Extraprensa. Cultura e comunicação na América Latina (vol. 12 no. 2 ene-jun 2019) Titulo Oliveira, Dennis de - Autor/a; Montipó, Criselli - Autor/a; Oliveira, Cândida de - Autor(es) Autor/a; Moser, Magali - Autor/a; Pavan, Maria Angela - Autor/a; Saraiva, Camila Rabelo Coutinho - Autor/a; Schiavini, Karina - Autor/a; Souza, Angela Maria de - Autor/a; Oliveira, Juliana Michelli da Silva - Autor/a; Rocher, Carmen - Autor/a; Coração, Cláudio Rodrigues - Autor/a; Souza, Francielle de - Autor/a; Monteiro Silva, Eliana - Autor/a; Zani, Amilcar - Autor/a; Candido, Marisa Milan - Autor/a; Nogueira Chaves, Fabiana - Autor/a; Assis César, Maria Rita de - Autor/a; Capuchinho, Nadiesda Carolina Dimambro - Autor/a; Oliveira, Luiz Ademir de - Autor/a; Santos, Déborah Luísa Vieira dos - Autor/a; Carvalho, Willian José de - Autor/a; Moraes, Fabiana - Autor/a; Passos Kneipp, Valquíria Aparecida - Autor/a; Cavalcante de Almeida, Simone - Autor/a; Belluzzo de Campos, Gisela - Autor/a; Wochler Pelaes, Maria Lúcia - Autor/a; Masini, Elcie Aparecida Fortes Salzano - Autor/a; França, Esmejoano Lincol da Silva de - Autor/a; São Paulo Lugar Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação - Editorial/Editor CELACC/ECA/USP 2019 Fecha Colección Infancia; Mujeres; Cultura; Comunicación; Género; Temas Revista Tipo de documento

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Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO) Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO) Latin American Council of Social Sciences (CLACSO) www.clacso.org CELACC/ECA/USP v. 12 n. 2 (2019) e-ISSN: 2236-3467

Arte, política e mulheres na América Latina 2

[ EQUIPE EDITORIAL ]

Diretor Prof. Dr. Dennis de Oliveira

Editor Responsável Prof. Dr. Silas Nogueira Centro de Estudos Editores Científicos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) Profª Dra. Fabiana Félix do Amaral e Silva Prof. Dr. Frederico Daia Firmiano Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443 Prédio 09, Sala 08 ‑ Cidade Universitária Prof. Dr. Wilton Garcia Butantã – São Paulo – SP CEP. 05508-010 Editor Executivo Tel/Fax: (11) 3091-4327 João Roquer E-mail: [email protected] Luís Antonio Matos

Capa e Projeto Gráfico Jaqueline Restrepo Díez

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Revisão de Textos Maísa Kawata e Iago Melo | Tikinet Ano XII – n. 2 (jan. – jun. 2019) Conselho Deliberativo Prof. Dr. Luiz Cláudio Bittencourt (UNESP) Prof. Dr. José Luiz Proença (USP) Profª Drª Kátia Maria Kodama (UNESP) Prof. Dr. Luciano Victor Barros Maluly (USP) Profª Drª Luiza Cristina Lusvarghi (UNINOVE) Prof. Dr. Ricardo Alexino Ferreira (USP) Extraprensa: cultura e comunicação na América Latina / Centro de Estudos Latino-Americanos Conselho Científico sobre Cultura e Comunicação da Escola de Prof. Dr. Eneus Trindade Barreto Filho (USP) Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – v.12, n. 2. (jan./jun. 2019) - São Paulo: Prof. Dr. Alfonso Gumucio Dagron (UNESCO) Bolívia CELACC-ECA-USP, 2019. Profª Drª Andreia Terzariol Couto (UNIP) Arte, política e mulheres na América Latina Profª Drª Maria Ângela Pavan (UFRN) Semestral ISSN 1519-6895 Prof. Dr. Angel Mestres Vila (Universitat de Barcelona) e-ISSN 2236-3467 Espanha Prof. Dr. Enio Moraes Jr (ESPM) 1. Comunicação – América Latina 2. Cultura – Profª Drª Fabiana Lopes Cunha (UNESP) América Latina I. Universidade de São Paulo. Escola de Comunicações e Artes. Centro de Prof. Dr. Jordi Tresserras (Universitat de Barcelona) Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Espanha Comunicação. Prof. Dr. Luis Pablo Martínez (Universitat de València) CDD 21.ed. – 301.16098 Espanha Profª Drª Maria Thereza Oliveira Azevedo (UFMT) Elaborado por: Sarah Lorenzon Ferreira CRB-8/6888 Profª Drª Marta Regina Maia (UFOP) Prof. Dr. Paul Heritage (University of ) Reino Unido Prof. Dr. Valdemar Filho Siqueira (UFERSA) Prof. Dr. Wilton Garcia (FATEC/UNISO) 3 07 114 Mulheres jornalistas e ditadura civil-militar A composição de Eunice Katunda no no brasil: debates de gênero e narrativas contexto político e musical brasileiro de resistência no jornalismo investigativo Amilcar Zani, Eliana Monteiro da Silva, Cândida de Oliveira, Criselli Montipó, Marisa Milan Candido Magali Moser 30 138 As mulheres e o parto midiatizado: uma O silenciamento histórico das análise do discurso das celebridades mulheres da Amazônia brasileira Camila Rabelo Coutinho Saraiva, Fabiana Nogueira Chaves, Maria Angela Pavan Maria Rita de Assis César 48 157 As experiências diaspóricas de mulheres Mulheres no brasil dos anos 1970: haitianas estudantes da universidade militância, mídia e padrão de beleza federal da integração latino-americana Nadiesda Dimambro Angela Maria de Souza, Karina Schiavini 68 179 As máquinas analógicas Documentário O Processo: Uma narrativa de Remedios Varo sobre o impeachment da presidenta Dilma Juliana Michelli da Silva Oliveira Luiz Ademir de Oliveira, Deborah Luísa Vieira dos Santos, Willian José de Carvalho 85 204 El gestar y el parir en trailer Subjetividade: ferramenta para um de Nicola Costantino jornalismo mais íntegro e integral Carmen Rocher Fabiana Moraes 94 220 Da tensão ao sublime: potencialidades Por um modelo de emissora educativa: estéticas da canção “Mulher do reflexões sobre a qualidadeda TV USP Fim do Mundo”, de Elza Soares Valquíria Aparecida Passos Kneipp Cláudio Rodrigues Coração, Francielle de Souza

[ EXTRAPRENSA ] 4 240 278 Pensando o design gráfico de As funções sociais da polêmica literatura para infância no brasil segundo Ruth Amossy Simone Cavalcante de Almeida, Esmejoano Lincol França Gisela Belluzo de Campos 258 As obras do artista Hélio Oiticica: No espelho da fenomenologia da percepção Maria Lúcia Wochler Pelaes Elcie A. Forte Salzano Masini

[ EXTRAPRENSA ] 5

Apresentação

Pensar, existir e resistir crítico, de construção do novo, seja pela universalidade do discurso científico ou O Brasil vive sob uma onda de dis- da particularidade da narrativa artística. cursos integristas e de ataques à ciência, Silenciosamente aparecem, ainda que pon- à cultura e aos seus principais espaços tualmente, ideias insurgentes, recusa ao ins- de realização, as universidades públicas; trumentalismo medíocre do conhecimento. combinado com o incentivo a práticas É sintomático, ainda, que a maioria daqueles discriminatórias contra os segmentos su- presentes nesse espaço de respiro é compos- balternizados, como mulheres, povos ori- ta por mulheres. ginários, negros, LGBTs e nordestinos. Já há tempos que essas narrativas ganharam Esta edição da Extraprensa é um con- corpo nesse ordenamento social mediati- vite a uma reflexão sobre silenciamentos zado, marcado pelo conceito heideggeriano históricos, com artigos como o que analisa (HEIDEGGER, 1993) do falatório (Gedere), ou o papel de mulheres jornalistas na produ- pela democratização da idiotice na visão do ção de reportagens investigativas durante pensador Umberto Eco (ANGOTTI, 2015) e o período da ditadura 1964/85 no Brasil, pelo esvaziamento da esfera política, con- de Cândida de Oliveira, Criselli Montipó e forme atesta Zygmunt Bauman (1994). E Magali Moser; ou o que trata das mulheres da como afirma Rancière (1996), à medida que Amazônia, de autoria de Fabiana Nogueira se esvazia a política entra a “polícia” (figura Chaves e Maria Rita de Assis César. Ainda arquetípica que sintetiza uma lógica de re- no campo da luta política stricto sensu, Luiz pressão, de controle do diverso), e nada mais Ademir de Oliveira e Deborah Luísa Vieira relevante que dar vazão ao tema “Arte, po- dos Santos analisam como o documentário lítica e mulheres na América Latina” nesta O Processo, de 2018, retratou o impeach- edição da Extraprensa. ment da presidenta Dilma Rousseff ocorrido no ano de 2016, visto por grande parte do América Latina que, não muito tempo pensamento político como uma nova mo- atrás, foi considerada por Emir Sader como dalidade de golpe de Estado. O cenário da o lugar do mundo em que mais brotavam ditadura militar também é o pano de fundo experiências sociopolíticas alternativas ao para se discutir a diversidade das existências paradigma da globalização neoliberal, mas femininas no Brasil dos anos 1970, em artigo que vive um momento de retrocessos, com de autoria de Nadiesda Carolina Dimambro a constituição de Estados de contrainsur- Capuchinho. gência centrados fortemente em valores an- tiiluministas. Os ataques desses segmentos Mulheres artistas são persona- de extremadireita às universidades não são gens centrais no artigo sobre a músi- à toa. Não se trata apenas de adequação de ca de Elza Soares, de autoria de Cláudio instituições públicas ao projeto neoliberal, Rodrigues Coração e Francielle de Souza; mas também de enfrentamento ideológico sobre as obras da artista plástica mexi- a espaços em que, minimamente, ainda se cana Remedios Varo, em texto elabora- tenta manter um respiro de pensamento do por Juliana Michelli da Silva Oliveira;

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sobre a leitura histórica da obra musical de A edição ainda conta com três artigos Eunice Katunda e sua influência na músi- de temas gerais versando sobre jornalis- ca erudita brasileira, em artigo de Amilcar mo, TV pública e design; um relatório de Zani, Eliana Monteiro da Silva e Marisa pesquisa sobre a obra de Hélio Oiticica; e Milan Candido; e sobre as possibilidades fecha com uma resenha do livro de Ruth de construção de um olhar feminino do Amossy, Apologia da polêmica. gestar e parir na obra de Nicola Costantino, em texto apresentado por Carmem Rocher. A riqueza e a sofisticação das re- flexões aqui apresentadas mostram que, Fecham a parte temática desta edi- de fato, quem aposta na irracionalidade ção os artigos que propõem uma análise como forma de estabelecer suas lógicas do discurso das celebridades sobre o parto de sociabilidade tem razões de sobra humanizado, de autoria de Camila Rabelo para temer o espaço acadêmico. Mas a Coutinho Saraiva e Maria Angela Pavan, teimosia de nossa existência é que faz e o estudo das experiências diaspóricas de com que pensar continue sendo a nossa mulheres haitianas durante a sua estada resistência. na Universidade Federal da Integração LatinoAmericana em Foz do Iguaçu (PR), Prof. Dr. Dennis de Oliveira em texto de Angela Maria de Souza e Julho de 2019 Karina Schiavini. Coordenador do CELACC

Referências

ANGOTTI, Amalia. Umberto Eco, Internet dà diritto di parola a legioni imbecilli. Ansa, Roma, 10 jun. 2015. Cultura. Disponível em: http://bit.ly/2LWBNLn. Acesso em: 2 ago. 2019.

BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. : Jorge Zahar, 1994

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1993.

RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996.

Extraprensa, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 5 – 6, jan./jun. 2019 [ EXTRAPRENSA ] MULHERES JORNALISTAS E DITADURA CIVIL- MILITAR NO BRASIL: DEBATES DE GÊNERO E NARRATIVAS DE RESISTÊNCIA NO JORNALISMO INVESTIGATIVO

[ ARTIGO ]

Cândida de Oliveira Universidade Federal de Santa Catarina. Criselli Montipó Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Escola de Comunicação e Artes Magali Moser Universidade Federal de Santa Catarina. Cândida de Oliveira Mulheres jornalistas e a ditadura civil militar no Brasil Criselli Montipó 8 Magali Moser

[ RESUMO ABSTRACT RESUMEN ]

Frente às desigualdades de gênero, este trabalho reflete sobre atuações e contribuições de mulheres repórteres na investigação jornalística. Analisa métodos de apuração, fontes consultadas e a composição narrativa a partir de um corpus formado por três livros-repor- tagem de jornalistas investigativas sobre a ditadura civil-militar brasileira. Inicialmente, foram identificados 22 livros com este perfil, publicados entre 1986 e 2018, a partir de levantamento de 125 livros de autoria de jornalistas envolvendo a temática. Para uma análise detalhada e aprofundada, a pesquisa se concentra em movimentos da análise crítica da narrativa (MOTTA, 2013), a fim de alcançar um panorama sobre as contribui- ções de mulheres jornalistas na investigação do período autoritário. Os dados denotam uma participação ainda tímida, mas fundamental para a reconstituição mais plural de memórias e histórias de resistência à ditadura, com ênfase em possibilidades estéticas.

Palavras-chave: Mulheres repórteres. Jornalismo investigativo. Ditadura civil-militar brasileira. Livro-reportagem. Gênero.

In the face of gender inequalities, this paper reflects on the actions and contributions of women reporters in journalistic investigation. It analyzes methods of investigation, sources consulted, and narrative composition based on a corpus of three investigative reporting-book on the Brazilian civil-military dictatorship. Initially, 22 books with this profile were identified, published between 1986 and 2018, based on a research that mapped 125 books of journalists involving the subject. For a detailed and in- depth analysis, the study focuses on narrative critical analysis in order to reach an overview of the contributions by women journalists in the investigation of the authoritarian period. The data denote a still timid but fundamental participation for the more plural reconstitution of memories and stories of resistance to dictatorship, with an emphasis on aesthetic possibilities.

Keywords: Women reporters. Investigative journalism. Brazilian civil-military dictatorship. Reporting-book. Genre.

Frente a las desigualdades de género, el presente trabajo reflexiona sobre las acciones y contribuciones de las mujeres reporteras en la investigación periodística. Analiza los mé- todos de averiguación, las fuentes consultadas y la composición narrativa a partir de un corpus de tres reportajes de periodistas de investigación sobre la dictadura cívico-militar brasileña. Inicialmente, se identificaron 22 libros con este perfil, publicados entre 1986 y 2018, a partir de una compilación de 125 libros de periodistas sobre el tema. Para un análisis detallado y profundo, la investigación se centra en los movimientos de análisis crítico de la narrativa (MOTTA, 2013), con el fin de lograr un panorama de las contribuciones de las mujeres periodistas en la investigación de lo período autoritario. Los datos apuntan una participación aún tímida, pero fundamental para la reconstitución más plural de memorias e historias de resistencia a la dictadura, con énfasis en las posibilidades estéticas.

Palabras clave: Mujeres reporteras. Periodismo investigativo. Dictadura cívico-militar brasileña. Libro-reportero. Género.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2019.157709

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Introdução trabalho de jornalistas homens em detri- mento da atuação das repórteres.1 A ausên- cia da temática de gênero nas pesquisas O debate em torno do jornalismo em jornalismo começa a ser rompida com investigativo é recente no país. Ao que mais intensidade apenas nos últimos anos.2 tudo indica, a expressão aparece pela pri- Esse quadro se relaciona com silenciamen- meira vez na literatura jornalística brasi- tos no exercício profissional e no próprio leira em O papel do jornal, de Alberto Dines fazer jornalístico ao priorizar certas fontes (MELO, 2015; SEQUEIRA, 2005), publicado e temas, e ao reproduzir desigualdades de originalmente em 1974. Nesse texto, con- gênero (LAGO, 2016).Nesse sentido, Vieira siderado um clássico nas escolas de comu- e Rocha (2016) examinam como se dava nicação, Dines (1986, p. 92) não abordou a invisibilidade das mulheres jornalistas exclusivamente a prática investigativa, investigativas durante a ditadura civil-mi- mas estabeleceu uma primeira definição, litar no Brasil (1964-1985). Tendo como entendendo-a não apenas como “jorna- recorte reportagens vencedoras do Prêmio lismo de sensações ou de escândalos”, mas Esso de Jornalismo no período, as autoras relacionada “com o jornalismo interpreta- identificaram uma presença maior da par- tivo ou analítico, pois, ao inquirir sobre as ticipação “feminina” nas premiações das causas e origens dos fatos, busca também categorias regionais, que não contempla- a ligação entre eles e oferece a explicação vam necessariamente reportagens inves- da sua ocorrência”. O autor já questionava tigativas, e uma menor representação nas naquele momento o rótulo de denúncia premiações de maior destaque, já na fase ainda associado ao jornalismo investiga- de declínio do período ditatorial. Isso não tivo, ressaltando o caráter diverso de abor- significa, porém, conforme concluem as dagens deste tipo de fazer. “Ao praticá-lo, autoras, que as repórteres não produziam necessariamente, não se obriga a postura de conteúdo investigativo. Os trabalhos delas é denúncia. Ele pode comportar uma atitude que eram pouco referenciados e divulgados, grave, estudiosa e, sobretudo, responsável” sendo muitos deles ainda hoje desconhe- (Ibidem, p. 92). cidos, salvas raras exceções. Valorizar a atuação de mulheres repórteres nos estudos Passados mais de 40 anos, a contribui- do jornalismo investigativo sobre a dita- ção de mulheres repórteres a essa modali- dura é, portanto, uma forma de romper dade de jornalismo no Brasil é raramente silenciamentos. tema de estudo e de referência na biblio- grafia do campo. Em Jornalismo investiga- Marcada por forte censura, repres- tivo (2003), por exemplo, além dos próprios são e violência, a ditadura foi um dos autores, dos 17 jornalistas investigativos com atuação no Brasil apresentados, ape- nas duas são mulheres: Mônica Teixeira e 1 O livro de Sequeira (2005) apresenta como base Mariângela Haswani. Mesmo nos livros os trabalhos e opiniões dos repórteres investigati- vos Percival de Souza, Rubens Valente, Fernando escritos por pesquisadoras, como Jornalismo Rodrigues, Frederico Vasconcelos e Antônio Carlos Fon. investigativo: o fato por trás da notícia, de 2 Alguns exemplos são as pesquisas de Almeida Cleofe de Sequeira (2005), destaca-se o (2018), Costa (2018) e Veiga (2014).

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períodos mais difíceis para a prática jor- Este artigo3 aborda a atuação de nalística e, de modo particular, para o mulheres repórteres no jornalismo inves- exercício investigativo pela imprensa. tigativo e suas contribuições na investiga- Mas lembrar dos desafios impostos pelo ção da ditadura civil-militar brasileira. O governo autoritário “não equivale a dizer estudo toma como objeto de investigação […] que nesse período não houve repor- a narrativa das reportagens investigati- tagens investigativas” (NASCIMENTO, vas sobre casos relacionados à ditadura 2010, p. 42), como se confirma em 10 publicadas em livro-reportagem. O enfoque reportagens que abalaram a ditadura (2005). teórico considera que um dos princípios De todo modo, a retomada democrática desta forma de fazer jornalismo é revisi- em 1985 inaugura um novo contexto para tar fatos históricos, “analisando-os com o a prática do jornalismo, possibilitando olhar de hoje” (SEQUEIRA, 2005, p. 116). inclusive novas investigações sobre fatos Além disso, observa que “o resultado do do período anterior. trabalho da reportagem investigativa acaba sendo a produção de textos extensos que, Entretanto, algumas dificuldades quando ultrapassam os espaços destina- estruturais permanecem. No contexto dos para sua publicação nos jornais ou atual, de acordo com a ONG internacional revistas, são editados no formato de livro” Reporters sans Frontiers (2016), o país é (AGUIAR, 2013, p. 221). um dos mais violentos da América Latina para a atividade jornalística. A alta con- Diante disso, refletir sobre a atuação centração da propriedade dos meios, a das mulheres jornalistas na prática inves- ausência de mecanismos eficazes de pro- tigativa e compreender suas contribuições teção para repórteres em situação de risco, na investigação de casos relacionados à o clima de impunidade e a baixa tradição ditadura civil-militar brasileira constituem democrática, abalada com o golpe contra o objetivo geral deste estudo. De modo a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, específico, o artigo pretende: 1) debater o desafiam a tarefa de jornalistas. Para jornalismo investigativo em relação aos as repórteres, a situação é ainda pior. A direitos humanos e à perspectiva de gênero, especificidade do risco assumido por elas problematizando desigualdades vincula- no exercício profissional é observada por das à atuação de repórteres investigativas; entidades internacionais. A Organização 2) apresentar um levantamento de repor- das Nações Unidas para a Educação, a tagens investigativas sobre fatos ligados à Ciência e a Cultura reconhece que as ditadura civil-militar brasileira, de auto- mulheres jornalistas são vítimas de um ria de mulheres jornalistas e publicadas duplo ataque, tanto por serem mulheres como por serem jornalistas (UNESCO; REPORTEROS SIN FRONTERAS, 2017). 3 Uma primeira versão deste artigo foi apresen- tada no 5º Seminário de Pesquisa em Jornalismo Na prática do jornalismo investigativo, Investigativo, realizado na cidade de São Paulo, em as condições agravam-se diante das ati- 27 de junho de 2018. O presente trabalho foi reali- tudes discriminatórias e preconceituosas zado com apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc) e da dispensadas historicamente às repórteres Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível investigativas (CHAMBERS, 2008). Superior (Capes) – Código de Financiamento 001.

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em livro; 3) analisar as contribuições de O texto está organizado em duas mulheres repórteres na produção do jor- seções. A primeira focaliza o debate das nalismo investigativo a partir da temática noções e abordagens que norteiam este apresentada. Consideramos contribuições estudo. A segunda apresenta um panorama aspectos relacionados tanto ao processo de geral da atuação de mulheres jornalistas em investigação quanto à forma de dar inteli- investigações sobre a ditadura. A primeira gibilidade aos resultados obtidos. seção retoma as abordagens de jornalismo investigativo em diálogo com seus preceitos Para tanto, recorremos à pesquisa fundamentais como democracia, cidada- bibliográfica sobre jornalismo, democra- nia e cobertura de direitos humanos. Em cia e direitos humanos, estudos de gênero subseções, retoma o contexto e produções e ditadura civil-militar; mapeamos um de jornalismo investigativo durante a dita- conjunto de livros-reportagem que, em dura civil-militar brasileira, com destaque à contexto democrático, ilustram a atuação atuação de mulheres jornalistas, e adentra das mulheres no jornalismo investigativo no debate sobre a relação entre mulheres, sobre casos da ditadura; e realizamos uma gênero e jornalismo. análise da narrativa de três livros-reporta- gens, a partir da proposta de Motta (2013). A segunda seção apresenta um O emprego deste referencial metodológico panorama geral das investigações sobre possibilita, conforme o autor, “interpretar a ditadura, a partir de um conjunto de criticamente a configuração dos enredos livros-reportagem de autoria de mulheres e intrigas, compreender as estratégias de jornalistas, publicados entre 1992 e 2016. uso da linguagem […], o conteúdo de fundo Apresentamos ainda a análise da narra- ético, moral e ideológico e os efeitos de sen- tiva de três reportagens que constituem tido” (Ibidem, p. 9) presentes nas narrativas uma amostra dessa atuação, destacando jornalísticas. A perspectiva conceitual e as contribuições das autoras na investiga- epistemológica adotada pelo autor privilegia ção da ditadura. Ao final, vamos trazer à uma noção de narrativa como um processo discussão inferências sobre uma possível comunicativo e, portanto, um dispositivo chave ética e estética para compreensão argumentativo entre interlocutores. Motta dessas contribuições. salienta ainda que a composição da narra- tiva é heterogênea e configurada a partir de correlações de poder e disputas pela inter- pretação do “sentido público” dos eventos. Jornalismo investigativo, Esta pesquisa caracteriza-se como democracia e direitos humanos exploratória, visto que não há estudos sis- tematizados sobre essa atuação e produção específicas de mulheres jornalistas. Frente O trabalho jornalístico investigativo ao apagamento e falta de visibilidade das apresentado em formato de reportagem mulheres no exercício do jornalismo investi- costuma ser considerado um dos mais gativo, buscamos um pensamento mais plu- valorizados entre a categoria. No livro A ral acerca deste fazer jornalístico específico. prática da reportagem, o premiado jornalista

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Ricardo Kotscho (1986, p. 35) refere-se a este encontra sua legitimidade ao participar da como “ramo da reportagem mais difícil e, garantia dos princípios democráticos, ainda talvez por isso mesmo, o mais fascinante”. que indiretamente. De acordo com Kotscho, esta modalidade se caracteriza pela descoberta e narrativa Como construção social e histórica, daquilo que se quer esconder da opinião a luta por democracia tem impulsionado pública: “Nos tempos da ditadura de 64, mas diversos aspectos da vida em sociedade. não só neles, os poderosos de plantão foram Abdalla (2017) destaca que a forma demo- levantando barreiras para impedir que a crática de governança foi a que por mais sociedade ficasse sabendo o que se estava tempo esteve presente na história da passando” (Ibidem, p. 35). Embora longe de espécie humana, mesmo antes da Grécia ser consenso entre a categoria, estamos de Antiga. No entanto, em sua gênese clás- acordo com a ideia de que o jornalismo de sica, já se mostrava excludente.4 Na Idade investigação se diferencia do jornalismo Média os temas políticos e sociais – embora diário e requer o cumprimento de certos fundamentais na contemporaneidade – pressupostos. Lopes e Proença (2003, p. 12) não tiveram espaço de debate, por isso, enumeram três requisitos para que um tra- durante o obscuro período medieval o balho jornalístico seja considerado, de fato, termo cidadão desaparece, justamente de investigação: quando há legitimação religiosa e monár- quica. A despeito de tantas limitações, a 1. que a investigação seja resultado do ideia de cidadania retoma espaço com o trabalho do jornalista, não informação surgimento do burguês no Renascimento elaborada por outras áreas; […] 2. que (século XVI), quando, nas passagens para o objetivo da investigação seja razoa- a modernidade, a ideia de democracia velmente importante para grande parte retoma fôlego, conforme Abdalla (2017). da população, não, por exemplo, para É neste período, também, que o jornalismo os interesses de determinados setores; vai tomando forma de atividade e, a partir 3. que os investigados tentem esconder dos séculos XVII e XVIII, desenvolve-se esses dados do público. no bojo do capitalismo, como necessidade social para garantia da democracia e da O reconhecimento do jornalismo cidadania, tornando-se profissão inerente investigativo passa, portanto, pela com- à vida social nos séculos XIX e XX. Não preensão de que as investigações sejam de à toa, Marx evidencia que sem a liber- interesse público. Não se pode ignorar que dade de imprensa estão em risco todas as funções atribuídas à imprensa são legiti- as liberdades. Advertia o revolucionário: madas a partir da relação simbiótica entre “A imprensa em geral é a consumação da jornalismo, democracia, cidadania e direitos liberdade humana” (MARX, 2006, p. 45). humanos, constituída desde os processos de luta pela liberdade e por regimes democrá- ticos em diversos países, nos séculos XVII 4 Para os escravos não havia pólis, ou seja, cidadão e XVIII (TRAQUINA, 2012). Sendo o jorna- podia ser apenas o homem livre que participava de uma comunidade. A visão excludente da democracia lismo uma prática social mediadora de sen- grega abre espaço para a república romana, conforme tidos (MEDINA, 1982), a práxis jornalística Botelho e Schwarcz (2012).

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Portanto, caberia à imprensa fiscalizar A investigação jornalística se dife- governos e instituições com intuito de pro- rencia das outras práticas pelo processo teger os cidadãos contra eventuais abusos de trabalho e estratégias envolvidas na de poder e fornecer a eles informações fase de apuração (SEQUEIRA, 2005). Para necessárias para o desempenho das suas a autora, há a necessidade de quatro ele- responsabilidades cívicas. mentos básicos para o jornalismo investi- gativo cumprir sua função social: contexto No caso brasileiro essa relação é democrático; funcionamento das institui- bastante recente, tendo-se em vista que ções estatais no sentido de resolver as os períodos de democracia estão restri- mazelas denunciadas; independência dos tos a cerca de quatro décadas, quando, meios de comunicação; e que o trabalho no entanto, os preceitos democráticos investigativo seja regido pela ética. Além não foram adotados plenamente. Assim, do processo de trabalho, caracterizado por uma cultura não democrática está na elementos particulares, esta modalidade gênese da formação da cidadania brasi- jornalística parece se diferenciar inclusive leira (BERAS, 2013). Para se compreender pela própria natureza do conhecimento que a cidadania como garantia dos direitos produz. Fortes (2012, p. 195-196) também humanos5 no Brasil, é preciso, alerta compreende tratar-se da “sistematização de Bonamigo (2000), necessariamente, reco- técnicas e conceitos de apuração para a pro- nhecer o poder pessoal sobre o qual se dução de reportagens de fôlego”, marcadas assenta o autoritarismo e o coronelismo, por profundidade e relevância. Contudo, a suportes da legitimidade política no Brasil. modalidade jornalismo investigativo ainda Afinal, a imprensa brasileira desempenhou enfrenta resistência por parte de jornalis- um importante papel e frequentemente tas atuantes nas redações brasileiras que ambíguo nos processos de redemocratiza- entendem ser investigativo por natureza ção. Por outro lado, “é indiscutível que se todo jornalismo, pois a investigação é ine- deve ao exercício do jornalismo a revelação rente à atividade.6 O jornalismo investiga- de uma série de irregularidades, arbitra- tivo é caracterizado por Lage (2017, p. 138) riedades, abusos e crimes, trazendo con- “como forma extremada de reportagem”. sigo, embora com frequência menor que a desejável, importantes consequências políticas” (MORETZSOHN, 2007, p. 144). 6 Esta ideia encontra respaldo no posicionamento do O jornalismo investigativo encontra sus- escritor e jornalista colombiano Gabriel García Márquez. tentação nesses processos. Durante a 52ª Assembleia da Sociedade Interamericana de Imprensa, em Los Angeles, Califórnia, em outu- bro de 1966, o autor anuncia que “la investigación no es una especialidad del ofício, sino que todo perio- 5 Dentro desse contexto, permeia neste trabalho o dismo tiene que ser investigativo por definición” entendimento de que os direitos humanos devem ser (SEQUEIRA, 2005, p. 15). E parece estar disseminada observados como o conjunto articulado e interdepen- também entre jornalistas contemporâneos, como se dente dos direitos civis, políticos, sociais, econômicos expressa na opinião de Mônica Teixeira: “Investigar é um e culturais, “fundados, para além da ideia de univer- dos fundamentos do jornalismo, um é inerente ao outro, salidade, no princípio da indivisibilidade e no hori- não se separam nunca” (LOPES; PROENÇA, 2003, p. 170) zonte da internacionalização, condição indispensável ou do jornalista Marcelo Canellas, para quem o jorna- para a luta pela construção de uma cidadania global” lismo investigativo é um conceito que tem um vício de (MONDAINI, 2009, p. 12). origem: a redundância (FORTES, 2012).

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A reportagem investigativa decorre de um à liberdade de imprensa a partir da censura processo que envolve várias etapas, da con- e à repressão a jornalistas e veículos. cepção inicial à publicação e ao seguimento do caso. Estes procedimentos consistem, Contudo, é possível encontrar repor- basicamente, na elaboração de um projeto tagens investigativas nas páginas de jor- de viabilidade do tema, estudo aprofundado nais e revistas brasileiras desde meados dos do assunto, desenvolvimento de um plano de anos 1970 (SEQUEIRA, 2005). Nesse sentido, ação, incluindo custos e métodos, apuração destacam-se as produções de mulheres jor- documental e com fontes, cruzamento de nalistas naquele período, entre elas as repor- informações, avaliação final, redação, revi- tagens “A casa dos horrores” e “A torturada são e, finalmente, publicação (LAGE, 2017; fala com o médico da tortura”, publicadas na SEQUEIRA, 2005). Nesse sentido, os proces- IstoÉ, em 1981. As reportagens renderam o sos de criação e de produção de uma repor- Prêmio Vladimir Herzog daquele ano à Lúcia tagem investigativa são mais complexos, Romeu, que as assinou com Antônio Carlos distinguindo-se de outras modalidades de Fon. Em relato sobre essas reportagens, Lúcia Romeu conta que teve de esperar quase dez jornalismo também devido ao método. anos para denunciar a existência de uma casa clandestina de tortura mantida pelo Ainda em 1964, o Prêmio Pulitzer, Departamento de Operações e Informações criado em 1917 para reconhecer trabalhos – Centro de Operações de Defesa Interna de excelência no jornalismo, literatura (DOI-Codi), na cidade de Petrópolis, e o caso e composição musical, passou a ter uma de sua irmã, Inês Etienne Romeu, que foi nova categoria, denominada Reportagem barbaramente torturada, seviciada e estu- Investigativa, contribuindo para a caracte- prada neste local em 1971.7 Nascimento (2010) rização de uma nova geração de jornalistas destaca ainda as reportagens vencedoras do (KOVACH; ROSENSTIEL, 2004). No Brasil, Prêmio Esso de 1964 a 1985 e as publicadas destaca-se o esforço jornalístico durante na revista Realidade (1966-1976) como exem- todo o governo autoritário na tarefa de plos contrários à opinião segundo a qual a descobrir fatos ocultos, como a cobertura prática teria surgido no país somente a partir do Caso Riocentro (MOLICA, 2005). da redemocratização. Mas o autor não trata dessa produção em termos de gênero. Já o Jornalismo investigativo na estudo de Vieira e Rocha (2016) aponta que, ditadura militar brasileira das 20 reportagens agraciadas com o prêmio principal, destinado a consagrar a modalidade O golpe de Estado civil-militar, levado de jornalismo investigativo, em apenas uma a cabo entre os dias 31 de março e 1º de abril (em 1983), jornalistas mulheres participaram de 1964, inaugurou um dos períodos mais da equipe responsável. Trata-se da repor- tenebrosos da história recente do Brasil, tagem “O caso Baumgarten” publicada em tendo sido responsável pela instauração de constantes violações no campo dos direitos humanos (MONDAINI, 2009). O período é 7 O relato e a primeira reportagem integram a cole- tânea organizada por Molica (2005), que contempla marcado por um grande retrocesso na cida- também outros exemplos de reportagens investigati- dania brasileira, devido também aos ataques vas publicada à época com grande repercussão.

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Veja, naquele ano, e de autoria de Francisco veículos alternativos. Jornais feministas Vargas, Bella Stall, Norma Couri e Leda Beck. eram marcados pela dupla militância,10 autonomia e contestação à ordem social da Forjadas no impulso jornalístico época. Embora enfrentasse discursos polê- somado ao apelo revolucionário das gera- micos e contradições no campo da comu- ções dos anos de 1960 e 1970, publicações nicação alternativa, a imprensa feminista da imprensa alternativa, como os jornais atuava em conjunto com os demais veícu- Opinião, Movimento, Repórter, Pasquim, los alternativos, por meio de propagandas Coojornal, entre outros, cobravam vee- mútuas e campanhas de apoio, no sentido mentemente restauração da democra- de fortalecer esses espaços. Nas situações cia e respeito aos direitos humanos de tensão, como na luta em favor da demo- (KUCINSKI, 2001), atuando com relevân- cracia durante as ditaduras na América cia na resistência à ditadura. Embora nem Latina, as mulheres assumiram papel de todos os veículos alternativos produzissem protagonismo, embora as narrativas pre- investigações, eram o espaço das vozes dis- dominantes geralmente as invisibilizem. sidentes e de oposição ao sistema ditatorial Elas desafiaram a domesticidade imposta empenhadas em denunciar perseguições, pelos discursos ditatoriais e enfrentaram torturas e mortes.8 No cenário de lutas pela o machismo, o autoritarismo e práticas de resistência inserem-se também os veículos violência, tortura e violações contra os pró- e movimentos feministas que, por meio da prios corpos (HINER, 2015; SAPRIZA, 2009). imprensa alternativa, buscavam contem- No Brasil, as dificuldades enfrentadas pelas plar suas bandeiras na esfera pública, como mulheres na resistência à ditadura se asse- “as demandas pela cidadania feminina, melham às lutas vivenciadas por elas nos conjugada com transformações no campo países vizinhos (PEDRO; WOLFF, 2011). da política” (WOITOWICZ, 2014, p. 105). Nesse sentido, é inegável a importância Dentre as experiências de imprensa alter- fundamental e decisiva da participação das nativa feminista, os jornais Brasil Mulher mulheres na luta contra a ditadura. (1975-1979), Nós Mulheres (1976-1978) e Mulherio (1981-1987) são citados no fortale- A breve discussão sobre o contexto cimento de reivindicações feministas,9 que ditatorial e sua relação com a narrativa jor- também encontravam espaço em outros nalística evidenciam que cidadania, poder e política são fatores imbricados em qualquer cenário histórico-social. O confronto político 8 Destaca-se também o jornal mensal EX- que, além é substancialmente transformado em uma de produzir um jornalismo satírico, era conhecido por suas narrativas fortes e aprofundadas. Foi o único a luta de histórias e significados interpretati- fazer uma cobertura completa do assassinato do jor- vos (URANGA, 2011), por isso a importância nalista Vladimir Herzog nos porões do DOI-Codi, em de múltiplas visões sobre os fatos, principal- São Paulo, em novembro de 1975, em edição especial. mente quando ocultados pelo autoritarismo. 9 Naquela época, várias outras experiências de comu- nicação alternativa do movimento de mulheres e femi- nistas foram desenvolvidas em diferentes regiões do país, conforme ressalta Woitowicz (2014). A autora registra ainda que, quando a imprensa alternativa sur- 10 A maioria das feministas que atuavam nos jornais giu em plena ditadura militar, brasileiras exiladas já par- Brasil Mulher e Mulherio, por exemplo, eram militantes ticipavam desse tipo de experiência em outros países. oriundas da esquerda (WOITOWICZ, 2014).

