YEMANJÁ, UMA SEREIA? O “MITO” AFRICANO NO IMAGINÁRIO DE PESCADORES DO RIO VERMELHO EM SALVADOR, DA BAHIA

Celiana Maria dos Santos

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Relações Etnicorraciais, do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca – CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestra.

Orientador: Professor Dr. Sérgio Luiz de Souza Costa

Rio de Janeiro Dezembro/2013 ii

YEMANJÁ, UMA SEREIA? O “MITO” AFRICANO NO IMAGINÁRIO DE PESCADORES DO RIO VERMELHO EM SALVADOR, DA BAHIA

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Relações Etnicorraciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca CEFET/RJ, como parte dos requisitos à obtenção do título de mestre.

Celiana Maria dos Santos

Aprovada por:

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Presidente, Prof. Sérgio Luiz de Souza Costa, Dr. (Orientador)

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Prof. Álvaro de Oliveira Senra, Dr.

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Profª. Tereza Maria Rolo Fachada Levy Cardoso, Dra.

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do CEFET/RJ

S237 Santos, Celiana Maria dos Iemanjá, uma sereia? O “mito” africano no imaginário de pescadores do Rio Vermelho, em Salvador, da Bahia / Celiana Maria dos Santos. – 2013. xiv, fl.:92 il. color.; enc.

Dissertação (Mestrado) Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, 2013. Bibliografia: f. 90-92 Orientador: Sérgio Luiz de Souza Costa

1 Cultura afro-brasileira. 2. Iemanjá (orixá). 3. Mitologia africana. 4. Identidade social. 5. Pescadores – Bahia. I. Costa, Sérgio Luiz de Souza (0rientador). II. Título.

CDD 305.896081

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Dedicatória

Dedico este trabalho às Energias Sobrenaturais que me dotaram de força criadora e mobilizadora.

A todas as pessoas que fazem do autoconhecimento o caminho indispensável para transcender seus próprios limites.

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Agradecimentos

À minha mãe, Maria Venina, pela referência de disposição para fazer bem feito as coisas a que se propõe.

Ao meu pai, Antonio Paulo (in memoriam), pela afabilidade e bom humor, que sempre o caracterizaram nas mais delicadas circunstâncias da vida.

Aos irmãos e irmãs integrados(as) pelo mesmo chão: Santo Amaro da Purificação/BA.

Aos meus filhos Milena, Adaceli e Franco, fonte incessante de rebuscamentos de minha existência.

Aos/às meus/minhas netos(as) Rian, Luara, João Pedro, Raul, Prince e Ludmila, pelas presenças inspiradoras.

À amiga/irmã Delma Boa Ventura, aos amigos/irmãos Roberto da Cruz Melo e Sinval Teles Sacramento, e à queridíssima Geny Ferreira Guimarães, pela solicitude e apoio incondicionais.

A Severiano Joseh, pela fraternidade e torcida.

Ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA), laboratório de fecundas experiências profissionais e socioafetivas, em especial ao professor Albertino Ferreira Nascimento Jr.

Ao Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ), por tornar possível o exercício do pensar e do fazer diferente.

Aos/às docentes do mestrado acadêmico em Relações Étnico-raciais do CEFET-RJ.

Especiais agradecimentos: Ao professor Roberto Carlos da Silva Borges, primeiro coordenador do Mestrado Acadêmico em Relações Etnicorraciais pela proficiência e franco estímulo ao desenvolvimento deste trabalho.

Ao professor Sérgio Luiz Souza da Costa, meu orientador, pela confiança e pela compreensão de minhas limitações para conciliar trabalho e pesquisa. vi

A todos(as) os/as colegas do Mestrado Acadêmico em Relações Étnico-raciais do CEFET-RJ, pelo gentil e prazeroso convívio.

À jornalista do Jornal A Tarde, Cleidiana Ramos, pela amabilidade e constante solicitude diante dos meus apelos.

Ao professor Ordep Serra, antropólogo da Universidade Federal da Bahia, pelo desprendimento em me receber.

Ao professor do Colégio Estadual Maria de Lourdes Parada Franch, Rosenilson Fernandes e a toda a equipe de trabalho, pela fraternidade e solidariedade.

Ao presidente da Colônia de Pescadores Z1, da cidade de Salvador/BA, Marcos Souza “Branco”, pela receptividade e cooperação em atender às necessidades deste projeto.

Aos pescadores: “Pai Velho”, “Cumprido”, “Mantega”, “Pigmeu”, “Bala na Testa”, Milton, pela ventura da simplicidade e indispensável contribuição para a realização desta pesquisa.

À Mãe Aíce, yalorixá do Terreiro Odé Mirim, da cidade de Salvador.

A Mãe Vera, yalorixá do Terreiro de Oxóssi de Mutalambô, pelo acolhimento e imensa compreensão.

Aos meus/minhas ex-alunos(as), por todas as experiências compartilhadas.

A Armando Raúl Gömöry, pelo amor e pelo companheirismo traduzidos, sobretudo, pelos registros das imagens em forma de vídeos e fotografias.

A todas as pessoas que não foram citadas, mas, lembradas por suas presenças direta e indiretamente.

Às pedras no caminho por me desafiar, no sentido de reinventar alternativas de superação.

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RESUMO

YEMANJÁ, UMA SEREIA? O “MITO” AFRICANO NO IMAGINÁRIO DE PESCADORES DO RIO VERMELHO EM SALVADOR, DA BAHIA

Celiana Maria dos Santos

Orientador

Prof. Dr. Sérgio Luiz de Souza Costa

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca CEFET-RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestra

O presente trabalho consiste de um conjunto de reflexões acerca da ideia de imaginário e mito e seus significantes no lugar da cultura, relacionando-a com elementos que produzem luz para uma aproximação entre o real e o simbólico na construção de identidades. Propõe-se analisar representações do “mito”, circundado por variáveis que deslocam sentidos, conforme os tempos e os lugares. Ao focalizar um coletivo de pescadores da cidade de Salvador e suas representações sobre Yemanjá, objetiva investigar imaginários em torno da divindade africana yorubá, buscando identificar os novos significados a ela emprestados no Brasil. Nesta perspectiva, estabelece um diálogo com as produções teóricas de Stuart Hall, Muniz Sodré, Barthes, Mellucci, Bhabha, Verger, Prandi e outros, gerando uma discussão em torno de identidade, cultura e mitologia no mundo contemporâneo. No âmbito dos estudos sobre mitologias e imaginários evoca trabalhos de Eliade, Durand, Malinowski, Prandi e Verger. Problematiza conceitos em torno da hipótese de “pureza” cultural, ao tempo em que reconhece artifícios ideológicos nas configurações semânticas e materiais que envolvem o conceito de cultura. Desenvolve-se por meio do coletivo de pescadores da Colônia Z1, situada no bairro do Rio Vermelho, em Salvador. A pesquisa de campo, aliada a elementos da pesquisa documental, ofereceu instrumental metodológico para a realização dos objetivos, por possibilitar a escuta sensível aos sujeitos/protagonistas do universo da pesquisa em questão.

Palavras-chave: Cultura; Identidade; Mito; Pescadores; Yemanjá

Rio de Janeiro Dezembro/2013

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ABSTRACT

YEMANJA, A MERMAID? The "Myth" THE AFRICAN IMAGINATION OF RED RIVER FISHERMEN IN SALVADOR, BAHIA

Celiana Maria dos Santos

Advisor

Prof. Dr. Sérgio Luiz de Souza Costa

Abstract of dissertation submitted to Programa de Pós-graduação of the Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET-RJ as partial fulfillment of the requirements for the degree of master

The present work consists of a set of reflections about the myth idea and it’s significant in the place of culture, connecting of it with elements that produce light for n approximation between the reality and the symbolic in the symbolic in the of identities constructions. Proposed to analyze the representations of the "myth", surrounded by variables that move senses, according to the times and the places. While focusing a group of fishermen from Salvador’s city and it’s representations about Yemanja, it aims to investigate dynamism produced around divinity Yoruba during the African Diaspora, looking to identify the new meanings to her borrow in Brazil. In this perspective, establishes a dialogue with the theoretical productions of Stuart Hall, Muniz Sodré, Barthes, Mellucci, Bhabha, Verger, Prandi and others, producing discussion around identity, culture and mythology in the contemporary world. In the context the of studies on mythologies and imaginary it evokes works of Eliade, Durand, Malinowski, Prandi and Verger. Problematic concepts around hypothesis of cultural "purity", to the time which recognizes ideological stratagems in the semantic and material configurations that wrap the concept of culture. At the same time, Yoruba looks for approximation around a divinity of the African Yoruba pantheon, through the fishermen’s collective of the Colony Z1, situated in the district of Rio Vermelho in Salvador, represented by the image/sculpture of a feminine figure in mermaid’s form, at the front Colony Z1. The field work allied to elements of the documentary inquiry, offers methodological of legitimating of the objectives, because of favoring the sensitive listening to the people, protagonists of the universe inquiry to the question.

Keywords: Culture; Identity; Myth; Fishermen; Yemanjá.

Rio de Janeiro Dezembro/2013 ix

Sumário

Introdução ...... 1

I. Universo da pesquisa ...... 5

I. 1 Mapeando as relações etnicorraciais...... 5

I. 1.1 A sutileza do racismo e as identidades “escolarizadas”...... 6

I. 1. 2 O racismo científico: raiz do preconceito...... 9

I. 2 Objetivos...... 10

I. 3 Justificativa...... 10

I. 4 Revisão da literatura ...... 14

I. 5 Suporte metodológico...... 19

I. 6 Corpo dissertativo...... 23

II. Cultura(s): práticas discursivas, rotas e itinerários ou a dança das metáforas?...... 26

II.1 Cultura no contexto da diáspora: hibridizações nas fronteiras...... 30

III. Imaginários, o não lugar onde se embriona o “mito”...... 34

III. 1 A classificação dos “mitos” de Abbagnani...... 35

III. 2 O “mito” segundo Barthes...... 36

III. 3 O caráter sagrado do “mito”...... 39

III. 4 O “mito” na cosmogonia yoruba...... 41

III. 4. 1 Os yorubá na Bahia...... 43 x

IV. Yemanjá, a divindade negra das águas...... 47

IV. 1 Yemanjá: o arquétipo da força feminina...... 49

IV. 2 “Mitos” sobre Yemanjá...... 52

V. No fluxo das águas o refluxo de imaginários...... 59

V.1 A identidade coletivas dos pescadores...... 61

V.1. 2 Atividades de rotina...... 75

V. 2 A formação sociocultural do Rio Vermelho...... 78

V. 3 A celebração de Yemanjá em 2 de fevereiro...... 82

Reflexões finais...... 87

Referências bibliográficas...... 90

Apêndice I. Lista de entrevistados...... 93

Anexo I. Declaração do Prof. Dr. Roberto Carlos da Silva Borges...... 94

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Lista de figuras

Yemanjá dos antigos templos africanos/Foto da Fundação Pierre Verger FIG. I.1 Entrevista a “Pai Velho”...... 25 FIG. I.2 Entrevista a “Nel”...... 25 FIG. III.1 Escultura de Yemanjá/Copacabana ...... 45 FIG. III.2 Placa da escultura de Yemanjá de Copacabana ...... 45 FIG. III.3 Yemanjá da Praia de Botafogo ...... 46 FIG. IV.1 Yemanjá dos antigos templos africanos/Foto da Fundação Pierre Verger ...... 48 FIG. IV.2 Yemanjá dá à luz os orixás ...... 58 FIG. IV.3 Yemanjá do Largo da Mariquita ...... 58 FIG. V.1 Vista de frente da Colônia Z1 ...... 60 FIG. V.2 Faces externa e interna da Colônia Z1 ...... 60 FIG. V.3 O pescador ...... 77 FIG.V.4 Rio Vermelho antigo...... 81 FIG. V.5 Rio Vermelho 2013...... 81 FIG. V.6 A festa de Yemajná...... 82

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Yemanjá dos antigos templos africanos/Foto da Fundação Pierre Verger 1

INTRODUÇÃO

Ela é tão livre que um dia será presa. Presa por quê? Por excesso de liberdade. Mas essa liberdade é inocente? É. Até mesmo ingênua. Então por que a prisão? Porque a liberdade ofende. .

O lugar de onde falo reflete a soma da diversidade na educação, de que me constituo, e da diversidade de que se compõe o conhecimento. Como sujeito da educação, enquanto docente e pedagoga de instituições públicas, aporto sensível na dinâmica sociocultural brasileira. Empenhada na apreensão das circunstâncias históricas em que as relações sociais e etnicorraciais foram construídas e interagem, buscamos dar conta desta compreensão, com vistas a desenvolver aprendizados e contribuições intelectuais. Este trabalho resulta do conjunto de situações de âmbito subjetivo, que me conduziram a um lugar de objetivação. Uma intuição, que se transformou em estranhamento e “uma curiosidade epistemológica, sujeita à análise científica”. Utilizo-me da expressão entre aspas, tomada de um trecho do discurso de (1996), para discutir em torno de identidade cultural.

Na perspectiva das relações etnicorraciais, entendemos assunção de identidade cultural como comprometimento político e engajamento participativo por meio de frentes mobilizadoras de transformação social, optando pelo conhecimento, no sentido de que é possível compartilhá-lo em qualquer espaço onde haja um “outro”. O Outro representa a face no espelho, pois, através dele, permito-me rever conceitos e refletir sobre minha prática social. Desde a formação docente e depois, com a segunda graduação em Pedagogia, encontro na produção teórica de Freire uma fonte de sedução e convite à reflexão acerca de educação em sua organicidade e complexidades compactadas na instituição escolar. Inquieta frente às desigualdades socialmente construídas, reconheço variáveis de matiz etnicorraciais e constato que a escola as reflete cotidianamente, quando da omissão e/ou subvalorização de elementos étnicos basilares da conformação desta sociedade. Reconhecida essa realidade, de que forma podemos intervir para alterar relações sociais estabelecidas por estereotipias que se manifestam em preconceito, discriminação e exclusão? A resposta se anuncia por meio da atitude transgressora. Transgressão que se consubstancia através de embasamento teórico orientado por outros sujeitos, cuja história permanece acesa em nossas memórias. Transgressão que pode se materializar pelo engajamento em distintos espaços: nas ciências, 2 na política, nas artes, na cultura, na educação, nas religiosidades. Por essa razão, valemo-nos da memória e já nos desculpando pela omissão involuntária, para mencionar alguns nomes e gentes dignas de reverência pela passagem entre os mortais: Paulo Freire, Abdias Nascimento, Lélia Gonzalez, Tereza de Calcutá, Zumbi dos Palmares, Chico Mendes, Beatriz Nascimento e todas as etnias indígenas brasileiras que tombaram pela preservação de sua cultura. É desta transgressão que estou a dizer, com vistas à liberdade de expressão das culturas sintetizadoras da sociedade brasileira. Tenho em PAULO FREIRE (1921-1997) uma referência transgressora. Sua obra ultrapassa os muros da escola e abarca a sociedade brasileira em suas bases hegemônicas, quando atenta para a questão da identidade cultural. A veia revolucionária de Freire, que o confinou ao exílio na África, durante a ditadura militar do Brasil na década de 1970, contaminou muitos educadores, no sentido de imaginar e desejar uma sociedade mais igualitária, por meio do saber, da educação e do ensino. Em sua obra, livros como A importância do ato de ler (1989)1, Pedagogia do Oprimido (1987)2, Pedagogia da Esperança (1992)3, Pedagogia da Autonomia4 (1996), atestaram sobre sua opção política-ideológica, ou seja, o emprego de esforço epistemológico para construir, (des)construir e (re)construir conceitos de educação e de ensino, que pudessem alcançar todos os sujeitos sociais em direção à autonomização política por meio do saber construído e socializado. O contato com Freire me animou a fazer intervenções nas instituições educacionais por onde passei, e estimulou a qualidade transgressora, que consideramos vital, diante de qualquer circunstância alienadora, desumanizante e injusta. Nos papéis profissionais de docente e de pedagoga pude experienciar olhares diferenciados do fazer pedagógico e das tramas que o abrangem. A qualidade transgressora a que nos referimos quer significar problematização a tudo o que fere a ética universal do ser humano em sua ontologia, em seu direito à diferença, à sua dignidade, à sua capacidade de tornar-se autor do seu fazer histórico, experimentando alegria por sua construção emancipatória. Portanto, à maneira de Freire, aprender junto, aprender com, aprender ensinando e ensinar aprendendo, eis o desafio. Entre os “saberes necessários à prática educativa”, disse Freire:

1[...] Nesta obra, Freire (1989) destaca a importância da leitura de mundo anterior à palavra. Nós a utilizamos para demonstrar como a instituição escolar brasileira tem excluído significativamente parcelas da população afrodescendente, por desconsiderar experiências de sujeitos histórico-sociais portadores de culturas. 2 [...] Freire preconiza a alteração da ordem social desigual ao dizer: “Somente quando os oprimidos descobrem nitidamente seu opressor e se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua conivência com o regime opressor. Se esta descoberta não pode ser feita puramente em plano intelectual, mas da ação, o que nos parece fundamental é que esta não se cinja a mero ativismo, mas que esteja associada a sério empenho de reflexão, para que seja práxis”. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p.52. 3[...] Freire desenvolve um relato de suas experiências durante os períodos em que travou diálogos com vários grupos sociais dentro e fora do Brasil, os quais buscavam soluções para as situações-limites em que viviam. Essas experiências culminaram com a produção da “Pedagogia do Oprimido”. 4[...] Freire discorre sobre as tensões e os conflitos gerados no processo do “assumir” a identidade cultural, utilizando sua experiência intelectual nos diferentes países que visitara. 3

“Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural. É interessante estender mais um pouco a reflexão sobre a assunção. O verbo assumir é um verbo transitivo e que pode ter como objeto o próprio sujeito que assim se assume.... [...... ] Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos, em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora, ensaiam a experiência profunda de assumir-se. A questão da identidade cultural de que fazem parte a dimensão individual e a de classe dos educandos, cujo respeito é absolutamente fundamental na prática educativa progressista, é problema que não pode ser desprezado. Tem que ver diretamente com a assunção de nós por nós mesmos. É isto que o puro treinamento do professor não faz, perdendo-se e perdendo-o na estreita e pragmática visão do processo”. (FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia, p. 41,1996).

Na lógica do assumir-se com uma identidade cultural, FREIRE (1996) pontua que a formação docente que se julga acima das “intrigas” provocadas pelas forças reacionárias à frente da busca da assunção de si, concorre para a reafirmação dos obstáculos. Porque tal investidura implica um conflito de experiências históricas, políticas, culturais e sociais de indivíduos, incompatíveis, portanto, com o “elitismo autoritário” dos que se pensam donos da verdade e do “saber articulado”. Trazemos duas expressões bastante significativas quando se enseja analisar as gêneses de práticas sociais desiguais e excludentes, sobretudo, de viés racista. O elitismo autoritário e o saber articulado estão intrinsecamente relacionados ao exercício do poder em diferentes espaços, a exemplo do espaço de formação, que é a escola. Sem prescindir da importância dessa instituição, há que refletir sobre os aspectos que a constituem como lócus classificatório de indivíduos, por meio de critérios de seleção, agrupamento, aferimento e, também, de estereotipias. A perspectiva crítica aliada à observação empírica, à experiência profissional e à fundamentação teórica propiciam a constatação de um modelo de escola que mantém elementos ideologizantes de dominação eurocêntrica, cujo ideário de ser humano está consubstanciado no paradigma cientificista e linear. Essa noção de ser humano tende a suprimir a diferença ou, na hipótese de reconhecê- la, valer-se de arranjos para dissimulá-la ao máximo das possibilidades. Nesse contexto a escola se revela como espaço em que os “diferentes” do padrão ideado costumam apresentar maior vulnerabilidade quanto a assunção de suas identidades. Os desenhos curriculares, os ritmos de aprendizagem, as classes sociais e as experiências dos educandos, quase sempre tem sido desconsiderados, dada a obsolescência do modelo a que referimos. Onde estão impressas na escola brasileira do século XXI, as matrizes civilizatórias africanas e indígenas? Que imaginários foram construídos a respeito dos grupos étnicos nativos do solo brasileiro – os indígenas -, e dos grupos étnicos traficados de África? Estas são indagações que se fazem indispensáveis quando pensamos a questão da identidade cultural no e do Brasil, dadas as implicações e imbricações derivadas dos processos de hibridização. As brechas observadas, em especial pelo Movimento Negro e por frentes antirracistas, provocaram debates que culminaram com alterações no texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 4

1996, instaurando um momento novo na história, com repercussões no campo educacional. Tais debates se apresentaram com ênfase desde o final da década de 1990, época em que as noções de identidade, cultura, diversidade cultural e relações étnico-raciais ocuparam a atenção do Ministério da Educação e Cultura (MEC). Nesta ordem de análise a pesquisa se compõe de introdução e cinco capítulos:  Capítulo I – universo da pesquisa, objetivos, justificativa, revisão da literatura, suporte metodológico e corpo dissertativo.  Capítulo II – discute em torno do conceito de cultura, seus aspectos semânticos, filosóficos e ideológicos.  Capítulo III – diálogos sobre mito enquanto elaboração do imaginário humano. Demonstramos racionalidades apreendidas de experiências culturais a respeito da origem da vida, dos mistérios da morte, dos ciclos da natureza e dos sentidos da existência.  Capítulo IV – trata de uma divindade das águas da cultura yoruba. Tratamos com particular importância a este capítulo, por sua singularidade nos estudos das relações etnicorraciais, sobretudo no Brasil, onde o mito de Yemanjá assegurou um destaque cultural de África em diversas regiões brasileiras.  Capítulo V – aborda a categoria de pescadores do bairro do Rio Vermelho em sua identidade enquanto sujeitos de imaginários a respeito de Yemanjá.  Reflexões finais.  Referências bibliográficas.  Apêndice I.  Anexo I.

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CAPÍTULO I O UNIVERSO DA PESQUISA

“Currículos, normas, procedimentos de ensino, teorias, linguagem, materiais didáticos, processos de avaliação são, seguramente, loci das diferenças de gênero, sexualidade, etnia, classe – são constituídos por essas distinções e, ao mesmo tempo, seus produtores. Todas essas dimensões precisam, pois, ser colocadas em discussão. É indispensável questionar não apenas o que ensinamos, mas o modo como ensinamos e que sentidos nossos/as alunos/as dão ao que aprendem. Atrevidamente é preciso, também, problematizar as teorias que orientam nosso trabalho (incluindo, aqui, até mesmo aquelas teorias consideradas “críticas”). Temos de estar atentas/os, sobretudo, para nossa linguagem procurando perceber o sexismo, o racismo e o etnocentrismo que ela frequentemente carrega e institui”. LOURO (1997: 64).

I. 1 Mapeando as relações étnico-raciais

LOURO (1997) nos provoca uma reflexão pertinente, quando descortina a instituição escolar como espaço de produção de desigualdades através das diferenças e das distinções. Nossa perspectiva pedagógica acolhe as diferenças como fatores constituintes da condição humana, mas, recusa a desigualdade enquanto justificativa. Daí a discussão do papel social da escola, do empoderamento que lhe caracteriza e de sua capacidade de distinguir indivíduos, segundo os critérios que a sustentam. Enquanto aparelho ideológico de Estado (AIE) (ALTHUSSER, 1986), a escola replica a ideologia dominante, que sistematizou os saberes segundo uma hierarquização de inteligências. Neste sentido, tem lugar a crítica a este modelo, que detém pressupostos eurocêntricos baseados na ideia de sociedade engessada, a qual “ignora” as diferenças individuais e culturais, ao tempo em que, ideologicamente, delas se utiliza para fomentar exclusões. Ao discutirmos certas práticas educativas veiculadas na escola, temos ciência das complexidades que as caracterizam e, portanto, ensejamos ultrapassar qualquer indício de ingenuidade. Estamos a dizer que a instituição escolar, lugar de onde vemos, tem contribuído para alimentar desigualdades a partir das diferenças. E neste âmbito, vislumbramos a questão étnico-racial. Em sua crítica, LOURO (1997) refere a MICELI (1988) para lembrar uma face do ensino de história. MICELI refere à história tradicionalmente ensinada nas escolas brasileiras, usando o exemplo de um livro didático de 5ª série do 1º grau (ensino fundamental), cujo primeiro capítulo tem como título: “Selvagens e civilizados – Na época dos descobrimentos”. Inferimos daí, como teriam sido construídos imaginários a respeito dos grupos em relação, a partir da chegada dos portugueses: estes, com o domínio da escrita, poderiam escrever e registrar suas conquistas. Pareceria “natural” pertencerem à História, enquanto que os demais 6 grupos – índios - por não disporem de idêntico atributo, seriam considerados “primitivos” e pré- históricos.

I. 1. 1 A sutiIeza do racismo e as identidades “escolarizadas”

A escola, ambiente privilegiado e privilegiador, tão antiga quanto emblemática, caracteriza-se pelo arcabouço do modelamento, apreendido, interiorizado e incorporado de tal maneira, que quase se tornara “naturalizado”. Essa estrutura perpassa os tempos e, em sua ideologização solidamente construída, parece nos embotar a percepção e a sensibilidade para reconhecer e valorizar a diversidade que dá colorido e sentido à existência mesma, da escola. Em tempos de crescente globalização, a escola mantém vívida sua marca, através da organização de vários procedimentos e de um artifício potencialmente poderoso: a linguagem. A linguagem – recurso fundador da desigualdade na escola - sutiliza e objetiva a formação de comportamentos, impõe a disciplina, como estratégia de submetimento e de obediência, de aceitação do status quo da escola, produzindo identidades “escolarizadas”, conforme discursa Louro (LOURO, 1997, apud FOUCAULT, 1987):

“A disciplina “fabrica” indivíduos: ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. Não é um poder triunfante (...); é um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas, permanente. Humildes modalidades, procedimentos menores se os compararmos aos rituais majestosos da soberania ou aos grandes aparelhos de Estado”. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir (1987, p. 153).

A escola forjada pela sociedade ocidental moderna imprimiu sua cultura dentro de outra: a cultura da colonização. Ao reproduzir o projeto hegemonizante, tem concorrido para uma segregação mal dissimulada, separando brancos de negros e de indígenas, apartando católicos de protestantes e de pagãos, crianças de adultos, homens de mulheres, segundo LOURO (1997). Em incessante movimentação no interior do espaço escolar distribuído em divisões de classe, de etnia, de gênero, de sexualidade, de religiosidade, as práticas sociais e culturais denotam um estado de permanente tensão e de aspiração por reconhecimento dos grupos excluídos. Concebida pela racionalidade eurocêntrica, ainda se verifica na escola forte presença da dominação branca, cristã e heterossexual. O que se manifesta fora desses parâmetros corre riscos de estereotipias comprometedoras do psiquismo, do desempenho pessoal e da autorrealização dos sujeitos “diferentes”. Alguns episódios do cotidiano escolar, empiricamente observados na década de 2000 possibilitaram configurações indicadoras de práticas preconceituosas e discriminatórias, quanto a grupos em relação. Entre idas e vindas pelos pátios e corredores do ambiente escolar, há alguns anos, deparamos com uma situação em que um grupo de estudantes evangélicas 7 hostilizara, frontalmente, colegas portadoras de uma estética negra5, dirigindo-lhes palavras ofensivas, a exemplo de “macumbeiras”, “filhas de Satanás”, “bruxas” e outras similares. Ao abordar o grupo ofensivo busquei me inteirar das razões daquele comportamento e a resposta foi imediata: “Porque a Bíblia condena essas coisas, isto não é de Deus!” Era comum à prática desse grupo, sentar-se em um dos vários espaços da escola para cantar canções evangélicas, mas, as estudantes do segundo grupo, apesar de assumirem sua condição religiosa em particular, como praticantes de candomblé, jamais se sentiram livres para fazê-lo, por receio de discriminações. Ao serem questionadas sobre necessária reivindicação de respeito junto à gestão da escola, ouvimos resposta de que seria inútil, porque sempre “sofreram” discriminações e “ninguém nunca fez nada” para defendê-las. Vale destacar que tais atitudes discriminatórias, de maneira explícita e em tom de brincadeira, provocaram constrangimento público; porém, comumente relegadas ao acaso, como se fossem, apenas, atos sem consequências. Outro episódio se deu quando da realização da Semana da Consciência Negra, cuja organização contou com minha participação. Paralelamente, ocorria um procedimento pedagógico em uma sala de aula - o conselho de classe -, enquanto se apresentava a banda de percussão de Salvador, Didá, constituída somente por mulheres, em uma praça interna da escola. As batidas percussivas ressoavam nas salas mais próximas. Na ocasião, uma professora de fenótipos brancos e olhos azuis, de um estado da região sul do Brasil, colocava-se publicamente contrária àquele evento e, naquele dia, questionou: “Por que não criam o dia da Consciência branca? Não se pode trabalhar com um barulho destes!” Compreendemos que não sempre tal processo de hegemonização se faz de modo irreversível, pois reconhecemos que os sujeitos da escola - estudantes, docentes, técnicos e outros -, reagem, resistem e assumem alguma forma de contestação. Embora não seja de interesse discutir a escola em apreço, em sua forma particular de organização e funcionamento, evidências de racialização nas relações sociais dentro da instituição escolar são passíveis de verificação. Há que observar sinais de constrangimento, quando se trata de manifestações culturais oriundas de África, principalmente no que diz respeito à cosmogonia de origem yorubá. Apesar das conquistas obtidas, quer pela produção intelectual - com o advento dos estudos culturais -, ou por meio dos movimentos sociais em torno da temática, as marcas do racismo se projetam em um e outro episódio, individual ou coletivo, pontual ou institucional, colocando em risco as liberdades humanas. O advento das leis 10.639/2003 e 11.645/2008 representam significativo avanço do ponto de vista educacional e cultural, mas, entendemos que é no domínio do político que se encontra o nó a ser desatado no interior e no exterior da escola. Domínio que requer atuação efetiva de protagonistas interessados(as) na recuperação

5[...] Entendemos estética negra como expressão designativa de uma performance, um estilo de se portar socialmente, com acessórios e adereços típicos de etnias africanas, a exemplo de tecidos coloridos, artefatos de contas em forma de colares, pulseiras e brincos, por exemplo. 8 de parte dos legados culturais indígenas e africanos. Estudos sobre essas culturas tornaram-se objeto inadiável no campo das ciências sociais, numa perspectiva interdisciplinar, de modo a situá-las com a relevância que lhe é devida na agenda política de construção da igualdade e da solidariedade social de direito, por todo o planeta. Ao relacionar fundamentos da antropologia, da sociologia e da pedagogia, buscamos perquirir caminhos, cujas pistas nos auxiliem na compreensão de processos conceituais acerca de cultura, mito e identidade através das diásporas, sobretudo a diáspora africana no Brasil. Quanto às relações sociais nos espaços acadêmicos, no tocante à diversidade cultural em que estão factualmente imbricadas, consideramos oportuna a problematização dos saberes articulados, de modo a refletir sobre possibilidades de reorientação de práticas pedagógicas demarcadas pela pluralidade cultural, com vistas à inclusão e pelo respeito às diferenças entre sujeitos diferentes em constante processo de interação. Apesar da inclusão discursiva da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDB 9394/1996)6 em seu artigo 1º, encontramo-nos equidistantes de tal realidade, para a qual seria necessária uma radical transformação nas concepções de sociedade e de educação. Uma escola que não discute internamente, que não dialoga com os movimentos sociais, que não questiona as desigualdades, a que propósito serve? A experiência de ter participado da instauração da política de cotas e seus desdobramentos, e as limitações para a implantação da Lei 10.639/2003 na instituição de onde venho, endossa a necessidade de realização de estudos acadêmicos que possam reverter obscuridades no campo da(s) cultura(s). O desconhecimento generalizado acerca das culturas africana e afro-brasileira no interior da escola reflete o intenso trabalho de ocultamento do valor histórico das etnias formadoras da sociedade brasileira, hoje relegadas a um plano secundário. No entorno da cidade de Salvador, graças às minhas andanças e ao meu olhar atento; e às minhas participações em eventos político-culturais, em que as questões étnico-raciais se constituíam temáticas, pude alinhar impressões que reforçam a hipótese de um racismo espraiado em diversos espaços formais e informais. Racismo que, gestado nos discursos bioantropológicos, concorreu para a construção de imaginários que subvalorizam o ser negro no Brasil e, em Salvador, expõe sua feição excludente. Racismo que se enreda de tantas maneiras quantas são suas sutilezas ou evidências, tornando-se prática institucionalizante.

