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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Departamento de Relações Internacionais Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais

Fabiana Kent Paiva

MOCINHOS E VILÕES: A Construção da Imagem de Judeus e Árabes das Produções Cinematográficas Hollywoodianas

Belo Horizonte

2019 Fabiana Kent Paiva

MOCINHOS E VILÕES: A Construção da Imagem de Judeus e Árabes das Produções Cinematográficas Hollywoodianas

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Relações Internacionais.

Orientador: Prof. Dr. Leonardo César Souza Ramos

Área de Concentração: Segurança e Instituições Internacionais

Belo Horizonte 2019

FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Paiva, Fabiana Kent P149m Mocinhos e vilões: a construção da imagem de judeus e árabes das produções cinematográficas hollywoodianas/ Fabiana Kent Paiva. Belo Horizonte, 2019. 183 f. : il.

Orientador: Leonardo César Souza Ramos Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais

1. Cultura de massa – Estados Unidos. 2. Conflito Árabe-Israelense 3. Cinema - Estética. 4. Cinema americano. 5. Representação cinematográfica. 6. Ideologia. 7. Hegemonia. I. Ramos, Leonardo César Souza. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais. III. Título.

CDU: 791.43.01 Ficha catalográfica elaborada por Fabiana Marques de Souza e Silva - CRB 6/2086 Fabiana Kent Paiva

MOCINHOS E VILÕES: A Construção da Imagem de Judeus e Árabes das Produções Cinematográficas Hollywoodianas

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Relações Internacionais.

Área de Concentração: Segurança e Instituições Internacionais

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Prof. Dr. Leonardo Souza César Ramos – PUC Minas (Orientador)

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Profª.Drª. Cristine Koehler Zanella – UFABC (Examinadora Externa)

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Profª.Drª. Marinana Andrade e Barros – Uni-BH (Examinadora Externa)

Belo Horizonte, 12 de agosto de 2019

Para meu irmão, que me ensinou a gostar de filmes.

AGRADECIMENTOS

Muita gente foi importante durante minha trajetória no Programa de Pós- Graduação em Relações Internacionais da PUC Minas. Foi um período complicado, permeado de muitos momentos de descrença, num contexto político difícil para aqueles que, como eu, escolheram o caminho árduo da carreira acadêmica. Nesse processo, fui abençoada e privilegiada por ter muitas pessoas que me ajudaram, me colocaram pra cima e me fizeram acreditar que esse momento que estou vivendo agora seria possível. Primeiramente gostaria de agradecer ao meu orientador, Leonardo Ramos, por ter me permitido perseguir minhas ideias desde sempre, tanto na graduação quanto no mestrado. Obrigada pela confiança, pela liberdade e por toda a ajuda. Agradeço também ao corpo docente do Departamento de Relações Internacionais, que desde a graduação me acolheu e me acompanhou na minha trajetória. Agradecimentos especiais aos professores Geraldine Duarte, Chyara Sales, Léa Souki, Onofre dos Santos, Fátima Anastasia, Danny Zahreddine, Javier Vadell, Cristiano Mendes, à querida Matilde Souza e o sempre presente Rodrigo Teixeira pela amizade, gentileza e apoio. Agradecimentos também a Paula, Lucas e Jansem da Secretaria! Devo muito a todos vocês! Não poderia deixar de dedicar um espaço para agradecer ao amado Otávio Dulci, professor e amigo que deixou saudades nos corações de todos. Você foi um exemplo de acadêmico e de ser humano para todos nós. Obrigada por tudo que você deixou em mim, pela certeza de que eu iria conseguir alcançar tudo que abracei. Sinto falta de conversar com você e me sentir melhor. Você sempre foi um porto seguro num ambiente e momento de vida que tiraram meu chão. Saudade sempre. Agora ao agradecimento para aqueles que dividiram comigo os dias, a ansiedade, os problemas, as risadas e muita coisa boa: meus amigos! Alana, obrigada por ser tudo que você é pra mim. Obrigada pela ajuda com a vida, com minha relação comigo mesma e com a minha fé. E, óbvio, obrigada por ter lido quase toda essa dissertação pra me ajudar a me sentir segura, como você sempre faz. Giseli, Guto e Dona Antônia (saudade, minha velhinha), minha família postiça, obrigada por absolutamente tudo. Lia, Gui, Lucas e José, obrigada por estarem presentes há mais de vinte anos, à distância e de pertinho, afinal. Ana, Rhaíra, Amanda, minhas âncoras, obrigada por não me abandonarem jamais. Um agradecimento também à Marina, minha terapeuta. Caramba, ainda bem que você estava por aqui! Um obrigada gigantesco, e um abraço tão apertado que tira o ar, para os amigos com quem eu partilhei a maior parte dos meus dias e fins de semana durante esse processo todo. Só um acadêmico pra entender e aguentar as lamentações, os horários estranhos, e as ansiedades de um outro acadêmico. Obrigada Marina, Ana Rachel, Rafa Bittencourt, Bruno H., João e Barbara por todos os momentos que dividimos. Rafa, Marina, Gabi e Nina, obrigada pela amizade e pelas melhores quintas desses últimos anos. E, por fim, obrigada Matheus, Leti, Leo, Caio e Bruno M: por toda a paciência, carinho, conselhos e puxões de orelha que vocês me deram. Obrigada por serem meus amigos. Sou muito feliz e sortuda por ter dividido a jornada com vocês, mesmo. Por fim, eu quero agradecer à minha família. Os maiores agradecimentos sem dúvida vão para os meus pais, Marcus e Elizabeth. São vocês os maiores torcedores que eu tenho, e o maior apoio que posso encontrar nas maiores conquistas e em momentos difíceis. Obrigada por acreditarem nas minhas escolhas, mesmo elas me levando por caminhos tão difíceis. Aos meus irmãos Bernardo, Livia e Victor: vocês são as melhores coisas da minha vida! As risadas que damos juntos me dão força pra continuar caminhando, sabendo que tenho companheiros para tudo e sempre, para todas as aventuras e desventuras. Amo muito vocês! Agradeço à Mariana e Maria, e às minhas avós e minha madrinha pelo carinho e apoio. Tias, tios, primas e primos também. Sou quem sou porque somos quem somos. O mestrado foi a coisa mais difícil que fiz até hoje. Essa dissertação foi escrita em meio a muita dor, dificuldade e lágrimas, mas é uma das conquistas de que mais me orgulho em toda a minha vida. Sei que só cheguei até aqui porque há alguém cuidando de mim, do meu caminho e da minha história. Obrigada, Poder Superior, por ter me trazido até aqui, por ter me dado forças e fé em mim. Por fim, gostaria de destacar que essa pesquisa foi realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. A pesquisa científica é um dos mais importantes pilares no desenvolvimento de uma nação, e uma das maiores fontes de conhecimento e ideias para a superação das dificuldades e das desigualdades entre nós. Sou extremamente grata pela bolsa concedida, sem a qual a realização dessa dissertação não seria possível. Obrigada!

“O que me valeu foi ter estudado e lido muito. Estudar e ler é quase o melhor que há.”

Adília Lopes

RESUMO

O presente estudo se dedica ao estudo da representação árabe e judaica nas produções cinematográficas de Hollywood desde 1948, ano de independência de Israel e escalada do conflito entre as duas nações. Argumenta que essas produções, como parte da cultura de massa, são um veículo para valores, ideias e ideologias, que atingem espectadores em todo o mundo. Desde o ataque terrorista ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001, a imagem do árabe tem sido conectada à violência nos Estados Unidos da América, tanto em telejornais quanto em outras produções da cultura de massa, como o cinema. Já os judeus, desde a Segunda Guerra Mundial, tem sido representados como a nação vítima do maior genocídio da História: o Holocausto. Baseando-se no conceito de securitização de imagens de Lene Hansen, argumenta-se que a repetição dessa representação pelas produções estadunidenses pode criar a percepção dos árabes como uma ameaça e dos judeus como nação ameaçada. Assim, o objetivo dessa dissertação é identificar, em cinco produções hollywoodianas, elementos discursivos recorrentes que representem judeus e árabes nos filmes estadunidenses, a fim de analisar a propagação da ideia de polaridade do Bem contra o Mal na percepção do papel desempenhado por essas nações no Conflito Árabe-Israelense. Para esse fim, foi utilizada a Análise de Conteúdo no estudo dos filmes escolhidos, que teve como resultado a confirmação de um discurso dominante nesse sentido que é, entretanto, desestabilizado em algumas das produções cinematográficas de Hollywood.

Palavras-chave: Estética. Cinema. Conflito Árabe-Israelense. Securitização de Imagens. ABSTRACT

The present study is devoted to the study of Arab and Jewish representation in Hollywood film productions since 1948, year of Israel's independence and the escalation of the conflict between the two nations. It is argued that such productions, as part of mass culture, are a vehicle for values, ideas and ideologies, that reach viewers around the world. Since the terrorist attacks on the World Trade Center on September 11, 2001, the image of Arabs has been connected to violence in the United States of America, both in television news and in other mass-culture productions such as cinema. On the other hand, since the Second World War Jews have been represented as the nation victim of the greatest genocide in history: the Holocaust. Based on Lene Hansen's concept of securitization of images, it is argued that the repetition of this representation by American productions can create the perception of Arabs as a threat and of Jews as a threatened nation. Thus, the aim of this dissertation is to identify, in five Hollywood productions, recurrent discursive elements that represent Jews and Arabs in these film productions, in order to analyze the dissemination of the idea of the polarity of Good versus Evil in the perception of the role played by these nations in the Arab-Israeli conflict. For this, Content Analysis was used to study the chosen films, which resulted in the confirmation of a dominant discourse in this sense that is, however, destabilized in some of the Hollywood film productions.

Keywords: Aesthetics. Cinema. Arab-Israeli conflict. Visual Securitization.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1. “Progresso Americano” ...... 68 Figura 2. “O Iceberg Vermelho” ...... 70 Figura 3. Ariel Sharon, o "açougueiro de Beirute" ...... 90 Figura 4. Oskar Schindler e Itzhak Stern ...... 116 Figura 5. Judeus enviados a Cracóvia em 1939...... 116 Figura 6. Poldek à frente de uma vitrine com cartazes de propaganda eugenista antissemita ...... 117 Figura 7. Soldados nazistas caçoam de judeu...... 118 Figura 8. O uso de cor em “A Lista de Schindler” ...... 120 Figura 9. Shosanna corre para salvar sua vida...... 125 Figura 10. Shosanna se prepara para matar nazistas ...... 125 Figura 11. Os Bastardos Inglórios ...... 126 Figura 12. Hitler gritando à frente de seu autorretrato ...... 126 Figura 13. A morte dos nazistas ...... 127 Figura 14. A marca de Landa ...... 128 Figura 15. Lawrence convence Auda Abu Tayeh a envolver sua tribo na luta contra os turcos ...... 131 Figura 16 - Lawrence com roupas de Xerife Harita ...... 132 Figura 17. Lawrence aclamado pelos beduínos, e o britânico como figura profética .. 132 Figura 18. Aldeia árabe destruída pelos turcos...... 133 Figura 19. Rei Faisal adota estratégia militar incorreta ...... 134 Figura 20. Comando do Exército Inglês em Damasco ...... 135 Figura 21. Conselho Nacional Árabe em Damasco ...... 136 Figura 22. Kathryn Bigelow no coletivo Art & Language ...... 137 Figura 23. Prisioneiro sendo torturado ...... 139 Figura 24. Maya incomodada com as torturas ao prisioneiro...... 140 Figura 25. Membros da Al Qaeda procurados pela CIA ...... 140 Figura 26 – Bradley ouve pela TV notícias sobre o atentado a Londres, irritado ...... 141 Figura 27. Maya, a escolhida ...... 143 Figura 28. Rawalpindi, Paquistão ...... 143 Figura 29. Família israelense chora pela morte dos atletas e família palestina chora pela morte dos fedayin...... 146 Figura 30. Nomes israelenses e palestinos envolvidos no atentado ...... 147 Figura 31. Robert deixa o grupo ...... 148 Figura 32. Papa conversa com Avner ...... 149 Figura 33. Avner conversa com sua mãe ...... 150 Figura 34. Avner questiona Ephraim ...... 151 Figura 35. Fedayin e israelenses antes do ataque ...... 153 Figura 36. Fedayin e israelenses ao fim do ataque ...... 153 LISTA DE QUADROS

Quadro 1. Categorias de Análise ...... 118

LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Participação das produções estadunidenses nos lucros gerados pelo cinema em diferentes países no ano de 2016 ...... 69

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AP Autoridade Palestina ARE Aparelho Repressivo do Estado AIE Aparelho Ideológico do Estado CGI Computer Generated Imagery CIA Central Intelligence Agency CNC Centro Nacional de Cinematografia CNN Cable News Network EUA Estados Unidos da América MPAA Motion Picture Association of America MPPC Motion Picture Patents Company NBC National Broadcasting Company OLP Organização de Libertação da Palestina RI Relações Internacionais SS Schutzstaffel URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas WASP White Anglo-Saxon Protestant WTC World Trade Center SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ...... 16

2. O CINEMA COMO CULTURA DE MASSA: O INCONSPÍCUO VETOR IDEOLÓGICO ...... 24

2.1 Sociedade e cultura de massa ...... 24 2.2 Estética: arte e política...... 34 2.3 Cinema: ideologia e hegemonia ...... 40 2.4 Cinema, memória e empatia ...... 44

3. HOLLYWOOD COMO INDÚSTRIA DE CULTURA DE MASSA E A CONSTRUÇÃO IMAGÉTICA DO INIMIGO ESTADUNIDENSE ...... 49

3.1 Hollywood: a primeira indústria de cultura de massa ...... 50 3.2 Hollywood e a construção do inimigo comum do povo eleito ...... 65

4. A REPRESENTAÇÃO ÁRABE E JUDAICA NO CINEMA: UM MODELO PARA ANÁLISE ...... 76

4.1 A cultura de massa a serviço da securitização de imagens ...... 76 4.2 O Conflito Árabe-Israelense ...... 85 4.3 Orientalismo: representação e estigma ...... 93 4.4 Análise de Conteúdo: a construção de antagonistas e protagonistas nas produções cinematográficas ...... 105

5. A HOLLYWOODIZAÇÃO DO HOLOCAUSTO E A VILANIZAÇÃO DO ÁRABE POR MEIO DO CINEMA ...... 114

5.1 “A Lista de Schindler”, 1993 ...... 114 5.2 “Bastardos Inglórios”, 2009 ...... 122 5.3 “Lawrence da Arábia”, 1962 ...... 129 5.4 “A Hora mais Escura”, 2012 ...... 137 5.5 “Munique”, 2005 ...... 145

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 155

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 161

APÊNDICE I – Lista de Indicados e Vencedores (em amarelo) do Oscar de Melhor Filme do Ano entre 1948 e 2018 – Representação de Árabes e Judeus ...... 174

16

1. INTRODUÇÃO

“A História se revela através das imagens” 1 de acordo com Walter Benjamin (2010, p.323), o que significa que a estética permeia de forma contundente a maneira com que os seres humanos percebem a trajetória da humanidade e, consequentemente, sua realidade. O cinema, para Benjamin, foi a primeira expressão artística que pôde demonstrar como a materialidade interfere na vida humana, em consequência de sua intensa capacidade de capturar o que é percebido como real (BENJAMIN, 2012). As imagens cinematográficas mostram ao espectador a vida como ela é, ou como poderia e deveria ser. Apenas duas décadas após a primeira exibição de um filme, datada do fim do século XIX, o cinema já havia se estabelecido como uma potente indústria de cultura de massa, como entretenimento acessível a diferentes camadas da população do Norte global2. E já nas primeiras décadas do século XX, as redes de distribuição hollywoodianas se espalharam pelo mundo, levando as produções estadunidenses para diversos países do globo (DE ZOYSA; NEWMAN, 2002). A partir de então, o rosto de Charles Chaplin, a delicadeza de Audrey Hepburn e a voz marcante de Humphrey Bogart passaram a ser familiares em todos os continentes. As histórias de amor e o heroísmo dos caubóis se tornaram fonte de inspiração para brincadeiras de crianças em diversas localidades, e o sonho americano passou a permear o imaginário dos espectadores das produções cinematográficas. A produção artística e cinematográfica foi negligenciada como elemento importante para a compreensão das Relações Internacionais até a proeminência das teorias pós-positivistas nas Ciências Sociais, quando surgiu a oportunidade para que os impactos dessas intervenções na cultura e identidade nacionais fossem estudados. Em “Dialética do Esclarecimento”, Theodor W. Adorno e Max Horkheimer (1947) discutem os impactos da indústria cultural na formação de ideias e demonstram a força discursiva das produções artísticas na cultura e imaginário popular. As produções cinematográficas têm o poder de moldar ideias, retratar realidades e construir sonhos através dos discursos imbuídos nas escolhas temáticas e estéticas feitas

1 “History unfolds across images” (BENJAMIN apud DER DERIAN, 2010, p.323, tradução livre). 2 Os conceitos de Norte e Sul global, nas Relações Internacionais, não se referem simplesmente à posição geográfica do país no globo terrestre, e sim à sua posição na hierarquia do poder no Sistema Internacional, onde o Norte Global detém o poder e o Sul Global se organiza para disputá-lo (CAIXETA, 2015). 17 pelos profissionais responsáveis por sua criação e execução (ADORNO; HORKHEIMER, 1947). Quanto maior o alcance dessas produções, maior o público exposto aos discursos veiculados pelos filmes. Sem dúvida, a indústria cinematográfica estadunidense de Hollywood é o mais reconhecido polo de produção cinematográfica, apesar de perder em número de filmes produzidos por ano para as indústrias indiana e nigeriana. Isso porque as redes de distribuição e exibição de Hollywood têm um alcance maior que as dos dois países do Sul global, sendo desta forma possível dizer que os discursos imbuídos nas produções hollywoodianas têm um alcance global, e por isso uma enorme capacidade de propagação de ideias (SHOHAT; STAM, 2006). A magia do cinema esconde a enorme rede de pessoas e processos envolvidos na produção de um filme, e tem como prerrogativa a intensa capacidade de comunicação de valores, ideias e ideais. Roland Bleiker (2009) defende que as representações estéticas como o cinema, apesar de aparentemente retratarem o real, na verdade têm uma lacuna entre o que é representado e a representação. Para o autor, essa lacuna reflete uma posição política do mundo, que é traduzida para o cinema. De fato, todo o processo de representação é composto da organização de um entendimento específico da realidade, onde alguns aspectos adquirem maior relevância e pertinência, a depender das preferências dos criadores da representação, nesse caso, os diretores (BLEIKER, 2009). As abordagens estéticas reconhecem que essas preferências existem, e que as diferenças entre o elemento representado e a representação são construídas por meio de elementos históricos, culturais e subjetivos. A representação é, portanto, um ato de poder, já que é um exercício de abstração e interpretação da realidade que é percebido pelo espectador como um produto simples de captação de imagens (BLEIKER, 2009). Dessa forma, o cinema é consumido como uma mídia insuspeita, produzido para seu entretenimento. Ao concordar com Walter Benjamin sobre a construção da História pelas imagens, o pesquisador crítico compreende a importância dos filmes para a construção de ideias, e portanto se preocupa com as práticas de representação. Não se pode ignorar que a narrativa hollywoodiana clássica se baseia na estrutura de três atos, que foi sistematizada por Syd Field, um roteirista estadunidense, em seu livro “Manual do Roteiro”, lançado em 1979. Nessa estrutura, o filme é dividido em três grandes partes, com um funcionamento específico, no qual o protagonista é exposto a adversidades, geralmente causadas por um antagonista. Portanto, de acordo com a estrutura utilizada por grande parte dos roteiristas hollywoodianos, para o bom desenvolvimento de um filme é necessário que se estabeleça um conflito entre o 18 protagonista e o antagonista. Desta forma, ao adotar um posicionamento crítico frente às produções cinematográficas, há de se refletir sobre quem são os personagens que ocupam os lugares de protagonismo e antagonismo nos filmes. Essa prerrogativa é particularmente importante quando se trata da representação dos países do Oriente Médio no cinema estadunidense. A região tem sido cenário de intenso atrito entre suas nações desde a primeira metade do século XX, com o desmantelamento do Império Otomano, a presença europeia e a criação do Estado de Israel. A animosidade entre Israel, Estado judaico, e seus vizinhos, Estados árabes, foi origem de pelo menos 17 conflitos armados relevantes nos últimos setenta anos. Desde 1948, ano da criação de Israel, não houve sequer uma década na qual não tenha havido um conflito armado entre um país árabe e Israel (ZAHREDDINE; PIRES, 2017). Essa pesquisa se propõe a investigar produções hollywoodianas que tratam da representação árabe e judaica, em busca de elementos discursivos recorrentes que possam apontar para a construção de características que representem essas nações nas produções cinematográficas, que poderiam contribuir para a propagação da ideia de polaridade do Bem contra o Mal no Conflito Árabe-Israelense. Foucault e Deleuze (1985) discorrem sobre a relação entre a verdade e o poder. Para os filósofos, a verdade é construída e reiterada através do discurso, e os intelectuais têm o controle desse processo: “Os próprios intelectuais fazem parte deste sistema de poder, a ideia de que eles são agentes da ‘consciência’ e do discurso também faz parte desse sistema” (FOUCAULT; DELEUZE, 1985, p.2). Jacques Derrida (2004) também discute sobre a construção da verdade e do mundo por meio das narrativas. O filósofo discute a desconstrução da ideia de verdade e presença da realidade na linguagem. A linguagem, para ele, não é um fundamento da existência, ou sua origem, mas sim uma estrutura, como diversas outras estruturas, que são mobilizadas para a representação de algo. Essa estrutura é mobilizada para se referir a algo do mundo, em busca de estabelecer sentidos e fundar presenças, porém está imbuída de valores e aspectos hierarquizantes que têm impactos na existência daqueles que são representados (DERRIDA, 2004). Alguns destes impactos podem ser explicados pelo grande peso que a linguagem representa na construção de nossa realidade. De acordo com Stuart Hall (1997), a cultura pode ser compreendida como um sistema de significados compartilhados por um grupo de pessoas. Esses significados são construídos por meio da linguagem, em todas as suas modalidades. A linguagem opera através de representações, signos que conectam ideias, 19 sons e símbolos, construindo as imagens a que se deseja aludir. As escolhas feitas para expressar essas representações fazem recortes da realidade que moldam a forma como ela é percebida pelos interlocutores. Desta forma, pode-se compreender que é por meio da linguagem e da cultura que são produzidos e propagados os significados utilizados para a decodificação da realidade. Estes significados mobilizam sentimentos e emoções, e estão envolvidos em intrincadas relações de poder (HALL, 1997). Através da linguagem são organizados, e principalmente categorizados, diferentes aspectos e elementos da realidade. A sociedade, por meio da linguagem e cultura, estabelece meios de hierarquizar pessoas e povos, elencando aspectos que são apresentados como agregadores ou excludentes. Os estranhos, diferentes, têm aspectos que os excluem, criando o que Erving Goffman (1988) chama de estigma: uma linguagem de relações que define certos atributos como profundamente depreciativos. Os meios de comunicação também são veículos dessa hierarquização (GOFFMAN, 1988). Desta forma, compreende-se que através do cinema é possível propagar ou reforçar relações que contrapõem atributos aceitáveis e inferiores, contribuindo para a criação de estigmas que retratam determinadas nações, etnias ou outros grupos como perigosos e ameaçadores. Assim, o estudo aqui proposto será guiado pelo seguinte questionamento: de que forma as produções hollywoodianas constituem uma ferramenta na construção de um discurso que atribui à nação judaica o papel de vítima e à árabe o papel de propagadores de violência nos atritos do Oriente Médio? Trabalha-se com a hipótese de que os diretores de Hollywood fazem escolhas estéticas que compõem discursos com cargas ideológicas que influenciam a representação das nações judaica e árabe como vítima e perpetuadora de violência3, respectivamente. Essas produções têm amplo alcance devido às bem estabelecidas redes de distribuição e exibição cinematográficas estadunidenses, levando esses discursos para uma audiência cada vez mais diversificada, propagando a ideologia retratada nos filmes, influenciando ativamente nas ideias de papéis desempenhados por judeus e árabes nos conflitos do Oriente Médio. Por ser uma região geograficamente estratégica, com rotas de ligação entre continentes, o Oriente Médio foi e é palco de diferentes confrontos. Um deles é o Conflito Árabe-Israelense, que tem sido intensamente estudado e extensamente discutido no

3 É importante salientar que não é objetivo dessa dissertação relativizar os horrores do regime nazista na Segunda Guerra Mundial, o Holocausto ou o sofrimento da nação judaica à época ou ao mesmo hoje. Esse trabalho não tem qualquer caráter antissemita, e apenas se presta a discutir sobre a chamada americanização ou hollywoodização do Holocausto, que será abordada mais à frente. 20 campo das Relações Internacionais. Essa dissertação, porém, propõe uma abordagem diferente para o estudo do conflito, já que aposta na análise da representação das nações na cultura de massa. Busca-se discutir uma série de filmes que possam criar padrões de representação que privilegiem judeus em detrimento de árabes, e que possam, portanto, moldar a percepção dos espectadores sobre o conflito. Nesse mesmo sentido, Lene Hansen (2011) chama a atenção para o processo de securitização de imagens, que analisa o papel da representação para a construção de ameaças e perigo, e que tem se tornado cada vez mais caro ao estudo da Segurança no campo das RI, justamente por levar em consideração um tipo de elemento anteriormente ignorado pelo subcampo. A autora argumenta que as imagens têm o poder de veicular discursos que criam ideias, fortalecem ideologias e fomentam a percepção de ameaças. Assim, caso uma determinada nação seja representada frequentemente como uma ameaça, há a possibilidade que ela passe a ser percebida como tal (HANSEN, 2011). Acredita-se que os filmes hollywoodianos securitizam as imagens de árabes e judeus por intermédio de padrões de repetição e de discurso. Assim, fazem com que a nação judaica seja percebida como um povo ameaçado e a nação árabe como uma ameaça, criando uma contraposição entre mocinhos e vilões entre as nações envolvidas no Conflito Árabe- Israelense. Assim, o principal objetivo dessa dissertação é identificar, nos filmes escolhidos, elementos discursivos recorrentes de forma a investigar a construção de características que representem judeus e árabes nas produções cinematográficas hollywoodianas, a fim de analisar a propagação da ideia de polaridade do Bem contra o Mal na percepção do papel desempenhado por essas nações no Conflito Árabe-Israelense. Para isso, será necessário que primeiramente se discuta a importância do cinema como um meio de propagação de ideologias e estereótipos para o público em geral, a fim de compreendê-lo como elemento importante da representação e codificação da realidade. E então indicar padrões estéticos e discursivos em produções cinematográficas dos estúdios de Hollywood no que tange à representação de judeus e árabes das últimas três décadas, de modo a identificar padrões de representação e estereótipos. Para isso, será utilizada a Análise de Conteúdo, metodologia que lida com elementos diversos para estabelecer inferências através de identificação de categorias e repetições. A análise é feita através da categorização de elementos discursivos observados em um corpus definido pela autora da pesquisa, e faz com que seja possível construir uma análise que conjugue tanto a historicidade da produção cinematográfica, ou o seu 21 contexto, que é externo à analista, quanto a sua interpretação, o que permite que se estabeleça uma conexão entre todos os elementos dessas produções: a estética cinematográfica, as circunstâncias em que foi produzida e o contexto ideológico e sócio histórico que carrega (BAUER; GASKEL, 2002). Portanto, será desenvolvida a Análise de Conteúdo de cinco filmes produzidos por grandes estúdios de Hollywood. A escolha da indústria cinematográfica estadunidense se justifica pelo alcance de seus filmes, já discutida nessa seção, e que será aprofundada ao longo da dissertação. No universo de dezenas de milhares de filmes já produzidos por Hollywood, era necessário que se estabelecesse critérios para a escolha dos filmes que serão analisados. Primeiramente, foi estabelecido o corte temporal: foram considerados para a pesquisa os filmes produzidos desde 1948, ano de independência de Israel e acirramento do conflito entre as duas nações estudadas nessa pesquisa. Em busca de filmes que tenham tido maior exposição ao público, adotou-se como critério a escolha de filmes que houvessem sido indicados ao mais prestigioso prêmio da indústria cinematográfica: o Oscar de Melhor Filme do Ano, oferecido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Assim, não se trata de uma amostragem estatística, mas sim construída por meio de critérios estabelecidos pela pesquisadora. Nas setenta e uma cerimônias que aconteceram entre 1949 e 2019, trezentos e noventa e quatro produções foram indicadas ao prêmio, porém apenas quatorze desses filmes tratavam da representação árabe e/ou judaica. Cinco filmes foram escolhidos, dois que tem a representação árabe ao centro da narrativa, “Lawrence da Arábia” (1962) e “A Hora Mais Escura” (2012), dois cuja trama envolve a representação judaica, “A Lista de Schindler” (1993) e “Bastardos Inglórios” (2009), e “Munique” (2005), que trata diretamente do Conflito Árabe-Israelense. A escolha desses cinco filmes não foi aleatória. Foram escolhidos por uma percepção de maior potencialidade de desenvolvimento da pesquisa, acessada por meio de suas sinopses, que se traduziu na centralidade dos personagens árabes ou judeus nas narrativas das produções cinematográficas. Dos cinco filmes, apenas dois já haviam sido assistidos a priori, de forma que só a comprovação ou refutação da hipótese de trabalho só seria possível ao fim da investigação. Tendo em vista a ideia geral proposta para a dissertação, o trabalho foi dividido, para além dessa seção introdutória, em outros cinco capítulos. O capítulo dois tem como objetivo entender de que forma o cinema pode ser compreendido como parte da cultura de massa que propaga ideais e valores, mobilizando teóricos e estudiosos de diversos 22 campos das Ciências Sociais. Em um primeiro momento, discute-se o surgimento da cultura de massa e sua relação com a sociedade da época. Também é proposto um debate sobre a importante relação entre arte e política, fundamental para essa dissertação. Além disso, o primeiro capítulo também discute a relação do cinema e da cultura de massa como ferramenta de hegemonia para os Estados, e por fim a relação entre o cinema e a memória. No terceiro capítulo, o objetivo é apresentar criticamente ao leitor a história de surgimento do cinema e de Hollywood, maior polo cinematográfico do mundo, e o seu papel na disseminação do mito fundador dos Estados Unidos da América (doravante EUA): o mito do povo escolhido. Assim, nesse capítulo é discutida a trajetória do surgimento do cinema, desde as primeiras exibições fílmicas nos EUA e na França, até o momento em que a indústria estadunidense se destaca e adota estratégias que a possibilitam se tornar a mais influente indústria do ramo no mundo. Na segunda seção do terceiro capítulo, é feita uma pequena revisão histórica da fundação dos EUA e do mito do povo escolhido, inaugurado por seus primeiros habitantes brancos, os peregrinos. Discute-se de que forma esse mito se transforma num discurso de oposição ao outro, e como a indústria cinematográfica se apropria dessa narrativa e a difunde através de suas produções. Essa discussão é pertinente uma vez que a representação do árabe nos filmes hollywoodianos tem muito a ver com essa ideia, já que após os ataques ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001, os árabes passaram a dividir com os russos a posição de antagonistas em inúmeros filmes de ação, gênero clássico de contraposição evidente entre protagonistas e antagonistas. No quarto capítulo, procurou-se estabelecer as bases metodológicas para a análise da representação árabe e judaica nos filmes escolhidos para essa pesquisa. Em sua primeira seção, o conceito de securitização de imagens é mobilizado. Esse conceito, desenvolvido por Lene Hansen e já citado nessa introdução, é importante para que se compreenda de que forma o cinema pode ser articulado de forma a construir imagens tanto de perigo e ameaça quanto de em perigo e ameaçado. Essa discussão é fundamental para essa dissertação, uma vez que a hipótese com que se trabalha é que os filmes de Hollywood tem como padrão envolver judeus em narrativas que os vitimizam, retratando o Holocausto, genocídio judeu promovido pelo regime nazista de Adolf Hitler na Segunda Guerra Mundial, e os árabes em narrativas sobre ataques terroristas, que os posicionam como os antagonistas das narrativas. Esse procedimento faz com que judeus tenham uma imagem de vítima construída pelo cinema, enquanto árabes são relegados ao papel de terroristas e propagadores de violência. 23

A segunda seção se dedica a uma narrativa sobre o Conflito Árabe-Israelense. Essa narrativa é importante, já que fundamenta a base para a escolha dessa pesquisa de fazer a contraposição entre as imagens de judeus e árabes nos filmes hollywoodianos. O conflito já dura mais de sete décadas e é de difícil resolução, sendo motivo de debates ao redor do mundo, nos quais se discute a responsabilidade de ambas as nações nos embates, muitas vezes estabelecendo-se uma narrativa de mocinhos e vilões, visão reducionista e que pode ser influenciada pela indústria de cultura de massa, discussão proposta para a dissertação. Essa discussão abre caminho para o debate da terceira seção, que trata do conceito de Orientalismo de Edward Said (1996), além das discussões sobre representação e estigma no cinema. Na última seção do quarto capítulo aprofunda-se a explicação da metodologia utilizada no trabalho, a Análise de Conteúdo, além da explicação das categorias de análise que serão utilizadas no capítulo seguinte. Também há espaço para a discussão sobre a construção dos personagens de uma narrativa de ficção, especialmente a construção de antagonistas e protagonistas, essencial à análise aqui proposta. O quinto capítulo consiste na Análise de Conteúdo dos cinco filmes escolhidos para essa pesquisa. Cada seção do capítulo corresponde a um filme, e é iniciada por uma pequena biografia dos diretores responsáveis pelas produções: Steven Spielberg, responsável por “Lista de Schindler” e “Munique”, , diretor de “Bastardos Inglórios”, David Lean, responsável por “Lawrence da Arábia” e Kathryn Bigelow, diretora de “A Hora mais Escura”. A biografia dos autores, à primeira vista dispensável, se justifica pelo posicionamento dessa pesquisa, que acredita que são os diretores os responsáveis pelo estabelecimento da linguagem e da narrativa dos filmes. Como trabalhado anteriormente nesse capítulo introdutório, existe uma lacuna entre a representação e o que se deseja representar, e são os diretores os agentes que preenchem essa lacuna com suas visões, suas escolhas e preferências. Dessa forma, foi considerado importante discutir brevemente sobre suas origens. Em cada uma das seções, as biografias dos diretores são seguidas da análise de cenas importantes dos filmes, além do estudo de elementos técnicos fundamentais para a construção de significado em cada um deles, de acordo com as categorias de análise propostas ao fim do capítulo quatro. Por fim, no sexto capítulo são esquematizadas as ideias mobilizadas na dissertação e são apresentadas as considerações finais e resultados obtidos com a pesquisa.

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2. O CINEMA COMO CULTURA DE MASSA: O INCONSPÍCUO VETOR IDEOLÓGICO

Neste capítulo, tem-se como objetivo construir a base teórica em que se firmará a pesquisa aqui apresentada. Para isso, será realizada a revisão de uma série de teorias e conceitos provenientes de diversos campos e vertentes que auxiliarão na compreensão da ideia de cultura de massa, e consequentemente do cinema, como uma ferramenta para a propagação de ideais e valores. O que se pretende, portanto, é demonstrar por diversas vias que a cultura de massa tem a capacidade de criar e transformar pensamentos, estabelecer prioridades e até moldar políticas externas dos Estados. Na primeira seção, discute-se sobre o conceito da arte como expressão cultural de identidade e história. Argumenta-se que com o início da era da cultura de massa, há o afastamento das propriedades místicas da arte, aproximando-a de suas funções políticas. Na segunda seção, discute-se sobre a virada visual das Relações Internacionais nas últimas décadas. Primeiramente será desenvolvido um debate sobre a ligação entre a arte e a política através do conceito de estética de Jacques Rancière para em seguida discutir o papel da estética na configuração e reconfiguração social de uma comunidade. A terceira seção leva essa discussão mais adiante, ao propor que o cinema é um aparelho ideológico do Estado, sendo ferramenta para a hegemonia. Por fim, a última seção deste capítulo se dedica à investigação da construção de empatia e memórias protéticas, ou seja, artificialmente constituídas, por meio das produções cinematográficas.

2.1 Sociedade e cultura de massa There is nothing spontaneous, nothing natural, about human desires. Our desires are artificial. We have to be taught to desire. Cinema doesn’t give you what you desire, it tells you how to desire (ŽIŽEK, 2009)4

Com o processo de industrialização, iniciado no século XIX, a sociedade sofre uma mudança contundente em sua organização, que culminou com a ascensão de um novo tipo de sociedade: a sociedade de massa. Em “A Condição Humana”, originalmente publicada em 1958, Hannah Arendt discute que com a consolidação do sistema capitalista, a esfera pública, que se apresentava como o espaço de expressão da

4 “Não há nada espontâneo ou natural sobre os desejos humanos. Nossos desejos são artificiais. Precisamos que nos ensinem a desejar. O cinema não te dá o que você deseja, te diz como desejar.” (ŽIŽEK, 2009, Tradução livre). 25 singularidade humana, passa a ser regida pelos interesses do mercado de consumo. O efeito dessa transformação foi que as marcações entre os diferentes grupos sociais que formavam a sociedade foram diluídas, e os indivíduos passaram a ser absorvidos por uma massa que responde de forma similar ao sistema de produção e consumo imposto pelos detentores dos meios de produção. Esse processo se deu por meio da flexibilização dos limites entre as esferas privada, pública e social, que reduziu a experiência humana a uma alternância entre casa e trabalho (ARENDT, 1998). Para Arendt, a condição humana está conectada a três esferas, que se conectam ao trabalho, à obra (labor) e à ação5. Com o capitalismo, o trabalho, antes confinado na esfera social, se entrelaça à esfera privada, pois o trabalho e o consumo se tornam a centralidade da existência humana. Dessa forma, o ser humano perde seu status de indivíduo e se torna apenas uma engrenagem do sistema capitalista. A ação, por sua vez, perde seus traços de singularidade e passa a ser ditada pela cultura de massa, ela mesma um produto a ser consumido. A cultura de massas é vista por Arendt como um instrumento de homogeneização do comportamento humano, que engendra um processo que tem como resultado a eliminação de traços da individualidade humana. É com a ascenção da sociedade de massa, de acordo com a autora, que a esfera pública alcança um patamar no qual tem o poder de abranger e direcionar os membros de uma dada comunidade de forma igual. Os seres humanos perdem o controle da esfera na qual se fazia a política, a esfera pública, e a política passa a ser compreendida como política de governo ou política estatal, em oposição à política feita por indivíduos (ARENDT, 1998). A autora chama a atençao principalmente para os reflexos políticos da massificação da sociedade e da cultura, um dos principais deles a banalização do mal. Para Arendt, a massificação da sociedade e da cultura achata a existência humana e impede que os indivíduos reflitam sobre seus propósitos e sobre os impactos de suas próprias ações, ideia que ficou conhecida mediante o notório caso de Otto Adolf Eichmann, tenente-coronel de uma das unidades militares do Terceiro Reich, cujo julgamento foi acompanhado pela autora. Arendt compreendeu que Eichmann, responsável pela morte de milhares de judeus em campos de concentração da Alemanha nazista, não era um indivíduo essencialmente mau, ou um monstro. Era apenas um

5 A esfera privada é o local da obra, que se identifica como o conjunto de atividades necessárias à sua sobrevivência, e relacionadas às questões biológicas de todos os seres humanos (o que confere ao labor um caráter de atividade similar a todos os seres humanos), como comer e dormir. A esfera social é o lugar do trabalho, a criação de objetos e transformação da natureza, e, por fim, a pública, que é a esfera da ação, expressão da individualidade humana (ARENDT, 1998). 26 trabalhador cumprindo ordens diretas, que, pela redução de sua existência ao seu trabalho, não refletiu ou avaliou os resultados das ações que empreendeu em nome da hierarquia laboral. Para a filósofa, a ascenção de regimes totalitários é favorecida pela massificação, pois o indivíduo não tem mais espaço para os cálculos que Eichmann e seus semelhantes poderiam ter feito para salvar milhões de vidas (ARENDT, 1998). A cultura, para Arendt, é parte do lazer, que se opõe ao trabalho. Na sociedade massificada, o lazer também faz parte do labor, uma vez que é um produto a ser consumido, como parte do funcionamento biológico do indivíduo. Com o aumento do poder de consumo da população, passa a ser produzido um novo tipo de cultura, novos tipos de lazer e arte, com os quais se identificam os integrantes dessa nova massa da sociedade (ARENDT, 1998). A arte sempre teve o papel de ajudar as sociedades na formação ou confrontação de suas realidades, seguindo a expansão e o intercâmbio cultural entre elas, e evoluiu para assumir muitas formas e alcançar mais e mais pessoas através do tempo. Formas clássicas de arte - pintura, música, escultura, literatura - tiveram seus métodos ampliados e criaram um enorme conjunto de estilos que podem ser apreciados e apropriados por qualquer pessoa, e o advento da tecnologia das comunicações e o surgimento da cultura de massa foram ferramentas fundamentais para tornar as artes mais acessíveis e aumentar seu impacto nas realidades de todo o mundo (LEVINE, 2015). A arte tem sido usada para retratar e expressar importantes momentos históricos da história humana por milênios: os antigos egípcios usavam tinta nos palácios e nas paredes das pirâmides para contar as histórias de suas dinastias três séculos antes da Era Comum6, pintores modernos como Picasso e sua Guernica contariam a história da mortal Guerra Civil Espanhola por meio da pintura em 1937 e a canção “Testify”, de Rage Against the Machine, lançada em 1999, critica a manipulação de eventos mundiais pela mídia norte-americana. A arte, em todas as suas formas, é uma forma de eternizar os momentos históricos e de falar deles para diferentes públicos, usando estilo, cor, forma, para estabelecer uma linguagem comum que ultrapasse fronteiras e culturas. A arte é uma atividade que acompanha a humanidade há milênios, e no percurso do desenvolvimento das sociedades, adotou diferentes formas, propósitos e funções. As primeiras expressões artísticas realizadas pelos homens, as pinturas rupestres, tão antigas quanto qualquer vestígio da habilidade humana, tinham uma finalidade mágica para os

6 “Era comum” equivale à expressão não-secular “Depois de Cristo”. 27 povos que a produziam: esses povos acreditavam que ao representar, por exemplo, sua caça sendo atingida no peito por uma lança, tinham o poder de fazer com que aquela representação se tornasse real (GOMBRICH, 2015). A função ritualística da arte passaria posteriormente de mágica a religião, o que emprestava à arte o que Walter Benjamin (2012) chama de “modo de ser aurático” que é a conexão com a existência única de uma obra de arte, que indica a sacralidade das obras de arte. Com a possibilidade da reprodução técnica das obras de arte, a aura desaparece. A reprodução técnica da arte, que se iniciou com o advento da xilogravura, é potencializada com a litografia, a imprensa, a fotografia e as demais tecnologias de reprodução técnica da literatura, artes plásticas, música e outros, afastando o monopólio das artes das classes mais abastadas e aproximando-as das massas. De acordo com Walter Benjamin, isso provoca um grande abalo na tradição artística, uma vez que a reprodução das obras pode atualizar o objeto reproduzido, tendo como uma de suas consequências a eliminação do valor tradicional do patrimônio cultural, modificando radicalmente sua forma, função e propósito: [...] o valor único da obra de arte “autêntica” tem sempre um fundamento teológico, por mais remoto que ele seja: ele pode ser reconhecido, como ritual secularizado, mesmo nas formas mais profanas no culto do Belo. [...] com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emancipa, pela primeira vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do ritual. A obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de arte criada para ser reproduzida. [...] Mas, no momento em que o critério da autenticidade deixa de aplicar-se à produção artística, toda a função social da arte se transforma. Em vez de fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se em outra práxis: a política. (BENJAMIN, 2012, p. 171).

Dessa forma, a partir do momento que passa a ser tecnicamente reprodutível, a arte abandona seu aporte místico e adentra a arena política. O cinema, criado ao fim do século XIX, nasce como cultura de massa, em meio às possibilidades de sua reprodutibilidade técnica, e, portanto, desde o princípio opera no campo político. O desenvolvimento de tecnologias e práticas que impulsionavam a reprodução técnica das películas fez com que o cinema alcançasse seu grande potencial em relação à adesão do público e lucro. Essa ideia será retomada à frente. A difusão da obra cinematográfica é, na realidade, obrigatória à sobrevivência do cinema, uma vez que essas produções são tão dispendiosas que acabam por diferenciar o cinema das outras artes: enquanto uma pintura ou escultura poderia ser comprada por um único consumidor e aquela transação cobriria os custos da produção artística, no cinema não basta que um consumidor adquira a obra para que seus custos sejam cobertos e o artista tenha lucro. Em 1927, eram necessários 28 nove milhões de espectadores para que um filme fosse rentável (BENJAMIN, 2012)7. Atualmente, os custos de produção e marketing dos grandes blockbusters estadunidenses são muito superiores à década de 1930, com a inserção e tecnologias diversas e a propulsão mundial dos filmes, o que decerto aumenta o número de espectadores necessários para que um filme gere lucro. Disso decorre a necessidade de ter redes cada vez mais extensas de distribuição para alcançar um público cada vez maior. Compreende-se, então, que o advento da era industrial, a urbanização e o acesso das classes menos favorecidas aos produtos culturais como o cinema fez com que se iniciasse, na história contemporânea, uma civilização de mídia e cultura de massa. Esse novo modo de consumo e propagação cultural foi alvo de diversas críticas por parte do que Umberto Eco (1974) chama de homens de cultura, elite intelectual da época. Os primeiros críticos são chamados por Umberto Eco de apocalípticos. O grupo dos críticos apocalípticos, formado por intelectuais como Nietzsche e Ortega y Gasset, começou a expressar preocupação e desconfiança com o igualitarismo da cultura de massa, com a ascensão das massas ao poder de consumo desses novos produtos, e da nova visão de mundo construída a partir da visão do homem comum. Para Eco, essa linha de crítica demonstra um viés aristocrático, que se camufla como crítica à cultura de massa, mas na realidade aponta para a própria massa, para a população que passa a ter acesso à cultura. Essa linha de críticos: [...] só aparentemente distingue entre massa como grupo gregário e comunidade de indivíduos auto responsáveis [...], porque no fundo, há sempre a nostalgia de uma época em que os valores da cultura eram um apanágio de classe e não estavam postos, indiscriminadamente, à disposição de todos (ECO, 1974, p. 36).

Para outra vertente dos apocalípticos, a cultura de massa ainda é alvo de críticas duras, que não apresentam teor tão aristocrático, mas tem como intenção fazer um alerta sobre como a cultura de massas pode ser nociva às próprias massas. Discute-se a desconfiança em relação a “[...] um poder intelectual capaz de levar os cidadãos a um estado de sujeição gregária, terreno fértil para qualquer aventura autoritária” (ECO, 1974, p.37). Dwight McDonald, por outro lado, critica o consumo de cultura de forma procrastinadora, ou seja, por meio da banalização da arte e das informações, de forma a tornar tudo mais facilmente digerível. Mesmo nessa crítica Eco vê algumas questões de ressentimento aristocrático. O autor, então, critica os apocalípticos ao perceber que eles

7 Na próxima seção deste capítulo, será apresentado o contraponto de Jacques Rancière a Walter Benjamin, no tocante à politização da arte. 29 não apenas criticam a mudança da sociedade, mas passam a criticar a sociedade em si. Criticam a ascensão das classes mais baixas à condição de fruidoras8 (ECO, 1974). O segundo grupo de críticos da cultura de massa é nomeado pelo autor de “críticos integrados”. Esses críticos fazem proposições que se prestam à defesa da cultura de massas. Eco critica-os por muitas vezes apresentarem um discurso simplista e por fazerem defesas da cultura de massa por serem ligados a seus produtores, ou por talvez serem otimistas demais quanto às suas consequências. Eco então expõe as defesas da cultura de massa pelos integrados: defendem-na ao colocá-la como catalisadora de um sistema ideal, em que há oportunidades iguais de acesso à cultura. Do mesmo modo, livram a cultura de massa da acusação de que está substituindo uma dita cultura superior, afirmando que ela não o faz. Essa cultura apenas se difunde em massas que antes não tinham acesso a tal cultura superior (ECO, 1974). Defendem também a cultura de massa no que tange a crítica à homogeneização do público, feita pelos apocalípticos. Argumentam que, ao criar médias de gostos e homogeneizá-los, promovem a unificação de sensibilidades nacionais, desenvolvendo funções de “descongestionamento anticolonialista” (ECO, 1974, p. 47). Conferem à cultura de massa a responsabilidade pela sensibilização do homem comum em relação ao mundo ao seu redor. Mesmo que de forma banalizada ou simplificada, é por intermédio da cultura de massa que o homem comum tem acesso a uma diversa e numerosa gama de informações. Esses novos meios de perpetuar a cultura não são conservadores, de acordo com Eco: Pelo fato mesmo de constituírem um conjunto de novas linguagens, têm introduzido novos modos de falar, novos estilemas, novos esquemas perceptivos [...]; boa ou má, trata-se de uma renovação estilística, que tem, amiúde, constantes repercussões no plano das artes chamadas superiores, promovendo-lhes o desenvolvimento (ECO, 1974, p. 48).

