as closer to the future, to fit in this new society by destroying any debris of his Amazonian, backward, historical background. Controversially, in order to become fixed in the future he has to be malleable in his present, getting rid of his past in order to become adaptable enough to become a statue of development, he wants to be forged by the fires of progress) through the help of such values. In order to be forged by the fires of progress, Yaqub will ultimately be getting married, moving to São Paulo, and becoming a ―successful‖ professional–an extraordinary neoliberal capitalist and, consequently, if you will, an awful human being. If the narrator finds it difficult to define the ―strange smile‖ in Omar‘s face, if his values are hard to be described as representing this or that, Yaqub‘s expression seems to represent almost everything about him. Perhaps ―represent‖ is not the most plausible word here, since Yaqub might indeed resemble his–Western–values but actually rarely represents such values and/or rarely is sufficiently represented by them. Such resemblance is dual, reflexive, and, unlike representation, symmetric. Yaqub is like a river reflecting the image of progress, a fluctuating and uneven mirror, its gruesome lineament; and while he might endeavour to represent progress, progress‘s agenda does not include any worry about representing people like him. In the words of Nelson Goodman (1976, p. 04) ―B is as much like A as A is like B, but while a painting may represent the of Wellington, the Duke doesn‘t represent the painting‖. This supposed dichotomist reflection is generally taken for granted; Yaqub is eluded by a system which buys his loyalty with symbols such as ―two medals and ten minutes of speeches‖, manipulating his principles in return, and increasing the profundity of the growing abyss separating Omar and himself. Are these symbols the result of his achievements? Or are his achievements the result of these symbols?

2. Omar‟s Deviation from his (pre)established path If Yaqub is the liquid reflection of development, gradually surfacing from under the river Negro to become more intelligible–closer to the concrete and objective ideals of Western thinking – Omar seems to be its monstrous counter-reflection, plunging into the Negro and unintelligibly deviating from the main course of the stream. This does not mean 345 at all that, while Yaqub‘s character is strongly influenced by development, Omar is unaffected by it. He, like Yaqub, is also a consequence of progress, even though an unexpected one. In the medicalisation of the Amazon, while its disease is invented by the west, people like Yaqub are the medicine, and the ones like Omar the collateral effect. But from this beginning doesn‘t it already look like provocation two twins – two ―identical‖ individuals – seemingly going to opposite directions? Not at all; the novel is just showing what Goodman (1976, p. 04) has posed: ―a man is not normally a representation of another man, even his twin brother. Plainly, resemblance in any degree is no sufficient condition for representation […]. A picture that represents–like a passage that describes–an object refers to and more particularly, denotes it‖. It is, indeed, through their difference that Yaqub and Omar are denoted and, ultimately, bounded. Their resemblance, even though insufficient ―condition for representation‖, seems to be, moreover, necessary for Hatoum to problematise the outer shell of development, for the reader to understand that what seems to be does not necessarily need to be. Omar never leaves Manaus, never gets married or finds a steady job, never adapts in the system. What I mean by his unfitness in the ―system‖ can be illustrated by Omar‘s girlfriends, for instance, who are not very well seen by his family, since they are:

‗nameless‘ women, women of whom nobody in the neighbourhood could say: she‘s the daughter, granddaughter, or niece of so-and-so. They were unknown women, who never went to the fashionable beauty salons, much less to the Green Salon in the Ideal Club; he courted girls who had never left Manaus, never gone to Rio de Janeiro (HATOUM, 2000, p 93).

Yaqub‘s obsessive worry with the performative appropriateness of his image does not seem to be shared by his brother. Omar enjoys going against the ―natural order‖ of events, he does not worry about not fitting in how things are supposed to be. His behaviour when looking for girlfriends who deviate from the patterns manufactured by hegemony perhaps explain his behaviour when it goes to development. He does not care about the status of his girlfriends just like he does not care about the status of a ―developed‖ Amazon. Later on, when Omar leaves home to live with one of his girlfriends–a project that does not last long due to his mother‘s interference–the readers can see one more time both his father and the narrator‘s uneasiness due to Omar‘s lack of attachment to contemporary worries and values. The problem is that Omar does not want to be accepted on the grounds of normativity, he does not want any professional or educational prospects, he is 346 not willing to be westernised. When Yaqub offers money for his family to become more integrated in a changing society Nael observes that ―Omar was contemptuous of the renovation of the house and the shop. He didn‘t allow them to paint his room, and deprived himself of any signs of material comfort coming from his brother‖ (HATOUM, 2000, pp. 125-126). Omar‘s obstinateness and unyielding reaction to the modern and postmodern foxy mirages devised by Imperialism is pivotal for him not to become the slave of a future that never comes. Such a hope in the future, that seems to be misleading, if you will, appears to deceive those who surround him, but does not prevent him from positioning and historicising a more meaningful and evocative present. His living status is an affirmation of a more believable possibility of existing in the future and in the past, for it is attained to personal convictions derived from experience rather than from the hegemonic discourses. In fact, and just like Omar does, it is by acknowledging the present that one might be able to dream about a winsome but reasonable future; according to Colás (1994, p. 08) ―only by insisting on doing that which contemporary culture prohibits–namely, thinking the present historically–and only by summoning the return of a seemingly eliminated space, can the concept of a utopian future be kept alive‖. The Amazon is one of these ―seemingly eliminated space(s)‖, and it is only by allowing its survival–not as a source of profit but of meaning–that what now is defined by hegemonic culture as a ―utopian future‖ might have any chance of thriving. What we see as utopia is, in the end, what the system wants us to see as a utopia, for hegemony is interested in making us give up; it depends on our resignation to endure.

3. Final Remarks: Liquefying time, fragmenting identities Worried about money, materialisms, physicalities, numbers, and the future, but disregarding more subjective facts of the present, Yaqub is infatuated with the idea of progress; he does not look around, he does not see what Nael sees–and slowly starts to ponder upon–when he walks through the outskirts of Manaus. The boundaries separating the centre of the Amazonian capital and its outskirts as observed by Nael can be thought of as an analogy for the centre of progress–developed countries–and its margins–developing ones. Although the hegemonic view on the matter of development emphasise only its assets whilst it ignores its drawbacks, the developed centre needs the underdeveloped margins such as the centre o Manaus needs its outskirts to sustain itself; that is, one cannot exist without the maintenance of the other. 347

Moreover, if people like Yaqub can decide whether or not to look at what surrounds the centre of the city and the assets of progress, people like Nael have no choice whatsoever: ―He‘d [Halim] taken me to a small bar at the very end of the Floating City. There we could see the shanties of the Educandos, and the huge creek separating this amphibious neighbourhood from the centre of Manaus. It was the busy time of day‖ (HATOUM, 2000, p. 114). The ―amphibious existence‖ of these people that Nael observes can be interpreted as a metaphor for the postmodern and postcolonial existence of the marginalised Amazonians. Amphibians are not defined nor restricted by the water as they are not by the land. They are not going from one place to the other but, as amphibians, they are defined by their gooey transitory nature per se, never belonging anywhere. We can think of this in almost Darwinian terms: both the amphibians and the margin of the Amazon are deemed as in the process of ―evolving‖, ―adapting‖, but they are still far from the homestretch; and, since for capitalism it is not the survival of the fittest but the survival of the richest that defines our society, I dare to say they will never be able at all:

The labyrinth of houses built on wooden posts was humming: a swarm of canoes wound their way between the floating houses as the inhabitants returned from work, walking in single file along the narrow planks that allow people to circulate in this labyrinth. The more daring carried a large flagon, a child, or sacks of manioc-flour; they had to be acrobats not to fall into the Negro. From time to time, one would disappear into the darkness of the river and turn into a news item (HATOUM, 2000, p.115).

The fact that these people – whose lives are here watched and reflected upon by both Nael and Halim – live in ―houses built on wooden posts‖ on the river can be interpreted as an allegory; they have lost their ground and are now on a liquid surface, situation that emphasises their non-spatial and non-temporal condition. One could say that there is a lack of ―chronological sense‖ in the water, such as the chronological sense of the lives of the marginalised Amazonians observed by the narrator is also puzzling. That is, the water is always the same but it is also always different; these new ―floors‖ for the houses of Amazonians are almost never-ending whilst it is also ever- changing. The chronological instability of these peoples‘ floor is just like the chronological instability of their past, present, and future, which seem to be interwoven in a hybrid space and time and not in impermeable closed boxes as we are generally made believe. Their liquid floor is a continuation of their fluid selves, their identity is not going through a transition; their identity is transition itself. 348

REFERÊNCIAS:

COLÁS, S. Postmodernity in Latin America: The Argentine Paradigm. Durham: Duke UP, 1994.

DERRIDA, J. This Strange Institution Called Literature. In. _____. Acts of Literature. Routledge: New York, 1992.

FOUCAULT, M. The Order of Discourse. In. Young, R. Untying the Text: A Post- Structuralist Reader. London: Routledge & Kegan Paul, 1981. (49-78)

GALEANO, E. Open Veins of Latin America. Trad. Cedric Belfrage. New York: Monthly Review Press, 1997.

GOODMAN, N. Languages of Art. Indianapolis: Hackett, 1976

HATOUM, M. The Brothers. Trad. John Gledson. Bloomsbury Publishing: 2002.

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FAUS(ELIO)TINO: AS CONFLUÊNCIAS ENTRE ELIOT E FAUSTINO

Esp. Dayana Crystina Barbosa de Almeida117 118 Prof. ª Dr. ª Izabela Guimarães Guerra Leal

RESUMO: Mário Faustino, além de poeta, também foi tradutor, exercendo essa atividade em diferentes momentos de sua carreira e, por meio de suas traduções, dialogou com diversos autores, tornando-os parte de sua obra. Faustino também foi colaborador do suplemento literário Arte-Literatura, do jornal A Folha do Norte, e entre alguns poemas e contos traduziu ―Death by water‖, de T. S. Eliot. Neste mesmo período, Faustino fez parte do ―Grupo dos Novos‖, alcunha dada à geração literária de 1940 de Belém. Os membros deste grupo, assim como autores e críticos já conhecidos pelo público, mas, principalmente da geração de jovens poetas, ficcionistas e críticos estreantes no mundo literário, entre os quais se destacam as referências nas áreas de filosofia, poesia e crítica literária, Benedito Nunes e Mário Faustino respectivamente, utilizaram o Arte-Literatura como meio de divulgação da produção literária e crítica. Assim, a partir da comparação entres os poemas ―Nam Sibyllam‖, publicado no livro de Faustino ―O homem e sua hora‖, e ―Death by water‖, traduzido por Faustino no Arte-Literatura, esta comunicação se propõe a mostrar, levando- se em consideração a teoria da intertextualidade de Kristeva, como Faustino deu origem a um novo poema a partir da obra de Eliot.

PALAVRAS-CHAVE: Mário Faustino; T. S. Eliot; Tradução.

ABSTRACT: Mario Faustino, besides being a poet, was also a translator, exercising this profession in different moments of his career and, through his translations, he dialogued with several authors, making them part of his work. Faustino was also a collaborator at the Literary Supplement, ―Arte-Literatura‖, in the newspaper ―Folha do Norte‖, and among some poems and short stories, he also translated ―Death by water‖, from T. S. Eliot. In this same period, Faustino belongs to ―Grupo dos Novos‖, a sobriquet given to literary generation of 1940 from Belém of Pará. Members of this group, as well as the authors and critics already known to the public, but mainly the young generation poets, novelists and new literary critics. So, among which stand out the references in the areas of philosophy, poetry and literary criticism, Benedito Nunes and Mario Faustino, respectively, used the Art-Literature as a means of dissemination of literary production and criticism. Thus, based on the comparison between the poems ―Nam Sibyllam‖ and ―Death by water‖, this article seeks to demonstrate how Faustino create a new poem from Eliot‘s work, taking into account the notion of intertextuality of Kristeva.

KEYWORDS: Mário Faustino; T. S. Eliot; Translation.

117 Mestranda de Letras - Estudos Literários da UFPA. Bolsista pela Fapespa. Integrante do projeto de pesquisa ―Poetas em tradução no jornal A Folha do Norte‖. Especialista em Tradutor e Intérprete pela FIBRA. Graduada em Letras-Inglês pela UFPA. E-mail: [email protected] 118 Professora de Literatura Portuguesa na Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Literatura Portuguesa pela PUC-Rio. Doutorado em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Pós-Doutorado na área de Estudos da Tradução. Desenvolve um projeto de pesquisa intitulado ―Poetas em tradução no jornal A Folha do Norte”. E-mail: [email protected]

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1. INTRODUÇÃO

O suplemento literário intitulado Arte-Literatura, do jornal paraense A folha do Norte, foi o lugar em que o poeta Mário Faustino iniciou sua carreira, publicando seus primeiros poemas, contos e traduções. Faustino, juntamente com outros poetas e escritores como Ruy Guilherme Barata, Paulo Plínio Abreu, Carlos Drummond, Manuel Bandeira, Cecília Meireles e Aurélio Buarque de Holanda, traduziu inúmeros autores estrangeiros no referido suplemento entre os anos 1946 e 1951. Faustino deu continuidade ao seu ofício de tradutor quando dirigiu, de 1956 a 1959, o suplemento literário Poesia-Experiência, do Jornal do Brasil. No livro ―Poesia Completa Poesia Traduzida‖, Benedito Nunes tentou reunir todas as traduções feitas por Mário Faustino, e, embora a lista seja extensa – há poemas traduzidos de Horácio, Shakespeare, Goethe, Höelderlin, Pound, cummings, Brecht e Artaud – a mesma está incompleta, pois não constam, por exemplo, traduções de poemas como ―Transfiguração‖ e ―Antípodas à vista‖, do poeta norte-americano Robert Stock, publicadas somente no ano de 2012, em uma plaqueta intitulada ―Meretriz imaginária‖119, e também não foram incluídas as traduções feitas no Arte-Literatura, à exceção de ―Death by water‖. A inclusão do poema traduzido de Eliot neste livro, ao invés de outros, pode ter uma explicação inicial na nota escrita pelo próprio Benedito Nunes:

Os poemas traduzidos, alguns datando da adolescência do autor, outros procedentes de ‗Poesia-Experiência‘, pertencem ao seu universo poético tanto quanto a crítica de poesia a que se dedicou, como organizador dessa Página do Suplemento Dominical do ‗Jornal do Brasil‘. (NUNES, 1985, p. 10).

Podemos inferir que a poesia de Faustino resulta da soma de poetas que ele leu, em diferentes momentos, tais como: Mallarmé, Yeats, Rilke, cummings, Joyce e Pound, deste último se utilizou do tema ―repetir para aprender, criar para renovar‖. Já T. S. Eliot, cujas ideias se refletiram na crítica de Faustino, também se fez presente no poema ―Nam Sibyllam‖. Assim, este artigo se propõe a investigar a presença de Eliot na obra de Faustino não como mera ―influência‖, mas sim como uma relação de intertextualidade, de acordo com Kristeva (1974).

119 STOCK, Robert. A meretriz imaginária. Belém: Edição do Escriba, 2012. 351

2. LITERATURA NACIONAL E A ESTRANGEIRA: ROMPIMENTO DE HIERARQUIAS

Todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto; ele é uma escritura- réplica (função e negação) de outro (dos outros) texto(s). (Kristeva, 1974. p.62)

Julia Kristeva (1974), a cunhadora do termo intertextualidade, esclarece que o texto literário nunca é algo isolado, e sim um cruzamento de planos textuais, de conversas entre diferentes escrituras que apontam para o próprio escritor, o destinatário e o contexto cultural atual ou anterior (Kristeva, 1974, p.62). Contudo, o estudo da intertextualidade objetiva o exame do processo em que ocorre a produção de um novo texto, os processos de rapto, absorção e integração de elementos alheios na criação da obra nova, e não se detém na ideia da existência de influência ou mesmo da relação entre modelo e cópia. Silviano Santiago (1978), no ensaio ―O entre-lugar do discurso latino-americano‖, sugere uma discussão relacionada às noções e implicações dos conceitos de modelo e de cópia quando se analisa a relação entre as literaturas latino-americanas e as literaturas europeias, por exemplo, pois não está mais em questão o uso das noções de original e cópia, ou de fonte e influência, o que estabeleceria a priori uma hierarquização das obras literárias, sendo os modelos europeus considerados superiores às imitações que surgem na América latina. As noções de modelo e cópia põe em evidência um conceito de valor que é determinado por condições históricas. Consequentemente, vem à tona uma ideia de dependência das culturas das ex-colônias em relação às ex-metrópoles e os impasses que se originam a partir daí são irremediáveis. Para escapar desse determinismo, Silviano Santiago já chamara a atenção para o processo de ―interiorização do exterior‖, imprescindível à formação cultural brasileira, relendo de forma crítica a Poesia Pau Brasil, de Oswald de Andrade. Silviano sugere que a antropofagia de Oswald já antecipava questões muito atuais ao fazer uma nova leitura da dinâmica desempenhada pelo jogo de forças entre interior/exterior, colonizado/colonizador. Santiago esquematiza a questão do seguinte modo:

Para o Brasil poder se exteriorizar com dignidade é preciso que acate antes o exterior em toda a sua concretude. A consciência nacional estará menos no conhecimento do seu interior e no complexo processo de interiorização do que lhe é exterior, isto é, do que lhe é estrangeiro. (Santiago, 2006, p.135).

352

Souza (2007, p.51), em ―O discurso crítico brasileiro‖, acrescenta, mediante o confronto entre o já citado artigo de Santiago (1982) e o de Haroldo de Campos ―Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira‖ (1983), que ambos os textos retomam a antropofagia como ―conceito operatório‖, em razão de se mostrar ainda eficaz ―no processo de desconstrução das culturas estrangeiras‖. Desse modo, a literatura nacional é pensada em termos de igualdade em relação à estrangeira, por meio da certeza no aspecto positivo da transculturação.

3. O LEGADO DE ELIOT NA OBRA FAUSTIANA

Boaventura (2009, p. 33), a organizadora de obras de Faustino como ―Artesanatos de Poesia‖ (2004), ―De Anchieta aos Concretos‖ (2003) e ―O homem e sua hora‖ (2009), em seu ensaio ―Um militante da poesia‖, nos diz que Mário Faustino objetivava manter distância, no mínimo do ponto de vista teórico, ―da aparente facilidade estético-formal modernista e nada mais sintomático do que o encantamento por modelos de poesia como a de Yeats, Eliot etc.‖. Benedito Nunes (1985) complementa dizendo que Faustino obteve lenta assimilação dos melhores padrões da linguagem poética das literaturas brasileira e portuguesa, pelas poesias francesa e alemã e pelos poetas da língua inglesa, dentre os quais destaca T. S. Eliot, por tê-lo influenciado de modo positivo, mas de quem ele se afastou rapidamente. No entanto, Benedito Nunes (1977) afirma:

É possível identificar diálogos entre ‗O homem e sua hora‘ e ‗Invenção de Orfeu‘, como, por exemplo, as diversas citações nas duas línguas clássicas ou em modernas línguas estrangeiras, localizadas ao longo de ambos, recurso destacado por Faustino no primeiro número da página ‗Poesia-experiência‘, pelo uso que dele fez Eliot, para quem este intercâmbio de línguas constituía um fator de revitalização da literatura. (Nunes, 1977, p. 278).

De acordo com a citação de Nunes, ocorreu uma confluência entre Mário Faustino e Eliot por meio do uso de citações em línguas clássicas, bem como em línguas estrangeiras modernas em busca da revitalização da literatura no poema ―O homem e sua hora‖ e, podemos acrescentar, no poema ―Nam Sibyllam120‖, a partir do qual surgiu, ainda em Belém, a confluência entre Mário Faustino e T. S. Eliot, quando Faustino foi colaborador do suplemento literário Arte-Literatura, do jornal A Folha do Norte, e traduziu ―Death by

120 ―Nam Sibyllam‖ é um dos poemas de ―Sete sonetos de amor‖, a segunda parte do livro ―O homem e sua hora‖ (1955). 353 water‖. Nesta época, de acordo com Marinilce Coelho (2003), em sua dissertação ―Memórias literárias de Belém do Pará: o Grupo dos Novos, 1946-1952‖, Faustino fez parte do ―Grupo dos Novos‖, alcunha dada à geração literária de 1940 de Belém. Os membros deste grupo, assim como autores e críticos já conhecidos pelo público, mas, principalmente da geração de jovens poetas, ficcionistas e críticos estreantes no mundo literário, entre os quais se destacam as referências nas áreas de filosofia, poesia e crítica literária, Benedito Nunes e Mário Faustino respectivamente, utilizaram o Arte-Literatura como meio de divulgação da produção literária e crítica. Assim, esse suplemento exerceu importante papel em relação à formação de outros literatos e críticos, devido ao conteúdo que divulgava nessas páginas (Coelho, 2003, p.12). Em suma, esse suplemento reuniu uma nova geração da literatura brasileira, que anunciou um pensamento aberto em relação ao tempo presente e às gerações literárias anteriores. Assim, passemos à tradução de Faustino do poema de Eliot: DEATH BY WATER121

Poema de T. S. ELIOT Tradução de MÁRIO FAUSTINO

Phlebas the Phoenician, a fortnight dead, Phlebas, o fenício, morto há quinze dias, Forgot the cry of gulls, and the deep sea Esqueceu-se do grito das gaivotas e da profunda swell ondulação do mar And the profit and loss. E dos lucros e perdas. Uma corrente submarina A current under sea Picou-lhe os ossos, murmurando. E subindo e Picked his bones in whispers. descendo As he rose and fell Ele passou o tempo da velhice e da juventude He passed the stages of his age and youth E penetrou na voragem. Entering the whirlpool. Ó vós todos, judeus ou gentios, Gentile or Jew Vós que moveis o leme e olhais a barlavento O you who turn the wheel and look to Lembrai-vos de Phlebas, que foi um dia belo e alto windward, como vós. Consider Phlebas, who was once handsome and tall as you (De ―The Waste Land‖)

T. S. Eliot, dentre os poetas do século XX, é geralmente lembrado como um dos que teve mais amplo alcance sobre os contemporâneos. Embora não tenha ocorrido ampla divulgação da tradução feita por Faustino, ―Death by water‖ destaca-se como uma das primeiras traduções de Eliot no Brasil, ocorrida em 1950. O poema completo, ―The waste land‖, só obteve uma tradução na íntegra em 1956, intitulado ―A Terra Inútil‖ feita por

121 Transcrição do Poema ―Death by Water‖ e de sua tradução no Suplemento Arte Literatura de A Folha do Norte de 22 de janeiro de 1950, n. 144. 354

Paulo Mendes Campos, o qual também foi, na década de 50, colaborador do suplemento Arte-Literatura.

4. DA TRADUÇÃO À INTERTEXTUALIDADE ENTRE ELIOT E

FAUSTINO

O poema ―Nam Sibyllam‖, foi publicado por Faustino no livro ―O homem e sua hora‖ cinco anos após a tradução que ele mesmo fez de ―Death by water‖ no suplemento Arte-Literatura. Podemos perceber a relação de intertextualidade entre Faustino e Eliot, pois o título do poema, ―Nam Sibyllam‖, é o começo da epígrafe apresentada em ―The Waste Land‖, que Eliot havia retirado do capítulo XLVIII do livro Satiricon, de Petrônio: ―Nam Sibyllam quidem Cumis ego ipse oculis meis vidi in ampulla pendere, et cum illi pueri dicerent: Σίβυλλα τί θέλεις; respondebat illa: ἀποθανεῖν θέλω‖122 Para Bender (2008), em sua dissertação de mestrado ―O homem e seu tempo na poesia de Mário Faustino‖, em ―Nam Sibyllam‖ são fortemente notados os traços típicos do lirismo moderno como a incorporação de elementos diversos e a ambiguidade de sentidos. Podemos observar abaixo o poema ―Nam Sibyllam‖:

Lá onde um velho corpo desfraldava As trêmulas imagens de seus anos; Onde imaturo corpo condenava Ao canibal solar seus tenros anos; Lá onde em cada corpo vi gravadas Lápides eloquentes de um passado Ou de um futuro arguido pelos anos; Lá cândidos leões alvijubados Às brisas temporais se espedaçavam Contra as salsas areias sibilantes; Lá vi o pó do espaço me enrolando Em turbilhões de peixes e presságios — Pois na orla do mundo as delatantes Sombras marinhas, vagas, me apontavam.

Bender (2008, p.109) acrescenta que as imagens diretas, presentes no poema, são excedidas por um amplo ―afluxo de metáforas‖, que pode ser observado no quarto verso ―Ao canibal solar seus tenros anos‖. Este verso mostra que o tempo é visto como um

122 De acordo com Ivan Junqueira, a frase tem a seguinte tradução: ―Pois com meus próprios olhos vi em Cuma a Sibila, suspensa dentro de uma ampola, e quando as crianças lhe diziam: ‗Sibila, o que queres?‘; ela respondia: ‗Quero morrer‘‖. (ELIOT, T. S. Poesia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 99). 355

―canibal solar‖ que se alimenta dos ―tenros anos‖, relembrando o mito de Cronos, o pai de Zeus, o qual receava que a profecia de que ele fosse tirado do poder por um de seus filhos se concretizasse, por isso devorava os próprios filhos, em uma analogia à inevitabilidade do tempo. Abaixo, os dois poemas:

Death by Water Nam Sibyllam

T. S. Eliot Mário Faustino

Phlebas the Phoenician, a fortnight dead, Lá onde um velho corpo desfraldava Forgot the cry of gulls, and the deep sea swell As trêmulas imagens de seus anos; And the profit and loss. Onde imaturo corpo condenava Ao canibal solar seus tenros anos; A current under sea Lá onde em cada corpo vi gravadas Picked his bones in whispers. Lápides eloquentes de um passado As he rose and fell Ou de um futuro arguido pelos anos; He passed the stages of his age and youth Lá cândidos leões alvijubados Entering the whirlpool. Às brisas temporais se espedaçavam Contra as salsas areias sibilantes; Gentile or Jew Lá vi o pó do espaço me enrolando O you who turn the wheel and look to windward, Em turbilhões de peixes e presságios Consider Phlebas, who was once handsome and tall — as you Pois na orla do mundo as delatantes Sombras marinhas, vagas, me apontavam.

Podemos então fazer uma comparação entre ―Nam Sibyllam‖ e o poema ―Death by Water‖, iniciando-a com o estabelecimento de uma cadeia metafórica na confluência entre Eliot, em ―Death by water‖, e Faustino, em ―Nam Sibyllam‖, pois as similaridades entre os poemas inicia com semelhanças de cunho semântico:

Eliot Faustino Sibyllam Sibilante a fortnight imaturo dead corpo Swell Vaga Picked Desfraldava age and youth tenros anos Whirlpool Turbilhões who was once um passado

E também, em ambos os poemas encontramos semelhanças de cunho imagístico que fazem com que surja uma estreita relação entre eles. O conjunto de imagens 356 encontrados em ―Death by Water‖ são: um naufrágio, morte por afogamento, a incitação o esquecimento, o mar, a inexorabilidade do tempo, a transitoriedade da vida, o vazio e um presságio. O naufrágio faz parte de ―Death by Water‖, pois ele é mencionado nas outras seções de ―The Waste Land‖ e, de acordo com Cechinel (2012, p.115), há uma importante imagem de um naufrágio, inspirado na peça ―A Tempestade‖ de Shakespeare, que se faz presente na IV seção: ―A current under sea / Picked his bones in whispers. / As he rose and fell / He passed the stages of his age and youth / Entering the whirlpool.‖. Em ―Nam Sibyllam‖, o naufrágio não é tão explícito, mas pode ser inferido em razão da morte no mar, e que provavelmente ocorreu por afogamento: ―Lá onde um velho corpo desfraldava‖. E em ―Death by water‖, essa morte do personagem, no caso Phlebas, é descrita logo no começo do poema ―Phlebas the Phoenician, a fortnight dead‖, porém a causa da morte por afogamento só é descrita na segunda estrofe: ―A current under sea / Picked his bones in whispers.‖ A imagem do esquecimento é encontrada logo no começo do poema ―Forgot the cry of gulls, and the deep sea swell / And the profit and loss.‖, pois com a morte todos os valores mundanos se desfazem, ou seja, ocorre o apagamento dos valores relacionados à vida. O personagem de ―Nam Sibyllam‖ passa pelo mesmo processo ―Lá onde em cada corpo vi gravadas / Lápides eloquentes de um passado / Ou de um futuro arguido pelos anos‖, pois as memórias dele não lhe pertencem mais, ele não possui nem passado e muito menos futuro, nada mais é importante. O mar é uma das imagens mais sugestivas, pois desempenha o papel de um cenário onde se desenrola o poema, e também pelo mar representar força e imperecibilidade. No poema de Eliot, na segunda estrofe ―A current under sea / Picked his bones in whispers.‖, descreve o corpo de Phlebas é arrastado por uma corrente marinha, que, de tão forte, picou-lhe ou roeu-lhe os ossos em surdina, ato que nos leva a outra imagem, a inexorabilidade do tempo na vida dos indivíduos, porque o mar é implacável, a ponto de destruir um corpo por completo: ―Lá cândidos leões alvijubados / Às brisas temporais se espedaçavam / Contra as salsas areias sibilantes‖, como é descrito por Faustino em seu poema. E ainda, em Eliot, também na segunda estrofe ―As he rose and fell / He passed the stages of his age and youth / Entering the whirlpool.‖, podemos encontrar a imagem do vazio, pois enquanto o corpo de Phlebas emergia e afundava, ele relembrava de momentos de sua velhice e juventude até ser sucumbido por um redemoinho e sumir para sempre. Um vazio similar é encontrado em Faustino, pois o personagem de seu poema diz: ―Lá vi o pó do espaço me enrolando / Em turbilhões de peixes e presságios‖, então este personagem, assim como Phlebas, também desaparece entre pó de areia e turbilhões de 357 criaturas marinhas e presságios, justamente a última imagem do poema: ―Pois na orla do mundo as delatantes / Sombras marinhas, vagas, me apontavam‖. Estes dois últimos trechos de ―Nam Sibyllam‖ são comentados por Benedito Nunes (1986, p.26), que afirma que há uma ambiguidade nos mesmos em razão da sinuosidade da palavra vaga, que tanto pode ser um substantivo que significa onda, quanto pode ser um adjetivo que significa algo indefinido ou sem precisão. Assim este vocábulo reforça a nota apocalíptica da agressividade com a qual o tempo se apodera dos corpos e afirma o sentido dominante e fascinante do poema. Em ―Death by water‖ a imagem do presságio também se faz presente ao final do poema, pois o narrador do poema diz ―Gentile or Jew / O you who turn the wheel and look to windward, / Consider Phlebas, who was once handsome and tall as you‖, assim, tal fala se assemelha a um presságio, um alerta para aqueles que giram o leme: aqueles que se creem responsáveis por suas próprias decisões e donos do próprio destino, que se lembrem de Phlebas, que um dia já foi belo e alto, mas agora é apenas um nada dentro do mar. Como podemos perceber, na confluência entre Mário Faustino e T. S. Eliot ocorreu um processo de apropriação por parte de Faustino com relação a Eliot, mas este fato não inferioriza o trabalho de Faustino, pelo contrário, a assimilação feita por ele deu origem a um novo poema, que é belo em decorrência de uma ―modulação rítmica das mais perfeitas na poesia faustiniana‖ (Albeniza Chaves, 1986, p.104). De acordo com Kristeva (1974), uma obra literária, sob a ótica da intertextualidade, não é simplesmente um resultado da escrita de um único autor, é um nascimento decorrente do seu relacionamento com outros textos e estruturas da própria linguagem. Assim, Faustino recorreu a uma fonte que foi necessária para que ele pudesse usá-la e transformá-la criativamente, indo muito além da mera noção de influência.

5. REFERÊNCIAS

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COELHO, Marinilce Oliveira. Memórias literárias de Belém do Pará: o Grupo dos Novos, 1946-1952/. Campinas, SP: [s.n.], 2003 ELIOT, T. S. Death by Water e sua tradução. In: Suplemento Arte Literatura de A Folha do Norte. De 22 de janeiro de 1950, n. 144. KRISTEVA, Julia. Introdução à Semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974. NUNES, Benedito. A obra poética e crítica de Mário Faustino. Belém: CEJUP, 1986, p. 26. NUNES, Benedito. A poesia do meu amigo Mário. In: BOAVENTURA, Maria Eugênia (Org.); FAUSTINO, Mário. O Homem e sua Hora e Outros Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. NUNES, Benedito (Org.). Nota sobre esta edição. In: FAUSTINO, Mário. Poesia Completa Poesia Traduzida. São Paulo: Max Limonad, 1985, p. 10. NUNES, Benedito (Org.). Poesia-experiência. In: FAUSTINO, Mário. Poesia-experiência. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 278 SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978. SOUZA, Eneida Maria de. O discurso crítico brasileiro. In: Crítica Cult. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

359

A VOZ DE UM VAQUEIRO EM MEMÓRIAS DO MARAJÓ

Délcia Pereira Pombo123

Orientadora: Profª. Dra. Josebel Akel Fares124

Resumo: Com base nos conceitos de cultura, memória, oralidade e educação, este artigo busca compreender os processos de construção identitária do vaqueiro marajoara e contribuir para estimular a reflexão sobre os aspectos ligados aos seus saberes, assim como o reconhecimento social dessa profissão. Para tanto, utilizo as trajetórias de vida como procedimento metodológico, pautado no emprego de narrativas, o que a memória como objeto da história oral propicia, fazendo um recorte (auto)biográfico das fontes orais, por considerar que são instrumentos relevantes de análise e assim identificar os fenômenos intrínsecos à atividade pecuária, sejam eles reais ou imaginários. É um estudo que pretende traçar os saberes do vaqueiro do Marajó e colaborar com a caracterização da educação local em um processo que envolve socialização e aprendizagem como uma parcela de cunho investigativo decorrente dos múltiplos cotidianos, sendo que a vivência se reveste da tradição oral, por meio dos quais o homem marajoara constrói o seu saber.

Palavras-chave: Vaqueiro marajoara; Cultura; Memória; Oralidade; Educação.

Abstract: This article seeks to understand through the concepts of culture, memory, orality and education, the processes of cowboy‘s identity construction and contribute to stimulate the reflection about the aspects of their knowledge, well as the recognition of the profession of social . Therefore, I will use the life‘s trajectories as methodological procedure based in the employment of narratives, what memory as an object of oral history provides, making a biographical snip of the oral sources by considering that they are relevant instruments and thus indentify the intrinsic‘s phenomenon to the cattle industry, whether real or imaginary. It is a study that wants to contribute to the characterization of marajoara‘s education as a share of investigative nature that traces the marajo‘s cowboy knowledge in a process that involves socialization and learning resulting of multiple daily,

123 Mestranda em Educação; Área de Saberes Culturais e Educação na Amazônia pela Universidade do Estado Pará (UEPA). Integrante do grupo de pesquisa Culturas e Memórias Amazônicas (CUMA- UEPA) E- mail: [email protected]

124 Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2003); mestra em Letras: Teoria Literária pela Universidade Federal do Pará (1997). Possui estágio pos-doutoral em Educação (PUCRS, 2012). É licenciada em Letras. Atualmente é professora adjunto da Universidade do Estado do Pará/ Departamento de Artes e Programa de Pós-Graduação (mestrado) em Educação. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura, pesquisa principalmente temas ligados à Amazônia, como poéticas orais, cultura, literatura, leitura, Educação e Arte. Coordena o grupo de pesquisa Culturas e Memórias Amazônicas (CUMA- UEPA); participa do Centro de Estudos da Oralidade (PUC/SP); do Estudos de Narrativas na Amazônia (UFPA), todos filiados ao Diretório dos Grupos de Pesquisa do Brasil (CNPQ). Membro de entidades científicas, tais como a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Letras e Linguística (ANPOLL/ GT de Literatura Oral e Popular), a Associação de Pesquisa e Pós Graduação em Educação (ANPED) e a Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC). 360 being that the experience is of the oral tradition, whereby the marajoara‘s man builds his knowledge.

Keywords: Marajoara‘s cowboy; Culture, Memory; Orality; Education.

1. INTRODUÇÃO

A região amazônica é conhecida pela biodiversidade, beleza e mistérios, incorporados constantemente ao cotidiano das populações, principalmente as de localidades mais afastadas dos centros urbanos, como é o caso dos campos do Marajó. Tais pensamentos levam a mergulhar na pluralidade cultural amazônica que ―consiste tanto de valores e imaginários que representam o patrimônio espiritual de um povo, quanto das negociações cotidianas através das quais cada um de nós e todos nós tornamos a vida possível e significativa‖ (BRANDÃO, 2002, p. 24). Em busca de significados inerentes ao exercício da atividade pecuária e de traçar os saberes do vaqueiro do Marajó é que este trabalho tem como objetivo ―recolher a voz‖ desse profissional dos campos por meio da coleta de narrativas (auto)biográficas. Por isso a intenção de se utilizar as trajetórias de vida como procedimento metodológico pautado no emprego de narrativas e a partir daí fazer um recorte biográfico das fontes orais por considerar que a vivência se reveste da tradição oral. Segundo Todorov (2006), as narrativas orais são narrativas da vida e, nesse caso, a ação de contar.

a invenção de si mesmo é costurada em torno da dimensão temporal que dá significado as fases da infância, juventude, idade adulta, etc. Através da ficção e criatividade do narrador, esta biografia, objetivada pela fala, vai se configurando e ganhando existência própria a partir do amálgama, muitas vezes inconsciente ou não, que representa o conjunto de experiências vividas (ATAÍDE, 2006, p. 313).

Convém dizer que o ato da palavra vai ter sequência nos relatos fixados na memória. Por meio dessa voz, que é, sobretudo, memória, pretendem-se recortar fatos relacionados ao entorno do vaqueiro marajoara, sejam eles reais ou imaginários. A memória que é infinita, pois:

[...] toda consciência é mediatizada por ela [...]. Contudo, nossa principal preocupação vai para o pensamento que explicitamente se refere a acontecimentos e experiências passados (sejam eles reais ou imaginários); com efeito, a experiência passada recordada e as imagens partilhadas do passado histórico são tipos de recordações que têm particular 361

importância para a constituição de grupos sociais no tempo presente. (FRENTNESS & WICKMAM, 1992, p. 9)

O fio que tece a vida do homem marajoara permite o entrelaçamento dos elementos culturais, históricos e do que se aprende também através da memória. Nesse sentido a sociedade marajoara afirma sua identidade, sobretudo, porque têm um modo de vida, indumentária, lendas, mitos, rituais, instrumentos e artifícios próprios de sua própria educação, de sua sabedoria.

A relevância do estudo reside na necessidade de se registrar o vivido, a experiência do narrador, para que não se percam os valores culturais do homem marajoara, da memória que permanece pela funcionalidade e encanto como conceito engrandecedor do saber popular. Assim, os relatos, as vozes poéticas de pessoas simples contam o que ouviram ou presenciaram e nesse contexto, nos lembra Walter Benjamin (1994) somente quem viveu experiências diversas tem o que contar.

2. O VAQUEIRO MARAJOARA: REPRESENTANTE TÍPICO DO LUGAR

O Arquipélago do Marajó, localizado ao norte do Estado do Pará, reúne diversidade de culturas, formas de vida e organização social ao longo de dezesseis municípios entrecortados por numerosos rios, pelo oceano Atlântico e pela Baía de Marajó. Possui uma área com extensão territorial de 104.606,90 Km² e sua população de 379.203 habitantes detém um dos mais elevados percentuais de residentes no campo, já que desse montante 231.908 (61,16%) vivem na área rural. A formação étnica é baseada na população de origem indígena, negra e portuguesa. Esta mistura favoreceu o desenvolvimento da identidade marajoara dotada de um linguajar peculiar e de um universo cultural cheio de lendas e superstições que permeiam o imaginário da comunidade local. Esse mosaico cultural configura o mapa da própria possibilidade da vida social, em um cenário multifacetado e polissêmico, o que nos permite compartilhar o pensamento de Fares (2003, p. 77), para quem o ―Marajó não é uma paisagem, mas muitas paisagens, não é uma ilha, mas um arquipélago, não é uma civilização, mas civilizações sobrepostas umas as outras‖. Numa superfície coberta por extensos campos na zona oriental da ilha, propícios para o criatório, o homem do campo adquiriu lição da natureza e implantou um gênero de 362 atividade corrente – a pecuária. Como representante do lugar surge o vaqueiro marajoara, reconhecido pelo seu modo desconfiado de ser e pela sua indumentária ―pois se compõe de calça e blusa, chapéu de palha e, no inverno, uma manta de baeta; monta descalço colocando apenas um ou dois dedos dos pés no estribo‖ (MIRANDA NETO, 2005, p. 72). Ressalta-se que os vaqueiros mais antigos atendem a essa descrição, mas os vaqueiros da nova geração seguem nova tendência: a calça de brim foi substituída pelo jeans, o chapéu de palha pelo boné, e a manta de baeta cedeu lugar às capas plásticas, mas ainda permanece o hábito de se montar descalço e colocar apenas dois dedos no estribo125. Para se conseguir ter um diálogo com um deles, precisa antes de tudo, conquistar sua confiança. Este é, possivelmente, um comportamento proveniente de uma herança cultural dos índios que assim procediam. Conhecem tudo sobre a ilha, pois vivem nos campos, nas fazendas, à margem de rios e igarapés, e o contato fica quase que restrito aos outros moradores da fazenda. Na intenção de estabelecer esse diálogo apresento o vaqueiro marajoara Sr. Irandir Vasconcelos. Tio Iranda como é conhecido em toda região, e é um profundo conhecedor dos campos. Em conversas preliminares pode-se notar um enorme prazer em relatar suas experiências e os saberes que adquiriu ao longo de sua vida proveniente das gerações que o antecederam na profissão e dos companheiros com quem compartilha a vivência do dia a dia na labuta do serviço, no jogo de dominó. Na religiosidade se destaca o profundo respeito que têm pelos santos de devoção, Nossa Senhora da Conceição e São Benedito, seus padroeiros, ou nas crenças advindas dos saberes práticos de rezas, das plantas que curam, do poder do pajé, ou do pastor evangélico assim como demais atividades rotineiras vivificadas nas extensões de terra a perder de vista que compõem o cenário das fazendas na Ilha do Marajó. O vaqueiro é um homem do campo, que convive em harmonia com o seu meio na maior simplicidade. Há uma compreensão que se inicia com o respeito aos elementos da natureza que independem do indivíduo. Na concepção de Edgar Morin é preciso educar os saberes, considerando a importância da educação para a compreensão, em todos os níveis educativos e em todas as idades, ―o desenvolvimento da compreensão pede a reforma das mentalidades‖ (MORIN, 2007, p.17) Ciente de que o profissional vaqueiro é elemento de grande significância no contexto não somente marajoara, mas universal é que sua voz ecoa em diversas áreas do

125 Estribo é um aro de metal, suspenso por uma correia de cada lado da sela e sobre o qual o cavaleiro apoia o pé. No léxico do vaqueiro marajoara há uma variação para estrivo ou balança, sendo esta a forma mais usual. 363 conhecimento e viaja nos estirões imensos dos nossos rios e desemboca em outros afluentes.

3. UMA VOZ QUE SE TRADUZ EM SABERES

O habitante dos campos do Marajó é singular embora envolvido numa multiplicidade de fatores pertinentes aos afazeres diários, às crenças, ao léxico, à alimentação, aos mitos e como toda sociedade comporta mecanismos e por meio deles transmite e recria sua cultura. Com os marajoaras não é diferente.

Eles constroem, se inserem ou se apropriam de seus ambientes pautando-se por saberes acumulados e configurados por meio do trabalho e de outros significados simbólicos que atribuem a determinados meios e que transcendem a dimensão do trabalho (SILVA, 2008, p.55)

Os vaqueiros do Marajó detêm um vasto conhecimento empírico do mundo onde vivem marcado pelo respeito ao meio ambiente, pois adotam um sistema de manejo, que lhes é próprio. Estas são práticas educativas voltadas à perspectiva da comunidade tradicional e à luz de sua experiência o eco de suas vozes. É pelo corpo que nós somos tempo e lugar: a voz o proclama emanação do nosso ser. A escrita também comporta, é verdade, medidas de tempo e espaço: mas seu objetivo último é delas se liberar. A voz aceita beatificamente sua servidão. A partir desse sim primordial, tudo se colore na língua, nada mais nela é neutro, as palavras escorrem, carregadas de intenções, de odores, elas cheiram ao Homem e a terra (ou aquilo com que o homem os representa) (ZUMTHOR, 1997, p. 157).

A voz assume um lugar, se insere em seu espaço e adota um posicionamento que evidencia a sua marca identitária, pois reflete as vivências partilhadas com o coletivo, narra a classe dos trabalhadores dos campos. Nesse aspecto, os saberes que emergem da voz do vaqueiro marajoara trazem ―o prestigio da tradição, e, certamente, contribui para valorizá- lo; mas o que integra nessa tradição é a ação da voz‖ (ZUMTHOR, 1993, p. 19) sobre os ouvintes. São frutos de uma experiência de vida e a partir das quais o grupo se identifica como tal, troca informações entre si, interpreta a realidade em que vive.

4. CONTAR HISTÓRIAS SOBRE SI: UM ATO DE CONHECIMENTO

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Intérprete de sua cultura, Tio Iranda é um homem com muitas histórias para contar. O Vaqueiro, o homem nativo em seu local de trabalho e posteriormente, já aposentado, vivendo na cidade passa a narrar a própria vida, como um testemunho decorrido da necessidade que ele tem de lembrar. A arte de evocar, narrar, atribuir sentidos às experiências permite ao sujeito interpretar suas recordações em duas dimensões.

Primeiro, como uma etapa vinculada à formação a partir da singularidade de cada história de vida e, segundo, como um processo de conhecimento sobre si que a narrativa favorece. O processo de formação e de conhecimento possibilita ao sujeito questionar-se sobre os saberes de si a partir do saber-ser – mergulho interior e o conhecimento de si – e o fazer-saber-pensar sobre o que a vida lhe (sic) ensinou (SOUZA; ABRAHÃO, 2006, p. 144).

Essa observação decorrente da experiência de vida do narrador, as condições de vida em seu habitat natural se darão em entrevistas no intuito de se fazer o registro da memória individual e coletiva desse indivíduo em busca de dados que possibilitem que a voz, o fio que tece a rede do homem marajoara adentre os espaços escolares em estudo que possa ser útil para a formação de novos olhares para o arquipélago do Marajó e com inclusão da ideia de memória, na articulação de educação e cultura advindas das narrativas orais pertinentes às trajetórias de vida traçadas em torno do vaqueiro marajoara. 5. CONCLUSÃO

O vaqueiro do Marajó por meio do ato de contar sua própria vida e as ações que norteiam sua prática profissional constrói um conhecimento a respeito de si mesmo, sobre os outros e sobre o que acontece na sua comunidade em certo momento histórico. Também descreve e caracteriza seu universo cultural com marcas evidentes que indicam o tecido mestiço, híbrido que forma esse povo. Assim, a cultura se define como ―um lugar onde se articulam os conflitos sociais e culturais, onde se atribuem sentidos às coisas do mundo através do corpo, do imaginário, do simbólico, da participação, da interação, da poesia, do cotidiano. Nela se constituem os sujeitos e a sua identidade‖ (TÁVORA, 2008, p. 87). A partir das vozes que permeiam este trabalho, pode-se dizer que a narrativa segue o curso da vida, ela não se explica à parte da vida, simplesmente flui e os fatos surgem acompanhando a memória do narrador, ―que não se preocupa com o encadeamento exato 365 de fatos determinados, mas com a maneira de sua inserção no fluxo insondável das coisas‖ (BENJAMIM, 1994, p. 209). E exatamente por se encontrar em um espaço privilegiado de observação daquilo ―que está na base dessas culturas, na fonte da energia que as anima, irradiando todos os aspectos de sua realidade‖ (ZUMTHOR, 2007, p. 12) que esse narrador marajoara dá uma pequena amostra dos ensinamentos e lições de vida que lhes foram repassados de geração a geração através da voz ou das vozes poéticas inseridas no centro da cultura marajoara e concede ao sujeito o papel de ator e autor de sua própria história. E o Marajó abre suas porteiras para que outras culturas tenham acesso ao conhecimento que o povo dessa região possui, mas com um olhar atento aos saberes que essas gentes têm e o reconhecimento da sociedade em geral sobre a importância do papel social desses profissionais com vistas à promoção dos sujeitos dos campos, em que se valorizem as práticas produtivas de um conhecimento focado neste universo particular com evidente estímulo à reflexão sobre os aspectos ligados aos saberes dos vaqueiros do Marajó. . REFERÊNCIAS

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FARES, Josebel Akel. Cartografia Marajoara: cultura, oralidade e comunicação. 2003. São Paulo: Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/ PUC-SP, 2003.

FRENTNESS, James & WICKMAM, Chris. Memória Social: novas perspectivas sobre o passado. Lisboa: Editorial Teorema, 1992.

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MORIN, Edgar. Os sete Saberes Necessários à Educação do Futuro 12. ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2007.

366

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O JORNAL DIÁRIO COMO INSTÂNCIA DE DIVULGAÇÃO LITERÁRIA Edson Tavares Costa126 Resumo Ao longo do tempo, a obra literária foi vista com certo puritanismo pelos que refletiam sobre Literatura, que tão somente comentavam o texto em si, deixando de levar em conta aspectos importantes, ligados à materialidade da obra, definidores, inclusive, de sua maior ou menor difusão e permanência no cotidiano literário do país. Este artigo pretende enfocar o aspecto da divulgação do livro enquanto produto, especificamente através do jornalismo diário, instância importante na massificação da informação a respeito das obras, o que, naturalmente, resultava em vendas dessa mercadoria e seu consumo por maior número de leitores. Como suporte de análise, será utilizada a coluna ―Escritores e Livros‖, mantida pelo jornalista literário José Condé, ao longo de quase duas décadas, no jornal carioca Correio da Manhã, estabelecendo uma relação com os livros de diversos autores, encontrados em sua biblioteca particular. A reflexão se dará a partir da contribuição teórica de Chartier (1999; 2007) e Darnton (2010). Palavras-Chave: Jornalismo literário; Livro; Divulgação.

Abstract Over the time, the literary work was seen with a certain prudishness by those who reflected on Literature, merely commented the text itself and failing to take into account important aspects connected to the materiality of the work, definers including its major or minor diffusion and permanence in the country literary everyday. This article aims to focus on the aspect of the book disclosure as a product, specifically through the daily journalism, that is a important instance in the mass information about the works, which naturally resulted in sales of this commodity and its consumption by more readers. The column " Escritores e Livros", maintained by the literary journalist José Condé during almost two decades in the Rio de Janeiro newspaper Correio da Manhã, will be used as the support for the analysis by establishing a relationship with the several authors' books, found in his private library. The reflection will occur from the theoretical contribution of Chartier‘s (1999, 2007) and Darnton‘s (2010) theoretical contributions. Keywords: Literary Journalism; Book; Disclosure.

Introdução Durante muito tempo, associou-se o texto escrito, notadamente o literário, a uma espécie de aura divinal, sendo o escritor algo como uma figura etérea, inatingível, vivendo num plano diferente do de seus leitores, dissociado de questões mundanas, materiais. A obra literária adquiriu um status de diafaneidade que não coadunava com a materialidade de seu suporte, e, assim, toda análise literária restringia-se ao texto em si. É relativamente recente a constatação de que outros aspectos ligados ao texto literário devem ser objeto de análise, de reflexão, uma vez que interferem de maneira preponderante em sua produção, seu significado, seu objetivo, seu propósito. Questões

126 Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail: [email protected] 368 como o ambiente histórico e social em que o texto foi concebido; o público específico a que se dirige; as relações sociais e mesmo familiares e interpessoais do autor; e, notadamente, o suporte do texto literário, o livro, visto agora desnudado de sua auréola de santidade e integrante de um sistema de circulação como qualquer outra mercadoria comercial. Em outras palavras, como que se descobriu que o livro que o leitor tem em mãos não é produto apenas de um escritor, mas que, como afirma Chartier (2007, p. 13), ―o processo de publicação, seja lá qual for sua modalidade, é sempre um processo coletivo que requer numerosos atores e não separa a materialidade do texto da textualidade do livro‖. E sendo verdade o que diz o mesmo Chartier (1999, p. 17), ratificando a afirmativa de Roger Stoddard, que ―os autores não escrevem livros: não, eles escrevem textos que se tornam objetos escritos, manuscritos, gravados, impressos e, hoje, informatizados‖, faz-se necessário que o crítico literário reveja essa posição purista de ignorar o livro enquanto objeto e o tenha também como foco de reflexão. Neste artigo, pretendemos enfocar o aspecto da divulgação do livro enquanto produto, especificamente através do jornalismo diário, tendo como suporte de análise a coluna ―Escritores e Livros‖, mantida pelo jornalista literário José Condé, ao longo de quase duas décadas, no jornal carioca Correio da Manhã, estabelecendo uma relação com os livros de diversos autores, encontrados em sua biblioteca particular – por nós catalogada para pesquisa de doutoramento.

Condé, o jornalista literário No Brasil dos anos 50 e 60, registramos uma considerável produção literária, catapultada por eventos literários diversos e por uma mídia de divulgação nos jornais de grande circulação, que geralmente ocupava largos espaços de cadernos específicos de cultura e artes. Cada grande jornal tinha seu editor literário, que, além de colunas informais sobre literatura, fazia publicar igualmente artigos analíticos e críticos, resenhas e entrevistas com autores, por ocasião de lançamentos de livros. Na coluna literária do Correio da Manhã, a que já nos referimos, José Condé publicava notas sobre o livro recentemente lançado ou a lançar em breve, planos e atividades de escritores, eventos e prêmios literários, entre outros assuntos correlatos. Segundo Moraes (1971, p. 4), Condé ―era generoso (...) com muita gente, no sentido de conceder oportunidade à divulgação de livros e autores. Tinha como ninguém, porém, o justo senso das medidas. Não dava evidência além do limite, a quem fosse apenas seu 369 amigo, sem maiores méritos intelectuais ou literários‖; o que foi corroborado por Bonald (1971, p. 3): ―falava-nos com franqueza, pondo-nos à vontade para pedir sugestões, críticas ou simplesmente apresentações aos possíveis editores do Rio‖. Temos, assim, José Condé, de certa forma, transformado em produtor de cânone, uma vez que sua indicação poderia significar uma venda considerável de exemplares, e a aceitação pela crítica e leitores. Souza e Miranda (2003, p. 12) chamam a atenção para o fato de que ―o material paraliterário existente nos acervos do escritor, como a correspondência entre colegas, depoimentos, material iconográfico, entrevistas, documentos de natureza privada, assim como sua biblioteca [grifo nosso] e seus objetos pessoais‖ são elementos dignos de nota num ―esboço de biografia intelectual‖. Analisando o acervo remanescente de sua biblioteca particular, doada à Biblioteca Pública Municipal de Caruaru-PE, sua cidade natal, procedemos minucioso levantamento, com diversos objetivos, um dos quais, a relação dos livros recebidos de autores e editores e sua efetiva divulgação pelo jornalista em sua coluna. Observamos, então, as dedicatórias autografadas que chamavam a atenção para esse detalhe, como poderemos ver a seguir: a) A solicitação explícita de publicidade, feita pelas editoras, como no caso do livro A época contemporânea – Tomo VII – 1º vol O declínio da Europa. O mundo soviético, de Maurice Crouzet, com tradução de J. Guinsburg e Vítor Ramos, lançado em 1958, dentro da Coleção História Geral das Civilizações, da Editora Difusão Europeia do Livro, cujo cartão foi encontrado no interior do compêndio: ―Ao Sr. José Condé, com os cumprimentos de Braulio Pedroso – Publicidade.‖ Ou ainda a obra de Molière As sabichonas – Escola de mulheres, traduzida por Jenny Klabin Segall, pela Editora Martins, de São Paulo, na qual foi encontrado também um cartão: ―Para o querido Condé, com os cumprimentos de Livraria Martins Editora e o afetuoso abraço do Martins, que pede sua melhor atenção para esta nova série. XI-63‖ b) Ou a solicitação mesma dos escritores, como o livro do autor português Luis Forjaz Trigueiros Sombra do tempo, composto de conferências e temas literários, lançado pela Bertrand de Lisboa, que traz o seguinte apelo do autor: ―Esse José Condé, camarada que há tanto tempo conheço de nome, cuja crítica tanto queria. Com um abraço do seu amigo Luís Forjaz‖. Ou ainda, a obra Juventude em crise (de Sartre a Marcuse), de R. A. Amaral Vieira, publicada pela Editora Bit, do Rio de Janeiro, em 1970: ―Ao José Condé, com a esperança que este ensaio despretensioso venha a merecer sua crítica. Rio, 22/9/70‖. c) Há também os apelos disfarçados, sutis: ―José Condé, peço carinho e amor para este Aruanda. Amiga Eneida. Natal, 1957‖, no livro de crônicas Aruanda, da jornalista 370

Eneida de Moraes, prefaciado por Edison Carneiro e publicado pela José Olympio, em 1957. Ou ainda: ―A José Condé, com a melhor admiração de Gilberto Freyre. / / P.S. Peço sua melhor atenção para este livro. Re, 61‖, em Sugestões de um novo contacto com universidades européias, editado pelo autor em 1961. d) Há também os agradecimentos. Dias Gomes ofertou O Pagador de Promessas (3ª edição), de 1967, no ano do seu lançamento, e que recebeu divulgação por parte de Condé; dois anos depois, outro exemplar do mesmo livro é oferecido a Condé, com o autógrafo: ―Para José Condé, sinceramente grato por suas animadoras palavras, com um abraço do amigo Dias Gomes. Rio, 17-1-69‖. O mesmo aconteceu com Homero Senna, que enviou a Condé o seu Gilberto Amado e o Brasil, lançado em 1968, pela José Olympio, e o reenviou no ano seguinte, em segunda edição, com palavras de gratidão: ―Ao caro José Condé – que tanto fez pela divulgação da 1ª edição – com o abraço amigo do seu Homero Senna. Rio, agosto 69‖. Havia ainda as solicitações de divulgação pagas pela editora, como podemos constatar num recibo encontrado dentro do livro Estudos de História Contemporânea – A civilização posta à prova. O mundo e o Ocidente, de Arnold J. Toynbee, traduzido por Brenno Silveira e Luiz de Sena, terceira edição, de 1967, publicado pela Companhia Editora Nacional, que, através do seu Departamento Editorial e de Produção, enviava este e mais dois compêndios (A maturidade mental, de H. A. Overstreet, e Um espírito que se achou a si mesmo, de Clifford Whittingham Beers – não encontrados na biblioteca de Condé), para ―crítica literária e registro bibliográfico‖ no Correio da Manhã. Constam ainda do recibo, datado de 31/07/1967, os valores pela divulgação (o de Toynbee, 6,00; os outros dois, 5,00 cada), e a informação de que deveriam ser enviados para a editora os ―recortes de notícias e críticas‖, além da ―devolução do recibo da presente Nota, que assegurará a continuidade de nossas remessas‖. Em anexo, um release da editora com todas as informações sobre os volumes. Como se vê, a construção do nome de um autor ou de uma obra pode passar pela divulgação paga, como de qualquer outro produto comercial. Isso remonta à distante França setecentista, tempos em que a famosa STN (Société Typographique de Neuchâtel) dominava a publicação, distribuição e divulgação de livros, como afirma Darnton (2010, p. 141): Toda a questão da propaganda do livro requer exame. Muito se aprenderia sobre as atitudes em relação aos livros e o contexto de sua utilização estudando a maneira como eram apresentados – a estratégia do apelo, os valores invocados pelo discurso empregado 371

– em todos os tipos de publicidade, das notícias dos jornais aos cartazes de muro. Desta forma, jornais e revistas especificamente literários, para discutir – e, consequentemente, divulgar – obras recém-lançadas, eram uma espécie de ansiada vitrine para quem desejasse ver seus livros vendendo a rolo, nas livrarias – desejo tanto do autor quanto do editor/distribuidor. Para atender a esse público interessado em literatura, mesmo os jornais diários, noticiosos em sua essência, criavam seções que faziam um pouco esse papel de promotor de objetos literários. Nos dois casos, encontramos José Condé, tanto como criador do Jornal de Letras, quanto colunista do Correio da Manhã, espaços midiáticos para divulgação literária, que exerciam grande força de atração sobre os escritores. Os questionamentos, agora, são: quais dos livros recebidos por José Condé, com as discretas (ou nem tão sutis) insinuações de divulgação em ―Livros e Escritores‖, ou sem elas, foram comentados pelo jornalista em sua coluna no Correio da Manhã? Que escritores eram mais divulgados? Que impacto poderia haver tal divulgação na vendagem dos livros? Naturalmente, não é possível, neste trabalho, realizarmos um levantamento dos dezessete anos em que este espaço de divulgação circulou, para conferirmos se os livros encontrados na biblioteca de Condé foram efetivamente divulgados – o que poderá ser um fio solto que deixamos, para futuros enredos. Por enquanto, e a título de amostragem, escolhemos um ano – 1960 – para fazer o referido levantamento.

A coluna “Escritores e Livros” em 1960 Com o intuito de refletir, ainda que de forma a requerer futuro aprofundamento, sobre a relação entre a divulgação de livros através de jornais noticiosos diários, no presente caso o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, com o sucesso dos compêndios entre o público leitor, e, em outra instância, com sua presença no cânone literário nacional; também com o fito de verificar a importância de José Condé nesse contexto, como divulgador literário e sua convivência com os colegas escritores; levantamos os livros divulgados nas 210 edições de sua coluna, durante o ano de 1960: foram, ao todo, 920 obras divulgadas, sem contar, aqui, aquelas que eram apenas citadas como uma espécie de perífrase do escritor (por exemplo, ―A Academia Pernambucana de Letras resolveu aumentar o número de suas cadeiras. Para uma delas deverá ser eleito o poeta Carlos Pena Filho, autor do „Livro Geral‟ [grifo nosso]” (CONDÉ, 1960a, p. 2)), o que, embora não sendo o foco da notícia, já se caracterizava como uma divulgação indireta do compêndio. 372

O ano de 1960 foi escolhido para esse levantamento obedecendo a alguns critérios, por nós inventariados: a) Foi o ano em que consta, em sua biblioteca, a maior quantidade de livros oferecidos a José Condé: 38. Naturalmente, havemos que considerar alguns aspectos: a. Nem todos os livros recebidos por Condé eram autografados; como afirmamos anteriormente, apenas 37,4% do total encontrado em seu acervo o foram. Então, é provável que muitos outros dos 1770 exemplares localizados por nós em seu acervo tenham sido oferecidos ao escritor no ano de 1960. b. É igualmente possível que tenha sido divulgado em 1960 algum livro recebido no ano anterior, como também alguma obra recebida no final desse ano pode ter sido divulgada em 1961. c. Não podemos esquecer que os 1770 livros catalogados na biblioteca particular de Condé naturalmente não correspondem ao seu total, uma vez que desfalques podem ter acontecido, desde o envio, pela família (os familiares podem não ter doado todos os exemplares pertencentes ao escritor), até as constantes mudanças de guarda desse material, recebido pela Biblioteca Pública Municipal de Caruaru na década de 1980, (as condições de acondicionamento, por vezes precárias, devem tê-lo diminuído).

b) Foi um ano politicamente atípico no Brasil: vivia-se a efervescência gerada pela mudança da capital federal do Rio de Janeiro para a recém-construída Brasília; os muitos anos do Rio como sede política do país fizeram sedimentar raízes dos mais diversos matizes, que resistiam teimosamente à transferência para o meio do nada, no cerrado brasileiro – Brasília jamais conseguiu usurpar do Rio de Janeiro o posto de capital cultural do Brasil. É um ano em que podemos verificar, por esta coluna jornalística, a publicação de várias obras abordando esse tema. c) Culturalmente, o país respirava os primeiros ares das novidades que ganhariam o público na década de 60: o feminismo, as novas bossas, o rock e outros produtos norte-americanos, aqui desembarcados pelos filmes produzidos em Hollywood. Literariamente, vivia-se um período de transição, com o amadurecimento da chamada geração de 1945, embora boa parte da de 1930 373

ainda estivesse atuante, e os primeiros frutos do movimento concretista iniciado em São Paulo na metade da década anterior. d) A publicação da obra mais conhecida de José Condé, Terra de Caruaru, lançada em novembro desse ano. Inicialmente, fazemos um levantamento comparativo dos livros encontrados na biblioteca particular de José Condé, a ele oferecidos em autógrafos dos próprios autores, datados de 1960, com a divulgação dessas obras ao longo desse ano. Com isso, intentamos demonstrar a relação existente entre o envio de compêndios ao jornalista literário e a efetiva divulgação da obra em sua coluna ―Escritores e Livros‖. AUTOR OBRA DIVULGAÇÕES 1. Aluisio Inojosa História de um caixeiro viajante 02 2. Urbano T. Rodrigues Nus e suplicantes – 3. Zora Seljan As moças do corpo cheiroso – A donzela Teodora – 4. Zora Seljan Os negrinhos 02 5. Faustino Nascimento Antologia poética 03 A época colonial – Tomo I – 1º vol Do descobrimento à expansão 6. Aziz N. Ab‘Saber et al. – territorial 7. Raimundo de Menezes Emílio de Menezes, o último boêmio 01 8. Cândido Motta Filho Notas de um constante leitor 01 9. João Felício Santos Major Calabar 05 10. José Francisco de Êxodo rural no Brasil – Formas, causas e conseqüências econômicas 02 Camargo principais 11. Jorge Medauar A procissão e os porcos 08 12. Oiliam José A propaganda republicana em Minas – 13. Ribeiro Couto Poesias reunidas 04 14. Gilberto Amado Depois da política 13 15. Ascendino Leite Dois romances: A viúva branca – O salto mortal 03 16. Brito Broca A vida literária no Brasil – 1900 08 17. Otto Maria Carpeaux História da Literatura Ocidental 04 18. A. C. Carvalho Olho mecânico – 19. J. Carlos Lisboa A casa do bode 01 20. Miran de Barros Latif As Minas Gerais 03 21. Marcos Carneiro de O Marquês de Pombal e o Brasil 05 Mendonça A época colonial – Tomo I – 2º vol Administração, Economia, 22. Aziz N. Ab‘Saber et all – Sociedade 23. Orígenes Lessa Balbino, homem do mar 07 24. Peregrino Júnior A mata submersa e outras histórias da Amazônia 10 25. Raymundo Moraes Na planície amazônica 01 26. Edison Carneiro A insurreição praieira (1848-49) 02 27. Cruz Costa Panorama da história da Filosofia no Brasil 02 28. João Cabral Melo Neto Quaderna 01 29. Leandro Tocantins Amazônia – Natureza, homem e tempo 02 30. Jorge Amado São Jorge de Ilhéus 01 31. Jorge Amado Seara vermelha 01 32. Jorge Amado Jubiabá 01 33. VÁRIOS Anísio Teixeira: pensamento e ação 04 34. Cassiano Ricardo O homem cordial e outros pequenos estudos brasileiros 02 35. Cassiano Ricardo Montanha Russa 05 36. Lúcio Cardoso Diário I 12 37. Carmen Mello A donzela do gave – 38. Joaquim Ribeiro História da romanização da América 01 374

Relação de livros localizados na biblioteca particular de José Condé, oferecidos ao autor com autógrafos datados de 1960, e divulgados (ou não) na sua coluna. Observamos, então, que o expediente de enviar os livros para o colunista era praticamente garantia de divulgação. O percentual de difusão de 81,5% dos livros recebidos diz bem do sucesso dessa relação. E o colunista fazia questão de fechar cada edição com o explícito lembrete: ―Para remessa de livros: Voluntários da Pátria, 381. Ap. 402‖, endereço de Condé. Fica clara, pois, a rotina de se enviarem obras para jornais, quando era do interesse do editor ou do autor sua disseminação nas livrarias, como foi evidenciado por Condé, quando comenta que o editor José Olympio ―costuma remeter suas edições à maior parte – ou à quase totalidade – dos críticos e dos colunistas‖ (CONDÉ, 1960b, p. 2), com o explícito intuito de divulgação. Por esta razão, presumimos ter sido bem maior o acervo particular de Condé, nas mais de duas décadas em que trabalhou como jornalista literário. Em alguns momentos, eram tantos os livros sobre sua mesa, que José Condé promovia uma espécie de força-tarefa assumida – como ocorreu pelo menos nos dias 21/02/1960 e 12/08/1960; no primeiro, Condé afirma que ―nem sempre é possível ao colunista registrar imediatamente o livro que recebe‖ e que, por conta disso, várias obras ficam ―aguardando sua vez na mesa do redator‖, e completa: ―desta vez os volumes se acumularam de tal maneira, que preferimos dedicar toda a coluna deste domingo ao seu registro, embora breve e puramente informativo‖ (CONDÉ, 1960c, p. 2). Algumas questões, entretanto, ficam abertas, dentre as quais, destacamos duas: a) por que os livros de Urbano Tavares Rodrigues, Oiliam José, A. C. Carvalho, Carmen Mello, os dois de Aziz Ab‘Saber e um dos recebidos de Zora Seljan, não foram divulgados? b) que critérios utilizava Condé para divulgar mais uns que outros? Por exemplo, o livro de Franklin Oliveira, Rio Grande do Sul, um novo Nordeste, ―dez reportagens publicadas no Correio da Manhã, RJ, sobre o empobrecimento do Rio Grande do Sul‖ transformadas ―em livro, editado pela Civilização Brasileira‖ (TIMM, 2012), foi o mais divulgado nesse ano, aparecendo em ―Escritores e Livros‖ nada menos que dezessete vezes, mais até que o próprio livro de Condé, Terra de Caruaru, lançado nesse ano, que foi divulgado catorze vezes em 1960. Depois da Política, obra escrita por Gilberto Amado quando se afastou de sua atuação política, recebeu treze divulgações, entre janeiro e setembro de 1960. Certamente tais questionamentos apenas encontram respostas agasalhadas em hipóteses, meras suposições – que até podem ser alicerçadas por outros dados porventura observados, mas sempre guardarão a pecha de alguma incerteza; somente o jornalista José 375

Condé teria como explicar. No entanto, trata-se de assunto demais atraente a futuras análises, o que decerto ocorrerá, senão de imediato, mas muito breve, principalmente porque, numa feliz iniciativa da Biblioteca Nacional, todo o acervo do Correio da Manhã encontra-se digitalizado, com acesso livre a todos os pesquisadores, através do site http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. O jornal Correio da Manhã circulava de terça-feira a domingo, e a coluna de José Condé, que procurava manter certa regularidade diária (sem, no entanto, conseguir), não saía aos sábados, quando o jornal publicava um suplemento literário, também sob a responsabilidade do escritor caruaruense. Havia várias seções fixas na coluna condeana, durante algum tempo, com sugestivos nomes: ―Negrito & Claro‖; ―Uma coisa e outra‖; ―5 Notas‖; ―Estante‖; ―Dizem...‖. O objetivo principal da coluna, como podemos perceber claramente pela leitura contínua de cada edição, é a divulgação de eventos literários e principalmente de livros, para o que Condé tinha acesso privilegiado a informações sobre as obras antes de sua publicação, e até mesmo aos originais, como podemos depreender desta nota (CONDÉ, 1960e, p. 2): Numa linguagem direta e nervosa, Paulo Rodrigues faz com que o leitor não se conserve indiferente diante dos problemas que agita com bastante acuidade psicológica. Pelo menos foi esta a impressão do colunista, que acaba de ler “Cidade nua” nos originais [grifo nosso]. Trinta e seis histórias – todas elas contendo menos de duas páginas dactilografadas – serão enfeixadas no volume (...). Em relação a um terço dos livros divulgados (306), em 1960, o colunista informa de seu próximo lançamento, ou que o autor estava escrevendo, ou ainda pensando em escrever. Justifica-se esse antecipar-se do jornalista, tanto pelas fortes relações de amizade no meio literário da época, quanto pelas contribuições em forma de notícia, vindas de várias partes do país. A quase totalidade do material divulgado é regada com os mais efusivos elogios, seja em termos de conteúdo, seja de vendagem, seja, ainda, de receptividade do público. A única exceção de 1960 configurou-se num ácido comentário ao jornalista português Manuel Anselmo, redator da revista ―Cadernos de Manuel Anselmo‖, e que enviara alguns exemplares ao colunista – este o denomina ―bajulador de nossa literatura‖ (CONDÉ, 1960d, p. 2), sem, no entanto, entrar em detalhes quanto ao pouco lisonjeiro epíteto. Por outro lado, registramos certo estranhamento na notícia de que ―estará amanhã nas livrarias o anunciadíssimo [grifo nosso] livro de Álvaro Lins, ‗Missão em Portugal‘, que a Editora Civilização Brasileira apresenta num alentadíssimo volume com mais de quinhentas páginas‖ (CONDÉ, 1960f, p. 2). O curioso é que, apesar dos superlativos, José Condé não divulgara sequer uma vez, em 1960, o volume do antigo protetor, colega de 376 jornal e conterrâneo, só passando a fazê-lo a partir desse dia e por mais seis vezes, até o final do ano. Teria Álvaro Lins, ―impulsivo, temperamental e insubmisso‖ (RODRIGUES, 2006, p. 214), homem conhecido pelas suas dificuldades de relacionamento, sonegado informações a Condé a respeito da obra que preparava? Se sim, por que razão faria isso? Se não, o que teria acontecido? A coluna de Condé, apesar de ser formatada, invariavelmente, de um modo a proporcionar uma leitura rápida (porque em pequenos textos) e agradável (porque num estilo leve e objetivo), constituindo-se de uma matéria principal e uma série de pequenas notas, a tornar dinâmico o espaço para o leitor, por vezes se ocupava de um único assunto, desde que se fizesse importante, aos olhos do redator, tendo ocorrido onze vezes em 1960. Eram também divulgados outros órgãos midiáticos literários, como O Jornal de Letras, a revista Leitura, o Anuário Literário Brasileiro, dentre outras, a cada edição lançada. Observa-se, ainda, nesse ano, um envolvimento do jornalista com a campanha política de pelo menos dois colegas: Antonio Olinto, que se candidatou a deputado, não logrando êxito, mas rendendo um livro – O Candidato –, cuja preparação foi divulgada por três vezes na coluna; e o deputado Fernando Ferrari, postulante à vice-presidência da república, na chapa encabeçada pelo então prefeito de São Paulo Adhemar de Barros, e que ficou em terceiro lugar, atrás de Teixeira Lott e Jânio Quadros, este, o eleito. A campanha de Olinto, na coluna, dava-se divulgando eventos literários que este promovia, para se apresentar como candidato, enquanto que a de Ferrari, através das nada menos que doze divulgações do livro-plataforma do político, Mensagem renovadora.

Considerações finais Como podemos observar, a coluna ―Escritores e Livros‖ era uma cobiçada vitrina de divulgação para autores, editores e todos aqueles que circulavam em torno da literatura, tanto no centro cultural do país, o Rio de Janeiro, quanto nas mais diversas regiões, que se mantinham em constante contato com José Condé. Entretanto, mais do que esse espaço noticioso, a coluna ―Escritores e Livros‖ inscreve-se como interessante fonte de registro da dinâmica literária de um determinado tempo e lugar, a exemplo do que comenta Barbosa (2007, p. 73) a respeito dos periódicos brasileiros do século XIX: ―Algumas resenhas e comentários eram (...) fruto da amizade, do patrocínio e, muitas vezes, do pagamento que o autor [ou a editora] fazia para ter seu livro comentado, citado em um jornal‖. Publicidade, como qualquer outro produto que se deseja vender.