6[...] Art. 1º “A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e nas manifestações culturais. LDBEN 9394/1996. 9

I. 1. 2 O racismo científico: raiz do preconceito

As teorias bioantropológicas de Gobineau (1816-1882) e Lombroso (1835-1909) comportaram racionalizações racistas durante um período médio de dois séculos. Os discursos bioantropológicos ressoaram por meio de diferentes práticas, incluindo-se as linguagens, às quais estamos todos e todas, de uma maneira ou de outra, implicadas(os). Os desdobramentos do racismo se imbricaram na nação cordial descrita pelo mito da igualdade racial de GILBERTO FREYRE (1900-1987), defendida em seu clássico Casa Grande e Senzala (2002). O regime escravagista foi extinto, mas, a imponência dos discursos de inferiorização ao negro se desmembrou em variações factíveis ao olhar desarmado: racismo social, institucional, religioso, cultural, artístico. Para além dos livros didáticos apresentamos alguns exemplos publicizados no segmento midiático: no cancioneiro carnavalesco da década de 1950, fizeram sucesso canções como “O teu cabelo não nega”, adaptada e interpretada por Lamartine Babo. A letra oferece a visão de uma relação preconceituosa de atração e de medo entre o homem branco e a mulher mulata. A produção poética de (1984) descortina a ideologização branca, em que um velho chavão, particularmente conhecido, diz: “o branco inventou que o negro, quando não suja na entrada, vai sujar na saída” (A mão da limpeza, Gil, 1984). Em outra margem, o compositor e cantor Luís Caldas mobilizou massas, na década de 80, com “Fricote”, cuja mensagem, além de estigmatizar, instigava a violência contra a mulher negra e pobre, desfocada do padrão estético etnocêntrico de beleza. No cinema e na televisão, os papéis destinados aos atores e às atrizes negros(as), com raríssimas exceções, delimitava-os(as) às atividades domésticas e aos trabalhos braçais. Todo esse contexto conformador de uma “pedagogia da discriminação”, como bem aludira ORDEP SERRA (2006), possui suas raízes nas concepções cientificistas de supervaloração eurocêntrica. No artigo de sua autoria, SERRA (2006) relembra o Museu Afro-brasileiro, atualmente situado no Terreiro de Jesus, no Centro Histórico de Salvador, para referenciar um caso de racismo científico nos idos do século XIX. À época, funcionando no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, fora visitado por escolas públicas de ensino fundamental e do secundário. Por mais de meio século, grupos de estudantes receberam orientações em aulas sistemáticas e regulares sobre o candomblé, associando-o a fenômenos patologizantes, haja vista que ali havia objetos, insígnias, símbolos do culto compartindo o mesmo espaço de exposição de fetos deformados, cabeças degoladas de cangaceiros, testículos castrados, armas de crimes, entre outros. Que impressões foram inculcadas naquelas mentes? O que pensar sobre a historiografia africana no Brasil face àquelas representações? Que podemos esperar de uma “história” às avessas sobre África, sem problematizações no ambiente educativo escolar?

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I. 2 OBJETIVOS

Por meio da representação do mito africano de Yemanjá - em forma de sereia na Colônia Z1, no bairro do Rio Vermelho em Salvador -, esta pesquisa propõe:

 Investigar as relações interculturais África/Brasil através da diáspora africana.

 Destacar o protagonismo dos povos africanos na formação social da Bahia e de Salvador, sobretudo, quanto à cosmogonia dos yoruba.

 Analisar cognições sobre mito, cultura e identidade extraídas do imaginário social de pescadores a respeito de Yemanjá.

 Socializar o histórico do “mito” de Yemanjá, dentro e fora da instituição escolar, com vistas à superação de estereotipias e obscurantismos a respeito das matrizes civilizatórias africanas.

I. 3 JUSTIFICATIVA

Parece superada a noção de que a escravidão representa experiência nefasta em qualquer grupo cultural. À semelhança de mancha no tecido histórico do Brasil, face de que muito esforço será empreendido na tentativa de apagamento das memórias, sua truculência, problematizamos práticas sociais caracterizadas por estereotipias. Não obstante a crueldade impressa nos corpos de sujeitos acorrentados nos “navios negreiros”, que tanto inspiraram o poeta Castro Alves, o espectro colonizatório se faz presente. A dívida contraída pelo Estado brasileiro para com as nações indígenas e africanas evoca reparação. Descendentes diretos ou indiretos, agora, mais que nunca, anseiam por protagonismo social. É a diáspora se refazendo com outros tons, outras roupagens, novos discursos. Chamamos a atenção para a dimensão da aventura transnacional, que instaurou uma convivência real e desigual entre europeus e africanos: a negociação possível entre duas matrizes culturais. Embora vivida sob o fantasma do medo e da dor, a diáspora africana possibilitou experiências insólitas, na perspectiva do capital simbólico cunhado pelas relações interculturais entre sujeitos de variadas etnias, estranhos, apesar de idêntica origem territorial. Intercâmbios de costumes e modos de viver culminaram com a composição de um pacto de sobrevivência, único trunfo porque valeria suportar o êxodo. Possivelmente ali, redes de sociabilidades foram costuradas e consolidadas em solidárias afetividades até a chegada em terra firme. A experiência da diáspora há que ser 11 pensada, também, em sua efetiva capacidade estrategista, uma vez que reunira centenas de indivíduos, homens e mulheres identificados(as) por semelhantes condições de vida e interesse comum: a liberdade. Distante do interesse em classificar, mas, atenta às armadilhas do pensamento monolítico a respeito da trama original da composição cultural brasileira, arriscamo-nos a ultrapassar as dicotomias tão desgastantes quanto infrutíferas. Compreendemos a experiência da diáspora como um leque de possibilidades e de contradições. A Bahia, primeiro solo de desembarque, encenou o processo colonizatório brasileiro, iniciado no século XVI, com a expansão do projeto de dominação mercantilista europeu na América. Do regime imposto aos africanos à época, resultou, como consequência primeira, uma espécie de ruptura no conjunto das etnias e das culturas de diversos grupos aglutinados na grande travessia oceânica, alterando seus códigos amalgamados por idiomas, práticas e iconografias. Contudo, os sobreviventes criaram arranjos que, até então se fazem refletir na cidade de Salvador, estado de maior contingente populacional de descendentes africanos: trouxeram sua sabedoria milenar, sua musicalidade, uma estilística literária, uma culinária, uma expressividade corporal. As gentes africanas escravizadas “inventaram” os quilombos e fincaram as bases de uma religiosidade: o candomblé. Todas essas estratégias de sobrevivência, utilizando a corporalidade como instrumento de luta e de preservação, a exemplo da capoeira. Insistimos em problematizar a identidade neste contexto. Como se deu e se dá a construção da identidade nos grupos sociais de afrodescendentes? De que maneira se sentem e se veem, enquanto sujeitos da cultura? Que sabem a respeito de seus ancestres africanos? Com estes questionamentos, optamos pela abordagem investigativa do imaginário, em direção a um dos aspectos mais emblemáticos da matriz civilizatória africana no Brasil: sua cosmogonia. A cidade de Salvador cultua um dos mais conhecidos mitos do panteão africano - o orixá Yemanjá. A cidade possui um grande número de terreiros de candomblé - 1.164 -, segundo SANTOS, J. T. (2008) e o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade Federal da Bahia. Entretanto, Salvador reflete antagonismos em relação a sua expressividade cultural/religiosa: de um lado, flui em grande festividade a homenagear um orixá7, no dia 2 de fevereiro; por outro lado, em seu cotidiano discrimina grupos sociais praticantes de candomblé.

7 [...] Etimologicamente, o termo orixá foi utilizado por Frobenius (FROBENIUS, 1939) e outros pesquisadores, quando de sua visita ao continente africano, em pesquisa etnográfica no século XVIII. O termo é de origem inglesa, mas, segundo Ramos, seu significado é indefinido. Entre os antropólogos, seus contemporâneos, a palavra orixá deriva de asha, cerimônia religiosa; outros a associaram à formação de ri – “ver”, “achar”; e sha – “escolher”, “selecionar”. A experiência está descrita no livro “As culturas negras: uma introdução à Antropologia”. Rio de Janeiro, 1972. Não constatamos consenso a respeito do conceito de orixá. Entretanto, a tradição yorubá associa orixá diretamente a cada elemento da natureza. Segundo Verger (VERGER, 1948) o orixá teria sido “um ancestral divinizado que, em vida estabelecera vínculos que lhes garantira controle sobre certas forças da natureza como o trovão, o vento, as águas doces e salgadas... assegurando-lhe a possibilidade de exercer certas atividades como a caça, o trabalho com metais... adquirindo o conhecimento das propriedades das plantas e de sua utilização... O poder, axé do ancestral-orixá teria, após sua morte, a faculdade de encarnar-se, momentaneamente, em um de seus descendentes durante um fenômeno de possessão por ele provocada” (VERGER. Pierre Fatumbi. Orixás, 2009). 12

Esta pesquisa se pautou em criteriosa fundamentação e cuidados de aproximação junto aos sujeitos/pescadores, dadas as complexidades de que se compõe o imaginário, envolto em aura de mistério e subjetivações; atravessados por simbolismos e por influências sociohistóricas. No caso da nação brasileira estruturada, ora pela força bruta, ora pelo aparelhamento ideológico, imposta aos nativos da América – indígenas -, e aos povos traficados de África, interessa-nos contribuir junto aos estudos sociológicos e antropológicos, com ênfase na participação dos africanos e de seus descendentes. Esses grupos deram e dão sustentação à vida social brasileira nos mais diversos campos: ciência, política, economia, língua, educação, afetividades, culinária, religiosidade e arte, nesta última, apresentando notória versatilidade corporal, melódica e poética. O escopo deste trabalho abarca o mito, como elemento fundante de identidade, no âmbito da cultura hibridizada brasileira, tomando como referência os elementos constitutivos do imaginário de pescadores do Rio Vermelho, na cidade de Salvador, a respeito de Yemanjá. Estas dimensões estarão, a todo tempo, articuladas na perspectiva relacional, ligadas direta ou indiretamente a um contexto étnico-racial. Motiva-nos investigar quem são esses sujeitos no enfoque mítico; suas representações a respeito de Yemanjá e como se dinamiza sua relação com o mar, domínio metafísico da divindade das águas dos yoruba. A representação de Yemanjá, branca e em forma de sereia, suscitou investigação quanto às circunstâncias históricas e culturais, quando consideramos sua relação de pertença a uma cultura, cuja existência data de significativa anterioridade ao surgimento da América. Trata-se da cultura yoruba, bastante antiga e caracterizada por uma “complexa iconografia”, conforme RAMOS (1972) apud FROBENIUS (1939). Dotado de aguda criticidade neste aspecto, RAMOS (1972) classificou como “deficiência de observação” dos primeiros etnógrafos, a noção de fetichismo associada à grosseria e à selvageria da religião africana. RAMOS (1972) reconheceu na mitologia yoruba, um dos mais importantes objetos de estudo da cultura não material, dada a forma em que se estruturava por “um cerimonial altamente organizado”. Ex-aluno de NINA RODRIGUES (1862-1906), RAMOS (1903-1949) produziu vasta obra acerca dos povos africanos - cultura, mitologia, economia e organização social. Apesar de sua admiração ao mestre intelectual, teceu vigorosas críticas a toda e qualquer cognição da época, não apenas a Nina Rodrigues, como também, às correntes científicas que sustentavam o racismo ao ser negro. Daí que podemos inferir o trabalho de intensa desqualificação humana aos africanos aportados no Brasil, aos quais fora destinada a vida de servidão. A ideologização do recalque (LUZ, 2011) dedicou significativo volume de energia para se entranhar nas mentes dos “colonizados” e inculcar-lhe a noção de inferioridade. O projeto de dominação dispunha de capital econômico para fincar seus interesses e estabelecer a desigualdade de forças; portanto, determinou a própria hegemonização: desenhou o modelo de Estado, forjou a economia, arquitetou a escola e disseminou o catolicismo por meio de 13 réplicas da Igreja na maioria das capitais e cidades do Brasil. Toda essa engenhosidade construída pelo braço africano, para quem as “estranhas catedrais”8 não possuíam sentido. No entanto, se questionarmos acerca do protagonismo do povo negro, em condições de igualdade social em todos os espaços de visibilidade, que resposta teremos que já não seja conhecida? Em que nichos da sociedade brasileira a cultura negra se destaca? Que atenção a sociedade baiana dispensa ao patrimônio iconográfico dos povos africanos? Que religiões praticadas por contingentes de negros são toleradas socialmente? O fato de terem aprendido a “ocultar” sua cosmogonia durante o período colonial concorreu para desvalorizá-la, relegando-a a algo condenável? O universo da pesquisa esboça algumas hipóteses, prevenindo conclusões aligeiradas, que poderiam desviar seu objetivo primeiro. Pontuamos que a pesquisa de campo propiciou rica experiência, em que a escuta se destacou como ferramenta mais valiosa e surpreendente, quanto ao desvelamento de seus elementos constitutivos. A abordagem sobre imaginários se coloca como ponte entre a academia e a sociedade circundante, enquanto tentativa de aproximação de categorias representativas do legado cultural africano. Ao mesmo tempo desponta como evocação ao acervo civilizatório de povos africanos, a quem legitimamente se deve a edificação simbólica e material do Brasil. Neste sentido, investigar um mito da religiosidade de matriz africana yoruba no Brasil - um orixá -, quer significar problematização do preconceito a sujeitos do candomblé, por exemplo, que, ainda encontram restrições de assunção de sua prática religiosa, que vão da autodeclaração ao exercício de rituais públicos, como “arriar”9 uma oferenda para um “orixá”. Enquanto medida de Estado, o ensino obrigatório das culturas afro-brasileira e indígena parece não ter alcançado seu objetivo nas escolas de Salvador, uma vez que constatamos, empiricamente, um “alheamento” generalizado sobre a própria cidade onde estão localizadas as marcas dessas culturas. Entre os indicadores desse “alheamento” apontamos a Festa de Yemanjá, que acontece em Salvador há décadas todos os anos e integra o calendário de festas populares. A arquitetura da cidade foi basicamente construída pelos africanos, espelhada no Centro Histórico - Pelourinho, Terreiro de Jesus, Praça Municipal e a Praça da Sé –, nesta última se encontra a escultura de Zumbi dos Palmares. Acrescentamos o centro comercial de Salvador, com suas construções seculares, e o Mercado Modelo. O conjunto arquitetônico das igrejas católicas espalhadas pela cidade compõe um retrato inequívoco da presença africana. As esculturas de orixás no Dique do Tororó, em Salvador, sinalizam o legado mítico da cultura africana. De autoria do artista plástico Tati Moreno, essas esculturas evidenciam a relação entre África e Brasil, conformando uma estética bastante vívida e marcante para quem reconhece na cultura, uma fonte de conhecimento e de sentidos do existir

8 [...] Expressão utilizada por de Hollanda, na produção poética “Vai passar”, de 1984. 9 [...] “Arriar” é uma palavra recorrente no ambiente de candomblé e costuma referir a uma oferenda para orixá, em local privado ou público, que, no último caso, pode ser a rua ou espaços onde a natureza é mais presente. 14 humano. Os marcadores da presença negra na paisagem urbana de Salvador, através de imagens, da arte, do trabalho, das religiosidades, do conhecimento, entre outros, oferecem farto material que pode ser aproveitado pela escola, graças a sua função formativa e difusora do conhecimento. Por sua relevância como representação simbólica de matriz civilizatória africana, a opção pelo “mito” de Yemanjá nos conduziu a um lugar da cultura. Lugar permeado por imaginários; ambiente onde sujeitos sociais constroem e reconstroem a história, dizendo de seus saberes e de seus fazeres, recortados por nuances e conflitos, memórias e lacunas, intercalados por fatores geracionais, agrupados por uma identidade, vivendo situações de vulnerabilidade diária e códigos internalizados.

I. 4 REVISÃO DA LITERATURA

Buscamos apoio em estudos sobre cultura, identidade, imaginários e mitologias, transitando entre teorias pós-colonialistas dos campos da sociologia, da semiologia e da antropologia: Stuart Hall, Néstor Canclíni, Homi Bhabha, Muniz Sodré, Saussure, Alberto Mellucci, Paul Gilroy, Jurema Werneck, Achille Mbembe, Marc Augé, Pierre Verger, entre outros. Os autores que trabalham com a noção de cultura – Hall, Bhabha, Gilroy, Augé, Canclíni -, discursam em torno da ideia de cultura enquanto construção social em zonas de fronteira, isto é, cultura como movimento constitutivo da condição humana, de comunicação, de trocas simbólicas e materiais, de atravessamentos. As formulações desses autores foram extraídas dos processos de hibridização, domínio de linguagens e representações. Cultura como lugar demarcado por contradições e tensões, aproximações e fendas, semelhanças e diferenças, imaginários, representações, ideologias, beleza e amor, jogo de vida e de morte, paradoxos e possibilidades de transgressão. À noção de cultura associa-se movimento, portanto, desloca-a do caráter de fixidez, o que seria sua morte semântica. O entendimento de que toda cultura possui características codificadas e oscilantes entre a tradição, a tradução e as múltiplas relações no interior e no exterior de si mesmas se imbrica, à medida que avançamos. Ressaltamos o fato de que todo povo, ao criar sua cultura concebe e dá substancia às suas cosmogonias, criando o “mito” enquanto fundamento e símbolo da própria existência. Compreendemos, portanto, que mito e imaginários são elementos indissociáveis. Para dialogar sobre mitologias trouxemos a esta roda Mircea Eliade, Gilford Durand, Roland Barthes, Pierre Verger e Prandi, inspiradores de análise discursiva para a articulação do bloco mito e imaginário. 15

Nossa perspectiva de mito é a da tradição, no sentido de apreender o processo original de experiências passadas e atualizadas no presente. Contudo, consideramos as cognições de BARTHES (1988) no livro Mitologias, pelo caráter ideológico que ele confere ao tema, pertinente e fecundo quando pensamos culturas hibridizadas como a brasileira. Referimo-nos à tradição yoruba e sua cosmogonia, difundida pelo grupo nagô10 que, durante a diáspora africana derivou no Brasil, múltiplas interpretações. Nela, o “mito” de origem, Yemanjá, sintetiza um conjunto de arquétipos da força feminina, da gênese da criação por meio das águas, dos mistérios da vida, do amor e do desejo, da maternidade e da proteção. Constatamos por meio da pesquisa de campo, “vazios” de memória em relação à origem do mito Yemanjá, por alguns sujeitos entrevistados. Atribuímos esses vazios ao “recalcamento ideológico” de que trata LUZ (1994). CORNEL WEST (1994) aborda a mudança de eixos conjunturais na geopolítica cultural, com o deslocamento da referencialidade de sujeito universal da Europa para o eixo norte- americano, no pós-colonialismo. Percebe-se que esse deslocamento do poder do continente europeu para o continente norte-americano manteve o perfil e predomínio branco sobre as demais etnias. Contudo, alterou radicalmente a ideia de cultura, em face da presença do sujeito negro na cena da modernidade norte-americana. Nela, a performance cultural do negro fincada em uma estilística de base vernacular, em que a corporalidade constituiu seu capital cultural, provocou novos comportamentos sociais, embora, condicionando a presença do negro a uma hierarquização étnica interna. Apesar disto, a cultura negra introduziu traços que foram incorporados à cena: componentes artísticos de uma musicalidade diversificada e reconhecida, numa demonstração inovadora de valorização da cultura africana em outro lugar que não o seu, de origem. A presença negra nos Estados Unidos dinamizou, persistentemente, formas de reivindicação da diferença, entre outras, com a produção de artes. Por esse viés, as comunidades negras projetaram seus modos de sentir, pensar e contestar, afirmando sua presença e construindo história. A enunciação de BHABHA (1998) questiona o “local da cultura” no mundo pós-colonial e o faz, colocando na pauta das discussões elementos da psicanálise, por exemplo, para analisar os efeitos psíquicos nos corpos dos indivíduos da diáspora africana. Ao utilizar metáforas por meio de contos (O Coração das Trevas) e poemas, expõe inquietações sobre tradução cultural. Caracteriza a cultura na pós-modernidade como “o lugar de subversão e de transgressão, lugar da instabilidade, da indecibilidade e da solidariedade” entre etnias ao encontro da história colonial. A exemplo da colonização do Caribe e das incertezas identitárias derivadas, BHABHA (1998) lembra o belo poema de Derek Walcott “Minha raça nasceu como nasceu o mar, sem nomes, sem horizonte, com seixos sobre minha língua, com estrelas

10 [...] Denominação geral dada pelos franceses aos africanos da Costa dos Escravos. Cf. RAMOS. Culturas Negras - Introdução à Antropologia Brasileira. Volume III, 1972. 16

diferentes sobre mim” (BHABHA, 1998). Podemos inferir de seu discurso, que Bhabha admite a imprecisão conceitual de cultura. Entretanto lhe atribui caráter de melancolia, uma vez que o “local da cultura” é, de certa maneira, o local onde forças tirânicas se confrontam em disputas de morte simbólica ou material, ou de ambas. Quando não de forma material, há que observar as transformações produzidas nos corpos dos sujeitos “aculturados”, cujas consequências reverberaram em novos modos de se verem e se portarem no mundo em relação, nas relações sociais construídas a partir das diferenças. Desta maneira foram gestadas outras sociabilidades, outras religiosidades, outros agenciamentos políticos, outras formas de sobrevivência e outros modos de conceberem cosmogonias originárias. BHABHA (1988) inaugura a possibilidade de uma terceira via para a questão da cultura, que transcenda os binarismos conceituais. Na esteira das abordagens psicanalíticas de Bhabha nos movemos. Suas cognições proporcionam extraordinária contribuição para os estudos culturais, assim como a FANON (2008) recorremos para expor um viés do psiquismo afetado pelo contato com a diferença. Sua refinada acuidade se fez presente quando relatou a própria experiência de transição cultural entre seu país de origem – as Antilhas - para a França e escancarou o problema do racismo de forma dramática, colocando-nos de frente para uma circunstância histórica que beira a insanidade. Sua eminente obra Peles Negras, Máscaras Brancas expressa a crueldade do viver à sombra das fronteiras de um caos instaurado pela hegemonia da matriz civilizatória europeia, que se impunha à mercê da alteridade do Outro, submetendo-o à destrutividade do eu profundo do ser diferente, no caso, o não branco, o “negro”. O artifício da linguagem como instrumento ideologizante eurocêntrico incidiu tal qual uma foice sobre o pescoço do condenado, qual seja o subalternizado de qualquer origem ou etnia. As diásporas influenciaram as culturas, desestabilizando a hipótese de purismo. Contudo, aplicou considerável peso na linguagem. Como dissera acertadamente FANON (2008), “há na posse da linguagem um extraordinário poder. Paul Valéry sabia-o, quando fazia da linguagem “o deus na carne perdido””. Ainda lembra FANON (2006) que:

“Todo o povo colonizado, ou seja, todo o povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade, derivado do enterrar da originalidade cultural-local, situa-se em função da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. O colonizado ter-se-á tanto mais evadido da selva quanto tiver feito seus os valores culturais da metrópole. Será tanto mais branco quanto tiver rejeitado a sua negrura, a sua selva. No exército colonial, e mais especialmente nos regimentos de atiradores senegaleses, os oficiais indígenas são, antes de tudo, intérpretes. Servem para transmitir aos seus congêneres as ordens do senhor, e gozam eles de uma certa honorabilidade”. (FANON, 2006).

O aprendizado do idioma foi o estágio inicial da aventura diaspórica forçada. Primeiro estágio para a sobrevivência e primeiro passo, também, para a insurgência. Inexoravelmente, o instrumento de comunicação para o exercício do jogo de poder. Aos grupos subalternizados se 17 lhes fora exigido o domínio da língua dos que se encontravam na posição de controle. Na aventura, os demônios das disputas inter-étnicas se confrontaram em agonia e desespero. Não teria se inspirado no horror ao tráfico humano o poeta Castro Alves, ao escrever “Navios Negreiros”? Seu poema é um sintoma das tensões daqueles tempos. A hipótese de inferioridade cultural atribuída às etnias africanas submetidas ao jugo colonialista seria de um reducionismo insuportável, quando pensamos a energia criadora e a capacidade de luta daqueles povos, tão acostumados a guerrear em seus territórios de origem, a exemplo dos yoruba. Daí utilizarmos rudimentos da ciência histórica11, a fim de revermos contextos culturais necessários à consolidação do nosso argumento, ou seja: conhecer uma realidade, sem a pretensão de querer reproduzi-la fidedignamente, mas, sim, compará-la, articulá-la numa aproximação entre o passado e o presente, à maneira de uma vaga lembrança, uma recordação, uma re-contação. Para tanto, demonstramos como as relações interculturais podem ser delimitadas por campos de poder e de interesses em disputa; em outra margem, podem estar impregnadas de sentidos, de afetos e de “desafios do presente”, conforme dissera Benjamim (BENJAMIM, 1994). Empregamos a noção de “tempo” em duas vertentes conceituais, a partir de duas matrizes: a europeia e a africana. O “tempo” submetido à logica ocidental, racionalizado e cronometrado segundo interesses em disputa na égide do capitalismo, e o “tempo” assimilado nas antigas sociedades africanas, em sincronia com os dinamismos da Natureza. Nesta ordem, dialogamos com PRANDI (2000) e sua obra A mitologia dos orixás. O tempo moderno instaurado no Ocidente, com o advento da industrialização no século XVIII, alterou radicalmente as relações humanas nas esferas do social. Moldado na invenção do relógio, baseado numa racionalidade técnica, o tempo tornou-se ponto fulcral do capitalismo moderno, sua pedra basilar. A Revolução Industrial do século XVIII, parida do ventre da Inglaterra, produziu repercussões de dimensões globais no hemisfério ocidental. Tempo de planejamento, objetivação, programação de metas, foco em resultados e avaliação em moldes de feedbacks, com vistas ao reordenamento do plano inicial. Tal lógica incluiu condutas de abstinência em face de prazeres comuns, objetivando o máximo em termos de acumulação e capitalização de bens materiais. A ideia de tempo do paradigma judaico-cristão se enraizou e se cristalizou no processo histórico da humanidade. Esse tempo imaginado como um fenômeno cíclico ideado pelo cristianismo é apropriado pela época moderna, (des)envolvendo- o do invólucro religioso, conforme enuncia MELLUCCI (1991), para associá-lo a progresso, riqueza das nações ou revolução (MELLUCCI, 1991). À semelhança de sociedades primitivas/tradicionais o cristianismo preserva a noção cíclica de tempo, mas introduz outro elemento: a linearidade. Na mesma obra, MELLUCCI apresenta enunciações sobre o tempo

11 [...] A expressão foi cunhada pelo filósofo alemão WALTER BENJAMIN (1892-1940). Sua concepção de história destoa do clássico e inaugura um conceito que associa o fato presente ao passado, numa relação de afeto e memória. 18 nas diferentes culturas humanas e suas relações com os sentidos que lhes dão consistência. Na representação inicial do círculo, o tempo é apreendido como um fenômeno cíclico de todas as coisas, determinado por uma lei imposta a partir de um fato primário e atemporal, que se repete nos eventos visíveis. A repetitividade dos eventos passa a governar seu aparecimento e desaparecimento regularmente, dando origem ao “mito”, como ocorre na história da fundação de uma tribo. Segundo o autor, as coisas se repetem, nada está definitivamente consumado, adquirido ou perdido, quando comparado com os vastos ciclos da natureza, nos quais essa prática busca inspiração. A inspiração na natureza está presente em culturas as mais equidistantes, na cultura chinesa, nas culturas ameríndias ou na Europa medieval. Portanto, as culturas tradicionais sempre privilegiaram os ritmos profundos da natureza (MELUCCI, 1991). A noção de tempo ocidental se orienta pela gênese e final dos tempos, pela ideia da queda e da redenção do cristianismo, que se desdobra em um percurso linear. Representada pela flecha, tal noção remete a uma finalidade que é um fim, em si mesmo, o ponto final que empresta significado às etapas anteriores e dá luz às passagens intermediárias (MELUCCI, 1991). Essa lógica predomina na organização das sociedades modernas de tal maneira, que o tempo se tornou senhor das ações humanas, ao ponto de se tornar diretamente associado ao capital num famoso adágio popular que diz: “tempo é dinheiro”. O Mestrado Acadêmico em Relações Étnico-raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ) foi gestado na concepção interdisciplinar, a qual faculta a diversidade quanto aos modos de perceber e apreender um objeto comum no ambiente acadêmico. A linha de pesquisa “Campo artístico e construção de Etnicidades” desponta como um leque de opções interessantes, quando pensamos a sociedade brasileira, diversa e acentuadamente criativa. A criatividade do povo brasileiro se expressa de tantas formas, quantas variadas são as origens das classes sociais que o constituem. A arte brasileira atravessa fronteiras geopolíticas e atrai pesquisadores, investimentos jornalísticos e produções culturais, investimentos financeiros internos e externos, provocando intensa circulação de trocas, dentro e fora do país. Ressaltamos que o campo artístico brasileiro efervesce em todas as regiões brasileiras, resguardados os estilos e as singularidades. E neste campo, mais uma vez, em analogia à experiência diaspórica, múltiplas vozes e identidades se confrontam em profusões indescritíveis. A poética Reconvexo, de , ilustra a interculturalidade ao mesclar África com Europa, Olodum com Henri Salvador e Andy Warhol, conforme o trecho abaixo: “Eu sou a sombra da voz da matriarca da Roma Negra, Você não me pega, você nem chega a me ver Meu som te cega, careta, quem é você? Que não sentiu o suingue de Henri Salvador, Que não seguiu o Olodum, balançando o Pelô E que não riu com a risada de Andy Warhol Que não, que não e que disse que não?”. CAETANO VELOSO, 1986.