Para Eco, tanto os apocalípticos quanto os integrados se equivocam, ao adotar visões maniqueístas da cultura de massa. Os apocalípticos erram ao pensar que ela é de todo má, e os integrados erram ao pensar que é boa em si, sem ver espaço para críticas. Eco pensa que a reflexão não deve ser pautada pela pergunta “a cultura de massa é boa ou ruim?”. O problema correto, proposto pelo autor, é que se pense na cultura de massa

8 Eco concorda, porém, que a cultura de massa se dirige a um público heterogêneo, e ao almejar a captura desse grande público, encontra a solução na criação de médias de gosto que acabam por eliminar gradualmente a heterogeneidade cultural. A cultura de massa também encoraja uma visão passiva e acrítica do mundo, por eliminar o esforço da fruição: são produtos impostos de cima para um público acrítico, mascarando suas fragilidades por meio da fachada de ser cultura ao alcance de todos, onde todos têm as mesmas oportunidades (ECO, 1974). 30 como permanente, e que se trabalhe com a ideia de refletir sobre de que forma esses novos meios de comunicação podem veicular valores culturais (ECO, 1974). O autor pontua que o problema real da cultura de massa é que ela é manobrada por grupos econômicos que visam ao lucro, e que, portanto, não estão comprometidos com a veiculação dos valores culturais que são essenciais ao desenvolvimento intelectual e educacional das massas. Dessa forma, os homens de cultura, aqueles que estão aptos a fazer as críticas à cultura de massa, precisam se mobilizar para que o conteúdo que chega ao homem médio tenha informações úteis e benéficas a ele, e não somente benéficas aos grupos econômicos que controlam a cultura de massa. Defende que a cultura de massa pode ser um instrumento poderoso para a mudança de um sistema desigual, por ter a capacidade de munir de informações algumas parcelas da população que antes não tinham oportunidade de acessá-las. O que é mais importante é que a comunidade intelectualizada não se cale diante das produções desses grupos econômicos: há a necessidade de intervenção desse grupo, pois “O silêncio não é protesto, é cumplicidade; o mesmo ocorrendo com a recusa ao compromisso” (ECO, 1974, p. 52). Eco identifica que a comunidade dos homens de cultura é um grupo de pressão que deve se envolver mais responsavelmente com as produções da cultura de massa. Isso porque, de acordo com o autor, a cultura de massa não é necessariamente uma cultura produzida pelas massas. É cultura produzida por um mediador. Esse mediador deve ser um grupo que tenha a responsabilidade pelos conteúdos produzidos, para além do lucro que o conteúdo trouxer. Para o autor, a produção cultural é ideal quando “[...] não se exclui a presença de um grupo culto de produtores e de uma massa de fruidores; só que a relação, de paternalista, passa a dialética: uns interpretam as exigências e as instâncias dos outros” (ECO, 1974, p. 54). Dessa forma, Humberto Eco chama os críticos, tanto apocalípticos quanto integrados, a saírem de seus posicionamentos maniqueístas e adotarem atitudes mais responsáveis e ativas em relação a essa nova forma de produção cultural. Afinal, a cultura de massa demonstra que veio para ficar. Sua existência já não admite questionamentos. O esforço dos homens de cultura deve ser não de defendê-la ou acusá-la, mas sim de se estabelecer como um grupo de pressão que a regule, e que se comprometa com o esforço pela veiculação de valores culturais que beneficiem o homem médio, de forma a darem- lhe acesso a informações que possam talvez ser responsáveis pela libertação das massas (ECO, 1974). 31

Adorno e Horkheimer (1985) também apresentam críticas severas à cultura de massa. Assim como para Arendt (1998), ela é uma ferramenta de alienação da população9. Para os autores, a cultura de massa é produzida pelo que ficou conhecido como indústria cultural. Essa indústria é formada por diferentes meios de comunicação, como a imprensa e as redes de conteúdo televisivo e cinematográfico, que formam um sistema interligado de transmissões de informação coerente em si mesmo e que visa ao lucro. As produções da cultura de massa, de acordo com os autores, não têm necessidade de serem apresentadas como arte, pois já se tornaram um negócio. Adorno e Horkheimer acreditam que os frutos da indústria cultural são meras produções em série padronizadas, que dão “a tudo um ar de semelhança” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.57). Toda a indústria cinematográfica, por exemplo, é vista por eles como um sistema comum, de produções homogêneas. Há o esforço de críticos e estudiosos para enaltecer as produções de um país em detrimento de outro, ou favorecer certa técnica de montagem ou atuação em relação a outras. Um compromisso de separar as produções de qualidade do chamado lixo cultural produzido pela indústria. Hollywood, por exemplo, é popularmente conhecida por ser um polo cinematográfico de produções de blockbusters, as grandes produções cinematográficas, os filmes mais rentáveis da indústria. Por seu apelo popular, os blockbusters são vistos pela crítica como filmes de menor qualidade, em oposição aos filmes do cinema independente dos EUA e Europa, nos quais se enaltece um conteúdo mais aprofundado e, portanto, mais atraente para as elites culturais (ADORNO; HORKHEIMER, 1985). Essa diferenciação e hierarquização das produções cinematográficas tem muito a ver com as conclusões de Umberto Eco sobre os críticos apocalípticos, que defendem como cultura mais elevada aquela que é partilhada por poucos eleitos (ECO, 1974). Uma crítica de exclusão do popular. Porém, tanto para Hannah Arendt quanto para Adorno e Horkheimer, essa distinção é uma ilusão criada pela própria indústria cultural, para passar a impressão de pluralidade, concorrência e escolha. A ênfase dada às discussões sobre

9 Em “A ideologia da Sociedade Industrial, o homem unidimensional” (1973), Herbert Marcuse discute sobre a questão da arte e alienação. Assim como Arendt (1998), Marcuse defende que a arte sempre teve a alienação como característica, no sentido de que ao apreciar uma obra de arte, o indivíduo é transportado a uma outra realidade, esquecendo-se de sua própria. Essa é a forma produtiva de alienação pela arte, pois promove a contemplação e a reflexão. Na sociedade de massa, a alienação assume uma função menos produtiva, pois auxilia o sistema capitalista na alienação dos indivíduos de sua condição de trabalhador explorado. A cultura unidimensional, de massa, promove a oferta de um sistema de produção exploratório por intermédio da arte, que vende produtos, ideais e aspirações aos indivíduos por meio de produções artísticas que não se apresentam como propaganda, mas que o são, verdadeiramente. 32 conteúdo ou qualidade das produções deveria ser direcionada à utilidade da diferenciação entre elas (ARENDT, 1998; ADORNO; HORKHEIMER, 1985). Enquanto se discute o que é arte de qualidade ou não, passa despercebida a discussão sobre como a indústria cultural apresenta diferentes estilos de produção para que ninguém escape do direcionamento provido pela cultura de massa. Nesse processo, cada camada da população se identifica com certo tipo de produção, que ao fim tem o mesmo objetivo e resultado que as outras categorias de produções: a alienação da massa em favor de uma homogeneização de comportamento e identidade, por meio das produções culturais (ARENDT, 1998; ADORNO; HORKHEIMER, 1985). O conteúdo dessas produções é basicamente o mesmo, alterando apenas sua aparência, e está conectado à reprodução da vida do indivíduo comum das massas. Logo, desde o começo do filme a audiência já sabe como ele terminará, identifica quais as funções de cada personagem, por intermédio de estímulos feitos pela própria produção: música, luz e outros artifícios que dão as explicações sobre o que está sendo transmitido. O indivíduo compreende o caminho pretendido pela produção, pois tem sido treinado para desvendá-la a cada contato com a indústria cultural, e, ao fim, ao ver suas expectativas atingidas, se sente satisfeito (ADORNO; HORKHEIMER, 1985). Por sua vez, as produções cinematográficas tentam cada vez mais promover a identificação desses indivíduos com as situações e personagens dos filmes, por meio de produções que retratem algo que é percebido como familiar a todos, sem jamais ter ocorrido. E até mesmo as obras que supostamente causam disrupção do esquema convencional de produção cinematográfica servem ao mesmo propósito, pois “a compulsão permanente a produzir novos efeitos (que, no entanto permanecem ligados ao velho esquema) serve apenas para aumentar, como uma regra suplementar, o poder da tradição ao qual pretende escapar cada efeito particular” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 60). Dessa forma, a massa aprende a perceber sua vida como um prolongamento do filme, e o filme como prolongamento da vida. As produções cinematográficas adestram a população no processo de identificação contínua de quem é o protagonista, que será premiado, e o antagonista, que será punido, e o que é o Bem e o que é o Mal. Destarte, a cultura de massa encontra poucos impedimentos para transmitir ao público valores e ideias que serão naturalizados como individuais, mas que pouco têm a ver com as escolhas e pensamentos particulares (MARCUSE, 1973) 33

Os meios de informação têm o poder de fazer com que interesses, preocupações e sonhos sejam aceitos como aqueles que todos os indivíduos sensatos deveriam ter. “As necessidades políticas da sociedade se tornam necessidades e aspirações individuais, sua satisfação promove os negócios e a comunidade, e o conjunto parece constituir a própria personificação da Razão” (MARCUSE, 1973, p.13). Dessa forma, a própria ideia de liberdade na sociedade de massa passa a ser questionável, uma vez que a homogeneização do comportamento e aspirações, assim como a diferenciação entre filmes blockbusters e alternativos, fornece apenas uma ilusão de possibilidades de escolha. Em seu “Dicionário de Política”, Bobbio, Matteucci e Pasquino determinam que pela perspectiva racional só há liberdade quando há o conhecimento (BOBBIO, MATTEUCCI & PASQUINO, 1998). Karl Marx, por sua vez, declara que “Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram.” (MARX, 2011, p.25). Se o homem só pode recorrer a seu instinto para decidir suas ações, ele não é livre, pois não tem o instrumento fundamental à sua liberdade, que é o saber, a possibilidade de escolher. Dessa forma, pode-se compreender que a sociedade e cultura de massa não são formadas por homens livres, e sim por homens que acreditam ser livres para escolher suas preferências e futuro. Para Herbert Marcuse (1973), a homogeneização promove a chamada igualação de distinção de classes, na qual não há a eliminação das classes sociais, mas sim o compartilhamento do comportamento e aspirações que favorecem a preservação do status quo. Dessa forma, as necessidades sociais e as necessidades individuais passam a ser praticamente indissociáveis, e é então que os ideais dos produtores passam a ser introjetados nos receptores das produções culturais. O aparato produtivo e as mercadorias e serviços que ele produz "vendem" ou impõem o sistema social como um todo. Os meios de transporte e comunicação em massa, as mercadorias casa, alimento e roupa, a produção irresistível da indústria de diversões e informação trazem consigo atitudes e hábitos prescritos, certas reações intelectuais e emocionais que prendem os consumidores mais ou menos agradavelmente aos produtores e, através destes, ao todo. Os produtos doutrinam e manipulam; promovem uma falsa consciência que é imune à sua falsidade. E, ao ficarem esses produtos benéficos à disposição de maior número de indivíduos e de classes sociais, a doutrinação que eles portam deixa de ser publicidade; torna-se um estilo de vida. (MARCUSE, 1973, p.32) Portanto, são as lideranças que detém o controle da indústria cultural que têm o poder de decidir o que será seguido pelas massas. Decidem o que é certo e errado, e o que é verdadeiro e falso. Não há espaço para discussões, e não há diferença entre o julgamento 34 feito por essas lideranças e a sua decisão e denominação de um determinado assunto, em relação ao que chega ao grande público. São essas lideranças que determinam como as massas se expressam, como pensam e o que almejam: Ao descreverem "por si mesmas" a situação política, seja a de sua cidade natal, seja a do cenário internacional, elas [as criaturas] (e o termo "elas" também inclui a nós, os intelectuais que conhecemos a situação e a criticamos) descrevem o que o "seu" meio de comunicação em massa lhes diz - e isso se funde com o que elas realmente pensam, veem e sentem. Ao descrevermos uns para os outros os nossos amores e ódios, sentimentos e ressentimentos, devemos usar os termos de nossos anúncios, nossos cinemas, nossos políticos e nossos best-sellers. Devemos usar os mesmos termos para descrever os nossos automóveis, alimentos e móveis, colegas e competidores - e nos entendemos uns aos outros perfeitamente. Tem necessariamente de ser assim, porque a linguagem nada tem de particular e pessoal, ou, antes, porque o particular e pessoal é mediado pelo material linguístico disponível, que é material social (MARCUSE, 1973, p.183). Essa visão é compartilhada por outros pensadores, como Paulo Freire, que, em “Pedagogia da Autonomia” (1996), propõe que a televisão e as mídias em geral apresentam conteúdos que podem se apresentar como neutros, mas não o são. Aponta que toda comunicação de massa é feita em defesa ou em favor de algum ideal, contrapondo- o a um outro ideal, quer isso seja feito de forma sutil ou explícita. Freire levanta novamente a questão da ocultação dos propósitos da comunicação: a cultura de massa se apresenta como lazer ou fonte de informação neutra, mas está carregada de ideologia e parcialidade. Paulo Freire lembra que a consciência crítica é uma ferramenta que deve ser trabalhada ininterruptamente para que não seja esquecida a função política da cultura de massa (FREIRE, 1996).

2.2 Estética: arte e política Art has always been a handmaiden to revolution, and culture its fuel, for no other reason than because social and political (inter)action are inherently symbolic and performative, and thus inherently aesthetic and affective (LEVINE, 2015, p.1278)10. A palavra “estética” é comumente conectada com a ideia do belo, mas tem sua origem na palavra grega aisthesis, que significa sentir. A raiz da palavra, aisth, está conectada ao sentir, mas não ao sentir por intermédio de sentimentos, mas sim à percepção através dos sentidos, de uma rede de percepções físicas. As questões

10 “A arte sempre foi uma serva da revolução, e a cultura seu combustível, por nenhum outro motivo que não a natureza inerentemente simbólica e performativa, e, portanto, estética e afetiva das (inter)ações sociais e políticas.” (LEVINE, 2015, p.1278, tradução livre). 35 relacionadas à estética foram trazidas à tona primeiramente por Platão, ao discutir a criação, a arte, sua relação com as emoções e seu impacto sobre os fruidores. Aristóteles também se ocupou da discussão da estética em sua mais conhecida obra, “Poética”, conectando seu estudo ao da ética e lógica. Na Filosofia, é utilizada pela primeira vez no século XVIII por Alexander Baumgarten, que a define como a ciência da percepção, conceito que seria amplamente discutido por diversos filósofos e acadêmicos a partir de então (SANTAELLA, 1994). A estética, para Rancière, é um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência. Para Jacques Rancière, a política e a expressão artística têm uma origem comum: ambas são nascidas da estética e operam através do que chama de “sensível”, utilizando o termo de Platão para a realidade a que se tem acesso, oposta ao mundo das ideias. Para Rancière, tanto a arte quanto a política têm a capacidade de organizar o sensível, de dar a entender e de construir a visibilidade e a inteligibilidade de acontecimentos. A maior percepção da aproximação entre arte e política se deu através da estetização da política, fenômeno que se segue ao surgimento da sociedade de massa. Nessa sociedade, a imagem midiática pode ser uma poderosa ferramenta ideológica, assegurando o poder àqueles que a controlam (RANCIÈRE, 2005). Para o filósofo, a política sempre teve uma dimensão estética, que ele aborda em seu livro “A partilha do sensível”, de 2005. A política dá forma à comunidade por meio da partilha do sensível, do encontro discordante de percepções individuais. A partilha do sensível pode ser compreendida como: [...] o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha. [...] A partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce. Assim, ter esta ou aquela "ocupação" define competências ou incompetências para o comum. [...] A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo. (RANCIÈRE, 2005, pp. 15-17)

Dessa forma, compreende-se que a política trata da partilha do comum e da junção de partes exclusivas. Compreende-se, então, que um regime político só é democrático se incentiva multiplicidade de informações dentro da comunidade. A arte, por sua vez, é 36 composta dessas práticas, que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e das organizações espaciais, dando visibilidade para aquilo que antes não era visto. A arte trabalha com a distribuição e redistribuição de lugares. (RANCIÈRE, 2005). O filósofo aponta que a arte tem uma função comunitária, que é de construir novos espaços de partilha do sensível. As vanguardas artísticas são responsáveis por expandir e moldar o tecido das comunidades, trazendo à vista ideias, indivíduos e situações que haviam sido negligenciadas anteriormente na partilha do sensível: “a arte consiste em construir espaços e relações a fim de reconfigurar material e simbolicamente o território do comum. [...] [um] modo de ocupar um lugar onde as relações entre os corpos, as imagens, os espaços e os tempos são redistribuídos” (RANCIÈRE, 2010, p. 19). A relação entre os dois conceitos, que compartilham o surgimento e a mobilização do sensível para organizar e retratar a sociedade e a comunidade, se dá através das questões explicadas anteriormente: a estética da política e a política da estética. Se relacionam na medida em que as práticas e formas de arte intervêm na partilha do sensível, reconfigurando-a, recortando espaços, redistribuindo papéis e dando vozes àqueles que não eram ouvidos: "a arte é considerada política porque mostra os estigmas da dominação, porque ridiculariza os ícones reinantes ou porque sai de seus lugares próprios para transformar-se em prática social" (RANCIÈRE, 2012, p.52) E é disso que trata a Estética, como campo de estudo. Não do belo, da perfeição técnica, e sim da inscrição de um novo modo de apreensão do sensível, trazendo uma nova forma de vida individual e coletiva, uma nova humanidade (RANCIÈRE, 2012). Porém, é preciso que se compreenda que Rancière defende que a conexão entre expressão artística e política se deu muito antes do fenômeno da estetização da política defendida por Walter Benjamin, trabalhada na primeira seção desse capítulo. Para Benjamin, a partir da possibilidade de reprodutibilidade técnica da arte, ela passa a se colocar a serviço da política. Para Rancière, a relação não deve ser compreendida como uma captura perversa da política por uma vontade de arte, e não há um momento específico da história em que expressão artística e política se entrelaçam. Outra diferença fundamental entre os autores é a visão sobre a relação entre a visibilidade das massas e o sucesso das artes mecânicas (fotografia e cinema). Para Benjamin, o surgimento e popularização dessas modalidades artísticas fez com que as massas fossem melhor representadas e mais vistas. Para Rancière, o contrário: o sucesso das artes mecânicas se deu justamente por dar visibilidade ao indivíduo comum. O anônimo, o banal, ao se 37 tornarem objetos da arte, fazem com que as manifestações artísticas alcancem o grande público e consequentemente tenham maior visibilidade (RANCIÈRE, 2005). Assim, defende que a revolução técnica se dá após a revolução estética, que caracteriza como “a glória do qualquer um”. Defende ainda que a visibilidade das massas no cinema e fotografia são um produto da revolução estética que se inicia na literatura e alcança também a História (RANCIÈRE, 2005). Até o século XIX, a literatura tinha grande papel na partilha sensível, pois circulava indiscriminadamente por diversos lugares, com poucas distinções sobre quem teria acesso a ela. Esse acesso pode modificar essa configuração de lugares na política, uma vez que, através da ficção, remodela a imagem de indivíduo e comunidade, dando acesso a outras realidades que possam também ser almejadas e disputadas. Apesar de serem publicados inúmeros romances ao ano em todo o mundo, de acordo com Rancière, o papel de alargar a percepção de mundo e comunidade é hoje feito pelo cinema, televisão e internet (RANCIÈRE, 2012). É esse alargamento que faz com que o estudo da estética e da arte sejam importantes para as discussões nas ciências sociais, e por conseguinte para as Relações Internacionais (RI). A arte oferece visões alternativas de mundo, provenientes de perspectivas e pessoas que não fazem parte do pensamento dominante. O engajamento político com a arte, porém, provoca certo ceticismo tanto aos cientistas sociais quanto aos próprios artistas. Para os artistas, esse engajamento é problemático pois acredita-se que esse comprometimento político pode ameaçar a independência da arte e dos artistas. A suposição de que a arte tem um dever político a cumprir pode fazer com que essa expectativa atrapalhe o fluxo criativo e de produção dos artistas. Ao mesmo tempo, reconhece-se o valor da arte como modificadora de perspectivas e veículos para vozes silenciadas, como já trabalhado. O impasse se resolve, pelos artistas, no caminho indicado pelo poeta alemão Hans Magnus Enzensberger, que instrui que se a arte tem alguma obrigação política, é a de negar toda obrigação política, e falar a todos, mesmo quando não fala de ninguém especificamente. Essa é a política da arte (BLEIKER, 2009). Por outro lado, ainda há dúvidas sobre a validade do estudo da arte como elemento que compõe o estudo da política por acadêmicos de Relações Internacionais, por exemplo, por acreditar que a política é séria demais para que se arrisque utilizando elementos de tão difícil compreensão e controle como a arte para analisar os dilemas da política mundial. De acordo com Roland Bleiker, o campo das RI está fundamentado na ideologia realista, o que contribui para o ceticismo quanto à utilização da arte em reflexões e análises do campo. Por ideologia realista compreende não só as posições associadas à 38 abordagem realista das RI, mas o pressuposto de que é necessário compreender e representar a política mundial independentemente de valores e ideais próprios. De que se deve capturar os fatos, sem ter que interpretá-los, de que se deve ver o mundo como ele é, e não como deveria ser, o que deixa pouco espaço para a subjetividade, a interpretação, e, por consequência, a arte (BLEIKER, 2009). Para esse impasse, a resposta é incômoda, porém certeira. Mesmo que se disponha a desenvolver uma pesquisa científica no campo das ciências sociais, haverá sempre a questão dos recortes que determinam o encaminhamento da investigação. Portanto, não há uma forma de se fazer uma análise ou representação de um evento político ou questão internacional de forma isenta e imparcial, uma vez que o corpus escolhido para a pesquisa, a metodologia e até a teoria utilizadas fazem com que a pesquisa tenha, sem dúvida, um viés ideológico (BLEIKER, 2009). A abordagem estética das Relações Internacionais tem um grande potencial para lidar com questões ligadas à construção e entendimento do mundo. Entretanto, as manifestações artísticas orientadas primeiramente para uma representação política não são as mais frutíferas para as abordagens estéticas pois frequentemente promovem um posicionamento específico e categórico. Para Bleiker, as manifestações artísticas mais significativas para as abordagens estéticas são aquelas que, como abordado anteriormente, não têm comprometimento explícito com obrigações políticas. Considera- se que esse tipo de arte tem valor tanto estético quanto político, porque transgride os limites entre privado e público, entre o eu e o outro. Fala de todos por não se referenciar a ninguém especificamente, ampliando as discussões sobre suas mensagens e, portanto, redimensionando a partilha do sensível (BLEIKER, 2009). A arte, porém, não está conectada somente ao movimento de disrupção da partilha do sensível que Rancière descreveu. Para o filósofo, a arte pode fazer parte da política ou da polícia. A arte conectada à política é esta de que tem se falado nessa seção: uma arte disruptiva, que atualiza lugares, redistribui funções e privilégios, e que aumenta o número de indivíduos que podem participar das grandes decisões das comunidades. Há, por outro lado, a arte que está conectada ao que Rancière chama de polícia. Para o filósofo, polícia não é apenas o que se conhece como a força estatal de controle, mas também tudo aquilo que se relaciona ao “[...] conjunto dos processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes, a distribuição dos lugares e funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição” (RANCIÈRE, 1996, p.41). Logo, 39 a arte conectada à polícia é aquela que opera em função da manutenção do status quo, da proteção de interesses das elites. Bleiker também defende a ideia de que a estética nem sempre é utilizada em favor da vanguarda e da redistribuição da partilha do sensível, mas que pode ser utilizada para a manutenção de uma estrutura opressiva ou violenta. Para o autor, estética, política e ética estão entrelaçadas de forma inevitável, e todos os posicionamentos políticos (sejam eles progressivos ou conservadores) tem uma estética própria. Ao mesmo tempo que a arte pode nos levar a reconhecer vozes e perspectivas que antes não tinham lugar no discurso dominante, pode também nos enganar e confundir, reiterando vozes dominantes como corretas, e vozes subjugadas como marginais e desimportantes: “A beleza estética poderia nos desencaminhar, por assim dizer, sedutoramente promovendo e, ao mesmo tempo, disfarçando uma visão do mundo que é inerentemente perigosa, talvez até maligna” (BLEIKER, 2009, p.10, tradução livre11). Nesse tema, é importante lembrar da extensa produção da cineasta alemã Leni Riefenstahl, e de toda a estética construída em favor do regime Nazista nas décadas de 1930 e 1940 na Alemanha. Para a constituição dessa estética, símbolos de antigas civilizações que remetiam à ideia de poder foram retrabalhados pelo regime, tanto em produções cinematográficas quanto publicações, e até mesmo em seu símbolo mais reconhecido, a suástica. A cruz gamada, outro nome para a suástica, é um símbolo que tem origens nas mitologias hindu e budista, e é uma representação ancestral da força divina que traz a vida para o universo. Em diversos filmes de Riefenstahl, como o famoso “Triunfo da Vontade”, outros símbolos são retrabalhados. Um dos maiores exemplos é a imagem da águia, pássaro utilizado por civilizações como os astecas para representar o Ser Divino, símbolo de força e beleza. Essa reapropriação de símbolos tem como objetivo a construção da imagem do governo nazista como a reintegração da força alemã, do reerguimento do país após anos de crise econômica e desintegração social. Durante os anos em que o regime nazista esteve no poder na Alemanha, essa estética seria utilizada e reiterada para assegurar os alemães dos benefícios de Hitler como Führer, e do Terceiro Reich como modo de organização política. Com a aplicação e difusão dessa estética, o regime obteve apoio popular para um aparato puramente racista e militarista, que seria responsável pelo mais reconhecido genocídio da história humana (BARBOSA, 2014).

11 “Aesthetic beauty could lead us astray, so to speak, seductively promoting and at the same time disguising a vision of the world that is inherently dangerous, perhaps even evil.” (BLEIKER, 2009, p.10). 40

De tudo isso, pode-se depreender que a estética não tem natureza boa ou má. A estética não é necessariamente progressista, nem reacionária. Pode ser vista, simplesmente, como um amplificador de ideologias e visões políticas, posicionamentos e abordagens sobre diferentes questões, adicionando uma nova dimensão a eles. Logo, a estética não nos absolve de ter que pensar criticamente sobre o que recebemos ao formular nossas decisões políticas. A estética, enfim, não está imbuída de ética, pois não existe, de acordo com Rancière, um critério que estabeleça uma correspondência direta entre a estética e a ética (RANCIÈRE, 1996). O engajamento estético não fornece respostas definitivas, não estabelece o que é bom ou mau. É oposto de um dogma, pois nos apresenta fatos, mas não declara postulados, nem estabelece rótulos ou respostas diretas. Desse modo, a arte não se oferece como uma verdade ou como a cura para estruturas de opressão, mas sim como um caminho para que os acontecimentos passados possam ser compreendidos de formas diversas, de forma que se possa ter uma nova visão de como se configurará o futuro (BLEIKER, 2009).

2.3 Cinema: ideologia e hegemonia Slowly, ideas lead to ideology, lead to policies that lead to actions. (NILEKANI, 2009)12 Nas seções anteriores, foi possível compreender como a cultura de massa é um veículo poderoso de propagação de ideias através da estética, que faz com que valores sejam internalizados por indivíduos como se fossem naturais e particulares. O cinema, como produto da cultura de massa, tem o poder de vender estilos de vida, produtos, ideias e o que mais for conveniente e lucrativo para seus produtores e estúdios. Para além do público consumidor interno dos Estados Unidos, as produções hollywoodianas também têm impacto em espectadores em outros Estados, já que o cinema estadunidense tem grande penetração em mercados em todo o mundo13. Assim, o cinema pode ser visto como uma ferramenta da hegemonia estadunidense. Louis Althusser (1980) já havia indicado a conexão da cultura com a aparelhagem estatal, ao sofisticar a crítica à função política e ideológica da cultura de massa, classificando-a como parte do Aparelho Ideológico do Estado. O autor propõe que as instituições chamadas por Marx de Aparelho do Estado, quais sejam: o governo, a

12 “Devagar, ideias levam a ideologias, que levam a políticas, que levam a ações.” (NILEKANI, 2009, tradução livre) 13 Essa afirmação será discutida mais amplamente no próximo capítulo. 41 administração, a polícia, as Forças Armadas, os tribunais, prisões etc. são o Aparelho Repressivo do Estado (ARE). De acordo com o autor, a ele deve ser acrescido o Aparelho Ideológico do Estado (AIE), sem os quais o sistema não tem a capacidade de firmar-se. De acordo com o autor, o AIE são “[...] um certo número de realidades que se apresentam ao observador imediato sob a forma de instituições distintas especializadas” (ALTHUSSER, 1980, p.43), como por exemplo as igrejas, as escolas, as famílias, os partidos, entre outros. Nessa categoria entram também a indústria cultural e os meios de comunicação. Os diferentes aparelhos de Estado (ARE e AIE) funcionam de forma oposta e complementar: enquanto o ARE funciona por meio da violência, o AIE funciona pela ideologia (ALTHUSSER, 1980). As instituições do ARE reprimem e coagem os indivíduos a se conformarem ao sistema vigente. Já os aparelhos ideológicos do Estado, como o cinema, contribuem à manutenção do status quo ao disseminar ideais que o favorecem. É importante salientar que, enquanto o ARE é formado por instituições essencialmente públicas, o AIE é formado, em sua grande maioria, por instituições que não possuem estatuto público, sendo essencialmente privadas. Dessa forma, seria relevante questionar qual o ganho dessas instituições na manutenção do status quo. Ora, pensando na lógica marxista, o Estado é um aparato utilizado pelas classes dominantes para que assim se mantenham, e são também as classes dominantes que detém o poder da maioria das instituições privadas. Portanto, o Estado, e por consequência as classes dominantes, se sustentam por meio das instituições públicas e privadas (ALTHUSSER, 1980). Dessa forma, a cultura de massa pode ser compreendida como mais um aparato que suporta as relações de poder no sistema capitalista. Entende-se também qual os valores e ideais disseminados pela indústria cultural: aqueles defendidos pelas classes dominantes, que reproduzem as relações de produção. Para Althusser:

[...] os AIE representam a forma na qual a ideologia da classe dominante deve necessariamente realizar-se, e a forma com a qual a ideologia da classe dominada devem necessariamente medir-se e afrontar-se, as ideologias não «nascem» nos AIE, mas das classes sociais envolvidas na luta de classes: das suas condições de existência, das suas práticas, das suas experiências de luta, etc.. (ALTHUSSER, 1980, p.120)

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A defesa do AIE como instituição necessária à manutenção do Estado está em consonância com o pensamento de Antonio Gramsci14 (2007), que defende que o Estado é formado pela sociedade política e a sociedade civil, fundamentais à sua sobrevivência. Em correspondência, o Aparelho de Repressão do Estado de Althusser seria a sociedade política de Gramsci, e o Aparelho Ideológico do Estado seria a sociedade civil gramsciana. Para Gramsci, a supremacia da classe dominante pode ser estabelecida através da força ou do consenso, criando duas situações distintas: o domínio, que se dá através do exercício de poder sem a permissão crítica do governado e, portanto, por intermédio da coerção, e a hegemonia ética, que se dá através da liderança moral e intelectual sobre o governado e, logo, por meio do consenso (RAMOS; ZAHRAN, 2006). Para Gramsci, a hegemonia seria uma direção moral e intelectual que se estabelece e exercita no campo cultural e das ideias, no caso, as ideias da classe dominante, que acaba, através do consenso, estabelecendo seus ideais como os adequados frente aos ideais dos governados (RAMOS; ZAHRAN, 2006). Desta forma, pode-se dizer que, para Gramsci, é através da sociedade civil, os aparelhos privados de hegemonia, as escolas, igrejas, jornais, meios de comunicação, que se estabelece a hegemonia das classes dominantes frente aos governados (RAMOS; ZAHRAN, 2006). Essa relação pode ser extrapolada do ambiente doméstico do Estado, em que a classe dominante é a burguesia, que estabelece hegemonia frente à classe trabalhadora, para o sistema internacional, onde as classes dominantes capitalistas utilizam-se da cultura de massa para estabelecer uma hegemonia frente a classes trabalhadoras de todo o mundo. Esse raciocínio vai ao encontro do movimento proposto por Immanuel Wallerstein em sua obra “World-system analysis: an introduction”, publicado originalmente em 2004. Para ele, o período entre a Primavera dos Povos e a Primeira Guerra Mundial foi um período crítico para o estabelecimento de estratégias de arenas sociais no sistema-mundo. A ideologia liberal havia prevalecido sobre suas concorrentes, o conservadorismo e o radicalismo, e se firmava como a nova geocultura do sistema-mundo. Geocultura, termo criado por Wallerstein em analogia a Geopolítica, são as normas e práticas discursivas

14 Reconhece-se que Gramsci trata da sociedade civil como um meio para a hegemonia, enquanto Althusser conecta o AIE à ideologia, e que os conceitos não são correspondentes. Nesta pesquisa, há uma tentativa de estabelecer correspondência entre a sociedade civil de Gramsci e o AIE de Althusser de forma leve, para indicar as similaridades nas funções políticas do aparato privado em ambos autores, baseando-se nas impressões de Carlos Nelson Coutinho (1992). 43 reconhecidas como legítimas em um sistema-mundo. Desta forma, a ideologia liberal se tornou, nesse processo, a geocultura do sistema-mundo em que os países estão inseridos (WALLERSTEIN, 2004). Desde então, essa ideologia tem se propagado pelo mundo cada vez mais conectado. De acordo com o autor, esse movimento teve como catalisadores diversos elementos, inclusive a ação de grupos que inicialmente contestavam os ideais liberais, como os grupos conservadores. A cultura de massa também foi importante para a propagação de ideias que fizeram com que a ideologia liberal fosse mais facilmente aceita pelas classes dominantes (WALLERSTEIN, 2004). Nessa pesquisa, especificamente, discute-se que a classe dominante estadunidense se utiliza das produções cinematográficas hollywoodianas para propagar ideias e valores liberais estadunidenses que são internalizados e posteriormente compartilhados por espectadores em diversas partes do mundo. Alguns exemplos são a ideia do “American way of life”, ou “estilo de vida americano”, baseada no trabalho, liberdade e consumo, e a do “self made man”, o homem que com seu trabalho e esforço consegue mudar sua situação socioeconômica. Para além de ideais e valores da sociedade estadunidense, o cinema foi amplamente utilizado como forma de propaganda de mercadorias e grandes empresas dos EUA, como a emblemática Coca-Cola e fabricantes de eletrodomésticos e produtos de beleza. A moda, os costumes, as aspirações, e de forma mais abrangente a sociedade de consumo foram disseminados para audiências em todo o mundo pelas produções cinematográficas estadunidenses, modificando culturas definitivamente. Essa ideia será mais extensamente trabalhada no próximo capítulo (GONÇALVES, 2000). A cultura de massa é diversas vezes percebida como uma cultura inferior e popular. Por essa percepção, tende-se a suavizar ou até mesmo eliminar o poder de disseminação de discursos ideológicos ou políticos. Porém, como foi possível discutir nessa seção, a cultura de massa, e no caso desta pesquisa as produções hollywoodianas, tem um papel forte na criação de imagens, estereótipos, ideais, sonhos e objetivos, e é, portanto, grande fonte de poder para os Estados. Para além de sua contribuição em nível estatal, a cultura de massa também tem como contribuição a formação de memória dos indivíduos, processo que será trabalhado na próxima seção.

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2.4 Cinema, memória e empatia Art is moral in so far as it wakes us. But what if it does the opposite? If it anesthetizes, sends us to sleep and opposes activity and progress? (MANN, 1996, p.175)15

O filme “Estranhos Prazeres” de 1995, dirigido por Kathryn Bigelow, com o roteiro de James Cameron e Jay Cooks, tem como trama uma realidade distópica na qual é uma cidade violenta, repleta de gangues, insurreições e abandono. Nesse contexto de desesperança e decadência, há uma grande demanda pelas wire trips, memórias de outras pessoas que são gravadas por dispositivos implantados em suas cabeças, chamados de “squids”. A gravação e comercialização das wire trips são ilegais, sendo combatidas pelas autoridades do filme de forma similar ao combate das drogas ilícitas atuais como a maconha, cocaína etc. Da mesma forma que as drogas reais, a droga fictícia é utilizada pelos indivíduos como forma de se desconectar de sua realidade: os usuários se veem dentro da memória alheia, numa realidade paralela, e, na maioria das vezes, mais prazerosa. O consumo das wire trips vicia os consumidores, que recorrem ao mercado alternativo para ter acesso ao produto, vendido pelo protagonista do filme, um ex-policial, vivido por Ralph Fiennes (STRANGE, 1995)16. Se no filme de Bigelow o compartilhamento de memórias é ilegal, pode-se dizer que fora da ficção o acesso a memórias alheias é feito de forma sistemática através das produções cinematográficas. Não é objetivo desta pesquisa apresentar os filmes como uma representação de verdades históricas, como são apresentadas as wire trips. Pelo contrário, o público espera que essas produções não sejam totalmente verídicas, e há uma preocupação dos diretores e produtores de elucidar o fato de que os filmes são obras de ficção, mesmo que baseados em histórias não ficcionais. Até os documentários, que se propõem a retratar parte da realidade17 sem elementos ficcionais, têm seu status de

15 “A arte é moral desde que nos acorde. Mas e se fizer o oposto? E se ela nos anestesia, nos põe para dormir e se opõe à atividade e ao progresso?” (MANN, 1996, p.175, tradução livre) 16 A trama do filme se desenrola a partir do assassinato de uma importante figura da militância negra em Los Angeles, seguido por outros assassinatos de pessoas da comunidade, fazendo referência ao episódio em que a gravação do assassinato de Rodney King vem a público nos EUA em 1991, causando diversas manifestações e revolta na capital do cinema mundial. O taxista, negro, foi parado e espancado até a morte pela polícia municipal, num episódio que muito se assemelha às narrativas hoje levadas à público nos EUA pelo movimento “Black Lives Matter” (RUSSELL-BROWN, 2017). Apesar do tom do filme, que enfatiza a luta pelas vidas negras ceifadas pelas autoridades estadunidenses, assunto extremamente importante da atualidade, esta pesquisa respeitará seu escopo e focará apenas na questão da memória retratada no filme. 17 É pertinente mencionar que neste trabalho não se utiliza o termo ficção como uma oposição ao que se chama de realidade. Por se acreditar que a realidade é construída discursivamente (LACAN, 1998), nessa pesquisa considera-se a oposição entre produções ficcionais e não ficcionais (documentários, produções jornalísticas e outros). 45 verdade questionado por questões como enquadramento, escolha de cenas e posicionamento de câmera (LIPSITZ, 1990). Apesar de a ficcionalidade notória do cinema e do questionamento da atribuição da verdade às suas produções, há de se discutir o poder dessa indústria de criar e remodelar memórias, que implicam no poder de identificação do público com seus semelhantes e com outros grupos sociais. Em seu livro “The Presence of the Past: Popular Uses of History in American Life”, publicado em 1998, os historiadores Roy Rosenzweig e David P. Thelen discutem a relação entre memória e identidade. A pesquisa surge a partir de um pressuposto popular que acusa os estadunidenses de serem ignorantes sobre sua própria História e, principalmente, sobre a História mundial. Os historiadores reconheceram que muitas pesquisas haviam sido feitas sobre a ignorância dos estadunidenses, mas poucos estudaram o que eles de fato conheciam e sabiam, e de que forma instrumentalizavam esse conhecimento (ROSENZWEIG; THELEN, 1998). Através de uma pesquisa muito bem fundamentada, levando em consideração entrevistas e dados quantitativos, Rosenzweig e Thelen chegam à conclusão de que na verdade os estadunidenses têm se interessado cada vez mais em História nacional e internacional. Em sua pesquisa, os autores demonstram diversos elementos que comprovam a afirmação, como o aumento do público em museus e em sessões de filmes de época, o crescimento do turismo histórico nacional e internacional, o aumento de interesse por festivais populares e até um movimento midiático nostálgico em relação a momentos históricos recentes (ROSENZWEIG; THELEN, 1998). É por meio desses elementos, sendo o cinema um dos maiores canais para que os entrevistados entrassem em contato com a história, que os estadunidenses criam suas imagens do passado, e é baseando-se nesse passado que escolhem como viver suas vidas. Relacionam o passado com suas experiências pessoais, formulando questionamentos em relações a suas origens e a seu futuro, sobre quem são e como desejam ser lembrados. Um discurso muito frequente na pesquisa dos historiadores por parte dos pesquisados foi o de querer fazer diferença no mundo e na vida das pessoas que os rodeiam, e que os planos para alcançar esses objetivos se baseiam em narrativas que apresentam relação direta com situações do passado, personalidades e heróis históricos. Assim, no presente, utilizam-se de suas próprias experiências e de seu conhecimento do passado para moldar suas expectativas e planos para o futuro (ROSENZWEIG; THELEN, 1998). Apesar do tom otimista da pesquisa, que inocenta os estadunidenses da ignorância pela qual são acusados, o fim do livro de Rosenszweig e Thelen traz algumas reflexões 46 que demonstram que o poder de racionalização da memória não funciona de forma holística. A história contada aos estadunidenses pelos filmes, museus e aulas de história é composta das narrativas dos vencedores. Portanto, o que se conhece da história está conectado a questões de raça, credo e origem, no qual brancos, católicos e de origem europeia são apresentados como os grandes heróis do passado. Em consequência, grupos como os negros, latinos e os povos nativos se sentem alienados da história estadunidense, ou por sua invisibilização, como é o caso dos negros, ou por sua falsa representação, no caso de latinos e indígenas. Dessa forma, a história estadunidense é dividida, e reproduzida, de formas diferentes como “nossa história”: uma pelos contemplados com a narrativa vencedora, e outras inúmeras por aqueles que se sentem alienados dessa narrativa, mesmo que a história “oficial”, reproduzida pela maioria dos professores, acadêmicos e historiadores, seja a que contempla os WASP’s18: protestantes anglo-saxões brancos (ROSENZWEIG; THELEN, 1998). A memória fabricada por discursos propagados pela cultura de massa em geral, pela educação formal como conhecemos, e pela tradição de historiadores (que cada vez mais passa a ser questionada), é chamada por Alison Landsberg (2004) de memória protética. Para a autora, a memória, e também a memória protética, são ferramentas através das quais é possível despertar a empatia de indivíduos por grupos ou povos que estejam sendo marginalizados ou passando por violações em seus direitos fundamentais, e, portanto, são valiosas como um meio pelo qual é possível trabalhar por políticas mais progressistas. Através de narrativas sobre o passado, presentes em diversas produções cinematográficas, é possível ativar memórias que criam espaços para a discussão de problemas recentes (LANDSBERG, 2004). Assim como a discussão da seção anterior, nesse ponto pode-se observar como as imagens e ideias da ficção podem ser reaproveitadas e transplantadas para a visão e discussão dos indivíduos sobre a realidade. Um bom exemplo nacional são novelas como “Terra Nostra” (1999), “Esperança” (2002) e “Órfãos da Terra” (2019)19, produções de dramaturgia brasileiras e bastante características da América Latina. As três novelas se baseiam em tramas que acompanham personagens que deixam seus países para recomeçar sua história no Brasil, para melhorar sua qualidade de vida ou para fugir de conflitos internos de seus próprios

18 WASP: “White Anglo Saxon Protestants”. A origem desse grupo e nomenclatura será discutida no próximo capítulo. 19 Novelas escritas por Benedito Ruy Barbosa, Benedito Ruy Barbosa e Walcyr Carrasco e por Duca Rashid e Thelma Guedes, respectivamente. 47 países. Essas obras podem ser instrumentos de ativação de memórias de brasileiros que auxiliem na discussão de questões de refúgio e migração internacional. Isso se explica pelo fato de o povo brasileiro ter origens múltiplas, ser miscigenado e conhecido por receber bem estrangeiros. A narrativa do esforço de famílias para se reestabelecer em um país estranho ativa memórias familiares dos indivíduos, muitos de ascendência estrangeira, e abre caminho para o estabelecimento de empatia entre esses indivíduos e aqueles que, na contemporaneidade, enfrentam o mesmo processo de migração ou fuga. Dessa forma, o surgimento do cinema, televisão e da cultura de massa em geral é uma ferramenta poderosa para a discussão de temas controversos e para a criação de laços entre grupos que não tenham tido contato uns com os outros, simplesmente pelo fato de que suas histórias não são mais privadas, e sim compartilhadas através das imagens e textos. A cultura de massa que trabalha com imagens, principalmente, ajuda no processo de revelar perspectivas que antes não eram conhecidas, e de personificar e corporificar um povo ou um grupo, trazendo nuances particulares e individuais que combatem estereótipos que antes caracterizavam todo o grupo (LANDSBERG, 2004). A memória protética é, portanto, uma memória pessoal, criada a partir de um encontro ou experiência de um indivíduo com um produto da cultura de massa, que ativa memórias próprias. Mesmo assim, a memória protética é também uma memória não natural, pois não é uma memória que se limite a um indivíduo, família ou grupo étnico ou social. Elas evocam um passado público, acessível a qualquer pessoa que tenha contato com aquela ferramenta de memória, seja ela um filme, uma novela, um documentário etc. Landsberg as chama de memórias protéticas pois, apesar de não serem naturais de um indivíduo, são utilizadas por ele de forma natural, criando novas sensações, novas pontes e reconhecimento, e possibilidades de empatia e engajamento ético com grupos que não estão presentes no dia-a-dia desses indivíduos (LANDSBERG, 2004). Em outra perspectiva, uma das descobertas de Rosenzweig e Thelen é de que sua pesquisa demonstrou que a memória é construída a partir da familiaridade e das experiências próprias dos indivíduos. Juntando essa informação ao fato também observado pelos autores de que a memória é construída a partir dos discursos de mídia, cultura de massa e outras fontes que não a memória efetivamente vivida pelos indivíduos, tem-se a conclusão de que esse processo tende a favorecer a construção de uma versão privada do passado e da história. A versão privada e individualizada da memória faz com que a empatia criada pelo aprendizado histórico se torne seletiva a grupos representados através de lentes mais compreensivas ou benevolentes, e que tenham características que 48 os aproximem mais do público que recebe aquelas informações. Em suma, a empatia que se espera que seja criada pelo aprendizado histórico pode acabar não se estendendo aos grupos mal representados, ou não representados, sendo esses, geralmente, aqueles que mais necessitam de reconhecimento e empatia (ROSENZWEIG; THELEN, 1998). Dessa forma, em consonância com a pesquisa aqui apresentada, a cultura de massa, e particularmente o cinema, objeto dessa pesquisa, é responsável pela criação de memórias em seus espectadores. É responsável pelo estabelecimento de conexões entre os povos representados e os fruidores. A discussão entre os benefícios e malefícios da criação dessas memórias ainda não encontrou sua resposta final: há os que defendem que essas memórias criam laços de empatia, outros que defendem que elas insulam e alienam mais os espectadores, mas o que está estabelecido é que a representação de diferentes grupos e a forma com que é feita interfere na visão dos espectadores sobre esses indivíduos, na ligação do resto do mundo com suas questões e demandas. Uma vez discutido o poder do cinema e da cultura de massa de propagar ideias sobre situações e grupos específicos de pessoas, o próximo capítulo terá como objetivo uma revisão histórica do contexto em que surgem as produções cinematográficas a serem analisadas nesta pesquisa. Portanto, serão discutidas a história de formação dos Estados Unidos da América, e a gênese do cinema e o surgimento da maior indústria cinematográfica do mundo: Hollywood.

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3. HOLLYWOOD COMO INDÚSTRIA DE CULTURA DE MASSA E A CONSTRUÇÃO IMAGÉTICA DO INIMIGO ESTADUNIDENSE

Neste capítulo, buscou-se realizar uma revisão histórica de questões que fundamentarão os estudos aqui propostos. É imprescindível apresentar ao leitor a base contextual que sustenta a análise dos filmes hollywoodianos que retratam árabes e judeus, objeto dessa pesquisa. Essa base é constituída pelas histórias do cinema, culminando no estabelecimento de Hollywood como maior polo de produção cinematográfica do mundo. A primeira seção será dedicada a essa trajetória. Serão investigadas as origens do cinema, o aumento de seu prestígio, a chegada de novas tecnologias, e uma breve discussão sobre a relevância do cinema hollywoodiano para a propagação de discursos pelo mundo. Afinal, as indústrias cinematográficas indiana, nigeriana, europeia e brasileira produzem muitos filmes a cada ano (algumas delas ainda mais filmes que Hollywood), então qual seria o ganho em focar apenas em produções estadunidenses e não de outros países? Através da discussão apresentada, será possível compreender o poder único de difusão da indústria hollywoodiana, e sua capacidade de propagar discursos e ideais. Na segunda seção, há um pequeno estudo sobre a construção da ideia do povo estadunidense como um povo eleito por Deus. Desde sua fundação, os Estados Unidos carregam uma ideia de responsabilidade por uma missão civilizatória mundial, durante a qual encontrarão alguns obstáculos. Eles variarão de acordo com a época, mas serão invariavelmente vistos como os inimigos da democracia e da liberdade, devendo ser combatidos e, por vezes, eliminados. Assim, discute-se como surgiu o mito do povo eleito e são apresentados alguns momentos históricos importantes para a manutenção desse mito e quais foram as consequências dessa ideia para a história dos Estados Unidos e do mundo. Uma dessas consequências mais recentes se deu após os atentados aos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001. Os ataques, que mataram milhares de pessoas e marcaram a história dos Estados Unidos como o maior ataque terrorista da história do país, foram justificados por seus idealizadores (de origem árabe) como uma ação em retaliação à presença violenta dos Estados Unidos no Oriente Médio em prol da missão civilizatória. Nessa época, foi inaugurada pelo então presidente George W. Bush a política da Guerra Contra o Terror, na qual os árabes passaram a figurar como o inimigo comum 50 no imaginário estadunidense, numa série de ações promovidas dentro e fora do território dos EUA.