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Mulheres no jornalismo: um de moda, no século XVIII (PERROT, 2007). debate sob a perspectiva de gênero A partir daí, a imprensa feminista reivindica o direito das mulheres ao trabalho, à igual- Se hoje a participação das mulhe- dade dos salários, à formação de coopera- res na história não pode ser negada, nem tivas e ao voto, e denuncia a condição de sempre foi assim. “Uma história ‘sem as inferioridade das mulheres. “Desde então mulheres’ parece impossível. Entretanto, o jornal faz parte das formas de expres- isso não existia” (PERROT, 2007, p. 12). são das mulheres, na França e na maioria Michelle Perrot, uma das precursoras nos os países ocidentais. Ao mesmo tempo, as estudos sobre a história das mulheres no mulheres ganham acesso a uma profissão ocidente, postula que o desenvolvimento que antes era exclusivamente masculina: desses estudos acompanha o movimento o jornalismo” (Ibidem, p. 35). Foi o início da das mulheres em direção à emancipação conquista por espaços até então de domínio e à libertação. Desta forma, reconhecer dos homens. a participação das mulheres na história e historiografia é romper com sua invisibi- Ao longo dos anos, o jornalismo lidade e lhes devolver o protagonismo das passou por um processo de feminização próprias trajetórias. acentuada (ROCHA; SOUSA, 2011). Mas ainda há muitas barreiras a serem trans- O feminismo foi um incentivo postas. A começar pelo simples respeito para a mudança e despertou a necessi- à atuação profissional das jornalistas. A dade de uma “feminização dos saberes” violência e o assédio enfrentado pelas pro- (THÉBAUD, 2009). Se inicialmente talvez fissionais de imprensa foram mapeados se buscasse o mito de uma “natureza femi- em profundidade na pesquisa Mulheres nina”, posteriormente, abriu-se para a plu- no Jornalismo Brasileiro, projeto reali- ralidade de concepções sobre gênero. As zado em 2018 pela Associação Brasileira disputas em torno da área de estudos que de Jornalismo Investigativo (Abraji) e a se constituiu, o abandono do essencialismo Gênero e Número, com o apoio do Google e o desligamento do determinismo bioló- News Lab. De acordo com a pesquisa, iné- gico marcaram uma nova fase do movi- dita no país, a maioria das respondentes já mento. Ao longo dos anos e das pesquisas, sofreu algum tipo de abuso de poder por e com o fortalecimento do campo, o gênero chefes ou fontes. passou a ser reconhecido como cultural- mente construído, e não mais como algo A equidade de gênero na profissão dado e determinado biologicamente.11 O ainda precisa avançar muito. No Brasil, as movimento feminista alcançou mudanças mulheres compõem a maioria da categoria inclusive no domínio da imprensa. A pri- profissional: representam 63,7% dos pos- meira imprensa feminina especializada é a tos de trabalho em jornalismo (36,3% são homens) (MICK; , 2013). Entretanto, são minoria nos cargos de chefia das reda- ções (PESQUISA…, 2013), numa explícita 11 Para mais detalhes, Cf. SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação & demonstração de que as relações de poder Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, 1995. e de desigualdade permanecem. Além disso,

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já foi apontado que a atividade das mulheres repórteres. De acordo com a proposta de jornalistas está mais relacionada à cober- Kovach e Rosenstiel (2004), há três tipos tura de assuntos considerados de menor de reportagem investigativa: a original, a relevância (LEITE, 2015). Nesse sentido, há interpretativa e a sobre investigações. A de se problematizar o que historicamente reportagem investigativa original envolve se construiu como profissionais atuantes os próprios repórteres na descoberta de no jornalismo investigativo. atividades desconhecidas do público e pode resultar em investigações públicas oficiais. A reportagem investigativa inter- pretativa transforma algo oculto em de domínio público. Surge como resultado de Contribuições de mulheres cuidadosa reflexão, análise e revela novas jornalistas à prática investigativa abordagens. A reportagem sobre investi- gações consiste no acompanhamento de investigações em andamento, quando a A materialidade das investiga- investigação não diz respeito a formas de ções sobre a ditadura civil-militar no apuração e apresentação de resultados, Brasil ilustra, neste artigo, a atuação mas é o próprio tema da reportagem. de mulheres jornalistas dentro de um espaço jornalístico que tradicionalmente Nessa perspectiva, destacam-se as invisibiliza, quando não as ignora. O como contribuições de mulheres jorna- panorama que apresentamos toma como listas as reportagens investigativas ori- base 22 livros-reportagem sobre a dita- ginais que trazem casos de violações de dura publicados no Brasil, entre 1986 e direitos humanos na ditadura e histórias 2017, de autoria de mulheres jornalistas, até então não reveladas que se tornaram identificados a partir de um levantamento paradigmáticas. É o caso dos livros-re- mais amplo, em uma listagem geral de 125 livros de jornalistas sobre a temá- portagem: A tortura como arma de guerra tica da ditadura.12 A revisão bibliográfica (2016), produzido pela jornalista Leneide apresentada neste artigo nos orientou a Duarte-Plon; Cova 312 (2015), de autoria agrupar os livros-reportagem conforme o da jornalista Daniela Arbex; Sem vestígios: tipo de investigação desenvolvidas pelas revelações de um agente secreto da ditadura militar brasileira (2008), escrito pela jor- nalista Taís Moraes; e Operação Araguaia: 12 O levantamento foi realizado entre julho de os arquivos secretos da guerrilha (2005), 2016 e março de 2019, com o uso de ferramentas de busca (WorldCat; Google Books), acesso a bancos de autoria da jornalista Taís Moraes e do de dados (SciELO Books; Portal Domínio Público; jornalista Eumano Silva. Bibliotecas; Dot.lib), acervos on-line sobre a ditadura militar (Memórias da Ditadura e Memórias Reveladas), Nas reportagens biográficas, que sites de editoras, livrarias, jornais, revistas e livros impressos. Ressaltamos que este levantamento não podem ser caracterizadas como investigati- tem como pretensão contemplar todos os livros-re- vas interpretativas ou originais, são predo- portagem publicados por mulheres jornalistas sobre minantes as histórias de personagens que casos da ditadura, mas apresentar um panorama geral dessa produção. atuaram na resistência, foram perseguidas,

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torturadas e mortas.13 Com essa abordagem, por ele mesmo (1994), de autoria da jornalista destacam-se: Um homem torturado: nos pas- Maria Thereza Cavalheiro. sos de frei Tito de Alencar (2014), biografia produzida pelas jornalistas Leneide Duarte- Considerando que o jornalismo inves- Plon e Clarisse Meireles; Seu amigo esteve tigativo é um elemento de influência trans- aqui: a história do desaparecimento político versal aos gêneros e editorias jornalísticas Carlos Alberto Soares de Freitas: assassinado (FORTES, 2012), optamos por apresentar na casa da morte (2012), de autoria da jorna- ainda os livros que podem ser caracteri- lista Cristina Chacel; Eduardo Leite Bacuri: zados como escritos em formato híbrido, biografia de um guerrilheiro (2011), de autoria diferenciando-se dos estilos geralmente da jornalista Vanessa Gonçalves; Santo Dias: utilizados para apresentar uma investi- quando o passado se transforma em História gação jornalística, pela predominância de (2004), biografia assinada pela filha Luciana estratégias literárias para compor a narra- Dias, pela jornalista Jô Azevedo e pela fotó- tiva. É o caso das biografias ficcionais, das grafa Nair Benedicto; e Iara: reportagem autobiografias e das reportagens que se biográfica (1992), produzida pela jornalista apoiam na memória pessoal e em relatos Judith Patarra. Observamos também livros- diversos sobre fatos históricos ocorridos no -reportagem que trazem histórias biográ- período, como em: Volto na semana que vem ficas ou perfis de personagens que foram (2015), romance autobiográfico da jornalista perseguidas durante a ditadura e conti- Maria Regina Pilla; Almanaque 1964 (2014), nuaram suas trajetórias após esse período. da jornalista Ana Maria Bahiana; Imaculada É o caso de Frei Betto: biografia (2016), de (2013), romance histórico sobre a freira autoria do historiador Américo Freire e da Maurina escrito pela jornalista Denise jornalista Evanize Sydow; Sem liberdade Assis; Um gosto amargo de bala (2013), auto- eu não vivo: mulheres que não se calaram biografia da atriz e jornalista Vera Gertel; na ditadura (2013), escrito pelas jornalistas 1968: eles só queriam mudar o mundo (2008), Suelen Loriany e Laura Beal; Caio Prado Jr.: de autoria da jornalista Regina Zappa e um intelectual irresistível (2007), produzido do jornalista Soto Ernesto, em formato de pela jornalista Maria Célia Wider; Coração almanaque; Anos 70: enquanto corria a barca vermelho: a vida de Elza Monnerat (2002), (2003), da jornalista Lucy Dias; e Sombras escrito pela jornalista Verônica Bercht; da repressão: o outono de Maurina Borges Dom Paulo: um homem amado e perseguido (1998), biografia ficcional da freira Maurina, (1999), biografia produzida pelas jornalistas escrito pela jornalista Matilde Leone. Evanize Sydow e Marilda Ferri; e Prestes A partir do levantamento e identi- ficação das reportagens, observamos que a maioria das reportagens caracterizadas 13 A linguagem neutra, não binária ou não sexista, como investigativas – originais ou inter- sobretudo na linguagem escrita, questiona a padro- nização da língua ao privilegiar a vogal “o”, que carac- pretativas – trata de crimes perpetrados teriza o masculino nos substantivos e adjetivos. Os pelos agentes do Estado durante a dita- movimentos ligados às questões de gênero têm ado- dura. Abordam casos de perseguições, tor- tado, em seu lugar, “@”, “e” e “x”. Aqui, adotamos “a” sempre que possível, como no caso das personagens turas, mortes e temas que se impuseram na jornalísticas em questão. agenda midiática da época e que seguem

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constrangendo. Buscamos analisar então as Histórias de resistência à ditadura narrativas das reportagens a fim de iden- em livros-reportagem tificar como as jornalistas produziram as investigações e as contam. Como espaço de mediação dos sentidos que organiza a experiência do tempo e dos Nesse sentido, a seleção da amos- acontecimentos que permeiam a existência tra de livros-reportagem para análise foi humana (MEDINA, 1982), a narrativa jorna- feita tendo como critérios: a) reportagens lística reconstrói, a partir de livros-reporta- investigativas originais ou interpretativas gem de mulheres jornalistas, a atuação de sobre casos de violações de direitos huma- diversos personagens na resistência à dita- nos pelos agentes da ditadura; b) autoria dura, histórias de luta, de vida e de morte. exclusiva de mulheres jornalistas; c) livros- Assim, no primeiro movimento proposto por -reportagem destacados em premiações. Motta (2013), a recomposição do acontecimento, Assim, selecionamos os livros-reportagem nota-se o serialismo temático dos livros, que Cova 312, da jornalista Daniela Arbex, e Um fica evidente pela caracterização dos perso- homem torturado: nos passos de frei Tito de nagens e pelo modo como a temática surge Alencar, de autoria das jornalistas Leneide enquanto objeto de investigação jornalística. Duarte-Plon e Clarisse Meireles. Optamos também por incluir na análise a narra- Iara Iavelberg é uma das mulheres mais tiva Iara: reportagem biográfica, de Judith citadas nos registros sobre a luta contra a Patarra, por ser precursora do chamado ditadura militar brasileira.16 Um dos primeiros “biografismo nativo” (GALVÃO, 2005), trabalhos sobre a personagem foi o da jor- cuja origem seria o “resgate da saga de nalista alemã naturalizada brasileira Judith esquerda”. A análise, baseada na leitura dos Lieblich Patarra que mergulhou no universo livros-reportagem selecionados e outros da ativista política para uma biografia da per- materiais documentais,14 privilegia quatro sonagem logo após a abertura democrática. movimentos interpretativos propostos por Em entrevistas à imprensa sobre a motivação Motta (2013)15 e é apresentada na forma para a escrita da obra, a biógrafa justifica a de resumos-síntese. escolha pelo papel que entende ter enquanto jornalista, revelando sua compreensão sobre a prática profissional. 14 Além dos livros, o material documental deste estudo é constituído de entrevistas concedidas Tudo começou com uma conversa com o pelas autoras à imprensa, pesquisas e artigos em Alberto Dines a respeito da nossa missão, jornais e revistas que abordam os bastidores dessas reportagens. 15 Motta (2013) propõe sete movimentos inter- pretativos como procedimentos de análise: 1) a recomposição da intriga ou do acontecimento; eles atribuídos; 6) as estratégias argumentativas uti- 2) a lógica do paradigma narrativa, que trata da lizadas para produção de efeitos de realidade e esté- organização da história; 3) o surgimento de novos ticos; e 7) a metanarrativa, que diz respeito ao fundo episódios enquanto unidades temáticas que dão vida moral e ético da história. à história; 4) a revelação do(s) conflito(s) dramáti- 16 Foi tema de diversos estudos, pesquisas e pelo co(s), enquanto frame estruturador fundamental menos dois documentários: Em Busca de Iara, escrito e da narrativa; 5) a caracterização dos personagens, produzido por sua sobrinha Mariana Pamplona e lan- enquanto figuras centrais da narrativa, e papeis a çado em 2014, e Iara, lembrança de uma mulher, de 1993.

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como profissionais, de testemunhar sobre Lançada em 2014 – ano que marcou os 50 o que vimos e vivemos nessa época. A anos do golpe militar no Brasil –, a reporta- minha maior preocupação foi reconstruir gem biográfica desvenda a história de frei aquele pedaço da nossa História que não Tito de Alencar Lima, religioso dominicano podia ser esquecido (PATARRA, 1992a). nascido no Ceará em 1945.O esforço para reconstruir os fatos se revela tanto na apre- Dines foi convidado por Judith a pre- sentação dos livros quanto em outros espaços faciar a obra e é a primeira pessoa citada discursivos, onde são descritos os métodos nos “Agradecimentos”. Na mesma seção, e técnicas jornalísticas empregadas no pro- a autora revela a inspiração para a obra: a cesso de produção e escrita da reportagem leitura do conto “Um caso único de sau- investigativa. A lógica do paradigma narrativo, dade à primeira vista”, assinado por Dines segundo movimento interpretativo proposto e publicado na coletânea Posso? (1972). por Motta (2013), se desvela pela organização da sequência das ações e dos acontecimentos, O premiado livro-reportagem de bem como pelas conexões entre personagens Daniela Arbex (2005a) nasce da série de e incidentes internos às ações. reportagens produzida pela jornalista e publicada na Tribuna de Minas, em 2002, Em Iara: reportagem biográfica, a autora tendo como manchete: “Cova 312: fim de um reúne um trabalho de garimpagem, com base segredo de 35 anos”, também premiada.17 Nele, num método de investigação sustentado em é revelada a existência da sepultura de Milton documentos, livros, jornais e depoimentos. Soares de Castro, único preso político assas- Judith realizou mais de 100 entrevistas na sinado nas dependências da Penitenciária pesquisa da trajetória da psicóloga, profes- Regional de Juiz de Fora (MG) durante a sora universitária e militante. O esforço ditadura. No livro, a repórter conta a pro- se traduziu na possibilidade de confron- dução da investigação e retoma a história de tar informações e produzir um material de Milton entremeada a de outros personagens referência. Na contracapa da obra, a psica- que passaram pela mesma prisão. A dureza nalista Anna Mautner informa que a jorna- da vida (e da morte) de um revolucionário lista passou sete anos pesquisando a vida de católico no contexto ditatorial é a tessitura Iara. Sem dúvida, o tempo alongado entre a da narrativa de Um homem torturado: nos produção da reportagem e o deadline para a passos de frei Tito de Alencar,18 das jornalis- publicação do livro interferiu na qualidade tas Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles. do conteúdo entregue ao público. Também possibilitou a multiplicidade de fontes con- sultadas. Para refazer a vida familiar, afe- 17 Daniela Arbex é uma das jornalistas mais pre- tiva e política de Iara, Judith reuniu ainda miadas do Brasil, tendo recebido mais de 20 prêmios 16 páginas de fotografias. Os materiais de nacionais e internacionais. A reportagem Cova 312 conquistou o Prêmio Esso, Categoria Especial Interior, apoio como recortes de jornais e o diário de além de outras premiações. O livro obteve o 58º Lamarca, utilizados na pesquisa, aparecem Prêmio Jabuti 2016, 1º lugar Reportagem. Ressalta-se o fato de a jornalista atuar fora do eixo Rio-São Paulo, num jornal aparentemente periférico. 18 A vida de Frei Tito foi tema de livros, documentá- Batismo de Sangue: os dominicanos e a morte de Carlos rios e filmes, dos quais se destaca a obra de Frei Betto Marighella, publicada originalmente em 1987.

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em notas de rodapé. Nota-se um esforço por que tratou de Frei Tito no último ano de localizar fontes inéditas e contrapor versões, vida. Frades dominicanos que conviveram constituindo uma reportagem investigativa com ele durante seu exílio também deram interpretativa à medida que sugere novos depoimentos para o livro, assim como a olhares para o caso. irmã, amigos e ex-guerrilheiros. Duarte- Plon e Meireles (2014, p. 16) destacam que Em Cova 312, o caso do guerrilheiro “o livro pretende ser um entre outros tes- é o fio condutor da narrativa, culminando temunhos contra a política deliberada de com a apresentação de novas descobertas organização do esquecimento”. No prefácio, sobre sua morte, oficialmente tratada como Vladimir Safatle enfatiza que a obra é docu- suicídio. A jornalista queria esclarecer os mento importante para o esclarecimento motivos que levaram o Exército a esconder e a compreensão da história recente lati- o corpo do guerrilheiro e as circunstâncias no-americana, pois reconstrói contextos da morte deste até ser colocado numa cova históricos, principalmente após a guinada rasa. Arbex retoma as investigações sobre conservadora da Igreja Católica a partir de Milton em 2013, quando surge a ideia do João Paulo II. livro. Desde 2002, foram mais de 50 entre- vistas realizadas (ARBEX, 2015b). Dentre O terceiro movimento proposto por tantas fontes orais, Arbex entrevistou Motta (2013) é o surgimento de novos episó- o irmão e a irmã de Milton, militantes e dios. Trata-se de observar os conflitos e as amigos que estiveram com ele na prisão, tensões na narrativa. médicos do Exército e peritos criminais, ex-policiais responsáveis pelos laudos Cova 312 desvenda um segredo sobre a morte do guerrilheiro. A repórter guardado há mais de 50 anos pelos mili- garimpou informações e documentos em tares, ao descobrir o paradeiro do corpo de órgãos públicos, hospitais, cartórios e até no Milton, e desmonta a versão criada pelo cemitério; fez pesquisas em jornais, livros, Exército, comprova que não se tratou de revistas; obteve autorização para acessar suicídio, mas, sim, de enforcamento. Ou os arquivos do Superior Tribunal Militar seja, o guerrilheiro foi torturado e assassi- e para fazer cópia dos autos do inquérito nado pelos agentes da ditadura. Com esta instaurado pelo Exército no dia em que reportagem, Arbex reescreve um capítulo Milton foi encontrado morto na cela 30 da história brasileira, fazendo justiça à da Penitenciária de Linhares. Apoiada nas memória daqueles que tiveram suas vozes técnicas de imersão e observação direta, silenciadas. a jornalista narra seu acesso ao local. Foi quando teve certeza de que deveria con- Destruído nos porões do regime tinuar na investigação, apesar das revi- militar, Frei Tito cometeu suicídio em ravoltas e tentativas de obstrução. Para a 1974, aos 28 anos, durante seu exílio na biografia de frei Tito, por mais de dois anos, França. Contra o silêncio, o livro-repor- as autoras realizaram entrevistas com 35 tagem traz descrições minuciosas, feitas pessoas e estiveram em lugares por onde por Tito, de sua própria aflição. A tortura ele passou. Entrevistaram o psiquiatra e havia conseguido quebrá-lo psicologica- psicanalista francês Jean-Claude Rolland, mente, transformando sua vida em um

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inferno de delírios e alucinações, como contradições de uma geração. Em entre- insinua um de seus poemas, reproduzido vista à jornalista Claudia Giudice, na seção por Duarte-Plon e Meireles (2014, p. 41): “Páginas Amarelas” da revista Veja sobre “Nos dias primaveris, colherei flores para o lançamento do livro, na edição de 12 de meu jardim da saudade. Assim, extermina- agosto de 1992, Judith diz ter visto em Iara rei a lembrança de um passado sombrio”. uma personagem “muito mais interessante”, A assinatura de Tito de Alencar é de 12 quando questionada sobre o porquê de não de outubro de 1973, mas sua força e sua ter escolhido biografar Carlos Lamarca, o presença ultrapassam o tempo. capitão do exército que aderiu à guerri- lha e que foi companheiro de Iara. Apesar Há de se observar que o trabalho de expressar sua identificação maior com intenso de investigação com várias fontes Iara, a autora parece recusar o título de não representa uma versão definitiva do feminista. Indagada se a escolha por Iara acontecimento. Com o cuidado de não fazer foi puramente feminista, ela responde uma análise anacrônica, no caso de Iara: que isso seria equivalente a dizer que, se reportagem biográfica a versão adotada pela a opção fosse por Lamarca, teria sido uma autora na narrativa biográfica trata a morte escolha machista. “A Iara, independente da protagonista como suicídio, conforme de ser mulher e por isso despertar mais os relatos divulgados à época. No entanto, o meu interesse, era uma figura fasci- esta versão, contestada mais tarde pelos nante. Ela não pegou em armas mas teve familiares da vítima, também é descartada uma influência decisiva sobre o próprio no documentário Em busca de Iara (2014), Lamarca” (PATARRA, 1992a). produzido pela sobrinha dela, Mariana Pamplona, e dirigido por Flavio Frederico. Frei Tito é um personagem trágico da Em 2003, portanto 32 anos após a morte de resistência, que combateu a ditadura, foi Iara, sua família obteve na justiça o direito preso, torturado, libertado na troca pelo de obrigar o Cemitério Israelita do Butantã embaixador suíço e banido do Brasil. A a autorizar a exumação dos restos mor- reportagem investigativa interpretativa tais para uma autópsia, quando o corpo foi imortaliza o sofrimento de frei Tito, cuja finalmente retirado da ala dos suicidas. Um intensidade ele mesmo lutou para apagar, laudo atestou que seria improvável que ela sem sucesso. pudesse ter feito o disparo que a matou. O gaúcho Milton Soares de Castro Na construção discursiva das persona- tinha 26 anos quando seu corpo foi encon- gens, quinto movimento interpretativo da trado na Penitenciária de Linhares. O mili- análise crítica da narrativa (MOTTA, 2013), tante foi também o único civil da Guerrilha o foco reside na construção das personas, do Caparaó, (1966-1967), a primeira tenta- na centralidade de seus mundos, dramas tiva de luta armada contra a ditadura no e sentidos, revelados desde os primeiros Brasil pós-golpe de 64, estabelecida na Serra movimentos de análise. do Caparaó, divisa entre Espírito Santo e Minas Gerais. A construção do personagem Em Iara: reportagem biográfica, perpassa a trama narrativa, consolidando ao Patarra encontrou os desejos, sonhos e final o retrato de uma época e das histórias

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que constituem o imaginário de sofrimento, dos Direitos do Homem e do Cidadão,19 como assinala Arbex. Ao ouvir um de seus em 10 de setembro de 1789, os deputados entrevistados – o irmão do guerrilheiro –, a franceses extinguiram os usos da tortura repórter deu-se conta de que estava junto a como parte de uma reforma provisória uma das milhares de famílias brasileiras que do procedimento criminal.20 Na segunda tiveram suas histórias atravessadas pela metade do século XVIII houve um avanço ditadura. “Centenas de órfãos, pais, mães, repentino no desenvolvimento das práti- esposas e amigos continuam a sofrer por cas culturais. As formas mais extremas de décadas a fio diante dos fatos propositada- punição corporal começaram a ser vistas mente escondidos. Ninguém tem o direito como inaceitáveis. Todas essas mudanças de guardar silêncio sobre crimes contra a contribuíram para uma compreensão de Humanidade” (ARBEX, 2015a, p. 341). integridade corporal (autonomia) e indivi- dualidade empática. A tese defendida pela Com base nas análises, podemos infe- historiadora é de que o auge do romance rir que os livros alcançam a atmosfera de epistolar coincide cronologicamente com a um tempo: foi assim em Iara: reportagem consolidação da ideia de direitos humanos, biográfica, com o desvendamento de frag- no século XVIII. “Meu argumento depende mentos da história não só da personagem, da noção de que ler relatos de tortura ou mas do contexto de uma época, também o romances epistolares teve efeitos físicos foi em Cova 312, no qual a repórter conta a que se traduziram em mudanças cerebrais história de Milton e de outros personagens e tornaram a sair do cérebro como novos presos políticos durante a ditadura; bem conceitos sobre a organização da vida social como em Um homem torturado, na narrativa e política” (HUNT, 2009, p. 30). Conforme sobre a vida e morte de Frei Tito e de tantos esse entendimento, novos tipos de leitura outros marcados pela experiência da prisão, criaram experiências individuais (empa- repressão e tortura. Há ainda outros pontos tia), que por sua vez tornaram possível a de convergência nas três narrativas estu- emergência de conceitos sociais e políticos dadas. A intensa coleta de cada repórter na (os direitos humanos).21 Baseada na ideia de busca por fontes – documentais e em forma de entrevistas – demonstra o esforço de fugir de versões oficiais ou baseadas apenas nas opiniões, mas sustentadas no confron- 19 Aqui, a linguagem excludente demarca que tamento de versões, a partir de múltiplos mulheres eram consideradas incapazes ou indignas de plena participação no processo político, assim ângulos. Assim, os três casos analisados como crianças, prisioneiros, estrangeiros, escravos, mostram a potencialidade da investigação negros livres e minorias religiosas. jornalística na reconstrução de aconteci- 20 A tortura supervisionada para extrair confissões mentos com implicações históricas. permaneceu como dispositivo jurídico na Europa por cerca de cinco séculos até que, de 1760 em diante, inúmeras campanhas levaram à abolição da tortura As obras analisadas também estimu- sancionada pelo Estado (na Europa) e à moderação lam sentidos sobre as distintas formas de nos castigos, medidas atribuídas à difusão do huma- nitarismo pelo Iluminismo (HUNT, 2009). tortura. A historiadora norte-americana 21 A Declaração Universal dos Direitos Humanos Lynn Hunt (2009) destaca que seis sema- consolida essa noção: seu artigo V determina que nas depois de aprovarem a Declaração ninguém será submetido a tortura nem a penas ou

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Benedict Anderson,22 para quem os jor- de reportar os acontecimentos cotidianos de nais e os romances criaram a comunidade modo que os cidadãos possam exercer seus imaginada, Hunt argumenta que a percep- direitos (e deveres) de cidadania. O jorna- ção sobre o sofrimento alheio poderia ser lismo investigativo, por sua vez, colabora denominada “empatia imaginada”. É imagi- com esta tarefa de modo intrínseco, pois nada, segundo a autora, não no sentido de denuncia, desmascara, expõe, dá a conhe- inventada, mas no sentido de que a empatia cer o que querem ocultar, contextualiza e requer imaginar que alguma outra pessoa explicita fatos ou fenômenos ocultos, em é como você. “Os relatos de tortura produ- função de sua característica de apuração ziam essa empatia imaginada por meio de e investigação profundas. novas visões da dor” (HUNT, 2009, p. 30). Aderimos à perspectiva da historiadora ao As reportagens investigativas ganham expandir essas percepções para os livros ainda mais visibilidade quando apresenta- analisados que, igualmente, geram novas das em suporte ampliado: os livros-repor- sensações a quem os lê. A experimentação tagem. No Brasil, as transformações das de variadas técnicas narrativas, bem como redações e rotinas produtivas do jornalismo provocar a experiência, trazer revelações diário levam repórteres de investigação a e imprimir personalidade e detalhe, são pensar no livro-reportagem como solução características que garantem tal imersão para abordar um tema de forma aprofun- a partir de seus efeitos estéticos. Nesse dada (SEQUEIRA, 2005) e ampliar a com- sentido, Hunt enfatiza que a autonomia e preensão da realidade (LIMA, 1995). No caso a empatia são práticas culturais e não ape- do livro-reportagem, as pressões de espaço nas ideias, e, portanto, são incorporadas de e tempo impostas pelo jornalismo tradicio- forma bastante literal, isto é, têm dimensões nal deixam de ser uma preocupação direta tanto físicas como emocionais. e permitem maior liberdade e autonomia, priorizando a contextualização.

Neste trabalho, as discussões sobre a investigação jornalística, o uso do livro Considerações finais como suporte e as desigualdades de gênero que atravessam a área, com foco nas reportagens sobre a ditadura militar no Historicamente, o jornalismo tem se Brasil produzidas por mulheres repórte- consolidado como importante instrumento res, corroboram a ampliação dos temas de construção democrática. A relação entre nos estudos de jornalismo investigativo. jornalismo e democracia afirma-se na tarefa Ainda que a presença delas na autoria de livros-reportagem sobre a ditadura ainda seja tímida, observamos uma tendência tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes crescente dessa participação nos últimos (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948). anos. Dos 22 livros identificados com 22 Para mais detalhes, consultar: ANDERSON, este perfil, 13 foram publicados na última Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Tradução Denise década (2008-2018), o que indica uma Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. mudança gradual nesse sentido e maior

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protagonismo das repórteres mulheres nas fortalecimento da democracia. As narra- investigações jornalísticas sobre o período. tivas estudadas aqui apresentam conexão No conjunto dos livros escolhidos para o com a contemporaneidade: as obras são corpus desta análise, buscamos contemplar um contraponto urgente ao esquecimento desde as primeiras iniciativas (PATARRA, forçado, gerado pelas tentativas de apa- 1992b) às mais recentes (ARBEX, 2015a), gamento das marcas e das histórias que contribuindo para um possível mapea- a violência destruiu, na medida em que mento também sobre eventuais mudanças colocam em circulação vozes por tanto nas práticas. tempo silenciadas, estimulando processos de rememoração e ressignificação impres- Nas três obras analisadas, verifica-se cindíveis para a transformação do presente o rigor investigativo das repórteres em des- e do futuro, ao provocar a experiência esté- vendar contextos e personagens, tendo tica de empatia imaginada. em vista condições técnicas específicas: as entrevistas foram realizadas, em sua maioria, com grande distância temporal dos episódios originais. Essa característica [ CÂNDIDA DE OLIVEIRA ] intensifica a responsabilidade de compreen- Doutoranda e mestra em Jornalismo (2012) pela der tais realidades a partir de um mosaico Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). tecido com relatos, impressões e lembran- Bolsista Capes. Graduada em Comunicação Social ças, e costurados com documentos e obser- com habilitação em Jornalismo pela Universidade vação direta, entre outros procedimentos. Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul Portanto, neste breve panorama, identifi- (Unijui/2009). camos condições técnicas de investigação, E-mail: [email protected] mas não foi possível dimensionar condições sociais para o trabalho destas repórteres, [ CRISELLI MONTIPÓ ] o que reforça a necessidade de pesquisas Doutoranda e mestra em Jornalismo (2012) pela futuras com o auxílio da técnica de entre- Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). vista para averiguar esses dados. Graduada em Jornalismo pelo Centro Universitário de União da Vitória (Uniuv/2005). Professora A análise das reportagens investi- da Escola de Comunicação e Artes da Pontifícia gativas sobre a ditadura militar brasileira Universidade Católica do Paraná (PUCPR). ganha ainda mais ênfase e necessidade E-mail: [email protected] ao se compreender que o jornalismo pode atuar na valorização da retomada demo- [ MAGALI MOSER ] crática. Num momento em que o Brasil Doutoranda e mestra em Jornalismo (2016) pela assiste à exaltação de antigos torturadores Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). e à defesa por parte de alguns por uma Bolsista Fapesc. Especialista em Estudos Literários nova intervenção militar, revisitar essas pela Universidade Regional de Blumenau reportagens é não apenas valorizar o (FURB/2010). Graduada em Comunicação Social com esforço de investigação dessas repórteres, habilitação em Jornalismo pela Universidade do Vale como reforçar o papel da informação e do do Itajaí (Univali/2005). jornalismo na fiscalização dos poderes e E-mail: [email protected]

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Extraprensa, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 7 – 29, jan./jun. 2019 [ EXTRAPRENSA ] AS MULHERES E O PARTO MIDIATIZADO: UMA ANÁLISE DO DISCURSO DAS CELEBRIDADES

[ ARTIGO ]

Camila Rabelo Coutinho Saraiva Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Maria Angela Pavan Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Camila Rabelo Coutinho Saraiva As mulheres e o parto midiatizado: uma análise do discurso das celebridades Maria Angela Pavan 31 

[ RESUMO ABSTRACT RESUMEN ]

As ferramentas de busca na internet são uma das primeiras fontes de informação so- bre qualquer assunto atualmente. O parto enquanto prática social reflete a realidade midiatizada. Neste artigo, é feita uma análise dos principais resultados de termos de pesquisa utilizados no Google Search que evidenciam o parto como um assunto que ganhou destaque no cotidiano da população e da mídia. Com uma breve análise do discurso de notícias em sites sobre o parto de Ivete Sangalo, Kate Middleton e Eliana, é possível verificar como o assunto vem sendo tratado pela mídia, demonstrando como a própria sociedade encara o tema. Para realizar este artigo, utilizamos as bases teóricas de Patrick Charaudeau, Eni Orlandi e Maria Immacolata Vassallo de Lopes.

Palavras-chave: Parto Midiatizado. Análise do Discurso da Mídia. Celebridades. Internet.

Web search tools are currently one of the first sources of information on any subject. Childbirth, as a social practice, reflects the mediatized reality. In this article we analyze the main results of search terms in Google Search, which show that childbirth is a subject that has gained prominence in the population’s and media’s routine. From a brief analysis of the news discourse on websites about Ivete Sangalo’s, Kate Middleton’s and Eliana’s delivery, we can verify how the subject has been treated by the media, reflecting how society itself views the theme. We based this article propositions on theorists Patrick Charaudeau, Eni Orlandi and Maria Immacolata Vassallo de Lopes.

Keywords: Mediatized Delivery. Media Discourse Analysis. Celebrities. Internet.

Las herramientas de búsqueda en la Internet son una de las primeras fuentes de infor- mación sobre cualquier tema en los días actuales. El parto como práctica social refleja la realidad mediática, siendo influenciado meios y también ejerciendo impacto en la vida de las personas. En este artículo se hace un análisis de los principales resultados de términos de búsqueda utilizados en Google Search que evidencian que el parto es un asunto que ha ganado destaque en el cotidiano de la población y los medios. Con un breve análisis del discurso de noticias en sitios sobre el parto de Ivete Sangalo, Kate Middleton y Eliana, es posible verificar cómo el asunto viene siendo tratado por los medios, evidenciando la manera que la sociedad encara el tema. Para la realización de este artículo utilizamos los siguientes teóricos Patrick Charaudeau, Eni Orlandi y Maria Immacolata Vassallo de Lopes.

Palabras clave: Parto Mediado. Análisis del Discurso Mediático. Celebridades. Internet.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2019.158045

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Introdução entender suas mudanças, precisamos estar atentos às pesquisas, gestos e falas do coti- diano. Nesse contexto, pode-se dizer que o Gestar e parir é algo tão simples e parto passou a ser um evento midiatizado, comum na nossa história social. O parto considerando que a prática social é direta- existe para todos, mas pouco se fala de mente afetada pelo funcionamento e pre- suas especificidades, que são guardadas sença da mídia. “A lógica da mídia impõe-se a sete chaves até mesmo no mundo das à sociedade como um todo e torna-se parte celebridades. A internet ocupa lugar pri- do tecido social. O fenômeno midiático, e, vilegiado, pois se constitui atualmente portanto, a midiatização, são por isso tão em uma nova forma de representar nos- importantes” (Ibidem, p. 76). sas práticas sociais, e nela encontramos novos meios e ferramentas de interação, Nos últimos anos, a mídia tem produção de conteúdo e uma maneira dado visibilidade a diversos movimentos polifônica de enxergar a sociedade. Esse sociais, dentre eles, o que luta por mudan- espaço constituído por meio da circula- ças no tipo de assistência ao parto prati- ção de informações é o que Lévy (1999) cada atualmente no Brasil (DINIZ, 2005). chama de “ciberespaço”. O fato de o parto ter ganhado posição de destaque na mídia e na sociedade faz A internet não está crescendo ape- com que as pessoas façam buscas sobre o nas em número de usuários, mas suas assunto na internet. O Google é o meca- aplicabilidades também estão se diver- nismo de buscas mais utilizado no mundo sificando, se fortalecendo como local de e permite que façamos pesquisas para criar laços de amizade discutir assuntos acompanhar quais são as principais ten- historicamente importantes. Como afirma dências, a partir da plataforma Google Silverstone (2002), devemos estudar a Trends. Por esse “buscador de tendências”, mídia pois ela tem papel preponderante é possível verificar empiricamente que o na experiência cotidiana. Ela faz com que assunto parto está sendo cada vez mais sejam aguçadas emoções, reflete os anseios procurado no Brasil. da população e constrói as narrativas das experiências cotidianas. O autor propõe Utilizamos a ferramenta inicialmente que ela seja vista não como um sistema, um com o termo de pesquisa “parto no Brasil conjunto de tecnologias, mas um processo de 2004 até o dia 23 de maio de 2018”, data social, de midiatização. em que foi feita realizada nossa busca. No início do período, o termo correspondia ao Essa também é a reflexão de índice 45, e atingiu seu ápice (100) em julho Castells (2013) que, a partir da descrição de de 2005, sendo que, quando este artigo foi movimentos sociais em rede, mostra a pos- redigido, ocupava a posição 92, o que evi- sibilidade de sugerir hipóteses que podem dencia que tem ganhado relevância para identificar para onde direcionam as mudan- brasileiros. ças da nossa época. Lopes (2014) explica que a comunicação contemporânea é acompa- Como este artigo faz parte de uma nhada de uma maior complexidade e, para pesquisa de mestrado que investigará a

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influência da comunicação na experiên- com o intuito de investigar sua relação cia do parto midiatizado pela perspectiva com os lugares sociais que permitem das mulheres em Natal-RN, foi feita uma seu surgimento e divulgação. Faremos busca utilizando o Google Trends com algu- um estudo, portanto, não dos funciona- mas palavras-chave relacionadas ao tema: mentos textuais, nem da situação, mas “parto”, “parto normal”, “parto humanizado”, do “que os amarra por meio de um dispo- “cesárea” e “gravidez de risco”. sitivo de enunciação simultaneamente resultante do verbal e do institucional” O resultado da busca nos últimos 12 (MAINGUENEAU, 2015, p. 47). meses evidenciou que o assunto de uma forma geral está em alta na internet, O recorte escolhido para a análise do variando o índice entre 77, em dezembro discurso neste artigo foi o parto das cele- de 2017, e 100, quando atingiu a nume- bridades, pois, nessa vertente dos resul- ração máxima no dia 6 de maio de 2018, tados da pesquisa no Google Trends, foi e se manteve em alta até o dia em que possível esmiuçar as notícias mais acessa- fechamos o artigo para esta revista (10 de das de cada um dos três exemplos citados maio de 2019). acima. Cada uma das notícias analisadas neste artigo são as que aparecem no topo Como resultado das pesquisas, é pos- da lista no Google quando se pesquisa o sível destacar dois aspectos que chamam nome das famosas, juntamente com a a atenção. O primeiro se deve ao interesse palavra “parto” na data do acesso deste que os usuários estão demonstrando em trabalho. Para analisar, recorreremos a suas buscas no Google por aspectos práti- alguns conceitos de Foucault (1971) que cos relacionados ao parto, por exemplo, ao se aplicam ao assunto tratado, bem como associar a palavra “parto” a “calcinha-cinta teóricos da análise do discurso, como pós-parto”, “parto cesariana passo a passo” Orlandi (2009), Charaudeau (2006) e e “como facilitar o parto normal”, entre Maingueneau (2015). Mesmo sendo de outros. O segundo é a grande incidência campos epistemológicos distintos, as duas de buscas sobre parto de celebridades na linhas teóricas ajudarão a elucidar a dis- internet. “Parto” foi buscado juntamente cussão proposta. com o termo “parto Ivete Sangalo”, que também apareceu junto ao termo “parto França et al. (2014) destacam que cada normal”, bem como “Kate Middleton parto época produz e cultua seus heróis a sua normal” e “Eliana teve parto normal ou maneira: cesárea”. Suas “entranhas” trazem as marcas da Diante desse cenário, faremos a cultura de cada tempo; elas conden- análise do discurso para entender o que sam os valores que estão em voga, que é possível inferir a partir do tratamento agregam a coletividade e movem a vida que a mídia tem oferecido ao parto em social. Também a relação que elas estabe- sites de notícias. O interesse é relacionar lecem com seu público, a maneira como a forma como as matérias construíram as elas os convocam e o seu poder de afe- narrativas sobre o parto das celebridades, tação são configurados pelo padrão de

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sociabilidade vigente (FRANÇA et al., bastante buscado na internet por fatores 2014, p. 8). que vão além do fato em si, como a grande visibilidade que a cantora possui junto Por esses motivos, ao discutir sobre à mídia e o parto ter ocorrido durante o celebridades, se faz uma leitura da cultura Carnaval de 2018, época em que os brasi- contemporânea. leiros sempre estão voltados para as escolas de samba e cidades que têm destaque na Muitos teóricos atentam como pessoas festa popular. Em função da gravidez, Ivete públicas foram retratadas pela mídia, primeiro anunciou meses antes que, ao contrário no trabalho, que gera impacto social, e depois dos últimos anos, não cantaria na festa em suas vidas privadas, ao longo do século baiana, da qual é uma das principais atra- XX. Autores mais recentes definem que uma ções. No entanto, com o parto das filhas figura pública passa a ser celebridade a partir gêmeas durante o período de folia, a can- do momento em que a divulgação sobre suas tora foi destaque na cobertura midiática, realizações profissionais dá lugar a detalhes mesmo não estando nos palcos. da sua vida privada. O jornalismo de celebri- dades, então, seria responsável por tornar um Vale ressaltar que a matéria mais indivíduo estranho em um sujeito familiar. acessada no Google sobre o parto de Ivete Sangalo foi publicada no portal do G1, que A vida privada é o elemento principal do pertence ao Grupo Globo. A notícia foi jornalismo de celebridade, orientando a publicada às 14h51, poucas horas depois incorporação dos fatos na narrativa como do parto, que ocorreu por volta de 01h00 relatos que auxiliam na compreensão da da manhã do dia 10 de fevereiro de 2018. vida social. Através de posicionamentos A rapidez com que a notícia foi postada diante de temas comuns, os valores mobi- sugere que a edição do portal considerou lizados pelo jornalismo de celebridade que era um tema relevante e que preci- remetem-se às instituições dominantes sava ser divulgado rapidamente. Essas da cultura (LANA, 2014, p. 190). características se referem às condições de produção, que se relacionam aos sujeitos Nesse contexto é que analisaremos as e à linguagem. Segundo Orlandi (2009), o notícias sobre o parto das celebridades, para contexto imediato se deve às circunstân- evidenciar os mecanismos de estranha- cias de enunciação (matéria publicada em mento e aproximação que promovem por site de notícia da Globo) e contexto amplo meio de seus textos com o público feminino. se refere ao contexto histórico, ideológico (se trata do parto de uma celebridade da música baiana, e que o acontecimento foi no carnaval).

Parto midiatizado de Ivete Sangalo O título da matéria traz uma cita- ção da médica responsável pelo parto: “Choronas e espertas. Parto foi lindo” Na matéria sobre o parto de Ivete (MENDES, 2018). O fato de a médica, Sangalo, é possível inferir que o assunto foi Luciana Vieira Lopes, ser a porta-voz

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sobre o parto evidencia a relação de poder o que Orlandi (2009) chama de memória que se dá diante do parto no Brasil, pois discursiva ou interdiscurso, que coloca o modelo de assistência é basicamente à disposição palavras que direcionam a hospitalar e tem como figura central o maneira como o sujeito significa em uma médico. Quando ela diz que as bebês são dada situação. “choronas e espertas”, a médica basica- mente apresenta evidências de que o parto O dizer não é propriedade particular. As foi bem-sucedido e até emite um juízo de palavras não são só nossas. Elas signifi- valor sobre o acontecimento, sem explicar cam pela história e pela língua. O que é o porquê da afirmação. dito em outro lugar também significa nas “nossas palavras”. O sujeito diz, pensa que Como explica Charaudeau (2006), sabe o que diz, mas não tem acesso ou as mídias possuem uma dupla identidade, controle sobre o modo pelo qual os sen- que por um lado desempenham a função tidos se constituem nele (Ibidem, p. 32). de informadoras, e, portanto, respondem a demandas sociais por dever de democracia; Mesmo que não tenha dito explicita- por outro lado, são organismos que operam mente qual é sua concepção sobre parto, a partir de uma lógica comercial. Nesse é possível entender que a obstetra não caso, portanto, a notícia desempenha a revelou como fez o parto, ou sua opção do função de oferecer informações sobre o parto, mas que continua perpetuando que nascimento das filhas de Ivete pelo fato o médico é quem se responsabiliza total- de os produtores de conteúdo imagina- mente pela escolha do parto. O repórter rem que é um assunto de interesse para repete o que todos sempre fazem: o parto seu público. O título dado à matéria tem correu tudo bem “sem intercorrências”. como função atrair o maior número de Sabemos que a opção primeira no Brasil pessoas possível para lê-la. “Se as manche- é pelo parto de cesárea. Conforme aponta tes dos jornais são diferentes, é porque, Luz (2014), fazer valer o direito da gestante para se diferenciar do concorrente, cada de escolher como e onde dar à luz, munin- jornal deve produzir efeitos diferentes” do-a de informações para uma tomada de (Ibidem, p. 59). decisão consciente, é uma das principais bandeiras de um movimento feminino que Logo no primeiro parágrafo da maté- cresce a cada dia no Brasil, principalmente ria, a médica é apresentada como a pes- por meio de redes sociais e blogs. Essa rea- soa que “fez” o parto. Isso não é consenso lidade é bem diferente em alguns países, em todas as linhas de abordagem sobre o que consideram o parto normal uma regra. parto, pois aqueles que são favoráveis à Isso é mostrado, por exemplo, na série humanização do parto dizem que quem Grey’s Anatomy da emissora estadunidense faz o parto é a mulher, cabendo ao médico ABC que, em seu 14º episódio da 14ª tem- a função de prestar assistência ao parto. porada, trata o parto cesárea como um A expressão é a mais comum no Brasil e, problema para a mulher. portanto, quando o repórter que redigiu a matéria a coloca no texto, está recorrendo Diante dessa realidade, há um a um senso comum, sem questioná-lo. É movimento internacional de mulheres

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há mais de trinta anos para que haja um com o funcionamento de seu útero acele- parto mais humanizado (DINIZ, 2005). No rado ou reduzido, assistidas por pessoas Brasil, esses grupos se autodenominam desconhecidas”. Elas também estariam “Humanização do Parto”. O movimento separadas de seus parentes, pertences, defende o uso racional e apropriado da roupas, óculos, e seriam submetidas a uma tecnologia na assistência ao parto e a cascata de procedimentos. qualidade na interação entre parturiente e seus cuidadores. O parto deve ser via No Brasil, aí se incluem como rotina cirurgia cesariana apenas em casos espe- a abertura cirúrgica da musculatura e cíficos e não ser indicado para grande tecido erétil da vulva e vagina (episio- parte das parturientes. tomia), e em muitos serviços como os hospitais-escola, a extração do bebê com Voltando às notícias relatadas sobre o fórceps nas primíparas. Este é o modelo parto de Ivete Sangalo, é possível concluir aplicado à maioria das pacientes do SUS que ali está imposto o caráter simbólico na hoje em dia. Para a maioria das mulheres experiência cotidiana do parto. Quando do setor privado, esse sofrimento pode lemos o enunciado, tiramos conclusões a ser prevenido, por meio de uma cesárea respeito dos fenômenos da cultura bra- eletiva (Ibidem, p. 629). sileira, que pensa que o parto de cesárea é algo tranquilo e uma das únicas opções O parto, a criação dos filhos e os proce- para se ter um filho. dimentos realizados estão sempre associa- dos ao consumo no mundo cultural em que Em seguida, a notícia sobre o parto estamos inseridos. A mãe que gera fica tão da Ivete Sangalo traz um trecho da fala imersa aos compromissos sociais e culturais da médica sobre o parto. “O parto foi do parto que esquece de pensar o próprio lindo. Ivete chegou muito tranquila. O corpo e o parto. Precisa pensar em revelar parto transcorreu sem intercorrência. As o sexo do bebê em uma festa, depois pensar gêmeas nasceram lindas e saudáveis. As no quarto, nas roupas, nas festas que prece- três passam muito bem” (MENDES, 2018). dem o parto, nas lembrancinhas que serão Nesse trecho, mais uma vez é apresen- ofertadas após o parto, nas visitas e nos tada uma visão pessoal da médica sobre eventos mensais (hoje em dia se comemora o parto (“lindo”). Mostra também que o também os mensários do recém-nascido). parto é tratado como um evento total- E isso nunca vai parar no mundo do con- mente controlado pelo médico e prova do sumo, como McCracken (2003, p. 119) diz: seu sucesso se deve à falta de imprevistos estão “sempre em processo”, são os rituais (“sem intercorrências”). de consumo no mundo culturalmente constituído. Para isso, McCracken cria um Diniz (2005, p. 629) descreve que, a quadro que demonstra o movimento do partir da segunda metade do século XX, significado do consumo. Podemos utilizá-lo no modelo de parto dominante nos países quando o parto é tratado como forma de industrializados, as mulheres “deveriam consumo e transformado em rituais sociais viver o parto (agora conscientes) imobili- dentro desse mundo, descartando o corpo zadas, com as pernas abertas e levantadas, da mulher.