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O PROCESSO DE TRANSCULTURAÇÃO COMO PRINCÍPIO DA ORALIDADE EM “BATUQUE”, DE BRUNO DE MENEZES

Edvaldo Santos Pereira127 José Guilherme dos Santos Fernandes128

RESUMO: Este estudo toma como base o poema ―Louvação do Cavaleiro Jorge‖, do livro Batuque, de Bruno de Menezes, publicado em 1931. O poema em questão não constitui uma representação específica da literatura oral, mas um texto escrito que traz em sua construção recursos discursivos característicos da oralidade, o que leva ao objetivo deste trabalho de demonstrar, pela literatura, que o intercâmbio cultural ocorrido no processo de formação de uma identidade brasileira tem como um de seus substratos a expressividade da oralidade africana.Nesse sentido, surge a hipótese de que o processo de transculturação;conceito antropológico proposto por Fernando Ortiz e transposto para a literatura por Ángel Rama; é demonstrado no poema, visto sob o método interpretativo, e caracterizado pela fusão entre a cultura portuguesa e a cultura africana, tendo na oralidade a força de sua expressividade. Assim, sob essa perspectiva surgem complexas transmutações em diversos aspectos culturais, abrangendo também as formas de manifestação das culturas que determinam a identidade cultural de um povo, e, pelo contato e cruzamento intercultural,levam ao surgimento de novas formas culturais, diferenciadas daquelas que lhe deram origem. Assim, o sincretismo religioso, enquanto marca desse processo, é percebido em cada uma das três partes que compõem o poema (Louvação, Canto e Bênção) como expressões que caracterizam a poética da oralidade em escritos literários. Palavras-chave: Transculturação, Oralidade, Identidade cultural. ABSTRACT: This study builds on the poem "Laud Knight George" in the book Batuque, of Bruno de Menezes, published in 1931. The poem in question is not a specific representation of oral literature, but a written text that brings in its construction features characteristic of oral discourse, which leads to the objective of this study of the demonstrate literature cultural exchanges that occurred in the training process a Brazilian identity has as one of its substrates expressiveness of African orality. In this direction, the hypothesis that the process of transculturation; anthropological concept proposed by Ortiz and transposed into literature by Ángel Rama, is shown in the poem, since under the interpretive method, and characterized by the fusion of Portuguese culture and African culture having the force of orality in their expressiveness. Thus, from this perspective emerge complex transmutations in various cultural aspects, covering also the manifestations of cultures that determine the cultural identity of a people, and, by crossing intercultural contact and lead to the emergence of new cultural forms, distinct from those you originated. Thus, religious syncretism, as a mark of this process is realized in each of the three parts that make up the poem (Worship, Song and Blessing) as expressions characterizing the poetics of orality in literary writings. Keywords: Tranculturation, Orality, Cultural identity

Sob as premissas de que os Estudos Culturais são processos culturais vinculados às relações sociais; de que a cultura envolve poder; e que a cultura é um local de diferenças e lutas sociais, o ensaio O que é, afinal, Estudos Culturais?, escrito por Richard Johnson (SILVA,

127 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA, na Linha de Pesquisa dos Estudos Literários (Literatura, Cultura e História) - e-mail: [email protected] 128 Doutor em Letras pela UFPB; Professor Associado da UFPA – Orientador na elaboração deste artigo. 379

2000) coloca em questão a cultura enquanto resultado do desenvolvimento da humanidade para sua própria existência, cuja evolução transita entre a ―consciência‖ e a ―subjetividade‖, e que as práticas culturais se modificam pelas relações entre grupos culturais distintos. Nesse sentido, a linguagem, não somente como forma de comunicação, mas também de expressão artística, está presente em todos os campos de mediação dessas relações. Publicado em 1931, o livro Batuque, de Bruno de Menezes, é uma coletânea de poemas que, como representação etnicocultural, traz em sua composição aspectos de identidade cultural da cidade de Belém do início do século XX, que teve em seu processo de colonização a fusão de três etnias, das quais duas estão representadas no poema Louvação do Cavaleiro Jorge, que enfatiza o sincretismo religioso, como forma de manifestação da religiosidade africana em cultos originariamente católicos, trazidos pelo colonizador europeu. Como introdução ao poema, há um texto no qual é enfatizada a existência do culto religioso em devoção a um mesmo símbolo, como marca do sincretismo que foi estabelecido em decorrência da proibição à expressão religiosa africana, havendo, portanto, a fusão entre São Jorge, santo católico, e Ogum, divindade dos cultos de origem africana: São Jorge foi príncipe da Capadócia. No ano 303, tempo de Deocleciano, morreu martirizado. A igreja católica festeja-o no dia 23 de abril. Na corrente dos xangôs é o grande Ogum, também invocado como Cavaleiro Jorge, havendo muitos dos seus devotos, que o louvam, rezando ladainhas, com cantos sacros e música de atabaques. Este poema tem sido cantado por ocasião dessas celebrações em muitas ladainhas. (MENEZES, 2005, p.59) Na condição de dominado que não podia demonstrar livremente o culto a seus deuses, o africano aprendeu a manifestar sua religiosidade de forma escondida, por trás dos santos de devoção católica, cuja representatividade se assemelhava. Assim, Ogum, o deus guerreiro africano passou a ser cultuado como São Jorge, o cavaleiro guerreiro canonizado. A presença de indícios de oralidade na criação poética de Bruno de Menezes, como as ladainhas, denotam a fusão entre a linguagem oral e a linguagem escrita como formas de expressão que, embora independentes, podem estar interligadas, motivo pelo qual representam aqui o interesse maior deste estudo que objetiva focalizar o fenômeno de transculturação, tendo como foco de observação o poema ―Louvação do Cavaleiro Jorge‖. Essa transculturação, como propôs o cubano Fernando Ortiz, implica na ―perda ou desarraigamento de uma cultura precedente, o que se poderia dizer uma parcial desaculturação, e, além disso, significa a conseguinte criação de novos fenômenos culturais que poderiam ser denominados ‗neoculturação‘‖(RAMA, 2001, p. 259). 380

Como característica discursiva da oralidade,a musicalidade dos versos, que dão a ideia de ladainhas cantadas pelos fiéis, é expressa pela divisão do poema em partes distintas, intituladas Louvação, Canto e Bênção, que sugerem a evolução de uma cerimônia religiosa marcada pelo sincretismo entre o catolicismo; devotado ao cavaleiro guerreiro que se tornou santo; e os cultos africanos em louvor a Oxum; o deus guerreiro que protege os fracos em defesa da lei e da ordem. Afusão dos cultosdenota o intercâmbio cultural organizado a partir da oralidade como forma de invocação de proteção e devoção ao sobrenatural, direcionandoa compreensão de que A fala é a substância ou alimento do poema, mas não é o poema. A diferença entre o poema e essas expressões poéticas reside no seguinte: o primeiro é uma tentativa de transcender o idioma; as expressões poéticas, por sua vez, vivem no mesmo nível ideal da fala e são o resultado do vaivém das palavras na boca do homem. Não são criações, obras. A fala, a linguagem social, se concentra no poema, se articula e levanta. O poema é linguagem erguida. (PAZ, 2012, p.43) Os traços de marcas estilísticasque caracterizam a transculturação ocorrida entre o português e povos de origem africana surgem no poema como forma de disseminação de diversas etnias que habitavam a costa oeste do território africano, trazidas ao Brasil no período colonial, sob a condição de escravos. Assim, na comunicação entre senhores e escravos, a linguagem oral foi a modalidade de comunicação que facilitou as relações intra e interculturais e, embora em graus diferenciados de evolução, o ponto de partida é sempre o mesmo no qual ―o ser humano natural não é escritor ou leitor, mas falante e ouvinte‖(HAVELOCK, 1995, p.27). No início do poema essa modalidade é evidenciada pela louvação ao mártir que foi transformado em santo: ―Cavaleiro Jorge/que mártir morreu/tem lança e espada/com que combateu‖. A exaltação ao mártir que morreu lutando em defesa dos menos favorecidos, como representação religiosa do catolicismo foi associada à figura do deus africano Ogum, que também tem como propósito agir em favor dos fracos e necessitados. Ao considerar a linguagem oral como ponto de partida para o surgimento do poema, há de se considerar também que, durante muito tempo da trajetória da humanidade, a transmissão cultural apoiava-se nas práticas voltadas à oralidadenas quais a cultura africana difundiu-se, sobretudo na América, para onde o negro era trazido como escravo, sendo a linguagem oral o meio de comunicação de maior eficácia, visto que o acesso à escrita era restrito a poucos, no início da colonização, e até meados do século XX, sobretudo na América Latina e África, período no qual a obra de Bruno de Menezes foi publicada; e o poema, embora escrito, ao apresentar traços de oralidade, favoreceria a aproximação entre o poeta e seu público. Assim, ―as relações entre a fala e a escrita não são 381

óbvias nem lineares, pois elas refletem um constante dinamismo fundado no continuum que se manifesta entre essas duas modalidades de uso da língua. Também não se pode postular polaridades estritas e dicotomias estanques (MARCUSCHI, 1999. p.34)‖. Envolvidas em um mesmo processo de comunicação, as expressões orais e a escrita são modalidades de linguagem que se complementam e favorecem as relações interculturais e, ―admitir que um texto, num momento qualquer de sua existência, tenha sido oral é tomar consciência de que um fato histórico não se confunde com a situação de que subsiste a marca escrita, e que jamais aparecerá ‗a nossos olhos‘.‖ (ZHUMTHOR, 1993, p. 35). Observa-se, então, que apesar da singularidade entre cada uma dessas modalidades, em algum momento será possível chegar à indivisibilidade desse processo, como acontece no poema em estudo que, inicia pela louvação, uma característica da oralidade apresentada em cultos religiosos, transcrita pelo poeta em sua composição literária. As duas outras partes que compõem o poema; o Cantoe a Bênção têm como marca de oralidade a presença do outro a quem se dirige o eu lírico para, num primeiro momento exaltar o poder do guerreiro que dominou o dragão, como representação do mau, que pode ser vencido pela fé, cantada nos versos: O Gênio do mal/só tu dominaste/porque meu São Jorge/com crença lutaste. Nesse sentido, FERREIRA129considera que ―não seria demasiado repetir que chamamos Poesia Oral ou Poéticas da Voz àquilo que requer sempre e impreterivelmente a presença do outro. Esteja ou não presente, o outro é uma finalidade, um compromisso.‖ Na última estrofe, a pluralização do eu lírico dá ao poema a amplitude de uma manifestação cultural que congrega toda uma comunidade em torno de um mesmo propósito que é a obtenção da bênção dispensada pelo santo aos seus devotos, observada no final do poema: São Jorge no dê seu manto/nos olhe por vosso bem/São Jorge querido Santo/para sempre e sempre/Amém! Livre de análises mais profundas, durante muito tempo a história da humanidade era contada de uma geração a outra em narrativas que favoreciam a memorização como forma de continuidade cultural que era repassada pela tradição oral, que chegou também à criação poética, cujas expressões ―vivem no mesmo nível da fala e são o resultado do vaivém das palavras na boca dos homens. Não são criações, obras. A fala, a linguagem social, se concentra no poema, se articula e levanta. O poema é linguagem erguida‖ (PAZ, 2012, p. 43). Essa é a marca inicial de uma comunicação em cujos recursos estava garantida

129 Jerusa de Carvalho Pires Ferreira – Pensando poesia oral e transmissão (texto consultado pela internet em 14/04/13, disponível em http://escritablog.blogspot.com.br/2013/04/quando-o-assunto-e- poesia-oral-jerusa.html 382 a perpetuaçãoda singularidade de grupos sociais; uma condição que Walter Benjamin assim definiu: Nada facilita mais a memorização das narrativas que aquela sóbria concisão que as salva da análise psicológica. Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia. (BENJAMIN, 1985, p. 204) O contato intercultural que, segundo Canclini (2008, p. XXVI/XXVII), pelo processo de hibridação ―torna possível que a multiculturalidade evite o que tem segregação e se converta em interculturalidade‖, sempre ocorreu entre diferentes culturas desde o início da história da humanidade, promovendo uma redefinição da transmissão cultural. Vista também como referência para o estudo do poema sob o enfoque da manifestação religiosa nele apresentada, a fusão entre duas diferentes culturas; a do colonizador europeu e a do africano trazido sob a condição de escravo que, sem poder expressar livremente sua religiosidade, fazia os rituais a seus deuses ao mesmo tempo em que o colonizador festejava seus santos, passando assim ―das misturas religiosas a fusões mais complexas de crença‖(idem, p. XXVIII). O domínio do colonizador que impôs sua cultura aos índios, primitivos habitantes da terra, e aos negros vindos da África, é marca da desigualdade das condições sociais. As diferenças culturais, embora evidentes, pareciam absorvidas por índios e negros, demonstrando-se assim a hegemonia da cultura europeia, como é percebida no poema, que tem como tema a religiosidade expressa pelo povo; com a supremacia do catolicismo em detrimento de outros cultos e que caracteriza a aculturação; processo considerado por antropólogos americanos do século XIX; que pela mistura de culturas, dá origem a nova cultura, na qual os traços identitários adquirem novas formas de expressão; exemplo que pode ser observado na mestiçagem brasileira, que se originou da mistura étnica e dos intercâmbios culturais. Surgido do conceito de ―aculturação‖, o termo ―transculturação‖ traz como princípio a abertura aos intercâmbios culturais decorrentes do contato entre diferentes sociedades. Ao reconhecer a limitação do conceito de aculturação, aplicado ao processo de desenvolvimento cultural latino-americano, Fernando Ortiz propôs essa nova denominação considerando-a como a principal condição para a interculturalidade que caracterizou o fenômeno da hibridizaçãoque ocorreu na América, sobretudo nos países latinos. Diferente da aculturação, a transculturação tem como representação mais significativa desse fenômeno o processo de colonização que deu origem às miscigenações e 383 o surgimento de fronteiras culturais nas quais as diferenças étnicas exercem influências culturais, numa complexa relação de reciprocidade que leva a modificações mútuas. Trazida para a literatura pelo escritor uruguaio Ángel Rama, a questão da transculturalidade é ainda vista a partir dos estudos antropológicos propostos por Fernando Ortiz sob a afirmação de que Entendemos que o vocábulo ‗transculturação‘ expressa melhor as diferentes fases do processo de trânsito de uma cultura para outra, porque este não consiste somente em adquirir uma cultura, que é o que em rigor indica o vocábulo anglo-americano ‗aculturação‘, mas que o processo implica também, necessariamente, a perda ou desarraigamento de uma cultura precedente, o que se poderia dizer uma parcial desaculturação, e além disso significa a conseguinte criação de novos fenômenos culturais que poderiam ser denominados ‗neoculturação‘.(RAMA, 2001, p. 259) No poema, o processo transcultural que aparece de forma velada, nada mais é do que a representação de uma condição imposta por um momento histórico no qual o africano, impedido da liberdade, escondia-se por trás dos santos católicos, sem abrir mão de sua religiosidade, o que não caracterizava a passividade de quem aceita essa condição como forma de aproximação da cultura europeia, o que Antonio Candido (2012), num estudo crítico em relação à literatura produzida no Brasil no período colonial afirma: Enquanto se tratava de cantar as mães-pretas, os fiéis pais-joões, as crioulinhas peraltas, ia tudo bem; mas na hora do amor e do heroísmo o ímpeto procurava acomodar-se às representações do preconceito. Assim, os protagonistas de romances e poemas, quando escravos, são ordinariamente mulatos a fim de que o autor possa dar-lhes traços brancos e, deste modo encaixá-los nos padrões da sensibilidade branca. (CANDIDO, 2012,p. 590)

As marcas de uma mestiçagem já se manifestavam em nossa literatura, mas ainda sob uma visão europeizada, visto que nossos escritores pertenciam, em sua grande maioria, a uma elite de origem europeia e ―[O] negro, escravizado, misturado à vida cotidiana em posição de inferioridade, não se podia facilmente elevar a objeto estético, numa literatura ligada ideologicamente à estrutura de castas‖ (CANDIDO, p. 589). Essa condição de subalternidade não significa que o negro, ao esconder seus deuses por trás dos santos do catolicismo, absorvia os princípios e valores dessa religião, mas sim criava alternativas para manifestação de sua religiosidade. No final do século XIX e, sobretudo, com a abolição da escravatura, que no Brasil aconteceu em 1888, o negro e seus descendentes mestiços passaram a reivindicar espaços numa sociedade que antes não os considerava como membros, deixando-os à margem, condição na qual permaneceram, mesmo depois de terem alcançado a liberdade, iniciando-se então uma nova luta pela igualdade de direitos, pois, apesar abolida, a escravidão 384 permanecia na memória como força motriz de um movimento de recuperação da herança africana, escondida sob as cinzas de um longo período negro da história. Nesse contexto, surge Bruno de Menezes, poeta afrodescendente, que buscou na tradição africana a inspiração para as suas criações poéticas publicadas no livro Batuque. Porém, a pureza de uma cultura genuinamente africana já não era possível de ser cantada em seus versos devido à miscigenação que deu origem a um povo híbrido, que demonstrava em suas manifestações culturais uma diversidade de traços de diferentes culturas. Assim, como consequência dessa transculturalidade: A solução intermediária é a mais comum: lançar mão das contribuições da modernidade, revisar à luz delas os conteúdos culturais regionais e com ambas as fontes compor um híbrido que seja capaz de continuar transmitindo a herança recebida. Será uma herança renovada, mas que ainda pode se identificar com o seu passado. (RAMA, 2001,p. 255/256) Na solução proposta por Rama, a renovação da herança cultural consiste, portanto, em reconhecer no presente as identificações com o passado, ciente de que essas identificações são passíveis de adaptações de uma vida presente, na qual Canclini considera que:

Ser culto, inclusive ser culto moderno, implica tanto não vincular-se a um repertório de objetos e mensagens exclusivamente modernos, quanto saber incorporar a arte e a literatura de vanguarda, assim como os avanços tecnológicos, as matrizes tradicionais de privilégio social e distinção simbólica‖ (CANCLINI, 2008, p.74).

A formação cultural que se dá pela transitoriedade entre presente e passado está sob a condição de contínua mudança e, no entrecruzamento de diferentes manifestações culturais, que serviu de base a Fernando Ortiz para o surgimento do conceito de transculturação, estabelece-se um processo de contatos e diálogos entre essas diferenças, não sendo apenas uma assimilação ou adaptação a modelos culturais fixos, mas também um processo no qual existem trocas que ocasionam transformações mútuas. Essa demonstração na cultura moderna, que, nos países latino-americanos reformula conceitos e tradições culturais, reforça também o caráter híbrido desses países, o que fez de Bruno de Menezes um poeta que trouxe em sua obra a mistura de culturas que caracterizam o povo brasileiro, em cuja herança cultural a presença africana é marca constante, sobretudo pela musicalidade de suas representações culturais que marcam a oralidade de culturas que, ainda não tendo domínio dos sinais gráficos de uma linguagem escrita, manifestavam-se pelo som de suas cantigas e pelas tradições repassadas de uma geração a outra.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985 (Obras Escolhidas, v. 1). CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade; tradução Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa; tradução da introdução Gênese Andrade. – 4. Ed. 4. Reimpr. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. – (Ensaios Latino-americanos, 1) CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira – Momentos Decisivos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2012, 13ª edição. HAVELOCK, Eric. A equação oralidade-escritura: uma fórmula para a mente moderna. In: OLSON, David; TORRANCE, Nancy. Cultura e oralidade. Tradução de Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Ática, 1995. p. 17-34. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Análise da conversação. São Paulo: Ática, 5ª edição, 1999. MENEZES, Bruno. Batuque. Belém: Gráfica Sagrada Família, 7ª edição, 2005. PAZ, Octávio. O arco e a lira. Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Casac Naify, 2012. RAMA, Ángel. Literatura e Cultura na América Latina; organização Flávio Aguiar & Sandra Guardini T. Vasconcelos; tradução Raquel la Coste dos Santos, Elza Gasparotto – São Paulo: Edusp, 2001. – (Ensaios latino-Americanos; 6) SILVA, Tomaz Tadeu da, (organizador e tradutor). O que é, afinal, Estudos Culturais? – Belo Horizonte: Autêntica, 2ª edição, 2000 ZHUMTOR, Paul. A Letra e a Voz: a ―literatura‖ medieval. Tradução de Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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A REPRESENTAÇÃO DO POBRE EM DALCÍDIO JURANDIR: A TRAJETÓRIA DE EUTANÁZIO EM CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA

José Elias Pereira Hage130 Prof.ª Dr.ª Marli Tereza Furtado (orientadora)131

Resumo: Em dez romances, publicados entre 1941 e 1978, o escritor paraense Dalcídio Jurandir (1909 – 1979) construiu o ciclo Extremo Norte, no qual intentou revelar o viver Amazônico do ponto de vista de personagens fortes e de heroica humanidade. Em Chove nos campos de Cachoeira, primeira obra do ciclo, nos deparamos com o personagem EUTANÁZIO, que no decorrer do romance se envolve com alguns traços característicos da pobreza amazônica. Dalcídio Jurandir expõe uma realidade de carestia em seu romance. A falta de bens e serviços essenciais e a carência de recursos econômicos são vistas como uma forma de exclusão social, que ganha evidência por conta de uma postura preconceituosa de alguns personagens em relação ao caboclo do interior do estado. Eutanázio se sente marcado pela terrível carência financeira em que vive. A falta de dinheiro repercute nele internamente, criando uma série de conflitos e divagações que o levam a escolhas pessoais que determinam sua desestruturação. A carência financeira reverbera na obra de Dalcídio explicitando também em outros personagens a consequência da pobreza. Em Chove nos campos de Cachoeira em diversos trechos, a pobreza circula Eutanázio e invade a sua intimidade em suas elucubrações internas. Seu corpo tomado por uma doença que se prolifera, contra a qual não consegue (ou não quer) somar forças para lutar, expõe a sua falta de capacidade diante dos fatos da vida. O jogo de aparências em que vive exposto, o deixa ainda mais revoltado com sua condição, visto que, as pessoas têm-no como alguém de posses e muitos o olham com interesses diversos. Esse trabalho pretende estudar essas relações.

Palavras-chave: Chove; Eutanázio; Pobre.

Abstract: In ten novels, published between 1941 and 1978, the writer of Para Dalcídio Jurandir (1909 - 1979) built the cycle Extremo Norte, which brought the live reveal Amazon's point of view of strong characters and heroic humanity. It Chove nos campos de Cachoeira, the first work cycle, we encounter the character EUTANÁZIO, during which the novel engages with various types characteristic of poverty Amazon. Dalcídio Jurandir exposes a reality of famine in his novel. The lack of essential goods and services and the lack of economic resources are viewed as a form of social exclusion, which earns evidence because of a prejudiced stance against the hillbilly in the state. Eutanázio feels terrible marked by lack financial lives. The lack of money affects you internally, creating a series of conflicts and digressions that lead to personal choices that determine its demise. The lack of financial reverberates in the work Dalcídio explaining also other characters in the

130 Mestrando em Estudos Literários na Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected] 131 Professora do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected] 387 consequence of poverty. It Chove nos campos de Cachoeira in several passages, poverty circulates Eutanázio and invades their privacy in their internal ruminations. His body taken by a disease that proliferates, against which you cannot (or will not) join forces to fight exposes their lack of ability on the facts of life. The game appearances in which he lives above, the leaves even more disgusted with his condition, since people have him as one of the many possessions and look with different interests. This work aims to study these relationships.

Keywords: Rains; Eutanázio; Poor.

1. Introdução A palavra ―pobre‖ deriva do latim ―pauper‖, que vem de pau- = ―pequeno‖ e pario = ―dou à luz‖ e originalmente referir-se-ia a terrenos agrícolas ou gado que não produziam o desejado. De acordo com o dicionário Aurélio a palavra é definida como: ―1. Que não tem o necessário à vida; sem dinheiro ou meios. 2. Que denota pobreza. 3. Fig. Pouco produtivo. 4. Fig. Pouco dotado. 5. Pessoa pobre. 6. Mendigo, pedinte‖. (FERREIRA, 2001. p. 541) A pobreza causa impacto e é determinada por fatores externos ao ser humano, impulsionando o leitor a analisá-la a fim de entender o motivo do estado. Pode ser entendida em vários sentidos: carência de bens e serviços essenciais, como alimentação, vestuário e alojamento; carência de recursos econômicos; e a carência social, que trata da exclusão social, a dependência e a incapacidade de participar da sociedade. Apesar de a pobreza ser vista em grandes proporções nos países subdesenvolvidos, ela existe em todas as regiões do mundo. Em países desenvolvidos ela se manifesta com a existência de subúrbios, abrigos e favelas. Quando saímos do macrocosmo mundial e trazemos a visão para o Brasil, essas diferenças são notadas no que dizem respeito às áreas industrializadas e às áreas rurais, como também nos grandes centros urbanos e nas periferias que os circundam.

Com o incrível progresso industrial aumentamos o conforto até alcançar níveis nunca sonhados, mas excluímos dele as grandes massas que condenamos à miséria; em certos países, como o Brasil, quanto mais cresce a riqueza, mais aumenta a péssima distribuição dos bens. Portanto, podemos dizer que os meios que permitem o progresso podem provocar a degradação da maioria. (CANDIDO, 2004. p. 169).

Diante desse quadro, é evidente que essa projeção social será refletida na literatura produzida no país. Qual é então o enfoque dado para a pobreza na literatura brasileira? Mais especificamente: qual o tratamento dispensado para a pobreza na literatura produzida sobre a região norte do Brasil? 388

2. A presença do pobre na literatura ocidental Historicamente foi a partir do Romantismo que começou a surgir um romance social voltado para a realidade do pobre. Desse momento em diante é que o tratamento dispensado a essa camada da população recebeu a devida dignidade. Com o Naturalismo houve uma expansão desse quadro, visto que, passou para o eixo central das obras uma faixa da população, que por muito tempo foi tão discriminada: operários, prostitutas, desvalidos e tantas outras categorias consequentes da miséria, fruto da espoliação econômica.

A partir do período romântico a narrativa desenvolveu cada vez mais o lado social, como aconteceu no Naturalismo, que timbrou em tomar como personagens centrais o operário, o camponês, o pequeno artesão, o desvalido, a prostituta, o discriminado em geral. Na França, Émile Zola conseguiu fazer uma verdadeira epopeia do povo oprimido e explorado, em vários livros da série dos Rougon-Macquart, retratando as consequências da miséria, da promiscuidade, da espoliação econômica, o que fez dele um inspirador de atitudes e ideias políticas. (CANDIDO, 2004. p. 184)

No Brasil o Naturalismo também se destacou nesse aspecto, e evidenciou esses traços sociais, no entanto, foi na década de 1930 que se notabilizou a presença em destaque desses personagens advindos do povo, com todas as suas problemáticas. Foi a partir desse momento que o tratamento dado ao pobre na literatura ganhou em intensidade. A crítica corrosiva tomou o lugar da simples denúncia retórica e acompanhada de um radicalismo generalizado incentivou os ânimos alterados, provocando a exposição desmedida das mazelas sociais de forma explícita ou implícita. Muitos autores empenharam-se em denunciar os problemas do país: Jorge Amado, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e tantos outros esquecidos, que contribuíram para expor a miséria e a exploração econômica.

Assim, o pobre entra de fato e de vez na literatura como tema importante, tratado com dignidade, não mais como delinquente, personagem cômico ou pitoresco. Enquanto de um lado o operário começava a se organizar para a grande luta secular na defesa dos seus direitos ao mínimo necessário, de outro lado os escritores começavam a perceber a realidade desses direitos, iniciando pela narrativa da sua vida, suas quedas, seus triunfos, sua realidade desconhecida pelas classes bem aquinhoadas. (CANDIDO, 2004. p. 183).

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As mazelas sociais vividas pelo brasileiro não têm a mesma configuração do Norte ao Sul do país, então claro está que a representação literária vai se manifestar de maneira diferente nos diversos pontos do território. O Norte brasileiro possui uma representação muito peculiar dessa realidade. É ainda a luta pela superação entre o querer e o poder, uma impossibilidade de aceitação de uma realidade limitada, mas ainda assim, é uma forma diferente de perceber essa realidade. Sim, essa representação existe. Em muitos casos como coadjuvante de um eixo central, fundamental como análise de paradoxo de realidades, mas também como foco principal de enredos. Em alguns casos essa representação não tem um compromisso ideológico, é exposta apenas como paisagem humana, mas noutros casos está no centro da ficção.

3. O ciclo Extremo Norte Em dez romances, publicados entre 1941 e 1978, o escritor paraense Dalcídio Jurandir (1909 – 1979) construiu o ciclo Extremo Norte, no qual ―pretendeu revelar o que chamava de uma Amazônia de forte e heroica humanidade, a Amazônia de uma aristocracia de pé no chão‖ (FURTADO, 2012). Em Chove nos campos de Cachoeira, primeira obra do ciclo, nos deparamos com o personagem EUTANÁZIO, ele mesmo um pobre, que no decorrer do romance se envolve com outros traços característicos da pobreza amazônica. O próprio personagem digladia-se internamente em várias situações pela falta de dinheiro. Dalcídio Jurandir refrata a realidade da carência das coisas em seu romance. Existe a carência de bens e serviços essenciais; a carência de recursos econômicos e a exclusão social, que é evidenciada pela postura preconceituosa de alguns personagens em relação ao caboclo do interior do estado. ―É o diabo ter a vida marcada pela horrível falta de dinheiro!‖ (JURANDIR, 1997. p. 43). Essa exclamação repercute dentro do personagem Eutanázio e reverbera na obra de Dalcídio que explicita também em outros personagens as consequências da pobreza em várias situações. Existe uma inconformação diante da situação de pobreza, que gera desde a indisposição com o lugar que se vive até a revolta com a própria situação socioeconômica. Em Chove nos campos de Cachoeira em diversos trechos, tudo se passa como se só houvesse pobreza para Eutanázio, visualizadas ao seu redor, e em suas elucubrações internas, passando por seu corpo tomado por uma doença que se prolifera e que amplia a sua condição de incapacidade diante da vida, contrapondo o olhar das pessoas, que em 390 diversas circunstâncias têm-no como alguém de posses, o que possibilita outra realidade, ligada a um jogo de aparências, com os mais diferentes intuitos. É possível observar em várias situações no romance uma tomada de posição do autor em relação aos pobres, desmascarando uma sociedade que alimenta a exclusão e que só enxerga algum valor no sofrimento do povo oprimido apenas como uma forma de se prevenir da mesma desgraça, e esse posicionamento tem um propósito claro, visto que, não existe tomada de posição sem algum tipo de intenção. ―Não há, nem pode haver enunciados neutros. Todo enunciado emerge sempre e necessariamente num contexto cultural saturado de significados e valores e é sempre um ato responsivo, isto é, uma tomada de posição neste contexto‖ (FARACO, 2009. p. 25), portanto como todo texto tem um posicionamento de valor com relação à realidade a que se refere, é natural que o autor criador refrate na obra o seu posicionamento, já que a mesma não é um simples espelho da realidade, mas um conjunto de eventos direcionados por ele. O universo de Dalcídio está, portanto, na luta de situações opostas que envolvem o desejo de algo sempre limitado pela impossibilidade cerceadora da pobreza, que faz o ambiente em diversas situações chegar a ser claustrofóbico, e cria relações tensas entre Eutanázio e outros personagens, o que acaba por conduzi-lo a digressões internas quase intermináveis.

(...) mas como comprar os charutos de Raquel? Dinheiro não tem. Seria bom bater na porta de Felícia e lhe pedir dois mil-réis. Ela devia ficar sumida na sombra do crucifixo e os arranha-céus avançariam sobre ele. Não tem dinheiro. Sua vida foi sempre marcada por esse epitáfio: NÃO TEM DINHEIRO. (JURANDIR, 1997. p. 43)

Eutanázio encontra-se envolvido em relações que o tempo todo o colocam diante do seu estado degradante, de ausência de condições para realizar o que deseja e da presença crescente da sua doença. Por meio dele em várias situações na obra é possível perceber uma reflexão, sobre as consequências da pobreza. Na casa do seu Cristóvão, o desejo das mulheres pelo casamento como forma de mudança de vida é um sintoma evidente da inconformidade com a própria situação, bem como o interesse de alguns personagens em manter Eutanázio sempre por perto para conseguir as mais diversas coisas, desde tabaco até dinheiro emprestado. Ele mesmo se prevalece dessa espécie de autoridade para continuar próximo de Irene

Raquel lhe pedira charutos. É preciso de qualquer modo dar sempre presente na casa de seu Cristóvão. Pelo menos manteria alguma 391

autoridade moral. A sua pressão moral em cima das velhas, das moças. Irene mesmo não podia fazer uma hostilidade contínua porque era tolhida pelo desejo de umas chinelas, duns sapatos, um corte, que sua mãe arranjaria por intermédio de Eutanázio. (JURANDIR, 1997. p. 42)

4. A vida marcada pela ausência do dinheiro O romance inicia com o segundo protagonista da obra Alfredo voltando para casa, vindo dos campos queimados de Cachoeira, no final da tarde, início da noite. No trajeto até seu chalé, o narrador nos apresenta algumas características da localidade, expõe as condições socioeconômicas da família de Alfredo e os personagens com os quais ele mora: D. Amélia e Major Alberto, seus pais, Mariinha, sua irmã e Eutanázio, seu meio-irmão, que tem uma doença, ―misteriosa moléstia essa que parecia invadir todo o chalé‖ (JURANDIR, 1997. p. 16). Doente, Eutanázio sente-se imundo, como se fosse um excremento. O seu estado de saúde o faz refletir sobre sua existência e questionar as dificuldades em que vive. Não aceita nenhum tipo de ajuda e nem se permite conversar com ninguém a respeito de seu estado. ―– vão ter pena do diabo mas não dele. Deixem ele com a sua doença!‖ (JURANDIR, 1997. p. 25). A enfermidade foi descoberta quando sua madrasta encontrou sua roupa suja no banheiro. Imediatamente contou ao pai de Eutanázio que questionou o estado deste, sempre fazendo alusão a questões financeiras.

- Como diabo você anda por aqui com essa imundície? Ficas podre em vida. Quem depois aguenta com as despesas sou eu, o besta. Por que não ficou se tratando em Belém? Foi a bem dizer morto e volta com essa... Por que não se tratou lá? Só um insensato. Você não se emenda. O besta que pague. O pai da tropa. O besta que esprema o bolso. (JURANDIR, 1997. p. 24)

Eutanázio acha que adquiriu a doença de Felícia ao se deitar com ela, num ímpeto de desespero ao sair da casa de seu Cristóvão atormentado pela grosseria de Irene. Felícia é descrita pelo narrador com detalhes que evidenciam a pobreza de sua condição, reforçando assim, o núcleo de personagens indigentes que rodeiam e caracterizam as relações de Eutanázio: ―Uma mulher que cheirava a poeira, a poeira molhada. Cheirava a terra depois da chuva. A fome. Fedia a fome. Estava descalça, gripada, assoando o nariz, no fundo do quartinho (...)‖. (JURANDIR, 1997. p. 25) o ambiente inóspito e úmido também reforça a sensação de sujeira, descaso e pobreza: ―Um pote d‘água destampado, um caneco jogado no chão, um pedaço de esteira (...) dentro do quartinho escuro e sujo‖. (JURANDIR, 1997. p. 25) 392

Na noite em que acredita ter adquirido a doença de Felícia, concluiu que havia ido ali somente para isso e desejou sair pelo mundo contaminando todas as mulheres que pudesse, ―a todas as mulheres aristocráticas do mundo‖. (JURANDIR, 1997. p. 27). O destaque para aristocráticas serve para evidenciar o seu estado de pobreza, pois se sentiu mais miserável do que nunca. Nesse trecho é possível perceber um posicionamento do personagem quanto à realidade em que vive, um posicionamento questionador em relação à divisão de classes sociais, que aumenta o abismo de sua condição. Na mesma digressão, logo depois, Eutanázio questiona inclusive os poderes de Deus para acabar com a fome de Felícia: ―por que Cristo não transformou a pequena cruz em pão para Felícia?‖ (JURANDIR, 1997. p. 27). É possível perceber uma inconformação com o poder e com a realidade social, por conta da situação de indigência que rodeia o personagem. O questionamento dos valores religiosos, reflete um olhar singular do autor, que será explorado noutras obras do ciclo. Mas é na casa do seu Cristóvão que Eutanázio se depara com os maiores problemas de sua condição, pois se vê o tempo todo diante de situações que necessitam de dinheiro. Alguns personagens o têm como bem de vida e por conta disso vivem a pedir coisas, como tabaco e até mesmo dinheiro emprestado. Para não desapontar a ninguém, Eutanázio se põe a fazer até o que não deve, como pedir fiado na mercearia do Ezequias, onde já tem uma conta grande e até mesmo se apropriar do dinheiro dos outros, como é o caso dos trinta mil-réis de Felícia. Tudo para poder continuar frequentando a casa de seu Cristóvão para ver Irene.

Ia pedir fiado no Ezequias. Tem já uma conta grande. Mas Raquel não tem charutos para limpar os dentes, mascar um bocadinho. Tem de dar um pulo no Ezequias. Ezequias fará uma cara franzida inevitavelmente. As mãos sem vontade de Ezequias tirarão da caixa os charutos...(...) Tem de apressar a marcha, comprar os charutos de Raquel e chegar a tempo na casa de seu Cristóvão. (JURANDIR, 1997. p. 43).

5. O riso de Irene Irene motiva no personagem um sentimento ambíguo: de raiva e amor. A relação com ela evidenciava ainda mais a sua condição de desfavorecido. Em uma situação levou pra ela presentes que comprou em Belém, mimos esses desprezados pela amada, que os qualificou como porcaria, desdenhando e rindo de tudo. A desilusão provocou nessa mesma noite, o encontro com Felícia, da qual contraiu a doença, que o levou à morte. O desdém de Irene com os presentes que comprou com tanto carinho o deixou completamente desnorteado e revoltado. 393

D. Tomázia recebera os presentes que ele trouxera de Belém para Irene. Irene apareceu e começou a rir dos presentes. O par de meias era vagabundo. A pulseira de se comprar na doca do Ver-o-Peso para as caboclinhas do Puca que nunca usaram pulseiras. Os sapatos parecendo de segunda mão. A fazenda do corte era duma cor para enganar babaquara. E assim Irene foi rindo e a mãe ralhando, até que ela num safanão jogou com os troços no soalho (...). (JURANDIR, 1997. p. 34)

Ardendo em febre numa rede, reduzido à pele e osso, a morte chegou para Eutanázio somente após a visita de Irene, seu corpo se negava ao descanso eterno, sem vê- la pela última vez. Irene que foi a grande responsável pelas suas caminhadas noturnas, pela sua entrega aos males de Felícia e por essa necessidade infindável de degradar-se em vida. Viveu para amar aquele riso. Irene chegou bela e com um sorriso manso. Uma nova Irene. Grávida e com um olhar diferente. Não reconheceu mais aquela a quem dedicou tudo o que sentia, aquela por quem foi capaz de furtar trinta mil-réis, aquela que só com sua presença evidenciava o estado de pobreza em que Eutanázio sempre viveu.

Não, não era a mesma. Não era a mesma que o levava para as caminhadas noturnas, para Felícia, para aquele fundo de rede na saleta, para aquela insondável necessidade de degradação. Irene era outra. Seria capaz de amar essa desconhecida? De cair pelos caminhos, de furtar trinta mil-réis de Felícia, de morrer afinal, por uma Irene assim sem o riso, o olhar, a maldade da outra? (JURANDIR, 1997. p. 286)

No seu leito de morte fechou os olhos em busca da Irene verdadeira. Cansou de viver da aparência de ter algo para alguns. Cansou de viver uma vida marcada por não conseguir as coisas pela falta de dinheiro. A pobreza que sempre o rodeou e estava entranhada em seu corpo provocou uma existência desvalida, desesperançada e privou-o de viver o amor. Eutanázio refletia em si a realidade que o circulava: pobre, doente, ignorada e sem amor.

3. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVIN, Clara de Andrade. Representações da pobreza e da riqueza em Guimarães Rosa. In: Schwarz, Roberto (org.). Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 170- 174. 394

BOLLE, Willi. A escrita da história de Marajó, em Dalcídio Jurandir. In: Novos cadernos Naea. Belém: UFPA, 2011. Vol. 14, n.1. CANDIDO, Antonio. O Direito à Literatura. In: Vários Escritos. Rio de Janeiro: Duas Cidades, 2004. CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola editorial, 2009. FARIAS, Fernando Jorge Santos. Representação de Educação na Amazônia em Dalcídio Jurandir: (des) caminhos do personagem Alfredo em busca da educação escolar. Belém: UEPA, 2009. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI Escolar: O minidicionário da Língua portuguesa. 4ª ed. rev. Ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. FURTADO, Marlí Tereza. Dalcídio Jurandir e o realismo socialista: primeiras investigações. XI Congresso Internacional da ABRALIC: 2008. FURTADO, Marlí Tereza. Dalcídio Jurandir jornalista e romancista: um intérprete dos pobres na periferia do favor. Congresso Internacional da ABRALIC: 2012. GALVÃO, Walnice Nogueira. Uma Ausência. In Schwarz, Roberto (org.). Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 51-53. JURANDIR, Dalcídio. Chove nos campos de Cachoeira. Belém: Cejup/Secult, 1997. MALIGO, Pedro. Ruínas idílicas: a realidade amazônica de Dalcídio Jurandir. In: Revista da USP: 1992. NUNES, Paulo. Dalcídio Jurandir e o romance-rio da Amazônia. In: dalcidiojurandir.com.br, 2012. PANTOJA, Letícia souto. Representações acerca da escola pública e das práticas de escolarização nas obras literárias de Dalcidio Jurandir: tecendo análises para se compreender as relações de poder e de classes em Belém-pa. Campinas: Revista HISTEDBR On-line, 2011. SCHWARZ, Roberto. Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983.

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UM JOGO DE MEMÓRIAS: A CULTURA AFRO-BRASILEIRA NA LITERATURA INFANTOJUVENIL

Elisandra Lorenzoni Leiria132

Prof. Dra. Rosane Maria Cardoso (Orientador) 133

Resumo: A dez anos da Lei 10.639, o debate sobre a inclusão étnico-racial ainda é um desafio para a escola, espaço socialmente delegado para atender à formação do leitor criança. Pensar sobre a cultura afro-brasileira na literatura infantojuvenil pressupõe trazer à tona o diálogo entre a natureza artística e simbólica do texto literário e as diretrizes estabelecidas pela Lei, seus entraves e suas possibilidades na formação de leitores e de uma sociedade mais compreensiva diante da diversidade. Pretendemos refletir, neste texto, sobre a obra de literatura infantojuvenil de temática étnico-racial O menino que comia lagartos, de de Mercè López, oferecida pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). Nosso foco de estudo é a narrativa sobre as origens afro-brasileiras. Neste ponto, analisamos a construção das personagens e o papel da memória como forma de reconhecimento da multiplicidade étnica do país. Ainda resta um longo caminho para a ruptura do preconceito e pairam muitas dúvidas sobre o quanto o texto literário poderá influenciar nessa mudança. Por outro lado, a Lei oferece a oportunidade de democratizar a discussão sobre a diversidade étnica no Brasil desde a infância, oferecendo ao leitor de todas as origens novas formas de ver o outro.

Palavras-chave: Narrativa infantojuvenil contemporânea; Memória; Cultura afro-brasileira

Abstract: The debate on ethnic and racial inclusion is still a challenge for the school after tem years of promulgation of the law 10.639. To think about Afro-Brazilian culture, in the juvenile literature, presupposes bringing up the dialogue between the artistic and the symbolic nature of the literary text and the directives established by Law; its drawbacks and possibilities in the formation of readers and a more understanding view on diversity. We intend to reflect, in this text, upon the work of juvenile literature called "O Menino Que Comia Lagartos" (The Boy Who Ate Lizards), written by Mercè López offered by Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). Our focus of study is the narrative about the Afro-Brazilian origins. At this point, we analyze the construction of the characters and the role of memory in the recognition of the country's ethnic multiplicity. There is still a long way to overcome prejudice and there are a lot of doubts about how literary texts can influence this change. On the other hand, the Law provides an opportunity to democratize the discussion on ethnic diversity in Brazil since childhood, offering readers of all backgrounds new ways to perceive the other human beings. Keywords: Contemporary juvenile narrative; Memory; Afro-Brazilian culture

132 Mestranda em Letras - Leitura e Cognição na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). E-mail: [email protected] 133 Professor do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). E-mail: [email protected]

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1. Introdução

Refletir sobre a inclusão da cultura afro-brasileira na literatura infantojuvenil pressupõe trazer à tona o diálogo entre a natureza artística e simbólica do texto literário e as políticas públicas que valorizam a história e a cultura dos povos negros e reconhecem a diversidade étnico-racial. Configura-se, portanto, um trabalho bastante complexo, já que envolve diversos aspectos sociais e legais com o processo estético próprio da literatura. É perceptível nas propostas literárias disponíveis em nossas livrarias e comprovado por pesquisas, o crescimento significativo da inclusão da temática étnico-racial e de personagens negras com real participação nas histórias na literatura destinada ao público infantil e juvenil. Esse aumento considerável pode ser entendido como resposta à Lei 10.639/2003 e à Resolução n. 1/ 2004, do Conselho Nacional de Educação, que determinam o ensino obrigatório da história e cultura afro-brasileira nos currículos da educação básica. A literatura infantojuvenil que, no Brasil, já vinha sendo marcada por uma abertura ao social e pela tematização do contemporâneo desde a década de 1970 (CADEMARTORI, 1986), incorpora de uma maneira intensa as demandas dos movimentos sociais e as exigências da lei, buscando atender os princípios de uma educação multicultural e democrática como consta no edital que seleciona as obras inscritas no Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE):

Serão selecionadas obras com temáticas diversificadas, de diferentes contextos sociais, culturais e históricos. [...] Não serão selecionadas obras que apresentem didatismos, moralismos, preconceitos, estereótipos ou discriminações de qualquer ordem (BRASIL, 2007, p.15).

Começa, então, uma grande produção de textos que oferecem histórias sobre a origem afro-brasileira, que apresentam personagens negras de maneira positiva, promovendo a identificação com os leitores e que tratam de maneira direta a questão da desigualdade racial, chamando a atenção para suas consequências na elaboração da identidade dos sujeitos. Contudo, segundo Hunt (2010), é preciso estar atentos ao acervo de livros que se disponibiliza para as crianças, pois este é permeado por uma cultura de massa que ganha a mídia e que reflete o universo ideológico de um grupo tendencioso à banalização de valores e conteúdos, sem o cuidado com a dimensão estética. O autor ressalta a importância de estarmos atento às escolhas das obras, pois colocamos, por meio delas, pontos de vista ideológicos em discussão. 397

Assim, pretendemos, nesse breve estudo, discutir questões relacionadas à inclusão da cultura afro-brasileira na literatura infantojuvenil a partir do texto O menino que comia lagartos, (2011), de Mercè López, analisando a maneira como o texto valoriza o que antes era invisibilizado pelo descaso social e político, e em que medida propicia o preenchimento de lacunas que possam reivindicar a diferença, denunciar e desconstruir os estereótipos.

2. O menino que comia lagartos: memória e cultura afro-brasileira

Catalogado como ficção infantil e infantojuvenil, o livro O menino que comia lagartos134 (2011), de Mercè López, ilustrado pela própria autora, apresenta uma narrativa ambientada no oeste da África e proporciona o conhecimento da cultura local, herdada do antigo Império Maliense e que sobrevive à colonização e à absorção das religiões. A autora destaca na construção estética a importância de preservar, por meio da música, do espetáculo, das festas tradicionais e da espiritualidade, alguns traços da cultura africana, tão valorizada por seu povo e, muitas vezes, esquecida, desconhecida ou desprezada pelo olhar estranho. A história é conduzida pelo protagonista Tikorô, um menino conhecido no seu povoado por zanzar pelas ruas de estilingue em punho caçando lagartos. É um garoto bonito, esperto, sensível e com semblante alegre e tranquilo. Certa manhã, encontrou um imenso lagarto branco, triste e debulhado em lágrimas. Sentindo pena do lagarto, que perdeu suas cores e sua lembrança, o menino é tomado pelos problemas do animal e busca, primeiramente, a ajuda do ―marabuto‖, sacerdote muçulmano. Este, por meio de um ritual mágico, decreta: ―seu lagarto se esqueceu de onde veio, quem é e para onde vai. Com as lembranças, também suas cores se foram, como ocorreu com os filhos da África...‖ (LÓPEZ, 2011). Então, guiados por antigos símbolos e tradições africanas, Tirokô e o animal partem numa longa jornada contra o esquecimento em busca das lembranças de ―sua terra, de seu tempo, de sua vida e morte e de sua alegria de viver‖ (LÓPEZ, 2011)135. Logo no início da obra, o narrador, em primeira pessoa, estabelece uma relação com o leitor, contando como recebeu a história que será apresentada. ―Recebi de Sidiki, irmãozinho de Alima, a história que você vai ler. Foi Buba quem lhe contou.... e ele mesmo a ouviu da boca da vizinha, no salão de beleza de Fatu.‖ (LÓPEZ, 2011). Essa passagem da narrativa pode desvelar a importância da tradição oral, uma das características

134 A obra foi traduzida por Pádua Fernandes e faz parte do acervo do MEC 2012, enviado pelo Programa Nacional Biblioteca Escolar (PNBE), para as bibliotecas das escolas públicas brasileiras.. 135 Os livros infantis, em sua maioria, não apresentam número de páginas. Contudo, os trechos citados podem ser facilmente recuperados pelo leitor ao manusear a obra. 398 fundamentais da cultura africana. Mesmo as civilizações africanas que dominam a escrita consideram o testemunho transmitido oralmente e as histórias contadas como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais. A oralidade é uma questão de atitude diante da vida, e é possível perceber a valorização desse elemento em várias passagens do texto. Ele aparece, principalmente, nas soluções que vão sendo apresentadas na narrativa para curar o lagarto e, geralmente, apontam para a transmissão de conhecimentos relacionados a costumes e tradições africanas, por meio de histórias orais, ao longo dos anos. No final da obra, também são abordadas questões relacionadas à importância de preservar e dar continuidade à tradição oral pelas gerações posteriores. Isso se percebe quando o lagarto, em agradecimento à ajuda do menino, concede a ele e a todos os que contarem a história, o dom de sempre voltarem a sorrir após uma provação. A narrativa, portanto, pode representar uma possibilidade de perpetuação de elementos importantes da cultura africana para seus descendentes espalhados por todas as partes do mundo, principalmente no Brasil. Com relação à questão da herança cultural, Cunha Júnior (2010) sustenta que o conceito de ancestralidade está profundamente enraizado no modo pelo qual o povo africano interpreta a realidade. O autor salienta que:

A tradição africana estabelece a sua própria lógica no princípio da ancestralidade. Nesse sentido, o que importa é a história de um povo, aquilo que foi construído ao longo do tempo e não a afirmação egoísta do eu. O eu não é nada sem a tradição porque está vinculado ao seu passado, à memória daqueles que vieram antes e regulam a vida de seus descendentes distribuindo sua força e harmonia. Portanto, podemos dizer que o conceito de ancestralidade está diretamente ligado ao conceito de identidade, um não existe sem o outro (JÚNIOR CUNHA, 2010, p. 28).

Segundo Cunha, a identidade de um povo está presente na memória individual e coletiva dos indivíduos. Ela está inscrita nas artes, na música, na literatura, na arquitetura, na mídia, na tradição oral, no folclore, pelos quais é transmitida. Assim, uma das leituras possíveis da obra O menino que comia lagartos é que, em meio à magia e ao mundo encantador, a criança é convidada a participar da busca de Tikorô e do lagarto pela memória e pelas cores do animal. E, envolvida nessa aventura, a criança tem a oportunidade de conhecer povoados e símbolos da cultura africana que podem levá-la a refletir sobre o valor da tradição cultural e a reconhecer elementos que são apenas diferentes de outros povos e costumes, mas jamais inferiores ou menos válidos que os demais. 399

Por meio de um cuidadoso processo estético de positivação do legado e dos costumes africanos, são apresentados alguns símbolos que representam a cultura africana como o ―grigri‖ (amuleto africano), os rituais dos mascarados (homens sábios que conhecem a língua das máscaras e são os guardiões de todos os mistérios), a receita e o ritual dos três chás (o primeiro, amargo como a vida, o segundo, doce como o amor e o terceiro, suave como a morte) e as danças em ritmo hipnótico de tambores. Para a cultura africana, dançar não é apenas se divertir, é uma maneira de falar com o corpo e demonstrar sentimentos. Na narrativa, o lagarto, ao recuperar quase todas as cores de seu corpo, foi tomado por uma vontade irresistível de cantar e dançar. Somente quando ―a música e as palavras foram penetrando todo o corpo do animal, ele enfim parou de chorar‖, e recuperou suas lembranças, sua alegria de viver e, consequentemente, as suas cores. O personagem-animal, quando branco e triste, contrasta com o colorido vibrante dos ambientes e das roupas africanas e com a satisfação e alegria estampadas por largos sorrisos nos rostos de todos os personagens negros. Além disso, pode ser entendido como uma metáfora do esquecimento e da falta de reconhecimento e valorização dos ancestrais e da cultura de um povo para a construção de identidade e da harmonia da vida. O lagarto havia esquecido quem era e por esse motivo encontrava-se ―tão pálido, que não dava apenas medo, mas também pena‖ (LÓPEZ, 2011). Aos poucos, vai reconhecendo sua cultura e recuperando o legado deixado pelos que vieram antes e, assim, consegue regular novamente sua vida e recuperar sua força. O animal sem cores também pode ser entendido como a representação daqueles que esquecem experiências das origens africanas como dançar, cuidar da espiritualidade, buscar seu tempo, o contato com a natureza e com a terra, tão importantes para se atingir o equilíbrio necessário da existência, Conforme Paiva (2008, p. 47), o uso de estratégia metafórica na literatura infantil oferece à criança um amplo grau de abertura, conduzindo-a ao mundo complexo, para que ela tente, interiormente, justificar acontecimentos que ainda não compreende totalmente. Ainda que muitos outros sentidos possam ser desvelados da obra O menino que comia lagartos, pois os significados estão sempre se reconstruindo, é possível perceber que a memória exerce um papel importante na narrativa, e é valorizada em praticamente todo o processo estético da obra. O protagonista, mesmo sendo criança, é chamado de ―Tikorô, o Velho‖, para lembrar seu avô. A representação dos ―Griôs‖, poetas, músicos e cantores andarilhos africanos que guardam a memória e as tradições de uma comunidade é outro elemento apresentado na narrativa que pode remeter ao vínculo entre a memória e valorização dos antepassados. 400

Para Elizabeth Jelin (2012) a memória é um elemento constitutivo da identidade individual ou coletiva, na medida em que é reconhecida como um fator essencial do sentimento de continuidade e coerência do sujeito ao constituir a si mesmo e aos outros. Para a autora, o que sustenta a identidade é o fenômeno de poder recordar e rememorar algo do passado, considerando que núcleo de qualquer identidade individual ou coletiva está ligado a um sentido de permanência ao longo do tempo e do espaço. Contudo, Jelin destaca que, nesta relação de mútua constituição da memória e da identidade, é preciso refletir sobre os marcos sociais instituídos pelas tradições que são incorporados por gerações sucessivas e norteiam a elaboração das memórias, definindo os limites da identidade do sujeito individual ou coletivo. A autora sustenta que para poder transmitir os sentidos do passado é necessário que: ―primero que existan las bases para um proceso de identificación, para una ampliación intergeneracional del nosotros/as. Segundo, dejar abierta la posibilidad de que quienes ―reciben‖ le den su proprio sentido, reinterpreten y resignifiquen – y no repitan o memoricen‖ (JELIN, 2012, p. 151). Apoiando-se na definição de Jean-Yves Tadié e Marc Tadié (1999), Zilberman (2008), define a memória como parte fundamental da constituição do indivíduo, sendo o elo entre o que fomos e o que somos, além de ser responsável por nossa personalidade e identidade pessoal. A autora enfatiza a narrativa como um dos elementos responsáveis pela preservação da memória, pois institui o espaço em que a rememoração se manifesta em forma de relato retrospectivo. Desse modo, a obra em estudo, proporciona a reflexão sobre o valor dos antepassados e apresenta uma possibilidade de reconstrução das memórias. A partir disso, pode contribuir para o questionamento de certos preconceitos culturais ainda presentes em nossa sociedade e sugerir que os saberes e sentidos do passado podem ser uma questão aberta para a multiplicidade de atores e para a diversidade de experiências e significados do passado expressos pela memória. Nessa linha de pensamento, avulta a importância da real participação de personagens negras e de elementos da cultura afro-brasileira na literatura infantojuvenil, pois acreditamos que a identificação com narrativas próximas de seus costumes, com personagens que descrevem alegrias e problemáticas semelhantes às suas, possa levar a criança a reflexões próprias sobre o seu papel na sociedade, contribuir para a afirmação de uma identidade étnica e para o reconhecimento e respeito da diversidade. Conforme Cardoso (2011), realidades ficcionais que permitam à criança negra reconhecer-se como protagonista e como parte desse mundo mágico, podem contribuir para sua autoestima e para seu reconhecimento no mundo. Além disso, para a criança não negra, pode 401 representar uma oportunidade de formação cultural pelo reconhecimento das diferenças étnicas.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O enfrentamento de questões fundamentais da existência humana atinge as crianças com intensidade semelhante à que atinge os adultos. Por trás de nossa, ainda, pretensa proteção, as crianças se confrontam em seu cotidiano com temas como morte, medo, separação, abandono, sexualidade, diversidade e preconceito. Não podemos mais subestimar a capacidade das crianças de lidar com a realidade e com a presença desses temas na literatura. Ao reconhecer que, historicamente, a escola tem sido considerada como um dos espaços para a democratização social, acreditamos que a proposta da lei 10.639/2003 de inclusão da temática étnico-racial por meio da literatura pode proporcionar ao leitor criança o acesso de textos literários que valorizam a diversidade cultural pela seleção mais criteriosa realizada pelo PNBE das obras destinadas para as escolas públicas brasileiras. Desse modo, pode ocorrer a democratização da leitura de obras como O menino que comia lagartos e outras que valorizam a etnia africana e que estimulam o imaginário e a sensibilidade da criança. Nessa obra, encontramos a ludicidade e a fantasia, elementos importantes para a formação do leitor, além da busca da afirmação da identidade negra a partir de uma narrativa de positivação da imagem física e intelectual e do resgate das origens. Por meio do tema da memória, é possível que o leitor reflita sobre a multiplicidade de sentidos do passado e sobre a importância de valorizar os que vieram antes de nós e deixaram seu legado. A abordagem do tema também pode proporcionar o afastamento de posturas preconceituosas, pois o leitor passa a entender que as diferenças culturais são heranças de nossos antepassados, que precisam ser reconhecidas e reelaboradas. Tivemos a intenção de ressaltar, nesse estudo, o fascínio provocado pela literatura e a possibilidade de, por meio da ficção, enquanto processo estético, problematizarmos a complexidade das relações sociais em termos de convivência com o diferente e investir nas emoções do ser humano frente à vida. Para isso, acreditamos que seja necessário abandonar a literatura de entretenimento adaptada à função de ferramenta pedagógica e aos anseios do mercado editorial e garantir a literariedade na produção para a criança, de maneira que o conteúdo seja apresentado por meio de boa qualidade textual e temática, com projetos gráficos cuidadosos, criativos e estimulantes. 402

Nessa perspectiva, verificamos nas pesquisas de Debus (2010; 2012) que, a partir da sanção da lei 10.639/2003, ocorreram mudanças positivas na produção literária destinada ao público infantil e juvenil em relação à maneira como se apresenta a temática étnico- racial, e ainda, em relação aos títulos que passam a incluir a real participação de personagens negras, costumes afro-brasileiros e informações culturais produtoras de identificação entre o leitor e a narrativa. Nessas pesquisas, constatamos que, aos poucos, a politização das diferenças tem produzido mudanças de rumo e de concepções, problematizando o direito à diferença. Nesse contexto, Martins e Gomes (2010, p. 144) afirmam que ―a literatura tem ocupado um lugar importante, em virtude de seu caráter mágico, ficcional e, principalmente, por propiciar a introdução de discursos afirmativos, humanizadores, sobre diferenças tratadas de forma desigual no contexto social.‖ Acreditamos, então, que um dos caminhos para o entendimento e consciência acerca da pluralidade cultural está também na apropriação da leitura literária que possibilita a elaboração de identidade por meio da inclusão étnico-racial e da valorização da ancestralidade e do resgate da memória e dos costumes, como no livro O menino que comia lagartos e outros. A obra em estudo representa situações vividas pela criança, de brincadeiras comuns ao cotidiano infantil. Sua narrativa é ancorada em cenários que exaltam o colorido da terra, da luz e das roupas e por personagens alegres, que expressam sua energia de viver. A partir da maneira como se relacionam todos os elementos na narrativa – conteúdo, linguagem, imagens - vários sentidos vão sendo desvelados, como a importância de preservar e valorizar as características marcantes da cultura de um povo e, principalmente, sugerir que, ao esquecermos ou renegarmos nossas origens, nossos costumes e nossa ancestralidade, poderemos perder nossa força e nossa identidade. Se esquecermos de onde viemos, corremos o risco de não entender quem somos e para onde vamos. Contudo, salientamos que numa sociedade étnico plural, como a brasileira, faz-se necessário elaborar memórias e lembranças no lugar de apenas revivê-las. Enfim, podemos considerar que a representação do negro e da cultura afro- brasileira, apresentadas na obra de Mercè López, realiza, conforme definição de Martin e Cosson (2008, p. 59), ―uma operação estética de positivação do que era desvalorizado pelo olhar estranho ao grupo, reivindicando a diferença, preenchendo lacunas e desconstruindo os estereótipos‖. O jogo de memórias, reelaboradas a partir dos avanços da literatura quanto à inclusão da cultura afro-brasileira, contribui para refletir sobe as origens culturais, sobre o reconhecimento da diferença e construção de identidade étnica positiva.

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REFERÊNCIAS:

BRASIL. Lei n.º10.639 de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9394/96, de 20 de novembro de 1996. que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática ―História e Cultura Afro-Brasileira‖ e dá outras providências. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília: CNE, 10 de Março de 2004. Petronilha Gonçalves e Silva (Relatora) BRASIL. Ministério da Educação. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Secretária de Educação Básica. PNBE 2008. Edital de convocação para inscrição de obras de literatura no processo de avaliação e seleção para o Programa Nacional Biblioteca na Escola – Brasília: MEC, 2007. CADEMARTORI, Lígia. O que é literatura infantil. São Paulo: Brasiliense, 1986. CARDOSO, Rosane. A criança que se lê, o mundo que se percebe, o sonho que se constrói: possibilidades da inclusão étnico-racial. In.: Deslocamentos críticos. São Paulo: Laboratório Online de Crítica Literária, Núcleo de Audiovisual e Literatura, Itaú Cultural: Babel, 2011. Vários autores. DEBUS, Eliane Santana Dias. A literatura Infantil e a temática africana e afro-brasileira. Nação escola. n.2. Editora Atilénde. Abril 2010. ______A escravização africana na literatura infantojuvenil: lendo dois títulos. Revista eletrônica Currículo sem Fronteiras, v.12, n.1, pp. 141-156, Jan/Abr 2012. Disponível em: http://www.curriculosemfronteiras.org/vol12iss1articles/debus.pdf. Acesso em: 15 nov. 2012. HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Tradução Cid Knipel. São Paulo: Cosac Naify, 2010. JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Lima: IEP, 2012. JUNIOR CUNHA, Henrique; VIEIRA Lilian C. F. Derek Walcott e Omeros: uma discussão sobre a problemática das identidades afro-caribenhas. In.: Revista Brasileira do Caribe. Universidade Federal de Goiás, vol. XI, n. 21, jul.dez. 2010. Disponível em: http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/1591/159117414002.pdf. Acesso em: 16 nov. 2012. MARTINS, Aracy A.; GOMES, Nilma L.. Literatura infantil/juvenil e diversidade: a produção literária atual. In.: PAIVA, A.; MACIEL, F.; COSSON, R.. Literatura: ensino fundamental. Brasília: Ministério da Educação, Secretária de Educação Básica, 2010. PAIVA, Aparecida. A produção literária para crianças: onipresença e ausência das temáticas. In.: PAIVA , Aparecida; SOARES, Magda. Literatura infantil: políticas e concepções. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. TADIÉ Jean-Yves; TADIÉ Marc (1999) apud ZILBERMAN, Regina. Memória entre oralidade e escrita. In.: PAIVA, Aparecida (et al.). Leituras literárias: discursos transitivos. Belo Horizonte: Ceale, Autêntica, 2008.

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A VIÚVA SIMÕES E A AUDÁCIA DESSA MULHER : UNIVERSOS CONTRASTANTES. Elódia Xavier (UFRJ)

Em 1897, Júlia Lopes de Almeida publica A Viúva Simões, romance que, embora surgido pós assinatura da Lei Áurea e da Proclamação da República, ainda guarda os valores de um passado tradicional e conservador. O script tem todos os componentes da repressão patriarcal, onde as relações de gênero são rigidamente demarcadas e vigiadas pela ―expressão severa do retrato do Comendador Simões‖, pendurado na parede da sala. A casa, aqui, funciona como a proteção contra as tentações da vida exterior, para que a viúva preserve seu status de senhora respeitável e de boa dona de casa. Ernestina, a protagonista do romance, é e será sempre a ―Viúva Simões‖, e o preto a cor oficial de suas roupas. A própria filha, ainda adolescente, defende a permanência dos hábitos tradicionais. A situação inicial do romance é marcada pelo apego da protagonista à casa. O narrador, depois de relatar os cuidados com o jardim, a horta, o pomar e o galinheiro, detém-se nas exigências propriamente domésticas.

A cozinha tomava-lhe horas. Passava os dedos nas panelas e nos ferros do fogão, a ver se estavam limpos; cheirava as caçarolas; obrigava a Benedita a arear de novo tachos e grelhas, a lavar a tábua dos bifes e o mármore das pias e da mesa. Se havia alguma torneira pouco reluzente ou alguma nódoa no chão, detinha-se, exigindo que se corrigisse a falta logo ali, à sua vista. E era assim por todos os compartimentos, minuciosa, ativa, severa. (p.36) Essa fixação pelos deveres domésticos, narrada de forma enfadonha pela insistência do pretérito imperfeito, revela-se logo um recurso para fugir aos desejos recalcados. Ernestina lembra a personagem Ana do conto ―Amor‖, de Clarice Lispector. Aqui, a rotina doméstica protege a protagonista do ―perigo de viver‖, como os afazeres do lar mascaram os desfalecimentos, os desejos irrealizáveis da viúva. Mas num domingo, vivendo um momento de melancolia e uma certa revolta contra ―a pacatez da sua vida sem emoções‖ (p.38), eis que lhe surge, voltando de uma viagem a Paris, Luciano, a quem amara antes de se decidir pelo casamento com o comendador Simões. A casa, como uma couraça, deve lhe garantir o prestígio de mulher acima de qualquer suspeita. Mas a presença constante de Luciano vence todas as barreiras, até mesmo o retrato do ―marido terrível e ameaçador‖, que acaba sendo retirado da parede. Sara, a filha,a princípio não lhe é simpática, mas os esforços da mãe para torná-la aceita pelo namorado acabam, com o tempo, fazendo-a amada por ele, que fica dividido entre a sensualidade madura da mãe e a juventude exuberante da filha. E, aqui, temos o clímax do drama narrado: um triângulo amoroso 405 formado por Luciano, a viúva e a filha. Como Ernestina mantém seu namoro com Luciano em sigilo, uma vez que preza a fama de mulher honesta, Sara ignora o que se passa entre os dois e a revelação de que a mãe ama o mesmo homem que ela, será desastrosa. O golpe violento provoca em Sara um abalo cerebral, deixando-a idiota. Ernestina, restabelecida de uma pneumonia, passa a se dedicar completamente à filha, pedindo a Luciano que nunca mais volte àquela casa. Um folhetim bem ao gosto do século XIX! O castigo pela transgressão de Ernestina não afeta o destino de Luciano, que ao final da narrativa embarca novamente para Paris. E o leitor se questiona: de quem a culpa pelo trágico desfecho? De Luciano? De Ernestina? Da sociedade? Provavelmente, das relações de gênero que pautam os comportamentos sociais, impondo rígidos papéis às mulheres em contraste com a flexibilidade comportamental atribuída aos homens. Pierre Bourdieu, em A dominação masculina, mostra como esses papéis são construídos socialmente pelo poder falocêntrico. ― A força particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela acumular e condensar duas operações: ela legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social naturalizada.‖ (p.33) Graças ao trabalho de teóricas feministas e pensadores contemporâneos, como Pierre Bourdieu, por exemplo, o processo de naturalização das diferenças entre os gêneros tem sido desconstruído, revelando- se uma estratégia aliada do poder falocrático. A literatura de autoria feminina tem feito seu dever de casa, inicialmente, insistindo na vitimização das mulheres, para depois atacar criticamente as relações de gênero, em contos e romances. De forma explícita ou implícita, a ficção de autoria feminina dramatiza, nesta fase, as relações de gênero, causadoras do sofrimento feminino. Hoje, vivemos um outro momento, onde as escritoras , diante das mudanças sociais, criam universos onde as relações de gênero não se constituem na temática dominante. Narradores e protagonistas masculinos povoam esse universo e os dramas narrados têm a ver com a realidade social contemporânea. Liberdade, segurança, violência, pertencimento, deslocamentos, são temas que permeiam tanto os textos de autoria feminina como os de autoria masculina. Ana Maria Machado publica, mais de um século depois de A Viúva Simões, A audácia dessa mulher(1999), romance que contrasta visivelmente com o universo criado por Júlia Lopes de Almeida. A protagonista da história, Bia, é uma jornalista que trabalha na seção de turismo, em constantes viagens pelo mundo a fora. Seu namorado, Fabrício, com quem tem uma relação estável mas não possessiva, se encontra nos Estados 406

Unidos a trabalho. Ao se envolver com uma equipe de pesquisadores sobre o Rio antigo, para a realização de uma série televisiva, ela conhece Virgílio, divorciado com dois filhos e muito charme. A atração mútua cria um relacionamento que dura até o final da narrativa sem nenhum desenlace. Bia se sente dividida, mas a relação estável com Fabrício perdura até o final, na iminência de um reencontro. Ela se refugia na casa de campo, sozinha, para melhor ponderar suas escolhas. Não segue caminhos preestabelecidos. ―Era uma mulher com seu próprio projeto pessoal, que a entusiasmava e impedia sua dedicação irrestrita a uma pessoa.‖ (p.220) Como conciliar essas coisas? Simone de Beauvoir, em seu livro O Segundo Sexo, já apontava para a dificuldade das mulheres conciliarem vida profissional e vida afetiva.

O privilégio que o homem detém, e que se faz sentir desde sua infância, está em que sua vocação de ser humano não contraria seu destino de homem. Da assimilação do falo e da transcendência, resulta que seus êxitos sociais ou espirituais lhe dão um prestígio viril. Ele não se divide. Ao passo que à mulher, para que realize sua feminilidade, pede-se que se faça objeto e presa, isto é, que renuncie a suas reivindicações de sujeito soberano. É esse conflito que caracteriza singularmente a situação da mulher libertada. (p.452,v.2)

A protagonista procura, no silêncio do Recanto, em contato com a natureza, achar seu centro, ter a coragem de impor limites a si mesma para poder chegar mais fundo em suas decisões.

Via a si própria e a Fabrício com outras lentes. Um casal realista, com coragem de desafiar os modelos consumistas de uma sociedade de massa, que confunde amor com arrebatamentos hollywoodianos e prega o modelo das pessoas descartáveis. Um par de cúmplices, tentando não seguir a moda amorosa da época, mas inventar um padrão novo, em que fossem fiéis a si mesmos e leais um ao outro. Com um sentido de permanência que não se oferece nas vitrinas. Difícil, reconhecia. Mas possível, esperava. (p.224)

Um caderno de receitas, de propriedade ignorada, que Virgílio empresta a Bia, como uma relíquia familiar, tem uma importância fundamental dentro da narrativa. A protagonista se interessa pelas receitas e, sobretudo, por uma carta que esclarece todas as dúvidas. A autora, Lina, a Capitu de Machado de Assis, na carta a sua amiga Sancha, conta a versão dos fatos que a levaram a Suiça onde construiu uma nova vida. Passados quarenta anos e desenganada pelos médicos, resolve contar os fatos ocorridos depois da separação de Santiago. Uma história de coragem e determinação que acaba mexendo com a cabeça da 407 protagonista, que lê avidamente o caderno emprestado. O fato de Lina não ter se matado, conforme a versão de Bentinho, mas ter construído uma vida nova e ter tido ―a audácia de se parir de novo‖, numa época em que as mulheres sozinhas pouco ou nada podiam fazer, é admirável. E vem ao encontro das ideias modernas de Bia. O ciúme é um dos temas explorado aqui por Ana Maria Machado. Elemento fundante na história de Bentinho e Capitú, ele se materializa na relação entre Ana Lúcia e o namorado, rapaz ciumento e possessivo que não aceita a independência da moça. Esta encontra em Bia uma conselheira decidida a não aceitar dominação masculina. Diante da indecisão de Ana Lucia em trocar de namorado, Bia incentiva: ―Isso, menina, vá em frente, você merece. Os homens doces são raros e valem ouro.‖ (p.177) Numa comparação superficial entre A Viúva Simões e A audácia dessa mulher, no que diz respeito às relações de gênero, percebe-se que a protagonista do primeiro romance foi vítima das injunções sociais que decidiam o destino da mulher. Uma vez casada, cabia a ela ser esposa, mãe e dona de casa, com a identidade atrelada ao marido, mesmo viúva. Ernestina está presa ao ―destino de mulher‖ e sofre as consequências de sua transgressão, enquanto Bia se ocupa em construir o destino, de forma consciente e de acordo com sua vontade.A casa couraça não é suficiente para livrar Ernestina da paixão por Luciano, mas Bia vai saber conciliar sua vocação profissional e seu desejo de aconchego, numa mistura equilibrada e feliz.

Da mesma forma jamais poderia se sentir feliz se não soubesse que ia estar sempre viajando. Mas nunca seria plena se não pudesse voltar sempre para um canto que a acolhesse, um território animal que fosse seu, num chão que pudesse lhe injetar vida quando o pisasse descalça, a caminhar entre sons, visões e odores que costuravam a sua memória. Não podia viver no exílio. Mas não podia transformar casa em cárcere. (p.207)

O projeto de vida da Bia se assemelha ao que Zygmunt Bauman chama de difícil equilíbrio entre segurança e liberdade. No ―destino de mulher‖prevalece a segurança, pois o caminho já está traçado. Bia, ao contrário de Ernestina, escolhe seus caminhos com a desenvoltura de uma mulher liberada, mas não rejeita a segurança que um canto acolhedor, sem dúvida, garante.

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Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Júlia Lopes de. A Viúva Simões. Florianópolis: Ed. Mulheres, 1999. BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. 5.ed. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. v.2. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. MACHADO, Ana Maria. A audácia dessa mulher. 4. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. XAVIER, Elódia. Declínio do Patriarcado: a família no imaginário feminino. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1998. ______. Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2007. ______. A casa na ficção de autoria feminina. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2012.

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A ESCRITA FEMININA EM CADERNOS NEGROS- OS MELHORES CONTOS (1998): UM MERGULHO NO TERRITÓRIO SELVAGEM

Emília Rafaelly Soares Silva136 Algemira Mendes de Macedo (Orientadora)137

Resumo: A escrita feminina, marcada pelo silenciamento e exclusão históricos, apresenta- se de forma multifacetada e opaca, incipiente de paradigmas de interpretação. Nesse contexto, a crítica feminista surge numa perspectiva revisionista no sentido de romper com os discursos sacralizados pela tradição e trazer à tona as vozes que foram silenciadas. Este estudo tem por objetivo analisar como a escrita feminina das autoras afrobrasileiras (Miriam Alves, Conceição Evaristo, Esmeralda Ribeiro, Lia Vieira e Sônia Fátima) adentra no território selvagem da crítica literária, espaço este dominado tradicionalmente pela hegemonia do homem branco e letrado.Para tal estudo, utilizar-se-á como corpus de análise os contos publicados pelas referidas autoras na antologia do grupo Quilombhoje Cadernos Negros: os melhores contos (1998), a saber: Ana Davenga, Guarde Segredo, Operação Candelária, Alice está morta e Obsessão. Nesse intuito, utilizaremos aportes teóricos que conduzem a um melhor entendimento sobre o gênero conto, como as definições elaboradas por Cortázar (2006) e Gotlib(1998); sobre a crítica feminista e a escrita feminina, através das discussões de Showalter (1994), Branco (1991), Zinani (2006) e Zolin (2005); e sobre as relações de poder implicadas, nas acepções de Bourdieu (2011), Ludmer (2002) e Saffioti (1987).

Palavras-chave: Crítica Feminista, Escrita Feminina, Relações de Poder.

Resumé: L'écriture féminine, marquée par l'exclusion et faire taire les présents historiques ainsi multiformes et opaque paradigmes émergents d'interprétation. Dans ce contexte, la critique féministe arrive à un point de vue révisionniste, afin de briser les discours prononcés par la tradition sacrée et de faire ressortir les voix qui ont été réduits au silence. Cette étude vise à analyser la façon dont l'écriture des auteurs femmes afro-brésiliennes (Miriam Alves, Conceição Evaristo, Esmeralda Ribeiro, Lia Vieira et Sonia Fatima) pénètre dans le territoire sauvage de la critique littéraire, un espace traditionnellement dominé par l'hégémonie de l'homme blanc et letrado.Para cette étude sera utilisée comme analyse de corpus des récits publiés par ces auteurs dans l'anthologie du groupe Quilombhoje Black Books: les meilleurs contes (1998), à savoir: Ana Davenga, Gardez Candelaria opération secrète, Alice est morte et Obsession. À cette fin, nous utilisons des apports théoriques qui conduisent à une meilleure compréhension du genre court récit, que les définitions élaborées par Cortázar (2006) et Gotlib (1998), à propos d'une critique des femmes féministes et l'écriture, à travers des discussions Showalter (1994), Blanc (1991), Zinani (2006) et Zolin (2005), et sur

136 Mestranda em Letras pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Área de Concentração: Estudos Literários. Email: [email protected] 137 Doutora em Teoria Literária pela PUC-RS. Professora do Mestrado em Letras da Universidade Estadual do Piauí. Email: [email protected] 410 les relations de pouvoir impliquées dans le sens de Bourdieu (2011), Ludmer (2002) et Saffioti (1987).

Mots-clés: Critique Féministe, Women Writing, Relations de Puissance.

1. Introdução

Os olhares dos estudiosos atualmente estão cada vez mais voltados para a literatura feminina, com o intuito de inserir, no apertado território selvagem, nas palavras de Elaine Showalter (1994), as autoras que, pelo fato de serem mulheres, foram renegadas historicamente ao silêncio. Não somente pelo fato de serem mulheres, mas pela condição feminina subnutrida de direitos sociais e políticos, estes que foram recém-conquistados. Somente a partir da década de 60 o movimento feminista ganha fôlego para protestar e garantir espaço para a mulher na sociedade. A crítica feminista aparece, nesse contexto, como uma alavanca que as escritoras dispõem para adentrar nesse território da crítica, comumente reservada aos homens brancos e letrados. Em se tratando de escrita feminina e de escrita feminina negra, esse espaço parece ainda mais fechado e difícil de transpor. Este artigo tem por objetivo estudar a escrita feminina a partir dos textos de autoria feminina extraídos da antologia Cadernos Negros- Os Melhores Contos (1998), bem como posicionar a obra no tocante a teoria feminista. Para um melhor entendimento, analisaremos também como as autoras afro-brasileiras, presentes nessa antologia, constroem suas visões de mundo a partir das especificidades do gênero conto. Sobre a complexidade em se definir o que vem a ser o conto, Júlio Cortázar (2006) afirma que é um gênero de difícil definição, visto que é esquivo nos seus múltiplos e antagônicos aspectos. Isso acontece, segundo o pesquisador, porque o conto trabalha com ideias que tendem para o abstrato, como um ―tremor de água dentro de um cristal‖, ou seja, algo limitado em um espaço que possui uma fugacidade dentro de uma permanência, uma matéria viva (água, ideia) dentro de uma forma condensada. Gotlib (1998), ao estudar o conceito de unidade de efeito descrito por Poe, percebeu que a composição literária causa no leitor um estado de ―excitação‖ ou de ―exaltação da alma‖ que deve ser feita de forma dosada pelo contista. O mais importante é que o leitor consiga ler o conto ―de uma só assentada‖ para que a unidade de efeito possa ser identificada, assim como acontece na poesia. 411

O conto, segundo Cortázar (op.cit.) é significativo quando possui uma energia espiritual iluminadora que vai muito além da simples história que se conta. E para que isto ocorra é necessário que o tempo e o espaço estejam condensados. Outro elemento citado é a intensidade que constitui na eliminação de todas as ideias ou situações supérfluas. Diferente da intensidade é a tensão que é o aproximar lentamente daquilo que o autor nos quer contar. É como a imagem de uma argila na qual o modelador vai pouco a pouco montando de dentro para fora até a sua tensão maior, na forma esférica: que é a forma do conto. Uma forma esférica como uma bolha de sabão que atrai a nossa atenção por sua beleza e força por tentar manter-se íntegra. Em Cadernos Negros: Os melhores contos (1998) percebemos como os conceitos de Poe, Gotlib e Cortázar podem ser aplicados. Nessa antologia os contos apresentam-se de forma breve e procuram apontar elementos narrativos de forma condensada para aguçar a imaginação do leitor. Os contos mostram algumas cenas cotidianas (como se fossem fotografias) que apontam para uma realidade que transcende o micro-mundo ficcional: a inserção do negro e da escrita feminina num espaço literário que, tradicionalmente, nunca pertenceu a esse grupo.