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Quem não ouviu falar da capoeira, das escolas de samba, da pintura de Portinari, da música de Villa-Lobos, do ator , do escritor , do poeta e músico Vinicius de Morais, das brasileiras que receberam o título de Miss? A arte brasileira é uma referência a mais como elemento de fusão de simbólicos e de culturas. A arte e o simbólico foram elementos de decisiva preservação de culturas em relação, coroando com a beleza, o suplício do degredo. Apesar de toda essa profusão de arte, o fantasma do racismo nos persegue, concorrendo para comprometer o desenvolvimento social e cultural do país. Enquanto muitos países desenvolvidos já superaram questões dessa natureza e buscam solucionar outras, relativas a direitos sociais, estamos às voltas com o espectro do racismo secularizado. Atinamos com a necessidade de revisão da construção dos estereótipos, descortinando as bases em que o racismo fez escola, para transcendê-los com determinação. O esforço de setores da sociedade brasileira, no sentido de trazer para o centro do debate o tema das relações étnico-raciais merece menção honrosa, pois alinha discurso e prática, a exemplo do CEFET-RJ. Frentes que o antecederam na história dos movimentos sociais merecem destaque, fazemos jus ao Movimento Negro. Contudo, muito há que fazer diante dos desafios que se colocam inadiáveis.

I. 5 SUPORTE METODOLÓGICO

O presente trabalho se caracteriza como pesquisa de campo etnográfica, com ênfase na descrição densa. Empregamos recursos da pesquisa documental, por entendermos que as narrativas orais em estudos desta natureza podem ser complementadas por registros escritos. A descrição densa é a expressão que o antropólogo CLIFFORD GEERTZ (2008) utiliza por empréstimo a GILBERT RYLE (1900-1976) para definir o tipo de esforço intelectual realizado pela pesquisa etnográfica. Mais que um método que implica em um conjunto de procedimentos: selecionar um objeto, instrumentalizar-se com “um diário de campo, mapear o espaço, entrevistar informantes, fazer o censo doméstico, traçar as linhas de propriedade” (GEERTZ, 2008, p. 7), o exercício etnográfico requer a construção de uma interpretação por meio da apreensão e de posterior apresentação da realidade observada, segundo sua importância no contexto a que se comprometeu o(a) praticante da etnografia. GEERTZ (2008) lembra que na tentativa de interpretação de uma realidade cultural, há que considerar dois aspectos entre as estruturas de significação: códigos estabelecidos, segundo RYLE (1900-1976), e determinação da base social e sua importância. Empreendi este trabalho por este método, motivada pela tentativa de compreensão dos comportamentos sociais discriminatórios em relação aos praticantes de candomblé numa sociedade que cultua 20 um mito da cultura negra, quer seja em performances públicas ou nos espaços formalmente constituídos dos “terreiros”. Revelou-se oportuna a obra de GEERTZ (1926–2006), considerando sua proficiência no campo da antropologia. Fundador da antropologia interpretativa, nos anos 1960, esse norte- americano criticou os critérios da antropologia dos anos 1950, pelo rigor metodológico da tradição acadêmica, e inventou o enfoque interdisciplinar de abordagem investigativa. Suas incursões antropológicas foram desenvolvidas entre os povos indonésios, com recorte sobre religiosidades e crenças. Sua “antropologia do sensível” fez desse etnógrafo uma espécie de rebelde avesso a essencialismos teóricos, colocando-se na condição de ser criticado em vez de aclamado, pois costumava duvidar de seus próprios resultados. SCHWARCZ (2001) refere a Geertz evocando uma de suas frases, em que dizia que “o antropólogo é um mercador do espanto”. Para ele a experiência antropológica era um trabalho de corpo a corpo, revelador da complexidade interpretativa do objeto circundado por “elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos” (GEERTZ, 2008). Quando fiz a opção por este universo de pesquisa, tive a intenção de me aproximar do mito de Yemanjá, numa tentativa de captar faces do mistério, do encantamento que permeia um povo diante de uma divindade africana; e entender melhor as contradições de que se revestem as práticas sociais a respeito do candomblé. Ensejei decodificar as mensagens da cidade de Salvador quanto ao caldeirão cultural que a caracteriza. Decidi, portanto, abordar um grupo social protagonista do imaginário sobre Yemanjá: os pescadores do Rio Vermelho. O método etnográfico propiciou aproximação concreta, por promover encontros com os sujeitos diretamente vinculados ao universo da pesquisa. Contudo, suscitou muitas dúvidas quanto às abordagens espontâneas nos primeiros contatos com os pescadores, para quem a pesquisadora era um ser estranho e atípico ao lugar. Minha timidez inicial foi esmaecendo no transcurso da caminhada. No primeiro encontro com o presidente da Colônia me apresentei formalmente, portando a declaração do ex-coordenador do Mestrado Acadêmico em relações Étnico-raciais do CEFET-RJ, professor doutor Roberto Borges, ao que Marcos Souza “Branco” gentilmente acolhera, dizendo não ser necessária, pois já estava acostumado a receber pesquisadores(as) de diversas áreas. Foram necessárias várias visitas limitadas à observação. Iniciada na semana em que ocorreria a festa de Yemanjá, observei a intensa movimentação de pessoas que adentravam a Casa de Yemanjá para levar pequenas oferendas no formato de flores, de perfumes, de fitas e, também, para deixar seus pedidos e agradecimentos em bilhetes dobrados e colocados, cuidadosamente, na gruta interna da Casa. Algumas tiravam fotografias; grupos de jornalistas portando credenciais de emissoras de rádio de TV disputavam espaços para realizar entrevistas. Na ocasião, fui entrevistada pela Rede Bandeirantes de Salvador, quando falei das motivações que me levaram à Colônia Z1. Falei da importância do legado cultural africano e de como o mito de Yemanjá reafirma a herança cultural de África no 21

Brasil. Nos dias seguintes, tornou-se mais comum minha frequência na Colônia, fato que instigou a curiosidade dos pescadores, mas resguardada relativa distância. Em tom coloquial me apresentei a um grupo de pescadores para falar da pesquisa e dos “porquês” de minha presença, sendo atendida com presteza e respeito, o que facilitou minha circulação no espaço nos dias seguintes. O método etnográfico me permitiu conversar, sem me ater exclusivamente ao roteiro da entrevista, apesar de respeitar seu papel norteador. No diário, registrei tudo o que me foi apresentado em relatos orais, na maioria das vezes, compartilhados e complementados por diversos atores no mesmo momento. Adotei como prática a escuta que observa os olhares, os sorrisos, a postura corporal, as interrupções da fala, os silêncios. Por sugestão de “Branco”, selecionei nomes de pescadores mais antigos, os quais já aposentados continuavam a frequentar a Colônia, numa demonstração de afeto e sentimento de pertença. Outros, mesmo aposentados, seguem desempenhando papéis de liderança, como “Pai Velho”, da Colônia Z6 de Itapoan. A sugestão decorreu do cuidado à minha pessoa em dois aspectos: o fato de os mais antigos pescadores terem vivido a instauração da festa de Yemanjá daria maior autoridade às informações; e pelo fato de me encontrar no ambiente próprio de pescadores, homens habituados às vivências mais duras do dia a dia, cujo perfil se caracteriza por uma liberdade muito particular, que se traduzem pelo comportamento. Quando conversavam sobre suas vivências pessoais ou de trabalho, ou de situações outras que poderiam me causar constrangimento, inclusive no uso da linguagem que, vez por outra deixava escapar palavrões. Entretanto, minha presença inspirara confiança e respeito mútuos, num clima descontraído e cooperativo. Em uma de minhas entrevistas livres, um deles se aproximara e passara a contar um pouco de sua história. Revelara, orgulhosamente, que tinha 65 anos e possuía três mulheres, com as quais tivera dezenove filhos, “mas, todo mundo na escola, porque eu não quero que sigam minha profissão, é muito dura minha vida!” A descrição densa a que GEERTZ (2008) refere foi uma escolha diante dos objetivos e das circunstâncias a que eu me colocara. Portanto, nenhuma outra pessoa poderia fazê-lo em meu lugar, ou seja, dialogar com uma categoria que, historicamente cultua uma divindade negra, um ícone de África, que resiste na modernidade. Transcorrido um mês em campo, no período de fevereiro a agosto de 2013, senti-me menos intrusa e mais independente, para assumir outras iniciativas. Descia até a praia, quando me inteirava da chegada de alguma embarcação. Ao ver o retorno da pescaria ao final da tarde, eu perguntava ao pescador o nome do peixe e em que altura do mar fora pescado, ao que obtinha uma resposta imediata e rápida, conforme o tamanho e o peso do peixe. Toda essa dinâmica representou uma fonte de surpresas e de encantamento pelo seu aspecto inusitado: a relação dialética entre natureza e o meio urbano, modernidade e ancestralidade, imaginários e luta pela sobrevivência. A Colônia Z1, enquanto comunidade no bairro poderia ser comparada a uma tribo, onde os códigos são 22 compreendidos e internalizados, sendo raro que um pescador não se desse conta da ausência de algum companheiro ao lugar. Munida de câmera fotográfica, filmadora e um diário de campo, iniciamos a jornada em direção ao bairro do Rio Vermelho, onde se tornou celebrizada a festa de Yemanjá, na Bahia. A abordagem ao coletivo de pescadores se deu por meio de visitas à Colônia Z1, quando conheci seu presidente, Marcos Santos Souza “Branco”. A dois dias da festa de Yemanjá, no dia 30 de janeiro de 2013, a primeira visita se resumiu a observações do lugar, quando, depois das conversas preliminares, pedi licença ao presidente para fotografar o espaço da Colônia. A estrutura física da Colônia se caracteriza por uma construção composta de área assim distribuída: a Casa do Peso e a Casa de Yemanjá, conjugadas, com a frente voltada para a rua principal. À frente, a escultura de Yemanjá, na forma de uma sereia, confeccionada por Manoel Bonfim, em 1970. Em uma das laterais a peixaria, onde é comercializado o produto pescado. Ao fundo, o mar do Rio Vermelho com suas formações rochosas. Na outra lateral, a murada margeada pelas águas. Na área livre, o barracão, defronte à peixaria é separada por uma espécie de corredor entre a rua e o mar, que abriga os pescadores em horas vagas, quando costumam conversar, contar histórias e jogar dominó e baralho. Alguns, sonolentos ou embriagados, cochilam no passeio, encostados às paredes externas ao prédio. Outros, já aposentados, comercializam pequenas variedades como balas, refrigerantes, cigarros. Nesse ambiente, uma dinâmica própria reúne todos os dias, pessoas de diversas procedências, ora para visitar o local, ora para comprar pescados. Turistas de dentro e de fora do Estado e do país, equipes de jornalistas, pesquisadores(as) de diferentes áreas do conhecimento, gente simples, devotos(as) que adentram a Casa de Yemanjá, curiosos de toda parte afluem ao local durante todo o ano, atraídos pela fama que se espraiou em torno do “mito”. O movimento diminui, apenas, nos dias de chuva. A Casa de Yemanjá foi construída durante o governo de Antonio Carlos Magalhães, 1972, e em seu interior se pode avistar uma ambientação totalmente caracterizada por simbolismos do “mito” africano: pinturas de distintas representações míticas da divindade yoruba, fotos de pescadores em atividade; uma pequena gruta incrustada no piso, com a imagem de uma Yemanjá projetada em sua entrada; várias pequenas imagens de Yemanjá ao redor da gruta; presentes em forma de flores, velas, frascos de alfazema e fitas que as pessoas depositam quando de suas visitas. A Casa de Yemanjá está sempre aberta durante o dia A Casa do Peso funciona como escritório, onde são desenvolvidas atividades relacionadas às políticas governamentais para a pesca, à vida profissional e à seguridade social de todos os pescadores. Ali, o presidente costuma receber as famílias dos pescadores, orientando-as sobre questões de variada caracterização. Outra classe de pessoas, com interesses vários, também são recebidas por “Branco”, cuja postura demanda disposição e presteza. No interior da Casa do Peso, fotos nas paredes retratam imagens de Yemanjá em 23 forma de quadros e pinturas de artistas de Salvador; imagens de santos, afixadas nas paredes, refletem o hibridismo presente na religiosidade de Salvador; outras imagens registram ocasiões da festa de Yemanjá. A entrevista com “Branco” cooperou para desconstruir meu imaginário sobre pescadores como sujeitos de sonhos e de fantasias, aqueles a quem certas canções apresentaram por um viés romanceado. As circunstâncias históricas, políticas e sociais do universo de pescadores pesquisado vão muito além do que aparentam e tem se constituído objeto de investigação científica, como transcrevemos no Capítulo V, à página 63. Leitura de dissertações, estudos etnográficos, entrevistas espontâneas e estruturadas, leituras documentais, leituras de matérias jornalísticas e acesso à internet performaram um importante acervo para a incursão histórica no contexto da construção do imaginário e na (re)descoberta do Rio Vermelho, na Praia da Paciência.

I. 6 CORPO DA DISSERTAÇÃO

Utilizamos fragmentos da ciência histórica para dar consistência explicativa ao texto e demonstrar os jogos de poder e de sedução, subliminares à cultura e à hibridização. A formação sociocultural do Rio Vermelho à página 78 é uma ilustração importante para o deciframento das lutas que culminaram com o extermínio dos tupinambás nativos do lugar, concorrendo para estreitar as relações entre brancos e negros na antiga aldeia de pescadores. Empregamos a noção de “tempo” em duas vertentes conceituais, a partir de duas matrizes civilizatórias, a europeia e a africana, para evidenciar que essa noção abarca exponencial diferenciação de sentidos na e da cultura. Exemplo disto foi o estigma de “preguiçoso” atribuído tanto ao índio quanto ao africano, por sua recusa ao submetimento ante o regime escravocrata do europeu. O “tempo” submetido à logica ocidental, racionalizado e cronometrado segundo interesses em disputa na égide do capitalismo, e o “tempo” assimilado nas antigas sociedades africanas, em sincronia com os dinamismos da Natureza. Nesta ordem, dialogamos com PRANDI (2000) e sua obra A mitologia dos orixás, mais adiante, à página 41. Outra variável de fundamental importância nos estudos culturais é a construção social do corpo, o arcabouço relacional que orienta as diferentes culturas sobre o tema do corpo. Variável que opera através de imaginários e conceituações derivadas do campo religioso. O que na concepção clássica do “homem branco” refletiu o “pecado” e, a partir daí justificou uma sorte de enredamentos de poder sobre as etnias aculturadas, provocou profundos impactos em práticas socioculturais, modificando suas identidades. Lembremo-nos das tribos indígenas que, no processo de aculturação, no século XVI, foram obrigadas a se vestirem para se relacionar com os seus antagonistas. Recordemos que os corpos femininos africanos eram vistos como fonte de 24 desejo e de apropriação do europeu, indiferentemente à humanidade imanente em si mesmo e no Outro. Em suas singularidades, o corpo resguarda significações, sentidos e valores do sagrado nos grupos culturais indígenas. Similar movimento ocorre no interior de comunidades tribais de África; o corpo como expressão do sagrado, na dimensão celebratória da festa, da dança dos deuses e das deusas que o habitam, símbolo de comunhão com a Natureza. O capítulo IV à página 48 apresenta uma descrição do mito de Yemanjá, cuja imagem em nada se assemelha a uma sereia. No entanto, sua presença mítica inspira ao modo de musa, uma estética religiosa e cultural, que se desenha em festividades a ela consagradas. Quando ali estive, sob o sol de 2 de fevereiro de 2013, portando uma cesta de flores para oferecer à divindade das águas, junto a centenas de pessoas desconhecidas, vivenciei o momento. Aproveitando para fotografar aquelas imagens festivas e religiosas a um só tempo, conversando com gente desconhecida e captando aquela energia maior do que minha razão, a energia de uma intensa fraternidade, fui tomada pela sensação prazerosa de ser portadora de vários discursos antropológicos, de cultura, de simbologias e de imaginário. Assim, sou o corpo que vê, que escuta, que sente, que intui e que racionaliza para testemunhar, discursivamente, sua experiência. Experimentei momentos díspares, perseguindo caminhos opostos em alguns momentos para depois, novamente se encontrarem, conciliados. Necessitava de liberdade dos cânones cartesianos, precisava respeitar minhas subjetividades, no sentido do ver além das aparências. Aprendi que nem toda “história de pescador” é uma narrativa fantasiosa, mas, uma narrativa do simbólico que impregna seus imaginários, como podemos ver na fala de “Nel”, à página 72, nos vídeos gravados sobre as águas de Itapoan, e nas falas de “Pai Velho”, na Colônia Z6. As narrativas dos pescadores revelaram seus modos de sentir, de viver, de apreender experiências e valorizá-las de sorte a torná-las extraordinárias. Em sua maioria se sentem tão integrados ao seu fazer, que, à maneira de uma relação simbiótica, estabelecem uma ligação intensa e profunda com os fluxos das águas do mar. Por isso, pudemos constatar o olhar longínquo de alguns ao relatarem memórias; as falas entrecortadas, os silêncios pausados; as intervenções dos companheiros para apontar um detalhe esquecido; o prazer em contar um grande feito; a humildade para assumir os medos; a busca por melhores condições de trabalho. Todo este universo povoado por “causos” do vivido e do (re)contado, em paralelo com a modernidade.

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Figura I.1 Entrevista a "Pai Velho"/Foto de Armando Gömöry

Figura I.2 Entrevista a "Nel"/Foto de Armando Gömöry

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CAPÍTULO II CULTURA(S): PRÁTICAS DISCURSIVAS, ROTAS E ITINERÁRIOS NA PÓS- MODERNIDADE. OU, A DANÇA DAS METÁFORAS?

“Falamos... de algumas pessoas que são transparentes para nós. Todavia, é importante no tocante a esta observação, que um ser humano possa ser um enigma completo para outro ser humano. Aprendemos isso quando chegamos a um país estranho, com tradições inteiramente estranhas e, o que é mais, mesmo que se tenha um domínio total sobre o idioma do país. Nós não compreendemos o povo (e não por não compreender o que eles falam entre si). Não nos podemos situar entre eles”. (WITTGENSTEIN, apud. GEERTZ, 2008).

A epígrafe deste capítulo vem a problematizar o conceito de cultura, quando parecemos ter chegado à zona de conforto. Contudo, mal nos aproximamos do que seria a zona de conforto e constatamos que a história está, apenas, começando. Navegamos por águas insondáveis, das quais conhecemos tão somente suas ondulantes superfícies, à semelhança de uma dança, a dança das metáforas. Acorremos à metáfora do iceberg, em que a parte visível é muito menor em relação à que está submersa. Desta maneira, este trabalho foi engendrado, de sorte a forjar um conceito de cultura, capaz de abraçar fundamentos que o contornem e o conformem aos objetivos aqui explicitados. Que vem a ser cultura? Que elementos lhe emprestam significação? Podemos dizer culturas em lugar de cultura? Onde se situa(m) a(s) cultura(s)? GEERTZ (2008) chama a atenção para o discernimento que se deve ter, quando decidimos perquirir caminhos antropológicos e optamos por estudar culturas, na perspectiva etnográfica. Das ciências que se ocuparam com a atividade de desvelamento da humanidade em sua conjuntura simbólica e material, seria justo atribuir às ciências humanas – sociais e antropológicas - uma relevância que sustente a natureza e as especificitudes que lhes caracterizam. Como um trunfo conquistado pela investidura de seus precursores diante de paradoxos relativos à cultura, enquanto campo conceitual, a antropologia tem se ocupado do âmbito da cultura, em incursões nos mais variados contextos da produção humana, nos mais distintos grupamentos demograficamente distribuídos. O acervo desses elementos fornece instrumental para uma dialogação com experiências desde dentro e desde fora da academia. Enquanto atividade científica, a antropologia tem entre seus objetivos o “alargamento do universo do discurso humano”, conforme enunciação de GEERTZ (2008:10). Esta assertiva orienta o conceito semiótico de cultura, apreendido como uma rede de signos entrelaçados, aos quais ele denomina de símbolos, que podem ser interpretados dentro de um contexto, onde a cultura se expressa. Tais símbolos podem ser descritos densamente e de modo 27 inteligível, dado que sua ocorrência se dá em qualquer ambiente da cultura. Segundo GEERTZ (2008), a cultura não é um poder ao qual são atribuídos aleatoriamente os comportamentos, as instituições, os acontecimentos sociais e os processos. Esses fatos simbolizam e dão significação à cultura. A essa forma de descrição a que Geertz classifica “densa”, estão imbricados significantes e significados. A ideia de cultura tem se movimentado por nuances e metáforas segundo valores e interesses de ordens societárias. Tal noção circula em torno de um sistema, de um campo normativo e de práticas sociais organizadas simbolicamente (SODRÉ, 2005). No campo da antropologia moderna ocidental, o termo cultura adquire posição mais universalizante, compreendida enquanto “um modo de vida de um grupo em que se destacam formas aprendidas e padronizadas de comportamento, universalmente reconhecidas como humanas” (SODRÉ, 2005, p. 26). Na lógica do Ocidente, a palavra cultura resguarda singularidades internas ao campo teórico, mas, conserva sua natureza eurocentrista de universalização da verdade. No que tange às similaridades conceituais, incluem-se as questões do relacionamento de cultura com a diferença e, portanto, com o sentido, com o valor atribuído às coisas, com a representação. Um conceito de cultura na perspectiva de construção de identidade na sociedade multicultural brasileira remete a deslocamentos em relação à racionalidade europeia. A lógica europeia consubstancia na razão, na produção e no trabalho, seus expoentes de expressividade. Se tal pensamento se pretende universal, expõe sua fragilidade ante a existência de outros modos de sentir, pensar e viver próprios de sociedades “estranhas” a tais enunciações. Daí considerarmos válido o exercício do olhar, no sentido de perceber outras perspectivas de sentido e de simbólico imanentes ao conceito de cultura, para além da lógica ocidental. A nós importa apreender o sentido de cultura enquanto metáfora, jogo de contradições na relação com o real, a exemplo do que formula Muniz Sodré em seu livro, “A verdade seduzida" (SODRÉ, 2005, p. 37)

“Cultura é o modo de relacionamento humano com seu real. Esse “real” não deve ser entendido como a estrutura histórica globalmente considerada nem mesmo como um conjunto de elementos identificáveis” (SODRÉ, 2005, p. 37).

Sodré ilustra sua enunciação utilizando-se de um objeto – um vaso contendo um cravo – e formula questionamentos a respeito dos elementos que o fazem diferente de outras flores, como o perfume, a cor, a forma. A visão desse cravo pode instigar a uma primeira percepção de que é uma flor que, embora pertencente à espécie das flores, possui particularidades que a diferenciam de outras flores. Acrescenta que somente reconhecemos o cravo como tal, graças a sua condição de incomparabilidade, na proporção em que é identificado como “incomparável, isto é, precisamente não identificável por meio de uma equivalência eventual” (SODRÉ, 2005, p. 38, apud. ROSSET, 1979, p. 23). Desse modo, o real do cravo seria o que resiste a qualquer 28 tentativa de caracterização absoluta, pois se apresenta de forma singular, única e, por isso, distante de uma vã representação. Pode-se afirmar sobre a existência do cravo, de sua materialidade, mas, não apreendê-lo categoricamente em sua identidade de objeto. A tentativa de extração do real presente no cravo incorreria em riscos de jamais alcançá-lo, em face de condições obscuras e inseguras, segundo Sodré. Desvelar o que está nas entrelinhas, o que possui sentido e se movimenta, num jogo de sedução pelo real. Aí, a cultura se inscreve. A aventura da busca de uma identidade desestabiliza certas representações do real, faz oscilar significados socialmente construídos sobre identidade, graças aos dinamismos imanentes ao movimento de eliminação de seus atributos constitutivos. Sodré formula que as sociedades humanas tem procurado sua identidade particular numa soma de traços que pode ser compreendida como uma configuração de diversidade suficientemente aceita. Sociedades tem buscado sua identidade na totalidade de caracteres, que pode ser assimilada como “um certo optimum de diversidade além do qual elas não poderiam ir, mas, abaixo do qual elas não podem descer sem perigo (SODRÉ, 2005, p. 39, apud. LÉVI- STRAUSS, 1993, p. 381). Podemos inferir da formulação de Sodré que a busca pelo sentido do real implica a perda de referências de determinação absoluta da identidade, a eliminação dos termos da significação e a destruição dos valores de representação. O mito de Yemanjá, agora representado pela escultura de uma sereia branca na Colônia Z1 estaria destituída de possível originalidade, após a aventura da diáspora? Ou caberia na possibilidade de “perdas de referências” originais? Na crítica à inconsistência conceitual de cultura emergente do Ocidente desde os séculos II, IV, V e VI a. C, Sodré afirma que

“cultura é a metáfora do movimento do sentido, não entendido como uma verdade mística do além ou oculta em profundidades a serem sondadas, mas, como busca de relacionamento com o real, lugar de extermínio do princípio da identidade. É o que implica experiência de limites, vazio do sujeito, aquilo que, retraindo-se à maneira do segredo e provocando ao modo do desafio, atrai para outras direções, para a singularidade misteriosa do real” (SODRÉ, 2005, p. 41).

Quando pensamos identidade afloram variáveis conceituais a respeito de identidade e cultura, associando-as à ideologia, sendo que esta última num lugar particular de intervenção. Por isso, contextualizamos tais noções e suas imbricações/implicações no domínio dos estudos culturais. Mas, abraçamos, também, o imaginário como componente desse domínio, e algo que escapa a alguma clausura diante da hipótese de um conceito que abarque todas as possibilidades. Que epistemologias poderão dar conta da construção de imaginários coletivos numa determinada cultura? Que metodologias serão capazes de assegurar uma “verdade” 29 conceitual sobre determinada noção? Como poderíamos categorizar, em termos de identidade, a cultura brasileira? Eis a questão: neste trabalho, o esforço consiste em operar um recorte em nosso entendimento de cultura, que dê sustentação à identidade de um grupo social – os pescadores do Rio Vermelho -, tecida nas experiências do seu fazer, nas relações entre os mais velhos e os mais novos, e nas relações construídas entre o grupo de pescadores e um “mito” da cultura africana. Aqui se insere o imaginário coletivo e toda a rede de significações e desdobramentos na vida dessas pessoas, nas relações entremeadas pela herança cultural africana, cujo arcabouço mítico se fez e se faz presente, através de seu imaginário sobre o mito de Yemanjá. Pontuamos que as práticas sociais entre os pescadores nem sempre se dão de forma unívoca ou plana, já que os discursos coletados em forma de entrevistas denotam uma vívida crença na existência de Yemanjá, à qual se atribui total domínio sobre o mar, ou o mar como sua morada sagrada, por parte da maioria desses sujeitos; por outro lado, constatamos o desconhecimento da origem cultural do mito. Na totalidade, os pescadores assumem ser Yemanjá “uma mulher branca, muito bonita, uma sereia de longos cabelos e olho azul”, conforme declarara “Pai Velho”. Entretanto, ao compararmos a representação de Yemanjá com a imagem coletada na obra de VERGER - uma mulher negra, robusta, de seios fartos, portando uma tigela sobre a cabeça, na qual estão contidos objetos sagrados, como o otá (pedra sagrada) -, nos ocorre um conjunto de indagações a respeito do que estaria à luz ou à sombra dessas representações, que engendramentos foram elaborados, e que significados repercutem no âmbito desse universo. O estranhamento inicial da representação mítica de Yemanjá - já que as diferenças assomam de maneira diametralmente antagônicas -, nos conduziu à interlocuções com autores que trabalham com a temática dos estudos culturais pós-colonialistas. Que cognições darão conta de uma representação iconográfica negra por uma imagem “branqueada”? Que mensagens estão aí, implícitas? Os hibridismos possibilitariam miscigenações, também, nas representações de imaginários? Os dispositivos conceituais talvez não sejam suficientes para abranger tamanha conjuntura, mas, oferecem pistas para o livre trânsito das ideias. No universo pesquisado constatamos sinais dissimuladores da religiosidade do candomblé, apesar do culto a Yemanjá. Esse fato nos fez refletir sobre as contradições de uma cultura hibridizada, numa convivência paralela constituída por legados africanos, indígenas e europeus.