3.1 Hollywood: a primeira indústria de cultura de massa Wonderful what Hollywood will do to a nobody. It will make a radiant glamour queen out of a drab little wench who ought to be ironing a truck driver's shirts, a he-man hero with shining eyes and brilliant smile reeking of sexual charm out of some overgrown kid who was meant to go to work with a lunchbox (CHANDLER, 1949, p.67)20. A invenção do cinema se dá num momento histórico decisivo para o desenvolvimento de novas tecnologias, e fértil para o crescimento de novas ideias em relação à arte e à sociedade: o século XIX. Em meio a revoluções sociais e tecnológicas, o mundo estava em constante mudança, e, em meio a esse contexto de transformações, conectado aos percursos inventivos de outros campos, é que se dá o surgimento do cinema. Diz-se que não é possível creditar a invenção do cinema a um só responsável, pois foi uma conjunção de fatores que fez com que houvesse um campo fértil para que inventores em diversos locais pudessem desenvolver novas tecnologias de projeção de imagens que eventualmente se transformaram no que hoje conhecemos como o cinema. Por exemplo, sem o surgimento da fotografia, em 1826, ou as diferentes invenções da época como o Fenaquisticópio de Plateau21 – de 1832 –, o Zoopraxiscópio de Muybridge ou o Zootrópio de Horner – de 1834 –, o cinema não teria sido descoberto (COSTA, 2005). As primeiras exibições fílmicas com o uso de um mecanismo intermitente se deram de forma quase simultânea em dois continentes diferentes. Em 1893, nos EUA, Thomas Edison registrou a patente de seu quinetoscópio, onde exibia pequenos filmes fabricados por William Kennedy Dickson com os negativos de suas fotografias. O quinetoscópio foi um sucesso estrondoso e imediato, e em poucos meses já era atração principal em salões de diversão do país, comprovando o potencial comercial do que viria

20 “É maravilhoso o que Hollywood faz com um ninguém. Faz uma radiante rainha glamour de uma pequena prostituta que deveria estar passando as camisas de um motorista de caminhão, um herói com olhos brilhantes e lindo sorriso esbanjando sensualidade de algum crianção que deveria ter ido trabalhar com uma lancheira” (CHANDLER, 1949, p.67, tradução livre) 21 A presença do Fenaquisticópio de Plateau na lista das invenções que precederam o cinema é curiosa: Plateau nada tinha a ver com a indústria do entretenimento. Era um físico belga, que se dispôs a estudar a locomoção animal e humana. Inventou o Fenaquisticópio, uma máquina que registrava a evolução de movimentos através de fotografias sequenciais. O dispositivo, além de auxiliar em sua pesquisa, serviu de base para as próximas invenções óticas que levariam à invenção do cinema como conhecemos (SKLAR, 1994). 51 a ser o cinema. Em 1895, na França, os irmãos Louis e Auguste Lumière fizeram a famosa projeção de “A Saída dos Operários da Fábrica Lumière” e “Chegada de um trem à estação de la Ciotat”. Sua primeira projeção, que se deu em uma sessão pública e paga, foi adotada como o marco da invenção do cinema. É conhecida a história de choque dos expectadores ao, pela primeira vez, assistirem a imagens em movimento. Conta-se que houve pânico por acharem que o trem estava vindo na direção do público e sairia da tela onde era exibida a película. Dessa forma, convencionalmente se credita a invenção do cinema aos irmãos Lumière e à França. As exibições de filmes alcançaram sucesso e se espalharam pelo mundo rapidamente, tendo exibições na América do Sul, África e Ásia já em 1896 (COSTA, 2005). A vitória da Revolução Francesa no fim do século XVIII havia dado à França o potencial de se tornar um importante polo de produção artística e tecnológica. Colocou o país no centro do mundo, tornando-o palco do surgimento de novas ondas estilísticas, novas correntes teóricas em diversos campos, e na ponta da reflexão sobre a arte, seus temas e seus procedimentos (GOMBRICH, 2015). Os irmãos Lumière, embalados por esse contexto inovador, adaptaram sua invenção ao mercado consumidor, inventando um sistema pré-industrial de exibição dos filmes, no qual forneciam o filme, o projetor (o mais leve da época, que facilitava para a captura e transporte das imagens) e também o operador. Esse sistema funcionou tão bem na França que no fim de 1895 o cinematógrafo já chegava aos Estados Unidos, para competir com o quinetoscópio de Edison22. Sentindo-se ameaçado pela chegada da tecnologia francesa ao país, Edison adapta seu aparelho para torná-lo competitivo e acaba por expulsar o cinematógrafo francês dos EUA em 1897, voltando a ser o mais influente nome no ramo cinematográfico da época (LANDIM, 2008). O sistema inventado pelos franceses havia se adaptado melhor às necessidades do público da época, já que, em seu primeiro momento, os filmes não eram consumidos da mesma forma que hoje, e sim fazia parte de uma estrutura cultural mais ampla, sendo exibidos em diversos locais como feiras, teatros, e principalmente nos chamados vaudevilles e penny arcades. Esses espaços eram teatros de variedades que consistiam em diversos espetáculos: peças de teatro, circo, curiosidades, declamação de poemas, atos de

22 À época, diferentes inventores em diversos lugares do mundo apostavam corrida uns com os outros para criar o equipamento mais moderno e acessível ao público, em busca do monopólio da exibição de filmes. O cinematógrafo tinha a vantagem de exibir os filmes para grandes públicos, enquanto o quinetoscópio era de uso individual, o que fez com que o aparelho dos irmãos Lumière fizesse sucesso estrondoso nos EUA (LANDIM, 2008). 52 acrobacia, apresentações musicais e, por fim, os filmes. À época, o cinema era visto como mais uma inovação tecnológica, mas ainda não era percebido como uma atividade promissora, ocupando apenas a posição de uma atividade secundária dos vaudevilles. Tampouco os filmes e o público dos primeiros anos do cinema se assemelhavam ao que hoje conhecemos: os filmes exibidos não tinham a temática narrativa que conhecemos hoje, mas sim uma estética de demonstração, e o público que frequentava esses espaços não fazia parte da elite econômica ou intelectual, o que colocava a exibição de filmes na categoria de atrações consideradas de baixo nível, uma vez que álcool e prostituição eram comuns nesses ambientes (LANDIM, 2008). Neste momento, é pertinente afastar brevemente o olhar dos ambientes de exibição cinematográficos para compreender o arranjo da sociedade estadunidense, que acabaria por contribuir ativamente para o crescimento dessa indústria de entretenimento de massa. Entre a década final do século XIX e a primeira do século XX, os vinte anos que resumem a trajetória do cinema desde seu nascimento até seu estabelecimento como grande indústria de cultura de massa no mundo, os EUA apresentam um ambiente de insulamento social. Esse insulamento foi fruto de um processo de transformação muito intenso sofrido pelas principais cidades estadunidenses da época (SKLAR, 1994). Essas cidades, onde até então pessoas de diferentes classes sociais habitavam os mesmos bairros e frequentavam os mesmos espaços, veem sua população dobrar rapidamente por conta da intensa onda migratória do século XIX, que trouxe milhões de europeus aos EUA. O aumento da população amplia a complexidade da organização urbana, do que decorre o insulamento social, em que se passa a observar que os ambientes frequentados pela camada mais rica da população e a classe trabalhadora são bastante distintos. O historiador Robert Sklar (1994) defende que houve um processo no qual as cidades estadunidenses deixaram de ser uma única comunidade para se transformarem em cidades com diversas comunidades, nas quais a origem e a classe social dos indivíduos determinavam seu local de moradia e o trabalho que desempenhariam. É nos espaços ocupados pela classe menos privilegiada e nos guetos de imigrantes que nasce o público para os vaudevilles e os nickelodeons (SKLAR, 1994). Na história do cinema, esse momento inicial é chamado de Primeiro Cinema, e abarca as primeiras duas décadas da que viria a ser conhecida como sétima arte. Esse período, que se deu entre 1895 e 1908, tem produções que, como dito anteriormente, são caracterizadas pela não-narratividade (COSTA, 2005). As temáticas das produções da época dividiam-se entre: 53

“(...) registros dos próprios números de vaudeville, atualidades reconstituídas, gags de comicidade popular, contos de fadas, pornografias, paisagens e quadros mágicos. Os filmes de perseguição também serão uma temática recorrente deste cinema, sendo extremamente relevantes para este período cinematográfico, pois trazem no seu próprio formato a junção entre narrativa e atrações.” (LANDIM, 2008, p.5) Os filmes de perseguição foram uma transição importante do Primeiro Cinema para a próxima fase das produções cinematográficas, pois o formato usado na época começa a cansar os espectadores, causando uma crise de público para o cinematógrafo (SADOUL, 1983). Os filmes de perseguição adicionavam elementos da narratividade, que seriam a grande inovação na nova indústria, a partir de 1903, e reavivavam o interesse do público pelas exibições. Essas produções apresentavam o esboço do que seria a construção de um espaço contínuo fictício, que caracterizaria a fase seguinte, mas não chegavam a romper com o primeiro cinema pois ainda estavam muito conectadas à ideia de cinema de atrações, que eram exibidos nas feiras e vaudevilles. Os filmes de atração tinham como objetivo mostrar à audiência uma série de cenas, enquanto o cinema produzido a partir de então se interessaria em contar uma história, se aproximando de forma mais evidente do formato dos espetáculos cinematográficos que existem hoje (COSTA 2005). À época, também o modo de exibir os filmes foi se modificando. Com o sucesso cada vez maior do cinema, a massificação de sua linguagem e exibição e a evolução da tecnologia de captar e exibir filmes, o cinema vai deixando seu papel secundário de lado, e passa a exigir maior protagonismo em suas exibições. Nesse momento, os vaudevilles passam a ser gradativamente substituídos pelos nickelodeons. Esses espaços nada mais eram que grandes armazéns, localizados principalmente em bairros de classe baixa, que eram transformados em salas rústicas de exibição dos filmes. Eram lugares abafados, malcheirosos e pouco confortáveis, mas que podiam abrigar um número maior de pessoas, que muitas vezes assistiam aos filmes em pé, e garantiam a lucratividade da atividade comercial (ALLEN, 1979). Os equipamentos da época ainda não eram capazes de captar sons, o que fazia com que nos nickelodeons houvesse um fonógrafo ou músico responsável por adicionar uma trilha sonora ao filme, de forma bastante livre. Esses espetáculos cobravam uma entrada de cinco centavos de dólar, conhecido como níquel (COSTA, 2005). A um desses armazéns, aberto por Harry Davis e John P. Harris em Pittsburg, em 1905, foi dado o nome de “Nickelodeon”, que combinava as palavras “nickel” (os cinco centavos da entrada) e “odeon”, palavra derivada do grego que significava “teatro coberto”. O nome 54 pegou, e os espaços comuns àquela época passaram a ser conhecidos dessa forma (ALLEN, 1979). Os nickelodeons e a indústria cinematográfica da época conservaram o público dos vaudevilles, ou seja, um público majoritariamente formado pelo proletariado, e predominantemente masculino23. Além do preço baixo, que atraía muitos espectadores, as características dos filmes produzidos naquela época contribuíram para que o cinema florescesse como uma atividade comercial extremamente vantajosa. As produções sem falas e texto, faziam com que os filmes da época conseguissem atrair a classe trabalhadora dos EUA, formada por analfabetos e inúmeros imigrantes, que muitas vezes ainda não haviam aprendido a falar inglês. Por ter uma linguagem imagética apenas, o cinema acabou construindo uma forma de entretenimento muito apreciada, por ser algo que todos poderiam compreender e aproveitar (COSTA, 2005). Nessa época a indústria cinematográfica começa a dar os primeiros passos para criar a organização que se tornaria uma atividade comercial extremamente lucrativa nas próximas décadas. É em 1902 que surge a figura dos distribuidores, que eram empresários que compravam os filmes das produtoras e os alugavam para os exibidores, geralmente os donos dos nickelodeons. Assim, a cadeia cinematográfica, que antes se resumia aos indivíduos que possuíam os equipamentos de captura de imagens e produziam e comercializavam esses filmes e os exibidores, que compravam o produto final dos produtores, assume um novo arranjo: dividia-se entre produtores, que continuavam sendo os que desenvolviam de forma industrial os produtos a serem exibidos, distribuidores por aluguel, que trabalhavam através do comércio atacadista, e exibidores, que tinham o contato direto com o púbico e operavam no varejo (SADOUL, 1983). A partir desse momento, as funções dos envolvidos nas produções se diversificam: surgem as funções de roteirista, diretor, produtor e outras, que aumentarão gradativamente através das décadas (SADOUL, 1983). Essa organização diminuiu os custos de exibição dos filmes, além de aumentar a disponibilidade e diversidade dos filmes a serem expostos para a população, resultando num aumento explosivo na quantidade de salas de exibição para filmes nos Estados Unidos. A maior quantidade de salas e a ampliação do público, resultando no aumento considerável da demanda por

23 Os produtores e exibidores reconheciam esse público alvo, e assim produziam muitos filmes que apresentavam temas eróticos para a época, de forma a atrair ainda mais espectadores. Isso, junto com o consumo de álcool nos nickelodeons, fazia com que esses espaços fossem considerados pela elite estadunidense como locais de baixo nível (COSTA, 2005). 55 filmes, fez com que as produtoras passassem a fazer cada vez mais filmes, empregando mais pessoas, aumentando os investimentos e, portanto, incrementando cada vez mais o processo industrial de produção e exibição de filmes (COSTA, 2006). O público dessas produções continuava sendo formado por pessoas de baixo poder aquisitivo, porém o preço acessível das exibições atraía cada vez mais espectadores, criando uma enorme demanda por filmes no país. No cinema, as classes trabalhadoras haviam encontrado uma resposta à sua demanda por atividades culturais nas maiores cidades estadunidenses. Ao mesmo tempo, os nickelodeons eram vistos pelas classes mais abastadas como mais um entretenimento imoral, similar às casas de azar e prostíbulos. Apesar das críticas dos jornais e das elites, os cinemas eram sucesso nas periferias, e passaram a ser mais que um lugar para diversão apenas, tornando-se centros de comunicação e informação para as grandes massas, que ansiavam por uma forma de entretenimento de fácil consumo, para distraí-los das longas horas de trabalho (SKLAR, 1994). Dessa forma, é comum dizer que o cinema foi a primeira grande indústria de cultura de massa do mundo, apresentando conteúdos de entretenimento, mas também de informação, para as massas trabalhadoras em todos os continentes. Não foi com alguma demora que a elite estadunidense passou a compreender a atratividade da indústria para esses indivíduos, e uma vez que se compreendesse como funcionava a rede de exibições de filmes e o conteúdo dos mesmos, era fácil que se perturbasse com as condições em que se desenvolviam esses eventos. A “nickel madness”24 se dava em locais insalubres e sem controle de público, o que resultava na presença de crianças e mulheres desacompanhadas, sem a supervisão de policiais ou qualquer autoridade, e tendo acesso frequente a conteúdos considerados impróprios (SKLAR, 1994). Mesmo assim, o cinema era febre nacional: em 1907 a cidade de Nova Iorque contava com mais de 500 estabelecimentos de exibição de filmes. Em 1909, esse tipo de atividade lucrava três milhões de dólares por semana e empregava mais de cem mil pessoas em todo o país. Os números demonstravam que a grande maioria dos noventa milhões de estadunidenses frequentava as exibições na época: em Boston, as salas de exibição comportavam, juntas, quatrocentos mil espectadores por semana, numa cidade com população de 625 mil pessoas, enquanto em Nova Iorque, esses estabelecimentos recebiam cerca de duzentos e cinquenta mil espectadores por dia (ARMOUR, 1990).

24 “Loucura do Níquel”, como a elite se referia à febre dos nickelodeons à época (SKLAR, 1994). 56

O sucesso da mais nova indústria de entretenimento começou a ameaçar formas mais tradicionais de diversão, e até a própria Igreja, que passou a competir com as salas de exibição pelo público para suas celebrações. Dessa forma, os competidores do cinema passaram a conjecturar maneiras de enfraquecer seu poder sobre as classes trabalhadoras. Essas tentativas viriam a se traduzir de diversas maneiras, mas a mais forte e determinante com certeza seria a da censura, baseada nas condições de exibição dos filmes e em seu conteúdo, o que contribuiria para uma mudança severa no modo de produzir os filmes nos Estados Unidos (ARMOUR, 1990). A censura se deu de formas diversas pelo país: em algumas cidades foram criadas leis que proibiam as exibições de filmes no domingo, em outras as leis restringiam o público, proibindo menores de dezoito anos de frequentar os locais de exibição, e ainda outras que restringiam o conteúdo dos filmes, alegando que as temáticas corrompiam a sociedade, dando maus exemplos aos espectadores ao exibir filmes com temáticas de assaltos, roubos e adultério25. As diferentes restrições tiveram impactos na cadeia de produção cinematográfica, aumentando as produções de filmes com temáticas religiosas, e fazendo com que os trabalhadores da já enorme indústria cinematográfica passassem a se organizar de forma a se defender dos ataques governamentais e sociais para continuar lucrando com as atividades comerciais das projeções (ARMOUR, 1990). Nesse contexto, a indústria cinematográfica estadunidense deu alguns passos que acabam por selar seu destino como a maior indústria do mundo no ramo, ultrapassando as indústrias europeias, principalmente a francesa, sua maior rival. Para compreender esses passos, é necessário que se entenda que a censura havia exposto algumas das fraquezas da cadeia de produção e exibição desses filmes. A primeira fraqueza se encontrava no fato de que era necessário que as salas de exibição estivessem em conformidade com o pedido das autoridades, e a segunda era de que o cinema deveria deixar de ser associado com a imoralidade. Para resolver isso, seria necessário mudar o conteúdo dos filmes, os locais onde eram exibidos e, consequentemente, o público que consumia essas produções (SMITH; SELZER, 2015). De forma a resolver essas questões, nasce em 1908 em Chicago a MPPC (Motion Picture Patents Company26), um órgão auto regulador formado por grandes produtoras

25 Por exemplo, em Chicago o prefeito submeteu os exibidores ao poder da polícia, que seria responsável por renovar ou não os alvarás de funcionamento dos seus estabelecimentos, e em Nova Iorque só poderiam ser exibidos filmes educacionais ou religiosos aos domingos (ARMOUR, 1990). 26 Em português, o nome do órgão corresponderia a “Companhia de Patentes de Filmes”. 57 de filmes do país. Chefiada por Thomas Edison, a MPPC era um truste dessas empresas, que tinham o objetivo de regular os filmes e locais de exibição, e obter controle da cadeia de produção cinematográfica. A MPPC é bem sucedida em seus primeiros anos, e o órgão consegue impactar a indústria cinematográfica de forma contundente: o truste monopoliza a produção fílmica através do controle de patentes de filmes e equipamentos, do licenciamento de estúdios e de um acordo de exclusividade com a Eastman Kodak Company, maior fabricante de rolos de filmes de 35mm do país, no qual ficava determinado que só venderia a matéria prima para produtores licenciados (SMITH; SELZER, 2015). A MPPC acaba por controlar a produção fílmica até 1915, até ser dissolvida por ordem do governo dos Estados Unidos após um processo contra a formação de truste, ilegal no país. Mesmo com poucos anos de atuação, as consequências das ações do órgão são diversas. As mais relevantes para este estudo se dão no âmbito do monopólio nacional da produção pelos estúdios licenciados, que acabam por bloquear a entrada da maioria dos filmes e produtores estrangeiros no país nos anos de ação da MPPC (SMITH; SELZER, 2015). Esse movimento acaba por nacionalizar a indústria e incutir nela certo sentimento protecionista. Outra consequência das ações da MPPC foi a recomendação dos temas que deveriam ser abandonados pelos produtores de filmes, de forma a elevar o nível das produções aos olhos das elites culturais do país. O movimento de abandonar temas considerados imorais por essas elites teve um papel central na transformação da indústria cinematográfica estadunidense, que fez com que ela se distanciasse de suas concorrentes à época (COSTA, 2005). A restrição do conteúdo dos filmes pelo governo e pela MPPC é o elemento responsável pela virada do cinema estadunidense, uma vez que, com as restrições, os novos temas propostos pelos produtores passaram a demandar mudanças na linguagem cinematográfica. A linearidade e a narratividade são lentamente introduzidas nas produções, que se tornam mais sofisticadas, exigindo o desenvolvimento de novos arranjos técnicos, como diferentes usos da câmera, cortes e enquadramentos. Esses novos elementos trazem maior complexidade aos filmes, que passam a atrair, para além dos públicos de baixa renda, as elites estadunidenses, fazendo com que as salas de cinema também passassem a figurar nos bairros mais nobres (COSTA, 2005). O aumento do público e seu maior poder aquisitivo aumentam também a receita da cadeia produtiva, retroalimentando a indústria e suas produções no país. Esse movimento separa as trajetórias do cinema estadunidense do cinema francês, que 58 continuou focado nos filmes de atração, com limitações de público e conteúdo, tornando os filmes estadunidenses famosos por todo o mundo, por sua linguagem e conteúdos inovadores. O fato de o continente europeu se envolver diretamente com os conflitos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) também contribuiu fortemente para que a indústria cinematográfica estadunidense crescesse mais que as europeias (COSTA, 2005). Apesar das contribuições da MPPC para o desenvolvimento do novo cinema estadunidense, já destacadas, o órgão apresentou diversos pontos negativos. O maior deles era o monopólio de todas as esferas da indústria cinematográfica do país: a MPPC controlava as quatro maiores produtoras e cinquenta e sete por cento das salas de exibição nos EUA em 1910. Edison havia estabelecido a patente da maioria dos equipamentos para a MPPC, e exigia pagamentos daqueles que os utilizavam. As ações de regulação e os contratos de exclusividade com atores, fornecedores e distribuidores davam pouco espaço para aqueles que não eram agraciados pelas licenças expedidas pela MPCC. Esses diretores, produtores e outros artistas que não estavam sob o guarda-chuva do órgão começaram a se organizar de forma a buscar formas de realizar seus projetos e se inserir no mercado, ficando conhecidos como “independentes”27 (SADOUL, 1983). David Griffith foi o maior diretor independente da época, um dos mais conhecidos diretores da história do cinema estadunidense, e um dos principais responsáveis pelo deslocamento do polo de produção cinematográfico de Nova Iorque e Chicago para a costa oeste, em Los Angeles. Assim como alguns independentes já haviam feito, Griffith se mudou para Los Angeles para montar o estúdio da Biograph, fugindo das regulações rígidas de Thomas Edison na MPPC. Em 1910, na filmagem de um dos primeiros filmes na costa oeste, “In Old ”, encontra uma locação ao norte da cidade, perfeita para o filme: Hollywood (SADOUL, 1983). Os elogios de Griffith a Hollywood chegaram à costa leste, e diversos estúdios começaram a enviar emissários à região, que voltavam com a notícia de que Hollywood apresentava o potencial para ser o maior polo de produção industrial cinematográfica do mundo, o que fez com que em 1911 fosse inaugurado o primeiro estúdio hollywoodiano: Nestor Film Company. A partir desse momento, inúmeros estúdios abriram filiais em

27 O cinema independente continua a ser produzido em Hollywood. Os filmes dessa categoria são aqueles que são produzidos com pouca ou nenhuma interferência de grandes estúdios. Podem ser produzidos às margens da indústria, totalmente desconectados dos grandes estúdios. Nesse caso, são produzidos e distribuídos por empresas de entretenimento independentes. Porém, podem também ser produzidos e distribuídos por subsidiárias dos grandes estúdios, sendo conectados a eles de forma indireta. O cinema independente, com raras exceções, não conta com o mesmo orçamento, e portanto não tem o mesmo alcance que os filmes produzidos e distribuídos pelos grandes estúdios (KING, 2009). 59

Hollywood, e atrizes, atores e diversos profissionais do ramo se mudaram para a região, interessados em participar das produções independentes e dos recém-chegados estúdios. Em 1913, os acionistas de Wall Street começaram a se interessar pela mudança dos independentes para a costa oeste e passam a investir em suas produções, levando o foco dos investimentos para Hollywood, enfraquecendo o truste de Edison, que já vinha tendo diversas perdas de pessoal para o novo polo (SADOUL, 1983). Com a dissolução da MPPC em 1915, Hollywood se consagra como a cidade do cinema nos EUA, e, com a hegemonia do país no ramo à época (apesar da ainda constante participação francesa no mercado mundial), isso significava que a cidade se tornava a capital mundial do cinema. Com o sucesso dos estúdios da cidade e a consagração de artistas residentes como Charles Chaplin, Hollywood se transforma em Tinseltown, apelido dado pelos novos moradores, em referência ao glamour, brilho, e ao clima de otimismo e festa que se estabeleceu na cidade, que tanto prosperaria nas próximas décadas (SADOUL, 1983). Desde a chegada dos primeiros produtores a Hollywood até meados da década de 1920, diversos estúdios se instalariam na cidade, e os olhos dos investidores se voltariam para a costa oeste. Em seguida, entre as décadas de 1920 e 1940, se deu a época chamada de Era de Ouro de Hollywood, em que a indústria cinematográfica se desenvolveu de forma tal que alcançou reconhecimento mundial como arte. Na época, além de diversos estúdios independentes, foram fundados na cidade os cinco maiores estúdios da indústria: Warner Bros. Pictures, 20th Century Fox, Paramount, Metro-Goldwyn-Mayer e Fox Film Corporation, que ficariam conhecidos como os Big Five28 (GABLER, 1989). Os Big Five compartilham uma curiosidade quanto à sua fundação: todos esses estúdios foram criados por judeus com origens no Leste Europeu. Esses imigrantes, fugindo de ondas de antissemitismo na Polônia, Hungria, Rússia e Alemanha, encontraram na indústria cinematográfica a oportunidade de prosperar. E como prosperaram. A comunidade judaica em Hollywood se unia em torno do desejo de construir um novo lar, ao qual pertencesse, o que os atraía para a indústria cinematográfica e sua possibilidade de construção de novas histórias. Além disso, tinham como vantagem as habilidades conquistadas por sua tradição europeia nos ramos de vestuário e de vendas, necessárias para a indústria, além de serem eles mesmos

28 Os “Cinco Grandes”, em português. 60 imigrantes, e, portanto, compreenderem seu público: seus anseios, sonhos e o apelo das histórias contadas nos filmes (GABLER, 1989)29. Já nessa época, os executivos dos grandes estúdios haviam aprendido com o truste de Edison que para que prosperassem era importante estabelecer suas próprias redes de distribuição, assegurando que suas produções chegassem ao maior número de espectadores possível. Também à época, o governo estadunidense já tinha ciência da importância do cinema como um veículo de promoção cultural, e apoiava os estúdios em suas operações de exportações de filmes. No fim da década de 1920, trinta e cinco por cento dos lucros de Hollywood já eram provenientes das exibições dos filmes em outros países. Esse número aumentaria para cinquenta por cento depois da Segunda Guerra Mundial, percentual mantido até os dias de hoje, com alguma variação através dos anos. Esses dados mostram que Hollywood nasceu e cresceu com objetivo e meios para se internacionalizar (DE ZOYSA; NEWMAN, 2002). Nos últimos cem anos, quase tudo mudou no ramo da indústria cinematográfica. Diferentemente de outrora, os filmes têm som e cores. A tecnologia trouxe a animação e o CGI (computer generated imagery30), além de mudar a forma de captação, reprodução e edição dos filmes, e mudar também quase todas as suas etapas de preparação, produção, distribuição e exibição. O custo de produção aumentou, e o conteúdo dos filmes ficou cada vez mais complexo, mais sofisticado, assim como os efeitos especiais e as funções de produção. Por outro lado, novas tecnologias viriam para ameaçar a rentabilidade do cinema: a televisão, depois a televisão a cabo, e então a internet, e mais recentemente os serviços de streaming. Essas tecnologias poderiam substituir o encanto das salas de cinema, e decerto diminuíram seu público, porém foram incapazes de sobrepor-se à magia da sétima arte (SILVER, 2007). Nessas dez décadas, desequilíbrios econômicos e políticos dos EUA levaram à crise e quase à falência a maioria dos estúdios de cinema do país, com a queda da bolsa de Wall Street em 1929 e a recessão da década de 1980. O mundo mudou, e com ele mudaram a sociedade, o público, os filmes, e também toda a indústria. Não mudou,

29 Para mais informações sobre a história dos imigrantes judeus que fundaram os Big Five e moldaram a Era de Ouro de Hollywood, há um excelente documentário: “Hollywoodism: Jews, Movies and the American Dream”, ou “Hollywoodismo: judeus, filmes e o sonho americano”, lançado em 1997, com direção e roteiro de Simcha Jacobovici. No documentário são tratadas questões como o contexto de imigração desses indivíduos, os elementos que foram determinantes para seu sucesso na indústria cinematográfica, a construção da ideia de comunidade estabelecida entre eles e a possibilidade da concepção do sonho americano, ou a imagem do que os Estados Unidos da América simbolizavam para esses imigrantes. 30 Em português, computação gráfica. 61 porém, a hegemonia de Hollywood e seus Big Five, que hoje fazem parte dos sete maiores conglomerados da indústria que atuam em diferentes ramos e de diferentes formas no cinema e televisão, também chamados de “Majors”: Comcast – que inclui a Universal –, Walt Disney Studios, Time Warner – que engloba a Warner Bros. –, 21st Century Fox, Sony, Viacom – que inclui a Paramount –, e M.G.M. Holdings (SILVER, 2007). A hegemonia internacional de Hollywood no ramo cinematográfico pode ser justificada através de inúmeras variáveis31, sem que nunca se chegue a uma conclusão definitiva de porque os Estados Unidos alcançaram e mantém essa posição. Algumas dessas variáveis já foram discutidas nesta pesquisa, como o pioneirismo da linearidade e narratividade dos filmes, que provaram ser elementos que cativam o público, mais do que faziam os filmes de atração, anteriores a esses, além do auxílio governamental para a exportação de filmes, que proporcionou a expansão da indústria para outros países. Também as guerras no continente europeu que tiveram força destruidora descomunal nos países vítimas, o que decerto prejudicou sua estrutura de produção cinematográfica (SILVER, 2007). Para além destes, dois dos elementos compreendidos e empregados pela indústria hollywoodiana que garantem que seus filmes tenham alcance global são as redes de distribuição e as estratégias de marketing adotadas por seus estúdios e conglomerados (SEGRAVE, 1997). Países do sul global também desenvolveram indústrias cinematográficas no início do século XIX, mas não alcançaram o sucesso mundial de Hollywood. Isso não se dá por dominância numérica: enquanto os EUA produzem entre 600 e 700 filmes por ano, a Índia produz o dobro – 1200 filmes por ano –, e a Nigéria lança cerca de 1000 produções por ano, mas nenhuma das duas tem o alcance das produções estadunidenses (SHOHAT; STAM, 2006). Essa diferença se deve justamente ao esforço publicitário e às redes de distribuição hollywoodianas. As Majors apresentam uma estrutura organizacional bem fundamentada, e possuem uma infraestrutura de distribuição e promoção presente não apenas em território estadunidense, mas em todo o mundo, mantendo escritórios e filiais em diversas partes do globo, se instalando estrategicamente nos locais onde há maior receptibilidade e possibilidade de lucros. Quando não há a presença de redes próprias de distribuição, os conglomerados efetuam parcerias com redes de distribuição e exibição locais para se

31 Silver (2007) lista vinte possíveis explicações para a consagração e manutenção de Hollywood como líder do ramo cinematográfico mundial. Por questões de espaço e relevância, apenas algumas dessas variáveis serão exploradas nesta pesquisa. 62 assegurar que seus filmes alcancem o maior número de espectadores possível. Para além de escritórios e filiais em todos os continentes, os sete maiores conglomerados da indústria estadunidense compõem a MPAA (Motion Picture Association of America32), uma organização lobista fundada em 1922 que representa os interesses dos estúdios em todo o mundo. A organização é responsável por manter os canais de distribuição abertos e apontar novas possibilidades de mercados consumidores para os filmes hollywoodianos (SCOTT, 2004). A distribuição dos filmes não seria efetiva, ou ao menos necessária, se não houvesse público que assistisse às produções das Majors. Para que esse público se mantenha e se expanda, os conglomerados investem intensamente na promoção de seus filmes. Esse processo se dá desde a divulgação de trailers, forma mais direta de publicidade, até a utilização de importantes premiações, para colocar sob os holofotes as grandes produções desses estúdios: muitos dos membros dos conglomerados são parte de organizações como a Academy of Motion Picture Arts and Sciences, que são responsáveis pelas premiações dos melhores filmes produzidos em determinado período, como o Oscar. Essas premiações são grandes eventos vitrine para os atores, atrizes, diretores, roteiristas, e, consequentemente, estúdios. Ademais, a exibição dos filmes é apenas uma das fases de promoção e exploração comercial dos filmes. As Majors se baseiam em diversas ações de promoção, além de estabelecerem parcerias com importantes marcas e lojas de departamento de forma a produzir e comercializar inúmeros produtos relacionados aos filmes, franquias e universos abordados nas produções cinematográficas, como livros, brinquedos, trilha sonora, peças de vestuário, atrações em parques de diversão e outros (SCOTT, 2004). Todos esses recursos fazem com que as produções hollywoodianas sejam exibidas em todo o mundo e, dessa forma, influenciem parcela significativa da população mundial. Os conglomerados se tornaram tão poderosos que até hoje nenhuma indústria cinematográfica foi capaz de vencê-los em seu mercado doméstico (SCOTT, 2004). Há diversos dados que comprovam que as produções cinematográficas hollywoodianas dominam a maior parte dos mercados mundiais. O Centro Nacional de Cinematografia francês, o CNC, faz um levantamento periódico sobre a participação dos filmes estadunidenses nos lucros de mercados de diversos países. A Tabela 1 mostra alguns desses dados. É possível observar que as produções estadunidenses ficam com a maior

32 Em português, Associação Americana de Filmes. 63 parte dos lucros da maioria dos países observados: desde a metade, na França, até 87 por cento no México33.

Tabela 1 – Participação das produções estadunidenses nos lucros gerados pelo cinema em diferentes países no ano de 2016 Participação das produções estadunidenses nos lucros gerados pelo cinema em diferentes países (2016) Receita Produções Produções Outras origens País (Milhões US$) estadunidenses (%) Nacionais (%) (%) França 1541,25 50,7 36,2 13,1 Reino Unido 1392,84 58,9 35,9 5,2 Alemanha 1160,79 64,5 22,7 12,8 Brasil 822,65 65,8 16,5 17,7 México 794,29 87 9,5 3,5 Itália 788,73 55,2 28,7 16,1 Rússia 726,33 59 17,3 23,7 Espanha 683,09 66,5 18,5 15 África do Sul 89,98 73,6 6 20,4 China 6,6 41,4 58,3 0,3 Coreia do Sul 1,57 38,5 53,7 7,8 Índia 1,48 47 40 13 Elaborada pela autora. Fonte: (CNC, 2017)

Os relatórios da CNC (1989; 1991; 2000; 2016) mostram que, enquanto a hegemonia estadunidense apresentou aumento no período entre 1989 e 2000, essa diferença cai entre 2000 e 2016. Por exemplo, apresenta queda de oito por cento na França, dezessete por cento no Reino Unido e cinco por cento na África do Sul. Esse movimento pode ser justificado pela sofisticação das indústrias nacionais, e principalmente pela ascensão da internet e serviços de streaming, que têm sido responsáveis pela promoção de filmes originados de outros países, mostrando ao mercado consumidor outras linguagens e formas de produzir cinema, diversificando seu gosto (SCOTT, 2004). Mesmo assim, é improvável que alguma dessas indústrias cinematográficas suplante a liderança de Hollywood, pelo menos no curto e médio prazo. Isso se justifica tanto pelas questões já discutidas anteriormente, quanto por uma variável mais complexa em termos de análise, mas que é facilmente compreendida e identificada,

33 Um dado curioso apresentado na tabela é que China e Coreia do Sul se diferenciam dos outros países da pesquisa, que apresentaram maior participação de produções estadunidenses em seu mercado interno. Isso pode ser justificado pelo controle governamental desses países, que estabelecem, desde a década de 1940 e 1960, respectivamente, regras e cotas que privilegiam a exibição de filmes nacionais nas salas chinesas e sul-coreanas, resultando na maior produção interna e nos dados encontrados nesta pesquisa (BAPTISTA; MASCARELLO, 2008). 64 e que tem diferentes implicações para a dominância hollywoodiana da indústria cinematográfica: a variável sociocultural. Como discutido anteriormente, o cinema foi, desde seu início, um veículo de cultura de massa. Tendo em seu início os filmes mudos, alcançou porções iliteratas da população que se acostumaram com o formato dos filmes, e então à linearidade da narrativa estadunidense. Acompanhando o processo de sofisticação dos filmes, da indústria, da educação e da sociedade, legendas foram adicionadas aos filmes falados, e com o tempo a língua inglesa não soava tão estranha aos ouvidos das elites estrangeiras, abrindo caminho para sua consagração como a linguagem universal após a Segunda Guerra. À época, Hollywood era ainda líder absoluta de produções anuais, e sua presença em diversos territórios fazia propaganda do “American Way of Life”: estilo de vida alardeado como o do cidadão comum dos EUA, relacionado com o nacionalismo, liberdade de expressão, liberdade para viver e buscar sucesso e felicidade (HOBSBAWM, 1995). Mesmo com o desenvolvimento de outras indústrias, outras linguagens e outros modos de contar histórias, o resultado de décadas de dominação estadunidense nas salas de cinema em todo o mundo era evidente: a população mundial se acostumou com o formato hollywoodiano de narrar as histórias de heróis e bandidos, mocinhas e vilões. As crianças são expostas desde cedo às aventuras dos personagens Disney, formando suas primeiras conexões com a indústria estadunidense. Os sonhos e aspirações infantis são cunhados nas experiências absorvidas pelos produtos dessa indústria cinematográfica. As imagens, realidades, objetivos e ideias retratadas nesses filmes são inconsequente e inconscientemente absorvidas como parte da cultura de pessoas de todo o mundo (BUSCOMBE, 1981; DE ZOYSA & NEWMAN, 2002). Dessa forma, a indústria hollywoodiana foi dotada de um poder sócio-político incalculável, ao alcançar centenas de milhares de pessoas ao redor do mundo com cada uma de suas produções cinematográficas. Esses filmes podem moldar pensamentos, criar sonhos, difundir ideias e propagar posicionamentos políticos diversos. O poder da indústria cinematográfica está, é claro, conectado a uma extensa e complexa rede de influenciadores, desde roteiristas, diretores, produtores, até aos diretores executivos que tomam as decisões dos estúdios, e também aos investidores, que proporcionam os meios financeiros para que os filmes possam ser produzidos. Na próxima seção, porém, será investigado o mito fundador dos estadunidenses como um povo escolhido por Deus para uma missão civilizatória do mundo, o que leva à 65 constante construção da imagem de um inimigo comum. A figura do inimigo se modifica de acordo com o contexto histórico dos Estados Unidos, e Hollywood tem papel determinante na construção dessa ideia, pois suas produções utilizam-se dos povos vistos como inimigos para a representação dos antagonistas das narrativas. Os árabes, como poderá ser observado ao fim da seção, são o inimigo comum dos EUA principalmente após 11 de setembro de 2001, e passam a ser retratados cada vez mais como os antagonistas das produções hollywoodianas.

3.2 Hollywood e a construção do inimigo comum do povo eleito

Tudo isso será nossa história futura: estabelecer na Terra a dignidade moral e a salvação do homem - a imutável verdade e benevolência de Deus. Para esta abençoada missão em favor das nações do mundo, que são excluídas da luz da verdade, a América foi escolhida; e seu exemplo ferirá de forma letal a tirania de reis, hierarcas e oligarcas, e levará as boas novas de paz e boa vontade, onde miríades agora suportam uma existência dificilmente mais invejável que a das feras do campo. Quem, então, pode duvidar que nosso país está destinado a ser a grande nação do futuro? (O’SULLIVAN, 1829, p.430, tradução livre34)

Uma nação não é constituída apenas do território que ocupa, seus habitantes e sua economia. Mais do que isso, as nações são formadas por laços intangíveis que se originam de diferentes acontecimentos. Benedict Anderson (2008) argumenta que as comunidades não existem de forma natural e objetiva, uma vez que é improvável que todos os seus componentes conheçam uns aos outros. Mesmo assim, todos se sentem parte daquela comunidade devido à existência desses laços, que formam as nações. Essas comunidades imaginadas, de acordo com Anderson, são socialmente construídas e encontram suas referências em eventos específicos da história, mitos de origem e contos heroicos de seu povo, que, conhecidos e compartilhados por todos, criam a sensação de pertencimento e dão origem ao nacionalismo (ANDERSON, 2008). A fundação dos EUA, datada do fim do século XV, traz episódios que explicam e fundamentam os ideais que formam os laços que unem essa comunidade. Um dos mais significativos laços é o nacionalismo e a conexão com o mito do povo escolhido presente

34 All this will be our future history, to establish on earth the moral dignity and salvation of man - the immutable truth and beneficence of God. For this blessed mission to the nations of the world, which are shut out from the life-giving light of truth, has America been chosen; and her high example shall smite unto death the tyranny off kings, hierarchs, and oligarchs, and carry the glad tidings of peace and good will where myriads now endure an existence scarcely more enviable that that of beasts of the field. Who, then, can doubt that our country is destined to be the great nation of futurity? (O'SULLIVAN, 1839, p.430). 66 na mentalidade de muitos dos habitantes da “land of the free and the home of the brave”35. Nos mais de quinhentos anos de história estadunidense, podem ser observados diversos momentos históricos que fundamentam e propagam os ideais estadunidenses, que permeiam o imaginário da população e reverberam na política externa estadunidense como hegêmona do sistema internacional. Em muitos destes momentos, a instrumentalização da oposição entre o povo eleito e o inimigo comum pode ser observada, e então se conectam à história das produções hollywoodianas, pois fornecem à indústria os vilões ou antagonistas dos heróis estadunidenses representados em suas narrativas36. A fundação do mito dos estadunidenses como povo escolhido se dá desde a apropriação inglesa das colônias onde hoje se encontram os EUA na metade do século XVI. Apesar de a primeira colônia ter sido estabelecida anos antes, em 1607, um dos grupos mais famosos e simbólicos do fluxo migratório colonial para os Estados Unidos foi aquele que chegou ao que hoje se conhece como o estado de Massachusetts a bordo do Mayflower em 1621. Esses imigrantes, que vieram a ser conhecidos como peregrinos, são considerados os fundadores dos Estados Unidos: protestantes calvinistas fugindo do poder hegemônico e perseguição anglicana. Os peregrinos eram também conhecidos como puritanos, e carregavam consigo a ideia de que a colônia que estabelecessem seria uma “nova Canaã”37, e que eram o povo predestinado, escolhido por Deus para compor uma sociedade de eleitos. Para tal, os recém-chegados seguiam um código de conduta bastante rígido, baseado em ideias maniqueístas e um moralismo exacerbado (KARNAL, 2007). Isso inaugura um pensamento de exclusividade e superioridade, de separação de outros povos e etnias, que permeará a história dos Estados Unidos por muitos séculos. Foi esse pensamento que justificou o isolamento dos peregrinos e o assassinato e

35 Referência ao hino estadunidense “The Star-Spangled Banner”. O trecho pode ser traduzido como “terra dos livres e lar dos bravos” 36 Episódios como a segregação racial no século XX, a guerra contra as drogas e contra a imigração nos séculos XX e XXI são exemplos desses momentos. As populações negra e latina foram marginalizadas nesses episódios, e seguem lutando por equidade de tratamento nos EUA. Apesar de questões muito ricas e interessantes, não serão tratadas nessa seção em razão da grande mobilização teórica e histórica necessária para essa análise, incompatível com o objetivo da dissertação. Para conhecer mais sobre a segregação racial, indica-se o filme “O Nascimento de uma Nação”, de David Griffith (1915), e o documentário “A 13ª Emenda”, de Ava DuVernay (2016). Sobre a guerra contra as drogas, recomenda-se o seriado “Narcos”, de direção de José Padilha (2015) e o documentário “American Drug War: The Last White Hope”, de Kevin Booth (2007). Por fim, sobre a questão migratória nos EUA, recomenda-se o documentário “Which Way Home”, de Rebecca Cammisa (2009) e o filme “A Day Without a Mexican”, de Sergio Arau (2004). 37 Terra prometida por Deus aos hebreus. Hoje corresponde ao território de Israel. 67 exploração de outros povos. Afinal, o grupo dos eleitos não era composto de todos os habitantes daquele território, mas somente daqueles que vieram a ser conhecidos como os WASP’s: os protestantes brancos anglo-saxões38 (KARNAL, 2007; CAMPBELL, 1992). Em “Of Plymoth Plantation”, memoire originalmente publicado em 1651, William Bradford, descreve o estilo de vida dos peregrinos, suas dificuldades e sua adaptação ao novo território. Porém, mais que apenas descrever, o autor analisa o significado das intempéries impostas por Deus a seu povo. O tom messiânico no relato da chegada dos peregrinos ao território é impressionante, contando da missão do povo de transformar aquela terra em uma prova da benevolência de Deus para a humanidade39. Os desastres naturais eram vistos como punição divina aos malfeitos dos habitantes de Plymouth, e as batalhas com os povos autóctones, o extermínio de várias tribos eram considerados parte do plano divino para os peregrinos (BRADFORD, 2002). Nascia assim o mito de um povo escolhido por Deus para estabelecer uma missão civilizatória no continente e no mundo. A expansão para o Oeste no século XIX foi um desdobramento desse mito, e se baseou no que ficou conhecido como Destino Manifesto. Essa doutrina promovia a ideia de que o povo eleito, formado pelos herdeiros dos peregrinos, deveria tomar para si o dever de civilizar os povos que não conheciam a liberdade e a democracia (KARNAL, 2007; CAMPBELL, 1992). A expansão era também vista como um direito do povo eleito. John O’Sullivan, que cunhou a denominação da doutrina expansionista estadunidense, atribuiu a anexação de terras um caráter de necessidade e merecimento para o “[...] cumprimento do nosso destino manifesto de nos espalhar pelo continente oferecido pela

38 WASP é a sigla em inglês para White Anglo-Saxon Protestant, cuja tradução livre é protestante branco anglo-saxão. 39 No livro de Bradford, muitas vezes é possível encontrar passagens em que o governador de Plymouth encontra paralelos entre a história dos peregrinos e dos hebreus, povo eleito por Deus, de acordo com o livro do Êxodo, na Bíblia. Bradford identifica-se como líder de um povo especial, que está agindo de acordo com os planos de Deus. Os hebreus, em busca de sua terra prometida, cruzam o Mar Vermelho e o rio Jordão. Os peregrinos, fugindo da perseguição religiosa e em busca de um recomeço, cruzam o Oceano Atlântico. Ao começar sua jornada, ambos os povos se encontram em regiões selvagens: os hebreus no deserto, e os peregrinos na mata. Ao encontrar a Terra Prometida, enfrentaram resistência de um povo que lá vivia. Para os hebreus, os cananeus, para os peregrinos, os indígenas. Há aqui uma permissão divina para desalojar esses povos, uma vez que o povo escolhido tem direito a ocupar e povoar a Terra Prometida: “Não habitarão na tua terra, para que não te façam pecar contra mim; pois se servires os seus deuses, certamente isso te será um laço” (Ex 23, 33). O próprio Bradford se apresenta como alguém que tem, em sua história, similaridades com Moisés, o líder dos israelitas. Ele lidera os peregrinos, e assim como Moisés apresentou ao seu povo os Dez Mandamentos, Bradford escreveu, em 1620, o Mayflower Compact, o primeiro contrato social dos peregrinos. Nele, Bradford declara que o documento é um covenant, ou pacto, entre Deus e a comunidade39 (BRADFORD, 2002). 68