2 Escrita Feminina em Cadernos Negros- Os melhores contos

Dentre os contos apresentados, selecionamos os de autoria feminina para compor o corpus de análise deste artigo, são eles: Ana Davenga de Conceição Evaristo,Guarde Segredo de Esmeralda Ribeiro, Operação Candelária de Lia Vieira, Alice está morta de Miriam Alves e Obsessão de Sônia Fátima. O conto Ana Davenga, de Conceição Evaristo, mostra-nos uma protagonista que morava num barraco com o ―seu homem‖ Davenga. A história inicia-se já criando uma tensão sobre o paradelo de Davenga, um sujeito chefe de um grupo de bandidos que tinha um coração bom, mas que, quando confrontado, parecia o diabo. As descrições de Davenga, a sua demora em chegar e as várias pessoas na casa de Ana Davenga, que não explicam o motivo de estarem lá, criam um clima de suspense (tensão) como se uma tragédia estivesse iminente: O peito de Ana doía de tremor. Todos estavam ali, menos o dela. [...] Onde estava Davenga? Teria se metido em alguma confusão? Sim, seu homem só tinha tamanho. No mais era criança em tudo. Fazia coisas que ela nem gostava de pensar. Às vezes ficava dias e dias, meses até, foragido, e quando ela menos esperava dava com ele dentro de casa.[...] (EVARISTO,1999, p.32-33)

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Davenga era um homem de pele ―negra, esticada, lisinha e brilhosa‖ e tinha uma característica peculiar que o distinguia dos outros homens: o seu ―gozo-pranto‖. Durante a relação sexual, Davenga chorava e parecia sofrer muito a ponto de Ana às vezes preferir não dormir com ele para não causar-lhe sofrimento. Mas esse sentimento era uma mistura de doçura, gozo e dor. Segundo Bataille (1987), o erotismo é uma atividade humana que implica sempre na união ou no movimento para que se alcance este fim. Pode ser a união entre corpos, daí falamos em erotismo dos corpos, ou a conexão com o cosmo ou com Deus, erotismo sagrado, ou uma união amorosa espiritual, erotismo dos corações. O objetivo dessas experiências seria um encontro, um contato com a totalidade, na busca da continuidade perdida. Em Ana Davenga encontramos o erotismo dos corpos, como podemos perceber no seguinte fragmento: [...] Davenga estava ali, na cama, vestido com aquela pele negra, brilhante, lisa que Deus lhe dera. Ela também, nua. Era tão bom ficar se tocando primeiro. Depois haveria o gozo de Davenga, tão doloroso, tão profundo, que ela ficava adiando o gozo-pranto. [...](EVARISTO,1998,p.40)

O erotismo dos corpos é descrito como algo ―pesado‖ e ―sinistro‖, talvez porque envolva o corpo e mais objetivamente a nudez que coloca o ser num estado propício à fusão erótica. Os corpos se abrem para uma continuidade através dessa comunicação entre corpos que faz com que o ser perceba a si mesmo. A paixão coloca o homem numa desordem extremamente violenta cujo gozo arrebata uma felicidade tão paradoxal que se confunde com o sofrimento, ―pois há para os amantes mais chance de não poder se reencontrar longamente do que gozar de uma contemplação alucinada da continuidade que os une‖ (Bataille,op.cit.,p19). Davenga era um homem possessivo. Isso podemos notar quando o narrador relata o caso de amor entre Davenga e Maria Agonia, uma mulher crente, filha de Pastor, instruída e que gostava de visitar os presídios para ―levar a palavra de Deus‖. Envolve-se sexualmente com Davenga no primeiro encontro, mas quando ele lhe propôs que morassem juntos ela não quis. Revoltado, Davenga manda matar sua amada a balas. Segundo Bourdieu (2011,p.29-30) as relações entre os gêneros aparecem de forma assimétrica, nas quais o homem ocupa a posição de superioridade (alto sexual) e a mulher a posição de inferioridade (vazio). Dessa forma, o ―ato sexual em si é concebido pelos homens como uma forma de dominação, de apropriação, de ‗posse‘.‖. Com Ana é diferente, visto que ela aceita resignadamente o ―seu homem‖ indo morar junto dele e assumindo seu sobrenome ―Davenga‖. Ana nunca questionou o modo 413 de vida de seu amante e ficava em casa esperando notícias dele. Sabia dos riscos que corria ao lado desse homem, contudo ela o desejava corporalmente e isso a fazia viver, mesmo sabendo que a vida ao lado de Davenga seria bem curta. Ana Davenga estava grávida e temia pela sorte de seu filho, pois ela sabia que o futuro chegava muito rápido e o tempo para o bebê crescer era breve. O conto chega ao seu clímax com a chegada de Davenga extremamente feliz e anunciando que era uma festa surpresa. Ana era tão ligada à vida de ―seu homem‖ que não recordara de seu próprio aniversário. E é na primeira comemoração de sua vida que ela é morta por policiais juntamente com Davenga. Ana morre ―protegendo com as mãos um sonho de vida que ela trazia na barriga‖. Em Guarde Segredo, da escritora Esmeralda Ribeiro, encontramos uma escrita feminina que busca reescrever uma história das mulheres. Em dois sentidos: um literário e outro para além do literário. O conto é envolto numa atmosfera surreal e intimista. Essa trama nos surpreende com um extraordinário diálogo com a obra Clara dos Anjos e com o próprio autor Lima Barreto. A história é uma carta-resposta a uma amiga da avó da narradora-personagem. A partir dessa carta misteriosa ficamos sabendo que a neta, depois de ser despejada com a família de uma quitinete em Copacabana, vai morar com a sua avó Olívia, uma senhora firme e autoritária. A casa da avó era muito antiga e revela muitos segredos. Tinha vários quartos, mas todos ficavam sempre trancados, e isso deixava sempre a neta encabulada. Olívia andava sempre com as chaves dos quartos no bolso, o que aumenta a tensão narrativa. Outro fato que aumenta a expectativa é o aparecimento de um misterioso homem que aparecia de vez em quando e brincava com a narradora. Mais tarde descobrimos que esse homem é o autor Lima Barreto. Passam-se alguns anos e a narradora deixa de ser criança e começa a namorar Cassi Jones, um sujeito que, semelhante à obra Clara dos Anjos, era um sedutor barato. A partir daí a história se entrecruza com a de Lima Barreto e os personagens transitam de uma história para outra, gerando um acontecimento extraordinário no conto. A mãe de Cassi Jones é contra o namoro, e insulta a jovem por conta de sua cor: ―Você é a quinta negra que meu filho deflorou e também não vai ficar com ele. Nesse exato momento está com outra garota‖ (RIBEIRO, 1998, p.70-71). Indignada, a narradora compra uma faca, num átimo de coragem e de luta contra a discriminação social e racial, e golpeia várias vezes o Cassi Jones até ele cair desfalecido. 414

Sobre as mulheres que matam na literatura, Ludmer (2002, p.332) afirma que elas ―formam parte de uma constelação de novas representações femininas mas se diferenciam nitidamente das demais. São o reverso ou contraface das vítimas.‖ Após decidir o novo final para a obra, Lima Barreto se despede e agradece a Olívia, que sentencia à sua neta a seguinte mensagem de resistência: ―Nós não temos que aceitar o destino com resignação‖. Dessa forma, Olívia, uma voz feminina, reescreve uma história de subordinação de que circunscreve as mulheres negras e pobres. É a transformação da mulher como sujeito de sua própria história, não mais representada por uma voz masculina. Clara dos Anjos, como podemos perceber, é substituída por uma personagem forte, consciente, que não se resigna perante a sociedade patriarcal. A personagem de Lima Barreto representa um passado em que uma mulher pobre e negra é renegada socialmente, até mesmo por um escritor reconhecidamente irmanado pelas causas sociais. A proposta de Esmeralda Ribeiro é revisionista no sentido de se propor novas personagens femininas que resgatem uma dignidade historicamente sucumbida a partir de personagens-sujeitos. Zolin (2005) elucida que os debates promovidos pela crítica feminista objetivam a modificação da condição da mulher enquanto objeto subjugado. Trata-se de tentar romper com os discursos sacralizados pela tradição, nos quais a mulher ocupa, à sua revelia, um lugar secundário em relação ao lugar ocupado pelo homem, marcado pela marginalidade, pela submissão e pela resignação. (ZOLIN, 2005, p.182)

Adentrar no ―território selvagem‖ da crítica tem sido uma tarefa cara à crítica feminista. Esse território teórico, essencialmente masculino, como anuncia Showalter (1994) é a arena pleiteada pela crítica e história feministas. Partindo da premissa de que ―toda crítica feminista é de algum modo revisionista‖, a ensaísta critica algumas críticas feministas que ainda esperam pela aprovação dos White fathers que não desejam incluir a escrita feminina no cânone, este estritamente destinado aos brancos letrados. Showalter (1994) defende, ao invés disso, uma nova crítica feminista formada a partir de novas premissas: Está na hora de a crítica feminista decidir se entre religião e revisão podemos reivindicar alguma área teórica sólida para nós mesmas. Ao postular uma crítica feminista que seja genuinamente centrada na mulher, independente e intelectualmente coerente, não pretendo endossar as fantasias separatistas visionárias feministas radicais ou excluir de nossa prática crítica uma variedade de instrumentos intelectuais. Mas precisamos indagar muito mais minuciosamente o que queremos saber e como podemos encontrar respostas às perguntas que surgem da nossa experiência. Não creio que a crítica feminista possa encontrar um passado útil na tradição crítica androcêntrica. Ela tem mais que aprender a partir dos estudos da mulher do que dos estudos literários e culturais da tradição anglo-americana, mais a aprender a partir da teoria feminista 415

internacional do que de outro seminário sobre os mestres. [...] (SHOWALTER, 1994, p. 28-29)

Operação Candelária de Lia Vieira critica as corporações que desvalorizam os direitos adquiridos por meio de lutas sociais. O conto revela os preparativos para uma operação da polícia que tinha por objetivo exterminar menores infratores, o massacre de 23 de julho 1993 que ficou mundialmente conhecido como ―Chacina da Candelária‖. O conto de Lia Vieira descreve a frieza dos preparativos para a operação. As minúcias apresentadas pela autora, ao detalhar os espaços luxuosos e a organização do grupo de extermínio, tomam caráter irônico quando comparadas à pobreza e ao descaso social. Apesar do grosso agasalho, sentia frio. E também um intenso desejo de fumar, mas não se animara a tirar a mão do profundo bolso da calça de lã. Divididos entre uma esquina e outra, meninos e mendigos, sem agasalho, enfrentavam o frio.. [...] (VIEIRA, 1998, p.95)

Os Bestas, como eram chamados os componentes do grupo de extermínio, temiam a ―concorrência‖ dos ―pivetes‖ que ameaçavam os negócios. O oficial Átila do Batalhão de Operações Especiais era um dos líderes do grupo que tinham interesse de eliminar esses meninos de rua que atrapalhavam a tranquilidade da corporação. Os homens de Bestas haviam atuado com eficiência, e em breve tudo aquilo não seria mais que notícias que logo deixariam as páginas dos jornais para se transformarem numa lembrança ou talvez numa lição, ou ainda num alerta. (VIEIRA, 1998,p.95)

A operação era incomum e pouco rotineira, mas os integrantes confiavam no descaso com que seria tratado o assunto e no esquecimento da mídia e das pessoas em pouco tempo. O grupo ridicularizava os direitos que as crianças e os adolescentes adquiriram través do Estatuto da Criança e do Adolescente, que ainda era muito recente na época e cujos policiais ainda haviam assimilado esses direitos. O tenente Rolando, a mando do capitão Sarmento, ambos participantes do grupo de extermínio, é quem averigua os corpos e o caso. Diante dos cadáveres de crianças, adolescentes e jovens, reflete ironicamente: ―Os pobres de hoje não exageram quando dizem que não tem onde cair mortos.‖ (VIEIRA, 1998,p.102). O conto de Lia Vieira, como podemos perceber, é dotado de críticas e ironias sobre o descaso com que um fato foi tratado pela imprensa e pela polícia. O estilo da escrita se destaca pelas várias descrições que expõem a meticulosidade e a extrema organização dos envolvidos na chacina que ocorreu próximo à Igreja da Candelária. 416

Em Alice está morta temos um conto de forte temática existencialista. No conto de Miriam Alves, a mulher é representada pela figura metafórica de Alice, que ora tem feições de um bebê ora feições de mulher. A existência de Alice é tratada pelo narrador às vezes de forma insignificante, num ritual de dependência da figura masculina. Miriam Alves, nesse conto, representa o olhar masculino sobre o feminino, mostrando de forma pessimista como essa relação se constrói. Alice, sempre na escolta da figura masculina, era dependente até para locomover-se como uma espécie de ―boneca negra de pano‖. Alice vivia sempre ao lado desse homem tomando ―porres de esperança‖ e ―fumando estranhos cigarros de crença‖. A vida entre eles, na visão do narrador, torna-se então monótona, apesar do sexo atlético que faziam e o do fato dela ser o par perfeito, ou seja, o fato da subserviência de Alice. Alice tem sua identidade esboçada a partir das vontades de seu companheiro que representa o olhar patriarcal. Sobre a identidade feminina, Heleieth Saffioti (1987) afirma que A identidade social da mulher, assim como a do homem, é construída através da atribuição de distintos papéis, que a sociedade espera ver cumpridos pelas diferentes categorias de sexo. A sociedade delimita, com bastante precisão, os campos em que pode operar a mulher, da mesma forma como escolhe os terrenos em que pode atuar o homem. (SAFFIOTI,1987,p.8)

O estilo de Miriam Alves nessa obra aproxima conto de poesia, numa atmosfera metafórica que desnuda a condição feminina sujeita a uma figura masculina violenta (moral e física) que destrói as esperanças e o amor. Através de períodos sintáticos curtos, a autora demonstra a frieza do homem em oposição aos sonhos da mulher. O título Alice está morta representa que a esperança está morta. A existência de Alice é muito leve, seu discurso é repetitivo como um disco quebrado, e ela nem ao menos tem voz no conto, cabendo apenas ao narrador carregá-la nos braços e conduzi-la ao seu destino, impondo, dessa forma sua violência simbólica. Sobre a dominação masculina e a violência simbólica, Bourdieu (2011) discorre que: [...]Também vi na dominação masculina, e no modo como é imposta e vivenciada, o exemplo por excelência desta submissão paradoxal, resultante daquilo que eu chamo de violência simbólica, violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento [...].‖(BOURDIEU, 2011,p.8)

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Aos poucos a relação vai piorando, e o narrador vai dando os motivos que virão a explicar o seu ato criminoso. Ele a culpa por sua infelicidade, pela sua vida monótona e vazia, como podemos perceber no trecho abaixo: Convivência sem grandes encantos. Eu e ela na casa de cômodos, escorando-nos. Meus filhos soltos neste mundo sem notícias. Trabalho. Noite. Dia. Sexo. Um pouco do choro de vez em quando. Odiei Alice. Culpei-a. Realidade insuportável.[...] (ALVES, 1998,p.132) Ao mesmo tempo em que a odeia, ele também julga amá-la, motivo que o mantém sempre junto dela, em especial quando ela retirava os seus três anéis antes de ir para a cama, num ritual erótico. Pelo fato de Alice não está com os seus sedutores anéis na fatídica madrugada, o amante a odeia novamente. O amante atira Alice no fundo de uma ribanceira, alegando não ter esperanças para oferecer e nem dinheiro: ―O poço estava seco. Tinha apenas para continuar acordando, dormindo, trabalhando, tomando cerveja nos dias de domingo.‖ (ALVES, 1998, p.133) Nesse conto analisado, podemos perceber também a relação entre poder e prazer, em que a mulher constitui um objeto de desejo para o macho dominante em busca de sua presa. Quer quando o homem desfruta de uma posição de poder no mundo do trabalho em relação à mulher, quer quando ocupa a posição de marido, companheiro, namorado, cabe-lhe, segundo a ideologia dominante, a função de caçador. Deve perseguir o objeto de desejo, da mesma forma que o caçador persegue o animal que deseja matar.[...] Para o macho não importa que a mulher objeto de seu desejo não seja sujeito desejante. Basta que ela consinta em ser usada enquanto objeto. (SAFFIOTI, 1987,p.18)

Obsessão, de Sônia Fátima, também é um conto que possui um narrador masculino. A história inicia com o narrador-personagem buscando uma camiseta xadrez que a sua esposa prometera jogar fora por considerá-la caipira e com cores berrantes. Laura, a esposa, tinha medo do que as pessoas iriam pensar ao ver o marido usando uma camisa tão velha: ―- O que vão pensar os outros? Que este pobre infeliz não tem mulher?‖ (CONCEIÇÃO,1998,p.173). Eles tinham um filho chamado Marcos que quando nasceu fora recebido com muitas ―cores vivas‖, porém inquietava ao pai o tom claro da pele do menino. O narrador conta as inquietudes do acompanhamento do crescimento de Marcos, fala das febres e das brincadeiras intermináveis. Imaginava como seu filho seria vitorioso na fase adulta, transpondo todos os obstáculos que a vida lhe impusesse. 418

Laura procurava conciliar ideias e posições conflitantes. De acordo com Soffieti (1987,p.37) ―À mulher impõe-se a necessidade de inibir toda e qualquer tentativa agressiva, pois deve ser dócil, cordata, passiva‖. Temia que os vizinhos pudessem falar que ela não era uma perfeita dona do lar. Seu marido parecia uma pessoa extremamente obsessiva com a preservação da aparência afrodescendente, uma vez que acredita que seu filho ―traiu‖ a beleza de sua mãe ao casar-se com uma mulher pálida e sem vida. A ideia do neto não foi feliz como havia sido o nascimento de Marcos. O pai vê até como uma forma de violência a falta de beleza da nora. [...] Foi inevitável o choque. Ela não trazia, nem de longe, a forma bela de Laura. Um rosto pálido, sem vida. Um cabelo sem energia, força ou ousadia. Uma expressão pobre no olhar.(CONCEIÇÃO, 1998, p.176- 177)

O conto nos apresenta alguns conflitos de uma família tradicional e da obsessão do marido com relação à aparência das pessoas que o cercam. O conto chega a ser cômico pelas fúteis preocupações com apegos materiais, velhice e aparência física. Os temas encontrados na literatura produzida por mulheres versavam sobre a maternidade, o corpo, a casa e a infância, num universo do lar e do eu, o que emergiu um caráter mais intimista dessa escrita. No entanto, o feminino não se restringe somente à mulher, mas tem a ver com a mulher, observa Branco (1991). No referido conto de Sônia de Fátima encontramos temas relacionados ao espaço privado, em que a mulher ainda se preocupa com a imagem de ―rainha do lar‖. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas análises aqui empreendidas, buscamos salientar alguns aspectos da escrita feminina das autoras afro-brasileiras presentes na antologia Cadernos Negros: os melhores contos. O enfoque desse tipo desse tipo de escrita, na maioria dos contos estudados, foi para as personagens femininas, pois, mesmo quando se tratava de narradores masculinos estes não tinham nomes, a exemplo dos contos Obsessão e Alice está morta. Já as mulheres apresentadas, em sua maioria tinham nome e a elas era dedicada a condução da simpatia narrativa pelas autoras. Muitos contos também tiveram a semelhança da escrita mais intimista, voltada para a existência feminina, utilizando-se da relação do erotismo dos corpos para compor o binômio vida e morte tão intensos, como podemos perceber nas análises dos contos Ana Davenga e Alice está morta. Outros contos apresentaram mais causas político-sociais, como Guarde Segredo, que reflete sobre a condição da mulher negra, e 419

Operação Candelária, que apresentou a frieza de um grupo de extermínio contra crianças, jovens e adolescentes negros.

REFERÊNCIAS BATAILLE, Georges. O erotismo.Tradução de Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. BRANCO, Lúcia Castello. O que é escrita feminina. 1ª Ed. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1991. CORTÁZAR, Júlio. Alguns Aspectos sobre o conto. In: Valise de cronópio. Tradução de Davi Arriguci Jr. e João Alexandre Barbosa. Série Debates. São Paulo: Perspectiva, 2006.p 147-165. GOTLIB, Nádia Battela. Teoria do conto. 8ª ed. São Paulo: Ática, 1998. LUDMER, Josefina. O corpo do delito. Um manual. Tradução de Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. QUILOMBHOJE. (Org.). Cadernos Negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, 1998. SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987. (Coleção Polêmica). SHOWALTER, Elaine. A crítica feminista no território selvagem. In:Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Heloísa Buarque de Hollanda (Org.). Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 23-57.

ZINANI, Cecil Jeanine Albert. Literatura e gênero: a construção da identidade feminina. Rio Grande do Sul: Educs, 2006.

ZOLIN, Lúcia Osana. Crítica feminista. In: Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Orgs. Thomas Bonnicci e Lúcia Osana Zolin. 2 ed. rev. e ampl. Maringá: Eduem, 2005.

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ALFREDO SOB O PESO DA LUCIANA

Erika Guiomar Martins de Aquino138

Resumo: Luciana é uma personagem do escritor paraense Dalcídio Jurandir que perpassa três romances, Primeira Manhã (1967), Ponte do Galo (1971) e Os Habitantes (1976), não como personagem principal, mas como personagem referencial que ronda constantemente o protagonista Alfredo. Ele realiza o desejo de estudar em Belém e se sente instigado por ela não ter ido ao Liceu como ele. Portanto, Luciana é uma personagem da memória que se faz presente na vida de uma personagem do enredo. Alfredo, assim como Luciana, se inquietava, nos primeiros romances da série do Extremo Norte (Chove nos Campos de Cachoeira, 1941, e Três Casas e um Rio, 1947), com a permanência no vilarejo da ilha, porém, ao contrário da jovem, alcança seu desejo de ir morar na capital para estudar. O objetivo deste trabalho é abordar a construção de uma personagem feminina no mundo ficcional romanesco de Dalcídio Jurandir apresentando algumas questões concernentes à Luciana e como a personagem que é referencial exerce influência em Alfredo e sua relação com o novo ambiente em que se encontra.

Palavras-chave: Primeira Manhã, construção de personagem, Luciana.

Resumen: Luciana es un personaje del escritor paraense Dalcídio Jurandir que recorre tres novelas, Primeira Manhã (1967), Ponte do Galo (1971) y Os Habitantes (1976), no como personaje principal, sino como personaje referencial que ronda constantemente al protagonista Alfredo. Él realiza el deseo de estudiar en Belém y se siente instigado porque ella no fue al Liceo como él. Por lo tanto Luciana es un personaje de la memória que se hace presente en la vida de un personaje del enredo. Alfredo, así como Luciana, se inquietaba, en las primeras novelas de la serie del Extremo Norte (Chove nos Campos de Cachoeira, 1941, e Três Casas e um Rio, 1947), con su permanencia en la pequeña aldea de la isla, sin embargo, al contrario que la joven, alcanza su deseo de ir a vivir en la capital para estudiar. El objetivo de este trabajo es abordar la construcción de un personaje femenino en el mundo ficticio novelesco de Dalcídio Jurandir presentando algunas cuestiones relacionadas a Luciana y como el personaje que es referencial ejerce influencia en Alfredo y su relación con el nuevo ambiente en el que se encuentra.

Palavras-clave: Primera Mañana, construcción del personaje, Luciana.

138 Mestranda em Estudos de Literatura na Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: [email protected] 421

Luciana é uma personagem enigmática que aparece na série de romances de Dalcídio Jurandir não fazendo parte efetivamente da narrativa desde a primeira referência em Primeira Manhã (1967): Porém, à noite, ontem, com o pouquinho de sono, nas visões da rede e sequioso de miragens, à espera do amanhecer para uniformizar-se e partir, chegava-lhe de novo a voz da velha parteira contando-lhe, naqueles dias sem uniforme: Era um outubro seco, queimando os campos, o rio debaixo da lama e de repente a trovoada, o raio no taperebazeiro, dezesseis porcos matava, dentro da casa racha um esteio, e o quarto, onde estava presa a Luciana, tão brusco escancara-se (JURANDIR, 2009, p. 31).

Esse trecho que está logo no início de Primeira Manhã, coloca-nos em várias situações temporais: ―ontem‖, ―naqueles dias sem uniforme‖ e ―outubro seco‖. A lembrança de Luciana se confunde com todos os tempos da narrativa, mas no decorrer da narração o leitor perceberá que ela é um personagem que não faz parte do enredo, visto que vive na memória de outros, é sempre lembrança, rememoração, divagação e toda vez que seu nome é citado ou história é mencionada causa certa inquietação. Ela é a ‗desabençoada‘ de quem se fala num sussurro, pois para a família, ainda que metaforicamente, morreu. Não damos certeza de seu destino já que não é uma informação facilmente identificável: a ausência de Luciana é cercada de dúvidas, indefinições e mudanças de sentido de morte. É através dessa ausência que Alfredo acredita ocupar um lugar na casa do Coronel Braulino Boaventura, pai de Luciana, para continuar seus estudos como ginasiano (ensino fundamental maior hoje em dia). E assim como na família, sobre ele começa também a pesar o mistério do destino de Luciana: ―De Luciana, a velha parteira pouco falava, mas toda a casa, toda a família, sob o peso da Luciana‖ (DALCÍDIO, 2009, p.66). Pensando a personagem como uma reflexão dos modos de existência e ligada ao ato criativo do fazer artístico, este texto se foca em questões referentes à Luciana tomando por base o romance Primeira Manhã. Explanaremos como a personagem influencia a percepção de Alfredo sobre o novo espaço em que se encontra numa perspectiva que a vê como representação de seu universo psicológico. *** Luciana é apresentada com maior frequência em três romances, Primeira Manhã (1967), Ponte do Galo (1971) e Os Habitantes (1976), entretanto nos dois últimos romances 422 publicados da série Chão dos lobos (1976) e Ribanceira (1978) ainda há vestígios de sua lembrança, pois como Dalcídio Jurandir tinha o projeto de contar em vários romances a trajetória de seu herói, personagens são constantemente retomadas, às vezes, só citadas rapidamente na sequência do livro em que aparecem. Em Primeira Manhã a filha do coronel não adentra a série como personagem principal, porém está constantemente nos pensamentos do protagonista Alfredo. Luciana é uma personagem da memória (tempos narrados) que se faz presente na vida de um personagem do enredo (tempo da narrativa). Em outras palavras, a filha do coronel Braulino aparecerá na história pelo discurso de outras personagens que narrarão uma série de acontecimentos sobre ela, revelando... escondendo detalhes... ou pondo em dúvida outros pontos sobre a vida de Luciana. No processo de criação do autor notamos, assim como constatado por Nunes (2006) em Dalcídio Jurandir: as oscilações de um ciclo romanesco, a procura cada vez mais de refinar a técnica, o crítico comenta que em passagens dos inocentes a valorização da forma que se prende mais nos tempo narrados do que da narrativa é ainda mais ressaltada pelo caráter memorialista que a obra apresenta. Em Primeira Manhã, seguindo essa linha, há a predileção de Dalcídio em penetrar o consciente e o inconsciente das personagens. São elas que dão o ritmo à narração e nos confundem com suas memórias, pois nos levam para um percurso do devaneio e das incompletudes do pensamento. Nunes aponta que em: Passagens dos inocentes, a voz do narrador tende a ser neutralizada pela dos personagens, a que dá plena iniciativa nos diálogos que entretêm. É como se em Primeira Manhã, Ponte do Galo, Os Habitantes, Chão de Lobos a dialogação conduzisse a narração e com a narração se confundisse como maneira de ver e sentir o mundo dos personagens em afluência. (NUNES, 2006, p. 249)

Uma das dificuldades que a obra de Dalcídio nos impõe é o entendimento do enredo. Dentro da perspectiva do romance moderno, pensar no enredo como um encadeamento dos fatos não faz sentido, pois dentre outras características, encontra-se em Primeira Manhã: fragmentação do foco narrativo, minimização do ato de narrar, omissão do tempo ou mistura dos períodos temporais, fluxo da narração imitando o fluxo do pensamento. Sobre o conjunto de romances, em Dalcídio não há uma ordem de narração. É necessário o conhecimento das outras obras para que tenhamos uma maior apreensão da trajetória das personagens, já que Alfredo vive voltando ao passado e fazendo referência a personagens que passaram em sua trajetória de vida. Desse modo, definir o enredo de Primeira Manhã não é tarefa fácil e acompanhar a busca que o menino de cachoeira, agora rapaz com a ―moleira amadurecendo‖ começa a fazer por Luciana também não. São em conversas de Alfredo com d. Santa e d. Dudu 423

(respectivamente mãe e filha) que o leitor tem a possibilidade, a partir da memória delas, formar um esboço de quem é/foi Luciana. Com as divagações de Alfredo também entramos num trabalho de detetive tentando compreender quem foi Luciana, o que sentia, o que desejava, porque fugiu, porque não volta, por que foi renegada, morreu? Por que tanto mistério em torno dela? Em Primeira Manhã também percebemos a multiplicidade de vozes, sendo este um dos aspectos que contribuem para dúvidas acerca do enredo. Torna-se difícil definir-lo porque nesse romance, a maior parte do que é narrado acontece nos tempos narrados, fazendo o leitor voltar a histórias do passado. E é nesse enredo fragmentado, nessa confluência de vozes, nesse labirinto de histórias que encontramos Luciana. É um tipo de personagem sedutora, visto que, ao começarmos a ler o romance, começamos, juntamente com Alfredo, sua busca. Justamente pela ausência, ela se faz presente, por não saber onde está, como era, Alfredo deseja vê-la, trazê-la de volta, acabar com silêncio em torno de Luciana e com o silêncio de Luciana, Alfredo quer dar voz à desabençoada. *** Saber por que Luciana havia sido renegada instigava o rapaz de Cachoeira. Como compreender (possuindo um pai que a amava tanto, que havia construído uma casa para ela morar em Belém) a negação à vontade de ir para o ginásio? O veto estava relacionado mais a vontade da mãe que do pai. Luciana até pediu: Mas me mandem pro Ginásio, eu quero. Mandaram? Haveres não tinham para interná-la pensionista no Santa Catarina, no Santo Antônio? Instruirzinho a menina no Liceu, ofendia? Foi a mãe que disse não? Disse ―não‖, acabou-se, o pai quis uma palavra... O não mal saindo da boca de sua mulher, parecendo mais dos olhos, tão manso, baixo, era a lei? O Coronel a língua engoliu. (DALCÍDIO, 2009, p.33).

Nessas decisões, Jovita, mãe de Luciana tinha voz mais forte. Por que a mãe parece ter desprezo pela filha? A excessiva liberdade ofendia, o ar de mistério de Luciana ofendia? Em um dos parágrafos do romance é insinuado que ela seria filha de ser encantado, pois só assim para gostar tanto de estar na mata, montada em seu cavalo, mergulhada nas águas da baixa (pequeno rio) o que, por conseguinte, causaria na mãe uma aversão à filha: ―O certo é que a Jovita chega de cismar que emprenhou dum bicho lá do mangue, prenhez feita de longe e que botou no mundo a criatura. Cismação de Jovita moradeira de lago. Jovita, no que cismou, cisma feio, atravessado‖ (DALCÍDIO, 2009, p. 190). Estudar, não permitiram, casar, também não. Entretanto, em desrespeito à família, em uma das raras referências a um discurso de Luciana ela propôs ao Severino depois dele ter o pedido de casamento negado pela família da moça: ―O senhor não vai me levar com o senhor, se não quiser, está 424 no seu querer, que no meu, eu vou. Me diga que vai, que desço já deste cavalo sua mulher‖ (DALCÍDIO, 2009, p. 33). Depois disso o castigo, o raio, a libertação. Gaston Bachelarde em Psicanálise do fogo (1999) expõe a relação que há entre fogo e respeito, explicando que a interdição social é o primeiro conhecimento geral sobre o fogo. Quando crianças nos ensinam que não devemos brincar com fogo e a queimadura é a mácula dessa desobediência. Em um trecho que descreve a casa e o vazio que ficou sem a presença da dona há a confirmação dessa interdição na comparação feita entre a reprovação ao comportamento de Luciana e a prática de marcar com ferrete quente o gado, informação que temos por meio de d. Dudu: Aqui luz não se abre, ainda cheiram a tinta as paredes, a verniz as cadeiras; dissolvidos em sombra e mofo, na moldura, a barba do Delabençoe e a mulher. E desta o olhar falando: aqui o pé não pões, cachorra. Te ferrei dentro do peito como se ferra vaca no pescoço, sendo que o teu urro é sempre. Alfredo ouvia urrarem as vacas velhas do chalé, tempo de ferra ah falecida Merência. Ficou pela dispensa o ferro do pai, inútil, pelo menos deixava de sabrecar o couro das criaturas, ali a um canto, antes de fogo tão feroz, agora apagado, enferrujando, velho ferro da propriedade extinta. Merência. Mas Luciana, naquela ferra, um ai não deu nem dá, conta a parteira (DALCÍDIO, 2009, p. 121).

Mas também foi pelo fogo que se deu a libertação de Luciana. O raio que caiu na fazenda abriu o quarto em que ela se encontrava trancafiada. Depois desse acontecimento a tia (d. Santa) a leva para Belém. Diz d. Dudu: ―Mas quando ela então veio com mamãe pro Curro Velho, era aquela entonada, o dia na janela. Não pregava um botão. A mamãe a dizer que orgulho não era, era paixão. Era só de boca grudada, como coisa que tivessem lhe cortado a língua‖ (DALCÍDIO, 2009, p. 102). Como vimos em trecho anterior, a renegada parece ter personalidade suficiente para assumir suas decisões ―Me diga que vai, que desço já deste cavalo sua mulher‖. O raio foi também o irradiador do desejo de liberdade. Por causa dele conseguiu sair do castigo e ser levada pela tia para Belém. No entanto, Luciana possuía muito mais coisas guardadas com ela do que podiam imaginar. Luciana pouco falava com as pessoas, na fazenda vivia afastada de todos, na cidade, vivia calada e com pensamentos distantes. Seria mesmo paixão? Todas essas informações que Alfredo juntava, aguçavam ainda mais a curiosidade do rapaz. Pois em seu pensamento ela lhe ‗abrira‘ a porta do ginásio. Observando o uso lexical no romance, podemos observar as palavras: raio, luz, manhã, fogo. Não à toa o livro se chamou Primeira Manhã. Luciana foi a possibilidade de recomeço para Alfredo (mudou- se para uma casa melhor para começar um novo ciclo de estudos). O nome Luciana etimologicamente relaciona-se a luz, é derivado de Lúcio, nome masculino de origem latina. Luciana foi como uma luz: ―O raio abriu a porta do Ginásio, entreabre a janela‖. Porém ao 425 contrário de Lúcio, personagem de Mário de Sá Carneiro do livro A confissão de Lúcio (1914), não temos a confissão de Luciana, Alfredo também busca qual teria sido sua culpa. Se há culpa! Luciana, no entanto, nada dizia quando ainda em convívio da família era interrogada. D. Dudu em conversa com Alfredo comenta: ―Luciana, fala, criatura. O que teu peito sente? Tu falaste? Pensar que pediu perdão? De perdão nem a primeira letra. Quem que ouviu dela um só suspiro? Selou a boca a fogo, o raio lacrou o coração, lá dela, bem dentro‖ (DALCÍDIO, 2009, p. 33). Ela nada falava, entretanto possuía uma profundidade de coisas que saltavam pelo olhar, ficavam com ela no seu infinito particular: ―Nos olhos daquela mea sobrinha tem como coisa que ela diz, não diz, me quer falar e eu que sei?‖ (DALCÍDIO, 2009, p. 32). Mas aquele olhar suspeito, distante, podia esconder uma raiva que não era esperada pela família e o silêncio de Luciana deu espaço à maldição: Um dia a mea irmã contrariou-se com ela, bateram língua, bateram que bateram. Minto. Ela só resmungou, mordendo o beiço e não sei o que mea irmã disse que a outra deu um tal grito e então resmungou que havia de ver a mea irmã morrendo indigente na Santa Casa, saindo o corpo no rabecão (DALCÍDIO, 2009, p. 102).

E no dia dessa discussão acontece o desaparecimento de Luciana: sumiu com a roupa do corpo. ***

Dalcídio explora a intimidade do povo marajoara esmiuçando o espaço da floresta, com seus rios e matas sob o olhar nativo de Alfredo e o espaço da cidade também se revelando pelo olhar de Alfredo. Em Primeira Manhã não se têm uma descrição clara da casa onde o ginasiano está morando, mas sabe-se que é casa que ruiu e depois se ergueu. Na nova casa, o lugar de Luciana é guardado como um lugar sagrado. As confusões de lembranças e dos espaços que aparecem podem significar as confusões de ideias de Alfredo e seus questionamentos sobre morar na cidade na busca de um sonho. Viver a sensação de estar de ‗favor‘ o incomoda, pois além de não poder se sentir totalmente pertencente àquele lugar, está ocupando o espaço de outro, que foi preparado para outro (Luciana). A ele foi dada a oportunidade de estudar. Essa identificação de Alfredo com Luciana é bastante destacada por ele: ―como levar de volta a Luciana, a encontrar de novo o caminho do Liceu‖ (JURANDIR, 2009, p. 137). O estudante vivia inquieto em cachoeira com a possibilidade de não conseguir estudar na capital e se inquieta novamente por ela não ter conseguido a permissão para estudar. 426

Depois do primeiro dia de aula, no momento do jantar, quando conversava com d. Dudu percebe-se sua inquietação pela repulsa ao alimento que é repulsa, na verdade, pela situação que o circunda: Aqui na mesa, no cocho da D. Dudu. Se cobrindo de mosca e sebo, o cozidinho aguarda, paciente, o apetite do estudante que disfarça, exagera o interesse pela conversa, cata um arroz, molha o pirão... ah, pirão da madrinha-mãe, que saudade hein, rapadura, hein, milho verde, hein, cará roxo, jogados pelo trem? Cozidinho, cozidinho, tu parece de mês. No meio do pirão, ria a ginasiana do terceiro e a multidão do pátio, caras, caras, logo um pirão de pés e punhos. Arredou o prato. Meia-pataca. O seu fel contra as órfãs, contra a prima Graziela, d. Dudu, derrame neste pirão (DALCÍDIO, 2009, p. 107).

Então até que ponto Alfredo é ele mesmo? Há uma encenação do menino interiorano que precisa morar em casas alheias? O Alfredo da cidade é o Alfredo que ele pretendia? Alfredo pensa existir no espaço da casa porque Luciana não mais existe nesse espaço. Fica no questionamento de quem poderia ter sido Luciana, e ele quem era? Alfredo executa certas ações pensando em como Luciana as faria. Acredita que a casa reclama a presença de sua dona: a bíblia que pertencia à ela guardada no travesseiro, o quarto que era dela e quase ninguém frequenta, com exceção do pai. Ela é a sombra dele, a Luciana imaginada repercute os desejos de Alfredo: ele queria estar no liceu, ela também. O rapaz ocupa o lugar alheio e se põe no lugar desse outro imaginando seus sentimentos e sensações. No entanto, vive se sentindo fora do lugar (não está na série adequada a sua idade, não está na própria casa). E se Luciana não fizesse parte da história? Não haveria preocupações, não haveria a angústia por sua ausência? Haveria os questionamentos que tanto Alfredo se faz? A desabençoada desencadeia nele suas inquietações? A incompletude de Alfredo e a ausência de Luciana somada ao estranhamento do novo ambiente de estudo e a casa que reclama a presença de sua dona fazendo-o se sentir um intruso, criam um ambiente que reflete o olhar de Alfredo sobre as situações, levando- nos a adentrar um mundo de significações que este texto não pretendeu, por enquanto, explicar, mas apresentar algumas possibilidades de perguntas que exigem ou não respostas.

REFERÊNCIAS:

CARNEIRO, Mário de Sá. A confissão de Lúcio. Lisboa: Ática, 1975. GASTON, Bachelard. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. JURANDIR, Dalcídio. Primeira Manhã. 2ed. Belém: EDUEPA, 2009. 427

NUNES, Benedito. Dalcídio Jurandir: as oscilações de um ciclo romanesco. In: Idem; PEREIRA, Ruy; PEREIRA, Soraia Reolon (Org.). Dalcídio Jurandir: romancista da Amazônia. Belém: SECULT; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa/ Instituto Dalcídio Jurandir, 2006. (Literatura & Memória)

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NOS BASTIDORES DA RESISTÊNCIA: JUÓ BANANÉRE NO CONTEXTO DE O PIRRALHO

Dr. Francisco Cláudio Alves Marques139

Por mais limitados que sejam os objetivos de uma revolução, a luz da Nova Jerusalém deve brilhar através das rachaduras de alvenaria do Estabelecimento eterno que ela abre. (Eric Hobsbawn. Pessoas extraordinárias.)

Resumo: O Pirralho, periódico semanal que circulou na cidade de São Paulo entre 1911- 1918, trazia nas suas páginas a irreverência de Juó Bananére (pseudônimo do jornalista satírico Alexandre Ribeiro Marcondes Machado). Bananére era o responsável pelas Cartas d´Abax´o Pigues, seção que trazia crônicas em dialeto macarrônico com vistas à sátira aos políticos da Primeira República e aos ―cartolas‖, escritores e intelectuais representantes do Parnasianismo e do Romantismo. Em suas crônicas, o jornalista imitava a fala do imigrante italiano em processo de abrasileiramento, utilizando-a como máscara cômico-verbal para castigar os costumes, os políticos e os intelectuais. Ao fazê-lo, Bananére colocava O Pirralho ao lado daqueles periódicos que se contrapunham ao regime republicano e aos seus idealizadores.

Palavras-chave: O Pirralho; Juó Bananére; Imigrante italiano; Sátira; Primeira República.

Abstract: O Pirralho, weekly newspaper that circled in the city of São Paulo between 1911- 1918, brought on its pages Juó Bananére‘s irreverence (pseudonym of the satirical journalist Alexandre Ribeiro Marcondes Machado). Bananére was the responsible for the Cartas d´Abax´o Pigues, section that brought chronicles in poorly written dialect (macarrônico) with views on the satire to the politicians of the First Republic to the ―toppers‖, writers and intellectuals who were representatives of the Parnassianism and Romanticism. In his chronicles, the journalist imitated the speech of the Italian immigrants in the process of ―Brazilianment‖, using it as a verbal-comic mask in order to punish the customs, the politicians and the intellectuals. By doing so, Bananére put O Pirralho on the same line of those newspapers which counteracted the republican regime and its creators.

Keywords: O Pirralho; Juó Bananére; Italian Immigrant; Satire; The First Republic.

1. Introdução: Os (des)enraizados da Belle Époque paulista

139 Professor no Departamento de Letras Modernas da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖ 429

Nas primeiras décadas do século XX a ―capital do café‖ começa a vivenciar profundas transformações econômicas, sociais, culturais e na sua própria feição urbana. O acelerado crescimento urbano e econômico de São Paulo está intimamente associado a uma imigração maciça que, desde a Abolição, em 1888, ―inchava‖ uma cidade ainda fortemente marcada pelo provincianismo, embora já começasse a apresentar sinais de uma modernidade calcada em modelos importados da Europa. O censo demográfico de 1920 revela que os italianos formavam o maior contingente de estrangeiros residentes no Brasil, 558.405 indivíduos, seguidos pelos espanhóis com 219.142 e depois pelos franceses com 122.329. Os imigrantes italianos, portanto, representavam quase 30% da população do Estado. Os alemães aqui aportados contavam com 52.870 representantes; os turco-árabes com 50.251; os japoneses com 27.976; os austríacos com 26.554. Ao lado desses, apareciam ainda uruguaios, argentinos, paraguaios, norte-americanos, ingleses, belgas etc., fora os naturais de outros países com contingentes menos expressivos (DIÉGUES JR., 1964, p. 52). Esse expressivo e multicolorido contingente humano constituía um grande mosaico de raças e culturas, emprestando à cidade de São Paulo um ―arzinho de Exposição Internacional‖ (MACHADO, 1940, p. 46), no dizer de António de Alcântara Machado. Referindo-se à atual febre de metropolização da cidade de São Paulo, Menotti Del Picchia assim descreve a metrópole em 1921:

O tímido lugarejo de ontem [...] é hoje uma metrópole febril, milionária, imprevistamente enorme. Nelas as emoções de todas as raças e os tipos de todos os povos agitam uma das vidas sociais mais violentas e gloriosas do universo. Esse entrechocar de ambições, de gostos, de vontades, de raças oriundas dos quatro pontos cardeais, se reflete em todas as manifestações da vitalidade citadina, nos seus tipos de rua, na sua arquitetura, nas cousas expostas ao comércio, nas línguas que se falam pelas calçadas (DEL PICCHIA, 1921, p. 8).

Juó Bananére, pseudônimo do jornalista satírico Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, caricatura gráfica e verbal do imigrante italiano, foi, na expressão do historiador Elias Thomé Saliba, ―um testemunho inquieto deste variadíssimo surto de cosmopolitismo paulista‖ (SALIBA, 1991, p. 8). Suas crônicas de cunho satírico estão diretamente relacionadas com o clima mental da época, sendo por isso considerado por António de Alcântara Machado, em 1931, ―o cronista mais popular da cidade‖ (MACHADO, 1940, p. 254), ao que Otto Maria Carpeaux corrobora, em 1958, afirmando ser Bananére ―uma voz da democracia paulista‖(CARPEAUX, 1958, p. 200). 430

Nas crônicas bananerianas ficaram registrados muitos dos dramas vividos pelos imigrantes italianos em processo de assimilação/integração na cidade de São Paulo. Não raro, essas crônicas procuravam evidenciar as manifestações de ressentimento do italiano, que reagia com irrisão ao rótulo xenófobo de carcamano140: ―[...] in Zan Paolo, tuttos munno tê reiva dus intaliano, i anda ai dizeno chi a gente è garcamano insproratore. Insproratore é o diabolo che ti acareeghi, sô indisgriaziato!‖ (O PIRRALHO, 1914, p. 15) Os espaços de socialização que se projetam nas fontes iconográficas e literárias da Belle Époque paulista revelam que essa época está profundamente marcada pelo caráter itinerante dos grupos sociais que se revezam no espaço cotidiano das ruas de São Paulo. Saliba observa que imigrantes italianos, ex-escravos, caipiras recém-chegados do campo, toleravam-se numa sociedade cosmopolita marcada por grandes diferenças sociais, étnicas e culturais, mas que, apesar de tudo,

[...] buscavam, na batalha da sobrevivência, também uma vida comunitária própria, talvez para compensar possibilidades (sempre negadas) de participação política. Valores e tradições culturais européias, principalmente italianas, começam a circular numa cidade de identidade instável, ainda saturada de usos africanos e costumes caipiras (MORAES, 1997, p. 14)

A outra face das sátiras bananerianas trata da negação dos antigos padrões secularmente cultivados pela literatura oficial. Em seus escritos, muitas vezes, Bananére emprega a fala estropiada do imigrante italiano como máscara verbal para desbancar os velhos costumes e espantar da literatura os fantasmas dos clichês, das mesmices e das repetições. Uma das mais célebres tiradas satíricas de Bananére foi publicada n´O Pirralho, em 16 de outubro de 1915, quando ele zomba do poeta Olavo Bilac que, naquele ano, visita a cidade de São Paulo em campanha cívico-patriótica. Usando a fala do imigrante italiano como máscara cômico-verbal, Bananére assim descreve a visita de Bilac:

Quartaferra teve a nunciada visita du Bilacco, príncipe dus poeta brasiliero, o Dante anazionalo. Uh! Mamma mia, che sucesso! O saló stava xiinho, piore du garnevalo na rua 15. Os lustre di gaiz stava xiinho di genti pindurada. Gada lustro apparicia un gaxo di banana di genti. Bilacco disse moltos sunetto gotuba141. (O PIRRALHO, 1915, p. 4)

140 Jacob Penteado observa que a origem do termo carcamano é pitoresca: ―Dizem que os negociantes italianos, em geral os do mercado, quanto o filho pesava um artigo para o freguês e faltavam algumas (sic) gramas, diziam-lhe, em surdina: - Calca la mano, figlio mio!‖ (PENTEADO, 2003, p. 44) 141 Cotuba ou corruscuba significava ―coisa que nos agrada plenamente‖, derivando depois para a palavra ―batuta‖. 431

Bananére já vinha insultando os poetas românticos, simbolistas e parnasianos em seu livro de poemas satíricos La divina Increnca, de 1915. Assim, com ―Migna Terra‖, parodia a ―Canção do Exílio‖, de Gonçalves dias: ―Migna terra tê parmeras,/Che ganta inzima o sabiá,/As ave che stó aqui,/Tambê tuttos sabi gorgeá‖ (BANANÉRE, 1915, p. 8). Com ―Amore co Amore si Paga‖, parodia o poema de Bilac ―Nel Mezzo del Camin...‖: ―Xiguê, xigaste! Vigna afatigada i triste/I triste e afatigada io vigna;/Tu tigna a arma povolada di sogno,/I a arma povolada di sogno io tigna‖ (BANANÉRE, 1915, p. 11). Parodia ―As Pombas‖, de Raimundo Correia com ―As Pombigna‖: ―Vai a primiéra pombigna dispertada,/I maise otra disposa da primiéra;/I otra maise, i maise otra, i assi dista maniéra,/Vai s´imbora tutta pombarada‖ (BANANÉRE, 1915, p. 24). Parodia ―Meus Oitos Anos‖, de Casimiro de Abreu, com ―Os Meus Otto Anno‖: ―O chi sodades che io tegno/D´aquillo gustoso tempigno,/C h´io stava o tempo intirigno/Bringando c´oas mulecada./Che brutta insgugliambaçó,/Che troça, che bringadêra,/Imbaxo das bananêra,/Na sombra dus bambuzá‖ (BANANÉRE, 1915, p. 33). A sátira mais cortante é direcionada ao então Presidente da República, Hermes da Fonseca, a quem chamavam ―cheirosa criatura‖. Hermes da Fonseca, tratado de ―Hermeze‖ por Juó Bananére, é satirizado logo na segunda epígrafe da Divina Increnca: ―E di sai du governimo acarregado nus braço du povo!‖. No poema ―O Dudu‘‖, Bananére castiga a figura de Hermes nos seguintes versos:

Faize quattro anno inzatamente migna genti Che subi p´ra presidenti A xirosa griatura. Tuttos munno ariclamáro i prutestáro Ma nu fin tuttos cançáro I subi u garadura. (BANANÉRE, 1915, p. 36)

2. A representação cômica na Primeira República

―Como representar as vidas privadas e as existências cotidianas de cada brasileiro na modernidade anunciada pela República?‖ Com base nessa interrogação o historiador Elias Thomé Saliba abre uma vasta discussão sobre a construção e a concepção de uma ―identidade de brasileiros‖ num contexto de graves instabilidades sociais, culturais e econômicas – o da República e Belle Époque –, para ele uma realidade cada vez mais paradoxal, infinitamente variada e, sobretudo, uma realidade indefinida em termos de futuro (SALIBA, 1998, p. 290). Toda a discussão parte de um questionamento feito por 432

Sérgio Buarque de Holanda, calcado na análise que ele faz do advento da República: ―Como esperar transformações sociais profundas em um país onde eram mantidos os fundamentos tradicionais da situação que se pretendia ultrapassar?‖ (HOLANDA, 1983, p. 63). A tarefa de tentar compreender as representações do imigrante italiano nesse contexto histórico-social não se fará sem se levar em conta a participação de todos os outros sujeitos que também protagonizaram a história da imigração nos primeiros decênios da República brasileira. Contudo, tal compreensão não seria possível, no entender de Saliba, se não fosse pela ―[...] via da constatação da falta de sentido ou da imperiosa necessidade de recriar os significados, que sempre foram as características intrínsecas de uma representação cômica ou humorística do mundo e da vida‖ (Grifos do autor) (SALIBA, 1998, p. 290). Os primeiros escritos satíricos de Bananére aparecem n´O Pirralho, revista fundada em agosto de 1911 por Oswald de Andrade e Dolor de Brito e que durou até 1917, destinada sobretudo à camada abastada da população. O próprio título acena para o caráter irreverente da revista. Os artigos ―macarrônicos‖ constituíam, na sua maior parte, As Cartas d´Abax´o Pigues e tentavam imitar a fala do imigrante italiano que ainda não tinha assimilado a língua nacional. No início, os artigos aparecem assinados por Annibale Scipione, pseudônimo de Oswald de Andrade, sendo por isso considerado por Vera Chalmers ―o inventor da crônica da imigração na imprensa paulista‖ (CHALMERS, 1990, p. 33). Ao viajar para a Europa, em 11 de fevereiro de 1912, Oswald é substituído na redação das cartas por Bananére. No momento em que esses artigos chegam ao público da época, o imigrante italiano, representado pela miscelânea ítalo-caipira de Bananére, vê-se às voltas com sentimentos pouco favoráveis à sua presença na cidade de São Paulo: ―A presença maciça de italianos na cidade gera sentimentos contraditórios, já que muitos brasileiros passam a se sentir em uma cidade italiana‖ (OLIVEIRA, 2001, p. 36). Esse mal-estar foi um dos grandes responsáveis pela formação de uma imagem preconceituosa e estereotipada dos italianos – a figura do carcamano –, que destaca a suposta ignorância, falta de polidez e de honestidade do imigrante, o que vinha sendo reforçado tanto pela literatura oficial como pela produção humorística da Belle Époque. Na concepção das camadas médias urbanas, pelo menos na cidade de São Paulo, os imigrantes, sobretudo os italianos, eram vistos como açambarcadores de oportunidades. Ao que tudo indica, os italianos costumavam responder aos insultos às vezes com raiva, 433 outras com irrisão, sentimento que Bananére soube muito bem registrar na sua algaravia anárquica:

Nun lugáro andove no tê intaliano come na Zanta Gatterina, tuttos munno gusta dos intaliano. Nu lugaro inveiz andove tê intaliano piore du gafagnotte, come qui in Zan Paolo, tuttos munno tê reiva dus intaliano, i anda aí dizeno chi a gente è garcamano insproratore. Insproratore è o diabolo che ti acareeghi, sô insdisgriaziato! (O PIRRALHO, 1914, p. 15)

Boris Fausto salienta que são justamente os preconceitos ante o imigrado que provocam reações coletivas que os levam a se fecharem em grupo, reforçando os anseios de coletividade (FAUSTO, 1976, p. 33).

3. O regionalismo urbano de Bananére

Wilson Martins adverte que a literatura realizada por Bananére foge às raias do mero regionalismo, uma vez que o fenômeno da ―colonização estrangeira‖ vinha sendo discutido e analisado já há alguns anos, enquanto fato sociológico, político e econômico, de modo que a produção satírica do jornalista operava, naquele momento, ―uma transformação em dado mental‖ quanto à aceitação do imigrante italiano pela sociedade paulista. Embora a literatura dialetal ou macarrônica representasse uma forma sutil de regionalismo, ela se diferençava daquele regionalismo identificado exclusivamente com o sertão e o sertanejo. Wilson Martins insere os escritos bananerianos num ―novo regionalismo‖: ―o regionalismo urbano da grande cidade industrial, fundamente marcada, se não submergida, pelas ondas sucessivas de imigração italiana‖. A despeito de Bananére ter incorporado a fala anárquica do imigrante aos seus escritos, ele foi considerado pelo referido crítico como um ―avatar do nacionalismo, mesmo nas suas aparências de afetuosa ironia‖ (MARTINS, 1976, p. 111). Em relação ao regionalismo que se oficializava, o de Bananére é inovador em alguns aspectos, principalmente no que se refere à inserção da voz do imigrante italiano nas páginas da literatura nacional. Até então, a literatura paulista pré-modernista, com tendências regionalistas muito marcadas, ainda não havia incorporado as significativas mutações da sociedade advindas com a imigração italiana, embora o italiano já aparecesse no teatro popular, mesmo que raramente, como um elemento ornamental (CARELLI, op. cit., 126). Lúcia Miguel-Pereira classifica como regionalista qualquer livro que, intencionalmente ou não, traduza peculiaridades locais, de modo que teríamos que 434 classificar desse modo a maior parte da nossa ficção. Para evitar generalizações, Miguel- Pereira pondera que só pertencem de fato ao regionalismo aquelas ―obras cujo fim primordial for a fixação de tipos, costumes e linguagem locais, cujo conteúdo perderia a significação sem esses elementos exteriores, e que se passam em ambientes onde os hábitos e estilos de vida se diferenciem dos que imprime a civilização niveladora‖ (MIGUEL- PEREIRA, 1973, p. 179). Com base nessas considerações, podemos aceitar que a escrita bananeriana apresenta traços regionalistas, mas de um regionalismo muito à frente daquele vinculado ao ruralismo e ao provincianismo e que tinha como principal atributo o pitoresco. Pelo fato de tentar documentar mudanças de valores socioculturais que se processavam na sociedade paulistana nas primeiras décadas do século XX, as sátiras de Bananére, embora escrita marginal, podem ser concebidas como precursoras daquele regionalismo urbano que logo depois ganharia espaço nos contos ítalo-paulistas de António de Alcântara Machado no Modernismo. Paralelamente ao regionalismo de caráter eminentemente rural, que tentava resgatar um sentido de nacionalidade fundada na tradicional trindade étnica, Bananére trazia para os seus escritos a voz e o comportamento do imigrante italiano, incluindo-o, pelo viés do humor etnocêntrico, à mescla constituinte da nossa formação racial. Também não pode ser colocado à margem dessa discussão o fato de Bananére ter empregado intencionalmente a fala estropiada do imigrante italiano como máscara verbal para denunciar as mazelas sociais e os desmandos dos políticos da Primeira República, o que, muitas vezes, entrava em desacordo com a voz do elemento nacional representado pelo caipira, acomodado, quieto, apático e indiferente à realidade política e social, como se configurava nos autores regionalistas. Há quem entenda que a máscara irreverente, o avesso do caipira apático e sorna da literatura oficial, teria servido de álibi a Bananére, como uma terceira pessoa que passaria a isentá-lo de todas as tomadas de posição não só contra os desmandos dos políticos, mas contra a mentalidade estanque de alguns representantes da cultura oficial, conservadores e defensores dos costumes anacrônicos. Enfim, o regionalismo ―urbano‖ de Bananére vai de encontro à modernidade, acenando para as novas relações de poder e para as mudanças sociais e econômicas; abrindo caminho para o reconhecimento e aceitação do ―outro‖, para as novas potencialidades, mentalidades e contribuições protagonizadas pelos ―novos mamalucos‖, como quer António de Alcântara Machado no ―Artigo de Fundo‖ ao Brás, Bexiga e Barra 435

Funda. Embora aqui o termo ―mamaluco‖ nos faça entender que o elemento peninsular é que se amalgamaria ao nosso caldo étnico, no sentido antropofágico do termo.

REFERÊNCIAS: BANANÉRE, Juó. La Divina Increnca. São Paulo: Ed. 34, 2001. (Reedição da versão de 1915).

CAPELA, Carlos Eduardo S. Juó Bananére: Irrisor, Irrisório. São Paulo: Edusp/Nankin, 2009.

CARELLI, Mário. Carcamanos e Comendadores: Os Italianos de São Paulo – da Realidade à Ficção. São Paulo: Ática, 1985.

CARMO, Maurício Martins do. Paulicéia Scugliambada, Paulicéia Desvairada: Juó Bananére e a Imagem do Italiano na Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Eduff, 1998.

CARPEAUX, Otto Maria. ―Uma voz da democracia paulista‖, in Presenças. Rio de Janeiro: INL/MEC, 1958, pp. 200-204.

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437

A REPRESENTAÇÃO DO CÁRCERE NA POESIA DE RESISTÊNCIA DE CHARLOTTE DELBO (FRANÇA) E LARA DE LEMOS (BRASIL)

Évila Ferreira de Oliveira142

“Toda obra de arte, em suma, pode e deve ser lida como um testemunho da barbárie”. (WALTER BENJAMIN)

Dedico esse ensaio à memória de Antoni Dobrowolski, o mais velho sobrevivente de Auschwitz, que faleceu, aos 108 anos, no dia 23 de outubro 2012. E à de Charlotte Delbo, pela passagem do seu centenário de nascimento.

Resumo: O mundo foi testemunha do holocausto judeu, que muitos preferem chamar de Shoah. No que tange è memória dessa catástrofe, o Brasil, mesmo tendo sido um país que combateu na Segunda Guerra mundial, não apresenta uma crítica que esteja à altura do que aqui é produzido sobre a Shoah. Os sobreviventes que, por uma série de motivos, acabaram aportando no Brasil, não encontraram aqui um público acolhedor aos seus testemunhos. No que diz respeito à memória da Ditadura Civil-Militar, o Brasil passou por dois importantes períodos ditatoriais, dos quais o que perdurou de 1964 a 1985 é o que importa para esse trabalho. Durante aquele período, poetas militantes políticos também foram perseguidos, presos, exilados e mortos. O que se tem verificado é que a poesia criada no cárcere, nesse período ditatorial, apesar da sua densidade poética, do seu valor testemunhal e da sua função de resistência, não tem sido investigada com a devida abrangência. Recuperar documentos que testemunham essas catástrofes, criticá-los e torná-los conhecidos do público, são formas de que se pode lançar mão para manter viva a memória desses eventos e, também, de preparar as novas gerações para que se posicionem contra toda forma de violência. Pretende-se proceder a uma abordagem comparativa em escritos de Charlotte Delbo (poeta francesa, presa política na Segunda Guerra Mundial 1940-1945) e Lara de Lemos poeta brasileira presa política na Ditadura Civil Militar de 1964-1985, no Brasil), na perspectiva de uma poesia de resistência e de testemunho desses eventos.

Palavras-chave: Literatura e violência; Resistência e testemunho; Segunda Guerra mundia e Ditadura Civil-Milita no Brasil.

Résumé: Le monde a été témoin de l'Holocauste juif; de nombreux auteurs préfèrent l'appeler la Shoah. En ce qui concerne à la mémoire de cette catastrophe, le Brésil, même s ‗il était un pays qui a combattu dans la Seconde Guerre mondiale, ne présente pas une critique qui soit en rapport avec ce qui se produit ici sur la Shoah. Les survivants qui, pour diverses raisons, sont venus au Brésil, n'ont pas trouvé un public accueillant pour leur témoignages. En ce qui concerne à la mémoire de la Dictature Civile-Militaire, le Brésil a connu deux grandes périodes de dictature, dont le qui a duré de 1964 à 1985 c‘ est qui importe pour ce travail. Pendant cette période, les poètes, les activistes politiques ont également été persécutés, emprisonnés, exilés ou tués. On a remarqué que la poésie créée en prison, dans cette période dictatoriale, malgré sa densité poétique, sa valeur de témoignage et de sa fonction de résistance, n'a pas été étudié dans une portée suffisante.

142 Professora Assistente de Teoria da Literatura na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e na Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutoranda em Literatura e Cultura pela Universidade do Estado da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]. 438

Récupérer des documents qui témoignent de telles catastrophes, de les critiquer et de les faire connaître au public, sont des moyens que l'on peut recourir à garder vivante la mémoire de ces événements, et aussi pour préparer les nouvelles générations à se positionner contre toutes les formes de violence. Il est prévu de procéder à une approche comparative dans les écrits de Charlotte Delbo (poète française, détenue politique dans la Seconde Guerre mondiale 1940-1945) et Lara de Lemos poète brésilienne, détenue politique pendant la Dictature Civile-Militaire de 1964-1985 au Brésil), dans la perspective d'une poésie de la résistance et témoin de ces événements.

Mots clés: Littérature et violence; Résistance et de témoignage; Seconde Guerre mondiale et Dictature Civile-Militaire au Brésil.

1. Introdução

* No inferno Ninguém vê morrer seus companheiros No inferno A morte não é uma ameaça 5 No inferno Não se tem mais fome e nem sede No inferno Não mais se espera No inferno 10 Esperança não mais há E quando há, é de angústia De um coração de onde o sangue escorre Tens razão quando dizes que o inferno É aqui. (DELBO, 2007, p. 33-4)143

Cantarei versos de pedras.

Não quero palavras débeis Para falar do combate. Só peço palavras duras, 5 Uma linguagem que queime. [...] Prefiro o punhal ou foice Às palavras arredias. Não darei a outra face. (LEMOS, 1997, p. 22)

Esses dois poemas são de autoria de Charlotte Delbo e de Lara de Lemos, respectivamente, ambas presas políticas em um período de exceção. Charlotte Delbo, poeta francesa, comunista, foi detida, em Paris, pelos nazistas no dia dois de março de 1942, em

143 Tradução livre, pela autora desse trabalho. 439 razão das suas atividades clandestinas na Resistência. Estava no último comboio de políticos franceses não judeus que foi deportado para Auschwitz II-Birkeneau. Ao passo que Lara de Lemos, poeta brasileira, jamais se afiliou a nenhum partido político, mas era contra a violência da Ditadura Civil-Militar que teve início com o Golpe de 31 de março de 1964. Por esse motivo esteve presa duas vezes. O motivo da prisão de ambas gira em torno da intolerância quanto às convicções políticas, o que provocou a tentativa de apagamento da identidade e das identificações com a privação da liberdade. Os textos poéticos aludidos se constituem na fisionomia144 da violência ocorrida nos recônditos dos campos nazistas, durante a Segunda Guerra mundial (1940-1945), e na obscuridade das celas brasileiras, na Ditadura Civil-Militar que teve lugar no período em epígrafe. De acordo Huyssen (2000), foi no início dos anos 1980 que os discursos de memória (especialmente a respeito de eventos-limite) começaram a ganhar destaque na Europa e, depois, nos Estados Unidos impulsionados pelas questões ligadas ao Holocausto judeu (que certos autores preferem chamar de Shoah145). Sobre o referido evento escreveram-se relatos cada vez mais intensos e, mais tarde, surgiu o movimento testemunhal. Para o autor, a emergência da memória como uma das preocupações culturais e políticas das sociedades ocidentais tem se constituído em fenômenos por demais surpreendentes. Essa memória teria sido ativada com uma diversidade de eventos relacionados ao Terceiro Reich, fortemente politizada e fartamente reprisada. Assim, os eventos sinistros que prenunciaram a Segunda Guerra mundial e que tiveram início desde 1933, passaram a ser relembrados a partir de 1983 de modo incessante e sempre muito bem cobertos pela mídia internacional, como se fosse uma ―maneira de comemorar e avaliar os erros do passado‖. (p.16). O Brasil, mesmo tendo sido um país que combateu na Segunda Guerra mundial e que tem registros importantes de preservação de vida de judeus, como é o caso de Araci Rosa146, não apresenta uma crítica que esteja à altura do que é produzido com esse tema em

144Termo colhido de Alfredo Bosi (2002) nessa citação: ―Valores e antivalores não existem em abstrato, isto é, absolutamente. Tem todos, para cada um de nós, e de modo intenso para o artista, uma fisionomia. Os poetas os captam e os exprimem mediante imagens, figuras, timbres de vozes, gestos, formas portadoras de sentimentos que experimentamos em nós ou pressentimos no outro‖. In: Literatura e resistência. (p. 120). 145 ―Shoah:‖ (expressão que significa ―catástrofe‖ ), é utilizada para designar o genocídio perpetrado pelos nazistas e seus aliados. 146 Aracy também é conhecida por ter seu nome escrito no Jardim dos Justos entre as Nações, no Museu do Holocausto - Yad Vashem – em Israel, por ter ajudado muitos judeus a entrarem ilegalmente no Brasil durante o governo Vargas. Ela é uma das pessoas homenageadas também no Museu do Holocausto de Washington (EUA). Fonte: Pollianna Millan. A heroína que o Paraná não conhece. In: Gazeta do Povo, 09/10/2010, seção Vida e Cidadania, p. 8. E Anthony Leahy. Instituto da Memória. In: Gazeta do Povo, 9/10/2010. 440 nosso País. Segundo o crítico Marcio Seligmann-Silva (2003), a presença da Shoah na literatura brasileira é, ainda, extremamente marginal, um nicho pouco tocado. Mesmo hoje em dia, continua esse autor, no início do século XXI, com a importância atribuída pelos estudos culturais ao estudo dos relatos de sobreviventes e de minorias perseguidas, este panorama não mudou. Os sobreviventes que, por uma série de motivos, acabaram aportando no Brasil, não encontraram aqui um público acolhedor aos seus testemunhos. E, da mesma forma, o escritor brasileiro que eventualmente se voltou para este tema, tampouco respondeu a uma questão cultural vista como importante. No Brasil, as pesquisas atuais que tratam da relação entre literatura e violência coincidem com o momento de redemocratização do País, em especial, a partir dos anos 1990, quando tem início o restabelecimento de um ambiente mais propício no interior das instituições universitárias. A crítica brasileira, Valéria de Marco (2004), ao tratar da relação entre literatura e violência, além de deixar claro haver uma espécie de interdependência entre literatura violência e testemunho, diz que a expressão ―literatura de testemunho‖ só começou a ser debatida nos meios literários, com maior intensidade, a partir dos anos 1990. No que diz respeito à memória da Ditadura Civil-Militar, o Brasil passou por dois importantes períodos ditatoriais, dos quais o que perdurou de 1964 a 1985 é do que nos ocuparemos nesse pequeno trabalho. Durante aquele período, poetas militantes políticos também foram perseguidos, presos, exilados e mortos. O que se tem verificado é que a poesia criada no cárcere, ou que a este faça alusão, apesar da sua densidade poética e do seu valor testemunhal e, enfim, da sua significativa importância para registro de uma realidade recente do contexto político e social do Brasil, não tem sido investigada com a devida abrangência no âmbito acadêmico. Segundo parece, poucas importantes obras críticas tratam da geração 60: a de Nelly Novaes Coelho 147, publicada em 1971, outra, de Pedro Lyra148, publicada em 1995.

Resistência, testemunho e testimonio

A poesia lírica, evocando uma das falas de Theodor Adorno, ―mostra-se mais profundamente garantida socialmente ali onde não fala segundo o paladar da sociedade, [...],‖(TORRES FILHO, 1980. p. 198). Resistir, na visão de Bosi (2002), traz na sua origem uma carga conceptual mais ética do que estética, porque é opor a própria força à força do outro(p. 118). E, ao destacar o traço ético da resistência, ele forçosamente levanta outra

147 Nelly Novaes Coelho. Carlos Nejar e a Geração de 60´, São Paulo, Saraiva, 1971. 148 Pedro Lyra. Sincretismo – A poesia da Geração-60. Introdução e Antologia. Rio, Topbooks/ Fundação Rioarte/Fundação Cultural de Fortaleza, 1995. 441 questão: como a literatura, que pertence ao campo do estético, pode estar associada à noção de resistência? Opor-se, portanto, à sublevação do indivíduo à categoria de coisa, ostentando desconformidade com os ditames de uma época, ou de um evento-limite, talvez seria uma das respostas, uma vez que contradizer a generalidade abusiva das ideologias, como afirmam tanto Adorno quanto Bosi, são formas de resistência que estão no cerne da arte. Com relação ao testemunho, a teoria da literatura apresenta dois vastos campos: um, oriundo da realidade da Europa e América do Norte, que se debruça sobre as questões ligadas à Segunda Guerra mundial e, outro, denominado de Testimonio, que diz respeito aos estudos da realidade latino-americana. O testimonio é uma literatura tributária da pauta sobre testemunho formulada no júri do Prêmio Casa das Américas no ano de 1969. O Prêmio Casa das Américas – e por Casa das Américas149 entenda-se Ministério da Cultura de Cuba – foi, na verdade, um bem-sucedido projeto da Revolução Cubana que tinha como propósito estimular ―a construção da verdadeira história de opressão da dominação burguesa na América Latina, feita a partir da experiência e da voz dos oprimidos‖. (MARCO, 2004, p.46-7). A instituição do referido Prêmio exigia, dos participantes, além de qualidade literária, fontes fidedignas de informação, documentação e ―conotação política‖ (ANDRE, 2002, p. 14). Outras marcas que se utilizam para caracterizar o ―gênero‖ testemunho são: o texto ser escrito em primeira pessoa; possuir vínculo estreito com a história; o valor ético sobrepor-se ao estético; expressar compromisso com a verdade; exprimir desejo de justiça; vontade de resistência; a presença do trauma comparece como aspecto determinante; sintomas de ressentimento; a condição de minoridade e, enfim, a representação dizer respeito a um evento coletivo. A Shoah e as ditaduras instauradas pelo mundo e, em especial na América Latina, foram, em potencial, os detonadores de uma poesia nascida sob o signo da violência, espontaneamente criada, antes de ter sido refletida, e, dado o seu teor de horror, arredia à representação. São escritos marcados pelo padecimento, provações e desesperança de voz que, muitas vezes, só tivera tempo de escrever um só poema, um só bilhete; apenas um só instante para efetivar testemunho capaz de exprimir o que restou do sonho de liberdade e de dignidade humana. Este trabalho é uma breve reflexão a respeito da representação do cárcere nos dois poemas que selecionamos e que se encontram nos livros ―Une connaissence inutille,‖ volume

149 Quarto de despejo foi referida na Revista Casa das Américas, de número 03, publicada em 1960. Desse Prêmio participou o poeta brasileiro Pedro Tierra, com o livro de poemas intitulado Poemas do povo da noite, talvez a única modalidade poesia, e teve menção honrosa. 442

II da trilogia Auschwitz et après150, de Charlotte Delbo, e Inventário do medo de Lara de Lemos, respectivamente. O modus faciendi poético dessas duas autoras toma um rumo que está para além de uma mera designação a respeito da poesia, pois, ambas, rompem com os padrões da lírica tradicional: Charlotte por compor uma poesia inusitada que congrega, de modo simultâneo, outros gêneros e, Lara, por compor uma lírica, nada obstante intimista, profundamente marcada pelo aspecto social, o que a tornou pioneira na literatura feminina de cunho social no Rio Grande do Sul. O termo inferno, adotado por Charlotte, constitui-se na metáfora perfeita para representar a fisionomia de um cárcere, de um campo de trabalhos forçados e/ou de extermínio. Todo o poema é construído pela consecução de ―nãos‖. Mesmo os dois últimos versos, que trazem expressões afirmativas, essas exprimem a conclusão mais negativa, que é a constatação de que, realmente um campo é (semelhante) ao inferno, que é a representação do que há de pior no imaginário dos seres humanos. Tanto os horrores da Segunda Guerra, quanto o das ditaduras, suscitaram nos escritores aflição quanto à questão do representar e do testemunhar. Mas, é com a confiança no poder de representação da linguagem, que Charlotte Delbo dá o seguinte depoimento: ―Alguns disseram que a deportação não podia entrar na literatura. [...] Eu estive lá, por que não teria o direito de escrever sobre isso? Não há palavras para descrever? Então que se vá encontrá-las. Nada deve escapar à linguagem‖. (EICHENBERG, 2013, p.1). Depoimento que é, mais tarde, consubstanciado nesses versos:

E eu estou de volta, Então você não sabe, você, Que retornamos de lá de lá? Que acabamos de chegar Que se retorna de lá de baixo? E, mesmo, de mais longe? (DELBO, p. 2007, p. 183) [...] Eis que estou de volta d‘entre os mortos (DELBO, 2007, p. 188)151

150 Auschwitz et après é constituída por três volumes: I ―Aucun de nous ne reviendra‖, publicado em 1965; II ―Une connaissance inutile‖, publicado em 1970 e III ―Mesure des jours‖ publicado em 1971. 151 Tradução livre da autora desse trabalho. 443

E a poeta brasileira, Lara de Lemos, assim se coloca para o combate com esse testemunho no poema ―Resistência‖:

Cantarei versos de pedras.

Não quero palavras débeis Para falar do combate. Só peço palavras duras,

Uma linguagem que queime. [...] Prefiro o punhal ou foice Às palavras arredias. Não darei a outra face. (LEMOS, 1997, p. 22)

Mesmo constatando que o horror do cárcere pode se mostrar arredio à representação, mesmo desconfiando da palavra e do ―seu jogo de inventar vida e morte‖, (LEMOS, 1997, p. 10), é com a palavra que a própria Lara resiste e testemunha. Os escritos dessas autoras foram construídos sob o signo da violência e se constituem em matéria de resistência e testemunho de fatos ocorridos durante a Segunda Guerra mundial e a Ditadura Civil-Militar no Brasil.

Conclusão

Eventos-limite, pela singularidade trágica, como o são todas as guerras, ditaduras e formas de genocídio, cujos viventes do século XX foram testemunhas, deixam a herança de efeitos nefastos, os quais passam a se constituir na base ética e política sobre a qual se farão reflexões a respeito da memória historiográfica desse passado. E como impedir que eventos tais se repitam? Essa foi a grande questão do desassossego de Theodor Adorno. Na Dialética do esclarecimento (1995), por exemplo, ele e Max Horkheimer buscaram uma resposta que justificasse a Shoah. Todavia, ao que parece, não deram conta da questão central, que seria entender as potenciais causas dessa barbárie. A Dialética nos parece, por 444 isso, obra esclarecedora mal-sucedida, embora seja importante pelas respostas que deixa em aberto. Mas o próprio Adorno se redime em reflexões posteriores, em especial em Palavras e sinais. Modelos críticos (1995), no espaço dedicado à ―Educação após Auschwitz,‖ quando debita à educação formal a condição, não tão somente de resistir, mas de impedir que males como a Segunda Guerra mundial e, por extensão, as ditaduras, tornem a se repetir. A informação, o conhecimento sobre tais eventos deverão, por dever de herança e, também, de justiça, ser comunicados às gerações posteriores para que estas tenham condição de impedir a repetição de tamanho mal. Em suma, acredita Adorno (1995), ―a exigência de que Auschwitz não se repita é primordial em educação.‖ (p. 104). Para tanto, é necessário preservar a memória através, e, especialmente do estudo e divulgação dos escritos que testemunham os referidos eventos, atraindo-os para que reverberem sempre, em tempo presente, garantindo, assim, a permanência da memória.

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446

VIAGEM PELO ESPACITEMPO DO ENTRE-LUGAR EM CANDOMBLÉ LISBOA

Fábio Rodrigo Penna152

Prof. Dr. Maria Teresa salgado (Orientadora) 153

Resumo: O presente artigo pretende analisar como são representadas, no campo artístico, a percepção e a aceitação da mistura das identidades ininterruptas em um mesmo espaço e tempo, marcadas pelo processo conturbado de hibridização. Essa reflexão acerca do hibridismo seria realizada através de uma voz narrativa que descreve154 o olhar de um flâneur que transita pela cidade de Lisboa, perdendo(-se) e achando155(-se) na viagem156 que faz no espacitempo do entre-lugar. Assim sendo, o conto ―Candomblé Lisboa‖, de Evando Nascimento, será observado como contribuição para a construção da etnicidade no campo literário.

Palavras-chave: Relações Étnico-raciais; Literatura; Hibridização.

Abstract: This article aims to analyze how they are represented in the artistic field, perception and acceptance of seamless mix of identities in the same space and time, marked by the troubled process of hybridization. This reflection on the hybridity would be accomplished through a narrative voice that describes the look of a flâneur transiting through the city of Lisbon, losing and finding himself on the journey that makes the espacitempo the in-between place. Thus, the short story "Candomblé Lisbon," Birth of Evando, will be seen as a contribution to the construction of ethnicity in the literary field.

Keywords: Racial Ethnic Relations; Literature; Hybridization.

―Candomblé Lisboa‖ é um conto, que se encontra no livro Cantos do mundo, de

Evando Nascimento. Como sugere o próprio autor, é um livro que provoca no leitor

152 Mestrando em Relações Étnico-Raciais no CEFET (Rio de Janeiro). Pós-graduado em Literaturas Portuguesa e Africanas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduado em Letras – Português/Literaturas de Língua Portuguesa na UFRJ. E-mail: [email protected] 153 Professora do Programa de Pós Graduação em Relações Étnico-Raciais no CEFET e do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (UFRJ). 154 Marcando um enunciado híbrido. 155 Ou ganhando. 156 CANCLINI. 2001: Viagem é um termo de tradução (deslocamento). 447 reflexão filosófica e psicológica. Cremos em mais: um tanto confessional tamanha a busca pela verossimilhança. Nesse livro, encontramos um espaço revirado o qual nos obriga a nos deslocarmos para acompanhar-lhe a leitura, proposição de uma viagem deleitável e sedutora. Sendo assim, ao previsível não há espaço. Consoante com essa movimentação proposta ao leitor, o termo hibridismo, que modificou a abordagem acerca de identidade, cultura e binarismos, será utilizado para discutir as questões que o conto ―Candomblé

Lisboa‖ apresenta, quando caracteriza culturas mais mistas, localizadas no entre-lugar, espaço fronteiriço que possibilita a conceituação na inscrição do hibridismo da cultura, longe do exótico157. Como fundamentação teórica serão aplicados os conceitos de críticos como Homi Bhabha e Stuart Hall para abordar as ideias acerca de hibridação e de entre- lugar.