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II. 1 Cultura no contexto da diáspora: hibridizações nas fronteiras

As teorias de Hall, Bhabha, Gilroy e Canclíni, críticos culturais pós-colonialistas, oferecem suporte para a formulação de identidade, enquanto conceito, já que viveram eles mesmos, na pele, a experiência diaspórica e inferiram que o fenômeno da diáspora desestabiliza a noção essencial de identidade. Dessa maneira, discursam com a noção de hibridismo, enquanto processo de construção de identidade, processo de tradução cultural mediado por componentes que consideram dolorosos e angustiantes. Conforme esses autores, associados a Jacques Derrida, a possibilidade de uma terceira via para os estudos culturais forja a desilusão de purismos, quando se trata de cultura e de identidade. Esses autores racionalizam frente ao fenômeno de hibridismo, ao atentarem para o inacabamento de construção identitária. HALL (2001 e 2003) reconhece as contradições e complexidades entre tradição e tradução influenciadoras na “produção de novas identidades” em circunstâncias diaspóricas. Como ele afirma (2003, p. 83) “as comunidades migrantes trazem as marcas da diáspora, da hibridização e da différance em sua própria constituição”. BHABHA (1996), ao tomar de empréstimo o termo híbrido a MIKHAIL BAKHTIN (1981), utiliza-o como conceito para identificar o discurso de negociação em circunstâncias de desigualdade e antagonismo político. Embora Bakhtin o tenha aplicado à literatura, em especial ao romance, fértil celeiro discursivo de múltiplas vozes e linguagens, épocas e estilos, Bhabha o aproveita para ampliar seu alcance na discussão de identidade. Criticados por outros estudiosos da mesma área, pelos riscos de manutenção da ordem desigual entre países do Primeiro e do Terceiro Mundo, a exemplo do latino-americano ALBERTO MOREIRAS (2001), cabe atenção maior a este ou aquele discurso do hibridismo ou dos processos de hibridização como preferimos dizer. Cientificamente comprovada a inconsistência da hipótese de superioridade entre seres humanos, utilizamos os termos “raça” e “etnia” como bases semânticas que envolvem etnicidade. Se a prática discursiva do racismo se sustentou nas diferenças fenotípicas durante um determinado período e hoje se encontra, teoricamente superada, mantém-se, enquanto lógica própria, como nos faz analisar HALL (1994). Segundo ele, “o racismo é uma construção política e social. É a categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão”. HALL (1994), ilustrando sua assertiva, compara o racismo contra o negro com o antissemitismo e com o sexismo, cujos pressupostos se apoiam em teorias biológicas. Aparentemente superada a noção de “raça”, agora entre aspas ou entre parênteses, ela aparece associada a etnia. Ao tomar como referência sua experiência de intelectual jamaicano na Inglaterra, Hall construiu um pensamento impregnado de funda lucidez, ao observar que, a questão de etnicidade comporta conotações de outra forma de racismo: o racismo demarcado pelas diferenças sociais e culturais, ao que poderíamos chamar de uma espécie de racismo 31 social. Tal observação vem em boa hora, uma vez que, sua vivência diaspórica e os estudos empreendidos sobre cultura e identidade facultaram cognições que podem ser empregadas em outras realidades culturais. A hipótese de superação do termo “raça” deslocando-o para outro, “etnia”, problematiza a questão da “etnicidade”. O que está em jogo é uma epistemologia que contemple as diferenças enquanto categorias blindadas, e delas se aproveita para atender a interesses. Por outro lado, há que duvidar de formulações discursivas que intencionam abarcar o humano, reduzindo sua singularidade e diversidade a uma totalidade, em que as tensões e as contradições não constituem base material das relações sociais. Daí que pensar a “diferença” enquanto categoria de análise equivale dizer que ela adquire nova roupagem e se articula com tantos significantes quanto forem os contextos em que raça e etnia estejam presentes. Segundo Hall (2003), o discurso sobre etnicidade se ancora em características culturais e religiosas. Mas, será que os marcadores biológicos não são utilizados, também, para a demarcação de significantes hierarquizadores entre culturas? Hall menciona o caso de caribenhos e asiáticos no Reino Unido e como suas presenças causaram incômodo à “branquitude” inglesa, sobretudo quanto às suas preocupações com a identidade nacional. O fato gerou polêmicas que contribuíram para repensar o hibridismo, culminando com a busca de referências mais compatíveis com aquela realidade social: aos afro-caribenhos foi aplicado o termo “raça”. Aos asiáticos, o termo “etnicidade”. O marcador de cor dos afro-caribenhos carrega grande contradição, haja vista sua imensa variabilidade, decorrente de longos processos de miscigenação e “transculturação” das comunidades coloniais migratórias do Caribe (HALL, apud. ORTIZ, 1940; BRATHWAITE, 1971; GLISSANT, 1981; PRATT, 1982). Hall crítica o termo “etnicidade” aplicada aos asiáticos, em face da ausência de elementos factíveis que possam situá-los em uma “raça” ou uma única “etnia”. A provocação de HALL (2000) sobre identidade cultural em seu questionamento “que negro é esse na cultura negra?” nos instiga a revisões sobre identidade, como um estado de impermanência de qualquer conceito a ela referente. Hall está a dizer sobre um sujeito “negro”, que não pertence unicamente à África, um sujeito que migrou, ou pela diáspora africana ou por razões de outras ordens. Oportuna indagação, justamente, num momento em que são trazidas à discussão na academia, as relações étnico-raciais. Oportuna porque coloca em xeque um conceito de identidade, localizando-o numa cultura, a cultura negra, cultura que atravessou fronteiras e se espalhou por outros continentes, transformando e sendo transformada. Hall provoca reflexões em torno do paradoxo em que, no mesmo momento amarra, mas, também, desata vários nós. Por exemplo: haveríamos que partir do ponto que situe “o negro” africano em um lugar de origem, lugar geopolítico colonial; e outro lugar, o pós-colonial, com todos os seus desdobramentos. Persistimos em abraçar o questionamento de Hall enquanto recurso filosófico, mas resguardando o lugar de origem de determinados objetos da cultura. Não 32 dispomos de conhecimento de outro local de origem do “mito” Yemanjá, que não seja África, que não seja o de pertencimento à cosmogonia do povo yorubá, cujos simbolismos a relacionaram, intrinsecamente, às águas. Pensar, hoje, o “mito” Yemanjá significa um deslocamento para o mundo das águas, rios e oceanos, o mar, a metáfora cultural da diáspora. Em sua formulação, Hall coopera com a busca de sentidos, à maneira de Sodré, e sugere possibilidades de outras cognições diante do mundo moderno, para além da ideia de purismo cultural. Sua formulação consiste da análise sobre diáspora e os efeitos produzidos nos comportamentos e práticas sociais de indivíduos e grupamentos humanos alcançados por movimentos diaspóricos. Em condição análoga à experiência de caribenhos migrados para a Grã-Bretanha retratada por HALL (1998), aproveitamos seus questionamentos, quando pensamos o Brasil. Destacamos o antropólogo CANCLÍNI (1997), um dos maiores expoentes dos estudos de culturas hibridizadas, nas últimas décadas do século XX. Nascido argentino, traz na bagagem a experiência de ator social em cruzamentos de fronteiras na América Latina, inclusive no Brasil. Canclíni busca a superação das dicotomias comuns do tipo opressores/oprimidos, erudito/popular. Sua análise tenta aprofundar o tema das “culturas híbridas”, decorrentes dos “exílios e das novas raízes”, envolvendo artes, antropologia, história, comunicação e políticas culturais da América contemporânea. Segundo CANCLÍNI (1997), o deslocamento tão debatido atualmente, sempre marcara a experiência de escritores e artistas latino-americanos em várias ocasiões em que suas obras foram realizadas no exílio. Daí que atribuir autenticidade e pureza a algo produzido nessas circunstâncias seria arriscado, uma vez que as obras em apreço se situam num espaço imaginário, objetivamente híbrido, em que passado e futuro se combinam, gerando novas influências e descobertas. O antropólogo descarta a hipótese do original puro e se aproxima do conceito de intertextualidade para analisar a condição de artistas e escritores desterritorializados. Ele lembra que o artista de hoje não está interessado em legitimidade e não pertence a nenhuma escola como acontecia há muito tempo atrás. Desse modo sintetiza que

“o pós-modernismo não é um estilo, mas a co-presença tumultuada de todos, o lugar onde os capítulos da história da arte e do folclore cruzam entre si com as novas tecnologias culturais” (CANCLÍNI, 1997, p. 328-9, 332, 336).

No caso da pluralidade brasileira, ressaltamos os limites densos e outros complicadores étnicos que dificultam a síntese em torno de identidade. A mediação da ideologia na dinamização da cultura pressupõe a negação de neutralidade das práticas que a sustentam. Como se manifesta a ideologia no contexto discursivo de cultura? A ideologia desponta como artifício de inculcação de valores que induzem à universalização de verdade numa escala hierarquizadora de certas sociedades, em que estão presentes relações de poder. Para Muniz Sodré 33

“O conceito de ideologia vale – ao contrário do que buscamos para cultura – como recurso explicativo da produção dos efeitos de significação de poder (submissão, obediência e atos de verdade). Uma ideologia cultural será toda tentativa de redução de sentido da cultura aos modelos ideológicos atuantes nas relações sociais. Entram nesta categoria doutrinas culturalistas, políticas culturais, avaliações burocráticas da produção intelectual, posições intelectuais etc. Podem-se sempre denunciar as posturas de poder das ideologias em relação a um suposto fluxo livre de cultura. Mas não se pode passar por cima do fato de que a cultura moderna se realiza no interior da ideologia, dentro de um campo histórico de poder, de um conjunto de processos e de mecanismos destinados a conduzir os indivíduos a exemplo da techna tecknés da Grécia antiga” (SODRÉ, 2005).

Resulta da ideologia a fragmentação conceitual de cultura, ao estabelecer diferenciação do modus operandi de cultura: cultura elevada e cultura popular. Esta distinção funciona de maneira a sustentar as estratégias sobredeterminantes de uma cultura em face de outras, nesse caso, as culturas europeias e norte-americanas sobre as culturas africanas e latino- americanas. Podemos observar, com relativo grau de clareza, que essa distinção faz toda a diferença nas relações socialmente construídas e exerce muita influência na forma como alguns indivíduos ou grupos de indivíduos se veem e veem aos outros. Então, seria o saber/fazer de um pescador inferior ao saber/fazer de um professor, ou de um médico, ou de um advogado? Será que o fato de preparar-se para sua atividade laboral – a pesca - e todos os procedimentos que envolvem tal prática, a exemplo de observar o vento, escolher o tipo de material a ser utilizado, escolher o tipo de embarcação apropriado, armazenar provisões, planejar a direção, onde se dirigir para pescar, e, antes de adentrar o mar, pedir proteção, será que esse saber/fazer é inferior a uma atividade intelectual? Ou é diferente, em sua matriz referencial? A partir destas indagações, estabelecemos uma analogia que vem a calhar com as limitações cognitivas eurocêntricas a respeito do conceito de cultura. Referendamos duas realidades socioculturais: a experiência com o tempo nas sociedades ocidentais e a experiência com o tempo nas sociedades tradicionais de África. Deste modo, nosso propósito consiste em demonstrar que as diferenciações entre os grupamentos culturais humanos não sustentariam a hipótese de superioridade ou de inferioridade. O reconhecimento das diferenças junto às características e aos indicadores de cada sociedade nos instiga à imaginação construtiva de outras epistemologias acerca da prática discursiva de cultura.

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CAPÍTULO III IMAGINÁRIOS, O NÃO LUGAR ONDE SE EMBRIONA O “MITO”

O termo “mito” aqui empregado se refere a uma construção sociológica resultante da cultura. Mas, não, uma construção embrionada em um sistema de trocas subsumida a vivências simplistas, fortuitas ou aleatórias. Por essa razão, buscamos incluir os aspectos semânticos que o constituem, a fim de fomentar uma racionalização que lhe dê suporte próprio da elaboração acadêmica e que, também, permita distinguir o portal entre racionalidade e intuição. Para compreendermos o mito, na perspectiva da cultura, seguimos algumas pistas sobre imaginário e seus significados nos diferentes estágios da história. Em suas fases cíclicas, a história nos apresenta um leque de variações do ‘mito”. Apesar da modernidade, o mito é atualizado, resistindo a esquemas globalizantes (grifo da pesquisadora) que a, quase tudo consegue simplificar. Sobre imaginário recorremos à Antropologia do Imaginário, a qual tem em Gilbert Durand, pensador e antropólogo francês, um dos mais expressivos representantes da Escola de Grenoble. DURAND (2001) teceu uma orientação epistemológica inovadora em comparação com o já produzido pelas ciências, nos moldes cartesianos e comtianos. Desde a criação de sua mitodologia, método de investigação científica a que podemos chamar, também, de “método crítico do mito”, DURAND (2001) converge sua energia para a direção em que a leitura explicativa e sociológica do mundo passa por um exercício de maior abertura interna, quanto às mensagens do mundo sensível, materializadas por grande variedade de referências. Seus estudos, orientados por uma visão mais holística da cultura, consideram relevantes: a imagem simbólica, a dimensão dos arquétipos e a força motriz dos mitos. A teoria e metodologia durandiana tem encontrado respaldo nos meios acadêmicos, uma vez que ele sistematizara uma classificação estrutural e dinâmica das imagens, considerando a existência de uma constelação de características humanas universais – arquétipos -, embasadoras de aproximações mais consistentes para interpretar realidades humanas concretas, com ênfase no elemento espiritual e coletivo. Para isto dedicou-se, por mais de uma década, a realizar estudos do mito, enquanto símbolo de determinada cultura. A esse respeito, formula que o imaginário seja a “referência última de toda a produção humana, através de sua manifestação discursiva, o mito”. Em antítese ao estruturalismo de Lévi-Strauss, modelado pelo estático, formal e quantitativo, DURAND (2001) esboça seu trabalho no estruturalismo figurativo, um recorte do pós-estruturalismo – vertente do pensamento que opera no sentido de desvelar um objeto de pesquisa em uma perspectiva dinâmica e interacional. Desse modo, considera em sua teoria as homologias qualitativas e dinâmicas dos sentidos dos símbolos. Seu pensamento se traduz ao dizer que 35

“A história não explica o conteúdo mental arquetípico, pertencendo a própria história ao domínio do imaginário. E sobretudo, em cada fase histórica a imaginação encontra-se presente inteira, numa dupla e antagonista motivação: da pedagogia da imitação, do imperialismo das imagens e dos arquétipos tolerados pela ambiência social, mas também, fantasias adversas da revolta devidas ao recalcamento deste ou daquele regime de imagem, pelo meio ou pelo momento histórico”. (DURAND, 1997, p. 390).

Em linguagem corriqueira de senso comum, à palavra “mito” costuma-se relacionar a noção de falsidade, mentira ou alguma circunstância fantasiosa. Originalmente, do grego mythos, o termo significa narrar, contar, dizer, falar. Em função do interesse que desperta nos estudos antropológicos, pensamos ser relevante apresentar algumas contribuições teóricas a esse respeito.

III. 1 A classificação de Abbagnano (1970)

a) “mito” como forma atenuada de intelectualidade. O pensamento de atribuição inferiorizada ao “mito” derivou de formulações filosóficas, de base platônica/aristotélica e demarcou um período de transição da atividade humana – a atividade de pensar - para a filosofia, sendo considerado o “mito”, um produto inferiorizado frente ao saber intelectual (perspectiva de Platão e Aristóteles) (ABBAGNANO, 1970: 644). Platão pensava o “mito” enquanto falsa narrativa, única aspiração possível ao homem comum, que lhe conferia valor moral e religioso. A lógica aristotélica sustentava que o “mito” seria o primeiro estágio para o campo da atividade intelectual. Aristóteles o assumiu como o primeiro passo para a filosofia (HEINEMANN, 1993:67), uma vez que o “mito” desempenhava semelhantes funções às de cunho filosófico, ou seja: a busca de compreensão da gênese e do sentido do mundo; o fenômeno da vida; a imortalidade e o futuro; a liberdade e a responsabilidade; o destino; a culpa; a necessidade.

b) “mito” como forma autônoma de pensamento e de vida. O “mito” se apresenta como forma independente de pensamento ou de vida, definido pelo sentir (subvalorizado), não secundário em relação ao intelecto, mas num lugar diferente, num plano de validade originária e primária. Não se trata de uma verdade intelectual desfigurada ou corrompida, mas, sim de uma verdade autêntica, de valor fantástico e poético. Podemos citar adeptos dessa perspectiva teórica: Durkheim – defende a ideia de “mito” como projeção da vida social do Homem, que reflete as características basilares dessa vida social, frisando que o verdadeiro “mito” é modelado pela sociedade e não pela natureza (ABBAGNANO, 1970: 645); o idealismo 36 romântico; a mitologia da filosofia de Schelling, para o qual o “mito” define uma religião natural do gênero humano.

c) “mito” como mecanismo de controle de grupos. As teorias de Fraser e Malinowski defendem o mito na perspectiva de preservação dos elementos fundamentais que constituem a cultura de um grupo. Malinowski sintetiza seu entendimento quando diz que:

“O mito cumpre uma função intimamente ligada à natureza da tradição e à continuidade da cultura, com a relação entre maturidade e juventude, e com a atitude humana em relação ao passado. A função do mito é a de reforçar a tradição e dar-lhe maior valor e prestígio, unindo-a à mais alta, melhor e mais sobrenatural realidade dos acontecimentos iniciais (MALINOWSKI, op. Cit. ABBAGNANO, 1970: 645).

III. 2 O “mito” segundo Barthes.

ROLAND BARTHES (1988:249), mitólogo francês contemporâneo, defende a noção de “mito” enquanto linguagem, uma fala. Para ele, tudo pode ser mito. Em sua formulação, o “mito” é uma fala da história, escolhida pela história; um sistema de comunicação; uma mensagem que se define por algo que não é conceito, não é um objeto, não é ideia. Mas pode ser definido por uma forma de significação. O “mito” não se define pelo objeto de sua mensagem, mas, pela forma como a expressa. As concepções filosóficas da Antiguidade clássica perduraram até o final do século XIX, graças ao positivismo e sua tenacidade, calcado em vigorosas bases racionais. Entre os gregos que rejeitaram as expressões “mitológicas”, utilizadas por Homero e Hesíodo, quando de suas célebres narrativas, recordamos Xenófanes (aproximadamente 565-470). A partir dele, o mythos foi gradualmente descaracterizado de seu caráter metafísico e sagrado. Antagonicamente ao logos e mais tarde à história, o mythos passou a designar tudo “o que não pode existir realmente”. Cooperou amplamente com essa postura o pensamento judaico- cristão, segundo o qual, qualquer fato que não fosse justificado por um dos dois Testamentos seria relegado para o âmbito da “falsidade” ou da “ilusão”. No mundo contemporâneo permanece, em algumas sociedades, o senso comum de associação do “mito”, enquanto fala fantasiosa ou fictícia, mas não é este o objetivo que norteia esta pesquisa. Tampouco pretendemos captar o momento histórico em que o “mito” foi transformado em uma “ficção”. O que nos motiva é a apropriação do mito em sua significação nas sociedades tradicionais, sobretudo, de África, até onde é ou foi recentemente – presente -, fornecendo elementos de estruturação da sociedade e da cultura, modelando práticas sociais, referências para o comportamento humano e a vida de relação, e ajudando a melhor 37 compreender grupos humanos de nossa contemporaneidade. A aproximação junto a grupos portadores de idiossincrasias, de modos de viver, ver e sentir o mundo e a vida, diferentes da cosmovisão ocidental, incitou-nos a um estado de abertura e de autopermissão para novas aprendizagens, nem sempre despojado de preconceitos e de sustos. O início do século XX possibilitou à antropologia recuperar o sentido primordial do mito, reconhecendo sua importância no seio das civilizações ancestrais e nas sociedades ditas, primitivas. E mais realizou, ao declinar antagonicamente da antiga noção de alguns filósofos gregos, reconhecendo que a natureza do mito constitui verdade profunda, atemporal e sagrada. Verdade somente acessível por meio de relatos de sujeitos iniciados, portadores de saberes e de fazeres pertinentes a determinados grupos humanos. Quando a busca por respostas às questões mais paradoxais da existência esbarra em encruzilhadas inesperadas na vida concreta/material da humanidade, o mito pode avultar, preenchendo vazios, onde a ciência encontra lacunas imponderáveis. Do que entendemos constituir espaços de imprecisão racional e de incertezas a respeito da vida e da morte, da origem do mundo, das paixões, dos fenômenos da natureza, das intempéries, das sombras que envolvem a transitoriedade do presente, o mito se apresenta como uma imanência indissociável do próprio existir. À semelhança da natureza naturada e da natureza naturante, nas palavras de SPINOZA (1632-1677). O mito se entrelaça na rede da cultura, é uma realidade cultural, profundamente complexa e ensejadora de várias interpretações e complementaridades. Compõe sistemas cosmogônicos e muitas vezes, no mesmo território assume distintas faces. Exemplo que se evoca é o da mitologia yoruba e o panteão dos orixás. O mito Yemanjá foi construído de uma forma nos antigos templos africanos das terras de Ifé e Ibadan. Ao cruzar os oceanos na direção da América assume outras formas e altera, radicalmente, as características fenotípicas. Entretanto, a marca de sua natureza mítica se mantém intacta em todos os países aonde chegara: Brasil, Cuba, Argentina. Apesar de todas as transformações porque passou, Yemanjá representa o mito vivo que, em sua origem, partira de África. Que conceito poderia melhor expressar a ideia de “mito”? Como o “mito” concorre para a formação da identidade? Estas são as questões que nos motivam e nos orientam no desenrolar desta pesquisa. Estudiosos modernos, em que pese considerarmos suas particularidades, apresentam uma qualidade que os identifica no conjunto: o mito, enquanto construção e constituição humana, mediada pela condição de narrativa de uma história, que pode se apresentar e se fazer representar por meio da linguagem, condicionado a variáveis de tempo e de espaço. O “mito” é vivido e incorporado para quem nele acredita. ROLAND BARTHES (1988), ensaísta e semiólogo francês, formulou uma crítica ideológica e semiológica à temática do mito na obra Mitologias. Ali podemos verificar 38 concepções sobre mito, articulando-o à imagem (forma), ao significado e ao significante. Seus postulados remontam à década de 1950 e pela relevância, já foram reeditados em diversos idiomas. Barthes trabalha com a ideia de mito enquanto uma fala, uma linguagem, um discurso, uma mensagem pertencente, portanto, a uma ciência geral que inclui a linguística: a semiologia. A semiologia existe enquanto ciência dos signos, das formas, das significações atribuídas aos objetos, longe de se constituir por inteiro, haja vista sua interlocução com a psicanálise, com o estruturalismo e com a psicologia eidética. Ancorado nos estudos de SAUSSURE (2002), FREUD (1930) e outros estudiosos contemporâneos, a exemplo de BACHELARD (1986), Barthes esclarece que só interessa estudar o mito na perspectiva de seus significantes/significados. Para tanto, evoca a semiologia em face de sua especificidade quanto ao estudo das formas, independentemente de seus conteúdos. A mensagem se materializa na forma, que pode ser representada por meio de múltiplas linguagens: uma imagem, um discurso oral ou escrito, as artes, o cinema, os esportes, os espetáculos, a publicidade, tudo isto pode servir de base para a mensagem mítica. BARTHES disseca sua crítica em três elementos inseparáveis: o significante, o significado e o signo. A compreensão de um esquema semiológico do mito requer a apreensão de cada elemento e a totalidade que o compõe. Assim, afirma que

“en los conceptos míticos no hay ninguna fijeza: pueden hacerse, alterarse, deshacerse, desaparecer completamente. Precisamente porque son históricos, la historia com toda facilidad puede suprimirlos. Esta inestabilidad obliga al mitólogo a manejar uma terminologia adaptada sobre la que quisiera decir algunas cosas, pues, a menudo, es fuente de ironía: se trata del neologismo”. Barthes (1957)12.

A perspectiva barthiana, ao associar mito à linguagem, enfatiza que não se trata de qualquer linguagem, mas, de uma linguagem que requer condições particulares para se converter em mito, já que se trata de um sistema de comunicação, uma forma e, como tal, condicionada a limites históricos, condições de emprego, remanejamento da sociedade. Apesar de assumir uma atitude assimétrica em relação às concepções de mito, enquanto tradição, BARTHES (1950) afirma que qualquer objeto pode passar de uma existência fechada a um estado oral, aberto à apropriação da sociedade, pois não há lei, natural ou não, que impeça de falar sobre as coisas. Embora não seja fundamental a este trabalho, merece atenção a perspectiva de Barthes sobre mito, quando alude a ENGELS (1820-1895): “o importante é compreender que a unidade de uma explicação não reside na amputação de algumas de suas aproximações, senão na capacidade de coordenação dialética das ciências que, nela, se implicam”

12 [...] Tradução livre da citação: “Nos conceitos míticos não há nenhuma rigidez: podem fazer-se, alterar-se, desfazer-se, desaparecer completamente. Precisamente porque são históricos, a história com toda facilidade pode suprimi-los. Esta instabilidade obriga o mitólogo a manejar uma terminologia adaptada sobre o quisera dizer algumas coisas, pois, às vezes, é fonte de ironia, se trata de neologismo”. 39

(BARTHES, 1950). E isto acontece ao tratamos de mitologias, conforme referenciadas no início deste subcapítulo. Daí reunirmos três aspectos relevantes de sua obra: 1)o caráter ideológico; 2)o caráter semiológico do mito; c)o caráter histórico. O aspecto ideológico, ou seja, a apropriação política da noção de mito pode desencadear um sem número de relações arqueologizantes de poder entre as culturas. O uso da palavra no contexto da língua e de seus componentes constitui emblema de concreta complexidade, a depender do conjunto de interesses de grupos sociais. Quando pensamos na imagem de Yemanjá/sereia, levantamos hipóteses. Desconfiamos, mais do que afirmaríamos pelas pegadas dos estudos culturais -, que os africanos traficados assimilaram de tal modo, os códigos culturais linguísticos dos europeus, que até se renderiam à hipótese de representação/imagem de um ícone da cultura negra, substituindo-o por uma imagem branca. Pensamos que tal representação resvalaria em limitações de ordem epistemológica, vez que ultrapassa os limites de uma hibridização ou de tradução cultural: “que negro é esse na cultura negra?” Mas, esta é uma questão para outro momento. O mito, dentro do esquema semiológico de Saussure a que Barthes evoca, vem a calhar para explicá-lo frente à síntese: significante, significado e signo. Serve de parâmetro discursivo para enriquecimento deste trabalho. Contudo, dele prescindimos na intencionalidade explicativa de mito a que nos comprometemos traçar. Para este fim, aludimos a ELIADE (1907- 1986), cujo acervo teórico consistiu os estudos sobre mito, desde as experiências nas comunidades e tribos de distintas regiões, compiladas em obras, a exemplo de “Mito e realidade”.

III. 3 O caráter sagrado do “mito” em Mircea Eliade.

“o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, um uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser . O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos, sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos “primórdios”. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do “sobrenatural”) no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural”. MIRCEA ELIADE (1907-1986). 40

As mitologias compõem o imaginário humano em diversas culturas, desde seus primórdios. O ser humano sempre buscou justificar a existência do universo por meio de símbolos, associando a vida à produção de sentido e às dimensões metafísicas implícitas no que constitui o imaterial, naquilo que escapa ao alcance da razão, o mistério. A busca de explicações para a origem do universo e da vida, das relações entre o ser humano e a natureza, dos fenômenos da natureza, os significados da morte têm motivado indagações e sustentado narrativas míticas, histórias e lendas próprias de cada cultura. A oralidade é o recurso mais comum para recontar narrativas míticas de geração em geração. A natureza do mito se consubstancia nos atributos do sobrenatural, relacionando-o à existência de uma divindade ou um conjunto de divindades. ELIADE (2011) fornece suporte a esta pesquisa, por conter sua obra, aspectos consonantes à linha de investigação, ou seja, os aspectos míticos que envolvem a Yemanjá/sereia, situada à frente da Colônia Z1 do bairro do Rio Vermelho. O silenciamento em torno das mitologias africana e indígena nas escolas brasileiras pode ser constatado nos currículos oficiais, desde sua sistematização. A disciplina História, constante do currículo escolar básico, mais voltada para o ensino das culturas e das sociedades humanas, supervalorizou aspectos mitológicos dos povos gregos, do povo romano e do povo egípcio, sendo que este último dissociado de pertencimento ao continente africano. Quanto às mitologias africanas yorubá, o ocultamento verificado nos livros didáticos denuncia flagrante ação discriminatória. De modo geral, algumas mitologias ensinadas na escola alimentaram nossos imaginários e cooperaram para uma compreensão dos modos de ser e de viver de povos da Antiguidade. Figuras míticas como Apolo, Atena, Afrodite, Diana, Poseidon, Dionísio, Hermes, Zeus, Éros, Thánatos são criações da cosmogonia grega. A cosmogonia romana se tornou conhecida pelas figuras de Rômulo e Remo, Baco, Netuno, Júpiter, Vênus, Minerva, entre outros. A mitologia egípcia, constituída de ícones reverenciados nos textos didáticos - Ísis, Osíris, Seth, Rá, Amon -, equidistante da realidade cultural do Brasil, ocupou lugar de destaque na historiografia brasileira. A versão oficial da história do Brasil escamoteou qualquer associação do povo egípcio ao continente africano, seu berço. Quanto às mitologias africanas, constitui, até a atualidade, desconcertante dissimulação de sua importância dentro de uma matriz civilizatória. Impossível falar de África sem referir às suas cosmogonias. Por que falar de Exu provoca tanto desconforto em determinados espaços, quanto não ocorre idêntica reação ao referir a Hermes, se ambos, respectivamente da cosmogonia africana e da cosmogonia europeia, são mitos que dialogam com os deuses, portanto, canais de comunicação entre os humanos e o mundo imaterial? Por que Yemanjá, em Salvador, é reverenciada em uma festa que se popularizou, mas não costuma ser tratada como divindade da cultura africana, na escola? Quanto às mitologias indígenas, as referências não passaram de uma visão superficial e folclorizada, reduzidas a equivalências superficiais entre a ideia de “deus” e elementos da 41 natureza, respectivamente Tupã, Jaci, Coaraci. Sobre a iconografia dos deuses e deusas africanas, não se tem notícia de alguma alusão nos conteúdos curriculares oficiais. Tal omissão concorreu fundamentalmente para uma compreensão desconectada de África, fator decisivo na construção de um comportamento generalizado de recusa às práticas religiosas caracterizadas pelos cultos às divindades da mitologia yorubana. As mitologias grega e romana se destacaram nos currículos escolares, sobretudo na disciplina História, disseminando o ideal de formação clássica do pensamento iluminista. De inegável importância para os estudos da história da humanidade, o que se problematiza é a ênfase de culturas em detrimento de outras. A oportunidade do presente permite, nesta pesquisa, recuperar parte do conhecimento e da cosmogonia dos africanos diasporizados. Em muitas sociedades as mitologias estiveram associadas às religiões, numa relação intrínseca, tornando-se difícil distinguir diferenças entre elas. Por exemplo, a mitologia nórdica – oriunda dos povos celtas – é caracterizada como um conjunto de lendas por alguns, enquanto que, para outros, é considerada como religião. Semelhante fenomenologia ocorrera nas sociedades tradicionais africanas, conforme atestamos nos escritos de Prandi, entre outros. O caso dos yoruba protagoniza sua sobrevivência na contemporaneidade.