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Este é o mundo da experiência cotidiana dos fenômenos se apresenta aos sentidos através do qual o mundo dos fenômenos do indivíduo, totalmente moldado e cons- se apresenta aos sentidos do indivíduo, tituído pelas crenças e pressupostos da sua totalmente moldado e constituído pelas cultura” (MCCRACKEN, 2003, p. 101). crenças e pressupostos de sua cultural. Esse mundo foi conformado pela cultura Como não há nenhuma outra infor- de duas maneiras. A cultura detém as mação sobre o porquê de a profissional ter lentes através das quais todos os fenôme- considerado o parto “lindo”, é possível con- nos são vistos. Ela determina como esses cluir que a beleza está relacionada ao fato fenômenos serão apreendidos e assimi- de que não houve surpresas, que foi dentro lados. Em segundo lugar, a cultura é o do esperado e ela, portanto, corresponde plano de ação da atividade humana. Ela à expectativa da repórter, do público e da determina as coordenadas da ação social sociedade de maneira geral com relação […] enquanto lente, a cultura determina ao parto. Há um silenciamento do corpo como o mundo é visto […]. Imagens visuais da mulher, um corpo que tem que cumprir e material verbal parecem assumir uma os rituais sem dizer muito. A fala também relação muito particular neste processo está relacionada à relação de forças: diz de transferência […]. O material verbal respeito ao lugar a partir do qual fala o funciona sobretudo como uma espécie de sujeito e que constitui o que ele diz. “Como lembrete que instrui o espectador/leitor nossa sociedade é constituída por relações acerca das propriedades salientes que hierarquizadas, são relações de força sus- se supõe estarem sendo expressas pela tentada no poder desses diferentes luga- parte visual do anúncio (Ibidem, p. 101). res, que se fazem valer na ‘comunicação’” (ORLANDI, 2009, p. 40). Para Orlandi (2009), um dos fatores que determinam as condições de produção Todos esses mecanismos operam do discurso é a relação de sentidos. É ela a partir das formações imaginárias. Isso que estabelece que não há discurso que não significa que não se referem a situações se relacione com outros discursos, isso é, o físicas, concretas, mas que os sujeitos se discurso direciona para outros que os sus- apoiam nas imagens que resultam de pro- tentam. Todo discurso é considerado parte jeções. Essas projeções são o que permi- de um processo discursivo mais amplo, que tem pensar as situações empíricas do lugar o extrapola, sendo imaginado ou possível. dos sujeitos para a posição dos sujeitos no Pelo mecanismo chamado de antecipação, discurso. Elas geram muitas e diferentes todo sujeito se coloca no lugar do outro possibilidades regidas pela maneira como a (seu interlocutor), prevendo o sentido que formação social está na história. A médica seu discurso produzirá. Dessa forma, ele de Ivete Sangalo aparece novamente no modula a argumentação a partir do efeito espaço notícia, diz que as bebês nasceram que espera que vai gerar no ouvinte. O saudáveis e que passam bem como a mãe, o mundo mercantil está sempre atento ao que reforça ainda mais a noção de previsibi- lugar em que poderá entrar, deixa de lado as lidade do parto como um elemento atrelado experiências cotidianas e o corpo da mulher a seu sucesso. Em seguida, é apresentado torna-se um corpo midiático. “O mundo o horário do nascimento das gêmeas e a

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informação de que o parto que já havia foram extraídas do material audiovisual. sido agendado para 12 dias depois, mas foi Esse é o caso da parte em que a médica se antecipado. Com o dado, se conclui que, coloca como porta-voz da Ivete Sangalo, mesmo sem ter concluído as 40 semanas dizendo que agradece o carinho do público de gestação, a cesariana já estava marcada. e da imprensa. Quando questionada sobre o tempo que durou a gestação por uma Sem dar muitos detalhes, a notí- repórter, a médica responde que foram 36 cia apresenta que as contrações foram o semanas. A mesma jornalista completa a motivo para a cantora ter sido internada. pergunta: “foi um pouquinho antes?”, e a Na sequência, a médica diz que Ivete entrou médica responde: “previsto para uma gra- em trabalho de parto espontaneamente e videz gemelar”. Tanto no caso da pergunta que chegou alegre e tranquila na mater- quanto da resposta, repórter e médica usam nidade. Sem explicar o motivo, mesmo meias palavras para tratar de assuntos que estando em trabalho de parto e estando naquela situação interacional se espera bem psicologicamente, foi feita a cirurgia que haja um entendimento mútuo, implí- cesariana, a médica continua dizendo que cito do que não foi dito. ficou o tempo todo acordada. Outra infor- mação apresentada na notícia é que o pai Quando a repórter questiona sobre das crianças acompanhou o parto o tempo o adiantamento do parto, a pergunta é todo emocionado. praticamente retórica, pois ela sabe que o tempo previsto de uma gestação é de 40 Além do conteúdo textual da notícia, semanas. A médica, por sua vez, faz ques- há dois vídeos que foram postados junta- tão de evidenciar que, por se tratar de uma mente e que fazem parte do corpus anali- gravidez de gêmeas, há particularidades. sado. O primeiro foi reproduzido na página Com a resposta curta e objetiva (“previsto do Instagram de Ivete, no qual a cantora gemelar”), ela demonstra que detém um aparece dançando no hospital antes do conhecimento técnico que a repórter não parto, acompanhada do marido, familia- domina, encerrando a discussão sobre o res e amigos. Todos apresentam bastante tema (MENDES, 2018). alegria e animação, inclusive a cantora, que foi quem gravou e publicou a cena em sua Essa questão está relacionada ao que página da mídia social. O vídeo foi publicado Foucault (1971) definiu como o discurso que antes do parto e evidencia o bom estado se refere a uma determinada disciplina. físico e mental da gestante, corroborando Para o autor, disciplina não é feito apenas de a fala da médica sobre a forma como Ivete tudo o que pode ser dito sobre alguma coisa, chegou ao hospital. Vale ressaltar que é o que pode ser enquadrado em uma coerência único espaço reservado na página da notícia ou sistematicidade. Ela é construída histo- que não foi protagonizado pela médica. ricamente tanto de erros quanto de acer- tos. No caso em questão, podemos pensar Inserido na posição central da notí- que o período considerado mais comum cia, também há um outro vídeo, que con- para uma gestação no Brasil é de 40 sema- tém a entrevista da médica obstetra. Ao nas, mas em países europeus se aguarda que tudo indica, as falas contidas no texto até 42 semanas, como é recomendado pela

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Organização Mundial da Saúde (OMS). As é entendido como o princípio de agrupa- suas concepções vão sendo formuladas e mento do discurso, como unidade e ori- reformuladas constantemente por aqueles gem de suas significações como foco de que fazem parte do seu horizonte teórico sua coerência. “O autor é aquele que dá à e, dessa forma, vão delineando o que pode inquietante linguagem da ficção suas uni- ser considerado verdadeiro. dades, seus nós de coerência, sua inserção no real” (Ibidem, p. 28). Como quem fornece É sempre possível dizer o verdadeiro as informações sobre o parto é uma médica, no espaço de uma exterioridade selva- existe uma crença do interlocutor que ela gem, mas não encontramos no verda- tem domínio sobre aquele assunto e, por- deiro senão obedecendo a regras de uma tanto, não se questiona se o que ela diz é “política” discursiva que devemos rea- verdade. tivar em cada um de nossos discursos (Ibidem, p. 35). Uma repórter pede à obstetra que ela conte como foi o parto e, além das informa- Nesse sentido, a disciplina seria ções já tratadas previamente neste artigo, uma forma de controle de produção do ela responde: “procedemos com as rotinas e discurso. No caso da notícia analisada, a protocolos habituais de assistência na obs- médica, enquanto porta-voz, é tida como a tetrícia”. A mesma jornalista insiste: “foi um detentora do conhecimento, e os repórte- parto tranquilo? Porque parto de gêmeos a res legitimam essa posição de poder que ela gente sabe que tem aquela tensão”. A médica ocupa. Questionada sobre o peso com que se limita a dizer que “foi muito tranquilo” nasceram as bebês, a médica responde que (MENDES, 2018). cada uma pesava aproximadamente 2,5 kg. Respondendo à pergunta se as gêmeas O termo “protocolo habitual” foi uti- estão no berçário, a médica diz: “Elas estão lizado pela médica mais uma vez ao longo no protocolo habitual. Rotinas de obser- da entrevista para responder sobre ques- vação. Procedimentos rotineiros de todo tões técnicas, como o tempo de internação bebê que nasce” (MENDES, 2018). Com de Ivete, acrescentando que normalmente essas informações, ela não responde dire- ocorre “em média três dias”. No entanto, tamente à pergunta (se estão ou não no não é consensual entre os profissionais o berçário), mas faz questão de responder tempo mínimo necessário de permanência que as gêmeas de Ivete Sangalo estão rece- da mãe no hospital depois do parto. bendo o mesmo tratamento que os outros bebês recebem, mesmo sendo filhas de uma celebridade.

Ela não detalha quais são essas tais Parto midiatizado de rotinas de observação, nem os procedimen- Kate Middleton tos rotineiros, como se não fosse relevante saber, já que não cabem questionamentos sobre eles. Foucault (1971) destaca que outra No caso das matérias sobre o parto questão está ligada a essa: a do autor. Ele do terceiro filho de Kate Middleton, esposa

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do príncipe inglês William, o enfoque dado que, indefinidamente, para além de sua ao texto é bastante diferente. A matéria formulação são ditos, permanecem ditos e gira em torno do tempo de internação da estão ainda por dizer” (Ibidem, p. 22). duquesa de Cambridge. O título (“Por que Kate Middleton saiu tão rápido da mater- Exemplos desse segundo tipo são os nidade?”), em forma de pergunta, mostra textos religiosos ou jurídicos, e por vezes a curiosidade sobre o tema e sugere que o os textos literários ou científicos. Apesar ocorrido é bastante diferente da realidade de se tratar de uma matéria jornalística que brasileira (FORCIONI, 2018). deveria traduzir o assunto para um público leigo, em alguns momentos, o texto apre- Kate voltou para casa apenas 6 horas senta vocabulário científico, próprio do depois do nascimento do terceiro filho, que discurso da medicina, como a palavra que ocorreu no dia 23 de abril de 2018 às 11h01. aparece com frequência – “intercorrência” A matéria, publicada na Revista Crescer, (FORCIONI, 2018). Palavra ritualística, é especializada em assuntos relacionados à apresentada sempre na fala da obstetra de educação infantil, apresenta uma aborda- São Paulo, Camila Escudeiro, que afirma que gem mais técnica do que a primeira anali- sair tão rápido do hospital não traz risco para sada, com diversos entrevistados da área a mãe e o bebê. No entanto, ela destaca que da saúde. Logo no primeiro parágrafo, é é preciso avaliar as condições da gestação levantado se uma internação rápida como a e o desenvolvimento do parto. Se ambos da duquesa seria segura e possível no Brasil. transcorrem “sem intercorrências”, não há a necessidade de uma internação mais longa. Na notícia, há a informação de que o fato de a saída ter sido rápida, gerou Como Brandão (2006) explica a partir de “estranheza em muita gente” (Ibidem); no Pêcheux, todo enunciado é linguisticamente entanto, não há nenhuma fonte que mos- descrito como uma série de pontos de deriva tra esse estranhamento. Pode-se inferir possível, oferecendo lugar à interpretação. O que a expressão “muita gente” se refere ao enunciado está sempre direcionando para público em geral, pessoas comuns que não o “outro”, que é o lugar da interpretação, da são profissionais da área, já que, pela linha manifestação do inconsciente e da ideologia argumentativa adotada no texto, são ouvi- na produção de sentidos e na constituição dos das apenas as fontes chamadas de oficiais, sujeitos. É também quando interpretamos que os especialistas no assunto. damos lugar ao interdiscurso (o exterior), que possibilita a alteridade discursiva. Foucault (1971) afirma que é possí- vel fazer uma distinção entre os diferen- Mesmo que Kate Middleton tenha tes níveis do discurso. Ele caracteriza os saído rapidamente da maternidade, a obs- discursos que são ditos no correr dos dias tetra entrevistada para a matéria ressalta e das trocas, e que passam com o ato de que é necessário um acompanhamento da quem os pronunciou. Os discursos que mãe 24 horas após o parto. Na sequência, a “estão na origem de certo número de atos matéria detalha algumas informações sobre novos de fala que os retomam, os transfor- como funciona o sistema público de saúde mam ou falam deles, ou seja, os discursos no Reino Unido para contextualizar que a

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alta após poucas horas é o padrão adotado. verdadeiro”. Ele se baseia em “convicção e Quando os partos são normais ou naturais, participa de um movimento que se prende as mulheres são liberadas até 10 horas após o a um saber de opinião a qual só pode ser nascimento do filho, e 24 horas depois, a mãe apreendida empiricamente, através dos textos e bebê recebem uma visita de um profissio- portadores de julgamentos” (Ibidem, p. 49). nal da saúde. Nesse trecho, é usado o termo O que o “efeito de verdade” evoca é a busca “protocolo” (FORCIONI, 2018) para carac- pela credibilidade, que dá ao enunciador o terizar que este é o procedimento comum: “direito à palavra” dos seres que comunicam, seja princesa ou não, todos os partos são e as condições de validade da palavra emitida. assistidos da mesma forma. Em seguida, é feito um paralelo entre A reportagem também conta com a o sistema de saúde pública do Reino Unido, entrevista de uma brasileira que trabalha chamado de National Health Service (NHS), e como obstetriz (midwife) no sistema de saúde o Sistema Único de Saúde (SUS). O ponto em público do Reino Unido. Ela explica que já comum entre os dois é o fato de a mulher ter acompanhou várias mães que também saí- direito à assistência antes, durante e após o ram da maternidade após 6 horas do nasci- parto. Na frase, “mas as semelhanças pare- mento do filho (Ibidem). A fala da obstetriz cem parar por aí” (FORCIONI, 2018) é res- (midwife) adiciona um caráter de verdade saltada a grande diferença entre os modelos ao texto, pois ela diz praticamente o mesmo britânico e brasileiro, como a posição central que a médica obstetra brasileira; no entanto, que a midwife ocupa na assistência ao parto. dá um relato de uma experiência própria. O trecho pode ser relacionado ao conceito de No entanto, uma frase de impacto vontade de verdade de Foucault (1971, p. 20): como essa opera como um divisor que mostra que são duas realidades bem O discurso verdadeiro, que a necessi- distintas. Ela sugere que, mesmo não dade de sua forma liberta do desejo e entrando em outros aspectos da dife- liberta do poder, não pode reconhecer rença, há muito mais distâncias do que a vontade de verdade que o atravessa; e a proximidades. Como o texto foi escrito vontade de verdade, essa que se impõe para brasileiros que conhecem o Sistema a nós há bastante tempo, é tal que a verdade Único de Saúde (SUS) e seus problemas que ela quer não pode deixar de mascará-la. estruturais e de orçamento, ao citá-lo, o autor do texto diz, sem precisar dizer, Outro autor que trata sobre o tema é sobre a qualidade da assistência médica Charaudeau (2006), que diferencia o valor entre os dois países. Conforme explica de verdade e o efeito de verdade. O primeiro Orlandi (2009), o que é posto no discurso está relacionado à construção explicativa ela- traz consigo necessariamente o não dito, borada por meio da instrumentação cientí- mas que está presente. O que não se diz fica, que é externa ao homem, constituída está implícito, subentendido de acordo de um conjunto de técnicas de saber dizer com o contexto do enunciado. para comentar o mundo. Relaciona-se com um saber erudito, contido em textos funda- Segundo as informações contidas na dores. Já o segundo expõe o “acreditar ser reportagem, uma gravidez de baixo risco é

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acompanhada pela parteira (midwife), pois por 24h ou 48h para que se faça o teste do é ela quem vai fazer as consultas pré-natais pezinho e para atender a interesses finan- e solicitar os exames necessários. O médico ceiros dos hospitais, que lucram com mais só é acionado quando há o encaminhamento tempo de internação (FORCIONI, 2018). dessa profissional, que sugere um tratamento multidisciplinar, que pode ocorrer em parce- ria com enfermeiros e outros especialistas da área da saúde. Outra diferença é que, quando não há nenhuma complicação, as gestantes Parto midiatizado de Eliana participam de cerca de 13 consultas, podendo ser acompanhadas por até 20 profissionais ao longo da gravidez. O parto também não é A notícia do portal UOL de 10 de assistido por uma profissional que acompa- setembro de 2017 sobre o nascimento de nhou a gestante durante as 40 semanas. É a Manuela, filha da apresentadora de tele- midwife (parteira) quem vai avaliar se a mãe visão do SBT Eliana, tem um gancho bem e o bebê têm condições de ir para casa logo diferente. Pela estrutura narrativa do texto, após o parto. As intercorrências mais comuns o interesse no nascimento se dá pelo fato de segundo a reportagem são sangramentos ou a celebridade ter passado por uma gravidez dificuldades na amamentação. Nesses casos, de risco com a recomendação médica de a permanência na maternidade é prolongada. ficar em repouso grande parte da gestação No texto é explicitado que, no Brasil, geral- para “salvar a filha” (ELIANA…, 2017). mente um único profissional acompanha a gestação e isso acontece no pré-natal. Na A matéria pode ser classificada como sequência, o texto destaca que as cesarianas uma notícia, pois é um conteúdo jorna- só são realizadas em dois casos específicos: se lístico curto e que tem como principal houver cesariana anterior ou em emergên- objetivo anunciar um fato. Como explica cias. O destaque faz referência a algo que está Maingueneau (2015), o discurso só tem fora do texto, mas que o público brasileiro já sentido dentro de um interdiscurso. Isso sabe: o fato de o Brasil ser um dos campeões quer dizer que qualquer interpretação de em número de cirurgias cesarianas em todo enunciado só é possível quando se faz uma o mundo, com índices que chegam a 60%, relação com outros enunciados que se rela- contrariando os 15% de recomendação da cionam a ele de diversas maneiras. Para OMS. Nos casos de cirurgias cesarianas no o autor, por exemplo, o simples fato de se Reino Unido, a mãe permanece no hospital organizar um texto em um gênero implica entre 24 e 48 horas. relacionar com outros textos do mesmo gênero. “A menor intervenção política só No último parágrafo do texto, há uma pode ser compreendida se ignorarem os fala da obstetra brasileira dizendo que seria discursos concorrentes, os discursos ante- possível uma alta rápida como a de Kate no riores e os enunciados que então circulam país, porém, devido ao tipo de parto mais nas mídias” (Ibidem, p. 28). utilizado (cirurgia cesariana), isso não acon- tece. Ela explica que normalmente as mães e O grande feito, então, é o fato de ter bebês permanecem em ambiente hospitalar chegado ao fim da gestação e a criança ter

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nascido com saúde e sem sequelas. Não é sem surpresas. Martin (2006) aponta que oferecido ao leitor nenhum detalhe sobre a tecnologia pode operar também como o parto (com quantas semanas de gesta- ferramenta de dominação e poder social ção ocorreu, qual foi a via de nascimento, em diversos tipos de situações sociais, e no nem se a apresentadora entrou em trabalho parto não poderia ser diferente. de parto). A notícia é superficial também quanto ao que seria a “gravidez de risco” Martin (2006) relaciona essa abor- enfrentada pela apresentadora. A única dagem ao fato de que grande parte do informação é de que Eliana teve um deslo- que existe na literatura médica sobre o camento de placenta no início da gravidez. assunto trata o corpo da mulher como Aparentemente, a mãe não é entrevistada uma máquina. Dessa forma, o principal pelo repórter e grande parte dos dados foi objetivo da “máquina-corpo” é produzir, extraída de uma entrevista concedida à no caso, um bebê perfeito. A metáfora é revista Contigo. Ao que tudo indica, o único bastante significativa e condiciona toda dado novo acrescentado na entrevista foi a lógica que rege o modelo de assistên- o nascimento. cia médico/hospitalar em vigência em várias partes do mundo, inclusive, no Pode-se inferir que a matéria foi Brasil. A partir dessa concepção, a forma produzida dessa forma, sem que a pessoa como os manuais de obstetrícia trata o em questão fosse entrevistada, devido ao parto segue uma lógica mecanicista, na período de recuperação do parto. Esse fator qual os mecanismos, prazos e ocorrências está relacionado às condições de produção esperadas devem acompanhar parâme- do discurso, que se associam aos sujeitos e à tros muito bem delimitados, e o objetivo situação (ORLANDI, 2006). Essas condições de uma gestação é produzir um produto em termos restritos e as circunstâncias de (bebê) perfeito. enunciação dizem respeito ao contexto ime- diato. Esse é um fator externo ao discurso, Em suma, o imaginário médico justapõe mas que influencia diretamente no resul- duas imagens: o útero como máquina que tado. Não se pode deixar de lado também a produz o bebê e a mulher como a traba- memória, que aciona as condições de pro- lhadora que produz o bebê. Em alguns dução de discurso. Nesse caso, o contexto momentos, as duas talvez se juntem, de imediato é o nascimento da filha de Eliana, maneira consistente, como a mulher-tra- suas condições de saúde, a matéria publi- balhadora cujo útero-máquina produz o cada sobre o parto em um site de notícias de bebê (Ibidem, p. 117). celebridades. O contexto amplo é o fato de a sociedade tratar a mãe como aquela que se A memória se relaciona a tudo o que já sacrifica pelos filhos, a boa, que se entrega, o foi dito sobre partos, riscos na gravidez, casos fato de o parto ser visto como um momento de mães que perderam seus bebês ou a própria “perigoso”, no qual se deve proteger a ges- vida, entre outros. “A memória […] é tratada tante e a criança. A construção narrativa como aquilo que fala antes, em outro lugar, mostra que a tecnologia é considerada como independentemente” (ORLANDI, 2006, p. 31). salvadora de mães e bebês, prevendo qual- O autor explica, ainda, que o fato de haver quer risco e permitindo um nascimento um “já dito” sustenta a possibilidade de todo

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dizer, o que é um fator fundamental para a apresentadora. Mesmo assim, como esclarece compreensão do funcionamento do discurso, Charaudeau (2006), é possível chegar a con- a relação com os sujeitos e com a ideologia. clusões, pois não há “grau zero de informação”, O assunto é apresentado sem detalhes e que seria a ausência de todo implícito e todo com um tom grave, reforçado pelo fato de valor de crença. Apenas a informação pura- a Eliana ter sofrido um aborto espontâneo mente factual, como os programas de teatro, antes da gravidez de Manuela, que não foi cinema ou outras manifestações culturais, divulgado à época. Ela deixa claro que o nas- anúncios e classificados. cimento da filha é visto como uma superação não só das dificuldades durante a gravidez, mas também da perda anterior. “Dar à luz a Manuela depois de tantas provações tem um significado especial em minha vida” Considerações finais (ELIANA…, 2017).

É possível relacionar esse enunciado A partir da análise do discurso cons- ao conceito de Maingueneau (2015), de que truída nessas três gestações e partos, é pos- o discurso constrói socialmente o sentido. sível refletir que o assunto e suas variáveis Essa construção pode ser tanto em intera- ganham visibilidade na mídia brasileira. ções orais quanto em produções coletivas As celebridades mostram o parto midia- destinadas a um público amplo. No caso das tizado. Há um movimento que busca uma matérias, estamos falando do segundo caso. nova abordagem para o parto, baseado em evidências científicas e uma assistência O sentido de que se trata aqui não é um multiprofissional. Grande parte da assistên- sentido diretamente acessível, estável, cia ainda é hospitalar e centrada na figura imanente a um enunciado ou a um grupo de um único médico. As reportagens que de enunciados que estaria esperando para foram expostas neste artigo, todas retiradas ser decifrado: ele é continuamente cons- da internet, mostram as diferenças com que truído e reconstruído no interior de práti- o Brasil trata as gestantes e seus partos. As cas sociais determinadas. Essa construção matérias analisadas evidenciam também do sentido é, certamente obra de indi- que, de uma forma geral, essa é a concepção víduos, mas de indivíduos inseridos em tida como dominante e, portanto, apresen- configurações sociais de diversos níveis tam matérias que não tratam todas as pers- (Ibidem, p. 29). pectivas necessárias sobre o parto. Somente a matéria de Kate Middleton trouxe para os A matéria foi publicada juntamente leitores uma explicação sobre o processo do com uma imagem da capa da revista Contigo, parto. A figura da obstetriz é fundamental que traz a apresentadora exibindo a barriga na Inglaterra e permite que as gestantes com uma expressão serena. No caso, a mãe sejam atendidas de forma eficiente. Já no que segura a filha após o nascimento está Brasil, pelo contexto cultural e pela cul- com o cabelo bem arrumado, maquiada e tura hospitalar (internação, cesarianas e sorrindo para câmera. O texto é curto e com o médico como figura principal do parto), poucas informações, sem entrevistas com as informações são sempre repetitivas,

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regulares e sequenciais. Não há quebra dos padrões ritualísticos. Os casos que fogem desse cenário são vistos com espanto e sus- citam uma abordagem mais aprofundada para informar aos leitores que existem outras possibilidades de escolhas diante do parto. A análise das informações a respeito do parto nas redes sociais pode colaborar com uma mudança na forma de cobertura e no conteúdo sobre o assunto. Esses textos e discursos são pequenos res- quícios da nossa realidade. São necessários muitos trabalhos sobre esse assunto para que reverberem outras narrativas na órbita das redes sociais.

[ CAMILA RABELO COUTINHO SARAIVA ] Mestranda da Pós-Graduação em Estudos da Mídia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). É membro do grupo de pesquisa “Pragmática da Comunicação e Mídia” (Pragma – CNPq). Realiza pesquisa com temática relacionada ao Procad/Capes (UFRN, Universidade de São Paulo e Universidade Federal de Mato Grosso do Sul). E-mail: [email protected]

[ MARIA ANGELA PAVAN ] Professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e da Pós-Graduação em Estudos da Mídia da UFRN (PPGEM). Vice-coordenadora do Grupo de Pesquisa Pragmática da Comunicação e Mídia (Pragma – CNPq). Coordenadora do Procad/Capes (UFRN, Universidade de São Paulo e Universidade Federal de Mato Grosso do Sul). E-mail: [email protected]

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Extraprensa, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 30 – 47, jan./jun. 2019 [ EXTRAPRENSA ] AS EXPERIÊNCIAS DIASPÓRICAS DE MULHERES HAITIANAS ESTUDANTES DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA INTEGRAÇÃO LATINO- AMERICANA

[ ARTIGO ]

Angela Maria de Souza Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Karina Schiavini Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Angela Maria de Souza As experiências diaspóricas de mulheres haitianas estudantes Karina Schiavini da universidade federal da integração latino-americana 49 

[ RESUMO ABSTRACT RESUMEN ] As experiências migratórias femininas, por ocorrerem em menor contingente, foram histori- camente silenciadas. Também foram atribuídas a elas, de forma homogeneizante, a vinda para cá com o objetivo da reunião familiar – colocando-as de forma passiva diante desse fenômeno e invisibilizando a multiplicidade de suas vivências. Fundamentado na importância da perspectiva de gênero nas pesquisas sobre migrações, este trabalho propõe analisar a experiência diaspórica a partir do relato de seis mulheres haitianas estudantes da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), cujos ingressos se deram principalmente por meio do Programa Pró- Haiti, e, da exploração do diário de campo, em que foram registradas vivências compartilhadas com a comunidade haitiana durante os anos de 2016 e 2017. Além de abordar a trajetória de migração dessas mulheres, também pretende-se explorar suas atuações dentro desse espaço e a integração de saberes diversos com estudantes advindas/os de outros países, assim como suas pretensões futuras. Palavras-chaves: Diáspora. Migração feminina. Mulheres haitianas. Representatividade negra. Unila. Programa Pró-Haiti.

Because female migration experience occurred at a smaller level, it was historically silenced. Their purpose was also assumed to be that of family reunion by others – rendering them passive subjects of this phenomenon and turning the variety of their experiences obscured. Based on the importance of gender perspective in migration research, this paper analyzes the diaspora experience according to the report of six Haitian female students of the Federal University of Latin American Integration (Unila), whose entrance occurred by means of the Programa Pro- Haiti, as well as the field diary in which experiences shared with the Haitian community were recorded between 2016 and 2017. Aside from approaching the migration trajectory of these women, their actions within this space, the integration of diverse knowledge with students from other countries and their future intentions will also be discussed. Keywords: Diaspora. Female migration. Haitian women. Black representation. Unila. Programa Pró-Haiti.

Las experiencias migratorias femeninas, por ocurrir en menor contingente, fueron históricamente silenciadas. Se atribuyeron a ellas, de forma homogeneizante, la venida hacia acá con el objetivo de la reunión familiar – colocándolas de forma pasiva ante este fenómeno e invisibilizando la multiplicidad de sus vivencias. Fundado en la importancia de la perspectiva de género em las investigaciones sobre migraciones, este trabajo propone analizar la experiencia díaspórica a partir del relato de 6 mujeres haitianas, estudiantes de la Universidad Federal de la Integración Latinoamericana (Unila), cuyo ingreso se dio principalmente a través del Programa Pró- Haití y de la explotación del diario de campo en el que se registraron vivencias compartidas con la comunidad haitiana durante los años 2016 y 2017. Además de abordar la trayectoria de migración de estas mujeres, también se pretende explorar sus actuaciones dentro de este espacio y la integración de saberes diversos con estudiantes de otros países, así como sus pretenciones futuras.

Palabras clave: Diáspora. Migración femenina. Mujeres de Haití. Representatividad negra. Unila. Programa Pró-Haití.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2019.157671

Extraprensa, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 48 – 67, jan./jun. 2019 [ EXTRAPRENSA ] Angela Maria de Souza As experiências diaspóricas de mulheres haitianas estudantes da Karina Schiavini universidade federal da integração latino-americana 50 

Introdução violentamente submetido seguem gerando uma circularidade temporal, que produz novos deslocamentos, que, por sua vez, Fruto da diáspora africana iniciada geram contatos com outras populações no século XVI, em um processo escravo- negras no mundo, permitindo ressignifi- crata, há no território da América Latina e cações e recriações (REIS, 2012). do Caribe a presença de afrodescendentes com raízes em diversas culturas africanas O presente ensaio é fruto da disser- (REIS, 2012). Desde que foi iniciado esse pro- tação de mestrado intitulada Mawonaj cesso de desterritorialização, novas iden- fanm: mulheres haitianas estudantes da tificações e resistências1 começaram a ser Unila concluída em 2018. Para fundamen- criadas pelo povo negro. As mulheres afri- tação deste trabalho, utilizei a análise de canas fizeram movimentações importantes seis entrevistas realizadas com mulheres desde o período colonial, no sentido de con- haitianas estudantes da Universidade seguirem sobreviver à diversidade de vio- Federal da Integração Latino-Americana lências impostas, assim como objetivando a (Unila) e de registros realizados em diário libertação do povo negro, ressalta a autora. de campo de vivências compartilhadas com De acordo com Pimentel (2010), a mulher a comunidade haitiana nessa universidade africana escravizada foi violada na mesma e em outros espaços da cidade de Foz do proporção que suas terras – violências vivi- Iguaçu-PR durante os anos 2016 e 2017. das que repercutem até os dias atuais, pois Porém, a realização deste trabalho é a efe- estas seguem sendo encarceradas em este- tivação de uma oportunidade de realizar reótipos e barreiras sociais. novas conexões.

Este trabalho objetiva analisar os movimentos diaspóricos de mulheres hai- tianas estudantes da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), A Unila como possibilidade de utilizando o conceito de diáspora trabalhado estudos em terras brasileiras por Marilise Luiza Martins dos Reis (2012), a partir dos conhecimentos tecidos por Stuart Hall (2003) e Paul Gilroy (2001), que De acordo com o Ministério dos utilizam o conceito de forma a ampliar a Haitianos Residentes no Exterior ideia de deslocamento forçado da popula- (HANDERSON, 2015), estima-se que entre 4 ção africana. Essa abordagem nos permite e 5 milhões de haitianas/os residam em a análise da dimensão cultural à qual as outros países, o que representa a metade populações afros estão imersas no mundo, da população do país, que, de acordo com o pois as experiências traumáticas do desloca- censo realizado em 2013, é de aproximada- mento forçado ao qual o povo africano foi mente 10.413.211 habitantes. Há diversos fatores que impulsionam haitianas/os a buscar sua sobrevivência em outros países,

1 Com o evento da colonização, a ideia de raça e gênero de forma que a diáspora é tão presente na foi engendrada legitimando a dominação europeia. vida das/os haitianas/os que esse vocábulo

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é utilizado no cotidiano para se referir a O programa ocorreu no ano de 2014, diversas situações2. selecionando 83 estudantes para iniciarem seus estudos no ano de 2015, em que outras/ Diante da onda migratória haitiana os 10 estudantes foram selecionadas/os. para o Brasil e ao considerar a importância Em 2016 não houve ingresso de estudan- da inserção das/os haitianas/os na socie- tes por meio desse programa e, em 2017, dade brasileira e a destruição de diversas esse edital foi novamente lançado com 20 instituições de ensino superior com o terre- vagas para estudantes receberem auxí- moto ocorrido no Haiti em 2010, o governo lios-estudantis (sendo que 10 estudantes brasileiro criou políticas públicas educa- foram contemplados com auxílio-alimen- cionais voltadas para esse público. Dentre tação e auxílio-transporte e 10 estudantes elas, o Programa Emergencial Pró-Haiti em somente com auxílio-alimentação, todos Educação Superior que, sob a coordenação com a possibilidade de ingressarem da Coordenação de Aperfeiçoamento de nos 29 cursos ofertados na universidade no Pessoal de Nível Superior (Capes), elaborou ano de 2018). Ao todo, ingressaram 38 dis- uma política de implementação de bolsas de centes de nacionalidade haitiana nesta uni- estudos a fim de facilitar a entrada e manu- versidade. Em 2018, no Processo Seletivo tenção de haitianas/os em nível superior Internacional para candidatos da América do Brasil, se enquadrando como uma ação Latina e do Caribe foram inclusas outras afirmativa (MARINO, 2016). nacionalidades, inclusive a haitiana, não havendo mais edital específico para elas/ Dentre outras universidades, o es, e, em 2019, 24 estudantes haitianas/os Conselho Universitário da Universidade foram aprovados e ingressaram na Unila3. Federal da Integração Latino Americana (Consun-Unila), instituiu por meio da reso- A Unila está localizada em Foz do lução 037 a criação do Pró-Haiti (Programa Iguaçu-PR e foi criada em 2010 com a pro- Especial de Acesso à Educação Superior) posta política e pedagógica de promover a como um programa paralelo ao apresentado integração dos países latino-americanos. anteriormente, que reservou vagas para Nessa universidade, advêm pessoas de diver- haitianas/os portadoras/es do visto huma- sos países, o que implica em uma diversidade nitário residentes no Brasil, com direito à cultural que pode ser sentida em diversos assistência estudantil. aspectos: diferentes idiomas que se ouve pelos corredores e espaços de interações, com diferenças de sotaques; também percebe-se em aspectos da corporalidade (vestimentas, 2 Para ler mais sobre este assunto: SCHIAVINI, acessórios, gestualidades etc); nas comidas Karina. Mawonj fanm: mulheres haitianas estu- e bebidas que são vendidas nos intervalos dantes da Unila. Orientadora: Angela Maria de pelas/os estudantes; há também diversas Souza. 2018. Dissertação (Mestrado em Estudos Latino-Americanos) – Instituto Latino-Americano de Arte, Cultura e História, Universidade Federal da Integração Latino Americana, Foz do Iguaçu, 2018; 3 Essas informações foram acessadas nos editais dos e: HANDERSON, Joseph. Diáspora: sentidos sociais programas citados e entrando em contato com a Pró- e mobilidades haitianas. Horizontes Antropológicos, Reitoria de Relações Institucionais e Internacionais Porto Alegre, n. 43, p. 51-78, 2015. (Proint) da Unila.

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manifestações nos muros e paredes que participaram de projetos de extensão e cria- são realizadas em diferentes línguas e que ção de diversas ações para que aspectos de demonstram múltiplos posicionamentos suas culturas fossem visibilizados e compar- políticos. Mas essas interações ultrapassam tilhados – dia da bandeira, noite cultural e as paredes da universidade e também acon- jantar caribenho, aula de crioulo e francês, tecem nas moradias (sendo elas estudantis oficina de culinária, música, literatura e e/ou repúblicas), nos encontros informais e cinema haitiano4 – contribuindo assim para nas relações que vão se construindo. a construção de saberes plurais e decolo- niais, imposição de respeito e valorização Nesses espaços, ocorrem interações de aspectos culturais marginalizados por intelectuais e afetivas que proporcionam saberes hegemônicos. intercâmbio de experiências e culturas, como aulas de dança afro, percussão (tambores), Embora a maioria da comunidade crioulo haitiano, guarani e aymara. Mesmo estudantil haitiana seja formada por pessoas as salas de aula são espaços de fortaleci- do sexo masculino, a maioria dos organiza- mento e compartilhamento de vivências de dores e idealizadores dos projetos também outras culturas, que permitem a construção são homens, mas participar desses espaços de laços de solidariedade e o estabelecimento foi a maneira que encontrei para me apro- de trocas que extrapolam as origens étnicas. ximar da cultura e consequentemente das mulheres com as quais realizei a pesquisa. Diante desse cenário de diversidades, o No entanto, é importante ressaltar que o Programa Pró-Haiti possibilitou o acesso de principal contato estabelecido com elas foi haitianas/os que passaram a compor a rede durante as entrevistas, relatadas em um de compartilhamento de visões de mundo segundo momento deste artigo. com outros grupos que compõem a Unila.

4 Embora a maioria dessas ações sejam propostas por A Unila como território de projetos de extensão, esses espaços foram pensados pela encontros e resistências comunidade haitiana que muitas vezes não possui auto- nomia para propor ações de forma independente. No entanto, em alguns encontros houve envolvimento de outras pessoas que não faziam parte dos projetos, mas Quando adentram o espaço univer- fazem parte da comunidade (haitianas/os ou não) na sitário, muitas/os haitianas/os encontram organização dos eventos. No ano de 2017, os seguintes projetos de extensão com a temática haitiana foram rea- dificuldades financeiras, linguísticas e cul- lizados: 1. Rasambleman: coletivo de estudos culturais turais, que por vezes tornam-se empecilhos haitianos; 2. Ditadura haitiana no século XX: memória para seguir os estudos. As/os que perma- e direitos humanos; 3. Kreyòl Ayisyen: Kreyòl pale, kreyòl konprann!; 4. Unila fala francês (oficina dirigida necem, apropriam-se desse espaço como por estudantes haitianas/os que teve início após a vinda um lugar de protagonismo. delas/es para a Unila). Também há o projeto de exten- são Bonjour Foz do Iguaçu em que, embora já existisse anteriormente ao Pró-Haiti, há uma participação signi- Durante a realização da pesquisa, ficativa de haitianos que ensinam a língua francesa em percebemos que estudantes haitianas/os aulas abertas para a comunidade.

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Para se manterem na Unila, as/os Também se mantinham em contato estudantes haitianas/os formam uma rede cotidianamente: de apoio e cuidado entre si. Durante meu convívio com estes, percebi diversas ações A gente tem um grupo no WhatsApp que demonstram os entrelaçamentos dessa “Haitianos na Unila” em que a gente com- rede: algumas mulheres faziam tranças partilha informações sobre o Haiti, com- em outras/os conterrâneas/os, uns/umas partilha informações da Universidade, a levavam marmitas para as/os outras/os gente brinca também, e quando um faz na faculdade, iam ao mercado juntas/os comida posta no grupo uma foto dizendo e até mesmo dividiam compras. Faziam pra chegar, quem chegar primeiro come, comida em casa e chamavam outras/os para mas é interessante que se chega mais comer, emprestavam-se dinheiro, também gente, a pessoa faz mais comida.5 quem tinha filhas/os acabava contando com outras pessoas para auxiliar no cuidado Lembro-me de que nessa ocasião o quando tem outros compromissos, ou até mesmo estudante me contou que há um mesmo quando alguém adoece. mercado próximo da moradia em que alguns deles residem e que tem uma zona Logo que o ano letivo de 2015 iniciou de prostituição no caminho para lá e eles (sendo este o ano que teve maior número tentam se organizar para não deixarem de pessoas que adentraram a universidade as mulheres haitianas irem sozinhas ao por meio do Programa Pró-Haiti), algumas/ mercado, pois nas vezes em que foram uns haitianas/os começaram a se reunir de sozinhas relataram que homens chegaram maneira informal para discutir assuntos até elas oferecendo dinheiro em troca de relacionados à permanência na universidade sexo, mas quando iam acompanhadas isso e solidarizarem-se: auxiliar as pessoas que não acontecia. não sabiam a língua portuguesa a preparar seminários, corrigir trabalhos, explicar sobre Todavia, é importante ressaltar que os projetos de extensão, conversar com as/os esse grupo não é homogêneo: estudantes que estavam querendo desistir, pensar e discutir projetos de impacto social Entre nós já tivemos vários desentendi- no Haiti etc. E, assim, outras/os compatrio- mentos, até brigas. Temos nossas dife- tas foram sendo chamados a participar. A renças, nem todos nós participamos das não publicação de edital do Programa Pró- reuniões, ou damos a mão para o outro Haiti na Unila fez com que as/os partici- em dificuldade, e nem sempre, ou quase pantes desse coletivo se reunissem e elas/ nunca ficamos todos de acordo com coi- es entenderam que deveriam se fortalecer sas que poderiam beneficiar a todos […] atribuindo-lhe um nome – Haitianismo – e, Muitas vezes fazemos as coisas pensando conforme iam pensando ações, selecionavam em como os de fora vão nos perceber, sem comissões organizadoras para os eventos pensados, de acordo com a disponibilidade/ afinidade delas/es. Desde então, reuniam-se

quinzenalmente, nos domingos de manhã, 5 Registro da fala de um estudante haitiano. Trecho em uma das moradias estudantis. retirado do diário de campo.