Nesse conto, distribuído em dez parágrafos, temos a narrativa da construção de encontros inesperados entre culturas, histórias, mercados que convergem para um único e mesmo centro, sendo os mesmos o núcleo central sem hierarquia entre ambos, corroborando a proposta do processo de hibridação. Todavia, esses enlaces não são apenas temáticos, a estrutura formal do texto comunga do mesmo conceito. Um exemplo é o próprio título do conto ―Candomblé Lisboa‖, que mantém uma relação de paratextualidade com o conto. Nessa relação de transtextualidade158, torna-se um pouco inapropriado classificar a priori qual termo, desse sintagma nominal, é o núcleo e qual está à órbita do mesmo. A relação que há entre esses dois termos morfossintaticamente parece similar

(substantivo / núcleo). Entre os dois não há hierarquia sintática. Um princípio híbrido linguístico de paridade poderia ser verificado, já que um deles deveria atuar adjunto, à margem, ao nome nuclear, mas não o há. Não é isso ou aquilo, e sim isso e aquilo. Não há ideia núcleo entre ―candomblé‖ e ―Lisboa‖, a não ser uma questão de tema e rema, o termo que introduz a sentença teria valor semântico principal. Entretanto, é uma proposta

157 COSER, 2005, p. 174. 158 SARFATI, 2010, p. 62. 448 interessante de centralização aos dois termos no índice paratextual que se adapta ao paradoxo da globalização contemporânea: as coisas parecem mais ou menos semelhantes entre si, todavia, concomitantemente, há a proliferação das ―diferenças‖159.

Acerca da temática, temos uma viagem de encontro do personagem com sua própria redefinição, do seu Self, na observação do outro, (re)negociando com as diferenças.

Essa mistura entre culturas distintas e periféricas ocorre pelo olhar do sujeito do enunciado, um flâneur. O espaço central decresce gradativamente especificando o local mais

íntimo às tensões culturais: Lisboa, bairro mouro, uma casa de artigos religiosos afro- brasileiros; e por esses espaços um personagem brasileiro baiano carioca a flanar. Assim a narrativa propõe o espaço híbrido do entre-lugar, o qual o personagem ex-cêntrico160, um sujeito fragmentado pela memória, adentra como se fossem o espaço e o tempo míticos, psicológicos, fazendo-o brincar com a memória: jogo de lembrar e esquecer, ou seja, aquilo que será selecionado pela memória. Esse conto é uma forma de expressar a importância da diversidade cultural na era da globalização contemporânea, que é marcada pela compreensão do espaço e tempo161.

De acordo com Hall, nesse conto, no centro aparecem as margens, que negociam e redefinem, considerando alguns pontos onde há as diferenças, os padrões de relacionamentos culturais conforme seus valores tradicionais e as características do país adotado, ou visitado. Isso fortalece as identidades existentes. Através de culturas mais mistas, a tradição híbrida poderia compor uma relação entre o passado, a comunidade e as identidades162.

Hibridismo é um conceito que surge na área da Biologia com uma conotação negativa acerca do cruzamento racial como degradação. A mistura entre raças seria um dado de enfraquecimento à perpetuação das raças fixas. Ênfase à pureza racial. Com a ideia

159 HALL, 2009, p. 57. 160 Além de não pertencer àquele centro, há outra questão: a de aparentar turista. 161 HALL, 2009, p. 56. 162 Idem, p. 70. 449 do hibridismo migrada para a área da Linguística, outras abordagens foram feitas: línguas crioulas, comércio, tecnologia, crítica cultural. A partir disso, as abordagens críticas sobre hibridismo, na pós-modernidade, enfatizam a construção de identidades em andamento, impuras, periféricas, às margens em (re)negociação com a cultura hegemônica central.163

Segundo Hall164, na pós-modernidade, as diferenças, que se tornam foco da discussão, surgem dentro do global, configurando um ―localismo‖, que aponta os holofotes

às margens para o centro da Metrópole. Isso se dá, pois famílias e comunidades diaspóricas

(ou o próprio Mercado), considerando seus valores tradicionais em comunhão com as características do país ou local adotado, negociam e redefinem seus padrões de relacionamento. Assim, a tradição torna-se híbrida pela globalização, sem identidade primordial tentando combinar formas modernas de vida.

O hibridismo é um termo utilizado para descrever o processo de mistura entre as culturas étnicas nacionais das margens com as da Metrópole, identificando as estratégias de negociação em condições de desigualdade, tornando o mundo mais traduzível ao convívio em meios diferentes.165

A nova configuração de culturas mais mistas, de transculturação (comunidades cosmopolitas) ocasionada no processo do hibridismo, que traduz mestiçagem, sincretismo etc., ocorre em um espaço em que as identidades e relações seriam construídas no jogo de poder entre centro e subalterno. Bhabha nomeia esse espaço ao subalterno de identificar a estratégia de negociação em condições de desigualdade de entre-lugar166.

Para Bhabha167, o entre-lugar é o ―além‖ fronteriço do presente em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade, provocando uma sensação de desorientação. O entre-lugar é a captura dessa margem, onde o sujeito

163 COSER, 2005, p 177. 164 HALL, 2009. 165 CANCLINI, 2001 166 COSER, 2005. 167 BHABHA, 1998. 450 descentrado (ex-cêntrico) viaja (desloca-se), desconstrói-se e constrói-se, fortalecendo sua identidade, acessando, abandonando, sendo excluído, negando à vista do diferente. É o local do processo para hibridação.

No conto ―Candomblé Lisboa‖, o narrador introduz a narrativa indicando o espaço e o tempo da narrativa e o destino do personagem: ―encontro marcado no Bairro

Alto‖ (NASCIMENTO: 2011: p. 147). O personagem encontrará, à noite, uma mulher duas horas depois do presente da narrativa. O tempo presente é um ―fim de tarde outonal‖ de sol, período pré-crepuscular de transição entre claro e escuro, com conotação colorida

(formas e cores concretas) e melancólica, caracterizando a estação mais romântica do ano

(outono) o espaço e provável destino do personagem: praça Martim Moriz; bairro da

Mouraria (onde há tradição popular do fado, muçulmanos, judeus, chineses, indianos e, logicamente, portugueses); Castelo de São Jorge (nome derivado da devoção do santo católico padroeiro dos cavaleiros e das cruzadas. Ergue-se em posição dominante sobre a cidade de Lisboa. Símbolo do catolicismo no reduto muçulmano); Alfama (o mais antigo bairro de Lisboa, de origem epistemológica árabe). Esses bairros, pontos de encontro de gentes de diferentes culturas e gerações, assemelham-se na mistura pluriétnica que apresentam pelas comunidades e pelo mercado, já que são rotas turísticas. É iniciada a viagem do personagem flâneur baudelairiano, que anda pelos bairros da cidade168, observando o social e estético das miscelâneas, a fim de experimentá-las. Assim, pelo flanar pela a cidade, o narrador começa descrevê-la pelo olhar do personagem que procura depreender os fenômenos urbanos.

Sua condição de flâneur é reforçada pelo fato de não ter apreço e espantá-lo a vida gregária homogênea, em bandos: ―grupo de árabes [...] andam em bandos [...] qualquer

168 Nesse caso pode se tratar de um turista. 451 cidade do mundo. Causava-lhe certo espanto‖169 logo arriba (migra) sozinho para seu flanar.

Acompanhando as trilhas de bonde, como diretrizes para não se perder do seu destino, a descrição citadina das ruínas e becos desses bairros de Lisboa se dá em comparação a Nápoles, a Quartier Latan e Salvador. Pequeno mas comportando um cosmo cultural com sua cor local e fonética170 em seus labirintos quase sem sol. Esse provençalismo cosmopolita do espaço e do tempo prepara o personagem ao espaço e tempo psicológico do entre-lugar.

De repente, uma loja de artigos religiosos afro-brasileira tira-lhe a consciência, adentrando-o animadamente na mesma. Ao perder-se dos trilhos e adentrar a loja, o narrador adianta o leitor acerca do espanto que o personagem terá acerca da pureza da organização dos artigos à venda (―o que mais espantará, quando mentalmente retornar à primitiva cena, será o aspecto depurado do cenário‖171). É como se ele estivesse em estado de transe ao observar a esse brechó organizado paradoxalmente (―a um só tempo confuso e organizado‖172) ao fundo musical de música afro.

É nesse hibridismo de aceitação e negação cultural (―escultura de São Jorge [...] só

à pintura de Iemanjá, emergindo das águas, se comparava‖173) que o personagem adentra o espacitempo do entre-lugar mítico (psicológico). O personagem híbrido brasileiro baiano carioca é transportado é transportado à recordação da infância, mais especificamente aos terreiros de candomblé. O espacitempo (neologismo que enfatiza a situação descrita), inesperadamente em Lisboa, remete à infância, lugar puro, no qual os pais estão à frente do infante, quando tudo é mágico e promissor. Provavelmente, o personagem, adentrando o

169 NASCIMENTO, 2011, p. 147. 170 Em Portugal, os falantes costumam "eliminar" as vogais átonas, pronunciando bem apenas as vogais tônicas (Exemplo: ―Qu‘ria‖) 171 NASCIMENTO: 2011: p. 148 172 Idem, p. 148. 173 Idem. 452 presente do tempo psicológico do entre-lugar, percebeu que aquilo que, em sua infância, considerava impuro e inferior, tornou-se foco da atenção do seu presente a instigá-lo.174

Ainda em estado de letargia, o personagem inquire a proprietária da loja, procurando respostas que preencham as dúvidas causadas pela viagem psicológica. A questão é o porquê do pedaço afro-baiano se encontrar num bairro mouro da católica

Lisboa. Todavia, o objetivo dela era apenas o comércio, mercado. Foi iniciada por um pai de santo carioca, os artefatos religiosos vinham do Brasil (Rio/Bahia), ―mas as ervas eram africanas‖ (NASCIMENTO: 2011: p. 148). Nesse caso, o hibridismo é aproveitado por uma simples questão de mercado, não há uma questão de resistência cultural em negociação. Além disso, o conectivo ―mas‖ busca uma pureza primordial que dê mais credibilidade ao seu produto.

Deu-se dessa forma um desejo de reconciliação com a memória e reflexão sobre a identidade ininterrupta num universo de ―mestiçagem‖ e ―sincretismo‖, traduzidos pela hibridização. Após despertar do transe provocado pelo acesso ao entre-lugar, que o fez passar por uma ponte de três vértices [duas ex-colônias (Bahia e Luanda) a recolonizar a

Metrópole], o personagem não sai o mesmo dessa viagem psicológica. Antes ―em nada acreditava‖, todavia esse pretérito imperfeito, contrastando com os perfeitos adjacentes

(―quis‖, ―recebeu‖, ―saiu‖), remexe o passado tornando-o sua consequência, o presente, outra. Sair da loja sem pegar um cartão é prova de que deseja retornar a esse espaço mítico do entre-lugar, sem que o mesmo torne-se ficção no sentido de ilusão. O narrador corrobora esse estado de continuação e descontinuação em que o personagem se encontra através dos desvios da norma gramatical: ―nunquinha‖ e ―Vagueou até o fabuloso Castelo onde certa vez um homem, e a cidade. Bailava no rosto um traço [...]‖175 (anacoluto). A linguagem é reinventada para estar nesse outro espaço com a tradição, sendo reconstrução dentro da nova cultura.

174 COSER, 2005, p. 170. 175 NASCIMENTO, 2011, p. 149. 453

O jogo de memória motivado pelo entre-lugar tira o personagem do espaço concreto. Após a fusão do tempo e ainda desorientado e realizado, segue a outro imaginário: ―Vagueou até o fabuloso Castelo [...] no rosto um traço de sol-posto e sorriso

[...]‖. Apresentando a hibridização entre Alfama, Bahia e Luanda, órbitas constituintes do centro em entre-lugar, o flâneur recorda que esse espaço já se encontrava em sua memória.

Terreiro de Jesus, em Salvador, era espaço no qual as referências religiosas católicas e animistas africanas hibridizavam-se por quem que desejasse crer.

A única forma desse personagem flâneur sair desse entre-lugar mítico e hibridizado é retomar a rota metafórica dos trilhos do bonde, uma forma de orientação para que não se perca mais, ainda que haja timbre hibridizado, como se fosse realizado por nereidas a seduzirem Ulisses (―Foi em direção à Baixa, no rastro dos trilhos, não sem antes ouvir um timbre abrasileirado‖176). O sujeito da narração rompe com o tempo cronológico e cartesiano da narrativa para mostrar como o personagem, hipotético turista adepto desse mercado, constata que a cidade se encontra mais hibridizada. Se antes, em Gonçalves Dias,

―Minha terra tem palmeiras / Onde canta o sabiá / As aves que aqui gorjeiam / não gorjeiam como lá‖, no presente da narrativa do conto esse ―lá‖ (Brasil), espaço do sujeito lírico de ―Canção do exílio‖, já negociou sua condição diaspórica, hibridizada, com esses bairros cada vez mais abrasileirados pelo tropical de certas palmeiras.

No presente do encontro noturno, a cena descrita mostra o receptáculo, ventre para germinação, Lisboa representada pela beleza nativa, espaço receptivo para o outro, ex- colonizado, semente para procriação de um espaço, tempo e ser híbridos: imigrantes brasílicos, indígenas lusitanos, angolanos diaspóricos. Quase um quiasmo histórico, embora a proposta cultural seja de hibridização mútua. Ainda que o narrador abra espaço para negociação, o mesmo dá voz a uma reflexão do que é ou deixa de ser misturado. Em

―Infante‖, poema de Mensagem, de Fernando Pessoa, o grandioso destino que é fadado por

176 Idem, p. 149. 454

Deus a Portugal cumpriu-se (controle das rotas oceânicas). Contudo, ―falta cumprir-se

Portugal‖177, que está destinado à grandeza futura que ainda não se cumpriu. Na caso da hibridização, aceita-se que Portugal ―já cumprira seu destino imperial‖ (NASCIMENTO:

2011: p. 149) e que o futuro impuro seja o do mercado, da tecnomodernidade, das tecnologias, da globalização, mas não se nega o orgulhoso e teimoso passado imperial, do messianismo de um dom Sebastião que os eleve ao império novamente.

O transitar pelos bairros da cidade de Lisboa remete a um passear por várias cidades (Salvador e Rio de Janeiro), observando como são construídas perpetuamente em apenas uma. E com isso a identidade torna-se ininterrupta pelo tempo e espaço hibridizados por questões de resistências étnicas ou mercadológicas da globalização. É habitar a cidade hibridizada178 em seu interior, revesti-lo e sê-lo.

A partir do oitavo parágrafo, há uma ruptura temporal e espacial no tecido narrativo. O presente da reflexão acerca do passado do personagem se dá cinco anos após o encontro com a mulher nativa, na Mouraria. Mulher essa que, no entre-lugar, transportou-o ao tempo de quando era infante ao lado de sua mãe, que lhe descrevera os terreiros de candomblé que nunca quisera visitar. Ao hoje perpétuo do personagem só há uma certeza: ele não retornou o mesmo dessa viagem psicológica. Aos olhos do narrador, agora é descrito com fenótipo ―moreno‖, visitando, em reconciliação com a memória materna, os terreiros de candomblé. Assim, o mesmo encontra-se livre para escrever seu próprio script na interseção entre os mundos179, ou como o ―Infante‖ do poema, agora ele já cumpre o seu destino.

O encontro com a híbrida portuguesa candomblezeira, metonímia do conto, fê-lo reconhecer nela a lembrança da primeira imagem feminina de sua vida, sua mãe. Como em muitos homens a mãe é procurada inconscientemente em cada mulher, esta portuguesa fez

177 PESSOA. 2010. 178 Novamente, a expressão linguística dialoga com a temática do texto no caso do desvio da norma na utilização do travessão encerrando o sétimo parágrafo. 179 HALL, 2009. Dado da cultura da modernidade. 455 com que o ―filho‖ procurasse aquilo que não teve quando criança: o convívio com os templos de candomblé. Nessa relação ambígua entre mulher e mãe, foi permitido que um segundo nascimento cultural ocorresse. Com um espírito revisto e reconstruído uma nova identidade é estampada. O personagem ex-cêntrico no tempo, no espaço e em si mesmo é tomado por uma energia intitulada como ―demônio particular‖, um protetor, que o monta tal qual um cavalo180, incorporando sem maniqueísmo uma identidade paradoxal (o melhor e o pior, asilo e exílio).

O conto se encerra com o personagem indo em direção da agora concreta fortaleza de São Jorge, todavia levando um ídolo, um fetiche, uma boneca de louça

(provavelmente branca) de uma feiticeira portuguesa, que, nigromante, evoca o passado para predizer o futuro, como prova desse entre-lugar ―místico‖. Contudo, embora a voz da narrativa afirme que a distância entre os lugares tenha se acentuado (―Acentuou-se, todavia, o hiato transatlântico‖181), a relação temporal híbrida abrira a novas tensões e dúvidas acerca do ininterrupto processo de construção da identidade. Mito ou realidade; o hibridismo, representado pelo entre-lugar, que desorientou o personagem e o narrador, deixa essa dúvida de que nada está fechado ou que seja definitivo.

O conto ―Candomblé Lisboa‖, de Evando Nascimento, exemplo do jogo desenvolvido entre modernismo e passado, é uma forma literária de manifestar publicamente como a construção da etnicidade no campo artístico tem contribuído para a importância da diversidade cultural, que tem sido transformada em nossa época pelas vozes marginais, negociando em meio às diferenças com o centro, assim constituindo, logo, processos de hibridização.

REFERÊNCIAS:

180 Esse termo conota a pessoa que sofre possessão espiritual, por isso o mesmo é ―montado‖ pela entidade. 181 NASCIMENTO, 2011, p. 151. 456

BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima

Reis, Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas - estratégias para entrar e sair da modernidade. São

Paulo: EDUSP, 2001.

COSER, Stelamaris. ―Híbrido, Hibridismo e Hibridização‖. In FIGUEIREDO, Eurídice

(Org.) Conceitos de Literatura e Cultura. Juiz de Fora: Editora UFJF/ EdUFF, 2005.

HALL, Stuart. Da Diáspora - Identidade e Mediações Culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2009.

NASCIMENTO, Evando. Cantos do Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2011.

PESSOA, Fernando. Mensagem. São Paulo: Saraiva, 2010.

SARFATI, Georges-Élia. Princípios da análise do discurso. São Paulo: Ática, 2010.

457

DE NARRATIVAS E CEREJAS: PARA SEMPRE, OUTRORA.

Fernanda Coutinho182 Ermelinda Maria Araújo Ferreira183

Resumo: Este trabalho busca verificar como a noção de infância vem demonstrando padrões de mudança, quanto a sua compreensão, em nossa contemporaneidade, padrões marcados por sensíveis diferenças, desde que passou a ser entendida como categoria histórica e social, no século XIX. O mesmo se pode dizer da Literatura Infanto-Juvenil, que esboça um traçado semelhante de inserção na História e na vida social. A partir dessa observação preliminar, pretende-se colocar em pauta uma questão de base epistemológica: como a literatura infanto-juvenil pode levar a uma nova inflexão acerca da compreensão sobre esse estágio da vida? Que papel estaria reservado à literatura para crianças na construção de um pensamento sobre a infância, uma vez que essa literatura, por meio de registros meta-textuais, tem ajudado a compor um acervo de lembranças do mundo infantil, anotados em textos memorialísticos, observando-se, ainda, que narrativas pertencentes à pré-história da Literatura Infantil, em um tempo no qual nem mesmo a infância existia, tais como os contos maravilhosos, exercem expressivo poder de sedução sobre o pequeno leitor da contemporaneidade.

Palavras-chave: Infância, Literatura Infantil, Contos maravilhosos, Leitura.

Abstract: This work wants to verify how the notion of childhood has been demonstrating patterns of change, in terms of comprehension, in our contemporaneity, patterns labeled by sensitive differences, since it has started to be known as historical and social category in the nineteenth century. The same could be said to the Children Literature, which outlines a similar trait of insertion in History and social life. From this preliminary approach, we intend to put on the agenda a matter of basic epistemological: how Children‘s Literature can lead to a new understanding about the inflection of such stage of life? That role was reserved for children's literature in the construction of a thought about childhood, since this literature by means of meta-textual references, has helped to compose a collection of memories of childhood world, annotated memoir texts, observing it was also that narratives belonging to the prehistory of children's Literature, in a time when there was not even the children, such as the wonderful tales, have expressive power of seduction on the small contemporary reader. - Keywords: Children, Children's Literature, Wonderful Tales, Reading.

182 Professora do Curso de Graduação em Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFC. Doutora em Teoria da Literatura (UPFE, 2004) Pós-doutora em Literatura Comparada, UFMG, Université de la Sorbonne, Paris IV, 2010. E-mail: [email protected]. 183 Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco, colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade da UEPB e do IEMo – Instituto de Estudos sobre o Modernismo da Universidade Nova de Lisboa. Pesquisadora do CNPq. E-mail: [email protected] 458

1. Introdução

Houve um tempo e nem tão distante assim – o que são dois ou três séculos para os largos ponteiros do relógio da História? – em que falar em infância soaria como um nonsense, algo desarrazoado, uma vez que a vida social era assistida pela lógica do adulto. As crianças de então passavam por esse estágio da existência sem que nada de característico de uma idade especial lhes chegasse ao tato, ao olfato, aos ouvidos, aos olhos ou ao paladar, de tal forma que ficaria difícil recobrar mais tarde esse período pelos amorosos desvãos das lembranças. E o que dizer de outra forma de sensibilidade, a que se vincula, por vezes, até à falta de freios da imaginação e induz o indivíduo a percorrer caminhos que o conduzem aos longes do tempo, ao inusitado dos lugares, habitados por seres cuja visão equivaleria a um encontro marcado com o espanto, se disputavam o mesmo espaço de escuta e as mesmas histórias com os adultos, compartindo com eles a crueza de relatos de índole até mesmo naturalista? Também esse outro tipo de lembrança demandaria um tempo para se inscrever nos apontamentos de uma história que seria contada apenas a partir do século XIX. Pois, se não havia infância, tampouco haveria um repertório de narrativas que tivesse por alvo preferencial as crianças. Era uma vez, portanto, um tempo sem infância. Era outra vez, ainda, um tempo outro: um tempo sem Literatura Infantil. Como num número de prestidigitação, pensar hoje, em nossa contemporaneidade, em tempos como esses, marcados por essas ausências: a da criança como sujeito social e a de um corpo de textos a ela endereçados, é que pareceria um nonsense. Contudo, essa certeza, de tão aparente contundência, não nos desembaraça de uma série de porquês, de dúvidas e ainda de complexidades a exigir reflexão, como se habitassem eles todos uma caixa de guardados, 459 semelhante a um brica-braque infantil, tal como o tesouro de lembranças de Dominique Bretodeau, encontrado fortuitamente por Amélie Poulain – e, de um momento para outro, pudessem de lá saltar. Um dos primeiros desses pontos de interrogação a transpor a borda da caixa seria: quem é, afinal, a criança na contemporaneidade e de que forma ela se situa face ao quadro das idades, para viver sua infância? Criança? Contemporaneidade? São tantas as facetas sob as quais se apresenta, digamos, o ser infantil, que é necessário restringir o espectro de análise para que ela não se esvazie em si mesma, presa de tantos tentáculos. Assim, será dada primazia aqui à figura da criança leitora, o que favorece, por sua vez, a entrada em cena do outro membro desse pas de deux: a literatura infantil. Na realidade, a proposta deste trabalho é pensar, ainda que superficialmente, o percurso da convivialidade dessas duas portas de entrada para a compreensão da vida cultural no Ocidente. E, assim, a centopeia de perguntas avança com desenvoltura. O que vem a ser mesmo a Literatura Infantil nos tempos de hoje? Que estatuto possui esse ramo da criação literária face às produções da outra, a dita para adultos? A partir de que instâncias essa questão pode ser abordada? Em Crítica, Teoria e Literatura Infantil. Peter Hunt advoga da academia uma abertura quanto à necessidade de um investimento epistemológico na Literatura Infantil, ou seja, uma naturalização da Teoria da Literatura Infantil, tomada de posição que, segundo ele, colocaria em evidência a percepção da crítica quanto à densidade que esse tipo de texto pode oferecer a seus receptores preferenciais. ―A literatura infantil é diferente, mas não menor que as outras. Suas características singulares exigem uma poética singular.‖ (HUNT, 2010, p. 37) A partir da ponderação do pesquisador britânico, seria o caso de se reabrir um debate sobre até que ponto existe ou resiste nos dias atuais o pensamento de que essa modalidade de expressão artística encaminha necessariamente a uma ―infantilização‖ dos processos de composição, no intuito de atingir mais facilmente a compreensão da criança. Historinhas simples, tradução bem à 460 flor da página, ilustrações com forte apelo visual e poder encantatório? E quanto ao aspecto formador? Os heróis infantis, quando concebidos por seus pais ficcionais, têm necessariamente ainda que possuir uma forte vocação doutrinadora? No âmbito dessa investigação sobre o perfil da Literatura Infantil, caberia ainda verificar: na dinâmica das relações de autoridade dentro da família, a quem cabe atualmente a decisão sobre o que será oferecido à criança no banquete à Babette, que é a cartela de títulos do florescente mercado editorial do texto infanto-juvenil? Existe uma figura de autoridade nesse sentido, ou até que ponto o leitor infantil impõe suas preferências e acaba ele mesmo selecionando os ingredientes de seu manjar? Tratando-se do mercado editorial, a partir de que modalidades de estratégias se define ele tanto quanto ao sujeito e ao objeto de fruição da Literatura Infantil? Dito de outra forma: que significados e interpretações guarda hoje a palavra livro infantil para o mundo editorial? E a escola, como figura nessa quadro cheio de variáveis? Que formação vem sendo dada aos estudantes de Letras, futuros agente-regentes desse bailado? E as políticas públicas na área de leitura? Todas essas indagações remetem ao percurso do par infância-literatura infantil em seu processo de constituição histórica e social. A princípio, pode- se afirmar que se as demandas sócio-econômico-ideológicas da burguesia deram condição à instalação da noção de infância, no século XIX, uma das formas legitimadoras de sua existência seria o reconhecimento da condição da criança enquanto fruidor artístico. A rigor, essa percepção vai ocorrer de forma mais vertical com Hans-Christian Andersen, (Odense, 1805 - Copenhague, 1875), embora os registros historiográficos da Literatura Infantil apontem para outros escritores com um projeto literário voltado para a criança, mesmo antes do escritor dinamarquês, como seria o caso de Madame Leprince de Beaumont (Rouen, 1711 - Chavanod, 1780), com o seu Magasin des enfants, ou, entre outros, a Condessa de Ségur (São Petersburgo, 1799 - 461

Paris, 1874), que utilizou o traço amoroso de sua pena inventiva para escrever um livro-oferenda, visando ao convívio fantasioso criança-animal, jardim de delícias do imaginário infantil, dedicado a Henri de Ségur, um de seus netos, intitulado Memórias de um burro. A ênfase em Andersen, porém, deve-se ao fato de ele ter trazido para o próprio tecido textual a figura da criança como um interlocutor privilegiado do narrador. A arte literária para as crianças, tem, todavia, uma pré-história, onde residem os contos maravilhosos, coletados da tradição oral por Charles Perrault (Paris, 1628 - 1703) e pelos irmãos Grimm, Jakob (Hanau, 1785 - Berlim, 1863) e Wilhelm (Hanau, 1786 -Berlim, 1859), narrativas que terminaram compondo o patrimônio dos primeiros clássicos infantis. Na realidade, esse é um acervo de histórias que se atrelou tão bem à fantasia das crianças, embora em sua constituição não tenha havido uma intencionalidade quanto à definição de um receptor preferencial, que hoje a história da infância bem como a da Literatura Infantil poderiam ser recontadas a partir deles. Esta seria uma das possibilidades, mas se for feita uma correlação de forças entre os dois termos da equação com que se trabalha – infância e Literatura Infantil – seguindo-se a trilha do calendário, o século XX apontaria para a importância dessa idade, como possibilidade de resgate da pregnância na vida adulta das histórias infantis. Nesse segundo estágio, ambas incorporaram-se de tal forma à realidade sociocultural dos povos, que passaram inclusive a ser matéria de memória, traduzidas quer em textos mais expressamente confessionais, quer em textos ficcionais escritos sob o crivo da recordação. Como não lembrar, por exemplo, que muitos dos relatos respaldados pelas lembranças, voltados para a época infantil, assinalam a perenidade desse tempo como relicário de recordações pertencentes à ordem do sensível, inclusive pelo aspecto da materialidade do livro, recordações essas que se derramam pelo fluir da existência, compondo um acervo de impressões em que se amalgamam a alacridade, a melancolia, o enternecimento, por vezes 462 até a amargura. E também o assombro, o maravilhar-se diante dos mundos inaugurais em que a criança se vê inserida, como alguém, que, num filme, deparasse com cenas insólitas em série. Ou, ainda, o resgate para o ―eu‖ que recorda de crônicas de costumes de tempos pretéritos. A própria Literatura, por vezes, desdobra-se sobre si mesma e reflete poeticamente sobre essas aspectos, que se transmutam em encruzilhadas teóricas para os estudiosos em outras ocasiões. Em ―Biblioteca verde‖, Carlos Drummond de Andrade cria um painel lírico, e faz de aspectos da fenomenologia da leitura o tema de sua meditação. O personagem, ou o eu- poemático infantil, interpela o pai, em tom imperativo, exigindo a compra urgente da Biblioteca Internacional de Obras Célebres.184

Papai, me compra a Biblioteca Internacional de Obras Célebres./ São só 24 volumes encadernados/ Em percalina verde./ Meu filho, é livro demais para uma criança./ Compra assim mesmo, pai, eu cresço logo. /Quando crescer eu compro. Agora, não. Papai, me compra agora. É em percalina verde, /Só 24 volumes. Compra, compra, compra. /Fica quieto, menino, eu vou comprar. /(...) Segue a Biblioteca pelo trem-de-ferro, /Fino caixote de alumínio e pinho./ Termina o ramal, o burro de carga/Vai levando tamanho universo. //Chega cheirando a papel novo, mata/de pinheiros toda verde. Sou /o mais rico menino destas redondezas/. (Orgulho, não; inveja de mim mesmo.) / Ninguém mais aqui possui a coleção/das Obras Célebres. Tenho de ler tudo. /Antes de ler, que bom passar a mão/no som da percalina, esse cristal/de fluida transparência: verde, verde. /Amanhã começo a ler. Agora não. //Agora quero ver figuras. Todas. /Templo de Tebas. Osíris, Medusa, /Apolo nu, Vênus nua... /Nossa Senhora, tem disso nos livros? /Depressa, as letras. Careço ler tudo. /A mãe se queixa: Não dorme este menino. /O irmão reclama: Apaga a luz, cretino! /Espermacete cai na cama, queima/a perna, o sono. Olha que eu tomo e rasgo essa Biblioteca antes que pegue fogo/na casa. Vai dormir, menino, antes que eu perca/a paciência e te dê uma sova. Dorme, /filhinho meu, tão doido, tão fraquinho. //Mas leio, leio. Em filosofias/

184 A Biblioteca Internacional de Obras Célebres, de grande circulação e fortuna no século XX, corresponde a uma coleção de reproduções literárias de livros famosos de várias épocas, desde a Antiguidade até aos tempos modernos. Marcelino Menendez y Pelayo (Santander, Cantrabia, 1856 – 1912) aparece como organizador do rico conteúdo.

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tropeço e caio, cavalgo de novo/meu verde livro, em cavalarias/me perco, medievo; em contos, poemas/me vejo viver. Como te devoro, /verde pastagem. Ou antes carruagem/de fugir de mim e me trazer de volta/à casa a qualquer hora num fechar/ de páginas? // Tudo que sei é ela que me ensina. /O que saberei, o que não saberei/Nunca, /está na Biblioteca em verde murmúrio/de flauta-percalina eternamente./ (DRUMMOND, 2006. p.250- 252)

É interessante verificar no poema a datação do lugar da criança, nas trocas de poder, na intimidade familiar. Destituída de voz, por muito tempo, passa, por vezes, em períodos mais recentes, a vivenciar o extremo oposto, recobrindo-se da máscara social do enfant-roi, como o batizou o sociólogo Louis Roussel (1921-2011). O que se quer ressaltar, no entanto, preferencialmente, aqui, são três ordens de lembrança que se estabelecem entre o menino e os livros de sua coleção: a relação sensorial, dando destaque ao livro enquanto objeto, a textura leve do tecido que o recobre, a percalina, a cor verde, a cor da capa enquanto paisagem, liberando o ser do sonhador para outras paisagens, a da livre natureza, ―a verde pastagem‖, devorada pelo leitor, que experimenta um ciclo de metamorfoses no processo de devir que é a leitura. Biblioteca, espaço que contém o mundo para além do tempo. ―Tudo que sei é ela que me ensina./ O que saberei, o que não saberei/ Nunca,/ está na Biblioteca em verde murmúrio/ de flauta-percalina eternamente./ É essa a constatação do eu-lírico adulto, buscadas nas maviosas predições da voz do eu-menino. Em Du récit merveilleux ou ailleurs de l’enfance, Alain Montandon examina a origem da reação do ser humano ao maravilhoso inscrito nos relatos ficcionais, associando-a ao ―souvenir archaïque du premier de tous ses émerveillements, celui de la découverte du monde que nous fimes enfants‖. (MONTANDON, 2001, p. 10) Apoiado na concepção romântica do escritor alemão Jean-Paul (1763-1825), Montandon cria uma equação cujo traço de união é a ideia de maravilhamento. E a imagem primordial por ele escolhida para revivescer esse tempo é de natureza gustativa, bem em consonância com 464 o imaginário da primeira idade da vida, por muitas vezes vinculado a uma miscelânea de sabores.

La première cérise que l‘enfant mange est une merveille; cette sensation est un absolu, car elle est détachée de toute référence: elle est unique. La première cerise vous foudroie de délices. Seuls le temps et l‘expérience, qui relativisent toutes choses, arracheront l‘enfant à cette vive émotion pour l‘entraîner dans le cercle des habitudes, des compromissions, des fatigues de l‘existence. (MONTANDON, 2001, p. 10)

Nesse sentido, a afirmação reforçaria o verso da famosa canção francesa que previne: ―Mais il est bien court, le temps des cerises.‖185, pois os acontecimentos ainda que belos e intensos são degradados pelo tempo. Não, porém, no caso das leituras fundantes da infância e mesmo na tomada do livro como objeto de culto: primeira cereja, cujo sabor é perdurável em sua inteireza ao longo da vida. São elas lembranças impressivas que se ligam à descoberta dos mundos imaginários, abre-te sésamo para a vivência da ficção. Esse mundo, em que a criança se aloja, muitas vezes poderá vir a permanecer, também, para o adulto, na forma de objetos-talismãs, uma vez que a materialidade do livro repercutirá um paraíso de experiências despertadas pelos sentidos: o toque, o odor, a cor, o som, todos eles como se estivessem a serviço da restauração de um gosto de infância. Partindo da expressão ―souvenir archaïque‖, sintagma cunhado por Alain Montandon, pode-se, ainda, num terceiro movimento envolvendo infância e Literatura Infantil, problematizar a permanência dos clássicos infantis como fonte de leitura do século XXI. Se, na contemporaneidade, a criança como sujeito social concorre para a apreensão de mudanças abruptas na primeira fase da vida, como entender a presença na grade leitura dos garotos de hoje de

185 O tempo das cerejas» é uma cançoneta de amor da autoria de Jean-Baptiste Clément e Antoine Renard e foi escrita em 1866. Anterior à Comuna de Paris (de 18 de Março a 28 de Maio de 1871), julga-se que a última estrofe terá sido acrescentada, em louvor de uma enfermeira morta na defesa da Comuna, durante a «semana sangrenta» em que muitos milhares de combatentes da Comuna foram barbaramente assassinados. A canção resistiu ao massacre, ao tempo e à proibição e ficou na memória popular como um símbolo da Comuna de Paris. 465 obras, cuja tradição remete ao século XIX, quando os irmãos Jakob e Wilhelm Grimm percorriam sua Alemanha natal em busca de histórias antigas, capazes, inclusive, de oferecer identidade à sua pátria? O revival dos clássicos infantis pode ser lido como um movimento de mão dupla, no que tange às realidades da idade infantil e de sua literatura. Por um lado, a explicação poderia residir na constatação da estudiosa canadense Nancy Houston: a da natureza idiossincrática do ser humano na medida em que constitui uma ―espèce fabulatrice‖.

Où est l‘espèce humaine? Dans les fictions qui le constituent […]. Élaborées au long des siècles, ces fictions deviennent, par la foi que nous mettons en elles, notre réalité la plus précieuse et la plus irrécusable. Bien que toutes tissées d‘imaginaire, elles engendrent un deuxième niveau de réalité, la réalité humaine, universelle sous ses avatars si dissemblables ni dans l‘espace et le temps. Hantée par ces fictions, constituées par elles, la conscience humaine est une machine fabuleuse… et intrinsèquement fabulatrice. (HUSTON, 2008, p. 29-30).

Os clássicos, por sua própria constituição ligada às raízes míticas do ser humano, colocam-nos em estado de potência quanto à sua revivescência a qualquer tempo e lugar. São portanto, alheios à realidade banal dos calendários e ainda ao cenário cultural de cada época. João e Maria, em sua versão do século XIX, são personagens capazes de acionar a ―machine fabuleuse‖ das crianças do século XXI. Vale pensar então que, se os Grimm deram um outrora para a humanidade, as narrações por eles coletadas criam um outrora para as crianças de hoje, que ouvem e leem relatos de um tempo duplamente pretérito: os da ―pré-infância‖ e ―pré-literatura infantil‖. Em 2012, no bicentenário do aparecimento dos Contos maravilhosos infantis e domésticos, a editora Cosac Naify, com apoio do Goethe Institut, publicou a versão original das 156 narrativas, traduzidas diretamente do Alemão.

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FONTE: http://editora.cosacnaify.com.br/HomeSecao/13/CHILDREN.aspx. Acesso em : 12.fev. 2013.

Os contos, enfeixados em dois volumes, proporcionam ao leitor da contemporaneidade um ritual de busca: o prazer de retirá-los de seu abrigo, a caixa onde vêm acomodados. E o que se segue é pura festa para os sentidos: a exemplo do colorido das páginas onde são assentados os textos, a posse do livro trazendo à lembrança o que Roland Barthes, não por acaso nos Fragmentos de um discurso amoroso, denominava de gáudio: ―Prazer que a alma experimenta quando considera a posse de um bem presente ou futuro com assegurada; e possuímos tal bem quando ele está de tal forma em nosso poder que podemos usufruir dele quando queremos.‖ (BARTHES, 2003, p. 47) 467

Da antecâmara do livro fazem parte o prefácio escrito pelos Grimm há duzentos anos e uma apresentação da nova edição feita pelo professor Marcus Mazzari, do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Assim, o paratexto denota conjuntamente vários aspectos ligados a uma compreensão da Literatura infanto-juvenil: em primeiro lugar, a junção dos tempos, passado e presente falam de um tempo outro – o para sempre, outrora – esse o lugar ocupado pela ficção infantil no espaço de enunciação e recepção, e, ainda, a dignidade que os irmãos Grimm concederam aos textos com o prefácio elaborado para os Contos maravilhosos infantis e domésticos é agora ratificada pela voz do estudioso de hoje, que mostra de fato que não discorre sobre uma literatura ―menor‖. Por fim, a disposição das crianças de hoje de teatralizarem a experiência ficcional, incorporando uma roupagem do ontem para fruir hoje o eterno prazer de sentir outro, descobrindo-se a si mesmo por meio do artifício da burla que é a invenção ficcional.

FONTE: http://editora.cosacnaify.com.br/NoticiasInterna/530/Primeira- edi%C3%A7%C3%A3o-dos-contos-dos-irm%C3%A3os-Grimm-completa-200-anos.aspx. Acesso em: 12 fev. 2013.

Percebe-se assim que os bosques da ficção são terreno fértil para as cerejas, restando a nós, pais, professores, editores, crianças e adultos sair em busca dessa colheita que nos deleita e deixa entrever mais claramente nosso sentido de humanidade.

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REFERÊNCIAS:

ANDRADE, Carlos Drummond de. ―Biblioteca verde‖. In: Boitempo - Menino Antigo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006. p.250-252.

HUSTON, Nancy. L’espèce fabulatrice. Arles, Éditions Actes Sud, 2008.

HUNT, Peter. Crítica, Teoria e Literatura Infantil. Tradução de Cid Kipnel. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

MONTANDON, Alain. Du récit merveilleux ou ailleurs de l’enfance: Le Petit Prince, Le Magicien d’Oz, Peter Pan, ET, Histoire sans fin. Paris: Éditions Imago, 2011.

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A TRANSGRESSÃO NA OBRA DE HILDA HILST: A OBSCENA SENHORA D Fernanda Shcolnik186 Prof. Dra. Ana Chiara (Orientadora)187

Resumo: Tendo em vista a aparente exclusão da obra de Hilda Hilst, durante décadas, por parte de um amplo mercado editorial e a dificuldade de sua leitura pelo grande público, este trabalho investiga o modo como Hilda põe em prática procedimentos de transgressão em sua obra, através da análise do romance "A obscena senhora D". Utilizamos como base teórica os estudos de Georges Bataille, em "O erotismo", e Julia Kristeva, em "Approche de l‘abjection". A partir destas bases, buscamos também responder à seguinte pergunta: podemos dizer que a literatura de Hilda Hilst continua a suscitar choque frente ao leitor contemporâneo?

Palavras-chave: Transgressão; Abjeção; Obscenidade; Morte.

Résumé: Étant donné l‘apparente exclusion de Hilda Hilst, d'une large part du marché de l'édition et la difficulté de lecture de son oeuvre par le grand public, on propose, dans ce travail, l‘investigation sur la façon dont Hilda y met en oeuvre le procédure de transgression. Nous avons utilisé comme support théorique des études de Georges Bataille, dans «L‘erotisme», de même que celles de Julia Kristeva, dans «Approche de l‘abjection». À partir de ces apports et de l‘étude de l‘oeuvre «L‘obscene madame D», on cherche à repondre aussi à la question: Est-ce qu‘on peut dire que la littérature de Hilda Hilst continue à susciter le choc chez le lecteur contemporain?

Mots-clé: Transgression; Abjection; Obscénité; Mort.

1. Introdução

Ao longo de sua carreira, a escritora Hilda Hilst (1930-2004) publicou livros que passam por todos os gêneros literários, suscitando notáveis reações por parte do público, desde os leitores e da mídia até a crítica literária. Durante muito tempo sua obra dividiu opiniões entre a rejeição e a aceitação. Se a rejeição tornou-se marca da autora por conta da baixa vendagem dos livros e de sua fama como autora de uma literatura ―difícil‖, Hilda também ganhou prêmios literários e teve sua obra valorizada no circuito da crítica. A ambiguidade desses aspectos problematiza seu lugar como escritora, entre os espaços da consagração e da maldição. Embora caminhe cada vez mais para a consagração, dada a reedição de sua obra completa na década de 2000 e a proliferação de trabalhos acadêmicos a seu respeito,

186 Doutoranda em Literatura Comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bolsista CNPq. E-mail: [email protected] 187 Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: [email protected] 470 algumas reações suscitadas por sua produção literária nos levam a pensar sobre procedimentos que fazem sua literatura provocar certo incômodo. A proposta deste trabalho consiste, assim, em compreender sob que aspectos e de que modo os procedimentos subversivos da profanação e transgressão se fazem presentes na obra da autora, com foco no livro A obscena senhora D.

2. Profanação, transgressão e o abjeto

De acordo com Giorgio Agamben, para haver profanação, é preciso que tenha havido, previamente, consagração, processo que determina ―a saída das coisas da esfera do direito humano‖ (AGAMBEN, 2007, p. 65), transferindo-as à esfera do sagrado. Sendo assim, a profanação consiste no deslocamento de um objeto instituído na distância do ―lugar sagrado‖, que é devolvido ao uso e desprovido de sua aura sacralizante.

Em O erotismo, Georges Bataille desenvolve o tema tendo como base os conceitos de interdito e transgressão. Ele explica que os interditos surgem como restrições impostas pelo homem a elementos relativos à morte, e que acabaram se estendendo à atividade sexual. Por sua vez, a transgressão consiste no rompimento das barreiras impostas pelo interdito – objeto que suscita repulsa, mas também atração, despertando o desejo de transgredir. Se o homem tem horror à morte e a mantém afastada, enterrando os cadáveres para evitar a realidade de sua condição, há também um movimento contrário, de transgressão ao interdito e rompimento com a lógica de preservação da vida. Como afirma Bataille, ―tanto na sexualidade quanto na morte o que é sempre visado é a violência, que assusta e que fascina.‖ (BATAILLE, 1987, p. 48). O fascínio despertado pelo interdito é o que leva à transgressão. O ―isolamento‖ da morte pelo homem se deve a seus aspectos abjetos. Em Approche de l’abjection, Julia Kristeva define o abjeto como um deslizamento, por se situar entre os elementos que compõem as dicotomias eu/outro; dentro/fora. Trata-se de uma reação do eu a algo que está ―tout près mais inassimilable188‖ (KRISTEVA, 1980, p. 9). A abjeção desestabiliza o desejo, pois está naquilo que, a um só tempo, repele e atrai, instaurando a desordem. No espaço do abjeto se insere tudo aquilo com o que somos incapazes de lidar, e de que, por isso, nos afastamos. Se os efeitos do abjeto são a repulsa e o transtorno, Kristeva enfatiza o despertar dessas reações em relação à morte, experiência mais insuportável ao homem. Dada a

188 Muito próximo, mas inassimilável. *Tradução da autora. 471 impossibilidade de lidarmos com a abjeção vislumbrada na imagem da morte, nós a afastamos. Assim, temos na morte o auge do não-sentido, da ausência de significação, delimitando-se um espaço onde não conseguimos pensar e com o qual somos incapazes de viver. Em torno da morte encerra-se, portanto, a imagem última da abjeção.

3. A obscena senhora D

Publicado em 1982, A obscena senhora D é um livro que segue um estilo bastante aprimorado por Hilda Hilst em sua obra em prosa, uma escrita densa e de forte carga poética, com abordagem de questões existenciais e metafísicas, principalmente Deus e a morte. O texto se apresenta como um grande fluxo verbal, acompanhando a experiência por que passa a protagonista Hillé, que, em função da velhice e da proximidade da morte, vive um processo de questionamentos, mergulhando em perguntas acerca de aspectos essenciais. Esse processo se agrava com a perda do companheiro Ehud, que faz com que Hillé tenha que se confrontar com a morte a partir da experiência do luto, que intensifica o estado em que se encontrava a personagem, resultando em um estar no mundo caracterizado por uma espécie de transe.

3.1 – A busca de Deus: abstração e materialidade

Ao tentar entender o mistério da existência, o fio condutor dos questionamentos da personagem passa a ser a existência de Deus, em relação ao qual ela se sente abandonada. Seu desamparo frente ao ente divino a desorienta, como mostra o fragmento a seguir:

Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome, nem porisso (sic) irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé também chamada por Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas. (HILST, 2005, p. 17)

A partir da situação de ―afastamento do centro de alguma coisa que não sabe dar nome‖, Hillé segue em busca da compreensão desse objeto fugidio, como indica o trecho a seguir: ―a vida foi isso de sentir o corpo, contorno, vísceras, respirar, ver, mas nunca compreender. Porisso (sic) é que me recusava muitas vezes, queria o fio lá de cima, o tenso que o OUTRO segura, o OUTRO, entendes? [...] DEUS DEUS‖ (HILST, 2005, p. 53). Nessa fala, a personagem faz menção à abstinência sexual que coincide com esse momento 472 de ―crise‖, em que ela se entrega por inteiro ao ato da reflexão, em detrimento de ―sentir o corpo‖. A oposição do aspecto físico à natureza divina mostra que Hillé situa Deus em um plano abstrato, caracterizado pela distância. No entanto, em outros momentos do texto, Deus passa a se situar em um plano material, aproximando-se das coisas concretas. A proximidade de Deus do cotidiano se explicita na passagem a seguir, em que a personagem descreve a procura do ente divino em lugares concretos, como se ele fosse um objeto material, passível de habitar fisicamente espaços e cantos da casa:

tateava cantos, vincos, acariciava dobras, quem sabe se nos frisos, nos fios, nas torçuras, no fundo das calças, nos nós, nos visíveis cotidianos, no ínfimo absurdo, nos mínimos, um dia a luz, o entender de nós todos o destino, um dia vou compreender (HILST, 2005, p. 17).

É pela via da materialidade que Hilda insiste ao abordar a temática de Deus, cuja busca resulta em um eterno vazio. Após procurá-lo em espaços da casa, a personagem lhe atribui aspectos terrestres, mediante sua associação à sujeira, deslocando-o a um plano eminentemente baixo. Esse deslocamento se explicita na passagem em que Hillé pensa a presença de Deus ―no escarro, na pia, [...] no meu vão de escada, nesta palha‖ (HILST, 2005, p. 37) e, portanto, ―em Ehud morto. [...] Ehud morto possuído de Deus é um todo de carne repulsiva, um esgarçoso de brilho e imundície‖ (HILST, 2005, p. 37). O deslocamento de Deus à esfera terrestre se agrava quando a personagem atribui a ele aspectos relativos ao humano, construindo sua imagem através de uma ideia física e corporal. Isso ocorre quando Hillé sugere a possibilidade de existência de um corpo para o ente divino, com ênfase em suas partes mais baixas:

Ai Senhor, tu tens igual a nós o fétido buraco? Escondido atrás mas quantas vezes pensado, escondido atrás, todo espremido, humilde mas demolidor de vaidades. [...] Ó buraco, estás aí também no teu Senhor? Há muito que se louva o todo espremido. Estás destronado quem sabe, Senhor, em favor deste buraco (HILST, 2005, p. 45).

A radicalização do rebaixamento da figura de Deus configura uma ocorrência profanatória na literatura de Hilda Hilst, pela destituição, da divindade, do lugar idealizado que anteriormente ocupava. Deus passa a ocupar um lugar profano, que permite a aproximação dos homens de um ser marcado pela inacessibilidade e distância. Essa atitude é radicalizada uma vez mais quando a personagem expressa sua vontade de se fundir a Deus. Esse desejo remete ao ato erótico, e irrompe em trechos 473 como: ―Engolia o corpo de Deus como quem sabe que engole o Mais, o Todo, o Incomensurável‖ (HILST, 2005, p. 19) e ―Engulo-te homem Cristo no caminho das águas‖ (HILST, 2005, p. 67). Ao situar Deus no plano do erotismo, como se ele pudesse ser sentido pela via carnal, Hilda subverte seu lugar canônico e provoca a comodidade da ideia sacralizada que o determina, inscrevendo sua obra sob o signo da profanação.

3.2 – A morte: a terrível face

Do mesmo modo como trata a figura de Deus como abstração, mas também materialidade, também a figuração da morte em A obscena Senhora D aparece nesses dois aspectos. Como abstração, isso se dá mediante a crença de Hillé na existência do espírito e da alma, aspecto que se faz presente em alguns diálogos com Ehud, que aos poucos percebemos tratar-se de um plano pós-morte. Já como materialidade, a morte aparece pela abordagem do aspecto corporal no fim da vida – os efeitos degradantes do tempo sobre o corpo. Essa abordagem fica clara em trechos como: ―Memórias, velhice, [...] meu olho morrendo antes de mim, a pálpebra descida, crestada, os ralos cabelos, os dentes que parecem agrandados, as gengivas subindo, procuro um naco de espelho e olho para Hillé sessenta.‖ (HILST, 2005, p. 71). Embora as faces abstrata e material da morte coexistam no texto, Hilda enfatiza a abordagem do aspecto material, resultando em uma reflexão que passa a envolver o próprio corpo. Assim, ela alcança os aspectos mais abjetos, entregando-se a um tema que envolve imagens repulsivas. O corpo, que aparenta ser apenas exterioridade, passa a aparecer em sua parte interna: os órgãos, as vísceras, a podridão que existe no interior da pele:

Por que tudo deve morrer hen Ehud? Por que matam os animais hen? Pra gente comer. É horrível comer, não? Tudo vai descendo pelo tubo, depois vira massa, depois vira bosta. Fecha os olhos e tenta pensar o teu corpo lá dentro. Sangue, mexeção. Pega o microscópio. Ah, eu não. Que coisa a gente, a carne, unha e cabelo, que cores aqui por dentro, violeta vermelho. Te olha. Onde você está agora? To olhando a barriga. É horrível Ehud. E você? To olhando o pulmão. Estufa e espreme. Tudo entra dentro de mim, tudo sai. (HILST, 2005, p. 42)

A reflexão sobre as mudanças do corpo leva à exploração desse interior horrível e interditado, de que, tal como a morte, procuramos nos esquecer. Isso porque as transformações do corpo com o tempo não passam da própria morte mostrando sua terrível face, da qual costumamos nos esquivar. 474

Ao trazer o processo de degradação corporal em A obscena senhora D, Hilda põe em prática o ato da transgressão, por não se esquivar diante de um tema que somos incapazes de suportar. Ela mergulha fundo no mistério da morte, levando a reflexão a extremos radicais. Ao trazer à cena aspectos que deveriam se manter intocados, Hilda trabalha com o obsceno, entregando-se ao aspecto atraente do abjeto e mostrando-se capaz de ir além dos limites.

3.3 – O transe e o delírio: a transgressão do pensamento

Em A obscena senhora D há ainda a transgressão do pensamento racionalista que rege a sociedade ocidental. O que, de início, aparenta ser um processo reflexivo racional da personagem escorre cada vez mais para o campo do irracional, até alcançar um estado próximo ao transe, que passa a ser o alicerce norteador do pensamento de Hillé. Com isso, somos levados novamente a Bataille, cuja proposta é ir além da lógica ocidental racionalista através de um pensamento livre de quaisquer amarras, deixando-se levar pelos sentidos e deles tornando-se cada vez mais próximo. O filósofo desenvolve essa ideia a partir da figura do acéfalo, criatura que tem a cabeça rebaixada ao centro do corpo. Como afirma Moraes,

Em L’expérience interiéure, [...] encontramos a mesma exigência em manter o pensamento numa posição instável, apresentando uma forma de reflexão igualmente pautada pelo inacabamento. ―O homem não pode, de forma alguma, escapar de sua insuficiência‖ – diz ele [Bataille] no livro, sugerindo que a única decisão humana que efetivamente conta, tanto no plano ético quanto no estético, é a de reivindicar uma atitude soberana diante desse inacabamento. Por certo é essa soberania que o acéfalo de Bataille busca traduzir no seu corpo mutilado; se a cabeça representa a forma perfeita e acabada através da qual o ser humano constrói as certezas ilusórias sobre si mesmo, é precisamente dela que ele deve escapar: ―o homem fugirá de sua cabeça como o condenado à prisão‖.. (MORAES, 2002, p. 219)

Escapando da cabeça e dominado pela instabilidade, o pensamento deixa que os sentidos venham à tona, em contrapartida ao desvio a que são submetidos pelo pensamento ocidental, que os relega a um campo de exclusão, assim como no corpo temos a disposição ―hierárquica‖ representada pelas posições da cabeça e das ―partes baixas‖. Em A obscena senhora D, podemos dizer que a personagem ―perde a cabeça‖, visto que há um processo reflexivo que se faz através de um sentir, ou um pressentir, profundo, no qual a instabilidade ocupa lugar central, constituindo a lógica norteadora do texto. Hillé 475 se entrega às funduras do pensamento, mas, por permanecer constantemente em aguda sensibilidade para o impalpável, o pensamento acaba por abandonar – numa contradição – suas propriedades racionais para se fazer por um sentir em estado apurado. Ainda assim, não há a supressão completa da lucidez quando a personagem divaga. Seu estado envolve uma aguda consciência do mundo, que contraditoriamente a leva ao plano das sensações de coisas de natureza metafísica e secreta. Ela deseja a compreensão, mas de uma matéria a que só se pode chegar por esse sentir agudo, e a razão se torna insuficiente. O processo diz respeito a um pensar que se concretiza pelo sentir, já que tudo o que ela persegue ultrapassa a limitada possibilidade da razão. Desse modo, Hilda se deixa levar pela lógica labiríntica e do inacabamento mencionada por Bataille, que relaciona a imagem do labirinto a esse pensamento que se baseia na entrega do homem aos seus pontos de fuga, ao deixar fluir o pensar acerca das questões mais obscuras.

4. Conclusão

A partir da análise de A obscena senhora D, podemos constatar que o que está em jogo na obra de Hilda Hilst é a obscenidade e a transgressão. Se o obsceno denota aquilo que omitimos, Hilda vai em direção à maior das abjeções e obscenidades: a morte, aspecto em que desemboca toda a reflexão sobre a existência. Soma-se a isso que os temas abordados pela autora evocam um discurso fundado no delírio, suscitando desconforto no leitor. Através dessa escrita, Hilda ensaia modos de flertar com a morte, e quanto mais se aproxima dela, mais escandaliza. Diante desse quadro, não seria pertinente ―maquiar‖ a literatura da autora de uma suportabilidade que supostamente suscitaria maior aceitação. Acostumar-se com o incômodo seria neutralizar seu potencial transgressor. Se Hilda fez sua escolha, demarcando um território de ação, tanto no que se refere ao discurso quanto ao conteúdo de sua obra, talvez possamos dizer apenas que resta ao leitor optar quanto a se permitir ou não embarcar nesta aventura de obscenidade e lucidez, deixando-se levar por essa obra que poderíamos caracterizar como ―de desconforto‖. Nela temos acesso à força de uma autora que revira os vorazmente aspectos interditados e desenterra ―cadáveres‖, abrindo ainda 476 mais a ―funda ferida da vida‖ (HILST, 2005, p. 87), tomando uma vez mais as palavras de Senhora D.

REFERÊNCIAS:

AGAMBEN, Giorgio. Elogio da profanação. In: Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.

BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.

HILST, Hilda. A obscena senhora D. São Paulo: Globo, 2005.

KRISTEVA, Julia. Approche de l‘abjection. In: ______. Pouvoirs de l’horreur: Essai sur l‘abjection. Éditions du Seuil, 1980.

MORAES. Eliane Robert de. O acéfalo. In: ______. O Corpo Impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002.

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IMAGINÁRIO E REPRESENTAÇÃO DO FEMININO NA NARRATIVA MÍTICA DA MATINTAPERERA

Fernando Alves da Silva Júnior189 Profa. Dra. Maria do Perpétuo Socorro Galvão Simões (Orientadora)190 RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar a mitopoese da Matintaperera narrada na comunidade bragantina da Acarpará, nordeste do estado do Pará, a partir da entrevista gravada em 19 de maio de 2013 na residência de dona Maria. Com o intuito de compreender a construção histórica deste mito (da personagem feminina que o protagoniza), discorremos sobre a forma como o imaginário é tecido em torno da matinta e como esta se aproximada da imagem da bruxa/feiticeira do velho mundo. Para tanto, as leituras que norteiam esta pesquisa se fundamentam nos seguintes teóricos: sobre imaginário (Mafessoli, 2001; Castoriadis 1982; Durand, 1998), simbolismo (Chevalier & Gheerbrant, 2009); feitiçaria (Ginzburg, 1988; Souza, 1986 e 1987; Kramer & Sprenger, 1991). A metodologia perpassa o campo da história oral e da etnografia justamente por se tratar de uma pesquisa de campo mas também bibliográfica, uma vez que nos valemos de algumas referências escritas deste mito, principalmente no que se refere ao aspecto religioso que penetra na sua origem, principalmente a religião que conserva o pajé como seu representante. Assim, identificamos que as bruxas amazônicas (as matintapereras) são na sua maioria mulheres que se metamorfoseiam em ave, seu assobio emite um canto (fiiiite, fiiiite, fiiiite, matiiiintaperera) que arremeda seu nome, elas aparecem nas noites amazônicas para despertarem medo naqueles que seguem a noite em claro, e que elas invariavelmente requerem tabaco ou café (que articulamos com o conceito maussiano de sacrifício) e que correspondem a um(a) velho(a) da comunidade que, quase sempre, vive isolado do grupo. Mas que, por outro lado, são construções sociais sobre o feminino, um discurso que atribui ao outro a condição inferior ou malfazeja dentro da sociedade.

Palavras-chave: Matintaperera. Imaginário. Bruxaria. Amazônia.

ABSTRACT: This study aims to analyze the mitopoese of Matintaperera narrated in the community of Bragança (Acarpará), northeastern state of Para, from the taped interview on May 19, 2013 at the residence of Dona Maria. In order to understand the historical construction of this myth, we discussed the way the imaginary is woven around the Matinta and how she is approximate of the image of the witch/sorceress. Therefore, the readings that guide this research are based on the following theorists: about imaginary (Mafessoli, 2001; Castoriadis 1982; Durand, 1998), symbolism (Chevalier & Gheerbrant, 2009); witchcraft (Ginzburg, 1988; Souza, 1986 and 1987 ; Sprenger & Kramer, 1991). The methodology pervades the field of oral history and ethnography precisely because it is a field research but also literature, since we use some written references this myth, especially with regard to the religious aspect that penetrates its origin, mainly religion that keeps the shaman as his representative. Thus, we identified that witches Amazon (the matintapereras) are mostly women who metamorphose into bird, his whistle emits a song (fiiiite, fiiiite, fiiiite, matiiiintaperera) that mimics her name, they appear in the Amazonian night to awaken fear in those following a sleepless night, and they invariably require tobacco or coffee (which articulate with the concept of sacrifice Maussian) and correspond to an old

189 Mestrando em Linguagens e Saberes na Amazônia na Universidade Federal do Pará (PPGLS-UFPA). E- mail: [email protected] 190 Professora do Programa de Pós Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia da Universidade Federal do Pará (PPGLS-UFPA). E-mail: [email protected] 478

(wo)man of the community that, almost always, lives isolated from the group. But, on the other hand, they are social constructions of femininity, a discourse that attaches to the inferior condition or other malignant within society.

Keywords: Matintaperera. Imaginary. Witchcraft. Amazon.

Introdução metodológica da pesquisa O texto analisado neste artigo corresponde a uma narrativa da entrevista realizada em 19 de maio de 2012 na residência de dona Maria moradora da comunidade da Acarpará à aproximadamente 8 km da sede do município de Bragança, região nordeste do estado do Pará. Para registro desta narrativa foi utilizado um gravador digital com microfone e um caderno de anotações, a máquina fotográfica acompanhou todo o processo e, de modo geral, as entrevistas seguiram o modelo de diálogo. A autorização para o uso do gravador e máquina fotográfica nesta entrevista foi concedida pelos narradores, bem como a autorização para usar as fotos e gravações para a produção dos trabalhos acadêmicos que estão sendo desenvolvidos. Para análise do material coletado o recorte da entrevista recaiu sobre a narrativa mítica da matintaperera. Para compreender imaginário foram feitas as seguintes leituras: Durand (1998) e Maffesoli (2001), dando ênfase para este segundo que segue a linha de pensamento desenvolvido pelo primeiro e por Gaston Bachelard. Para análise simbólica o Dicionário dos Símbolos (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009) atravessa a análise da narrativa aqui utilizada.

Consideração sobre imaginário e narrativas míticas A forma como o imaginário amazônico é pensado neste artigo diz respeito à maneira como ele é conceituado por Mafessoli, tendo como texto base a entrevista concedida por ele e publicada na Revista Famecos em agosto de 2001. Pois o imaginário (MAFESSOLI, 2001, p. 74-75) seria o estado de espírito que sublima o pensamento do povo como algo não racional e que permite o misterioso emergir e, com isso, ultrapassar os sentidos do corpo. Por isso, ele sensibiliza a maneira de representar a realidade do homem amazônico. O imaginário é uma sensibilidade poética da narrativa. Dessa forma, o imaginário seria a aura benjaminiana que envolve e suplanta a materialidade da cultura. ―O imaginário, para mim, é essa aura, é da ordem da aura: uma atmosfera. Algo que envolve e ultrapassa a obra.‖ (Ibidem). Pois transcendendo o indivíduo ele dispensa racionalização, isto se o compararmos aos fatos reais da vida cotidiana, pois a ele não se aplica as mesmas regras que regem a análise de um objeto factual, uma vez que 479 as imagens que ele suscita correspondem a uma realidade que somente o campo da simbologia, guardada suas proporções, pode se ocupar, porque não se prende a conceitos imediatos à realidade de quem os vive. As duas filosofias que desvalorizarão por completo o imaginário, o pensamento simbólico e o raciocínio pela semelhança, isto é, a metáfora, são o cientificismo (doutrina que só reconhece a verdade comprovada por métodos científicos) e o historicismo (doutrina que só reconhece as causas reais expressas de forma concreta por um evento histórico). Qualquer ―imagem‖ que não seja simplesmente um clichê modesto de um fato passa a ser suspeita. (DURAND, 1998, p. 14-15)

Essa suspeita que paira sobre a imagem corresponde ao pensamento lógico que considera somente duas assertivas: verdadeira ou falsa. Como a imagem dispensa este tipo de valoração, ela é colocada em uma posição que se aproxima do devaneio, pois não participa deste pensamento lógico que exclui qualquer terceira possibilidade de análise, por isso ―passa a ser desvalorizada, incerta e ambígua‖ (Ibidem, p. 10) e ainda ―suspeita de ser ‗a amante do erro e da falsidade‘‖ (Ibidem), então, deixa (ou deixava) de ser elogiável sua análise científica. Assim tem-se a mitopoese amazônica como exemplo de elemento comum que delimita o lugar dos sujeitos dentro de uma comunidade repleta de valores sociais. Valores que são transmitidos, com suas ressalvas, por meio dessas contações sobrenaturais que são os mitos. Sendo no convívio social que elas encontram seu meio de transmissão no tempo e espaço como uma das argamassas da coexistência humana. Por este motivo Bachelard (Apud DIEGUES, 1998, p. 31) sinaliza que o imaginário não corresponde apenas a imagens que se localizam em um espaço virtual e que conceituam diretamente a realidade, como a etimologia do termo recomenda, pelo contrário, ele é ―a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade‖. Assim surge a mitopoese amazônica também como uma representação da realidade, uma representação sensibilizada e poética. Se entendermos que é o imaginário que produz um conjunto de imagens e que determina uma forma de organização, um modo de pensar, veremos que na instância popular esse imaginário também tece maneiras de compreender e criar valoração sobre a realidade. Há sempre uma parte de razão, de ideologia, de conteúdo, no processo descrito, mas também uma alquimia um tanto misteriosa que detona, em certas situações, uma interação. Esse momento de vibração comum, essa sensação partilhada, eis o que constitui um imaginário. (MAFESSOLI, 2001, p. 77)

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A materialidade da verbalização marca a narrativa, mas o clima que se forma entre os pares corresponde à aura que Mafessoli recupera de Benjamin para conceituar este momento que transcende o encontro. Porém, para o sociólogo francês o imaginário não é fator de construção objetiva de algo, uma ―instituição imaginária da sociedade‖ [...] ―o imaginário é uma sensibilidade‖ (Ibidem), uma poética que transcende esse conceito tão frágil que é a realidade.

A mitopoese da Matintaperera, o que representa? Esta narrativa oral tem como palco de ação a comunidade de Quatipuru (Nordeste Paraense) da qual a matinta iniciava seu vôo para cumprir sua penitência voando e espalhando seu canto agourente sobre outras comunidades, despertando medo e, às vezes, curiosidade naqueles que a percebem pelas madrugadas insones, muitos vezes lhe oferecem tabaco, outras café e há aqueles que conseguem prendê-la. Os dicionários a descrevem de diferentes maneiras. Para o Dicionário do Folclore Brasileiro (CASCUDO, 2001, p. 374) matintaperera é uma pequena ave, identificada também como coruja agourenta que rasga a noite espalhando seu canto sombrio. Cascudo utilizando a citação de Stradelli a conceitua da seguinte maneira: Matintapereira. Mati, matitaperê; nome de uma pequena coruja, considerada agourenta. Quando, a horas mortas da noite, ouvem cantar o Matintaperê, quem o ouve e está dentro de casa diz logo: ―Matinta, amanhã podes vir buscar tabaco‖. ―Desgraçado‖ – deixou escrito Max J. Roberto, profundo conhecedor das coisas indígenas – ―quem na manhã seguinte chega primeiro àquela casa, porque será ele considerado como o mati. A razão é que, segundo a crença indígena, os feiticeiros e pajés se transformam nesse pássaro para se transportarem de um lugar para outro e exerce suas vinganças. Outros acreditam que o mati é uma maaiua, e então o que vai à noite gritando agourentamente é um velho ou uma velha de uma só perna, que anda aos pulos.‖ (Stradelli, Vocabulário da Língua Geral.).

Esta definição lança, entre outras, uma definição muito salutar para o mito, a capacidade para voar pelas comunidades ser possível pela transformação em ave que a pessoa sofre quando vira Matintaperera, a professora Josebel Akel Fares (2007) usará o termo ―bruxa amazônica‖ para caracterizar esta entidade mítica da Amazônia. Ou seja, a passagem da condição humana para um ente mítico semelhante a uma ave representada com habilidades consagradas ao mal, que nesta definição aparece como masculino (feiticeiro e pajé) e com origem indígena. 481

Quando o medo dá lugar à curiosidade, pode-se oferecer café ou mesmo tabaco à matinta, quando esta passar assobiando, que na manhã seguinte ela surgirá na casa daquele que fez a oferenda requerendo o sacrifício da noite anterior191. Àquele que cedo aparecer pedindo a oferta, ou se trata da ave agourenta na forma humana ou passará a ser alcunhado de matintaperera naquela comunidade. Não obstante, para Cascudo (2001) este ser sobrenatural corresponde a uma figura masculina, geralmente um feiticeiro ou pajé, que se metamorfoseia nesta ave para alcançar grandes distâncias e realizar suas vinganças. Fato este também encontrado em Métraux (1979), mas que para este antropólogo, a matintaperera é um meio para o pajé realizar sua travessia entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, com a finalidade de conseguir curar os males que assolam seus ―pacientes‖, assemelhando-se ao Hermes grego, somente como aquele que transita entre dois mundos (o dos humanos e o das divindades), um ser do ―entre-lugar‖ (Bhabha, 2010). Quanto ao tempo da epifania (FARES, 2007, p. 68), este geralmente corresponde ao noturno. Outra pessoa com autoridade para esta metamorfose são os idosos da comunidade, que também surgem na figura de um pássaro pelas noites emitindo seu grito agourento que arremeda seu nome: matin-ta-pêrê (Ibidem, p. 09). Na narrativa de Dona Maria (Acarpará em 19/05/2012) a Matintaperera confirma as características de Cascudo (2001), com a diferença pois corresponde a uma senhora idosa que se metamorfoseia naquela ave e quem antagoniza com ela esta narrativa é justamente um personagem masculino investido de poderes sobrenaturais, o pajé. A leitura nesta narração modifica os papéis dos personagens da cultura indígena. [19:28:44] Era uma vez o meu pai contava que era uma senhora que morava nos campos do Quatipuru. Ele contava pra gente né? Aí quando foi uma noite o senhor tava lá no tabacal dele de noite, toda noite aquele bicho passava por cima da casa dele, ele via aquela matintaperera, sabe, passar pro cima da casa dele e aí ele disse: ―– Um dia eu vou te pegar‖. Ele era meio pajé, sabe, esse homem. [19:28:54]. (Dona Maria, Acarpará, 19/05/2012)

A narradora caracteriza a Matintaperera como uma entidade com habilidade de alçar vôo, aptidão que lhe permite alcançar grandes distâncias, podendo ultrapassar os limites de sua comunidade e avançar ao encontro de outras para cumprir seu percurso (fado ou penitência). Quem antagoniza com a matinta da Acarpará é um pajé. Citação que se assemelha a descrição de Stradelli por Cascudo pode ser encontrada no trabalho de Silva (2007, p. 149), pois a antropóloga menciona que um habitante da comunidade de Carvoeiro

191 A categoria oferta, oferenda ou prenda neste trabalho surgirá como sinônimos de sacrifício, da forma como ele é conceituado por Mauss (2003). 482

(estado do Amazonas) teria escutado o assobio da Matintaperera e afirmou que esta seria o pajé daquela comunidade que estaria metamorfoseado neste ser mítico: Dois caboclos antigos de Carvoeiro relataram-me certa vez que o pajé desâna, vindo do Alto Rio Negro, tem poderes mágicos de se transformar em matinta-pereira e onça, um deles confirmando o fato com a evidência de que ―não tinha onça no varador antes de ele chegar‖. Sr. Abílio disse ainda que, quando o pajé era ―novato‖ na área, ele ouviu o tal matinta gritando três vezes durante sua pescaria no igapó à noite, então ele gritou: ―compadre, se tu fores meu amigo, vai tomar café em casa amanhã de manhã‖. E adivinha o que aconteceu? O pajé foi o primeiro a aparecer para tomar café na casa dele no dia seguinte. (Silva, loc. cit.)

Métraux (1979, p. 56-57) diz: Os tupinambás sentiam supersticioso temor por certa espécie de ave que, a julgar pelas descrições, pode ser identificada com o matim tapirera (Cuculus cayanus L.). Essa ave passava por mensageira dos parentes já falecidos e seus trinados eram interpretados como ordens do além-túmulo. Não resta dúvida de que o matim tapirera era considerado uma encarnação dos espíritos dos mortos.

A discordância que existe entre a afirmação de Métraux e Silva e a da narradora da Acarpará deixa dúvida sobre a modulação que o discurso sofre quando a personagem muda de gênero, ao pajé não é direcionado um olhar que o torna malfazejo, pois mesmo com a habilidade de praticar o mal, o lado de curandeiro o investe de um cargo elevado na comunidade, fato não admitido pela mulher que pratica a mesma atividade, isto evidencia que existe uma relação de poder entre esses personagens, pois não se admite que a mulher exerça esta função religiosa sem que seja excluída socialmente (Villacorta, 2000). Essa mesma relação de poder pode ser encontrada nos trabalhos que versam sobre a feitiçaria no velho mundo (Beauvoir, 1961; Bruschini & Rosemberg, 1980; Delumeau, 2009; Evans- Pritchard, 1978; Foucault, 2009; Ginzburg, 1988 e 1989; Kramer & Sprenger, 1991; Nogueira, 1995; Novinsky, 1980; Souza, 1987 e 1986), especialmente aqueles que discorrem sobre as práticas de cura que eram descritas nos tribunais do santo ofício como práticas de bruxaria, mas que por trás estava o medo pelo fortalecimento social entre as mulheres. Podemos também encontrar em Villacorta (2000) a mesma interdição social que sanciona a mulher sobre o exercício da prática do curandeirismo e da pajelança. A professora Fares (2007) apresenta uma leitura semelhante à de Cascudo (2001) e Silva (2007), no que se refere ao sacrifício realizado em nome da matintaperera: O dia esconde os últimos raios de sol, a noite adentra, os corpos estão em queda nas camas ou nas redes, um rasgo sonoro rompe a calma noturna: fite, fite, fiuiite... O assobio não cala: fite, fite, 483

fiuite... Os que se amam ou que descansam precisam sossegar. Então, oferecem: ―amanhã de manhã vem buscar uma cachimbada de tabaco...‖, de outro canto uma nova oferenda: ―vem tomar café conosco, matinta perera‖. É assim que o silêncio se restabelece até a aurora. Alguém já desvirado, virá buscar a prenda ao amanhecer. É a matinta perera. (FARES, 2007, p. 68)

Assim, uma das formas de conhecer aquele(a) que se transmuda em matintaperera é lhe oferecendo, quando este(a) passa durante a noite, café ou tabaco, elementos que cessam suas investidas (assobios). Assim, o primeiro que chegar pedindo a oferta pela manhã, certamente será a matintaperera que na véspera havia passado assobiando. Porém, na narrativa registrada na comunidade da Acarpará, a ave agourenta é uma velha e o pajé é justamente a pessoa que se aventura a desvendar a identidade da divindade amazônica, e tal oferta (tabaco e café) não é feita. Enquanto a matinta de dona Maria é feminina e velha, na descrição citada por Silva e Cascudo é masculino enquanto Fares no seu texto menciona os dois sexos. Em Itapuá, região do salgado paraense, a prática da matintaperera só é exercida por mulheres interditadas socialmente, uma alcunha pejorativa (VILLACORTA, 2000). Não obstante, somente uma figura respeitada na comunidade, sobretudo por manipular ervas e se apresentar como ―o depositário autorizado da ciência tradicional‖ (CASCUDO, 2001, p. 468), pode metamorfosear-se em matintaperera. Por outro lado, a representante feminina neste contexto mítico não goza dos mesmos predicados daquela entidade masculina, pois o pajé é o médico, o conselheiro da tribo, o padre, o feiticeiro, o depositário autorizado da ciência tradicional. Só os fortes de coração, os que sabem superar as provas da iniciação, é que têm o fôlego necessário para aspirar a ser pajé. [...] Além da expulsão do espírito da moléstia, comum a todos os curadores-feiticeiros no mundo, pelo canto, batida rítmica de maracás e danças, cercava o pajé um ambiente de respeito, convertido em veneração e medo, quando se tornava velho, de humor desigual, semi-recluso em sua cabana afastada, sabedor dos mistérios divinos, conversador único e intérprete solitário entre o grupo e a divindade. (Ibidem: 468-469)

A figura masculina é investida de um simbolismo que o direciona para uma posição de destaque na comunidade: considerado, respeitado e temido pelos sujeitos que participam da comunidade que cultua o pajé como representante de direito do saber local, como o manipulador, autorizado pelo costume popular, das ervas (por isso médico- feiticeiro) e como conselheiro da comunidade. Uma figura de coração forte que conseguiu vencer as provas que o iniciou nos mistérios e que lhe deu direito para ocupar a posição de 484 destaque na sociedade, que nunca deve ser ocupada por uma mulher, pois ela não dispõe das mesmas habilidades que o homem para exercer tal cargo na sua comunidade. [19:28:54] Aí quando foi uma noite o senhor tava lá no tabacal dele de noite, toda noite aquele bicho passava por cima da casa dele, ele via aquela matintaperera, sabe, passar pro cima da casa dele e aí ele disse: ―– Um dia eu vou te pegar‖. Ele era meio pajé, sabe, esse homem. [19:29:20]. (Dona Maria, Acarpará, 19/05/2012)

Nesta narrativa, a única pessoa que se aventura em capturar a matintaperera é o pajé. Somente alguém investido de um caráter mítico e superior poderia ―pegar‖ a matintaperera, subtraindo-lhe também sua aura mítica. Tanto como citado por Sr. Abílio (Silva, 2007), por Fares (2007) quanto pela narradora da Acarpará, o horário de passagem da matinta corresponde ao noturno, direcionando este ser para o nefasto que acompanha os horários após o crepúsculo. ―o tempo da epifania quase sempre é noturno, raríssimas vezes o ser mítico se move à luz solar. Em relação ao ser desmetamorfoseado, o tempo é diurno‖ (FARES, 2007, p. 68). A matintaperera, na narrativa de dona Maria, pratica seu vôo sobre a casa do pajé todas as noites. Porém, quando a narrativa avança, a narradora confirma que o adejo da bruxa obedece a um ciclo de oito dias que dá margem para o médico-feiticeiro idealizar sua captura. Sobre este número que regula o período do ente voejante, temos: O oito é, universalmente, o número do equilíbrio cósmico. É o número das direções cardeais, ao qual acrescenta o das direções intermediárias: [...] O homem, enfim, é oito em seu esqueleto, assegurado pelas oito articulações dos membros (GRIE), articulações cuja importância é primordial, pois que é delas que provém a semente masculina. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 651-652)

Mesmo se tratando de uma figura feminina, o valor que regula sua passagem pela comunidade, o ciclo de sua penitência, sua rotina, denota um valor predominantemente masculino, uma vez que a definição do número oito pertencente ao scorpus de significados que engloba o aspecto da cultura masculina. Mostrando também que o ciclo realizado pela matinta se refere ao equilíbrio da sua trajetória, como trajetória intermediária entre o céu e a terra, sobretudo com feições sempre voltadas para o homem. Assim, o ciclo de passagem da matinta é interrompido pelo pajé que a surpreende e a ―pega‖ quando ela passa por cima de seu tabacal. Contudo, o segredo resguardado àqueles que detêm a penitência de se transformar em matintaperera não pode ser levado a público (observando o que é dito apenas nesta narrativa oral) sob pena de perda da característica mítica. Fato que se confirma quando a mulher do pajé demonstra curiosidade 485 para conhecer a identidade da matinta que ela ouvira gemer atrás de sua casa. O marido, então se limita em pedir alguma roupa para cobrir, certamente, a nudez da velha que acabara de ter seu encanto quebrado, e não revela a identidade da bruxa à esposa. Subjacente ao contato do pajé com a feiticeira está o elemento que intermedia este encontro: a faca. Como elemento ativo que age sobre a matéria passiva, semelhante ao cinzel que ―representa o princípio cósmico ativo (masculino), que penetra e modifica o princípio passivo (feminino).‖ (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 414). Modificando a natureza fantástica que investe aquela senhora, desencantando o aspecto sobrenatural que ela carrega, a faca, também, representa o falo quando utilizado nos rituais iniciáticos, principalmente, na circuncisão (CHEVALIER & GHEERBRANT, loc. cit.). Na narrativa da Acarpará, a faca por si só não revela dominação sobre aquele ente sobrenatural, pois ela precisa antes ser preparada, no sentido de que ela deve passar por um processo ritual para surgir como ameaçadora ao ente que se quer dominar. [19:29:57] Ai ela foi, pego e cortou um bocado de tabaco e deu pra ele, ele botou na bolsa e foi embora, pegou a faca foi lá pra dentro, preparou bem e foi embora. E ela pensava que ele tinha ido pegar o peixe, mentira, ele tava na beira do tabacal dele, né, esperando ela passar por cima da casa dele, era em oito e oito dias que ela passava. [19:30:19]. (Dona Maria, Acarpará, 19/05/2012)

No decorrer da pesquisa de campo, outras formas de prender a matintaperera são descritas, entre elas tem-se: girar uma chave na fechadura da porta no momento em que a matinta dobra192 seu assobio ou enfiar um punhal no esteio193 da casa ou em um tamanco correspondem a outras maneiras de se prender a divindade. Também, o símbolo feminino e imagem da bruxa tem que ser removido no momento da dominação, a saber, a enorme saia que a velha vestia e o cordão que usava em torno do pescoço. Estes tem que dá lugar às roupas da esposa do pajé, pois uma vez quebrado o encanto que envolve a matinta, fazendo-a voltar ao normal, à forma humana, a indumentária que ritualiza a transformação da velha em bruxa tem que dá lugar às vestimentas próprias da condição humana, e não só isso, a roupa que a veste é a roupa do dominador, despida de toda a marca que a constitui, ela perde também aquilo que lhe caracterizava como não-natural, como misteriosa e sombria, para voltar a feição humana de submissão.