III. 4 O mito na cosmogonia yoruba

Em seu livro, “A Mitologia dos orixás”, PRANDI (2000) demonstra o sistema social yoruba orientado por uma cosmogonia em que a relação com o tempo se dá de modo simetricamente direto com a natureza. A obra de PRANDI (2000) expõe elementos da dinâmica cultural africana e de como as concepções de tempo, aprendizagem e saber se consistiram na formação do candomblé no Brasil. Segundo o autor, o tempo capitalista moderno constitui desafio para a preservação das tradições africanas em território brasileiro. Embora inscrita no domínio de religiosidades, sua produção nos interessa, também, na perspectiva de cultura, ou seja: a mitologia enquanto elemento constitutivo da cultura e as noções de tempo nas sociedades de cultura mítica. Manifestações em que religiosidades estão presentes constituem recursos para a análise das alterações dessas noções na sociedade brasileira contemporânea e como essas variáveis influenciam o conceito de cultura e de identidade. Para tanto, importa considerar a religião dos orixás, trazida ao Brasil pelos yoruba no século XIX (PRANDI, 2000). A trajetória diasporizada entre África, América e Brasil consegue abarcar no século XXI as matrizes identitárias demarcadas pela ideia de alteridade? A imagem de uma Yemanjá branca, à entrada da Casa de Pescadores no bairro do Rio Vermelho, em Salvador, da Bahia, deslegitimaria a herança cultural africana no Brasil? Terá sido tal representação “branqueada”, 42 resultante da ideologização eurocêntrica que, ao reconhecer a força desse “mito” para os africanos escravizados, dele tentou se apropriar? Anteriormente ao calendário europeu, os povos yoruba, principal matriz cultural do candomblé do Brasil, sistematizavam o tempo numa semana de quatro dias (PRANDI, 2000). As estações do ano, os ritmos da natureza e as fases da agricultura fundamentavam o ordenamento do ano, e não havia o conhecimento de sua divisão em meses. Os intervalos temporais eram limitados pela sucessão de eventos reconhecidos e compartilhados coletivamente. Desse modo, os ritmos da natureza eram observados e ritualizados, a exemplo do nascer e do pôr do sol: o amanhecer estava associado ao nascer do sol, sinal de despertamento e movimentação; enquanto o pôr do sol estava associado ao final do dia e sinal de recolhimento para dormir (PRANDI, 2000, apud. MBITI, 1990). Os dias e semanas eram contados de acordo com a manifestação de cada evento, o qual servia de referência para as mulheres controlarem a duração da gestação e os homens controlarem os sucessos de suas plantações, sem registro de data (PRANDI, 2000, apud ELLIS, pp. 142-151). A semana tradicional yoruba de quatro dias, chamada ossé, dedicava a cada divindade um dia (Ojô Awô, Ojô Ogum, Ojô Xangô, Ojô). Nessas comunidades míticas era a semana que regulava a vida social nas aldeias e cidades yorubanas, que se dinamizava num espaço pontual: os mercados. Tais locais constituíam os centros de socialização yorubá, locais onde as mulheres costumavam comercializar seus produtos e onde eram trocadas informações da vida cotidiana. Embora reconhecido o calendário lunar, este não era muito valorizado pelos yoruba tradicionais. Valorizavam bem mais as épocas de realizações das grandes festas marcadas pelas estações e fases agrícolas do ano, a que chamavam de odum. Consideravam duas grandes estações: a estação das chuvas e a estação das secas, mediadas por uma estação de fortes ventos. Cada ano poderia durar mais ou menos dias, dependendo do adiantamento ou do atraso das estações. Mas, isto não fazia muita diferença, já que os dias não eram cronometrados. Os anos, os meses, os dias passavam num fluxo repetitivo, sem contagem aritmética. O dia era dividido em períodos, que poderiam ser traduzidos por expressões como “de manhã cedo”, “antes do por do sol”, “com o sol na vertical”, “de tardinha”. O cantar do galo demarcava a noite. A inexistência de um registro da memória cultural das sociedades tradicionais yoruba limitou a reconstrução recente de sua história, sem uma cronologia dos períodos anteriores à chegada dos europeus. Por essa razão sua historiografia foi elaborada por meio de mitos e memórias projetadas num passado sem datas. Como havia reinados nas sociedades yoruba, eles criaram um arranjo: o treinamento de funcionários encarregados de manter viva a memória dos reis, através da recitação dos eventos mais importantes realizados por cada soberano. Contudo, tais episódios não eram datados (PRANDI, 2000, apud JOHNSON, 1921). 43

Na concepção temporal dos yoruba, os fenômenos cíclicos da natureza eram recebidos como fatos normais da vida. Mas, diante de um acontecimento novo, fora do ritmo normal do tempo, como um eclipse, uma enchente ou o nascimento de gêmeos, a reação era de preocupação e temor. Distintamente da concepção temporal do Ocidente, que inventou a história, os africanos tradicionais concebem o tempo como uma conjunção de eventos que já aconteceram ou estão prestes a acontecer imediatamente. É a composição do que já foi vivenciado, de maneira que o passado imediato está diretamente ligado ao presente, do qual faz parte, enquanto o futuro é a continuidade do que já começou a acontecer no presente. O futuro se reflete naquilo que foi experimentado, vivido, acumulado, manifestado na repetição cíclica dos fenômenos da natureza: as estações, as próximas colheitas, o envelhecer individual, o nascimento e a morte. Portanto, não há sentido para eles a ideia de futuro desfocado de uma realidade imediata (MBITI, 1990, pp. 16-17). Não faz sentido a ideia de história como se conhece no Ocidente. Diversamente da história, é por meio dos mitos que o passado é revivido no presente, independentemente da coerência que possam guardar entre si ou de alguma forma de cronologia. O passado primordial, de narrativa mítica, se confunde com a religião, operada sua dinâmica de perceber e apreender os sentidos da existência. Possui uma natureza e um conteúdo que fala do povo como uma totalidade e é transmitido de geração a geração, fornecendo a identidade geral do grupo, os valores e as normas essenciais para a ação naquela sociedade.

III. 4.1 Os Yorubá na Bahia

O degredo produzira um esfacelamento no tecido das etnias ligadas ao tronco linguístico-cultural yoruba, a começar pelo idioma. As circunstâncias hediondas (sempre nos reportaremos à escravatura desta maneira) em que chegaram ao Brasil, em especial à Bahia, causaram danos de repercussões inimagináveis. Emergia um mundo novo, literalmente, para aqueles contingentes de africanos acorrentados sobre navios e alienados de sua humanidade em direção ao nada, porque sequer tinham ciência de seu destino. Diversos em etnias e idiomas teriam que aprender a língua de seus opressores, aprender seus valores e, sobretudo, aprender a obedecer, apenas obedecer. A pedagogia, enquanto ciência das aprendizagens sustenta que o processo de aprender requer condições favoráveis ao desempenho satisfatório: proposta pedagógica, ambiência, recursos, intervalos para reposição da energia necessária. No caso de um idioma, tais condições requerem tempo e para tanto, alguns requisitos se fazem mais particulares. A imposição de um aprendizado sob o chicote, por si já ocasiona comprometimento psíquico de delicadas proporções e em níveis imensuráveis. Os impactos 44 sobre as cosmogonias repercutiram de tal sorte nas culturas dos africanos escravizados que, após cento e vinte e cinco anos da abolição, completados no ano de 2013, ainda estamos às voltas com uma das formas de racismo que reverbera no campo religioso e se expressa pela recusa, em alguns setores da sociedade, a qualquer demonstração de culto ao candomblé. RUGENDAS (1989) demonstra uma faceta das nações africanas para sobreviverem em território adverso, quando diz:

“Pela extrema necessidade de sujeitarem-se às crenças religiosas de seus senhores, ocultaram sob as esfígies católicas, a força e o poder de sua própria religião. A tal ponto que alguns observadores e estudiosos chegaram a crer que os africanos teriam facilmente abandonado os princípios de suas religiões tradicionais para tornarem-se cristãos... O excesso das violências que lhe são impostas destrói, quase inteiramente, todas as suas ideias anteriores, apaga a esperança de todas as suas esperanças: para eles a América é um novo mundo, aqui recomeçam uma nova vida....Por outro lado, as formas exteriores desse culto devem produzir uma impressão irresistível no espírito e na imaginação do africano. Concebe-se, pois que, no Brasil os negros se tornem rapidamente cristãos convictos e que todas as recordações do paganismo se apaguem neles ou lhes pareçam odiosas” (RUGENDAS, 1989, p. 159).

PRANDI (2000) retrata a cosmovisão dos yoruba de forma bastante esclarecedora e prazerosa em seu livro “A mitologia dos orixás”. Nele, fala sobre a relação entre os orixás e os homens, da similaridade entre os mitos e os humanos e destaca um aspecto fundamental: o princípio da unidade que relativiza as noções de bem e do mal. Assim, o princípio que provoca um problema é o mesmo princípio que o resolve. Entre as modificações introduzidas nas práticas do candomblé, PRANDI (2000) lembra que os afrodescendentes assimilaram o calendário e a metrificação do tempo ocidentais utilizados na sociedade brasileira, mas, preservaram algumas práticas da concepção africana, que podem ser verificadas na rotina dos candomblés. À semana agora, distribuída em sete dias, foi incorporada uma relação em que cada dia corresponde a um ou mais orixás, bem como, cada dia encerra eventos narrados daqueles orixás: a quarta-feira é dia de justiça, porque é dia de Xangô. No caso do mito Yemanjá, pensamos que seu culto ultrapassou a noção de sobrevivência e se tornara uma vivência real e intangível, haja vista a influência que exerce no imaginário coletivo da Bahia, do Brasil e de outros países. Em caminhadas no Rio de Janeiro, fotografei imagens de Yemanjá em diferentes pontos da cidade, principalmente nos pontos turísticos de reconhecimento internacional, a exemplo da praia de Copacabana e da praia de Botafogo. A foto abaixo exibe uma escultura feita em bronze pelo artista plástico Luiz Figueiredo em 1988.

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Figura III.1 Escultura de Yemanjá na Colônia de Pescadores de Copacabana/RJ/Foto de Celiana

Figura III.2 Placa/Escultura de Yemanjá/Colônia de Pescadores/Copacabana-RJ/Foto de Celiana

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Figura III.3 Yemanjá da Praia de Botafogo/RJ. 2012/Foto de Celiana.

De autoria do artista espanhol Jaime Plensa, esta escultura foi instalada na Praia de Botafogo em 3 de setembro de 2012. Intitulada “Olhar dos meus sonhos”, foi feita com pedra de mármore e resina. Segundo o Jornal O Globo o autor se declarou devoto de Yemanjá. A imagem ressalta um rosto dotado de força, de presença, cujos traços resguardam características fenotípicas de povos africanos: formato dos olhos que, apesar de cerrados, insinua contornos oblíquos; o nariz, relativamente largo e os lábios carnudos conferem às faces cheias, serenidade e altivez (impressões da pesquisadora).

Os mitos de Yemanjá proporcionam reflexões acerca de sua expansão e capacidade de penetração e assimilação, alternando suas formas, variando suas faces de acordo com os lugares por onde passou. À semelhança do elemento água, ela se transforma e se espraia, contorna e se apropria dos espaços, preenche e esvazia num movimento cíclico. O imaginário coletivo sobre Yemanjá a nomeou por inúmeros nomes cantados por poetas de várias gerações e nessas canções são exaltadas suas qualidades de mãe e de amante ardorosa. Entretanto, sua sacralidade se faz inquestionável como erupção do mítico conforme diz Eliade

“O homem das sociedades nas quais o mito é uma coisa vivente, vive num mundo “aberto”, embora “cifrado” e misterioso. O Mundo “fala” ao homem e, para compreender essa linguagem, basta-lhe conhecer os mitos e decifra os símbolos. Através dos mitos e dos símbolos da Lua, o homem capta a misteriosa solidariedade existente entre temporalidade, nascimento, morte e ressurreição, sexualidade, fertilidade, chuva, vegetação e assim por diante. O Mundo não é mais uma massa opaca, de objetos arbitrariamente reunidos, mas um Cosmo vivente, articulado e significativo. Em última análise, o Mundo se revela enquanto linguagem. Ele fala ao homem através de seu próprio modo de ser, de suas estruturas e de seus ritmos”. (ELIADE, 2011).

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CAPÍTULO IV YEMANJÁ, A DIVINDADE NEGRA DAS ÁGUAS

Yemanjá, Rainha do Mar. Pedro Amorim e Paulo César Pinheiro

“Quanto nome tem a rainha do mar/ Quanto nome tem a Rainha do Mar? Dandalunda, Janaína, Marabô, Princesa de Aiocá Inaê, Sereia, Mucunã, Maria, Dona Yemanjá./ Onde ela vive, onde ela mora? Nas águas / Na loca de pedra/Num palácio encantado/No fundo do mar. O que ela gosta? / O que ela adora? Perfume / Flor, espelho e pente / Toda sorte de presente / Para ela se enfeitar. Como se saúda a Rainha do Mar? / Como se saúda a Rainha do Mar? Alodê, Odofiaba / Minha-mãe, Mãe-d’água, Odoyá! Qual é seu dia / Nossa Senhora? É dia dois de fevereiro/Quando na beira da praia / Eu vou me abençoar. O que ela canta? Por que ela chora? Só canta cantiga bonita / Chora quando fica aflita se você chorar. Quem é que já viu a Rainha do Mar? Quem é que já viu a Rainha do Mar? Pescador e marinheiro que escuta a sereia cantar / é com o povo que é praieiro / que Dona Yemanjá quer se casar.

De todos os “mitos” da cosmogonia yoruba, Yemanjá foi o que se tornou mais conhecido na América Latina, principalmente no Brasil. Sua origem remonta a um sistema codificado na existência de seres sobrenaturais, a que Leo Frobenius classificou de orixás, que integram a tradição oral dos antigos povos integrados pelo tronco linguístico-cultural yoruba. Os primeiros estudos sobre as religiões afro-brasileiras foram introduzidos no Brasil por Nina Rodrigues. Segundo ele, o culto a Yemanjá foi trazido pelos egbá, povo pertencente ao grupo nagô, que aportara inicialmente na Bahia, entre o final do século XVIII e o início do século XIX (RODRIGUES, 1977: 105). Os povos egbá viviam numa região entre Ifé e Ibadan na África. Foram os primeiros cultuadores de Yemanjá, divindade que, no continente africano, originou-se das águas doces como ninfa do rio Ogun. Até o século XIX, em consequência de lutas Inter-étnicas entre os yoruba, da expansão dos egbá e da propagação de sua cultura, o culto a Yemanjá chegou a Abeocutá e outros povoados margeados pelo rio Ogum, fato que influenciou a associação de Yemanjá a esse rio e com o passar do tempo, sua aceitação na maior parte do território dos yoruba. Na África o culto inicial a Yemanjá a associou aos rios e seus afluentes, ao processo criativo do mundo, à fertilidade feminina, à maternidade, ao plantio das colheitas de inhame e à coleta dos peixes, por isso, seu nome Yemoja (Yeye Omo Eja), que significa Mãe dos Filhos Peixes, deusa que rege a pesca. É representada nos templos africanos por uma mulher de 48 corpo largo e seios fartos, que ela sustenta com as mãos. Sobre a cabeça um recipiente em forma de tigela onde são postos seus objetos sagrados, as pedras sagradas (otás), que após rituais de sacrifícios tornam-se portadores de sua força sagrada, seu axé.

Figura IV.1 Yemanjá dos antigos templos africanos/Foto da Fundação Pierre Verger

Os cultuadores de Yemanjá costumavam realizar um rito de ressacralização, que consiste em procissões anuais em direção aos rios e às fontes em busca de água para a renovação dos objetos de culto. Os yoruba entendem ser necessária a renovação da força cíclica dos objetos por meio da água. Desde África à América e ao Brasil, várias são as versões africanas sobre o orixá Yemanjá. Contudo, entre semelhanças e diferenças, seu protagonismo foi preservado junto aos orixás femininos das águas, como Nanã e Oxum. Entre todos os orixás/divindades do panteão africano, ocupa lugar especial, sobretudo no Brasil. Observando os mitos apresentados no texto pode-se inferir as relações básicas entre Yemanjá e os demais orixás, entre o mundo dos seres humanos e a natureza, numa circularidade que impregna de sentido o mito, as práticas rituais a ele consagradas e as concepções de pessoa e de mundo sob sua regência sagrada. Sua chegada ao Brasil encontrou os pilares do culto pelos grupos étnicos angola, ijexá e jeje, para os quais Yemanjá é chamada Mameto, Dandá, Mameto, Kianda e Dandalunda. Esses nomes atribuídos a Yemanjá nos alcançam como resultantes da diversidade interna aos territórios africanos e suas variações culturais. A diáspora intensificou essas diferenças e 49 aproximou semelhanças, inclusive entre povos de distintos continentes, no caso África e Europa, quanto a imaginários. O que parece estar em evidência é o elemento água como fonte de energia, elemento vital do processo de criação do mundo. Em torno desse elemento, várias cosmogonias foram construídas ao longo da história e representadas de alguma forma, por diferentes formas: na Europa as ninfas gregas e sereias, Freyja, deusa da fertilidade dos povos nórdicos e, em alguns casos, o culto às águas foi representado pelo masculino, no mito do deus Poseidon. Na América e no Brasil, Yemanjá se mantém majestosa como a grande mãe africana, a rainha dos pescadores do Rio Vermelho, na Bahia.

IV. 1 Yemanjá: o arquétipo da força feminina

A origem do universo sempre esteve associada à existência de dois polos dinâmicos que se complementam: a presença masculina e a presença feminina. Contudo, o gênero feminino se destaca na estrutura religiosa secular africana. Nela as mulheres ocupam lugar de sacerdotisas (Iyalorixás e Iyaninfas), que atuam decisivamente no ordenamento hierárquico de suas comunidades. Na ritualística do culto aos ancestrais há o culto às mães ancestres, cultuadas nas sociedades das Geledés13 da cultura yoruba. Encontramos um nicho da mitologia africana de exponencial relevância para os estudos culturais em que identidade e imaginário se associam possibilitando a construção do discurso antropológico por meio de realidades societais, ainda pouco exploradas diante de sua ampla diversidade. Nesta lógica, falar sobre Yemanjá instiga-nos a situá-la no protagonismo cosmogônico das iyabá, orixás femininos relacionados com os mistérios da vida e da morte, com as divindades, com a fertilidade e fecundidade. As iyabá estão diretamente ligadas ao mundo das águas, a água como poder sacralizador, elemento feminino de preservação da vida. Quando pensamos o gênero feminino, especificamente, podemos verificar a íntima relação entre as mulheres e as divindades, dada a sua condição mesma, de gestadoras. CARNEIRO e CURY (s/d b, p.19) retratam assim a mulher em duas alusões distintas:

“A importância da mulher, tanto nos rituais que cultuam as tradições dos yoruba quanto na sustentação da vida social da família, tem motivos históricos. A mulher que, cotidianamente, vive em conflito aqui na cultura ocidental, porque é relegada a um plano inferior da existência na sociedade capitalista, encontra nos ritos de religiões africanas, mais precisamente yoruba, uma forma de ritualizar este conflito. Somente para exemplificar, se no ocidente cozinhar é uma tarefa menosprezada, sem valorização social, na sociedade yoruba terá uma função de valor inestimável. Um privilégio que não cabe a todos”.

13 [...] Sociedade secreta de mulheres da sociedade yoruba, que cultua seus ancestres vestindo tecidos coloridos, marcadamente em épocas especiais. 50

VALLADO (2008), em sua obra “Iemanjá, a grande mãe africana do Brasil” citando a GLEISON (1997: 36) fala que “o processo de criação resulta da complementaridade dinâmica entre os opostos, da tensão que surge da necessidade de ambos existirem no mesmo universo”. O deus supremo Olodumaré, também chamado Olorum e Olofim, sentindo-se solitário em meio ao “nada” de seus domínios, envolto em seu próprio caos, nas sombras de seus mistérios decide criar Yemanjá, as Águas, e Aganju, a Terra. Nesta explicação mítica observamos que a vida consiste em estar com, deixar de ser só. Apesar de sua decisão, Olodumaré retorna ao seu estado de solidão, ao se distanciar de suas criaturas, os orixás, inclusive de Yemanjá. Este mito encerra um sentido primordial da gênese do mundo, da vida e da humanidade, pois, dos sucessos ao “abandono” de Olodumaré, nasce o incesto entre Yemanjá e seu irmão Aganju, gerando a Orugã. Orugã, por sua vez, apaixona-se pela mãe Yemanjá, movida por sua beleza e inteligência. Quando da ausência do pai, tenta violentá-la. Yemanjá se põe em fuga para escapar ao assédio do filho e cai desesperada. Na queda, desfalece. A partir daí seu corpo assume proporções extraordinárias e dos seus enormes seios brotaram os rios e o mar; do seu ventre nasceram os orixás, cada um com características associadas à natureza e aos dinamismos dos comportamentos humanos: Xangô, deus do trovão e do fogo, patrono das causas em que se clama por justiça; Ogum, deus do ferro e da guerra, vinculado aos minerais e, atualmente relacionado aos avanços tecnológicos; Oyá, deusa do rio Niger, relacionada com os ventos e as tempestades, senhora dos mortos (egúngún); Oxóssi, deus da caça, associado à alimentação e responsável pelo cio das fêmeas; Obá, deusa do rio Obá, associada ao poder masculino dentro da família e à fidelidade conjugal; Xapanã, deus da varíola e de todas as doenças da pele; Oxum, deusa do rio Oxum, senhora da beleza e dos encantos mágicos. Segundo Baudin (1884:13), nesse mesmo mito da Criação, Yemanjá gerou Olocum (divindade do mar), Olossá (divindade dos lagos), Orum (o sol), Oxu (a Lua), Oquê (divindade dos montes), Orixá Ocó (divindade da agricultura), sendo que estes últimos foram transformados em outras divindades que se mantém cultuados. O último filho de Yemanjá teria sido Exu, deus do movimento e da comunicação. Mas Exu faz parte de outros mitos, os quais, deixaremos para momento mais oportuno. Embora contestado por várias vertentes antropológicas como o maior de todos os tabus, o incesto entre Yemanjá e Orugã inaugura a possibilidade de interpretação da cultura, enquanto princípio demarcador e ordenador da sociedade. O mito em que Yemanjá é esposa de Oquerê alude mais uma vez aos seus seios como fonte de onde jorra, profusamente, a água. Essa evocação repetida nos leva a imaginar que aos seios está associada a sacralidade, pois é deles que emana o alimento essencial e fundamental de nutrição e de preservação da vida. Ao amamentar, a mulher assegura proteção e firma uma profunda ligação entre mãe e filho. Por outro lado, os seios representam fonte de prazer, também, para os homens, exercendo em alguns casos, até um relativo fascínio. 51

Ressaltamos que os seios constituem princípio sagrado em outras culturas e sociedades, além da africana. Entretanto, no mito da Criação do mundo, Yemanjá tem papel preponderante. Seus seios sagrados, os quais lhe deixam muito vaidosa, sintetizam o arquétipo do alimento, sem o quê, nenhuma espécie é capaz de sobreviver. O princípio de complementaridade no mito da Criação protagonizado por Yemanjá está presente em várias situações: na lenda em que Xangô aparece como seu filho. Esta lenda fala do episódio em que Yemanjá foge da casa por causa da briga com seu marido Oquerê e se transforma num rio e segue em direção ao mar. Oquerê a intercepta, transformando-se em montanha. Surge, então, Xangô, o filho mais velho de Yemanjá, acompanhado do raio e do trovão. Ele se interpõe na desdita entre marido e mulher, separando a montanha para que sua mãe pudesse alcançar o mar. A circularidade do mito se concretiza: do presente para o passado e do passado para o presente. Ao ter sua liberdade defendida por Xangô, Yemanjá lhe dá a vida e o alimenta com seus seios sagrados. As relações que se estabelecem entre os orixás – dar, receber, retribuir – podem ser assimilados pelo ser humano como princípio norteador das ações humanas. Observamos o fato de que na maioria das lendas de Yemanjá a figura paterna é ausente, à maneira da formação sociocultural de sociedades yoruba, onde as mulheres costumavam estar à frente das atividades estratégicas da família, a exemplo da provisão alimentar, da economia doméstica e dos negócios. Cabia aos homens a lida com a agricultura. Verificamos tal realidade em VALLADO (VALLADO, 2008, apud. Bernardo, 1989: 77), quando cita:

“Na África, por sua vez, na organização sócio-econômica tribal, as mulheres yoruba controlavam grande parte do suprimento alimentar, acumulavam dinheiro e negociavam em mercados distantes e importantes” (Bernardo, 1989: 77.

Essas práticas culturais foram reproduzidas no contexto sociocultural brasileiro no período pós-escravatura da população afro-brasileira, em que a mulher detém um poder: o poder de liderar sua comunidade primal. Neste caso, há que atentar para as grandes complexidades a que o movimento feminista brasileiro não deu conta, haja vista a situação de precariedade em que vive relativo número de mulheres afrodescendentes, obrigadas a assumirem penosas responsabilidades na criação de seus filhos e a buscarem seguridade social em forma de pensões alimentícias e outros auxílios. A observação empírica aqui decorre de experiência pessoal e profissional em contato com realidades afluentes às escolas públicas de Salvador e do contato com noticiários a esse respeito, amplamente divulgadas pelas mídias locais. O par de oposição Yemanjá (divindade das águas) e Xangô (divindade do fogo) ilustrado em várias lendas demonstra que, apesar do aparente antagonismo, também, há 52 relação de complementaridade, como podemos ver na lenda em que Xangô não havia se tornado uma divindade. Nesta lenda, Yemanjá se inteirara das peripécias de seu filho Xangô, que vivia a assustar as pessoas com as labaredas projetadas de seus olhos, narinas e ouvidos. Tomada de senso de justiça Yemanjá o repreendeu, fato que contrariou a Xangô. Yemanjá revela sua autoridade quando avoluma de forma desmesurada o corpo e, girando suas saias provoca um mundo de águas em ondas que derrubam Xangô. A partir daí Xangô passa a temer a autoridade feminina por meio da autoridade materna. O elemento água ressurge como símbolo do retorno às origens. Quanto a outras relações de complementaridade, por exemplo, entre homem e mulher, limitamo-nos à lenda de Yemanjá como esposa de Ogum. VALLADO (2008) formula que há mais antagonismos do que aproximações entre ambos, pois o gênio irascível de Ogum a obrigara a procurar afeto em um amante, Aiê, a Terra. O arquétipo de desbravador, guerreiro e destemido de Ogum o torna um ser de impossível convivência. Graças a sua intolerância incumbiu seu cachorro de encontrar e atacar a Yemanjá e seu amante. O que foi feito, gerando a partir dali uma aversão a cachorros por parte de Yemanjá. Yemanjá se destaca na mitologia yoruba em tantos papéis quantas são as lendas que inspirara: mãe, amante, filha e esposa, reunindo qualidades semelhantes às formas como a mulher socializa sua presença na sociedade. Entretanto, a lenda em que Olodumaré a escolhe como protetora de todas as cabeças dá a dimensão do poder que ela exerce no imaginário coletivo, principalmente para quem cultua a religiosidade do candomblé. .

IV. 2 Mitos sobre Yemanjá

Yemanjá ajuda Olodumaré na criação do mundo

Vivia na mais completa solidão o deus supremo Olodumaré, também chamado de Olofim e Olorum, cercado de fogo, vapores. Cansado de seu universo tenebroso, cansado de não ter com quem falar, de não ter com quem brigar, decidiu por fim àquela situação. Libertou suas forças e a violência delas fez jorrar uma tormenta de águas. As águas debateram-se com rochas que nasciam e abriram no chão profundas e grandes cavidades. A água encheu as fendas ocas, fazendo-se os mares e oceanos em cujas profundezas Olocum foi habitar. Do que sobrou da inundação se fez a Terra. Na superfície da Terra, ali tomou seu reino Yemanjá, com suas algas, estrelas do mar, peixes, corais, conchas e madre-pérolas. Ali nasceu Yemanjá em prata e azul, coroada pelo arco-íris de Oxumarê. 53

Olodumaré e Yemanjá, a mãe dos orixás dominaram uma parte do fogo no fundo da Terra e o entregaram ao poder de Aganju, o mestre dos vulcões, por onde ainda respira o fogo aprisionado. A outra porção do fogo eles apagaram e suas cinzas se espalharam pelas mãos de Orixá-Ocô, fertilizando os campos, propiciando o nascimento das ervas, frutos, árvores, bosques, florestas, que, então foram cuidadas por Ossaim, que descobriu o poder curativo de todas as folhas. Nos lugares onde as cinzas foram escassas, nasceram os pântanos e nos pântanos, a peste, dada pela mãe dos orixás ao filho Omolu. Yemanjá encantou-se com a Terra e a enfeitou com rios, cascatas e lagoas. Assim surgiu Oxum, dona das águas doces. Quando tudo estava feito, cada parte da natureza na posse de um dos filhos de Yemanjá, Obatalá, obedecendo diretamente às ordens de Olorum, criou o ser humano. E o ser humano povoou a Terra. (Aróstegui, 1994: 8-10).

Yemanjá afoga seus amantes no mar

Yemanjá é dona de rara beleza e, como tal, mulher caprichosa e de apetites extravagantes. Certa vez, saiu de sua morada nas profundezas do mar e veio à terra em busca do prazer da carne. Encontrou um pescador jovem e bonito. Seus corpos conheceram todas as delícias do encontro, mas, o pescador era apenas um humano e morreu afogado nos braços da amante. Quando amanheceu, Yemanjá devolveu o corpo à praia. E assim acontece sempre, toda noite, quando Yemanjá Conlá se encanta com os pescadores, que saem em seus barcos e jangadas para trabalhar. Ela leva o escolhido para o fundo do mar e se deixa possuir. E depois o traz de novo, sem vida para a areia. As noivas e as esposas correm cedo para a praia, implorando a Yemanjá que os deixe voltar vivos. Elas levam para o mar muitos presentes.

Yemanjá vinga seu filho Xangô

Yemanjá era uma rainha poderosa e sábia, tinha sete filhos, sendo o primogênito seu predileto. Era um negro bonito e com o dom da palavra, seu nome era Xangô. As mulheres caíam aos seus pés, e os homens tinham muita inveja dele e até mesmo os orixás padeciam desse sentimento. Tanto fizeram e tantas calúnias levantaram contra o filho de Yemanjá, que provocaram a desconfiança em seu próprio pai. O rei, marido de Yemanjá, deu ouvidos à história de que seu filho Xangô, queria matá-lo para apossar-se de seu trono. Levaram o filho de Yemanjá a julgamento e o sentenciaram à pena capital. Yemanjá explodiu em ira e tentou de todas as formas aliviar a pena imputada a seu filho. Os homens não a ouviram, contudo. Não se importaram com suas súplicas. Mais 54 adiante, essa humanidade soube sentir o poder da vingança de Yemanjá. Yemanjá declarou que sobre a Terra os homens permaneceriam enquanto ela quisesse. Perdendo seu filho amado, invadiria o mundo com suas águas salgadas e de sua água doce não mais experimentariam. Assim o fez e a primeira humanidade foi destruída. (CABREIRA, 1980: 32-33).