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que haja realmente a vontade de fazer apresentando sobre músicas, danças, comi- por e para nós mesmos!6 das, frutas, lugares etc. Esse projeto teve seguimento no ano de 2017 (com algumas Além de diferentes posicionamen- modificações). tos pessoais, essas vivências também não ocorrem sem divergências políticas, pois as O projeto de extensão Rasanbleman: relações são permeadas por tensionamentos encontro com as culturas haitianas tam- sociais que estão presentes nesse espaço, bém foi criado em 2016 e teve continuidade sendo que há discursos de desvalorização em 2017 com modificação no nome, em desses saberes e de posicionamentos racis- que foram programadas 18 oficinas7 cujas tas e machistas assumidos por estudantes e professoras/es. 7 Sendo elas: 1. Ciclo de leitura de Literaturas Durante o tempo que vivenciei a Unila, Haitianas, envolvendo a leitura e discussão de obras nos anos de 2016/2017, o primeiro espaço poéticas de autores como René Depestre, Jacques Roumain, Franketienne, entre outros; 2. Oficina de que participei sobre o Haiti foi o dia da ban- cinema haitiano, abrangendo exposição e discussão deira (18 de maio de 2016) promovido pelo posterior do filme: O Homem nas Docas – L’Homme projeto de extensão Haiti: línguas e cultura sur les Quais (Canadá, França, 1992). Com Jean-Michel Martial, Jennifer Zubar. Em cores/105’, do cineasta (o projeto de extensão Rasanbleman também haitiano Raoul Peck. 3. Oficina sobre a Revolução contribuiu na promoção desse evento), em Haitiana. Exposição e leitura de textos escritos e áudio que as/os estudantes se reuniram e apre- visuais sobre a Revolução Haitiana seguida de debate. Leitura de passagens da obra El reino de este mundo, de sentaram sobre a história do Haiti e sobre a Alejo Carpentier. 4. Oficina de Artes Visuais haitia- bandeira haitiana e fizeram apresentações nas. Exposição do curta E Plubirus Unum, de Maxence culturais. Foi um espaço muito importante Denis, Haiti, 2001, seguida da apresentação e discus- aberto à participação de todas/os, o que levou são sobre obras de artistas plásticos como Philomé Obin, Hector Hyppolite, Préfète Duffaut, Antonio muitas pessoas – inclusive eu – a uma pri- Joseph, Rose Marie Desruisseaux, além da discus- meira aproximação com informações não são sobre a arte construída por haitianos no Brasil. midiáticas a respeito desse país. 5. Oficina de ritmos haitianos e caribenhos. Audição, leitura, dança e discussão sobre músicas e ritmos populares no Haiti e na região antilhana. 6. Oficina Em seguida, e instigada por essa de estudos da linguagem referentes à relação diglós- vivência, comecei a participar das aulas sica do Kreyòl e do Francês no Haiti, seguida de expo- sição comparativa entre as duas línguas. 7. Oficina desse projeto de extensão que, por meio do de Introdução ao Kreyòl. Discussão sobre aspectos ensino das línguas oficiais do Haiti (prin- básicos da língua. 8. Oficina de Culturas Populares cipalmente do crioulo haitiano, mas tam- haitianas, seguida de discussões sobre espaços de bém do francês), dois haitianos (contando manifestação cultural artística popular no Haiti. 9. Segundo Ciclo de Leituras de Literaturas Haitianas, com a participação de outra/os haitiana/ envolvendo agora narrativas curtas de Danny nos ao longo do curso) também nos ensi- Laferrière, René Philoctéte e Edwidge Danticat. 10. navam o mundo simbólico inserido nessas Segunda oficina de Cinema haitiano com a apre- sentação e ulterior discussão do longa-metragem: línguas e aspectos culturais desse país, nos O Lucro e Nada Mais – Le Profit et Rien D’Autre ou: réflexions abusives sur lalutte des classes (Bélgica, França, 2000). Em cores/57’, de Raoul Peck. 11. Oficina de cultura culinária haitiana, seguida da degustação 6 Devolutiva dada por uma das mulheres haitianas de pratos tradicionais preparados pelos estudantes. entrevistadas. 12. Oficina de História Haitiana: Os Docs e os anos

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temáticas foram propostas “em discussões servidas na sequência para degustação. com estudantes, professores e a comunidade Houve também a leitura de um poema e externa, e escolhidos a partir de sua impor- uma breve conversa sobre o furacão que tância real-simbólica para o povo haitiano”8, havia atingido recentemente o país. cujo objetivo concentrou-se em viabilizar espaços de diálogo que promovessem o Tive a oportunidade de integrar as conhecimento cultural sobre o país, tanto seguintes oficinas do projeto Rasanbleman: para o público acadêmico como para a comu- Ciclo de Leituras de Literaturas Haitianas, nidade em geral. O projeto era composto por Oficina de Ritmos Haitianos e Caribenhos e 2 coordenadores e 11 estudantes haitianas/os duas Oficinas de Cinema Haitiano, em que (2 mulheres e 9 homens) colaboradoras/es. foram exibidos dois longas-metragens do diretor Raoul Peck – Lumumba (2000) e O Dentre as ações propostas por esse Lucro e Nada Mais (2000). Estes foram espa- projeto, participei da oficina de culiná- ços importantes de conhecimento cultural ria haitiana que aconteceu na “Esquina e compartilhamento de suas vivências, assim Cultural”9 em que houve a apresentação como de integração, em que em todas as sobre as comidas que fazem parte dos seus ações propostas houve a participação de um hábitos culturais e algumas delas foram número representativo de haitianas/os. Uma das vivências mais marcantes para mim foi após a exibição do filme O Lucro e Nada Mais, de terror. Apresentação de documentário sobre pois essa produção debate sobre a realidade as ditaduras Duvalier no Haiti 1957-1986, seguido desse país empobrecido e então iniciou-se de debates. 13. Diglossia Cultural e Religiosidades um debate sobre os fatores que levaram o país Haitianas: De vodus e cristãos. Exposição de mate- rial audiovisual sobre as religiosidades no Haiti e dis- a essas condições (a culpa era também das/ cussão posterior sobre o tema. 14. Segunda Oficina os haitianas/os ou somente dos colonizado- de Introdução ao Kreyòl. Promoção de reflexão lin- res?), como poderiam interferir nesse cenário guística a partir de estudos comparados do Kreyòl e outras línguas neolatinas. Participação especial, via e como deveriam proceder com as pessoas Skype, do professor Francisco Calvo Olmo, filólogo da que tentassem impedir a realização dessas Universidade Federal do Paraná. 15. Oficinas sobre as transformações, tornando-se um espaço de diásporas haitianas. Leitura de textos escritos e áudio articulação importante, inclusive entre elas/ visuais sobre as migrações históricas para e do Haiti. 16. Oficina de História Haitiana. A livre nação negra es, mas aberto para quem quisesse contribuir! e o imperialismo. Discussão sobre geopolítica histó- rica envolvendo o Haiti e outros países latino-ameri- Também fiz o curso de francês “Bonjour, canos. 17. Oficina Haiti-Brasil, espaços de integração. Discussão sobre o fluxo migratório Haiti-Brasil e Foz do Iguaçu! – Curso de francês língua sobre espaços de encontro e desencontro cultural. 18. estrangeira”, ministrado por dois estudan- Oficina de encerramento envolvendo música, poe- tes haitianos durante o segundo semestre sia, danças e comidas haitianas como celebração do fechamento do Ciclo das Oficinas. de 2016. Havia, além dessa, outras turmas em 8 UNILA. Projeto de Extensão: “Rasanbleman: que outros haitianos ministravam aulas e, encontros com as culturas haitianas”, 2016. em 2017, as aulas tiveram sequência. 9 A Esquina Cultural está localizada na cidade de Foz do Iguaçu-PR e é um espaço voltado para mani- A noite cultural na qual houve um festações culturais, apresentações artísticas, cursos, oficinas, debates, entre outras atividades que dialo- jantar caribenho foi um evento realizado gam com a cultura da Tríplice Fronteira. de forma independente pela comunidade

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haitiana e que teve a participação de pessoas pela América Latina, influenciadas pela de diversas nacionalidades que auxiliaram Revolução Haitiana. “Rasanbleman”, como nos preparativos – momento este que pude narrado nos inícios das oficinas realizadas contribuir. Lembro-me de um momento estar pelo projeto, (em kreyòl) faz referência às fritando banana-da-terra e ficar prestando assembleias de escravizadas/os que “ao som atenção nos diversos idiomas que estavam do instrumento Lanbi, se reuniam para sendo falados na cozinha. As/os haitianas/os organizar as revoltas na época da Grande falavam crioulo entre si, havia uma menina Revolução. Trazida ao presente, esta pala- francesa que conversava em francês com vra pode significar a irmandade na luta as/os haitianas/os, nós falávamos português pelo bem comum”11. Diante da nomeação de e também havia pessoas conversando em ambos os espaços, pode-se perceber que há espanhol. Esse foi um momento rico em o resgate e compartilhamento de histórias aprendizado sobre a culinária haitiana (na de resistências e lutas do povo negro que prática) e sobre a cultura. demonstram uma postura ativa e que visam à conscientização e à união para transfor- Estávamos trabalhando desde logo depois mações sociais. do almoço entre organizar mesas, deco- rar e preparar as comidas. Então, algu- A diáspora coloca em movimento deman- mas pessoas se serviam de um pouco das seculares de reconhecimento de das comidas que já estavam preparadas nossa condição humana exigindo respeito para repor as energias. Lembro-me que às nossas tradições, às manifestações cul- um estudante haitiano pediu se eu não turais, religiosas, performáticas, artísticas tinha comido nada e então me trouxe etc., que nos caracterizam como negros e, um pedaço de pão com patê, dizendo acima de tudo, humanos como qualquer que é costume comer enquanto cozinha, outro que se qualifique nessa categoria pois tem que saber o gosto do que será (RODRIGUES, 2012, p. 13). servido.10 Compreendo a Unila como um porto O jantar foi servido enquanto ouvía- no qual ancoram diversos barcos, como mos músicas caribenhas e, em seguida, o Atlântico Negro e de outras etnias lati- abriu-se espaço para dançar. no-americanas. Ao dizer isso, afirmo esse espaço como um meio de comunicação Chamo a atenção para o significado do entre diferentes povos e grupos sociais nome de dois espaços mencionados: o grupo minorizados (negras/os, índias/os, gays, informal criado por estes estudantes – o lésbicas, travestis, periféricas/os)12 advindos Haitianismo – e o projeto de extensão de diversos países da América Latina, que Rasanbleman. “Haitianismo” refere-se ao conseguiram acessar a educação superior aumento de revoltas das/os escravizadas/ os contra as condições sub-humanas a que estavam submetidas/os que se espalharam 11 Ver nota de rodapé 6. 12 Destaco a importância dessa diversidade per- mear qualquer instituição de ensino, sendo necessá- rio, dessa forma, a criação e implantação de políticas 10 Trecho retirado do diário de campo. públicas de acesso a esses espaços.

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e utilizam esse espaço como um lugar para Comunidades, mais que indivíduos, tor- troca de experiências, empoderamento e nam possível o fazer; alguém faz com resistência, e assim abre-se a possibilidade mais alguém, não em isolamento indi- de construção de um mundo pautado em vidualista. O passar de boca em boca, de outros princípios, que não os hegemônicos. mão em mão práticas, valores, crenças, ontologias, tempo espaços e cosmolo- A participação ativa de haitianas/os gias vividas constituem uma pessoa. A nesse contexto é enriquecedor porque, produção do cotidiano dentro do qual além da criação de ações para compar- uma pessoa existe produz ela mesma, tilhar sua cultura, há também trocas de na medida em que fornece vestimenta, seus saberes sobre o Vodou, o kreyòl, a comida, economias e ecologias, gestos, Revolução Haitiana, que acontecem no ritmos, habitats e noções de espaço dia a dia e na convivência com outras e tempo particulares, significativos pessoas, assim como permite a expansão (LUGONES, 2014, p. 949). de seus saberes contra-hegemônicos dos quais podem vivenciar nesse novo con- A construção de novas formas de ser texto, como exemplo, as religiões afro- e pensar também se dá diante das novas -brasileiras. Na festa Caboclo de 7 Laços possibilidades que acessamos nos encon- promovida pelo terreiro de candomblé tros, nos entrecaminhos; para além dos Ile Asè Oju Ogun Funmilayo localizado espaços formais, se dá no convívio, na troca, em Foz do Iguaçu-PR, lembro que por na ressignificação e no resgate. Conviver muito tempo um estudante haitiano ficou com o outro, o que me é diferente, mas ao conversando com uma moça que estava qual também passo a fazer parte, torna interessada sobre o Vodou, contando alargadas as possibilidades fronteiriças, o sobre suas crenças e rituais. Nessa festa que faz brotar novas gestualidades, ritmos, religiosa de matriz africana havia também palavras, significações, sotaques, sentimen- pessoas de outras nacionalidades. tos e sensações.

Sem contar que a expressão negra vai Participar desses espaços foi de fun- além das palavras ditas e escritas, ela está damental importância para ter uma aproxi- nas danças, nas músicas, nas expressões, mação e convivência com a cultura haitiana nas entonações de voz – em um espaço que e com os/as estudantes que fizeram parte é compartilhado para além do espaço físico da pesquisa. Embora o foco da pesquisa da Unila (que se desloca, movimenta-se), seja com mulheres haitianas estudantes estando presente nos encontros informais, da Unila, a predominância nessa univer- festas etc. Outros exemplos são os encontros sidade é de estudantes haitianos e estes e festas de que participei na cidade, como contribuíram para a construção de saberes as festas Afrosom, em que tocavam músi- e, inclusive, para a minha aproximação com cas afros produzidas em diversos países, as mulheres estudantes que participaram sendo esses espaços lugares de expressões da pesquisa, tendo em vista que a maioria corporais, construções coletivas de danças e delas demonstrava-se mais reservada que compartilhamento de vivências, sensações os homens para estabelecer diálogos com e aprendizados. quem não as conheciam.

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Adentrando o espaço Depois de 3 anos morando no estado de São universitário: trajetória Paulo com a família, começou a cursar his- migratória das mulheres e a Unila tória na Unila. Pretendia fazer um curso na mesma cidade em que seus pais moravam, mas não conseguiu entrar na universidade Nesta pesquisa, seis estudantes haitia- com a nota do Enem e, como na Unila tinha nas foram as interlocutoras principais que o Pró-Haiti, conseguiu ingressar por meio possibilitam o desenvolvimento deste traba- desse programa. lho. Essas mulheres realizavam os seguin- tes cursos de graduação: Administração A segunda entrevistada vivia na zona Pública e Políticas Públicas, Arquitetura e rural da cidade de Gonaïves, indo morar Urbanismo, Ciências Biológicas – Ecologia em Porto Príncipe para estudar, onde cur- e Biodiversidade, Desenvolvimento Rural e sava o segundo ano de enfermagem quando Segurança Alimentar, Engenharia Civil de um amigo do pai disse que tinha bolsas de Infraestrutura, História – América Latina. estudos no Brasil e o pai dela achou melhor Das seis entrevistas realizadas, cinco foram que ela tivesse um diploma internacional e com mulheres que possuem nacionalidade falou pra ela vir estudar nesse país. Ela não haitiana e a outra com uma que possui nacio- queria, pois pensava em sair do Haiti só para nalidade venezuelana (mas como filha de pai fazer mestrado ou doutorado, mas como e mãe haitianos, identifica-se como haitiana). ele insistiu, acabou aceitando. Chegou no É importante ressaltar que as entrevistas Brasil no final de 2013 e trabalhou um ano foram realizadas no ano de 2017. na cidade de Itajaí-SC numa empresa têxtil. Cursava a graduação de Desenvolvimento Todos os nomes utilizados para se Rural e Segurança Alimentar na Unila. referir a elas são fictícios e fazem referên- cia a mulheres que possuem importância A terceira entrevistada relatou que histórica para o Haiti, como uma forma de em 2013 comprou um visto por 2.000 dóla- homenageá-las. No entanto, no momento res para vir para o Brasil e chegou a Porto que se segue, as mulheres serão referencia- Alegre no dia 1° de dezembro de 2014, das de acordo com a ordem em que foram chegando à casa de uma amiga cuja irmã entrevistadas e não associadas aos nomes havia estudado com ela. Cursava Biologia, fictícios, como uma forma de preservar as disciplina que disse sempre ter gostado de suas identidades. estudar.

No momento da investigação junto A quarta entrevistada é filha de pais às mulheres, a primeira entrevistada rela- que migraram do Haiti para a Venezuela tou que morava há 5 anos no Brasil, que na década de 1970 (primeiro o pai para migrou com a família e que anteriormente trabalhar num restaurante, depois a mãe) à vinda para o Brasil esteve na República e, quando o seu irmão tinha uns 9 anos, Dominicana, lugar em que morou 2 anos migrou também, tendo que ir trabalhar, após o terremoto de 2010, quando o escritó- porque ingressou de forma ilegal no país, rio do pai foi derrubado e teve familiares e mas mais tarde regularizou-se. Ela e sua amigos que foram afetados pela catástrofe. irmã nasceram na Venezuela. Sua mãe ia

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a cada 2 anos para o Haiti e no tempo que República Dominicana, depois para o Equador ficava na Venezuela comprava coisas para (onde permaneceu 3 meses) e depois veio para levar para familiares, mas não só família de o Brasil. Cursava Administração Pública e sangue, e sim pra todo mundo que mora estava no terceiro ano quando entrevistada. na mesma rua e, quando retornava, trazia muitas coisas relacionadas à comida (consi- As mulheres haitianas comenta- deravam o melhor mês do ano). Sua família ram sobre a Unila durante as entrevistas. mantinha contato com os familiares que Disseram gostar da universidade, das/os permaneciam no Haiti por meio do envio professoras/es, da oportunidade de apren- e recebimento de fitas cassetes, através der sobre diversas culturas e de conviver das quais conversavam. Seu irmão ficou com diversas línguas. Mas também houve o sabendo no seu trabalho de um programa relato de já terem experienciado o racismo do Ministério de Educação da Venezuela em sala de aula e em outros pontos da sobre a Unila, suas duas irmãs enviaram cidade, de viver situações de repressões os documentos necessários para pleitear as policiais, fazendo com que não possuam vagas e assim adentraram na universidade. liberdade de expressão e possibilidade de Ela estudava Engenharia Civil na Unila e assumir posicionamentos políticos, pois, no sua irmã formou-se em Economia nessa termo de compromisso assinado ao adentrar mesma universidade. na universidade, estudantes estrangeiras/ os são obrigadas/os a se comprometerem A quinta entrevistada relatou que que não se envolverão em assuntos rela- primeiro o seu irmão que estudava na cionados às políticas internas e externas República Dominicana veio estudar no brasileiras, fazendo com que muitas vezes Brasil, depois, por dificuldades financeiras, sejam impossibilitados de assumir posi- o seu pai pediu para que ela viesse também. cionamentos políticos diante de fatos que Então veio depois de um ano e pouco que seu interferirão nas suas vidas, já que residem irmão estava no Brasil. Ambos moravam em em território brasileiro. Cascavel e alguns meses antes de sair o edital do Pró-Haiti da Unila conheceram um grupo A estudante haitiana advinda da de professores que estavam pesquisando Venezuela também relata a importância sobre migração haitiana e que avisaram que da Unila para a sua conscientização a res- havia saído esse edital. Seu irmão cursava peito do racismo: biotecnologia na Unila e ela (que já iniciou o curso de Engenharia Civil, mas no momento Então, quando eu cheguei aqui no Brasil, que veio para o Brasil cursava Administração eu comecei a entender o racismo de e Direito no Haiti), realizava a graduação de forma diferente! Lá na Venezuela, por Arquitetura nessa universidade. exemplo, eu não entendia o racismo da mesma forma! Vivenciei o racismo? Sim! A sexta e última entrevistada contou Passei por situações de racismo sim! […] que primeiro seu marido veio para o Brasil E aqui eu comecei a entender bem mais, e começou a cursar Biotecnologia na Unila, de forma mais… específica assim, do que estando no Brasil há 5 anos. Ela, para vir para pode ser considerado como racismo! E lá o Brasil, fez o seguinte percurso: foi para a eu não tinha essa consciência porque eu

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fui conscientizada aqui na verdade… [A lógica da coalizão em contraposição à lógica Unila contribuiu nesse processo?] Muito, das dicotomias, pois esses embates ocorrem muito, muito! A conscientização em rela- emergidos em relações de poderes que, ao ção ao racismo foi bem forte! E eu sinto se encontrarem, exigem criatividade para isso parte de mim hoje, entendeu? E eu “ser-sendo”14, nos chamando a atenção para realmente a agradeço muito! as produções de formas de vida que ocor- rem nesses espaços, pois “a multiplicidade Também houve o relato de vivencia- nunca é reduzida” (Ibidem, p. 950). rem o racismo na Unila:

[Já vivenciou racismo no Haiti ou no Brasil?] No Haiti não porque é um país negro. Não tem racismo! Aqui sim! Às vezes na sala Pretensões futuras relacionadas de aula, em ponto de ônibus, terminal, ao país de origem tem… [Você me disse que sentiu racismo na sala de aula…] Sim, mas isso não me preocupa porque eu conheço o que eu As mulheres haitianas entrevistadas sou. E eu tenho capacidade, mesmo que dizem ter pretensões futuras que se rela- eu não tenho capacidade pra falar tudo o cionam ao Haiti. que eu sinto [referindo-se à dificuldade de expressar-se em português], mas eu tenho Eu pretendo, bom, após meus estudos, capacidade pra fazer qualquer coisa!13 não imediatamente, mas, haamm, eu pre- tendo voltar pra lá e… estabelecer…. não Esse relato evidencia que a universi- sei, tipo, eu gostaria de atuar na área da dade não é somente um espaço de respeito às educação, então eu gostaria muito de ir diversidades e construção de saberes outros, pra lá e… tentar uma reforma educacio- mas também um território em que se mani- nal lá e trabalhar também muito com a festam opressões e tentativas de inferio- questão de identidade cultural.15 rizações do outro. Esses posicionamentos encontrados, muitas vezes, tornam-se entra- Joint (2008) afirma que as desigualda- ves que interferem na espontaneidade do des referentes às oportunidades escolares relacionar-se, em limitações que impossibili- no Haiti refletem e perpetuam as discre- tam interlocuções, mas também proporciona pâncias sociais, sendo que, ao longo dos a possibilidade de, a partir da experiência, tempos, as reformas educacionais propos- abrir-se para novos posicionamentos, mais tas não atingiram os resultados esperados, humanizados e empáticos. porém esse pode ser um instrumento de fundamental importância para o desenvol- Maria Lugones (2014) se apoia em vimento social, político e econômico do povo outros autores ao falar da importância da

14 O uso do termo foi mantido conforme a autora 13 Entrevista concedida por Marie-Claire Heureuse Lugones fez uso no texto citado. Félicité Bonheur. 15 Entrevista concedida por Cécile Fatiman.

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haitiano, mas um dos grandes entraves é E o que ficou claro foi que a tradição de que um grande contingente de crianças lutas por mudança nas condições de vida nem sequer tem acesso à escola. no Haiti é um legado do campesinato, uma vez que a questão agrária foi e tal- A entrevistada estudante de Biologia vez até hoje é a questão fundamental também fala de suas intenções de voltar neste país cuja população rural está em para trabalhar no Haiti, dizendo que lá torno de 60%. Enquanto todas as lutas não tem a profissão de biólogas/os e que sociais se travavam em volta da questão acha que são as/os agrônomas/os que dão agrária, a partir da segunda metade do aulas dessa disciplina no Haiti, sendo que século XX, essa questão vem perdendo para a sua inserção no mercado de traba- terreno sistematicamente. Até por que lho também será necessária a abertura do hoje, a reivindicação principal dos cam- mercado para essa profissão – o que por poneses é o desenvolvimento da comu- si só já traria implicações. nidade (Ibidem, p. 307).

Ai, meus sonhos para meu país é… ajudar O autor também nos alerta sobre a as crianças que não têm possibilidades e expulsão sistemática das terras de cultivo fazer políticas públicas na agricultura, que camponeses vêm enfrentando com porque tem uma agricultura muito tra- a instalação de empresas multinacionais dicional no meu país, por isso eu quero no Haiti, fenômeno esse que vem influen- voltar pra trabalhar, pra ajudar… a agri- ciando na escolha por cultivar alimentos cultura familiar não é muito boa pra cujos ciclos são mais rápidos, o que torna as nós porque não tem… Antes, o Haiti era terras propícias a erosões, tendo em vista um país autossuficiente mas agora não. que as terras do país são montanhosas. Porque não tem… o governo não investe na agricultura, não tem máquinas, não A entrevistada Dédée Bazile também tem nada… eu acho que… a agricultura relata desejo de promover mudanças no país tradicional não é boa lá… A gente precisa de origem, dizendo este ter sido um fator de uma agricultura moderna.16 decisivo na escolha do curso de graduação:

Seguy (2014) nos fala da importância É que desde criança eu queria fazer de nos atentarmos para as questões agrá- Engenharia Civil. Daí… depois eu pen- rias no Haiti, tendo em vista que a terra foi sei muito e mudei de ideia, porque eles… explorada como principal fonte de riqueza eles precisavam de ajuda e eles pegavam deste quando imperava o sistema semifeu- tantas pessoas do exterior para ajudar. dal, sendo a terra o elemento central da mais Arquitetura, na planta, no planejamento antiga tradição de luta campesina, acredi- e eu decidi fazer arquitetura, só para tando ser “a partir desta que se deve estudar isso! Para participar da reconstrução do toda a história haitiana” (Ibidem, p. 252). meu país! […] Minha intenção é fazendo mestrado, doutorado, ter uma experiên- cia fora, e depois participar, seja numa

16 Entrevista concedida por Marie-Claire Heureuse organização, numa coisa internacional, Félicité Bonheur. daí pra, porque sozinha uma pessoa não

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vai resolver uma coisa quando, no desen- Essas pretensões mais uma vez que- volvimento de, eu por exemplo pensei bram com a ideia de passividade em que as nas BRs do meu país, nas rotas que são mulheres haitianas são vistas no processo muito ruins! Pense na paisagem que está migratório, pois estas demonstram enten- muito desvalorizada agora. Mas fazendo der sua vinda para cá como parte de um isso, pedir muitas coisas, que você não processo de conhecimento e fortalecimento vai, você vai ter que se juntar com outras que, com o retorno, procurarão utilizar-se pessoas, ajudar antes de receber ajuda em desses instrumentos para realizar trans- troca. Minha intenção é isso! Não visando formações no seu país de origem. o Haiti primeiro porque eu sei que, eu não tenho como fazer isso, mas seguir É importante relembrar que a diver- ajudando os outros, depois receber em sidade de cursos de graduação em que elas troca, e essa troca vai ser no meu país! estão se qualificando pode impactar em potencialidades de transformação de que a Seguy (2014) denuncia o governo e realização de projetos nessas áreas de conhe- as instituições que atuam na reconstru- cimento e atuação podem trazer para o Haiti ção do Haiti como uma indústria lucra- ou para onde elas forem atuar. No entanto, tiva, em que só removem os escombros do também destacamos a importância da pre- terremoto quando os proprietários pagam sença dessas mulheres na academia, onde uma taxa que pode superar 20.000 dólares. vivenciam a possibilidade de questionar e Diante de um cenário em que um conjunto produzir conhecimentos a partir de suas de desastres naturais estão atingindo o país vivências e “a potencial utilidade de se identi- de forma sistemática (terremoto, enchentes, ficar o próprio ponto de vista ao se conduzir furacões) deve ser pensados projetos de uma pesquisa” (COLLINS, 2016, p. 101). reconstrução que reduzam as vulnerabi- lidades presentes no território. Patricia Hill Collins (2016) destaca que a experiência de mulheres negras […] a minha ideia sempre foi realmente na academia pode visibilizar omissões ir lá no Haiti, em algum momento que e distorções no pensamento sociológico, eu tivesse condições, ir lá e ter tipo uma já que essa ciência é produzida por pri- participação ativa lá, de alguma coisa, ir vilegiados18 (homens brancos e seus dis- morar lá um tempo. Eu sempre tive isso cípulos) e estes não conseguem perceber na minha mente! [Já pensou em algumas as falhas dessas teorias por partilharem ações que poderia desenvolver?] Então já, já várias vezes a gente, aqui com o pro- fessor Pablo Felix, tem mais professores 18 A autora Patrícia Hill Collins (2016) faz uso dos ter- que a gente, durante um tempo, discutia mos insider/outsider within; no artigo que utilizamos, muito sobre as questões do Haiti, é… e, traduzido por Juliana de Castro Galvão, a tradutora opta por manter os termos no original, sinalizando tipo, se for pra participar de atividades que não há correspondente em português. Nesta pes- eu sempre estou bem, bem atenta né…17 quisa, opto por utilizar “privilegiados” e “forasteiras/ os de dentro” para sinalizar estas proposições, com a finalidade de tornar esta discussão mais acessível, traduções estas sugeridas pela tradutora como possi- 17 Entrevista concedida por Catherine Flon. bilidades de aproximação com as palavras originais.

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os mesmos posicionamentos. Portanto, as Oliveira (2010) expõe as proposições mulheres negras ao se manterem em um de Haraway para que sejam realizadas teo- posicionamento de criticidade, utilizando rizações feministas que assumam a perspec- de suas vivências como fonte de conhe- tiva de testemunhas modestas, postura esta cimento e fazendo uso da tensão criativa de sujeitos situados que elaboram interpre- para estabelecerem seus pensamentos, tações parciais, cujas produções não visam podem trazer contribuições fundamentais a reprodução para outras situações, pois são tanto para as teorias como para outros contextuais. No entanto, acredito que esse grupos de forasteiras/os de dentro, ou posicionamento diante das produções de seja, grupos minorizados que adentraram conhecimentos pode ser assumido nas pes- o espaço da academia e nunca estiveram quisas elaboradas nas mais diversas áreas, confortáveis diante dos conhecimentos pois não queremos limitações, e saliento a vigentes, demonstrando, a partir desse importância de expandirmos nossas pers- ato, a possibilidade de serem diferentes. pectivas de análise para os mais diversos “A abordagem sugerida pelas experiências campos dos saberes. das outsiders within é de que os intelec- tuais aprendam a confiar em suas pró- De acordo com Nelly Richard (1996), prias biografias pessoais e culturais como quando uma mulher toma a palavra, ela fontes significativas de conhecimento” está adentrando em um espaço de discurso (Ibidem, p. 123). que é formado majoritariamente por regras masculinas, pois a literatura feminina lati- Bell Hooks (2004), em seu livro no-americana é duplamente inferiorizada Ensinando a transgredir: a educação como (pela centralidade do poder ser masculina e prática da liberdade, compartilha a sua ocidental). Tomar a palavra seria uma forma experiência como professora negra uni- de desnaturalizar a realidade atribuindo versitária demonstrando sua atuação novas interpretações, percorrendo novos nesse espaço como uma resistência, pois trajetos conceituais. assume uma postura comprometida com a transformação da realidade ao participar Com isso, a autora demonstra a e propor diálogos e debates políticos que importância de produzirmos nossas pró- quebram com a imposição do silêncio e prias interpretações culturais e dessa forma que se opõem e resistem diante de práti- adentrarmos nas disputas de poder contidos cas opressivas e de exploração. A autora na palavra. Portanto, ao tomar a palavra e também destaca a importância de criar teorizar sobre as vivências ocorridas em comunidades abertas ao aprendizado, pro- nosso território latino-americano, adentra- porcionar espaços de compartilhamento de mos um embate político com a possibilidade experiências e manifestação do multicul- da narração que ao longo da história nos foi turalismo, incentivar a produção de novos negado. Glissant (2015) aponta a necessidade conhecimentos a partir dessas experiên- da escrita – forma de expressão ocidental – cias e da realidade e levar o entusiasmo estar encharcada de oralidade para conti- para dentro da sala de aula, situando essas nuar existindo, concebendo a existência ao atitudes como transgressoras, destacando nomear o que cala, não falando por, mas o valor do trabalho intelectual. aguardando a sua própria palavra e assim

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contribuir para uma nova expressão que que foram ocultos, já que as narrativas e extrapole os limites das escrituras e con- experiências das mulheres são invisibili- tribua para a audiência de uma nova voz. zadas quando esse fenômeno é analisado (PERES, 2016).

A desigualdade, no que se refere ao volume de homens e mulheres que migram, Considerações finais mascara a participação das mulheres, atri- buindo-lhes papéis coadjuvantes, geral- mente ligados à função de reunificação Ao longo deste ensaio, o conceito de familiar (Ibidem, 2016). A autora ainda des- diáspora foi utilizado de forma a extrapolar taca: “Encarar as mulheres como agentes os deslocamentos geográficos e, a partir secundários de processos migratórios, invi- da narrativa das estudantes haitianas da síveis em suas especificidades, implica em Unila e da convivência com a comunidade ignorar complexidades e heterogeneidades” haitiana nesse espaço, procuramos analisar (Ibidem, p. 270). trajetórias, interpretações, deslocamentos de pensamentos e experiências. As mulheres haitianas são considera- das a população de maior vulnerabilidade De acordo com Marilise Luiza por terem maior dificuldade de migração Martins dos Reis (2012), a diáspora se que os homens, já que por desigualdades de apresenta como o lugar das contradições gênero, estes cultivam “hábitos e valores que por se engendrar por meio de adaptações os tornam mais aptos à migração e às escolhas a culturas dominantes e de negociações e das rotas migratórias” (ROSA, 2007, p. 72) estratégias em espaços híbridos e múltiplos, enquanto as mulheres migram em um per- estando, portanto, formando identidades centual significativamente menor, encon- incompletas que produzem identificações trando mais dificuldades no processo na dispersão geográfica e cultural, deixando migratório, e não possuem o mesmo suporte de ser um lugar de lamento, nostálgico, de compatriotas quando são elas que migram para se tornar uma consciência identitária (Ibidem). Do entrecruzamento da violência de (HALL, 2003), que fala de uma experiência gênero com a racial, essas mulheres emergem histórica particular, representando a resis- construindo uma narrativa que desconstrói tência desses movimentos sociais. e realizam novas interpretações (REIS, 2012).

No entanto, é preciso considerar as Embora algumas das mulheres entre- diferenças socialmente construídas nos vistadas tenham vindo para o Brasil com a contextos migratórios e nos entrecruza- pretensão de reunirem-se com familiares, mentos – políticos, econômicos, culturais, suas vivências nesse país extrapolam esses sociais – que mutuamente se influenciam encontros, pois adentraram a universidade e captar as experiências femininas para realizando diversos cursos de graduação análise, considerando os contextos e as e mantiveram uma postura ativa nesse posições de sujeitos específicos, pois essa é espaço, onde utilizaram de diversas estra- uma forma de compreender outros sentidos tégias cotidianas (e por vezes coletivas) de

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resistência e promoveram o alargamento das fronteiras nesse âmbito.

A liberdade de criar, de trazer novas refe- rências visuais, sonoras, espaciais começa a ser assumida como um elemento que possibilita dar outro sentido, e um senti- mento de que é possível vivenciar novos caminhos estéticos, para além daqueles orientados pelo olhar europeu, ocidental, judaico-cristão (Ibidem, p. 168).

Ao analisar as informações obtidas durante a pesquisa, é possível perceber que as mulheres haitianas que estudam na Unila tiveram ao longo da vida acesso à educação formal no país de origem, o que não é a realidade da maioria das mulhe- res desse país. Também se percebeu que participam de uma rede de apoio mútuo com outras/os compatriotas, o que lhes dá força para seguirem os percalços que se apresentam durante esse período.

De acordo com Marilise Luiza Martins dos Reis (2012), o tempo da diás- pora é outro – cíclico, que envolve adapta- ções e resistências às culturas dominantes e a outras presentes naquela configuração [ ANGELA MARIA DE SOUZA ] de espaço-tempo, também a encontros e Doutora em Antropologia pela Universidade identificações com outras formas de viver Federal de Santa Catarina (UFSC). Docente do Curso a negritude, que, por sua vez, também de Antropologia e do Mestrado Interdisciplinar são frutos de moldagens a outras cultu- em Estudos Latino Americanos (PPG-IELA) ras hegemônicas, demonstrando que há na Universidade Federal da Integração Latino uma constante produção e troca cultural Americana (Unila). que produzem novas dinâmicas. A autora E-mail: [email protected] salienta que a migração não é só de pes- soas, mas também de objetos, discursos, [ KARINA SCHIAVINI ] costumes, em que os escambos ocorrem Mestra em Estudos Latino-Americanos pela de forma criativa, ativa, estratégica em Universidade Federal da Integração Latino- diversos âmbitos da vida, sendo sempre Americana (Unila), trabalha como psicóloga no incompleta, pois é produzida nas negocia- município de Chopinzinho-PR. ções, nos “entre-lugares”. E-mail: [email protected]

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Extraprensa, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 48 – 67, jan./jun. 2019 [ EXTRAPRENSA ] AS MÁQUINAS ANALÓGICAS DE REMEDIOS VARO

[ ARTIGO ]

Juliana Michelli da Silva Oliveira Universidade de São Paulo. Juliana Michelli da Silva Oliveira As máquinas analógicas de Remedios Varo 69  

[ RESUMO ABSTRACT RESUMEN ]

Tencionando investigar o imaginário da máquina na obra da pintora hispano- mexicana Remedios Varo (1908-1963), este artigo efetua uma leitura hermenêutica de O relojoeiro (1955), Ícone (1945), Exploração das fontes do rio Orinoco (1959) e Homo rodans (1959), respectivamente três pinturas e uma escultura elaboradas na fase madura da artista. Com base no estudo das obras, a partir da perspectiva da escola francesa de antropologia do imaginário, constatou-se que as máquinas de Remedios Varo agem como articuladoras de saberes (ciência, técnica e arte). Contrapondo-se ao imaginário industrial, no qual os mecanismos ocupam funções utilitárias e são considerados como agentes de desumanização, as obras de Remedios Varo evocam outro imaginário da máquina, no qual o artefato integra as dinâmicas naturais e atua como mediador de conhecimento.

Palavras-chave: Imaginário. Máquina. Remedios Varo. Surrealismo.

With the goal of investigating machine imagery in the works of Spanish- Mexican artist Remedios Varo (1908-1963), this article attempts to obtain an hermeneutic understanding of three of her paintings, El relojero (1955), Icono (1945), and Exploración de las fuentes del río Orinoco, (1959), and one sculpture, Homo rodans (1959). Based on the theoretical framework of the French school of anthropology, this study establishes that Remedios Varo’s machines act as articulators of knowledge (science, technique and art). Opposite to industrial imagery, in which mechanisms occupy utilitarian functions and are considered dehumanizing agents, the works of Remedios Varo evoke another type of machine imagery, one in which artifacts are an integrated part of nature’s dynamics and act as mediators of knowledge.

Keywords: Imagery. Machine. Remedios Varo. Surrealism.

Con el propósito de investigar el imaginario de la máquina en la obra de la pintora hispano-mexicana Remedios Varo (1908-1963), en el presente artículo se efectúa una lectura hermenéutica de El relojero (1955), Icono (1945), Exploración de las fuentes del río Orinoco (1959) y Homo rodans (1959), respectivamente, tres pinturas y una escultura elaboradas en la fase madura de la artista. Basándose en el estudio de las obras, desde la perspectiva de la escuela francesa de antropología del imaginario, se constató que las máquinas de Remedios Varo actúan como articuladoras de saberes (de la ciencia, de la técnica y del arte). En contraposición al imaginario industrial, en que los mecanismos ocupan funciones utilitarias y son considerados como agentes de deshumanización, las obras de Remedios Varo evocan otro imaginario de la máquina, en que el artefacto integra las dinámicas naturales y actúa como mediador del conocimiento.

Palabras clave: Imaginario. Máquina. Remedios Varo. Surrealismo.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2019.157653

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Introdução “cheguei ao México buscando a paz que não tinha encontrado nem na Espanha – a da revolução – nem na Europa – a da terrível A despeito de ter nascido em Anglès, contenda –, para mim era impossível pintar cidade encravada nos Pirineus, na comu- em meio a tanta inquietude” (REMEDIOS nidade autônoma da Catalunha, ao norte VARO apud KAPLAN, 2001, p. 85). de Barcelona, Maria dos Remedios Alice Rodriga Varo e Uranga, ou Remedios Varo Foi nesse período, em solo mexicano, (1908-1963), reconhecia o México como ver- que a pintora produziu as obras que corres- dadeira pátria1. Isso porque nesse país a pin- pondem à sua fase madura. Entre os temas tora encontrou condições favoráveis para o recorrentes dessas obras2, verificou-se a desenvolvimento de sua produção artística presença maciça de máquinas. São meca- e exposição de suas obras, em um período nismos de fiar, rodas, roldanas, moinhos, de crescente violência, disseminação de ventoinhas, trituradores, carrilhões, lune- medo, insegurança e morte da população tas, destiladores, navios, aviões, pedalinhos, civil durante as guerras antirrepublica- barcas, bicicletas, guarda-chuvas voadores nas na Espanha. Em razão das persegui- e diversos engenhos inusitados, compostos ções aos contrários à ditadura franquista, por partes mecânicas e orgânicas constan- antes de residir no México, a pintora já tes na produção da artista. Ao lado disso, tinha feito um périplo que incluía a capital outras obras, como A máquina retardadora, francesa, deixada poucos dias antes de os foram projetadas, mas não realizadas, con- alemães chegarem; breve estadia em Canet, soante Varo (1990, p. 137-138). pequeno povoado perto de Perpignan, ao sul da França; volta a Paris em um trem Sabe-se que a máquina foi um objeto utilizado para transporte de cavalos; deslo- rejeitado durante um longo período pelo camento até Marselha, com travessias até campo estético. O artefato engendrado no Argélia e Marrocos, e viagens em porões seio das artes mecânicas, limitado a funções de navios. Em 1941, finalmente, a pintora bem definidas, desagradável, fora da natureza obtém uma passagem para o continente e anônimo só encontrou seu espaço na arte a americano na qualidade de exilada política. partir do momento em que o belo passou a ter Diante dos recorrentes deslocamentos, que nova definição e a técnica passou a receber desagradavam a artista, foi no México que novos olhares (KRZYWKOWSKI, 2010, p. 11). ela encontrou condições favoráveis, se ins- Embora esse objeto técnico tenha passado talou e permaneceu até o fim de seus dias, a figurar em diferentes campos artísticos e amparada por um programa que estimu- literários, onde pôde diversificar suas for- lava a vinda de estrangeiros espanhóis e mas, expressões e significados, a imagem de membros das brigadas internacionais, aos máquina que ainda se faz mais presente na quais eram oferecidos asilo e cidadania: atualidade é a do arsenal industrial.

2 As reflexões deste artigo são desdobramento 1 “Sou mais do México que de outra parte. Conheço de pesquisa de mestrado sobre a obra de Remedios pouco a Espanha, era muito jovem quando vivi nela” Varo, que desenvolvi na Faculdade de Educação da (REMEDIOS VARO apud KAPLAN, 2001, p. 113). Universidade de São Paulo.