192 Os narradores descrevem esse dobrar o assobia quando ela apita: fiiite, fiite, fiite, matiiintaperera. Este matiiintaperera é justamente o momento em que a divindade arremeda seu nome corresponde ao dobrar o assobio. 193 Este esteio é encontrado nas residências de taipa e que além de sustentar toda a moradia, na maioria dos casos, tem o formato de cruz ou T. 486

Afora se papel de ornamento, o colar pode significar uma função, uma dignidade, uma recompensa militar ou civil, um laço de servidão: escravo, prisioneiro, animal doméstico (coleira). De modo geral, o colar simboliza o elo entre aquele ou aquela que o traz e aquele ou aquela que o ofertou ou impôs. Nessa qualidade, liga, obriga, e se reveste, por vezes, de uma significação erótica. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 263)

Como qualidade de submissão, o cordão (colar) que ela utiliza denota sua condição de cativa dos poderes que ela detém. Além disso, o adorno sinaliza um pacto que não pode ser rompido, sob pena de perda dos seus atributos sobrenaturais, por este motivo o pajé se apressa em removê-lo do pescoço da velha. Fica subjacente que a ausência da saia e do cordão deixa transparecer a condição humana despida da aura mítica que os dois elementos a reveste. [19:31:22] Só que ela mora muito longe, sabe, na beira do campo que ela morava, e ela caiu, agora, na hora que ele pegou ela né, ela caiu ela se desvirou de matintaperera, né, ficou normal, ela com uma saiona grandona e amarrava aquele cordão por aqui, sabe, aí ele foi e, ―– Agora eu tenho que levar ela onde ela mora‖. Aí ela: ―– Mas tu vai ficar na coisa (...)‖. ―– Eu vou levar ela. Vê uma roupa tua aí pra ela se vestir, pra tirar a saia dela daqui da onde ela tava, né, pra vestir uma blusa‖. Por que a roupa dela ela tirava na beira do poço do genro dela, sabe, de noite e ela ía fazer as coisas dela, ela torava no mundo fazendo, (Cumé?) a penitência dela. [19:32:13]. (Dona Maria, Acarpará, 19/05/2012)

A marca da humanidade do sujeito é posta sobre a borda de um poço que em todas as tradições carrega um simbolismo sagrado e que também, guardada suas proporções, é ―símbolo de segredo, de dissimulação da verdade.‖ (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 726). Verdade desvelada por aquele que tomou o segredo pra si e assumiu a responsabilidade de integrá-la ao espaço familiar que a mantém presa em regras e convenções. Fora deste ambiente, despida de toda roupa que marca a posição feminina nessa ordem familiar, ela é livre, não encontra limites em seus vôos, ultrapassa as barreira das convenções que lhe rotula como feiticeira, como bruxa, como matintaperera. Também, o que a velha senhora pratica é encarado como penitência aos olhos da sociedade que apenas atribui ao pajé a representação mítica que merece respeito, enquanto que a figura feminina quando investida de características sobrenaturais é encarada como penalizada por um castigo que deve cumprir periodicamente, um fado que deve ser cumprido por toda sua velhice. A penitência que a narradora cita em vários momentos da entrevista é explicada quando Fares (2007, p. 71) diz: ―Ela cumpre o fadário, porque no tempo da Cabanagem, junto com os cabanos, fazia orgias nos cemitérios – ‗matinta perera 487 são essas bruxas velhas que quando moças cometeram grandes pecados e por isso ficam cumprindo seu fadário‘‖. Assim, tendo que cumprir a expiação de uma falta e despida do simbolismo que denuncia uma posição respeitável na ordem familiar, pois ela tem que carregar esse presente não divino como segredo, enquanto o homem pode exercê-lo publicamente. A sexualidade é entrevista no trabalho de Fares como inerente às mulheres, colocando-as em uma posição de promiscuidade, pois elas ―sem exceção, são colocadas como mal maléfico porque, por natureza, são crédulas, faladoras, coléricas, vingativas, de vontade e memória fracas e insaciáveis, prestando-se a todas torpezas sexuais.‖ (CHAUÍ, 1990, p. 101-102). Esta predisposição para o pecado faz com que o desejo feminino a aproxime novamente da feitiçaria, pois a acusação que é feita sobre esta prática ―é sempre sexual, pois a feiticeira é aquela que dorme com o diabo.‖ (CHAUÍ, loc. cit.). Sobre este intercurso sexual com o demônio, e por isso a representação da mulher como bruxa, pode ser observado na obra do pintor Goya (Sabbath das Bruxas), quando ele expõe um bode enorme coberto de pêlo negro no meio de um círculo formado por bruxas em um ambiente predominantemente noturno (VARANDAS, 2006, p. 114).

Imagem 3. (Goya, El Sabbath de las Brujas, 1820-1823, Museu do Prado194)

Reza a lenda (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 794) que no sétimo dia e em uma noite de lua cheia (pois Shabater indica o momento em que a lua para de crescer),

194 Disponibilidade em: http://www.pinceladas-fms.com/goya_saba_bruxas.jpg. Acesso em 18 de mar. De 2013. 488 as bruxas saiam voando e se encontravam em um local determinado para se relacionarem com o diabo em cenas de sexo, semelhante ao pecado cometido pelas caboclas que se entregavam aos prazeres sexuais nos cemitérios com os cabanos, daí uma possível explicação para a metamorfose e para a penitência da bruxa amazônica. Não somente a condição de ser mulher se apresenta diminuta nessa narrativa, mas também o fato dela ser uma velha carrega um simbolismo que a distancia também do aspecto respeitável, uma vez que ela representa uma Entidade maléfica ou grotesca, que intervinha nas estórias para a função malévola de perturbar a felicidade ou dificultar a conquista legítima de alguma coisa. Como permanência da velha das tradições da Europa, misteriosa e cheia de poder, simbolizando segredos, a morte, a treva, o inverno, reaparece em algumas superstições. (CASCUDO, 2001, p. 722)

Herdeira de uma imagem que nos remete ao pensamento medieval sobre a figura da velha nas tradições do velho mundo. Esta narradora (Dona Maria) conserva no imaginário amazônico (sob a figura da matintaperera) as mesmas características que direcionam a personagem de sua história para a condição malévola, misteriosa como bem salientou Cascudo. Para que a matinta seja desencantada e com isso perder sua característica mítica, tem-se tornar público sua verdadeira identidade, sua representação humana, a bruxa torna- se eternamente humana, não havendo depois disso meios que lhe atribua os poderes míticos de matintaperera. É esta a preocupação revelada por dona Maria quando a velha senhora [19:32:56] (...) disse: ―– Ah, seu Manoel Herculano, não vai me descobrir, que eu tenho este costume muito tempo, não vai me descobrir‖. Ele disse: ―– Não senhora, eu não vou lhe descobrir não. Eu só queria saber quem era que passava (Nera?), mas eu não vou dizer nada pra ninguém, não‖. [19:33:13]. (Dona Maria, Acarpará, 19/05/2012)

Quando demostra preocupação em não ser descoberta, ou seja, que não seja denunciada sua condição de feiticeira, devido ao fato de tal procedimento cancelar a capacidade de se metamorfosear em matinta, ela também nos confirma conhecer aquele que lhe havia pego. Isso se comprova quando o genro da velha pede que preparem um mingau de jerimum para o visitante quando este desconversa a visita inesperada dizendo que apenas parou naquele horário para pegar leite, pois estava de passagem para fazer um serviço naquelas redondezas. Esta protagonista não só é exposta como subordinada ao pajé que consegue lhe capturar e que agora conhece seu segredo, como também ao genro que a 489 submete. Pois pensando a organização familiar da velha senhora, o expoente que a regula é justamente um representante masculino. Nestas narrativas constrói-se o papel do feminino sempre aproximado do nefasto, do mau agouro. Como não humano, por isso a relação com a natureza ser tão presente quando se fala desses seres míticos. Beauvoir corrobora explicando que o outro (feminino) é sempre confrontado com o masculino, a passividade sendo gestada em um discurso masculino (ativo), por isso a natureza ser posta contra a cultura. A mulher-natureza é dita como ―a desordem que resiste à ordem. A mulher é, assim, votada ao Mal.‖ (Beauvoir, 1961, p. 101).

Considerações finais Observa-se que o imaginário estabelece uma aura que envolve a mitopoese amazônica e que pode ser pensado como esse algo a mais que poetisa a verbalização da realidade, criando um discurso sobre o feminino que é representação. Pensando os fatores do uso que fizemos deste conceito e uma vez entendido que os valores presentes na narrativa mítica aqui analisada envolvem, não somente a própria narração, como também o grupo: pois quando o sujeito emite seu discurso, ele o faz de um lugar que denuncia uma coletividade que o precede e joga com os mesmos valores simbólicos e sociais de uso das imagens que seu discurso compartilha. A narradora surge como transmissora desse discurso que modula o papel feminino, e que também representa o masculino. Observa-se que o nefasto que acompanha a representação da mulher como aquela que se transforma em animal, em bruxa, atravessar nossa personagem quando ela marca a diferença na estrutura familiar por ser velha, por ser mulher, é ela quem tem a capacidade para voar por outras comunidades. É especificamente um exemplar feminino que encarna a diferença, que é tomada como contrária a natureza humana, o mal feminino marcado pela metamorfose desse sexo em bicho, em não racional, em uma alimária. São as bruxas amazônicas que despertam medo, provavelmente por conta de uma organização feminina que incute medo nos homens por dispensá-los, e que em troca recebem a alcunha de matintaperera, uma maneira de torna-las inferior, nefastas, mas que neste trabalho figuram como uma resistência a uma cultura androcêtrica que tenta lhes impor rédeas.

Bibliografia

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MEMÓRIA DA ALTAMIRA DE ANTIGAMENTE

Fernando Jorge dos Santos Farias195 Andreia Luciana Knispel Cássia Silva Araújo196

Resumo: A iniciativa visa contribuir com o ensino nas escolas públicas de Altamira. Com vista à recomposição do passado altamirense, o estudo embasou-se nas proposições metodológicas da história oral. Assim, teve como referência principal as narrativas produzidas a partir de entrevistas realizadas com moradores, todos com mais de trinta anos de vivência na cidade, selecionados, inicialmente, por meio da indicação de sujeitos previamente observados como intérpretes. Dentre as conclusões destaca-se a memória como guardiã dos saberes e culturas locais. As rememorações, proporcionadas pelos idosos entrevistados, possibilita compreender que as memórias e, por extensão, as narrativas individuais registradas, são capazes de, em um grande mosaico, coletivizar-se e contribuir para o ensino que valoriza a cultura e o saber local.

Palavras-chave: Memória; Altamira; História oral; Saber cultural.

Résumé: L'initiative envisage de donner une contribution à l'enseignement dans les écoles publiques d'Altamira. Avec le but de recomposer l'histoire altamirense,l'étude s'est basée sur les propositions méthodologiques de l'histoire orale. Ainsi, nous avons eu comme principale référence les récits des vieux habitants de la ville,résidents d'Altamira depuis plus de trente ans, ils ont été choisis par suggestion d'individus préalablement observés comme des interprètes et ensuite ils ont été interviewés.Parmi les résultats, la mémoire en tant que gardienne du savoir et de la culture locale sont mises en évidence. Les souvenirs, racontés par les plus âgés habitants d'Altamira, nous permettent de comprendre que les souvenirs et, par extension, les récits individuels enregistrés, sont capables, dans une grande mosaïque, de se collectiviser et contribuer à l'enseignement qui valorise le savoir et la culture locales.

Mots-clés: Mémoire; Altamira; l'histoire oral; savoir culturel.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O intento maior, com este escrito, consiste na apresentação, por meio da rememoração dos antigos moradores de Altamira, de alguns painéis da cidade referentes ao século XX, relacionados a diferentes aspectos, com vista à recomposição do passado social, cultural, e econômico da cidade. Pautada nesta ideia a proposta consistiu em recuperar a memória da cidade, do século passado, compondo uma cartografia imaginária e simbólica do local.

195 Mestre em Educação (UEPA/PUC-RIO), Especialista em Estudos Linguísticos/Análise Literária e Pedagogo (UEPA). Atualmente, é Vice-Diretor e Professor da Faculdade de Letras Dalcídio Jurandir da Universidade Federal do Pará (UFPA) – campus Altamira. E-mail: [email protected] 196 Acadêmicas do curso de Letras – Língua Portuguesa da Universidade Federal do Pará – campus Altamira. E-mail: [email protected] / [email protected] 494

Tal representação, em nossa compreensão, corresponde a mapas socioculturais de saberes múltiplos, apreensão de paisagens se constituindo em movimentos: coisas se mantêm, coisas novas se agregam e coisas se desmancham. Desmantelamento de certos mundos e formação de outros, mundos em construção e mundos em decomposição (FERREIRA apud FARES, 2010). Guiados por esta possibilidade, pensamos que a importância do estudo assentou-se na necessidade de recuperarmos a história de uma localidade existente antes mesmo da presença dos missionários da Companhia de Jesus no rio Xingu, antecedendo ao ano de 1750. Trata-se de um lugar que somente por meio do decreto Legislativo nº 1.234 de 6 de novembro de 1911, assume o nome de Altamira (UMBUZEIRO, 2012). Chegado e passado o ano de 2011, ano emblemático por demarcar o centenário da cidade, intensificamos questões que, cotidianamente, lutamos para compreender/trabalhar enquanto professores e alunos ansiosos em saber a história do município. Um desses assuntos que, há certo tempo nos incomoda, corresponde à memória da cidade. Poucos são os materiais que se voltam a um olhar preocupado em registrar a memória social/cultural de Altamira. Os poucos que existem partem de um esforço, em sua maioria individual de pesquisadores, poetas, moradores, gente comum e estudada que sonha com uma cidade/ambiente digna e passível de vivência, jamais esquecida, abandonada. Dada a pouca produção de materiais que registra a memória da cidade xinguana, nos lançamos na investida não de superar tais produções, mas a elas fazer coro. Altamira, no ano de seu centenário, viveu um momento em que um grande número de seus moradores não conhecia a história do chão que nasceram/moram. Alunos de todos os níveis escolares. Intelectuais autodidatas e oriundos do meio acadêmico. Gente informada e gente formada pela vida. E parte da vida desse povo nascido da luta do viver com o sobreviver que o artigo conta. Metodologicamente, para a produção de dados utilizamos o recurso da entrevista, fundamentados em Lüdke; André (1986), além de considerarmos as proposições da história oral concebidas por Thompson (1992) que destaca este tipo de investigação como um excelente mecanismo de pesquisa capaz de ―levantar‖ a memória e possibilitar a compreensão da dimensão individual e coletiva que envolve a história de determinado grupo profissional e social. Para a análise dos dados aproximamo-nos da proposta de Bardin (1995) no que se refere à Análise de Conteúdo do tipo categorial. Tivemos como eixos categoriais a vida na Amazônia e ações/realizações dos sujeitos altamirenses. Assim geramos as seguintes 495 subcategorias: bairros, moradias, equipamentos urbanos e domésticos, transporte, saúde, comércio, comunicação, entretenimento, lazer, arte, moda, amores e religiosidade. Quanto aos intérpretes197 estabelecemos alguns critérios de seleção, a saber: pré-entrevista - conversa informal - em que o entrevistado apresentou, fundamentalmente, nascimento e/ou vivência em Altamira; (Auto) indicação após a pré-entrevista (aceitação do entrevistado) e residência de, no mínimo, trinta anos de vida na cidade. Dentre os cuidados éticos priorizamos por considerar critérios de uso da imagem e voz, como a autorização prévia para fotografar, filmar e veicular o material, nos valendo para isso de um Termo de Cessão Gratuita de Direitos Sobre Gravações de Voz e imagem. Não menos importante que as bases teorias que nos guiou, elegemos também como ―corpo teórico‖, em nosso artigo, o reviver do Sr. José Góes Filho, pernambucano, ex- comerciante, casado, pai de 5 filhos e morador de Altamira a mais de 40 anos; As lembranças do ex-sertanista, Sr. Afonso Alves da Cruz, também casado, pai de 5 filhos, nascido no dia 08/08/1935 em São Felix do Xingu e morador de Altamira desde 1955; As recordações da filha do ex-escrivão da delegacia, Sra. Maria de Nazaré Ladeira Carvalho, doméstica, nascida em Altamira no dia 16/10/1932, casada desde os 16 anos, mãe de 14 filhos (as); Foi-nos de grande valia as palavras da descontraída, ex-servente e mãe de12 filhos, Sra. Raimunda de Barros Negrão, filha de nordestinos e de Altamira desde o dia 20/08/1931. Visando enriquecer essa considerável ―memória viva‖ da cidade, recorremos à mente lúcida da Sra. Vicência Nunes Meireles, ex-primeira dama, mãe de 10 filhos e natural de Altamira desde 16/09/1930, cidade onde nasceu198. Feito esta apresentação comunicamos que a partir das caracterizações que faremos a seguir esperamos contribuir para o ensino-aprendizagem nas escolas públicas em Altamira, necessitadas de constantemente reviver sua história, seu passado cada dia presente. São histórias gravadas no interior dos antigos moradores do município paraense, e agora, neste escrito acadêmico.

A VIDA LOCAL E ALGUNS DILEMAS AMAZÔNICOS

197 A noção de intérpretes encontra explicações na teorização de Paul Zumthor em sua obra ―A Letra e a Voz‖, Resgata por Fares (2010). Pontuadamente afirmamos que nossos sujeitos são considerados intérpretes por que nos forneceram mais que simples informações. Na verdade nos proporcionaram verdadeiros espetáculos. 198 Demarcamos que ao visarmos um texto capaz de ambientar o leitor as narrativas seguras, simples e livres que compõem grande parte das pesquisas em História Oral, teceram uma cartografia imaginária em que a ênfase está na fala dos intérpretes. Assim, os autores utilizados neste artigo foram necessários, entretanto, para a apreciação dos leitores separamos as palavras e entendimentos dos principais sujeitos de nossa investida: os antigos moradores de Altamira. 496

O município de Altamira apresentava, como boa parte dos municípios do estado do Pará, no início da segunda metade do século XX, caracterizações de cidade simples, sem muitas sofisticações. E para falar desse lócus nada melhor do que os moradores que ajudaram e ajudam a tingir a cidade com configurações bastante amazônicas: nossos intérpretes, velhos guardiões da memória. Um desses tantos outros importantes, senhor José Góes, relatou-nos que, assim que chegou à cidade xinguana (no dia 2/05/1971), Altamira era Área/Zona de Segurança Nacional, ou seja, era uma localidade com raras comunicações com o território nacional, e assim, necessita de intervenções governamentais, não sendo permitida eleição direta de seus governantes. Destacou ainda que o que hoje é cidade, um dia parecia configurar um local em estado quase que intacto, original: As casas só existiam casas na Comandante Castilho. Um pedacinho assim de um, menos de 200 metros era o Centro. Você pegava ali da esquina daquela Drogaria [...]. Aqui tudo era mato. Não existia, ali naquela área do armazém era mato, não tinha o mercado, o mercadão também não existia e assim por diante (Sr. Góes).

Somado a essa ideia, evidenciamos que, fundamentalmente, as casas eram construídas conforme o poder aquisitivo de seus moradores. A grande maioria se abrigava, segundo a intérprete Maria de Nazaré em moradias ―de palha, tinha casa de taipe, toda de barro, coberta de cavaco [...]. Nesse tempo era assim. Quando eu me entendi, mais tinha casa também de... de telha, no lugar de palha era coberto de telha‖. De certa forma a ressalva feita pela senhora Maria de Nazaré nos possibilita pensar nos outros tipos de moradias existentes nessa Altamira de outrora. Compondo uma minoria, entendemos pela explicação do senhor Afonso Cruz que, algumas pessoas, aquelas de melhores condições, adquiriam, em muitos casos, empréstimos junto ao Banco da Borracha (que mais tarde passaria a ser o atual Banco da Amazônia), dinamizavam suas transações comerciais assim como construíram casas expressivas para época: Naquela época existia patrão. Chamam patrão, eram aqueles caras que mexiam com banco, mexiam com o Banco da Amazônia, que era financiado pelo Banco, o movimento deles era nos Banco na época da borracha [...]. Eles tiravam o financiamento do Banco [...] Só aqueles que tinham um dinheiro podendo que tinha uma casa de alvenaria o resto era tudo de palha (Sr. Afonso Cruz).

Essas casas, tanto as mais simples como as de estruturação mais trabalhada, compunham, no momento relembrado por nossos intérpretes, um único bairro com poucas ruas. As falas da intérprete Raimunda de Barros e Vicência Nunes externalizam bem essa configuração entendida. 497

A rua era curta. [...]. A rua terminava ali. Agora pra lá. Era a rua dos toco, rua da palha, e rua de nem sei que mais os nome. Era diferente [...]. A rua da frente que a João Pessoa, a Zé Porfírio, essa rua, Primeiro de Janeiro, essas aqui nunca mudaram o nome [...] A Sete de Setembro era a Eloi Simões. Era só um pedacinho (Sra. Raimunda Barros).

As ruas antigamente eram essas quatro ruas. Daqui primeira, a segunda, a terceira e era a quarta, só. Ali pra cima aqui do colégio, daqui das freiras, era, pra cima era mato. Era assim aquela coisinha rala [...] Uma casinha aqui outra acolá, de palha, de tudo. Aqui pra trás também não tinha quase nada. Era só fazendeirozinhos e essas eram as quatro ruas certinhas (Sra. Vicência Nunes) 199.

Essas poucas ruas e as casas tinham energia elétrica (iluminação pública e doméstica) com horário rotineiro de suspensão em seu funcionamento. Segundo o Senhor Afonso Cruz, houve uma época que a energia em Altamira era proveniente de um motor/maquinário instalado no quartel do exército, supervisionado o funcionamento pelo senhor Francisco Basílio, conhecido seu. A senhora Vicência Nunes acrescenta as informações do senhor Afonso Cruz um dado interessante. De acordo com a essa ilustre representante da família Nunes, seu pai foi o primeiro a se esforçar para que Altamira tivesse energia pública. O meu pai, o meu pai, foi o primeiro homem que botou luz aqui dentro de Altamira. Ele botou uma usina bem aqui na entrada de Altamira, que ele enterrou uns camburões, uns num sei lá o que diabo era aquilo, e fez umas ligações aqui para a rua, a... carbureto [...] ele botou uns postes aqui em Altamira, botou... num houve incentivo, num houve nada, ai acabou [..] Passou muito tempo esses camburões enterrados (Sra. Vicência Nunes).

No geral, a iluminação na cidade, de acordo com os senhores Afonso Cruz e José Góes, trazia limites e anseios por um melhor serviço ofertado ao povo local. A luz era até dez horas. Começava as sete, as sete, quando era dez horas parava a luz (Sr. Afonso Cruz).

E assim era aqui era. Energia não tinha. A energia aqui era até dez e trinta da noite. As, as dez e... As dez e quinze dava um sinal na, na... Não me parece que era às dez horas. Era às dez horas dava sinal às dez horas e quinze minutos dava outro e às dez horas e meia outro. (Sr. José Góes).

Como se completasse as afirmações dos senhores supracitados, Sra. Vicência Nunes retoma sua fala fazendo questão de pontuar que luz mesmo era ―até dez horas. Em dez horas em diante, acendia as velas. Acendia os ‗petromax‘, naquele tempo era ‗petromax‘

199 Em alguns momentos do artigo tentaremos utilizar o recurso denominado pela profa. Rosália Duarte da PUC-RJ de ―diálogo artificial‖. Nossa intenção é gerar a impressão de que, dada as proximidades e discordâncias entre os intérpretes, estavam juntos, na realização das entrevistas que aconteceram em meses e dias diferentes. 498

[...] ´petromax‘ era um que você dava bomba e acendia aquela chamazinha. Ai clareava tudo. Esse era o ‗petromax‘‖. O Petromax junto aos geradores atendia aquelas famílias que tinham um poder aquisitivo melhor, geralmente localizadas na cidade e nos seringais. Somente com o passar do tempo é que seu custo foi baixando, tornando-se um utensílio acessível a todos os moradores. A grande maioria, conforme destacaram as senhoras Maria de Nazaré e Vicência Nunes, usava lamparina, candeeiro e velas de cera. Com essas e outras contenções valia muito a utilização da inteligência do povo. E dentre as questões capazes de enfatizar a inteligência do povo altamirense no século passado está às formas de condução ou transporte. Praticamente, claro que em poucas quantidades, Altamira tinha vários tipos de transporte. Dos mais modernos para a época aos mais simples. Dentre os meios de transporte considerados sofisticados, artigo de luxo e de poucos, alguns moradores utilizavam o avião, principalmente se o problema fosse de saúde. Neste aspecto é interessante destacar que não tendo pista adequada para o transporte aéreo, fazia-se decolagem e pouso no rio Xingu, tratando-se este meio de transporte de forma excêntrica. Ao indagarmos a Sra. Vicência Nunes, curioso foi o relato dessa moradora local: Meu pai teve uma... um negócio assim que ele botava sangue e tudo, diz o medico que foi um vaso uma coisa assim [...] o avião veio encostar bem aqui no porto, amarrou a corda do avião, na mangueira. O rapaz amarrou na mangueira e foi leva lá no avião e eles amarraram. Lá puxaram o avião, meu pai entrou no avião e foi embora pra Belém. Olha só, ainda não tava descendo aqueles catalinas que desciam aqui. Que aqui descia catalina, aqui no rio. Tinha uma bóia ali no meio do rio, o catalina vinha descia. pegava na bóia. A gente na... no bote. Lá pra dentro pra pegar um avião (Sra. Vicência Nunes).

As palavras da Sra. Vicência Nunes nos faz atentar para um dos maiores meios de ―comunicação‖ ainda muito utilizado na cidade e na região norte: o rio. Quando o Sr. Góes veio para Altamira, relatou-nos o comerciante que poucos eram os automóveis presentes na cidade. Grande parte das pessoas quando almejava um deslocamento maior fazia uso do transporte fluviário. Ele próprio menciona esse recurso ao relembrar o dia em que viajou para Belém, capital do estado, para comprar mercadorias visando iniciar aquilo que marcaria sua vida como profissão: Eu cheguei aqui, eu cheguei em Belém no dia 27 de abril. Aí tive que me vacinar, viajei num navio que chama Leopoldo Peres, mas esse navio não vem parar aqui. Ia pra Belém, ia pra Manaus e chegando ele em, o navio Leopoldo Peres, chegando em... Como é o nome da cidade ainda... Gurupá (Sr. Góes). 499

Tanto o Sr. Góes como a Sra. Maria de Nazaré evidenciam que havia uma quantidade reduzida de carros em Altamira. Muito utilizado mesmo era o meio fluvial. A Sra. Maria de Nazaré destaca que ―o transporte só era do forte para Vitória200 [...] tinha carro também aqui dentro da cidade, só esses carrão grande [...]. Caminhão, só caminhão‖. Aparentemente, pode-se pensar que este meio de transporte era comum aos moradores. O Sr. Afonso em suas palavras destacou a principal (talvez a única via terrestre) que ligava Altamira aos demais municípios paraenses assim como fez questão de reafirmar que o rio era o principal ―caminho‖ da população. Para o ex-sertanista, o uso de automóveis era reduzido a um grupo pequeno que possuía bens. A estes o Sr. Afonso chamava de patrão: Eles vinham, tinha uma estrada aqui de Vitória, essa estrada de Vitória. Os navios vinham e paravam em Vitória pra transportar as borrachas. E tinha pra carregar mesmo e era uma viagem por mês, né. De mês em mês dava uma viagem. Agora tinha barco particular, tinha o Pimenta Bueno, agora esqueço todos os outros navio, né. Fazia viagem de Belém para Vitória [...]. Transporte... Não existia carro, existiam os caminhões dos patrões [...]. Chamava forte, ali onde é o quartel, chamavam forte, a estrada era por ali, feita a braço a estrada, só tinha caminhão.

Quando mencionado o uso de transporte uma questão merece apreciação. Para a coleta de lixo utilizava-se a carroça. Sobre este serviço comunicou-nos o Sr Afonso que os resíduos produzidos pela população eram recolhidos por um amigo seu, o pernambucano João Osvaldo, auxiliado por uma carroça e seu burro. Em caráter complementar a informação deste morador da cidade xinguana, a Sra. Maria de Nazaré acrescentou que a maioria dos moradores quando necessitavam de algum deslocamento dentro do município, realizavam-o por meio da caminhada dada a situação difícil da maioria dos moradores. Resgatando a afirmação do Sr. Afonso Cruz a Sra. Maria de Nazaré ponderou que, para o transporte de pessoas e de lixos produzidos fazia-se uso de uma carroça: ―Tinha uma carroça, o doutor Juca era prefeito, tinha uma carroça num sabe? O boi e o carroceiro puxando, ‗oito, oito‘, ai encostava a gente levava a lata de lixo ele despejava na carroça, pra jogar não sei por onde‖. Quando esta antiga moradora revela, de certa forma, um trato pouco cuidadoso com o lixo produzido, reportamo-nos as configurações da saúde nesta Altamira de outrora. Não necessariamente provocado pelo lixo, mas a Altamira passada apresentou consideráveis problemas na saúde de sua população, caracterizados com os diversos casos de malária, pneumonia, hepatite, desinteira, tifo e as incômodas picadas do mosquito pium.

200 Referência ao município de Vitória do Xingu, localidade esta vizinha de Altamira. 500

SAÚDE E COMÉRCIOS RESISTENTES

Para o Sr. Góes os problemas da saúde, principalmente a saúde pública em Altamira, nunca foi bem resolvida. Para este Senhor o atendimento de saúde era fraco. Entretanto, em sua avaliação, a localidade tinha poucos moradores. Assim era possível manter um atendimento regular sabido que seus moradores recorriam ao único hospital público: Só tinha um hospital ai, que eram os padres que tomavam conta daquele São Rafael [...]. E era fraco, mas tinha pouca gente acho que dava pra ir indo, não sei se ia bem ou muito mal. [...] naquele tempo dava muita malária aqui, tinha muito pium, né. E assim por diante [...]. Morreu muita gente aqui de pium. E principalmente esse povo do sul, do Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina (Sr. Góes).

Contrariando as observações do Sr. Góes, a Sra. Maria de Nazaré ameniza a situação vivida um dia pelo município. A referida Senhora não descarta os problemas enfrentados pela saúde pública, entretanto, pontua que ―parece que naquele tempo era até bom que... pouca gente morria‖. Esta opinião, a Sra. Raimunda de Barros fez questão de externalizar que não tem. Afirmou-nos a altamirense que foi acometida por malária desde os seus seis anos de idade e, ainda hoje, sente as consequências da doença. Em suas lembranças o que Altamira tinha eram pessoas que, em grande parte, por terem alguns conhecimentos médicos, ajudavam aqueles que necessitavam de cuidados para com a saúde das pessoas. Antes da construção do SESP (Serviços Especial de Saúde Pública), nos anos 40, com o apoio de verba estrangeira, o município xinguano tratava a saúde de seus moradores de forma doméstica como deixa a entender a Sra. Raimunda de Barros: Olha, de início, aqui não tinha nada. Os médicos daqui era o seu Besouro, um senhor que morava ali no cobertor. O padrinho cabeça que era o José Darwich, que era o pai da Adma ali. O Aurélio Soares... esses que eram os medico daqui. Aplicavam injeção, tiravam a medida da febre... faziam tudo [...]. Aqui não tinha nada. Quando eu era criança não (Sra. Raimunda Barros).

Com a criação do SESP na travessa Coronel Gayoso, esquina com a ―Rua da frente‖ (hoje chamada de Rua João Pessoa), melhorou, de certa forma, o atendimento de saúde dos moradores de Altamira. Para o Sr. Afonso Cruz o único problema era que ele ―só funcionava durante o dia, a noite não funcionava. Só se fosse caso de emergência funcionava à noite‖. De qualquer forma, pondera a Sra. Vicência, era onde todo mundo se tratava. Mãe de onze filhos dos quais dez teve no citado hospital, a primeira dama destaca que o ―SESP era uma beleza‖. Ainda sobre o hospital do município a Sra. Vicência enfatiza 501 duas questões interessantes, uma relacionada ao sustento do hospital e outra referente às prostitutas que de forma igualitária, realizavam averiguações médicas visando manter uma vida, sobremaneira, sexual, saudável: O hospital era bem na esquina. E era ai que a gente, todo mundo se tratava. Ai que a mamãe fazia os teatros e dava o dinheiro para o diretor do hospital. Aí ele pagava o negócio das merendas, fazia aquele negócio; aqui até mulherzinha de rua, tinha carteirinha pra ver se ela estava sadia [...]. Tempo bom. A carteirinha para ver se ela estava sadia. Tinha dia das consultas delas! Era tudo organizado, tinha nada desorganizado (Sra. Vicência Nunes).

Essas mulheres presentes no contexto altamirense, de certa forma, dinamizam uma economia ―subterrânea‖, assim como outras formas marginalizadas de comércio como foi o caso das negociações de couro de animais, seringas e extração de ouro nos garimpos próximos a cidade, caracterizando esta última o que o que a Sra. Vicência Nunes chamou de ―Sede, Febre do Ouro‖. Em caráter legal, não refutado pela economia oficial, a Sra. Vicência Nunes, Sra. Maria de Nazaré e Sra. Raimunda Barros enfatizam uma das mais antigas (talvez a mais antiga e ainda ―de pé‖) casas comerciais: a ―Casa Primavera‖, fundada em 1917, propriedade do notável comerciante Carlos Soares. Sobre este estabelecimento assim ponderaram: Os comércios aqui [...] o comércio daqui era ali seu Carlos Soares daquela esquina, era... [...]. Eram essas coisas poucas, tudo pouca, do meu tempo (Sra. Vicência Nunes).

Era casa de comercio, que eu me lembro bem era do Carlos Soares (Sra. Maria de Nazaré).

Tinha o seu Carlos ali na esquina acolá. Tinha seu Carlos... e quem era mais... Era poucos comércios [...] Não tinha nome, não... A do seu Carlos era Casa Primavera (Sra. Raimunda de Barros).

Além desse estabelecimento comercial Altamira apresentava pontos de negociação econômica como é o caso da taberna do Sr. Nonato, próximo ao que é hoje a escola Godim Lins, o estabelecimento do Sr. Raimundo de Oliveira e o ponto comercial do Sr. Antônio Joaquim. Somada a estes recintos comerciais, com sua chegada a ―cidade de calor infernal‖, Sr. Góes empreendeu viagem a Belém, comprou mercadorias e iniciou o que ele rotulou de ―Armazém do Góes‖, local este de compras a retalho e direcionado a todas as pessoas, principalmente aos pequenos comerciantes de outros municípios, por exemplo, e aquelas mais carentes, que não podiam comprar suas mercadorias em alta quantidade: Aqui eu tinha um, um boteco ali que chamava de Armazém Góes, mas na verdade não era armazém era o que eles chamavam de taberna aqui, taberna. Então chegava uma pessoa pra compra. Não era real, não, era 502

cruzeiro que vocês sabem que cruzeiro não valia nada. 30 centavos de óleo e 20 de vinagre, era, já tinha a vasilha, já. Eles faziam (Sr. Góes).

Além da compra em pequenas proporções, Sr. Góes comentou que quanto à compra de carnes, um dado era interessante. Sendo muito pouca a criação, venda e consumo da carne de gado, poucos eram as opções relacionadas à pecuária. Pela manhã vendia-se a carne oriunda do abatimento do animal e, no final da tarde, comercializavam-se as vísceras bovinas, por exemplo. Sobre esta e outras fatos relacionadas ao comércio de Altamira, Sr. Góes relembra: Aqui não tinha gado, aí depois que começou a chegar o povo de fora foi que começou, hoje é muito forte a pecuária aqui né, muito forte, mas o que tinha aqui quando eu cheguei, aqui acho que só tinha o João Belo aqui que era o fazendeiro, devia ter umas 20 rés daquelas grandes assim desse tamanho assim, umas 20 ou 30. [...]. Aqui o povo vivia só de couro de gato, de couro de onça, da seringa. Não tinha, aqui não tinha nada, não tinha roça, não tinha nada. Tinha assim, rocinha que, não, aqui não tinha nada não, o povo ia pescar outros ia caçar, matar gato, matar caça (Sr. Góes).

Em desenvolvimento, a economia local procurava avolumar-se, paripassu a necessidade mínima de seus moradores. Muita mais voltada à subsistência do que a exportação, Altamira organizava-se, economicamente, em um formato que contribuiu para a estratificação (ricos e pobres). De qualquer forma os bairros, as moradias, os equipamentos urbanos/domésticos, os transportes, a saúde e o comércio local, em caráter saudosista, nos transportam a uma cidade que vivia de forma pacata. Na verdade, a Altamira de outrora não era tão silenciosa dado os anúncios de rádio e os festejos advindos das procissões existentes na cidade às margens do rio Xingu. Em caráter conclusivo pontuamos que essas e outras histórias compõem uma Altamira passada, mas presente na voz, no corpo e nas lembranças de nossos intérpretes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cidade de Altamira hoje apresenta um aspecto bastante destoante da descrição de antigamente, feita pelos intérpretes. Com o investimento da Barragem de Belo Monte o que observamos é uma cidade inchada, em suas ruas, bairros, comércios, enfim, hoje o cenário desenha um crescimento desordenado. E como consequência disso observamos que atualmente, em Altamira, grandes são os problemas com o fornecimento de energia pública. Tornou-se comum na cidade os vários picos de energia ou partes do dia. Quando tratada as questões de transporte fica-nos a impressão de que a maioria da população vivia sem muitos contatos com outros municípios. 503

A saúde do município começou como em outros municípios paraenses/amazônicos com práticas medicinais bastante simples, chegando à construção de um hospital proveniente de acordo do governo brasileiro com governos estrangeiros (em particular recursos ingleses). Sobre o comércio destacamos que se outrora Altamira vivia, em um primeiro momento, da base de pequenas negociações exemplificadas pelo comércio de gêneros alimentícios, lenha, água, caça, roça, pesca, passando a negociar borracha, adentrando a um ciclo que viria a mobilizar quase que toda a Amazônia. Essas e outras caracterizações atestam que a cidade e as pessoas mudaram. E diante dessas mudanças optamos por registrar esse passado que será sempre presente na vida de cada morador que aqui continuar a viver ou escolher, sob duros custos, a convivência na cidade que a cada dia ganha corpo e soma com as estatísticas brasileiras quer seja pontos positivos ou negativos. Nossa tarefa pensamos estar em parte cumprida. Que essas histórias cheguem aos nossos alunos possibilitando assim que manifestem seus sentimentos de pertencimento a terra que habitam.

REFERÊNCIAS

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REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO DA LITERATURA JUVENIL BRASILEIRA: UM ESTUDO DA TRAJETÓRIA EDITORIAL DE A ILHA PERDIDA, DE MARIA JOSÉ DUPRÉ

Fernando Rodrigues de Oliveira201

Profª. Drª. Maria do Rosário Longo Mortatti (Orientadora)202

Resumo: Com os objetivos de contribuir para a compreensão de aspectos relativos à formação da literatura juvenil brasileira e de contribuir para a produção de uma história, teoria e crítica específicas desse gênero literário, no Brasil, focalizam-se aspectos da trajetória editorial do livro A ilha perdida, de Maria José Dupré, publicado, pela primeira vez, em 1944, pela Brasiliense, e reeditado, em 1973, pela Ática, na série ―Vaga-lume‖. Esse livro, embora publicado inicialmente como um livro voltado às crianças, em 1972, quando foi reeditado pela Ática, passou a circular como livro categorizado como ―literatura juvenil‖. A mudança de status desse livro esteve relacionada às urgências e necessidades do contexto histórico da segunda metade do século XX, as quais permitem afirmar que A ilha perdida esteve no cerne do processo formativo da literatura juvenil brasileira, uma vez que sua trajetória editorial representa o processo histórico de constituição de um corpus literário voltado ao público jovem. Palavras-chave: Literatura Juvenil; A ilha perdida; Maria José Dupré; História dos impressos e das edições.

Abstract: Aiming to contribute to the understanding of issues related to the formation of Brazilian young adult literature and contributing to the production of a history, theory and criticism of this literary genre in Brazil, it is focalized aspects of the publishing history of the book A ilha perdida, written by Maria José Dupré, published in 1944, by Brasiliense, and reissued in 1973, by Ática, in the series ―Vaga-lume‖. This book, although initially was published as a book aimed at children, in 1972, when it was reissued by Ática, began circulating as a book categorized as "juvenile literature". The change of status of this book was related to emergency and needs of the historical context of the second half of the twentieth century, which allow us to state that the book was at the center of the formation process of Brazilian young adult literature, because your editorial trajectory represents the historical process of constitution a literary corpus directed to young readers. Keywords: Young Adult Literature; A ilha perdida; Maria José Dupré; Publishing History.

Introdução

Próximo de completar 70 anos do lançamento de sua 1ª. edição, o livro A ilha perdida, de Maria José Dupré, é, sem dúvida, um dos maiores sucessos editoriais que o

201 Doutorando em Educação junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Marília. Bolsista FAPESP. E-mail: [email protected] 202 Professora Titular da FFC-UNESP-Marília. E-mail: [email protected] 505 mercado brasileiro de livros voltados ao público jovem já teve. Em circulação desde a década de 1940 e publicado por três importantes editoras brasileiras – Brasiliense (SP), Saraiva (SP) e Ática (SP) –, esse livro, por pelo menos três décadas, integrou, sempre no topo, as listas dos livros de literatura juvenil mais vendidos no país. A repercussão e disseminação desse livro se deveram, principalmente, a sua inserção na famosa série ―Vaga- lume‖, criada pela Ática no início da década de 1970. A partir da década seguinte, 1980, devido ao fenômeno editorial que se tornou, A ilha perdida passou a ser objeto de análise de uma série de trabalhos acadêmico-científicos203, os quais abordam esse livro na relação com a formação dos leitores, com a indústria cultural, com a estática da recepção e com a crítica e teoria literárias. No âmbito desses trabalhos, é possível observar, dentre outros, que embora ele tenha sido publicado num momento histórico em que o adjetivo ―juvenil‖ não era empregado para distinguir a produção literária voltada aos jovens, não parece haver dúvidas de que esse livro integra, desde a década de 1970, o grupo dos livros denominados/classificados como ―literatura juvenil‖. Esse aspecto, em especial, possibilita levantar uma série de questionamentos, como: como se caracteriza a literatura juvenil brasileira? Qual a especificidade desse gênero literário? Que critérios são recorrentemente utilizados para classificar uma obra como ―juvenil‖? Em que difere a literatura juvenil da literatura infantil? Como se formou o conjunto da produção literária nacional denominada ―literatura juvenil‖? Qual a relação entre o livro A ilha perdida e o processo de formação da literatura juvenil brasileira? Evidentemente, a resposta a todas essas perguntas exige um trabalho de fôlego, que extrapola os limites e objetivos deste texto. No entanto, a partir da análise de um ponto de vista histórico de A ilha perdida penso ser possível levantar algumas questões que possibilitem, ao menos, problematizar a sua relação com a história da literatura juvenil brasileira. Em vista do exposto e objetivando contribuir para a compreensão de aspectos relativos ao processo de formação da literatura juvenil brasileira e contribuir para a produção de uma história, teoria e crítica específicas desse gênero literário, no Brasil, apresento aspectos relativos à trajetória editorial de A ilha perdida, de Maria José Dupré. Para essa análise, utilize-me do método de análise da configuração textual204, proposto por Mortatti (2000).

203 Dentre esses trabalhos, destacam-se: Magnani (1987); Lajolo e Zilberman (1984); Zanchetta Júnior (1995); Zilberman (2003); Mendonça (2006); e Cruvinel (2009). 506

1. Apresentação de Maria José Dupré Nascida na fazenda Bela Vista, na cidade de Botucatu-SP, no dia 02 de maio de 1905, Maria José Fleury Monteiro, nome de batismo de Maria José Dupré, pertente a uma geração de escritoras brasileiras, surgida entre 1930 e 1940, responsável pela inserção mais contundente das mulheres no âmbito da produção cultural do país. (COELHO, 2006). Filha temporã de Antônio Lopes Monteiro e Rosa Barros Fleury Monteiro, descendentes de família tradicional de fazendeiros do interior de São Paulo, Maria José Dupré aprendeu as primeiras letras com um de seus irmãos e sua mãe. Seus pais, que nesse período viviam os infortúnios da produção cafeeira, não puderam custear os estudos de todos os filhos (LACERDA, 2003). No entanto, os tempos difíceis economicamente para a família Monteiro não impediram que os filhos fossem incitados à leitura literária e a prática diária de recitações e de leituras individuais e coletivas (LACERDA, 2003). Ainda durante sua infância, no interior de São Paulo, Maria José Dupré estudou música com professora particular e estudou artes no Colégio dos Anjos. Para dar continuidade a sua formação e a seus estudos, mudou-se para a capital do estado de São Paulo, onde foi diplomada professora pela Escola Normal ―Caetano de Campos‖, tendo, após isso, lecionado por um período curto. Foi também residindo na capital paulista que conheceu Leandro Dupré, que veio a se tornar seu esposo. No que se refere à sua atuação no campo literário, Maria José Dupré nunca teve a intenção de se tornar escritora. Foi por incentivo de seu marido, que reconhecia na esposa um grande talento para contar histórias, que ela decidiu publicar o seu primeiro texto, em 1939. Trata-se do conto ―Meninas tristes‖, publicado no suplemento do jornal O Estado de S. Paulo, sob o pseudônimo Mary Joseph. (LACERDA, 2003). Três anos após a publicação desse conto, em 1941, Maria José Dupré ―estreou‖ como autora de romance direcionado ao público adulto com a publicação de O romance de Teresa Bernard, pela editora Civilização Brasileira (SP). Essa publicação só pôde ser possível porque seu esposo custeou todas as despesas editoriais. Além disso, foi o nome dele que estampou as capas dos livros de Maria José Dupré, uma vez que essa autora utilizava a assinatura literária ―Sra. Leandro Dupré‖.

vista e lugar social (de onde?) e momento histórico (quando?), movido por certas necessidades (por quê?) e propósitos (para quê), visando a determinado efeito em determinado tipo de leitor (para quem?) e logrando determinado tipo de circulação, utilização e repercussão (MORTATTI, 2000, p. 31).

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Depois do sucesso obtido com O romance de Teresa Bernard, em 1943, Maria José Dupré lançou Éramos seis, pela Companhia Editora Nacional. Com a publicação desse livro, obteve a consagração de seu êxito como romancista, pois, além das inúmeras traduções e adaptações, recebeu, em 1944, o Prêmio ―Raul Pompéia‖, da Academia Brasileira de Letras (COELHO, 2006). Em continuidade à sua produção literária voltada para o público adulto, Maria José Dupré teve publicados, entre as décadas de 1940 e 1960, uma série de outros romances. E, além da produção voltada ao público adulto, ainda na década de 1940, ―estreou‖ no campo da literatura infantil, obtendo reconhecimento também por essa sua produção literária. Maria José Dupré, autora sintonizada com a tendência da produção literária em série e que soube conciliar certos traços da modernidade brasileira aos ramos tradicionais da produção cultural, faleceu aos 79 anos de idade, em 15 de maio de 1984, em São Paulo-SP.

2. Apresentação de A ilha perdida Apesar de ser comum localizar o ano de 1944 como referente ao da publicação da 1ª edição do livro A ilha perdida, há controvérsias em relação a essa data, pois em alguns documentos consta que a data da 1ª. edição é 1945. Embora tenha tentado localizar exemplar ou referência dessa edição de 1944, localizei apenas exemplar com data de 1945, sem informação sobre número de edição. Por essa razão, apresentarei aspectos relativos a esse exemplar de 1945, o qual se trata do mais antigo que localizei. Impresso em papel jornal resistente e em capa dura, nas dimensões 16cm x 22cm, a edição de 1945 de A ilha perdida é composto por 121 páginas, divididas em 16 capítulos e contém algumas ilustrações sem cores. No verso dessa capa, consta relação dos ―Livros Infantís‖ publicados, até então, por Maria José Dupré. A saber: Aventuras de Vera, Lúcia, Pingo e Pipoca; A montanha encantada; e O cachorrinho samba. Na quarta capa, consta a relação dos ―Novos livros infantís de Monteiro Lobato‖, integrantes da coleção ―Os doze trabalhos de Hércules‖. E, no verso dessa quarta capa, consta relação dos ―Livros Infantís da Sra. Leandro Dupré‖. Após um intervalo de 15 anos de publicação pela Brasiliense, em 1959 a editora Saraiva (SP) publicou a 2ª. edição de A ilha perdida. Ao que tudo indica, embora a 2ª. edição desse livro tenha sido publicada apenas em 1959, nesse intervalo de tempo a Brasiliense continuou a publicá-lo, porém, sem alterar o número de edição. Ainda pela Saraiva, A ilha perdida teve outra edição, a 3ª., em 1965. Depois de ter integrado os catálogos da Brasilense e da Saraiva, A ilha perdida, na virada de 1972 para 1973, passou a ser publicado pela Ática. Essa editora, fundada em 508

1965, originou-se de um curso de Madureza, criado por jovens estudantes na década de 1950, em São Paulo-SP. A Ática, editora voltada para o ramo dos livros didáticos, no início dos anos 1970 passou a investir na publicação de livros literários, período em que criou a série ―Vaga-lume‖, lançada com a reedição de A ilha perdida. A partir da inserção do livro de Maria José Dupré na série ―Vaga-lume‖, ele passou por algumas reformulações do ponto de vista gráfico-editorial. Num formato menor (14 cm x 21 cm), semelhante ao formato clássico dos romances ―adultos‖, com capa flexível e papel também mais flexível, a edição lançada pela Ática (a 4ª. edição), contém 128 páginas, algumas das quais ilustradas por Edmundo Rodrigues. É importante destacar que somente a partir da edição pela Ática a assinatura literária ―Sra. Leandro Dupré‖ deixou de ser utilizada em substituição ao nome da escritora: Maria José Dupré. Além das mudanças gráficas, a inserção de A ilha perdida na série ―Vaga-lume‖ alterou significativamente a circulação desse livro, fazendo com que ele se tornasse o maior best-seller da Ática (ÁTICA, 1995). A partir de sua inserção no catálogo dessa editora, até o ano 2000, A ilha perdida passou a ter uma ou duas novas edições por ano, de modo que em 2000 chegou a 39ª edição. Embora a partir do ano 2000 A ilha perdida continuou a ser reeditado, a Ática passou a utilizar o sistema de reimpressão da 39ª. edição. No ano de 2011, Ática lançou uma nova edição desse livro (a 40ª. edição), a qual, até o momento, teve pelo menos cinco reimpressões.

3. O enredo: aventuras de um Robinson à brasileira A conhecida história de A ilha perdida se passa numa fazenda, próxima a cidade de Taubaté, região do Vale do Paraíba, no estado de São Paulo. Henrique e Eduardo, dois irmão da cidade de São Paulo, respectivamente com 12 e 14 anos, vão passar as férias nessa fazenda, de propriedade do vosso padrinho e vossa madrinha. Nessa fazenda corre o Rio Paraíba, que abriga em seu interior uma ilha misteriosa e nunca explorada pelos moradores da região. A ilha, conhecida como ―ilha perdida‖, desperta a curiosidade de Henrique e Eduardo, os quais iniciam uma jornada em busca de conhecê-la. Para isso, traçam, em segredo, um plano de passeio, o qual é executado sem o consentimento dos padrinhos. Após obterem êxito nessa empreitada, Henrique e Eduardo acabam se perdendo na mata e não conseguem voltar para a fazenda. A partir daí, os irmãos passam por alguns apuros, até que se separam, quando Eduardo sai em busca de comida. Enquanto Eduardo esteve ausente, Henrique é encontrado por Simão, um habitante solitário da ilha, que se enfurece pelo jovem ter ―invadido‖ o seu território. Simão 509 faz de Henrique seu prisioneiro e o leva para o interior da ilha, onde mora numa gruta com alguns animais. A partir de então, Eduardo ―sai de cena‖ e o enredo se centra no convívio de Henrique com Simão e nas aventuras e nas ―lições de vida‖ que o habitante solitário da ilha passa a transmitir para o jovem paulistano. Após oito dias convivendo com Simão, apreensivo por não saber se um dia voltaria a ver seu irmão e todos os moradores da fazenda, Henrique consegue convencer o morador da ilha deixa-lo voltar. Simão leva-o ao mesmo lugar em que o apanhou e, lá, Henrique reencontra Eduardo, o qual, na ausência do irmão, construiu uma jangada. Ao tentarem voltar para a fazenda com essa jangada, Eduardo e Henrique percebem que ela não aguentará a força da correnteza. Mas, por sorte, quando a jangada estava prestes a virar, os irmãos são resgatados pelos funcionários da fazenda. No retorno, Henrique e Eduardo são repreendidos pelos padrinhos, pela desobediência, e questionados sobre o que ocorreu. Henrique, ao contar as suas aventuras, gera uma espécie de desconfiança entre todos, fazendo com que o padrinho decida fazer uma expedição à ilha. Embora o mistério sobre a ilha perdida tivesse sido desvendado quando da volta dos irmãos para a fazenda, quando o padrinho leva todos para conhecer a ilha, o mistério se instala novamente, uma vez que nada do que Henrique contou pôde ser comprovado. Assim, o real mistério da ilha, centrado na figura de Simão, só é revelado a Henrique.

4. Estratégias editoriais na publicação de A ilha perdida Como produção literária, ligada ao mercado livreiro, A ilha perdida e os seus modos de circulação estiveram sujeitos, como qualquer outro impresso, às estratégias editorias criadas como mecanismos de venda e de cooptação de um público consumidor específico. O conceito de estratégia, conforme entendido por Certeau (1990), refere-se a uma ação que constitui a base do gerenciamento das relações com a exterioridade, a partir da qual se produz e se impõe determinadas práticas sociais. Uma estratégia, quando ligada ao campo dos impressos, ―[...] põe em cena dispositivos de imposição de saberes e de normatização de práticas, referidos a lugares de poder determinados: uma casa de edição; um departamento governamental; uma instância eclesiástica; uma iniciativa de reforma educacional; etc.‖ (CARVALHO; TOLEDO, 2004. p. 1). Com base nessas reflexões, é possível identificar na trajetória editorial de A ilha perdida algumas das estratégias editoriais utilizadas, especialmente pela Ática, na tentativa de tornar esse livro um produto de mercado rentável economicamente e que, de alguma forma, contribuíram para a formação da literatura juvenil como gênero literário específico. Após a publicação pela Brasiliense e as iniciativas de tornar Maria José Dupré uma escritora 510 conhecida e consagrada no campo da literatura infantil e juvenil, A ilha perdida passou a ser reeditado pela Ática mediante a utilização de uma série de estratégias editoriais, que resultaram em mudanças significativas nos moldes de circulação e utilização desse livro, no Brasil. No início da década de 1970, período marcado pela consolidação do mercado editorial brasileiro e pelo crescimento expressivo, em quantidade e em qualidade, da produção literária voltada ao público infantil (LAJOLO; ZILBERMAN, 1984), a Ática usou da estratégia de editar coleções ou séries, como forma de atingir uma demanda de leitores pouco vislumbrada pelas editoras da época: os jovens. A Ática, que se consolidara no mercado como editora de livros didáticos, nesse período, valeu-se da estratégia de editar coleções para ampliar as suas possiblidades no mercado livreiro e lançou a ―Bom livro‖. Essa coleção inaugurou na editora o setor dos paradidáticos nas áreas de língua portuguesa e literatura (BORELLI, 1996), com objetivo de tornar acessível ao público jovem textos clássicos da literatura nacional e portuguesa (ÁTICA, 1995). A partir do sucesso dessa coleção e entendendo que ―[...] a área de leitura juvenil por certo não se esgotava nos clássicos.‖ (ÁTICA, 1995, p. 223), a Ática criou a série ―Vaga-lume‖. Com essa nova série, o objetivo da Ática era ―[...] publicar títulos que de fato agradassem ao gosto jovem. Histórias atuais, com protagonistas adolescentes envolvidos em peripécias e aventuras, que poderiam atrair esse público para as páginas de um livro.‖ (ÁTICA, 1995, p. 224-225). Para se atingir esse objetivo, a Ática usou da estratégia de reeditar títulos de sucesso, de autores consagrados no campo da literatura infantil, como foi o caso de A ilha perdida. Embora os livros publicados na série ―Vaga-lume‖, durante a década de 1970, não tivessem sido escritos especificamente para os jovens, os editores responsáveis por essa série entendiam que os títulos para ela selecionados (na sua maioria romances de aventuras) continham características que atraiam esse público leitor. Ainda no âmbito dessa estratégia de reeditar títulos de sucesso na série ―Vaga- lume‖, a Ática utilizou algumas outras que merecem destaque. A primeira delas foi a inserção, na primeira página dos livros, de uma nota biográfica sobre os autores dos livros. Em A ilha perdida, essa nota ressalta dados da formação e da produção literária de Maria José Dupré, com destaque para os prêmios que recebeu. Com esse recurso, a Ática fornece ao jovem leitor dados que possibilitam compreender que a autora do livro era uma escritora de prestígio pela sua produção literária. Depreende-se, portanto, que a Ática, embora estivesse reeditando livros de sucesso, queria garantir que o novo público destinatário 511 desses livros compreendessem que se tratava de livros de escritores renomados e premiados. A Ática criou também para a série ―Vaga-lume‖ uma mascote: ―Luminoso‖. Essa mascote imprimia aos livros uma dinamicidade, visto que veiculava informações sobre os enredos, criando expectativa no leitor com objetivo de aproximá-lo enredo. ―Luminoso‖, além de apresentar uma linguagem próxima do público juvenil da época, era caracterizado a partir de vestimentas e acessórios típicos da cultura hippie, a qual se difundiu no Brasil, entre esse público, durante a década de 1970. Outra estratégia utiliza pela Ática na publicação dos demais livros da série ―Vaga- lume foi a criação dos suplementos de leitura. Esse suplemento, publicado em forma de folheto, contém um questionário sobre o enredo do livro para ser preenchido pelos jovens como atividade escolar. A Ática, que até então era conhecida apenas como editora de livros didáticos, tentava com essa estratégia atingir o setor educacional a partir de um novo conceito de impresso, os paradidáticos, entendidos pela editora como livros de ficção utilizados como suplementares às potencialidades do livro didático (BORELLI, 1996). Além dessas estratégias editoriais, na década de 1990, com as mudanças no mercado editorial e também do perfil do jovem leitor, a Ática criou uma subcategorização da série ―Vaga-lume‖, a ―Vaga-lume Júnior‖. Volta a um público na transição da infância para a juventude, a ―Vaga-lume Júnior‖ utiliza-se do prestígio do nome e dos recursos editorias da ―Vaga-lume‖ para atingir nova categoria de leitores. No que concerne à publicação dessa nova série, importante destacar que A ilha perdida é o único livro que integra as duas séries. Em decorrência da implementação, pela Ática, dessas estratégias editorias, A ilha perdida disseminou-se como o best-seller dessa editora, atingindo um número expressivo em suas edições. Em 1997, o ranking do jornal Folha de S. Paulo indicava que a vendagem desse livro já tinha atingindo a casa de 2,6 milhões de exemplares. Atualmente, presume-se que esse livro já tinha ultrapassado a casa dos quatro milhões de exemplares vendidos no Brasil (MACHADO, 2012).

5. Do infantil para o juvenil: sobre a formação do gênero Considerado, hoje, como um livro destinado ao público juvenil, A ilha perdida, de Maria José Dupré, como se pode observar pelos dados que apresentei nos tópicos anteriores, nem sempre foi assim classificado. Quando da publicação de sua 1ª. edição, em 1944, esse livro era classificado pela editora Brasiliense como um livro infantil. Somente 512 após a sua inserção na série ―Vaga-lume‖, criada para atender ao ―gosto leitor‖ dos jovens, é que ele passou a ser classificado como juvenil. Nas primeiras décadas do século XX, o que se produzia, no Brasil, em termos literários e que tinha como público alvo leitores em fase de escolarização era denominado como literatura infantil205. Foi a partir da década de 1940 que o termo ―juvenil‖ passou a ser empregado como complementar na adjetivação dessa produção literária, seja na forma aglutinada com o termo ―infantil‖ (literatura infanto-juvenil), seja na forma composta (literatura infantil e juvenil). Esse movimento teve início, conforme aponta Mortatti (2008, p. 4), a partir da ―[...] extensão da escolarização aos jovens, à medida que os mais novos se foram tornando mais velhos, e com os avanços da psicologia e sua busca de caracterização da infância, distinguindo essa fase das subsequentes, como a adolescência [...]‖. Com esse movimento no início da segunda metade do século XX, de uma produção literária voltada ao público intermediário entre a infância e a vida adulta, resultou, a partir de 1980, a consolidação de uma produção sistematizada e regular de uma literatura denominada ―juvenil‖ (CECCANTINI, 2000). Esses aspectos vêm ao encontro do processo histórico de constituição da juventude, como categoria social específica, que busca conferir identidade aos sujeitos situados num período da vida intermediário entre a infância e a vida adulta (GROPPO, 2000). Essa constituição da juventude como categoria social corroborou para ações no campo cultural e mercadológico que resultaram, por exemplo, na adaptação ou produção de uma literatura específica a esse novo público. Por isso, nesse processo, destaca-se a trajetória editorial de A ilha perdida, a qual possibilita compreender alguns dos elementos que concorreram para a formação da literatura juvenil brasileira. A reedição de A ilha perdida na série ―Vaga-lume‖ possibilita compreender, por exemplo, a percepção astuta das editoras, em especial da Ática, de que com o movimento de constituição de um novo público leitor, abria-se a possibilidade também de abertura de um novo ramo editorial, tão propício ao sucesso quanto o ramo de publicações voltadas à infância. Ao passar a integrar a série ―Vaga-lume‖, A ilha perdida foi todo repensado do ponto de vista gráfico-editorial e das estratégias de sua circulação e vendagem para se adequar aos jovens. Também a sua escolha para integrar essa série não se deu por acaso. Caracterizado como um romance de aventuras, no qual personagens adolescentes se

205 Além dessa expressão, na primeira metade do século XX também se localiza expressões, como, ―livro infantil‖, ―literatura recreativa‖, ―literatura didática‖ e ―livro para crianças‖ como correspondentes ao que hoje se denomina ―literatura infantil‖. 513 envolvem em aventuras numa ilha cheia de mistérios, a narrativa de A ilha perdida contém os elementos básicos para atender aquilo que se considerava estar próximo do ―gosto‖ (estético) dos jovens. Assim, Maria José Dupré, embora não tivesse escrito esse livro com destinação específico para o público juvenil, ele se adequa à ―receita‖, do ponto de vista da produção cultural em massa, dos livros destinados a esse público. Em relação à formação da literatura juvenil e à análise de A ilha perdida, é possível compreender, ainda, que assim como a literatura infantil se originou de uma forte relação com a escola (ligada à transmissão de valores e à orientação pedagogizante), situação bastante semelhante ocorreu com a literatura juvenil. A série ―Vaga-lume‖, a primeira voltada aos jovens, tinha como finalidade o seu uso como material paradidático no trabalho do professor. Também por serem os livros reeditados nessa série marcados pela ideia do ―Belo‖ a serviço do ―Bem‖, a tradição pedagogizante e didatista da formação da literatura infantil também parece estar presente na formação da literatura juvenil. Por meio, portanto, dos aspectos aqui apresentados, resultantes da análise da configuração textual de A ilha perdida, é possível compreender que esse livro esteve no cerne do processo formativo da literatura juvenil brasileira, uma vez que representa o processo histórico de constituição de um corpus literário voltado ao público jovem. Nesse processo, cabe ressaltar que, como aponta Cândido (2009), um sistema literário só se forma a partir da confluência entre público consumidor, instâncias de produção e legitimação, autores que produzam intencionalmente e um mecanismo transmissor (certa linguagem). Porém, nesse processo, as questões do mercado editorial constituem presença avassaladora nos rumos da produção literária. Embora as reflexões que apresento neste texto sejam ainda iniciais, somadas às demais produções no campo da literatura juvenil, no Brasil, elas possibilitam compreender algumas das características presentes na formação da literatura juvenil brasileira, indicando um campo de estudos fecundos e necessários no sentido de se produzir uma história, teoria e crítica específicas desse gênero literário.

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515

ESPAÇO E IDENTIDADE: A PERCEPÇÃO DA PAISAGEM NA PRODUÇÃO LITERÁRIA DE JOSÉ SARAMAGO

Flávia Alexandra Pereira Pinto206

Profª. Drª. Márcia Manir Miguel Feitosa (Orientadora) 207

Resumo: Estudo das identidades das personagens a partir das configurações de espaço e da percepção da paisagem no conto intitulado O conto da ilha desconhecida (1998) e no romance Ensaio sobre a cegueira (1995), de José Saramago. Tal análise promove um diálogo entre a Literatura, os Estudos Culturais e a Geografia Humanista Cultural. Para tanto, a pesquisa aponta para a necessidade de se refletir sobre os conceitos de identidade, espaço, lugar e paisagem, a partir das contribuições da Geografia Humanista Cultural e dos Estudos Culturais, respectivamente, o que possibilita analisar como a constituição das identidades se processa no espaço geográfico, segundo a experiência e percepção das personagens, além de compreender as representações da paisagem construídas pelo autor e sua relação com os dilemas vividos pelo homem na contemporaneidade.

Palavras-chave: Espaço; Identidade; José Saramago.

Abstract: This thesis aims to study the primordial identities of the characters from the configurations of space and perception of the landscape in the story titled The Tale of the unknown island (1998) and the novel Blindness (1995), by José Saramago. This analysis promotes a dialogue between Literature, Cultural Studies and Cultural Geography Humanist. To this end, the research points to the need to reflect on the concepts of identity, space, place and landscape, from the contributions of cultural studies and geography Cultural Humanist, respectively, which allows to analyze how the constitution of identities takes place in geographical space, according to the experience and perception of the characters, and understand the representations of the landscape by the author and his relationship with the dilemmas in contemporary man.

Keywords: Identity. Place. Jose Saramago.

1. Introdução

A presente pesquisa partiu de análises da produção literária deste consagrado autor português e a relação propiciada por estas leituras com as teorias da percepção da paisagem

206 Mestre em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Professora do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão/IFMA. E-mail: [email protected] 207 Professora do Programa de Pós Graduação em Cultura e Sociedade – PGcult da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: [email protected] 516 e com o debate contemporâneo sobre questões relacionadas à constituição da identidade. De modo geral, tem-se como proposta de estudo analisar como se configuram as identidades em O conto da ilha desconhecida (1998) e no Ensaio sobre a cegueira (1995), a partir das relações estabelecidas com a paisagem. Para compreender a relação entre a percepção do espaço e a constituição das identidades, a Geografia Humanista Cultural se configura substancial, já que suas bases teóricas valorizam as experiências, os sentimentos, a intuição, a subjetividade e a compreensão das pessoas sobre o ambiente em que vivem, tendo como premissa que cada sujeito possui uma percepção do mundo que se expressa diretamente por meio de valores e atitudes para com o ambiente, sejam espaços ou lugares. Essa compreensão se mostra essencial para se entender os processos identitários que se configuram nesses espaços. Para tanto, a perspectiva humanista cultural na Geografia, de forte base fenomenológica, propõe ―uma visão holística e unificadora da relação homem-natureza e uma crítica ao cientificismo e ao positivismo‖ (HOLZER, 2008, p. 140). Através do aporte fenomenológico, compreendem-se as relações entre natureza, sociedade e cultura a partir do sentido que o homem pretende dar à sua vida e, por consequência, a cada um desses elementos. As relações afetivas ou temerosas que o homem estabelece com os ambientes em que vive, o que demanda os sentimentos que irão humanizar esses espaços, são denominadas pelo geógrafo chinês Yi-fu Tuan (1980; 2005) de topofilia e topofobia. Tuan, um dos principais teóricos dessa corrente na geografia, foi um dos primeiros a fundamentar-se na fenomenologia, sobretudo nas obras do francês Gaston Bachelard, que, em seus estudos filosóficos, introduziu a reflexão sobre qual a dimensão do espaço na literatura. Além desses aspectos, muito se tem discutido sobre as mudanças nos enquadramentos sociais que têm desestruturado o sujeito contemporâneo e modificado os processos de constituição de suas identidades, incluindo-se nesse âmbito as relações que este sujeito experiencia com os espaços, sejam de origem ou de vivência cotidiana. Partindo desses propostos, este artigo estrutura-se nos seguintes termos: o primeiro item centra-se na Geografia Humanista Cultural, procurando contextualizá-la historicamente, para, em seguida, apresentar suas bases epistemológicas. O segundo item discute o conceito de identidade a partir das contribuições dos Estudos Culturais, com ênfase na problemática vivida pelo homem na contemporaneidade para a constituição de sua(s) identidade(s). Por fim, à luz da teoria da percepção da paisagem, apresentam-se alternativas para a compreensão de como se configuram as identidades das personagens, a 517 partir das relações estabelecidas com o espaço, no conto intitulado O conto da ilha desconhecida (1998) e no romance Ensaio sobre a cegueira (1995), de José Saramago.

2. A GEOGRAFIA HUMANISTA CULTURAL: percurso histórico- epistemológico

Um dos últimos processos de renovação teórico-metodológica nas Ciências, especialmente nas Ciências Humanas, iniciou-se com a redefinição de padrões influenciada pela industrialização crescente e pela acelerada urbanização. Desta redefinição emergem novas paisagens, novas relações sociais, novas noções de identidade individual ou coletiva e, por fim, um desencadeamento para um novo cenário sócio-espacial. Tais mudanças são marcos que influenciaram os aspectos de consumo e modos de vida, os valores e relações intra e interpessoais e as ciências. No campo cultural, ocorre um resgate de suas particularidades e, consequentemente, um processo de valorização dessa cultura, bem como das individualidades de seus sujeitos produtores. Nesse contexto, desde as décadas de 1970 e 1980, o homem é visto a partir de várias dimensões: a social, a espacial, a afetiva, a política, a cultural, a econômica, entre outras, que o constituem como sujeito. Para compreender esse homem na sua totalidade, necessário se faz apreender questões que não são tão perceptíveis quando se leva em consideração apenas uma dessas dimensões. Esta concepção de homem, de certo modo, não estava presente nas abordagens geográficas anteriores a 1970. Além disso, as formas de se abordar o objeto não estavam conseguindo dar respostas às necessidades e às angústias dos homens, devido aos limites e às dificuldades do método utilizado, o lógico positivista, especialmente no que tange às questões de âmbito social. Esse modelo, a chamada Geografia Positivista, começa a ser criticado por sua teoria, método e seu caráter ideológico e utilitarista, pautado no racionalismo moderno, no raciocínio científico e na predominância da técnica, caracteristicamente quantificativa, reducionista e mecanicista. A partir de 1970, como reação radical à Geografia Positivista, inicia-se um movimento de resgate do humanismo, que tem na Geografia Humanista Cultural a sua base. A Geografia Humanista Cultural incorpora elementos da Fenomenologia e do Existencialismo, tendo como categorias importantes a cultura, o lugar, a territorialidade identitária, a paisagem, a representação e o significado, os quais lhe dão reconhecimento e particularidade própria. A vida humana e suas experiências também são categorias centrais 518 para a investigação da Geografia Humanista Cultural, pois a vida é considerada uma experiência espacial que necessita ser interpretada. Assim, as concepções desenvolvidas por autores da Geografia Humanista Cultural, sobretudo pelo geógrafo chinês Yi-Fu Tuan, que trabalha com as noções espaciais relacionadas à experiência direta, por meio do contato com esse espaço, bem como as conceituais, que se dão através das experiências de outrem, são fundamentais para nortear a presente pesquisa. Em obra denominada Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente (1980), o autor traça uma perspectiva para um novo tipo de entendimento do que seria o espaço geográfico, entendimento subjetivo que compreende o espaço como aspecto essencial na formação do psicologismo humano e, por conseguinte, na nossa pesquisa, especificamente, da identidade.

2.1 Aportes fenomenológicos: Gaston Bachelard, Eric Dardel e Yi-Fu Tuan

Com o objetivo de estruturar a corrente Humanista Cultural dentro das Ciências Humanas de forma geral, e na Geografia em particular, os teóricos humanistas culturais precisaram construir uma base filosófica que fundamentasse sua visão e percepção de mundo, afinada com as ideias elaboradas para sua abordagem. Assim, a Fenomenologia, principalmente, e o Existencialismo foram experimentados com bastante êxito para o propósito da corrente Humanista Cultural, que buscava, na elaboração de seus conceitos, uma maneira especial de ver e sentir o mundo, de sensibilizar-se com ele de forma inovadora, ao mesmo tempo em que essa forma de estar no mundo pudesse ser transformada em um conceito ou método com rigor e aplicação científica. A Fenomenologia, segundo seu principal representante, Edmund Husserl, é o estudo das essências, e todos os problemas, segundo ela, resumem-se em definir essências: da percepção, da consciência, da experiência. Mas a Fenomenologia é também uma filosofia que repõe as essências na existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo senão a partir dos fatos.