Yemanjá seduz seu filho Xangô

Xangô costumava deitar-se em sua esteira para deixar passar as horas, descansando o corpo e o espírito. Sua mãe Yemanjá por vezes fazia o mesmo em companhia do filho, passando horas e horas adormecidos lado a lado. Certo dia Yemanjá sentiu correr por seu corpo um calor estranho, sentiu desejos pelo corpo do filho, e pouco a pouco foi se aproximando, levada por seus ímpetos sexuais. Ao sentir um corpo frenético encostado ao seu, Xangô despertou de seu sono, espantando-se ao escutar de sua mãe palavras de desejo de tê-lo como homem. Desesperado, Xangô fugiu e subiu até o topo de uma palmeira. Seu coração palpitava, a indignação era grande. Iemanjá correu atrás do filho e ao pé da palmeira declarou palavras de desejo, sendo estas rebatidas furiosamente por Xangô. Num ato histérico, Yemanjá jogou-se ao chão e roçou suas unhas na terra, lançando gemidos extasiantes. Xangô a escutou e tentou esquecer-se da figura materna, desceu da palmeira e abraçou-se a ela. Yemanjá e Xangô amaram-se como homem e mulher. (LACHATAÑERE, 1992: 37).

O presente de Yemanjá a Olodumaré

Um dia houve uma reunião de todas as divindades com Olodumaré. Yemanjá estava em sua casa sacrificando um carneiro, quando Exu chegou para comunicar-lhe sobre a realização da tal reunião. Apressada, com medo de atrasar-se, e sem ter outra coisa para levar como presente a Olodumaré, Yemanjá levou como oferenda ao deus supremo, a cabeça do carneiro que havia sacrificado. Ao ver que somente Yemanjá trazia-lhe um presente, Olodumaré disse: Awoyó ori dori re (Cabeça trazes, cabeça serás). Desde então Yemanjá toma conta de todas as cabeças que pensam (CABRERA, 1980:31).

Yemanjá trai seu marido Ogum

Yemanjá era casada com Ogum. Ele era um negro forte, brutal, irascível, dono de muitos cães. De tanto sofrer maus-tratos por parte do marido, Yemanjá não tardou a trair 55

Ogum, enamorando-se de Aiê, a Terra. Um dia, um dos cães de Ogum farejou o caminho de Yemanjá encontrando-a nos braços de amante. O cão, fiel ao seu dono, não tardou levar Ogum ao local onde se encontravam os amantes. Atônito e irado pela descoberta da traição, Ogum incitou o cão sobre Yemanjá, que assim foi violentamente ferida por ele. Ogum vingou-se e Yemanjá, desde esse dia, tem horror a cães. (CABRERA, 1980: 45.)

Yemanjá foge do marido Oquerê e volta ao mar

Yemanjá vivia em Ifé, onde era casada com Olofim-Odudua. Tinha dez filhos. Um dia, cansada da monotonia da vida em Ifé, Yemanjá partiu para o oeste, chegando a Abeocutá. Lá chegando conheceu Oquerê, rei de Xaci. Encantado pela beleza e inteligência de Yemanjá, Oquerê propôs-lhe casamento. Ela aceitou, mas ambos tinham tabus que não poderiam ser violados, daí um não poder fazer alusão ao tabu do outro. Yemanjá tinha enormes seios e Oquerê grandes testículos. Certo dia, Oquerê voltou para casa embriagado e pôs-se a brigar com Iemanjá. Iemanjá, irritada, chamou-o de bêbado e imprestável. Oquerê, irado, retrucou fazendo comentários jocosos sobre os seios da esposa. Yemanjá, irritada, saiu em fuga para o mar, a casa de sua mãe Olocum. Antes de partir, Yemanjá apanhou uma garrafa contendo uma porção mágica que fora presente de Olocum, para ser utilizada em algum momento de perigo. Na fuga, Yemanjá derrubou e quebrou o recipiente, nascendo nesse momento um rio, que a levou em direção ao mar. Oquerê contrariado com o que via, saiu em perseguição à esposa, transformou-se em montanha e interpôs-se no caminho de Iemanjá, impedindo-a na sua trajetória. Yemanjá desesperada chamou seu filho mais velho, Xangô, que logo veio em seu auxílio. Ele pediu oferendas para poder ajudá-la. Yemanjá cumpriu o pactuado e, no dia seguinte, Xangô provocou chuvas seguidas de muitos raios. Num estrondo, um raio rompeu a grande montanha em dois, dando liberdade ao rio que levaria Yemanjá ao mar. Novamente Yemanjá retornou liberta à casa de sua mãe Olocum. (VERGER, 1981:190).

Yemanjá castiga seu filho Xangô

Aos ouvidos de Yemanjá estavam chegando notícias de que seu filho Xangô andava pelo mundo queimando tudo e atemorizando as pessoas com o fogo que ele botava pela boca, olhos e ouvidos. Preocupada, Yemanjá procura o filho para repreendê-lo. Xangô não gostou da atitude da mãe e, enfurecido, botou fogo pelo nariz, olhos e ouvidos, devolvendo em desaforos a reprimenda de Yemanjá. Ela, não aceitando a atitude do filho, girou sobre si mesma e fez brotar de suas imensas saias, ondas que derrubaram Xangô. As águas estavam enfurecidas 56 quanto Yemanjá. Nesse momento Xangô saiu correndo gritando: “Onón komí!” (Me dás medo!). Desde então Xangô respeita todas as decisões de Iemanjá (CABREIRA, 1980:41).

Yemanjá enlouquece Oxalá e depois o cura

Olodumaré fez o mundo e repartiu entre os orixás vários poderes, dando a cada um deles um reino para cuidar. A Exu deu o poder da comunicação e a posse das encruzilhadas. A Ogum, o poder de forjar os utensílios para a agricultura e o domínio de todos os caminhos. A Oxóssi, o poder sobre a caça e a fartura. A Obaluaê, o poder de controlar as doenças de pele. Oxumaré seria o arco-íris, embelezaria a Terra e comandaria a chuva, trazendo sorte aos agricultores. Xangô recebeu o poder sobre a justiça e sobre os trovões. Oiá reinaria sobre os mortos e teria poder sobre os raios. Ewá controlaria a subida dos mortos para o orum, bem como reinaria sobre os cemitérios. Oxum seria a divindade da beleza, da fertilidade das mulheres e de todas as riquezas materiais da Terra, bem como teria o poder de reinar sobre os sentimentos de amor e de ódio. Nanã recebeu a dádiva, por sua idade avançada, de ser a pura sabedoria dos mais velhos, além de ser o final de todos os mortais, nas profundezas da terra, onde os corpos dos mortos seriam por ela recebidos. Além disso, do seu reino sairia a lama da qual Oxalá modelaria os mortais, pois Odudua já havia criado o mundo. Todo o processo de criação completou-se com o poder de Oxaguiã, que inventou a cultura material. Para Yemanjá, Olodumaré destinou os cuidados da casa de Oxalá, assim como a criação dos filhos e de todos os afazeres domésticos. Yemanjá trabalhava e reclamava da sua condição de menos favorecida, pois, afinal, todas as divindades recebiam oferendas e homenagens enquanto ela vivia como escrava. Durante muito tempo Yemanjá reclamou dessa condição e tanto falou, tanto falou nos ouvidos, que este enlouqueceu. O ori (orí, cabeça) de Oxalá não suportou os reclamos de Yemanjá. Caindo Oxalá enfermo, Yemanjá deu-se conta do mal que fizera ao marido e tratou de curá-lo imediatamente, arrependida e temerosa. Em poucos dias, utilizando-se de banha vegetal (Òri), de água fresca (omì-tutú), de obi (fruta conhecida com noz-de-cola), pombos brancos (eyelé-funfun), frutas deliciosas (esó) e doces (adún), curou Oxalá. Oxalá, agradecido, foi a Oxumaré pedir para que atribuísse a Yemanjá o poder de cuidar de todas as cabeças. Desde então Yemanjá recebe oferendas e é homenageada quando se faz o bori (borí, ritual propiciatório à cabeça) e demais ritos à cabeça (Pesquisa de campo). Observa-se, nesta lenda, a relação entre Yemanjá e os aspectos psíquicos dos seres humanos, uma vez que é o “mito” que predomina no equilíbrio da mente.

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Yemanjá e Oxum

Yemanjá não conseguia engravidar e por isso foi consultar o Ifá14. Ifá-Orunmilá lhe orienta a levar ebó15 ao rio, próximo a sua casa, a cada cinco dias, antes do alvorecer. Este rio ela deveria ir acompanhada de crianças. Devia levar na cabeça um pote pintado de branco, contendo oferendas, para nele trazer água fresca que deveria beber e usar para banhos. Ela repetiu este ritual durante muito tempo. Ao fim de muita espera, Yemanjá engravidou, mas, continuou repetindo as determinações de Ifá. Certo dia, após a entrega das oferendas, sentiu as dores do parto. Então pediu às crianças que se afastassem e, sozinha, deu à luz, Oxum. Chamou as crianças e pediu a uma delas que levasse a notícia a Orunmilá que, muito feliz, enviou um mensageiro para saudá-la.

Yemanjá e Omolu

Há uma lenda que diz da imensa generosidade de Yemanjá para com Omolu, quando este, rejeitado por sua mãe Nanã, foi abandonado na praia para que o mar o levasse. Nanã se recusou a mantê-lo junto a si por não suportar a feiura do filho, que também era manco e cheio de feridas. Um grande caranguejo se aproximou do bebê e o atacou com suas pinças, tirando pedaços de sua carne. Quando Yemanjá saiu das águas e o avistou, abrigou Omolu em uma gruta e passou a cuidá-lo com curativos de folhas de bananeira e alimentando-o com pipocas sem sal nem gordura, até que se recuperasse. Depois de curado, Yemanjá o criou como a um filho. Desde então, uma profunda ligação se estabeleceu entre os dois orixás.

14 [...] Palavra de origem yoruba, que significa oráculo dos terreiros de candomblé. 15 [...] Ebó é uma palavra de origem yoruba que significa oferenda para um orixá. 58

Figura IV.2 Iemanjá dá à luz os orixás. Detalhe do painel de Caribé no Salão de Atos do Memorial da América Latina, São Paulo, SP.1999. /Foto de Denise Camargo. Retirada do livro "Iemanjá, a grande mãe africana do Brasil.

Figura IV.3 Yemanjá do Largo da Mariquita/Rio Vermelho/Foto de Celiana.

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CAPÍTULO V NO FLUXO DAS ÁGUAS, O REFLUXO DE IMAGINÁRIOS

“Êh, tem jangada no mar Êh, hoje tem arrastão Êh, todo mundo pescar Chega de sombra, João! Jovi, olha o arrastão entrando no mar sem fim! Êh, meu irmão, me traz Yemanjá pra mim! Minha Santa Bárbara, me abençoai, Quero me casar com Janaína”. Êh, puxa bem devagar Êh, êh, êh, já vem vindo o arrastão Êh, é a Rainha do Mar, Vem, vem na rede, João Pra mim.... Valha-me Deus, nosso Senhor do Bonfim! Nunca, jamais se viu tanto peixe assim!” Vinicius de Morais e . 1965.

O universo desta pesquisa abrange os pescadores do Rio Vermelho, da cidade de Salvador, e o imaginário construído do “mito” Yemanjá que, segundo a cosmogonia africana yoruba, é a divindade das águas. Sendo o ambiente das águas sua fonte de subsistência, entendemos ser imprescindível situá-los no lugar de pertencimento. Adotamos como critérios a categoria de pescadores em sua conjuntura; a formação sociocultural do Rio Vermelho; a identidade coletiva dos pescadores do Rio Vermelho: a Colônia Z1; as atividades de rotina dos pescadores; e os pescadores na festa consagrada a Yemanjá. Pensamos a categoria de pescadores do Rio Vermelho em um contexto ampliado, qual seja, seu dinamismo histórico e social no Brasil, a fim de que possamos aprendê-la em suas singularidades identitárias. Quem são os pescadores e como estão socialmente organizados? A fundação da Colônia Z1 data de 21 de março de 1972 e integra cerca de dois mil e duzentos pescadores, e média de mil e quinhentas embarcações. Está localizada à Rua Guedes Cabral, na Casa do Peso, na mesma construção que abriga a Casa de Yemanjá, e ao lado da Igreja de Santana. Segundo “Branco”, a Colônia surgiu da necessidade de estruturação da pesca artesanal na Bahia. Funciona como agente político de unificação da categoria, em termos de políticas públicas, seguridade social, escolarização, condições de trabalho, prevenção e saúde.

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Figura V.1 Vista de frente da Colônia Z1/Foto de Celiana

Figura V.2 Faces externa e interna da Colônia Z1/Foto de Celiana

A Colônia Z1 constitui espaço de sociabilidades dos pescadores, sede de trabalho e de encontro diários, onde convivem em fluxo de permanente troca de experiências. Por sediar a Festa de Yemanjá, a Colônia se tornou objeto de constante visitação durante todo o ano, por uma variedade de públicos, a exemplo de turistas nacionais e turistas estrangeiros, interessados em conhecer um pouco da história do lugar. Local privilegiado de comunicação e cultura, considerada a dinâmica social entre pescadores, pescadores e consumidores, 61 consumidores e peixeiro ou atravessador, a Colônia se caracteriza por sua natureza agregadora e simbólica, mediatizando a experiência do imaginário, que se manifesta por meio das histórias, dos “causos”, das vivências dos pescadores, em singularidades que despertam curiosidade por parte de quem escuta. O ponto forte da comunicação é a oralidade, que conta e reconta os saberes e os fazeres de geração para geração. Com baixa escolaridade, alguns semianalfabetos, são contagiados pelas “novidades” e acompanham as transformações operadas pela modernidade, fazendo uso de meios eletrônicos, acessando a internet, portando celulares, independentemente da faixa etária. A atividade da pesca, em muitos casos, faz parte da árvore de um mesmo grupo familial, uma mesma árvore genealógica que permeia as décadas, desde bisavós, avós, pais, filhos, irmãos, tios, sobrinhos e primos. No âmbito dessas relações socioafetivas é que as histórias são recontadas e transformadas em lendas. E a Colônia, do ponto de vista simbólico, é a mais importante referência da vida dos pescadores, pela capacidade de integrar forças em constante movimentação, onde todos se conhecem, por seus apelidos ou pelos nomes civis no bairro do Rio Vermelho. Entre as atividades do trabalho e as batidas das pedras de dominó na mesa ou o jogo de baralho nas horas livres, os pescadores estão sempre se comunicando, havendo momentos em que um ou outro vinha em busca de breve informação, que não constituía dificuldade para prosseguir o diálogo. A presença da Colônia no espaço público e a mobilidade diária no mar lhes permitem maior liberdade quanto ao uso de roupas, daí serem vistos, descamisados e vestido em bermudas, ora vestidos com camisa e calça, ora, descalços.

V. 1 A identidade coletiva dos pescadores do Rio Vermelho – a Colônia Z1

“Diferentemente do imaginário lúdico/poético cantado nos versos do compositor baiano Dorival Caimi, o pescador da cidade de Salvador enfrenta grandes desafios diariamente, não apenas pelos riscos a que estão submetidos no mar, mas, também, por questões relacionadas à regulamentação da profissão”. “Branco”, 2013.

Tipicamente gregários. Esta é a mais fidedigna observação acerca dos pescadores da Colônia Z1, tanto em relação às saídas para o mar quanto em relação aos dias em que o tempo não oferece condições seguras para o exercício da pesca. Falantes, criativos, brincalhões e receptivos, em geral, são portadores de narrativas bastante peculiares de seu universo - o mar. Há, também, nesse universo, indivíduos introspectivos, mais calados, alguns sisudos. Contudo, costumam trabalhar, na maioria das vezes em grupos de três, como medida preventiva diante de algum contratempo. Em casos de exceção, há os que arvoram ao mar 62 apenas com sua embarcação e seus apetrechos, mas, isto, quando o distanciamento da costa é curto, ou seja, menos de seis mil metros. Integrados por uma das mais antigas e tradicionais atividades da cultura baiana, compõem um contingente de trabalhadores da pesca artesanal do estado da Bahia e se organizam politicamente, por meio da Colônia, à qual estão vinculados. A Colônia, nesse sentido, é a entidade que regulamenta o exercício profissional e a seguridade social da categoria. Contem acervo de todos os pescadores e suas classificações, conforme as habilidades de trabalho: pesca artesanal, pescadores associados, sindicalizados, profissionais e amadores. De acordo com “Branco”, os pescadores enfrentam dificuldades que comprometem sua sobrevivência, desde a formalização do trabalho às condições de trabalho: nos dias em que as chuvas são intensas, os ventos muito fortes e o mar revolto, a embarcação avariada e ausência de recursos financeiros para imediata reposição, tornam-se impeditivos para a saída ao mar. A sobrevivência condicionada pela imprevisibilidade marca a vida dos pescadores, tal qual uma travessia existencial sobre a imensidão das águas misteriosas. Em média os pescadores costumam amealhar mensalmente um salário mínimo, em condições favoráveis de pesca. Do contrário, ou seja, quando as condições são adversas, o valor arrecadado fica em média de quatrocentos reais. A categoria de pescadores é distribuída por várias colônias sediadas em núcleos localizados na extensão da orla marítima de Salvador. Os núcleos são locais de embarque e desembarque de pescadores nas rotinas de trabalho. A Colônia Z1 abarca os núcleos da Feira de São Joaquim/Mercado Modelo; Gamboa; Porto da Barra; Ondina; Rio vermelho; Mariquita; Amaralina; Pituba; Jardim dos Namorados e Boca do Rio. Cada núcleo desenvolve um estilo próprio, conforme a topografia do lugar. Por exemplo: nas praias de Amaralina, Pituba, Jardim dos Namorados e Boca do Rio, o estilo mais comum é a “rede de calão”.16 Para sua realização os pescadores se deslocam para o mar desde as cinco horas da manhã. Os banhistas que se encontrarem no local, sejam adultos, crianças ou jovens, poderão participar, pois, ao sinal do pescador/mergulhador de entrada do cardume na enseada, são necessários muitos braços para arrastar a rede do mar. São utilizados como instrumentos de pesca o bicheiro e o arpão. Os participantes - visitantes ou frequentadores da praia – que cooperam com a puxada da rede são usualmente chamados de “caloneiros”. A rede de calão provoca uma explosão de sensações: os sentidos em alerta, à espera de um sinal do olheiro, a tomada de posição para lançar a rede, a sincronicidade dos “caloneiros” para se aproximar e entrar no mar e, enfim, a puxada. A partilha do pescado é outro momento muito especial, pois ali, podem ser observadas emoções positivadas nas mãos que se movimentam em gestos de entrega, entre risos,

16 [...] Esse estilo de pesca se caracteriza por um indispensável espírito de grupo. Cerca de cem indivíduos são agrupados, entre pescadores e pessoas externas à categoria. Costuma ser realizada em enseadas, graças à concavidade existente na costa, abrigo de determinadas espécies de peixes. A rede de calão consiste no lançamento da rede ao mar para capturar cardumes inteiros numa puxada. 63 conversas, acertos e esperanças em outras pescarias mais abundantes. Sentimentos de solidariedade dão visibilidade às relações sociais construídas no dia a dia dessas pessoas. A rede de calão pode acontecer todos os dias, desde que os peixes apareçam na enseada, atraídos pela isca depositada nas águas ao fim da tarde anterior. Se a rede e a embarcação de pesca estiverem a serviço de um proprietário, 50% da coleta vai para o proprietário dos meios de produção e a outra metade é compartilhada entre os “caloneiros”. Apesar das limitações demarcadas pela luta para preservarem sua fonte de trabalho e renda, pescadores e suas representações tem inspirado diversas produções poéticas do cancioneiro popular, entre as quais citamos as canções de Dorival Caimi, Vinicius de Morais, João Bosco, entre outros. A poética de “Arrastão” na epígrafe deste capítulo fornece elementos de imaginários de pescadores, que transitam de forma hibridizada, mesclando simbologias das religiosidades brasileiras. A entrevista com “Branco” concorreu para esclarecimentos necessários frente à questão social dos pescadores, que transcrevemos abaixo. Utilizamos iniciais em negrito para distinguir a pergunta da pesquisadora e a resposta do(a) entrevistado(a), respectivamente P e E.

Sr. M. S. S. – “Branco”, presidente da Colônia de Pescadores Z1 do Rio Vermelho, 50 anos, graduado em Informática.

P. Você exerce a atividade de pescador? R. Não sou pescador profissional. Minha atividade aqui é de natureza política. Estou neste posto como presidente há alguns anos, para estruturar a pesca artesanal no país, já que a Colônia de Pescadores Z-1 é a primeira do Brasil e, também, uma referência. P. Há quanto tempo faz parte da comunidade de pescadores do Rio Vermelho? R. Há 23 anos. No cargo de presidente da Colônia, há cinco anos. P. Quais são suas representações a respeito de Yemanjá? R. Todos sabem que a humanidade surgiu da África, portanto seus ícones são oriundos da África. A Yemanjá branca foi assim transformada, na França, por meio do Mediterrâneo. Alguns “povos de santo” cultuam a Yemanjá branca, outros a cultuam de acordo com suas crenças, seus próprios ritos. É sabido que o sincretismo foi uma espécie de corruptela dos africanos no Brasil, a fim de melhor cultuar seus deuses. Penso que é extremamente discutível a questão da raça, dos fenótipos. Há que considerar a influência da Igreja e do Cristianismo que, em sua iconografia, valorizavam uma estética branca, por entenderem ser mais atrativa. Esse artifício era considerado de maior eficácia para consolidar seu poderio sobre os devotos (?). Particularmente, eu tenho profundo respeito por Yemanjá, é minha protetora, é a rainha do mar. 64

P. E sobre a festa de Yemanjá, qual a origem? R. As reverências a Yemanjá foram iniciadas no bairro da Ribeira. Foi lá que os pescadores começaram a se manifestar. Depois da Ribeira, as homenagens a Yemanjá continuaram em Itapoan. Logo após Itapoan, o bairro do Rio Vermelho passou a sediar a festa, onde se tornou oficializada. A festa de Yemanjá resultou da demanda por peixe fresco, no ano de 1923. Naquela época, os consumidores de peixe fresco eram os veranistas, aristocratas da classe burguesa que frequentava a Enseada do Rio Vermelho. Em busca de peixe fresco e frustrados por não conseguirem, propuseram aos pescadores que fizessem uma oferenda à Mãe d’Água, como era chamada Yemanjá, para que ela interferisse naquela escassez. Os pescadores não acreditaram muito no conselho. Grande parte daqueles pescadores, em número de vinte e seis, de maioria negra, pertenciam à família Moita. Pedro Moita, neto do antigo pescador Simeão Moita, liderava o grupo e pensou: “se bem não fizer, mal não vai fazer”. E então, começaram a se organizar. O primeiro passo foi providenciar um livro de ouro para angariar dinheiro e comprar presentes para a Mãe d’Água: pente, perfumes, flores, espelho, fitas. Colocaram tudo numa caixa de sapato forrada com papel celofane, para disfarçar a simplicidade. Encomendaram uma missa na capela do Rio Vermelho e convidaram a Mãe de Santo Júlia de Bogun para cuidar da parte sincrética. Às dez horas da manhã saíram para o mar em suas pequenas embarcações – saveiros, canoas, jangadas -, e depositaram o presente para a rainha do mar, com toda a devoção, pedindo-lhe que mantivesse a subsistência e a de todos os seus familiares. Coincidência ou não, após alguns dias os peixes entraram em abundância na enseada do Rio Vermelho, causando alegria a todos os frequentadores. Por ter se dado no dia 2 de fevereiro, o feito gerou tamanha credibilidade, que deu origem à criação da festa de Yemanjá. Embora não conheça o dia do orixá na iconografia iorubá, o certo é que o 2 de fevereiro passou a ser festejado anualmente. P. Há algum documento, um estatuto da criação da Festa de Yemanjá? R. Não existe nenhum estatuto da criação da Festa, uma vez que essa festa é popular. Se a festa é popular, não pertence ao poder público. As festas populares da Bahia, sobretudo, em Salvador, estão se extinguindo, em função de distintos interesses. A visão, ou seja, a festa, hoje, possui uma feição, marcadamente turística. P. Quanto aos pescadores, quem são essas pessoas? R. Os pescadores criaram a festa de Yemanjá, mas, não foi deles a inspiração, como eu disse antes. Em sua composição, a maioria, em torno de 90%, eram negros e católicos. Houve um tempo em que a igreja cobrava 1/5 da produção da pesca. A ignorância era um grande entrave. Há um enorme contingente de analfabetismo entre os pescadores, algo que torna desafiadora a prática de escolarização, pelas condições adversas a que estão submetidos, daí que, contraem doenças ocupacionais, entre elas a carcinoma de melanoma, que provoca alto índice de cegueira, glaucoma e catarata; doenças de próstata, DSTs... 65

P. O que representa esta escultura de Yemanjá, à frente da Colônia de Pescadores Z1? E. Para mim, não representa nada. Ela foi colocada aí por iniciativa da sociedade do bairro do Rio Vermelho e não dos pescadores. O autor da obra, Manoel Bonfim, foi procurado pela comunidade do bairro e convidado a esculpir uma sereia, como símbolo de Yemanjá. P. Conhece alguma lenda local sobre Yemanjá? E. Há muitas lendas sobre Yemanjá, mas, não me ocorre lembrar agora. Você pode conseguir algumas lendas por meio dos pescadores mais antigos, como “Pai Velho”, por exemplo. Hoje ele está aposentado, mas, pertenceu a esta Colônia. Hoje em dia ele atua como peixeiro na Colônia Z6, de Itapoan. As atividades de pesca são bastante diversificadas de um núcleo para outro. Há pescarias em superfícies planas, ou seja, próxima à costa, que podem ser realizadas individualmente. Para esse gênero, é bastante o emprego de dois anzóis: um que boia e outro que desce ao fundo, tendo na extremidade inferior uma bola de chumbo. Outra modalidade de pesca é a pesca coletiva, por envolver um relativo número de pessoas e requer um planejamento de tempo e de recursos materiais, como prevenção à permanência no mar, durante dias ou semanas. Nesses casos são utilizados instrumentos de pesca que variam em grau de sofisticação e outros artefatos, inclusive, uma quantidade de gelo suficiente para conservar o pescado. O exercício profissional de pescador está condicionado às exigências legais, pois é necessária a permissão que, conforme o pescador “Cumprido”, tem início na Colônia mais próxima do endereço do interessado. Por meio de inscrição, a Colônia providencia encaminhamento à Secretaria da Agricultura e da Pesca e à Capitania dos Portos. O aspirante a pescador é submetido a um treinamento ministrado pela Capitania, quando recebe instruções sobre o manuseio da embarcação. Ao fim do treinamento, recebe uma carteira de habilitação. De acordo com o pescador “Cumprido”, a Capitania dos Portos exige equipamento compatível com a atividade, a exemplo de colete salva-vidas para cada tripulante, extintor de incêndio, boia circular de vinte metros de cabo e vela (esta última para ser usada em situações extraordinárias). Por questões financeiras da maioria, muitos pescadores se submetem à exploração de sua força de trabalho, pois, não dispondo de embarcação própria, recorrem aos proprietários dos meios de produção para trabalhar e com eles dividir parte da coleta do pescado. Os riscos ficam por conta do indivíduo que arrendou a embarcação. A coleta da pesca, em forma de dinheiro, obedece a critérios assim descritos: uma parte vai para o proprietário da embarcação, outra parte para o “peixeiro” – também denominado de “atravessador -, indivíduo que trabalha na peixaria instalada na Colônia e o primeiro a receber e comprar o pescado. A negociação possui um acordo em que o produto é vendido ao peixeiro por um preço, sempre menor ao que é repassado para o consumidor. A terceira parte da coleta da pesca fica para o pescador. Destacamos que tais práticas sociais de negociação nem 66 sempre funcionam, invariavelmente, harmoniosas. Portanto, verificamos indícios de conflitos entre pescadores, atravessadores e a presidência da Colônia, caracterizados por desconfiança, insatisfações comentados confidencialmente. O pescador “Cumprido”, na vivência de seus setenta e cinco anos, lamentou as mudanças nas relações socioafetivas dos pescadores:

“antigamente o evento da pescaria era muito valorizado, até a década de 1960, quando os moradores do Rio Vermelho costumavam sentar na balaustrada para ver a chegada dos pescadores, principalmente no verão. Os pescadores sentiam muito orgulho de sua profissão e tinham um respeito muito grande pelo mar, pelos colegas e pelas pessoas que compravam o peixe. Hoje em dia, o comportamento das gerações mais novas é muito diferente, tem pescador que não respeita o mar, não pede permissão à Mãe d’ Água, dá até risada dessas coisas... Só querem o dinheiro rápido.... tem até pescador que dá palavrão quando estão nas água. Isso é um absurdo!”

“Cumprido” pontuou o espírito de solidariedade e companheirismo entre os pescadores no dia a dia, mesmo em relação aos dependentes químicos ao álcool. Nas situações em que a pesca foi mal sucedida, os pescadores fazem um acordo antes de se lançarem ao mar, dialogando sobre as intencionalidades individuais, pois, se algum intenta pescar de forma isolada, deverá se colocar e assumir os riscos de obter boa pesca ou retornar de mãos vazias. Quando isso ocorre, o interessado anuncia: “a linha é minha”, e então, todos já sabem que ele não quer companhia. Quando a pesca é coletiva, há que ser planejada. Se a intenção for passar uma ou mais noites nas águas, é necessário providenciar recursos como o gelo para armazenar o peixe até o final da pescaria. Nessa possibilidade, o coletivo, só “entra” no mar depois de pedir permissão “primeiramente a Deus e depois, à Mãe d’Água”, cada um a sua maneira, “com a fé que carrega”. “Cumprido” fez questão de lembrar que a pescaria coletiva não acontece mais, só ocorria quando havia rede de pesca. Já aposentado, ele frequenta a Colônia para rever antigos companheiros e goza de respeito e simpatia entre os mais novos, também. Junto a outro pescador mais velho, “Mantega”, de setenta e cinco anos, relembram os bons tempos e interferem em algumas práticas de pescadores, sobre o movimento da pesca e como pode ser melhorada. “Cumprido” se estende em narrativas saudosas de seus primeiros anos como pescador e lamenta a extinção da jangada. Para ele, a mais antiga e uma das mais seguras embarcações de pesca, teve sua extinção decretada pela proibição da utilização de madeira para confeccionar jangadas. Com capacidade para quatro a cinco homens em seu lastro, afora o material de pesca, as jangadas possuíam velas, que nem sempre eram içadas por qualquer motivo. Seu uso dependia de algumas circunstâncias: ou para auxiliar na chegada ao destino de forma mais rápida; ou para sinalizar à guarda costeira em busca de socorro, quando do afastamento involuntário e arriscado da costa. 67

Ao ser consultado sobre a existência de Yemanjá e se acredita, “Cumprido” sorriu timidamente e respondera que, “antigamente não era conhecida por esse nome a rainha das águas, e sim Mãe d’Água. Os antigos tinham muita fé nela e eu também.” Acrescenta “Cumprido” que, segundo a lenda dos antigos

“a Mãe d’Água era uma mulher muito bonita e era vista sentada em uma pedra. Mas, quando notava que era observada, se lançava no mar, deixando um grande movimento de águas ao redor”

O encontro com o pescador “Cumprido” está registrado na entrevista que segue.