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De fato, a máquina industrial con- que elas articulam são de natureza heteró- duziu a uma suspensão dos diferentes clita e altamente simbólicos. Ao lado disso, usos e significados que as máquinas ocu- a organização e a finalidade das máquinas param ao longo do tempo, reduzindo-as de Varo não se direcionam à superação a mecanismos pautados pela eficiência, de dificuldades impostas pela natureza economia, produtividade, controle rígido e ou a fins meramente utilitários como as racionalidade. No entanto, ainda que pes- máquinas convencionais, e sim à busca de quisadores como Beatriz Varo (1990, p. 138) conhecimento. reconheçam a influência das “máquinas desenhadas por gênios renascentistas, De maneira a reconhecer os con- como Leonardo da Vinci, ou a concepção teúdos veiculados por essas máquinas, mecanicista de Isaac Newton”, o imagi- de início, este artigo expõe alguns fatores nário3 da máquina na obra da artista dis- que influenciaram a produção da artista, tancia-se dessas referências, bem como utilizando uma base documental com- do ideário utilitarista dos mecanismos posta de entrevistas, pinturas, cartas, diá- automáticos e automatizados industriais, rios e cadernos de desenho, nos quais ela representados, por exemplo, no realismo registrava esboços, ensaios e sonhos. No de Ignace-François Bonhommé (1809-1881) momento seguinte, detém-se em quatro e na exaltação da técnica no futurismo de obras de Remedios Varo: três pinturas – O Filippo Marinetti (1876-1944). relojoeiro ou A revelação (1955); Ícone (1945); Exploração das fontes do rio Orinoco (1959) – Subvertendo a lógica de Galileu, e uma escultura – Homo rodans (1959) –, para quem o cientista operava “como um selecionadas a partir de estudo prévio da engenheiro que tivesse de reconstruir as produção da artista. Essa etapa tem por engrenagens e funções da máquina-natu- objetivo identificar qual pensamento sobre reza” (HADOT, 2006, p. 146), transferindo a máquina é veiculado pelas obras, efetuan- os conhecimentos utilizados na fabricação do-se, para isso, uma leitura hermenêu- de artefatos para o estudo da natureza, as tica na perspectiva da escola francesa de máquinas de Varo não convertem os arte- antropologia da imaginação simbólica. Por fatos mecânicos em modelos para fenôme- fim, discute-se o significado das máquinas nos, mas em componentes das dinâmicas na obra de Remedios Varo com base nas naturais. No imaginário de Varo, embora seções anteriores. esteja preservada a acepção mais comum de máquina como combinação de partes e mediação entre sistemas, tanto os consti- tuintes das máquinas como os elementos O microcosmo de Remedios Varo

3 Neste artigo, o imaginário consiste “no conjunto dinâmico de imagens, que veiculam conteúdos simbó- De um lado, o gosto pelas matemá- licos capazes de transformar a maneira como o real é ticas, os desenhos técnicos que esboçava concebido ou percebido. Plano intermediário entre a realidade percebida e o simbólico, o imaginário é o subs- desde a infância, as coleções botânicas e trato da leitura do mundo” (OLIVEIRA, 2019, p. 39). zoológicas que mantinha, as disciplinas

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de desenho científico cursadas na Escola Los disparates. Outra influência da artista de Artes e Ofícios e, depois, na Escola de são os pintores do renascimento italiano, Belas Artes, a elaboração de desenhos cujas obras visitou com seu pai no Museu publicitários para a indústria farmacêutica, do Prado (VARO, 1990, p. 11). Nelas, a pro- bem como o interesse pelas descobertas fusão de formas, a deformação da realidade científicas da época, deixaram marcas na e “a exuberante e acalorada força da ima- obra de Remedios Varo. Em sua produção ginação” (KAYSER, 2003, p. 14) são a regra. artística, as alusões à ciência são frequen- Essas obras expressam a possibilidade de tes: os espaços de atuação dos cientistas novas ordenações dos elementos do mundo, são reconstruídos, fenômenos científicos como sugere o próprio termo que as carac- pouco conhecidos à época ganham forma terizam – grotesco, vocábulo derivado de (Fenômeno de ingravidade, 1963) e alguns grotta (gruta) e utilizado para qualificar as procedimentos da ciência são interrogados ornamentações grottescas, espécies de fan- (Ciência inútil, 1955; Descobrimento de um tasias presentes desde a pintura decorativa geólogo mutante, 1961; Planta insubmissa, antiga, nas quais se destaca a recombinação 1961). De outro lado, também constituem inusual entre seres animados e inanimados. sinais distintivos da produção da pintora a fertilidade imaginativa, a disposição Ao lado dos pintores renascentistas, para inventar histórias, o interesse por a obra de Remedios Varo foi influenciada contos fantásticos e ocultismo, a técnica pelas experimentações surrealistas, apesar minuciosa com a qual materializava seu de não ter se restringido a elas. Do sur- universo onírico e fictício, reconstituído realismo, a artista manteve a “vontade de durante as longas horas no ateliê. No pro- aprofundamento do real, a tomada de cons- fícuo encontro entre a ciência, a técnica ciência cada vez mais nítida e ao mesmo e a arte, Remedios Varo constituirá sua tempo mais apaixonada pelo mundo sen- obra, ideia reforçada por Kaplan (2001, sível”, nos termos de Breton (1986, p. 11). p. 177) quando propõe que a pintora aspi- A aproximação inicial com o movimento rava a uma visão fundamentada “na con- deu-se por meio de conferências, exposi- junção do sobrenatural e da ciência com ções, cinema e poesia, durante sua formação as artes e, abordando a questão com uma na Espanha, e, na sequência, através do mentalidade flexível, curiosa, podia cons- artista catalão Esteban Francés, e também truir um processo criativo de enormes de Marcel Jean e Benjamin Péret, que ser- possibilidades”. viram de ponte com a corrente surrealista.

Entre suas influências artísticas, Remedios Varo passou a frequentar encontram-se o pintor holandês Hieronymus os círculos artísticos surrealistas depois de Bosch (El Bosco), do século XV-XVI, e o pin- rumar em direção a Paris em 1937 e ter de tor espanhol Francisco Goya, do século XVII- permanecer na cidade-luz em razão da vitó- XVIII. Segundo Alexandrian (1997, p. 10), ria nacionalista de Franco na Espanha, que o primeiro poderia ser considerado como impedia o retorno dos republicanos. Nessa um dos mais importantes “visionários pré- época em que conheceu Dalí, Max Ernst, -surrealistas”, e o segundo, “profundamente Magritte e Victor Brauner, a pintora par- surrealista”, sobretudo na série de gravuras ticipava de jogos surrealistas, de exercícios

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de escrita automática e da composição de em sua versão da filosofia surrealista, cadáveres exquisitos (justaposição ao acaso Varo introduz os elementos que eram dei- de palavras e de imagens elaborada por xados à margem da compreensão da rea- vários artistas coletivamente). Relata-se que lidade, fazendo uso de diferentes métodos as reuniões do grupo vanguardista eram de conhecimento – incluindo as ciências verdadeiros testes para os recém-chegados, exatas e biológicas, para além das ciências os quais eram alvo de uma espécie de exame humanas, já incorporadas pelo grupo em de submissão e de tribunais inquisitórios sua proposta de restauração de unidade que avaliavam comportamento dos inte- do pensamento. Em Varo, esses saberes grantes. Ainda que não tenha sido incluída deixam de ser considerados como opos- oficialmente como membro, Varo partici- tos e passam a atuar de maneira comple- pou de exposições e publicações interna- mentar, conforme demonstraremos nas cionais do grupo. próximas seções.

É preciso lembrar que a imagem da mulher no surrealismo estava sujeita a uma forte idealização e tendia a uma valorização da juventude e da beleza. A revelação de um relojoeiro Consideradas próximas das crianças, como apresenta Péret (1985, p. 40), às mulhe- res nem sempre eram reservados luga- Nas obras de Remedios Varo é res de destaque no movimento francês; comum a presença de artistas, artesãos, restritas à esfera privada, à conjugação cientistas e técnicos em meio a suas ativi- amorosa, as mulheres e suas produções dades, envolvidos em pesquisas de campo eram marginalizadas, como demonstrou ou encerrados em seus ateliês e oficinas, Chadwick (1992). No entanto, na pátria de onde realizam suas experimentações Frida Kahlo há uma outra compreensão musicais, picturais, textuais, científicas e do movimento, e observa-se uma frutuosa a produção de artefatos. Nesses quadros, produção autoral feminina, como as de prevalecem figuras solitárias, concentra- Rosa Rolanda, Leonora Carrington, Alice das em seus trabalhos com a matéria, as Rahon, Kati Horna e Bridget Tichenor. quais usualmente são surpreendidas por ocorrências singulares, reveladas durante De fato, na produção de Varo encon- a imersão na atividade. tram-se elementos comuns ao movimento de vanguarda francês, como a valorização Um desses momentos está retra- da compreensão do humano, a ênfase tado na obra A revelação ou O relojoeiro sobre o conhecimento subjetivo e à expe- (Figura 1). Nessa pintura, um técnico de riência vivida, a integração de sonhos, relojoaria encontra-se diante de um objeto mitos e símbolos e a denúncia dos limites luminoso, formado de esferas concêntricas da razão (DUROZOI; LECHERBONNIER, e posicionado próximo à janela do salão 1976, p. 12-17). No entanto, nota-se que onde ele exerce seu ofício. Oito carrilhões a atividade da artista amplia o campo de registram o momento da ocorrência de ori- associações e dos saberes envolvidos, pois, gem indeterminada: meia-noite e quinze.

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No interior de cada um desses relógios conhecimento e cada vez mais obstinado vê-se um uma pequena figura humana pela obtenção do saber total e do poder ocupando o lugar do jacquemart – autômato que dele emana, teria firmado um pacto mecânico cuja função era marcar as horas com Mefistófeles. Essa obsessão faustiana com as pancadas de seu martelo. Sobre a pela onisciência, entretanto, não parece ser mesa do relojoeiro, pequenas engrenagens compartilhada pelas obras de Remedios e roldanas desviam-se dos mecanismos Varo. Nelas, a busca pelo conhecimento que deveriam compor. acompanha e traduz o anseio de transfor- mações de sensibilidade, sem que o poder [ Figura 1] e o reconhecimento sejam referências para O relojoeiro ou A revelação (1955). sua ação, como sugerem as cartas ende- Dimensões: 17 × 84 cm. Óleo sobre reçadas a Gerardo Lizarraga (CASTELLS, masonite. Coleção particular 2008), nas quais discorre sobre o signifi- cado do ofício do artista.

Sobre o objeto numinoso presente em ambas as obras, ele reporta ao micro- cosmo (minor mundus) e macrocosmo (major mundus), isto é, à relação entre o homem e o mundo. Citando a formu- lação de Allers4, Pacheco (2000, p. 10) trata das três formulações mais gerais dessa relação: a primeira baseia-se no compartilhamento de elementos comuns, como a terra, a água, o ar e o fogo, entre o homem e o universo; a segunda propõe Fonte: Kaplan (2001, p. 175) que micro e macrocosmo estão submeti- dos às mesmas leis; e, na terceira, essa Ainda que exibam algumas diferen- relação entre homem e mundo ocorre ças de composição e significado da obra, em nível simbólico e demanda decifra- O relojoeiro de Remedios Varo e a gravura ção. Nesta última perspectiva, o micro- Doutor Fausto em seu ambiente de traba- cosmo poderá se sobressair em relação lho (1652), de Rembrandt, representam ao macrocosmo, sem que haja uma real situações similares. O lugar do técnico de reprodução ou sujeição às mesmas leis, relojoaria é ocupado, na obra do pintor mas correspondências entre algumas de holandês, por um doutor, o qual se encon- suas partes. É nessa vertente que a obra tra igualmente surpreendido com a apa- de Varo parece se situar. rição que insurge pela janela, enquanto perseguia a pansofia. A narrativa que serviu de referência a Rembrandt bem conhecemos; trata-se de um estudioso que,

frustrado com o insuficiente progresso 4 ALLERS, Rudolf. Microcosmus: from Anaximandros dos esforços humanos para a aquisição de to Paracelsus. Traditio, Cambridge, v. 2, p. 319-407, 1944.

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Em A revelação, à imagem de um Speculum Sophicum Rhodostauroticum, de universo mecânico modelado à maneira Theophilus Schweighart Constantiens, de um relógio, surge a visão complemen- pseudônimo de um físico, astrônomo e tar do micro e macrocosmo. As relações alquimista do século XVII (ROOB, 2006, simbólicas presentes nessa pintura per- p. 287). Em uma nova alusão à relação sistem na obra de Varo por meio das equi- simbólica entre elementos naturais e valências e combinações entre elementos artificiais, cósmicos e humanos, duas cósmicos, vegetais, animais, humanos, rodas presas ao veículo acoplam-se por artificiais, oníricos e espirituais, como meio de correias às esferas lunares. Entre em Au bonheur des dames (1956), O outro elas, uma terceira lua, com órbitas bem relojoeiro (1957), A criação das aves (1958) marcadas. Na abóbada estrelada, quatro e Centro do universo (1961), e pelo traçado pássaros direcionam-se às janelas dessa de finas urdiduras que enlaçam homens, torre flutuante, cujo interior revela um artefatos e elementos da natureza, como piso quadriculado na entrada e uma esca- nas obras Simpatia (1955), Flautista (1955), daria ao fundo, que supostamente conduz Três destinos (1956) e Retrato do Dr. Ignacio a aposentos secretos. Logo abaixo do edi- Chávez (1957). fício medieval, notam-se mecanismos de propulsão e deslocamento: uma estrutura alada, outra roda e dois cataventos.

A obra Ícone, como o próprio título Ícone do conhecimento indica, faz menção às pinturas em madeira das igrejas ortodoxas, nas quais presenças misteriosas como santos e anjos eram Ocultada sob duas portas de representadas. Trata-se de imagens do madeira, encontra-se a pintura da obra invisível em que se expressam experiên- Ícone (Figura 2). Ao serem abertas, vê-se cias com o sagrado e que servem de canal uma imagem fortemente simbólica: de comunicação entre o devoto e o divino. no topo, um círculo contendo o enea- Em Remedios Varo, não são figuras angé- grama associado à filosofia de autoco- licas que ocupam o centro da obra, mas nhecimento do místico armênio George uma estranha máquina, um veículo de Gurdjieff5 e, logo abaixo, uma máquina sabedoria. Não é por acaso que a viatura em forma de torre, semelhante ao veículo tenha forma de torre. No registro sim- de sabedoria, o templo rosacrucianista bólico, as estruturas longilíneas como montanhas, torres, árvores e altas cate- drais, recorrentes na obra de Varo, são 5 Ao lado de Gurdjieff, Varo interessava-se pelas erigidas à imagem do axis mundi, centro ideias de Jung, Ouspensky, Helena Blavatsky, do mundo capaz de conduzir o homem às sufismo, alquimia, I Ching, lendas do Santo Graal, alturas, religando-o ao inefável através “considerando que cada uma delas podia ser um caminho para chegar a conhecer-se e transformar a de percursos iniciáticos, que podem ser consciência” (KAPLAN, 2001, p. 164). acompanhados de provações.

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[ Figura 2 ] abrangem não apenas fenômenos mate- Ícone (1945). riais, mas também ocorrências de cunho Dimensões: 60 cm × 70 cm × 35 cm espiritual e sensível. (aberto); 60 cm × 39,3 cm × 5,5 cm (fechado). Pintura sobre madeira dourada Nota-se, portanto, que as conste- com incrustações de madrepérola lações de imagens de máquinas da obra de Varo distanciam-se do imaginário no qual o artefato é concebido em oposição à natureza, bem como dos mecanismos que incorporam os seres humanos como parte de suas engrenagens, desumani- zando-os. Ao converter a máquina em veículo de conhecimento, em mediadora do contato entre o humano e o sagrado, a pintora retoma as antigas aplicações da máquina, quando eram utilizadas em ritos, oráculos e como receptáculo para deuses, uso que remonta à Antiguidade (OLIVEIRA, 2019, p. 78 et seq.).

Fonte: Coleção Museo de Arte Latinoamericano de (MALBA) Exploração das fontes

Em suas pesquisas, Kaplan (2001, p. 8) propõe que Remedios Varo recorria a dife- Inspirada numa viagem realizada pelas rentes ramos do conhecimento como paisagens exóticas da Venezuela, a obra alquimia, magia e ciência “a fim de buscar Exploração das fontes do rio Orinoco (Figura 3) inspiração para suas inovações temáticas trata de uma jornada que se desenrola em um e estilísticas em um amplo repertório de ambiente incerto, que tanto poderia ser uma fontes visuais e literárias. Queria saber floresta inundada como um adensamento de como funcionavam as coisas e queria nuvens perto do topo das árvores. Os troncos saber por quê. Estabelecia hipóteses e as que balizam o trajeto não fornecem maiores explorava pintando”. No entanto, supondo pistas sobre o espaço em que esse incomum que Remedios Varo utiliza a tela como tráfego ocorre. Na pintura, observa-se um um espaço de exploração de hipóteses, personagem andrógino pilotando um veículo ou ainda de organização do conheci- ovalado cujo revestimento é um paletó com mento, o interesse por diferentes áreas grandes lapelas e bolsos laterais. A impulsão do saber parece ser menos motivado por da embarcação é fornecida por asas locali- uma inovação de temas e estilos do que zadas na parte superior e por barbatanas pela exploração de repertórios que pudes- situadas na parte traseira, inferior. O con- sem atender às indagações da artista, que dutor está literalmente vestido pelo veículo,

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que lhe serve de capa e chapéu. A direção da [ Figura 3 ] barca se dá por meio de transmissão de movi- Exploração das fontes do rio Orinoco mento, através de cordões que perpassam o (1959). Dimensões: 44 cm × 39,5 cm. cinto e botões das roupas do personagem; Óleo sobre tela. Coleção particular já a orientação deve-se à pequena bússola que se encontra logo à frente, numa espécie de painel. O veículo está aportado diante de uma árvore escavada cujo interior seria constituído de diversas salas e corredores – como na torre de Ícone. Logo na abertura da árvore, nota-se uma pequena mesa com um cálice, donde jorram três filetes de água. Estes abastecem o canal em que se desloca a embarcação.

Além de ser resultado da mistura entre elementos animados e inanimados, ocorrência comum a outras obras de Varo, como Trovador (1959), o veículo, a embar- cação ou a máquina media o encontro do personagem com uma taça. Objeto de forte Fonte: Kaplan (2001, p. 168) cunho simbólico6, o recipiente transbor- dante, fonte do percurso e, ao mesmo tempo, Em algumas versões, como a narrada propósito a ser alcançado, dialoga sobretudo por Whitmont (1991, p. 173), o Graal corres- com as narrativas do cálice sagrado, com ponde à taça na qual Cristo bebeu durante a o mito do Santo Graal que se organiza sob Santa Ceia. Nessa versão, José de Arimateia, numerosas versões e possui influências responsável pelo enterro de Cristo, teria diversas; nele se encontram “traços da tra- utilizado o cálice para coletar o sangue das dição alquímica e dos mitos clássicos, da feridas do cadáver. Mas, com o desapare- poesia árabe e dos ensinamentos sufistas, cimento do corpo, foi preso e colocado em da mitologia celta e da iconografia cristã” jejum. Só pôde manter-se vivo pois o próprio (MATTHEWS apud WHITMONT, 1991, p. Messias teria aparecido para ele no cárcere, 173). Tendo essas variações em vista, o mito devolvendo-lhe o recipiente, o qual era abas- do Graal reúne histórias sobre a busca de tecido diariamente com uma hóstia por uma um cálice sagrado por lendários cavaleiros, pomba. Ao ser libertado da prisão, em exílio os quais tiveram que enfrentar diversos com um grupo, José erigiu a primeira távola obstáculos para atingir seu objetivo. do Graal, em alusão à távola da Santa Ceia, para a celebração da missa.

Passado algum tempo, foi construído um templo na Montanha da Salvação e orga- 6 Similar taça pode ser encontrada em outras obras de Remedios Varo, como Nascer de novo (1960) e nizado um grupo para protegê-lo, o que deu Argonautas (1962). origem à segunda távola. Então, na sequência

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do mito, um guardião do Graal denominado O personagem, assim como cada um dos de Rei Pescador foi atingido por uma lança, cavaleiros da távola redonda, também pois teria quebrado algum de seus votos. Com empreende uma jornada iniciática, soli- isso, perdeu o Graal, causou a desertificação tária e pessoal em direção ao cálice, fonte das terras e passou a ser conhecido como da vida. Em termos simbólicos, a água que Rei Ferido. No registro simbólico, segundo transborda da taça, ânfora ou nascente, Campbell (2007, p. 206), essa ausência da localizada ao pé da árvore do mundo, como fertilidade da terra é consequência da susten- atesta Whitmont (1991, p. 177), refere-se à tação de uma vida inautêntica, “fazendo o que iluminação e sabedoria. Já o cálice, o Graal, os outros fazem, fazendo o que são mandados “representa o caminho que se estende a fazer, desprovidos de coragem para uma entre os pares de opostos, entre o medo e vida própria. Isso é a terra devastada”. o desejo, entre o bem e o mal” (CAMPBELL, 2007, p. 206). Por fim, cabe reforçar que na Na sequência, a terceira távola7 foi obra Exploração das fontes do rio Orinoco a estabelecida na corte do rei Artur e contava máquina cumpre o papel da condução do com cavaleiros de alta estirpe que em volta personagem ao encontro da taça, servindo dela se reuniam. Motivados pela busca do como veículo para o conhecimento. Graal, cada um dos cavaleiros seguiu um caminho diferente e passou por provas ini- ciáticas que testavam sua capacidade de fazer a pergunta certa, capaz de cicatrizar a Homo rodans ferida do rei e da sociedade. Nessas lendas, o Graal equivale a um recipiente fabuloso, “um manancial de vida, de águas geradoras Em 1959, durante o período em que e restauradoras, e uma cornucópia de nutri- se recuperava de uma lesão na coluna, ção […] É a fonte inesgotável de alimento Remedios Varo dedicou-se à composi- e sustento, de alegria, prazer, celebração” ção de sua única escultura: Homo rodans (WHITMONT, 1991, p. 174). Também cor- (Figura 4). Composta de ossos de aves e de responde a viver uma vida autêntica, a peixe, a escultura de 42 centímetros figura realizar as potencialidades da consciência como um eixo em cuja extremidade supe- humana e à abertura do coração humano a rior encontra-se um crânio e, na inferior, outro ser humano, como sugere Campbell uma roda. Em um arranjo ósseo original, o (2007, p. 208). alto da caixa craniana exibe um penacho, convertendo a cabeça em uma espécie de Diante da pintura de Remedios capacete. Homóloga a um cavalo-marinho, Varo, não é difícil associar a taça trans- a figura tem como base uma estrutura bordante com o cálice do Graal e a árvore delgada que se enrola sobre si mesma, for- escavada com a Montanha da Salvação. mando uma roda com raios, o que leva a supor que se desloque girando. Similar a pequenas asas, as omoplatas equilibram-se em um tórax simplificado e, logo abaixo, 7 Também conhecida como távola redonda, cuja forma propiciava a participação igualitária dos mem- nota-se uma estrutura similar a um qua- bros na tomada de decisões. dril ou bacia.

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A produção dessa escultura inclui corpo humano, a reafirmação da identi- uma narrativa que propõe uma versão alter- dade do homem como um ser fabricante e, nativa à origem do homem: Homo rodans por fim, o entendimento do homem como seria o predecessor do Homo sapiens. Para instrumento, no qual o mundo fabricado a constituição da teoria, assinada pelo sábio e o mundo natural convergem8. alemão Von Fuhrängschmidt, um autor fictício, a artista contou com Jan Somolinos [ Figura 4 ] Palencia, amigo médico que auxiliou nas Homo rodans (1959). citações em latim inventado e na argumen- Dimensão: 42 cm de altura. Composição: tação erudita direcionada aos antropólogos ossos de aves, restos de peixe e arame e arqueólogos (VARO, 1990, p. 141).

Ao mesmo tempo que ironiza a retó- rica científica e as maneiras pelas quais a ciência fabrica a seriedade de seus enun- ciados e procedimentos, Homo rodans atua como uma figura de síntese, traduzindo um pensamento sobre a máquina que per- passa a produção de Remedios Varo. De início, a estrutura da escultura indica uma fusão entre homem e artefato (roda) – ou ainda, considerando que o movimento rotativo corresponde “à forma primeira, mítica e simbólica da máquina” (BEAUNE, 1980, p. 137) –, entre o homem e a máquina. Propondo que o ancestral do homem seja o Homo rodans, Remedios Varo reafirma a importância do passado técnico na for- mação da humanidade, mas reposiciona o impacto da fabricação de ferramentas pelo Fonte: Kaplan (2001, p. 145) Homo habilis no processo de hominização. Em vez de simplesmente serem exten- No entanto, a obra Homo rodans não sões corporais, os artefatos literalmente parece fazer apologia à extensiva manipu- formam um continuum com o corpo do lação da natureza com vistas à criação de fabricante e, por conseguinte, modificam um mundo segundo a imagem e apetites a maneira como ele percebe e concebe o humanos. Investidas nesse sentido são mundo, quer dizer, se os homens passam satirizadas pela autora, como se constata a construir suas percepções e concepções na obra Visita ao cirurgião plástico (1960), de mundo por intermédio dos artefatos que fabricam, a dinâmica destes passa a integrar a dinâmica daqueles. Eis o que 8 Talvez os entusiastas do transumanismo des- locassem essa escultura para o fim da genealogia, a escultura sugere: a representação da vendo no Homo rodans uma prefiguração do cibor- interferência das dinâmicas técnicas no gue, o organismo cibernético do futuro.

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na qual se vê uma figura de nariz avanta- como veículo de conhecimento; e a escultura jado surpreendida ao tocar a campainha de Homo rodans materializa uma sugestiva pro- uma “Clínica Plastoturgência”, espaço que posta da relação entre o homem e a técnica. coroa seus prodígios exibindo na vitrine uma criatura com seis mamas, à maneira Nessas obras, a busca do conheci- de Artêmis de Éfeso, onde se lê “Superemos mento é um tema comum. Em O relojoeiro, a la naturaleza. En nuestra gloriosa era plas- manifesta-se como uma revelação; em tinaylonitica no hay limitaciones/ Osadia/ Ícone, ocupa o lugar da relíquia religiosa; Buen gusto/ Elegancia y turgencia es nuestro em Exploração das fontes do rio Orinoco, con- lema/ On parle français”. verte-se em trajeto iniciático; e, por fim, em Homo rodans, é uma fantasia imaginativa A onipresença de rodas e bicicletas tratada de maneira séria. Nessas obras, as em obras como Premonição (1953) e Ciência máquinas não auxiliam os empreendimentos inútil (1955), de estruturas rotiformes aco- da ciência moderna na constituição de um pladas às vestimentas de personagens saber redutor, nem parecem amparar o cien- como em Vagabundo (1958), na extensão tista na predição dos fenômenos. Ao contrá- de barbas e bigodes (Locomoção capilar, rio, as máquinas mediam a articulação de 1960), ou em substituição das pernas e pés elementos cósmicos, biológicos, sensíveis, do personagens, como em Au bonheur des simbólicos e pessoais, funcionando como dames (1956), Os caminhos tortuosos (1958) e agentes de complexificação e de veículo Homo rodans (1959), reforça a importância para a busca empreendida pela artista. Com do acoplamento, da ligação e da combinação suas máquinas, Remedios Varo interroga as de elementos fabricados e naturais entre bases sobre as quais se assenta o real, ali- os procedimentos da artista, que retoma a menta as dúvidas científicas com imagina- acepção da máquina como mediadora, tanto ção e alarga os horizontes do conhecimento. do ponto de vista material como simbólico. A complexificação efetuada pelas máquinas de Varo não corresponde apenas à amplia- ção de dados computáveis ou ao aumento das capacidades humanas. Seus mecanis- mos funcionam na base analógica, asseme- O macrocosmo de Remedios Varo lhando-se aos suportes físicos que assumem valores contínuos, em contraposição aos digitais, os quais possuem valores bem Com base no estudo das obras efe- definidos, em número limitado. Consoante tuado nas seções anteriores, sugeriu-se Morin (2005, p. 100): “o digital separa o que a pintura O relojoeiro trata do encontro que é ligado; o analógico une o separado. A entre duas perspectivas de organização do complementaridade permanente assegura e real (mecanicismo e micro/macrocosmo); fecunda o conhecimento”. Assim, operando em Ícone constata-se o lugar reservado à como articuladoras de saberes, as máquinas máquina na produção da artista e a integra- analógicas de Remedios Varo tratam as ção da máquina aos fenômenos naturais; em práticas artísticas, artesanais, científicas Exploração das fontes do rio Orinoco tem-se e técnicas como formas complementares uma mostra de como a máquina pode atuar da busca do conhecimento.

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Na obra de Varo, para se conhecer A analogia desenvolve-se em duas vias. algo, isto é, ter noção de alguma coisa, saber Uma, abstrata e racional, apareceu entre que alguém ou alguma coisa existe, ou ainda os antigos gregos para designar, numa atingir o estado daquele que tem o sentimento análise de proporcionalidade, a igualdade de sua existência9, é preciso estabelecer rela- de duas relações matemáticas. A segunda ções. Por isso, em muitos aspectos, a busca do vai de semelhança em semelhança para conhecimento em sua obra se assemelha à estabelecer parentescos ou identidade. A revisitação de uma alquimia ou de um conhe- multiplicidade de situações ou de aconte- cimento mágico, no qual “o ego se insere na cimentos análogos conduz à indução, um universal analogia do cosmo” (MORIN, 1997, modo de conhecimento animal, humano p. 99). Esse conhecimento nasce da convicção e científico. O estabelecimento de analo- de que existe um “vínculo comum que une gias organizacionais ou funcionais, como todas as coisas – que a separação entre ele e o feedback negativo, em entidades de os diferentes tipos de objetos naturais é, afinal natureza diferente (máquinas artificiais, de contas, artificial e não real” (CASSIRER, seres vivos, sociedades), é incontestavel- 2005, p. 156); supõe a interpenetração entre mente racional. Nestes últimos casos, a o mundo humano e o mundo natural, a cor- analogia é controlada e não identifica respondência entre o microcosmo e o macro- umas com as outras as entidades de cosmo e é operado por analogia. natureza diferente. Em contrapartida, no pensamento poético ou mitológico, a Sabe-se que a correspondência ana- analogia estabelece, onde a lógica separa, lógica entre microcosmo e macrocosmo é ligações e identificações. a base do pensamento mitológico10. Assim, pode-se sugerir que, na busca do conheci- Ao estabelecer ligações e identifica- mento por meio da religação dos saberes, ções, o pensamento mitológico pode associar- Remedios Varo reencontra os fundamentos -se a uma perspectiva animista, atribuindo do conhecimento, as formas iniciais, os pri- aos seres inanimados as características dos meiros moldes da consciência humana, isto seres animados, isto é, astros, montanhas, é, os mitos. No entanto, apesar de a analogia paredes, cálices, máquinas e outros artefa- encontrar seu ápice no pensamento mítico tos tornam-se viventes. Não se sabe onde e poético, o conhecimento científico tam- termina a natureza e começa a fabricação bém faz uso da analogia, tornando-a alvo humana. Nessa perspectiva, não há desejo de testes, como explica Morin (2005, p. 99): de dominação, pois o homem não ocupa a posição de senhor do mundo, mas de cúm- plice da criação. Eliminadas as fronteiras 9 Definições extraídas do verbete CONNAÎTRE. entre os reinos, há trânsitos, combinações, In: OUTILS et ressources por un traitement optimisé metamorfoses e comércios entre os elemen- de la langue (Ortolang). França: Centre National de Ressources Textuelles et Lexicales, 2012. Disponível tos. Ademais, ao transformar a pintura em em: www.cnrtl.fr. Acesso em: 20 abr. 2019. veículo de conhecimento, a ação da artista 10 Neste artigo, os mitos correspondem às narrativas não se restringe apenas ao trabalho com a que têm por objetivo conferir sentido às ocorrências matéria, mas também ao trabalho sobre si. inexplicáveis do mundo, ou ainda, consoante Campbell (2007, p. 5): “são histórias de nossa busca da verdade, As metamorfoses da matéria ocorrem ao de sentido, de significação, através dos tempos”. lado da transformação da interioridade.

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Nesse universo surréel, organizado a pragmáticos das ciências nunca se liber- partir do circuito, da circulação, do fluxo e tem completamente do halo imaginário” da articulação, as máquinas de Varo põem (DURAND, 2001, p. 61). em xeque as usuais categorias das quais fazemos uso para organizar o mundo, e apenas na desorientação trazida pela incer- teza, no exercício de novas referências, na ação imaginativa, pode-se admitir novas perspectivas de (re)conhecer o real. Em Varo, a imaginação não é apenas combus- tível do poético, mas um dos propulsores da pesquisa nas ciências, como comentou Kaplan (2001, p. 175), em sua análise de O relojoeiro: “nesta obra, em vez de ridiculari- zar a miopia, a arrogância ou a demência da rigidez científica, a pintora a elogia em seu aspecto mais satisfatório, quer dizer, como disciplina criativa aberta ao maravilhoso”.

Com efeito, quanto maior for a capacidade de articular conceitos e ima- gens, reconhecer imagens limitantes e empenhar-se na busca de outras poten- cialmente mais frutuosas, maior a possi- bilidade de o conhecimento ir mais longe. Dessa maneira, em vez de negar essa “máquina de transformar imagens mentais” (WUNENBURGER, 2011, p. 26), a ciência poderia reconhecer em suas representa- ções “os recursos cognitivos dos símbolos e mitos (plurivocidade, analogia)” e, com isso, a racionalidade poderia “atuar em sinergia com a imaginação, […] associada a exercícios de variações, de combinações, de inova- ções nas representações mentais”, como sugere Wunenburger (2003, p. 265, 266). [ JULIANA MICHELLI DA SILVA OLIVEIRA ] Afinal, não devemos nos esquecer que as Doutora em Educação (2019) pela Universidade formas simbólicas (linguagem, mito, reli- de São Paulo (USP), com estágio de pesquisa gião, ciência, técnica) repousam sob bases (2017-2018) no Centre de Recherche Imaginaire et comuns, isto é, no subsolo dos conceitos há Socio-Anthropologie da Université Grenoble Alpes, “seu molde afetivo-representativo, o seu França. Mestre em Educação, graduada em Letras e motivo arquetipal, e é isso que explica igual- em Ciências Biológicas pela USP. mente que os racionalismos e os esforços E-mail: [email protected]

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Extraprensa, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 68 – 84, jan./jun. 2019 [ EXTRAPRENSA ] EL GESTAR Y EL PARIR EN TRAILER DE NICOLA COSTANTINO

[ ARTIGO ]

Carmen Rocher Universidad Nacional de las Artes. Carmen Rocher El gestar y el parir en Trailer de Nicola Costantino 86  

[ RESUMO ABSTRACT RESUMEN ]

O objetivo deste trabalho é analisar a representação da gravidez e parto na obra Trailer, de Nicola Costantino. A hipótese inicial é que, desde o advento do feminismo, representações da maternidade questionadoras do patriarcado foram introduzidas na arte contempo- rânea. No caso particular da gravidez e do parto, desde os tempos modernos, eles foram apropriados pela ordem masculina. O discurso medicinal e o disciplinamento do corpo feminino tiraram das mulheres o domínio sobre nossas próprias gestações, censurando experiências e práticas transmitidas ancestralmente entre as mulheres. Diante desse cená- rio, nosso trabalho procura observar como a arte contemporânea continua promovendo o domínio dessa ordem patriarcal ou questionando-a, produzindo novas possibilidades para conceber a gravidez e o parto promovendo a transformação social que isso implica.

Palavras-chave: Arte Contemporânea. Gravidez. Gestação. Parto. Feminismo.

The objective of this article is to analyze the representation of pregnancy and childbirth in the work Trailer, by Nicola Costantino. The initial hypothesis is that since the advent of feminism representations of motherhood that question patriarchy have been introduced in contemporary art. In the particular case of pregnancy and giving birth, since modern times, they have been appropriated by the male order. The medicinal discourse and the disciplining of the female body has taken from women the domination over our own pregnancies, censoring experiences and practices transmitted ancestrally among women. Faced with this scenario, our work attempts to observe how contemporary art continues to promote the dominance of this patriarchal order or questions it, producing new possibilities to conceive pregnancy and childbirth promoting the social transformation that this implies.

Keywords: Contemporary Art. Pregnancy. Birth. Feminism.

El trabajo tiene por objetivo analizar la representación de la gestación y el parir en la obra Trailer de Nicola Costantino. La hipótesis de partida es que desde el advenimiento del feminismo se han introducido representaciones de la maternidad en el arte contempo- ráneo que cuestionan el patriarcado. En el caso particular de la gestación y el parir, desde la modernidad, han sido objeto de apropiación por parte del orden masculino. El discurso medicinal y el disciplinamiento del cuerpo femenino nos ha arrebatado a las mujeres el domino sobre nuestras propias gestaciones, censurando experiencias y prácticas que an- cestralmente se transmitían entre mujeres. Ante este escenario, nuestro trabajo intenta observar cómo el arte contemporáneo continúa fomentando el domino de este orden patriarcal o lo cuestiona produciendo nuevas posibilidades de concebir la gestación y el parto promoviendo la transformación social que esto implica.