É uma filosofia transcendental que coloca em suspenso, para compreendê-las, as afirmações da atitude natural, mas é também uma filosofia para a qual o mundo já está sempre ―ali‖, antes da reflexão, como uma presença inalienável, e cujo esforço consiste em reencontrar este contato com o mundo, para dar-lhe enfim um estatuto filosófico. (MERLEAU-PONTY, 2006, p.2)

Assim, a Fenomenologia teria como objetivo a investigação subjetiva e rigorosa dos fenômenos da consciência, podendo ser considerada, inclusive, como um idealismo 519 metodológico. Husserl acreditava que experiência e essência caminhavam juntas, inerentes a pressupostos teóricos, o que possibilitaria compreender seus verdadeiros significados, os chamados ―fenômenos puros‖. Destaca-se, no método fenomenológico, a ênfase no ―mundo da vida cotidiana‖, tendo como base a observação não somente dos fatos em si, mas, sobretudo, a valorização desse objeto de investigação. Neste contexto, a geografia contemporânea mantém relações estreitas com a Fenomenologia, especialmente com as correntes fenomenológicas que se desenvolvem no meio das ciências sociais. Ali ela encontrou teorias e métodos que lhe permitiram renovar seus objetos, discursos e práticas. No campo de pesquisa próprio da geografia, a perspectiva fenomenológica se desenvolveu enquanto reação à hegemonia do positivismo, aparecendo nos estudos geográficos como o efeito de uma série de indagações sobre o objeto e o método da disciplina. A fenomenologia permitiu uma atitude mais aberta e mais flexível na definição dos objetos e da escolha dos métodos. As contribuições de Gaston Bachelard (1884-1962) foram ímpares para o desenvolvimento das ideias dos geógrafos da abordagem humanista cultural. Como filósofo e poeta, Bachelard parte do imaginário para recriar a realidade, de forma que as imagens possam se projetar no pensamento, o que permitiu uma visão subjetiva sobre o mundo sensível. Nesta perspectiva, ele introduz os estudos sobre a importância do espaço na Literatura. A partir de então, ele ressalta:

A imagem poética não está submetida a um impulso. Não é o eco de um passado. É antes o inverso: pela explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa em ecos e não se vê mais em que profundidade esses ecos vão repercutir e cessar. Por sua novidade, por sua atividade, a imagem poética tem um ser próprio, um dinamismo próprio. Ela advém de uma ontologia direta. (BACHELARD, 1988, p.97)

Da mesma forma, os passos de Eric Dardel a respeito da geografia como ciência não deixam de evocar aqueles de Merleau-Ponty na introdução já citada da Fenomenologia da Percepção, nas quais desenvolve uma reflexão sobre o significado filosófico da fenomenologia. De fato, tanto em Dardel como em Merleau-Ponty, a partir de Husserl, procura-se retornar a uma visão de mundo que é a pressuposição de toda ciência e que fornece ao projeto científico seu verdadeiro sentido. (BESSE, 2006) 3. IDENTIDADE E CONTEMPORANEIDADE: perspectivas teóricas e conceituais

Em tempos pós-modernos ou, ainda, da modernidade tardia, como preferem alguns teóricos, os estudos culturais se evidenciam no contexto das análises acerca da formação e 520 desenvolvimento das sociedades, com ênfase na questão da construção da identidade que configura os diferentes sujeitos sociais. O tema em questão tem gerado preocupações e inúmeras controvérsias. No cenário de hoje, em que os efeitos da globalização tornam-se cada vez mais intensos, faz-se necessário repensar o problema da identidade em outra dimensão, na qual a renovação dos parâmetros até então utilizados torna-se uma exigência. Os diversos estudos culturais apontam que as discussões acerca da identidade têm se tornado um tema de extrema importância no cenário contemporâneo, e dada a sua evidência, como destaca Zygmunt Bauman (2005, p. 25), é o ―assunto do momento‖. O que é interessante nessa discussão é identificar como a concepção desse conceito tem se alterado ao longo das variadas abordagens existentes. O fato é que a concepção unificadora e imutável de identidade já não é mais aceita e em seu lugar os diferentes autores discutem identidades descentradas, deslocadas, fragmentadas (HALL, 2001), destacando seu caráter flutuante, sua condição frágil e provisória (BAUMAN, 2005) e, ainda, distinguem como essas modificações estão relacionadas aos processos de hibridação cultural (CANCLINI, 2007). Tais teorias têm contestado não apenas aquele modelo de expressão, em que atos ou palavras funcionam de forma a expressar um sujeito anterior, mas a prioridade do próprio sujeito. As pesquisas da psicanálise, da linguística, da antropologia e dos estudos culturais descentralizaram o sujeito em relação às leis de seu desejo, às formas de sua linguagem, às regras de suas ações ou ao jogo de seu discurso imaginativo. Se as possibilidades de pensamento e ação são determinadas por uma série de sistemas que o sujeito não controla e nem ao menos compreende, então o sujeito está descentralizado, no sentido de que não é o único centro existente capaz de explicar os acontecimentos. Neste contexto,

[...] O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ―eu‖ coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. (HALL, 2001, p. 12).

Para Hall (2001), a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, na medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, o sujeito é exposto a uma multiplicidade de identidades possíveis, com cada uma das quais ele pode identificar-se, ao menos temporariamente. Para caracterizar a identidade enquanto processo histórico vinculado ao conjunto das relações que permeiam a vida cotidiana, faz-se necessário levar em consideração a 521 inserção do homem no momento atual do mundo globalizado, a fim de explicitar as novas bases sobre as quais se articulam o pessoal e o social na contemporaneidade.

4. ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA: parar, fechar os olhos e ver...

José Saramago, em Ensaio sobre a cegueira, descreve uma cidade em que os habitantes vão cegando, um a um. O primeiro homem a cegar, enquanto esperava em seu veículo a mudança luminosa do semáforo, procurou um médico para ver do que se tratava essa falta súbita de visão. A tal ponto chega o ―mal-branco‖, como é denominado por Saramago (1995), que o governo decide internar os infectados e os possíveis contagiados em um manicômio desativado, o qual se constitui de duas alas que seriam utilizadas para separar os grupos descritos e, uma vez que os suspeitos ceguem, iriam se acomodar com aqueles que já estavam cegos. Ali, neste manicômio, todos eles deveriam permanecer ―de quarentena‖ até que se desvendassem os motivos do que parecia ser uma cegueira ―em massa‖. Tuan, em Paisagens do Medo (2005), traz importantes contribuições para que se possa compreender as consequências que esta epidemia provoca nos personagens durante a narrativa, incluindo as sensações de estranhamento, horror e medo da ―doença‖:

Em uma epidemia, os próprios seres humanos eram a maior causa do medo. As pessoas temiam o doente tanto quanto os suspeitos de estar doentes. E estes temiam os poderes extraordinários das autoridades, que podiam encerrá-los em hospitais imundos que na verdade eram armadilhas mortais [...]. O terror do contágio podia perturbar tanto a razão que, para os que estavam bem de saúde, os doentes pareciam não somente as vítimas do mal, mas os causadores. (TUAN, 2005, p.166)

As notícias da aproximação de uma epidemia a princípio provocam curiosidade, depois uma sensação de intranquilidade e, depois, quando as consequências parecem inevitáveis, uma crescente corrente de pânico, com aumento do desconforto e horror das pessoas. Assim, as paisagens do medo, segundo Tuan, são as quase infinitas manifestações das forças do caos, naturais e humanas. Nesse sentido, a chamada cegueira branca e o confinamento dos doentes no manicômio configuram essa paisagem do medo no romance em análise e, por consequência, o espaço do manicômio transforma-se em espaço topofóbico à medida que representa o local onde estão isolados os doentes e onde serão construídas as relações mais complexas de poder, violência e assombro, permeadas, de forma incisiva, pelo medo. A topofobia caracteriza-se pelo medo mórbido de determinados ambientes. Além disso, as próprias 522 pessoas, naquele espaço, doentes ou não, eram consideradas contaminadas pelas outras e representavam uma ameaça constante. A falta de visão em Ensaio sobre a cegueira não se manifesta como uma deficiência da visão habitual, isto é, por uma lesão ou má-formação. Por essa razão, é denominada ―mal branco‖ – para diferenciá-la daquela que faz com que ―se veja‖ unicamente a escuridão das coisas. Saramago descreve a cegueira branca como ―tão luminosa, tão, total, que devorava, mais do que absorvia, não só as cores, mas as próprias coisas e seres, tornando-os, por essa maneira, duplamente invisíveis‖ (SARAMAGO, 1995, p.16). Essa concepção é retomada por diversas vezes, pois, para os personagens, ―[...] a cegueira não era viver banalmente rodeado de trevas, mas no interior de uma glória luminosa‖ (p.94). Ressalte-se que, de forma simbólica,

[...] ser cego significa, para uns, ignorar a realidade das coisas, negar a evidência [...]. Para outros, o cego é aquele que ignora as aparências enganadoras do mundo e, graças a isso, tem o privilégio de conhecer sua realidade secreta, profunda, proibida ao comum dos mortais. [...] (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1995, p.217)

A partir deste prisma, pode-se inferir que Ensaio sobre a Cegueira constitui-se em um romance que focaliza a trajetória de um grupo de personagens que busca por algo que não se localiza fora delas, mas dentro de si mesmas, a sua identidade. Tal luta, que implica desde a união de forças visando à sobrevivência comum até um assassinato, explicitam essa busca, cujas ações realizam-se em espaços significativos, que são o fio condutor da trama. Um desses espaços é o manicômio, que apresenta várias descrições ao longo da narrativa, mas o seu aspecto não humanizado, nada acolhedor, que se estrutura a partir das relações estabelecidas entre os cegos, na maior parte do tempo, é o que mais chama a atenção. Esses aspectos denotam que, dentro desse espaço, a falta de identificação com o ambiente e com o modo como são obrigados a viver gera o caos, tornando a vida quase insuportável; simultaneamente, porém, origina-se ali o processo de identificação entre alguns sujeitos, o que vai proporcionar a organização de um pequeno grupo que permanecerá unido até o final da narrativa. No manicômio, o apinhamento se mostra, num primeiro plano, pelo estranhamento causado na convivência que, na maior parte do tempo, é conflitante entre os cegos, em função do grande número de pessoas que chega, se aglomera e se apinha nas alas, além das situações de fome e violência motivadas pela opressão oriunda daquele espaço. Num segundo plano, por ser o homem um ser social que necessita da companhia dos outros, laços de afeto e amizade conseguem ser construídos neste mesmo espaço, a partir das 523 relações que são estruturadas pelo cuidado, zelo e carinho entre os componentes de um pequeno grupo que se organiza no manicômio, liderados pela mulher do médico. Isso porque ―como toleramos ou apreciamos a proximidade física de outras pessoas, por quanto tempo e em que condições, varia sensivelmente...‖ (TUAN, 1983, p.70). Assim, a maneira como os personagens atribuem significado e organizam os espaços, especificamente o manicômio, pode ser definida a partir das sensações, dos comportamentos e dos valores humanos ali perceptíveis, estes profundamente influenciados pela cultura que reflete a condição humana. Neste romance, a condição humana se perde, e é justamente tal perda que dá o tom de estranhamento ao manicômio, já que as relações estabelecidas são, com algumas exceções, duras, egocêntricas, ligadas às necessidades primárias, deixando de lado os aspectos humanitários responsáveis pelo sentido de lugar.

5 O CONTO DA ILHA DESCONHECIDA: entre identidades, espaços e lugares

Saramago, trabalhando mais uma vez no limiar entre a realidade e a ficção, problematiza a questão da busca da identidade na sociedade contemporânea. O conto da ilha desconhecida pode ser entendido como uma espécie de alerta aos sujeitos sobre os riscos que a globalização representa para a sociedade. Nesta constituição, a relação com os espaços e os lugares, isto é, a percepção de uma paisagem especial é imprescindível para se compreender como e quando tais identidades se formam. Isso porque ―muito mais que uma justaposição de detalhes pitorescos, a paisagem é um conjunto, uma convergência, um momento vivido, uma ligação interna, uma ‗impressão‘, que une todos os elementos‖ (DARDEL, 2011, p.30). A paisagem, segundo Dardel, é um desdobramento, ela não é verdadeiramente geográfica a não ser pelo fundo, real ou imaginário, que o espaço abre para além do olhar. Território imaginário e utópico, a ilha representa o espaço da reflexão, necessário para a formação da identidade, sendo também o espaço para onde se transporta a consciência em busca de sua condição existencial. A ilha, embora desconhecida, no percurso da narrativa, adquire diversas conotações, passando inclusive da condição de espaço indefinido para espaço vivido ou, de forma mais consistente, para a condição de lugar. Isso porque, segundo Tuan, o espaço transforma-se em lugar à medida que adquire 524 definição e significado. Por isso, ―[...] movemo-nos das experiências diretas e íntimas para aquelas que envolvem mais apreensão simbólica e conceitual.‖ (1983, p.151) A ilha, enquanto espaço privilegiado neste conto carrega, ainda, outra conotação simbólica, relacionada à imaginação e à experiência. Tuan (1980) afirma que a ilha parece ter um lugar especial na imaginação do homem, tendo uma grande significância na sua evolução. Tuan (1983, p.83) acrescenta ainda que, ―na experiência, o significado de espaço se funde com o de lugar. O que começa como espaço diferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor‖, o que só é possível a partir das relações estabelecidas neste espaço. É o que acontece com o homem do barco e a mulher da limpeza nas relações vividas no conto, já que o valor do lugar, do ponto de vista da teoria da percepção da paisagem, depende da intimidade de uma relação humana particular. Tal aspecto aparece também de forma simbólica através da categoria sonho: ―Tinha-lhe desejado felizes sonhos, mas foi ele quem levou toda a noite a sonhar. Sonhou que a sua caravela ia no mar alto, com as três velas triangulares gloriosamente enfunadas, abrindo caminho sobre as ondas...‖ (SARAMAGO, 1998, p.50). A partir das relações estabelecidas entre a consciência, que ousa, mesmo sem tripulação, descortinar novas ilhas, e a inconsciência, lugar por excelência da realização dos desejos mais intensos, é lançada ao mar a caravela dos sonhos: ―[...] bastará que o vento sopre nas copas e vá encaminhando a caravela ao seu destino. (1998, p.61) No final da narrativa, ao acordar abraçado à mulher da limpeza e, depois, ao pintar na proa do barco, em letras brancas, o nome que faltava dar à caravela, o homem do barco conquista o futuro através do sonho, antes mesmo de conquistá-lo pela experiência, dando vazão ao seu inconsciente que aflora e que lhe dirige a vida desde então. O retorno ao plano da consciência apenas refletirá o que já foi vivido no plano onírico, em meio à imensidão interior do seu próprio eu. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É desafiador, apesar dos inúmeros trabalhos existentes, falar sobre a obra de José Saramago. Desafiador e complexo, porque muito já foi dito sobre quase tudo o que ele escreveu, desde a grande repercussão do prêmio Nobel até os dias atuais. O desafio proposto, então, foi tentar dizer o que ainda não tinha sido dito, levando em consideração, claro, os trabalhos que tem sido produzidos. A partir de então, a principal intenção deste estudo foi, como o título antecipou, analisar como as identidades se constituíam nas obras O conto da ilha desconhecida e Ensaio 525 sobre a cegueira a partir das relações estabelecidas com a paisagem. Para tanto, foi necessário recorrer a aproximações interdisciplinares entre áreas de conhecimento diversas: além da literatura e da crítica literária, os fundamentos epistemológicos da Geografia Humanista Cultural, cujas bases filosóficas assentadas na Fenomenologia deram o tom do trabalho, permitindo a sua organização metodológica, sem esquecer as contribuições dos Estudos Culturais para o estudo sobre identidade. As obras aqui analisadas convertem-se em elementos significativos da relação construída entre autor, leitor e sociedade. Saramago, em suas narrativas ficcionais, apresenta metáforas e representações fluidas e abertas, oferecendo distintas possibilidades de inferência, sobretudo com relação às personagens do romance e do conto, à constituição da identidade na contemporaneidade e sua relação com os espaços ou lugares.

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527

NOVAS CONFIGURAÇÕES FAMILIARES NA LITERATURA BRASILEIRA INFANTO-JUVENIL: LEITURA DE MEUS DOIS PAIS, DE WALCYR CARRASCO, E DE OLÍVIA TEM DOIS PAPAIS, DE MÁRCIA LEITE

Flávio Pereira Camargo208

[...] amar é respeitar o jeito de ser de cada um. Walcyr Carrasco

Resumo: Este trabalho objetiva refletir a respeito das configurações familiares representadas na literatura brasileira contemporânea. O artigo está dividido em duas seções principais: inicialmente, é proposto um estudo acerca dos processos de subjetivação e dos modos como a identidade do outro é representada discursivamente em nossa sociedade; a seguir, analisamos as novas configurações familiares na narrativa brasileira infantil e juvenil. Palavras-chave: Literatura infanto-juvenil; Novas configurações familiares; Leitura.

Abstract: This work aims to reflect about the family configurations represented in contemporary Brazilian literature. The article is divided into two main sections: first, we propose a study on subjective processes and the ways in which the identity of the other is represented discursively in our society, then we analyze the new family configurations narrative in Brazilian children and youth. Keywords: Brazilian literature for children and youth; New family configurations; Reading.

9. Introdução

No contexto da contemporaneidade, temos observado certas transformações referentes às novas configurações familiares, sobretudo o que diz respeito à constituição de novas famílias, entre elas, a homoafetiva, provocando tensões e rupturas com os padrões considerados hegemônicos em nossa sociedade. Estas modificações estão, de certo modo, associadas a algumas conquistas da comunidade lésbica, gay, bissexual, transexual e transgênero (doravante LGBT), como, por exemplo, o reconhecimento, por parte do Estado, da união civil homoafetiva entre duas pessoas do mesmo sexo – seja o masculino ou o feminino. Portanto, nosso interesse nesta temática advém de uma necessidade de analisarmos, na literatura brasileira infanto-juvenil contemporânea, as distintas feições da diversidade sexual e de gênero, com enfoque particular nas representações discursivas acerca das configurações familiares homoafetivas.

208 Professor Adjunto de Literatura Brasileira do Curso de Letras da Universidade Federal do Tocantins, atuando na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Letras: Ensino de Língua e Literatura. E-mail: [email protected] ou [email protected] 528

Para tanto, escolhemos como corpus literário as narrativas brasileiras infanto-juvenis Meus dois pais, de Walcyr Carrasco, e Olívia tem dois pais, de Márcia Leite, com a finalidade de: a) demonstrar, evidenciar e analisar como essas novas configurações familiares são representadas em textos literários destinados aos jovens leitores; e b) verificar quais as implicações dessas representações para o processo de formação de leitores na contemporaneidade, principalmente quando o tema abordado diz respeito à diversidade sexual e de gênero. Como aporte teórico-crítico, valemo-nos de uma perspectiva pós-estruturalista, particularmente das pesquisas de Jurjo Torres Santomé, Guacira Lopes Louro e Tomaz Tadeu da Silva, que dizem respeito ao currículo e à formação de leitores e de professores na contemporaneidade, além das reflexões de Michel Foucault e de Didier Eribon, entre outros estudiosos, acerca dos processos de subjetivação. Com o intuito de direcionar nossas discussões para tópicos específicos referentes ao tema abordado por nós, optamos por estruturar o texto em duas partes que se complementam. No tópico ―Representações discursivas da diversidade sexual: cruzando fronteiras, problematizando o currículo‖ tecemos algumas considerações acerca do ―regime de poder-saber-prazer‖, proposto por Michel Foucault (2010) em seus estudos sobre a história da sexualidade no Ocidente, além de conectar estas discussões com questões diversas referentes aos processos de subjetivação e aos modos como a identidade do outro é representada discursivamente em nossa sociedade. Além disso, procuramos demonstrar a necessidade de uma concepção de currículo pós-estruturalista no ensino e aprendizagem de literatura, sobretudo o que se refere às identidades sexuais e de gênero no processo de formação de leitores e também de professores. Por fim, no segundo tópico, após estes breves percursos de cunho teórico e crítico, analisamos as novas configurações familiares na narrativa brasileira infanto-juvenil.

10. Representações discursivas da diversidade sexual: cruzando fronteiras, problematizando o currículo

Quando nos propomos a discutir ou a pesquisar questões diversas relacionadas à diversidade sexual e ao gênero é preciso considerar o ―regime de poder-saber-prazer‖ que, segundo Michel Foucault (2010, p. 17), sustenta os discursos sobre a sexualidade humana, principalmente no Ocidente. Em seus estudos sobre a história da sexualidade, o autor pode constatar que há uma repressão e uma interdição constante em relação ao sexo e às suas 529 práticas, de modo que Foucault considera o século XVII como a Idade da repressão, havendo, pois, uma produção de discursos e de saberes acerca da sexualidade com o intuito de enquadrá-la nos padrões preestabelecidos pela sociedade: A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala. O casal, legítimo e procriador, dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segredo (FOUCAULT, 2010, p. 9).

No Ocidente, a constituição da família burguesa, compreendida como núcleo familiar composto por um homem e uma mulher, tem como finalidade garantir a reprodução da espécie humana, isto é, o sexo deveria ocorrer obrigatoriamente no matrimônio para a procriação. Esses discursos revelam não apenas uma concepção tradicional e unilateral de família, mas expõem, ainda, os padrões de uma sociedade baseada na heterossexualidade, que considera como ―normal‖, ―legítimo‖ e ―lícito‖ exclusivamente os relacionamentos entre pessoas de sexos opostos. Nesse sentido, aquelas sexualidades ou práticas sexuais que não se encaixam nesses padrões são alijadas da sociedade, sendo classificadas como ―sexualidades ilegítimas‖ (FOUCAULT, 2010, p. 10) que devem ser interditadas, reprimidas e marginalizadas. As práticas consideradas ―ilícitas‖ ou ―anormais‖ se referem, principalmente, àquelas relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, rompendo, pois, com a norma, com o estabelecido, especialmente porque a relação homoafetiva ou homoerótica entre duas mulheres ou dois homens não gera frutos, isto é, não leva à reprodução da espécie humana. É justamente por este motivo que os corpos dos sujeitos que rompem com os limites das fronteiras preestabelecidas e enrijecidas ao longo dos anos são considerados como corpos que não pesam, como corpos que não têm importância, que não têm valor para a sociedade, pois ―o sujeito é constituído através da força da exclusão e da abjeção, uma força que produz um exterior constitutivo relativamente ao sujeito, um exterior abjeto que está, afinal, ‗dentro‘ do sujeito, como seu próprio e fundante repúdio‖ (BUTLER, 2010, p. 155-156). É preciso lembrar sempre que é por meio e através da linguagem que nós classificamos, nomeamos e identificamos o outro. É por meio da linguagem que nós demarcamos as diferenças no processo de alteridade, ou seja, é a diferença entre o eu e o outro que suscita distintas representações sociais, culturais e simbólicas e estas representações estão intimamente relacionadas aos diversos modos de olhar e de 530 representar o outro, sua cultura, seus valores, seus hábitos, seus comportamentos, seus desejos e suas práticas sexuais; enfim, seu modo de viver. Uma concepção essencialista se faz presente na maioria das representações discursivas do outro, justamente porque a diferença ou aquilo que a estabelece é representada como algo negativo, passível, portanto, de ser extirpado da sociedade. Essa concepção estabelece a priori o que deve ser incluído e o que deve ser excluído, pois o conceito de identidade é compreendido como homogêneo, imutável, fixo e rígido, não admitindo, pois, uma heterogeneidade que é latente em nossa sociedade. Os discursos essencialistas partem, sobretudo, de uma perspectiva que se fundamenta na história e na biologia como ―verdades‖ fixas e imóveis (WOODWARD, 2007, p. 14), rejeitando a fluidez inerente às diversas identidades culturais. É justamente por isso que Kathryn Woodward, ao se referir ao conceito de identidade, de representação e de cultura, questiona como as identidades são produzidas e (re)alimentadas por meio e através das representações sociais e culturais do outro. Neste sentido, o modo como o outro é representado discursivamente depende, pois, de quem fala, do que se fala, com quais objetivos e intenções, e de que lugar se fala. Enfim, se faz necessário uma reflexão acerca das representações discursivas e de suas correlações com os discursos de poder, procurando evidenciar o modo como as distintas produções discursivas e seus efeitos de poder penetram e controlam a sexualidade humana a partir das ―técnicas polimorfas de poder‖ (FOUCAULT, 2010, p. 18), seja pela incitação, pela recusa, pela censura, pela desqualificação ou pela intensificação de discursos acerca dos prazeres carnais, das práticas sexuais e dos desejos mais recônditos do ser humano. Essa ―colocação do sexo em discurso‖, ou essa ―existência discursiva‖ sobre o sexo condena e puni as ―sexualidades insubmissas à economia estrita da reprodução‖ (FOUCAULT, 2010, p. 43) da espécie humana, e todos os desvios dessa norma estabelecida passam a ser condenáveis. Daí a necessidade de um controle pedagógico sobre os corpos e a sexualidade das crianças, por meio de um processo rigoroso de disciplinamento e de vigilância de seus corpos e de seus desejos com a finalidade de garantir a manutenção de uma heterossexualidade ou de um desejo heterossexual, pois o controle disciplinar dos corpos e dos gestos leva à produção de corpos dóceis, de corpos inteligíveis. Esse procedimento de disciplinamento tem, ainda, como objetivo legitimar o casal heterossexual, a monogamia e a concepção de família burguesa. Por isso o cuidado e a vigilância dos corpos e das sexualidades das crianças em diferentes espaços de sociabilidade 531 como, por exemplo, a família, a escola e a igreja, entre outras instituições empenhadas nesse processo de regulamentação e de vigilância dos corpos, do sexo e da sexualidade de nossos infantes. Outra demanda que se coloca diz respeito ao modo como os sistemas simbólicos no campo da cultura e a representação social e cultural podem contestar determinadas identidades pré-fixadas ou consideradas imóveis, levando a um deslocamento de certos valores tidos como corentes, fixos, estáveis e imutáveis, instaurando aquilo que Woodward denomina de ―crise da identidade‖ (2007, p. 19). Esta crise do conceito essencialista de identidade ocorre a partir do momento que temos uma compreensão de que os sistemas dominantes de representação discursiva do outro, principalmente em relação à diversidade sexual, considera como ―estranhos‖, ―desviados‖ ou ―anormais‖ os sujeitos cujas identidades solapam os rígidos sistemas classificatórios, denunciando a exclusão social, cultural e simbólica de determinadas identidades sexuais e de gênero em nossa sociedade e, portanto, a necessidade de um olhar mais abrangente para o outro, para o diferente, isto é, para as múltiplas identidades culturais com as quais convivemos no nosso dia a dia, procurando respeitar, problematizar, aceitar e compreender a diferença entre o eu e o outro. Afinal, na contemporaneidade não há mais um único centro, mas uma pluralidade de núcleos ou centros culturais a partir dos quais novas e complexas identidades podem emergir, a partir dos quais os sujeitos podem se expressar, pois a crise da identidade à qual Woodward (2007, p. 32) se refere é global, local, pessoal e política, o que nos leva a repensar os sistemas dominantes de representação do outro, os sistemas simbólicos e classificatórios que delimitam e demarcam as diferenças, produzindo fronteiras simbólicas que estabelecem o que está incluído do que está excluído, o que é legítimo do que é ilegítimo. Uma das formas de contestação desses sistemas simbólicos e dessas fronteiras é justamente o currículo, daí a necessidade de uma pedagogia e de um currículo que não se limitem a celebrar a identidade e a diferença, mas que busquem problematizá-las, pois ―[a] questão da identidade, da diferença e do outro é um problema social ao mesmo tempo em que é um problema pedagógico e curricular‖ (SILVA, 2007, p. 96-97), pois a escola e o currículo funcionam como sistemas de exclusão. Por isso, Rick Santos (1997) defende a necessidade de revermos este sistema e, sobretudo, de subverter o cânone no sentido de não mais silenciar ou negar a existência de personagens gays e lésbicas presentes em nossa literatura. Para que isso ocorra se faz necessário um novo posicionamento teórico, crítico e 532 político no modo de ler e de absorver as obras literárias cuja temática esteja voltada para as questões gays e lésbicas, em uma perspectiva multicultural no estudo da literatura, que inclua e dê visibilidade a outras vozes e identidades culturais silenciadas historicamente. Para tanto, é preciso propiciar metodologias de leitura e de análise literária capazes de formar leitores instrumentalizados capacitados para perceber, ver e analisar de modo crítico e reflexivo o modo como o outro é representado discursivamente na tessitura do texto literário, pois ―[a] obra literária, como patrimônio cultural humano, deve manifestar sua resistência, insistir na sua condição formativa, capaz de contribuir para a humanização do homem‖ (TURCHI, 2008, p. 216). É precisamente esta função humanizadora da literatura que nos leva ao seguinte questionamento: qual é o propósito do ensino de literatura? O profissional da área de literatura não pode simplesmente se deter em uma análise que desconsidere a relação entre o texto e o contexto social, histórico e cultural de produção e de recepção da obra, sem levar em consideração os modos como as identidades culturais são representadas na teia discursiva do texto literário, entre outros aspectos estéticos e políticos. Não estamos, aqui, fazendo mera apologia da obra literária como artefato planfetário, mas problematizando a função ética, estética e política da literatura e do leitor no processo de leitura, pois acreditamos no papel humanizador da literatura, capaz de permitir ao leitor uma maior compreensão do outro e de seus valores através do efetivo contato com o texto literário, uma vez que ―[a] literatura lida essencial e constantemente com a imagem do homem, com a forma e o estímulo da conduta humana‖ (STEINER, 1988, p. 22), permitindo ao leitor um alargamento de seus horizontes de expectativas, de seus valores e de seu processo formativo enquanto ser humano. É por acreditarmos nessa função humanizadora da literatura que defendemos a necessidade de uma abertura de nossos currículos às abordagens que suscitem discussões acerca das diversas identidades culturais, procurando abordar questões referentes, principalmente, aos gays e às lésbicas, uma parcela de nossa sociedade que foi e ainda é marginalizada, alijada de nossos sistemas simbólicos de produção cultural. Por este motivo, cremos e defendemos que as

instituições escolares são lugares de luta, e a pedagogia pode e tem que ser uma forma de luta político-cultural. As escolas como instituições de socialização têm como expandir as capacidades humanas, favorecer análises e processos de reflexão em comum da realidade, desenvolver nas alunas e alunos os procedimentos e destrezas imprescindíveis para sua atuação profissional, crítica, democrática e solidária na sociedade (SANTOMÉ, 2009, p. 175). 533

Não devemos nos esquecer, como nos lembram Jurjo Torres Santomé (2009) e Tomaz Tadeu da Silva (2009), de que o currículo legitima, inclui e, ao mesmo tempo, deslegitima e exclui certas identidades culturais a partir de um regime foucaultiano de poder e saber, por meio do qual há uma produção de discursos e de saberes acerca de determinadas identidades culturais. Por isso mesmo há a necessidade latente de um questionamento e de uma problematização estética e política acerca do que é produzido, do que é incluído/excluído do currículo e o porquê de sua exclusão. É preciso, portanto, que o leitor de literatura seja capaz de perceber, problematizar e questionar as representações discursivas do outro e os modos de subjetivação que lhe são impostos em espaços distintos de sociabilidade e de disciplinamento dos corpos e dos desejos, pois o ―currículo torna controláveis corpos incontroláveis‖ (SILVA, 2009, p. 203). Após estas breves considerações sobre as representações discursivas do outro, na tessitura do texto literário, passaremos à análise de nosso corpus literário.

11. A literatura brasileira infanto-juvenil contemporânea e as novas configurações familiares

A literatura brasileira infantil e juvenil produzida nas últimas décadas tem-se mostrado um campo muito produtivo e profícuo em relação à representação de identidades culturais em seu discurso literário, sem, contudo, deixar de lado as questões estéticas que lhe são caras. Essa produção literária destinada às crianças e aos jovens leitores tem sido bem recebida pela crítica literária, embora ainda não faça parte de nossos currículos escolares, seja no âmbito da educação básica ou do ensino superior, justamente porque o fato de essas obras problematizarem certos temas provoca em alguns leitores e professores determinado incômodo em decorrência de solaparem algumas verdades, saberes e discursos já cristalizados no imaginário pessoal e coletivo. Trata-se, pois, de narrativas que possibilitam a visibilidade do outro, de sua subjetividade, de seus valores e, principalmente, de seus discursos ao trazer para o interior da própria enunciação literária o discurso de outrem, explicitando a ética do texto literário em relação à diversidade de vozes de sujeitos que se autorrepresentam. Graça Paulino (2007, p. 15), em ensaio intitulado ―Livros, críticos, leitores: trânsitos de uma ética‖, afirma que o ―procedimento monológico‖ é uma ―falta de ética‖ por parte dos autores que escrevem livros destinados às crianças e ao público jovem, pois eles negam a esses leitores a 534 possibilidade de um efetivo contato com a diversidade cultural. Neste sentido, devemos estar atentos a ―uma literatura anódina, que trata de assuntos já banalizados, enfraquecidos, sem acrescentar força nova a eles, sem mostrar a que veio a ‗historinha‘‖ (PAULINO, 2007, p. 16). Sabemos que os valores éticos não se referem somente ao texto literário, mas também ao processo de editoração, ao campo literário, à crítica literária e ao leitor, de modo geral, pois o livro é um bem simbólico e, em nossa sociedade, poucos leitores têm acesso a essa produção artístico-cultural. Há, portanto, uma necessidade de um processo de democratização da leitura literária que pode permitir aos jovens em processo de formação uma revisão de seus valores éticos em relação às identidades culturais, porque ―ler a literatura com ética literária é, pois, seguir a proposta estética sem ignorá-la ou traí-la. Junto virá o que for adequado para a criança‖ (PAULINO, 2007, p. 20). No caso de nosso corpus literário, as narrativas Meus dois pais, de Walcyr Carrasco, e Olívia tem dois papais, de Márcia Leite209, problematizam, entre outras questões latentes de nossa sociedade, a constituição de novos núcleos familiares, principalmente o que diz respeito às novas conjugalidades masculinas e, consequentemente, os desafios enfrentados cotidianamente por aqueles que ousam romper com as fronteiras preestabelecidas em relação à composição tradicional de família. O que nos leva ao seguinte questionamento: o fato de haver uma legislação favorável à união civil e ao casamento entre pessoas do mesmo sexo é capaz de impedir a proliferação do preconceito e da discriminação em relação às famílias homoafetivas? A igualdade de direitos, embora garantida pela legislação recente, não é capaz, ainda, de provocar uma mudança nos paradigmas tradicionais enraizados no imaginário social e coletivo em relação à necessidade de uma ressignificação do conceito de família. Neste sentido, o campo literário brasileiro ganha uma importante contribuição com as publicações mencionadas acima, pois são narrativas infantis e juvenis que não só problematizam como explicitam aos leitores em processo de formação as novas configurações familiares, que merecem reconhecimento e respeito, assim como qualquer outro grupo familiar. No caso de Meus dois pais, de Walcyr Carrasco, trata-se de uma narrativa em primeira pessoa, que é narrada pelo protagonista Naldo. Uma criança que irá revelar ao leitor o processo de separação de seus pais e os desafios enfrentados por ele, por sua mãe e por seu pai e seu companheiro Celso. O próprio Naldo, no decorrer da trama discursiva da narrativa, problematiza questões referentes às diferentes composições familiares na

209 Infelizmente, não será possível, neste momento, fazermos uma análise mais detalhada deste livro em decorrência da delimitação do número de páginas para os Anais do evento. 535 contemporaneidade ao fazer referência aos vários amigos e amigas que tem na escola, frutos de relacionamentos diversos, inclusive de produções independentes. A narrativa demonstra ao leitor uma relação amistosa entre Celso, o pai de Naldo e o protagonista, pois, após a separação, nos momentos em que Naldo visita seu pai, Celso sempre está presente. A relação homoafetiva entre Celso e o pai do protagonista não é percebida, inicialmente, por Naldo, que vê com a maior naturalidade a relação de convivência entre seu pai e Celso. O problema está justamente nos comentários maliciosos da mãe e de sua avó materna, pois com a promoção da mãe do protagonista e a necessidade de se mudar de cidade, instaura-se um conflito em relação à guarda de Naldo e onde ele irá morar. Esta tensão estabelecida entre a mãe, o pai e a avó de Naldo pode ser evidenciada na seguinte passagem:

A mamãe e o papai estavam na cozinha. Fui até lá. Da porta, vi que ela estava supernervosa. – Ainda é cedo. – Eu não vou deixar você pôr o Naldo contra mim! Nesse instante, os dois me viram. Ficaram em silêncio, sem jeito. Quando fui me trocar, as vozes subiram de novo. Ouvi, de longe: – Olha que eu desisto da promoção! – Sou pai e tenho direitos. (CARRASCO, 2010, p. 14).

Nesta citação, observamos que se trava um embate entre a mãe e o pai de Naldo justamente por causa dos direitos paternos em relação à guarda do filho. Comumente, em nossa sociedade, muitos sujeitos do sexo masculino, por questões diversas, se mantêm no armário, estabelecendo vínculos afetivos e sexuais com mulheres e, até mesmo, constituindo família para serem aceitos pela sociedade, mas chega um momento em que esse armário se quebra, um momento no qual esses sujeitos resolvem assumir suas identidades sexuais e de gênero, o que provoca, de certa forma, fissuras e fossos que precisam ser superados em decorrência do desvelamento de um segredo. Afinal, [o] armário gay não é um factor apenas presente na vida dos gays. [...] para muitos, ele continua a afirmar-se como um elemento fundamental do seu relacionamento social; por mais corajosos e francos que sejam, por mais afortunados quanto ao apoio das suas comunidades, serão poucos os gays em cujas vidas o armário deixa de constituir uma presença central (SEDGWICK, 2003, p. 8).

No caso de Naldo, o atrito familiar ocorre principalmente porque a mãe e avó materna acreditam que o fato de o filho/neto conviver com o pai possa, de alguma forma, influenciá-lo em sua orientação sexual: ―– Não se deixe influenciar, porque seu pai tem uma vida muito diferente da nossa. Lembre: o mais importante é que ele adora você! / Fiquei 536 doido de curiosidade. Qual seria o segredo do papai?‖ (CARRASCO, 2010, p. 16, grifos nossos). Apesar destes avisos da mãe, a relação fraterna entre Naldo, o pai e Celso é extremamente positiva e o segredo de ambos permanece trancado no armário. Além disso, eles são representados de forma a romper com o imaginário de que todo gay é afeminado, pois os personagens não têm, na trama discursiva, estereótipos femininos comumente associados aos sujeitos homoafetivos, o que é, por si só, uma representação positiva da homoafetividade, considerando-se os vários personagens da literatura brasileira que aparecem representados de forma caricata. A escola, enquanto espaço de socialização e também de disciplinamento dos corpos e dos desejos é, por excelência, um lócus de subjetivação, por isso a preocupação de Naldo com a representação discursiva que seus amigos e professores fazem de seu pai e de seu companheiro Celso:

Comecei a perceber que falavam de mim na escola. Quando o Celso ou o papai iam me buscar, as mães dos meus amigos ficavam cochichando. Um dia, cheguei a ouvir um pedaço de frase. – Pois é. Nem parece! Aquilo ficou na minha cabeça. Não parecia o quê? [...] Convidei o Paulo e o Fê pra fazer um trabalho de grupo. Meus amigos gostavam de ir na minha casa porque o Celso sempre deixava um lanche legal. E não havia mãe de ninguém para pegar no pé. Nem acreditei quando eles recusaram o meu convite. – A minha mãe me proibiu de ir no seu apartamento – disse o Fê. Fiquei chateado. Quis saber o motivo. O Fê se afastou sem querer falar muito. Fui atrás. – O que o meu pai tem de errado? Os dois ficaram sem jeito, até que o Fê disparou: – Seu pai é gay, Naldo! (CARRASCO, 2010, p. 20-21).

Neste momento, percebemos como a injúria é capaz de expor a ―vulnerabilidade psicológica e social‖ às quais os sujeitos homoafetivos e seus familiares mais próximos estão sujeitos diariamente, moldando ―a personalidade, a subjetividade, o próprio ser de um indivíduo‖ (ERIBON, 2008, p. 27), pois ela é capaz de revelar o segredo escondido no armário, devastando-o e provocando na vida desses sujeitos marcas indeléveis. É justamente o que ocorre com Naldo, ao ter conhecimento de que seu pai e Celso são gays. A marcação linguística ―gay‖, neste caso, refere-se a uma representação que pode ser considerada pejorativa em relação à identidade do outro. Afinal, os pais de Naldo são sujeitos homoafetivos que nem mesmo parecem ser gays, como se houvesse um padrão, um modelo a ser seguido. Se, de um lado, esses discursos revelam preconceitos arraigados em nosso imaginário social e cultural em relação aos sujeitos e às famílias homoafetivas, 537 por outro lado, explicita uma ruptura com o estereótipo do gay afeminado, presente em várias representações culturais de nossa sociedade ao veicularem imagens pejorativas e depreciativas desses sujeitos. O choque da injúria provoca em Naldo uma desestabilização e uma revisão de seus valores, o que o leva a uma revisão minuciosa de certos discursos, brincadeiras, piadas e comentários antes ouvidos por ele no ambiente escolar e até mesmo na casa de sua mãe e de sua avó, quando elas se referiam ao segredo de seu pai. Esse processo de assimilação e de ressignificação de um novo conceito de família e de identidade por Naldo leva certo tempo, o que acaba fazendo com que ele vá morar com sua avó e passe a se encontrar esporadicamente com seu pai, mantendo uma relação distante e fria, pois ainda não foi capaz de assimilar a identidade de seu pai e de Celso. Com o tempo, na escola, já não se falava mais sobre o fato de o pai de Naldo morar com outro homem e, às vésperas de seu aniversário, sua mãe retorna para ajudar nos preparativos da festa, mas, antes, tem com o protagonista uma séria conversa com o filho acerca dos diferentes relacionamentos afetivos, procurando mostrar a ele que nem sempre as pessoas são diferentes entre si e que merecem o devido respeito. Além disso, a mãe de Naldo conclui: ―ele é seu pai. Adora você. Se você gosta dele, precisa respeitar o jeito de ele ser‖ (CARRASCO, 2010, p. 30). Esta passagem é expressiva, na narrativa, porque trata de um diálogo entre mãe e filho que expõe a ele não apenas as diferenças que há entre os seres humanos, como o incita a respeitá-las e a aceitá-las, convivendo com elas de modo mais harmonioso. Eis a ética do texto literário no processo formativo do ser humano. Processo pelo qual o protagonista Naldo passa, compreendo, ao final da narrativa, que ―cada pessoa tem um jeito de falar, de ser [...] de amar‖ (CARRASCO, 2010, p. 30), o que faz com que Naldo reveja seus posicionamentos em relação ao pai, mas ainda com certa preocupação em relação ao olhar preconceituoso de seus amigos e de seus pais ao verem Celso junto com a ele na festa de aniversário. No entanto, o presente de Celso, um bolo enorme, decorado com um bonequinho parecido com Naldo, seduz e chama a atenção de todos os seus amigos e amigas e, em um momento de ―tremenda coragem‖, após o tradicional ―parabéns para você‖, o protagonista ―[estende] o braço e [dá] a primeira fatia de bolo para o Celso, dizendo em voz bem alta: / – Você também é meu pai!‖, pois Naldo descobre, afinal, ―que o mais importante era ter uma família que [o] amava‖ (CARRASCO, 2010, p. 36).

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12. Considerações finais

Como procuramos demonstrar, ao longo de nossas reflexões, a função humanizadora da literatura pode contribuir de modo expressivo para alargar os modos como o outro é representado em nossa sociedade, solapando representações discursivas enraizadas em nosso imaginário social e coletivo, sobretudo o que diz respeito à diversidade sexual e às configurações familiares homoafetivas, contribuindo, ainda, para a formação de leitores críticos e reflexivos.

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LITERATURA E HISTÓRIA NA AMAZÔNIA: A RETOMADA HISTÓRICA NO ROMANCE GALVEZ, IMPERADOR DO ACRE, DE MÁRCIO SOUZA. Francisco Ewerton Almeida dos Santos210 Resumo: A fortuna crítica do romance Galvez imperador do Acre, publicado em 1976 pelo amazonense Márcio Sousa, mais de uma vez de inseriu-o na categoria de ―metaficção historiográfica‖, proposta por Linda Hutcheon.Esse termo propõe a caracterização de uma ficção que se apropria semioticamente do texto histórico, questionando a objetividade e a neutralidade do discurso historiográfico e a procurando re-apresentar o passado (e não representá-lo) por meio da ficcionalização paródica, irônica e, por vezes, satírica das personalidades e acontecimentos históricos. O presente trabalho propõe demonstrar de que forma isso se dá na obra Galvez imperador do Acre, para tal, far-se-á uma analise comparativa entre o texto literário e a obra Formação Histórica do Acre, de Leandro Tocantins, observando a relação paródica estabelecida entre os textos e as inversões irônicas decorrentes dela. Palavras-chave: Márcio Souza; Galvez imperador do Acre; metaficção historiográfica.

Abstract: The literary criticism of the novel Galvez imperador do Acre, published in 1976 by Márcio Sousa, more than once inserted it in the category of "historiographicmetafiction", proposed by Linda Hutcheon. This term suggests the characterization of a fiction which appropriates the semiotic historical text, questioning the objectivity and neutrality of historiographical discourse and seeking re-presenting the past (and not represent it) through fictionalization parodic, ironic and sometimes satirical personalities and historical events. This paper proposes to demonstrate how this is at work Galvez Emperor of Acre, to such far-will be a comparative analysis between the literary text and the work FormaçãoHistorica do Acreby Leandro Tocantins, observing the relationship established between parodic texts and ironic reversals arising from it. Keyworks: Marcio Souza;Galvez imperador do Acre; historiograficmetaficcion.

Em seu texto ―Oconceito da história‖ (in: Magia e técnica, arte e política, 1996), Walter Benjamim traça a diferenciação entre o historicismo tradicional e a historiografiamaterialista. Estando a prática do primeiro a serviço das forças hegemônicas, e osegundo em prol de uma consciência libertadora e revolucionária. A diferença básica é:o historicismo volta seu olhar para o progresso. Compreende os fatos históricos comouma cadeia de acontecimentos que se desencadeiam linearmente, numa sucessãocronológica, é o que Benjamin chama de ―tempo homogêneo e vazio‖. Entende,portanto, que essa cadeia de fatos leva ao progresso contínuo, e que todas asconsequências foram necessárias, em nome do desenvolvimento. O materialista histórico deve opor-se firmemente a essa concepção. Seu carátermecanicista serve aos interesses do fascismo emergente à época do texto (1940), e que,mudando de nome, de face e de discurso, matem-se vivo ainda nos interesseshegemônicos de hoje. Para Benjamin, o materialista histórico deve voltar seu

210Universidade Federal do Pará (UFPA). Email: [email protected]. 541 olhar parao passado. O historiador, ao retomar uma época, nãodeve procurar conhecê-la como ele foi, e sim interpretá-la tal qual se apresenta nopresente, segundo as necessidades históricas desse presente. Nas mãos do materialistahistórico, o passado se torna uma arma de conscientização:

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ―como ele de fato foi‖. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também osmortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer (BENJAMIN, 1996, p. 224-225).

Retomar o passado tal qual ele se apresenta no momento de perigo significainterpretá-lo, recriá-lo em face de um projeto transformativo do presente. Tal como ohistoriador, também o tradutor, ou mesmo, o escritor, deve reler a tradição, arrancando-ado conformismo canônico, acendendo as centelhas de esperança e transformação quenela se inscrevem, tornando novamente audíveis as vozes oprimidas desses mortos queainda não encontraram a paz. É preciso arrancar o passado do jugo do discursodominador dos herdeiros de todos que venceram antes. É a voz dos vencidos que dirigeseu apelo ao presente, que clama ser ouvida.

Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo (BENJAMIN, 1996, p. 225).

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Os bens culturais constituem o espaço privilegiado dessa tensão entre vozesdissonantes. Frantz Fanon (2002) afirma que a Europa é uma criação do TerceiroMundo. Seus monumentos de cultura foram possibilitados, em grande parte, pelosséculos de exploração, escravização e massacre de outros povos. O movimento linear dohistoricismo, do tempo vazio e homogêneo, escrito sob o ponto de vista monológico dosvencedores, é o próprio movimento simbólico dessa marcha vertiginosa que segue emfrente, para o futuro, o progresso, deixando pra trás um rastro de destruição, como umalocomotiva desgovernada que passa por cima de qualquer obstáculo em nome de seusinteresses. A ideia de progresso, entendido pelos social-democratas como um progresso dahumanidade, sem limites e automático, que percorre uma trajetória em flecha ou emespiral, está em consonância com a ideia dessa marcha no interior do tempo vazio ehomogêneo. O materialista histórico deve opor ao progresso e ao tempohomogêneo e vazio aum tempo saturado de ―agoras‖. Dessa forma, ele explodeo contiuumda história, vendo no tempo, por meio de uma visão caleidoscópica, asvárias lutas de classes oprimidas, retomando-as num novo agora, redimindo a classederrotada do passado e tentando salvar o presente no momento de perigo. Benjamincompara este movimento com a moda. Segundo ele, ―a moda tem um faro para o atual,onde quer que ela esteja na folhagem do antigamente. Ela é um salto de tigre em direçãoao passado‖ (BENJAMIN, 1996, p. 230). Embora na moda esse salto se de dentro deum campo comandado pela classe dominante, é esse movimento, feito, porém, de formalivre, que constitui o salto dialético da revolução. Para poder fazê-lo, é preciso explodira linha contínua da história, transformando-a em uma constelação de momentosestáticos:

Pensar não inclui apenas o movimento das idéias, mas também sua imobilização. Quando o pensamento pára, bruscamente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes comunica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada. O materialista histórico só se aproxima de um objeto histórico quando o confronta enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido. Ele aproveita essa oportunidade para extrair uma época determinada do curso homogêneo da história; do mesmo modo, ele extrai da época uma vida determinada e, da obra composta durante essa vida, uma obra determinada. Seu método resulta em que na obra o conjunto da obra, no conjunto da obra a época e na época a totalidade do processo histórico são preservados e transcendidos (BENJAMIN, 1996, p. 231). 543

Dessa forma, compreendemos a história como uma configuração saturada detensões que, em seu diálogo, atribuem e adquirem sentido. Cabe ao historiador retomarum determinado momento para iluminar o seu próprio, fazendo tocarem-se os ―agoras‖. Se assim é, pode-se captar a configuração em que cada época entra em contato comoutra, ou com a nossa própria, sendo assim, entendemos o presente como um ―agora‖entre outros, no qual se infiltra os estilhaços do messiânico de outros presentes ou―agoras‖. Podemos transplantar essas ideias para o campo da literatura, e, dessa forma,considerar que, também no texto literário, outros ―agoras‖ se infiltram e dialogam. Uma maneira de fazer isso no romance Galvez imperador do Acre é caracterizando-o, como o faz Rejane Rocha (2006), como uma narrativa de metaficção historiográfica, termo proposto por Linda Hutcheonem sua obra Poéticas do Pós-Modernismo (1991). O termo é utilizado por Linda Hutcheon em seu livro Poéticas do Pós-modernismo (1991). Rejane Rocha (2006) propõe sua caracterização esquemática:

• Por ser expressão metaficcional, a metaficção historiográfica reflete acerca de sua constituição enquanto artefato literário, enquanto produto cultural, ao mesmo tempo em que reflete acerca dos vários contextos em que se insere; • A metaficção historiográfica propõe uma semiotização da história, pautada, sobretudo, na falta de confiança em relação à objetividade e à neutralidade do discurso historiográfico e no questionamento acerca das visões que o colocam no lugar do próprio objeto que ele deveria representar: o passado; • Advêm desses questionamentos a recusa à totalidade representada por uma verdade histórica e a proposição de verdades plurais e descentradas; • A metaficção historiográfica problematiza a referência e explicita, em seu projeto composicional, que seu ponto de partida são sempre textos; • A metaficção historiográfica procura re-apresentar o passado (e não representá-lo) e isso é feito por meio da ficcionalização paródica, irônica e, por vezes, satírica das personalidades e acontecimentos históricos. A explicitação da forma pela qual as imagens dessas personalidades e acontecimentos foram forjadas pelo discurso historiográfico revela uma outra forma de compreender o passado (ROCHA, 2006, p. 59).

O cunho satírico e a predominância do riso, bem como o desvio do ponto de vista monológico, são marcas evidentes na forma como é feita a retomada histórica em Galvez imperador do Acre (seja de um momento da história do país ou a revisão de sua tradição 544 literária). É este o pensamento de Rejane Rocha, tal como se expressa em sua tese Da utopia ao ceticismo: a sátira na literatura brasileira contemporânea, e no artigo escrito em co-autoria com Tânia Pantoja ―As mobilidades da sátira na metaficçãohistoriográfica: uma leitura de Galvez, imperador do Acre‖. Em ambos os textos, propõe-se classificar Galvezcomo um romance satírico e como uma obra de metaficçãohistoriográfica. Essa dupla classificação incorre, contudo, em uma contradição. A sátira é aqui compreendida como um discurso utópico e normatizador, isto é, vinculada à crítica e à reforma, e, para criticar, sejam comportamentos, crenças ou vicissitudes, é necessário um parâmetro, uma norma que aponte o correto, do qual o objeto criticado se desvia. A metaficção historiográfica, por sua vez, é apontado por Linda Hutcheon como um gênero que expressa muitas das problematizações da pós-modernidade, e esta, como já evidenciou François Lyotard (1988), prescinde dos discursos totalizadores, dos grandes relatos, e, portanto, promove o deslizamento das normas e padrões.

O resultado disso é a modificação da sátira, a qual, se não deixa de lado seus questionamentos e seu expediente de reformar e transformar, não o faz tendo valores e normas como parâmetros sólidos, e, por conta deste deslizamento, do colapso das certezas, o próprio satirista se inclui entre os que são criticados. Da mesma forma, a utopia, a reforma em busca de um Melhor (que pode estar no passado ou no futuro), se desfaz, de forma que a sátira em Galvez imperador do Acrenão rechaça o presente com saudade de um passado melhor, uma vez que a crítica ao presente se dá por meio da crítica a um passado que, por não se ter realizado a contento, estende seus malefícios até o agora [...]. Além disso, ofuturo não é mirado, na obra, como tempo em que se cumprirão as profecias do Melhor (PANTOJA; ROCHA, 2005, p. 143).

Pode-se perceber as características da metaficção historiográfica no romance Galvez imperador do Acre, também, na semiotização e na paródia do texto histórico, levada a cabo por meio do que o crítico Afonso Romano de Sant‘Anna, em seu estudo Paródia, Paráfrase e Cia. (1995) denominaapropriação. Para o autor, a apropriação é uma das formas mais desrespeitosas e dessacralizadoras de paródia, segundo seus próprios termos ―a paródia é a inversão do significado, que tem o seu exemplo máximo na apropriação (SANT‘ANNA, 1995, p. 48). Propondo um modelo que oponha paródia e paráfrase em dois eixos, o da repetiçãoem que prevalece a similaridade (paráfrase) e o em que prevalece a diferença (paródia), Afonso Romano de Sant‘Anna engloba a apropriação neste último conjunto, entendendo-a como ―uma interferência no discurso. Não pretende re-produzir, mas produzir algo diferente‖ (SANT‘ANNA, 1995, p. 48). Dito isso, o estudioso apresenta o 545 livro Pau-Brasil (2003) de Oswald de Andrade como um exemplo significativo de apropriação na poesia brasileira, sobretudo na série ―Pero Vaz Caminha‖, na qual Oswald extrai frases de parágrafos distintos da carta de caminha e constrói novos textos, como os poemas ―A descoberta‖ e ―As meninas da gare‖. O efeito desta paródia recai não só sobre o texto parodiado, mas também sobre a própria construção da História do Brasil, marcando tanto o aspecto ―intramural‖ da paródia quanto o ―extramural‖ característico da sátira que geralmente se utiliza da paródia para seus fins críticos (HUTCHEON, 1985, p.82). Assim, seguindo a premissa de Sant‘Anna, segundo a qual o que caracteriza a apropriação é ―a dessacralização, o desrespeito à obra do outro‖ (SANT‘ANNA, 1995, p. 46), percebemos que, por meio dessa técnica, Oswald de Andrade, ao desrespeitar um documento canônico como a carta de Caminha, está relendo o passado com um olhar crítico do presente e fazendo também uma leitura deste presente. Portanto, a―transcontextualização‖ aliada à inversão irônica, as quais definem a paródia (HUTCHEON, 1985, p.48), aqui atingem o texto que é ―desrespeitado‖ pela apropriação e é utilizado como arma retórica com o fim de satirizar tanto o passado, o contexto do texto parodiado, quanto o tempo contemporâneo ao parodista. Isso fica patente no poema ―As meninas da Gare‖, no qual o deslocamento assinalado pelo título atribui novo sentido às frases recortadas de Caminha, mesclando as índias do tempodeste às prostitutas expostas na gare de uma grande metrópole sociedade industrial. Opera-se uma leitura do presente e uma inversão crítica e dessacralizadora do discurso histórico canônico que sempre destacou a ideia de inocência atribuída às índias por Pero Vaz Caminha neste trecho de sua carta. Operação semelhante faz Márcio Souza em Galvez imperador do Acre. Também por meio da técnica da apropriação, o autor amazonense dessacraliza um texto histórico com o propósito de desconstruir o discurso que a historiografia construiu acerca de um determinado episódio da história da Amazônia, para, a partir daí, abordar a própria formação histórica dessa região e a maneira como dialoga com a contemporaneidade. O texto histórico ao qual nos referimos é Formação Histórica do Acre, de Leandro Tocantins, publicado pela primeira vez em 1961 e, mais especificamente, o capítulo ―A República da Estrela Solitária‖, que versa justamente sobre o personagem Luiz Galvez Rodrigues de Arias e a Revolução do Acre. Os fatos, intrigas, personagens e datas dos quais Márcio Souza se utilizou para compor sua matéria ficcional foram em grande parte ―recortados‖ do texto de Leandro Tocantins, no entanto, apresentando inversões irônicas e 546 dessacralizadoras, caracterizando o diálogo paródico entre os textos, sobremaneira uma paródia identificada como apropriação. A principal inversão feita pelo romance em relação ao texto de Leandro Tocantins tange às intenções das personagens por trás dos feitos documentados pelo texto histórico, principalmente do protagonista Luiz Galvez. O discurso historiográfico é normalmente distinguido por suas pretensões científicas pautadas em documentos legítimos que conferem ao relato dos fatos certo distanciamento reverente e respeitoso. Esse posicionamento é assumido por Leandro Tocantins com relação tanto aos ilustres personagens históricos (como o governador do Amazonas Ramalho Junior, transfigurado no texto de Márcio Souza em mais um experimentado boêmio da noite de Manaus), quanto ao controvertido aventureiro espanhol que comandou a Revolução do Acre. O historiador paraense muitas vezes afirma a nobreza de caráter, as legítimas intenções, o esforço e competência do personagem elevado ao patamar de herói em seudiscurso. Os motivos que levaram Luiz Galvez a divulgar o documento que comprovava a intenção dos Estados Unidos e Bolívia em firmar um tratado, no qual o país norte americano apoiaria a Bolívia a conservar sua soberania nos território do Acre, Purus e 26 Neste trabalho utilizamos a 3ª edição, de 1979. Iaco em troca de concessões alfandegárias e territoriais, são apresentadas pelo historiador por meio da citação de um documento escrito pelo próprio revolucionário, no qual ele diz: ―De posse de tamanhas revelações que tanto afetavam o Brasil, minha pátria adotiva, que sempre procurei honrar, não duvidei em denunciá-las a quem de direito competia‖ (Luiz Galvezapud TOCANTINS, 1979, p. 256). E, mais adiante, concluindo seu relato, afirma também: [...] se comunicava ao Governador do Estado do Pará o que descobrira a respeito do acordo americano- boliviano, fazia-o cumprindo o dever que todo cidadão está obrigado, tratando-se de negócio que afete a integridade da pátria (Luiz Galvezapud TOCANTINS, 1979, p. 257). Ao falar das motivações que levaram o espanhol a proclamar a independência do Acre, Leandro Tocantins reitera a aproximação insistente em seu texto entre Luiz Galvez e Dom Quixote, anunciada desde a epígrafe do capítulo, retirada do Don Quijotede La Mancha, de Cervantes. Assim, ele afirma:

Afinal, a missão que sempre ele sonhara empreender estava a caminho de concretizar-se. E não poderia ser de maioragrado para o seu temperamento. D.Quixote, armado cavaleiro, marchava a 547

serviço de sua República, para aumentar os títulos e a honra (TOCANTINS, 1979, p. 270).

Além do aspecto romântico, heróico e quixotesco identificado no aventureiro castelhano, Tocantins também sublinha o seu esforço sobre humano, já na condição de Presidente da República, na tarefa de estruturar o Estado, levar-lhe o progresso e aindústria, conferindo a educação, justiça e qualidade de vida para seus habitantes. Nesse sentido, afirma: ―Com efeito, o Presidente Galvez vinha conduzindo a chefia do Estado com imparcialidade, espírito de justiça e propósitos honestos. Fazia questão de moralizar os costumes, de punir os criminosos‖ (TOCANTINS, 1979, p. 318). Já o Galvez do romance de Márcio Souza assume caráter diametralmente oposto ao construído pela historiografia. Ele traz, como já afirmaram alguns autores citados neste trabalho, o traços do anti-herói picaresco e malandro, o que é evidenciado por suas motivações egoístas, fúteis e materialistas. O Luiz Galvez de Márcio Souza nada tem de heróico, idealista e romântico, a única coisa que o interessa é ascensão financeira e social. Assim, todas as motivações nobres apresentadas por Leandro Tocantins são desconstruídas no romance de Márcio Souza. No romance, Galvez envolve-se na questão acreana levado por sua amante Cira. O excerto abaixo esclarece o que o impulsionou:

Love andrevolution Cira não escamoteava absolutamente nada para que eu lutasse pelo seu amor. Enfrentar o imperialismo americano tendo como propelente ideológico o amor de uma mulher. E eu dizia, por favor, querida, isto não é romance do Abade Prévost! Quantas libras esterlinas temos nisso? (SOUZA, 1983, p. 44)

São essas também as razões que o levam, já em Manaus, a aceitar a liderança da revolução acreana, a promessa de uma pequena fortuna como pagamento para que aceitasse a missão. E Galvez o fez:

Obrigações Acreanas Por cinqüenta mil libras eu tinha de conquistar o Acre do Domínio Boliviano, declarar o território independente, formar um governo e tentar o reconhecimento internacional. Quando tudo estivesse resolvido, meu governo solicitaria a anexação ao Brasil [...] (SOUZA, 1983, p. 126).

Como era de se esperar, esse herói às avessas não assume nenhum compromisso patriótico com a revolução e tampouco se preocupa com a qualidade de vida do povo que mora naquela região. A República Independente do Acre de que fala a historiografia é transfigurado em sua contraparte ficcional numa grande monarquia carnavalesca, e Galvez, 548 de presidente sério e esforçado com o progresso de seu recém nascido país transforma-se num imperador indolente, bom vivant, mais empenhado em orgias, bebedeiras e projetos amalucados de que no bom andamento de seu país. A reação do ―imperador‖ diante de seus ―súditos‖ fica evidente no excerto abaixo:

Os descamisados Meus súditos observavam tudo de uma maneira distante. Estavamcuriosos, mas não compreendiam o significado do acontecimento. [...] Aquela gente sempre se submetia aos fatos, aos acontecimentos, e quando não podia abarcá-los, murmurava boatos. Alguns acreditavam que eu era Dom Pedro I que retornava ao trono do Brasil. Tinham vivido sempre nesse limbo a meia voz, simulando uma falsa passividade, a mesma com que tinham recebido o agenciador de brabos que havia abordado no sertão e a mesma quando viam seus companheiros morrerem de diarréia na longa viagem ao mítico Acre. E murmuravam quando suas dívidas cresciam nas contas dos coronéis. O murmúrio, os boatos, eis a maneira mais prática de aguardarem a própria sorte e de não se intrometerem em coisas de políticos. Afinal, nos trópicos, os políticos, como deus, sempre tinham razões insondáveis (SOUZA, 1983, p.163).

Como bem cogitou Rejane Rocha (2006), o confronto simultâneo entre texto literário e obra historiográfica evidencia uma atitude típica das obras de metaficçãohistoriográfica, qual seja, a semiotização da história, isto é, o tratamento da história como texto. No caso de Galvez, a história é intertexto alvo da paródia, que resulta no distanciamento crítico, inversão irônica e atitude desrespeitosa. Ao apropriar-se do discurso historiográfico, o texto literário o está transformando em objeto, em apenas mais um instrumento do qual o bricoleurlança mão, transformando-o e dessacralizando-o, ou melhor, desautorizando sua cientificidade e pretensão à imparcialidade e à verdade, revelando, assim sua tessitura discursiva dotada de uma intencionalidade pretendida por um sujeito enunciador, e desvelando sentidos recalcados inferidos e inseridos nos interstícios do relato histórico. Nesse ponto, encontramos mais uma função da colagem em Galvez imperador do Acre, que é a paródia da forma ou constituição do texto histórico. Ou seja, tal como odiscurso historiográfico lança mão de documentos oficiais, jornais da época, bilhetes,decretos, textos manuscritos, etc., no sentido de atestar a veracidade de seu relato, oromance por sua vez também lança mão desses gêneros, mas utilizando-se do queAfonso Romano de Sant‘Anna chama de apropriação de segundo grau — quando oobjeto é transformado e traduzido para outro código, deslocando sua função e sentidocom efeito de 549 troça. Dessa forma, na paródia romanesca, documentos oficiais, de tomsério e formal, carregam conteúdos cômicos que manifestam o caráter carnavalesco desua revolução, como podemos notar no fragmento a seguir:

Ordem de Serviço Extraordinária Do: Comandante Galvez. Para: Intendente Chefe. Prezado Senhor: Comunicamos que o Estado- Maior, em reunião de CFG. H5467, decidiu condenar a compra da cerveja de marca Heinekker, de origem teutônica, por se apresentar num sabor suspeito. O Estado-Maior deliberou ordenar a compra de cerveja, apenas nas seguintes marcas: Munich, São Gonçalo e Pérola. O Estado-Maior, outrossim, decidiu aumentar a cota de champanha e uma caixa de xerez para uso exclusiv do Comandante-em- Chefe. Saudações Revolucionárias. Viva o Acre Independente. Galvez, Comandante-em-Chefe (SOUZA, 1983, p. 137).

Aqui, o riso e a visão carnavalesca cumprem seu papel questionador de destruir ―a seriedade unilateral e as pretensões de significação incondicional e intemporal‖(BAKHTIN, 1987, p. 43), liberando a consciência para novas possibilidades, tendo emvista que

[...] tem o extraordinário poder de aproximar o objeto, ele o coloca na zona de contato direto, onde se pode apalpá-lo sem cerimônia por todos os lados, revirá-lo, virá-lo do avesso, examiná-lo de alto a baixo, quebrar o seu envoltório externo, penetrar nas suas entranhas, duvidar dele, estendê-lo, desmembrá-lo, desmascará-lo, desnudá-lo, examiná-lo e experimentá-lo à vontade. O riso destrói o temor e a veneração para com o objeto e com o mundo, coloca- o em contato familiar e, com isto, prepara-o para uma investigação absolutamente livre (BAKHTIN, 1988, p. 413).

Essa é a postura assumida em Galvezcom relação à história e a todo discurso oficial que tenda a unilateralidade, à imposição de sentidos intemporais. Uma atitude relativizadora de todos os padrões impostos e cânones estético-ideológicos impostos pela tradição ocidental. Os aspectos estéticos estruturadores de Galvez imperador do Acre nos permitem também conceber uma subversão do discurso historicista tradicional. Como sabemos, a colonização trouxe para o novo mundo seus problemas históricos, transplantando-os e encenando-os num espaço estranho a eles. Como já deslindou Silviano Santiago, em seu artigo, ―Apesar de dependente, universal‖ (1982), o homem colonizado foi duplamente despojado: de sua cultura e de sua história. Assim, foi ao indígena relegado o papel de mero 550 recitador da história europeia, que, como falsa vivência (e também como artifício de linguagem) afigura-se a ele mais como ―ficção‖, como expressa o próprio autor:

Vemos, portanto, que as descobertas pelos europeus serviram não só paraalargar as fronteiras visuais e econômicas da Europa, como também para tornar a história européia em História universal, História esta que, num primeiro momento, nada mais é do que estória, ficção, para os ocupados. (SANTIAGO, 1982, p. 16).

A história oficial é, portanto, uma história monológica e etnocêntrica. Para fazer frente a essa concepção de discurso historigráfico ―encravada na tradição oficializante‖, há diversas estratégias textuais cujo funcionamento desconstrói diferentes aspectos da canônica tradição historiográfica do ocidente. Uma delas é a semiotização da história, a qual já vimos como se processa no texto. Por meio da transformação da história em intertexto, o texto literário desvela o caráter ficcional do discurso historiográfico e retoma parodicamente um determinado momento histórico, invertendo ironicamente muitos de seus elementos, trazendo a vista, assim, o seu desconforto, não só em relação ao momento em que é retomado no texto, mas também ao presente de sua produção. Rejane Rocha promoveu uma acurada análise de como essa releitura satírica de um momento do final do século XIX atua como forma de iluminar aspectos concernentes ao momento contemporâneo à obra, ou seja, a década de 70. A estudiosa afirma:

[...] o imperialismo norte americano, a truculência do poder político, a miséria da região norte do país e o abuso de poder dos governantes sãoassuntos caros à ficção da década de 70 e que aparecem também no romance de Márcio Souza, mas de forma dissimulada. A sátira, nesse romance, mira o passado histórico, o final do século XIX, não só para denunciar as mistificações do discurso historiográfico oficial, mas também para questionar o que se relaciona com o presente da publicação da obra, para denunciar os aspectos indesejados do presente por meio da visada crítica ao passado (ROCHA, 2006, p. 80-81).

Outra forma de atingir o discurso historiográfico tradicional é a colagem que se apropria de fatos e personagens da história européia encenando-os parodisticamente no contexto do romance. Vimos um exemplo na seção anterior, em que a revolução do Acre é identificada à Revolução Francesa, em outro momento, a coroação de Galvezassemelha-se novamente a um episódio da História daFrança, dessa vez, a subida de Napoleão ao trono: ―assumi o Império com um gesto napoleônico. Coloquei sobre minha própria cabeça a palma de folhas de seringueira lavrada em prata‖ (SOUZA, 1983, p. 169). 551

Essa estratégia por um lado dramatiza a transposição da História do Ocidente para o Novo Mundo, perpetrada na colonização. Por outro, num movimento especular e crítico peculiar à paródia, ela retoma a própria linguagem da imposição colonial para, de maneira invertida, revelar sua ideologia subjacente. A ironia antropofágica recai novamente na inserção de um elemento do contexto ao qual é transposto o enxerto intertextual, as ―palmas de seringueira‖, que marcam a diferença e, portanto, a subversão. Dentro dessa estratégia, também se inclui a retomada da tradição literária europeia aos moldes antropofágicos, que implica a desconstrução dos ―monumentos de cultura‖ do dominador, a sua reconstrução de forma inovadora e autêntica no espaço pós-colonial. Observamos, portanto, como o texto de Márcio Souza lança luzes sobre o modelo de desenvolvimento e formação da cultura amazônica, calcado no processo colonial detransmissão de cultura. A denúncia empreendida pelo romance nos permite considerar, analisar e criticar este modelo no presente com o intuito de auxiliar no traçado doroteiro de uma outra história.

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TOCANTINS, L. Formação histórica do Acre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1979, v. 1.

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MITOPAISAGENS E IDENTIDADES EM THE SLEEPERS OF RORAIMA, DE WILSON HARRIS Gabriel Cambraia Neiva211

Prof. Dr. Roberto Carlos de Andrade (Orientador)212 Resumo: O presente trabalho apresenta uma leitura das marcas cronotópicas das três narrativas curtas da obra ―The Sleepers of Roraima‖, do escritor guianense Wilson Harris (1921-). Baseado em referências mitológicas de povos de filiação linguística Karib que foram coletadas por viajantes coloniais, o escritor re-elabora, num mundo de sonhos – mágico-maravilhoso – estas mesmas mitologias, onde se encenam, histórias e identidades de tais grupos étnicos. Através da perspectiva de um macro-território conceitual chamado ―Guayana‖ e da ―mitopaisagem‖ como percepção indígena de lugar, que é oriunda da antropologia sobre os povos da região, pretende-se esboçar a relação entre o valor funcional de espaço-tempo e a construção mitológica da linguagem ficcional de Wilson Harris. A argumetação sugere a ideia de que as estruturas narrativas aqui abordadas tenham o tempo-espaço não apenas como pano-de-fundo estático – o ―onde e quando‖ se dá ação –, mas como eixo fundamental, fragmentado e imprevisível, presente em todos demais elementos ficcionais.

Palavras-chave: Crítica Literária; Literatura guianense; Wilson Harris; Mitopaisagens; Guayanas. Abstract: This paper presents a reading of the chronotopic elements of the three short stories in the book ―The Sleepers of Roraima‖, by the Guyanese writer Wilson Harris (1921 -). Based on mythological references from indigenous people with Carib linguistic affiliation, collected by colonial travelers, the writer re-establishes the myths in a ―magico- wonderful‖ dream world, where they enact the histories and identities of these ethnic groups. Through the macro-territorial concept ―Guayana‖ and that of ―mythscapes‖, used by anthropologists of the area to understand indigenous perceptions of place, the paper intends to sketch the relationship between the functional value of time-space and the mythological construction of the fictional language of Wilson Harris. It is suggested here that the elements of time-space in the narrative structures can not merely be read as a static background - where and when the action takes place - but rather as a fundamental axis, fragmented and unpredictable, interwoven into all other fictional elements of the novel.

Keywords: Literary Criticism; Guyanese Literature; Wilson Harris; Mythscapes; Guayanas.

1. Introdução Sir Theodore Wilson Harris, nascido Nova Amsterdã, cidade litorânea da Guiana, em 1921, honrado pela rainha Elizabeth II com o título de cavaleiro, em 2010, é, certamente, um dos escritores mais destacados da Guiana, considerado dos ―principais novelistas e

211 Mestrando em Letras na Universidade Federal de Roraima (UFRR). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 212 Professor do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal de Roraima (UFRR). E-mail: [email protected] 554 pensadores do séc. XX‖ (Maes-Jelenik, 1991, p.9). Sua produção literária começou na década de 50, com livros de poesia, seguidos de aproximadamente vinte e dois romances e três livros de narrativas curtas - Kanaima (1965), The Age of Rainmakers (1971) e The Sleepers of Roraima (1970) - e também uma produção acadêmica, não menos importante, entre seminários, entrevistas, artigos e ensaios. O Palácio do Pavão (The Palace of the Peacok, 1959) é o primeiro romance de W.Harris e obra mais difundida, com tradução em várias línguas, sendo, junto com A longa viagem de Oudin (The far Journey of Oudin, 1961), as únicas que foram traduzidas para a língua portuguesa (1964 e 1991, respectivamente). Apesar de sua importância como ficcionista e ensaísta para a literatura de língua inglesa, a obra Wilson Harris é muito pouco conhecida no Brasil e praticamente não há produção acadêmica no país sobre sua obra213.

2. As narrativas The Sleepers of Roraima apresenta três narrativas curtas, a saber, ―Couvade‖, ―I, Quiyumucon‖ e ―Yorukon‖, que ―são invenções baseadas‖ em mitologias Carib – ―fábulas da história‖ (W.Harris, 1970, p.13), como o autor explica em nota. A seguir, um breve resumo de cada uma delas. Em nota a primeira narrativa do livro, ―Couvade‖, o autor esboça uma definição de couvade, que seria ―(...) levar o legado da tribo – coragem e jejum – a cada recém-nascido.‖ (W.Harris, 1970, p.13)214. O avô de Couvade explica-lhe o significado de seu nome: ―O nome que você carrega‘, o velho Carib disse a Couvade seu neto, ‗significa o dormente da tribo.‖ (1970, p.15). Ele deu este nome ao menino, que não conheceu seus pais, porque estes quebraram a regra de couvade e desapareceram. Ambos, avô e neto, entram na caverna ―dos sonhos‖ ou ―dos ancestrais‖, numa busca por seus pais, que Couvade identifica (meio-gente, meio-animais) pintados na parede. Tal busca se transforma em guerra contra povos inimigos, onde a metamorfose é o último refúgio: ―(...) esconder-se neles (…) em seus nomes (...)‖ (1970, p.24). A tática é a mesma da aproximação dos pais: camaleão, disfarces (de formiga, de velho, de nada, só para citar alguns), pontes e locais míticos de transformação. ―Todos esses anos e ainda eles corriam em volta de um grande círculo – penas do tucano, vela do guácharo, pescadores da noite, caçadores da noite – sempre um passo fora do centro da paz do fim da guerra.‖ (1970, p.25). A segunda narrativa, ―I, Quiyumucon‖, é uma ―fábula da Causa Primeira ou caminho – vau do homem cego – é uma exploração imaginativa da ato de conquista,

213 Reduz-se apena ao trabalho de Jamille P. Dias (2011), sobre a economia da alteridade em “The Sleepers of Roraima”. 214 As traduções, afora quando indicado o contrário, são de autoria própria. 555 controlando, assim como assimilando o outro.‖ (W.Harris, 1970, p.39) No ano de 1970, um grupo de pesquisadores chega a aldeia para ―reconstruir um modelo de mitologia Carib‖ (1970, p.41). Um deles, o narrador, está cansado, mas diferente de seus colegas, não dorme de imediato. Fica acordado em sua rede e, ao olhar Poli (filho de Quiyumucon), se vê transportado para ―outro mundo‖: ―‗A rede e arco-íris no qual navego‘, Poli me disse de repente, com olhar grave e sombrio, muito além de sua idade, ‗são agora pontes de sacrifício apesar do que antes eram – na natureza mesma dos elementos – parte de um círculo ou globo ou ovo da criação.‘‖ (W.Harris, 1970, p.41)

Em sonho, através do garoto, o narrador se torna Quiyumucon, seu pai e chefe ancestral. Este sacrifica a mãe de Poli – ―donzela guerreira‖ capturada em guerra (provavelmente Arawak) e tomada como esposa por Quiyumucon. Da relação tensa entre filho e pai, começa a jornada mítica onde Quiyumucon cria os elementos da natureza e entra em guerra com os ―Primeiros Tenentes‖ da terra. ―Peça de sacrifício‖, sobre pedras, altos platôs - pinturas na parede da caverna – onde acontecem ritos de transformação. Morte e vida, passado e futuro, começo e fim dos tempos – embrenhados, em constante trânsito: ―(...) para trás do por do sol invisível do futuro, para dentro do amanhecer sem forma do passado e no litoral de casa onde os Carib agora estavam (...)‖(W.Harris, 1970, p.53) Segundo o autor, em sua usual nota introdutória, ―Yorukon‖ é uma ―passagem entre a era Carib e a Cristã‖. O canibalismo215 é a partida da terceira narrativa: Yorukon pergunta ao tio porque eram chamados canibais. A pipa do menino o guia na viagem de transformação – ele é ―o último e o primeiro nativo‖ –, a flauta feita dos ossos do inimigo devorado é música que se ouve na terra (agora reserva indígena) onde o Padre Gabriel, missionário, e toda a cultura do colonizador transformam a paisagem: ―(...) árvore de nome e número. (...) montanhas eram papel – planas como um mapa.‖ (W.Harris, 1970, p.75). Todos os indígenas morrem, inclusive Yorukon, mas este permanece, ―criança da lenda e senhor da criação e seu papel ou mapa, pipa ou globo, era testemunha mágica de sobrevivência curiosa, aterrorizante peça inocente de elemento atemporal em todas os lugares e coisas.‖ (1970, p.81) Sinfonia incompleta, ―sem idade, um curioso sintoma ou

215 Segundo o autor, a palavra “Carib” é corruptela e sinônimo de “canibal”: “Columbus falou de Caripunas, Raleigh de Carinepagotos, exploradores franceses de Galibis.” (W.Harris, 1970, p.63). Trata-se de explicação controversa: outros autores afirmam que termo canibal surge, no léxico castelhano, como corruptela de Carib, referindo-se àqueles que, comedores de carne humana, poderiam ser escravizados (N.Whitehead, 1984; N.Farage, 1991). Importa frisar, entretanto, que a imagética de Harris quanto à devoração canibal é pautada, sobretudo, pela descrição de R.Schomburgk, que é um relato de segunda mão. Aliás, ao contrário dos testemunhos do canibalismo Tupi, todos os relatos coloniais acerca do canibalismo Karib provêm de fontes secundárias (N.Farage, 1991), o que parece contribuir na intertextualidade da narrativa de Harris. A grafia Carib, então, remete ao construto colonial de que se vale o escritor. “Karib”, no entanto, designa o tronco linguístico, conforme Associação Brasileira de Antropologia definiu em 1959, com K maiúsculo e sem flexão de gênero e pessoa.. 556 holocausto da memória‖ (1970, p.75) que padre Gabriel ouve como ―anunciação da música‖. As três narrativas de The Sleepers of Roraima são oníricas (compostas pelo mágico- maravilhoso) e trazem a grandeza épica de um povo em formação, ou em colapso. Na ―caverna dos ancestrais‖ (―Couvade‖), na ―rede dos sonhos‖ (―I, Quiyumucon‖) ou no ―caldeirão dos elementos‖ (―Yorukon‖), os personagens acessam começo, meio e fim dos tempos, mas é impossível saber quando se está em um ou em outro. São alguns os denominadores comuns. Primeiro, em cada uma delas, há um protagonista jovem, entre 10 e 14 anos, que busca motivos que expliquem determinadas tensões, como por exemplo, o canibalismo (em ―Yorukon‖), a ausência de ambos os pais (em ―Couvade‖) ou da mãe (em ―I, Quiyumucon‖). Pontos de partida, ‗gatilhos‘ (expressão de W. Harris) que estabelecem o fluxo de um ―sonho mítico‖, onde História e Identidade são trazidas à tona e, em alguns de seus múltiplos aspectos, desveladas. Entre pontes de metamorfose, são cambiáveis as noções de Pessoa e Natureza: o mundo biofísico, atemporal, e a narrativa (narrador, personagens, enredo) tem relação íntima – formam-se uns aos outros na linguagem. As narrativas se utilizam da língua inglesa padrão, em sua modalidade formal, onde raras vezes, na voz das personagens, temos o crioulo guianense. A linguagem, extremamente criativa, não gera novos vocábulos mas os justapõe de tal forma inusitada que muitos leitores se assustam com a complexidade da linguagem – intimamente ligada à ―fantástica densidade do lugar‖ (grifo nosso), como diz W.Harris a respeito do interior da Guiana (W.Harris, 1973, p.38). O enredo de todas as narrativas são sequências de acontecimentos ―surreais‖ e ―factíveis‖ (como a guerra, sempre presente). Ações épicas, ―mágico-maravilhosas‖ que contam uma ―História do povo Carib‖. Os personagens, além dos protagonistas já citados, são poucos. Como indígenas ―concretos‖ temos o avô (―Couvade‖) e o tio (―Yorukon‖). Quyiumucon, pai de Poli é o ―devir‖ de um europeu, pesquisador e narrador de ―I, Quiyumucon‖. Além deste, o Padre Gabriel (―Yorukon‖) é o único personagem não- índio. Os demais personagens secundários são memórias (os pais, em ―Couvade‖), ou ―fantasmas‖ (a mãe de Poli, em ―I, Quiyumucon‖), ou simplesmente não têm ação autônoma, como a irmã de Yorukon. Muitos são os personagens-animais, importantíssimos nas narrativas, e também numerosos são povos, ou grupos de pessoas, que não tem ação individual, mas exercem papel fundamental.