Providência para o livre desenvolvimento de nossos milhões anuais” (O’SULLIVAN, 1845, p.5, tradução livre40). A ideia de que a expansão territorial era uma obrigação moral dos estadunidenses é bem traduzida na pintura de John Gast, “American Progress”, ou “Progresso Americano”, de 1872 (Figura 1). Na pintura, é possível ver dois opostos: o Leste e o Oeste dos Estados Unidos. O Leste é civilizado, iluminado, desenvolvido, repleto das mais recentes chegadas tecnológicas, enquanto o Oeste é escurecido, atrasado, marcado pelas nuvens de tempestade, que simbolizam as dificuldades da região. O povo eleito se desloca para o Oeste, junto com a enorme figura angelical Figura 1. “Progresso Americano” (GAST, 1872) ao meio da pintura, que carrega um livro e simboliza o progresso e o conhecimento. Na pintura, é possível ver que povo estadunidense está levando a luz, a esperança e a liberdade para o Oeste: a missão civilizatória do povo escolhido por Deus. A expansão do povo escolhido se daria pela conquista dos territórios a sul e a oeste das treze colônias, em busca de espaço para abrigar a crescente indústria estadunidense, e aumentar suas possibilidades de comércio. Assim, inicia-se um projeto para a expansão das colônias através de compra e ocupação de territórios. Em boa parte dos territórios, a anexação era feita por ocupação através de confrontos com a população local, os primeiros obstáculos do povo eleito em sua missão. O processo teve como resultado a eliminação da maior parte das populações autóctones41. Milhões de indígenas morreram no processo de expansão das colônias para o Oeste (KARNAL, 2007). A indústria cinematográfica hollywoodiana representou esse período diversas vezes, no estilo que ficou conhecido como , ou faroeste. Nesses filmes, os

40 “(…) fulfillment of our manifest destiny to overspread the continent allotted by Providence for the free development of our yearly multiplying millions.” (O’SULLIVAN, 1845, p.5) 41 A anexação do território hoje composto por Texas, Novo México, Arizona, Colorado, Utah e Califórnia pelos EUA é um assunto interessante para compreender a dinâmica da região no século XXI. Esses territórios faziam parte do México, compondo cerca de metade do país à época, e é conquistado pelos EUA no fim da primeira metade do século XIX por meio de diferentes estratégias. Em algumas situações, de forma injusta e autoritária. É um ponto interessante a considerar quando se reflete sobre as ondas migratórias do México para os Estados Unidos, que se iniciam já na época da Guerra México/EUA, entre 1846 e 1848, e aumentam durante todo o século XX (HAVERLUCK, 1997). 69 indígenas, muitas vezes referidos como “pele vermelha”, são representados de forma estereotipada, por vezes como os selvagens inimigos do povo estadunidense, e outras como um povo inferiorizado intelectualmente, necessitando da tutela do homem branco. Esses personagens, fisicamente e psicologicamente retratados de forma grosseira e exagerada, constroem a ideia de um povo atrasado e bárbaro. Os filmes de faroeste ajudam a reforçar a ideia da necessidade da chegada da civilização e do homem branco para a salvação desses povos42 (ROLLINS; O’CONNOR, 1998). Importantes obras representando o período são “Estrela de Fogo” (1960), “Era uma Vez no Oeste” (1968), “Rastros de Ódio” (1956) – no qual estrela John Wayne, um dos mais conhecidos atores dos filmes de faroeste – e “Dança com Lobos”43, de 1990. A imagem estigmatizada dessas populações no cinema estadunidense, porém, passa a ser questionada no fim da década de 1960 com o estabelecimento do Movimento Americano Indígena, que reivindica justiça institucional e cultural para os indígenas, perpassando por sua correta representação nos veículos de cultura de massa (ROLLINS; O’CONNOR, 1998). Durante a Guerra Fria, na metade do século XX, os EUA e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) disputariam influência em diversas áreas do globo. Dada a natureza maniqueísta do conflito (EUA versus URSS, Capitalismo versus Socialismo, Oriente versus Ocidente), os Estados Unidos se apoiaram mais uma vez em seu mito fundador para estabelecer as bases do conflito. Os EUA eram, mais uma vez, os representantes da vontade de Deus na Terra, e carregavam as bandeiras da liberdade e da democracia, e, em última análise, do “Bem”. A cruzada contra os socialistas, ou comunistas, como eram chamados44, era uma cruzada contra a red scare ou ameaça vermelha, que causava medo na população estadunidense (MURRAY, 1955). Esse medo se personificou na figura de Joseph MacCarthy, um senador do estado de Wisconsin, que na década de 1940 fez diversos discursos em que alertava para a infiltração de comunistas no Departamento de Estado, e inaugurava uma histeria coletiva nos EUA, que ficaria conhecida como macarthismo. Nas próximas três décadas, haveria grande ansiedade na população devido à corrida armamentista, a espionagem soviética, e

42 Para mais sobre a representação das populações indígenas estadunidenses na indústria cinematográfica hollywoodiana, veja (ROLLINS; O’CONNOR, 1998) 43 Filmes dirigidos por Don Siegel, , John Ford e Kevin Costner, respectivamente. 44 Para os anticomunistas, os termos “socialismo” e “comunismo” eram usados de forma intercambiável sem que se prejudicasse o entendimento de quem era o inimigo. Para saber mais sobre as diferenças entre os dois sistemas, ver “O que é Socialismo”, de Arnaldo Spindel (1980). 70 o risco de que a URSS dominasse o mundo e acabasse com o já consolidado estilo de vida estadunidense (CAUTE, 1979). O macarthismo levaria a uma série de eventos que envolveriam o governo e a população do país em uma histeria contra a grande ameaça vinda do Leste. Diversos programas de segurança foram desenvolvidos, indivíduos que tivessem ligações com o comunismo, seja por afinidade ideológica ou por relações com outros subversivos, eram perseguidos e presos em todo o território em uma intensa caça às bruxas (CAUTE, 1979). A mídia estadunidense, junto com a indústria cultural, embarca nas teorias conspiratórias anticomunistas e contribui para o clima de medo e ameaça, como é possível ver na Figura 2, a capa de uma revista em quadrinhos, “The Figura 2. “O Iceberg Vermelho” Red Iceberg”, ou “O Iceberg Vermelho”, com tirinhas (IMPACT PULICATIONS, 1960) de diferentes artistas, na qual se vê o Tio Sam45 em um barco chamado USA46 se aproximando de um iceberg vermelho, com a foice e o martelo, simbolizando a URSS, e diversas lápides de países supostamente destruídos pelo comunismo, como a China e a Coreia do Norte. Numa clara alusão ao desastre do Titanic, a capa da revista em quadrinho anuncia o perigo da aproximação do país com os ideais comunistas da URSS. Para além da mídia impressa, a indústria cinematográfica hollywoodiana também foi muito ativa na dispersão de conteúdo anticomunista, num movimento que se assemelha ao objeto desta pesquisa. Em contraposição à indústria de propaganda da URSS, que produzia de cartazes, pôsteres, livros até filmes que exaltavam o regime comunista, Hollywood passa a lançar filmes com temática anticomunista, acompanhando as tendências políticas dos EUA. Diversos filmes foram lançados com narrativas que retratavam a Guerra Fria e os EUA como heróis e os soviéticos como vilões, como “Caminhe para o Leste” (1953), “Aventura Perigosa” (1952), “Sete Homens e Um Destino” (1960) e “O Álamo” (1960)47. Ademais, muitos atores, atrizes, produtores e

45 Grande símbolo dos Estados Unidos, criado no século XVII, utilizado diversas vezes na história do país, simbolizando seu governo. Para mais informações, consultar a obra de Donald Hickey (2015). 46 United States of America, ou Estados Unidos da América. 47 Filmes de Alfred L. Werker, Edward Ludwig, John Sturges, John Wayne, respectivamente. 71 colaboradores da indústria constavam na chamada “Lista Negra”48, que discriminava aqueles que tinham ligações com o partido comunista do país, ou que participavam de atividades consideradas subversivas. Aqueles que entravam nessa lista dificilmente eram contratados como colaboradores para as produções da indústria (WATTS, 2013). Fora os filmes que tinham como temática a própria Guerra Fria e os perigos do comunismo, foram lançados filmes que num primeiro olhar não eram narrativas anticomunistas, mas colocavam os soviéticos como adversários naturais dos estadunidenses contribuindo ativamente para o reforço da ideia. Muitos dos filmes de ação das décadas de 1940 a 1980 apresentam essa característica: um deles é o icônico filme “Rocky IV”, de 1985, em que Sylvester Stallone incorpora um boxeador que derrota de forma impressionante o arquirrival soviético. O mais famoso agente secreto de Hollywood, James Bond, o 007, também tem como inimigos os soviéticos em uma série de filmes, sendo um dos mais conhecidos “007 – O Espião que me amava”, de 197749. Chuck Norris, outro aclamado ator de filmes de ação, enfrenta soviéticos no filme “Invasão USA”, de 1985. Outros exemplos de filmes que propagam a ideia da naturalização dos soviéticos como os inimigos naturais dos EUA são “Nascido para Matar”, de Stanley Kubrick (1987), “Desafio no Gelo”, um filme sobre hóquei lançado em 2004, e o último filme da série Indiana Jones, lançado em 2008. Essas estratégias foram adotadas de forma a construir uma narrativa que estabeleceu uma geografia do mal, como sugere David Campbell, em “Writing Security: United States foreign policy and the politics of identity” (1992). Os Estados Unidos se colocavam, através dessa narrativa, em um dos dois polos de uma construção maniqueísta que os contrapunha com a União Soviética. Polos geográficos, oeste e leste, mas também ideológicos. Nesse confronto, os EUA eram os civilizados e normais, enquanto a URSS representava a barbárie e o patológico. Nesse sentido, discute-se que os Estados Unidos se formam como uma comunidade imaginada por meio de um discurso que alerta para um constante e iminente perigo. Assim, com a Guerra Fria, esse discurso pôde ser mobilizado de forma a construir o perigo soviético e de certa forma unificar a população contra um inimigo comum (CAMPBELL, 1992).

48 Retratação: a autora não compactua com a expressão “lista negra”, por compreender seu conteúdo racista, mas a reproduz na pesquisa por ser a expressão utilizada à época. 49 A série de filmes do agente secreto 007 é produzida pela Eon Productions nos estúdios Pinewood, ambas empresas inglesas, ao contrário das outras produções citadas nessa pesquisa. A série, que alcançou grande sucesso internacional, não faz parte das produções do conglomerado hollywoodiano, mas carrega a mesma ideia de sucessos estadunidenses da época. 72

Em 1991 a Guerra Fria chega ao fim: a URSS se dissolve50, e os EUA saem vitoriosos do conflito, se estabelecendo de forma estável como o hegêmona global, através de sua liderança, poder militar e influência cultural e econômica sobre os demais. Nesse momento os Estados Unidos passaram a se movimentar para aprofundar sua influência em territórios antes sob a égide da União Soviética. Acentuaram ainda mais sua presença no Oriente Médio, que já vinha se intensificando desde o fim da Segunda Guerra através de parcerias dos EUA com potências europeias como França e Inglaterra. Essas parcerias haviam sido importantes para frear a influência soviética na região, assegurar o acesso dos EUA e Europa aos países produtores de petróleo e manter o controle sobre a chamada questão palestina. Os Estados Unidos eram, e são até hoje, um dos maiores apoiadores do Estado de Israel, desde sua gênese, com a Declaração de Balfour, que será tratada no próximo capítulo. A partir da segunda metade do século XX, os Estados Unidos estabeleceram diversas bases militares na região, para assegurar seu controle e proteger seus interesses no Oriente Médio51 (AL SARHAN, 2017). A oposição dos países árabes à presença estadunidense, que até então era sentida pelos EUA apenas remotamente, começou a ameaçar o território estadunidense em 1993, quando um carro-bomba explodiu no estacionamento do World Trade Center (WTC), complexo de edifícios comerciais em Nova Iorque, num ataque financiado pela Al-Qaeda. Esse grupo, na época chefiado por Osama Bin Laden, baseado no Afeganistão, era uma das organizações que detinham a liderança política na região, ligados ao Islamismo Político Radical52. Porém, o mais forte ataque viria apenas anos depois, em onze de setembro de 2001, no governo de George W. Bush, quando ocorreu o maior ataque terrorista da história dos EUA. Quatro aeronaves comerciais foram sequestradas por dezenove terroristas da Al-Qaeda, sendo utilizadas como veículos de um ataque suicida, tendo como alvos a sede do Departamento de Defesa dos EUA, o Pentágono, a capital

50 É válido lembrar que a derrota econômica do sistema socialista para o capitalista se deu ao longo de décadas, com a queda do crescimento econômico da União Soviética e de seus aliados, além da deterioração dos índices sociais que eram sua grande bandeira, como a mortalidade infantil, a expectativa de vida e a saúde (HOBSBAWM, 1995) 51 Já nesse momento, a mídia estadunidense passa a representar os árabes como os vilões da região, além de serem relacionados com países sem democracia, atrasados, ditatoriais e fundamentalistas. Essas características eram utilizadas nas coberturas midiáticas em favor de Israel, Estado recém-criado e contestado pelos países árabes da região (SEMAAN, 2014). Esse assunto será mais amplamente discutido nos próximos capítulos. 52 Aqui é importante salientar que o Islamismo Político Radical nasceu como uma reação ao colonialismo no Oriente Médio, e que se baseia no fundamentalismo islâmico, que não representa a totalidade, nem ao menos a maioria, dos muçulmanos do mundo (LASMAR; SINGH, 2017). Essa questão será mais amplamente trabalhada no próximo capítulo. 73 estadunidense53 e o World Trade Center. Houve transmissão ao vivo dos ataques, e o mundo pôde assistir grandes símbolos estadunidenses em chamas, os sobreviventes, as operações de salvamentos e os mortos, cerca de três mil, incluindo todos a bordo dos quatro aviões sequestrados (NATIONAL COMMISSION ON.., 2004). Os ataques de 2001 são marcantes na história dos EUA tanto pela quantidade de mortos quanto pelo apelo simbólico do sucesso dos ataques. O fato de membros de um grupo terrorista se organizarem e conseguirem articular um ataque tão letal dentro do território estadunidense, com alvos tão representativos, fez com que fosse percebido um nível de vulnerabilidade e insegurança inédito na história do país. A resposta estadunidense não foi menos dramática: terrorismo e segurança foram colocados no topo das agendas das relações do país com o resto do mundo, enquanto internamente funcionava uma engrenagem que passou a construir um inimigo comum que não era novo, uma vez que árabes já eram vilanizados nos Estados Unidos desde antes dos atentados, mas que a partir do ocorrido passou a ser muito mais real para parcela considerável da população (BARBOSA, 2002). Em outubro de 2001 foi instaurado o Patriot Act (Ato Patriota) em todo o território estadunidense, no qual as autoridades estadunidenses eram autorizadas a utilizarem diversos subterfúgios para vigiar indivíduos que fossem considerados suspeitos, podendo dessa forma identificar possíveis ameaças e impedir novos ataques54. Ao mesmo tempo, houve a ascensão do fenômeno chamado Islamofobia, que pode ser definido como o medo e repulsa a árabes55, provocados pela correlação falaciosa entre muçulmanos e violência. A islamofobia causou uma onda de hostilidade gratuita em direção aos árabes, agravou- se e espalhou-se pelos EUA, e até hoje, dezoito anos depois dos atentados, continua prejudicando o estilo de vida dessa parcela da população estadunidense. De revistas ditas aleatórias em aeroportos, até insultos e ameaças, a Islamofobia é o retrato da construção do árabe como o inimigo dos Estados Unidos (CONSIDINE, 2017).

53 O avião que estava destinado a acertar a capital estadunidense não chegou ao seu destino, por interferência dos passageiros. Acabou caindo em um campo da Pensilvânia, matando todos a bordo (NATIONAL COMMISSION ON.., 2014) 54 Há um amplo debate sobre a incongruência do Ato Patriota com as liberdades individual, de expressão e religiosa, garantidas pela Constituição do país. Entretanto, em vista da percepção do perigo iminente, a população estadunidense aceitou ter parte de suas liberdades ceifadas em busca de segurança. Essa movimentação do governo estadunidense foi mais de uma vez relacionada ao período do macarthismo, uma nova caça às bruxas (LOGAN, 2007). 55 Árabe, e não muçulmano, pois a Islamofobia se baseia em características raciais e não apenas religiosas. Assim, pela cor da pele, roupas e traços, define-se alguém como “muçulmano”, mesmo que não seja essa sua religião (CONSIDINE, 2017). 74

Para além de suas fronteiras, o então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, lança a campanha que ficará conhecida como Guerra Contra o Terror, tendo como alvo o que chamou de Eixo do Mal (Coreia do Norte, Irã, Iraque e, posteriormente, Síria) (RUBENS, 2002). Nesse período, os Estados Unidos fizeram incursões militares em países do Oriente Médio com o objetivo de desarticular as organizações terroristas, muitas vezes contrariando as direções de Organizações Internacionais56. O presidente adotou um discurso inflamado que declarava que aqueles que não estivessem ao lado dos Estados Unidos na Guerra contra o Terror estariam contra os EUA e, apesar da relação conflituosa com as organizações supranacionais e dos protestos em relação ao desrespeito à soberania e aos direitos humanos dos países invadidos, teve sucesso na implementação da agenda contra o terrorismo no sistema internacional, e continua se valendo dela para justificar ataques e incursões na região do Oriente Médio (AL SARHAN, 2017). Mais uma vez, a indústria cinematográfica estadunidense atua como um catalisador na construção da ideia do inimigo do povo eleito. Dessa vez, são os terroristas árabes os maiores obstáculos à paz nos EUA e no mundo. Assim, os Majors produzem dezenas de filmes que tocam na questão do terrorismo, e do árabe como o grande vilão das narrativas. Há muitos filmes que falam diretamente do ataque ao World Trade Center, como “As Torres Gêmeas” (2006), de Oliver Stone, e “Vôo United 93”, também de 2006, dirigido por Paul Greengrass. Para além da representação do maior ataque terrorista da história dos EUA, há diversos filmes, principalmente de ação, em que o perigo é representado pela ameaça árabe, como “Atentado em Paris” (2016), “Rede de Mentiras” (2008), “Ponto de Vista” (2008) e “15h17: Trem para Paris” (2018)57. Para além dos clássicos filmes de ação, há também dramas que contam sobre como a vida dos estadunidenses foi abalada pelo terrorismo árabe. Um dos mais famosos filmes que trata dessa temática é “Tão forte e tão perto” (2011), dirigido por Stephen Daldry. Pode-se compreender, então, que a indústria cinematográfica hollywoodiana tem uma produção consistente sobre o perigo do terrorismo árabe e o impacto desses ataques na nação estadunidense. Nessas produções, os heróis são aqueles que devem livrar o país e o mundo desse perigo, em mais imagens sobre o mito do povo eleito, discutido nessa seção.

56 Um dos momentos mais tensos desse processo se deu em 2003, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) não autorizou a invasão do Iraque e os EUA, ignorando o posicionamento da organização, prosseguiram com a invasão, com o apoio de Reino Unido, Austrália e Polônia. 57 Filmes dirigidos por James Watkins, Ridley Scott, Pete Travis, Clint Eastwood, 75

Os Estados Unidos inauguram, portanto, uma era em que devem enfrentar sua missão como povo eleito para levar ordem e democracia para os países do Oriente Médio, utilizando-se da ideia de uma nação árabe violenta, atrasada, um novo símbolo da barbárie, que deve ser combatido e eliminado58. Mesmo depois da morte de dois de seus maiores rivais na região do Oriente Médio, Saddam Hussein e Osama bin Laden, em 2006 e 2011, os EUA continuam realizando incursões e missões na região, numa guerra contra um inimigo sem face, que muda constantemente de localização, de liderança e de estratégia, causando diversas implicações como o alastramento dos conflitos no Oriente Médio59 (AL SAHRAN, 2017). Na região, um dos maiores aliados dos EUA é o Estado de Israel, que também é alvo de ataques de organizações como o Estado Islâmico. Isso se justifica porque a própria existência de Israel é contestada por essas lideranças, uma vez que ocupa território antes pertencente a árabes. A representação judaica e árabe nos filmes hollywoodianos, objeto dessa pesquisa, acompanha as construções ideológicas das nações no imaginário estadunidense, e é repassada ao grande público através dessas produções. Hollywood é um polo de dispersão de imagens, histórias e ideologias, com alcance mundial, que tem um papel importante na política estadunidense. Sua extensa rede, trabalhada na seção anterior, faz com que seja difícil que se determine as intenções dessas produções cinematográficas e, portanto, que se afirme categoricamente que a indústria se esforça para difundir dada ideologia. O que se pode fazer, e esse será o objetivo dos próximos dois capítulos, é observar certos padrões de representação para compreender que tipo de mensagem grande parte dessas produções tem apresentado aos seus espectadores. Nessa pesquisa, especificamente, serão identificados esses padrões na representação de judeus e árabes, nações provenientes da mesma região do globo, o Oriente Médio, mas com histórias e posicionamentos muito divergentes, de forma a compreender como são construídas as imagens de cada uma nas produções cinematográficas hollywoodianas.

58 A construção dessa ideia se apoia em um discurso construído ao longo de séculos em que o Oriente é tratado como lugar de atraso e violência, o Orientalismo, que será tratado no próximo capítulo. 59 Com a morte de Bin Laden, seu fundador, a Al-Qaeda se enfraqueceu, dando lugar ao Estado Islâmico (EI), novo grande alvo da Guerra Contra o Terror estadunidense, com células presentes em todo o mundo, e com tropas no Iraque e Síria. Em 2014, os EUA formaram uma coalizão internacional contra o EI, realizando bombardeios e incursões no território sírio e iraquiano, com o objetivo de enfraquecer e eliminar o grupo (AL SARHAN, 2017). 76

4. A REPRESENTAÇÃO ÁRABE E JUDAICA NO CINEMA: UM MODELO PARA ANÁLISE

Uma vez delineadas as bases teóricas e históricas do estudo aqui proposto, é necessário que se evidencie os elementos metodológicos que serão utilizados nessa pesquisa. Assim, este capítulo tem como objetivo delinear os princípios empregados na análise dos filmes escolhidos para investigar padrões de representação de árabes e judeus nas produções hollywoodianas. Na primeira seção será apresentado o conceito de securitização de imagens, proposto por Lene Hansen no começo da década de 2010, dentro do campo da Segurança. Será apresentada também a estrutura proposta por Hansen para a compreensão do processo da securitização de imagens, que auxilia essa investigação. Na segunda seção será feita uma revisão histórica do conflito entre árabes e judeus. Serão lembradas as raízes da animosidade entre as duas nações, mas o foco principal serão os embates derivados da criação do Estado de Israel em 1947. A presença europeia e estadunidense no Oriente Médio foi determinante para que os judeus tivessem realizado seu desejo da criação de Eretz Ysrael, ou a Terra de Israel, principal objetivo do movimento sionista. Nessa seção, busca-se compreender por que árabes e judeus, povos originários da mesma região, são percebidos de forma tão distinta pela civilização ocidental. Nessa mesma direção, a terceira seção trata de um conceito central para essa pesquisa: o Orientalismo, conceito criado por Edward Said há mais de quarenta anos que permanece medular nas discussões sobre as relações entre Estados do Oriente e Ocidente. Por fim, a última seção desse capítulo apresenta as etapas da metodologia adotada nessa pesquisa, a Análise de Conteúdo, e as categorias de análise que serão utilizadas de fato no estudo dos filmes escolhidos como corpus dessa pesquisa. Será feita uma discussão sobre a construção do personagem cinematográfico, para que se compreenda as ideias de antagonismo e protagonismo nas produções da sétima arte.

4.1 A cultura de massa a serviço da securitização de imagens Fear, to a great extent, is born of a story we tell ourselves… (STRAYED, 2012, p.41)60

60 “O medo é, em grande parte, nascido de uma história que contamos a nós mesmos.” (STRAYED, 2012, p.41, tradução livre) 77

A atribuições do subcampo da Segurança nas Relações Internacionais podem ser de difícil compreensão para aqueles não inseridos no estudo das RI. Isso porque o subcampo não aborda somente, como o nome indica à primeira vista, o estudo de maneiras com as quais se estabelece a segurança nacional de um país, como a mobilização de Forças Armadas, poder militar e outros elementos. Na verdade, além dessas questões, o campo trata de determinadas políticas que são extrapoladas para além das regras estabelecidas e que se transformam em um tipo especial de política, ou em um elemento maior que as políticas em si. De forma mais simples, a Segurança trata também das questões que determinados atores identificaram e destacaram como ameaças existenciais a eles ou ao sistema internacional, desta forma modificando agendas e priorizando esses assuntos que são, finalmente, vistos como assuntos de Segurança61 (BUZAN; WAEVER; WILDE, 1998). A teoria da securitização, pertencente ao subcampo da Segurança, é bastante utilizada nas Relações Internacionais, e se tornou conhecido principalmente após as estratégias adotadas pelos Estados Unidos da América em sua empreitada para estabelecer um regime de Guerra contra o Terror após os ataques de onze de setembro de 2001 às torres gêmeas do World Trade Center, como foi tratado no capítulo anterior. O termo havia sido cunhado poucos anos antes por Barry Buzan, Ole Wæver e Japp de Wilde, em seu livro “Security: a new framework for analysis”, publicado em 1998. À época, os autores conceituaram a securitização como o produto final do processo de tentativa de “[...] estabelecimento intersubjetivo de uma ameaça existencial com importância tal que engatilha efeitos políticos substanciais” (BUZAN; WAEVER; WILDE, 1998, p.25, tradução livre62). Ou seja, a securitização é o momento no qual as questões políticas passam a ser enxergadas como ameaças existenciais e então a compor as agendas de Segurança dos países ou das discussões multilaterais (BUZAN; WAEVER; WILDE, 1998). Diversas questões podem ser alvo do processo de securitização: o meio ambiente, religião, movimentos sociais, questões de energia, ou qualquer outro elemento que possa vir a ser visto como uma ameaça existencial a um ou mais Estados. Dessa forma, a

61 A inserção das discussões sobre a securitização e sobre a inclusão de outras questões que não as propriamente militares aos estudos do subcampo da Segurança foi um movimento feito pela Escola de Copenhagen de quebrar sua tradição, vista à época como antiquada. Esse processo trouxe novas temáticas e novas discussões que hoje permitem que, por exemplo, se discuta a securitização de imagens (WILLIAMS, 2003). 62 “[...] intersubjective establishment of an existential threat with a saliency sufficient to have substantial political effects.” (BUZAN; WAEVER; WILDE, 1998, p.25). 78 securitização pode ser uma questão interna de um Estado, ou pode adquirir maiores proporções ao ser compartilhada por outros atores. Quando uma questão é securitizada são criadas estratégias e políticas específicas para combatê-la, e, quando a securitização é compartilhada por mais de um Estado ou por diversos atores, essas políticas podem também ser negociadas e compartilhadas, em busca da neutralização da ameaça percebida (BUZAN; WAEVER; WILDE, 1998). Esse foi o caso da Guerra contra o Terror estadunidense, quando o terrorismo foi apresentado como grande ameaça à ordem internacional, e que, portanto, necessitava de uma resposta política (e no caso também militar) emergencial, de forma a neutralizar essa ameaça, como trabalhado no capítulo anterior. É pertinente tocar ao mesmo tempo nas questões de securitização de imagens e no atentado às torres gêmeas do World Trade Center, porque a questão imagética foi um personagem central da trama que culminou no maior atentado terrorista da história dos Estados Unidos, e também um personagem central à narrativa que se deu após o incidente. O WTC era um prédio de negócios comum, muito parecido com centenas de outros prédios de negócios nos Estados Unidos. Não haveria interesse militar estratégico para um ataque a esses prédios específicos, pois neles não havia nenhum alvo que fosse política ou economicamente relevante para um ataque daquele porte. Por que então a escolha? Por causa da imagem (MITCHELL, 2005). As torres eram conhecidos símbolos da cidade de Nova Iorque, e consequentemente dos Estados Unidos, reproduzidas em inúmeros filmes e séries que foram assistidos por indivíduos em todo o mundo. Logo, o ataque às torres foi um ataque iconoclasta (MITCHELL, 2005). Ao mesmo tempo, as imagens dos ataques, das mortes, de todo o trabalho de busca às vítimas foram gravadas nas memórias de centenas de milhares de pessoas por todo o mundo, pois foram repetidas de forma incessante em diversas redes de televisão, contribuindo para a construção da narrativa da securitização do terrorismo. E esse é só um dos exemplos de uma sociedade cuja rotina e costumes estão cada vez mais relacionados às imagens a que são submetidos (CAMPBELL; SHAPIRO, 2007). Próximo à virada do século XXI, as tecnologias que passaram a fazer parte do dia a dia de cada vez mais indivíduos por todo o mundo anunciavam uma mudança em seu modo de viver. As rotinas, relações, modos de comunicar e compreender o mundo passariam a ser regidos por outras, ou pelo menos por mais, regras, preferências e costumes. O desenvolvimento de tecnologias que puderam criar dispositivos cada vez 79 mais compactos e acessíveis ao consumidor médio, como câmeras fotográficas e de vídeo e também celulares fez com que acontecesse um fenômeno chamado visual turn, ou virada visual, na cultura contemporânea. Com o advento dos smartphones, que concentraram todas as funcionalidades desses dispositivos em um aparelho, o fenômeno se tornou ainda mais impactante. A partir desse momento, a produção de imagens aumentaria de forma exponencial, e a reprodução e recepção de imagens teria o mesmo destino (MITCHELL, 2005). Uma mudança tão determinante nas dinâmicas humanas não poderia deixar de impactar diversos campos que estudam o comportamento e as relações humanas. A virada visual nas Relações Internacionais, apesar de ter começado ainda algumas décadas antes do desenvolvimento dos smartphones, nas últimas duas décadas tem se tornado cada vez mais relevante, justamente por essa presença constante de imagens no dia a dia das grandes cidades (HANSEN, 2011). A antiga discussão sobre se a imagem substituiria a escrita como o modo dominante de expressão de nosso tempo tende cada vez mais a uma resposta positiva. A reprodução e propagação dessas imagens é cada vez mais rápida, com a combinação dos dispositivos com as redes sociais, utilizadas por indivíduos em todo o mundo. Isso, somado a alguns episódios recentes, fez com que diversos pesquisadores se voltassem para as imagens como elementos que podem moldar novas políticas. Lene Hansen (2011) foi responsável por cunhar a expressão “securitização de imagens” para o processo no qual imagens constituem algo ou alguém que seja percebido como ameaça ou ameaçado, de forma que suscitem de atores respostas em forma de políticas de neutralização de ameaças, ou quando diferentes atores discutem sobre imagens como questões de segurança. Uma das pioneiras e mais marcantes aparições do debate sobre imagens e o estabelecimento de agendas e políticas foi o artigo de Steven Livingston e Todd Eachus (1995), que cunhava o termo “efeito CNN”. No artigo, os autores afirmam que a rede CNN (Cable News Network) de notícias, um dos canais mais assistidos dos Estados Unidos, havia, em algum grau, conduzido a política externa dos EUA no caso da crise humanitária da Somália. O efeito CNN se dava por meio da transmissão de imagens chocantes que retratavam as crises humanitárias e conflitos acontecendo ao redor do mundo. Neste artigo, os autores usam como exemplo o caso da Somália, afirmando que os investimentos estadunidenses para a mitigação da crise no país só foram iniciados após 80 a transmissão de imagens de cidadãos somalis desnutridos e em condições precárias de sobrevivência (LIVINGSTON; EACHUS, 1995). Dois anos mais tarde, o professor Steven Livingston lançou um artigo no qual se aprofundaria na discussão sobre o efeito CNN. Para ele, não há dúvidas de que a mídia em geral afeta profundamente o processo de estabelecimento de política externa dos EUA. Cita, como comprovação de seu ponto, a declaração de James Schlesinger, antigo Secretário de Defesa estadunidense que atuou nas administrações de Richard Nixon e Gerard Ford, entre 1973 e 1975. Schlesinger afirmou que no período pós-Guerra Fria os EUA estruturavam sua política externa baseados em imagens e impulsos. Isso significa que o governo observava que assuntos eram cobertos pela mídia e prejudicavam sua imagem, e só então tomava providências para responder a essas demandas (LIVINGSTON, 1997). De acordo com o intelectual, a mídia pode influenciar na política externa de três formas. Pode ser, primeiramente, uma aceleradora de estabelecimento de políticas, e em segundo lugar uma agência que influencia na formação da agenda estatal. Essa influência se dá quando a transmissão de imagens impacta audiências, que passam a pressionar os atores estatais para que respondam às questões apresentadas com urgência. Porém, as mídias podem também ser um impedimento ao alcance de políticas desejadas pelo Estado, já que a transmissão em tempo real de investidas estatais militares ou humanitárias podem prejudicar essas mesmas incursões, ao denunciar estratégias e posições das tropas (LIVINGSTON, 1997). Fica evidente, então, que a transmissão de imagens pela mídia é imprescindível ao estabelecimento da política externa dos Estados. Logo, se intensifica a percepção de que as Relações Internacionais precisam se debruçar nas imagens, conferindo a elas o status de objeto de pesquisa e ferramenta de proposição de políticas. Para além de vê-las como uma variável na construção de política externa, Lene Hansen propõe que as imagens precisam ser enxergadas como tendo sua própria condição ontológica e política. Isso será explorado mais à frente (HANSEN, 2011). De acordo com a autora, desde a virada do milênio há uma crescente necessidade de se dedicar atenção empírica e teórica para as imagens. Essa necessidade vem de três fatores, de acordo com a autora: tecnologia, eventos e debates acadêmicos. A tecnologia, além do que já foi exposto nessa seção, traz à tona uma questão chave para a securitização de imagens, no sentido que modifica a relação entre produtores de imagens e receptores. Uma hierarquia que antes era bem estabelecida hoje se torna mais fluida, já que qualquer 81 um com um smartphone pode produzir imagens e compartilhá-las com outros indivíduos. Isso leva ao segundo fator: os eventos. A possibilidade de que cidadãos transmitam fatos históricos e políticos por meio de seus dispositivos pode ter impacto na adoção de políticas nacionais e internacionais. Esse foi o caso dos vídeos dos soldados estadunidenses no Iraque que viralizaram nas redes no fim da década de 2000. Neles, os soldados humilhavam civis e apresentavam atitudes antiéticas e incompatíveis com as diretrizes formais das Forças Armadas estadunidenses (HANSEN, 2011). O compartilhamento dessas imagens levou os EUA à adoção de políticas mais rígidas de punição a esses desvios de conduta, e também à comoção internacional em favor dos iraquianos. Por fim, os debates acadêmicos também favoreceram a virada visual das Relações Internacionais, fruto do movimento constante do campo de se voltar às Humanidades para inspirações intelectuais. Assim como no caso da virada linguística, do Feminismo, do Pós-estruturalismo, Pós-colonialismo, estudos de raça e outros, as RI se aproximam das tendências de outros campos das Ciências Humanas como a Sociologia e a História da Arte e passam a desenvolver pesquisas e discussões tendo as imagens como objeto de estudo (HANSEN, 2011). O esforço é justificado. A discussão sobre como as imagens podem funcionar como atos comunicativos, como podem expressar significado e como podem impactar diversos tipos de audiência é frutífera para o campo das Relações Internacionais em muitos aspectos, desde o estabelecimento de identidades, passando pela propaganda de diferentes regimes, chegando à construção de ameaças por meio de imagens. A mudança nas mídias e no conteúdo propagado por elas faz com que haja novas possibilidades de utilização e interpretação dessas imagens, que só são enxergadas como neutras por um fruidor ou espectador inocente ou despreparado. O questionamento de como funcionam esses processos, e qual é o papel das imagens no estabelecimento de ideias e proposição de políticas, portanto, é um debate profícuo para as Relações Internacionais (WILLIAMS, 2003). Esse debate é relevante porque exige que os pesquisadores levem em consideração a dimensão ontológica da imagem. É necessário que se discuta e pesquise sobre como a imagem funciona em si mesma, para que depois se compreenda sua dimensão política, ou como as imagens se relacionam com outros discursos. A partir desse ponto, a Semiótica passa a ser relevante para os estudos de Relações Internacionais. Para um dos fundadores da Semiótica, Charles Sanders Pierce (1979), cada imagem constitui um signo. De acordo com o autor, um signo é tudo aquilo que significa alguma coisa para alguém, devido à 82 sua relação com qualquer outra coisa. As imagens, como todos os signos, são formadas por três elementos: o significante, o interpretante e o objeto referente. O significante é a face perceptível do signo, sua materialidade, elemento com o qual temos contato. Já o objeto referente é aquilo que o signo representa, ou seja, seu correspondente no mundo. E por fim, o interpretante, o significado final do signo, que é formado por diversos processos internos e externos do signo, que o relacionam consigo mesmo e com o fruidor que o interpreta63 (PIERCE, 1979). A constituição do signo de Pierce ajuda a compreender como as Relações Internacionais podem utilizar a dimensão ontológica da imagem para compreender seus efeitos nas políticas interna e externa dos Estados. O significante das imagens, ou seja, as imagens em si, são recebidas por seus espectadores ou fruidores, que produzem um interpretante fazendo a conexão entre o significante e o objeto referente. De forma mais simples: é a partir da conexão da imagem com seu correspondente no mundo que os espectadores lhe conferem significado. Cada indivíduo receptor da imagem produzirá seu próprio significado, pois ele está conectado tanto ao signo quanto à experiência colateral do indivíduo, ou seja, às suas vivências anteriores, sua história e posição socioeconômica, política e geográfica (SANTAELLA, 2002). Para o estudo de imagens nas Relações Internacionais, é preciso que se leve em consideração o fato de que as imagens só têm poder quando relacionadas a um contexto prévio, um debate, seja ele textual ou não. Para William J. T. Mitchell (2005), as imagens, diferentemente das palavras, não informam ou definem coisa alguma. Elas mostram algo que precisa ser interpretado pelo indivíduo que as recebe, ou por um intermediário que diz ao indivíduo o que ele está vendo. Na falta do mediador, o espectador projeta sua própria voz na imagem, por intermédio de sua experiência colateral, e cria uma narrativa que a decifre. Esse processo, de decifrar a mensagem da imagem em função de um intertexto, é o mesmo processo de interpretação de um texto. Dessa forma, nem imagens nem palavras por si só podem securitizar uma questão64 (MITCHELL, 2005).

63A Semiótica é um campo extenso, com seus próprios debates e contradições. Nessa dissertação, a constituição do signo para Pierce foi apresentada de forma simplificada, para indicar a abertura das discussões sobre as relações das imagens (signos) com as interpretações que provocam na audiência. Para melhor compreensão da constituição dos signos, suas nuances e seus desdobramentos, checar Pierce (1979), Joly (1996) e Santaella (2002). 64Algumas exceções cabem a essa afirmação, como imagens e palavras icônicas como a suástica nazista e a palavra “apartheid”, que podem, por terem sido consagradas como símbolos universais do mal ou do indesejável. Esses ícones, por seu fácil reconhecimento, são espontaneamente securitizadores (MITCHELL, 2005) 83

Levando essas questões em consideração, Hansen estabelece uma estrutura por meio da qual se estuda o processo que leva à securitização das imagens. Propõe que se leve em consideração quatro componentes que indicarão a potência de uma imagem de engatilhar processos que levarão à sua securitização: a imagem, o intertexto imediato, os discursos políticos dominantes no país em questão e por fim os textos linguísticos que atribuem significado para a imagem para um determinado grupo. Para que a securitização de imagens aconteça, esses quatro componentes precisam se relacionar de forma a construir uma ideia de ameaça existencial, ou construir uma narrativa sobre algo que esteja sendo ameaçado (HANSEN, 2011). No caso dessa pesquisa, há as imagens de árabes e judeus produzidas e propagadas pelos filmes de Hollywood, que serão analisadas e discutidas no próximo capítulo. Essas imagens se conectam aos seus próprios intertextos prévios, que vinculam essas nações ao terrorismo e ao holocausto, respectivamente. Esses componentes se relacionam às políticas e discursos estadunidenses, que os aproximam diplomaticamente de Israel65 e criam relações delicadas com grande parte dos países árabes66, e culminam na construção dessas representações para diversos grupos que assistem esses filmes. Lene Hansen afirma que as imagens possuem três características que fazem com que sua securitização se diferencie da securitização linguística. Esses elementos são sua imediaticidade, sua circulabilidade e sua ambiguidade. A imediaticidade se refere ao poder das imagens de evocar respostas emocionais imediatas dos fruidores. Enquanto o impacto textual ocorre após a dedicação da leitura àquele texto, a imagem provoca imediato impacto no espectador, pois o conecta instantaneamente à questão sobre a qual se fala. A imediaticidade faz com que o espectador se sinta mais próximo do que se fala, e também faz com que se identifique com o que foi representado, senão ativamente, identificando-se com a situação que foi apresentada, passivamente, ao se identificar com o indivíduo que observa a situação e captura a imagem (HANSEN, 2011)67.

65A política externa estadunidense não é um dos focos dessa pesquisa, por esta razão não será trabalhada. Para um aprofundamento na história das relações diplomáticas entre EUA e Israel, ver Zanotti (2018) 66Em Jones (2017), há a discussão sobre as relações dos EUA com diversos países árabes, além da apresentação de dados que ilustram as relações econômicas dos EUA com a região. 67É válido apontar, porém, que é necessário que se discuta o papel dessas imagens na normatização da pobreza, na familiarização do sofrimento e morte, que levam à apatia dos espectadores, em troca do conhecimento que os fruidores adquirem ao receber essas imagens. Como discute Susan Sontag em sua obra sobre a fotografia de guerra: “O limite do conhecimento fotográfico do mundo é que, conquanto possa incitar a consciência, jamais conseguirá ser um conhecimento ético ou político. O conhecimento adquirido por meio de fotos será sempre um tipo de sentimentalismo, seja ele cínico ou humanista” (SONTAG, 2004, p.34). É preciso, portanto, questionar o papel dessas imagens na familiarização do sofrimento e sua 84

A segunda característica das imagens que tornam sua securitização singular é a sua circulabilidade. De acordo com a Lene Hansen, “[...] a circulabilidade é tanto uma condição material-tecnológica quanto uma condição social e acentua o significado de velocidade e espaço para os processos de securitização” (HANSEN, 2011, p.57, tradução livre68). A possibilidade de produção e grande velocidade da circulação das imagens, proporcionada pelos dispositivos móveis e pela internet e redes sociais confere às imagens um poder único de alcançar diversas audiências. Além disso, desafia a teoria da securitização pois desloca para os cidadãos o poder de engatilhar o processo de securitização, papel que antes era restrito às elites políticas. Por fim, a última característica é sua ambiguidade. A ambiguidade das imagens vem do fato de que nem todos os espectadores estão familiarizados com os símbolos, lugares, pessoas e situações nelas representadas. O processo de securitização precisa apresentar uma ideia de ameaça coletiva, e a ambiguidade das imagens faz com que esse movimento seja dificultado, uma vez que, como dito anteriormente, cada indivíduo produzirá sua própria interpretação da imagem recebida (HANSEN, 2011). A ambiguidade também difere a securitização de imagens da securitização linguística pela ausência de proposições estratégicas para neutralização da ameaça. Securitizações linguísticas estabelecem sentimentos de ameaça e perigo, suscitando a necessidade de ações resposta. Essas ações e políticas quase sempre são especificadas pela securitização linguística após a apresentação da ameaça existencial, o que não ocorre com a securitização de imagens. Novamente, imagens não dizem nada. Imagens mostram apenas as ameaças, evocando as sensações de perigo, mas não apresentam sugestões políticas subsequentes. Desta forma, as imagens precisariam contar com um texto mediador, seja falado ou escrito, para fazer as demandas políticas para mitigar a ameaça. Essa característica, porém, não compromete a potência da securitização das imagens, apenas delega a outro tipo de discurso a proposição de resolução da ameaça apresentada (HANSEN, 2011). Um dos pontos fundamentais da teoria da securitização é que a segurança é constituída por meio de uma modalidade discursiva específica, que se utiliza de narrativas envolvendo medo e ameaça para suscitar medidas radicais e emergenciais para garantir a

consequência para a securitização, pois existe a possibilidade que as imagens anestesiem e distanciem os espectadores das ameaças apresentadas (HANSEN, 2011). 68 “Circulability is simultaneously a material-technological and a social condition and it accentuates the significance of speed and space for processes of securitizations.” (HANSEN, 2011, p.57) 85 sobrevivência (seja ela física, cultural, religiosa, territorial, etc.) de um Estado ou grupo específico. Essas ameaças podem ter diversas fontes: militares, políticas, ambientais, econômicas, dentre outras (HANSEN, 2011). Nessa pesquisa, argumenta-se que as representações cinematográficas de judeus e árabes constroem dois processos de securitização opostos, porém complementares, dado o conflito das nações na região do Oriente Médio. Enquanto o processo de securitização das imagens de árabes provoca a ideia de que são uma ameaça à segurança nacional, o processo em relação aos judeus motiva a ideia de que o povo judeu está sendo ameaçado. Isso se dá num contexto de construção de personagens que ocupam os lugares de protagonistas e antagonistas das produções cinematográficas. Esses papéis podem acionar o intertexto dos conflitos árabe-judaicos na região do Oriente Médio e posicionar as nações também como protagonista e antagonista nesse contexto, fora das telas de cinema. Para a compreensão desse processo, na próxima seção será debatido o conflito milenar entre árabes e judeus, que culminou em diferentes confrontos armados após a criação do Estado de Israel, na metade do século XX.

4.2 O Conflito Árabe-Israelense I believe that one fine day All the children of Abraham Will lay down their swords forever in Jerusalem Well, maybe I’m only dreaming And maybe I’m just a fool But I don’t remember learning How to hate in Sunday School (BROZA, 2014)69

Na história do conflito entre Israel e o mundo árabe, houve muitos eventos que causaram destruição e morte, criando animosidade entre seus componentes e fazendo com que a resolução para o conflito na região se tornasse cada vez mais difícil. As origens e histórias das nações apresentam muitas diferenças, mas também inúmeras similaridades. Ambas são descendentes de Sem, filho de Noé, sendo consideradas religiões semitas, originaram-se e ocupam a mesma região e falam línguas aparentadas, uma vez que tanto o árabe quanto o hebraico são derivados da mesma matriz linguística, o aramaico (ZAHREDINNE; PIRES, 2017). As duas nações se encontraram diversas vezes durante

69 “Eu acredito que um belo dia/ Todos os filhos de Abraão/ Deitarão suas espadas para sempre em Jerusalém/ Bem, talvez eu esteja apenas sonhando/ E talvez eu seja apenas um tolo/ Mas eu não me lembro de aprender/ A odiar na escola dominical” (BROZA, 2014, tradução livre) 86 a história, e protagonizam até hoje um conflito extremamente complexo, que influencia seus descendentes em diáspora por todo o globo. É um grande desafio determinar o evento exato que iniciou a animosidade entre árabes e israelitas70 no Oriente Médio. O mito da diferenciação dos dois povos pode ter suas raízes em uma disputa bíblica entre os descendentes de Abraão71, enquanto o início do conflito entre as nações teve seu início há mais de um milênio, quando a região foi palco de eventos fundamentais tanto para os seguidores do judaísmo quanto para os que seguem o Islã, religiões com as quais a maioria das populações israelita e árabe se identifica, iniciando uma disputa pela terra. Jerusalém é uma cidade particularmente significativa no conflito, por ser uma cidade sagrada tanto para judeus quanto para muçulmanos72. A disputa por essa terra sagrada para as religiões monoteístas é acirrada e antiga, o que poderia justificar o conflito entre as nações, mas a gênese do conflito moderno na região data da primeira metade do século XX, quando a influência europeia na região levou a uma série de eventos que culminaram com a criação do Estado de Israel e a guerra de 1948, o primeiro marco do conflito entre as nações israelita e árabe (ZAHREDDINE & PIRES, 2017).