Pescador M. S. “Cumprido” – Pescador da Colônia do Rio Vermelho, 75 anos, aposentado.

P. Há quanto você é pescador? E. Já tem muito tempo....!.Eu comecei a pescar com quinze anos, desde quando vivia em Sítio do Conde (cidade do interior da Bahia). Mas, lá no interior só dava pra chegar de jangada. Sempre fui fanático por pesca. Quando vim pra Salvador, fui trabalhar num clube, fazendo serviço de atender os cliente. Fiquei lá dez anos, mas, não teve jeito. Quando saí, fui direto pro Rio Vermelho me juntar com outros pescadores pra trabalhar no que eu sempre quis. Mesmo no tempo que eu trabalhei no clube, eu ia todo domingo por porto do Rio Vermelho. P. Que sabe sobre Yemanjá, como você imagina que ela é? E. Eu imagino que ela é muito bonita...ela é linda! P. O senhor é de candomblé? E. Olhe, eu não sou de candomblé, eu frequento as duas religião, a igreja católica e o candomblé. Mas a fé em Yemanjá é separado. Tem que respeitar o mar. O mar e o vento. O que eu mais respeito no mar é o vento. Eu aprendi isso com os pescadores mais velhos: a interpretar o mar pelo movimento das água, e de que lado vem o vento. Se você tá numa posição em que as águas bate no fundo da popa do barco, é porque o vento sopra de trás e aí é preciso observar bem para não atravessar a força, porque é perigoso. Principalmente na entrada dos portos, porque o barco pode bater nas pedra e causar acidente. P. Como Yemanjá veio para o Brasil? E. Não sei a origem de Yemanjá, só sei que ela é um grande mistério... um mistério que eu nunca soube entender.... Outra coisa misteriosa, que eu sempre quis saber é que, quando a maré vaza em um trecho da praia, vaza, também, em todas as outras praias. Pra onde vai tanta água? Isso é um mistério profundo, que ninguém sabe entender. Mas eu nunca senti medo de ir pro mar. Me sinto no mar, como se estivesse em minha própria casa. Me sinto mais seguro no mar. Terra firme é que dá medo, é onde a gente pode ser assaltado, morrer atropelado... Agora, é preciso aprender a conhecer o mar, saber respeitar o mar. Eu respeito, 68 no mar, e o tempo! Antigamente, não existia o serviço de meteorologia. A gente partia pro mar sem saber se o tempo era certo pra pescar. A gente só tinha a fé. Tem que ter fé. Além da fé, tem que ter o saber. P. E sobre a festa de Yemanjá, sabe de quem foi a ideia? E. Quando eu cheguei em Salvador, já existia a festa de Yemanjá, mas não era tão famosa como agora. Naquela época, tinha uma senhora daqui do Rio Vermelho, Dona Lió, que comerciava comida. Os pescadores tinham costume de ir lá e ela ouvia as queixas deles, de que não conseguiam trazer peixe, que os peixe sumiu do mar. De acordo com os mais antigos, foi ela quem teve a ideia do presente. Ela achava que os peixe não aparecia porque a “dona das água” queria um agrado dos pescadores. E tinha uma “mãe de santo”, que naquela ocasião, orientou os pescadores a “arriar” um presente, primeiro para Oxum, porque 2 de fevereiro é dia de Nossa Senhora das Candeias e 8 de dezembro, que é dia de Nossa Senhora da Conceição da Praia. P. Conhece alguma coisa sobre a imagem/escultura de Yemanjá na frente da Colônia de Pescadores do Rio Vermelho? E. O que eu sei é que foi um artista daqui, mesmo, do Rio Vermelho. P. Será que Yemanjá é uma sereia, como aquela da escultura? E. Eu acho que sim, porque muitos pescadores que já tiveram visão dela, disseram que ela é assim, branca e com os cabelo bem cumprido. Mas ela não deixa ninguém chegar perto dela, nem ver seu rosto. O pessoal daqui, os mais velho, dizia que a Mãe d’Água era uma mulher muito bonita, e era vista sentada na pedra, mas, quando nota que era observada, se lançava no mar, deixando um movimento de água ao redor. P. Conhece alguma lenda local sobre Yemanjá? R. Não.... não conheço nenhuma lenda de Yemanjá. Só sei contar minhas experiência. Ah... eu tenho muita história....

Outro pescador aposentado, o “Mantega”, de setenta e cinco anos, mais direto e enfático em seu discurso, frequenta a Colônia mais raramente para “matar” a saudade dos companheiros e se mostrou indignado com as práticas de alguns pescadores da “turma nova”, pelo desrespeito à tradição da pesca, quanto à conduta no mar. Conforme suas palavras “esses caras, a turma nova, não tem o menor respeito pelo mar, às vez até despreza a dona das água. Só querem ganhar o dinheiro rápido... Xingam quando não conseguem peixe.... Eles núm sabe que a dona das águas não ajuda o filho assim ... Ela tá ali pra favorecer qualquer um, mas, tem que respeitar... Eles dá até risada de nós e núm quer saber de conselho. Eu núm quero conta com eles”. Ao ser questionado sobre seu imaginário de Yemanjá, seu rosto se volta na direção do mar e se abre num sorriso, declarando-se fervoroso admirador da divindade e se declarou praticante de candomblé. Seu discurso se expressa na próxima entrevista. 69

PESCADOR, F. S. “Mantega” - 76 anos, soteropolitano, ensino fundamental até o 3º ano.

P. Há quanto exerce a profissão de pescador? E. Vixe, já faz muuuuito tempo! Só de participação na festa de Yemanjá, comecei em 1950. Em 1953 eu já me juntava com outros pescador pra angariar dinheiro pro presente de Yemanjá. Como você se define: negro, branco, moreno, mulato...? E. Eu sou preto, dá pra ver, né?(“Mantega” exibe um sorriso largo). P. Como você imagina Yemanjá, de onde ela veio, “quem” é Yemanjá? E. Yemanjá é uma mulher muito bonita, alva (“Mantega” quis referir à cor da pele com a palavra “alva”), misteriosa e tem muito poder. É ela que governa as água, sem ela não tem pesca, porque tudo depende da vontade dela. É por isso que todo pescador tem que pedir licença a ela pra entrar no mar. P. O senhor é de candomblé? E. Sim, mas, frequento a igreja, também. É assim: a fé em Yemanjá é separado. Tanto faz ser de candomblé, de ser da igreja... qualquer um sabe que Yemanjá é maior. P. Como assim, separado? E. Yemanjá é só ela, Yemanjá é tudo pra nós pescadores. Agora, de certos anos pra cá, tem uns pescadores mais novos que num tão nem aí. Se serve do mar, mas, não tem a devoção, sabe como é? Às vez leva até bebida pro mar, quando vai pescar. Num pode fazer isso, o mar é de Yemanjá, se faltar o respeito com o mar, falta o respeito com a dona das água. P. De onde, de quem partiu a iniciativa de fazer uma festa para Yemanjá? E. Então, eu já disse. Tudo começou quando faltou peixe e os pescadores ficamos muito preocupado. Como a gente ia sempre conversar dom Dona Lió, foi ela que aconselhou a nós oferecer um presente pra a Dona das Água, que era assim chamada. P. E a história da imagem/escultura de Yemanjá na frente da Colônia de Pescadores do Rio Vermelho? E. O que eu sei é que foi um pintor, daqui mesmo de Salvador, que fez a estátua. P. Conhece alguma lenda local sobre Yemanjá? E. Os pessoal fala muitas coisa, mas, eu mesmo nunca vi Yemanjá. Ela é um mistério...

“Mantega” e “Cumprido” são contemporâneos e aparentam vínculos afetivos mais próximos do que observamos entre seus outros companheiros. Sob indicação de “Branco”, decidi visitar ao antigo pescador “Pai Velho” na Colônia Z6, de Itapoan. Recebida com gentileza por “Pai Velho”, pude visualizar um ambiente de ininterrupta movimentação de pessoas: pescadores mais velhos, pescadores mais jovens, consumidores em busca de pescado, banhistas e outros visitantes. Aposentado e responsável pelo funcionamento da peixaria, “Pai Velho” se colocou à disposição para a entrevista, 70 destacando que já está acostumado a essas coisas, porque “muita gente vem aqui para fazer estudo do lugar”. Assim, entre os sons das conversas nas mesas ao ar livre, as idas e vindas de pescadores trazendo os frutos da pescaria, sentamo-nos sobre a proa de um barco atracado e iniciamos o diálogo abaixo transcrito.

N. S. “PAI VELHO”, ex-pescador do Rio Vermelho, 73 anos. Ex-presidente da colônia de pescadores do bairro de Itapoan e atualmente coordenador das atividades de pesca na Colônia Z6.

P. Há quanto tempo o senhor exerce a profissão de pescador? E. Há sessenta e sete anos. Eu era criança e vivia com minha mãe e dois irmãos. Meu pai havia partido para a Itália por causa da guerra e não voltou. Como ele não casou com minha mãe, ela ficou sem recurso para sustentar os filhos. Era empregada doméstica. Foi, então que, por necessidade de sobrevivência aprendi a arte da pesca. Eu tinha seis anos quando pesquei o primeiro peixe, numa poça. E de lá para cá, nunca troquei de profissão. O mar é como se fosse minha casa, se eu pudesse eu morava no mar e só vinha em terra firme por muita necessidade. P. O que o senhor sabe sobre Yemanjá, de onde ela veio? E. Ah.....Yemanjá é um exemplo para todos os pescadores! O verdadeiro pescador reconhece, respeita, admira e venera Yemanjá. Ela veio da África pra ensinar e proteger todos nós, pescadores. O que eu sei é que Yemanjá veio com os africanos, mas, de lá para cá, eles mesmos tenha modificado a ideia de Yemanjá, por causa da mistura dos povos e das raça, as culturas se misturaram. Aqui tem pessoas com mais de cem anos, que cultua Yemanjá, mesmo sem poder fazer as oferendas, são “devotos da crença”. P. O senhor é de candomblé? E. Eu acredito em tudo que pertence às águas. Esse imenso mar, como é que não tem dono? Já sonhei várias vezes com Yemanjá, já sonhei até brincando com ela. Ela é muito linda e tem forma de sereia! Alguns veem ela com os próprios olhos... esses, são os que têm a vidência17. P. Como é Yemanjá, Yemanjá é branca, é negra, morena...? E. Negra, não!!!!!!!!!. Yemanjá é uma mulher branca, de cabelos comprido, olhos azuis e uma imensa cauda de peixe. Agora, cada povo, cada país sente de uma maneira e dá o nome da imagem que sente. O que eu sei é que Yemanjá veio com os africanos, mas, de lá para cá, eles mesmo tenha modificado a ideia de Yemanjá por causa da mistura dos povos e das raça,

17[...] O termo quer referir à paranormalidade, capacidade humana de “ver” para além dos olhos físicos. Segundo o dicionário de Aurélio Buarque: visão sobrenatural. 71 as culturas se misturaram. Aqui tem pessoas com mais de cem anos, que cultua Yemanjá, mesmo sem poder fazer as oferendas, são “devotos da crença”. P. E sobre a festa de Yemanjá, de quem foi a ideia? E. Essa festa começou tão simples... primeiramente, nós pescadores, tava todo mundo triste, sem trabalho porque não tinha peixe, e sem saber o que fazer. P. E a imagem/escultura de Yemanjá na frente da Colônia de Pescadores do Rio Vermelho? Como foi parar ali? E. Ah, minha senhora, isso eu sei muito, porque ajudei a carregar as pedras para botar ali onde hoje está a estátua! Foi muito trabalhoso, mas, tinha outros companheiros como o velho Lídio... A estátua foi construída depois que derrubaram o forte do Rio Vermelho e construíram a igreja de Santana. Quando a igreja foi construída, não tinha nem terra para isso. Portanto, foi usado cal, óleo e arenoso pra levantar a construção que até hoje se pode ver. P. Conhece alguma lenda local sobre Yemanjá? E. Eu não lembro agora de nenhuma lenda dela, mas sei que tem muitas. Eu só lembro minhas histórias. P. “Pai Velho”, como é sua relação com os outros pescadores? E. Sou muito respeitado pelos pescadores. Quando fui presidente da Colônia, havia 3.770 pescadores da praia de Buraquinho até a Boca do Rio (praias de Salvador). Tinha três categoria: os sócios, que só querem se agregar, ter companhia para conversar, comer um peixinho... A outra categoria é a de sócio-amador: é o pessoal que tem emprego, tem sua própria renda e complementa com a pesca. E a terceira categoria é a que é formada de pescador profissional. Estes tem que atender aos requisito necessário. P. Pai Velho, o senhor fala em Colônia, fala em Associação... Qual a diferença? E. A Colônia tem caráter legal, de proteção dos direitos dos pescadores. Já a Associação tem o papel de ampliar o quadro de pescadores, obter recursos, essas coisa. P.E entre os pescadores, como eles se tratam uns aos outros? E. Os pescadores são muito unidos, mas, tem aqueles mais difícil de labutar, a senhora entende? Mas, eu tenho paciência, porque na vida do pescador é preciso ter muita paciência. Às vez a gente quer pegar o peixe, mas, tem que esperar a hora que ele vem atrás da isca e isso pode demorar ou não. O que a gente tem que praticar é o respeito uns com os outro. Mas, a maior parte do tempo, eles brincam entre si, fazem gozação uns com os outro. Uma mania que eles tem é de inventar apelido. Qualquer coisa ou situação que eles achem engraçado ou diferente, então, logo se cria um apelido. Os pescadores são mais conhecido pelos apelido do que pelo próprio nome. Aqui a senhora vai ver muitos apelidos: “Pigmeu”, “Bala na Testa”, “Cumprido”, “Mantega”, “Nel”.... Ah, são muitos, muitos!

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Partiu de “Pai Velho” a sugestão de que abordássemos pescadores mais jovens e foi o que fizemos em outro momento. Interessada em coletar outros discursos entre os pescadores da nova geração, entrevistei o pescador “Nel”, de 46 anos, também apelidado de “Pigmeu”. Vinculado à Colônia Z6, “Nel” goza de relações sociaispositivadas com outros colegas da Colônia Z1. Através dos contatos repassados por Pai Velho”, agendamos data e saímos ao mar, sobre uma embarcação de uso da Colônia, em companhia do pescador “Bala na Testa” e auxiliada pelo artista plástico Armando Gömöry com seu equipamento de gravação. Numa tarde ensolarada de sábado, pudemos exercitar diálogos sobre a trajetória de “Nel”, cuja personalidade simpática e extrovertida enriqueceu esta experiência. Trechos da entrevista, apresentamos a seguir.

PESCADOR M. I.S. – “Nel”, também conhecido por Pigmeu, 46 anos, soteropolitano.

P. Há quanto você pesca, “Nel”? E. Eu comecei a pescar com quinze anos, mas, só virei pescador profissional com vinte e cinco anos. Desde pequeno, com sete anos, eu já trabalhava na praia, vendendo amendoim, vendendo.essas coisa... Até que, quando eu procurei família, já com catorze anos, eu comecei a sair com os pescadores pra trabalhar na pesca, no mar. Com vinte e cinco anos eu me profissionalizei. De lá pra cá, é só mar. P. Yemanjá existe? E. Apesar de ter gente que diz que ela não existe, eu digo que Yemanjá existe e é ela que é dona de tudo isso aqui (fala, apontando para o mar). P. O que você sabe, “Nel”, sobre Yemanjá, de onde ela veio? E. Eu não sei. Só sei que, desde menino, eu já ouvia meu pai contar de Yemanjá, as coisas que ele via no mar. Porque meu pai era pescador, meus irmãos, meus tios, meus primos, eu sou de família de muitos pescadores. P. Sentia curiosidade de saber a origem de Yemanjá? E. Não.... quando era criança, não. Depois que eu cresci, passei a sentir curiosidade, mas o tempo foi passando, passando... Quando eu via, na praia, as pessoas, os pescadores oferecendo flores, presentes pra Yemanjá, eu ficava curioso para ir, um dia, com meu pai, saber como era aquilo. Achava tão bonito....! P. O senhor é de candomblé? E. Não sou de candomblé, mas gosto de ir no terreiro e de assistir a uma missa. Não tenho nada contra. Acho que todo mundo segue a religião que quiser, sem precisar faltar ao respeito ou perseguir os outros. P. Como você imagina Yemanjá? 73

E. Sempre que eu tô no mar, de noite, principalmente, enquanto os companheiro dorme, eu fico acordado - eu não consigo dormir quando estou no mar -, aí eu fico imaginando: e se Yemanjá aparecesse aqui, agora? É um pensamento... Ela é linda! Ninguém diga que não é, porque é. Acho que ela é branca. Pelas imagem, os desenho, essas pintura que a gente vê... acho que ela é idêntica. P. E se ela fosse negra? R. Ah.... ia ser mais bonita ainda! P. Como Yemanjá veio para o Brasil? E. Isso eu não sei. P. Sobre a festa de Yemanjá, sabe de quem foi a ideia? E. Dizem que foi ideia dos moradores do Rio vermelho, junto com os pescadores, justamente por causa da baixa dos peixes no mar. A senhora sabe: se não tem peixe, não tem pesca e se não tem pesca o pescador não tem trabalho, não tem dinheiro, não pode tomar conta de sua família, não é isso? P. Conhece alguma coisa sobre a imagem/escultura de Yemanjá na frente da Colônia de Pescadores do Rio Vermelho? E. O que eu sei é que foi alguém que gosta dela ou foi pago para fazer aquela imagem. Aqui, em Itapoan mesmo, as imagem que a senhora viu, foi tudo feito por nós mesmo, as pessoas que gosta de Yemanjá, tem amor a ela e se reuniu para fazer. P. Conhece alguma lenda local sobre Yemanjá? E. Meu avô contava que um pescador daqui de Salvador, viu Yemanjá uma vez e ficou surdo e mudo. Por isso, se alguém ver Yemanjá, não vai poder falar. Eu já sonhei com ela, mas, ver mesmo, nunca vi. P. Entre os pescadores, são todos devotos de Yemanjá? E. A maioria é devota, respeita, venera e admira Yemanjá, mas, tem os crentes (evangélicos) que discrimina os presentes e diz que isso é coisa do demônio. São bem pouco. Esses são os falsos evangélico. Mas, pra mim, Yemanjá é tudo, ela é minha protetora, é ela que toma conta de todos nós, quando a gente tá no mar. Antes de entrar no mar pra pescar, a gente se benze e pede proteção, primeiramente a Deus e depois, a Yemanjá. Toda vez que a gente faz uma oferenda a Yemanjá, a pesca procede, não voltamos pra casa sem algum peixe. O mar é sagrado pra nós, temos que ter respeito pelo mar, e não, medo. O mar só quer respeito! P. Como esse respeito se traduz, como vocês demonstram esse respeito? E. O mar é sagrado, a gente não pode dizer nome feio no mar, dizer um palavrão, jogar lixo na água. Porque a gente está nas águas, é dali que a gente tira nosso sustento. Então, como vamos faltar o respeito com o mar? Não pode, de jeito nenhum! Não pode ter nem discussão no mar, nem bebida, cachaça, por exemplo. P. Existe competição entre vocês, pescadores, ou vocês são unidos? 74

E. Não existe competição, quando um barco consegue ter sorte na pesca e o outro não se saiu bem, então, a gente divide a pescaria, porque cada pescador precisa levar o alimento pra sua família, não pode chegar de mão vazia.

O pescador “Nel” disse sentir muita gratidão por “Pai Velho”, atribuindo muito de seu aprendizado sobre pesca ao velho pescador. Acrescentou que esse é o sentimento da maioria dos pescadores que, tem em “Pai Velho” um exemplo de trabalho, sabedoria e responsabilidade, sempre disposto a intervir quanto ao crescimento pessoal e na aquisição de direitos. Enquanto falava, gesticulando e demonstrando grande entusiasmo pelo momento que protagonizava, “Nel” era observado por outro pescador, da mesma faixa etária, o “Bala na Testa”, assim apelidado graças, segundo ele, a um acidente sofrido na adolescência, que lhe deixara uma espécie de reentrância no meio da testa. Silencioso e bastante atento, esboçava um sorriso ante a mal disfarçada perplexidade da pesquisadora, diante de “causos” e feitos tão surpreendentes. “Bala na Testa” complementava as informações de “Nel”, fato que ensejou, também, outra entrevista. A tarde já se recolhia quando concluímos as entrevistas. Contudo, após ter trabalhado naquele dia, “Bala na Testa” se mostrou disposto a prosseguir.

PESCADOR A.J. – Bala na Testa, 43 anos, soteropolitano. P. Há quanto tempo você pesca? E. Eu já venho pro mar desde criança, já ficando rapaz. Na verdade, eu aprendi a pescar com os pescadores mais velhos. Aprendi muito com “Pai Velho” e outros de fora. P. Você acredita que existe Yemanjá? E. Acredito e sei que ela pode ser vista, apesar de que, eu nunca vi. Mas, não por isso eu deixo de acreditar, porque Yemanjá é uma rainha do mar... Até pra falar dela tem que ter muito cuidado, porque ela tem muito poder e pode se sentir ofendida. Desde que eu comecei no ofício de pescar que eu já ouvia coisa de Yemanjá. Acho que ela é muito linda e parece que encanta os pescadores. É uma pena que tem gente que não acredita que ela existe. Assim ela não pode ajudar. P. O que você quer dizer com isto “que ela parece encantar os pescadores”? E. Eu digo isso pelas coisas que se fala dela, pela beleza e pelo mistério dela. Nós temos muita fé em Yemanjá, a maioria de nós. E tem os que não quer acreditar, porque diz que é invenção de Satanás. Esses são os crente, eles não faz parte da festa de Yemanjá. Criticam tudo que é de Yemanjá, mas, mesmo assim, nós convive. Cada um do seu jeito. P. Como seria Yemanjá, de que cor, com que ela parece? 75

E. Ah.... ela parece uma sereia muito grande, com um rabo enorme. Ela é metade mulher e metade peixe. P. Você tem alguma religião? E. Eu não vou muito pra a igreja, só de vez em quando. Nem vou pra o candomblé, mas, não tenho nada contra. P. Você sabe que Yemanjá é um orixá do candomblé? E. Sei, sim. P. E sabe de onde ela veio? E. Mais ou menos(sorri nesse momento). Acho que ela veio da África. P. Então, será que ela é negra? E. Acho que ela deve ser branca.

Do universo de pescadores consideramos a amostragem formalizada em cinco sujeitos bastante significativa, dadas as condições em que ocorrera a pesquisa: tempo dos selecionados para atender à solicitação da pesquisadora, uma vez que somente poderiam fazê-lo em seu tempo livre; a escolha de um espaço nas colônias para melhor interlocução entre pesquisadora e entrevistado; tempo da pesquisadora entre as atividades profissionais; e o tempo da natureza, enquanto variável para a saída ao mar, em dias de chuvas intensas na cidade de Salvador; os desencontros entre a pesquisadora e os pescadores por agentes naturais. Várias entrevistas não puderam ser realizadas em virtude da mudança do tempo: pela manhã havia sol, mas, inesperadamente caía chuva e tudo tinha que ser adiado. A entrevista sobre uma embarcação em um dia de sábado teve que ser paga, pois minha solicitação por silencio requereu o uso de uma embarcação para passearmos um pouco enquanto durasse a entrevista que, também, foi gravada. Registro a valiosa companhia do fotógrafo amador e artista plástico Armando Raúl Gömöry, que, além de mim, registrou as fotos e produziu os vídeos de todas as entrevistas.

V. 1. 2 Atividades de rotina

É possível avistar diariamente, exceto nos dias chuvosos, pescadores reunidos na Colônia Z1: alguns trazendo seus pescados, outros em volta de uma mesa a jogar dominó ou baralho; alguns limpando a área externa da colônia; alguns dormitando no passeio da Casa de Yemanjá, após o almoço ou embriagados; outros a tratar os peixes; outros a contar seus “causos”, dispostos a atender visitantes para lhes prestar alguma informação sobre o local, sobre a festa de Yemanjá; alguns se mostram desconfiados e, quando solicitados sobre a possibilidade de entrevista, perguntam: “É pago?”. Mas, esse tipo de prática não é comum, 76 embora a pesquisadora tenha sido alertada por um deles, o “Milton”, de que tivesse cuidado com as abordagens de gente “interesseira”. Afirmando-se praticante de candomblé e ogã18de um terreiro, esse pescador faz parte dos que estão aposentados. Entretanto, Milton lá está na Colônia Z1, com sua esposa, a comercializar pequenos doces, balas, chicletes, cigarros, refrigerantes, amendoim. O pescador M., em um dos momentos de conversa informal, assumiu uma postura dissonante do grupo a que a pesquisadora estava habituada a conversar. Para ele a escultura da Yemanjá sereia à entrada da Colônia, nada tem de verdadeira. Seu imaginário do mito de Yemanjá se revela quando diz que “sua morada é o mar e ninguém nunca viu Yemanjá, porque ela é puro mistério”. Tampouco aceita o fato da instalação da Casa de Yemanjá na Colônia, reafirmando que a casa de Yemanjá é o mar e que “toda essa gente que entra na Casa de Yemanjá não entende nada dela. Ela mora no mar, não entre quatro paredes”. Tipicamente “preto” pelos fenótipos característicos, ao ser consultado sobre sua etnia, sobre como se definiria entre negro, mulato, moreno, branco, ele respondera que “pescador não tem cor, pescador é de qualquer cor e de qualquer lugar”. A presença e o discurso de M. na Colônia dão o tom da complexidade e da diversidade dos pescadores, bem como, de suas necessidades e anseios, carências de variadas origens. As atividades são iniciadas pela manhã, por volta de sete horas, distintamente de outros tempos, quando, segundo “Cumprido”, era necessário madrugar mar adentro em embarcações conduzidas a remo. Hoje, por conta da modernização, algumas embarcações possuem bússolas, rádios, medicamentos e coletes, dentre outros apetrechos. A rotina se altera de acordo com as necessidades locais. Situações ocorrem em que, enquanto alguns pescadores se deslocam para o mar, outros estão retornando de sua jornada. Os que tiveram êxito, ao chegar, atracam as embarcações e se dirigem diretamente à peixaria para a negociação de preços, de acordo com o tipo de peixe. Algumas espécies são mais frequentes na Colônia, a exemplo de corvina, sardinha, guaricema, que possuem menor preço; e de vermelho, dourado, que custam mais. Em meio aos peixes são trazidos os mariscos, denominação dada às pequenas espécies marinhas, a exemplo de camarões, polvos, ostras e sururu. A alguns pescadores cabe o trabalho de limpeza do pescado, que, em parte, é feito nos fundos da Colônia, sobre a murada. As vísceras são lançadas na praia, contrariando regras de preservação da natureza e do espaço público. Em dias de sol, esse costume provoca um odor desagradável e a impossibilidade de banho na parte de trás da Colônia. Ato seguinte à evisceração dos peixes, os mesmos passam por uma rápida lavagem para retirada residual de escamas e são entregues aos auxiliares internos à peixaria, onde é efetivada a comercialização do produto e armazenado o excedente da pesca. A peixaria é constituída de

18 [...] Ogã é uma palavra designativa de um cargo ocupado por homens no terreiro de candomblé. 77 pias, vários freezers, utensílios para a limpeza dos pescados, facas, balanças e sacos plásticos para envolver os peixes. A chegada dos pescadores se assemelha a uma ritualística, quando observada a repetitividade dos gestos e da sincronicidade generalizada que se instaura, consolidando a identidade do grupo, por meio de falas, trocas de informações, risos, contatos físicos mediados por aperto de mãos e/um toque nos ombros. Enquanto alguns companheiros se ocupam de atracar a embarcação, outros acorrem a ajudar no transporte do pescado até a colônia. Nas ocasiões em que o(s) pescador(es) não foram bem sucedidos, percebemos variação de humor, sem, contudo, constituir empecilho para novas tentativas. A esperança de obter farto pescado ou, na melhor das hipóteses, o suficiente para alimentar a família, caracteriza todo o coletivo. Nada pode ser comparado ao orgulho expressado quando conseguem pescar um peixe grande, à semelhança do que fotografamos.

Figura V.3 O Pescador/Foto de Armando Gömöry

Nesta foto registramos o retorno de um pescador em sua jornada de um dia de trabalho, ao anoitecer, trazendo dois peixes – badejos – que, segundo o relato, foram pescados próximo à costa. Sua expressão ante nossa aproximação era de visível orgulho e alegria. Embora não tenha integrado o grupo de entrevistados selecionados no trabalho de campo, demonstrou entusiasmo ao ser abordado (comentários da pesquisadora), permitindo-se fotografar e fornecendo breves informações a respeito de sua história.

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V. 2 A formação sociocultural do bairro do Rio Vermelho

Parte deste estudo utilizou recursos metodológicos da Geografia Cultural para compreender a cultura do lugar - o bairro do Rio Vermelho -, quanto aos aspectos subjetivos que se entrelaçam na circularidade entre pessoas. Por meio dessa Geografia apreendemos que é nos bairros, onde se dão as relações humanas e sociais, onde os vínculos afetivos, políticos, religiosos e culturais se estabelecem, conferindo-lhe feição particular, cujas linhas apresentam uma identidade, tanto para quem nele vive, quanto para quem o frequenta. CLAVAL (1999, p. 94) nos ajuda a entender a cultura no enfoque da Geografia Cultural, quando diz que:

“ela restabelece as condições de materialidade, historicidade e geograficidade de todo fato humano e social. Colocando a ênfase sobre o primado da comunicação, ela ajuda a compreender como os homens e as sociedades se fazem e se desfazem em um movimento perpétuo que criou o individual a partir do coletivo e o coletivo a partir das ações individuais”. (CLAVAL, 1999, p. 94).