Palabras claves: Arte Contemporáneo. Gestación. Parto. Feminismo.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2019.157643

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Introducción Sau (2004) ha observado cómo desde la mitología griega, las religiones, la cien- cia y demás discursos ordenadores de la Este artículo es el inicio de un estudio vida social han desarrollado dos figuracio- mayor que tiene por objetivo indagar los nes de las madres: las “madres para” y las sentidos que generan las representaciones “madres invisibles”. Las primeras son sim- de las mujeres gestantes y el acto de parir ples medios para un fin ajeno a ellas mismas en el arte contemporáneo. Con la moder- y, las segundas, desaparecen en pos de que nidad se ha venido dando un proceso de el nacimiento del ser humano quede como disciplinamiento del cuerpo de la mujer que un don otorgado a los hombres-padres. La la despojó de saberes y sensibilidades liga- madre es simplemente la portadora de una dos a la gestación y el parto. Las prácticas semilla masculina, como lo dictamina el y conocimientos del gestar y el parir que tribunal de Atenas en Las Euménides o no pertenecían a las parteras y se transmitían existe como en el mito de que los niños los de manera comunitaria entre las mujeres trae una cigüeña desde París. Esas sosteni- fueron desplazados por el discurso de la das negaciones de la mujer-madre liberan medicina (RODRIGÁÑEZ BUSTOS, 2007). al ego masculino de la dependencia más Su lógica racional y falocéntrica abordaron natural y básica, lo que le permite apropiar el cuerpo de la mujer embarazada como un de ese lugar vaciado (AMORÓS, 1992). De objeto biológico susceptible de ser medido ahí que el concepto de madre sea un signi- e intervenido. El hogar como espacio para ficante llenado por el patriarcado, porque parir con el apoyo de otras mujeres fue lo que ha de ser una mujer-madre se define reemplazado por el hospital donde la emba- desde su lógica. Una de las formas de ese razada se somete a las lógicas y necesidades vaciamiento y dominación es la adminis- de instituciones patriarcales. La expresión tración masculina de la gestación y el parto, más nítida de su racionalidad se da en el dis- tal como explicábamos arriba. positivo de las camas de parto que obliga a la mujer a estar boca arriba, posición cómoda Ante este escenario, nuestra hipótesis para el obstetra pero antinatural para parir. es que desde la aparición del feminismo se han introducido en el arte contemporá- Este proceso de dominación que se fue neo representaciones del gestar y parir que dando sobre la gestación y el parto por parte cuestionan los imaginarios del patriarcado. del discurso y las instituciones médicas Nuestro objetivo es intentar describir los conllevó una pérdida de los conocimientos diferentes modos en que se producen esas generados desde la sensibilidad femenina y representaciones y reflexionar qué hay de un creciente bloqueo de la emocionalidad de ellas de libertario y qué de sometimiento la embarazada que terminó depositando en al verosímil social del “deber ser” de una los médicos la capacidad de interpretar los madre. Cómo advertimos al inicio, lo que cambios que sufre su cuerpo al gestar una aquí presentamos es sólo un comienzo de nueva vida. Tal apropiación del patriarcado una investigación, en este caso analizaremos sobre un territorio biológicamente feme- la obra Trailer (2010) de Nicola Costantino. nino es coherente con siglos de negación Para ello, utilizaremos como marco teó- de la madre en los mitos occidentales. rico la teoría de la sociosemiótica de Verón

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(1987, 2013) y las herramientas metodo- de la artista que a la noche llega a un des- lógicos provenientes de la semiótica dado campado manejando un auto y, actuando que pretendemos describir las operaciones tensa y con premura, saca algo del baúl productoras de sentido de los significantes que arrastra por el lugar, sin que la cámara “mujer gestante” y “parir” en la obra. muestre qué es. Por otro lado, se desarrolla la historia de la artista divido por tres frases. La del inicio es “Lo soñado”, allí se muestra que Nicola se hace un test de embarazo que le da positivo y sonríe ilusionada. Luego, en Trailer, Nicola Costantino lugar de preparar la habitación del niño o algún tipo de actividad acorde, se pone a fabricar una muñeca o escultura idéntica Trailer es una instalación exhibida en a ella. Cuando la termina, su embarazo ya el 2010 en el espacio de arte de la Torre de está avanzado y llevando a la muñeca, va YPF. La obra está compuesta por una serie al hospital donde tiene a su hija. Al finali- de trailers enfrentados a una cartelera que zar esta secuencia, se devela que lo que la anuncia una película llamada Trailer. En una artista arrastra por el descampado es esa se muestra a la artista construyendo una muñeca que construyó. La segunda frase muñeca idéntica a ella, en otra a la artista es “El doble es lo ominoso”. En este tramo, embarazada confeccionando la ropa para la muñeca acompaña a Nicola en su vida esa muñeca, luego a ella viendo televisión cotidiana con su bebé, pero su presencia la con la muñeca, estando juntas en la habita- inquieta, le molesta y toma una decisión ción de partos con la recién nacida y, en otra, que le cuesta. Al terminar esta secuencia a la artista abrazando a su beba mientras se vuelve a la primera temporalidad y se la muñeca la mira a su lado. Las puertas de ve a Nicola que arrastró a la muñeca hasta los trailers están cerradas pero sus interio- una escalinata. Allí aparece la tercera frase res pueden verse a través de las ventanas. “Lo inevitable”, en donde vemos que dubi- Cada uno representa uno de los espacios que tativa y, con gran esfuerzo, Nicola empuja aparecen en la cartelera. El primero es el la muñeca por la escalinata. taller donde la artista fabrica la muñeca. El segundo, el taller de costura donde confec- Junto con estos materiales, la artista ciona la ropa con que la viste. El tercero es la expone un texto que propone una lectura habitación de una niña recién nacida. En el sobre la obra: cuarto se ve a la muñeca hecha pedazos en el suelo. Y en el último se proyecta un movie El doble muestra un amplio pasado lite- trailer titulado Trailer que es el anunciado rario y cinematográfico. Desde el roman- por la cartelera. Se despliega así un juego ticismo, con Medardo de Hoffmann, Dr. polisémico entre el vehículo-vivienda, el Jekyll de Stevenson y Dorian Gray de corto y el nombre de la película. Wilde, hasta nuestros días con Doble de cuerpo de De Palma y La doble vida de En el movie trailer se narra una his- Verónica de Kieslowski. Es en el doble toria desarrollándola en una doble tempo- donde se basa el concepto de identifica- ralidad. Por un lado, se muestra la situación ción del psicoanálisis, definido por Freud:

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el doble es lo ominoso, es decir, lo familiar la gestación y el parir en la obra prestando desconocido, lo tan conocido que resulta atención a la manera en que se entrelazan extraño y produce horror. Para Jung, el los temas, motivos (SEGRE, 1985) y los vero- doble es la Sombra. Según el dramaturgo símiles (BARTHES et al., 1970). sueco Strindberg, si uno ve a su doble sig- nifica que va a morir. La Nicola artefacta existe por obra de mi creación; su alteri- dad refuerza mi identidad. Dos cuerpos, una sola alma. El mejor encuentro es Figuraciones en tensión con uno mismo; mi doble es un antídoto contra la soledad. Cuando dos elementos llegan a tal nivel de similitud, la relación Como advertían Barthes et al. (1970) se vuelve emotiva, la afinidad y fami- acerca de los verosímiles cinematográficos, liaridad liberan una energía positiva y ningún texto está completamente sometido empática que se incrementará hasta un al verosímil social ni escapa enteramente punto en que la respuesta emocional se a él. Entendiendo al verosímil social como convierte en un fuerte rechazo y negati- una censura ideológica de los posibles para vidad. La Nicola artefacta es un extraño una sociedad y que existe una hegemonía cadáver viviente. Mi doble, idéntica a mí patriarcal en esa regulación de los posibles, pero sin estar embarazada, interactúa nos ocuparemos a describir la manera en que conmigo embarazada. Ella aparece escin- Nicola muestra a la mujer gestante y el parir. dida de la originaria, y en un momento Partiremos, entonces, del tema que la artista se torna amenazante y perversa. En la señala como central de la obra: el doble. obra de Borges, el doble es un gran tema. Al respecto escribió: “Al otro Borges es a Como indica Nicola, el doble como quien le ocurren las cosas [...] Sería exa- motivo de lo siniestro se desarrolla en el gerado afirmar que nuestra relación es romanticismo. Previamente, desde la anti- hostil; yo vivo, yo me dejo vivir, para güedad, es un extendido recurso dramático que Borges pueda tramar su literatura para narrar enredos y equívocos risibles y esa literatura me justifica”. Años des- en las comedias. Pero a partir del roman- pués cambiaría la opinión sobre su doble: ticismo, el tema del doble, pasa a ocupar “Minuciosamente lo odio. Advierto con un lugar destacado recreando un clima de fruición que casi no ve”. Uno se odia y tensión y suspenso que, en muchos casos, se ama a la vez, sin ser más que víctima concluye de forma ambigua. Ahora bien, de sí mismo1. el tratamiento que Nicola le da al motivo del doble encuentra parecidos al dado por el Descriptos los elementos que compo- romanticismo, pero también diferencias sig- nen la exhibición, intentaremos ahora ana- nificativas. Según Lobo Polidano (2010), los lizar la manera en que aparece representada relatos de aquel momento comparten los siguientes elementos:

1 Disponible en: http://bit.ly/2YxDn8v. Acceso en: Sus protagonistas son personajes soli- 10 nov. 2015. tarios. La aparición del “otro yo” es

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impactante, fascina y atrae al héroe. Se con el embarazo y deja de estar sola, ahora desarrolla una rivalidad con el otro nor- la acompaña otro ser vivo, su bebé. En la malmente en términos de estatus social convivencia con estos motivos, el doble y éxito sexual. La aparición sorpresiva adquiere un valor semántico distanciado de un elemento que se reitera. La caída del construido en los relatos románticos. El en la locura o desesperación del protago- relato de Trailer habla sobre una renuncia, nista. El suicidio o aniquilación del otro la renuncia de la protagonista de dejar de provocando la propia muerte. ser la mujer que era antes para asumirse como la mujer que es ahora, una madre. Para Freud (2009), en el motivo del Tal temática se refuerza con una relación doble romántico se expresa lo familiar que intertextual con la propia biografía de la se torna amenazante. El doble implica la artista. Como en otras obras, Nicola trabaja identificación con otra persona al punto la propia imagen en la tradición de Cindy de perder el dominio sobre el propio yo y Sherman, asumiendo distintos personajes colocar el yo ajeno en el lugar propio. Lo que crean una ambivalencia entre la fic- que significa la muerte del yo o, en otros ción representada y la realidad de la propia términos, la propia muerte. En Trailer de artista. En este caso, en el momento en que Nicola, encontramos elementos similares Nicola desarrolla este tema en Trailer ella como el personaje solitario y la rivalidad es madre por primera vez. que éste desarrolla con su doble. No obs- tante, existen varias diferencias. Por empe- El tratamiento que se le da a ese pro- zar, el doble de Trailer no irrumpe en el ceso de transformación presenta una enun- relato ni sorprende a la protagonista. Ella ciación siniestra en el corto y en el resto es quien fabrica su doble con minucioso de la instalación mediante el animismo cuidado y, en un principio, se muestra gus- infantil siniestro. El doble no es como en los tosa con su presencia, como si aplacara su relatos románticos referidos a un ser vivo soledad. Luego, cuando tiene a su beba y sino que es una muñeca, una “artefacta” la doble le molesta, deshacerse de ella le como la llama la artista. Ella en calidad de causa angustia y aún en el último momento tal, guarda la ambivalencia de la vida y la existe un dejo de indecisión, como si la pro- muerte. En ningún momento se ve moverse tagonista debiera renunciar a ella y eso le a la muñeca por sí sola, pero su vestimenta costara. Es decir, que la relación de la pro- y sus posiciones hacen que aparente estar tagonista de este relato no se figura siendo viva. Por otra parte, su cuerpo, inalterable, dominada por el doble, cayendo en la locura contrasta con el cuerpo vivo en plena trans- ni intentando quitarse la vida para acabar formación de Nicola. Mientras que el vien- con el sufrimiento que le causa su presen- tre de ella crece y decrece con el nacimiento cia. A lo largo del relato, la protagonista del bebé, en la muñeca queda atrapado el controla la relación con su doble y puede cuerpo estático, invariante, de la mujer que preservarse. Tal tratamiento se articula con era Nicola antes de embarazarse. Así, la el universo referencial que nos interesa amenaza que detecta Nicola en la mirada que es el de la maternidad. La protagonista de la muñeca una vez que nace su bebé es sufre una transformación en su cuerpo y la amenaza de esa mujer que ella fue en el en su estatuto como mujer. Su vientre crece pasado y a la que debe renunciar. Podremos

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decir entonces que, por una parte, Trailer embarazo podemos advertir que domina construye la figuración de una mujer empo- una lógica medicinal. Nicola se entera de derada en varios sentidos. Por un lado, apa- que está embarazada no por un sentir rece la posibilidad de una maternidad sin corporal sino por un test de embarazo. Y figura paterna. Nicola concibe sola. El relato cuando va a parir, lo hace en un hospital y comienza desde que ella se entera de que el parto en sí no se muestra. Los cambios está embarazada y a lo largo de su gestación hormonales y anímicos propios de la ges- y encuentro con su bebé no aparece nin- tación y del proceso de parto, no aparecen guna figura masculina2. Oponiéndose a la en el corto. Solamente se muestra el creci- mitología patriarcal de una concepción de miento de la típica “panza” de embarazada la vida sin mujer, Nicola presenta una sin y a la madre que recién ha parido acostada hombre sintonizando con el verosímil social con su bebé en la cama del hospital. Ambas contemporáneo de la posibilidad que tienen figuraciones son acordes a las representa- hoy las mujeres de quedar embarazadas ciones que han dominado en la modernidad por medio de inseminación artificial. Por de la mujer gestante y la mujer que recién otro lado, la mujer que representa Nicola ha parido. Se figura así una gestación y un en Trailer no se disuelve en su embarazo. Es parto que podríamos postular como exter- decir, no se transforma en un mero medio nos a la sensibilidad femenina en tanto que para que nazca su bebé sino que es una es una representación visual del embarazo mujer que sigue teniéndose a ella como sin raíces en su corporeidad y una cen- centro sin dejar su trabajo. Nicola embara- sura del parir. Articulada con estos motivos zada sigue con las actividades propias de encontramos otro de fuerte presencia en la una artista. Nuevamente aquí encontramos obra de Nicola que aquí le da un significado una representación alternativa a la de la especial al gestar y parir: el individualismo. embarazada abnegada que renuncia a su Nicola vivencia su embarazo sola. No existe vida por su hijo o hija. Con estos motivos, ninguna red social que la contenga. Es una Nicola representa una mujer empoderada mujer sin familia ni amigos. Ese foco en que procesa a su modo la transformación el individuo no es una exigencia del arte que implica la gestación asumiendo que ya autobiográfico, bien puede desarrollarse no será la que había sido. una obra centrada en la vida de un artista mostrando justamente sus lazos sociales. Ahora bien, junto con estos motivos, Nicola desarrolla en esta y otras obras un podemos decir que también en la obra apa- enfoque que construye la posibilidad de una recen otros que continúan la imaginería individualidad no social. Tal representación del verosímil social patriarcal. Si observa- puede asociarse con la cima del proceso mos la relación que establece Nicola con su individualista señalado por Verón (2013) en el capitalismo contemporáneo. El autor observa que el individualismo ha pasado

2 En el único momento en que aparece una figura por tres etapas. En la primera, se presenta masculina es en el corto donde por unos segundos se ve la figura del ermitaño, el individuo que se a un fotógrafo que fotografía a su doble posando como aísla apartándose de las normas sociales. En La maja desnuda de Goya. Pero aún en ese momento, Nicola mantiene el dominio de la situación siendo ella la segunda, se figura un individualismo que la que prepara su doble para ser fotografiado. construye un colectivo con sus semejantes

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retrayéndose de la sociedad. Ejemplo de mujeres nuestro dominio sobre las prácticas ellos son las tribus urbanas que surgen en y saberes del dar vida. La figuración de la los ´80 del siglo pasado. En la tercera etapa, gestación condensada en un crecimiento aparece un individualismo fundado en el del vientre, la no mostración del parir y la individuo mismo que enuncia la afirmación cama hospitalaria dan cuenta del triunfo de “yo soy único, no me parezco a nadie”. La del verosímil patriarcal en un campo de mujer gestante de Nicola pareciera pertene- producción discursiva, como es el arte con- cer a este individualismo en el que no exis- temporáneo, que puede ser fructífero para ten redes sociales, sin embargo, al mismo producir nuevas concepciones para pensar- tiempo, la presencia del test de embarazo nos como mujeres gestantes y recuperar y la cama hospitalaria nos habla de que sí esas redes que nos permitían vivenciar hay una trama social con la que se vincula nuestros embarazos y partos desde una la embarazada, pero es una trama no de sensibilidad femenina. Una nueva hipóte- iguales, no de otras mujeres que han tenido sis, entonces, se nos presenta, el feminismo su misma experiencia y la acompañan, sino trajo al arte contemporáneo nuevas repre- que es la trama de una institución médica sentaciones de las mujeres, pero pareciera que regula su propia gestación y parir. ser que existen dificultades para incorporar en esas nuevas representaciones la gesta- ción y el parto. Veremos qué sucede con otras obras que analizaremos.

Observaciones finales

El análisis de la obra Tráiler de Nicola nos permite advertir la complejidad que presenta la representación de la gesta- ción y el parir en el arte contemporáneo. Como intentamos demostrar, Nicola figura una mujer empoderada que asume una maternidad sola que no se diluye como un mero medio para dar vida a su bebé, tal como lo pide el verosímil social, sino que muestra una mujer que continúa con sus actividades profesionales y controla y toma decisiones sobre la transformación personal que implica convertirse en madre. [ CARMEN ROCHER ] Sin embargo, pareciese ser que al momento Magíster en Lenguajes Artísticos Combinados por de figurar la gestación y el parir, la obra la Universidad Nacional de las Artes (UNA). Artista se deja dominar por las representaciones contemporánea. Profesora en el Departamento de instaladas durante la modernidad patriarcal Artes Visuales (UNA) y en la Maestría en Lenguajes en el que el disciplinamiento de la mujer Artísticos Combinados (UNA). y el discurso médico nos arrebataron a las E-mail: [email protected]

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[ ARTIGO ]

Cláudio Rodrigues Coração Universidade Federal de Ouro Preto. Francielle de Souza Universidade Federal de Minas Gerais. Cláudio Rodrigues Coração Da tensão ao sublime: potencialidades estéticas da canção “Mulher do fim do mundo”, de Elza Soares Francielle de Souza 95 

[ RESUMO ABSTRACT RESUMEN ]

Este trabalho busca apreender o espírito da canção “Mulher do fim do mundo” e seu vínculo com a renovação estética das imagens de artistas negras na música popular brasileira. A hipótese é de que a canção interpretada por Elza Soares alimenta – e é alimentada por – um movimento que busca substituir estigmas sociais construídos desde a escravidão por imagens que, de fato, representem a diversidade de identidades que podem ser assumidas por essas mulheres. Essa potência transformadora, anun- ciada pela canção em análise, aponta três manifestações estéticas que extrapolam o universo da canção popular e ensejam mudanças na maneira como as minorias são encaradas no espaço público brasileiro, a saber, a reivindicação do gesto da altivez, a crítica à potência de morte e a reflexão subjetiva dohorror .

Palavras-chave: Mulheres Negras. Música Popular. Elza Soares. Arte. Política.

The purpose of this paper is to capture the spirit of the song “Mulher do fim do mundo” and its relation with the aesthetic renewal of images made by black female artists in Brazilian popular music. The hypothesis is that the song interpreted by Elza Soares feeds – and is fed by – a movement that seeks to replace social stigmas built since the period of slavery by images that effectively represent the diversity of identities that can be embraced by these women. This transformative potential predicted by the song under analysis reveals three aesthetic manifestations that go beyond the universe of the popular song and aspire for changes in the way minorities are viewed in the Brazilian public space, which are the claiming of the gesture of pride, the criticism of the death potential and the subjective reflection of horror.

Keywords: Black Women. Popular Music. Elza Soares. Art. Politics.

Este trabajo busca aprehender el espíritu de la canción “Mujer del fin del mundo” y su vínculo con la renovación estética de imágenes de artistas negras en la música popular brasileña. La hipótesis es que la canción interpretada por Elza Soares alimenta – y es alimentada por – un movimiento que busca sustituir estigmas sociales construidos desde la esclavitud por imágenes que representen claramente las diversas identidades que pueden ser asumidas por esas mujeres. Esa fuerza transformadora que anuncia la canción en análisis apunta tres manifestaciones estéticas que rebasan el universo de la canción popular y dan lugar a cambios en la forma con que las minorías son enfrentadas en el espacio público brasileño: la reivindicación del gesto de la altivez, la crítica a la potencia de la muerte y la reflexión subjetiva del horror.

Palabras clave: Mujeres Negras. Música Popular. Elza Soares. Arte. Política.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2019.157563

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Introdução A renovação estética que o disco sugere, porém, não é apenas em termos de estilos e arranjos musicais. O que A mulher Não é segredo que o álbum A mulher do fim do mundo revela é uma Elza antenada do fim do mundo, lançado em 2015 por com o contexto político do país ao assumir Elza Soares, foi sucesso dentro e fora do várias das pautas mais reivindicadas pelos Brasil. Por aqui, figurou no topo das listas movimentos identitários na esfera pública de melhores álbuns do ano, de forma que brasileira, ao mesmo tempo em que rechaça parecia impossível, naquele momento, que estereótipos sobre as minorias. É por essa qualquer outro disco chegasse à altura do via que, ao nosso ver, o álbum reposiciona a impacto causado pelo álbum de Elza. No imagem de Elza Soares e, por consequência, contexto internacional, o boom também não a imagem das mulheres negras na música foi pouco. Não é à toa que o disco entrou popular brasileira. para a lista do jornal americano The New York Times como um dos dez melhores Neste trabalho, empreendemos uma álbuns do ano e deu pela primeira vez à tentativa de compreender esse processo de artista um dos prêmios mais prestigiados renovação estética em relação às artistas da música, o Grammy Latino. negras no universo da canção midiática, que parece ser resumido na figura de Elza Esse pequeno resumo sobre a obra já Soares. Notadamente, as inovações acom- sinaliza que, dos seus 60 anos de carreira, os panham o espírito de um determinado últimos quatro parecem ter sido a guinada tempo. Por essa razão, o movimento que necessária para que, enfim, Elza fosse con- ousamos depreender busca se aproximar siderada uma das mais importantes artistas do momento político vivido a partir dos da música popular brasileira – reconheci- anos 2000 para compreender como ele mento já adiantado pela emissora BBC, no se reflete no universo da canção, reorde- final dos anos 1990, ao elegê-la a “cantora nando as posições de sujeitos minoritários do milênio”, mas que parece ter sido pouco na indústria musical e na vida social. relevante para a imagem da artista no cená- rio musical brasileiro. Nossa hipótese é a de que a visibili- dade impulsionada pelas políticas públicas Produzido por Guilherme Kastrup, o do governo Lula, o crescimento dos movi- disco que marca a “mudança” na carreira de mentos de mulheres negras e a mudança Elza conta com músicos da chamada nova nos modos de produzir e veicular canções, vanguarda paulista. O próprio texto de apre- elementos de um determinado sistema de sentação do álbum assinala a importância notação (CARDOSO FILHO, 2009), possi- da nova geração para a atual roupagem da bilitam a emergência de artistas negras artista: com o núcleo criativo formado por atualmente, com seus mais variados dis- esses músicos, “o projeto traz onze faixas que cursos e performances. Essa emergência, transitam por gêneros diversos, como samba, porém, só é possível após um resgate e rock, rap e eletrônico, em arranjos sobrepos- uma reavaliação das imagens que foram tos por timbres arrojados, ruídos, distorções fixadas para as mulheres negras na e dissonâncias” (A MULHER…, 2015). música popular brasileira, especialmente

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da figura da mulata. Em nossa concepção, de Alice Chaves e Paulo Marques. O jeito esse movimento pode ser apreendido na desengonçado e estranho causou risos na faixa “Mulher do fim do mundo”, objeto plateia, e a menina foi questionada pelo que designamos para este estudo. apresentador sobre “de qual planeta” teria vindo. O episódio ficou marcado pela res- Para analisá-la, guiamo-nos pela ideia posta dura, mas sincera: “do planeta fome”. de canção como paisagem (LOPES, 2003a, Como Ary disse ao final da apresentação, p. 83), com o intuito de desvelar “os afetos boquiaberto com a voz rouca e impostada e sociabilidades que envolvem a música da menina estranha, nascia ali uma estrela. enquanto prática social e comunicativa”. Portanto, o procedimento metodológico Porém, o sucesso só chegou anos empreendido busca observar elementos depois, com o compacto Se acaso você che- como letra, performance, melodia e o cará- gasse (1959), em que a canção homônima, ter midiático da canção1, na tentativa de de Lupicínio Rodrigues, explodiu na voz compreender como eles são acionados para da carioca. A consolidação como intérprete fazer circular afetos e aproximar a arte da se deu nos anos seguintes, entremeando o vida cotidiana, tal como propõe Lopes. surgimento de dois movimentos canôni- cos da música popular brasileira: a Bossa Nova e o Tropicalismo. Não nos parece coincidência, portanto, que o segundo álbum da artista tenha sido batizado como A travessia da mulher negra: A Bossa Negra (1962), uma aproximação no disco e no espaço público nada casual com o movimento que come- çava a nascer e que, não por acaso, omitia o corpo negro no gênero-filho do samba, Embora A mulher do fim do mundo algo que Elza faz questão de demarcar no seja considerado uma virada na trajetó- título do disco. ria de Elza Soares, a carreira da artista já vinha sendo gestada para tais mudanças. Lançado no mesmo ano em que a Sua primeira aparição pública aconteceu cantora deu início ao estrelato, o disco- quando ela ainda era menina, no programa -marco da Bossa Nova, Chega de saudade, de calouros de Ary Barroso, da rádio Tupi, é considerado o responsável por reavaliar em 1953. Com roupas improvisadas da mãe o modo como se fazia música no país. Toda cobrindo o mirrado corpo de 40 quilos, Elza a atenção se voltou para as mãos e o canto subiu ao palco para cantar “Lama”, canção do baiano João Gilberto. A batida sinco- pada do violão, o canto miúdo e a influên- cia do bebo americano compõem o grupo de características do gênero que Luiz Tati 1 “O caráter midiático delimita boa parte das pos- sibilidades criativas, não só no que se refere ao jogo (2004, p. 51) chama de grau zero da música entre o artista (que faz a música) e a indústria (que popular brasileira, ao considerar que João transforma a música em mercadoria), mas também “reprogramou em seu artesanato de violão no que tange às possibilidades tecnológicas de pro- dução, armazenamento e reprodução da canção no e voz impecável a gênese de todos os estilos, estágio pop” (CARDOSO FILHO, 2009, p. 82). passados e futuros”.

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Quinze anos depois, outros baianos (Ibidem, p. 16), pois esfacelavam as tentati- entram em cena: era a vez de Caetano Veloso vas de integração entre brancos e negros, e Gilberto Gil chacoalharem a ideia do que como supõe a democracia racial esboçada era música popular brasileira. O movimento nos escritos de Gilberto Freyre (2003). tropicalista, cujo marco é Tropicália ou Panis et Circenses (1968), disco-manifesto assinado Nota-se que, embora as críticas mais junto de artistas como Tom Zé, Capinam, Gal ferrenhas à introdução da cultura norte- Costa, Os Mutantes, Torquato Neto, Nara -americana no país tenham recaído sobre Leão e Rogério Duprat, mistura manifestações Caetano e Gil, a cena da Black Rio também tradicionais da música brasileira e elementos já acionava elementos estrangeiros, num estrangeiros, como a guitarra elétrica. contexto ainda mais alternativo em rela- ção à Tropicália. Tal como o Tropicalismo, O movimento é, para Tati (Ibidem, também receberam condenações de todos p. 59), o “grau dez da sonoridade brasileira” os lados pela forma como introduziam a por ter promovido a “libertação estética e cultura norte-americana. Como Oliveira ideológica” no âmbito da canção, de forma (2018, p. 13) destaca, os bailes Black busca- que abriu precedentes para os mais varia- vam “uma via entre a esquerda militante dos discursos, performances e arranjos tradicional e a direita apoiadora do regime, que foram adotados pelos movimentos entre as tradições culturais afro-brasileiras musicais surgidos após o Tropicalismo. e as influências da globalização, em cons- Pelo estranhamento que causava a falta tante diálogo com o mercado”. de um projeto ideológico reconhecível (SANCHES, 2000), e pelo contexto políti- Foi em meio a essa efervescência co-social nebuloso regido pelos militares, musical que Elza se consolidou como intér- os tropicalistas foram atacados tanto pela prete, sob a marca de sambista. Não é à esquerda, que os considerava alienados em toa que a maioria dos primeiros discos da termos políticos, quanto pela direita, que os carreira faz referência ao gênero: O samba é enquadrava como subversivos. Elza Soares (1961); Sambossa (1963); Na roda do samba (1964); O máximo em samba (1967); Em paralelo a esse cenário musi- Elza, Miltinho e Samba (1967); Elza, Miltinho cal, surgiram os bailes Black no Rio de e Samba – vol. 2 (1968); Elza, carnaval & Janeiro, com uma “estética particular que samba (1969); Elza, Miltinho e Samba – conectava a juventude negra periférica vol. 3 (1969); e Sambas e mais sambas (1970). brasileira às produções negras interna- cionais, notadamente norte-americanas” Embora esse gênero musical tenha (OLIVEIRA, 2018, p. 13). Os participan- sido a porta de entrada para o universo da tes desses bailes articulavam uma esté- canção, ele representa uma faca de dois tica internacional a símbolos diaspóricos, gumes para a carreira de Elza. O título de como o vestuário e o cabelo natural. Dessa sambista e, principalmente, a imagem da maneira, ajudaram a desenvolver “estra- mulata, remanescentes dos primeiros anos tégias de contestação da estrutura social da trajetória artística, não se desgrudaram e racial vigente a partir de rituais simbó- dela, mesmo diante da diversidade com que licos e políticas de consumo alternativas” Elza manteve a carreira a partir da década

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de 1980, tendo feito, por exemplo, parce- que já não houvesse cantoras negras na rias com Caetano Veloso, na canção-rap história da canção brasileira. Carmen “Língua”, do álbum Velô (1984), e até mesmo Costa e Aracy de Almeida são nomes que com Lobão, no disco O rock errou (1986), já eram conhecidos da era do rádio. O que numa faixa curiosamente intitulada “A voz Elza introduz, porém, é o corpo nessa dinâ- da razão”. mica. Um corpo que é negro e que performa. Cardoso Filho (2009, p. 86) destaca que, no Esse estigma social em torno do corpo âmbito da canção midiática, a performance feminino negro que hoje é entendido como estimula significados, pois “as provocações apagador das subjetividades das mulheres plásticas feitas pelo performer” fazem parte negras, e que as vê como “só corpo, sem mente” de uma operação material regulada. (HOOKS, 1995), foi uma condição de emer- gência para Elza Soares. E ela o tomou para si. A época em que Elza põe o corpo para Em “Mulata de verdade”, canção presente no jogo requeria imagens que pudessem cor- disco Sambossa (1963), Elza canta os versos: roborar a conciliação de raças forjada no “Vê se mora no desenho/ dessas curvas que projeto de construção de uma identidade eu tenho/ nesse fogo que eu retenho/ pois nacional. O samba tem papel definidor nessa se pega faz enlouquecer./ E é por isso que a lógica. Não mais visto como música maldita mulata de verdade/ é melhor que a liberdade/ (VIANNA, 2002), o gênero passa a ser sím- pra se dar, pra se usar”. Na canção “Polegadas bolo da integração entre brancos e negros, da mulata”, a erotização é reafirmada: “Samba supostamente unificando o país. Ora, nesse sem mulata/ não é samba não, senhor/ É sentido, a mulata serve muito bem a essa samba triste/ Samba só feito pra doutor/ Sem tentativa de conciliação. Afinal, o envolvi- a moreneza da mulata rebolando/ A gente vai mento de uma mulher negra com um sujeito aos poucos até desanimando”. Diante disso, branco apagaria a história da escravidão poderíamos nos questionar: por que ela ainda em nome do “amor” e representaria, ainda, é tão celebrada por outras artistas negras2? uma tentativa natural de embranquecer a Qual a contribuição de Elza para a imagem população caso se reproduzissem. dessas mulheres no atual contexto da música popular brasileira, se antes carregava com As canções do repertório de Elza certo orgulho a sexualização do corpo femi- daquela época reforçavam essa subser- nino negro? viência ao branco, dando à mulher negra apenas a função de seduzi-lo com o gin- Tal como adiantamos, essa era uma gado na roda de samba: “Mulata é só quem condição de emergência para Elza. Não tem aquela graça natural/ De quem nas- ceu pro rebolado/ Pois a cor dessa figura/ Quem pintou foi a Mãe Natura/ Pra deixar o branco todo assanhado”, canta a intérprete 2 Em 2017, o coletivo Rimas&Melodias, formado por rappers negras, lançou a canção “Elza”, em home- em “Polegadas da mulata”, canção do disco nagem à artista. Além de relembrar a história da A bossa negra (1962). Dessa maneira, fica cantora, a letra insiste que ela é referência para as óbvio que a performance de Elza se insere rappers no atual cenário da música brasileira. O clipe pode ser acessado pelo link: https://bit.ly/2zAvwz1. em uma lacuna cujo preenchimento era Acesso em: 17 abr. 2019. bastante desejável naquele momento.

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Ainda que a imagem da mulata venha política econômica de Lula, carrega o legado sendo contestada continuamente como de ter alcançado algum nível de visibilidade depreciativa para mulheres negras, proble- para a luta política dos sujeitos minoritários mática facilmente verificada na “Globeleza” e de não permitir que eles sejam oprimi- que aparece cada vez mais “coberta” por dos como antes (ou que respondam a essas pressão social, foi por meio dela que Elza opressões de maneira mais acirrada midia- galgou espaço na música popular brasileira. ticamente). Por isso, para Bosco (2017, p. 64), Ou seja, é apesar e por causa dela que as “com o fim do lulismo sobreveio uma socie- artistas negras podem hoje transitar com dade crítica, em permanente crise consigo alguma liberdade pelo universo da canção, mesma, problematizando todas as dimen- já que, por meio da performance do corpo sões e aspectos da vida social”. marcado pela negritude, ela escancarou os portões e quebrou os grilhões, como cantam Já as manifestações de 2013 eviden- as meninas do Rimas&Melodias. ciaram uma crise de representação política e “tiraram do marasmo político” (Ibidem, p. 57) Hoje já não vemos a mulata em Elza. O diversos setores da sociedade brasileira. repertório da artista tornou-se mais variado Sem uma pauta de reivindicação clara, o com o passar dos anos. O lançamento do movimento permitiu “a organização e o álbum Do cóccix ao pescoço (2003), no qual desenvolvimento de uma nova direita” aparecem canções de notável cunho político (Ibidem, p. 55), o que complexificou as rela- como “Haiti” e “A carne”, pode ser consi- ções políticas antes acalmadas pelo governo derado um sintoma dessa transformação. conciliador de Lula e continuado por Dilma. Não é coincidência, porém, que a mudança Por fim, no argumento de Francisco Bosco, da intérprete tenha chegado ao ápice nos as redes sociais, com suas possibilidades de anos 2000. Cunhado por Bosco (2017) como trânsito múltiplo no interior das platafor- característico de um “novo espaço público mas, seriam responsáveis por promoverem brasileiro”, o contexto político-social em um espaço de debates mais democráticos, que A mulher do fim do mundo foi lançado mas consequentemente mais acalorados e funciona como um terreno fértil para as polarizados. sementes já plantadas pelos movimentos sociais brasileiros em defesa das minorias. Evidentemente, esse ambiente acir- rado se extrapolou e adentrou o campo Para Bosco, três elementos confor- da arte. Afinal, o que faz o público ficar à mam o novo espaço público brasileiro: o espera do pronunciamento de Anitta, artista colapso do lulismo, as manifestações de com grande fã-clube LGBTQI, em relação à junho de 2013 e a emergência das redes aderência ao movimento #EleNão, mesmo sociais. Os anos Lula são caracterizados diante de tantas declarações preconceituo- pela inclusão econômica e social de clas- sas do então candidato Jair Bolsonaro3? Ou ses baixas em espaços antes interditados a o que motiva o susto causado pela posição elas. Ainda que com um projeto muito mais brando do que previam as premissas do

Partido dos Trabalhadores (SINGER, 2012), 3 Sobre isso, ver: https://bit.ly/2XfzdRZ. Acesso em: esse novo arranjo social, incentivado pela 17 abr. 2019.

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conservadora de Nana Caymmi exibida em ascensão de Pabllo Vittar, Liniker, MC entrevista na qual ataca colegas de profissão Carol e do rapper Djonga. Tudo isso implica como Chico Buarque e Gilberto Gil4? dizer que o próprio sistema de notação em que estamos inseridos, caracterizado pela Inspirada na crítica pós-hermenêutica possibilidade de ampla disponibilização de de Kittler e adotada por Cardoso Filho (2009), canções, o fácil acesso a elas via platafor- a ideia de um sistema de notação parece elu- mas como Deezer, Spotify ou até mesmo o cidar minimamente esse fenômeno. Para o YouTube, e a pressão social por artistas que autor, “o modo pelo qual um determinado encampam um discurso político, favorece formato expressivo se torna hegemônico a emergência de cantoras que, no contexto num contexto social vai depender de uma de Elza Soares, certamente não poderiam série de escolhas, apropriações e exercí- galgar espaço com tamanha naturalidade. cios (realizados por músicos, ouvintes, ou mesmo críticos), de questões econômicas e até mesmo políticas” (Ibidem, p. 81). A partir disso, podemos inferir que as condições de emergência de Elza Soares nos anos 1960 e A subjetividade como das artistas negras nos anos 2000 são, em ferramenta política alguma medida, resultado de sistemas de notação diferentes. Neste ponto da nossa discussão, fica À época do lançamento de Elza, a evidente que a inclusão socioeconômica da escuta sonora se dava por meio de com- população negra5 tem grande valor sim- pactos ou LPs, comercializados pela indús- bólico, embora tenha sido muito pouco tria fonográfica e, portanto, controlada por transformadora em relação às condições de grandes empresários. Atualmente, podemos acesso a direitos fundamentais. O ingresso perceber que tanto a demanda quanto a de mais negros e negras no ensino superior, oferta musical está cada vez mais facilitada por exemplo, representa um avanço apa- pelos streamings. Por isso, artistas indepen- rentemente difícil de reverter. Em 2000, o dentes, com discursos que passam menos percentual de negros(as) diplomados era de pelo crivo de uma “indústria da música”, aproximadamente 3%, seis a menos do que conseguem divulgar seus trabalhos com os brancos. No último censo, realizado em algum grau de liberdade. 2016, 30% dos alunos universitários eram pretos ou pardos6. Esse processo fica ainda mais faci- litado quando nos damos conta de que o próprio mercado da música tem demandado 5 Todas as vezes em que nos referimos à população negra neste trabalho, levamos em consideração aquilo artistas com pautas ou discursos ligados que afirma Angela Davis (2011): “É preciso compreender às minorias. Exemplos disso são a rápida que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe”. Assim, entenda-se por população negra um grande conjunto de pessoas que, em geral, são marcadas simultaneamente pelas desigualdades racial e social. 4 A entrevista completa pode ser lida em: https:// 6 Ver em: https://bit.ly/2xnARsS. Acesso em: 17 bit.ly/2V0X9Z7. Acesso em: 17 abr. 2019. abr. 2019.

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O dado refere-se a um ambiente estética” (Ibidem, p. 372, grifo nosso). Por isso, ainda muito restrito no país – o da acade- toda vez que uma pessoa negra contradiz a mia –, mas serve como um exemplo de uma equação-base, o racismo age no sentido de geração que não permite o cerceamento do lhe causar sofrimentos subjetivos. direito de ocupar espaços historicamente elitizados. As redes sociais e o YouTube Muniz Sodré (2018, p. 14) ressalta também corroboram esse pressuposto de também a dimensão sensível do racismo que não haverá retrocessos. Em 2018, a brasileiro quando afirma que “a persistência procura por “cabelos cacheados” nas bus- da forma social escravista consiste princi- cas do Google superou a de cabelos lisos7, palmente na reinterpretação social e afe- por exemplo. Algo inédito no Brasil. Esses tiva da ‘saudade do escravo’”. Essa saudade são pequenos sinais das transformações se caracteriza por ser aquela que “olha o no modo como as minorias se veem e se outro como um objeto em falta utilitária na posicionam na esfera pública. trama das relações sociais” (Ibidem) e não por uma admiração ou respeito pelo objeto É notável que nessa nova dinâmica a contemplado. Assim, ama-se o sujeito de autoestima tem um forte impacto político, pele escura, mas também se ama que ele o que confronta as próprias características permaneça afastado, pois “a abolição incidiu do racismo brasileiro. Para Emerson Rocha, sobre a relação, não sobre o vínculo” (Ibidem). o preconceito racial no Brasil é fundado na equação “o bom é belo e o belo é bom” É nessa medida que nos vemos diante (ROCHA, 2018, p. 403). Como as pessoas de um paradoxo. Ao mesmo tempo em que negras, no padrão brasileiro, nunca podem a ascensão social estimula a autoestima das ser belas, elas também não poderiam ser pessoas negras, tal como exemplificamos boas e vice-versa. Essa tentativa de defi- acima, o racismo brasileiro age para incutir nição do caso brasileiro se sustenta na nelas sentimentos de inferioridade, culpa premissa de que a estética é fundante no e autoabjeção e minar as possibilidades de modo como o racismo opera no país. Ou seja, “aquisição da autoconfiança, do autorres- o fenótipo é o elemento estruturante das peito e da autoestima” (ROCHA, 2018, p. 374). relações raciais aqui, diferente dos Estados Unidos, onde a origem é mais relevante8. Uma das estratégias para manter essa dinâmica de controle são os estereó- Desse modo, por causa desses aspectos tipos. Tomadas por Kilomba (2017) como “a físicos ligados à negritude, o racismo “age representação mental daquilo com o que o menos antecipando o movimento do que sujeito branco não quer se parecer”, as ima- reagindo a ele, ou seja, efetivamente nin- gens impostas a essas pessoas são fantasias guém costuma ser (no sentido de agir como) de aspectos negados pelos brancos, como racista até que o negro se mova contra a doxa se fossem “retratos credíveis e objetivos” dos(as) negros(as). Nessa lógica, Kilomba reforça o pensamento de Rocha: aquilo que é bom (e belo) seria característico ao self 7 Ver em: https://glo.bo/2vqSNOF. Acesso em: 17 abr. 2019. branco, enquanto tudo o que é ruim (e feio) 8 Sobre isso, ver Oracy Nogueira (2006). é inerente aos negros.

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Sueli Carneiro (2011) destaca ainda em imagens estereotipadas externamente uma certa coisificação das mulheres negras definidas da condição feminina afro-ameri- como necessária para a manutenção da cana” (Ibidem, p. 102). Ou seja, envolve entrar ordem colonial. Seja nas imagens da mulata na dinâmica de poder que atribui imagens ou da empregada doméstica, o corpo negro negativas a essas mulheres, desafiando as é destituído de humanidade e alocado em intenções e a autoridade de quem as faz. uma trama de relações a serviço de um propósito material, o que torna possível Enquanto isso, “a autoavaliação a contínua exploração por parte das pes- enfatiza o conteúdo específico das auto- soas brancas, mesmo em um contexto definições das mulheres negras, substi- social supostamente mais democrático. tuindo imagens externamente definidas Collins (2002) ressalta que esses estereó- com imagens autênticas de mulheres tipos sobre as mulheres negras são funda- negras” (Ibidem, p. 102). Isso implica dele- mentais para manter as relações desiguais gar a responsabilidade sobre a imagem da de poder, uma vez que a identidade delas comunidade à própria comunidade, dando é, por si mesma, uma afronta ao status quo. autonomia aos sujeitos que dela fazem parte para que definam, a partir de suas experiên- As consequências desse cenário são cias e suas subjetividades, quem de fato são. descritas por Kilomba (2017): “poderíamos dizer que no mundo conceitual branco é Sob esse ponto de vista, a socióloga como se o inconsciente coletivo das pes- desenvolve o argumento de que essas ferra- soas Negras fosse pré-programado para a mentas podem combater a desumanização alienação, a decepção e o trauma psíquico”. desses sujeitos, voltando-os para si mesmos, Reverter esse quadro de sofrimentos subje- e não mais em uma relação infinita de com- tivos causados pelas imagens depreciativas paração com o sujeito branco. Além disso, é o desafio que Elza Soares parece encampar os estereótipos têm profundo “potencial no universo da canção midiática. de dano à autoestima” (Ibidem, p. 106) de mulheres negras e, por isso, combatê-los permite que elas rejeitem a opressão psico- lógica internalizada (BALDWIN, 1980 apud COLLINS, 2016). Por tais razões, Collins As imagens de Elza em acredita que essas ferramentas são necessá- A mulher do fim do mundo rias para a sobrevivência da mulher negra.

Embora essa seja uma perspectiva das Duas ferramentas têm sido utiliza- imagens de mulheres negras nos Estados das pelas mulheres negras para combater Unidos, a autodefinição e a autoavaliação os estereótipos, ou como prefere a soció- parecem ser os exatos movimentos que Elza loga Patricia Hill Collins (2016), as imagens faz no álbum e na canção “Mulher do fim do externamente definidas: a autodefinição e a mundo”, música de abertura do disco de 2015 autoavaliação. Segundo a autora, “autodefi- e objeto de estudo deste trabalho. Vemos a nição envolve desafiar o processo de valida- autodefinição operar quando ela, dona de ção do conhecimento político que resultou uma carreira duradoura e consolidada na

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música popular brasileira, se presta a cantar Após o poema, um samba distorcido e impulsionar temáticas tão em voga no entra em cena. Ele já não carrega uma contexto sócio político brasileiro. Afinal, o aura de festa como naquele da mulata. Os que são as canções “Maria de Vila Matilde”, arranjos cheios de ruídos são, por vezes, “Benedita” e “Firmeza” senão um grito há até incômodos em relação à melodia do muito sufocado contra tantos modos de cavaco que insiste em acompanhar o solapar as diferenças que permanecem gênero musical (quase) irreconhecível. ignoradas desde a Elza mulata? E o que é Símbolo da identidade nacional, o ritmo esse gesto senão uma maneira de chamar que outrora foi capaz de unir brancos e a atenção para uma responsabilidade de negros e pelo qual Elza foi firmada como dimensão coletiva acerca das injustiças mulata ganha agora caráter ambíguo. Ele sociais que insistem em assolar o país? está ali, portanto, não é uma recusa com- pleta da história da artista, mas já não Usufruir de um lugar já conquistado pode estar da mesma maneira como nos na história da música popular brasileira para anos 1960, sendo festejado acriticamente. suscitar reflexões acerca de pautas tão caras Ele entra como elemento de tensão entre aos movimentos identitários nos parece uma aquilo que costumava representar e o novo tentativa de desafiar as autoridades que sub- sentido que Elza propõe a ele. jugam e definem as imagens dessas minorias. Essa é, aliás, uma premissa fundamental das Em seguida, a letra de Alice Coutinho organizações políticas de mulheres negras: e Rômulo Fróes irrompe a paisagem sonora uma disposição contínua de confrontar as e traz a avenida como cenário principal, dinâmicas do poder em favor de um bem- podendo ser considerada o símbolo-mor -estar coletivo. Elza a utiliza no universo da da posição na qual a artista foi colocada a canção midiática, desafiando as estruturas partir da condição de emergência que lhe que relegam discursos mais engajados em foi possível, mesmo sem saber qual era: favor das minorias no contexto sociopolítico. “Meu choro não é nada além de carnaval/ É lágrima de samba na ponta dos pés/ A Já a autoavaliação fica a cargo da multidão avança como vendaval/ Me joga música “Mulher do fim do mundo”. A canção na avenida que não sei qualé”. A alusão ao é antecedida pelo poema “Coração do Mar”, choro e ao samba numa relação de coe- de Oswald de Andrade, musicado por José xistência reforça novamente a tensão que Miguel Wisnik. A voz da cantora aparece permeia a faixa, e a multidão que avança limpa, a capella, entoando os versos do moder- sobre o eu lírico parece pouco se importar nista. Eles antecedem a travessia da mulher com as implicações desse conflito. Tal como que vai se despir da imagem de mulata e vai o racismo brasileiro parece agir, o vendaval navegar à procura “da terra que ninguém na avenida segue empurrando os carros conhece”, tal como os africanos escravizados alegóricos da “miscigenação harmônica”, que vinham em navios negreiros e atracavam com vistas no fim de um trajeto que cul- nos portos do Brasil. O destino final dessa minaria no desenvolvimento de um país travessia, entretanto, culminará não no sofri- possível apesar da diversidade racial. A mento da escravidão, mas no surgimento da conquista seria então festejada, apagando mulher do fim do mundo. o trajeto de choro.