70 Há muita ambiguidade em relação a como se deve referir aos indivíduos que vivem na área que hoje conhecemos como Oriente Médio. Para o território de Israel, estamos acostumados a nomes como israelitas, judeus ou israelenses, enquanto as pessoas que habitam os demais países da região são conhecidas como árabes, muçulmanos, além de iranianos, egípcios, e outros. Para fazer uma rápida diferenciação entre as denominações: árabe e israelita são termos ligados à linhagem ancestral; muçulmano e judeu são denominações relacionadas à religião; e israelense, sírio, libanês, palestino e outros são os adjetivos pátrios que são dados aos que nascem nos Estados que hoje conhecemos como Israel e os Estados que formam o mundo árabe. Como existem pessoas de diferentes linhagens e religiões que vivem no território, pode-se dizer que há árabes cristãos, judeus que são libaneses, muçulmanos israelenses e muitas outras combinações (ZAHREDDINE; PIRES, 2017). 71 Na Bíblia, Sara era a esposa de Abraão, e Agar uma escrava egípcia, que servia a Sara. Deus havia feito uma promessa a Abraão, na qual seu filho seria o líder do povo escolhido por Ele. Porém, o casal estava em idade avançada, e Sara tinha dificuldade de ter filhos. Para resolver a questão, Sara oferece sua serva Agar para que carregue a linhagem de Abraão, e Ismael é o fruto desse relacionamento. Tempos depois, Sara acaba engravidando, dando origem a Isaque. A presença de dois herdeiros traz conflitos à família, e Sara decide expulsar Agar e seu filho, forçando-os a peregrinar pelo deserto, enquanto Isaque segue como filho legítimo de Abraão. De acordo com a Bíblia, os descendentes de Ismael deram origem ao povo árabe, e os descendentes de Isaque, ao povo judeu (Gn 2, 16-21). Assim, segue o questionamento: quem é o povo escolhido por Deus? Os descendentes do primogênito Ismael ou os que descendem de seu filho legítimo, Isaque? A quem pertencerá a Terra Prometida por Deus? 72Para os judeus, que a chamam de Yerushalayim, é onde se encontra o local mais sagrado do mundo, o Muro das Lamentações, que é o muro restante do Segundo Templo de Israel, destruído pela invasão romana da região, e para onde os judeus devem ir uma vez por ano, de acordo com a tradição (ZAHREDDINE & PIRES, 2017). Para os muçulmanos, Jerusalém é chamada de al-Quds, e nela se encontram o Monte do Templo, onde acredita-se que seja o local de onde Maomé ascendeu aos céus, e Al-Aqsa, a mesquita onde Maomé teve um contato espiritual com os outros profetas da religião islâmica, - Jesus, Abraão e Moisés (ABU-AMR, 1995). A cidade é também sagrada para cristãos, pois é onde aconteceu a via sacra de Jesus, onde ele foi crucificado e onde fica o santo sepulcro, local onde se acredita que aconteceu sua ressurreição (ZAHREDDINE & PIRES, 2017). 87

O final do século XIX vê a ascensão do antissemitismo na Europa e a disseminação dos movimentos nacionalistas no Velho Mundo. O movimento sionista é inaugurado neste contexto de nacionalismo explosivo como uma forma de defesa dos direitos dos judeus, uma vez que os movimentos europeus tendiam a vê-los como uma comunidade separada. Em 1896, Theodor Herzl publica "O Estado Judeu", afirmando que o povo judeu tem direito à sua terra prometida depois de tantos anos de diáspora, Eretz Yisrael, ou Terra de Israel. Em 1897, no primeiro Congresso Sionista, fica determinado que este Estado fosse formado no território da então Palestina, devido ao seu significado religioso. Neste momento, ocorre uma significativa onda de imigração judaica para a Palestina. Durante as duas primeiras décadas do século XX, os judeus compraram extensos pedaços de terra na Palestina do Império Otomano, que se encontrava em grave crise econômica, o que gerou animosidade com os árabes na região (SHLAIM, 2014). Por outro lado, a presença de países europeus no Oriente Médio durante a Primeira e Segunda Guerras Mundiais foi um elemento que certamente influenciou a ascensão do nacionalismo árabe, que se espalhou pela região até o final da Primeira Guerra Mundial e insuflou os conflitos e a violência entre árabes e judeus. O Acordo Sykes-Picot73 (1916) e a Declaração Balfour74 (1917) deixaram claro que as autoridades europeias procurariam atender aos interesses dos judeus, o que fortaleceu ainda mais o movimento nacionalista na região (SHLAIM, 2014). As elites árabes se mobilizaram num esforço de desenvolver identidades nacionais para os Estados criados após a confirmação do estabelecimento do controle europeu sobre a região por meio do Acordo Sykes-Picot, baseando-se na oposição aos valores ocidentais, que menosprezavam o Islã como religião e estilo de vida, e na luta contra a influência europeia na região (HAIM, 1962). A década de 1930 trouxe o fortalecimento de movimentos fascistas na Europa, e com ela uma nova onda de imigração judaica para a Palestina. A ascensão do Reich e de Adolf Hitler, seguida pela perseguição de judeus na Europa, causou não apenas outra onda de imigração e diáspora judaica, mas também infligiu um sentimento de culpa pós- holocausto nos países europeus, o que acabou definindo o início de um dos conflitos mais longos de nossos tempos. Em 1947, a ONU dividiu o território da Palestina, anteriormente

73 Acordo firmado secretamente entre o Reino Unido e a França, no qual dividiam entre as potências europeias as áreas de controle da região do Oriente Médio após a derrota do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial (SHLAIM, 2014). 74 Carta enviada por Arthur Balfour, secretário britânico para assuntos estrangeiros, para a liderança judaica no Reino Unido, o Barão de Rothschild, garantindo a intenção da Coroa de estabelecer um Estado judeu na Palestina após a vitória do Reino Unido na Primeira Guerra Mundial (SHLAIM, 2014). 88 controlado pela Grã-Bretanha, para formar dois Estados, um israelense e outro palestino. A divisão agradou os judeus, mas não os árabes, que viviam na região há séculos e viam o sionismo apenas como a perpetuação do imperialismo europeu (SHLAIM, 2014). Nesse mesmo ano, a autoridade britânica deixou a Palestina e em 1948 Israel declara sua independência. Os representantes de Estados árabes, que até então haviam tido pouco envolvimento com o assunto, se sentem ofendidos com a tomada de seu território ancestral pelos judeus e declararam guerra contra Israel. Os israelenses estavam em desvantagem numérica, mas os países árabes desconfiavam dos interesses uns dos outros pela região, o que fazia com que não houvesse coesão entre seus exércitos. Assim, em 1949, Israel vence a guerra e expande seu território para tomar ainda mais do território palestino, fazendo com que mais de meio milhão de refugiados se abrigassem em países árabes vizinhos. As fronteiras de Israel, negociadas nos acordos de armistício em 1949, passaram a ser chamadas de Linha Verde. A Cisjordânia e a Faixa de Gaza, territórios palestinos que resistiram ao ataque israelense, começaram a ser governados pela Jordânia e pelo Egito, respectivamente75 (SHLAIM, 2014). Para alguns autores todos os conflitos que vieram depois de 1948 entre árabes e israelenses são derivados dessa guerra. Alguns deles são causados diretamente pela guerra de 1948 e outros a usam como justificativa (ZAHREDDINE & PIRES, 2017). O conflito reforçou o choque entre o sionismo e os movimentos nacionalistas árabe, que começaram a radicalizar propositadamente suas diferenças, tentando fortalecer suas posições (SHLAIM, 2014). A Guerra dos Seis Dias, em 1967, é travada entre Israel e uma coalizão entre Egito, Síria, Jordânia e Iraque. O conflito é vencido rapidamente por Israel e culmina com a conquista de uma parcela ainda maior do território palestino, além da Linha Verde. Israel passou então a controlar Jerusalém Oriental, as colinas de Golã e a Cisjordânia. A maior vitória israelense até então também aprofundou a desconsideração política do país por seus vizinhos: A política militar pós-1967 parecia se esforçar para provar a observação de Isaac Deutscher de que Israel estava se transformando na "Prússia do Oriente Médio". Foi caracterizada por uma constante demonstração de poder, por desconsideração a questões não militares e por uma arrogância arrebatadora ao longo do pensamento de que "estamos acima de todos, todos em todo o

75 Os palestinos tiveram então negado seu direito a uma nação tanto por Israel quanto por seus aliados árabes. Este evento e a diáspora palestina que se seguiu vieram a ser conhecida como “Al-nakba”, ou “a catástrofe”, uma mancha na história e no orgulho da Palestina (SHLAIM, 2014). 89

mundo". Relatos sobre tortura de prisioneiros passaram a ser cada vez mais constantes. (SHANIN, 1988, p. 238, tradução livre)76

Até 1987 o país ainda se envolveria em muitos outros conflitos, contra Palestina, Líbano, Iraque e outros. A tensão na região escalou, uma vez que Israel passou a adotar estratégias que tornavam os palestinos cada vez mais dependentes econômica, política e socialmente de Israel. Os territórios palestinos se encontravam isolados pela geografia ou pelas fronteiras com o Estado israelense, fazendo com que Israel tivesse o controle da entrada de pessoas e produtos no território palestino. A Primeira Intifada - o termo árabe para revolta ou insurreição – aconteceu em 1987, na forma de um levante palestino contra Israel que durou seis anos. A revolta foi uma consequência da crescente insatisfação e revolta com as políticas israelenses na Palestina77 (SHLAIM, 2014). Os protestos foram suprimidos em 1993, após os Acordos de Oslo, assinados por Yasser Arafat, líder da Organização de Libertação da Palestina (OLP). Sete anos depois, após os Acordos de Oslo, em 2000, eclodiu a Segunda Intifada (SHLAIM, 2014). Neste momento, Ariel Sharon havia se tornado o primeiro-ministro de Israel, o que por si só era um ataque à nação árabe, uma vez que Sharon era conhecido como "O Açougueiro" por seu envolvimento com o massacre de dezenas de árabes durante seus sessenta anos de carreira militar, e odiado pela comunidade palestina desde o seu envolvimento nos massacres dos campos de refugiados de Sabra e Shatila78 (MALONE, 1985). Na Figura 3, o cartunista Latuff faz uma alusão aos crimes do Açougueiro, mostrando-o carregando o peso das mortes provocadas para o inferno, após sua morte em 2014, observado pela personificação da Palestina. Na charge, Sharon carrega Sabra e

76 “Post-1967 military policy seemed to be at pains to prove Isaac Deutscher's remark that Israel was turning into the 'Prussia of the Middle East'. It was characterized by a constant brandishing of power, by disregard of non-military considerations and by a sweeping arrogance along the lines of 'we are above everybody, everybody all over the world'. Reports about torture of prisoners were increasingly heard.” (SHANIN, 1988, p. 238) 77 A explosão do conflito ocorreu após a morte de quatro moradores do campo de refugiados de Jabaliya - o maior da Faixa de Gaza -, atropelados por um motorista de caminhão israelense, e se espalhou como uma série de protestos contra a ocupação israelense de terras palestinas. O acidente causou protestos porque um dos mortos era um líder religioso e de resistência particularmente importante. Milhares foram mortos durante o conflito, o que chamou a atenção internacional para o confronto entre as duas nações e prejudicou a imagem de Israel entre seus pares (SHLAIM, 2014). 78 Os massacres ocorreram em 1982, quando representantes do partido de direita cristão libanês realizaram um ataque simultâneo em retaliação à morte de seu líder, matando civis em ambos os campos de refugiados, matando cerca de 3500 pessoas. Embora não tenha sido um ataque israelense, a Comissão Kahan, presidida por representantes da ONU, concluiu que Sharon, o ministro da Defesa na época, foi avisado sobre os ataques e se recusou a agir contra eles, o que o tornou responsável pelas mortes de palestinos (MALONE, 1985). 90

Shatila, mas também Qibya e Jenin79, outros dois ataques a palestinos pelos quais Sharon foi responsabilizado, nos quais mais de uma centena de pessoas foram mortas. A Segunda Intifada eclodiu quando Sharon visitou o Monte do Templo, o que foi visto como um ato provocativo pelos palestinos80. A presença de uma figura tão negativamente simbólica naquele solo sagrado causou indignação na população palestina, que Figura 3. Ariel Sharon, o "açougueiro de Beirute" (LATUFF, 2014) atirou pedras na polícia israelense que fazia a segurança da visita do primeiro-ministro ao local, e foi brutalmente reprimida. Mais uma vez, os protestos se espalharam pelos territórios palestinos, com o aumento do número de ataques por atentados suicidas como uma estratégia dos grupos de resistência (SHLAIM, 2014). Esses grupos têm um modus operandi chamado de heroic warfare, ou guerra heroica, que pode ser justificado pelo desequilíbrio de forças entre os combatentes e o alto nível de carga ideológica de um conflito, e que ajuda a compreender por que os ataques suicidas passaram a ser largamente utilizados a partir da década de 1990, tanto no Oriente Médio quanto em um dos maiores ataques terroristas transnacionais da história, os ataques às torres gêmeas nos EUA em setembro de 2001, conforme exposto no capítulo três: A guerra “heroica” é um tipo de estratégia característica de guerras existenciais que são alimentadas pela ideologia. Dessa forma, ao contrário da guerra pós- heroica, tanto a religião quanto o nacionalismo podem servir como poderosos mobilizadores para a guerra heroica. [...] Na verdade, a guerra heroica incorpora certa tolerância para as baixas e não apenas os combatentes devem se sacrificar pela causa maior, mas esse sacrifício também é considerado um ideal desejado (SINGH, 2012, p.535, tradução livre81)

79 Qybia é uma vila palestina na Cisjordânia, que foi atacada em 1953 por uma tropa sob o comando de Ariel Sharon, em represália ao assassinato de uma mulher e duas crianças israelenses, vítimas de um ataque por granada. Em Qybia, mais de 70 civis foram mortos, dos quais dois terços eram mulheres e crianças. Foram destruídas casas, a escola e a mesquita da vila (KHALIDI, 2002). Jenin é um campo de refugiados palestinos também na Cisjordânia, que sofreu ataque das Forças de Defesa de Israel sob o comando de Ariel Sharon, agora Primeiro Ministro de Israel. O ataque foi justificado por Jenin ter sido apontada pelas autoridades israelenses como o local de esconderijo de terroristas que estavam atuando na Segunda Intifada. Mais de 50 palestinos foram mortos, sendo mais da metade civis (GOODMAN; CUMMINS, 2003). 80 O Monte do Templo é um lugar sagrado para os muçulmanos e é considerado proibido aos judeus desde 1967, com regras específicas para visitação de não muçulmanos (SHLAIM, 2014). 81 "'Heroic’ warfare can be said to be characteristic of existential wars that are fueled by ideology. As such, unlike post-heroic war, both religion and nationalism can serve as powerful mobilisers for heroic warfare. […] Indeed, heroic war embodies a certain tolerance for casualties and not only are combatants expected 91

O aumento no número de ataques por atentados suicidas fez com que Ariel Sharon instaurasse uma política de Guerra Contra o Terror, aliando-se ao discurso das políticas dos EUA contra o terrorismo após os ataques de 11 de setembro. As ações de Sharon eram contra movimentos de resistência como o Hamas e o Fatah, que foram então enquadrados como grupos terroristas82. A reivindicação pública por políticas mais fortes contra os ataques terroristas pressionou Ariel Sharon a tomar medidas enérgicas e iniciar a construção de uma muralha que isolaria a Cisjordânia do território israelense. A construção começou em julho de 2003, a leste da Linha Verde, invadindo território palestino e exigindo a expropriação e expulsão de comunidades árabes, separando-os de suas casas, fazendas, trabalho e fontes de água. A construção do muro deixou claro que Israel estava abandonando definitivamente a solução de dois Estados. Israel afirmou que a muralha era temporária, mas durante a sua construção, ficou claro que se tratava de uma ação permanente, pela dimensão da obra83 (SHLAIM, 2014). Ao longo dos anos, a incapacidade de atores globais de pressionar Israel e seus aliados a trabalhar para melhorar a qualidade de vida dos palestinos levou a região da Palestina a uma catástrofe humanitária (OCHA, 2017). Israel tem nos Estados Unidos um dos seus maiores aliados no Conselho de Segurança, que nos últimos dez anos, na maioria das vezes, não apoiou publicamente a ação do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, mas também não concordou ou incentivou com a imposição de qualquer tipo de punição a Israel pelas dificuldades enfrentadas pelos palestinos em razão das ações desse Estado. Ainda em campanha, Donald Trump prometeu a mudança da Embaixada dos EUA de Telavive para Jerusalém, e seu reconhecimento como a capital de Israel. A Autoridade Palestina (AP), o presidente Mahmud Abbas, foi aos Estados Unidos para tentar oferecer to sacrifice themselves for the greater cause, but such sacrifice is also held up as a desired ideal within heroic societies" (SINGH, 2012, p.535) 82Vale ressaltar que, embora esses grupos usem estratégias terroristas como atentados suicidas, a compreensão dos movimentos de resistência palestinos deve passar pela importância social desses grupos para a população local e pela análise do contexto de violência e força desequilibrada entre eles e Israel. Essas táticas são usadas como recurso de atores militares mais fracos contra as armas pesadas e tecnológicas de Israel (SINGH, 2012). Afirmar que são grupos terroristas, levando em consideração o estigma carregado pela expressão, e desconsiderar suas razões para se envolver em tais táticas foi usado por Sharon para fortalecer o combate a esses movimentos e o endurecimento de suas políticas de isolamento e repressão contra a população palestina (SHLAIM, 2014). 83A construção do Muro da Cisjordânia foi desencorajada pela maioria da comunidade internacional, e a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou uma série de resoluções que afirmavam que o Muro infringia o direito à autodeterminação palestina, e portanto que os árabes deveriam ser libertados e compensados por qualquer dano, e também que os assentamentos israelenses em território palestino - dentro e fora do muro - violavam a lei internacional. Todas essas recomendações e resoluções foram ignoradas por Israel, que continua a construir e planejar o Muro - que já tem 440 quilômetros de extensão - até os dias atuais, e continua a impedir que a ajuda externa chegue à população palestina, insultando a comunidade internacional e desconsiderando várias leis humanitárias (SHLAIM, 2014). 92 a perspectiva palestina ao candidato, mas não foi recebido por Trump (ARNAOUT, 2017). Jerusalém continua a ser a questão mais problemática no conflito israelo- palestino, e consequentemente do conflito entre árabes e israelenses. Uma questão que se mostrou tão complicada que os governos estadunidenses nos últimos vinte anos pouco discutiram. Apesar de afirmar que planejavam transferir a embaixada para Jerusalém, todas as administrações anteriores à de Donald Trump adiaram a decisão, devido a problemas de segurança, reativos à possibilidade de criar mais atrito na região. Em dezembro de 2017, Trump reuniu representantes da imprensa internacional para anunciar sua decisão de reconhecer Jerusalém como a capital de Israel e pedir que a embaixada americana fosse transferida de Telavive para a Cidade Santa (LANDLER, 2017). A decisão havia sido desencorajada por muitas autoridades internacionais, chefes de Estado e agências de direitos humanos, porém o presidente dos Estados Unidos cumpriu sua promessa de campanha e deu ao governo de Israel o que haviam esperado pelas últimas duas décadas. No anúncio, Trump tentou se manter imparcial, mas deu pouca ou nenhuma esperança aos palestinos, uma vez que ele não se dirigiu a seus apelos para ter Jerusalém Oriental como parte de seu próprio Estado. A administração israelense, por outro lado, afirma que não desistirá de ter Jerusalém como sua capital, sem divisões. A Autoridade Palestina afirma que com essa decisão política os EUA de forma clara deixaram de apoiar a solução de dois Estados (LANDLER, 2017). Assim que as notícias da administração dos EUA foram ao ar, os protestos começaram em todos os territórios palestinos, como em países de todo o mundo, com o Hamas anunciando que a Terceira Intifada começaria. Os palestinos chamaram de "Dia da Fúria", com protestos na Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental. As forças israelenses responderam prontamente com prisões e violenta repressão. Em nove de dezembro de 2017, três dias após o anúncio de Trump, dois palestinos foram mortos, mais de 800 ficaram feridos e vários foram presos nos territórios ocupados. Líderes mundiais reconheceram as consequências perigosas da ação do presidente estadunidense e solicitaram que Trump revogasse a decisão (ALJAZEERA, 2017). Os protestos foram violentamente reprimidos, mas continuaram, e novamente aumentaram em 23 de fevereiro de 2018, quando o governo dos EUA estabeleceu uma data para a inauguração de sua embaixada em Jerusalém. As manifestações palestinas continuam acontecendo, desde que a embaixada estadunidense foi transferida para Jerusalém em maio de 2018, e outros países seguiram os Estados Unidos nas resoluções 93 para mudança de embaixadas para a cidade, como Paraguai e Guatemala. Jerusalém tem um enorme peso simbólico para as comunidades palestinas, o que explica os protestos e o medo nas comunidades internacionais de que isso possa acelerar a ocupação da Palestina por Israel e a expulsão ou morte dos não-judeus residentes na região (SAWAFTA; AL-MUGHRABI, 2018). O Conflito Árabe-Israelense é, portanto, um conflito milenar com origens míticas e territoriais, que apresentou uma escalada na violência e gravidade dos embates entre as duas nações nas últimas sete décadas, após o estabelecimento do Estado de Israel. Mesmo antes desse acontecimento, a presença ocidental no Oriente Médio - na forma de Inglaterra, França, Estados Unidos e outros - teve consequências para a população árabe da região, e, desde os ataques de 11 de setembro de 2001, sua presença militar não parece dar sinais de deixar a região. Por outro lado, a aliança entre os EUA e Israel, datada desde a criação desse Estado, continua fortalecida, o que frequentemente causa fricção entre o hegêmona e seus parceiros comerciais árabes. Na próxima seção, será investigada a relação entre o conceito de Orientalismo de Said, representação de Stuart Hall e estigma, de Erving Goffman. Essa relação será indispensável para a investigação proposta nessa pesquisa, uma vez que demonstrará o histórico da representação árabe na ficção ocidental, as motivações para a escolha de certas imagens em detrimento de outras, e os desdobramentos desses processos nas representações cinematográficas de árabes como orientais, e judeus como ocidentais.

4.3 Orientalismo: representação e estigma O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são (NIETZSCHE, 1873, p.36) Ao estudar Geografia, o indivíduo será, em algum momento, apresentado ao globo terrestre, às regiões, continentes e artifícios criados pela humanidade para compreender o espaço que ocupa, o planeta que habita. Então, invariavelmente será introduzido às divisões do mundo em hemisférios Norte e Sul, e entre Oriente e Ocidente. Esses conceitos são provenientes da tentativa de compreensão da duração dos dias e noites, das estações, e mais tarde, da localização e navegação de mares e oceanos, e são produtos de discussões que se iniciaram muitos séculos antes da Era Comum (SEEMAN, 2013). Em 94

1978, Edward Said escreveu “Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente”, e problematiza os conceitos de Oriente e Ocidente difundidos por livros, trabalhos acadêmicos, filmes, jornais e diversas outras fontes de informação de origem ocidental. Said, intelectual nascido na Jerusalém palestina em 1935, declara que o Oriente não é somente uma categoria geográfica. É, sobretudo, uma invenção ocidental do que os povos, culturas e costumes a leste da Europa significam, representam, e, finalmente, são. O Oriente é uma ideia romantizada, idealizada, que ajudou a Europa a construir sua própria imagem, retratando os orientais como “os outros”, seus opostos, inferiores política, social e intelectualmente. Essas ideias foram úteis para justificar sua dominação, incursão e tutela nesses territórios. Said, então, se apropriou do termo Orientalismo, antes disso utilizado para designar o estudo da cultura oriental, criando um conceito que se refere a essa visão e representação eurocêntrica dos povos a leste da Europa (SAID, 1996). O Orientalismo se acentua por meio da proximidade de potências europeias com o Oriente no século XIX, quando França e Inglaterra dominam a região84. Nesse momento, foi inaugurada uma forte tendência de estudo do Oriente, que fez com que diversos intelectuais europeus fossem conhecer os territórios fonte da cultura que era vista como tão rica e diferente da europeia. Para Edward Said, os produtos dessas incursões e viagens, acadêmicos ou não, se tornaram a base para o imaginário ocidental em relação aos povos orientais. Gustave Flaubert, conhecido romancista francês, é um dos muitos exemplos de intelectuais europeus que se lançarem à aventura de desbravar o Oriente, conhecê-lo e relatar suas experiências (SAID, 1996). Nos relatos de sua viagem para o Egito, Flaubert discorreu sobre seu encontro com uma cortesã, Kuchuk Hanem. Para Said, a narrativa construída por Flaubert sobre a cortesã é simbólica para a compreensão do Orientalismo. Isso porque “[...] ela nunca falou de si mesma, nunca representou suas emoções, presença ou história. Ele falou por ela e a representou” (SAID, 1996, p.17)85. Nos relatos ocidentais não há participação oriental na construção das imagens. Todo o discurso é construído por meio das lentes europeias:

84Said (1996) admite que essa representação europeia do Oriente é muito anterior ao século XIX, mas é nessa época que o conteúdo orientalista é impulsionado: "[...] por volta de 60 mil livros tratando do Oriente Próximo foram escritos entre 1800 e 1950; não existem números sequer remotamente comparáveis para livros orientais sobre o Ocidente. Como aparato cultural, o orientalismo é todo agressão, atividade, julgamento, vontade de verdade e conhecimento" (SAID, 1996, p.211). 85 A representação da cortesã por Flaubert foi igualmente simbólica, já que se torna uma referência para o que Flaubert compreende ser uma mulher oriental: atraente, perigosa, sensual, vulgar, símbolo de fecundidade e luxúria, “menos uma mulher que uma amostra de feminilidade impressionante, mas inexpressiva” (SAID, 1996, p.194). 95 estranhamento, curiosidade, preconceito e racismo estão presentes nesses discursos. O Oriente é uma história e uma tradição de pensamento criadas pelo Ocidente, nas quais um povo atrasado, retrógrado, violento e não democrático precisava ser controlado e educado pelos povos ocidentais (SAID, 1996): A Inglaterra conhece o Egito; o Egito é o que a Inglaterra conhece. A Inglaterra sabe que o Egito não pode ter autogoverno; confirma isso ocupando o Egito. Para os egípcios, o Egito é o que a Inglaterra ocupou e agora governa; a ocupação estrangeira, portanto, torna-se "a própria base" da civilização egípcia contemporânea; o Egito requer, na verdade exige, a ocupação britânica. (SAID, 1996, p. 44) O posicionamento é contraditório, como aponta o filósofo Jean-Paul Sartre, em seu prefácio para “The Wretched of the Earth”, de Franz Fanon, publicado originalmente em 1961. Sartre comenta que certa vez o poeta Jean Cocteau se disse irritado com a cidade de Paris, pois ela falava de si o tempo todo. Sartre conecta o pensamento à Europa, e conclui que ela está sempre se referindo aos seus valores – liberdade, igualdade, fraternidade, amor, patriotismo e outros – como os valores áureos da humanidade, mas que mesmo isso não impediu que a Europa tivesse sido palco de alguns dos maiores genocídios da história, e continuasse a difundir discursos racistas sobre judeus, árabes, negros e outros povos (SARTRE, 1963). O escrutínio europeu sobre os orientais conclui que são atrasados, não democráticos e opressores de mulheres, sem levar em consideração que modernidade e democracia não são conceitos simples e consensuais, aplicáveis a todos os povos e culturas do mundo. Mesmo assim, o Orientalismo acabou por determinar o que é o Oriente, sem levar em consideração os interesses dos povos que o compõem. Essas ideias foram reverberadas em uma série de discursos conectados por um intertexto orientalista herdado de diversos viajantes, curiosos e intelectuais europeus (SAID, 1996). Assim, por séculos, o “[…] oriental é descrito como algo que se julga (como um tribunal), algo que se estuda e descreve (como em um currículo), algo que se disciplina (como em uma escola ou prisão), algo que se ilustra (como num manual de zoologia)” (SAID, 1996, p.50). Nesse processo, orientais de todas as partes foram uniformizados, seus traços culturais misturados e diluídos na ideia de uma cultura oriental única e uniforme. Índia, Egito, China, Pérsia, civilizações plurais, compreendidas como uma unidade de referência, a civilização contrária à Europa (SAID, 1996). Por seguirem religiões monoteístas, os povos semitas (muçulmanos e judeus) foram grandes alvos do Orientalismo, pois o islamismo e o judaísmo eram vistos como concorrentes do cristianismo, altamente difundido no continente europeu. Durante 96 séculos foi construída a ideia de que eram povos inferiores, atrasados, por meio da análise de sua cultura, língua e tradições. Os judeus eram vistos como um povo mesquinho, ganancioso e cheio de ambição, sendo ostracizados em diversas partes da Europa. O Islã foi ainda mais criticado, uma vez que representava a hegemonia militar, cultural e religiosa da região, sendo o principal obstáculo às pretensões europeias para o Oriente Médio. Como exemplo da demonização e desvalorização do islã na cultura ocidental, Said cita que na famosa “Divina Comédia”, de Dante Alighieri, escrita no início do século XIV, Maomé é encontrado por Dante no vigésimo oitavo círculo do inferno, apenas um círculo antes de Satanás. Essa demonização seguiria a nação árabe por muitos séculos (SAID, 1996). Pelo menos dois acontecimentos fizeram com que os judeus passassem a se desconectar da imagem do oriental aos olhos das potências europeias. Em primeiro lugar, diversas comunidades de judeus em diáspora passam a se tornar influentes na política e na sociedade em países europeus e nos Estados Unidos: no terceiro capítulo dessa pesquisa foi discutida a importante influência judaica no desenvolvimento de Hollywood, e na seção anterior foi abordada a relação próxima de autoridades britânicas e lideranças judaicas no país. Outro acontecimento foi, notoriamente, o Holocausto, genocídio judeu no regime de Hitler na Alemanha que, como discutido anteriormente, criou uma atmosfera de culpa e compaixão em relação aos judeus, transformando os árabes no alvo principal do antissemitismo (SAID, 1996). A transferência do ânimo popular antissemita de um alvo judeu para outro árabe foi feita suavemente, posto que a figura era essencialmente a mesma. [...] Ele é visto como um perturbador da vida de Israel e do Ocidente, ou, em outra perspectiva da mesma coisa, como um obstáculo superável à criação de Israel em 1948. [...] A Palestina era vista - por Lamartine e pelos primeiros sionistas - como um deserto vazio esperando para florescer; os habitantes que porventura tivesse eram supostamente nômades inconsequentes que não tinham nenhum direito real sobre a terra, e, portanto, nenhuma realidade cultural ou nacional. Desse modo, o árabe passa a ser concebido como uma sombra que persegue o judeu. [...] Pois o judeu da Europa pré-nazista bifurcou- se: o que temos agora é o herói judeu, construído a partir do culto reconstruído do orientalista-aventureiro pioneiro. (SAID, 1996, p.290) A criação de Israel, portanto, passou a ser vista como a compensação para um povo parte do “nós europeus” que havia sido lesado durante a Segunda Guerra Mundial, como discutido na seção anterior. A vitória ocidental sobre o Oriente Médio foi simbolicamente representada pelo estabelecimento do Estado de Israel e suas vitórias militares na região, enquanto a ideia do Oriente Médio como “O Outro” oposto ao mundo ocidental foi aprofundada (SAID, 1996). Assim, foi possível que os europeus continuassem a perceber a cultura do Oriente Médio como atrasada e argumentassem que 97 por meio de sua agência que ela seria modernizada. O estigma do atraso segue a cultura islâmica e árabe até os dias atuais. O conceito de cultura é um dos mais discutidos das Ciências Sociais, e há diferentes maneiras de defini-lo. De acordo com Stuart Hall (1997), a definição mais tradicional de cultura define que ela é formada pelo que de melhor foi feito, dito e pensado em uma sociedade: a soma das ideias incorporadas em sua literatura, música, filosofia e outras modalidades da arte. Em outras vertentes, o conceito abarca também a cultura de massa, conceito já trabalhado nessa pesquisa, e que agrega a cultura popular de uma dada sociedade. A chamada “definição antropológica” diz que a cultura é formada pelos elementos que distinguem o modo de vida de um povo, comunidade ou grupo social. Por fim, em uma abordagem sociológica da definição antropológica, a cultura pode ser compreendida como os valores compartilhados pelos membros de dada sociedade. Logo, a cultura tem relação com emoções, ideias e conceitos, e também com a forma que as práticas sociais são organizadas e regulamentadas (HALL, 1997). A linguagem tem papel fundamental na construção dos valores compartilhados pelas sociedades e, portanto, pelo estabelecimento da cultura de certo grupo social. Aqui, a linguagem é compreendida não apenas como as expressões escrita e oral de um certo idioma. A linguagem, para Stuart Hall, é todo e qualquer sistema de representações que utilize elementos que signifiquem ou representem algo, que comuniquem um pensamento, ideia, conceito ou sentimento. Cada sistema de representação utilizará de elementos distintos para cumprir sua função: sons, palavras, notas musicais, melodias, gestos, cores, expressões, movimentos e outros, com o objetivo de comunicar, dizer algo (HALL, 1997). Para Hall, é importante que se estude a linguagem, e há duas abordagens que se pode escolher para o estudo desses sistemas de representação, a semiótica e a discursiva. A semiótica estuda a chamada Poética, ou seja, como a linguagem produz significado, enquanto a abordagem discursiva, utilizada nessa pesquisa, investida o que Hall chama de Política, ou seja, os efeitos e consequências da representação. A abordagem discursiva examina os elementos não em sua ontologia, mas sim em sua função: os elementos da linguagem constroem significados e os transmitem. Essa abordagem trata da conexão da linguagem com o poder, e como certos discursos regulam condutas, constroem identidades e subjetividades, e definem de que forma são enxergadas e estudadas certas práticas, grupos e outros elementos da vida social. É a partir dessa abordagem que se pode compreender como a cultura de determinada sociedade faz com que os membros, que 98 compartilham dos mesmos valores, possam interpretar o mundo de forma similar (HALL, 1997). O mundo é composto de coisas: objetos, elementos naturais, pessoas, situações, encontros, conflitos, e diversas outras. Para Hall (1997), ao contrário do que se acreditou até a virada cultural das Ciências Sociais, nenhuma dessas coisas tem um significado inerente a elas: a forma que um grupo social usa, pensa, sente e representa cada uma delas é que lhes confere significado. Ou seja, todo e qualquer significado é socialmente construído. O uso da linguagem é uma das principais formas de conferir significado a algo, pois é a forma com que representamos dado objeto, ser ou situação, as palavras utilizadas, as histórias contadas, as imagens deles produzidas e as emoções que eles evocam é que fazem com que eles sejam integrados às práticas cotidianas, e a linguagem compartilhada sobre eles é que os integra a determinada cultura. Com a ascensão da cultura de massas, diferentes mídias têm o poder de produzir sentidos, uma vez que utilizam diversas modalidades de linguagem para criar discursos e narrativas sobre determinados elementos ou coisas, oferecendo esses sentidos aos fruidores e consumidores de suas produções (HALL, 1997). As formações discursivas86 constroem significados, e por meio deles constroem conhecimento sobre certo tópico ou prática. Um conjunto de ideias presentes em um discurso fornece formas de se pensar o mundo, e se relaciona diretamente com a definição do que é considerado apropriado, verdade ou útil em relação a um determinado assunto ou prática, de forma que em cada contexto social essas relações mudem, de acordo com o discurso adotado pelos componentes de cada grupo. Isso não quer dizer que a construção de significado seja uma relação unilateral: tanto o emissor quanto o receptor do discurso têm poder sobre os significados construídos em dada interação (HALL, 1997). O emissor não tem controle total da linguagem e, portanto, do significado, e o emissor não é um ente passivo onde o significado é projetado. Pelo contrário, o significado é encontrado em trocas que acontecem no espaço cultural compartilhado de forma ativa por emissor e receptor: a linguagem, ou representação. Dessa forma, a construção de significado é sempre um processo interativo (HALL, 1997). A natureza desse processo pode levar a crer que se trata de uma negociação instrumental, ou mesmo que se baseie em escolhas racionais de custo e benefício. Essa ideia não se sustenta, uma vez que:

86 Para Stuart Hall (1997), o termo “formação discursiva” é um termo geral que utiliza para se referir a uma abordagem na qual significado, representação e cultura são considerados como elementos constitutivos. 99

[Significados] mobilizam poderosos sentimentos e emoções, tanto positivos quanto negativos. Sentimos sua atração contraditória, sua ambivalência. Eles às vezes chamam nossas próprias identidades para a discussão. Nós temos dificuldades em compreendê-los porque eles são importantes – pois deles se originam sérias consequências. Eles definem o que é 'normal', quem pertence e, portanto, quem é excluído. Eles estão profundamente inscritos nas relações de poder. Pense em quão profundamente nossas vidas são moldadas. dependendo de quais significados de masculino/feminino, preto/branco, rico/pobre, gay/heterossexual, jovem/idoso. cidadão/estrangeiro, estão em jogo e em que circunstâncias (HALL, 1997, p.10, tradução livre87)

A construção de significados, portanto, é um processo interativo que mobiliza emoções, memórias e outros processos mentais. Esses significados não são fixos, e são negociados a todo o momento. As práticas representativas, como as da cultura de massa, fazem tentativas de fixar esses significados, privilegiando um sobre o outro. Dessa forma, não existe um significado certo ou errado, mas sim um significado que está sendo privilegiado em relação ao outro. Stuart Hall, ao falar sobre significados em fotografias, aponta que as legendas das obras auxiliam de forma contundente na construção do significado que se pretende mostrar em dada imagem. O discurso escrito e o discurso imagético são aliados nesse processo (HALL, 1997). Por associação, é possível compreender que nas produções cinematográficas os diálogos entre personagens, o discurso falado, serve o mesmo propósito. A construção de significados extrapola o campo das ideias e interfere nas práticas cotidianas de um grupo social, privilegiando alguns em detrimento de outros, o que faz com que esse processo se torne, muitas vezes, um processo complexo de negociação de poder. A representação de diferentes grupos, especialmente quando se está lidando com a diferença entre eles, mobiliza emoções como ansiedade, medo e raiva, pois seus significados são frequentemente organizados em pares de opostos, como apontados na citação acima, contribuindo para a complexidade do processo e da hierarquização social de diferentes sociedades e grupos sociais (HALL, 1997). É por isso que a questão da diferença é tão relevante para as práticas de representação. A diferença é essencial para o significado, pois ele é relacional, ou seja, se constrói em oposição. Essas oposições frequentemente se baseiam em contrastes binários: a escuridão tem seu significado ancorado à luz, o dia à noite e o longe ao perto. Sem a

87 “They mobilize powerful feelings and emotions, of both a positive and negative kind. We feel their contradictory pull, their ambivalence. They sometimes call our very identities into question. We struggle over them because they matter - and these are contests from which serious consequences can flow. They define what is 'normal', who belongs ¬ and therefore, who is excluded. They are deeply inscribed in relations of power. Think of how profoundly our lives are shaped. depending on which meanings of male/female, black/white, rich/poor, gay/straight, young/old, citizen/alien, are in play in which circumstances” (HALL, 1997, p.10). 100 diferença, o significado não existe. Para o filósofo Jacques Derrida, a naturalização das oposições binárias faz com que se esqueça o peso da utilização da diferença para a construção de significado. Sempre há uma relação de poder entre os contrastes binários, onde um dos elementos comanda, em diversos aspectos, ocupando o lugar mais alto da hierarquia (DERRIDA, 1972). Nesse sentido, retoma-se, que Edward Said (1996) defende que o Oriente ajudou a construir a Europa (ou o Ocidente), por meio de contrastes culturais, fenotípicos e sócio-políticos. Recorrendo às diferenças, o Ocidente firmou sua identidade, seus valores e suas práticas. Marcar a diferença em práticas de representação é um movimento que acaba por, mesmo que simbolicamente, estabelecer as hierarquias culturais presentes em cada discurso. O processo natural da leitura de imagens é a procura pelo que elas pretendem comunicar. No caso de grupos ou povos, não somente sobre sua ocasião ou contexto, mas sobre suas diferenças em relação ao contexto do fruidor. Aqueles que são de alguma forma diferentes da maioria geralmente são representados por meio dos contrastes binários trabalhados anteriormente: Eles parecem ser representados através de extremos binários opostos, polarizados, opostos – bom / mau, civilizado / primitivo, feio / excessivamente atraente, repulsivo - porque diferente / irresistível-porque estranho e exótico. E muitas vezes eles são obrigados a ser as duas coisas ao mesmo tempo (HALL, 1997, p. 229, tradução livre88).

No capítulo anterior foi explorada a ideia de que o mito do povo estadunidense vem se construindo em oposição a outras nações desde a gênese dos EUA, e a oposição entre Oriente e Ocidente, como trabalhado anteriormente, criou um tipo de oposição binárias entre os povos ocidentais e orientais. Essa diferença foi construída ao longo de séculos de disseminação de discursos imagéticos, escritos e falados, que apoiam os significados defendidos uns pelos outros, criando uma rede de representação que privilegia o Ocidente em relação ao Oriente: [...] as imagens não carregam significados, ou ‘significam’ por conta própria. Eles acumulam significados, ou jogam seus significados um contra o outro, através de uma variedade de textos e mídia. Cada imagem carrega seu próprio significado específico. Mas no nível mais amplo de como a ‘diferença’ e a ‘alteridade’ estão sendo representadas em uma determinada cultura em dado momento, podemos ver práticas e figuras representacionais semelhantes sendo repetidas, com variações, de um texto ou local de representação para outro. Esse acúmulo de significados em diferentes textos, onde uma imagem se refere a outra, ou tem seu significado alterado por ser ‘lida’ no contexto de outras imagens, é chamado de intertextualidade. Podemos descrever todo o repertório de imagens e efeitos visuais através dos quais a ‘diferença' é representada em

88 They seem to be represented through sharply opposed, polarized, binary extremes - good/bad, civilized/primitive, ugly/excessively attractive, repelling-because-different/compelling-because-strange- and-exotic. And they are often required to be both things at the same time (HALL, 1997, p.229). 101

qualquer momento histórico como uma prática de representação (HALL, 1997, p.232, tradução livre89).

Assim, ao reverberar representações e discursos que se utilizem de contrastes binários para retratar uma sociedade, nação ou povo, meios de comunicação como filmes, fotografias e noticiários podem privilegiar atributos considerados negativos, que passam a compor um estereótipo para dado grupo social. Erving Goffman, em sua obra “Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada”, de 1988, discute sobre a criação de estereótipos e estigmas no processo de categorização social de pessoas e grupos. Segundo o autor, quando se tem contato com um estranho, o ser humano tem expectativas em relação à identidade do outro, e instintivamente o classifica de acordo com as categorias e atributos que acredita serem correspondentes àquele sujeito, baseando-se em preconcepções criadas ao longo de sua vida (GOFFMAN, 1988). Essas preconcepções são advindas das experiências prévias do sujeito que confronta o estranho, de seu contexto familiar e social, sua nacionalidade e outros elementos, mas também dos intertextos discutidos anteriormente, das imagens fornecidas a ele sobre qual seria a identidade social do recém-chegado. Identidade social, para o autor, é o papel que dado sujeito ocupa em uma sociedade, e pode ser dividida entre identidade social virtual e identidade social real. A virtual é a lista de atributos do indivíduo criada pelos outros, de acordo com suas preconcepções, e a real é a identidade social que é composta dos atributos que o indivíduo de fato possui (GOFFMAN, 1988). Como discutido por Stuart Hall (1997), Goffman (1988) acredita que os estereótipos se utilizam dos contrastes binários para construir a ideia da diferença e do significado. Os estereótipos são hierarquizados socialmente, criando o que é aceitável e natural em diferentes ambientes sociais, assim como o que é incomum e inaceitável. Os atributos são categorizados para formar o estereótipo, que por sua vez cria as expectativas sociais em relação a um indivíduo. Quando esse estereótipo é formado por atributos depreciativos, forma-se o estigma. É pertinente lembrar que: O termo estigma, portanto, será usado em referência a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma

89 “[…] images do not carry meaning or 'signify' on their own. They accumulate meanings, or play off their meanings against one another, across a variety of texts and media. Each image carries its own, specific meaning. But at the broader level of how 'difference' and 'otherness' is being represented in a particular culture at any one moment, we can see similar representational practices and figures being repeated, with variations, from one text or site of representation to another. This accumulation of meanings across different texts, where one image refers to another, or has its meaning altered by being 'read' in the context of other images, is called inter-textuality. We may describe the whole repertoire of imagery and visual effects through which 'difference' is represented at any one historical moment as a regime of representation.” (HALL, 1997, p.232) 102

linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, nem horroroso nem desonroso. Um estigma, é então, um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo (GOFFMAN, 1988, p.6)

Os estigmas têm o efeito de descrédito sobre aqueles que o carregam, podendo ser visto como uma fraqueza, um defeito ou desvantagem de um grupo. De acordo com Goffman, há três tipos de estigma: as abominações do corpo, como as deformidades físicas; as culpas de caráter individual, como a desonestidade, alcoolismo e distúrbio mental; e, por fim, o tipo de estigma que mais interessa a essa pesquisa: os que são atribuídos a tribos, raças, nações, religiões e outros elementos que caracterizam grupos sociais (GOFFMAN, 1988). Nessa categoria podem ser compreendidos os elementos que Edward Said (1996) apontou como presentes nos discursos ocidentais sobre a cultura e os povos do Oriente. No caso dessa pesquisa, propõe-se que esses estigmas são reproduzidos pelas produções hollywoodianas, utilizando-se da oposição entre os povos árabes e os povos ocidentais. Nesse caso, a oposição retrataria os árabes por meio de estigmas, enquanto os povos ocidentais, incluindo os judeus, por meio de símbolos de prestígio. Explica-se: [...] a informação social transmitida por um símbolo pode estabelecer uma pretensão especial a prestígio, honra ou posição de classe desejável [...]. Tal signo é popularmente chamado de "símbolo de status", embora a expressão "símbolo de prestígio" [...]. Símbolos de prestígio podem ser contrapostos a símbolos de estigma, ou seja, signos que são especialmente efetivos para despertar a atenção sobre uma degradante discrepância de identidade que quebra o que poderia, de outra forma, ser um retrato global coerente, com uma redução consequente em nossa valorização do indivíduo (GOFFMAN, 1988, p.40) Os estigmas de raça e nação, propagados por meio de diferentes modalidades da linguagem em relação à nação árabe, são difundidos como ideias que constroem a expectativa de inferioridade e perigo para a sociedade (GOFFMAN, 1988). Dessa forma, compreende-se que por meio do cinema é possível propagar ou reforçar relações que contrapõem atributos aceitáveis e inferiores, contribuindo para a criação de estigmas que retratam determinadas nações, etnias ou outros grupos como perigosos e ameaçadores. Essas ideias reverberam para as relações fora da sala de cinema, podendo criar contextos de discriminação em lugares públicos, além do local de trabalho e eventos sociais (GOFFMAN, 1988). Esses estigmas têm sido reproduzidos há muito no cinema e na televisão estadunidense. Jack Shaheen, escritor nascido nos EUA e de descendência árabe, se dedicou à pesquisa de como a nação de seus ancestrais era retratada pela televisão e 103 cinema estadunidense. Em 1984 publicou “The TV Arab”, ou “O árabe da TV”, e em 2003 “Reel Bad Arabs: How Hollywood Vilifies a People”, ou “Árabes muito maus: como Hollywood vilaniza um povo”, que virou documentário em 2006, dirigido por Sut Jhally. Nesses trabalhos, Shaheen discute os estereótipos árabes propagados pela indústria da cultura de massa nos Estados Unidos. Em “The TV Arab”, o autor se debruça nas produções televisivas que retratam os árabes. Segundo ele, o Oriente Médio é retratado como uma região desértica, exótica e frequentemente inóspita, e em seus oásis é possível encontrar camelos e dançarinas de dança do ventre. Nos programas de televisão, Shaheen aponta que são retratados quatro tipos de homens árabes: “[...] os que são extremamente ricos, os bárbaros e aculturados, os maníacos sexuais com inclinação à escravidão de pessoas brancas e os terroristas” (SHAHEEN, 1984, p.4, tradução livre90). Essas afirmações vão ao encontro da discussão proposta por Edward Said (1996), apresentada anteriormente. Já no livro de 2003, lançado após os ataques às torres do World Trade Center, Shaheen discute como o estereótipo do árabe terrorista passa a figurar cada vez mais nas produções de cultura de massa nos EUA. No contexto estadunidense da época, “os árabes são assassinos, estupradores violentos, fanáticos religiosos, idiotas ricos em petróleo e agressores de mulheres.” (SHAHEEN, 2009, p.20, tradução livre91). As imagens de árabes com kanduras (túnica branca) e, na cabeça turbantes ou ghutras e agal, que ficaram conhecidos pelo costume de Yasser Arafat de usá-los, se multiplicaram na TV e no cinema estadunidense (SHAHEEN, 2009). Mesmo que em cada uma das obras Jack Shaheen trate especificamente de uma das indústrias culturais dos EUA, a TV e o cinema, há pontos de convergência entre as publicações. Em ambas Shaheen apresenta pontos importantes para a compreensão dos estigmas atribuídos aos árabes nessas produções, e suas consequências. Em primeiro lugar, Shaheen afirma que a utilização do árabe vestindo roupas tradicionais, apresentando comportamento violento e inclinação a explodir prédios é necessária à indústria cultural estadunidense por sua demanda pela construção de um vilão universal. Os árabes são apenas um instrumento para personificar o vilão necessário ao sucesso do

90 “[...] they are fabulously wealthy, they are barbaric and uncultured, they are sex maniacs with a penchant for white slavery, and they revel in acts of terrorism.” (SHAHEEN, 1994, p.4) 91 “Arabs are brute murderers, sleazy rapists, religious fanatics, oil-rich dimwits, and abusers of women.” (SHAHEEN, 2003, p.20) 104 herói (SHAHEEN, 1984; 2009), como já haviam feito os russos e os povos nativos, como exposto no capítulo anterior. Shaheen também aponta que o estigma da violência imputado aos árabes os persegue para além das telas de televisão e cinema. A representação negativa da nação árabe na indústria cultural faz com que sejam esquecidas suas grandes contribuições para a civilização nos campos da Matemática, Astronomia, Linguística, Geografia, Agricultura, entre outros. Para além da desvalorização, esse movimento aumenta o preconceito com árabes em seu dia a dia. Shaheen aponta que nem mesmo ele gostaria de viver na mesma rua ou dividir o mesmo espaço com os árabes que aparecem nos programas de televisão e nos filmes. Assim, essas produções aumentam o insulamento dos árabes, e sua exclusão dos espaços públicos (SHAHEEN, 1984; 2009). O estigma atribuído à nação árabe é um dos principais elementos constitutivos da islamofobia92, fenômeno discutido anteriormente. Numa pesquisa extensa, Todd H. Green investiga a origem da islamofobia e os estereótipos e estigmas que levaram ao surgimento e ascensão do fenômeno nos Estados Unidos e Europa. A representação do árabe, do muçulmano, como um indivíduo hostil, agressivo, manipulador, violento em relação a mulheres, extremista, retrógrado e ligado a atividades terroristas criou uma imagem negativa que contribuiu para o acirramento do fenômeno da islamofobia: o ódio e medo de muçulmanos (GREEN, 2015). A crise migratória de cidadãos africanos e do Oriente Médio para a Europa, que se agravou desde o começo da década de 2010 tem acirrado o quadro de violência na região. O emprego do discurso de que árabes são perigosos, violentos e que chegam para ocupar postos de trabalho que do contrário seriam de cidadãos europeus tem feito com que os crimes de ódio, islamofobia e xenofobia aumentem de forma incisiva no continente (MILLER, 2018)93. Nos EUA, o estigma atribuído à nação árabe faz com que, principalmente em momentos de crise econômica, parte considerável da população estadunidense acredite que os árabes não pertencem ao país, e não sejam bem-vindos (KIM; SUNDSTROM, 2014). A indústria cinematográfica estadunidense, da mesma

92É pertinente lembrar que, como mencionado anteriormente, a nação árabe não é muçulmana em sua totalidade. Indivíduos árabes professam diversas religiões, porém o estereótipo árabe inclui o elemento de religiosidade islâmica, e portanto traços árabes fazem com que indivíduos não muçulmanos possam ser vítimas de islamofobia. 93 Outras referências úteis para o tema são Steinhardt (2018) e o relatório de 2018 da European International Tolerance Centre. 105 forma que os noticiários e jornais, contribui diretamente para a construção do contexto de violência contra os árabes. Mesmo assim, é importante que se ressalte que: […] a 'diferença' é ambivalente. Pode ser positiva e negativa. É tanto necessária para a produção de significado, a formação da linguagem e da cultura, para as identidades sociais e um sentido subjetivo de si [...] quanto, ao mesmo tempo, é ameaçadora, um local de perigo, de sentimentos negativos, de divisão, hostilidade e agressão contra o 'Outro' (HALL, 1997, p.238, tradução livre94).