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3. Repertórios míticos

Numa primeira leitura, foi possível encontrar os mitos base de cada narrativa (―couvade‖, ―quiyumucon‖ ou ―causa primeira‖, ―o ovo quebrado‖ e ―yorukon‖) em fontes secundárias citadas pelo autor, como Koch-Grünberg (2005), W. Roth (1915), W. Raleigh (1596) e R. Schomburgk (1848). Em ―An inquiry into the animism and folk-lore of the Guyana indians‖ (W.Roth, 1915), por exemplo, temos a presença de todos os mitos citados: ―couvade‖ como prática de isolamento e restrições aos pais que acabaram de ter um filho, comum a vários povos, entre eles, Wapishana, Macuxi, Arawak, Warrau e Carib; o ―ovo quebrado‖ como mito Carib onde a mulher, ao quebrar o ovo, que antes era do homem, o tem para si (capacidade de gestação); ―quiymucon‖ é um deus Carib, ―grande pai‖, ancião, ―causa primeira‖; e ―yorukon‖ é um espírito do mato que leva aquele que dorme para um passeio na floresta, gerando um sonho onde se visita o mundo porvir. Também presente em vários povos da região, ―yorukon‖ é, muitas vezes, um canibal (como para os Cayenne), ou aquele que traz problemas ao mundo, que traz a morte.

4. As Guayanas – mitopaisagens poéticas nos dormentes do Roraima

M.Bakhtin, tratando de ambiência narrativa, cunha o termo cronotopo – literalmente, tempo espaço – para descrever a intrínseca conectividade das relações espaciais e temporais na literatura: o salão em H. de Balzac seria exemplo forte de cronotropo, referência que levaria o leitor a situar, imediatamente, o romance. O autor empresta a expressão tempo-espaço da matemática e da física, retendo, de sua tecnicidade, a ideia do tempo como quarta dimensão necessária do espaço, elegendo-a categoria constitutiva da formalidade literária (M.Bakthin, 1990, p.84). Em The Sleepers of Roraima o cronotopo não situa, exatamente, mas parece ter efeito contrário: através de certo espaço – florestas, savanas, rios -, de que se compõe as próprias personagens, instaura-se o atemporal, que modifica inclusive as formas espaciais estáticas, misturando paisagens e pessoas. A localização temporal inicial das personagens é sempre demarcada de algum modo: todas elas vivem no final do séc. XX. Por exemplo, um óculos de sol americano cai de um avião e dá ao disfarce de Couvade um ―ar de pertencimento ao século XX‖; o narrador de ―I, Quiyumucon‖ situa exatamente o ano de 1970; e em ―Yorukon‖ ―era Páscoa na reserva indígena do século vinte e Yorukon tinha ganhado uma pipa de um missionário visitante, que navegou através do livro de espaço e continuou em seu sono em 558 páginas da psiquê; coral e ouro‖ (W.Harris, 1970, p.66). Apesar destas marcas, ou melhor, a partir delas, instaura-se a indeterminação temporal: sonhos mitológicos, na mitopaisagem poética das Guayanas. Em ―I, Quiyumucon‖ o tempo é um dos eixos principais da narrativa – já que este é o relógio Carib ou a ―causa primeira‖, sendo exemplar do ponto em questão. Trata-se de um início mítico, onde todos os tempos se entrecruzam: Este - o relógio dos Caribes conhecido como Quiyumucon ou Primeira Causa - foi a sombria mercadoria mais curiosa para venda na vau do homem cego. (...) Quiyumucon e Poli estavam dançando e pulando com a donzela guerreira em torno do relógio de sol e na sombra de flocos deles jazia o coração do camaleão da tribo, o relógio oscilante dos ancestrais capaz de conciliar o navio da ruína com o esquife estilhaçado de luz, a materialização de fósseis em um espelho de eclipse com a desmaterialização das trevas em um espelho de sóis. O relógio do navio era mesmo um deslizamento de memória conhecida como Primeira Causa, a vereda do cego. E foi esse ato do céu que primeiro pôs o badalar do sino no coração da catarata como doloroso sopro vivente administrado por Quiyumucon onde a primeira sombra de tempo, cortina ou cachoeira, lamentou e justificou a sua existência. Além do badalar do sino agora marcado no relógio da pedra, pêndulo do céu, como flecha olhando de relance, difundida e refletida na segunda sombra de tempo, floco pintado ou chuva de Quiymucon. Era um ganho de redução de escala para a qual todas as coisas agora lamentaram e dançaram. O floco de Quiyumucon da Primeira Causa virou num grão de areia, como a sombra de uma formiga. E assim começou a andar incontáveis horas na face do relógio da natureza. Horas que secretaram para si mesmas uma redução infinita da marcha fantástica de eventos através do deslizamento do sol. Embora o mastro de Poli tenha sido uma vez o topo de uma montanha vivente atingida por um raio de Quiyumucon e assim como o ato do céu correu para o mar, varrendo tudo em seu caminho, Poli se tornou um receptáculo das forças da terra que fluiam através dele - exceto que, no choque da translação, ele era uma cesta ou peneira que reteve apenas uma sombra de memória, a sombra de areia como a dança da história. (W.Harris, 1970, p.54-55)

Temos, na expressão do autor ―fábulas da história‖, duas ideias de tempo, este que, segundo o próprio, é o ―anfitrião supremo da ficção‖ (W.Harris, 1974, p.2): o primeiro, fabular, oral, é cíclico, lugar do mito; o segundo, histórico, lógico e factível, é linear. Contudo, vê-se, na passagem acima, que estes não se separam nitidamente nas narrativas, ao contrário, misturam-se de modo surpreendente. Talvez seja através do espaço, que as ―portas para o imaginário mítico‖ possam se abrir, onde o passado e futuro são presentes, na ―vau do homem cego‖ (1974, p.39). 559

J.Overing (2004), em seu trabalho com os Piaroa, na Venezuela, cunha o conceito de mythscape, aqui traduzido livremente por mitopaisagem, onde a paisagem não é estática, como um pano de fundo, mas ―viva‖, em várias camadas móveis de significação – o encontro entre o mítico e a prática da vida cotidiana, através do espaço. Para a antropóloga, a percepção indígena de lugar é tomada pela memória; historia oral e mito. Pensar a literatura de W.Harris pressupõe um movimento de alteridade, de deslocamento da lógica ocidental para a indígena. Como coloca J.Maes-Jelinek, sobre os mitos nas narrativas de W.Harris: ―Os mitos são re-criados de dentro, de acordo com sua própria lógica interna, tanto que o autor às vezes aparece como mero instrumento do poder de auto-transformação deles‖ (1972, p.119). O sonho do ―dormente‖, nas narrativas de Harris, tem o sentido da viagem xamânica, onde ―o mundo dos sonhos é parte da realidade empírica‖, típica dos povos indígenas da região (Sá, 2009:192). As narrativas misturam sonho e ―realidade‖: ―É um sonho (...) Você o encontrará gravado – esse sonho – nas pedras e nas cavernas.‖ (W.Harris, 1970, p.16) – diz o avô a Couvade. Este, dormindo, entra na caverna dos ancestrais e inicia sua jornada – mas acorda e continua. Lúcia Sá (2009), ao pensar as obras de W.Harris, diz que ―(…) para entender o mundo narrativo de Harris, nós temos que olhar para a geografia que o engendrou – que é a região de Roraima.‖ (Whitehead, 2009, p.191). Diversas áreas do conhecimento (como a historiografia, antropologia, geografia) se utilizam do termo ―Guayanas‖, aproveitando a perspectiva deste macro-território sob uma ótica comum. A leitura que aqui se propõe considera fundamental, para a crítica literária sobre a região, as conexões que se podem fazer a partir de tal conceito. Ainda segundo Sá: ―Talvez nenhuma outra região na Amazônia tenha alimentado a imaginação literária tanto quanto a ―Guayana‖, a enrugada terra onde as fronteiras da Guiana, Venezuela e Brasil convergem.‖ (2009, p.185). Em tal espaço literário estão as narrativas de Wilson Harris. O início de ―Yorukon‖ apresenta um belo panorama: A reserva indígena do vale do sono repousava em uma savana aberta do interior. Arbustos raquíticos e árvores ocasionais pontilhavam esta savana – longas milhas e selvagem - entre as montanhas, onde uma grande floresta começava e rolava interminavelmente para o mar. A partir desta distância nua - no meio do vale - estas florestas apareceram como espuma preta de nuvem pintada. (W.Harris, 1970, p.65)

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O guácharo, pássaro típico dessa região amazônica, pode ser tido como chave de leitura para a jornada de Couvade e talvez sua própria imagem. Este pássaro é cego – com ecolocalização como os morcegos e golfinhos – frutívoro e noturno. "Eles sonhavam – eles sonhavam a floresta crescia preta como a caverna e as estrelas foram extintas. Tudo o que podiam ouvir era o som de asas multiplicadas como o trovão de uma cachoeira. " (...) Couvade continuava a escutar às vozes ancestrais da cachoeira e da floresta. Ele sabia do pássaro Guácharo - como seus reflexos misteriosos (visão penetrante e asas ecoantes) o guiavam através das mais escuras cavernas subterrâneas. Vivia no fundo da terra, onde não havia uma pitada de luz. Nunca voava fora até escurecer. Carregava uma estrela em suas asas, que os índios chamavam de ‗olho da noite‘ ..." (W.Harris, 1970, 16) "... Ele tinha entrado na caverna dos ancestrais e estava aprendendo a se ver com os olhos da noite. A caverna dos ancestrais, onde nada era novo debaixo do sol e ainda tudo era mascarado e estranho. A caverna era muito velha - velha como as entranhas - velha como o pássaro Guácharo: era muito jovem - jovem como espaço - (...) "(1970, p.20)

As vozes ancestrais da cachoeira e da floresta o levam à caverna dos ancestrais, que é velha e jovem e onde nada é novo sob o sol. F.Darroch diz que ―as descrições animísticas de espaço (...) proporcionam ao leitor um sentido de memórias assombradas que se manifestam no corpo de ambos, pessoas e paisagens‖ (2009, p.8). Com uma estrela debaixo da asa, descobrindo o fundo subsolo da memória, os olhos da noite são também os de Couvade: o questionamento de regras sociais, a procura dos pais, busca de pertencimento, eu e outro que se confundem em infindo jogo de reversos. O final na narrativa, em movimento circular, fecha em aberto – da pergunta não há resposta, senão a própria ―travessia‖ (para lembrar J.G.Rosa): "NAQUELE MOMENTO COUVADE DEU UMA OLHADA PRA CIMA E LÁ, NO ALTO DO TETO DA CAVERNA PINTADA, O LAGARTO SORRIU PARA ELE EMBAIXO. SEUS OLHOS PARECIAM MUITO AMIGÁVEIS E MUITO SÁBIOS. DEU COM A CABEÇA UMA BALANÇADA LEVE COMO PARA DIZER, ―PESCADORES DA NOITE, CAÇADORES DA NOITE, LUGAR DO TUCANO, LUGAR DO PEIXE, LESTE, OESTE, INIMIGOS, AMIGOS‖. Então SACUDIU O RABO COMO A PENA DO TUCANO E FALOU. "O nome que você carrega", o lagarto disse a Couvade, 'significa o dormente da tribo." E desapareceu. "(W.Harris, 1970, p.36)

No caso deste lagarto, a personificação é evidente – (durante toda a narrativa, não só no final) ele aparece como transmutação de seu avô, mais compreensivo que este. Mas 561 não é sempre assim. Inúmeras vezes – como no caso do pássaro Guácharo, é de outra forma que a natureza se apresenta ao leitor. O espaço geográfico – com sua flora e fauna – assume, na linguagem, corpo próprio – e vago. Nas palavras de M. Gilkes, em entrevista com W. Harris: ―... me parecia quase como se a paisagem estivesse escrevendo a novela e a novela que estava sendo escrita era sobre a paisagem. (...) Ao longo desses anos, Harris engajou-se na formação de conexões entre paisagem e linguagem pautadas pela ―lógica do sensível (LÉVI-STRAUSS, 1962/2009), conexões essas bastante distintas de um representativismo que informaria, por exemplo, a suficiência de dizer que uma ―árvore é verde e um ―rio é negro. (...) É impossível falar sobre paisagem em seus romances sem falar sobre linguagem (…) uma conexão íntima (…)‖ (Maes- Jelenik, 1991, p.32-34).

A linguagem é também construída através do espaço, em vários níveis. A floresta, por exemplo, em sua impenetrabilidade, pode ser lida (sugestão do próprio autor) como a notável densidade do plano linguístico. Harris afirma que ―A paisagem é viva, é um texto em si mesmo, é um texto vivo (…), a linguagem (…) vindo (…) de fora, da terra mesmo, dos rios, das florestas.‖ (1991, p.33).

L.Sá conceitua a ―Guayana‖ como espaço literário fundamental para cada país deste macro-território, onde encontram-se tradições culturais que possibilitaram uma oposição criativa aos padrões coloniais. Tanto W.Harris como Mário de Andrade rompem com a representação unitemporal (ou espacial) da mitologia indígena, pelas tradições europeias. ―Guayana tem desempenhado um duplo papel, fundamental nas literaturas nacionais da Venezuela, Guiana, e Brasil. Por um lado, este lugar-conceito é o ―coração das trevas‖ da nação, o ―mundo perdido‖ que precisa ser incorporado ao mito de fundação. É também, no entanto, a fonte das tradições culturais e literárias que possibilitaram Wilson Harris, e Mario de Andrade antes dele, questionar esses mesmos mitos, a unidirecionalidade do tempo e a integridade do indivíduo burguês, como suas narrativas demonstram. Em vez de um mundo perdido do passado, Guayana poderia, nesses termos, ser lida como o berço da narrativa moderna na América do Sul‖ (Sá, IN:Whitehead, 2009, p.193)

Os ecossistemas da região 'circum-Roraima', trazidas para a atemporalidade mítica da narrativa – mitopaisagens poéticas – não são mais um elemento, mas o próprio sujeito da narrativa. Não apenas imagem, tempo ou espaço da ação – os rios, savanas e montanhas, unidades de tempo-espaço, ―fragmentadas e imprevisíveis‖, estão em todos os elementos narrativos, como um personagem em si mesmo (Murray, 1997). Notável é, em ―Yorukon‖, a comemoração catársica que enreda ―todas as coisas e espécies‖, ―em vaso de 562 fogo‖ – ―cerâmica da terra‖, onde o vale brinda aos caçadores de ossos (Caribs mortos pelas guerras e colonização): ―(...) o último repúdio dos Carib naquela batalha da savana, comemoração que subiu em vaso de fogo: tal música de cor que envolveu a savana no mar, a montanha no vale, a floresta na caatinga: tigela da terra, cerâmica da terra, brinde do vale pelos caçadores de ossos que haviam bebido antes da tigela do mar. Tal comemoração de cor – tal projeto de sensação – tal festa de sensibilidade – envolveu todas as coisas e espécies em um quebra-mar de reflexão, se estendendo desde a harpa do mar até a pipa do vale.‖ (W.Harris, 1970, p.69)

Tal ―protagonismo‖ da paisagem o próprio W.Harris bem resumiu, quando refletindo sobre sua literatura. Como topógrafo, contratado pelo governo da Guiana para mapear as bacias hidrográficas do interior, Wilson Harris adentrou a floresta, mas ―o interior, em efeito, o mapeou‖ (Murray, 1997, p.1-2).

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PRODUÇÃO CULTURAL EM RONDÔNIA: A SIGNIFICAÇÃO DO COTIDIANO PELO VIÉS LITERÁRIO GeaneValesca da Cunha Klein216 Giséle Manganelli Fernandes (Orientadora)217 Resumo A abordagem temática situa-se sobre a produção cultural em Rondônia, pelo viés literário. É de conhecimento que o referido estado tem formação social, política e histórica recente e em construção; do que advém que seus aspectos linguísticos e culturais também o sejam. Apesar de não contar com ―grandes autores‖, obras de grande tiragem ou consideradas canônicas, existe produção regional crescente e pertinente para análise. Tal proposta justifica-se dada à escassez de estudos que evidenciem a literatura produzida no estado de Rondônia, além do pouco conhecimento e difusão no próprio estado daquilo que nele é produzido e que, em última instância, veicula significados culturais, simbolicamente representados pela linguagem trabalhada literariamente. O intento é chegar à percepção do retrato regional e das identidades construídas e veiculadas pelos textos produzidos no estado de Rondônia para serem consumidos como literatura. É problematizada a situação da literatura em Rondônia, partindo de uma definição da própria literatura, passando pela noção de regionalismo e sua correlata construção de identidades, bem como da afirmação da identidade nacional por meio de textos de caráter regionalista. Nesse entremeio, as ideias de temporalidade, história e espaço são também redimensionadas e discutidas. Palavras-chave: Literatura; História; Identidade.

Abstract The present study is about the cultural production in Rondônia, by the literary bias. As known, Rondonia has a recent social, political and historical formation and which is still under construction, what comes to their linguistic and cultural aspects are also. Despite there aren´t ―great authors", nor large literary works or considered canonical, there is growing regional production and relevant for analysis. This proposal is justified by the lack of studies that shows the literature produced in Rondônia, beyond the slight knowledge and dissemination within the state of what it is made and, ultimately conveys cultural meanings, symbolically represented by language crafted literarily. It aims to get the perception of the regional portrait and the identities constructed and conveyed by the texts produced in Rondônia to be consumed as literature. It questioned the status of literature in Rondônia, through the concept of regionalism and its related construction of identities and the assertion of national identity through texts regionalist character. In between, the ideas of temporality, history and space are also discussed and revisited. Key-Words: Literature; history; identity.

1. A situação da literatura em Rondônia Não há unanimidade quando o tema é Literatura de Rondônia, haja vista a própria construção espacial, histórica e social recente e emergente. As obras produzidas, muitas vezes, pendem para o retrato da realidade, em um misto de história enquanto registro e de ficção como interpretação dos fatos. Afora todos os problemas que os escritores encontram, desde falta de recursos para custear as publicaçõesaté dificuldade em ser

216Doutoranda em Letras pela Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖ – UNESP/São José do Rio Preto e Professora Assistente II na Universidade Federal de Rondônia – Unir/Porto Velho 217 Doutora em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela Universidade de São Paulo e Professora Adjunto II da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP/São José do Rio Preto 565 recebido pelo público leitor, o fato é que há produção cultural local esperando para ser conhecida e reconhecida.Dada à precocidade da ocupação do estado, ainda são poucos os estudos a evidenciarem as produções literárias regionais. Por igual motivo, limitada é a difusão de tais produções que, em última instância, veiculam significados culturais, simbolicamente representados pelo viés literário. Antes, porém, de tratar da Literatura Rondoniense é preciso delimitar o que se convencionou chamar de literatura. Tal conceito tradicionalmente remonta às obras canônicas e consagradas pela crítica e, contemporaneamente, tem se tornado mais elástico passando a se definir não pelo fato de ser ficcional ou ―imaginativa‖, mas porque emprega a linguagem de uma forma peculiar. Segundo essa teoria, a literatura é a escrita que, nas palavras do crítico russo Roman Jakobson, representa uma ―violência organizada contra a fala comum‖, afastando-se sistematicamente da fala cotidiana. (EAGLETON, 2003, p. 02) Pensar a construção da significação do cotidiano pelo viés literário em Rondônia equivale alançar um olhar demarcador das características de ―violência organizada contra a fala comum‖. Afinal, o literário é reconhecível pela desconformidade, descompasso entre o significante e o significado, e estranhamento graças ao qual ―todo o mundo cotidiano transforma-se, subitamente em algo não familiar‖ (EAGLETON, 2003, p. 05). Não há uma essência puramente literária, logo não é problema incluir obras não canônicas sob tal nomenclatura, a dificuldade reside em encontrar produções nas quais a fala ordinária se desestabilize organizadamente, fazendo deslizar os significantes, produzindoo estranhamento das formas e a proliferação de sentidos diversos e alternativos. Um mapeamento das produções literárias no estado tem sido realizado pela equipe do projeto Mapa Cultural de Rondônia e A análise da produção literária realizada em Rondônia mostra, quando se trata dos autores mais antigos, uma incipiente e às vezes ingênua visão do ofício literário (...) Não há nela também traços de uma cultura regional, mesmo porque esses traços inexistiam, visto ter sido produzida num contexto de intensa migração. (...). Constata-se nela do ponto de vista formal acentuada preocupação emotiva em detrimento das causas e estruturas estéticas. Cultivada por médicos, jornalistas, engenheiros, homens públicos e educadores que de um modo ou de outro se ocupavam de constituir um universo cultural que os ambientasse e fortalecesse neles o sentimento de humanidade e de cultura. (grifo nosso) (DUARTE, 2007, n.p.) A necessidade de construir um universo cultural agregador das diferenças e capaz de justificar a própria existência dos sujeitos que passaram a ocupar o espaço hoje conhecido como Rondônia orientou as escritas ao retrato das experiências existenciais de 566 cada um. Em função disso, grande parte das produções mais antigas, e parte também da contemporânea, trata da questão das identidades. Tais escriturasevidenciam aspectos telúricos e identitários, exaltando os pioneiros e a coragem dos desbravadores e colonizadores, expondo as ―aventuras‖ vividas, as dificuldades enfrentadas, as superações das barreiras naturais e impostas pelo próprio homem no seu afã de colonizador. Uma análise geral das obras escritas e difundidas em Rondônia revela a constância da formação cultural e identitária do estado, que ainda passa pelo processo um tanto mítico de construção de figuras heroicas. Tal processo ocorre nas mais diferentes regiões porque as produções culturais e literárias ao passo que retratam o tipo e a cor local, também delimitam os contornos do próprio espaço. 2. O tempo na constituição da Literatura Rondoniense Um texto não se descola das práticas culturais que o circundam, pois a autoria é uma função de individuação, historicamente determinada queregula a injunção à unidade e à coerência, fazendo com que o autor se coloque na origem do que diz e agrupe coerentemente seu discurso, historicizando-o. Vale ressaltar que―a função-autor se realiza toda vez que o produtor da linguagem se representa na origem, produzindo um texto com unidade, coerência, progressão, não contradição e fim. (...) a função de autor é tocada de modo particular pela história.‖(ORLANDI, 1996, p.69). Assim, pode-se afirmar que todo texto se alimenta de elementos radicados social e historicamente, embora os textos literários e os atos de fala ordinários não possuam uma face equivalente em termos de "situação de enunciação". Em atos ordinários os enunciados remetem a contextos perceptíveis enquanto que a enunciação literária elabora seu cenário por meio de relações textuais internas. Isto faz ruir a noção de "situação de enunciação" ancorada nas dimensões pessoal, espacial e temporal. Apesar dessa particularidade, um texto literário, com maior ou menor intensidade, sempre se alimenta do real, que também foi modificado pelos textos que nele circularam antes. Segundo Maingueneau, "contrariamente ao que deixa entender um certo imaginário romântico, o texto literário não é uma "mensagem" circulando da alma do autor à do leitor, mas um dispositivo ritualizado, no qual são distribuídos papéis"(1996, p.17). É primordial não reduzir o "autor" a um locutor comum e, ao mesmo tempo, não dissociar tais figuras: oenunciador não é aquele que fala, mas um lugar do qual se fala - em um mesmo texto podem conviver diferentes posições de sujeitosem cair em incoerência, pois a unidade ou agrupamento destas posições diversas num todo coeso é construída pela função-autor. 567

A literatura como forma de pensar corresponde a uma mentalidade, testemunhando um tempo e adequando-se a procedimentos estéticos nele vigentes. Toda produção estética de um escritor corresponde a construções de uma mentalidade que gerou e é gerada pela literatura.Afirmar que a literatura inscreve-se no tempo não equivale a colocá-la na necessidade de representação da realidade, pois a escrita trabalhada literariamente insere a produção na história cultural sem se ocupar de mostrar o ―real‖. Na medida em que são utilizados recursos diferenciados, a linguagem se ―desfamiliariza‖, os vínculos espaciais e temporais tornam-se elásticos, desencadeia-sea transtemporalidadetextual. Essa possibilidade de permanência advém da particular relação entre sociedade, história e literatura, pela qual o texto literário não retrata a realidade, mas a transforma, usa- a como modelo para arquitetar mundos ―fantásticos‖, cuja existência só é possível textualmente - pela metáfora, caricatura, alegoria e verossimilhança. Embora grande parte das produções regionais de Rondônia tenha feito essa correspondência entre literatura e realidade de maneira muito direta, percebe-se uma crescente modificação da escrita e do modo de se pensar/fazer literatura. Na produção dos últimos anos é possível perceber uma tendência nova, mais informada estética e literariamente e, de certo modo, mais coesa e organizada, mesmo que não se constitua ainda num sistema ou apresente lastro para ser absorvida, com raríssimas exceções, pelo sistema literário mais abrangente. São essas raríssimas exceções e seu intento implícito de inserção no sistema literário nacional que torna aceitável e mesmo desejável um olhar distinto sobre ela, pois tratam-se de vozes que esboçam um olhar e um discurso ao mesmo tempo local e universal.(PEREIRA, 2013, n.p.) É possível que tal modificação tenha ocorrido em função do entendimento de que um texto é literário pela sua capacidade de ―pairar‖ sobre o tempo, ultrapassá-lo por definição. Além disso, contemporaneamente vive-se a chamada ‗heterogeneidade multitemporal‘, havendo diferentes sociedades coexistindo no mesmo tempo presente com distintos tempos históricos do moderno. Rondônia, desde o princípio de sua ocupação, fez-se da miscigenação, sendo que até os dias atuais as populações tradicionais ribeirinhas e as comunidades indígenas sobrevivem ao lado de toda a modificação e impacto social, econômico e geográfico advindo, em especial, da construção das grandes usinas hidrelétricas de Santo Antônio e Girau – responsáveis por novas levas de migrantes e imigrantes. Os contínuos fluxos migratórios, a constante presença de ―estrangeiros‖, a perpetuação do presente - consequência de ser um Estado em que os habitantes em geral emigraram sem pretensão de fixação permanente - torna enfática a relação que se 568 estabelece entre identidade e alteridade no processo de subjetivação. Segundo Orlandi, da "contradição inerente à noção de sujeito deriva uma relação dinâmica entre identidade e alteridade: movimento que, ao marcar a identidade, atomiza (separa) porque distingue, e, ao mesmo tempo, integra, porque a identidade é feita de uma relação" (1988, p.10).A forma com que se entrelaçam identidade e alteridade no discurso produz efeitos particulares na constituição do sujeito. Nesse movimento, os textos que tratam de questões identitárias evidenciam a contradição entre o ser um sujeito-em-si e o ser-se estranho, procurando encontrar a fixação, a completude, o inteiro; mas deixando-se deslizar nas não- coincidências. 3. Literatura e identidade em Rondônia De antemão, deve-se ponderar que a identidade não é imediata, não corresponde a etiquetas ou rótulos obtidos, mas constrói-se simbólica e socialmente. É sempre relacional, dependente de seus pares opositores – motivo pelo qual ―No mundo contemporâneo, fala- se, cada vez mais, de identidades plurais, ou, ainda, de identificações, que teriam o caráter provisório porque em constante devir‖ (FIGUEIREDO & NORONHA,2005, p. 189).No debate sobre as questões de identidades, Stuart Hall tem sido um dos colaboradores mais profícuos. Figueiredo e Noronha (2005) recuperam a perspectiva de Hall, o qual considera queas discussões sobre identidade foram orientadas historicamente portrês concepções de sujeito, a saber: iluminista, sociológico e pós-moderno. A primeira percepção surgiu em fins do século XVIII e trata-se de uma visão de sujeito centrado, dotado de uma identidade particular e autêntica. A segunda noção é concomitante ao nacionalismo moderno: o indivíduo não é mais autossuficiente, mas dependente de outros indivíduos (mediadores) que transmitem dialogicamente valores, sentidos e símbolos culturais. Na segunda metade do século XX, surge o sujeito pós-moderno como ser fragmentado, cindido, que vive sem identidade fixa, essencial ou permanente e que ―assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‗eu‘ coerente‖(HALL apud FIGUEIREDO & NORONHA, 2005, p. 191). Conforme apontado anteriormente, a literatura produzida em Rondônia, em grande parte, fixa-se em abordagens históricas, mixando realidade e ficção, relegando a um plano secundário os cuidados com as formas da linguagem e os diferentes recursos estilísticos. Essas primeiras produções pareciam responder a uma necessidade de inscrição das produções no espaço e no tempo, fixando sentidos e referenciando identidades, crenças e costumes que poderiam responder ao que é ser rondoniense.Em crônica intitulada ―Rondônia de Luz/Terra de Cores‖, Teixeira (2012) faz um relato da saga vivida por ela e 569 seus familiares na ocasião da vinda para o estado, sempre exaltando características como esperança, felicidade, autoconfiança, destemor – todas necessárias para obtenção da recompensa: ―E mesmo que não estejamos imortalizados em bustos, estátuas ou poemas, por sorte encontraremos o pote de ouro no fim do arco íris. Mas tem que ter fôlego!‖ (p. 70)

Considerando-se que a identidade se afirma e se constrói na diferença, na marcação de fronteiras entre o que ―pertence‖ e o que ―não pertence‖, entende-se que a busca de uma identidade aproxima as pessoas e as marca com características comuns.As visões de espaço e fronteira vinculam-se diretamente à formação de uma identidade local, regional ou nacional. Ao reafirmar a brasilidade do rondoniense delimita-se a diferença entre os brasileiros e os outros, conferindo àqueles a execução de atos de bravura e a estes um papel secundário e menos importante.Exemplar da relação história e literatura é a obra ―Madeira- Mamoré: o vagão dos esquecidos‖, de Antônio Cândido da Silva. O livro é escrito em forma de epopeia e, segundo seu prefaciador, Organizando sua obra em perfeita ordem cronológica, seguindo rigorosamente o desenvolvimento dos acontecimentos históricos em torno da legendária linha férrea, o Autor consegue conduzir o leitor, passo a passo, pelos intrincados caminhos que ligam a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré às mais distantes paragens do mundo, da Europa à Oceania, da América do Norte à América do Sul, do Canal da Mancha aos Mares do Caribe, nada deixando escapar em termos de detalhes que cercam o objeto de sua epopeia. (2000, n.p.) O prefácio da obra em questão leva à produção da leitura numa determinada posição, pois é o prefácio, enquanto verdadeiro operador discursivo, que estabelece as condições para que determinados efeitos de sentidos se efetivem. É neste lugar que se encontram as condições em que a escrita torna-se texto – entendido como possibilidade/sustentáculo do discurso, produzido sobre uma discursividade que apresenta fatos com relevante conceito moral e atos heroicos de uma saga mítica.Outro aspecto que chama a atenção neste prefácio é um lugar de contradição: o prefaciador informa que a epopeia guiará o leitor ―pelos intrincados caminhos que ligam a Estrada de Ferro Madeira- Mamoré às mais distantes paragens do mundo‖, ao mesmo tempo em que todo o texto apresenta forte marcação histórica, temporal e geográfica. Ou seja, primeiro se apaga a diferença pela orientação de leitura via universalidade e, num segundo plano, a voz da diferença desponta na singularidade do cenário e das personagens que aparecem na epopeia.O quadro discursivo é paradoxal: por um lado pretende fazer falar a literatura maior, universal, através da menor, a regional; por outro lado, intenciona ressaltar a existência de algo singular, que não se mescla, que se diferencia e se mostra como não- 570 coincidente. Nesse movimento, a obra, como várias outras, evidencia a construção do espaço de Rondônia, ao mesmo tempo em que procura desenhar seus ocupantes, definindo contornos específicos a esses personagens, procurando estabelecer uma identidade comum.Esse anseio por construir representações identitárias regionais, na maioria dos estados brasileiros, ocorreu em fins do século XIX e princípio do século XX, concomitante à criação e consolidação do Brasil como um Estado-nação moderno.Nesse período, em Rondônia, iniciavam-se as investidas de construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, bem como a ocupação do estado, a partir assinatura do Tratado de Petrópolis, em 1903.

A consolidação tardia como estado da federação, os contínuos movimentos de ocupação e exploração e até o meio inóspito acabaram por fazer com que esse movimento de construção identitáriase prolongasse, tornando-se presente ainda nas produções contemporâneas.A emergência de regionalismos, segundo Oliven (1992), ressalta as diferenças entre regiões, mas o faz tendo em vista construir identidades próprias. Dessa forma, ao se definir distintivamente em oposição aos demais sujeitos brasileiros, residentes em outras regiões, os textos exaltam a formação do estado por pioneiros heróis, que desbravaram a natureza e venceram as adversidades. Contudo, a construção de uma identidade particular, regional, ao contrário do que se poderia supor, não exclui a identificação com algo maior, que teria a ver com o sentimento nacionalista, a ideia de brasilidade. Em Rondônia, assim como no restante do Brasil, o nacionalismo funda-se na miscigenação étnica-cultural e na fusão ―harmônica‖ de raças e culturas. A justaposição é vista numa perspectiva pragmática de composição do ―mosaico cultural‖: absorve-se o que cada um tem de melhor e usa-se tal conhecimento para promover adaptação às novas e diversas situações vivenciadas no contexto amazônico, definindo contornos regionalistas.

Em Rondônia, formado por habitantes oriundos de outras regiões do Brasil, a perspectiva de mosaico cultural é bastante acentuada. Interessante exemplo encontra-se no cordel ―Um repente para Rondônia‖, de Albuquerque (2012), composto por 29 estrofes, nas quais são evidenciadas as diversas origens do rondoniense, caracterizado, sobretudo, como povo trabalhador e destemido. Veja-se a 7ª estrofe: ―Sempre que alguém pergunta / Que povo é esse que veio / Que do trabalho, da terra / Não tem medo, arreceio. / Eu respondo, olhe em volta / Pois gente é brasileira, / Veio de todo o Brasil / Pro Mamoré e Madeira‖. Ao definir que os sujeitos ocupantes desse espaço são ―gente brasileira‖, evoca- se da memória coletiva o sentimento de nacionalidade e de brasilidade, enaltecendo características positivas e denegando as negativas. Sabe-se que poucos eram os rondonienses de nascimento no momento em que surgiram as primeiras publicações e que, 571 mesmo nos dias atuais, a presença de emigrantes ainda é intensa. A 25ª estrofe do cordel aponta que também fazem parte da constituição da cor local aqueles que nasceram em outras terras: ―Mesmo os que aqui não nasceram –/ Rondonienses também – / A história conta e nos diz, / Ela não livra ninguém.‖ Aos olhos de tantos que escrevem sobre Rondônia, evidencia-se a ideia de que se trata de um Brasil dentro do Brasil, o qual precisa ter sua identidade definida e divulgada. As figuras que permitem a reapropriação do mito são os pioneiros, ―gente de paz e ordeira‖, conforme versos do cordel:―Agora passo a contar, / Do Mamoré ao Madeira, / A história desta Rondônia, / Gente de paz e ordeira. / Trabalho deu bom recado, / Mostrando sua bandeira / No progresso há deixado / A marca que é de primeira‖. Como se percebe ao longo de todo o cordel, e em especial nos dois últimos versos da 13ª estrofe, o sentimento de nacionalidade é exaltado pelo viés regionalista: ―Me sinto mais brasileiro / No Madeira e Mamoré‖. A relação entre identidade nacional e regional explica-se pela forma com que se deu a efetiva ocupação do estado de Rondônia, na época Território Federal do Guaporé. Vale lembrar que em 16 de julho de 1970 o Presidente Médici instituiu, por meio do Decreto-Lei nº1106, o Plano de Integração Nacional – PIN, tendo em vista preencher os vazios demográficos do país. Nessa mesma época, o nordeste brasileiro havia sido assolado por grandes secas que levaram muitos nordestinos a imigrar para a região norte, recebendo incentivo do governo que veiculava os lemas "integrar para não entregar" e "uma terra sem homens para homens sem terra".Os sentimentos de integração, defesa do território, delimitação de fronteiras e defesa da pátria contribuíram também para a construção da identidade nacional, uma vez que com tal atitude ―o governo foi capaz de mobilizar o sentimento nacionalista, neutralizando a esquerda nacionalista ao mesmo tempo em que permanecia basicamente cosmopolita no seu caráter, já que inclusive essa colonização da Amazônia implicaria numa maciça participação estrangeira‖ (VELHO, 1975, p. 213). Da 12ª à 23ª estrofe, são indicados os vários estados ou regiões brasileiras das quais os povos migraram para construir o Território Federal do Guaporé. O somatório dessas diferenças define a identidade nacional enquanto construção estereotípica, que busca definir um sujeito centrado, particular e autêntico – muito próximo à visão de sujeito iluminista, descrito por Hall. Tal construção identitária decorre do movimento de assumir a nova condição como definidora de sua própria subjetividade, assim mostrada claramente na 18ª estrofe:―Estado de Mato Grosso / Foi donde vim eu também, / Pra não deixá-la 572 chorando / Comigo trouxe meu bem. / Mulher com um na barriga, / Dois lhe agarrando no pé, / Agora somos caboclos / No Madeira e Mamoré‖. Conforme Padoin, a construção da identidade nacional decorre das relações de poder de grupos e/ou regiões hegemônicas em relação às outras. Assim sendo ―o grupo vencedor será também o mentor do imaginário vencedor‖, que estende a noção de região a todos, tornando-a nacional. ―A identidade nacional seria a transformação de uma identidade regional, que deixa de ser grupal, individual para ser coletiva e geral‖ (1999, p.369). Isso decorre da evidência de que, como o nacionalismo, o regionalismo tem diferentes facetas e representa posições de grupos bastante distintos. O processo pelo qual se constituem as identidades sociais é análogo ao processo político de definição de territórios: ambos derivam das mesmas estruturas de poder. Era preciso garantir que todo o passado tumultuado de construção da estrada de ferro Madeira Mamoré - primeiro pelos ingleses, depois pelos americanos - fosse amenizado e que a imagem negativa do local fosse trabalhada. Em documentário disponibilizado no You Tube, sob o título ―Ferrovia Madeira Mamoré‖, tem-se uma boa visão dos percalços vivenciados. Segue a transcrição de trecho do vídeo que expõe os problemas enfrentados pela Public Works e que a fizeram solicitar indenização pelas perdas advindas do investimento fracassado.

O pesadelo começa no dia 6 de julho de 1872 quando chega a Santo Antônio um grupo de 25 engenheiros da Public Works. Os ingleses trazem equipamentos e material para assentar 36 km de trilhos, mas logo são atacados pela malária, pela varíola, pelos índios. É um mundo estranho que mata os intrusos. O calor e a umidade da floresta sem fim. Os mosquitos, os infernais e invencíveis mosquitos. Cachoeiras tragando barcos com tripulações inteiras. Em dez meses os ingleses da Public Works abandonam Santo Antônio sem assentar um único metro de trilho. Em Londres, há pânico na bolsa de valores. A empreiteira pede indenização alegando em juízo que a região das cachoeiras do Madeira é uma zona de podridão, ‗um antro de podridão onde os homens morrem como moscas porque o traçado da estrada corta região de pântanos e rochas e na qual, mesmo dispondo-se de todo o dinheiro do mundo e de metade de sua população seria impossível construir a ferrovia. ‘ Essa visão do local como ―antro de podridão onde os homens morrem como moscas‖ urgia ser redefinida para que o espaço vazio na geografia brasileira fosse ocupado, a segurança nacional fosse fortalecida e estivesse garantida a extração de minérios e outros produtos de interesse econômico. Para a integração do território ao restante do Brasil era indispensável a valorização dele e dos homens que viriam a ocupá-lo.A ideia de trabalho sempre foi forte em governos militares, que a propagavam como a alavanca do progresso. Ao lado dos lemas ―em se plantando tudo dá‖ (remontando a Carta de Pero Vaz de Caminha), dar ―terras sem homens para homens sem terras‖ e dispostos a trabalhar pela 573 unificação do país, fazendo o movimento de ―integrar para não entregar‖, foi construindo- se a imagem dos destemidos pioneiros que desencadearam o processo de colonialismo interno.A 8ª estrofe do cordel de Albuquerque retrata esse caráter heroico, lembrando ao leitor que todo indivíduo que não se encaixa no perfil idealizado, acaba por ser ―mandado embora‖. Veja-se: ―Se tem trabalho na terra / Para quem quer trabalhar, / Estudo se faz presente / Se você quer estudar. / Malandro aqui não se cria, / Quer seja homem ou mulher, / Expulso, foge de vez / Do Madeira e Mamoré.‖ Idealiza-se, pelo viés narrativo, um tipo almejado que, entretanto, não encontra um correspondente real, pois todo local tem seus ―malandros‖ que fogem ao conceito heroico preconizado pelo cordel.Nesse processo, as representações escritas, ao mesmo tempo em que procuram fixar homogeneamente um tipo sujeito, deslizam e demonstram que isto a que se procura definir como identidade rondoniense é efeito de uma heterogeneidade constitutiva.Veja-se a 11ª estrofe:―Eu vim do nosso país / Eu vim do país inteiro, / Sou filho e faço parte / Deste Brasil brasileiro / Inda que saudade doa, / Me sinto em casa, até, / Fiz pouso às margens dos rios / Madeira e Mamoré‖. Ao evidenciar ―me sinto em casa, até‖ fica implícito um sentido que deve ser recalcado, de certa desconformidade entre toda a exuberância atribuída ao estado e de toda a força que o sujeito faz para integrar-se a ele, e o saudosismo que carrega consigo, de outras paragens, de outras gentes, de outras formas de vida. Entretanto, esse sentimento logo é recalcado e volta-se a enfatizar o ―pouso às margens dos rios Madeira e Mamoré‖.Com isso, vislumbra-se que todo efeito de sentido fixado ocorre perante o recalcamento de outros e que o processo de construção não é unidirecional, ao se constituir, ao referir-se a si, segundo certos processos de identificação, o eu da enunciação subjetiva-se em meio às múltiplas formas para chegar a fixar uma. O ―Poema para o Território Federal do Guaporé, hoje Estado de Rondônia, e seu povo‖, de Carmem Veloso Boucinhas, na quinta estrofe aponta para a múltipla formação do povo que habita as terras de Rondônia:―É gente de toda parte/ Numa confusa mistura. / Uns vêm mesmo pra ficar, / Outros vêm por aventura, / Uns se enriquecem depressa, / Outros só de passo à passo: / Alguns conseguem sucesso, / Outros tremendo fracasso‖. Entretanto, esta fluidez é desfeita já na estrofe seguinte, quando há uma aproximação de todos os que compõem a ―confusa mistura‖, por meio dos predicativos ―forte‖, ―bom‖, ―corajoso‖, ―destemido‖:―É um povo forte e bom, / Corajoso e destemido. / É povo agarrado à terra, / Como um corpo reunido. / Precisa ser conhecido, / Pelo valor que ele encerra. / Se tornando um rico exemplo, / Para o resto desta terra.‖ 574

Ao integrar a ―confusa mistura‖ em um ―povo agarrado à terra‖ administra-se a pluralidade e naturaliza-se a formação de um ―corpo reunido‖, que ―precisa ser reconhecido‖ e transformado em ―rico exemplo‖. Essa fixação do sujeito numa posição (supra) valorativa equivale a uma representação estereotipada que oscila entre o medo e o desejo da diferença. Afinal, é incômoda a ideia de um corpo esfacelado, espedaçado, sem coerência. Outro ponto a ser destacado diz respeito ao desejo de ser reconhecido pelo outro – ―Precisa ser reconhecido / pelo valor que ele encerra‖. Tal desejo aponta para a dimensão imaginária em que a conquista da identidade se processa pela influência do olhar do outro, deslocando o sujeito para uma posição simbólica. Esse embate entre a fixação da identidade e o deslizar perante a multiplicidade mostrada das identidades é constante e contínuo. A situação de Rondônia não é única ou diferente de outros estados ou países latino-americanos, os quais ―são atualmente resultado da sedimentação, justaposição e entrecruzamento de tradições indígenas, do hispanismo colonial católico e das ações políticas educativas e comunicacionistas modernas‖ (CANCLINI, 2003, p. 73). A intensidade desse hibridismo é um processo natural, visto que ―O mundo ocidental está se mesclando de tal forma que parece não haver mais a possibilidade de se encontrar indivíduos absolutamente ‗puros‘ no sentido cultural, social, biológico e étnico‖ (BARZOTTO, 2010, p. 23). Contudo, a busca pela identificação ao sujeito iluminista - centrado, dotado de uma identidade particular e autêntica – é um efeito da interdição. É preciso esquecer todas as outras vias de constituição e manter atuais os discursos de fixação a fim de que a essência do processo de construção da subjetividade seja a transformação da história em natureza, o fato da "tradição" adquirir um estatuto natural - esvazia-se a história para que outra "história" seja produzida sob o efeito da homogeneidade. Considerações Finais As produções rondonienses apresentam estética marcada realista, em referência paródica da realidade e, muitas vezes, constituem-se de excertos de sagração mítica, sendo um dos pilares o mito do Eldorado ou El Dorado - uma antiga lenda que os índios contavam aos espanhóis na época da colonização das Américas.Outra constante é a reatualização da história da conquista e colonização do Brasil, pois o movimento de ocupação do estado deu-se nos mesmos moldes, em um processo de colonização interna. A condição de textualidade de grande parte das produções faz-se na apresentação de experiências de vida de quem enfrentou os mais variados infortúnios. É expressivaainda a quantidade de textos que retratam experiências pessoais aliadas às experiências de ocupação do território. Homem e terra muitas vezes se confundem no suor, nas lágrimas, no esforço. Pretende-se passar lições, ensinamentos, orientações aos 575 mais jovens que não vivenciaram tais adversidades, para que eles aprendam a honrar e valorizar a terra em que moram.Santiago (1978, p. 22)alerta para a evidência de que se um autor escrever ―somente sobre sua própria experiência de vida, seu texto passa despercebido dos contemporâneos‖. Contudo, de maneira positiva, tais experimentalismos podem ser vistos como formas de apropriação de modelos arquetípicos, uma vez que se considere que ―É preciso que aprenda primeiro a falar a língua da metrópole para melhor combatê-la em seguida‖ (SANTIAGO, 1978, p. 22). Vale ressaltar o processo de maturação das produções escritas em Rondônia neste começo de século XXI. Ainda que tais escritas remontem necessariamente a outras que vieram antes, o fazem não mais por mera reprodução, mas por assimilação. E ―Nada há mais original, nada mais intrínseco a si que se alimentar dos outros. É preciso, porém, digeri-los. O leão é feito de carneiros assimilados‖ (BARTHES apud SANTIAGO, 1978, p. 21).

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NARRATIVA ORAL EM DEBATE: UMA ANÁLISE ALÉM DAS PALAVRAS DO NARRADOR218

Maria Georgina dos Santos Pinho e Silva219

Carla Monteiro de Souza220

Resumo:As narrativas orais indígenas foram de grande influência para a composição cultural brasileira, e até os dias atuais divulgam os costumes, as crenças e as tradições das sociedades indígenas. É nesse sentido que as narrativas orais revelam uma flexibilidade que difere a cultura oral indígena de outras, e, ao mesmo tempo partilham que as histórias indígenas não são desprovidas de um padrão de organização, considerando que estão impregnadas de mistérios, sentidos e valores. Assim, este estudo tem por objetivo analisar a lenda ―O Morcegão”, contada no universo da Comunidade Indígena São Jorge-RR, com o intuito de refletir como as tradições culturais vivificam frente ao impacto cultural, além de revelar a performance221 do narrador ao contar as histórias presentes na sua memória.A performance narrativa pode dar ao narrador autoridade e reconhecimento perante à Comunidade, porquetraz à tona as lembranças da região, levantando discussões relacionadas à cultura e às práticas sociais, deixando rastros duradouros às gerações futuras, pois conhecer a cultura indígena faz parte da construção do respeito que se tem pelo outro.

Palavras-chave: Oralidade; Narrador;Performance.

Resumen: Las narrativas orales indígenas fueron de gran influencia para la composición cultural brasileña y hasta los días actuales divulgan las costumbres, las creencias y las tradiciones de las sociedades indígenas. En este sentido que las narrativas orales revelan una flexibilidad que difierela cultura oral indígenas de otras, y al mismo tiempo comparten que las historias indígenas no son privadasde un padrón de organización, considerando que están impregnadas de misterios, sentidos y valores. Así, este estudio tiene como objetivo analizar la leyenda ―O Morcegão” , contada en el universo da la Comunidad Indígena São Jorge- RR, con el fin de reflejar las tradiciones culturales fortifican el impacto cultural, además de revelar la performance del narrador al contar historias presentes en su memoria. La performance narrativa puede dar al narrador autoridad y reconocimiento antes a la Comunidad, porque trae recuerdos de la región, llevando discusiones relacionadas a la cultura y a las prácticas sociales, dejando rastros duraderos a las generaciones futuras, pues conocer la cultura indígena hace parte de la construcción del respeto que se tiene por el otro.

Palabras Clave: Oralidad; Narrador;Performance.

218 Este estudo é parte de uma reflexão iniciada em minha dissertação de mestrado ―Filigranas de vozes: performance dos narradores e o jogo de significados nas narrativas orais indígenas, sob orientação da Profª. Drª Carla Monteiro Souza (UFRR). 219 Mestre em Letras, e atua como professora na Universidade Estadual de Roraima-UERR. ([email protected]). 220 Doutora em História e professora do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Roraima – UFRR.([email protected]). 221 A palavra performance grafada em itálico é de acordo com Zumthor, no livro Introdução à poesia oral, 2010. 577

1. Introdução

Na história oficial do Brasil, os feitos e as contribuições dos povos indígenas foram ignorados por serem considerados sem cultura e sem civilização. Esqueceram que desde as primeiras expediçõesos indígenas estavam presentes com domínio de técnicas de sobrevivência, sabendo suportar as diferentes situações arriscadas na floresta. Esse pensamento não consta nos livros que ignoraram a contribuição significativa da cultura, da religião, das diversas línguas indígenas, da incorporação de palavras indígenas à Língua Portuguesa, da alimentação e dos conhecimentos da medicina tradicional para a construção e a formação da identidade brasileira. Observamos que o mundo indígena não poderia ficar fora da história pátria, porque no Brasil a ―Amazônia é uma região conhecida exclusivamente por seu componente indígena‖ (PIZARRO, 2012, p. 194). Gradualmente, o Brasil está reconhecendo o valor dessas contribuições. Surgem novosprojetos sobre a multiculturalidade, à educação bilíngue e às narrativas orais indígenas, que se constituem como ferramenta para que a própria comunidade indígena escreva e publique as suas histórias preservadas pela tradição oral. É nesse sentido que não podemos desconsiderar que as narrativas orais no Brasil estão ligadas, em grande parte, aos povos indígenas, e constituem uma prática cultural- identitária que deve ser estudada em conexão com o contexto local. Por ser um país múltiplo e diverso, encontramos rastros da heterogeneidade cultural na dança, nos ritos, na alimentação, no modo de falar e na vida cotidiana de indígenas e não-indígenas. Graças às tradições orais é possível manter vivos os acontecimentos dos tempos primordiais para as gerações seguintes. Exemplificando,no estado de Roraima,a sociedade indígenatem conquistado o seu espaço cultural e geográfico, posto que abriga em seu território um significativo contingente populacional indígena222. Roraima faz fronteira internacional com a República Cooperativista da Guiana (antiga Guiana Inglesa) e a República Bolivariana da Venezuela, divisando ainda com os estados do Amazonas e Pará (BARBOSA, XAUD E SOUZA, 2005, p. 11). Nesta tríplice fronteira convivem três línguas nacionais e várias línguas indígenas. A área estadual conta hoje com 32 terras indígenas homologadas. Em relação aos demais estados da Região Norte, Roraima se distingue por ter quase a metade de sua superfície

222 Conforme Azevedo (2011), o censo 2010 contou uma população indígena de 39.081 em Roraima; dos 12 municípios que apresentaram mais de 50% de sua população autodeclarada indígena, 4 estão em Roraima, encravados nas terras indígenas São Marcos e Raposa Serra do Sol. 578 destinada para áreas indígenas, com destaque às que possuem as maiores extensões, a saber, São Marcos, Wai-Wai, Waimiri-Atroari, Yanomami e Raposa Serra do Sol-TIRSS223. A TIRSS é um dos maiores territórios indígenas do país, com 1.743.089 de hectares de área contínua, ocupando 7,7% da área do Estado de Roraima, abrangendo três municípios de Roraima: Normandia, Pacaraima e Uiramutã(BARBOSA, XAUD E SOUZA, 2005).Dentro desse contexto é que o este estudo procura realçar as discussões sobre as narrativas orais,uma vez que ainda hoje não é bem vista no campo acadêmico, porque o termo designa o que é relativo à tradição oral, perfilando sobre o relato de vida, memórias familiares e histórias vivas e atuais que surgem do meio do povo. A cada dia que passa as histórias orais nas comunidades indígenas estão dissipando e fenecendo com seus últimos anciães. Por isso, mergulhamos no campo atraente da tradição oral, na intenção de realizarmos uma análise da lenda O Morcegão, contada por Severino Barbosa, 97 anos de idade, da comunidade São Jorge, situada na Terra Indígena Raposa Serra do Sol-Roraima, a fim de refletirmos como as tradições culturais vivificam frente ao impacto cultural, e ao mesmo tempo revelar a performance do narrador ao contar as histórias presentes na sua memória.

2. Narrativas orais na construção de conhecimento e saberes indígenas

Desde o século XVIII, as narrativas orais desempenham uma função secundária na crítica literária, evocada como literatura marginalizada porque se manifesta em espaços coletivos. A afirmação desse teor tem como fundamento as instituições literárias, editoras, estudiosos conservadores, e por essas narrativas emergirem das classes ―subalternas‖. Entretanto, contrário a esse pensamento, qualquer discurso é uma narrativa e, a ―narrativa propriamente dita emerge em algum lugar de uma série contínua de fatos de cultura‖ (ZUMTHOR, 2010, p. 52), como nos mitos, nas lendas, nos contos, nas fábulas e outros que até hoje sobrevivem de forma duradoura por meio da oralidade. No passado, a narrativa oral ainda era uma questão de sobrevivência, visto que muitas culturas estavam mantidas apenas na memória de alguns anciões contadores de histórias. Com isso, podemos compreender que a narrativa oral de qualquer sociedade é capaz de proporcionar informações para aclarar sobre a cultura e os valores de um povo. Em São Jorge, por exemplo, os moradores recorrem de modo contínuo à experiência de Severino, ancião de idade mais avançada da Comunidade, que mantém viva, na memória, as histórias do seu povo. A valorização do conhecimento, a competência comunicativa e os

223 Ver: Instituto Socioambiental-ISA, www.ti.socioambiental.org; Portal do Governo de Roraima, www.rr.gov.br. 579 anos de vida fazem com que Severino ocupe um lugar de destaque na Comunidade, legitimando-o como narrador. Desse modo, o pano de fundo sobre as narrativas orais são pensadas para verificar se uma sociedade pode ser representada pelas suas histórias, deixando marcas que possibilitam a identificação de modos específicos de sua cultura. Zumthor afirma que

[...] é inútil julgar a oralidade de modo negativo, realçando-lhes traços que contrastam com a escritura. A oralidade não significa analfabetismo, o qual, despojado dos valores próprios da voz e de qualquer função social positiva, é percebida como uma lacuna (ZUMTHOR, 2010, p. 24).

O autor é preciso quando chama a atenção para o fato de que a oralidade não existe apenas no contexto onde não há a escrita. A oralidade se constitui em todas as sociedades porque faz parte da natureza humana. A lenda a que nos referimos é uma forma de narrativa recorrente na nossa cultura. Assim, surge a indagação: quem nunca relatou uma história envolvendo fatos do cotidiano passado ou presente? Para isso, Barthes (2008)menciona que as narrativas são contempladas por homens de diferentes culturas. Portanto, é um engano descartar tal herança, aplicando rótulos como ―primitiva, selvagem ou inculta‖ (HAVELOCK, 1995, p. 27). As narrativas orais não são somente para a classe de pessoas menos privilegiadas, nem tão pouco se constitui em informações para serem transmitidas às novas gerações, mas é um intercâmbio de experiências, uma conversa para externar os conhecimentos e os anseios de uma sociedade. O narrar está imbricado no homem, já que passamos a maior parte do tempo contando nossas experiências passadas e os casos do cotidiano. Contar história é uma maneira particular em nossa cultura de projeção de significados para o conhecimento da humanidade. A arte de contar histórias sustentou até hoje os estudos a respeito da história da humanidade, por isso, está presente na sociedade contemporânea porque as histórias são vivenciadas desde os séculos passados. Quando Severino narra as histórias de seu povo, as palavras são acompanhadas de lembranças. Isso nos leva a refletir como essas pessoas conseguem guardar na memória, ou mesmo lembrarem de fatos que não vivenciaram. Esses fatos só podem ser lembrados ―porque fazem parte de um cânone de memória escolar, institucional, política e até familiar‖ (SARLO, 2007, p. 90). Ou seja, só lembramos o que nossos pais lembraram. 580

Sarlo ainda comenta, sob a perspectiva de Marianne Hirsch, que esse tipo de lembrança é chamado de ―pós-memória‖, e significa ―a reconstituição memorialística da memória de fatos recentes não vividos pelo sujeito que os reconstitui‖, isto é, ―a memória dos filhos sobre a memória dos pais‖ (2007, p. 91). Foram as experiências dos antepassados que informaram a Severino as histórias que hoje ele repassa como se ele as tivesse presenciado. O narrador está impregnado de histórias, conhecimentos e saberes que não foram apreendidos em escolas. Na cultura indígena a construção do passado, por meio de relatos e representações, é muito comum, porque é um meio das tradições se manifestarem no presente. As narrativas originárias da tradição indígena têm conquistado novos espaços, sendo apreciadas e recontadas por diversos escritores. Zumthor (2010) tem chamado atenção, nas últimas décadas, para a valorização das tradições orais como forma de acesso ao passado, sobretudo, suprindo as ―brechas‖ deixadas pela documentação escrita. O oral e a escrita se opõem no modo de elaboração das narrativas quanto a sua transmissão. Para melhor definir esse painel, a observação não visa recusar a utilidade da escrita, mas antes mostrar que a ―oralidade não se define por certos caracteres da escrita, da mesma forma que esta não se reduz a uma transposição daquela‖ (ZUMTHOR, 2010, p. 34). Com isso, buscamos o lugar da oralidade que, de certa forma, foi renegada e, como bem observou Zumthor (2010), reprimida por uma ―mentalidade escritural‖. A oralidade não se reduz a um contexto totalmente da palavra verbal, mas a performance narrativa, que abrange espaços e comunidades de ouvintes envolvidos no ato da narração. A performancedesigna um ato de comunicação, que surge como uma ação oral- auditiva complexa, pela qual uma narrativa é simultaneamente transmitida e percebida (ZUMTHOR, 1993, p. 222). O autor ainda classifica como performance o texto concretamente realizado pela voz, numa produção sonora: expressão e fala juntas no bojo de uma situação transitória e única (op. cit, p. 219). Esse conjunto é capaz de tornar a narrativa oral prazerosa, de modo que envolve o ouvinte numa atmosfera de magia e práticas sociais, como veremos na análise seguinte.

3. Entre o ouvir e o interpretar

Benjamin considera o narrador como ―o homem que transmite o seu saber‖, sendo, portanto, ―um lapidador‖ (1994, p. 220). Não se tem dúvida que grande parte da história da humanidade, impressa da oralidade, perdurou por causa do papel essencial que 581 exerceram os contadores de histórias. O narrador conserva os valores culturais e, à medida que repassa esses valores, se utiliza da performance para dar mais realidade ao que conta. A transmissão dos valores é tão normal em São Jorge, que Severino repassa o ofício de fiar ao seu filho. Por ser a pessoa mais idosa da Comunidade, Severino conserva os costumes e as tradições dos antigos. Por isso, se encarregou de instruir um de seus filhos para exercer a função de pajé e de contar as histórias para que se perpetuassem os feitos do seu povo. Dada a capacidade de fabular, o homem capta nas histórias o sentido de tudo que não pode explicar, e a palavra é o instrumento essencial para a construção de sentidos e significados que são intensificados nas histórias. Existem histórias que tentam explicar os fundamentos da humanidade. Outras que falam do sagrado e do mito, e aquelas que não são apenas para o deleite do ouvinte, mas para explicar o comportamento, a conduta e o costume de uma sociedade. Assim, as histórias são transmitidas de forma duradoura, transportadas pelas palavras impregnadas de magia e poeticidade, divulgando o modo de vida de muitas civilizações, como podemos observar no breve resumo da lenda O Morcegão. A narrativadescreve sobre os fortes guerreiros indígenas que fizeram uma armadilhar na intenção de matar um animal (O Morcegão) que pegava as crianças para comê-las no cume da serra. Para efetivar o feito, resolveram colocar uma velhinha como alvo, porque não tinha mais serventia para a tribo, com a finalidade de descobrirem a morada do morcegão. O plano deu certo, descobriram o esconderijo do animal, porém, quando chegaram ao local a velhinha já tinha sido devorada,e só encontraram muitas caveiras. Os indígenas avistaram um morcegão pendurado de cabeça para baixo e acertaram a flecha nele que, em seguida, caiu no chão morto. Somente quando se aproximaram viram que era um morcegão grandioso. Ainda hoje os indígenas não vão para aquele lugar porque ainda têm medo. A história traz muitas discussões, pois uns dizem que tudo que aconteceu foi culpa do pajé que fazia feitiço,então, puseram fogo nele e o mataram. Sisto afirma que ―o homem já nasce praticamente contando histórias. Está inserido numa história que o antecede e com certeza irá sucedê-lo (2001, p.91). Severino Barbosa, por exemplo, nos conta as histórias que ouviu de seu pai e, que possivelmente ainda vão se perpetuar por muito tempo, porque repassou ao seu filho o ofício de contar histórias, e isto é um sinal do passado, exercendo um ―poder de perpetuação, voluntária ou involuntária‖ (LE GOFF. 1994, p. 546). Nesse sentido, histórias são repassadas porque:

582

[...] existe um legado entre os contadores, através do qual um contador transmite suas histórias a um grupo de ―sementes‖. As sementes são contadores que, segundo o que o mestre espera, irão preservar a tradição como a aprenderam. Como as ―sementes‖ são escolhidas é um processo misterioso que oferece um desafio a uma definição exata, pois ele não se baseia num conjunto de normas, mas, sim, num relacionamento (ESTES, 1997, p. 567).

Na atualidade da Comunidade São Jorge, este repasse repousa na relação pai e filho, sem que tenha sido levantada pelos narradores qualquer explicação para isso. A semente plantada de geração a geração fez com que a lenda O Morcegão floresça ainda hoje na Comunidade, porque tem sido preservada na memória e no corpo de narradores como Severino ao longo tempo, ainda que São Jorge não seja mais um lugar isolado e sujeito a mistérios e perigos inexplicáveis. Nela aparece o imaginário indígena repleto de ensinamentos. O imaginário ao qual nos reportamos são as representações simbólicas que dão sentido à realidade proclamando valores e formas de ser de uma Comunidade. Para a definição do imaginário nos referimos ao estudo de Bazko, para quem o imaginário está ligado ao processo de construção de um grupo social ou nação, pois ―através dos seus imaginários sociais, uma coletividade designa sua identidade, elabora uma certa representação de si, estabelece a distribuição dos papéis e das posições sociais; exprime e impõe crenças comuns‖ (1985, p. 309). O imaginário não é visto como um domínio sem movimento, que não pode transportar, mas ele muda de acordo com os compassos da história, e, através destas mudanças é possível ler e apreender o funcionamento mais vasto de uma sociedade (LE GOFF, 1994).Quando Severino contou a lenda O Morcegão, manteve presente um imaginário fundado em lembranças de um passado real e imaginado, mas dotado de uma força e de uma verdade que transcendem o tempo, evitando, com isso, o esquecimento de acontecimentos narrados pelos ancestres. O terror imposto pelo morcegão, os perigos que advêm do desconhecido podem e devem ser enfrentados, neste caso prevalecendo o modo coletivo de resolver, de deliberar e de agir. Neste aspecto, verifica-se que toda a ação é realizada em grupo, bem como o consenso quanto ao ―sacrifício‖ da vovozinha pelo bem comum, podendo-se observar aí uma marca identitária relevante para os grupos indígenas, ressaltada não só por eles, mas, também, pelos não-indígenas. A voz que ecoa nesta lenda é a de um narrador heterodiegético, porque remete ao privilégio da onisciência, e utiliza o discurso indireto para apresentar os personagens, tendo em vista que tem amplo conhecimento do enredo, isto é, da camada imaginária que lhe dá 583 forma e significado. Além disso, as personagens são miscigenadas entre animais e pessoas, o universo fantástico é aprofundado e a temática é relacionada com a formação social e cultural do mundo indígena. Acreditamos que, por isso, as histórias indígenas são tão atrativas, e merecem ser consideradas. A narrativa urge uma trama e ocorre aqui um processo de mão dupla: por um lado aparece o morcegão que se alimenta de seres humanos; por outro lado, os indígenas conspirando e agindo coletivamente para surpreender o animal e matá-lo. No Brasil não há muita tradição sobre histórias com morcego. Entretanto, no cenário indígena roraimense, ele aparece como um dos personagens das histórias narradas por Severino. Sobre os morcegos, Cascudo menciona que no Sul e Centro ―suas proezas são empurradas para a culpa do Saci-Pererê, como furar as frutas guardadas e provocar os ruídos estranhos, etc.‖ (1988, p. 504). Nota-se que, a princípio, os indígenas não sabiam quem roubava e matava as crianças, e o narrador, somente no final da história, deixa claro em que momento descobrem que se tratava de um morcego grande, mas podemos pensar que este animal aparece aqui por ser noturno e por ser sempre hematófago, estigma que alimenta um imaginário amplamente difundido no meio rural e urbano, não sendo diferente no lavrado roraimense, que além disso ainda é pontuado por grutas e cavernas. No momento em que Severino contava a história do morcegão introduziu a língua Makuxi por diversas vezes, mas em seguida revelava o dito para o Português. Essa necessidade de introduzir sua língua materna é a marca de sua identidade indígena e, também um recurso narrativo. Como bem lembra Cascudo, se ele contasse somente na Língua Portuguesa ―desfalcava em grande percentagem os valores reais (...) e faltaria a excitação verbal do vocábulo habitual‖ (2006, p. 12). Pode-se dizer, portanto, que o uso da língua Makuxi constitui um recurso performático importante, na medida em que Severino falava no plural, falava do coletivo, se remetia ao seu grupo de pertença. A lenda é uma narrativa breve, cujo texto até então só existia na oralidade, marcada por um vocabulário simples, por isso não encontramos interstícios para uma linguagem canônica. Sobre a brevidade, Norman Friedman, citado por Abdala Junior, afirma que ―a questão não é ser ou não ser breve, mas é provocar ou não maior impacto no leitor‖ (1995,p. 17). Quando Severino narra a história apresenta e representa os momentos mais marcantes, porque as ―narrativas devem ser expostas de acordo com o efeito que exercem sobre o ouvinte‖ (DUNDES, 1996, p. 44) e, é nesse momento que o estrato imaginário se 584 consolida e se cristaliza. Aqui, a palavra se converte numa espécie de arquipotência, onde radica todo o ser e todo o acontecer (CASSIRER, 2011, p. 64). Por isso, provavelmente se encaixa o uso dos vocábulos em língua Makuxi. Na verdade, à medida que Severino destaca um fato, a sequência das ações são valorizadas e mais detalhadas por ele, por meio de gestos e inflexões, com a intenção de elevar o ponto em que os acontecimentos ganham o máximo de tensão, como observamos nas imagens seguintes:

Foto: Georgina Silva. Severino narrando a lenda O Morcegão. Local: Comunidade São Jorge, 2011.

No caso desta narrativa, a expressão corporal utilizada por Severino foi fundamental para auxiliar a palavra e encantar o ouvinte no momento em que relatava sobre o modo como os indígenas conseguiram flechar o morcegão. Como se vê, a ação pressupõe a existência de personagens. No momento em que os indígenas conseguem matar o animal, os traços de herói se tornam conhecidos, aparecendo como guerreiros diante da Comunidade. Mais do que entreter e assombrar, as lendas indígenas como O Morcegão, remetem à produção cultural de um povo, suas crenças e anseios e suas identidades. Por ser da oralidade, alguns estudiosos se referem a elas como pouco diversificadas, ínfimas ou dotadas de excessivas variações. Porém, para este estudo não importa o motivo com que as lendas são contadas ou que dizem sobre elas. Mas, o que ansiamos sublinhar é que a voz performancial busca propagar a virtude e os valores de uma sociedade, todavia, não podemos esquecer também que a palavra falada e a linguagem corporal conjugam-se na constituição da narrativa que adquire múltiplas funções: ensinamento e ordenamento social, entretenimento, aguçamento das sensibilidades, coesão social diante do desconhecido e dos perigos. 585

4. Por enquanto...

Para os indígenas, especialmente os mais velhos, a oralidade é a força vital em torno da qual saber ouvir e saber contar são indispensáveis para o grupo dar mais significação ao que é dito. Os gestos utilizados pelo narrador foram os mais diversos. A cada história relatada o braço levantava, as mãos se estendiam para apontar ali e acolá, as expressões faciais insurgiam de acordo com o que descreviam sobre os relatos de vida ou os episódios da Comunidade. Esse foi um momento complexo, porque da memória as lembranças saiam como um turbilhão. Era um momento único, visto que narrador é um ―mestre do ofício que conhece seu mister‖, como observou Ecléa Bosi, pois esse talento vem da experiência, de lições que extraiu da vida, e sua dignidade está em contá-las ―até o fim, sem medo‖ (1994, p. 91). A oralidade está ligada à uma conjunção narrativa harmoniosa que agrega palavras e gestos, voz e corpo, e a performance narrativa, designada como ato de comunicação do presente, isto é, o momento exato em que o narrador conta às histórias e o ouvinte as recebe. As narrativas orais indígenas, sejam lendas ou mitos, estão carregadas de desfechos extraordinários que descortinam as possibilidades de divulgação e de apreensão de valores e costumes, estimulando o respeito à diversidade. Portanto, não podemos desconsiderar as narrativas orais indígenas por sua ―suposta‖ instabilidade narrativa e flexibilidade literária, mas considerá-las porque elas procedem de uma cultura complexa e são um instrumento de representação social destes povos. No caso da narrativa oral aqui analisada, fica a certeza de estarmos contribuindo para a reflexão sobre a oralidade no cenário acadêmico, para que os povos indígenas, sua cultura e sua literatura possam ser conhecidas e reconhecidas, no contexto das relações étnico-culturais ainda bastante desiguais no Brasil.

REFERÊNCIAS

ABDALA JUNIOR, Benjamin. Introdução à análise da narrativa. São Paulo Scipione, 1995. 586

BARBOSA, Reinaldo Imbrózio; XAUD, HaronAbrahum Magalhães e SOUZA, Jorge Manoel Costa e. Savanas de Roraima: etnoecologia, biodiversidade e potencialidades agrossilvipastoris. Boa Vista: FEMACT, 2005. BARTHES, Roland et al. Introdução à análise estrutural da narrativa. Trad. Maria Zélia Barbosa Pinto. Petrópolis-RJ: Vozes, 2008. BAZKO, B. Imaginação social. EncicopédiaEinaudi, Anthropos-Homem.Portugal: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,1985, v. 5, p. 296-332. BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. CASCUDO, Luis da Câmara: Literatura Oral no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. ______. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itaitaia: São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. CASSIRER, Ernest. Linguagem e mito. Trad: J. Guinsburg; Miriam Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 2011. DUNDES. Alan. Morfologia e estrutura no conto folclórico. Trad. Lúcia Helena Ferraz, Francisca Teixeira e Sergio Medeiros. São Paulo: Perspectiva, 1996. ESTES, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. 11 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 454. HAVELOCK, Heri. A equação oralidade – cultura escrita: uma fórmula para a mente moderna. In: Cultura escrita e oralidade. David R. Olson e Nancy Torrance. São Paulo: Ática, 1995. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Trad. Bernardo Leitão et al. Campinas-SP: UNICAMP, 2010. PIZARRO, Ana. Amazônia as vozes do rio: imaginário e modernização. Trad. Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire d‘Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. SISTO, Celso. Textos e pretextos sobre a arte de contar histórias. Chapecó: Argos, 2001. ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira, et al. Belo Horizonte: UFMG, 2010. 587

______. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

588

HERTA MÜLLER. AUTORA ROMENA? DE LÍNGUA ALEMÃ? PRÊMIO NOBEL?

Gerson Roberto Neumann224

Resumo: Herta Müller, autora premiada com o Prêmio Nobel de Literatura tem como particularidade que suas obras são publicadas em língua alemã. Mas Herta Müller é romena. Nasceu e viveu em uma comunidade minoritária étnica de alemães emigrados para a Romênia. Devido a perseguições políticas após a Segunda Guerra, ela se exila na Alemanha, onde continua sua obra e se torna conhecida. Sua obra, porém, caracteriza-se pelo pensar entre-mundos, pelo constante diálogo com o outro, numa constante busca por algo e/ou por um lugar. Ela também leva consigo tudo o que tem e que pode carregar (a língua, a memória, os símbolos). A partir dos estudos do romanista alemão Ottmar Ette, entre outros estudiosos do tema (Bhabha, Said, Guibernau), pretende-se apresentar e trazer à discussão a obra de Herta Müller, uma autora que ―escreveentremundos‖ (zwischenweltenschreiben, conforme o título de uma obra de Ette), tornando a sua obra, muitas vezes, de difícil definição no que se refere a pertencimento.

Palavras-chave: Herta Müller; identidade; local da literatura.

Abstract: Bei Herta Müller, Nobelpreisträgerin für Literatur, kann man als Besonderheit erwähnen, dass sie ihre Werke in deutscher Sprache veröffentlicht. Herta Müller ist Rumänin. Sie wurde geboren und lebte in einer ethnischen Minderheitsgruppe deutscher nach Rumänien Emigrierten. Aufgrund politischer Verfolgung nach dem Zweiten Weltkrieg ist sie in Deutschland im Exil, wo sie ihre Arbeit fortsetzt und bekannt wird. Ihre Arbeit ist jedoch gekennzeichnet durch das Zwischen-Welten-Denken gekennzeichnet, durch den ständigen Dialog mit dem Anderen in einer ständigen Suche nach etwas und/oder nach einem Ort. Sie trägt auch alles, was Sie hat und was sie mitnehmen kann (Sprache, Gedächtnis, Symbole). Basiert auf den Untersuchungen des deutschen Romanisten Ottmar Ette, unter anderen Wissenschaftlern des Bereichs (Bhabha, Said, Guibernau), zielt man darauf ab, die Arbeit von Herta Müller zur Diskussion zu bringen und die Autorin, die zwischenweltenschreibt (laut der Titel Ettes Buch) und so ihr Werk zu einer schwierigen Einordnung macht, in einer Gruppe zu diskutieren mit dem Ziel sie mit anderen ähnlichen Fällen zu vergleichen.

Keywords: Herta Müller; Identität; Verortung der Literatur.

1. Introdução

A obra de Herta Müller já havia sido premiada e reconhecida antes ainda de a autora ser agraciada com o Prêmio Nobel de Literatura em 2009. Mas esse reconhecimento dá-se, sobretudo, nos países de língua alemã, principalmente pelo fato de ela ter se exilado das perseguições do regime político romeno na Alemanha. Os livros de Herta Müller estão

224 Professor Adjunto de Literatura e Língua Alemã e Tradução na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected] 589 recebendo maior atenção no cenário brasileiro, depois que ela recebeu o prêmio Nobel. Afirmo isso porque antes disso, antes de 2009, três obras da autora haviam sido traduzidas e publicadas no Brasil: O homem é um grande faisão sobre a terra. Tradução de Maria Antonieta C. Mendonça. Cotovia, 1993; A terra das ameixas verdes. Tradução de Maria Alexandra A. Lopes. Difel, 1999 e O Compromisso. Tradução de Lya Luft. Globo, 2004. De 2010 a 2012 foram publicados seis. Nesse breve texto, pretende-se apresentar a autora como uma escritora que produz entre mundos – Zwischenweltenschreiben –, aproveitando o título do romanista alemão Otmar Ette, pois, apesar de ela escrever em língua alemã, os temas geralmente se localizam no cenário romeno, abordando as questões políticas, econômicas, histórias, assim como as belezas e memórias da fase de sua vida naquele contexto. Em relação às obras, pretende-se dar uma atenção maior ao livro que certamente pode ser tomado como o seu mais importante: Tudo o que tenho levo comigo (2009).225 Além desse, pretende-se comentar um aspecto novo de uma de suas últimas produções, ainda não traduzido para o Português: Vater telefoniert mit den Fliegen (2012).