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Já os versos seguintes exacerbam com o despir dos estigmas que a limitaram o caráter mítico da imagem da mulata, ao longo da história e com a inclusão de colocando-a junto a outras figuras irreais, novas imagens que possam agora emergir. mas características das festas de carnaval: “Pirata e super-homem cantam o calor/ Um Em “Mulher do fim do mundo”, essas peixe amarelo beija a minha mão/ As asas tensões todas não parecem demandar reso- de um anjo soltas pelo chão/ Na chuva de lução. Não se encaminham para tal. Apenas confete, deixo a minha dor”. Nesse trecho, a são postas como um amontoado destoante mulata que dança com fantasmas da nossa de imagens carnavalescas e sambas irreco- imaginação parece desaparecer junto à nhecíveis, como se as ideias iniciais desses chuva de confetes, deixando o sambódromo dois nortes fossem altamente compatíveis, carente de sua figura mais elementar. mas, pela força da história de Elza, algo ficou fora da ordem. Desse modo, é pelo É dessa avenida, vivida à base de gesto impertinente de colocá-los em atrito lágrimas e euforias carnavalescas, que Elza, que a potencialidade do sublime se revela. É então, se despede: “Na avenida deixei lá/ pelas lágrimas de samba na ponta dos pés, A pele preta e a minha paz/ Na avenida naquilo que essa expressão tem de mais deixei lá/ A minha farra, minha opinião/ contraditório, que a cantora reposiciona A minha casa, minha solidão/ Joguei do sua imagem na história da música popular alto do terceiro andar/ Quebrei a cara e me brasileira. Daquilo que Elza então foi e, em livrei do resto dessa vida”. Para encerrar, a tese, não poderia ter sido é que ela agora é: intérprete define por conta própria quem foi a morte da mulata que deu vida à mulher ela é e faz um pedido. É nesse momento que do fim do mundo. a autoavaliação se consuma: “Mulher do fim do mundo eu sou/ e vou cantar até o fim/ Me deixem cantar até o fim/ Até o fim eu vou cantar/ Me deixem cantar até o fim”. Vai passar nesta avenida A esse ponto, não se sabe qual a perti- um samba popular nência de manter a sequência samba-ave- nida-mulata quando o que se tem na canção de Elza não pode ser reconhecível: 1. como No desfile da escola de samba Estação samba, pelas muitas distorções postas pela Primeira de Mangueira, no carnaval de turma da nova vanguarda paulista, que março de 2019, o enredo “História para o transforma e que rompe com a aura de ninar gente grande” sugere duas questões: alegria que era até então uma característica de que forma os corpos negros e indígenas, marcante do gênero; 2. como avenida, pois ancestralmente violentados pela força do já não se sabe que caminho é esse que ruma discurso histórico oficialesco, passariam não para o êxtase carnavalesco, mas para o pela avenida do sambódromo da cidade fim do mundo (esse lugar do desconhecido do Rio de Janeiro? Estariam revestidos de e do incontrolável); 3. como mulata, quando um semblante de redenção e denúncia aos a mulher da canção de Elza não tem com- males praticados nessas mesmas ruas da promisso nenhum senão com ela mesma, antiga cidade? O movimento pedagógico

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do roteiro, desde a montagem das alegorias na avenida, a ser incorporado como “festa até o samba-enredo, propõe, além disso, três da carne”, no que essa expressão possa nos percepções caras ao nosso trabalho: 1. a rei- acionar com mais veemência. A canção de vindicação do gesto da altivez, como parte de Elza Soares, “Mulher do fim do mundo”, reelaboração do discurso do oprimido, por parece dialogar com a revaloração dos sen- meio da vivência calcada no cotidiano como tidos presente no desfile da Mangueira, e emblema; 2. a pertinência da crítica interna à mais marcadamente na síntese delineada morte da população negra e indígena como em “Marielle Vive”, pois narra/descreve um condicionante do processo de formação empoderamento particularmente fincado da sociedade brasileira; 3. a evidência do nos propósitos rítmicos e poéticos da escola horror como sublime, na medida em que de samba. Mas, mais do que isso, trata-se a denúncia da violência é composta com de uma reflexão sobre a emancipação da o grito de profanação histórico-estética, mulher artista negra, ao se deparar com um nas balizas do percurso da escola durante dado discernimento do horror da realidade o desfile. Com isso, personagens históri- externa, em que a subjetividade do eu lírico cos “canonizados” (como Duque de Caxias tem contas a tratar. Esse desconcerto de ou os bandeirantes) reaparecem ao lado uma representação cultural hegemônica, na de personagens contemporâneos, como a canção de Elza, se faz presente no desfile da compor a teia de um enredo que suscita a Mangueira, a partir da síntese estampada representação sem filtro da transformação no sorriso e na carne de Marielle Franco. A dos sujeitos abatidos pelo horror do capita- perturbação da ordem musical, na produção lismo brasileiro. O samba seria, em forma e mais recente de Elza, incorpora expressões conteúdo, nessa proposta, o fiel mediador internacionalizadas da chamada música estético para a catarse. negra no esteio do samba ancestral como mito. Este, chancelado pelas fraturas cul- Essa força, se pensarmos os desdo- turais das ruas do Rio de Janeiro, desde a bramentos das dinâmicas culturais, lança escravidão, abarcando todos os momentos nomes como Dandara, Zumbi dos Palmares, em que a população negra, e mais especifica- Zuzu Angel e Marielle Franco a uma espécie mente a mulher negra, viu-se/entendeu-se de semântica decisiva: a incorporação da na desolação social de um mundo racista. rua pela festa, numa profanação do cânone, e num libelo de afirmação das liberdades e Nesse sentido, a materialização do lutas. Assim, o corpo, o semblante, o gesto, cantar de um samba sufocado (subvertido o sorriso de Marielle Franco, vereadora da pelas batidas do rap, do funk e outros estilos cidade do Rio de Janeiro assassinada por musicais) põe Elza na enunciação simbó- milicianos em março de 2018, são formu- lica da urgência de uma altivez peculiar. lados na expressão “Marielle vive”. “Marielle vive” é próximo, portanto, da insígnia “my name is now”, marca atrelada Aqui cabe ressaltar, portanto, que essa a Elza e sua narratividade midiática, cujo síntese da ideia de resistência, em Marielle, sentido contempla tanto as demandas do mais do que os outros personagens do des- star system (a diva capaz de redefinir os file, manifesta-se como um desejo de evi- aspectos da produção midiática) quanto a dência do samba, cantado em estado bruto reelaboração da trajetória artística, a moldar

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as representatividades em torno da mulher e terá samba, assim como João Gilberto negra, da sambista, da cantora virtuosa, da tem contrabaixo, violino, trompa, sétimas, personagem pública controversa etc. nonas e tem samba. Aliás, João Gilberto para mim é exatamente o momento em O samba, como local e prática da que isto aconteceu: a informação da moder- manifestação cultural dos subúrbios e peri- nidade musical utilizada na recriação, na ferias do Rio de Janeiro, é convocado para a renovação, no dar um passo à frente da exposição das três manifestações estéticas música popular brasileira. presentes no desfile de Mangueira e na canção de Elza: a altivez, a crítica à potência A noção sobre uma determinada linha de morte e a reflexão subjetiva do horror. estética e evolutiva, a partir da Bossa Nova, Pois bem. O que os corpos representados na talvez nos possa ser valiosa para notarmos avenida deixam pulsar é a voz e a energia os pontos de ruptura de um dado triunfo do atravessados pela estética, a propagarem Tropicalismo, dos anos 1960 em diante, como um imaginário sobre as transformações uma espécie de termômetro das manifesta- dos sujeitos. O samba mais dissonante de ções populares alocadas na modernização Elza Soares, nessa chave, pode ser verifi- musical. A representação cultural de um cado nas canções dos discos Do cóccix ao povo, pelo Tropicalismo, desde a premissa pescoço (2002), A mulher do fim do mundo lançada pela análise de Caetano, em 1966, (2015) e Deus é mulher (2018). São trabalhos até as incorporações estéticas praticadas por que apontam o rearranjo identitário em seu grupo artístico, descreve as simbologias perspectiva de acomodação/ruptura com o e os gêneros musicais numa demanda em conceito de linha evolutiva da música popular torno da necessidade/inevitabilidade das brasileira. Em edição da revista Civilização rupturas. Nesse sentido, a trajetória de Elza Brasileira, de maio de 1966, artistas e crí- Soares, artista que flertou em vários momen- ticos de várias áreas culturais discutem tos com o chamado “universo tropicalista”, os rumos da música popular brasileira, demonstra o desajuste na interpretação crí- ainda sob os fortes impactos do fenômeno tica, em consonância intensa com sua vida da Bossa Nova. A fala mais emblemática no pessoal, no triunfo destes “cortes violentos” debate é a do então jovem músico e poeta das demandas estéticas de modernização Caetano Veloso (apud BARBOSA, 1966), que musical do Tropicalismo. Nota-se, portanto, empreende a seguinte contestação: que a canção “Mulher do fim do mundo” ins- titui-se de modo paradoxal, pois faz de sua Só a retomada da linha evolutiva pode nos teia de simbologias subjetivas, pelo jogo da dar uma organicidade para selecionar e linguagem específica do samba, uma aco- ter um julgamento de criação. Dizer que modação das assimilações estéticas próprias samba só se faz com frigideira, tambo- do universo musical tropicalista e suas rela- rim e um violão sem sétimas e nonas não ções multiculturalistas, ao mesmo tempo em resolve o problema. Paulinho da Viola me que dilui de modo provocativo os limites da falou há alguns dias da sua necessidade de real emancipação, diante do horror de uma incluir contrabaixo e bateria em seus discos. sociedade anticordial, distante de um princí- Tenho certeza de que, se puder levar essa pio norteador da famigerada ordem da linha necessidade ao fato, ele terá contrabaixo evolutiva da música popular brasileira.

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Não sem sentido, também, voltando razão (logos). Cada uma das partes da alma ao desfile da Mangueira, verifica-se que as possui sua própria experiência de prazer alegorias pertencentes ao gesto da altivez se e interpreta o belo conforme seu modo alimentam, assim como na canção de Elza, próprio, Hoje parece que o que domina a de uma eloquência dissonante, a revelar experiência do prazer da alma é sobretudo um apelo, um gesto de resistência de samba a cupidez. Por isso, as ações raramente são popular, de samba depreciado pelo triunfo impulsionadas pelo thymos. do Tropicalismo, essencialmente. Nessa pista, a altivez da presença É evidente, então, que os diversos negra coloca em perspectiva a percepção movimentos estéticos incorporados na medida no caos simbólico midiático, já que contemporaneidade, de um país cindido nenhuma linha evolutiva é suficiente para política e socialmente, na segunda metade dar conta das contradições da cupidez, da da década de 2010 no Brasil, estabelecem coragem e da razão. Assim, há um sentido uma disputa de valor sobre afetos, cuja dua- de captação política do sorriso de Marielle, lidade parece ser o enfrentamento entre na oposição com o horror, em aproximação uma demanda condicionada pela ansiedade poética com os versos de Elza: “Na avenida de futuro, e outra contemplativa, no acerto deixei lá, a pele preta e a minha voz, na ave- de contas com o passado subjetivo e cole- nida deixei lá, a minha farra, minha opinião, tivo (desfile e canção se amalgamam nesse a minha casa, minha solidão”. aspecto). Essa dualidade (ou esses afetos) está mobilizada pelo Eros, aqui entendido É curioso notar que, dessa associação, na chave conceitual de Han (2017), como o a obra de Elza adquire inevitavelmente um antagonista da depressão estabelecida nas rescaldo da experiência contestatória da pro- representações oriundas das disputas de dução cultural brasileira, a partir da segunda uma sociedade de desempenho. metade dos anos 1990, a firmar categorias de observação contundentes sobre um novo O que “Mulher do fim do mundo” movimento estético: o cabelo Black power enuncia, de maneira desafinada, é o atra- reinserido na cultura, a vestimenta urbana vessamento de um corte estético a respeito alargada na performance juvenil, os traços desse Eros antidepressivo. Não deixa de ser, negros ligados ao jogo político, a sensuali- portanto, um desdobramento da ruptura dade como poética e reflexão subjetiva etc. das músicas periféricas contemporâneas, nas quais as temáticas da juventude negra Ou seja, se pensarmos as aproxima- brasileira passam a se engalfinhar com o ções de artistas como Planet Hemp e O pertencimento pop, trazendo à baila a refle- Rappa, por exemplo, na reinterpretação xão constante sobre coragem, racionali- do samba carioca, em contato com uma dade, emoção e subjetividade erótica. Nos dita “música jovem” universal, temos uma termos de Han (2017, p. 76), encontramos: dialética sobre os limites da linha evolu- tiva da música popular brasileira, a partir O Eros, que, segundo Platão, dirige a alma, dos anos 1990, em virtude da presença de tem poder sobre todas as suas partes: outros sujeitos, especialmente o neguinho cupidez (epithymia), coragem (thymos) e e a neguinha.

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Esses sujeitos podem ser percebidos a altivez como marca, em paralelo a uma no universo urbano e no cenário da can- denúncia do condicionante da morte, isso ção de Caetano Veloso, “Eu sou neguinha”, que Achille Mbembe (2018, p. 19-20) cha- de 1987. Diz a letra da canção, acerca da mará de condições da necropolítica: presença civilizatória da mulher negra no ambiente contemporâneo: “via o que o é Já se argumentou que a fusão completa visível, via o que não via, e o que a poesia e a de guerra e política (racismo, homicídio profecia não veem”. e suicídio), até o ponto de se tornarem indistinguíveis uns dos outros, é algo Denota-se na fragmentação desse exclusivo ao Estado nazista. A percep- Rio de Janeiro de fim de século, na leitura ção da existência do Outro contra um da canção de Caetano, o cosmopolitismo atentado contra minha vida, como uma de fundo que desorganiza a narrativa das ameaça mortal ou perigo absoluto, cuja tensões sociais, por meio de um estímulo de eliminação biofísica reforçaria meu visibilidade corporal preta, de um elogio à potencial de vida e segurança, é este, veia midiática antimiscigenada, mas mesmo penso eu, um dos muitos imaginários assim incorporado ao discurso da paz racial de soberania, característico tanto da pri- possível. Não deixa de ser curiosa essa lei- meira quanto da última modernidade. tura, comparada ao comentário sobre a linha evolutiva, em 1966, pelo mesmo autor. Essa Nesses termos, o samba que passa na personagem-resenha, a neguinha da canção, avenida, impulsionado de uma potência que abarcaria todas as outras representa- popular, é a expressão dessa marca con- ções da mulher negra, confunde-se com temporânea vitoriosa, esteticamente van- a vida e a política da vereadora Marielle guardista, anteparada na crítica à morte da Franco, em larga medida. E com meninas população negra (nos termos de Mbembe). negras que passam a ocupar um espaço Assim, tem-se a expressão da morte em público de visibilidade, embalado na mídia e vida (Marielle Franco está morta, mas o na rua. A reorientarem, todas, outras etapas corpo dilacerado da canção e dos traumas de significação e emancipação. mostra-se indomável na avenida). Esse misto de dor e culto, que o samba-enredo Essa presença negra será alvejada tam- carnavalesco tão bem assimila, evidencia o bém, como foi Marielle, pela sua potência. O horror em nossa argumentação a respeito sentimento de pulsão de vida (Eros) ante a da alteridade, do reconhecimento do Outro. pulsão da morte (Tânatos), conforme aponta Han (2017), é fundamental para perceber- Em entrevista ao programa Diálogos mos a projeção de mulheres negras, nos com Conti, da Globo News, o deputado afetos mobilizados pela canção “Mulher do federal pelo Partido Socialismo e Liberdade fim do mundo”, em contato com os aparatos (PSOL) do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo, institucionalizados da sociedade racista cuja amigo de longa data de Marielle Franco, expressão, a partir da noção do processo vital diz que a representação de Marielle depois da artista, complementa de modo espan- de sua morte não é necessariamente o toso as proposições de “Eu sou neguinha”. que Marielle fez em vida, como vereadora Trata-se, no mais, de um diagnóstico sobre ou como assessora parlamentar. A nova

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representatividade estaria, no argumento de carnaval, é lágrima de samba na ponta dos Freixo, diluída com a predominância estética pés”, Elza parece tensionar a reavaliação dos que estamos tratando, essa pertinência da mitos e termos da própria discussão sobre voz/presença/corpo negro fraturada diante o feminismo contemporâneo, nas nomen- do gesto triunfante dessa presença. claturas próximas ao samba e ao carnaval. A assumir o desejo como parte inconteste Evidencia-se nessa projeção um dos afetos engendrados no sujeito, ante a processo de subjetivação, das falas desses burrice e a violência cognitiva dos opres- sujeitos. Mais especificamente dos afetos sores; há uma exasperação nisso tudo. O reivindicados pela mulher negra. A esse que nos causa dor e sensação de torpor no respeito, é interessante atentarmos ao que desfile da Mangueira, na evidência do corpo diz Lorde (2018, p. 51-52): jovem de Marielle, esboçado vivo nas faixas e nos muros da cidade, é essa afetação do Eu não gosto de falar sobre ódio. Não horror também como presença. gosto de me lembrar da anulação e da aversão, pesadas como minha desejá- A assimilação pessoal de Elza na vel morte [argumentação próxima ao canção está disposta na world music, no princípio teórico de Mbembe], vistas nos Tropicalismo, na interpretação da canção, olhos de tanta gente branca desde o ins- no samba, no carnaval. Há uma analogia tante que comecei a enxergar. Esse ódio entre Elza e as meninas da nova geração que ecoa nos jornais, nos filmes, nas imagens se distancia do jeito pomposo de represen- sacras, nos quadrinhos, no programa de tação do lugar da mulher (negra) no caldo rádio Amo ‘n’ Andy. Eu não tinha ins- da indústria cultural. Mas que une/aciona trumentos que o dissecassem, não tinha outras expressões estéticas emancipa- linguagem que o nomeasse. tórias: o rock de Pitty, o pop regional de Gaby Amarantos, o sertanejo de Marília Ora, a negação da política da morte, Mendonça etc., a imprimir uma presença pensada e refletida, não deixa de ser um midiática cuja materialidade da narra- estímulo resumido de todo o espírito de ção é a mulher e, mais especificamente, o certa produção cultural. Ou da percepção resumo ditado pela mulher negra e suas de um frescor em que artistas da nova inquietações e cantos possíveis de futuro. geração como Drik Barbosa, Karol Conka, A canção “Se avexe não”, da jovem Tássia Mahmundi, Tássia Reis se apresentam Reis, por exemplo, presente no álbum Outra simbolicamente. Na constatação de que esfera (2016), é o desdobramento dessa sub- o sangue posto pela morte ancestral, nos jetividade, pois resume musicalmente as jogos subjetivos e intersubjetivos aponta- balizas de certo pop romântico baseado dos por Lorde, da herança da escravidão, pelo soul/rap (a poesia está tratando do reveste-se na agonia e nas potências vitais momento de desmoronamento/acalanto da projeção do sujeito tematizado por “essa no lar familiar), em duelo com as intem- mulher do fim do mundo”, cantada por Elza péries das condições vividas pelas jovens Soares, assemelhada a avós e mães, e que periféricas no Brasil, vulneráveis e suscetí- preenche as projeções das filhas que virão. veis a provações diárias, no espaço público Ao afirmar “Meu choro não é nada além de e no corre das ruas e avenidas. A alegoria

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da mulher do fim do mundo encarna um indústria musical. A homenagem do cole- ponto de chegada, em que a altivez, o dis- tivo Rimas&Melodias para Elza; a consoli- cernível do horror e a pulsão de vida são dação de mulheres negras fora do samba, estratégias sensíveis para a sobrevivência como Mahmundi, Xênia França e Luedji e para a criação de um futuro saudável, Luna; a insígnia “my name is now”; o desfile visivelmente saudável. Isso parece ser o da Mangueira; e a expressão “Marielle vive” movimento de reflexão de Lorde, de certo parecem ser os exemplos mais sublimes modo um dispositivo de revelação do Eros, daquilo que Elza começou nos anos 1960, conforme aponta Han: coragem diante da transformou nos anos 2000 e projetou cupidez e da razão, especialmente. indefinidamente para o futuro.

Nesse fluxo narrativo em que a rua é guia de percurso (dos pingentes, dos mise- ráveis, das dores alojadas), a modernidade institui esse lócus como o espaço mitológico da revolução estética e política dos corpos e mentes. É por essa avenida (moderna) que parece transcorrer as marcas de uma que- bra inconstante, de um sentido de urgên- cia inevitável cuja expressão vindoura se empreende de cor e nitidez para se vencer o fascismo das imagens e das relações.

Com “Mulher do fim do mundo”, [ CLÁUDIO RODRIGUES CORAÇÃO ] enfim, Elza completa um ciclo necessário Professor do Programa de Pós-Graduação em para a sobrevivência de artistas negras. Comunicação e do curso de Jornalismo da Universidade Faz a renovação estética pela chave das Federal de Ouro Preto (Ufop). Doutor em Comunicação: subjetividades, dos afetos como ferramenta meios e processos audiovisuais pela Escola de política. Não há espaço ali para desamor Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. ou para a internalização de sofrimentos Coordenador do grupo de pesquisa “Quintais: cultura causados pelo racismo que possam ferir a da mídia, arte e política” (CNPq/Ufop). autoaquisição, o autorrespeito e a autoes- E-mail: [email protected] tima. Há, na verdade, uma transcendência em relação a eles, por causa deles. Nesse [ FRANCIELLE DE SOUZA ] sentido, a equação de Rocha não fecha na Mestranda em Comunicação e Sociabilidade canção de Elza. Ela é o que quer agora e Contemporânea pela Universidade Federal de ninguém mais poderá impedi-la de cantar Minas Gerais – linha Textualidades Midiáticas, com até o fim. financiamento da Capes. Graduada em Jornalismo pela Universidade Federal de Ouro Preto. Participa Ao mesmo tempo, aponta para a pos- do grupo de pesquisa “Tramas Comunicacionais: sibilidade de contradizer toda uma tradição narrativa e experiência” (Universidade Federal de da música popular brasileira que insistia em Minas Gerais). delimitar o trânsito de artistas negras na E-mail: [email protected]

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Extraprensa, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 94 – 113, jan./jun. 2019 [ EXTRAPRENSA ] A COMPOSIÇÃO DE EUNICE KATUNDA NO CONTEXTO POLÍTICO E MUSICAL BRASILEIRO

[ ARTIGO ]

Amilcar Zani Universidade de São Paulo. Eliana Monteiro da Silva Universidade de São Paulo. Marisa Milan Candido Universidade de São Paulo. Amilcar Zani A composição de Eunice Katunda no contexto político e musical brasileiro Eliana Monteiro da Silva 115 Marisa Milan Candido

[ RESUMO ABSTRACT RESUMEN ]

Este artigo analisa a contribuição da compositora Eunice Katunda à música erudita brasileira do século XX, à luz de alguns dos principais eventos históricos e políticos que lhe serviram de pano de fundo. Visando proporcionar uma maior compreensão de como tais contextos podem ter influenciado sua obra, esta é aqui apresentada em quatro fases distintas: Fase de Formação (até 1945), Fase Música Viva (1946-1950), Fase Nacionalista (1951-1968) e Fase Final (após 1968). Como principais fontes foram consultados livros e arquivos do musicólogo Carlos Kater, primeiro biógrafo da com- positora, e das historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, além de artigos e livros de autores diversos.

Palavras-chave: Eunice Katunda. Mulheres Compositoras. Contexto Histórico.

This article analyzes the contribution of the composer Eunice Katunda to the Brazilian classical music of the 20th century, considering the main historical and political events which worked as a background. In order to provide a better understanding of how such contexts may have influenced her work, this is here presented in four distinct phases: Phase of Formation (until 1945), Música Viva Phase (1946-1950), Nationalist Phase (1951-1968) and Final Phase (after 1968). Among articles and books of several authors, those from the musicologist Carlos Kater, first biographer of the composer, and from the historians Lilia Schwarcz and Heloisa Starling have been consulted as main sources.

Keywords: Eunice Katunda. Women Composers. Historical Context.

Este artículo analiza la contribución de la compositora Eunice Katunda a la música clásica brasileña del siglo XX, a la luz de algunos de los principales acontecimientos históricos y políticos que le sirvieron de telón de fondo. Con el fin de proporcionar un mejor entendimiento de cómo tales contextos pueden haber influido en su obra, su trabajo se presenta aquí en cuatro fases distintas: Fase de Formación (hasta 1945), Fase Música Viva (1946-1950), Fase Nacionalista (1951-1968) y Fase Final (después de 1968). Como principales fuentes se utilizaron libros y archivos del musicólogo Carlos Kater, primer biógrafo de la compositora, y de las historiadoras Lilia Schwarcz y Heloisa Starling, además de artículos y libros de varios autores.

Palabras clave: Eunice Katunda. Mujeres Compositoras. Contexto Histórico.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2019.157504

Extraprensa, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 114 – 137, jan./jun. 2019 [ EXTRAPRENSA ] Amilcar Zani A composição de Eunice Katunda no contexto político e musical brasileiro Eliana Monteiro da Silva 116 Marisa Milan Candido

Introdução mulheres nas universidades e nos cursos de Pós-Graduação.2

A atuação das mulheres nas diver- Da mesma forma, a contribuição do sas manifestações artísticas, entre outros feminismo para a construção de novas teo- campos, tem sido objeto de estudo e resgate rias políticas foram cruciais para debater, nos últimos quarenta anos no Ocidente. No nas últimas décadas do século XX, as causas âmbito específico da Música,1 a chamada e os mecanismos de invisibilização da atua- New Musicology (Nova Musicologia) trouxe ção das mulheres na esfera pública – seja na para a academia um olhar crítico em relação arte ou na política (BIROLI; MIGUEL, 2015). às abordagens tradicionais da História da Consequentemente, a atuação de mulhe- Música – que ignoravam a participação das res envolvidas com a arte e a política no minorias raciais e de gênero –, refletindo na Brasil passou a ser discutida e divulgada no maneira de pensar as práticas da composi- mesmo período, como é o caso da composi- ção e da performance, chegando à Teoria e tora brasileira Eunice Katunda, enfocada à Análise Musical. O principal diferencial neste trabalho. dessa abordagem foi passar a investigar a música à luz do contexto histórico em que foi criada, questionando o protagonismo permanente e exclusivo do homem branco e heterossexual, cujo acesso ao saber erudito 1. Eunice Katunda: breve denunciava, também, um viés de classe. historiografia

De acordo com Leonardo Tramontina (2011, p. 38), as pesquisas feministas surgi- Nascida em 1915 no Rio de Janeiro, das na década de 1970 foram fundamen- capital, a compositora Eunice do Monte tais para a reconsideração desses critérios, Lima foi militante ativa em favor de cau- enfraquecendo gradualmente o enfoque sas artísticas e sociais que mobilizaram e historiográfico em estilos, compositores revolveram o Brasil em períodos pontuais e suas obras individuais, e fortalecendo do século XX. Divorciada do matemático as relações entre a musicologia e outras Omar Catunda, de quem herdou o nome disciplinas interpretativas, especialmente artístico transformado em Katunda com a antropologia, a sociologia e a história. “K”, Eunice foi descrita por seu principal Esse fato explica a grande quantidade de biógrafo Carlos Kater (1991, p. 68) como pesquisas surgidas entre o fim do século XX “mulher exótica, artista brasileira, [que] fez e o início do XXI sobre compositoras, con- convergir suas intenções para o contempo- quista corroborada pela entrada massiva de râneo e o nacional”.

2 Citamos como exemplo a publicação de diversas 1 O termo “música” neste artigo se refere à música biografias e partituras da compositora alemã Clara clássica ou erudita, em cujo universo se insere a com- Schumann por ocasião do centenário de sua morte, positora Eunice Katunda. em 1996.

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Além de compositora, Eunice Katunda da vida pessoal de Eunice Katunda, como, também atuou como pianista, regente e pro- por exemplo, sua mudança do Rio de Janeiro fessora. Entre muitas outras atividades,3 para São Paulo após o casamento com Omar foi integrante do grupo de compositores Catunda; o rompimento com o grupo Música Música Viva,4 atuou em importantes apre- Viva; sua volta para o Brasil após estudos sentações e estreias de peças compostas na Europa; e os prejuízos financeiros cau- segundo os procedimentos composicionais sados por sua empresária após uma turnê mais modernos da época, realizou turnês norte-americana. Vasco Mariz, inclusive, em vários países, esteve em contato com aponta essas interrupções na carreira da grandes nomes da composição internacional compositora no livro História da música no e realizou pesquisas folclóricas pelo interior Brasil (2000), conforme a citação a seguir. do Brasil. Eunice teve a carreira interrompida não Devido à pluralidade estética e com- uma, mas quatro vezes! Uma por questões posicional de Eunice Katunda, este artigo emocionais em 1944, outra por secta- propõe a segmentação de sua produção rismo político (1950), a terceira por razões musical em quatro fases: Fase de Formação de saúde e a última (1969) por desonesti- (até 1945), Fase Música Viva (1946-1950), dade da sua agente nos EUA, que a deixou Fase Nacionalista (1951-1968) e Fase Final sem tostão, provocando assim uma súbita (depois de 1968). Essas fases composicio- suspensão de promissora excursão artís- nais serão apresentadas à luz do contexto tica naquele país (MARIZ, 2000, p. 325). histórico, político e estético da época, assim como por meio de um relato das princi- Eunice viveu praticamente todo o pais atividades exercidas por Katunda em século XX, tendo falecido em 1990 na cidade cada momento. Cada fase criativa também de São José dos Campos, SP. será exemplificada por meio de trechos de obras compostas para piano solo, dos quais serão analisados os elementos musicais e os processos composicionais empregados (aspectos formais, harmônicos e rítmicos). 2. O curto século XX no Brasil e a composição de Eunice Katunda É importante destacar que essa divisão em fases coincide com momentos marcantes Se ao historiador inglês Eric Hobsbawm (1995) o século XX pareceu curto para tantas 3 Eunice Katunda tem também uma produção lite- transformações, guerras e mudanças de para- rária que conta com artigos para periódicos, poemas, digmas, no continente latino-americano esse ensaios, além de escritos para a revista Dhâranâ, da Sociedade Teosófica Brasileira, da qual foi redatora. turbilhão foi ainda mais repentino, suscitando 4 O grupo Música Viva foi criado pelo compositor as reações mais inusitadas. De acordo com o alemão Hans-Joachim Koellreutter para difundir músico Yehudi Menuhin (apud HOBSBAWM, composições e técnicas da música contemporânea 1995, p. 12), “se eu tivesse de resumir o século em geral. O nome Música Viva replicou, no Brasil, a iniciativa criada sob o mesmo título por Hermann XX, diria que despertou as maiores esperan- Scherchen na Alemanha (KATER, 2001b). ças já concebidas pela humanidade e destruiu

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todas as ilusões e ideais”. No caso específico da do escritor e músico Mário de Andrade, compositora Eunice Katunda, pode-se dizer que ditaria as normas éticas das compo- que as palavras de Menuhin fazem bastante sições, em sintonia com o pensamento de sentido, já que esperança, idealismo e desilu- Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, são marcaram sua trajetória e refletiram-se Anita Malfatti, Menotti del Picchia, Victor em suas obras. Brecheret, entre outros escritores e artistas.

2.1 Fase de Formação (até 1945) Estamos com o espírito totalmente vol- tado para o Brasil. E cada um realiza o O final do século XIX foi palco, no Brasil segundo a própria observação. Brasil, da passagem de uma política imperial Assuntamos, matutamos e realizamos. e escravagista para a condição de república. O nosso atual movimento se carac- A abertura do mercado de trabalho para a teriza sobretudo nisto: abandonou mão de obra assalariada atraiu para o país o idealismo e é prático. Não se anda uma legião de imigrantes interessada, princi- pregando coisadas bonitonas, faz-se palmente, em trabalhar nas lavouras de café. qualquer coisa (ANDRADE, 1925 apud SCHWARTZ, 2008, p. 546). As regiões que mais receberam imi- grantes foram as do centro-sul, sul e leste, A reação ao movimento modernista destacando-se o estado de São Paulo, que, veio no início da década de 1930, com sozinho, concentrou mais da metade dos um retorno ao tradicionalismo clássico. estrangeiros residentes no país (FAUSTO, Segundo Neves (2008, p. 165), tanto para o 2018, p. 156). O Distrito Federal da época, público como para a maioria dos músicos e Rio de Janeiro, foi superado pela produção críticos, a música das primeiras décadas do paulista, estado em que foram construídas século XX era “ininteligível e, por isso, ina- estradas de ferro para escoar as mercadorias. ceitável”.6 Contribuiu para a adesão ao que se denominou neoclassicismo a ascensão A maior circulação de trabalhadores de Getúlio Vargas à presidência do Brasil, favoreceu, também, a circulação de ideias e sua simpatia pelos governos autoritários que estimularam movimentos sociais da da Alemanha e da Itália antes do apogeu classe trabalhadora. Por sua vez, oficiais da Segunda Guerra.7 militares reivindicaram um poder centra- lizado e antiliberal, usando como apelo a causa nacionalista. É nesse contexto que o 6 O que tornava a música do período modernista movimento modernista ganhou corpo no ininteligível era a influência do impressionismo fran- ambiente artístico da década de 1920 no cês, que utilizava a colagem e sobreposição (ou jus- Brasil, tomando como princípios os ideais taposição) de materiais antagônicos – como modos, escalas e ritmos distintos – em lugar da variação 5 de “moderno” e “nacional”. Emerge a figura progressiva de motivos usada nos períodos clássico e romântico. 7 Getúlio Vargas ascendeu à presidência do Brasil 5 De acordo com Maria Helena R. Capelato (2005, em 1930, como chefe do Governo Provisório que p. 254), o modernismo surge na Europa nas últimas depôs Washington Luís. Em 1934 promulgou uma décadas do século XIX, devido ao progresso material, nova Constituição e foi eleito pelo voto indireto. econômico e tecnológico da época. (Cf. SCHWARCZ; STARLING, 2018, p. 361-366).

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A antropofagia do modernismo – piano com a professora Marietta Lion e que propunha a deglutição das culturas análise, harmonia, contraponto e compo- estrangeiras e nativas gerando algo novo sição com o professor Fúrio Franceschini. e “moderno” – dava lugar ao verde-ama- Foi em 1943, quando passou a ter aulas de relismo, defensor de uma ideologia nacio- piano e composição com Camargo Guarnieri, nal-conservadora. Heitor Villa-Lobos é o que Eunice se aproximou da música brasi- grande expoente da década de 1930, tendo leira por meio de livros e ideias de Mário seu trabalho composicional se dirigido à for- de Andrade. Isso pode ser verificado em mação de um repertório que ia do didático à seu primeiro trabalho composicional, deno- mais elaborada música de concerto, sempre minado Variações sobre um tema popular enfocando a funcionalidade da música.8 (para piano). Essa obra reflete a ebulição dos acontecimentos históricos e dos movimentos A Fase de Formação de Eunice estéticos das primeiras décadas do século XX, Katunda se refere aos seus primeiros estu- como se verá no item 3.1 deste texto. dos de piano e composição. Começou a ter aulas de piano aos 5 anos de idade com a O período simultâneo às aulas com professora Mima Oswald, dos 8 aos 12 fre- Guarnieri, que se estendeu até 1945, tam- quentou aulas com Branca Bilhar e, por bém foi muito significativo para a carreira fim, entre seus 13 e 21 anos, foi aluna de pianística de Eunice Katunda. Após sua Oscar Guanabarino. Seu grande desenvolvi- estreia em um recital solo no Theatro mento junto ao instrumento manifestou-se Municipal de São Paulo, teve a oportu- em recitais e prêmios recebidos, além da nidade de tocar piano para Villa-Lobos estreia como solista da Orquestra Sinfônica no Conservatório Nacional de Canto Municipal do Rio de Janeiro em 1932, sob Orfeônico. O compositor ficou tão satis- a direção do maestro Spedini.9 feito com sua interpretação que a reco- mendou para uma turnê de concertos na Eunice se casou com o matemático Argentina. Essa turnê incluía, entre outros, Omar Catunda aos 19 anos, em 1934. Alguns um programa realizado apenas com obras anos depois, mudou-se do Rio de Janeiro de autores brasileiros.10 para a cidade de São Paulo, onde teve o pri- meiro contato com matérias teórico-musi- 2.2 Fase Música Viva (1946-1950) cais. Entre os anos de 1936 e 1942 estudou A Fase Música Viva corresponde ao momento em que Eunice Katunda esteve

8 Villa-Lobos também contribuiu para o movimento ligada ao grupo de compositores Música modernista, utilizando a colagem como procedimento Viva, entre os anos de 1946 e 1950. Essa composicional e o exotismo para enaltecer o elemento ligação se iniciou em consequência das nacional. Participou da Semana de Arte Moderna em 1922, ganhando o apelido do “Índio de Casaca”. aulas de harmonia e criação musical que 9 Em 1925, durante o período de aulas com Branca Bilhar, Eunice foi laureada com o segundo lugar no 2o Concurso de Jovens Instrumentistas Brasileiros, 10 Constam do programa citado: Cirandas e Impressões promovido pelo programa Tarde da Criança. Já Seresteiras, de Villa-Lobos, obras de Lorenzo Fernandes quando estreou como solista da orquestra, a pianista e de Camargo Guarnieri, além da sua própria composi- tinha aulas com Oscar Guanabarino. ção Variações sobre um tema popular.

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realizou com o professor, flautista e com- No período em que esteve ligada ao positor Hans-Joachim Koellreutter, assim grupo Música Viva, Eunice Katunda deu que voltou a morar no Rio de Janeiro após continuidade aos seus estudos. Teve aulas a turnê pela Argentina. de harmonia e composição com Koellreutter, estudou orquestração com Guerra-Peixe, fez Nesse momento, Koellreutter era um parte do Manifesto 194613 e atuou em diver- dos principais signatários e idealizado- sas atividades promovidas pelo movimento – res de um movimento de renovação da como, por exemplo, a de intérprete de obras música brasileira, denominado Música contemporâneas e pianista do programa Viva. Com o objetivo de divulgar e pro- radiofônico Música Viva.14 Sua produção mover obras musicais do período tradi- composicional também cresceu bastante cional pouco difundidas no Brasil, assim nesse período, tendo composto, entre outras, como a música de vanguarda da época, Negrinho do Pastoreio (1946, obra pela qual esse movimento tinha como principais recebeu o Prêmio Música Viva), Cantos à atividades a realização de publicações, morte (1946), Sonatina (1946), Salmo 82 (1947), edições musicais, recitais comentados e Quatro epígrafes (1948), Lirici greci (1949) e programas radiofônicos.11 Em meio a essas Quinteto Schoenberg (1949). atividades, formou-se, em 1944, o grupo homônimo de compositores, que atuava a A atuação junto ao Música Viva tam- favor da moderna criação musical a partir bém proporcionou à compositora uma viagem de composições atonais e da manipulação para a Europa em 1948, na companhia de da técnica dodecafônica.12 O grupo, que reunia inicialmente Cláudio Santoro, César Guerra-Peixe e Koellreutter, foi ampliado 13 O Manifesto 1946 foi um documento elaborado e assinado por alguns integrantes do movimento em 1946 com o ingresso de Edino Krieger Música Viva e também por outros que faziam parte do e da própria Eunice Katunda. círculo de amizades de Koellreutter (principal signatá- rio do manifesto): Cláudio Santoro, Egydio de Castro e Silva, Eunice Katunda, Geni Marcondes, Guerra-Peixe, Heitor Alimonda e Santino Parpinelli. O documento, apresentado em 1946, continha questões ligadas à renovação musical brasileira da época, a qual incluía 11 Koellreutter lecionou no Conservatório Brasileiro aspectos composicionais e estéticos, além da impor- de Música, onde travou contato com músicos inte- tância da formação de público e da própria educação ressados em novas técnicas e tendências estéticas. musical (KATER, 2001b, p. 63-66). Em 1938, criou o grupo Música Viva, depois trans- 14 O programa radiofônico Música Viva foi inaugu- formado em sociedade de concertos para divulgação rado no dia 13 de maio de 1944, no Rio de Janeiro, de compositores e obras desconhecidas no país – com e irradiado semanalmente pela emissora PRA-2 – especial foco na música contemporânea. Rádio Ministério de Educação e Saúde. Os programas 12 O Dodecafonismo, ou, a técnica de compor com os semanais contavam com a participação de artistas e doze sons, foi criada por Arnold Schönberg e a cha- intérpretes convidados, bem como de integrantes do mada Segunda Escola de Viena em 1923. Desvinculada próprio movimento Música Viva – como a pianista do tonalismo, essa técnica baseia-se na composição por Eunice Katunda, que chegou a interpretar diversas meio de séries criadas sobre a escala cromática, em que peças irradiadas ao vivo. A autoria das obras apre- nenhum som deve ser repetido antes que todos sejam sentadas alternava-se entre compositores brasileiros, utilizados. Empregam-se recursos do contraponto, estrangeiros (europeus e americanos) e latino-ame- como apresentação da série em retrógrado, inversão e ricanos, e abarcavam diferentes períodos musicais. retrógrado da inversão (MONTEIRO DA SILVA; ZANI As emissões encerraram-se no ano de 1950 (KATER, NETTO, 2012, p. 280). 2001b, p. 152-162).

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Koellreutter e de outros colegas, para par- Vale dizer que o contexto histórico e ticipar do Curso Internacional de Regência, político que possibilitou a visibilidade alcan- realizado pela Bienal de Veneza e minis- çada pelo Música Viva em 1946 foi a entrada trado pelo professor Hermann Scherchen. na presidência de Eurico Gaspar Dutra. Até Prolongada por quase um ano, essa viagem então, a política nacionalista de Getúlio valeu a Eunice Katunda muitas realizações Vargas e do chamado Estado Novo16 repri- como compositora e instrumentista. No mia arroubos de subjetividades e abstrações âmbito da criação musical, iniciou contato afastadas da cultura popular. Koellreutter, com os compositores Bruno Maderna e Luigi porém, afirmou-se no panorama brasileiro Nono (devido aos quais aprofundou seus estu- paulatinamente, como atesta sua participação dos acerca da técnica serial) e iniciou a com- na fundação da Seção Brasileira da Sociedade posição de Dormono15 (1949), para conjunto Internacional de Música Contemporânea de câmara. Além disso, teve sua primeira (Simc) em fins dos anos 1930 ao convidar, para peça orquestral – Cantos à morte – estreada presidente honorário, ninguém menos que mundialmente, sob a regência de Herman Heitor Villa-Lobos, braço direito de Vargas Scherchen na Rádio Difusão Zurique. no tocante à educação musical.