Na próxima seção serão discutidos os elementos metodológicos dessa pesquisa, evidenciando a estrutura da Análise de Conteúdo que será mobilizada para o estudo dos filmes utilizados. Também será discutida a construção de personagens fictícios, de forma a compreender o processo de criação de personagens nas produções cinematográficas. Serão apresentadas as categorias de análise que serão mobilizadas no próximo capítulo para observar a representação árabe e judaica nos filmes escolhidos. Acredita-se que os elementos serão utilizados de forma a estabelecer contrastes binários, posicionando os personagens árabes como antagonistas e os judeus como protagonistas, lhes dotando de estigmas e símbolos de prestígio, respectivamente.

4.4 Análise de Conteúdo: a construção de antagonistas e protagonistas nas produções cinematográficas The world is a sphere. There is no East and West. (WEIWEI, 2019)95

Como foi possível compreender na seção anterior, a representação árabe na cultura ocidental tem sido uma de idealização, estereótipos e estigmas há muitos séculos. Há pouco mais de sete décadas, após a Segunda Guerra Mundial e o holocausto, os judeus deixaram de ser compreendidos como orientais e passaram a integrar o grupo do “nós europeus”, tornando-se parte do Ocidente. Esse movimento é fundamental para a compreensão do que propõe essa pesquisa, uma vez que se espera, no próximo capítulo, encontrar diferenças nos padrões de representação de judeus e árabes nas produções cinematográficas estadunidenses. Espera-se encontrar evidências para concluir que esses filmes têm a tendência de representar judeus e árabes como protagonistas e antagonistas, respectivamente.

94“[...] 'difference' is ambivalent. It can be both positive and negative. It is both necessary for the production of meaning, the formation of language and culture, for social identities and a subjective sense of the self as a sexed subject — and at the same time , it is threatening, a site of danger, of negative feelings, of splitting, hostility and aggression towards the 'Other'” (HALL, 1997, p.238). 95“O mundo é uma esfera. Não há Oriente e Ocidente” (WEIWEI, 2019, tradução livre) 106

Essa diferença, como trabalhado no segundo capítulo, tem a capacidade de moldar percepções, conceitos, ideais e valores, que extrapolarão o momento de exibição do filme, sendo levados para as práticas do dia a dia de milhares de indivíduos ao redor do mundo. A ideia do que representa um árabe em um país ou comunidade é construída constantemente, e o cinema é um dos elementos que compõe esse processo: A identidade não é tão transparente ou sem problemas quanto pensamos. Talvez, em vez de pensar a identidade como um fato histórico já realizado, que os novos discursos cinemáticos representam, devêssemos pensar, ao invés, na identidade como uma "produção", que nunca é completa, sempre em processo e sempre constituída dentro, e não fora, da representação. (HALL, 1989, p.68, tradução livre96)

Dessa forma, é necessário que se compreenda de que forma é construída a imagem de árabes e judeus nas produções cinematográficas. O estudo dos filmes escolhidos será feito por intermédio da Análise de Conteúdo, conforme defendida por Laurence Bardin (1977) e Martin W. Bauer (2002). Esses autores determinam que a Análise de Conteúdo se estrutura por meio de três etapas distintas: a de pré-análise, ou construção de corpus de pesquisa, a de exploração de material e pôr fim a de tratamento dos resultados e interpretação. A pré-análise será tratada nessa seção, a exploração de material será o objeto do próximo capítulo, e, finalmente, os resultados e interpretações serão explorados nas considerações finais dessa pesquisa. O primeiro passo da pré-análise é a escolha dos documentos a serem trabalhados (BARDIN, 1977). Nessa pesquisa serão utilizados filmes, que Bauer (2002) chama de unidades de amostragem físicas. Foram escolhidos cinco filmes produzidos por grandes estúdios de Hollywood, ou por outros estúdios em parceria com as Majors. Essa escolha baseou-se em um critério principal: difusão do filme em diferentes mercados. Há outros polos de produção cinematográfica, como a Nigéria e a Índia, que superam Hollywood em número de filmes produzidos por ano, como trabalhado anteriormente (SHOHAT; STAM, 2006). Também há uma expressiva quantidade de filmes e documentários sendo produzidos no Oriente Médio que retratam o Conflito Árabe-Israelense de forma primorosa97, além de produções que retratam árabes e judeus de forma a fugir dos

96 Identity is not as transparent or unproblematic as we think. Perhaps, instead of thinking of identity as an already accomplished historical fact, which the new cinematic discourses then represent, we should think, instead, of identity as a 'production', which is never complete, always in process, and always constituted within, not outside, representation. (HALL, 1989, p.68)

97 Indicações de produções ficcionais incluem “Paradise Now” (2005), do diretor palestino Hany Abu- Assad, “Lemon Tree” (2008), dirigido por Eran Riklis e “Ajami” (1999), de Scandar Copti e Yaron Shani. “Ajami” é particularmente simbólico pois é uma cooperação entre um cineasta palestino, Copti, e um 107 estereótipos estudados nessa pesquisa sendo produzidos em diversas localidades, inclusive produções estadunidenses independentes98. A escolha por filmes das Majors de Hollywood, porém, como explorado mais profundamente no capítulo anterior, se justifica pois esses estúdios apresentam uma série de elementos que faz com que suas produções tenham maior alcance que produções de outros polos. Dentro das produções de Hollywood, optou-se por escolher filmes que tenham sido indicados ao mais prestigioso prêmio da indústria cinematográfica: o Oscar de Melhor Filme do Ano. As premiações, e principalmente o Oscar, são eventos que servem não só para o reconhecimento da qualidade técnica das produções cinematográficas, mas também como vitrines do cinema, como explorado no capítulo anterior (SCOTT, 2004). As indicações ao Oscar de Melhor Filme do Ano envolvem campanhas milionárias dos estúdios, que podem custar entre três e dez milhões de dólares. Esse esforço se justifica pois se trata também de uma intensa estratégia de marketing tanto durante a campanha quanto durante as premiações. Dessa forma, a escolha foi por filmes que apresentem potencial de terem sido assistidos por um número maior de pessoas, e, portanto, tenham maior relevância para a análise aqui proposta (CUNNINGHAM, 2017). O corte temporal foi escolhido levando-se em conta o foco adotado nessa pesquisa. Assim, decidiu-se pesquisar os filmes indicados à premiação desde o ano de 1948, ano de independência de Israel e acirramento do Conflito Árabe-Israelense, até 2018. Após o levantamento dos filmes indicados, foi feita uma investigação sobre a existência da representação judaica ou árabe nesses filmes. De forma a estabelecer um critério, adotou-se a estratégia de pesquisar palavras-chave nas sinopses de cada um dos filmes As palavras-chave adotadas foram: “judeu”, “israelense”, “holocausto”, “árabe”, “oriente”, “muçulmano” ou “islã”99. Nas setenta e uma cerimônias que aconteceram entre 1949 e 2019, trezentos e noventa e quatro produções foram indicados ao Oscar de Melhor Filme do Ano100. Dentre

israelense, Shani. Indica-se também o documentário israelense “Promises” de 2001, dirigido por Carlos Bolado, B.Z. Goldberg e Justine Shapiro. 98 Nessa categoria, há filmes como “Out in the Dark”, de 2012, produção independente do cineasta estadunidense Michael Mayer, “Disengagement” (2007), produção franco-israelense, dirigida por Amos Gitai, e “Le fils de l’Autre” (2012), dirigido por Lorraine Lévy. 99 A pesquisa foi realizada utilizando as palavras em inglês, uma vez que a fonte das informações é o site da Academy of Motion Pictures and Science, que utiliza esse idioma. Ao fim do trabalho pode ser encontrado o Apêndice I, resultado do levantamento dos filmes e da investigação sobre as palavras-chave. 100 De 1948 a 2008, eram indicados cinco filmes por ano ao grande prêmio do Oscar. A partir de 2009, o número aumentou, variando entre oito e dez indicados por ano. 108 esses, dez apresentaram as palavras “judeu”, “israelense” ou “holocausto” em sua sinopse. Assim, considerou-se que esses filmes lidam com a questão da representação judaica. São eles: “Ben-Hur” (1959), “O Diário de Anne Frank” (1959), “Uma garota genial” (1968), “Um Violinista no Telhado” (1971), “Carruagens de Fogo” (1981), “A Lista de Schindler” (1993), “A Vida é Bela” (1998), “O Pianista” (2002), “Munique” (2005) e “Bastardos Inglórios” (2009)101. Destes, “A Vida é Bela” e “O Pianista” não poderiam fazer parte da pesquisa, pois foram produzidos por estúdios europeus (ACADEMY OF MOTION..., 2019). Já os que apresentaram em sua sinopse as palavras “árabe”, “muçulmano”, “islã” ou “oriente”, e portanto foram considerados como filmes que lidam com a questão da representação árabe foram cinco: “Lawrence da Arábia” (1962), “Munique” (2005), “Guerra ao Terror” (2009), “Argo” (2012) e “A Hora Mais Escura” (2012)102. “Munique”, de 2005, dirigido por Steven Spielberg, foi o único filme a apresentar palavras-chave que conectavam o filme com a representação judaica e árabe (ACADEMY OF MOTION..., 2019). “Guerra ao Terror”, por ser um filme independente, não se encaixava no critério adotado para a pesquisa. Uma avaliação superficial da lista de filmes destacados já abre espaço para interpretações: há o dobro de filmes com palavras-chave ligadas à representação judaica que filmes com palavras-chave ligadas à representação árabe em sua sinopse. Enquanto os filmes retratando judeus estão presentes em quase todas as décadas pesquisadas (exceto a década de 2010), quatros dos cinco filmes retratando árabes são produzidos após 2001, ano do ataque terrorista às torres do World Trade Center. Há, portanto, nove filmes que retratam judeus, quatro que retratam árabes e um que retrata árabes e judeus. Para essa pesquisa, foram escolhidos cinco filmes para serem analisados. “Lawrence da Arábia” (1962) e “A Hora Mais Escura” (2012) para a análise da representação árabe, “A Lista de Schindler” (1993) e “Bastardos Inglórios” (2009) para a análise sobre a representação judaica, e “Munique” (2005) para a análise de um filme que lida com as duas nações em seu roteiro. Uma vez escolhidos os documentos a serem trabalhados na pesquisa, o próximo passo da pré-análise é a “[...] formulação das

101 Dirigidos por, respectivamente: William Wyler, George Stevens, William Wyler, Norman Jewison, Hugh Hudson, Steven Spielberg, Roberto Benigni, Roman Polanski, Steven Spielberg e Quentin Tarantino e Eli Roth. 102 Digiridos por, respectivamente: David Lean, Steven Spielberg, Kathryn Bigelow, Ben Affleck e Kathryn Bigelow. 109 hipóteses e dos objetivos e a elaboração de indicadores que fundamentem a interpretação final” (BARDIN, 1977, p.95). O objetivo da análise dos filmes é, como apontado na introdução, identificar padrões estéticos e discursivos no que tange à representação de judeus e árabes nas produções cinematográficas de modo a estabelecer padrões de representação e estereótipos. Já a hipótese formulada para a análise dos filmes escolhidos tem relação com a hipótese desse trabalho, também apontada na introdução. Espera-se encontrar nos filmes padrões de escolhas estéticas e discursivas que compõem discursos que retratem as nações judaica e árabe como protagonista e antagonista, ou vítima e perpetuadora de violência, respectivamente. Para a elaboração das categorias de análise que serão utilizadas no estudo dos filmes escolhidos, foi necessário que se compreendesse como são construídos antagonistas e protagonistas nas obras de ficção e, posteriormente, no cinema. Primeiramente é necessário que se compreenda o que são protagonistas e antagonistas, e qual o seu papel em narrativas ficcionais. Uma das principais diferenças entre uma produção de ficção e uma produção de não-ficção é que na obra ficcional os relatos, personagens, cenários, e outros elementos, são intencionais. O criador da obra tem controle sobre o que cria, e posiciona elementos de forma a fazer com que a narrativa da obra se desenvolva (ROSENFELD, 2007). O conflito é a base dessa narrativa, pois é ele que colocará todos os outros elementos em movimento. Para a construção do conflito na ficção, de modo geral, são utilizados dois tipos de personagem: o protagonista e o antagonista. É o lugar que cada personagem ocupa no desenvolvimento da história a ser contada que determinará sua classificação. Há outros tipos de personagem, é claro, como o coadjuvante e o personagem de apoio (IMME; BONA, 2014; EDER, 2011), porém, para fins de análise, os personagens árabes e judeus dos filmes escolhidos serão comparados às características dos protagonistas e antagonistas, de forma que se indique de que papel cada um dos personagens se aproxima mais. O protagonista é comumente compreendido como o personagem principal, o herói, ou o mocinho da história. O senso comum não está equivocado, porém é importante que se compreenda o protagonismo como uma função, e não apenas uma definição. O protagonista é o foco da narrativa, e é aquele que tem uma missão a cumprir, algo a alcançar. “O protagonista é a personagem básica do núcleo dramático principal: é o herói da história” (COMPARATO, 1995, p.122). Em “O Poder do Mito”, célebre livro fruto 110 das conversas entre Joseph Campbell e Bill Moyers, publicado originalmente em 1988, Campbell trata da trajetória do herói. Para ele, este é o arquétipo do herói e a estrutura de seu arco narrativo, que podem ser detectados em histórias em todo o mundo e produzidas e ambientadas em muitos períodos da História: A aventura de herói comumente começa com alguém de quem algo foi tirado, ou que sente que há algo faltando nas experiências normais disponíveis ou permitidas aos membros de sua sociedade. Essa pessoa então embarca em uma série de aventuras além do comum, seja para recuperar o que foi perdido ou para descobrir algum tipo de elixir da vida. Geralmente é um ciclo, uma partida e um retorno (CAMPBELL; MOYERS, 1991, p.157, tradução livre103).

O antagonista, por sua vez, é reconhecido como o vilão das narrativas. É visto como o contrário do protagonista. Da mesma forma que a definição do protagonista como o mocinho, essa visão do antagonista é rasa, porém não está errada. Esse tipo de personagem é geralmente retratado de maneira negativa, e os espectadores tendem a contrapor-se a ele, torcendo para o sucesso do protagonista. É relevante também apontar que o antagonista pode ser representado por um só personagem, mas também por um grupo. Finalmente, o antagonista é o principal responsável pelo conflito necessário à narrativa, pois tem como função ir contra os objetivos do protagonista, oferecendo obstáculos à jornada do herói (IMME; BONNA, 2014; CANDIDO, 2007): Conflitos em narrativas são frequentemente introduzidos quando os antagonistas fornecem obstáculos, muitas vezes através de suas ações, aos objetivos do protagonista. O antagonista é o personagem cujos objetivos negativos convincentes conflitavam diretamente com os do protagonista (MAGLIANO; TAYLOR; KIM, 2005, p.1358, tradução livre104)

São os objetivos mutualmente excludentes dos dois personagens que se contrapõem e criam o conflito. Entretanto, função dos antagonistas ou vilões não é apenas oferecer dificuldades à jornada do herói para alcançar sua meta. O antagonista pode, através de suas ações, acentuar a moralidade, a bondade e outras características positivas do herói, de maneiras que apenas a história do protagonista não seria capaz de fazer (CAMPO, 2017; CANDIDO, 2007). Como tratado na seção anterior, a ideia do “Outro” é fundamental para a definição da identidade de um indivíduo, e não é diferente no caso do protagonista.

103 “The usual hero adventure begins with someone from whom something has been taken, or who feels there's something lacking in the normal experiences available or permitted to the members of his society. This person then takes off on a series of adventures beyond the ordinary, either to recover what has been lost or to discover some life-giving elixir. It's usually a cycle, a going and a returning.” (CAMPBELL; MOYERS, 1991, p.157) 104 Conflicts in narratives are often introduced when the antagonists provide obstacles, often through their actions, to the protagonist’s goals. The antagonist is the character(s) whose compellingly negative goals directly conflicted with those of the protagonist (MAGLIANO; TAYLOR; KIM, 2005, p.1358) 111

A construção do antagonista e do protagonista é diferente em cada modalidade de ficção. A literatura e o cinema, por exemplo, dispõem de diferentes elementos para fazer com que o fruidor conheça os personagens, suas motivações, o contexto em que está inserido, sua história e seu desenvolvimento ao longo da narrativa. A literatura se utiliza vastamente da figura do narrador para esse fim, enquanto no cinema a câmera muitas vezes ocupa o seu lugar. Há produções cinematográficas que contam também com a figura do narrador, mas o mais comum é que a câmera, utilizada para registrar elementos como cenário, figurino, luzes, objetos e sons, substitua o narrador. A câmera “Focaliza, comenta, recorta, aproxima, descreve” (ROSENFELD, 2007, p.22). Entretanto, a falta do narrador literário, que pode se expressar livremente através de palavras, faz com que o cinema precise encontrar outros meios de apresentar os aspectos psíquicos dos personagens de suas narrativas. Sem o narrador para relatar ao espectador que o protagonista está com raiva, decepcionado ou triste, ou para contar sobre a origem do antagonista, seu contexto na narrativa, o cinema utiliza elementos técnicos para passar mensagens àqueles que assistem ao desenrolar da história (ROSENFELD, 2007; SANTOS, 2011). Esses elementos são vitais à pesquisa da representação árabe e judaica na cultura de massa. A construção do significado no cinema geralmente integra três eixos: sonoro, visual e verbal, e os elementos envolvidos na produção do filme estão conectados a pelo menos um desses eixos. Combinando-os, o cinema é capaz de prover ao espectador as informações necessárias à compreensão da narrativa (SANTOS, 2011). Desta forma, procurou-se construir um conjunto de categorias de análise que contemplasse elementos sonoros, visuais e verbais para fazer o estudo dos filmes e personagens escolhidos para integrar a pesquisa. O Quadro 1 apresenta essas categorias. No próximo capítulo, portanto, será desenvolvida a segunda parte da Análise de Conteúdo, a exploração de material. Nessa exploração, serão observados e contrastados elementos técnicos dos filmes e recursos de construção e representação estética dos personagens. Porém, é importante apontar que não é objetivo dessa pesquisa fazer uma análise profunda dos cinco filmes. Para o estudo proposto, serão escolhidas cenas chave que possuam elementos que sejam considerados relevantes para a análise pretendida.

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Quadro 1. Categorias de Análise Categorias de Análise Gênero Elementos Técnicos do Enredo Filme Cenas chave Trilha Sonora Protagonismo/Antagonismo Agência Construção do Personagem Motivações Arco Narrativo Figurino Representação estética dos Aspecto Físico personagens Idioma falado Fonte: Elaborado pela autora

Na categoria técnica, os seguintes elementos serão observados: gênero, enredo, algumas cenas chave e a trilha sonora. O roteiro será utilizado como auxílio dessa análise, pois é o recurso fílmico que conta a história por meio dos diálogos, descrições de cena e detalhamento da estrutura dramática (FIELD, 1996). Nele poderão ser identificadas algumas diretrizes para a construção de cada um dos personagens. A atenção à escolha do gênero do filme será importante porque a distinção entre protagonistas e antagonistas é mais aguda em alguns gêneros cinematográficos, como ação e ficção científica (MAGLIANO; TAYLOR; KIM, 2005). A escolha por um determinado gênero poderá acentuar as características de vilão ou herói nos filmes estudados. Nas cenas chave dos filmes, serão observados diferentes elementos fílmicos que auxiliam na construção de significado, como o enquadramento, a iluminação, a montagem, e outros. Como trabalhado anteriormente, a câmera tem um papel de narrar a história ao mostrar determinados elementos. As escolhas feitas pelo diretor no âmbito do enquadramento e de cortes são fundamentais para a construção dos personagens. A trilha sonora e os efeitos de som também são determinantes para a narrativa dos filmes, e “[...] os enriquecem, os comentam, os corrigem por vezes e chegam até a dirigi-lo” (MARTIN, 2005, p.154). Quando o significado da imagem ainda é demasiado tênue, os efeitos e trilha sonora auxiliam na cena (MARTIN, 2005). Serão analisados também os elementos de construção de personagem. Como discutido nessa seção, os protagonistas e antagonistas tem funções determinadas em uma narrativa, e o primeiro esforço será identificar a função dos personagens árabes e judeus 113 em cada um dos filmes. Para isso serão analisados elementos como sua agência, suas motivações e seu arco narrativo, que revelarão a função do personagem na história (MARTIN, 2005). Por fim, os elementos de representação estética também serão observados. Como discutido na seção anterior, elementos como figurino e aspecto físico tem sido utilizados para construir as imagens de árabes há muitas décadas. Outros elementos como o idioma falado serão observados para investigar uma possível padronização de personagens105. Há, por vezes, a utilização do elemento linguístico (do idioma árabe para árabes e do iídiche ou do hebraico para judeus, entre outros) para fazer o afastamento do personagem do público. Por fim, elementos ligados à desenvoltura dos atores, como expressões faciais e imposição de voz também serão observados. Nesse capítulo foi mobilizada uma série de informações, de modo que fossem estabelecidas as bases para a análise de conteúdo dos filmes escolhidos que será desenvolvida no próximo capítulo. O conceito de securitização de imagens é um dos principais elementos dessa pesquisa, pois propõe a discussão sobre a utilização de imagens para a construção do perigo, que é justamente o que se discute quando se fala sobre a representação árabe nas produções hollywoodianas. A revisão histórica do Conflito Árabe-Israelense, na segunda seção, retoma momentos importantes na história de rivalidade entre as duas nações, e abre a discussão para a representação do oriental na cultura do Ocidente. Apesar de serem nações provenientes da mesma região, árabes e judeus não são vistos da mesma forma na cultura ocidental, de acordo com Edward Said (1998). Desde a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto, há um sentimento de vergonha e uma vontade de reparação por parte da Europa e dos Estados Unidos que modificaram a forma que se representa os judeus na cultura popular estadunidense. Por fim, na última seção do capítulo foi explorada a metodologia que será utilizada no próximo capítulo, e as categorias de análise para o estudo dos filmes escolhidos para compreender o discurso propagado pela indústria hollywoodiana em relação às nações árabe e judaica.

105 Inicialmente, houve a intenção de analisar também os nomes dos personagens. Acreditava-se que nomes reconhecidos como característicos para árabes, como Ali, Khaled ou Salim, e para judeus, como Isaque ou Jacó, seriam evidências de perpetuação de estereótipos. Porém, posteriormente percebeu-se que esse elemento não poderia fazer parte da análise, já que quatro dos cinco filmes selecionados são baseados em fatos não fictícios e, portanto, não utilizam nomes fictícios. 114

5. A HOLLYWOODIZAÇÃO DO HOLOCAUSTO E A VILANIZAÇÃO DO ÁRABE POR MEIO DO CINEMA

Esse capítulo tem como objetivo o desenvolvimento da Análise de Conteúdo dos filmes escolhidos para essa pesquisa. Ordenou-se as análises da seguinte forma: os dois filmes que retratam a nação judaica, “A Lista de Schindler” (1993) e “Bastardos Inglórios” (2009), serão analisados nas duas primeiras seções desse capítulo, respeitando- se a ordem cronológica de seu lançamento. Na terceira e quarta seções serão desenvolvidas as análises dos filmes que representam a nação árabe, “Lawrence da Arábia” (1963) e “A Hora Mais Escura” (2012), também respeitando a ordem cronológica de lançamento. Na última seção será desenvolvida a análise de “Munique” (2005), o único filme indicado ao Oscar de Melhor Filme do Ano desde 1948 que retrata tanto a nação árabe quanto a nação judaica. Em cada uma das seções, será desenvolvida uma introdução, que consistirá de uma pequena biografia dos diretores, por acreditar-se que estes são importantes no delineamento da narrativa e na linguagem dos filmes. Em seguida pretende-se, utilizando as categorias de análise estabelecidas no capítulo anterior, examinar os elementos técnicos e estéticos que compõem os filmes, em busca de padrões de representação para as nações árabe e judaica. Espera-se encontrar elementos que mostrem que a indústria cinematográfica estadunidense representa de forma oposta as duas nações: os árabes como propagadores de violência e os judeus como vítimas da violência.

5.1 “A Lista de Schindler”, 1993 Quanto mais se conhece os nazistas, mais se sabe que não há regras a se seguir. Não se pode dizer "Se fizer isto, estarei a salvo" (SCHINDLER’S, 1993, 1h41’53”) Em 18 de dezembro de 1946 nasceu Steven Spielberg. Filho de judeus ortodoxos, viveu seus primeiros anos em uma comunidade judaica. Durante sua infância se mudou diversas vezes de cidade, e, por ser judeu, sofreu preconceito desde muito cedo. Aos seis anos, Spielberg assistiu a um filme pela primeira vez, “The Greatest Show on Earth” (1952), e se apaixonou pelo cinema. Aos treze anos começou a fazer seus primeiros curta metragens, aos quinze dirigiu seu primeiro filme, “Fighter Squad” (1960), e dois anos depois, com o primeiro filme totalmente escrito por ele, “Escape to Nowhere”, ganhou 115 seu primeiro prêmio como diretor, num concurso de filmes amadores no Arizona (MCBRIDE, 2010). Em 1964 a família Spielberg se mudou para a Califórnia, e Spielberg conseguiu um emprego de verão na Universal Studios. Ao fim do verão, conseguiu um acerto com a Universal para passar alguns dias da semana trabalhando, enquanto ainda estudava. Ao fim do Ensino Médio, Spielberg entrou na universidade, mas logo a abandonou, para focar na sua carreira no cinema. Em 1968 dirigiu “Amblin”, um curta metragem que foi exibido em diversos países do mundo, trazendo para o jovem Spielberg fama internacional e um contrato de sete anos com a Universal Studios (MCBRIDE, 2010). A partir de então Steven Spielberg passou a atuar como diretor de diversos longa metragens, mas também episódios de séries televisivas do estúdio. Em 1975, aos 29 anos, Spielberg dirigiu “Tubarão”, que é conhecido como o primeiro dos blockbusters, pois foi um sucesso estrondoso de bilheteria, faturando milhões de dólares em todo o mundo. O modelo de filme passaria a ser replicado tanto pela Universal Studios quanto por outros estúdios hollywoodianos, por sua rentabilidade. Depois de “Tubarão”, Spielberg dirigiu “Contatos Imediatos de Terceiro Grau”, que lhe rendeu sua primeira indicação ao Oscar de Melhor Diretor (MCBRIDE, 2010). Em 1981 Spielberg dirige o primeiro filme da saga Indiana Jones, que lhe rendeu outra indicação ao Oscar e o solidificou como um dos melhores diretores de Hollywood. Dirigiu uma série de filmes extremamente bem-sucedidos e conhecidos, como “E.T., o Extraterrestre” (1982), “A Cor Púrpura” (1985) e “Império do Sol” (1987), mas foi apenas em 1993 que o diretor conseguiu sua primeira estatueta de Oscar de Melhor Diretor do Ano, por “A Lista de Schindler”106. O filme, que toca na questão do genocídio judeu no Holocausto nazista, é uma obra muito pessoal para o diretor, que conta ter crescido ouvindo e temendo as histórias do que a família chamava de “Os Grandes Assassinatos” (MCBRIDE, 2010). “A Lista de Schindler” é uma adaptação para o cinema de uma história não fictícia: a história de Oskar Schindler. O filme, um drama épico histórico com roteiro de Steven Zaillian, foi baseado no livro “Schindler’s Ark”, de Thomas Keneally, lançado em 1982. No título do filme já há uma pista sobre que personagem ocupa a função de protagonista da história. Oskar Schindler, porém, não é um herói. É um alemão filiado ao Partido Nazista, retratado como um bom vivant, ambicioso, mulherengo e com poucos

106 O segundo Oscar de Melhor Diretor do Ano de Spielberg viria com o filme “O Resgate do Soldado Ryan”, de 1998. O diretor já foi indicado dez vezes ao prêmio (MCBRIDE, 2010). 116 escrúpulos. Bem relacionado com os oficiais nazistas, Oskar tem a ideia de montar uma indústria de esmaltados para atender demandas dos combatentes nazistas na Segunda Guerra Mundial (SCHINDLER’S, 1993). Schindler procurou como investidores para sua fábrica judeus que viviam em Cracóvia, capital da Polônia. À época, os judeus poloneses já haviam sido retirados de seus direitos de possuir negócios, e foram confinados no grande gueto de Cracóvia. Schindler sabia que os judeus têm dinheiro, mas não podiam gastá-lo, portanto se aproveita dessa fragilidade para alavancar seus interesses econômicos, criando sua fábrica (SCHINDLER’S, 1993). A jornada de Schindler como herói se inicia na relação que estabelece com Itzhak Stern107, contador judeu que contrata para sua fábrica para gerir o negócio, enquanto ele se ocupa do que chama de Figura 4. Oskar Schindler e Itzhak Stern (SCHINDLER’S, 1993, 02h18'10") imagem da empresa (Figura 4). Em um primeiro momento, Schindler contrata judeus pois são a mão-de-obra mais barata para a fábrica, e se irrita ao ver que Stern está contratando trabalhadores ditos inaptos pelos nazistas, para salvá-los dos campos de concentração. Stern é o principal personagem de apoio de Schindler: é por meio de sua amizade que Schindler se humaniza e cresce como ser humano (SCHINDLER’S, 1993). É quando entra em cena o grande antagonista: Amon Göth, capitão nazista que é encarregado das operações em Cracóvia. Durante todo o filme, é possível compreender que os nazistas são parte da função de antagonista, mas Göth, representado como um homem cruel, assassino e sádico, é quem representa melhor essa figura no filme. Figura 5. Judeus enviados a Cracóvia em 1939 O arco narrativo de Schindler se (SCHINDLER’S, 1993, 2'13")

107 É relevante apontar que quase todos os personagens do filme, e todos os personagens aqui citados, são não-fictícios. Fazem parte da história da cidade de Cracóvia e da ocupação Nazista da Polônia, de forma que, assim como em “Lawrence da Arábia” a proposta de se analisar os nomes utilizados para os personagens não pôde ser aplicada aqui. 117 entrelaça ao de Göth: quanto mais atrocidades Göth impõe aos judeus, mais Schindler se compadece e constrói a ideia do herói que se torna ao fim do filme, quando consegue salvar mais de mil judeus do extermínio em campos de concentração. Na década de 1950, Schindler foi convidado por Israel a plantar uma árvore na Avenida dos Justos, importante memorial do país (SCHINDLER’S, 1993). Sobre a caracterização dos judeus em “A Lista de Schindler”, Steven Spielberg faz escolhas deliberadas para mostrar a nação da qual descende, em um momento de tanta humilhação e tristeza: o Holocausto. É possível ver, durante todo o filme, judeus evidentemente ricos e pobres, em diferentes estágios do martírio judaico sob o regime Nazista. São retratados ainda vivendo sua rotina normal, depois em seu momento de deslocamento de suas casas para o gueto, onde viviam mal, tinham acesso a poucos serviços e produtos e passavam fome, e por fim nos campos de trabalho e de concentração. Durante todo esse período, não há roupas esfarrapadas, e o aspecto dos judeus é sempre digno: estão sempre limpos e bem arrumados. A Figura 5 é um dos exemplos que retratam essa característica no filme (SCHINDLER’S, 1993). Mesmo assim, não faltam exemplos de cenas que mostram o tipo de percepção que os nazistas tinham dos judeus à época. Em uma delas, um oficial nazista ironicamente diz que após a ordem que todos os judeus teriam que usar a estrela de Davi em suas roupas: “[...] os alfaiates judeus as fazem às dúzias, a 3 zloty cada uma” (SCHINDLER’S, 1993, 8’40”), se referindo ao estigma da ganância que acompanhava, e ainda acompanha, os judeus. As referências ao tratamento violento dispensado são frequentes: os judeus são comparados a cachorros e ratos, e na Figura 6 é possível ver Poldek Pfefferber, um dos chamados “Schindler’s Jews” ou judeus de Schindler, olhando para cartazes eugenistas antissemitas em uma loja. Esse tipo de cartaz, que Figura 6. Poldek à frente de uma vitrine com cartazes de versava sobre o fenótipo judaico propaganda eugenista antissemita (SCHINDLER’S, 1993, 15'02") (tamanho do nariz, afastamento dos olhos, tamanho do crânio), foi base para sua exclusão e extermínio à época (SCHINDLER’S, 1993). 118

Os inúmeros horrores sofridos pelos judeus durante a Segunda Guerra Mundial são retratados por Steven Spielberg de forma explícita. Tão explícitas que o diretor chegou a pensar, à época do lançamento do filme, que o filme não faria sucesso nas bilheterias estadunidenses, pois acreditava que o público não toleraria tantas cenas com tamanha violência (STEVEN, 2018). Figura 7. Soldados nazistas caçoam de judeu Muitas dessas cenas são (SCHINDLER'S, 1993, 10'35") representações das humilhações sofridas pelos judeus à época. Na Figura 7, soldados nazistas caçoam de um judeu, cortando seus cachos laterais, característicos dos judeus ortodoxos. Há também uma cena em que uma criança polonesa grita “Adeus, judeus” a plenos pulmões, enquanto centenas de pessoas fazem a dolorosa caminhada para o gueto (SCHINDLER’S, 1993, 19’34”). A pilhagem dos pertences, o desrespeito, o desalojamento de suas casas, os espancamentos, trabalho escravo e as execuções são representados em “A Lista de Schindler”, em uma das maiores representações da violência nazista produzida por Hollywood até então (SCHINDLER’S, 1993). A construção dos nazistas, antagonistas da narrativa, sem dúvida se dá por meio da representação dos horrores e da violência contra os judeus. Para além dos elementos já relatados, algumas cenas mostram ao espectador o desejo de extermínio experimentado pelos nazistas. Em uma das cenas, Amon Göth profere um discurso no dia da liquidação do gueto de Cracóvia, no qual conta a história dos judeus na Polônia. De acordo com ele, os judeus haviam chegado ao país seis séculos antes, fugindo da perseguição dos governos do oeste da Europa, e ali se estabeleceram, enriquecendo. Ele se refere à capital como uma Cracóvia judia, e diz que a partir daquele dia, esses seis séculos de sucesso judeu será apenas um boato, que os judeus serão eliminados da História (SCHINDLER’S, 1993). Além de discursos e ações, outros elementos ajudam na construção dos antagonistas de “A Lista de Schindler”. Em uma das cenas, diversos soldados buscam os prédios judeus após a liquidação do gueto para eliminar aqueles que não se apresentaram voluntariamente. Em meio aos tiros, um piano pode ser ouvido, tocando uma sinfonia alegre. A cena seguinte mostra um oficial da tropa de elite nazista, a SS (Schutzstaffel), sentado em um piano em um dos apartamentos judeus desalojados. Ele toca o piano 119 animadamente, ainda competindo com o som dos tiros que executam judeus, enquanto um soldado pergunta “Was ist das? Bach?” (“O que é isso? Bach?”), ao que o outro responde, ultrajado: “Nein! Mozart!” (“Não! Mozart!”). Steven Spielberg se utiliza da trilha sonora leve para contrastar com o horror da cena, além disso volta a mostrar, dessa vez simbolicamente, o desejo de extermínio dos judeus, uma vez que Bach era judeu e Mozart um austríaco cristão e branco (SCHINDLER’S, 1993). Em outra sequência, a trilha sonora também é utilizada por Spielberg para dar mais significado às cenas: na liquidação do gueto, Schindler vê ao longe uma criança de cerca de quatro anos, que anda em meio à violência e caos, perdida. Nesse momento, uma canção infantil judaica pode ser ouvida pelo espectador, passando uma mensagem de inocência, contrastada com a violência da cena. Por fim, nas últimas cenas do filme, quando os judeus de Schindler se juntam aos atores que os representaram no cinema se juntam para prestar uma homenagem a Schindler, é tocada uma tradicional canção judaica, falando da libertação de seu povo invocando o simbolismo da cidade de Jerusalém como um abrigo para o povo judaico (SCHINDLER’S, 1993). A importância de Jerusalém e de uma terra na qual os judeus possam encontrar paz (o Estado judeu) é uma questão central ao conflito árabe-judaico, como explorado no quarto capítulo. Além da cena explorada no parágrafo anterior, Spielberg também traz a questão à tona na cena em que os espectadores assistem à chegada do soldado russo à fábrica de Schindler, anunciando que os judeus foram libertados pelo exército soviético. Um dos operários pergunta: “Onde devemos ir?”, ao que o soldado responde: “Não vão para Leste. Eles odeiam vocês lá. Também não iria para o Oeste se eu fosse vocês” (SCHINDLER’S, 1993, 3h02’47”). Esse pequeno diálogo representa a dificuldade dos judeus em se reerguerem após o Holocausto, em um continente que inspira traumas, medo e sentimento de inadequação. O idioma alemão também é utilizado pelo diretor na construção dos personagens. Apesar do filme ser filmado utilizando a língua inglesa, apenas os oficiais utilizam o idioma. Os soldados falam alemão, e Steven Spielberg optou por não adicionar legendas à versão estadunidense (SCHINDLER’S, 1993), fazendo com que grande parte dos espectadores não saiba o que os alemães dizem enquanto falam com os judeus, os desrespeitam e os agridem, compreendendo o contexto por meio da entonação dos atores e por sua linguagem corporal. Essa ferramenta pode ter sido utilizada como forma de criar mais distância entre o espectador e o personagem, afastando-o do que é conhecido, e portanto criando uma ainda maior contraposição entre esses e aqueles. 120

Por fim, uma das mais frequentes discussões sobre “A Lista de Schindler”, e um dos elementos mais belamente construídos por Steven Spielberg, é indiscutivelmente o uso das cores no filme. Em 1993, ano do lançamento do filme, o cinema já operava em cores há mais de cinquenta anos, porém o filme é em preto e branco. Steven Spielberg disse em entrevista para a NBC (National Broadcasting Company) que fez essa escolha pois queria que o filme fosse esteticamente parecido com os documentários sobre o Holocausto que ele havia visto durante sua vida, mas que usou cores deliberadamente em alguns momentos (STEVEN, 2018). A cor aparece em “A Lista de Schindler” em cinco momentos, e cada um carrega sua própria simbologia. Uma das mais reconhecidas imagens do filme é a pequena criança com um casaco vermelho, em meio a um mundo em preto e branco, que aparece em dois momentos no filme (Figura 8). Primeiro, aparece na cena da liquidação do gueto. A menina caminha entre oficiais da SS que executam pessoas, entre judeus que correm desesperadamente para se salvar, e ninguém parece notar sua existência. Schindler, que assiste à liquidação de longe, tem seu olhar capturado pela menina, e a acompanha, até perdê-la de vista (SCHINDLER’S, 1993).

Figura 8. O uso de cor em “A Lista de Schindler” (SCHINDLER’S, 1993, 1'29", 1h08'50" e 3h05'09")

A menina e seu casaco vermelho voltam a aparecer quando Amon Göth recebe ordens de exumar e se livrar de todos os corpos de judeus mortos pelo regime. Schindler assiste aos oficiais jogando mais de dez mil corpos em uma enorme fogueira, até que seu olhar captura, em choque, o casaco vermelho da menina, no topo de uma pilha de corpos a serem jogados na fogueira. Os dois momentos são cruciais para a jornada de Schindler, que parece compreender por intermédio da menina a gravidade da barbárie promovida pelo Partido Nazista (SCHINDLER’S, 1993). A menina é também um simbolismo da imobilidade das potências do Norte global em relação às atrocidades cometidas contra os judeus. De acordo com Steven Spielberg, a menina é uma metáfora para o Holocausto: ela é claramente visível para todos os que a rodeiam, mas ninguém faz nada para ajudá-la. Da mesma forma, os Estados Unidos, a Rússia, a Inglaterra, a França, todos sabiam o que estava acontecendo na Polônia, na 121

Alemanha e em tantos outros lugares, mas por muito tempo nada foi feito por nenhuma dessas potências para evitar tantas mortes (STEVEN, 2018). Os outros três momentos do filme que tem cores estão conectados por uma mensagem em comum. Na primeira cena do filme, é possível ver uma família tradicionalmente judia celebrando o Shabat, o período de descanso dos judeus, do pôr do sol de sexta feira até o pôr do sol do sábado108. Eles cantam e rezam ao redor da mesa e à luz das velas, que vão se consumindo enquanto os créditos iniciais do filme aparecem. A última vela acesa já é retratada em uma cena preto e branco, e a última cor é a da chama da vela, prestes a se apagar (Figura 13). Quando ela se apaga, a cor não existe mais, e a fumaça deixada por ela se transforma na fumaça dos trens que trazem os judeus desalojados para Cracóvia (SCHINDLER’S, 1993). Em outra cena, Schindler realoca sua fábrica para sua cidade natal, na Tchecoslováquia, estimulado pelo enfraquecimento do regime nazista. Lá, os judeus se veem longe do alcance de Amon Göth, e Schindler sente que é seguro que eles voltem a viver com liberdade. Após proibir os soldados nazistas locais de agredir e matar os judeus, e proibir armas nas dependências da fábrica, Schindler se aproxima do rabino Lewartow, que trabalha em uma das máquinas, e diz que é sexta-feira e o sol está se pondo, e que portanto o rabino precisa se preparar para o Shabat. A cena seguinte é a de uma pequena reunião de operários cantando e rezando na celebração. Nesse momento, são acendidas velas, e novamente as chamas são a única cor que se pode ver (SCHINDLER’S, 1993). Por fim, ao fim do filme, ambientado nos anos 1990, quando a ameaça do regime nazista já não existe mais, as cenas são totalmente coloridas, em cores quentes e alegres (Figura 13) (SCHINDLER’S, 1993). Pode-se considerar que Spielberg utiliza a contraposição de cenas em cores e em preto e branco para demonstrar o sentimento de esperança para o povo judeu. Desta forma, compreende-se que a esperança estava presente antes do regime nazista, então renasce quando ele se enfraquece, e é finalmente uma realidade quando ele termina. A “A Lista de Schindler” é, portanto, um retrato das atrocidades cometidas com a nação judaica na Europa sob a égide do regime nazista de Adolf Hitler. Schindler é o protagonista da história, e é sua relação com o sofrimento dos operários judeus que o transforma de um bon vivant superficial e ganancioso a um herói que gasta toda a sua fortuna para salvar mais de mil judeus do extermínio. Os judeus estão subjugados pela

108 A celebração lembra o descanso de Deus ao sétimo dia da criação do mundo. Há diversos procedimentos e regras específicos para o Shabat, que podem ser explorados no livro do Rabino Melamed (2016). 122 violência dos nazistas, são agredidos e humilhados, mas são retratados por Steven Spielberg como indivíduos que não perderam a sua dignidade, por meio de seu figurino, aspecto e de sua agência, que os leva à sobrevivência. No fim da Guerra, Schindler reconhece como heróis Itzhak Stern, seu braço direito, e também todos os judeus que trabalharam em sua fábrica. Quando a Alemanha se rende e Oskar faz um discurso aos operários, diz que eles precisam agradecer não a ele, mas a eles mesmos e ao “destemido Stern”, que conviveram com a morte todos os dias e mesmo assim conseguiram sobreviver (SCHINDLER’S, 1993, 02h52’14”).

5.2 “Bastardos Inglórios”, 2009 My name is Shosanna Dreyfus and this is the face of Jewish vengeance! (INGLORIOUS, 2009, 2h24’20”)109

Quentin Tarantino nasceu em Knoxville, Tennessee, em 1963. A mãe de Tarantino havia acabado de se separar de seu pai quando descobriu que estava grávida, aos dezesseis anos. Connie Tarantino era uma mulher independente e determinada, ao que Quentin credita muito das personagens femininas de seus filmes. Quando Quentin tinha três anos, a mãe decidiu se mudar para Los Angeles, em busca de trabalho. Durante sua infância, Tarantino mostrou desinteresse pelos estudos, e forte atração por revistas em quadrinhos e cinema. Aos catorze anos Quentin escreveu seu primeiro roteiro como um presente para sua mãe, e aos dezesseis atuou pela primeira vez em uma peça da escola. Nessa mesma época, Quentin começou a estudar teatro em Los Angeles, e passou a conseguir diversos pequenos papéis em filmes e séries de televisão (HOLM, 2004). No começo da década de 1990, Quentin havia vendido alguns roteiros que haviam lhe dado algum reconhecimento na indústria cinematográfica, até que conhece Lawrence Bender. Ator e ex-bailarino, Bender conhecia seu trabalho como roteirista e passou a incentivar que Quentin dirigisse um filme. Porém, para Bender, era essencial Quentin dirigisse um filme cujo roteiro houvesse sido escrito por ele, conselho que o acompanharia durante toda a sua carreira. Tarantino, então, escreve o roteiro para “Cães de Aluguel” que, por intermédio de Lawrence Bender, chega às mãos de Monte Hellman, cineasta estabelecido em Hollywood à época. Hellman ajuda a levantar fundos para o filme junto a um pequeno estúdio da cidade, o Live Entertainment (HOLM, 2004).