2. Herta Müller. Sua vida

Conhecida de fato, a obra de Herta Müller se torna a partir de suas publicações no cenário de língua alemã. A propósito, o fato de Herta Müller publicar em língua alemã pode ser tomado como uma marca de sua obra, pois a autora é romena. Ela nasceu e viveu em uma comunidade minoritária étnica de alemães - os Banater Deutsche (alemães do Banato, região dividida hoje entre Romênia, Sérvia e Hungria) emigrados para a Romênia. Herta Müller nasceu em 1953, em Nitzkydorf, na Romênia. Desde 1987, ela vive como escritora em Berlim, na Alemanha. A relação da autora com a língua alemã, contudo, é peculiar. Até os quinze anos ela falava somente alemão na Romênia. Em 1987, Herta Müller emigra para a Alemanha, onde publica seus livros em alemão, mas ―mesmo após ter vivido no país por 25 anos, ela continua a ser, de certa forma, uma estranha, em parte por causa do sotaque – ‗falo uma

225 Chamo a atenção aqui ao fato de termos no Brasil a publicação praticamente paralela de duas traduções. Uma de 2010, sob o título Tudo o que eu tenho trago Comigo, tradução de Aires Graça, publicada pela editora Dom Quixote e a outra, de 2011, sob o título Tudo o que tenho levo comigo, tradução de Carola Saavedra, publicada pela editora Companhia das Letras. Não se pretende aqui aprofundar a relevância de duas traduções da obra e também não buscar os motivos de duas publicações tão próximas. Essa questão será objeto de estudo futuro, na área de tradução.

590 espécie de língua de Habsburgo,‘ diz – e pontos de vista, mas também por causa de seu estilo incomum e vocabulário, cheio de palavras-valise inventadas,‖ escreve Larry Rohter no jornal de The New York Times, publicado em português no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, no Caderno Cultura (ROTHER, 2012, P. 6). Após o fim da Segunda Guerra Mundial, as minorias alemãs são perseguidas pelo governo romeno de Nicolae Ceauşescu. A própria autora é alvo de perseguição por se negar a ser informante do governo. A constante confrontação (pessoal ou coletiva), com a qual a autora convive desde a infância, está presente na sua obra. Sua mãe também passou anos em um campo de trabalhos forçados. Devido a perseguições políticas após a Segunda Guerra, Müller se exila na Alemanha, onde continua sua obra e se torna conhecida. Sua obra, porém, caracteriza-se pelo pensar entre-mundos, pelo constante diálogo com o outro, numa constante busca por algo e/ou por um lugar. As personagens em Müller caracterizam-se pela constante busca, levando consigo tudo o que tem e que pode carregar (a língua, a memória, os símbolos). Para a situação de Herta Müller talvez possam valer as palavras de André Aciman, autor egípcio de origem francesa exilado nos Estados Unidos, em Nova Iorque. No seu livro Letters of Transit. Reflections on Exile, Identity, Language, and Loss, pode-se ler: ―Nos suas lembranças constantemente transbordantes, os exilados veem duplo, sente duplo, são duplos. Ao verem um local, veem – ou localizam – um outro local por trás deste. Tudo carrega dois rostos, tudo é mutável porque é móvel.‖ (ACIMAN, Apud ETTE, 1999, p. 13). Herta Müller sente-se certamente romena, mas com uma identidade ancorada na cultura alemã, devido à imigração de seus antepassados naquele país e por consequência ela fala alemão até seus quinze anos de idade. Ela escreve em alemão, publica seus livros em alemão, mas vivendo na Alemanha, sente-se diferente devido ao seu sotaque e também devido a determinados pontos de vista.

3. Da obra de Herta Müller

A premiada autora Herta Müller quer falar a partir da Alemanha, país que a acolheu depois que optou por emigrar devido a discordâncias com o regime de Nicolae Ceauşescu, sobre sua vida, conforme suas próprias palavras em entrevista concedida no dia 12 de 591 outubro de 2012 ao programa ―No sofá azul‖, da ZDF, TV estatal alemã.226 A obra de Herta Müller caracteriza-se pela sua intensidade e a densidade da sua poesia e a franqueza da prosa com que retrata o universo dos desapossados, dos perseguidos, dos desfavorecidos. Essa foi, entre outros pontos relevantes, a argumentação para que a obra de Herta Müller fosse reconhecida com a honraria máxima da literatura. Conforme a academia sueca, a obra de Herta Müller retrata o universo daqueles que carregam consigo o que têm, o universo dos desapossados. Aí uma clara referência à principal obra de Müller: Tudo que tenho levo comigo (Em alemão Atemschaukel). Herta Müller publica o romance Tudo o que tenho levo comigo em 2009. No romance, Leopold Auberg, um adolescente de dezessete anos, da Transilvânia, relata sobre sua deportação para o campo de trabalho forçado chamado Novo Gorlowka, na Ucrânia Soviética. A perseguição a romenos alemães no pós-guerra se torna visível nessa história pessoal. Para a figura de Leopold, a autora usa a história real de seu amigo Oscar Pastior, poeta morto em 2006 e agraciado postumamente com o Prêmio Georg Büchner, cujo relato oral (suas memórias) Herta Müller anotou em diversos cadernos. Esse romance também entrou para a lista de livros a candidato a livro premiado de 2009. Um choque para a autora foi, contudo, a descoberta de que Pastior também fora informante da Securitate (a polícia secreta romena) sob o código Otto Stein. Essa descoberta deu-se em 2010, com a abertura dos arquivos do serviço secreto. Para compreender a produção literária de Herta Müller e para que se entenda a intensidade da sua literatura é importante buscar referências na sua vida pessoal, o que de certo modo conduziu a autora para que iniciasse a sua produção. Segundo a própria autora, ainda jovem ela ocupara por dois anos a vaga de tradutora em uma fábrica romena de máquinas. Nesse período, teria sido procurada três vezes por um agente do serviço secreto, que a queria como informante. Ela se recusou, rasgando o documento de recrutamento que lhe era apresentado. Por isso fora ameaçada de morte. A partir de então sua situação naquele emprego ficou insustentável, sendo-lhe retirado o seu local de trabalho. Assim, passou a fazer traduções na escada deste prédio, mesmo que ninguém as tivesse solicitado. Foi assim que ela havia se tornado escritora. Segundo a autora, através da língua pode-se combater ditaduras, pois sob tais regimes não se pode dizer tudo, mas escrever permite mais. Assim, a prosa de Herta Müller procura o espaço da infância, o espaço do vilarejo, onde tudo parece eterno, porque

226 É interessante acessar a entrevista acessível no site http://www.zdf.de/ZDFmediathek/beitrag/video/1750166/Herta+M%C3%BCller+auf+dem+blauen+Sof a. Último acesso no dia 14 de abril de 2013. 592 permanece imóvel e com isso tem um peso que se torna difícil de medir. E ela cita também a linguagem não estritamente escrita, mas também a de gestos e de outras formas de expressão. Aí estaria a liberdade dos oprimidos. As palavras formariam algo como uma pantomima da realidade em ação, paralela a esta realidade. O mundo da sua literatura está marcado pelas palavras, afirma Richard Wagner, seu ex-marido e também escritor romeno, emigrado juntamente com ela. Também o tema da solidão é recorrente na sua obra, pois a ditadura também sempre está implicitamente lá. Nessa solidão as palavras são de extrema importância. Na mesma entrevista acima mencionada, Herta Müller faz referência à procura por palavras. Hoje a autora é conhecida pelo seu trabalho com colagem. Na sua mais recente obra Vater telefoniert mit den Fliegen (Em português Papai conversa com as moscas ao telefone), Herta Müller faz intenso uso da colagem. Ela diz que a vida é uma colagem e que muitas construções acontecem puramente ao acaso, conceito muito importante para a autora. Em relação à sua forma de trabalho, ela sai á procura das palavras, procurando no seu baú (de memórias) e digere as palavras. Em outra entrevista, para a Revista Spiegel, ela diz: ―comi a linguagem‖ (SPIEGEL, 2012, 128). As palavras são selecionadas e colocadas para que se forme a mensagem – o que quer ser dito – e aí a importância do acaso, pois uma vez definido o texto, ele é fixado e passa a ser definitivo. Assim também é a vida, segundo a autora, pois há situações que se definem e não há como lutar contra elas. Mas é possível reparar erros cometidos no texto, assim como é possível rever erros cometidos no decorrer da vida. Ainda em relação ao trabalho de produção com colagem, a autora diz que isso lhe traz lembranças do passado, de sua vida na Romênia durante a ditadura, pois os panfletos não podiam ser produzidos com máquinas de escrever por todas serem registradas junto à polícia. Escrever por meio de colagem oferece-lhe a possibilidade de entrecruzar o teor de seus ensaios e de sua prosa que se caracterizam por abordarem temas que geralmente carregam alto índice de tensão, encolhimento e medo. Voltando à obra Tudo o que tenho levo comigo e tentando estabelecer uma relação entre ambas, pode-se afirmar que os 54 capítulos que compõem o romance são algo como colagens ou as imagens que o narrador passa ao leitor, permitindo-lhe que seja construída uma representação do que foi a vida de Leopold Auberg desde o momento em que soube que seria levado aos campos de trabalho forçado longe de sua terra – no capítulo intitulado ―Sobre fazer as malas‖ – até o último – ―Sobre os tesouros‖ – em que o narrador reflete sobre o simples fato de estar aí. 593

Dentre os muitos capítulos que compõem o livro existe uma certa autonomia entre eles. Não há necessariamente uma sequencialidade para que o leitor possa acompanhar a narrativa. Mas a escrita de Herta Müller é muito intensa e, mesmo nas poucas palavras que compõem as suas breves narrativas, muitas vezes em breves frases, pode-se perceber isso. Isso pode ser constatado no capítulo de uma página, intitulado ―Aguardente de alcatrão‖: Deitei-me novamente. Ele permaneceu sentado, e eu ouvi o gorgolejo. No Bazar Bea Zakel havia trocado o pulôver de lã dele por aguardente de alcatrão. Ele bebeu. E não perguntou mais nada. Na manhã seguinte, Karli Halmen contou: Ele ainda perguntou algumas vezes o que significava dar e receber. Mas você dormia profundamente. (MÜLLER, 2011, p. 94).

A narrativa de Müller em Tudo o que tenho levo comigo pode ser lida como um conjunto de pequenas histórias que até podem ser lidas aleatoriamente, pois são histórias que acompanham o narrador em sua dura vida no campo de trabalhos forçados. A sua estratégia para sobreviver dá-se por meio da manutenção de lembranças, principalmente de sua terra, onde está a sua família. Em ―Tempos emocionantes‖: ―Nestes tempos emocionantes, dissera ele. O Blaupunkt foi uma boa compra, depois os tempos se tornariam mais emocionantes ainda. Três anos depois, início de setembro e novamente época de salada fria de pepino na sombra da varanda‖ (MÜLLER, 2011, p. 55). Outra passagem significativa que exemplifica muito bem a luta pela sobrevivência e para tal a necessidade de agarrar-se a símbolos e propostas colocadas a si mesmo, encontra-se em ―Lenço e ratos‖: Quando nos escapa o controle do destino, estamos perdidos. Eu tinha certeza de que a frase de despedida de minha avó – EU SEI QUE VOCÊ VAI VOLTAR – se transformou num lenço de bolso. Não sinto vergonha de dizer que o lenço era a única pessoa no campo de trabalho que se preocupava comigo. Tenho certeza disso até hoje. Às vezes os objetos adquirem certa delicadeza, monstruosidade que não esperamos deles. (MÜLLER, 2011, p. 82).

Também o pai é lembrado em certos momentos. Num deles, Leopold lembra do pai depois de ter matado um esquilo da terra e este, ao morrer, solta um assobio curto como um trem. Ele não consegue matar a sua fome com o esquilo. Ao final do capítulo ―como os segundos se estendem‖, ele diz: ―pai, uma vez você quis ensinar-me a assobiar quando alguém se perde.‖ (MÜLLER, 2011, p. 128). Além do fato de o narrador lembrar da figura do pai, para quem certamente gostaria de assobiar por estar perdido, pode-se interpretar o chamado ou a lembrança como consequência de um momento de solidão.

4. Considerações finais 594

Herta Müller pode ser vista também como a personagem Leopold Auberg, que é baseado na história real de seu amigo Oscar Pastior. Pode-se afirmar que Herta Müller busca no exílio na Alemanha o local de fuga, onde necessita manter-se viva e onde sempre será estranha, de onde passa a contar suas histórias sem proibições e perseguições. Leopold Auberg também quer deixar sua terra, como ele diz logo nas primeiras páginas, quando fala ―Sobre fazer as malas‖ por sentir-se observado demais. ―Eu queria ir embora daquele dedal de cidade onde até as pedras tinham olhos. Em vez de medo eu sentia uma impaciência enconberta.‖ (MÜLLER, 2011, p. 12). Herta Müller escreve a partir de um local privilegiado por estar fora do seu contexto – a Romênia –, que certa forma lhe causa dificuldades em função da tentativa de controle total por parte do regime político. A perseguição a Herta Müller e seus companheiros dá-se, contudo, devido à sua filiação identitária, ao fato de ela pertencer a um grupo minoritário alemão na Romênia. Ao final da Segunda Guerra Mundial (e já durante a mesma, como se pode ler no relato de Leopold: ―A guerra ainda não terminara em janeiro de 1945. Apavorados com o fato de que, em pleno inverno, os russos me obrigassem a ir sabe-se lá para onde, ...‖ (MÜLLER, 2011, P. 11)), muitos alemães emigrados e descendentes sofreram com as conseqüências e a retaliações nos países então adversários. Herta Müller, autora romena e Prêmio Nobel de Literatura, que escreve em língua alemã para o mundo, é isso: alguém que escreve de diversas formas sobre os medos e as lutas das pessoas que enfrentam as adversidades para fugirem da derrota, da morte.

REFERÊNCIAS:

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MÜLLER, Herta. Tudo o que tenho levo comigo. Tradução de Carola Saavedra. Companhia das Letras, 2011. MÜLLER, Herta. O rei faz vénia e mata. Tradução de Helena Topa. Texto Editores, 2011. MÜLLER, Herta. Hoje Preferia não me ter encontrado. Tradução de Aires Graça. Dom Quixote, 2011. MÜLLER, Herta. Já então a raposa era o caçador. Tradução de Aires Graça. Dom Quixote, 2012. MÜLLER. Herta. ―Ich habe die Sprache gegessen‖. In: Spiegel. Nr. 35, 2012, 128-132. MÜLLER. Herta. Vater telefoniert mit den Fliegen, Hanser Verlag , München 2012. ROTHER, Larry. ―Memórias familiares do holocausto. Tudo o que Herta Müller leva consigo.‖ In: Zero Hora - Cultura, Sábado, 23 de junho de 2012.

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A POESIA E SUA REPRESENTAÇÃO NOS JORNAIS PARAIBANOS DO SÉCULO XIX Gilsa Elaine Ribeiro Andrade227 RESUMO: A produção literária teve, no século XIX, como um de seus suportes os jornais, fontes que vem cada vez mais sendo pesquisadas por historiadores da literatura, na busca de investigar e contribuir para os estudos literários nas suas práticas sociais e culturais, fugindo, assim, do anacronismo. Seguindo essa perspectiva, este artigo tem por objetivo apresentar as primeiras análises de nosso projeto de doutorado A poesia nos jornais do século XIX: uma (re)construção das práticas de leitura, no qual pretendemos investigar acerca do lugar e da presença da poesia nos jornais paraibanos, observando os discursos a que sua escrita está submetida nos jornais, além de verificar a que tradição literária ela está aliada. Entre os jornais selecionados, até o momento, estão os que circularam no período entre 1860 e 1880, na Paraíba, assim como alguns jornais do Rio de Janeiro. Entre os jornais selecionados podemos citar ―A Esperança‖ (1866-1877), ―A Marqueza do Norte‖ (1867), ―Correio Noticioso‖ (1876), ―Echo Escolastico‖ (1877), ―A Estação‖ (1887) entre outros, por se tratarem de periódicos que trazem entre as tipologias textuais que circulavam na época, a poesia. Para tais análises, partimos dos estudos de ARAÚJO (1985), BARBOSA (2006;2007;2011), LUCA (2005), entre outros.

Palavras-chave: Poesia; Jornais paraibanos; Século XIX

ABSTRACT: The literary production in the nineteenth century had as one of its supporters the newspapers. These sources have been increasingly researched by historians of literature, seeking to investigate and contribute to literary studies in their social and cultural practices, fleeing, thus of anachronism. Following this perspective, this article aims to present the first analyzes of our doctoral project Poetry in Newspapers in the Nineteenth Century: a (re) construction of reading practices, in which we intend to investigate about the place and the presence of poetry in Paraiba newspapers , noting the speeches in which they were written in the papers, and verifying if it is allied to literary tradition. Among the selected newspapers, some circulated between 1860 and 1880, in Paraíba, as well as some newspapers in Rio de Janeiro. Among the selected papers we can cite "A Esperança" (1866-1877), "A Marquesa do Norte" (1867), "Correio Noticioso" (1876), "Echo Escolástico" (1877), "A Estação" (1887) and many others, because they are examples of the periodicals in which we can find text types such as poetry at that time. For further analyzes, we started our studies based on Araujo (1985), Barbosa (2006, 2007, 2011), LUCA (2005), and other remarrkable authors.

Keywords: Poetry; Newspapers paraibanos; Nineteenth Century.

1. Contextualização dos jornais como fonte de pesquisa: a questão do suporte e da literatura nos jornais.

As formas de o sujeito ler e representar o mundo foram sofrendo alterações ao longo dos séculos. Como afirma Chartier (2002), a evolução da cultura impressa, desde os

227Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba (PPGL/UFPB). Email: [email protected] 597 séculos II e IV até o século XV com o advento da imprensa, trouxe consequências significativas nos modos de ler, em que os homens foram tentando ordenar, controlar, classificar as relações entre a escrita e a leitura. A relação entre o leitor e o texto vai se tornando uma categoria cada vez mais pertinente para o estudo da leitura e suas práticas, pois, durante muito tempo, os participantes da literatura oral e da produção literária foram relegados ao segundo plano, fazendo com que autores e obras caíssem no esquecimento, apesar de terem sido, como nos afirma Darnton (1995), amplamente lidos e considerados recordes de venda no período de sua publicação, mas que hoje desapareceram da história da literatura. Como consequência, outra categoria bastante importante para a história da leitura é a relação entre leitor e o suporte desta leitura. Tal relação vem sendo amplamente estudada por historiadores da leitura como Darnton (1995), Chartier (2002), Michel de Certeau (1994), entre outros, que já apontam para o fato de que as formas de ler estão, entre outros fatores, bastante ligadas ao suporte que sustenta a leitura. Dessa forma, ao se estudar os gêneros poéticos do século XIX, o jornal deve configurar uma fonte legítima e necessária, uma vez que não levar em consideração os suportes por onde os gêneros poéticos circularam é negar o fato de que a produção literária é um processo histórico-cultural, isto é, uma determinação convencional constitutiva ―dos sentidos verossímeis‖ (PÉCORA, 2001, p.11), que a cercam. Partindo dessa premissa, o conceito de literatura assim como a seleção do que seja gênero literário e sua estrutura para a modernidade, possui sentidos diferentes, uma vez que essas expressões artísticas são um construto histórico e estão determinadas por convenções, técnicas e suportes que as sustentam. No entanto, ao se levar em consideração o suporte por onde circulam os textos para estudar o universo da literatura não basta pesquisar os jornais por eles mesmos, mas as práticas de leitura que os envolvem. A mudança de abordagem passa pela concepção do suporte jornal, nossa fonte de pesquisa escolhida para o presente estudo, como fonte primária para os estudos culturais e literários, não se restringindo, portanto, aos livros. O espaço dos periódicos reservado à ficção, no século XIX, em jornais do Brasil, assim como nos paraibanos, entre outros, é inegável, como nos afirma Barbosa (2006) ao se referir aos periódicos Alva: jornal literário e A Ideia: Revista Crítica, Noticiosa e Literária, nos quais há várias produções literárias como romances, novelas, poesias, biografias de autores nacionais, ensaios etc. Há de se acrescentar, ainda, que o próprio conceito de literatura estava associado à função mesma dos jornais no início dos oitocentos, a de caráter 598 educativo, isto é, ―a missão de suprir a falta de escola, de livros através de seus escritos jornalísticos‖ (LUSTOSA, 2003, p. 15, apud BARBOSA, 2006). Nesse sentido, analisar a literatura nos jornais paraibanos é muito mais do que reforçar uma corrente de pesquisas voltadas para a história dos jornais, mas tomar essas fontes, esse suporte como ―um veículo fundamental da vida literária e cultural paraibana do século XIX‖ (BARBOSA, 2011, p 15).

2. O lugar dos gêneros poéticos nos jornais paraibanos.

Para estudar o jornal paraibano, é preciso conhecer outros jornais que circulavam no Brasil, em especial no Rio de Janeiro, a fim de que se possa perceber um padrão de escrita jornalística, principalmente literária, a que se estava subordinado estrutura e ideologicamente. Por isso, segundo Barbosa (2011) ―é um equívoco não reconhecer as particularidades dos jornais paraibanos, e por isso tomá-los apenas como uma imitação servil dos da Corte ou do Sul‖. (p. 10). É o caso do jornal carioca ―A Estação‖ (1879-1904) que, segundo Cristani (2008), estruturava-se em duas partes: a primeira, ―Jornal de Modas‖, era ―assumidamente importada, traduzida da revista alemã Die Modenvelt, publicada pela editora Lipperheide de Berlim.‖ (CRISTANI, 2008, p.326), justificando, inclusive, o fato de esse jornal pretender manter ―as mesmas disposições da revista francesa‖ (CRISTANI, 2008, p. 327). Tal fato demonstra que há um padrão de escrita e não o fato de os jornais paraibanos imitarem os jornais do Sul. Na segunda parte, a ―Literária‖, publicavam-se diversos gêneros literários de autores brasileiros, dentre eles, os considerados renomados, como é o caso do poeta Raymundo Correia, na edição de 15 de março de 1889. Os jornais do século XIX, segundo Barbosa (2011) tinham um centro irradiador de notícias diversificado, retiravam-se noticias de jornais, de lugares e países diferentes, sem necessariamente indicar a fonte. Além disso, havia a troca de jornais, em que um jornal noticiava a chegada de outros jornais.

―Assim temos que os jornais da Paraíba recebiam jornais de Paris, sobre os quais comentavam e teciam considerações. Os jornais do Rio Grande do Sul e do Pará também foram enviados à Paraíba, que eram lidos pelos redatores que, ao mesmo tempo em que faziam circular essa leitura, enviavam seus jornais a outros lugares e às capitais.‖ (p. 11)

Ainda segundo Barbosa (2011, p. 13), ―[...] criticar os periódicos paraibanos pela exiguidade de notícias é desconhecer a função do jornal no século XIX, cujo compromisso 599 era menos com a notícia do que com a ―Ilustração‖.‖ Assim, citando historiadores como José Leal, os jornais paraibanos eram considerados pobres em notícias, servindo quase que exclusivamente a facções políticas, desmerecendo-os como fonte de pesquisa para a história e para a literatura. Contrariando tal opinião, a autora considera-a genérica, uma vez que constata a circulação de jornais e notícias, com comentários, colocando a imprensa paraibana com um importante papel cultural. Os jornais tinham, assim, uma função educativa, uma espécie de porta-vozes do Iluminismo, já no início do século XIX. Tal compromisso com a Ilustração e a Educação Pública é percebido por meio das epígrafes e editoriais dos jornais, além das seleções de matérias de outros jornais e a divulgação que faziam dos textos que circulavam. Ainda segundo Barbosa (2011), os próprios subtítulos que integravam os jornais já apontam para esse caráter ilustrado e educativo e, principalmente, ―noticiador‖. É o caso do jornal ―A Esperança‖ que, em seu subtítulo apresenta-se como ―Jornal noticioso, recreativo e jocoserio‖ na edição de março de 1866; ―Jornal Literário, Recreativo e Noticioso‖ na edição de março de 1877; ―Periódico Literário e Noticioso‖, na edição de junho de 1885; ―Jornal Literário Recreativo e Noticioso‖, na edição de julho de 1877. Além do já referido jornal ―A Estação‖, cujo subtítulo é ―Jornal Ilustrado para famílias‖, destinado a um público abrangente, não restringindo apenas as mulheres a quem era dedicada a primeira parte do jornal (Jornal de Moda). Tal fato ocorreu, segundo Crestani (2008), devido à necessidade de ampliar o público, transformando o jornal francês La Saison a quem imitava, em um jornal brasileiro, destinado a toda a família. Tal caráter ―noticiador‖ se repete em outros jornais pesquisados nesse período, no que se refere aos exemplares a que tivemos acesso.228 É o caso, também, do jornal ―Correio Noticioso‖, cujo título já revela essa característica e ―Echo Escolastico‖, com subtítulo ―Periódico Científico, Literário e Recreativo‖. Apesar de terem em sua proposta o caráter literário, é importante ressaltar que esse termo não pode ser compreendido na perspectiva do que entendemos por ―literário‖, modernamente. O próprio gênero poético insere-se nesses jornais não necessariamente numa coluna dedicada à literatura, uma vez que, segundo Abreu (2003), esse termo era entendido como erudição, englobando textos filosóficos, históricos e científicos, associado ao conhecimento intimamente relacionado às Belas Letras e à Ciência. Dessa forma, o texto poético surge em várias seções, com diferentes funções.

228 Todos os jornais e seus respectivos exemplares, a que nos referimos neste artigo, encontram-se disponíveis no site ―Jornais e Folhetins Literários da Paraíba do século 19‖ (http://www.cchla.ufpb.br/jornaisefolhetins/acervo.html) 600

É o caso do jornal ―Echo Escolastico‖ (1877-1878), a que tivemos acesso apenas a duas edições (13-08-1877 e 19-09-1977l). Nele a própria epígrafe já traz os versos do escritor inglês William Shakespeare ―De Deus é maldição a ignorância / nas asas da instrução ao céu subimos‖. Tal inscrição nos remete não só ao próprio caráter do jornal, o caráter científico, instrutivo e noticioso, mas a própria função do texto poético nesse suporte: ela também é instrumento de transmissão do saber através da arte do bem escrever. A instrução é vista, numa perspectiva Iluminista, como instrumento da perfeição. O conhecimento eleva a alma aos céus e esse seria, então, o papel da imprensa. O próprio título do jornal reforça tal ideia, uma vez que o termo ―Echo‖, que significa aquilo que ressoa, e ―Escolastico‖ relativo a escolas, ao saber, demonstra o grande propósito desse periódico: fazer ressoar o saber, a instrução. No periódico de 19 de setembro de 1877, a notícia inicia-se com um texto sobre a Independência do Brasil, uma apologia ao dia 7 de setembro. O tema da independência ecoa nos demais textos, com exceção de dois dos textos poéticos. A poesia, em número de três, apenas um faz referência à pátria. São poemas de tradição romântica, sendo os dois primeiros do mesmo autor, Gama e Silva, cujo primeiro, intitulado ―Sonho de virgem‖, revela imagens próprias da tradição romântica, como a imagem da virgem dormindo em nuvens de amor, a presença de uma mulher distante, desejada às escondidas e observada na escuridão da noite. O terceiro poema, cujo título sugere que se trate do nome do próprio autor A. F. X. M. da Franca traz a temática da pátria, como um lugar onde todo o porvir do poeta seria desfeito. A imagem da pátria surge como um refúgio às dores. Os elementos evocados são a natureza bela e grandiosa, o que nos remete a uma tradição romântica nacionalista, de valorização da pátria brasileira. Dessa forma, a poesia nesse exemplar do ―Echo Ecolastico‖, surge como uma espécie de uma voz que prolonga a temática proposta no jornal. No número de 13 de agosto de 1877, o texto poético continua tendo a função de fazer ecoar uma temática central, uma notícia. Nesse número do jornal, no entanto, aparece uma seção intitulada ―Literatura‖, o que não ocorreu no número de setembro/1877, deixando claro o que nos afirma Abreu (2003) quando se refere ao fato de que o termo ―literatura‖ tinha um conceito muito amplo, relacionado à erudição, conhecimento, saber. Este fato se repetirá em outros jornais, em que o texto poético aparece em seções variadas, com funções, porém, semelhantes, a de ecoar como Belas Letras a ideologia do jornal. 601

O texto inicial, uma espécie do que chamaríamos hoje de editorial229, é uma apologia à necessidade de instrução na Paraíba, noticiando a respeito da reunião da Assembleia Provincial. Segue um trecho, em que o autor do ―editorial‖ afirma ser o desejo da sociedade paraibana, representada pela Assembleia, tal instrução:

Queremos instrução para distinguirmos claramente os nossos direitos; para vermos desfeitas as trevas que o obumbram as felicidades provinciais e expandirmos ideias que exprimam liberdade; não essa que arroja o homem a cometimentos temerários e imorais, não essa liberdade que aspiram alguns para haver franqueza à criminosos procedimentos, como louca e horrorosamente experimentou-se na comuna parisiense; mas uma liberdade sã e pura, que demonstre o verdadeiro sentir do Amor à Pátria, u ma liberdade que seja a nobre exaltação de garbo para o povo que geme sob a preponderância de desastrosas injustiças, uma liberdade que faça engrandecer o País, e que suavize a todos do progresso de venturosa moralidade. (Echo Escolastico, 13 de agosto, de 1877, p. 1)

Na seção ―Literatura‖ de Echo Ecolastico de agosto de 1877, surgem dois poemas: ―Soneto‖, de J. E. F. Lopes, e ―Liberdade‖, de M. J. G. S. Ambos refletem os ideários representados no ―editorial‖ do jornal. O primeiro soneto, que tem como temática a exaltação a Nossa Senhora das Neves, oferecido aos jovens estudantes, revela uma espécie de oração, pedindo à virgem Maria que guie o povo, como uma espécie de clamor pela civilidade e paz. O caráter instrutivo revela o que é preconizado no texto acima transcrito, isto é, que a liberdade trazida pela instrução não seja aquela que arroje o homem a cometer atos imorais que o levem à fraqueza e atitudes criminosas, mas aquela que seja ―pura, que demonstre o verdadeiro sentir de Amor à Pátria‖. O segundo poema traz a temática bastante referenciada no que estamos chamando de editorial: a liberdade! O caráter ilustrativo da liberdade é representado por três imagens: a luz, o livro e a cruz. A figura de um ancião, que traz o livro e a cruz, conclama a todos que estão dormindo a enxergarem a luz, representada pela razão. A razão vem libertar da escravidão da ignorância e trazer a ―morte ao rei‖, a liberdade, a igualdade e o fim da monarquia. No entanto, confirmando o que Barbosa (2011) já havia afirmado, o jornal mantinha com outros jornais ou até mesmo outros suportes, um diálogo, tendo em vista que o poema ―Liberdade‖, datado de outubro de 1874, deixa claro que esse texto já tinha sido publicado antes.

229 Diacronicamente também chamado de prospecto, termo usado para designar a parte introdutória do jornal. 602

Assim, no jornal Echo Ecolastico, o texto poético mantém-se próximo a um gênero conhecido na modernidade. São sonetos e décimas que representam uma tradição literária próxima ao que denominamos como Romantismo. A poesia revela o caráter patriótico associado à instrução, ideologias a que esse jornal se vincula. No entanto, a escrita em versos nem sempre cumpre esse papel, uma vez que gêneros poéticos, ―abolidos das antologias literárias‖ modernas, (BARBOSA, 2011, p. 19) eram muito presentes nesses jornais. É o que ocorre no periódico ―A Esperança‖ (1866-1885), que traz a charada, como um de seus gêneros poéticos, em duas das edições a que tivemos acesso, o número 10, de março de 1866, e o número 19 de março de 1877. Nos quatro volumes pesquisados, observamos que os gêneros poéticos aparecem em seções como ―Miscelânias‖, ―Literatura‖, ―Folhetim‖, ―Álbum dos assinantes, ―A Pedidos‖, sendo este último, ―um eufemismo para muita matéria paga, quer nos textos que publicavam dentro do corpo do periódico, hoje impossíveis de ser identificados.‖ (idem, p. 18). Os textos poéticos trazem a temática religiosa como principal tema, o que parece configurar a temática do jornal que traz em seu título um termo associado ao desejo de tempos futuros melhores. Em número 2, de junho de 1885, trazemos o discurso inicial do jornal que aponta para tal perspectiva:

Amamos o futuro, a glória, a liberdade e tudo quanto há de grande e sublime na terra e no Céu; por isso queremos marchar, subir, iluminarmos. O selo de Deus está estampado no mapa milagroso da criação. O sábio, o ignorante, o rico, o pobre, a fera, o inseto, tudo mostra seu poder, pois

É nesse número que surge o poema ―Cena antiga e moderna‖, na seção de ―Literatura‖. Nele, o autor, não referido, estabelece uma comparação entre o jardim de Adão (figura bíblica) e à própria vida dos homens, conclamando ao trabalho e à vida espiritual, como podemos ver em sua última estrofe, na página 4 deste jornal:

Outros poemas são ―Súplica‖ e ―O retirante‖, do número 30 de julho de 1877, inseridos numa espécie de subseção ―Transcrições‖, dentro da seção ―Miscelâneas‖. Esses 603 fazem referência a autoras femininas, como Maria Amélia, em que, nos parênteses está indicado, talvez, de onde foram extraídos os poemas – (―Da rosa‖). Tal autoria nos aponta para uma abertura do jornal para escritoras, algo que a história da literatura vem há pouco tempo referenciando230. Na seção ―A Pedido‖, temos a fala da crítica literária que existia na Paraíba, que geralmente seus artigos não eram identificados, mas assinados por iniciais. É o caso de P. O. P, membro da Sociedade Filantrópica dos Artistas, que agradece a hospitalidade dos membros da Coluna Artística da cidade de Mamanguape, durante visita feita. Encerra o agradecimento com um poema intitulado ―A um crítico das dúzias‖, uma espécie de exaltação ao status de crítico, de poeta e da própria função da poesia: a instrução, o saber científico em honra à pátria. Finalmente, o jornal ―A Marqueza do Norte‖, subtítulo ―Periódico Feminino – Político‖, que só tivemos acesso ao número 3 de 12 de janeiro de 1867, traz em todas as suas sessões a discussão sobre a situação a corrupção da monarquia brasileira. Os textos encerram uma severa crítica ao fato de o segundo reinado estar subjugando os ―cabras‖ do Brasil, colocando os descendentes portugueses, a que chama de ―escória‖, ocupando os cargos políticos e econômicos nas terras brasileiras. O desmerecimento da mão de obra brasileira é o grande tema deste jornal, ao afirmar que ―A corte do Rio de Janeiro está convertida n‘uma completa Lisboa!‖. Apesar de o periódico dizer-se feminino, nesse exemplar, não se encontram temas relacionados à moda ou questões de interesse para o público feminino, como acontece com o jornal ―A Estação‖, já referenciado anteriormente. Todo o jornal tem cunho político, cujas notícias pairam em torno da denúncia ao não aproveitamento de brasileiros em vários setores econômicos e políticos da nação, principalmente nos mais altos postos, criticando a política do reinado de D. Pedro II. Porém, no final do periódico, na sessão ―Anúncios‖, aparece uma nota em que o jornal comunica a seus leitores que irá suspender por um mês sua publicação, retornando em 2 de fevereiro de 1867 para tomar parte nas eleições. Tal dado nos revela que o subtítulo ―Feminino‖ é uma máscara, um subterfúgio para o dizer, uma tática dos mais fracos, nas palavras de Certeau (1994). Dentro dessa perspectiva, o poema intitulado ―Conversa de dois carroceiros‖ vem reforçar toda a discussão proposta por este jornal. Nesta conversa, percebe-se um discurso que sugere uma convocação ao leitor para uma tomada de atitude em relação à política do

230 No ―Pequeno dicionário de escritores/jornalistas paraibanos do século XIX‖, disponível em < http://www.cchla.ufpb.br/jornaisefolhetins/acervo.html>, encontram-se nomes de escritores e jornalistas que fizeram parte da vida literária produzida na Paraíba. 604 segundo império, já que os dois carroceiros são portugueses que enriqueceram em terras brasileiras e estão se vendo diante de uma possível revolta contra eles. Tal fato é alertado por uma das vozes que se dirige a Zé, aconselhando-o a sair daqui. Além disso, um dos locutores reconhece a hospitalidade brasileira e se dirige a Zé, na última estrofe, assumindo a posição de quem tem a consciência de que os trabalhadores brasileiros trabalham em demasiado e podem não aceitar a posição que ocupam os portugueses nesta terra. O poeta, não mencionado nas páginas do jornal, deixa claro em seus versos um posicionamento crítico em relação à exploração e a desigualdade sócio-político-econômica que domina o segundo reinado brasileiro.

3. Considerações finais

Longe de concluir nossos estudos com os jornais do século XIX, uma vez que apenas trouxemos quatro jornais representativos da imprensa paraibana e um do Rio de Janeiro, pudemos apontar algumas questões que nortearão nossos estudos mais aprofundados. Sabendo que é inegável o fato de que os jornais e revistas trazem contribuições valiosas para as pesquisas sobre a história da leitura e as práticas de leitura e de escrita no século XIX no que se refere à produção do romance, da crônica e do conto, pois há vários estudos sobre esses gêneros nos jornais, procuraremos observar como a produção poética do século XIX, através das fontes primárias, revela práticas de leitura e de escrita que venham a contribuir para a construção e reconstrução dos discursos legitimadores sobre o que é poesia e o que se produziu de poesia nesse período, na Paraíba. Além disso, compreender como o texto poético se insere no contexto de produção dos jornais brasileiros, é compreender se as temáticas e elaborações confirmam ou acrescentam dados reveladores de um discurso sobre a poesia produzida no Romantismo brasileiro, amplamente arraigado numa história da literatura já legitimada. Aprofundando, principalmente, os estudos sobre a poesia paraibana do século XIX. Procuramos mostrar, ainda que brevemente, neste artigo, de que forma as características de ordem material dos jornais da primeira metade do século XIX, assim como a organização interna do conteúdo, interferiram nos processos de leitura e produção do gênero poético nesse suporte, reforçando o pressuposto de que os textos estão materializados a partir do suporte que os sustentam, conforme nos alerta Chartier (2002). Desse modo, pretendemos contribuir para a historiografia da literatura e para a história de leitura, em especial da Paraíba.

605

4. REFERÊNCIAS

ABREU, Márcia. Letras, Belas-Letras, Boas Letras. In: BOLOGNINI, Carmem Zink (Org.). História da literatura: o discurso fundador. Campinas: Mercado de Letras, ABL, Fapesp, 2003. (Coleção Histórias da Leitura). ARAÚJO, Fátima. Paraíba: Imprensa e vida. João Pessoa. 2ªed. 1986. BARBOSA, Socorro de Fátima P. Jornal e literatura: a imprensa brasileira no século XIX. Nova prova: Porto Alegre, 2007. ______. Alva e ideia: duas revistas e um passado para a vida literária paraibana do século XIX. In: Revista de História e Estudos Culturais. Volume 04, Ano IV, nº 1, 2006. Disponível em: , acesso em 20 set 2011a. ______. Jornalismo e literatura no século XIX paraibano: uma história. Disponível em: < http://www.cchla.ufpb.br/jornaisefolhetins/estudos/Jornalismo_e_literatura_no_seculo_ XIX_uma_historia.pdf> Acesso 20 set 2011. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994. CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita. Trad. De Fulvia M. L. Morreto. São Paulo: Editora UNESP, 2002. CRESTANI, Jaison Luís. O perfil editorial da revista A Estação: jornal ilustrado para a família. Revista da Anpol, v. VIII, 2008. , acesso em 10/05/2010. DARTON, Robert. Os intermediários esquecidos da literatura. In: ______. O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 133-172. PÉCORA, Alcir. À guisa do manifesto. In: ______. Máquina de Gêneros. São Paulo: Editora Universitária de São Paulo, 2001, p. 11-16.

606

ESTÉTICA DA RECEPÇÃO: POR UMA NOVA MANEIRA DE ESTUDAR OS TEXTOS LITERÁRIOS NAS AULAS DE LITERATURA DO ENSINO MÉDIO.

Gislãne Gonçalves Silva231

Prof. Dr. André Teixeira Cordeiro(Orientador) 232

Resumo: Este artigo propõe-se a estudar as problemáticas que envolvem o Ensino de Literatura no Ensino Médio, bem como apresentar breves considerações sobre a Estética da Recepção e de como ela contribui para a formação de alunos participativos e leitores críticos. O trabalho parte do princípio de que o ensino da disciplina da literatura necessita de ―novos ares‖, diferentes das formas de ensino mecanicistas e tradicionais que vigoram em grande parte das escolas de ensino básico do Brasil, que na maioria das vezes desconsidera o aluno na sua individualidade e como ser social. Não se pretende dessa forma classificar o ensino tradicional como ―inferior‖ ou ineficiente, propõe-se apenas uma nova forma de ensinar literatura. Para melhor compreensão por parte do leitor o artigo está dividido em quatro seções: a primeira é a parte introdutória; logo em seguida são feitas algumas considerações sobre o ensino da literatura; na terceira seção aborda-se a Estética da Recepção; e finalmente as considerações finais.

Palavras-chave: Ensino; Literatura; Estética da Recepção.

Abstract: This article proposes to study the issues surrounding the Teaching of Literature in High School, as well as provide brief comments on the Reception Aesthetics and how it contributes to the formation of students‘ participatory and critical readers. The work assumes that the teaching of the discipline of literature needs "fresh air", different ways of teaching traditional and mechanistic that prevails in most of the primary schools in Brazil, which mostly ignores the student in their individuality and how to be social. It isn‘t intended that way traditional teaching classify as‖ inferior‖ or inefficient, it is proposed that

231 Mestranda em Literatura no Curso de Mestrado e Doutorado em Letras: Ensino de Língua e Literatura na Fundação Universidade Federal do Tocantins (UFT). E-mail: [email protected] 232 Professor do Programa de Pós Graduação em Letras da Fundação Universidade Federal do Tocantins (UFT). E-mail: [email protected]

607 only a new way of teaching literature. For better understanding by the reader the article is divided into four sections: the first section is the introductory part; soon after some considerations on the teaching of literature, in the third section addresses the Reception Aesthetics, and finally, the fourth and final section, considerations end. .

Keywords: Teaching; Literature; Reception Aesthetics.

1. Introdução

O artigo aqui descrito foi elaborado com base nas problemáticas que envolvem o ensino de literatura, mais especificamente no Ensino Médio. De acordo com Compagnon (2009, p. 21) ―o espaço da literatura tornou-se escasso na nossa sociedade há uma geração: na escola, onde os textos didáticos a corroem, ou já a devoraram‖, e quando não é substituída pelos textos didáticos a literatura é utilizada apenas como apoio para o ensino de gramática, escola literária, aspectos históricos etc.

Outras problemáticas envolvendo o ensino da literatura contribuíram para a elaboração desse trabalho, como a questão da não gratuidade do ato de ler, o estudo das obras baseado apenas na biografia ou somente nos elementos textuais etc.

É importante ressaltar que definir o termo literatura é uma atividade complexa e polêmica, por isso vale lembrar a afirmação de Campagnon (2010, p.45) ―a literatura é uma inevitável petição de princípio. Literatura é literatura (...). Seus limites, às vezes se alteram, lentamente, moderadamente, mas é impossível passar de sua extensão a sua compreensão‖, ou seja, definir a literatura é como caçar e muitas vezes o prazer não está na captura da presa.

Enfim, esse trabalho propõe-se a entender o uso da literatura em sala de aula, bem como traçar um breve panorama sobre a Estética da Recepção e suas contribuições para o ensino de Literatura.

2. Algumas problemáticas do Ensino de Literatura

O ensino de literatura nas escolas, mais especificamente no Ensino Médio (EM), tem sido uma das problemáticas da educação porque ela tem espaço reduzido nos currículos escolares, além disso, a literatura vem sendo utilizada como meio para o ensino 608 de gramática, contexto histórico, escola literária entre outros, por isso a necessidade de adotar medidas que vise à melhoria do ensino/aprendizagem da disciplina, afinal, a literatura contribui para o desenvolvimento linguístico, cultural e pessoal do estudante, bem como para o ―aperfeiçoamento‖ da sua capacidade leitora.

Na escola, mas não somente nela, é onde os alunos tem contato com os textos literários, segundo Zilberman (2003, p.16) ―a sala de aula é um espaço privilegiado para o desenvolvimento do gosto pela leitura, assim como um campo de intercâmbio da cultura literária, não podendo ser ignorada, muito menos desmentida sua utilidade.‖

A citação anterior deixa claro que a escola é um dos principais ambientes para que os alunos desenvolvam o prazer e o gosto pela leitura e literatura, porém a realidade nas escolas demonstra que o ato de ler, está sendo realizado de maneira insatisfatória, pois ele é tarefa exclusiva do professor de Língua Portuguesa, além disso, a maioria dos textos são utilizados com o objetivo de ensinar normas gramaticais. De acordo com Koch & Elias (2010, p.21) a leitura remete a um processo de interação entre autor-texto-leitor, o que significa dizer que o sentido do texto não vem pronto, mas é construído através das ―marcas/pistas‖ textuais, das inferências e conhecimentos do leitor, nas palavras de Antônio Candido (2000, p.33) ―o público dá sentido e realidade à obra, e sem ele o autor não se realiza, pois ele é de certo modo o espelho que reflete a sua imagem enquanto criado‖.

No EM a maioria dos professores utilizam o espaço dedicado à literatura para explicar aos estudantes sobre o contexto em que determinada obra foi produzida e/ou publicada, a biografia do autor, em que escola literária a obra se ―encaixa‖ etc., ou seja, o aluno não tem contato direto com o texto ou a obra literária.

Segundo Todorov (2010, p.29) ―na escola, não aprendemos acerca do que falam as obras, mas sim do que falam os críticos‖, isso quer dizer que a obra não é o objeto principal das aulas e sim um meio para se abordar fatos, ideologias de uma dada época. Com esta tomada de posição não se pretende excluir a análise extratextual do ensino, afinal, o sentido de uma obra não depende apenas do leitor e dos elementos intratextuais, porém é preciso que os estudos sobre contexto, ideologia, escola literária sejam os meios e não os fins das aulas de literatura.

Quando o professor permite o contato do aluno com a obra literária ele está contribuindo na formação de leitores competentes e críticos, ou o que ECO (1994, p. 15) irá chamar de ―leitor-modelo‖, aquele que colabora com o texto e se (re)cria a cada nova 609 leitura, no entanto, é preciso que o professor desperte o prazer, a curiosidade do aluno pela literatura, pois sem esses ―itens‖ os demais objetivos da literatura estão fadados ao fracasso.

A utilização dos textos ou das obras literárias para explicar determinada regra gramatical têm contribuído para o aumento das problemáticas do ensino de literatura, além disso, dois erros estão sendo cometidos nessa maneira de ensinar: o texto é utilizado apenas como exemplo e a gramática é estudada de forma descontextualizada, à medida que apenas excertos são usados. Segundo Antunes (2003, p.9) ―explorando os sentidos do texto, estamos explorando também os recursos da gramática da língua. Não há, pois razão para que se conceda primazia ao estudo das classes gramaticais isoladas de suas nomenclaturas e classificações.‖

Ao utilizar frases, orações ou períodos de um determinado texto literário, isolando- as das demais orações que compõem o texto o professor está desconsiderando toda uma gama de fatores que estão explícitos e implícitos no mesmo, tais como: conhecimento de mundo do leitor, ideologia, a linguagem, entre outros.

Outro equívoco cometido durante as aulas de literatura é a busca de sentido de uma obra/texto baseada apenas no aspecto semântico, desconsiderando dois outros aspectos fundamentais: o discursivo e o pragmático.

Há também, na maioria das salas de aula, o que Mendonça (apud MUSSALIM, 2003, p.245) denomina de ―monoleitura autorizada‖, ou seja, há uma prática da padronização das interpretações dos textos, por um determinado agente do ensino, geralmente o professor e/ou o livro didático. Esse fenômeno acontece porque estes dois agentes do ensino são considerados autoridades inquestionáveis e qualquer sentido ou interpretação dada a um texto que destoe das deles é considerada erro.

Então como trabalhar a literatura no EM de maneira que os resultados obtidos sejam no mínimo satisfatórios? É partindo deste questionamento e da Diretriz Curricular de Ensino (DCE), que orienta o professor a não ficar preso somente à historiografia de uma obra, que a Estética da recepção surge como forma proposta para a formação de leitores críticos.

3. Estética da recepção

610

A principal distinção que se pode fazer entre a teoria literária e a literatura é que enquanto esta é uma atividade criadora, arte, aquela trata-se de uma modalidade de compreensão e aprendizagem.

O estudo da literatura inicia-se no século V e IV a. C. com os gregos, mas o termo ―teoria da literatura‖ como é concebido na atualidade foi utilizado pela primeira vez no século XIX, porém sua expansão inicia-se no século XX graças, principalmente a difusão do Ensino Superior.

Logo na primeira metade do século XX a teoria da literatura apresentou diferentes linhas de estudos, tais como: o formalismo, preocupado com a estrutura do gênero literário; e a sociologia da literatura, que apregoa que o indivíduo sofre influência do meio, da raça e do momento histórico, daí o surgimento dos estudos literários voltados para os aspectos sociais representados em uma obra literária.

Após essa primeira ―fase‖ do século XX, na qual o texto era uma preocupação quase que exclusiva dos teóricos, surgiram novas vertentes com foco dos estudos no autor e/ou leitor, entre elas, o pós-estruturalismo, desconstrutivismo, crítica de gênero, estudos pós-coloniais e a estética da recepção, objeto de estudo deste artigo.

A Estética da Recepção ―além de aprimorar os estudos literários, desamarravam- nos do estruturalismo, provocando certa ruptura na relação autor X obra. Inaugura-se a outra metade do caminho: obra X leitor‖ (JUNIOR, p.3). Ela é uma corrente literária que surgiu na segunda metade do século XX e teoriza sobre a importância do leitor no desenrolar da leitura. Tanto a ação quanto o papel do leitor na leitura são elementos importantíssimos e fundamentais para que o fenômeno literário aconteça, segundo a estética da recepção.

A teoria da recepção, como foi dito anteriormente, ―surgiu‖ nos anos 60 do século XX e teve como principais precursores Hans Robert Jauss e Wolfgan Iser. A palestra proferida por Jauss em 1967 foi o marco inicial e fundamental dessa teoria. Para Jauss a história da literatura era estudada com base em padrões ultrapassados e presos a ideias provindas do século XIX, que defendiam a autonomia do texto, bem como o estudo da sua estrutura, por isso ele defendia a importância da ênfase no leitor durante o processo de leitura.

Uma das características da Estética da Recepção é a associação da literatura ao momento histórico, pois a teoria julgava (e ainda julga) que nenhum texto é completamente 611 autônomo, auto-suficiente, diferentemente do estruturalismo, que defendia que o texto não tinha nenhuma relação com o mundo, ou seja, o texto era voltado para si mesmo.

Jauss apresenta sete teses fundamentais da sua teoria. A primeira tese formulada afirma que há uma relação de diálogo entre o texto e o leitor.

―Os modelos textuais descrevem apenas um pólo da situação comunicativa. Pois o repertório e as estratégias textuais se limitam a esboçar e pré-estruturar o potencial do texto; caberá ao leitor atualizá- lo para construir o objeto estético. A estrutura do texto e a estrutura do ato constituem, portanto os dois pólos da situação comunicativa.‖ (ISER, 1999, p.9)

Pelo excerto acima entende-se que o texto não é totalmente auto-suficiente, um monólogo, pois ele se atualiza durante a leitura.

Na segunda tese Jauss deixa claro que uma obra não se apresenta como uma novidade absoluta, pois ela remete, em maior ou menor grau, a textos anteriores.

A terceira tese informa sobre o que ele denomina ―horizonte de expectativa‖, ou seja, como determinada obra foi recebida pelo público leitor. Segundo Jauss o valor estético da obra está ligado diretamente à percepção estética suscitada no leitor.

Na quarta tese o teórico se propõe a examinar a recepção da obra pelo leitor atual e a maneira como foi recebida na época de sua publicação.

A obra e o seu caráter diacrônico são abordados na quinta tese, ou seja, a recepção, da obra ao longo do tempo. Na sexta tese é abordado o caráter sincrônico das obras.

Na sétima e última tese temos a relação entre literatura e vida, nesta tese Jauss afirma que a obra literária tem um aspecto emancipador, pois rompe com as expectativas do leitor.

Após os breves comentários sobre as teses de Jauss, pode-se perceber que a estética da recepção defende que o texto não é uno, ou seja, ―o sentido de um texto literário não é nem claro, nem unívoco, ele não é opressor e remete cada leitor para sua liberdade.‖ (JOUVE, 2010, p.206)

É preciso esclarecer que, segundo Jouve (2010), ―não é porque um texto autoriza várias leituras que ele autoriza qualquer leitura‖, o leitor deve considerar durante a leitura todas as marcas/evidências contidas no texto, nas palavras de Koch & Elias (2010, p.21) ―é de fundamental importância que o leitor considere na e para a produção de sentido as ―sinalizações‖ do texto, além dos conhecimentos que possui.‖. 612

Como foi exposto anteriormente além de Jauss a Estética da Recepção conta com outro teórico de fundamental importância, Wolfgan Iser, enquanto Jauss está ligado à recepção implícita, Iser centraliza seus estudos no ato individual da leitura.

Para Iser um texto só se realiza completamente durante a leitura, que se apresenta como relação dialógica entre o texto e o leitor, mas o leitor de Iser é o implícito, sendo essa uma das principais premissas da sua teoria, ou seja, segundo Iser o leitor é uma estrutura textual.

Segundo Iser (1999, p.10) ―a leitura só se torna um prazer no momento em que nossa produtividade entra em jogo, ou seja, quando os textos nos oferecem a possibilidade de exercer as nossas capacidades.‖ E esta possibilidade é exercida pelo leitor através dos ―espaços vazios‖ do texto, pois esses espaços possibilitam uma nova forma de relação durante a leitura, à medida que desafia o leitor a ter uma maior participação.

O preenchimento, ou a tentativa de preenchimento, dos espaços vazios do texto exigem que o leitor desloque o seu ponto de vista, que mobilize suas perspectivas e acima de tudo desafia o leitor a organizar, processar e considerar todos os elementos já construídos ou em via de construir.

Tanto as ideias de Jauss quanto as de Iser são de fundamental importância para a teoria literária à medida que delegam ao leitor um papel decisivo e, sobretudo, participativo no ato da leitura, levando-o dessa forma a ter um olhar mais amplo e crítico da sua vida e dos textos literários.

4. Considerações finais

A partir das problemáticas envolvendo o ensino de Literatura no EM expostas anteriormente, principalmente no que se refere à falta de contato com a obra e a padronização das leituras/interpretações, percebe-se a necessidade de se adotar uma ―corrente‖ que coloque o aluno-leitor como participante ativo do processo de leitura. Afinal, a leitura nunca será um ato imutável e/ou pronto, pois é somente na relação do leitor com o texto que os sentidos, provisórios e mutáveis, são construídos.

Com o ensino da literatura baseado na Estética da Recepção o leitor é convidado a decifrar/conhecer a narrativa de maneira gradativa, nada lhe é dado, tudo deve ser construído. O leitor é instigado até mesmo a descobrir os significados das palavras, às vezes, estranhas palavras. 613

Em linhas gerais a estética da recepção, proporcionou, e ainda proporciona uma nova maneira de conceber a análise da obra literária, já que ao longo dos anos sempre recaiu sobre o autor e/ou obra. Inaugura-se dessa forma um olhar voltado para a obra e para o leitor e a relação de ambos durante a leitura, pois segundo ECO (1994, p.34) ―o texto é uma máquina preguiçosa que espera muita colaboração da parte do leitor.‖

Em suma, a estética da recepção leva em consideração as leituras e releituras do leitor, que são orientadas pelo texto, afinal de contas essa relação baseia-se na interação entre ambos.

REFERÊNCIAS:

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ERICKSON, F. Prefácio. In: COX, M. I. P.; ASSIS-PETERSON, A. A. de (orgs). Cenas de sala de aula. Campinas: Mercado de Letras, 2001. GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo. Atlas. 1991 ISER, W. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. p. 384 – p. 416. 614

_____. O ato da leitura. São Paulo: Ed. 34, 1999.

JÚNIOR, J.L.F de Sousa. Recepção literária: um dos espelhamentos da modernidade. Disponível em: http://w3.ufms.br/revistaletras/artigos_r3/revista3_4.pdf . Acessado em 29 de Agosto de 2012.

KOCK, I.V.; ELIAS, V. M. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2010. MENDONÇA, Marina Célia. Língua e Ensino: Políticas de Fechamento. In MUSSALIM, F., BENTES, Anna Christina (orgs.). Introdução à linguística 2: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2003

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Tradução Caio Meira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010.

TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987. ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 11. ed. São Paulo: Global, 2003.

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O IMAGINÁRIO POÉTICO: UMA ANÁLISE A PARTIR DO POEMA HINOS DIONISÍACOS AO BOTO, DO AUTOR JOÃO DE JESUS PAES LOUREIRO.

Glenda Duarte233 Renilda Bastos (Orientadora)234

Resumo: O conceito de imaginário poético desenvolvido pelo autor paraense João de Jesus Paes Loureiro, expressa a maneira peculiar, na qual o poeta realiza o seu trabalho na região amazônica, relacionando poesia, mito e encantaria em sua poética, expressão essa que se articula a sucessivas incorporações de elementos de uma dada vivência cultural e simbólica. Desta forma, a partir da leitura do poema Hinos Dionisíacos ao Boto, percebemos que esses temas estão estritamente relacionados ao conceito de imaginário poético explanado pelo autor. Logo, o principal objetivo desta pesquisa consiste em analisar o imaginário poético a partir do poema e por meio dessa análise literária suscitar reflexões a cerca do caráter universal que caracteriza a poesia produzida pelo autor na Amazônia e quais são os aspectos poéticos e narrativos que configuram essa produção.

Palavras – chave: Imaginário poético; Poesia e Encantaria. Abstract: The concept of poetic imagery developed by the author of Jesus Para John Paes Loureiro, expresses the peculiar way in which the poet performs his work in the Amazon region, linking poetry, myth and encantaria in his poetic expression which articulates the successive mergers elements of a given cultural and symbolic experience. Thus, from the reading of the poem Hymns Dionysian Boto, we realize that these issues are closely related to the concept of poetic imagery explained by the author. Therefore, the main objective of this research is to analyze the poetic imagery from the poem and through this literary analysis elicit reflections about the universality featuring the poetry produced by the author of the Amazon and what are the poetic and narrative aspects that shape this production.

Keywords: Imaginary poetic, Poetry and Encantaria.

1. Introdução

O presente trabalho tem como objetivo analisar de que forma o imaginário poético desenvolvido pelo autor João de Jesus Paes Loureiro se expressa na poesia Hinos Dionisíacos ao Boto e a partir da análise literária perceber como os elementos que são característicos da região amazônica se apresentam no poema. Tendo em vista que a poética desenvolvida

233 Graduada em Ciências da Religião (UEPA), Especialista em Estudos Linguísticos e Análise Literária (UEPA), estudante de Letras – Língua Portuguesa (UFPA) e Mestranda do PPGCR na linha de pesquisa hermenêutica das linguagens religiosas (UEPA). Email: [email protected].

234 Graduada em Letras e Artes pela Universidade Federal do Pará, Especialista em Literatura Infanto- Juvenil - PUC / MG, Mestrado em Letras: Teoria Literária pela Universidade Federal do Pará. Professora Adjunto I da Universidade do Estado do Pará e doutora em Ciências Sociais - área de Antropologia pela UFPA 616 pelo autor ressalta a universalidade literária a partir dos signos presentes no mundo amazônico o que propícia a propagação do imaginário. Desta forma, o autor suscita questões vivenciadas por qualquer ser humano, como o sentimento de pertença, de solidão, de admiração, de maravilhamento diante das coisas; sentimentos esses que podem ser entendidos por qualquer pessoa independente da sua condição geográfica. Por esse motivo a sua produção literária está em consonância com diversas correntes literária da atualidade, a prova disso é a exportação da sua produção para diversos países como França, Espanha, Alemanha, Japão, entre outros. Paes Loureiro desenvolve uma obra original, fala da Amazônia sem se prender a estereótipos, seu trabalho é cheio de poeticidade, pois é repleto de sua própria compreensão sensível do mundo através das fontes amazônicas, desenvolvidas poeticamente por meio de metáforas dessa própria realidade. A temática apresentada na obra de Paes Loureiro perpassa por reflexões a cerca da cultura, das artes de uma forma geral, da semiótica, das poéticas que envolvem o imaginário, entre outras coisas. Nesse processo, a realidade cultural existente na Amazônia é o ponto de partida e também o mote inspirador para essas reflexões.

2. O imaginário poético conforme Paes Loureiro.

O imaginário poético desenvolvido por Paes loureiro, consiste principalmente na maneira peculiar na qual o autor elabora a sua poética. Desta forma, a sua poesia reflete o imaginário por meio dos mitos amazônico. Tendo em vista que o tema central do poema está permeado pelo conceito estético-religioso que possuem as encantarias:

Os mitos amazônicos, os ‗encantados‘ que habitam as ‗encantarias‘ - espécie de Olimpo submerso nas águas dos rios da Amazônia - são compreendidos por sua aparência estetizada e por meio dela garantem a força abstrata de sua duração. Eles não falam, não dialogam, não sentenciam, eles não emitem preceitos morais. Revelam-se como imagens de pura aparência. Uma espécie de epifania. Atravessam as galerias do imaginário ribeirinho como iluminações, nunca etnocenografia, hierofânica, um puro deslizar de alegorias. (LOUREIRO 2007: p.26).

A utilização do conceito de imaginário poético presente na obra do poeta suscita reflexões a cerca do caráter universal que possui a poesia produzida por ele na Amazônia e 617 os aspectos poéticos que configuram o mito. Daí surge à necessidade de caracterizarmos o que representa o mito. Para Mircea Eliade (2000), o mito é o relato de uma história verdadeira ocorrida nos tempos primórdios tendo por interferência a ação dos seres sobrenaturais, que dão início a uma nova realidade. Já para Brandão (1997), o mito expressa o mundo e a realidade humana, mas cuja essência é uma representação coletiva, que chegou aos dias atuais passando de geração em geração. Sobre o mito Gilbert Durand diz que:

Entendemos por mito um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas, sistemas dinâmicos que, sob o impulso de um esquema, tende a compor-se em narrativa. O mito é já um esboço de racionalização, dado que utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em idéias. O mito explica um esquema ou um grupo de esquemas. Do mesmo que o arquétipo promovia a idéia e que o símbolo engendra o nome, podemos dizer que o mito promove a doutrina religiosa, o sistema filosófico ou, a história e a narrativa lendária. (DURAND, 1997, p 62-3).

O próprio Loureiro (1995) ressalta que quando o mito é oralizado e dirige-se à provocação de um acontecer ele torna-se poético. E essa é uma forma de fazer poesia, não de maneira formal, mas de maneira simples. Segundo o autor, essa poeticidade nasce do próprio modo de falar do falador, ou seja, de quem conta o mito, na qual a sua intenção é encantar e expressar e não apenas demonstrar a realidade, pois dessa maneira o contador ressalta a estética e a poesia que estão presente no mito. De acordo com Loureiro ―O imaginário é a forma poética do ser, uma forma de imaginação maravilhada, campo da gratuidade pura, uma das formas de finalidade sem fim da existência‖ (LOUREIRO: 1995: p. 326). Sendo assim, quando ocorre a criação dessa imagem poética o homem amazônico tem a possibilidade de oralizar aquilo que há em sua mente, de expressar tudo o que compõem a sua existência humana e é na natureza amazônica que esse ser encontra sua inspiração. Assim, podemos dizer que o homem em sua essência é um ser de devaneios, pois toda a sua vida está permeada por sonhos, fantasias, imaginação. Antes de desfrutar a realização de um desejo, esse desejo foi vivido no mundo das ideias, ás vezes, sonhamos, com riquezas de detalhes que fica difícil diferenciar o real do irreal, e é isso que nos garante o poder do imaginário: 618

O imaginário nos garante as aventuras de sonhar. Sonhamos antes de conhecer. Imaginamos antes de conquistar. Nosso devaneio é incansável, interfere na realidade, o que faz com que, tantas vezes, o imaginário seja mais real do que o real. O imaginário confere ao real sentido. Inclusive o próprio real. Não há real não imaginado. (LOUREIRO: 2007, p 17).

Daí a importância do devaneio poético, pois no mundo do sonho e da fantasia tudo é possível, a linguagem se expressa livremente, sem a preocupação com os interditos impostos pela realidade, o pensamento poético fica livre para se manifestar, mesmo que seja por meio de um silêncio total.

Do devaneio inquieto [...] o vago pensamento não revelado com palavras e, ao mesmo tempo, tecido de palavras – linguagem do pensamento em liberdade. O estado que interliga os seres sob um estado intemporal de poesia – o devaneio poético. Essa linguagem da pura emoção poetizada, anterior ao verbo do poema, mas resistente ao silêncio das palavras. (LOUREIRO, 1995: p.49).

Portanto, a partir do imaginário poético proposto pelo o autor, percebemos que a linguagem é potencializada e por isso torna-se poética, utilizando-se da simbologia amazônica e da experiência local que fomenta o imaginário, ela se encanta, por meios dos mitos, das encantarias e da própria linguagem.

3- O imaginário poético: poesia e encantaria na Amazônia. A partir do poema Hinos Dionisíacos ao Boto, percebemos que na Amazônia os conceitos sobre poesia e encantaria estão estritamente relacionados ao imaginário poético. Segundo Loureiro (2007) essa dimensão transfigurada do real que são as encantarias conferem uma espécie de ilusão da vida, sentimento este primário de toda arte poética. Massaud Moisés identifica a poesia ―como a expressão do ‗eu‘ por meio da linguagem conotativa ou de metáforas polivalentes‖ (MASSAUD: 2008: p.48-49). A poesia interliga vários processos em sua composição entre eles podemos perceber a metáfora utilizada como palavra-chave, pois ela consegue transportar a imagem para o vocabulário literário, por meio dessa palavra central que orienta as demais palavras do poema. Segundo o autor o tempo na poesia não é visto de maneira cronológica, portanto ―a poesia não se insere no tempo (embora possa escolher o tempo como tema), quer dizer, não se prende às dimensões do tempo, não se apresenta em uma ordem temporal, cronológica, com um ‗antes‘ e um ‗depois‘‖(Massaud 2008: p. 50). 619

Além da metáfora e do tempo Moisés nos apresenta o espaço e o enredo na poesia, nesse momento os poetas subvertem a ordem histórica, porque a intenção não é narrar o desenrolar dos fatos, mas sim: Sugerir, evocar, descrever, ou projetar emoções, sentimentos e conceitos a um só tempo [...] a poesia não remete para lugar algum, nem se situa em espaço algum: é a-geográfica. E a própria Natureza que nela pode aparecer obedece ao processo de evocação ou de sugestão metafórica o que corresponde a dizer que constitui sempre um espaço ideal, meramente referencial, cuja presença não se torna, via de regra, imprescindível para que a poesia se realize como tal. (MASSAUD MOISÉS, 2008: p.51).

A poesia é considerada um ato de criação que se configura a partir de um momento de inspiração no qual cada escritor dá voz a sua subjetividade, na Amazônia esse ato de criar é permeado pelo imaginário, a partir do momento que o homem consegue reorganizar sua realidade por meio da propagação desse imaginário ele torna-se poético. Benedito Nunes definiu a poésis (poesia) como:

Produção, fabricação, criação. Há, nessa palavra, uma densidade metafórica e cosmológica que precisamos ter em vista. Significa um produzir que dá forma, um fabricar que engendra, uma criação que organiza, ordena e instaura uma realidade nova. (NUNES: 2001: p. 20).

Jaci Maraschin afirma que ―a poesia nada mais é do que o enunciado em busca de expressão.‖ (MARASCHIN: 2004: p 154). Portanto, quando ela se expressa a partir de um momento de criação, ela adquiri um caráter todo especial, que possibilita um revestimento de sacralidade em seus conteúdos, e essa expressão pode ser percebida por meio da linguagem, assim o autor define a poesia como:

A poesia, por fim, é o símbolo da própria linguagem. É a expressividade em estado nascente. É o símbolo transformado em linguagem. Se a poesia tem a ver com a ausência, então, a imagem poética, ou seja, o símbolo poético, promove a poesia uma reabsorção do real no irreal figurado. (JACI MARASCHIN APUD FRANCO, 1995, p.55).

O imaginário poético pode ser facilmente encontrado nas encantarias dos rios da Amazônia. Essas encantarias são mencionadas várias vezes ao longo de todo o poema, estão diretamente relacionadas ao imaginário235. Como na estrofe: ―das catedrais vitrais do

235 Imagem, imaginação e imaginário radicam no latim imago - ginis. A palavra imagem significa a representação de um objeto ou a reprodução mental de uma sensação na ausência da causa que a produziu, um símbolo. A 620 imaginário‖ (LOUREIRO: 2000, p 29) Essa representação mental, consciente ou não, é formada a partir de vivências, lembranças e percepções passadas, e está sujeita a ser modificada por novas experiências, Conforme Paes Loureiro (1995), no reino natural amazônico, para o caboclo as coisas não são o que parecem ser. Na existência de cada elemento há outra coisa, outro motivo, outra imagem, outra explicação pautada no imaginário, desta forma o mundo físico necessita de uma explicação imaginária, como na estrofe: ―Tu que aos homens te assemelhas / para ser dessemelhante dentre os homens‖ (LOUREIRO: 2000, p 28). No poema, os elementos diários como: o ar, o rio, a floresta, etc. trazem em si um duplo sentido, outra conotação; causando assim um sentimento que o autor chama de maravilhamento:

O maravilhamento traduz uma atitude reveladora de admiração sincera, pura, nascida na surpresa ou na percepção de algo que ultrapassa o real. Algo como uma espécie de origem, destino, uma segunda realidade, nos elementos da natureza circundante. É uma atitude eufórica do espírito. (1995: p.139).

Loureiro ressalta no poema mencionado toda a sua compreensão das encantarias amazônicas ―como troncos submersos em rio de encantarias‖ (LOUREIRO: 2000, p 31). As encantarias são importantes por representar a maneira peculiar que os caboclos236 encontraram para expressar a sua religiosidade, criatividade e o seu imaginário poético na Amazônia:

As encantarias amazônicas são uma zona transcendente que existe no fundo dos rios, correspondente ao Olimpo grego, habitadas pelas divindades encantadas que compõem a teogonia amazônica. É dessa dimensão de uma outra realidade que emergem para superfície dos rios e do devaneio os botos, as iaras, a boiúna, a mãe d‘água, as melodias sedutoras cantadas por invisíveis sereias, as entidades plásticas do fundo das águas e do tempo. É o maravilhoso do rio, equivalente à poetização da realidade histórica promovida pelo maravilhoso épico. Esses prodígios poetizam os rios, os relatos míticos, a paisagem (que é a natureza convertida em sentimento e cultura) e o imaginário. (LOUREIRO, 2007: p. 46)

palavra imaginário também deriva de imagem e significa algo fantástico, fabuloso, ilusório. CF. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1997. 236 O termo caboclo na linguagem indígena significa o homem que vem do mato, da floresta, independente da sua condição racial. CF. Cultura amazônica: uma poética do imaginário. Belém: Cejup, 1995. 621

De acordo com Heraldo Maués e Gisela Villacorta (2004), as pessoas se encantam quando são atraídas por encantados para o reino da encantaria, local no qual habitam:

O encante se encontra "no fundo", normalmente no dos rios e lagos, em cidades subterrâneas ou sub-aquáticas. Para que alguém seja levado para o fundo, por um encantado, é preciso que este "se agrade" da pessoa, por alguma razão. É comum a idéia de que, se alguém for levado por algum encantado para visitar o encante, deve evitar comer as coisas que lhe são oferecidas, caso contrário se encantará, não podendo mais viver no mundo da superfície, como os demais seres humanos. (MAUÉS E VILLACORTA 2004: p.20).

Conforme ainda Maués e Villacorta (2004) Os encantados podem ser considerados entidades invisíveis aos olhos dos mortais e por isso podem manifestar-se de diversas maneiras. E por meio dessas diferentes formas de manifestação, eles podem aparecer em três contextos diferentes, por isso também recebem diferentes nomenclaturas:

São chamados de bichos do fundo quando se manifestam nos rios e igarapés, sob a forma de cobras, peixes, botos e jacarés. Nessa condição, eles são pensados como perigosos, pois podem provocar mau olhado ou flechada de bicho nas pessoas comuns. Caso se manifeste sob a forma humana, nos manguezais ou nas praias, são chamados de "oiaras"; neste caso, eles freqüentemente aparecem como se fossem pessoas conhecidas, amigos ou parentes, e desejam levar as pessoas para o fundo. A terceira forma de manifestação é aquela em que eles, permanecendo invisíveis, incorporam-se nas pessoas, quer sejam aquelas que têm o dom "de nascença" ou que foram escolhidas pelos próprios xamãs (pajés) já formados; nesse caso, são chamados de caruanas, guias ou cavalheiros. Ao manifestar-se nos pajés, durante as sessões xamanísticas, os caruanas vêm para praticar o bem, sobretudo para curar doença. (MAUÉS E VILLACORTA, 2004: p. 21)

A partir do que foi apresentado acima percebemos que a personagem central do poema é o Boto, um encantado considerado como um bicho do fundo, um ser que compõe a mitologia amazônica e é exaltado pelo poeta em forma de hinos237, por sua sacralidade, sensualidade, mistério, perigo, beleza, entre outras coisas. A partir da importância simbólica que o Boto tem para ribeirinhos na Amazônia. O poeta o homenageia poeticamente em forma de hino.

237 Poema ou cântico de veneração louvor ou invocação à divindade. C.F Dicionário Aurélio. 622

Na composição desse poema percebemos que ocorre uma intrínseca relação entre um ser mitológico especificamente amazônico, o boto, com um ser específico da mitologia grega, Dionísio, ao longo do poema os elos que caracterizam tanto um como o outro vão surgindo por meio de efeitos poéticos. Como nos seguintes versos: ―Oh! filho de Dionísio, neto de Selene. / Palavra-templo que te abriga e de onde / errante sacerdote de Dionísio / vagas na margem dos rios e do desejo‖ (LOUREIRO:2000, p 30-31). Desta forma atestamos como ocorre no poema uma das principais características da arte poética do autor João de Jesus Paes Loureiro a relação de uma poesia feita na Amazônia com características que se assemelham com uma poesia dita ‗universal‘. Loureiro nos apresenta no poema analisado a linguagem em forma de reino ―escravo da linguagem que é teu reino‖ (LOUREIRO: 2000, p 28) no qual o mito e a poesia emergem das encantarias como troncos submersos, os mesmos trocos submersos que se transformaram em poesia pelo poeta Rui Barata, Para o autor o caráter poético do mito, assim como o da poesia, navegam nesse rio caudaloso chamado linguagem, a linguagem caracterizada como encantaria. O poeta afirma que no poema ocorre um distanciamento da linguagem propriamente dita e o senso corrente atribuído à comunicação, pois nesse momento de criação a linguagem está transfigurada em ―instância simbólica‖. Por isso ela pode ser: ―Oh! Palavra em festa na linguagem / essência de alegria, gozo, canto, / existência de um ser sendo prazer.‖ (LOUREIRO: 2000, p 32) Com isso, Loureiro desenvolve o processo de transfiguração simbólica, pois o homem por natureza tende a simbolizar tudo ao seu redor e com isso reelabora a sua realidade. De acordo com a mudança da sua posição cultural ocorre o processo chamado por ele de conversão semiótica, que consiste. Para Loureiro, um exemplo de conversão semiótica acontece quando o mito perde a sua dominante mágico-religiosa e transforma-se em poesia, ou seja, a função prática dá lugar à função poética:

A conversão semiótica do mito em poesia se dá quando o mito, deixando de ser matéria existencial nascida em situações individuais ou de grupo, procura reiterar ou legitimar, pelo relato de palavras, o processo poético de integração lingüística e desintegração semântica. Isto é quando o mito, deixando de ser algo que parte de estados de naturais ou sociais, buscando reiteração de sentido, passa a s construir numa significação metafórica, alegórica, uma imagem, um modo irruptivo do instante revelador que nunca é igual a outro (LOUREIRO, 2007, p. 48).

623

Nesse momento o mito se torna ―uma finalidade sem a representação de um fim‖, quando perde o seu caráter normativo e ultrapassa as fronteiras dos interditos. E passam a ser apenas poéticos, pois a partir desse processo é assim que o mito deve se expressar ―O mito, para encantar e não para estabelecer uma norma‖ (LOUREIRO: 2000, p.11). Na Amazônia o homem valoriza suas experiências de vida desenvolve a sua capacidade imaginária transforma a narrativa mítica em poesia, vive a sua consciência mística. ―A poesia, no poema, é um permanente religar do mundo dos homens ao mundo dos deuses e dos mitos‖ (LOUREIRO: 2000, p. 13). A importância da linguagem é ressaltada mais uma vez, agora por meio das poéticas da oralidade. Susanne Langer destaca que ―ao serem narradas como mito, as encantarias são transfiguradas também em formas significantes‖ (SUSANNE LANGER APUD LOUREIRO 2008: p. 08) Loureiro destaca que (1995) essa circunstância cabocla de ―ver maravilha nas coisas‖, que é o modo ribeirinho de conviver e ―estranhar‖ a sua realidade cotidiana, transfigurada tantas vezes pelo devaneio é o reflexo da forma de viver de um povo que é guiado pela memória e pela palavra oralizada, que é uma expressão do seu imaginário a partir da sua realidade cotidiana. Narrar é um ato que aproxima as pessoas. Segundo Walter Benjamin, é possível ocorrer à cura por meio de uma narrativa, pois através do relato de uma história a pessoa se tranqüiliza, escuta e interagi com o narrador e com isso o processo de curar pode acontecer de forma mais rápida e eficaz. Um narrador deve ser performático, porque além de contar uma história ele deve interpretar, falar com a voz e com o corpo deve transmitir para o seu ouvinte toda a emoção, suspense e poder que possui uma narrativa. O contador de história é um transmissor de saber, saber este adquirido com a experiência, como nos diz Walter Benjamin ―A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte que recorreram todos os narradores.‖ (BENJAMIN: 1993, p. 198). Logo, quando não acontece a troca de experiências de pessoa para pessoa, não há narrador. Quando a narrativa mítica perde o seu caráter mágico- religioso e transforma-se esteticamente em poesia, por meio do rio no qual navega a linguagem, temos a expressão da arte poética de Paes Loureiro. No qual se entrelaçam os conceitos de poesia e encantaria na Amazônia.

4- Conclusão 624

Essa pesquisa surgiu a partir das leituras das obras desenvolvidas pelo autor João de Jesus Paes Loureiro, desde então começamos uma investigação para entendermos como se desenvolve o imaginário poético, na poesia do autor. Assim, ao longo de toda a pesquisa procuramos responder essa questão e por fim chegamos a conclusão de que o imaginário poético presente no poema Hinos Dionisíacos ao Boto se expressa por meio da encantaria e da linguagem. E que esse conceito perpassa pelo mito, pelo imaginário popular, pela religião e pela poesia. Nesse sentido, é que levando em consideração todos os aspectos desenvolvidos nesse trabalho poderemos compreender a manifestação do imaginário poético e todas as suas nuances e interações com os elementos próprios da linguagem o que fortalece a produção literária na região amazônica.

Referências

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