Agregamos à pesquisa outros procedimentos: visitas técnicas a órgãos municipais e estaduais, a exemplo do Instituto Geográfico e Histórico do Estado da Bahia (IGHB), da Biblioteca Pública do Estado da Bahia e da Biblioteca Juracy Magalhães, esta localizada no bairro do Rio Vermelho, para fins de levantamento de dados históricos e documentais; utilizamos, também, abordagens a moradores(as) do bairro – mais antigos e mais novos -, e a comerciantes, com vistas à coleta de impressões a respeito do lugar. A aproximação junto ao bairro do Rio Vermelho precisou de outro aporte teórico, que é a noção de espaço, o espaço geográfico em que se insere na cidade de Salvador. Para tanto, empregaremos a base teórica de espaço enquanto conceito, de acordo com SANTOS (1992). SANTOS (1992, p. 49) diz que “o espaço é uma realidade objetiva, um produto social em permanente processo de transformação”. Esta ideia de realidade objetiva, interpretada como construção humana e social, nos faz pensar que ela se dinamiza num dado espaço concreto, sujeito a transformações segundo o tempo histórico e as influências internas e externas, arena de tensões e contradições, que concorrem para moldar sua cultura. Daí que as fontes consultadas acerca da origem do Rio Vermelho apresentam semelhanças e disjunções, lacunas e rupturas de ordem histórica, condicionadas ao olhar de quem produziu as narrativas. A lógica colonizatória se estruturava na cidade de Salvador, no século XVI, segundo a arquitetura de uma fortaleza. O Rio Vermelho, em sua conformação geográfica, situado na costa, constituiu uma das bases para fins bélicos. Com a invasão holandesa em 1624, a aldeia do Rio Vermelho serviu de refúgio para os grupos sociais e alguns escravos fugidios que, aproveitando-se da confusão dos brancos, adentraram as matas, fundando aí um quilombo, o qual fora destruído após três anos pelos capitães do mato Francisco Dias de Ávila e João 79

Barbosa Almeida. Mas, não se resumiu a, apenas esse fim. Após a abolição da escravatura, no século XIX, adquiriu fama de que as águas de seu mar produziam a cura e assim se tornou um relicário, uma fonte medicinal de saúde e bem estar, local preferido da elite da cidade. Dessa maneira, o rincão dos pescadores foi transformado em um atrativo ponto de turismo. O Rio Vermelho experimentou, então, uma reconfiguração de status: de antigo arraial habitado, basicamente, por pescadores distribuídos em “núcleos” nos portos da Mariquita e de Santana (locais vinculados ao bairro) a estação de cura e local preferido das famílias ricas. De acordo com FILHO (1991), entre 1880 e 1930, o Rio Vermelho “sofre” (grifo da pesquisadora) intensas alterações em sua feição original, demarcadoras das sociabilidades do bairro, pelo recorte de classe: a alta burguesia e a classe pobre, sendo a primeira constituída pelos grandes capitalistas e a segunda formada de grupamentos humanos distribuídos nas atividades domésticas, manuais, de serviços gerais e no comércio. Verifica-se que as mudanças socioculturais no bairro foram reordenando sua identidade, que passara de um aldeamento indígena tupinambá, no século XVI, a um povoado de pescadores e pequenos lavradores, no século XVII e um nicho da burguesia soteropolitana no século XIX. Localizado no setor sul do litoral da cidade de Salvador, no estado da Bahia, o Rio Vermelho compreende o trecho entre os bairros de Ondina e Amaralina, também, margeados pelo mar. Quanto à denominação de Rio Vermelho, encontramos distintas explicações: ora deriva de um topônimo que, a exemplo de outros nomes de bairros de Salvador – Bogari, Vassouras e Gameleira -, está relacionado com a flora da cidade de Salvador, conforme alude FILHO (1991), em seu livro “Histórias de Salvador". Outra versão, publicada no site oficial do Rio Vermelho19, menciona a origem do nome do bairro como um topônimo criado pela língua tupi, em referência ao curso fluvial que possuía embocadura na praia da Mariquita. Outra narrativa atribui o nome às impressões do explorador Diogo Álvares Correia, que, ao observar a cor vermelha das águas do rio Camurugipe, cuja foz desembocava no mar, resolveu denominá-lo de Rio Vermelho. O bairro, oficializado com o nome geográfico de Camurujipe, surgiu entre os anos de 1511 e 1520, foi uma enseada ocupado originariamente por indígenas tupinambás, que lhe deram o nome de Camarajy. Na ocasião havia abundância de flores de matiz vermelho, denominadas camará ou cambará, que cresciam à margem do rio. Literalmente, camarajipe quer dizer: rio dos camarás. Além dos nativos indígenas, a antiga Enseada dos Pescadores foi povoada por europeus (franceses e portugueses) e, depois, por grupos africanos, oriundos do tráfico negreiro. Segundo FILHO (1991), a história do Rio Vermelho antecede a fundação da cidade de Salvador. A chegada do explorador europeu Diogo Álvares Correia instaurou os pilares da dominação europeia no Brasil. As tramas de sobrevivência entre as culturas culminaram com a invisibilidade de vestígios dos tupinambás e estreitaram maior aproximação entre brancos e negros.

19 [...] Conferir o site www.portaldoriovermelho.com.br 80

O Rio Vermelho possui uma tradição de “reduto” de artistas, intelectuais e políticos, cujas práticas sociais intercalam boemia, arte e fé, animados pela brisa do mar, pelos quiosques de acarajé de Cira, de Dinha, de Regina, pelos bares, pelas rodas de conversa em volta das mesas espalhadas pelas praças de Santana e da Mariquita, ou nos tantos restaurantes e pizzarias do bairro. Detém grande fluxo turístico, onde avultam luxuosos hotéis, a exemplo do Hotel Pestana e do Hotel Mercure Salvador, uma demonstração do avanço do capitalismo e da ciranda global, que encareceram o espaço geográfico, tornando-o um dos mais caros metros quadrados de Salvador. Ao ar livre, sobretudo à noite nesses espaços, ocorrem eventuais abordagens de “alternativos”, artesãos ou artesãs oferecendo seus produtos, apresentações de alguma cena circense, malabares e poetas cordelistas. Um fato, uma conversa, uma informação solicitada por algum visitante brasileiro ou estrangeiro pode inspirar um poema de cordelistas anônimos, que, no próprio local improvisam seus versos, em busca de algum “trocado” (contribuição financeira). Durante o dia a dinâmica do bairro, observada no trecho entre o Rio Vermelho e o bairro de Ondina pela Avenida Oceânica, evidencia tráfego intenso de pessoas, de carros e de ônibus, conformando o cenário de qualquer capital movimentada. Mobilidade social provocada por deslocamentos de quem se dirige ao bairro para trabalhar ou para passear, para estudar ou para comer, para comprar ou se hospedar, utilizando a rede de hotelaria que se firmou e se se estende nos mais diferentes pontos. Pudemos constatar no período de realização desta pesquisa que, apesar de expressiva circularidade de pessoas nos principais pontos do Rio Vermelho, a presença discreta do Estado, por meio de força policial. Esta ponderação vem a título de registro dos contrastes presentes na geografia cultural do Rio Vermelho. Ao escolher as bancas de jornais como espaço de interlocução com moradores locais, quando se anunciava o final da tarde, a pesquisadora era alertada por diferentes jornaleiros, dos perigos que rondavam o bairro, fato que os obrigava a encerrar suas atividades mais cedo, por prevenção a assaltos. Tais episódios mereceram atenção quando contextualizados à luz da globalização e sob a égide do capitalismo. Atentamos, portanto, e de maneira breve, sobre variáveis que influenciam direta ou indiretamente na construção da identidade, a partir de um determinado lugar. Variáveis que se implicam e se imbricam acrescentando novos contornos às realidades culturais sob análise. Neste sentido, os homens e as mulheres, sujeitos históricos não são os mesmos e as mesmas de ontem, mas, portadores(as) de história e de cultura, em permanente relação.

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Figura V.4 Rio Vermelho antigo/Foto do livro "O bairro do Rio Vermelho", de Ubaldo Marques Filho.

Figura V.5 Rio Vermelho, 2013/Foto de Celiana

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V. 3 A celebração de Yemanjá em 2 de fevereiro

Figura V.6 A festa de Yemanjá/2013/Salvador/Foto de Franco Adailton.

A celebração festiva da divindade negra, conforme registro na imagem acima, destacou- se como o momento mais importante da pesquisa. Partilhar da festa em meio a milhares de pessoas, sob o sol escaldante de Salvador, na fila que se organizava para depositar no mar flores brancas e amarelas, portando meus aparatos de pesquisadora, causou-me sensações indescritíveis. Apesar da renovação do gesto, a experiência como alguém imbuído de uma intuição que, ao mesmo tempo me inspirara a investigação científica, também me preparava para a inserção num mundo de imaginários. De fato, a mim me chegava como um mergulho, um experimento, um compromisso existencial. Movida por sentimentos que brincavam dentro de mim, pude sentir mais de perto a força que contém o imaginário e como ele se imbrica na cultura. Desejo de rir e de chorar, de abraçar e de ser abraçada, de fazer uma introspecção silenciosa e de me banhar nas águas do Rio Vermelho em sinal de suprema gratidão à Vida e a tudo o que coroa meus passos no mundo. Vontade de pedir bem alto que a “deusa” abençoasse toda aquela gente, inspirando-lhe a fraternidade todos os dias. A gênese do campo foi, deveras, singular: fiz um caminho que, pressupostamente, deveria começar pelas entrevistas aos/às protagonistas do universo da pesquisa até desembocar na Festa. Mas não foi o que sucedeu. Ao visitar pela primeira vez a Colônia Z1 no 83 dia 30 de janeiro, encontrei o clima festivo, com gente de fora circulando desde a metade da manhã. A reverência a Yemanjá a cada ano no dia 2 de fevereiro, na cidade de Salvador possui um histórico controverso, pois, muitas são as narrativas, como podemos verificar no Projeto História dos Bairros de Salvador publicado em 198420. Segundo fontes indiretas oriundas de vozes do bairro do Rio Vermelho e de outros, a Festa de Yemanjá foi criada na década de 1920. Transformada em patrimônio cultural da cidade, integra o calendário civil de Salvador como evento cultural/religioso que atrai milhares de pessoas da capital e do interior do Estado, conformando um ciclo de festas populares massivamente divulgadas pelas mídias de rádio, televisão, impressa e pela internet. Independentemente da orientação religiosa, a participação na festa ocorre de maneira a integrar multidões que a ela afluem, motivadas por um sentimento difuso e emocionado. Durante algum tempo a festa guardara mais características de diversão e prenúncio do carnaval, à semelhança das chamadas “festas de largo”21 (SERRA, 1999). O caráter religioso teve origem na festa dedicada a Senhora Santana, mas, após alguns anos passou foi reconfigurada nos rituais em homenagem a Yemanjá no ambiente dos terreiros, sob responsabilidade de lideranças religiosas, sobretudo as yalorixás. Relatos orais partilhados por vários pescadores e coletados em rodas de conversa, atribuem a festa a Yemanjá a partir de 1923, quando uma mulher desconhecida alertara os pescadores sobre a necessidade de oferecerem um presente à rainha do mar, para superar a escassez de pesca. Proposta aceita, os pescadores realizaram tal ato, após a missa celebrada a Nossa Senhora de Santana, na igreja de Santana, situada ao lado da casa dos pescadores, no bairro do Rio Vermelho. Utilizando uma caixa de sapato, os pescadores colocaram ali perfumes, espelhos, fitas, flores e peixe e a depositaram no mar. Outra versão oral diz que a festa começou em 1924, quando um grupo de vinte e nove pescadores decidiu oferecer presentes ao mar para obter mais sorte na pesca. A obrigação era coordenada pela yalorixá Mãe Júlia Bogan, cujo terreiro já não existe. Cumprida a obrigação os pescadores comemoraram com comida e bebida. A organização da festa naqueles idos contou com a participação da igreja católica até quando irromperam conflitos entre pescadores e um padre que contestava a mistura entre Nossa Senhora das Candeias e Yemanjá. O 2 de fevereiro é, também, dia de Nossa Senhora das Candeias, santa da iconografia católica, associada pelo sincretismo a outra divindade africana das águas: Oxum. O hibridismo com Oxum não se consolidou, dadas as

20 Cf. Projeto História dos Bairros de Salvador, 1984, desenvolvido por uma equipe da Fundação Cultural do Estado da Bahia na década de 1980. 21 [...] As festas de largo são celebrações que acontecem em espaços públicos, geralmente praças vinculadas a sítios de igrejas católicas correspondentes às santidades a serem celebradas dentro do calendário. Segundo Ordep Serra, tipologicamente, elas correspondem às velhas celebrações católicas. populares realizadas em dias de santos em centros urbanos, com grande participação do povo e intensa movimentação comercial e lúdica. 84 representações de cada divindade em suas respectivas iconografias: Maria, a quem os católicos usualmente se reportam como “Nossa Senhora” possui características de mãe e virgem. Enquanto que Yemanjá e Oxum são mães e preservam características de amantes. O que se sabe, de fato, é que foram os pescadores que se responsabilizaram pela festa que, atualmente, conta com diversas parcerias. Desde 1967, a festa recebe subsídios do poder público, governo do estado da Bahia, por meio da Superintendência de Turismo de Salvador. Atualmente cabe à Empresa de Turismo de Salvador (EMTURSA), órgão da Prefeitura de Salvador, o patrocínio parcial da festa. A realização da festa de Yemanjá requer grande aparato: centenas de balaios para abrigar os presentes que se avolumam em variedades; algumas embarcações; material para oferendas; flores variadas e abundantes. A festa requer dias de organização e seu início é demarcado por uma ritualística, que envolve uma alvorada de fogos de artifício às cinco horas da manhã, como anúncio da chegada do presente principal oferecido pelos pescadores da Colônia de Pesca Z 1. Esse presente contem as oferendas cuidadosamente preparadas por uma liderança do candomblé, escolhida para coordenar o ritual. Desde as primeiras horas da manhã o bairro do Rio Vermelho é tomado por centenas de pessoas que se aglomeram e se perfilam diante da Casa dos Pescadores, portando presentes, que variam entre flores, perfumes, bonecas, bijuterias, espelhos, fitas, velas e objetos que guardam relação com Iemanjá, a exemplo de miniaturas de espadas prateadas. A movimentação se estende até às dezesseis horas, momento culminante da festa, quando o Barco Rio Vermelho se desloca para longe da praia levando o presente principal. Dizem que, se o presente afundar significa que Iemanjá ficou satisfeita. Muitas pessoas se dirigem à praia do Rio Vermelho, entregando diretamente ao mar seus presentes e aproveitam para estabelecer com a deusa africana uma espécie de diálogo íntimo e silencioso. Ora, pedem para ser abençoadas, ora fazem agradecimentos, ora, fazem pedidos. É o momento de profunda emotividade e simbolismo. A festa de Yemanjá altera toda a rotina da cidade, quando são criados mecanismos de locomoção que possibilitam a participação da população interessada. Paralelamente à concentração na Casa do Peso, o bairro é ocupado por vários grupos do meio artístico local, cantores, bandas que desfilam nas ruas, representações de movimentos culturais, jornalistas que fazem a cobertura da festa, tanto da imprensa quanto de emissoras de radio e televisão. A música dá o tom da alegria por todos os espaços das ruas, nas calçadas e nos bares. A festa de Yemanjá em Salvador propicia encontros, agrega pessoas e a cada ano atrai mais gente, de dentro e de fora da cidade e do Estado. Em sua configuração festiva mistura o sagrado e o profano, com a cerimônia já transformada em “festa de largo”. Conversa, música, danças, bebida e comida entretém as pessoas durante toda a noite. À frente da organização da festa, quanto aos aspectos da religiosidade do candomblé, encontra-se Mãe Aíce, yalorixá do Terreiro Odé Mirim de Oxóssi, situado no bairro do Engenho 85

Velho da Federação, em Salvador.. Em entrevista abaixo transcrita, escutamos a trajetória da Yalorixá que, há vinte e um anos “cuida” para que seja preservado o mito e seu reinado nas águas e na cultura da Bahia.

Mãe Aíce - Yalorixá do Terreiro Odé Mirim de Oxóssi, 79 anos, soteropolitana, responsável pelos preparativos da parte religiosa da festa de Yemanjá.

P. Que ideia tem sobre Yemanjá, ela é uma sereia? E. Yemanjá é a dona das águas. Yemanjá veio da África, ela é negra. Mas existem várias qualidades de Yemanjá: Yemanjá Sobá é a clara. Tem a Yemanjá Sussu, que é a negra. A Yemanjá Ogunté é morena. A Yemanjá da Colônia de Pescadores tem rabo de peixe, porque, de acordo com a lenda, surgiu das águas. É uma aparição das águas. No local onde apareceu Yemanjá pela primeira vez foi em forma de sereia. Yemanjá é uma divindade muito especial, muito misteriosa, ela pode aparecer de várias maneiras, depende da vidência das pessoas. P. Há quanto tempo a senhora cuida dos preparativos religiosos da festa de Yemanjá? E. Há vinte e um anos. O processo se deu por meio de uma eleição dos pescadores para escolher quem ia ser a pessoa para organizar as cerimônias, os preparativos da festa de Yemanjá. Naquela ocasião tinha mais duas yalorixás – Mãe Catita e Mãe Olga Carossi -, e eu fui a vencedora. As eleições acontecem todo ano e até hoje sou reeleita. P. Que sabe sobre a criação da festa? E. A festa de Yemanjá tem mais de cem anos. Começou com os pescadores, que não conseguiam encontrar peixes, a pescaria não estava muito boa. Foi assim que um “pai de santo”, já falecido, teve a iniciativa de fazer uma oferenda ao mar, colocando numa caixa de sapato presentes como perfumes, espelhos, bonecas, pentes, tudo que Yemanjá gosta. Depois de três anos, o pai de santo entendeu que os pescadores deveriam assumir o candomblé como religião e o presente como um compromisso com a religião. Daí que, os pescadores fazem suas oferendas, mas eu só cuido do ritual que é feito no terreiro Odé Mirim de Oxóssi, sob minha administração. Os ritos da festa são feitos segundo a tradição Ketu, mas, este terreiro é de nação22 Angola. Os preparativos envolvem todos os vinte e um orixás: as comidas, as danças, as músicas de cada um, a matança dos bichos, assim como todas as obrigações. As comidas de todos os orixás são “arriadas” para Yemanjá e essa preparação dura, no mínimo, uma semana. Na madrugada de 2 de fevereiro são arriadas duas oferendas, dois balaios idênticos, contendo todos os presentes, inclusive os bichos: a primeira para a divindade Oxum, no Dique do Tororó, e outra, em seguida, para Yemanjá, na praia do Rio Vermelho. No Terreiro Odé Mirim, todo o ritual é televisionado e aberto ao público, que segue em cortejo até os locais

22 [ ...] Nação é a palavra que define a origem territorial de certos grupos étnicos de África. 86 onde são arriadas as oferendas. Participam da festa vários terreiros de Salvador e do interior do estado da Bahia: de Alagoinhas, Santo Amaro da Purificação, Cachoeira etc. De outros estados: Rio de Janeiro, Pernambuco, Brasília, do Rio Grande do Sul. A chegada ao Rio Vermelho é recebida com uma alvorada de fogos de artifício. P. Como chegou até a casa de pescadores a escultura de Yemanjá? E. Isto eu não sei responder, não conheço o artista, só sei que é baiano. P. Conhece alguma lenda local sobre Yemanjá? E. Ah... tem muita história de Yemanjá.... P. O que representa para a senhora o orixá Yemanjá? E. Yemanjá representa tudo para mim, representa uma grande alegria e enquanto ela me quiser, estarei à frente para servir, se ela me der saúde e vida para isso.

Mãe Aíce se declarou, também, católica, acrescentando que nunca abandonou seus hábitos junto à Igreja: frequência regular às missas, às procissões, às cerimônias religiosas da Igreja. Mantém relações sociais com padres e já encomendou missas para serem realizadas no terreiro. Embora surpresa com tais declarações, a postura da yalorixá nos pareceu agregar mais um emblema à questão dos processos de hibridização da cultura brasileira, enquanto fenômeno constituinte de paradoxalidades frente a qualquer possibilidade de fechamento conceitual sobre uma identidade cultural. O fato de Mãe Aíce ser a responsável pela organização do ritual da festa de Yemanjá a mais de duas décadas e ao mesmo tempo se declarar religiosa da igreja católica, confere abertura para possíveis investiduras acadêmicas. Os processos de hibridização fomentaram construções sociais que convergem e divergem, segundo os tempos e os espaços, sem perder o contato. Contato que tece as relações cotidianas entrecruzando ambientes, os mais inusitados, embora demarcados por alguma forma de tensão. Por essa razão a existência das caminhadas pela tolerância religiosa, que ocorre há muitos anos e Salvador e em outras capitais. Nossa intencionalidade em ouvir diferentes vozes do universo da pesquisa ensejou, tão somente, ampliar nosso olhar de observador/participante em atitude de sincero respeito aos limites entre a ciência e os lugares da cultura. O trabalho de campo incluiu um encontro, gentilmente agendado com o antropólogo e professor da Universidade Federal da Bahia, Ordep Serra. Diante do questionamento da representação de Yemanjá por uma sereia “branqueada”, o professor expressou seu pensamento na perspectiva da hibridização cultural, ressaltando que, após a diáspora, os elementos dos distintos grupos culturais em relação fundiram-se, transformando-se em outras possiblidades. Desse modo, o “mito” de Yemanjá “transbordou” os oceanos, e agora pertence a todas as culturas. 87

REFLEXÕES FINAIS

A articulação teórico-metodológica concretizada neste trabalho vêm embasar um projeto de pesquisa que objetivara associar cultura, mitologia e identidade, extraídas de imaginários de pescadores a respeito de Yemanjá. Quando falamos de cultura estamos falando de pulsão e de energia empregada para a sustentação da vida, em todas as suas manifestações. Códigos sociais construídos pela humanidade, a cultura se expressa e se move em comunidades reais ou imaginadas. As produções teóricas dos autores pesquisados forneceram fecunda ambiência para a compreensão das complexidades, dubiedades, sutilezas e estratégias subjacentes ao conceito de cultura. Desde o século XVIII as ciências sociais inauguraram uma racionalidade capaz de dar conta dos desafios emergentes ao mundo moderno. Nesse âmbito, destacou-se a antropologia como um manancial factível a cognições mais sensíveis junto aos grupos sociais produtores de cultura. À maneira de GEERTZ (2008), reiteramos que “o discurso antropológico precisa ser alargado” como alternativa, canal de mediação para outras ciências. Esse discurso pode ser construído junto com a instituição escola, de forma que viabilize práticas sociais inclusivas em torno da diversidade e da diferença. Entendemos a escola enquanto espaço a mais da cultura, uma vez que, por meio de sua existência material os sujeitos se relacionam e podem aprender sobre a diversidade humana. Por outro lado, a instituição escolar constitui emblema a ser desvelado continuamente, por sua função histórica de formação. A despeito de indicadores sociais e étnicos, políticos e religiosos, de orientação sexual e de orientações outras, fazemos a opção pelo inacabamento do conceito de identidade cultural. Os estudiosos pós-colonialistas tem se ocupado de problematizar conceitos dicotômicos que engessam as relações interculturais numa rede de antagonismos, ao tempo em que promovem discursos, em que a abertura ao inusitado é permitida, a exemplo da terceira via defendida por teóricos como Canclíni, Bhabha, Hall, Gilroy, entre outros de relevantes contribuições intelectuais, inspirados na experiência da diáspora. Apesar de se manterem atentos aos “jogos de sedução e de poder”, o que de fato propõem é a negociação permanente e, diríamos mais inteligente, entre as diferenças. Ademais, demonstram o quanto os domínios da cultura são, também, arenas de disputas. Suas formulações consideram a presença do híbrido como fator constituinte do tecido da humanidade. Transitar em meio a essa realidade constitui desafio impulsionador de novas epistemologias sobre identidade. Assinalamos a questão étnico-racial como um desafio que nos instiga à superação de toda e qualquer forma de racismo, na sociedade brasileira hibridizada, desde a saga da colonização até os dias atuais, a cada imigrante que chegara ao Brasil e constituíra novos grupos familiais. Embora reconheçamos o fosso de desigualdades sociais matizadas por práticas de viés racista, entendemos ser imprescindível a produção de estudos e de sua 88 difusão, com vistas ao reconhecimento do valor histórico e cultural das matrizes civilizatórias africana e indígena. Associamos às práticas sociais preconceituosas e discriminatórias em relação ao negro brasileiro um comprometimento da escola, em relação às matrizes civilizatórias africanas. A implementação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 por si, só, não dão conta da premente necessidade de alteração dos currículos oficiais, desde a articulação entre os saberes de todas as áreas de conhecimento da educação básica, quer seja: a Linguagem, as Ciências Humanas e as Ciências Exatas. O imaginário emerge em nossa perspectiva transformadora como uma potencialidade que precisa ser abraçada pelas ciências sociais, sobretudo quando pensamos a cosmogonia dos povos yoruba. Essa cosmogonia, ainda que alterada em alguns aspectos no Brasil, provê os imaginários simbolizados em inúmeras marcas imagéticas espalhadas na cidade de Salvador. As contribuições de intelectuais pós-colonialistas possibilitaram comparações entre práticas discursivas, objetivando racionalizações mais coerentes com a realidade investigada, sem, contudo, assumir uma pretensão de esgotamento da temática. Ao considerar as nuances de que se compõem essas práticas discursivas, a motivação intuitiva incidiu na tentativa de desvelamento de símbolos da cultura africana em solo brasileiro, através da mitologia e sua representação na imagem de Yemanjá, no bairro do Rio Vermelho, em Salvador. Compreendemos, portanto, que o imaginário exerce grande força no seio de uma cultura, bem como, na formação de identidades. O breve estudo do imaginário nos conduziu a concepções que ultrapassaram noções, meramente, convencionais. A aproximação junto à categoria dos pescadores, por meio da descrição densa, realizada em diferentes horários e turnos, oportunizou uma experiência intelectual interessante, e possibilitou modestas inferências sobre os processos de hibridização repercussivos em todos os sujeitos entrevistados. Enfatizamos a narrativa de Mãe Aíce quanto às suas definições de religiosidades, declarando-se yalorixá e católica, frequentando missas e cuidando do seu “terreiro”, sem abrigar sentimentos de disputas religiosas. Tal referência nos fez refletir acerca de sincretismo, colocando-o sob revisão, uma vez que aventamos a possibilidade de outra construção, qual seja a de “diversidade compartilhada”, expressão utilizada pelo antropólogo Júlio Santana no III Encontro de Nações de Candomblé e I Simpósio de Estudos da Religião Afro-brasileira, uma iniciativa do Centro de Estudos Afro-orientais da Universidade Federal da Bahia, evento realizado em Salvador no período de 24 a 26 de setembro de 2013. Neste trabalho pudemos observar que, se o projeto hegemonizante tornou-se revigorado pela imposição do capitalismo e da globalização na América Latina, por outro lado, a herança cultural africana se faz presente, através de sua cosmogonia, à qual, se rendem milhões de pessoas a cada ano, para homenagear um dos mais importantes “mitos” dos povos 89 yoruba no Brasil: uma divindade negra, Yemanjá. A abordagem interdisciplinar cria um leque de opções para análise de um objeto de interesse comum, sem prejuízo de sua validade epistemológica, por meio de distintos olhares: a história, a sociologia, a pedagogia, a antropologia, a filosofia, a psicologia, as ciências ditas exatas, a economia, a política. E a quem mais possa interessar a superação da questão racial nas relações sociais do Brasil. Refletimos até aqui quanto à relevância deste estudo para o âmbito das relações étnico- raciais, ressaltando a necessidade de persistirmos em busca de alternativas capazes de superar obscurantismos no campo educacional. Ao percorrer caminhos dos imaginários sobre Yemanjá, verificamos a abrangência do mito entre devotos e não devotos das religiões afro- brasileiras, que acorrem ao mar em 2 de fevereiro para reverenciá-la. A pesquisa de campo forneceu material elucidativo para a construção do discurso em torno de identidade cultural e as nuances que lhes constituem. Desse modo, constatamos aspectos singulares de uma cultura, cujos sujeitos vivenciam experiências compartilhadas. Em seu imaginário, produzido e (re)produzido de geração a geração, relativa importância tem a origem de Yemanjá, pois, o “mito” é (re)contado e internalizado como um poder ao qual reverenciam: “senhora das águas”, “rainha das águas”, “mãe d’água”, “dona das águas”, misteriosa e bela mulher a quem se deve agradar, com vistas à proteção no mar e à boa sorte na pescaria. Neste sentido tratamos de um fato, que configura uma identidade cultural em um contexto social caracterizado pelo imaginário, pela religiosidade, pela arte e pela festa. Uma pedagogia da diversidade possibilitará que a escola se transforme em campo de interlocuções de saberes relevantes para a leitura da sociedade e das culturas em contato. “O alargamento do discurso antropológico” implicará um exercício problematizador em todos os espaços onde estejam reunidos sujeitos em atividade dialógica sobre relações sociais e práticas culturais estereotipadas. Nosso entendimento de cultura se movimenta em tantos sentidos e significados quanto a ela forem atribuídos. Enquanto prática social, podemos dizer que a cultura adquire uma identidade. O imaginário assoma como inspiração humana que atribui sentidos à cultura, oriundos de subjetividades e das experiências socializadas; a estrutura na qual se constroem as concepções de homem, de mundo e de sociedade; a base arqueologizante da tecedura indivíduo/sociedade, natureza/cultura (DURAND, 2001). Segundo DURAND (2001) “o princípio constitutivo da imaginação é o de representar, figurar, simbolizar as faces do Tempo e da Morte” (DURAND, 2001). A cultura seria a materialização do imaginário e uma experiência compartilhada. Instaura-se no contato entre as gentes: nas rodas de conversa; na praia, nos bares, nos mercados, nas igrejas, nos sindicatos, nas feiras, nas artes, nas relações amorosas, nos esportes, na escola, na rua. O conceito de identidade cultural abarca o jogo, acolhe a dança e se amplia na diversidade que os processos hibridizantes tornaram possíveis.

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APÊNDICE I Lista de entrevistados

 Marcos Santos Souza “Branco". Presidente da Colônia de Pescadores Z1, do bairro do Rio Vermelho.

 “Pai Velho” 73 anos. Antigo pescador da Colônia Z1. Ex-presidente da Associação da Colônia de Pescadores Z6 do bairro de Itapuã. Atualmente trabalha como peixeiro na Associação de Pescadores da Colônia Z6.

 “Cumprido”, 76 anos. Pescador aposentado da Colônia Z1.

 “Mantega”, 75 anos. Pescador aposentado da Colônia Z1.

 “Manoel” Pigmeu, 46 anos. Pescador ativo, vinculado à Colônia Z6.

 “Bala na Testa”, 46 anos. Pescador ativo, vinculado à Colônia Z6.

 Mãe Aíce, 79 anos, yalorixá do Terreiro Odé Mirim de Oxóssi, no bairro do Engenho Velho da Federação. Organizadora do ritual de candomblé da festa de Yemanjá, há 21 anos.

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ANEXO I Declaração do Professor Roberto Borges