109 “Meu nome é Shosanna Dreyfus, e essa é a face da vingança judaica! (INGLORIOUS, 2009, 2h24’20”, tradução livre). 123

“Cães de Aluguel” foi lançado em 1992, e foi um grande sucesso de crítica, colocando Tarantino sob os holofotes da indústria cinematográfica de Hollywood. Apesar de várias propostas para trabalhar com os grandes estúdios de Los Angeles, Quentin decidiu manter-se como um diretor independente. À época, Tarantino tinha problemas com uma parcela da indústria cinematográfica estadunidense, por achar que muitas vezes os filmes eram feitos como o que chama de “Oscar-bait”, ou iscas para Oscar. Dizia que não gostava dos filmes que recebiam muitas dessas premiações pois eram filmes seguros e genéricos, “filmes para quem não gosta de filme” (HOLM, 2004, p.74, tradução livre110). Tarantino gostava de filmes com movimento e ação, e então começou a trabalhar em seu próximo projeto, que viria a se chamar “Pulp Fiction”. Para a produção desse filme, Tarantino se une a Lawrence Bender, que havia se tornado seu grande amigo, e funda a produtora “A Band Apart” em 1992. Essa seria a produtora dos filmes de Quentin Tarantino até 2009, com o lançamento de “Bastardos Inglórios”. “Pulp Fiction” foi lançado em 1994 como um sucesso estrondoso de crítica, e, para a surpresa de Quentin, foi indicado a sete estatuetas do Oscar, vencendo a de Melhor Roteiro Adaptado. O filme cristalizou a posição de Tarantino como um dos melhores diretores da época (HOLM, 2004). Em 1998, Quentin teve a ideia de fazer “Bastardos Inglórios”, porém dirigiria alguns filmes antes de colocar sua ideia em prática, inclusive os dois episódios de “Kill Bill”, em 2002 e 2003, sucesso de bilheteria em todo o mundo (HOLM, 2004). Em 2009, quando “Bastardos Inglórios” foi lançado, os espectadores já haviam se acostumado com o estilo violento de seus filmes, e com o característico “Written and directed by Quentin Tarantino”, ou “Escrito e dirigido por Quentin Tarantino”, presente nos créditos iniciais de praticamente todos os filmes que dirigiu111. “Bastardos Inglórios” é um filme de ação com cinco capítulos, nos quais se desenvolvem duas narrativas. O filme é ambientado na França ocupada pela Alemanha Nazista em 1941, e a primeira cena nos apresenta a protagonista de uma das narrativas: Shosanna Dreyfus, uma jovem judia que vive escondida sob o assoalho de uma fazenda, junto com sua família. Na mesma cena, o espectador conhece o grande antagonista do

110 “They’re [movies] for people who don’t like movies” (HOLM, 2004, p.74) 111 A única exceção é “Sin City – A cidade do pecado”, de 2005, que foi baseado na história em quadrinho de Frank Miller, e portanto por ele roteirizado (BRAD, 2014). 124 filme, coronel Hans Landa112, oficial da SS responsável por encontrar judeus escondidos na França, o que lhe rendeu o apelido de “O Caçador de Judeus”. Landa mata toda a família de Shosanna, que consegue escapar e foge (INGLORIOUS, 2009). Na cena seguinte, a segunda narrativa se apresenta. O personagem vivido por Brad Pitt, tenente Aldo Raine, recruta soldados judeus estadunidenses para formar um grupo de operações especiais na França. De acordo com o tenente, o grupo teria apenas uma missão; matar nazistas. Em sua campanha militar, o grupo fica conhecido na Alemanha como os “Bastardos Inglórios”, e matam centenas de soldados e oficiais nazistas, ficando conhecidos por não manter prisioneiros (INGLORIOUS, 2009). Portanto, há dois protagonistas, personagens centrais de cada uma das narrativas: Shosanna e Aldo Raine. Os capítulos um e três são dedicados à história de Shosanna, enquanto os capítulos dois e quatro são o desenvolvimento da narrativa dos Bastardos, liderados por Raine. O quinto capítulo, conclusão da trama, retrata o entrelaçamento das duas narrativas, na noite de gala para o lançamento de um dos filmes de Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda da Alemanha hitlerista113. A estreia acontece no cinema gerenciado por Shosanna, que desde sua fuga assumiu o nome Emmanuelle Mimieux. Tanto ela quanto os Bastardos executam planos para matar os principais nomes do Partido Nazista presentes na sessão, incluindo Adolf Hitler (INGLORIOUS, 2009). Tanto na narrativa de Shosanna quanto na dos Bastardos, o antagonismo fica à cargo de um grupo de pessoas, os nazistas. O coronel Landa, de forma semelhante ao que acontece em “A Lista de Schindler” e Amon Göth, é a personificação desse grande grupo (INGLORIOUS, 2009). O filme é, de acordo com Quentin Tarantino, uma narrativa fictícia sobre a vingança judaica contra os nazistas e tudo que fizeram. Como discutido anteriormente, o diretor critica os filmes que chama de “Oscar bait”, e faz “Bastardos Inglórios” como uma resposta a todos os filmes que assistiu sobre judeus na Segunda Guerra, pois retratam essa nação como vítimas sem agência. Em seu filme, decidiu escrever sobre judeus que agissem contra seus algozes (BRAD, 2014).

112 Landa foi vivido no cinema por Christoph Waltz, um ator austríaco que não havia trabalhado em produções estadunidenses até então, e em sua estreia ganhou o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante, em 2010 (QUENTIN, 2009). 113 . O filme é uma narrativa de ação baseada em uma história fictícia, porém contendo diversos personagens não-fictícios, como Adolf Hitler e Joseph Goebbles (INGLORIOUS, 2009). 125

Assim, a representação dos judeus no filme de Tarantino é bastante divergente da observada em “A Lista de Schindler”. A única cena em que se pode ver Shosanna como uma vítima da Alemanha Nazista é em sua primeira aparição no filme (Figura 9), quando ela corre, Figura 9. Shosanna corre para salvar sua vida (INGLORIOUS, 2009, 21'02") ensanguentada e chorando, após Hans Landa matar toda a sua família. No terceiro capítulo, ambientado quatro anos depois do primeiro, o espectador encontra Shosanna, agora Emmanuelle, bem estabelecida na França, dona de um cinema, e sem medo de mostrar a oficiais alemães que eles não são bem-vindos (INGLORIOUS, 2009). A transição de Shosanna de vítima a heroína não é acompanhada pelo espectador, que não tem informações sobre o que aconteceu nos quatro anos entre um capítulo e outro. A personagem reaparece como uma mulher independente e destemida, pronta para levar a cabo seu plano de incendiar seu pequeno cinema com todo o alto escalão nazista dentro dele, auxiliada por seu namorado, Marcel. Exceto na cena retratada na Figura 10, Shosanna é sempre vista com roupas luxuosas, sendo percebida como uma mulher muito atraente. Tão atraente que captura a atenção do herói de guerra Frederick Zoller, que pressiona Goebbels para que a seção de seu filme seja no cinema da protagonista. Shosanna não é uma vítima, é uma guerreira, Figura 10. Shosanna se prepara para matar nazistas (INGLORIOUS, 2009, 1h46'51") e Tarantino não hesita a retratá-la como tal, como pode ser observado na Figura 10 (INGLORIOUS, 2009). Os Bastardos, por outro lado, têm um arco narrativo mais linear. Talvez por isso Quentin Tarantino tenha dito em diversas entrevistas que “Bastardos Inglórios” é a história de Shosanna, e os Bastardos são uma narrativa paralela que auxilia na construção do filme. Isso não quer dizer, porém, que os Bastardos não são importantes no filme, pois eles são responsáveis por grande parte da vingança judaica que Quentin Tarantino quer deixar como mensagem com seu filme (QUENTIN, 2009; BRAD, 2014). Aldo Raine e seus soldados começam e terminam o filme como homens audaciosos e inteligentes, 126

decididos a matar o máximo de nazistas possível (Figura 11). Ao longo de todo o filme, os heróis estão bem vestidos e parecem no controle de todas as situações, com poucas exceções. Até quando são capturados por Hans Lanza os Bastardos Figura 11. Os Bastardos Inglórios (INGLORIOUS, 2009, 29'45") mantem a postura desdenhosa em relação aos nazistas que apresentam durante todo o filme (INGLORIOUS, 2009). Tarantino é conhecido por utilizar muito sangue e violência em seus filmes (HOLM, 2004), e em “Bastardos Inglórios” não é diferente. Porém, o diretor inverteu as expectativas em um filme sobre judeus e o Holocausto, e não é o sangue judeu o que mais se vê no filme. Pelo contrário, a maior parte das mortes é de alemães e nazistas. Não há, como no filme de Steven Spielberg, cenas que retratam humilhações contra judeus, campos de concentração e execuções. A exceção é a cena inicial do filme, na qual Landa procura e encontra a família de Shosanna (INGLORIOUS, 2009). Em uma das sequências mais tensas do filme, o coronel faz um longo discurso para Monsieur LaPadite, que escondia a família Dreyfus, sobre sua caça aos judeus. Nesse momento, Landa se refere à comparação entre judeus e ratos, comum entre nazistas, e até utilizada pela indústria propagandista da Alemanha hitlerista. Compara não-judeus a esquilos e judeus a ratos, explicando que as duas espécies têm características parecidas, mas apenas uma delas inspira nojo. “Você não gosta deles. Não sabe por que não gosta deles. Só sabe que os acha repulsivos” (INGLORIOUS, 2009, 16’21”). Esse momento, porém, é uma exceção. Tarantino frequentemente ridiculariza os alemães em seu filme. Até Adolf Hitler (Figura 12) é apresentado de forma cômica, sendo retratado como um sujeito escandaloso, descontrolado e ridículo, com suas roupas pomposas, autorretrato piegas, gritos e risadas descomedidos. Goebbels, por sua vez, é retratado como um homem superficial, arrogante e até estúpido. Por fim, o herói de guerra, Figura 12. Hitler gritando à frente de seu autorretrato Frederick Zoller, se apaixona por (INGLORIOUS, 2009, 24’48”) 127

Shosanna, que o dispensa e rejeita diversas vezes. Zoller, porém, continua insistindo, aumentando cada vezes mais sua aposta para conquistá-la, apenas para ser preterido novamente (INGLORIOUS, 2009). Há também outros elementos do enredo utilizados para negar qualquer louro ao regime nazista. Numa cena em que Shosanna e Zoller conversam sobre cinema, o homem diz que gosta muito do trabalho de Leni Riefenstahl, cineasta nazista, ao que a mulher responde com desdém. Em outra cena, oficiais britânicos se preparam para a “Operação Cinema”, que tem como objetivo explodir o alto escalão nazista na estreia do filme de Goebbels. Em um teste para saber se um dos oficiais está apto a participar da operação, discutem sobre como Goebbels se propõe a fazer filmes apenas para se opor a uma indústria cinematográfica alemã dominada por judeus, e ao controle judeu de Hollywood (INGLORIOUS, 2009). Os desfechos das narrativas do filme são também utilizados por Quentin Tarantino para ridicularizar os nazistas e promover o que havia proposto com o filme: realizar a vingança dos judeus. Shosanna prepara um plano para incendiar seu cinema, matando queimados os nazistas que fossem assistir ao filme protagonizado por Zoller. Com a ajuda de Figura 13. A morte dos nazistas (INGLORIOUS, 2009, 2h25'37") Marcel, ela é bem-sucedida, e o cinema explode em chamas, matando todos aqueles que lá estivessem114 (Figura 13). É catártico que Adolf Hitler e os maiores responsáveis pela morte de milhões de judeus em câmaras de gás morram queimados dentro de um enorme auditório (INGLORIOUS, 2009). Já na narrativa dos Bastardos, há mais contratempos: quase todos foram mortos ao longo do filme, e dois deles morrem dentro da sala de cinema ao metralhar o rosto de Hitler numa das cenas mais violentas do filme. Aldo Raine e Smithson Utivich, que são capturados por Hans Landa. O coronel nazista faz um trato com os Bastardos: Landa se renderia aos EUA, e manteria o plano dos Bastardos de explodir a sala de cinema, acabando com a guerra. Em troca, exigia cidadania estadunidense, compensações financeiras e a promessa do alto escalão militar do país que ele seria reconhecido como agente duplo dos EUA na França, para não passar por tribunais militares e para ser

114 As explosões acontecem com a ajuda das bombas plantadas pelos Bastardos dentro do cinema de Shosanna (INGLORIOUS, 2009). 128 reconhecido como um grande herói da vitória dos Aliados contra o Eixo (INGLORIOUS, 2009). Os Bastardos, porém, eram conhecidos por não manter prisioneiros. Havia duas possibilidades para os inimigos do grupo: a morte, ou a liberdade. A segunda opção, porém, era acompanhada de uma prática tradicional dos Bastardos. De acordo com o grupo, não seria justo que os nazistas sobreviventes pudessem, após o fim da guerra, tirar seus uniformes e viverem normalmente, como se não Figura 14. A marca de Landa (INGLORIOUS, 2009, tivessem participado de um dos maiores 2h29'17") genocídios da História. Por isso, desenhavam à faca uma suástica na testa daqueles que se rendiam. O momento catártico do arco narrativo dos Bastardos é, portanto, quanto Aldo Raine desenha a marca na testa de Landa (Figura 14) (INGLORIOUS, 2009). Aldo Raine e os Bastardos têm também uma outra dimensão que vale a pena ser explorada nessa análise. O grupo é de soldados judeus estadunidenses e, desde a primeira sequência de cenas em que aparecem, diversos elementos históricos ligados aos povos nativos dos EUA são mobilizados. Em primeiro lugar, quando Raine explica aos soldados sua missão, ele se refere ao plano de batalha do grupo como uma “Resistência Apache” (INGLORIOUS, 2009, 22’55”). O próprio tenente fica conhecido entre os nazistas como Aldo, o Apache. O líder dos Bastardos também estabelece que cada um de seus soldados precisa matar e escalpelar cem nazistas (INGLORIOUS, 2009). A trilha sonora é também utilizada para a conexão da história do filme com a história desses povos. A fonte utilizada nos créditos iniciais do filme e a trilha sonora na abertura do filme e de diversas cenas do filme são reconhecíveis como elementos de estética de um filme de faroeste (INGLORIOUS, 2009). Esses elementos aproximam o filme da discussão sobre o genocídio dos povos nativos do continente americano. O genocídio do povo negro também é lembrado numa cena em que um oficial alemão precisa descobrir, através de perguntas, a resposta de uma charada: Major Nazista: Eu fui da selva à América de barco contra a minha vontade? Mesa: Sim! Major Nazista: Neste passeio de barco... Eu estava acorrentado? Mesa: Sim! Major Nazista: Quando cheguei na América ... Eu era exposto com minhas correntes? Mesa: Sim! Major Nazista: Eu sou a história do negro na América? 129

Mesa: Não! Major Nazista: Bem, então eu sou o King Kong! (INGLORIOUS, 2009, 1h26’20”) O diretor não se priva de ridicularizar também os estadunidenses. Apenas um terço de “Bastardos Inglórios” foi filmado em inglês. Italiano, e principalmente alemão e francês estão presentes durante todo o filme. Tarantino, porém, oferece a tradução de todas as conversas ao espectador. Não há, portanto, uma intenção de afastar o fruidor dos personagens. Há um momento, porém, em que Aldo Raine e os Bastardos precisam interpretar personagens não-estadunidenses para enganar os nazistas. A agente dupla Brigitte von Hammersmark, em busca de alternativas, diz, desdenhosamente: “Sei que é uma pergunta tola, mas vocês americanos falam outra língua além do inglês?” (INGLORIOUS, 2009, 1h42’43”). Quentin Tarantino se propôs fazer um filme que contasse uma história diferente dos judeus na Segunda Guerra Mundial. Já havia criticado a vitimização judaica que os filmes hollywoodianos promoviam, em roteiros que ele considerava como iscas para Oscar. Assim, constrói uma narrativa fictícia na qual os personagens judeus têm força, potência e agência para lutar contra seus algozes. Os protagonistas de “Bastardos Inglórios” desafiam o regime nazista, e delineiam planos que destroem e desarticulam toda a autoridade do Terceiro Reich (INGLORIOUS, 2009). Outro grande êxito do filme de Tarantino é levantar uma discussão necessária, e presente nessa pesquisa, sobre os malefícios da valorização de apenas uma narrativa: a do genocídio judeu no Holocausto. O diretor demonstra, com sua obra, reconhecer a violência que o povo judeu sofreu no período do regime nazista na Alemanha, mas não compactua com a vitimização excessiva da nação judaica nas produções estadunidenses, a chamada americanização ou hollywoodização do Holocausto (FLANZBAUM, 2007), além de fazer esforços para que representações de outras narrativas também sejam priorizadas, como as do genocídio indígena e negro no continente americano.

5.3 “Lawrence da Arábia”, 1962 Te surpreende, senhor Bentley? Você sabe que os árabes são um povo bárbaro. Bárbaros e cruéis. (LAWRENCE, 1962, 3h07’26”). David Lean começou a sua carreira no cinema em 1927, aos dezenove anos. O diretor, nascido em 1908 na cidade de Croydon, Inglaterra, viveu em uma comunidade Quaker até conseguir um emprego no estúdio Gaumont-British em Londres (uma filial 130 do estúdio francês Gaumont). Lá, começou trabalhando como uma espécie de faz-tudo, atuando como mensageiro e garoto do café até que foi alocado na sala de edição, onde trabalhou até se tornar o editor chefe do estúdio em 1930. A partir de então, David Lean começou a se aventurar como diretor assistente para algumas produções, até que aos trinta e cinco anos se despede do estúdio Gaumont British para abrir sua própria produtora, a Cineguild, em parceria com J. Arthur Rank (PHILLIPS, 2006). A partir desse momento, Lean começou a atuar como diretor. Dois anos depois, em 1945, se tornou o primeiro diretor britânico a ser indicado para o Oscar de Melhor Diretor por seu trabalho em “Desencanto”. Doravante, David Lean alcançou fama internacional, sendo considerado um dos melhores diretores de sua geração. Nessa época, começou a trabalhar com os Big Five e oficialmente se tornou um diretor de Hollywood. Em 1957 conseguiu seu primeiro Oscar de Melhor Diretor, com “A Ponte do Rio Kwai”115. O filme foi produzido por Sam Spiegel, com roteiro de Michael Wilson (PHILLIPS, 2006). O trio, formado por roteirista, produtor e diretor, havia funcionado tão bem que fez com que se tornassem parceiros e se unissem para realizar uma ideia antiga de David Lean: adaptar para o cinema “Os Sete Pilares da Sabedoria”, a autobiografia de T.W. Lawrence. Robert Bolt se une a Michael Wilson para a construção do roteiro e o grupo se encarrega do processo de trazer para as telas de cinema a história do tenente britânico alocado no Egito durante a Primeira Guerra Mundial, que viria a se tornar mundialmente famoso por uma campanha militar de sucesso na península arábica (PHILLIPS, 2006). O jovem tenente sai do Cairo para encontrar o Príncipe Faisal116 na península arábica. O príncipe tinha o mesmo objetivo que o tenente Lawrence, retirar os turcos e o Império Otomano dos territórios árabes, e fornece informações e homens para que Lawrence faça o que ele chama de milagre: tomar a cidade de Aqaba, atacando-a pelo deserto de Nefude, que diziam ser intransponível. O príncipe continua a auxiliar e apoiar Lawrence em suas vitórias e derrotas militares a partir de então (LAWRENCE, 1962).

115 O diretor foi indicado sete vezes ao Oscar, e venceu duas. Uma com “A Ponte do Rio Kwai” e a outra com “Lawrence da Arábia” (PHILLIPS, 2006). 116 O Príncipe Faisal é uma figura histórica não fictícia, que teve papel importante para a história do Oriente Médio. O livro “Faisal I of Iraq”, publicado em 2014 por Ali Allawi, conta sua trajetória. 131

Um dos cem melhores filmes da história do cinema de acordo com o Instituto Americano de Filmes (PHILLIPS, 2006), “Lawrence da Arábia” é um drama épico, podendo também ser considerado um filme de aventura, no qual o protagonista é evidentemente Lawrence, vivido por Peter O’Toole. É sua trajetória como o líder das tribos árabes, chamadas de beduínos, em busca da liberdade de suas terras, com o objetivo de criar um Estado árabe independente (LAWRENCE, 1962). Na Figura 15 é possível ver que Figura 15. Lawrence convence Auda Abu Tayeh a envolver sua tribo na luta contra os turcos Lawrence, para convencer as tribos (LAWRENCE, 1962, 1h28’) árabes a lutarem ao seu lado, utiliza-se da estratégia de fazer com que uma das tribos, os Howeitat, sentissem que não são livres pois servem aos turcos. No filme, observa-se que os árabes e turcos travam um conflito que interessa a eles, mas também a potências da época, suas aliadas. Enquanto os árabes tinham o apoio da Inglaterra, os turcos eram auxiliados pelo Império Otomano (LAWRENCE, 1962). Nesse aspecto, “Lawrence da Arábia” apresenta uma característica curiosa, e representativa no contexto dessa pesquisa: há dois povos orientais, mas um é aliado e o outro é oponente do protagonista. Assim, pode-se compreender que os turcos são, em grande parte do filme, os antagonistas de Lawrence, já que o Império Otomano é pouco mencionado no filme. São os turcos que combatem as tropas de Lawrence, e que batalham com elas pelos mesmos territórios. Já os árabes, também orientais, podem ser vistos como personagens de apoio a Lawrence, pois auxiliam o herói em sua jornada. Em seu arco narrativo Lawrence apresenta uma trajetória por meio da qual se torna um grande herói tanto árabe quanto britânico. O tenente chega à península arábica com pouca experiência na área militar, mas muito conhecimento que adquiriu em livros. A paisagem desértica é inóspita, e a trilha sonora é utilizada nesse momento para inspirar sentimentos de perigo e aventura (LAWRENCE, 1962). O roteiro descreve a diferença de aspecto e vestuário do inglês e seu guia pelo deserto do Sinai, Tafas: “Lawrence está vestido conforme o regulamento do Exército britânico, e Tafas, seu guia árabe, usa a 132 vestimenta de um Hazimi de Beni Salem” (BOLT; WILSON, 1962, p.22, tradução livre117). Em sua viagem pelo Nefude, Lawrence salva Gasim, um dos beduínos da tribo do príncipe Faisal, e se torna um herói para a comitiva de cinquenta homens. Ali ibn el Lharish, conselheiro do príncipe Faisal e companheiro de Lawrence na campanha por Aqaba, personagem vivido por Omar Sharif, reconhece o heroísmo do tenente

Figura 16 - Lawrence com roupas de Xerife Harita inglês e o presenteia com as vestes de (LAWRENCE, 1962, 1h15’) um Xerife Harita (tribo de Ali), e passa a ser chamado de Al Lawrence. Começa assim sua transformação em Lawrence da Arábia, herói dos beduínos. Na Figura 16 é possível observar a posição de poder de Lawrence, tanto por sua roupa branca de Xerife, contrastando com os companheiros e com a areia do deserto, mas também pelo enquadramento escolhido pelo diretor, colocando-o no centro do grupo. Lawrence lidera o grupo de beduínos em diversas vitórias, trazendo riquezas para seus líderes e para os soldados. Passa a se integrar cada vez mais com o povo árabe, e é cada vez mais aclamado. A Figura 17, composta de fotogramas de uma das cenas mais simbólicas da importância de Lawrence, mostra o agora major inglês em cima de um vagão de trem turco conquistado pelos árabes, sendo aclamado pelos beduínos. A figura de Lawrence tem um quê de profética, acenando para os seus fiéis com sua roupa branca, aparentemente imune às intempéries do deserto. Adorado pelo Exército britânico e pelos beduínos, Lawrence é o grande herói da península arábica (LAWRENCE, 1962).

Figura 17. Lawrence aclamado pelos beduínos, e o britânico como figura profética (LAWRENCE, 1962, 2h19’12” e 2h19’27”)

117 “Lawrence is dressed in regulation British uniform, and Tafas, his Arab guide, wears the robes of a Hazimi of the Beni Salem” (BOLT; WILSON, 1962, p.22). 133

Como apontado anteriormente, os povos orientais, em “Lawrence da Arábia” tem duas funções, a de personagem de apoio ao herói, e portanto mais aproximadas da função de protagonista, e a de antagonistas. Os chamados árabes são os aliados de Lawrence e os turcos são os seus inimigos (LAWRENCE, 1962). Entretanto, mesmo na representação dos aliados de Lawrence é possível detectar diversos elementos que comprovam a tese do Orientalismo de Edward Said (1996). No primeiro encontro de Lawrence com Ali, que viria a se tornar seu amigo e parceiro militar na península arábica, o tenente inglês inicia um discurso que será sustentado por todo o filme: o de que o povo europeu conhecem os árabes melhor do que eles próprios e portanto sabe quais as melhores decisões para seu futuro (LAWRENCE, 1962). Lawrence se irrita com a atitude de Ali, que mata seu guia Talas com um tiro a sangue frio e sem remorso algum, pois ele havia bebido de seu poço sem autorização. Então, oferece seu conselho: “Enquanto as tribos árabes lutarem entre si os árabes serão um povo pequeno, um povo tolo! Gananciosos, bárbaros e cruéis. Como você!” (LAWRENCE, 1962, 28’04”). A barbárie árabe é demonstrada diversas vezes durante o filme, quando os oficiais ingleses se referem a eles como ladrões, assassinos, mendigos e nojentos, apesar de Lawrence e Ali tentarem construir uma imagem diferentes dos beduínos, ao coloca-los como guerreiros fiéis e destemidos (LAWRENCE, 1962). Inclusive, é possível apontar que quanto mais próximo dos árabes, mais bárbaro e sanguinário Lawrence se torna. Isso pode ser observado na comparação entre dois momentos do filme: num dos primeiros cercos aos turcos, Lawrence ordena que os árabes parem de atirar assim que os turcos são dominados. Auda Figura 18. Aldeia árabe destruída pelos turcos (LAWRENCE, 1962, 3h01'21") chega a se divertir com o inglês que “odeia derramamento de sangue” (LAWRENCE, 1962, 2h15’41”). Mais tarde, ao investir contra a tropa turca responsável pelo ataque a uma aldeia, cena retratada na Figura 18, Lawrence não só não impede um banho de sangue como o estimula ao golpear os turcos com violência mesmo depois de já mortos (LAWRENCE, 1962). Em outras cenas é demonstrada a superioridade europeia em questões militares e políticas. É curioso perceber que os oficiais ingleses e Lawrence sejam constantemente 134 mostrados como os grandes estrategistas dos conflitos na região, mesmo que as tribos árabes tenham vivido lá há séculos e Lawrence e os outros europeus tenham chegado há poucos anos. Um grande exemplo é a representação de Lawrence como o grande responsável por todas as vitórias dos beduínos, por meio de sua suposta incrível capacidade militar, mesmo que ela já tivesse sido questionada por seus próprios superiores, como mencionado anteriormente (LAWRENCE, 1962). Há também a representação do atraso e por vezes inocência e ignorância dos orientais. O príncipe Faisal, apesar de poderoso governante da tribo Harita, admite que o coronel inglês Brighton estava certo ao dizer que o acampamento deveria ter sido Figura 19. Rei Faisal adota estratégia militar incorreta montado mais ao sul, como (LAWRENCE, 1962, 30'40") demonstrado na Figura 19. Ele erra pois desconhece as armas, as bombas e os aviões dos combates europeus. Já Auda Abu Tayeh, o líder dos Howeitat, é diversas vezes um alívio cômico ao se esconder das fotografias que o repórter Jackson Bentley tenta tirar, pois acredita que a câmera roubará sua alma (LAWRENCE, 1962). O aspecto físico também separa os ingleses de seus aliados. Lawrence tem as roupas brancas e, como apontado anteriormente, sempre limpas, e os oficiais ingleses estão sempre asseados e arrumados, com seus uniformes. Somente em poucas cenas, quando o esforço de Lawrence precisa ser salientado, é que o oficial inglês aparece suado ou com o mesmo aspecto dos beduínos: sujo e maltrapilho (à exceção do príncipe Faisal). Em certo momento, até mesmo Lawrence aponta essa diferença entre seu aspecto e o de seus aliados. Um dos beduínos lhe desafia: “Você pode se passar por árabe em uma cidade árabe?”, ao que Lawrence responde: “Sim, se um de vocês me emprestar uma roupa suja” (LAWRENCE, 1962, 2h34’17”). Quanto ao idioma falado, todos os orientais retratados no filme falam inglês. Algumas palavras como “Salaam”, cumprimento árabe, são utilizadas durante o filme. Dessa forma, todos os personagens podem ser compreendidos pelos espectadores. Mesmo com a representação de seus aliados como bárbaros e gananciosos ladrões, os inimigos são ainda mais bestializados. Mais de uma vez representantes das tribos beduínas dizem que não deixam feridos para trás nos combates, pois o Exército turco é capaz de cometer 135 atrocidades com os prisioneiros que capturam. Além disso, os ataques turcos são retratados como mais violentos que os das tribos árabes, como foi possível ver na Figura 18. A cena que mostra o que restou de uma aldeia após o ataque turco revela muitos mortos, apenas mulheres e crianças, acentuando a barbaridade das práticas militares dos turcos (LAWRENCE, 1962). Há também uma sequência que mostra Lawrence sendo capturado pelos turcos em Deraa. Nessa sequência, é reforçado o estigma dos orientais serem pervertidos sexualmente, maníacos estupradores. O oficial turco sugere que tem interesse sexual em Lawrence, e, ao ser rejeitado, ordena que seus soldados o açoitem. A todo tempo, o oficial turco observa o castigo, e a montagem da cena dá a entender que o turco sente prazer com o açoite de Lawrence. A cena é cortada, mas as cenas subsequentes sugerem que Lawrence foi abusado sexualmente pelo turco118. A visão de Ali sobre o acontecido é curiosa: quando Bentley o questiona sobre o que aconteceu com Lawrence em Deraa, alegando que ele voltou diferente, Ali replica: “Ele continuou o mesmo homem após Deraa, só foi lembrado de sua humildade” (LAWRENCE, 1962, 2h55’09”). A desumanização dos antagonistas também fica evidente em uma das cenas, quando Ali e Lawrence veem um acampamento turco sendo bombardeado. Ao observar as explosões, Ali diz “Deus ajude os homens que estão lá”, ao que Lawrence responde, com desdém “São só turcos” (LAWRENCE, 1962, 2h58’40”). Lawrence, portanto, não crê que os turcos sejam dignos de compaixão, utilizando o desdém para sugerir que suas vidas não importam (LAWRENCE, 1962). Em questões de análise sobre a representação dos orientais no cinema, talvez a sequência de cenas mais simbólica do filme seja a que sucede a conquista de Damasco pelas tropas lideradas por Lawrence. Como havia prometido ao general Allenby, Lawrence e os beduínos haviam tomado Damasco dos

Figura 20. Comando do Exército Inglês em Damasco turcos dois dias antes do Exército (LAWRENCE, 1962, 3h10'12") inglês chegar à cidade. Quando Allenby chega, é informado que Lawrence e os líderes tribais tomaram a cidade e

118 O episódio é relatado mais vividamente em sua autobiografia, onde Lawrence relata ter sido açoitado diversas vezes e estuprado por mais de um oficial turco (LAWRENCE, 1997). 136 estabeleceram o Conselho Nacional Árabe, que iria administrar Damasco como uma cidade árabe independente. Os oficiais perguntam ao general o que fazer, ao que ele responde que o Exército britânico não fará nada. Recolhe todos os soldados, unidades técnicas e médicos (LAWRENCE, 1962). O diálogo e as decisões são tomados em conjunto, de forma calma e ordenada, numa sala com poucos oficiais (Figura 20), e são acatadas de forma imediata. A cena é cortada e o espectador é transportado para a prefeitura de Damasco, onde está o Conselho Nacional Árabe: um verdadeiro pandemônio. Há bandeiras tribais sendo penduradas em castiçais caros e não é possível ouvir o que os beduínos dizem, pois todos falam de forma desordenada. Líderes sobem nas mesas para discutir uns com os outros, como mostra a Figura 21, e o espectador é informado de que os serviços básicos foram tomados por diferentes tribos, e não há acordo de como eles devem funcionar, causando confusão e a falência da infraestrutura da cidade (LAWRENCE, 1962). Em pouco mais de um dia os beduínos deixam a cidade, pois os hospitais não funcionam, e já não há energia elétrica, telefonia, nem distribuição de água. Após o fracasso da tentativa árabe de governar sua própria cidade, cabe ao Exército inglês se encarregar da organização de Damasco. A última cena em que Figura 21. Conselho Nacional Árabe em Damasco aparece Lawrence da Arábia, a (LAWRENCE, 1962, 3h10'20") persona do herói árabe adotada pelo oficial inglês, o mostra em meio a milhares de feridos do hospital militar da cidade, para o qual olha sem ideia do que fazer. Carros chegam trazendo militares e enfermeiras inglesas, que passam a organizar o hospital. Um dos oficiais, sem reconhecer Lawrence, grita dizendo “Isso é um absurdo! Seu árabe nojento”, e desfere um tapa em seu rosto (LAWRENCE, 1962, 3h19’47”). Compreende-se então que em “Lawrence da Arábia” há dois tipos de orientais: os aliados e os inimigos. Os turcos, antagonistas do filme, são retratados como um exército violento, sem misericórdia, assassinos de crianças e mulheres e estupradores. Os árabes, companheiros de Lawrence em sua jornada, apesar de serem retratados como bons guerreiros que o auxiliam em sua campanha militar, são também vítimas do olhar estigmatizado do ocidental. São representados como ignorantes, gananciosos, atrasados, 137 supersticiosos e bárbaros, mas talvez sua mais flagrante característica no filme seja sua incapacidade. Desde o princípio do filme os beduínos demonstram não saber como sobreviver em uma guerra nos moldes do Ocidente, precisando constantemente da ajuda dos britânicos. Além disso, a adoração dos árabes por Lawrence é uma imagem que conecta o filme ao chamado complexo do branco salvador, que aponta que diversas narrativas exploram povos não-brancos como personagens incapazes de se organizar e lutar por suas próprias demandas119. Por fim, ao alcançar seu maior objetivo, conquistar a cidade de Damasco, os árabes se revelam incapazes de gerir uma cidade, e a abandonam. São as autoridades inglesas, então, que terão como responsabilidade reerguer a cidade para que continue habitável e próspera, justificando o colonialismo na região, exatamente como Edward Said (1996) havia apontado.

5.4 “A Hora mais Escura”, 2012 “Continuem com a jihad. Nosso trabalho continuará por cem anos” (ZERO, 2012, 27’49”) Kathryn Bigelow nasceu em 1951, em San Carlos, Califórnia. Por influência de seus pais, Bigelow desde cedo se envolveu com a arte, o que a fez perseguir a carreira de pintora e artista plástica no Instituto de Arte de São Francisco. Após se formar, Kathryn Bigelow viveu na cidade como artista independente, sobrevivendo de pequenos trabalhos como artista e atriz amadora. Em 1978 entrou no programa de mestrado do Programa de Artes Cinematográficas da Universidade de Columbia, onde lecionavam professores de alto gabarito como Edward Said e Susan Sontag. Concomitantemente, Bigelow participava do coletivo Art & Language120¸onde teve sua primeira experiência Figura 22. Kathryn Bigelow no coletivo Art & Language (KATHRYN, 200-) como diretora (Figura 22) (EPITROPAKI, 2015). Nesse coletivo Bigelow dirigiu um curta, “Set Up” (1978), e afirma ter sido dessa experiência que surgiu seu interesse por fazer cinema. A primeira experiência de Bigelow com longas-metragens foi em 1981 com “The Loveless”, o primeiro de uma série de

119 Um estudo interessante sobre o complexo do branco salvador pode ser encontrado no capítulo “Selling the White savior narrative: The Help, Theatrical Previews and US Movie audiences”, de Kerry B. Wilson (2014). 120 Arte & Linguagem (tradução livre) 138 produções independentes da diretora. Bigelow ficou conhecida como uma diretora que gostava de misturar elementos de diferentes gêneros de filmes, e por demonstrar predileção por filmes de ação, algo que não era comum à época, e continua sendo fonte de curiosidade de repórteres e espectadores (EPITROPAKI, 2015). Os filmes de Bigelow ficaram conhecidos por terem um enredo denso, questionado e diversas vezes niilista, além de apresentarem diversas mulheres em posição de poder e protagonismo. A diretora não se priva de retratar cenas de violência explícita, como o estupro em “Estranhos Prazeres” (1995), que chocou o público, as diversas mortes em “Guerra ao Terror” (2009) e as cenas de tortura em “A Hora Mais Escura” (2012). A diretora coleciona um portfólio de filmes de diversos níveis de sucesso de crítica e público, mas em 2010, com “Guerra ao Terror”, Bigelow é consagrada como a primeira diretora mulher a receber o Oscar de Melhor Diretor do Ano121. O filme também levaria a estatueta de Melhor Filme do Ano, vencendo o favorito, “Avatar”, dirigido por James Cameron (EPITROPAKI, 2015). Em ‘Guerra ao Terror”, Bigelow contou com o roteirista Mark Boal, que também se juntou a ela, Nicholas Chartier e Greg Shapiro na produção do filme. O filme de 2009 foi uma produção independente que não teve grande sucesso de bilheteria, mas teve bons frutos com a crítica e nas premiações do ano de 2010122. Em consequência de sua boa temporada, Bigelow pôde continuar sua parceria de pesquisa e produção com Mark Boal, agora com o apoio da Columbia Pictures123. A diretora e o roteirista haviam tido a ideia para “A Hora Mais Escura” enquanto preparavam “Guerra ao Terror”, e a parceria com um dos grandes estúdios de Hollywood proporcionou o financiamento para a pesquisa necessária à produção do filme (EPITROPAKI, 2015). Em 2010, quando Boal e Bigelow começaram a escrever e preparar “A Hora Mais Escura”, que até então era chamado de “For God and Country”124, pensavam em falar sobre os esforços das Forças Armadas estadunidenses para capturar Osama bin Laden, que havia sido responsabilizado, junto à Al Qaeda, pelos atentados ao World Trade Center. O filme teria como enredo os inúmeros conflitos entre Estados Unidos e países árabes como Iraque e Afeganistão, na busca por bin Laden. Em 2011, quando Bigelow se

121 Vale lembrar que o Oscar de 2008 foi a octogésima edição da premiação. Apenas então uma mulher recebeu o prêmio de Melhor Diretor do Ano. 122 Só no Oscar, “Guerra ao Terror” foi indicado em nove categorias, das quais venceu seis, o mais premiado da noite (ACADEMY OF MOTION..., 2019). 123 Divisão da Sony Pictures Entertainment, uma das Majors de Hollywood. 124 “Por Deus e pelo país” (tradução livre) 139 preparava para começar as filmagens, bin Laden foi morto no Paquistão por tropas estadunidenses, o que fez com que a diretora e o roteirista tivessem que voltar a escrever, de forma a adicionar esse evento à narrativa (DP/30, 2013). O filme é baseado, como anunciado em seus créditos iniciais, em relatos de diferentes pessoas envolvidas nas missões para encontrar bin Laden. Bigelow e Boal tiveram acesso a militares e agentes da CIA (Central Intelligence Agency), além de diversos documentos confidenciais. Apesar de não revelar suas fontes, Mark Boal garante que todo o filme, com poucas exceções, é baseado em operações e pessoas não fictícias, e em decisões tomadas sob a administração dos presidentes George W. Bush e Barack Obama. Por fazerem essa afirmação durante o período de divulgação e

Figura 23. Prisioneiro sendo torturado (ZERO, estreia do filme, Boal e Bigelow foram 2012, 16'06") duramente criticados por representantes das Forças Armadas estadunidenses, em decorrência das cenas de tortura logo no começo de “A Hora Mais Escura” (Figura 23) (DP/30, 2013). Nesse filme de ação, Bigelow apresenta com protagonista uma jovem agente da CIA (Agência Central de Inteligência dos EUA): Maya, interpretada por Jessica Chastain. Recrutada pela agência ainda no Ensino Médio, a jovem é extremamente inteligente e perspicaz, e pouco depois de sua entrada na CIA, é enviada ao Paquistão para acompanhar os interrogatórios daqueles que a agência acredita ter ligações com Osama bin Laden. O espectador acompanha a trajetória da heroína como uma agente querendo encontrar um espaço numa das maiores caçadas da História dos Estados Unidos. O filme cobre um espaço de tempo de oito anos na carreira da agente, desde a sua chegada ao Paquistão em 2003 até a captura de bin Laden (ZERO, 2012). O arco narrativo de Maya é interessante, e Bigelow tem como mérito construir o filme de forma que o espectador realmente empatize com a personagem, e se envolva na missão junto com a protagonista. Isso será mais bem explorado à frente. Esse arco acompanha o do antagonista da narrativa: os árabes da Al Qaeda. O objetivo maior de Maya é encontrar e matar bin Laden, e seu obstáculo são as centenas de pessoas na rede do líder terrorista e as informações que ela não consegue obter. O arco narrativo desse grupo de antagonistas acompanha o arco de Maya (ZERO, 2012). 140

Ao início do filme, o espectador é situado no contexto da narrativa através de efeitos de som. Ouve-se conversas, barulhos e ligações telefônicas não fictícias de pessoas presentes no World Trade Center no dia 11 de setembro de 2001. A última voz que se ouve é a de uma mulher que diz que está queimando, e que vai morrer. Esse primeiro elemento Figura 24. Maya incomodada com as torturas lembra o espectador das mais de três mil mortes ao prisioneiro (ZERO, 2012, 16'30") no dia do atentado terrorista. Logo depois, é possível ver Maya em seu primeiro dia de interrogatórios de árabes. As primeiras cenas de tortura aparecem, e a protagonista se mostra incomodada com as cenas (Figura 24), mas também ansiosa para não se mostrar fraca perante seus companheiros de trabalho. As cenas de violência são fortes, e o espectador é levado a, como Maya, se solidarizar com o prisioneiro. Não há provas de que ele saiba onde está Osama bin Laden, e mesmo assim ele continua sendo torturado (ZERO, 2012). O espectador é, então, levado a se solidarizar com o árabe e questionar o caráter de Dan, também agente da CIA, que lidera a tortura do prisioneiro. Nessa mesma direção, são apresentados os outros agentes participantes da missão, e em diversos momentos é salientado o fato de que a CIA espera as mortes dos membros da Al Qaeda. Não há a discussão sobre julgamentos, pois não há espaço para Figura 25. Membros da Al Qaeda procurados pela CIA isso nas relações dos EUA com os (ZERO, 2012, 13'53") países onde estão esses indivíduos. Assim, diversas vezes os superiores de Maya cobram do grupo corpos de terroristas mortos pela equipe, além das torturas, que acontecem sistematicamente durante grande parte do filme. Os alvos da Al Qaeda são mostrados diversas vezes (Figura 25), e há intensa cobrança por sua captura, interrogatório e morte (ZERO, 2012). 141

Porém, a narrativa começa a se transformar ao longo dos anos, por meio da integração de Maya à equipe e das respostas da Al Qaeda à presença dos agentes em solo árabe. Cinco ataques da Al Qaeda são mostrados durante o filme: o atentado ao metrô e ônibus em Londres em 2005, o ataque ao Marriott Hotel em Islamabad, uma explosão em Camp Chapman (Afeganistão) em 2009, a tentativa de ataque à Times Square (Nova Iorque) em 2010 e finalmente uma emboscada à agente Maya, que sobrevive graças aos vidros blindados de seu carro. Esses ataques perturbam a esquipe de Maya (Figura Figura 26 – Bradley ouve pela TV notícias sobre o 26), e as vidas perdidas em cada um atentado a Londres, irritado (ZERO, 2012, 35'00") dos ataques fazem com que a agente, e consequentemente o espectador, se tornem cada vez menos empáticos em relação aos árabes (ZERO, 2012). O principal momento em que a empatia é quebrada é no ataque a Camp Chapman, pois nesse ataque morre a melhor amiga de Maya, a também agente da CIA Jessica. Confiante em sua fonte, e empolgada por encontrá-lo pela primeira vez, Jessica prepara um bolo para sua visita, e solicita que a segurança da base estadunidense seja afrouxada. Porém, é traída por sua fonte, que se explode dentro da base, matando diversos agentes e soldados. A cena é dramática para Maya, e um ponto de tensão em sua narrativa, que se torna cada vez mais agressiva e determinada. A partir desse momento, Maya apresenta características parecidas com Dan ao interrogar prisioneiros, e se torna obcecada pela morte de Osama bin Laden (ZERO, 2012). É interessante, porém, que o mal-estar sobre a tortura e as mortes se suaviza, pois o espectador compreende a motivação de Maya. O filme é bem-sucedido ao estabelecer um processo de desumanização do árabe por meio dos ataques terroristas e das mortes de ocidentais. A partir de então, o espectador torce para que as operações estadunidenses deem certo, não importa a quantidade de mortos, ou se alguém é torturado. Todas essas ações são justificadas, pois o filme retrata as operações estadunidenses como uma reação justa aos ataques à sua população e Forças Armadas (ZERO, 2012): George (Diretor da CIA): Não há esquadrão nenhum vindo em socorro. Não há mais ninguém escondido em outro andar. Somos só nós. E nós estamos falhando. Estamos gastando bilhões de dólares. Pessoas estão morrendo. Ainda não estamos nem perto de derrotar nosso inimigo. Eles nos atacaram por terra em 98, por mar em 2000 e pelo ar em 2001. Eles assassinaram três mil de 142

nossos cidadãos a sangue frio e matam nossos soldados. E o que fizemos sobre isso? O que nós fizemos? Temos vinte nomes de liderança e eliminamos apenas quatro deles. Eu quero alvos! Façam seus malditos trabalhos, me tragam pessoas para matar! (ZERO, 2012, 01h05’00”)

Maya segue com seu objetivo de matar o líder da Al Qaeda, mas enfrenta diversos entraves para chegar até ele. Um deles é fazer com que sua pista principal se torne interesse da CIA. Maya persegue essa pista desde o começo de sua atuação no Oriente Médio, e acredita que um dos mensageiros de bin Laden, Abu Ahmed, é a chave para encontrá-lo. Porém, em dado momento, quando ela está perto de conseguir localizar o terrorista, Joseph Bradley, seu supervisor, não concorda com os recursos necessários para as ações que Maya pretende empreender. Maya se coloca de forma assertiva, quase violenta, para convencer Bradley de ajudá-la. É o principal momento de Maya de transformação na heroína do filme: Bradley: Alguém acabou de tentar explodir a Times Square e você está conversando comigo sobre um facilitador que alguns detentos disseram há sete anos que poderia estar trabalhando com a Al Qaeda? Maya: Ele é a chave para bin Laden. Bradley: Eu não me importo com bin Laden! Me preocupo com o próximo ataque. Você vai começar a trabalhar nas células americanas da Al Qaeda. Proteja a pátria. Maya: Você só quer que eu pregue um árabe qualquer de baixo nível para que você possa dizer no seu currículo que enquanto você estava no Paquistão você pegou um terrorista. Mas a verdade é que você não entende o Paquistão e não conhece a Al Qaeda. Ou você me dá a equipe que eu preciso seguir essa pista, ou a outra coisa que você vai ter no seu currículo é ter sido o primeiro supervisor de missão a ser chamado perante um comitê do Congresso por subverter os esforços para capturar ou matar bin Laden (ZERO, 2012, 01h18’58”).

A agente passa a contar então com um efetivo que, sob seu comando, encontra Abu Ahmed. A pista da agente estava correta: o mensageiro é realmente a chave para encontrar bin Laden, que está hospedado em sua casa. Ela é a heroína, a responsável por encontrar um terrorista procurado pela CIA e pelo governo estadunidense há uma década. Além do enredo, há determinadas cenas que são utilizadas por Kathryn Bigelow para a construção da heroína. Uma dessas cenas é a relatada acima, na qual Maya é assertiva com seu superior, e outra é uma cena em que Maya diz, para um dos soldados estadunidenses, que perdeu muitos amigos nessa missão, e que acredita que Deus a poupou para que ela possa finalizar a missão em honra deles (Figura 27). O espectador é levado pela narrativa a embarcar na ideia do posicionamento de Maya como a escolhida por Deus para matar bin Laden (ZERO, 2012). Essa ideia pode 143

ser compreendida como uma metáfora do mito fundador dos Estados Unidos como o povo escolhido por Deus, discutido no terceiro capítulo. Maya acredita que Deus permitiu que ela continuasse vivendo para que ela livrasse o mundo de bin Laden. Se, de Figura 27. Maya, a escolhida (ZERO, 2012, 1h17'06") fato, foi um desígnio de Deus que Maya vivesse para matar bin Laden, pode-se compreender que era da vontade de Deus que bin Laden morresse, e que portanto ele fosse algo que devesse ser extirpado do mundo. É precisamente essa a mensagem construída pelo filme. Apesar de no início os prisioneiros árabes despertarem alguma empatia no espectador, a partir dos ataques essa ideia é desconstruída cada vez mais, de forma que do meio para o fim do filme o espectador já não se perturbe com o fato de que os soldados estadunidenses, em busca de bin Laden, matem homens e mulheres árabes sem nome. São danos colaterais da importante missão de extirpar aquilo que é percebido como fonte de mortes, desordem e perigo ao mundo. Os ocidentais e os orientais são retratados de forma bastante divergente em “A Hora Mais Escura”. Os personagens ocidentais são soldados ou agentes da CIA, de forma que estão de uniforme ou roupais formais na maioria das cenas. Seu aspecto é de limpeza, mesmo ao serem expostos ao deserto, ao calor e à areia. Ao retratar os árabes, salienta-se as cidades cheias, a pobreza, a desorganização (Figura 28). Os informantes árabes são figuras evidentemente pobres, com roupas esfarrapadas e sujas125. Até na casa de bin Laden, retratado como o mais poderoso líder de uma organização terrorista transnacional, os quartos são simples, não há luxos, e os outros habitantes parecem tão pobres quanto os informantes da CIA. As diferenças de idioma em “A Hora Mais Escura” são utilizadas de forma leve, e não são mobilizadas como uma forma de caracterizar personagens, pois a maioria Figura 28. Rawalpindi, Paquistão (ZERO, 2012, 1h27'41")

125 No filme, há apenas um árabe retratado como rico, um membro da nobreza do Kuwait, que veste roupas tradicionais, brancas (ZERO, 2012). 144 fala inglês. Há poucos que não entendem a língua, e para esses há sempre um tradutor (ZERO, 2012). “A Hora Mais Escura” de Kathryn Bigelow é apontada por diversos jornalistas como um filme de propaganda para a CIA e para a campanha militar dos Estados Unidos no Oriente Médio nos dez anos entre o ataque ao World Trade Center em 2001 e a morte de Osama bin Laden em 2011 (GREENWALD, 2012; MAASS, 2015; KERN, 2013). A diretora, porém, defende sua obra como um filme que conta a história de agentes empenhados em cumprir o seu dever. O nome original do filme, “Zero Dark Thirty”, tem dois significados para a diretora. O primeiro é seu significado militar: para os soldados, zero dark thirty se refere ao horário de meia noite e meia, quando a operação para matar bin Laden foi iniciada. O segundo significado, que conecta o filme ao seu objetivo de acordo com a diretora, é que é noite nesse horário, e a noite simboliza a escuridão da década entre 2001 e 2011 para os estadunidenses (KATHRYN, 2013). O que se observa é que o filme de fato faz uma tentativa de trazer para o público a discussão sobre a guerra e os meios violentos utilizados pelas tropas estadunidenses para conseguir informações. Ao início do filme, Bigelow mostra aos espectadores a tortura praticada pelos agentes da CIA e, por meio das reações da jovem agente Maya, constrói empatia pelos árabes torturados. Porém, com o desenvolver do arco narrativo da protagonista, diversos ataques da Al Qaeda acontecem ao redor do mundo, matando civis ocidentais e orientais, incluindo a melhor amiga de Maya. A partir desse momento, o espectador é convencido de que os meios utilizados pela CIA e o exército são necessários para conter o grupo terrorista e seus ataques (ZERO, 2012). É nesse filme, portanto, que se constrói mais vividamente a imagem do árabe para o Ocidente no pós setembro de 2001. No filme, os árabes são retratados como terroristas que precisam ser eliminados, e mesmo aqueles que não são terroristas demonstram a percepção de que civis podem também ser mortos pois podem ser entraves à eliminação dos alvos do governo estadunidense. Não há contrapartida, não há história árabe a ser contada, o que acaba por conceder aos árabes o papel unidimensional de obstáculo que separa os Estados Unidos da paz, e que por isso deve ser derrotado.

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5.5 “Munique”, 2005 Terrorism is a terrible weapon, but the oppressed poor have no other (SARTRE, 1972, p.6)126 “Munique” é o quarto filme dessa pesquisa que surgiu da adaptação de um livro para o cinema. A célebre produtora Kathleen Kennedy, que já havia trabalhado com Steven Spielberg em diversos de seus sucessos, incluindo “Jurassic Park” (1993), “Lista de Schindler” (1993) e a série “Indiana Jones” (1984, 1989, 1995), entre outros, estava trabalhando com Barry Mendel em um projeto e decidiu que Spielberg seria o diretor indicado para o trabalho. Kennedy e Mendel planejavam adaptar para o cinema o livro “Vengeance”, de George Jonas, lançado em 1984 (MUNICH, 2006). O livro, que conta a história da chamada operação “Ira de Deus” e foi roteirizado por Eric Roth e Tony Kushner, não foi desmentido por autoridades israelenses, porém foi intensamente atacado na década de 1980. A história conta a missão de agentes do Mossad, serviço secreto e de inteligência de Israel para vingar a morte de onze atletas israelenses por membros de um grupo terrorista palestino, o Setembro Negro. Agentes são mobilizados para localizar e eliminar palestinos que tiveram ligações com o ataque à delegação israelense na Olimpíada de Munique em 1972 (MUNICH, 2006). “Munique” traz como protagonista Avner Kaufman, vivido por Eric Bana, agente do Mossad com pouca experiência, que é mobilizado por ter sido guarda-costas da então primeira ministra Golda Meir para liderar uma célula secreta de extermínio127 (MUNICH, 2005). À época, o filme recebeu boas críticas da comunidade cinematográfica, mas foi fortemente atacado por ser visto tanto como um filme pró-Palestina quanto pró-Israel. Spielberg respondeu afirmando ser um judeu pró-Israel que queria iniciar discussões e levantar perguntas sobre o ciclo que se estabelece quando violência é combatida com ainda mais violência. O diretor alega não se propor a responder essas perguntas, mas simplesmente trazê-las ao público (MUNICH, 2006). Avner é decididamente o protagonista, pois além de ser o centro da narrativa, tem o filme pautado por seus conflitos, que tem diferentes origens. Num primeiro momento, Avner se mostra motivado pela ideia de vingar a morte de seus compatriotas, de forma

126 O Terrorismo é uma arma terrível, mas os pobres e oprimidos não tem nenhuma outra (SARTRE, 1972, p.6, tradução livre). 127 Apesar da mobilização dos agentes da Mossad para o extermínio de filiados da Organização pela Libertação da Palestina e do Fatah ser um fato histórico retratado em “Munique”, tanto Kaufman quanto os outros agentes de seu grupo são personagens fictícios. Foram criados de forma a personificar diversos agentes da Mossad que tiveram como missão assassinatos de palestinos durante a década de 1970 (MUNICH, 2006). 146 que os antagonistas são os palestinos, tanto aqueles que iniciaram sua jornada ao atuar no atentado terrorista quanto aqueles que ajudaram a planejá-lo. Oficiais do Mossad financiam secretamente o grupo de Avner e os informam quem são as pessoas que eles estão encarregados de assassinar. Ao longo do filme, o próprio Mossad se torna também parte de seu conflito interno, pois Avner passa a se questionar por que e quem seu grupo está matando, já que o serviço secreto israelense não fornece provas ou qualquer informação sobre os alvos. Dessa forma, o Mossad passa a ser um antagonista na narrativa, quando Avner passa a se sentir ameaçado após criticar os métodos da organização (MUNICH, 2005). A representação de palestinos e israelenses na narrativa de “Munique” é curiosa. Spielberg mostra de diversas maneiras que a história do atentado e dos fatos que se seguem não é uma verdade absoluta, de forma a tentar levar o espectador a compreender que não há um vilão e um mocinho no conflito israelo-palestino. Na sequência inicial do filme, que mostra o ataque palestino à delegação israelense em Munique, a montagem é utilizada para este fim. Os espectadores são expostos a cenas que comparam o sofrimento das famílias dos envolvidos, tanto israelenses quanto palestinas (Figura 29).

Figura 29. Família israelense chora pela morte dos atletas e família palestina chora pela morte dos fedayin (MUNICH, 2005, 8’19” e 8’36”). A questão do uso da violência é trabalhada da mesma forma: um programa de televisão lista os nomes dos israelenses mortos, e intercaladamente é possível ouvir oficiais do Mossad listando os nomes dos palestinos que deverão ser mortos pelo grupo de extermínio israelense em represália. Grupos de nomes são apresentados de cada lado em intervalos de segundos, como pode ser observado na Figura 30 (MUNICH, 2005).

Steven Spielberg até mesmo se aventura a falar sobre a origem dos ataques à delegação israelense. Em determinada cena, Golda Meir se reúne com os oficiais do Mossad, na qual a primeira ministra discorre sobre a situação. Meir compara o ataque à 147

Figura 30. Nomes israelenses e palestinos envolvidos no atentado (MUNICH, 2005, 10’18” e 10’19”) violência do regime nazista. “É como se fosse Eichmann128 novamente. [...] Acuados e massacrados novamente. Enquanto o resto do mundo está jogando e celebrando, há judeus mortos na Alemanha” (MUNICH, 2005, 11’12”). Meir toma então a decisão que os oficiais do Mossad esperavam: diz que sempre resistiu à ideia de que judeus não podem se dar ao luxo de ser civilizados, mas que a situação que se apresenta é uma em que “a civilização se vê obrigada a negociar acordos com seus próprios valores” e autoriza as execuções, dizendo “Esqueça a paz por agora. Precisamos mostrar que somos fortes” (MUNICH, 2005, 13’10”). Em contrapartida, o espectador tem a oportunidade de ouvir do representante da OLP em Paris que está na lista de execuções do grupo de Avner, Mahmoud Hamshari, os motivos pelos quais os palestinos atacam os israelenses: Somos há vinte e quatro anos a maior população de refugiados do mundo, nossas casas foram tiradas de nós, vivemos em acampamentos, sem futuro, sem comida, nada decente para nossos filhos. A OLP condena o ataque a civis, embora por vinte e quatro anos nossos civis tenham sido atacados pelos israelenses. Israel acabou de bombardear dois campos de refugiados na Síria e no Líbano, duzentas pessoas mortas. Fizeram isso logo depois de Munique, então é isso... Não começou em Munique. E onde isso acaba? Como isso vai acabar? (MUNICH, 2005, 45'23”) Muitas vezes, é o roteiro de Roth e Kushner que se destaca na construção da ideia da dubiedade da razão no conflito entre Israel e Palestina. Há uma cena muito interessante na qual, por coincidência, o grupo de extermínio do Mossad compartilha um esconderijo com um grupo de representantes da OLP, em Paris. O grupo liderado por Avner mente sobre suas origens, dizendo que são de outros grupos de resistência, e, após um momento de tensão, todos dividem o espaço de forma pacífica. Isso dá espaço para que Avner possa conversar com Ali, o jovem líder dos palestinos no esconderijo, e então o questiona sobre a validade da causa da OLP:

128 Meir se refere a Otto Adolf Eichmann, oficial nazista que foi julgado pelo tribunal em Israel em 1962 e condenado à morte. Seu julgamento foi tema de um dos mais célebres livros de Hannah Arendt, “Eichmann em Jerusalém” (1963). 148

Avner: Você mata judeus, o mundo se sente mal por eles e acha que vocês são animais. Ali: Sim, mas o mundo vai ver como eles nos transformaram em animais. Eles vão começar a fazer perguntas sobre as condições de nossas jaulas. Avner: Você é árabe. Existem muitos lugares para os árabes. Ali: Você é um simpatizante dos judeus. Todos os alemães são permissivos com Israel. [...] Avner: Você realmente sente falta das oliveiras do seu pai? O lixo de onde ele veio? Você honestamente acha que precisa recuperar tudo isso? Solo calcário e cabanas de pedra? Isso é o que você quer para seus filhos? Ali: É. Com certeza é. Levará cem anos, mas nós venceremos. Quanto tempo demorou para os judeus conseguirem seu próprio país? Quanto tempo os alemães levaram para fazer a Alemanha? Avner: E olhe só no que deu. Ali: Você não sabe o que é não ter uma casa. É por isso que vocês, europeus, não entendem. Você diz que não é nada, mas você tem um lar para voltar. [...] Nós queremos ser uma nação. O que queremos é um lar (MUNICH, 2005, 1h31'24”).

A conversa de Avner com o jovem palestino o perturba, e, mais tarde, o grupo israelense descobre que os palestinos do esconderijo estão auxiliando um dos homens que devem matar. O grupo tenta atuar de forma inconspícua, como havia conseguido até então, mas há contratempos e Avner é obrigado a matar Ali, o que o deixa atordoado e o faz questionar as próprias ações. O personagem do agente do Mossad tem o arco narrativo construído de forma a levá-lo de um ativista militar pró-Israel convicto para um homem que questiona a eficácia dos métodos do Mossad, e a validade do ciclo de violência entre israelenses e palestinos (MUNICH, 2005). O mesmo acontece a Robert, vivido por Mathieu Kassovitz, um dos agentes do grupo de Avner, que decide deixar o grupo por não conseguir mais lidar com tamanha violência (Figura 31). Avner tenta dissuadi-lo, dizendo que eles irão vencer, mesmo que leve anos. Robert recusa, dizendo que judeus não devem agir errado só

Figura 31. Robert deixa o grupo (MUNICH, 2005, porque o inimigo age errado. Avner 2h01'11") responde dizendo que eles não podem mais se dar ao luxo de ser decentes, ao que Robert responde, antes de deixá-lo: “Eu não sei se nós já fomos decentes. Sofrer milhares de anos de ódio não faz você decente. Nós devemos ser justos. Foi o que me ensinaram, isso é ser judeu. Isso é o que eu conhecia. E acho que perdi isso, Avner. Eu perdi tudo. Perdi minha alma” (MUNICH, 2005, 2h00’29”). Pouco depois, Robert morre em uma explosão que não se sabe se foi acidental 149 ou não. É a primeira baixa no grupo, que faz mais uma vez Avner questionar a validade da missão (MUNICH, 2005). Steven Spielberg afirma ter escolhido atores que não fossem fisicamente parecidos e dado a eles personagens de diferentes temperamentos, de forma a simbolizar posicionamentos distintos em relação à atuação de Israel no conflito. Steve, vivido por Daniel Craig, por exemplo, simboliza os agentes sanguinários e cegos das Forças Armadas israelenses, enquanto Carl, interpretado por Ciarán Hinds, é um agente que cumpre ordens, mas sabe que os dois lados têm sua responsabilidade no derramamento de sangue. Avner é o típico agente que cumpre ordens sem questionar, e Robert é o símbolo daqueles que deixam de acreditar nas instituições israelenses após ver a morte e a destruição que surgem com a guerra (MUNICH, 2006). Carl e Steve tem uma discussão muito relevante para a compreensão da mensagem que Spielberg tenta passar com o filme: Steve: [...] Se não aprendermos a agir como os terroristas, nunca os derrotaremos. Carl: Nós agimos como eles, o tempo todo. Você acha que eles inventaram o derramamento de sangue? Como você acha que conseguimos o controle da terra? Sendo gentis? Meu filho morreu em 1967, seu filho da puta desonesto! Tudo o que você imaginar eu fiz por Israel. Steve: Controle-se! Peça para ser realocado se isso for tão desagradável pra você! Carl: Não é desagradável para você? Steve: Não. E sabe do que mais? O único sangue que importa para mim é o sangue judeu. Qual é o seu problema? (MUNICH, 2005, 1h43’47”)

Carl e Robert, portanto, tem os posicionamentos mais empáticos em relação aos palestinos. O arco narrativo de Avner faz com que ele se aproxime gradualmente de sua posição, o que se acentua com as mortes de Robert e Carl. Porém, há diversos elementos e personagens que fazem com que Avner se lembre das motivações israelenses para os assassinatos e atentados realizados pelo seu grupo. Um desses elementos é o revanchismo, a vingança. Esse sentimento é criado por meio do posicionamento de Golda Meir, que volta Figura 32. Papa conversa com Avner (MUNICH, 2005, 1h23'44") a conversar com Avner e o relembra que a família é o mais importante, e o que ele está fazendo é proteger sua família. Papa, o chefe da organização francesa contratada por Avner para a localização de seus alvos, também o estimula, dizendo que o mundo foi injusto com a tribo de Avner, os judeus, e que é natural responder com violência a esse tratamento (Figura 32). 150

A ideia de lar também é mobilizada diversas vezes durante o filme. Essa escolha do roteiro e da direção é uma escolha importante, já que essa ideia permeia, como discutido no capítulo anterior, toda a história do conflito. Para Avner, a necessidade de lutar por Israel é lembrada em diversas cenas. Além da cena já discutida, em que Avner percebe a importância de um lar para os palestinos, o agente da Mossad discute sobre a importância de Israel em três outros momentos. O primeiro é com sua esposa, Daphna, quando a filha do casal nasce. Avner quer que elas se mudem para Nova Iorque, para longe do conflito. A esposa não concorda, diz que a filha deve ser israelense, que em Nova Iorque ela será apenas outra judia sem lar (MUNICH, 2005). Numa segunda cena, Avner discute com Louis, seu informante, sobre as mortes de seus colegas (todos estão mortos, exceto ele e Steve), e sobre o perigo que ele e sua família estão correndo. Louis então usa uma metáfora: enquanto os dois olham uma vitrine de uma loja de decoração cara, Louis aponta para uma cozinha decorada e diz “Um dia quem sabe você poderá ter uma assim. Custa muito caro. Mas um lar sempre custa caro”. Desta forma, dá a entender que os custos para que Israel vença são altos, mas valem a pena, pois é o lar do povo judeu (MUNICH, 2005, 2h13’49”). Por fim, em uma das últimas cenas do filme, Avner conversa com sua mãe. O agente está física e psicologicamente esgotado. O luto por seus companheiros, a paranoia e o medo tomaram conta de sua vida, e ele não consegue mais encontrar forças para continuar. Avner é filho de um bem- sucedido agente da Mossad, e então

Figura 33. Avner conversa com sua mãe (MUNICH, 2005 procura em sua mãe conselhos para 2h21'03") voltar a acreditar em sua missão. A mãe conta que a maior parte de sua família foi morta na Alemanha, e que Israel é o refúgio dos judeus, seu lar. Como é possível ver na Figura 33, ela crê que Israel tomou terras pois de outra forma nunca as teria conseguido, expressando orgulho pelo que o filho faz para proteger esse lugar: “Um lugar para ser judeu entre judeus, subalternos de ninguém”. Porém Avner se sente culpado, e tenta encontrar redenção em sua mãe: “Você quer saber o que eu fiz, mãe?”. Ela responde: “Não. O que quer que tenha feito, foi necessário, nós temos um lugar na Terra, enfim” (MUNICH, 2005, 2h21’08”). 151

O espectador tem acesso à história pela perspectiva de Avner, e Spielberg utiliza vários elementos para demonstrar que o agente perde cada vez mais a fé em seu trabalho e na retidão de Israel frente ao conflito com os palestinos. Avner compreende, por intermédio de sua relação com seus colegas e com seus inimigos, que o terrorismo palestino é a arma que aquele povo possui para se defender. Para fazer, como disse Ali, com que o mundo visse as condições de vida dos palestinos. A resposta de Israel é justificada por Hans, companheiro de Avner, que diz que os assassinatos servem para que o mundo saiba que matar judeus não sairá barato. Para o protagonista, porém, essa justificativa não basta mais (MUNICH, 2005, 2h05’24”). Ao fim do filme, Avner desiste de servir ao Mossad, e de voltar a Israel, por não acreditar no trabalho desenvolvido pela instituição e no direito de Israel sobre as terras e vidas palestinas. Pouco tempo depois, Ephraim, o oficial do Mossad responsável pela missão de Avner o visita em Nova Iorque, pedindo-o para voltar a Israel e ao serviço secreto israelense. O ex-agente, porém, se revolta, questionando suas ações e os assassinatos que cometeu. Diz que não compreende por que matou tantos homens se as organizações palestinas continuam se organizando, recrutando, substituindo aqueles que são executados pelo Mossad. Questiona até se seu grupo não foi levado a acreditar que estava executando os responsáveis pelo atentado em Munique enquanto o Mossad os usava para matar palestinos chave na OLP, para desarticulá-los (MUNICH, 2005, 2h33’25”). Avner quer saber qual foi o seu real papel no conflito, e Ephraim o responde dizendo que os homens que ele matou eram responsáveis por recrutamento, estratégia e articulação palestina que acabam matando israelenses. Avner quer ver provas do que Ephraim diz, mas ele apenas o responde dizendo que os homens foram mortos para manter a paz. Avner, por fim, responde que não há paz depois de tanto derramamento de sangue Figura 34. Avner questiona Ephraim (MUNICH, 2005, (Figura 34) (MUNICH, 2005). 2h34'53") Spielberg faz um bom trabalho ao levar o espectador a acompanhar as motivações e dúvidas de Avner, pois são esses elementos que trarão as perguntas e discussões sobre o conflito que o diretor tinha como objetivo suscitar com o filme. 152

Há, porém, alguns momentos em que Spielberg demonstra seu posicionamento declarado a favor de Israel. A escolha de Avner como o protagonista já é um elemento desse posicionamento. O espectador tem contato com a história, as motivações e os dramas pessoais de Avner, que é frequentemente lembrado de sua missão, da importância de Israel, e da necessidade de manter sua família em segurança. Da mesma forma, o diretor faz a opção por não mostrar o atentado à delegação israelense de forma completa ao início do filme. O espectador tem uma ideia geral do que aconteceu em Munique nas primeiras cenas do filme, mas é por meio de flashbacks de Avner, em três outros momentos (MUNICH, 2005, 23’, 1h55’ e 2h30’), em cenas nas quais cada vez mais violência é revelada, que se compreende como todos os palestinos e israelenses foram mortos. Essa ferramenta faz com que os espectadores nunca percam de vista os motivos de Avner para matar os palestinos, mesmo que ele seja confrontado com outros posicionamentos e com o outro lado da história (MUNICH, 2005). Elementos técnicos do filme como trilha sonora, figurino e iluminação também denunciam o posicionamento de Spielberg. Para examinar essas diferenças, serão comparadas duas sequências de cenas, em que os fedayin129 e os israelenses se preparam e executam seus planos: o ataque à delegação israelense em Munique e aos palestinos representantes da OLP em Beirute, respectivamente. No início do ataque dos palestinos, o espectador ouve uma música sombria e que gera enorme tensão, indicando que os palestinos farão algo violento. No caso da cena do ataque israelense, por outro lado, Spielberg utiliza uma banda que toca próximo ao local do ataque para inserir a trilha sonora: uma canção melódica e sensual, enquanto os agentes do Mossad chegam em pequenas embarcações, em um estilo que lembra as cenas dos filme do espião 007 (MUNICH, 2005). A iluminação é utilizada de forma também muito diferente nos dois ataques. Na Figura 35 é possível comparar os dois grupos enquanto se preparam para as respectivas ações. Apesar de os dois ataques serem à noite, os fedayin são, na maior parte do tempo pouco iluminados, de forma que não se possa ver seus rostos, enquanto os israelenses recebem uma boa iluminação130. A tensão dos personagens também é diferente. Os palestinos demonstram nervosismo em um primeiro momento, e

129 Palavra árabe que significa “mártir”, ou “aquele que se sacrifica”, palavra utilizada para nomear militantes árabes de diversas origens (BRIGGS, 2011). 130 Entre 3’01” e 3’09” há um período no qual os palestinos são expostos a melhor iluminação, porém a sequência de cenas é, de forma geral, escura e confusa (MUNICH, 2005). 153 empolgação logo antes de começar o ataque, enquanto os israelenses mantém um ar de profissionalismo durante toda a cena (MUNICH, 2005).

Figura 35. Fedayin e israelenses antes do ataque (MUNICH, 2005, 1’38” e 1h12’26”)

O figurino e aspecto dos personagens é também um elemento que diferencia as duas operações. Ao início dos ataques, os dois grupos apresentam roupas comuns e simples. As duas ações têm diversos elementos em comum: combate corpo a corpo, correria e explosões, mas, como é possível ver na Figura 36, o aspecto de cada um dos grupos ao fim dos confrontos é bastante diferente. Os palestinos aparecem suados, sujos e arquejantes, enquanto os israelenses, mesmo sob tiroteio, são representados como se não tivessem feito muito esforço: as roupas limpas e arrumadas, os rostos serenos e sem suor (MUNICH, 2005).

Figura 36. Fedayin e israelenses ao fim do ataque (MUNICH, 2005, 2h30’54" e 1h'15'58")

Por fim, é interessante apontar as escolhas de Steven Spielberg quanto ao uso e tradução de idiomas estrangeiros em “Munique”. Todos os personagens falam inglês, exceto os palestinos que realizam o ataque à delegação olímpica israelense. Mesmo assim, há diversos momentos em que línguas estrangeiras como alemão, hebraico, francês e árabe são faladas no filme (MUNICH, 2005). Steven Spielberg utiliza esse artificio, porém, não para marginalizar alguma nação, como observado em outros filmes analisados 154 nessa pesquisa. O diretor utiliza a linguagem para compor a ambientação de algumas cenas. Nas cenas iniciais, por exemplo, as falas dos fedayin por vezes são traduzidas, e por vezes não. Ao começo do confronto com os israelenses, não há tradução do árabe ou do hebraico, e os personagens gritam uns com os outros, de forma que a confusão linguística contribui para o aumento da tensão da cena, deixando os espectadores aflitos e sem compreender o que está sendo dito131. Logo depois, quando os israelenses já estão dominados e os palestinos negociam sua saída do prédio, há a tradução do árabe, para que o espectador tenha acesso ao que os fedayin pensam e demandam (MUNICH, 2005). Ao levar-se em consideração todos os elementos analisados, é possível compreender que Steven Spielberg criou um filme no qual se propõe a desconstruir algumas visões e posicionamentos sobre o conflito entre Israel e Palestina. A equipe de “Munique” é bem-sucedida ao humanizar e incriminar ambos os lados do conflito, demonstrando a violência e as mortes de responsabilidade israelense e palestina, mas também as motivações, os sonhos e medos de cada um dos indivíduos e nações envolvidos no conflito. As escolhas feitas por Spielberg denotam também um esforço de não perpetuar estereótipos, seja de árabes ou judeus. Não há diferenças marcantes entre os dois grupos em questões de figurino e aspecto físico, na maior parte do filme. O posicionamento declaradamente pró-Israel de Spielberg, porém, pôde ser observado em alguns momentos e em algumas das escolhas do diretor. De forma geral, “Munique” é um filme que tem o grande mérito de suscitar discussões sobre o ciclo de violência no conflito entre palestinos e israelenses que já dura sete décadas.

131 Há outras cenas que utilizam desse mesmo artifício, como a cena em que militantes da OLP e o grupo de Avner se encontram no mesmo cômodo. A gritaria inicial e todo o processo de identificação é feito em várias línguas ao mesmo tempo, e o espectador não tem acesso à tradução, ficando refém da confusão linguística da cena e a tensão que ela engendra (MUNICH, 2005). 155

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS We know less and less and less about more and more and more (WALKER, 2009)132

O cinema é um dos mais tradicionais programas de entretenimento para centenas de milhares de pessoas por todo o mundo. A experiência cinematográfica de imagem, som, conforto e consumo tem sido aperfeiçoada desde as primeiras exibições de pequenos filmes nos vaudevilles europeus e estadunidenses. No século XXI, num contexto em que a internet trouxe aos espectadores a possibilidade de assistir aos grandes lançamentos cinematográficos em casa, as redes de cinema e os conglomerados seguem apostando na magia e nostalgia que trazem as salas de exibição para trazer os espectadores para seus estabelecimentos (SCOTT, 2004). Seja no cinema ou em casa, os filmes têm como prerrogativa o poder de transportar o espectador para uma outra realidade, apresentá-lo a novos lugares, pessoas, vidas e possibilidades. Como obra de arte, o cinema opera através do sensível, como aponta Jacques Rancière (2012). O sensível é a realidade à qual os seres humanos têm acesso, por meio de seus sentidos, e a arte tem o papel de reforçar o status quo da organização ou de questioná-lo, mobilizando narrativas dissidentes e dando visibilidade para aquilo que não era visto e ouvido. A Estética trata da inscrição de um novo modo de apreensão do sensível, alargando percepções do mundo e trazendo uma nova forma de vida individual e coletiva, uma nova humanidade (RANCIÈRE, 2012). Todo esse processo pode fazer com que se mascare o fato de que os filmes não são simplesmente captações de imagens do mundo não fictício de forma a construir um mundo fictício. Como discutido na introdução dessa dissertação, os sistemas de representação, incluindo o cinema, apresentam uma lacuna entre aquilo que se quer representar e a representação propriamente dita. Essa lacuna reflete uma posição política do mundo específica, que pode ser observada pelas preferências e escolhas dos diretores sobre como gerir as representações (BLEIKER, 2009). Como discutido no quarto capítulo dessa dissertação, a produção de ficção cinematográfica difere da literatura em diversos elementos. A questão da construção de contexto, história e elementos psicológicos da narrativa e dos personagens na literatura é frequentemente de responsabilidade do elemento narrador. No cinema, a narração é estabelecida pelos movimentos de câmera, as escolhas de foco, enquadramento,

132 “Sabemos cada vez menos sobre cada vez mais coisas” (WALKER, 2009, tradução livre) 156 luminosidade e outros elementos. Por isso, são os diretores dos filmes os principais responsáveis pelo estabelecimento da linguagem e da narrativa dos filmes, pois são eles que determinam esses elementos das filmagens (ROSENFELD, 2007, p.22). Assim, ao realizar a Análise de Conteúdo dos cinco filmes escolhidos para essa pesquisa, esperou-se encontrar padrões de representação que confirmassem a hipótese de trabalho que afirmava que os diretores de Hollywood apresentam preferências estéticas em seus filmes que culminam na produção de discursos com cargas ideológicas que representam as nações judaica e árabe como vítima e perpetuadora de violência, respectivamente. Esperava-se confirmar com facilidade a hipótese apresentada, porém não foi o que aconteceu. Ao longo da dissertação, o estudo das narrativas da História dos Estados Unidos e do Conflito Árabe-Israelense foram importantes para que se estabelecesse uma leitura dos acontecimentos que contextualizam a pesquisa aqui desenvolvida. Porém, as narrativas que foram apresentadas ao leitor dessa pesquisa, como discutido anteriormente, são apenas um relato, um texto, que pode ser desestabilizado por outros textos, outras narrativas (FOUCAULT; DELEUZE, 1985; DERRIDA, 2004). Assim, a construção estadunidense do árabe como terrorista e do judeu como uma vítima do Holocausto pode ser percebida em diversos momentos nos filmes analisados, mas também é desestabilizada em diversos outros momentos. O Orientalismo de Said, também trabalhado no capítulo quatro, foi um prelúdio para muito do que foi observado nos filmes escolhidos. Há séculos, a cultura oriental tem sido retratada pelo Ocidente com um viés de estranhamento, curiosidade e idealização. Nos relatos de viagem e nos romances, além da representação nas artes plásticas e no cinema, o oriental é retratado de forma indulgente, como o bom selvagem, de pouca inteligência, muita sensualidade e força, ou de forma estritamente maldosa, como indivíduos violentos, não democráticos, incontroláveis, bárbaros e selvagens. A intervenção ocidental é retratada como necessária ao estabelecimento da ordem e da paz nos ambientes dominados pelos orientais (SAID, 1996). Nesse momento, é necessário que se relembre que judeus e árabes são provenientes da mesma região do globo, mas são representados de forma muito diferente desde o Holocausto, genocídio judeu orquestrado pelo regime nazista de Hitler na Segunda Guerra Mundial. Antes da década de 1940, eram comuns as representações antissemitas dos judeus, nas quais a nação era retratada como composta de orientais mesquinhos e gananciosos. Após o Holocausto, Said defende que é criada uma atmosfera 157 de culpa e compaixão em relação aos judeus, que são alçados à posição e ocidentais ao serem aproximados da ideia do “nós europeus”. A partir da criação de Israel em territórios palestinos no fim da década, o árabe passa a ser visto também como um impedimento à paz dos judeus em Israel, seu merecido lar (SAID, 1996). A ideia do judeu como vítima do Holocausto é mobilizada de forma extremamente consistente em “A Lista de Schindler” (1993). Em um formato de narrativa conhecido pelo espectador, e visto em outras produções cinematográficas como “Adeus, Meninos” (1987), “O Diário de Anne Frank” (1959), “O Pianista” (2005), “A Vida é Bela” (1998), e “O menino do pijama listrado” (2008)133. Nesse formato, a narrativa é centralizada na barbárie do regime nazista, nos maus tratos aos judeus, na humilhação, violência e morte que trouxe o regime nazista para a nação judaica. São filmes com uma carga emocional pesada, de construção de empatia e revolta por acontecimentos tão graves terem sido realizados por seres humanos contra outros seres humanos. No filme de Steven Spielberg, é possível ver inúmeras cenas de fuzilamentos, espancamentos, separações de famílias, exclusão de judeus de ambientes públicos e espaços ocupados por não-judeus, além da extrema dificuldade que a nação judaica enfrentou para sobreviver durante esse período (SCHINDLER’S, 1993). Já a ideia do árabe como o oriental que Said (1996) havia detectado nas produções ocidentais é também facilmente identificada tanto em “Lawrence da Arábia” (1962) quanto em “A Hora Mais Escura” (2012). Nesses dois filmes, há diversas passagens em que pode ser reconhecida a imagem do árabe pouco inteligente, necessitando da intervenção ocidental para que se estabeleça a ordem e paz no Oriente Médio. Em “Lawrence da Arábia” há uma mobilização extremamente interessante da representação oriental. Os árabes, ou beduínos, são aliados do protagonista do filme, enquanto os turcos são seus antagonistas. Os turcos são retratados como os orientais violentos. São conhecidos por cometer atrocidades com os prisioneiros que capturam, e são os responsáveis pelos ataques mais sanguinários do filme. São também eles que capturam e abusam sexualmente de Lawrence, revelando o estereótipo do oriental sexualmente pervertido. Os árabes, aliados de Lawrence, são tratados de forma condescendente. São vistos como bárbaros, violentos e gananciosos, porém são bons guerreiros e fiéis. A descrição dessa representação lembra a de um cachorro, e não é à toa que em dado momento são comparados a esses animais,

133 Filmes dirigidos por Louis Malle, Hans Steinbichler, Roman Polanski, Roberto Benigni e Mark Herman, respectivamente. 158 ao sair de Damasco após sua tentativa malsucedida de governar a cidade e estabelecer um Estado árabe (LAWRENCE, 1962). Toda a campanha árabe durante o filme se desenvolve em busca da oportunidade do estabelecimento desse Estado. A última batalha leva os beduínos a Damasco, onde formam o Conselho Nacional Árabe. Talvez seja nesse momento o ataque mais sutil, porém violento, à imagem do árabe em “Lawrence da Arábia”. Os ocidentais nada fazem para tomar a cidade, apenas se sentam e conversam sobre pescaria e outras amenidades, como se esperassem por algo. Enquanto isso, os árabes não conseguem conversar entre si e por fim deixam a cidade, após eliminarem as possibilidades de funcionamento de todos os serviços públicos. Quando saem da cidade, o Exército inglês finalmente se mobiliza para gerenciar a crise deixada para trás pelos árabes. A incapacidade de autogestão e de lutar por seus próprios objetivos é um ataque à imagem árabe (LAWRENCE, 1962). No começo de “A hora mais escura” (2012), há um processo que sinaliza na direção de uma representação mais humanizada do árabe, nas cenas em que a agente da CIA Maya presencia suas primeiras sessões de tortura no Paquistão. Nesse momento, o espectador é estimulado a sentir pena do indivíduo que está sendo espancado e torturado. Esse processo, porém, não se mantem. O espectador é levado, várias vezes, a perceber que a tortura e a morte de civis e combatentes árabes é necessária para que se reestabeleça a paz no Norte global e para que os ataques terroristas cessem. A partir desse momento, a empatia com o árabe é rompida, e o espectador se vê torcendo pelos agentes estadunidenses que matam, desalojam e perturbam árabes ao longo de todo o filme (ZERO, 2012). Há, porém, narrativas que desestabilizam os padrões de representação árabe e judaica em alguma instância. Em “Bastardos Inglórios” (2009), o diretor Quentin Tarantino se propôs a construir uma nova imagem para os judeus na Segunda Guerra Mundial. A narrativa ainda gira em torno das barbaridades do regime nazista, e da morte de milhares de judeus, mas tem uma mudança fundamental, que confere ao filme seu caráter inovador: Tarantino propõe uma história na qual os judeus se vingam dos nazistas e acabam eles mesmos com o regime que tanto os agride (INGLORIOUS, 2009). Apesar da manutenção da ideia do judeu como parte da nação que sofreu um dos maiores genocídios da História da humanidade, nesse filme não há o processo de vitimização do judeu, como acontece em filmes como “A Lista de Schindler” e os outros filmes citados anteriormente, que seguem o mesmo formato. Em “Bastardos Inglórios”, tanto o batalhão comandado por Aldo Raine quanto Shosanna Dreyfus, protagonista do 159 filme, se organizam para, com diz Raine, “(...) fazer uma coisa, e apenas uma coisa: matar nazistas” (INGLORIOUS, 2009, 22’05”). Aqui, os judeus não precisam de heróis como Oskar Schindler. Eles mesmos são os heróis, donos de sua própria história. Para além disso, Tarantino mobiliza outras narrativas de povos que também sofreram genocídios mas são pouco lembrados pelos diretores de cinema, como os indígenas e os negros escravizados (INGLORIOUS, 2009). Mesmo assim, sem dúvida o filme mais importante para a desestabilização do discurso que dá aos árabes o papel de terrorista e bárbaro e aos judeus o papel de vítimas e injustiçados é “Munique” (2005), também de Steven Spielberg. O mesmo diretor que havia pontuado de forma tão categórica a imagem do judeu vítima do Holocausto em “Lista de Schindler” foi capaz de dirigir um filme que tem como grande mérito a discussão sobre a responsabilidade de árabes e judeus nesse conflito que já dura mais de setenta anos. Apesar de em alguns momentos representar árabes e judeus de forma distinta, e definitivamente representar os judeus de forma mais empática, judeu pró-Israel declarado que é, Spielberg faz um magnífico trabalho de mostrar que a narrativa do Conflito Árabe-Israelense tem duas vias (MUNICH, 2005). Para isso, o diretor contrapõe em diversos momentos a violência e as justificativas israelenses e árabes para as estratégias utilizadas por cada um dos lados contra seus inimigos. Enquanto a equipe de extermínio do Mossad liderada pelo protagonista Avner é guiada pela ideia de justiça pela morte de atletas judeus por palestinos na Olimpíada de Munique, em diversos momentos há falas de personagens palestinos chamando a atenção para o fato que Israel mata palestinos diariamente, e os ataques terroristas são apenas respostas a esse tratamento. Há, inclusive, um inteligente trabalho de montagem e filmagem em diversas cenas do filme, por exemplo a cena que mostra famílias de judeus e árabes chorando pelas vítimas do atentado em Munique (MUNICH, 2005). Dessa forma, é possível concluir que a hipótese levantada por esse trabalho foi parcialmente confirmada. Há, de fato, diversos exemplos nos quais os filmes hollywoodianos reforçam as ideias de oposição entre as duas nações, na qual os judeus são um povo que sofreu um horrível atentado à sua existência, e os árabes são retratados como um povo violento que promove atentados terroristas que matam milhares de pessoas de forma a alcançar seus objetivos. Na verdade, a representação árabe como o antagonista, o inimigo comum estadunidense, é confirmada por alguns elementos abordados nessa dissertação. Em primeiro lugar, na política externa estadunidense: de acordo com a discussão do capítulo 160 três, pelo estabelecimento da Guerra contra o Terror após os ataques ao WTC em 11 de setembro de 2001, por George W. Bush. Em segundo lugar, na dimensão estética: pela amostragem de filmes que retratam árabes no Anexo 1. Como discutido no quarto capítulo, quatro dos cinco filmes que representam árabes feitos ao longo de setenta e uma cerimônias do Oscar foram produzidos após 2001 (ACADEMY OF MOTION..., 2019). Essa representação estereotipada e estigmatizada da nação árabe tem efeitos violentos sobre seus indivíduos em diversas partes do mundo. A repetição e difusão de imagens que se utilizam desses elementos para a representação dessa nação acabam por securitizar a imagem do árabe, tornando-o identificável como uma ameaça. Um dos principais resultados disso é a ascensão da islamofobia, fenômeno no qual indivíduos não árabes desenvolvem medo e repulsa contra árabes, que tem aumentado consideravelmente desde 2001. Os casos de hostilidade contra árabes e muçulmanos, de revistas ditas aleatórias em aeroportos e insultos e ameaças são o resultado da construção do árabe como o inimigo dos Estados Unidos (CONSIDINE, 2017). Por outro lado, não se pode dizer que a hipótese foi confirmada em sua totalidade. Percebeu-se que Hollywood não é uma indústria unificada, com um objetivo comum. Pelo contrário, há esforços de alguns filmes, e portanto de alguns diretores, para desestabilizar o discurso hegemônico, como é o caso de “Munique”, de Steven Spielberg. Esses filmes têm como mérito questionar a narrativa dominante, e, de acordo com Rancière (2005), trabalhar na partilha do sensível, trazendo para a discussão a voz do árabe, seus anseios, objetivos e motivações, discurso que é geralmente silenciado nos filmes hollywoodianos. Assim, compreende-se que a indústria cinematográfica estadunidense tem sim um papel importante na difusão das ideias de judeus como vítimas e árabes como propagadores de violência. Entretanto, esse discurso não é totalmente estável, pelo contrário, ele pode ser ambivalente, e pode ser desconstruído. A depender de uma série de elementos de preferência dos diretores, como figurino, enquadramento, iluminação e arco narrativo, pode haver a propensão para o uso político ou policial da sétima arte, retomando os conceitos de Rancière (1996). Ou seja, a depender desses elementos, filmes idealizados e produzidos em um mesmo contexto poderão ser usados de forma a manter ou questionar o status quo.

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APÊNDICE I – Lista de Indicados e Vencedores (em amarelo) do Oscar de Melhor Filme do Ano entre 1948 e 2018 – Representação de Árabes e Judeus “Arab”, “Muslim”, “Jew”, “Israeli” Ano Indicados “Middle East” ou ou “Holocaust” “Islam” Hamlet Johnny Belinda 1949 The Red Shoes The Snake Pit The Treasure of the Sierra Madre All the King's Men Battleground 1950 The Heiress A Letter to Three Wives Twelve O'Clock High All About Eve Born Yesterday 1951 Father of the Bride King Solomon's Mines Sunset Boulevard Sunset Boulevard Decision Before Dawn 1952 A Place in the Sun Quo Vadis A Streetcar Named Desire The Greatest Show on Earth High Noon 1953 Ivanhoe Moulin Rouge The Quiet Man From Here to Eternity Julius Caesar 1954 The Robe Roman Holiday Shane On the Waterfront The Caine Mutiny 1955 The Country Girl Seven Brides for Seven Brothers Three Coins in the Fountain Marty Love Is a Many-Splendored Thing 1956 Mister Roberts Picnic The Rose Tattoo

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“Arab”, “Muslim”, “Jew”, “Israeli” Ano Indicados “Middle East” ou ou “Holocaust” “Islam” Around the World in 80 Days Friendly Persuasion 1957 Giant The King and I The Ten Commandments The Bridge on the River Kwai 12 Angry Men 1958 Peyton Place Sayonara Witness for the Prosecution Gigi Auntie Mame 1959 Cat on a Hot Tin Roof The Defiant Ones Separate Tables Ben-Hur x Anatomy of a Murder 1960 The Diary of Anne Frank x The Nun's Story Room at the Top The Apartment The Alamo 1961 Elmer Gantry Sons and Lovers The Sundowners West Side Story Fanny 1962 The Guns of Navarone The Hustler Judgment at Nuremberg Lawrence of Arabia x The Longest Day 1963 The Music Man Mutiny on the Bounty To Kill a Mockingbird Tom Jones America America 1964 Cleopatra How the West Was Won Lilies of the Field

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“Arab”, “Muslim”, “Jew”, “Israeli” Ano Indicados “Middle East” ou ou “Holocaust” “Islam” My Fair Lady Becket Dr. Strangelove or: How I Learned to 1965 Stop Worrying and Love the Bomb Mary Poppins Zorba the Greek The Sound of Music Darling 1966 Doctor Zhivago Ship of Fools A Thousand Clowns A Man for All Seasons Alfie The Russians Are Coming, the 1967 Russians Are Coming The Sand Pebbles Who's Afraid of Virginia Woolf? In the Heat of the Night Bonnie and Clyde 1968 Doctor Dolittle The Graduate Guess Who's Coming to Dinner Oliver! Funny Girl x 1969 The Lion in Winter Rachel, Rachel Romeo and Juliet Midnight Cowboy Anne of the Thousand Days 1970 Butch Cassidy and the Sundance Kid Hello, Dolly! Z Patton Airport 1971 Five Easy Pieces Love Story MASH The French Connection A Clockwork Orange 1972 Fiddler on the Roof x The Last Picture Show Nicholas and Alexandra 177

“Arab”, “Muslim”, “Jew”, “Israeli” Ano Indicados “Middle East” ou ou “Holocaust” “Islam” The Godfather Cabaret 1973 Deliverance The Emigrants Sounder The Sting American Graffiti 1974 Cries and Whispers The Exorcist A Touch of Class The Godfather Part II Chinatown 1975 The Conversation Lenny The Towering Inferno One Flew Over the Cuckoo's Nest Barry Lyndon 1976 Dog Day Afternoon Jaws Nashville Rocky All the President's Men 1977 Bound for Glory Network Taxi Driver Annie Hall The Goodbye Girl 1978 Julia Star Wars The Turning Point The Deer Hunter Coming Home 1979 Heaven Can Wait Midnight Express An Unmarried Woman Kramer vs. Kramer All That Jazz 1980 Breaking Away Norma Rae

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“Arab”, “Muslim”, Ano Indicados “Jew”, “Israeli” “Middle East” ou ou “Holocaust” “Islam” Ordinary People Coal Miner's Daughter 1981 The Elephant Man Raging Bull Tess Chariots of Fire x Atlantic City 1982 On Golden Pond Raiders of the Lost Ark Reds Gandhi E.T. the Extra-Terrestrial 1983 Missing Tootsie The Verdict Terms of Endearment The Big Chill 1984 The Dresser The Right Stuff Tender Mercies Amadeus The Killing Fields 1985 A Passage to India Places in the Heart A Soldier's Story Out of Africa The Color Purple 1986 Kiss of the Spider Woman Prizzi's Honor Witness Platoon Children of a Lesser God 1987 Hannah and Her Sisters The Mission A Room with a View The Last Emperor Broadcast News 1988 Fatal Attraction Hope and Glory Moonstruck

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“Arab”, “Muslim”, Ano Indicados “Jew”, “Israeli” “Middle East” ou ou “Holocaust” “Islam” Rain Man The Accidental Tourist 1989 Dangerous Liaisons Mississippi Burning Working Girl Driving Miss Daisy Born on the Fourth of July 1990 Dead Poets Society Field of Dreams My Left Foot Dances with Wolves Awakenings 1991 Ghost The Godfather Part III Goodfellas The Silence of the Lambs Beauty and the Beast 1992 Bugsy JFK The Prince of Tides Unforgiven The Crying Game 1993 A Few Good Men Howards End Scent of a Woman Schindler's List x The Fugitive 1994 In the Name of the Father The Piano The Remains of the Day Forrest Gump Four Weddings and a Funeral 1995 Pulp Fiction Quiz Show The Shawshank Redemption Braveheart Apollo 13 1996 Babe The Postman (Il Postino) Sense and Sensibility

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“Arab”, “Muslim”, Ano Indicados “Jew”, “Israeli” “Middle East” ou ou “Holocaust” “Islam” The English Patient Fargo 1997 Jerry Maguire Secrets & Lies Shine Titanic As Good as It Gets 1998 The Full Monty Good Will Hunting L.A. Confidential Shakespeare in Love Elizabeth 1999 Life Is Beautiful x Saving Private Ryan The Thin Red Line American Beauty The Cider House Rules 2000 The Green Mile The Insider The Sixth Sense Gladiator Chocolat 2001 Crouching Tiger, Hidden Dragon Erin Brockovich Traffic A Beautiful Mind Gosford Park 2002 In the Bedroom The Lord of the Rings II Moulin Rouge! Chicago Gangs of New York The Hours 2003 The Lord of the Rings: The Two Towers The Pianist x The Lord of the Rings: The Return of the King Lost in Translation 2004 Master and Commander: The Far Side of the World Mystic River Seabiscuit 181

“Arab”, “Muslim”, “Jew”, “Israeli” Ano Indicados “Middle East” ou ou “Holocaust” “Islam” Million Dollar Baby The Aviator 2005 Finding Neverland Ray Sideways Crash Brokeback Mountain 2006 Capote Good Night, and Good Luck Munich x x The Departed Babel 2007 Letters from Iwo Jima Little Miss Sunshine The Queen No Country for Old Men Atonement 2008 Juno Michael Clayton There Will Be Blood Slumdog Millionaire The Curious Case of Benjamin Button 2009 Frost/Nixon Milk The Reader The Hurt Locker x Avatar The Blind Side District 9 An Education 2010 Inglourious Basterds x Precious A Serious Man Up Up in the Air The King's Speech 127 Hours Black Swan The Fighter Inception 2011 The Kids Are All Right The Social Network Toy Story 3 True Grit Winter's Bone 182

“Arab”, “Muslim”, “Jew”, “Israeli” Ano Indicados “Middle East” ou ou “Holocaust” “Islam” The Artist The Descendants Extremely Loud & Incredibly Close The Help 2012 Hugo Midnight in Paris Moneyball The Tree of Life War Horse Argo x Amour Beasts of the Southern Wild Django Unchained 2013 Les Misérables Life of Pi Lincoln Silver Linings Playbook Zero Dark Thirty x 12 Years a Slave American Hustle Captain Phillips Dallas Buyers Club 2014 Gravity Her Nebraska Philomena The Wolf of Wall Street Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance) American Sniper Boyhood 2015 The Grand Budapest Hotel The Imitation Game Selma The Theory of Everything Whiplash Spotlight The Big Short Bridge of Spies Brooklyn 2016 Mad Max: Fury Road The Martian The Revenant Room

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“Arab”, “Muslim”, “Jew”, “Israeli” Ano Indicados “Middle East” ou ou “Holocaust” “Islam” Moonlight Arrival Fences Hacksaw Ridge 2017 Hell or High Water Hidden Figures La La Land Lion Manchester by the Sea The Shape of Water Call Me by Your Name Darkest Hour Dunkirk Get Out 2018 Lady Bird Phantom Thread The Post Three Billboards Outside Ebbing, Missouri Green Book Black Panther BlacKkKlansman Bohemian Rhapsody 2019 The Favourite Roma A Star is Born Vice Fonte: Elaborado pela autora, baseado nos dados do site da Academy of Motion Picture Arts and Science (2019)