Como pianista, Eunice Katunda tam- O governo de Dutra seguiu um modelo bém teve destaque. Interpretou em primeira liberal e aberto à internacionalização, privi- audição italiana as Cirandas de Villa-Lobos legiando o afastamento de artistas e intelec- e as Três peças para piano de Radamés tuais da estética nacionalista e estimulando Gnattali; durante o Festival Brasiliano reali- o posicionamento de grupos como o Música zado no Piccolo Teatro de Milão, atuou como Viva (embora a maioria de seus membros pianista oficial do i Congresso Internacional fosse filiada ao Partido Comunista).17 de Compositores Dodecafônicos, realizado na cidade de Lucarno; e interpretou, tam- A tendência ao cosmopolitismo, no bém em primeira audição italiana, a obra entanto, começa a ser contestada por mem- Ludus tonalis (1942) de Paul Hindemith. bros do grupo em 1948, quando um dos mais Essas e outras atividades desenvolvidas importantes integrantes, Cláudio Santoro, por Eunice na Europa – como seus estudos toma parte no Congresso de Compositores de regência com Scherchen –, perduraram e Críticos Musicais em Praga. Nesse evento, até o ano de 1949, quando motivos de saúde seriam difundidos os princípios do rea- acarretaram sua volta ao Brasil. lismo socialista – estética elaborada pelo Comissário da Cultura do Partido Comunista soviético, Andrei Jdanov, em oposição ao que 15 Dormono é o primeiro movimento da peça Três líricas gregas (1949) da compositora. Em seu texto A minha viagem para a Europa (KATUNDA, 1949 apud KATER, 2001a, p. 60), Katunda revela que ela, Nono e Maderna escreveram três líricas (cada um a sua) para 16 De acordo com Gabriel Ferraz (2013, p. 174), a política conjunto coral e instrumental. As obras foram dedi- cultural do Estado Novo “impingiu um controle maior cadas a Scherchen, como forma de gratidão por todo sobre a educação, mídia e manifestações culturais”. o aprendizado que tiveram com o regente e amigo. O 17 O governo de Dutra reprimiu partidos políticos, texto ressalta ainda que Dormono seria estreada por sindicatos e representantes do governo vinculados a Scherchen, no ano de 1950. causas sociais que lembrassem a era Vargas.

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ele considerava “conceito de arte pela arte” e de bem-estar social para a população o “movimento abstracionista”. (SCHWAZRCZ; STARLING, 2018, p. 400).

As visões de Eunice e Santoro cho- O discurso de Vargas atraiu para a cam-se nesse período. Enquanto o com- sua candidatura artistas progressistas como positor rompe com a estética dodecafônica Camargo Guarnieri. Em 17 de dezembro de e com as propostas do Música Viva, abra- 1950, o compositor faz publicar sua Carta çando novamente o nacionalismo, Eunice Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil no defende o que considera uma “conquista jornal O Estado de São Paulo.18 Na carta, legítima no processo de desenvolvimento Guarnieri alertou os jovens para os peri- da linguagem e da expressão musicais” gos da difusão de ideias alienantes e anti- (KATER, 2001a, p. 26). Sua postura é reafir- nacionais, conclamando a todos para que mada na composição dodecafônica Quatro valorizassem as raízes e a música popular epígrafes (1948), analisada no item 3.2. deste brasileira. Convencida dos valores propa- trabalho, bem como na citação a seguir: gados pelo compositor, Eunice Katunda rompe com a estética do Música Viva e com Koellreutter, corroborando para a dissolu- Não há contradição entre o dodecafonismo ção final do grupo já fragilizado.19 e o manifesto de Praga. Há sim um secta- rismo geral que muitas vezes impede a com- [A compositora] assumiu posição a favor preensão clara do problema. Nós somos, de ações provenientes da estética do rea- queiramos ou não, artistas que represen- lismo socialista, bem como publicou, no tam uma crise estética (KATUNDA, 1948 apud KATER, 2001a, p. 27).

Esse posicionamento será revisto no 18 A carta havia sido escrita em novembro e enviada a algumas das principais personalidades e instituições período que se segue, marcado pelo retorno musicais do país (Cf.: EGG, 2006, p. 4). de Getúlio Vargas à presidência do Brasil e 19 A dissolução do grupo de compositores Música Viva pela Carta Aberta escrita pelo compositor ocorreu de forma gradativa entre os anos de 1948 e 1950. A ruptura iniciou com Santoro, no ano de 1948, Mozart Camargo Guarnieri aos músicos e aparentemente motivado pela busca por procedimen- críticos do Brasil. tos composicionais que estivessem correlatados às suas convicções ideológicas e políticas, ligadas ao rea- lismo socialista. Guerra-Peixe foi o segundo integrante 2.3 Fase Nacionalista (1950-1968) a se desvincular do grupo, em 1949; seu afastamento decorreu de diversos fatores como, por exemplo, seu Getúlio Vargas subiu novamente descontentamento em relação à receptividade e comu- nicabilidade de suas obras dodecafônicas, sua mudança as escadas do Palácio do Catete no dia 31 para Recife para trabalhar na Rádio Nacional do de janeiro de 1951, dessa vez na condi- Comércio, sua experiência com a música popular bra- ção de presidente eleito pelo voto direto, sileira e seu interesse acerca da música folclórica bra- sileira. Katunda foi a última integrante a romper com em 1950. Com um projeto nacionalista e o grupo, em 1950; seu rompimento pode ser associado industrializante atualizado e ajustado ao ao interesse acerca da música folclórica brasileira e novo contexto internacional de Guerra também em razão de motivos ideológicos, da mesma maneira que Santoro, ou seja, contra o formalismo da Fria, o presidente prometeu adicionar à estética dodecafônica e a favor de elementos caracterís- política desenvolvimentista a conquista ticos da música nacional (CANDIDO, 2017, p. 66-67).

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ano de 1952, o texto Atonalismo, dodecafo- discussões teóricas; estéreis porque não nia e música nacional, no qual apresentou estamos apoiados na realidade brasileira críticas ao formalismo, ao atonalismo, que mal afloramos (KATUNDA, 1958 à técnica dodecafônica e ao expressio- apud KATER, 2001a, p. 73). nismo musical da Segunda Escola de Viena (CANDIDO, 2017, p. 21). Durante esse período de realinha- mento estético composicional de Eunice A Fase Nacionalista de Eunice é Katunda, destacam-se também suas ativi- demarcada após sua ruptura com o grupo dades enquanto pianista e professora. Como de Koellreutter. Esse momento compreende exemplo, é possível citar concertos em que o realinhamento estético musical da com- realizou primeiras audições brasileiras de positora, evidenciado por seu rompimento obras de Béla Bartók, Ígor Stravinski, Alban com a música de vanguarda e seu novo posi- Berg e Arnold Schönberg, assim como cur- cionamento a favor de elementos culturais sos de introdução à música para adultos, e folclóricos brasileiros. Esse realinhamento ambos realizados por Katunda no Museu pode ser observado a partir de determina- de Arte Moderna de São Paulo, em 1951. dos elementos musicais e composicionais de suas obras, e em textos escritos pela própria Como pesquisadora, Eunice Katunda Eunice, como, por exemplo, Atonalismo, realizou diversas viagens de estudos a dife- dodecafonia e música nacional, publicado rentes cidades do Brasil com a finalidade de em 1952, e A Bahia e os brasileiros, publicado se aproximar da música e das raízes culturais seis anos mais tarde, em 1958. brasileiras. No início, especificamente nos anos 1946, 1949 e 1951, viajou pelo estado de Para escrever-se música nacional dode- São Paulo em busca de manifestações popu- cafônica ou atonal, seria necessário lares. Em cidades como Piracicaba, Ubatuba e adotar-se os princípios estéticos e técni- Ribeirão Preto, investigou a música de viola, cos dodecafônicos, eliminando-se desde as festas de São Gonçalo e as folias do Divino. logo, várias coisas indispensáveis à boa expressão musical nacional: a tonalidade, Hans-Joachim Koellreutter, entre- o princípio da repetição, o tema, a melodia tanto, seguiu sua trajetória de agitador (esta frequentemente modal). Teríamos cultural após a dissolução do Música Viva que nos adaptar a uma série quando a ampliando o círculo Rio-São Paulo. Criou música nacional não se fundamenta em o Curso Internacional de Férias Pró-Arte séries, mas em escalas (KATUNDA, 1952 de Teresópolis, do qual seria diretor entre apud KATER, 2001a, p. 69-70). 1950 e 1960. De suas edições anuais, sur- giriam novos nomes comprometidos com É a Bahia que me leva a pedir a todos a renovação da linguagem musical, como que se unam a fim de que possamos pro- os que formariam o grupo Música Nova.20 mover viagens de estudo e de enrique- cimento artístico, principalmente nós que vivemos nas grandes capitais, que 20 A estética serialista – que ampliava o conceito de série do dodecafonismo para outros parâmetros do som – foi conhecemos o Brasil mais por ouvir dizer, bastante utilizada por membros dessa nova agrupação, que nos perdemos em longas e estéreis como Willy Corrêa de Oliveira e Gilberto Mendes.

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No início da década de 1960, o grupo Música estudo e coleta de cantos típicos e ritmos Nova lançaria o Manifesto Música Nova, empregados nos rituais de candomblé, nas abrindo-se ao internacionalismo de van- festas populares das cidades pesquisadas, guarda e retomando algumas propostas nos cultos afro-brasileiros, entre outros. do Música Viva. Dessas pesquisas destacam-se, como peças resultantes, Estudos folclóricos (1952) – ana- A não adesão de Eunice Katunda lisada no item 3.3. –, Sonata de louvação a essas experiências – embora seguisse (1958), A Negrinha e Iemanjá (1955), Reisado divulgando obras atonais e de vanguarda (1955-1956), entre muitas outras.23 em concertos e cursos como os que minis- trou no Museu de Arte de São Paulo, O contexto político e histórico da citados anteriormente –, atesta sua mili- segunda metade da década de 1950 é favorá- tância política e estética pelo retorno ao vel, com a ascensão de Juscelino Kubitschek nacionalismo, inspirada pelas teorias do à presidência após uma sucessão de breves realismo socialista. Kater (2001a, p. 35) governos. Intelectuais de origens e áreas conta sobre sua viagem à União Soviética diversas sentiram-se atraídos pelo pro- (URSS), onde se apresentou na Rádio de jeto do governante, de “construir para o Moscou.21 Com o fim da era getulista oca- país alternativas de modernidade fora do sionado pelo suicídio do presidente, Eunice modelo norte-americano” (SCHWARCZ; Katunda encerra seu engajamento junto STARLING, 2018, p. 417). ao Partido Comunista, ao qual era filiada desde 1936. Inicia-se uma fase mais mística Manifestações artísticas de diferentes da compositora, que inclui o ingresso na vertentes “viveram uma floração e uma Sociedade Teosófica Brasileira e viagens maturação particulares no campo da cul- à região nordeste do Brasil.22 tura, e tornaram-se rapidamente objeto de construção estética e de produção artística” Nas viagens empreendidas por Eunice (Ibidem, p. 418). A própria Eunice Katunda ao nordeste do Brasil, especificamente aos compôs uma sinfonia em homenagem a estados de Alagoas e Bahia, verifica-se o Brasília em 1960, ano da inauguração da nova e moderna capital do país.

21 A compositora estudara o idioma russo desde a Em 1964, dá-se o golpe militar no adolescência, quando ainda era proibido. Brasil, trazendo ao país um clima de opres- 22 Eunice encontrou a Sociedade Teosófica Brasileira são e censura tanto estética como política. (STB) por acaso, já que a entidade se localizava no Destaca-se o ano de 1968, em que movimen- mesmo prédio da sede do Partido Comunista (PC) na década de 1950. Sua colega, Maria Deonice Costa tos estudantis revolvem países da Europa, (2002, p. 5), conta que a compositora errou de andar como a França, e que na América Latina e de sala em certa ocasião, escapando de uma batida inaugura o período apelidado de “Anos de policial ao PC naquele dia. Encarando como um sinal, Eunice passou a frequentar a STB, atuando como redatora dos boletins Dhâranâ, tradutora dos mantras, regente do coral e professora. Empenhada em tudo o 23 A compositora chega a ser batizada num terreiro que fazia, recebeu do mestre a simbólica bagueta de como Filha de Oxum e cultiva grande amizade com o ouro, “como reconhecimento à sua maestria” (RIBAS, fotógrafo e pesquisador francês Pierre Verger, tam- 2002, p. 11). bém envolvido com as religiões afro-brasileiras.

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Chumbo”, pelo estabelecimento de ditaduras 2.4 Fase final (Após 1968) militares em quase todo o continente. No Brasil, há um surto de crescimento econô- De volta ao Brasil, Eunice Katunda mico devido à entrada de empresas estran- tentou se restabelecer e prosseguir com geiras no mercado, controle do reajuste suas apresentações de piano. Conforme de preços e salários e aumento da dívida registrado em seu curriculum (KATUNDA, externa. Muitos intelectuais e artistas dei- [198-]), verifica-se que ela realizou três reci- xam o país para viver no exílio forçado ou tais solo de piano em 1969, sendo dois na voluntário. Sala Cecília Meireles do Rio de Janeiro (RJ) e outro na Cultura Artística de Salvador (BA). Para Eunice Katunda, a década de No entanto, é importante entender que seu 1960 pode ser apontada como o período significativo reconhecimento como pianista, mais significativo em sua carreira de especialmente nas décadas de 1950 e 1960, intérprete do piano.24 No ano de 1968, não facilitou sua circulação no cenário musi- realizou duas turnês norte-americanas, cal brasileiro, pois além de ser mulher, ela em que se apresentou no Carnergie Hall também enfrentou problemas devido à sua em Nova York, no auditório do Morgan antiga relação com o Partido Comunista.25 State College em Baltimore, na Temple University na Filadélfia e no Berkeley Sendo assim, as dificuldades decor- College da Universidade de Yale. Em uma rentes de seu engajamento político, os pre- das apresentações musicais, Katunda inter- juízos financeiros após a turnê nos Estados pretou, entre peças de compositores como Unidos, a falta de oportunidades musicais Bach, Prokofiev e Stravinski, o Rudepoema no país, assim como outros fatores pessoais, de H. Villa-Lobos e a Sonatina 1965, de sua levaram Eunice Katunda a diminuir, e até própria autoria. mesmo pausar, suas atividades como pia- nista em grande parte da década de 1970. Essas apresentações lhe propiciaram reconhecimento internacional, conforme Contudo, observa-se que os proble- críticas da imprensa americana no jornal mas citados não interferiram na sua prática The New York Times que declarou que “a composicional, pois desse período constam pianista é um virtuose completo, e ela esco- peças como Quatro incelenças (1970), Trenodia lheu um brilhante programa para demons- al poeta morto (1970), Sete líricas brasileiras trar o fato” (STRONGIN, 1968 apud KATER, (1972), Cânticos de Macunaíma (1973), Salmo 2001a, p. 35). A turnê norte-americana de Verde (1976), entre outras. Verifica-se tam- Katunda foi encerrada ainda no ano de 1968, bém que, nesse período, Katunda voltou a se após problemas e prejuízos financeiros cau- aproximar de Koellreutter – antigo mentor do sados por sua empresária local. grupo Música Viva. O contato, que se iniciou por meio de cartas, ocorreu pessoalmente

24 Pode ter contribuído para isso o fato de ter-se 25 De acordo com Kater (2001a, p. 37), é possível citar divorciado do marido Omar Catunda em 1964, pro- a proibição de sua entrada no Theatro Municipal de São porcionando-lhe mais liberdade para realizar turnês Paulo no ano de 1965, às vésperas de um concerto, acu- de concertos. sada de ligação com o PC, do qual já havia se afastado.

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no ano de 1979 durante o VIII Curso Latino 3. Elementos e procedimentos americano de Música Contemporânea, reali- musicais empregados por zado na cidade de São João Del Rey (MG) em Eunice Katunda em cada comemoração aos 40 anos de Música Viva.26 fase composicional Na ocasião, Katunda se desculpou com Koellreutter e lamentou seu rompimento com o grupo Música Viva. Após esse episó- Neste item serão analisadas quatro dio, verifica-se a composição de Expressão peças compostas para piano solo de Eunice Anímica (1979), para piano solo, dedicada Katunda, com o objetivo de ilustrar os dife- ao amigo Koellreutter. A análise dessa peça rentes procedimentos e elementos com- ocupa o item 3.4 deste artigo. posicionais empregados por ela ao longo de sua trajetória profissional. Entende-se A esperança de pacificação também que as peças escolhidas para análise neste era crescente no cenário brasileiro. A trajetó- artigo representam apenas uma pequena ria rumo à redemocratização se deu nos anos parte de suas obras compostas para piano, subsequentes, com uma campanha por anis- ou seja, elas não refletem as característi- tia ampla, geral e irrestrita e uma enorme cas composicionais de sua produção total. mobilização popular por eleições diretas.27 Sendo assim, as peças escolhidas para aná- Em janeiro de 1985, Tancredo Neves é eleito lise foram Variações sobre um tema popu- presidente, falecendo pouco depois numa lar (1943), Quatro epígrafes (1948), Estudos cirurgia de emergência. O processo de rede- Folclóricos (1952) e Expressão Anímica (1979), mocratização foi mantido com a Constituição sendo que cada uma delas está inserida em de 1988, que firmou compromisso com as uma fase composicional diferente. minorias políticas, questões ambientais e ins- trumentos legais para a participação popular 3.1 Variações sobre um tema e direta nos destinos da nação. popular (1943)

No ano em que morre Eunice Katunda, Variações sobre um tema popular é apre- 1990, Fernando Collor assume a presidência sentada no catálogo de obras elaborado por do Brasil em eleições diretas. Kater (2001a, p. 87) como o primeiro trabalho composicional de Eunice Katunda, tendo sido realizado sob a direção de Camargo Guarnieri. 26 Colaborou para isso a pianista e amiga Beatriz Segundo o catálogo, Eunice Katunda estreou Balzi, que tocou com Eunice a dois pianos em algu- sua peça na Casa del Teatro em Buenos Aires, mas ocasiões e introduziu-a no grupo de artistas latino-americanos que organizava os Cursos Latino- em setembro de 1944, durante sua turnê americanos de Música Contemporânea (em espe- como pianista pela Argentina. Já no Brasil, cial Graciela Paraskevaídis, Conrado Silva, Coriún a estreia se deu no Theatro Municipal de São Aharonián e o brasileiro José Maria Neves). Paulo em 1965, durante um recital realizado 27 Vale notar que a campanha de reivindicação da anistia surgira alguns anos antes, em São Paulo, com a para o Departamento de Cultura. A peça, com criação do Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), duração de cerca de 10 minutos, é apresen- pela advogada Therezinha Zerbini. Os núcleos do tada sob a forma de tema e variação, na qual MFPA se espalharam pelo Brasil, recebendo apoio de políticos e da Igreja Católica (SCHWARCZ; STARLING, consiste em 13 variações do tema folclórico 2018, p. 478). “Garibaldi” (Figura 1).

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[ Figura 1 ] Tema “Garibaldi” empregado em Variações sobre um tema popular

O aspecto harmônico do tema e das de uma melodia escrita na escala de Do M 13 variações é realizado sob um idioma a um acompanhamento em acordes com tonal-modal,28 que caracteriza influência aberturas intervalares crescentes e decres- do movimento modernista, e a partir de centes no âmbito do modo cromático, como diferentes procedimentos contrapontísti- ocorre na primeira peça (apresentação do cos, marca seu aprendizado com Camargo tema), conforme a Figura 2. Já como exem- Guarnieri. Como exemplo do uso da colagem plo de procedimento contrapontístico está, e justaposição de materiais antagônicos, é entre outros, o emprego de um cânone do possível citar, entre outros, a sobreposição tema na primeira variação (Figura 3).

[ Figura 2 ] Frase inicial da apresentação do tema de Variações sobre um tema popular: acompanhamento em acordes com aberturas intervalares cromáticas crescentes

[ Figura 3 ] Frase inicial da primeira variação de Variações sobre um tema popular: emprego de cânone do tema principal no pentagrama inferior

28 Uso concomitante de modos gregos (e/ou simétri- cos) e escalas diatônicas do sistema tonal.

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O ritmo da peça é realizado em própria Katunda em 1948 no i Congresso de função de sua condução temática, sendo Música Dodecafônica, no Hotel Kurhauss- também desenvolvido em cada variação. Victoria, em Lugano (Suíça) e, provavel- A forma tema e variações alude ao período mente, também no ano de 1948 pela própria neoclássico. Sendo assim, compreende-se compositora, no Rio de Janeiro. que Variações sobre um tema popular se enquadra na Fase de Formação de Eunice A peça, com duração total de dois minu- Katunda (até 1945), não apenas por ser a tos e 40 segundos, possui quatro movimentos primeira peça composta por ela, mas também em estilo aforístico, sendo que cada movi- por conta dos elementos musicais apresen- mento não ultrapassa 15 compassos. Em rela- tados na obra. Tais procedimentos refletem ção ao tratamento harmônico, verifica-se o uma certa experimentação da compositora emprego e a manipulação de séries dodeca- com técnicas variadas de composição, con- fônicas em Quatro epígrafes, sendo a série trabalançadas pelo uso de uma forma musi- original apresentada em Epígrafe I, conforme cal convencional, em que o tema principal é as Figuras 4 e 5, além de três versões transfor- claramente apresentado e desenvolvido ao madas em outros três movimentos da peça, longo da peça sob um idioma tonal-modal e como a série retrógrada da original, a inversão com o ritmo em função da melodia. da série original e, por fim, a transposição de oitava da série original. A técnica dodecafô- 3.2 Quatro epígrafes (1948) nica, empregada em Quatro epígrafes, foi um procedimento composicional muito utilizado As Quatro epígrafes resultam da trans- pelos compositores do grupo Música Viva na crição da obra orquestral Cantos à morte,29 década de 1950, ou seja, no período composi- composta por Eunice em 1946. Segundo cional de Eunice Katunda denominada como Kater (2001a, p. 89), a peça foi estreada pela fase Música Viva (1946-1950).

[ Figura 4 ] Série dodecafônica original empregada em Quatro Epígrafes

Quanto ao ritmo, Quatro Epígrafes apre- senta grande variedade métrica, sendo oca- 29 Cantos à morte (1946) é uma obra orquestral com- sionada pela constante mudança de fórmulas posta para piccolo, flauta, oboé, corne inglês, duas cla- de compasso ao longo de cada movimento. rinetas, dois fagotes, contra-fagote, dois trompetes, quatro trompas, três trombones, piano (percussão) e cor- Essa irregularidade pode ser compreendida das (violinos, viola, violoncelo e contrabaixo). Segundo como um elemento empregado para que o informações do catálogo de obras de Eunice (KATER, ritmo de Quatro Epígrafes seja realizado em 2001a, p. 88), a peça foi estreada e gravada na Rádio Difusão Suíça em dezembro de 1948 pela orquestra da função da condução melódica da peça, ou própria rádio, sob a regência de Hermann Scherchen. seja, de suas séries dodecafônicas.

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[ Figura 5 ] Frase inicial da Epígrafe I com a série dodecafônica original assinalada (c. 1-2)

3.3. Estudos folclóricos (1952) Em relação à harmonia, verifica-se o emprego de um idioma modal nos estudos, Estudos folclóricos apresenta dois sendo este apresentado de maneira flexível, movimentos: I Canto praiano e II Canto de pois os modos são remodelados e alterados reis, com duração de cerca de cinco minutos ao longo dos dois movimentos. O idioma no total. De acordo com o catálogo, a estreia modal utilizado na peça pode ser obser- da peça ocorreu provavelmente pela pró- vado como um aspecto característico da pria compositora na Rádio Nacional de música nacional brasileira, ou seja, alinhado São Paulo em 1965. A peça foi gravada por às preocupações da fase Nacionalista da Eunice Katunda no programa de televisão compositora (1950-1968), pois conforme sua Primeiro plano, com apresentação de Júlio afirmação no texto citado anteriormente, Lerner, Rádio e Televisão Cultura de São “toda música nacional, nos países de civi- Paulo, em 1974, e também pela pianista lização ocidental de cuja tradição musical Beatriz Balzi em um LP datado de 1984, descendemos, é caracteristicamente tonal intitulado Compositores latino-america- e modal, como é a nossa” (KATUNDA, 1952 nos, Série música nova da América Latina, apud KATER, 2001a, p. 69). Como exemplo que mais tarde foi reeditado em CD como desse aspecto harmônico empregado em Compositores latino-americanos (KATER, Estudos folclóricos, apresenta-se um trecho 2001a, p. 91). da segunda seção do primeiro estudo (Canto praiano), no qual se observa uma alternân- Os dois movimentos de Estudos fol- cia entre os modos gregos sol lídio-mixolídio clóricos apresentam formas convencionais: e si dórico, conforme a Figura 6. No segundo Canto praiano encontra-se na forma binária movimento da peça (Canto de reis), a pri- [A, A’] e Canto de reis na forma ternária [A, meira seção é apresentada de maneira B, A’]. O emprego dessas formas pode ser semelhante ao Canto praiano, ou seja, por entendido como uma busca de Eunice pela meio de modos, enquanto que na segunda transparência formal, em que as seções e seção, verifica-se o emprego de um colorido temas são claramente definidos e variados cromático à sonoridade modal, no qual se ao longo da peça, ou seja, facilmente iden- observa o modo de Lá b jônio na melodia e tificados pelo ouvinte. intervalos dissonantes como segunda maior

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e trítono no acompanhamento (Figura 7). remanescente da experiência de Eunice O uso de cromatismos e acordes dissonantes com a música atonal, praticada durante no acompanhamento da segunda parte da sua fase composicional anterior, chamada peça pode ser entendido como um aspecto Fase Música Viva.

[ Figura 6 ] Utilização dos modos Sol lídio-mixolídio e Si dórico no tema 2 da seção A’ da peça Canto Praiano (c. 46-53). Em vermelho, notas características do modo Sol lídio-mixolídio; em azul, notas características do modo Si dórico

[ Figura 7 ] Parte a do tema 1 da seção B da peça Canto de reis (c. 31-35)

O ritmo empregado em na peça em associado novamente a uma afirmação questão tem a polirritmia como princi- de Eunice em texto seu de 1952, na qual pal característica, e esse aspecto pode ser ela discorre acerca das características do

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ritmo nacional em oposição à música dode- que em Canto praiano é realizada por meio cafônica, realizada por meio de cálculos, de um deslocamento rítmico da segunda ou seja, racionalizada: camada textural da peça (contracanto), no qual as figuras transpassam o valor do Não precisamos recorrer a processos compasso e se sobrepõem de maneira irre- cerebralísticos e construtivistas para gular em relação às camadas 1 (melodia) transformar em música as fórmulas vivas e 2 (acompanhamento), conforme trecho da rítmica nacional, as nossas síncopas, da Figura 8. Já em Canto de reis, a polir- as alternâncias e superposições de três ritmia ocorre por conta de a melodia não contra dois, tão de nosso gosto tanto no seguir o mesmo acento métrico-rítmico campo como na cidade (KATUNDA, 1952 do ostinato, caracterizado pela sequência apud KATER, 2001a, p. 70). de 3+3+4 colcheias, gerando assim, um deslocamento rítmico entre a melodia e As polirritmias aparecem nos dois o acompanhamento, conforme redução movimentos de Estudos folclóricos, sendo rítmica apresentada na Figura 9.

[ Figura 8 ] Polirritmia presente em a do tema 1 da seção A da peça Canto praiano (c. 3-9)

[ Figura 9 ] Redução rítmica da polirritmia verificada ema do tema 1 da seção A da peça Canto de reis (c. 3-8)

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3.4 Expressão anímica (1979) 3.5 Comparação analítica

Expressão anímica (1979) possui dedica- A partir deste estudo acerca das peças tória “Para meu amigo e mestre de música H. Variações sobre um tema popular, Quatro J. Koellreutter” e indicação no final da par- epígrafes, Estudos folclóricos e Expressão titura “Para Beatriz [Balzi] tocar”. Segundo o anímica, criou-se um quadro comparativo catálogo (KATER, 2001a, p. 112), a peça, com (Quadro 1) acerca dos principais aspectos duração de nove minutos e meio, foi estreada formais, harmônicos e rítmicos presentes pela própria compositora no Festival Música nas peças compostas por Eunice Katunda Nova de Santos, SP em 1979. e analisadas neste trabalho.

Expressão anímica tem como princi- De acordo com as análises, conclui- pal característica a exploração de sonori- -se que cada uma das peças foi composta dades não convencionais do piano, sendo segundo um procedimento ou técnica esta realizada principalmente por meio composicional diferente. Sendo assim, os da proposição de técnicas estendidas, na elementos musicais empregados em cada qual se emprega objetos, como, no caso obra ilustram as diferentes orientações, dessa obra, dedeiras e baquetas de fel- bem como as escolhas estético-musicais de tro nas cordas para se obter diferentes cada fase de Eunice. Em resumo, Variações texturas e timbres. A peça também faz sobre um tema popular reflete o primeiro uso do recurso de indeterminação, na contato de Eunice com a composição, na qual o intérprete passa a ter certa liber- qual se observa a manipulação de uma dade na execução de alguns parâmetros forma mais convencional como o tema e como a duração, altura, dinâmica, entre variações, e o emprego do tema folclórico outros. Em relação à grafia de Expressão brasileiro “Garibaldi” associado a procedi- anímica, verifica-se que sua partitura não mentos como a colagem e a escrita contra- é realizada apenas por meio da notação pontística. Em Quatro epígrafes, verifica-se tradicional, pois a ela são adicionados sím- a aplicação da técnica dodecafônica, que bolos, grafismos, elementos iconográficos, muito se alinha às preocupações do grupo esquemáticos, gráficos, além da notação de compositores Música Viva na década de verbal (instruções). 1940 com relação à moderna criação musi- cal. Estudos folclóricos retrata o período em É importante destacar que muitos que Eunice passou a valorizar e empregar elementos empregados na obra, como a elementos culturais e folclóricos brasileiros exploração de sonoridades não tradicio- nas suas obras, conforme é possível obser- nais, o emprego de técnicas estendidas var tanto na temática, quanto nos elemen- e a notação não tradicional, são aspec- tos harmônicos e rítmicos apresentados tos característicos da estética musical de na peça. O idioma modal, as polirritmias, vanguarda da época, praticada especial- os deslocamentos rítmicos, entre outros, mente a partir da década de 1960 no Brasil ilustram essa postura da compositora. Por por compositores integrantes do grupo fim, Expressão anímica pode refletir uma Música Nova, como, por exemplo, Willy busca, por parte de Eunice, por técnicas Corrêa de Oliveira e Gilberto Mendes. modernas de composição da época, já que

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se observa a exploração de sonoridades da indeterminação na peça, entre outros não convencionais do piano, o emprego elementos.

[Quadro 1 ] Comparativo entre fases composicionais de Eunice Katunda e as peças para piano analisadas

Peças analisadas

Aspectos de Fase de Formação Fase Música Viva Fase Nacionalista Fase Final comparação

Variações sobre um Quatro epígrafes Estudos folclóricos Expressão anímica tema popular (1946) (1948) (1952) (1979)

- Forma musical - Formas musicais - Peça formada convencional: tema convencionais: forma por um único e variações; - Quatro binária [A’,A’] e forma movimento Aspectos - O tema principal movimentos em ternária [A,B,A’]; contínuo; formais se refere a melodia estilo aforístico. - O título se refere - Dividida em folclórica brasileira a uma temática 20 seções de “Garibaldi”. brasileira. duração variada.

- Emprego de ressonâncias - Aberturas intervalares - Plasticidade do e tratamentos no acompanhamento; material modal; tímbricos variados; - Emprego de - Emprego de série - Manipulação do - As cordas do cânone temático; Aspectos dodecafônica. material modal piano são tocadas - Utilização de terças harmônicos P0 1 8 3 4 2 7 em conjunto com com dedeiras, paralelas no tema; 9 6 11 10 5 0 tratamento cromático baquetas, pela - Contraponto e dissonante própria mão e elaborado de (Canto de reis). por meio de um diferentes maneiras. prato percutido nas cordas.

- Variedade - Ritmo em função da métrica; - Polirritimia; Aspectos condução melódica; - Ritmo em função - Deslocamento - Durações rítmicos - Ritmo desenvolvido da condução rítmico; rítmicas livres. a cada variação. melódica das séries - Ostinatos rítmicos. dodecafônicas.

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Considerações finais Sendo assim, pressupõe-se que mui- tas das escolhas profissionais feitas pela musicista tenham sido pautadas por moti- A partir deste breve relato sobre vos pessoais e vice-versa. Apesar disso, a atuação musical de Eunice Katunda, é Eunice rompeu barreiras da sua época possível observar em sua carreira uma engajando-se politicamente, associando-se intensa e constante atividade. Sua dedica- a diferentes grupos e estéticas musicais, ção e comprometimento são evidentes, seja realizando diversas viagens de estudos e enquanto pianista, compositora, regente, pesquisas músico-culturais, entre outros pesquisadora ou como artista politica- acontecimentos. mente engajada. A comparação analítica de suas peças Suas diferentes fases composicionais, para piano – Variações sobre um tema popu- demarcadas neste artigo por meio de fatos lar, Quatro epígrafes, Estudos folclóricos e pessoais, históricos e musicais, retratam a Expressão anímica –, que datam de dife- busca de Eunice por ideologias, manifesta- rentes fases composicionais, ilustra os ções estéticas e artísticas que fizeram sen- variados procedimentos empregados por tido para ela em determinados momentos Eunice Katunda em seu trajeto musical. de sua vida. Entende-se que as fases aqui Não obstante as mudanças e rupturas esté- delimitadas não são compreendidas como tico-musicais, é possível observar que seu rupturas radicais, mas sim como marcas de alinhamento foi sempre pautado em expe- um processo que ocorreu lentamente em riências e conhecimentos já adquiridos, sua trajetória musical e pessoal. o que representa uma ampliação de seus processos composicionais e não apenas na Nesse ponto, é preciso ressaltar que substituição de determinadas técnicas ou a carreira profissional de Eunice passou procedimentos por outros. Isso pode ser por grandes mudanças e obstáculos por conferido no emprego do pensamento serial ser mulher e ter se profissionalizado na em algumas peças da Fase Nacionalista, primeira metade do século XX no Brasil assim como a retomada de peças baseadas – ou seja, antes das principais conquistas no folclore brasileiro após 1968 (Fase Final), feministas que emergiram, como citado como é o caso das Três peças para dois pianos anteriormente, nas últimas décadas do e percussão (1979), que resgata partes de seu século XX. Ainda hoje, no século XXI, as antigo Concerto Negro (1955-56). mulheres brasileiras enfrentam dificul- dade em associar papéis como os de esposa Por fim, a discussão da obra de Eunice e/ou mãe com atividades como as de pia- Katunda à luz dos acontecimentos políticos nista, compositora, estudante, professora, que pautaram o curto século XX no Brasil regente, e tantas outras.30 aponta influência do contexto histórico na

30 A quase total ausência de suporte por parte do poder público, responsável pela implementação e fisca- facilitadoras para as mulheres – em grande parte pro- lização de leis que obriguem empresas e instituições a vedoras de seus lares – torna as barreiras do machismo oferecerem sistemas de creches, entre outras medidas dominante mais difíceis de serem transpostas.

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criação musical dessa mulher sensível e militante pelas causas em que acreditava. É provável que muitos dos procedimen- tos composicionais escolhidos por ela não tenham sido pensados previamente com o intuito de ilustrar os movimentos estéticos de cada período, mas, com o benefício do distanciamento histórico, consideramos pos- sível estabelecer relações e elaborar conside- rações como as que encerram este artigo.

[ AMILCAR ZANI ] Pianista, pesquisador e professor titular do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Sua especialização inclui estudos em Portugal e na Alemanha, e Pós-Doutorados nos EUA, e suas atividades de pesquisador e intérprete focalizam o romantismo alemão e a produção da Segunda Escola de Viena. E-mail: [email protected]

[ ELIANA MONTEIRO DA SILVA ] Pianista, Bacharel em Piano, Mestre e Doutora em Música pela ECA-USP, tendo sido bolsista Fapesp. Autora de livros, capítulos e artigos em português e inglês, enfoca em suas pesquisas e recitais a produção musical de mulheres. E-mail: [email protected]

[ MARISA MILAN CANDIDO ] Pianista, Bacharel em Piano pela Faculdade Santa Marcelina, com bolsa integral, e Mestre em Música pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente, desenvolve pesquisa de Doutorado em Música na ECA-USP sobre a compositora Eunice Katunda. E-mail: [email protected]

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Extraprensa, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 114 – 137, jan./jun. 2019 [ EXTRAPRENSA ] O SILENCIAMENTO HISTÓRICO DAS MULHERES DA AMAZÔNIA BRASILEIRA

[ ARTIGO ]

Fabiana Nogueira Chaves Universidade Federal do Acre. Maria Rita de Assis César Universidade Federal do Paraná. Fabiana Nogueira Chaves O silenciamento histórico das mulheres da Amazônia Brasileira Maria Rita de Assis César 139 

[ RESUMO ABSTRACT RESUMEN ]

Este trabalho analisa aspectos históricos da Amazônia Brasileira, relatando caracte- rísticas colonizadoras que levaram a uma maior desigualdade de gênero na região e a altos índices de violência contra a mulher. Busca-se expor especificidades do sistema de ocupação predatória da região e destacar o silenciamento da mulher amazônica como política de Estado. Assim, este trabalho procura produzir um texto crítico sobre o processo de saque da Amazônia, apontando a perpetuação de estereótipos que até hoje sustentam o silenciamento e a violência contra a mulher.

Palavras-chave: História da Amazônia. Mulheres da Amazônia. Desigualdade de gênero. Violência contra a mulher.

This study analyzes some historical aspects of the Brazilian Amazon, reporting colonizing characteristics that led to greater gender inequality in the region and high rates of violence against women. It seeks to expose peculiarities of the process of predatory occupation of the region and to highlight the silencing of amazon women as a State policy. Thus, this paper seeks to produce a critical text on the process of sacking the Amazon, emphasizing the perpetuation of stereotypes that until now support the silencing and violence against women.

Keywords: History of the Amazon. Women of the Amazon. Gender inequality. Violence against women.

El presente trabajo analiza algunos aspectos históricos de la Amazonía brasileña, planteando características colonizadoras que llevaron a una mayor desigualdad de género en la región y a altos índices de violencia contra la mujer. Se busca exponer particularidades del sistema de ocupación predatoria de la región y destacar el si- lenciamiento de la mujer amazónica como política de Estado. Así este trabajo busca aportar con un texto crítico sobre el proceso de saqueo de la Amazonía, apuntando a la perpetuación de estereotipos que hasta hoy sostienen el silenciamiento y la vio- lencia contra la mujer.

Palabras clave: Historia de la Amazonía. Mujeres de la Amazonía. Desigualdad de género. Violencia contra la mujer.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2019.157418

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Introdução de 4,2 milhões de quilômetros quadrados (BRASIL, 2008b).

No Brasil, 13 mulheres são assassina- Segundo o último censo do Instituto das por dia. O país tem uma taxa de 4,8 homi- Brasileiro de Geografia e Estatística cídios para cada 100 mil mulheres, a quinta (IBGE, 2012), são 24 milhões de habitantes na maior do mundo (WAISELFISZ, 2015, p. 27). Amazônia Brasileira. O crescimento popu- Nota-se que apesar da criação de leis como lacional entre 1950 e 2007 totalizou 516%, a Maria da Penha, de 2006, as violências, contra uma média nacional de 254% no em seus mais diversos níveis, seguem mesmo período. Aproximadamente 12% alarmantes. Quando o assunto é violência da população brasileira vive na região. Sete sexual, a situação é ainda mais assustadora, milhões de pessoas permanecem na zona segundo a pesquisa “Estupro no Brasil: uma rural, minoria que realmente habita a flo- radiografia segundo os dados da saúde” resta e suas proximidades; enquanto 70% (CERQUEIRA; COELHO, 2014), produ- da população amazônica vive em vilas e zida pelo Instituto de Pesquisa Econômica cidades tão globalizadas quanto qualquer Aplicada (Ipea), a cada 11 minutos acontece outra cidade do país (BRASIL, 2008b, p. 22). um estupro no Brasil. A pesquisa ressalta a Ao contrário do que indica o senso comum subnotificação dos casos, falando em ape- e a simplificação midiática, a chamada flo- nas 10% de casos notificados, estimando resta amazônica e sua população está longe que, no mínimo, 527 mil pessoas sejam estu- de ser homogênea pradas por ano no país. As vítimas, em sua maioria, mulheres e meninas. A situação Desde o século XVI, os interesses das é crítica no que se refere aos direitos das classes hegemônicas dos principais países mulheres, porém, dentro do próprio Brasil, capitalistas influenciam diretamente sua existe uma região em situação de vulne- história. Em regra, a partir daquela época, rabilidade ainda maior: a Amazônia. Essa a maioria da população amazônica tornou- região do país está em desvantagem em -se classe subalterna e os rumos da região vários indicadores sociais, o que faz com passaram a ser definidos exogenamente. que a situação das mulheres seja ainda pior Dessa maneira criou-se o mito de um vazio que no restante da federação. demográfico e uma falsa unidade cultural num território muito vasto. A Amazônia Legal engloba hoje a totalidade dos seguintes estados brasilei- Desde o princípio, o mito do vazio demo- ros: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, gráfico soa como um enorme desres- Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e, peito a milhões de pessoas que viviam na parcialmente, Maranhão. Soma aproxi- Amazônia brasileira e, apurando-se mais madamente cinco milhões de quilômetros a crítica, percebe-se a sutileza de tratar-se, quadrados, cerca de 60% do território nacio- na verdade, de um vazio de pessoas consi- nal, dominada por dois biomas: cerrado deradas importantes para a sociedade bra- (20%) e floresta (80%). Portanto, o bioma sileira, ignorando o mérito dos índios e suas Amazônia de floresta representa cerca culturas. Inúmeras evidências fazem crer de 80% da região, ou seja, uma superfície que tal procedimento com o índio ainda

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existe […] evidencia-se a ação excludente É interessante notar que os estados promovida pelos países centrais do capi- amazônicos estão longe de liderar o ranking talismo, em qualquer período histórico. de feminicídios e de violência sexual em Ontem, o índio, hoje, o amazônida em geral números, porém estima-se que a região é (BITTENCOURT, 2013, p. 12). a com maior número de subnotificações do país (WAISELFISZ, 2015). Em algumas A Amazônia sempre foi vista como cidades interioranas sequer existem dele- mera provedora de matérias primas e gacias, a população não tem acesso à infor- de riquezas. Historicamente saqueada, a mação e o machismo impera impune. Além diversidade étnica, social e cultural não disso podemos destacar o uso corriqueiro vem acompanhada de qualidade de vida. O de armas de fogo e armas brancas no dia a Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), dia, sem nenhuma fiscalização ou controle. que considera indicadores como educa- ção, longevidade e Produto Interno Bruto De acordo com o Atlas da violências 2018 (PIB) per capita, apresenta números abaixo (CERQUEIRA et al., 2018), comparando as da média nacional de 0,757 em todos os taxas de homicídios de mulheres entre os estados amazônicos, exceto Mato Grosso anos de 2006 e 2016, nota-se que em quase (BITTENCOURT, 2013, p. 43). todos os estados que integram a Amazônia Legal houve aumento do número e taxa de A Amazônia brasileira é como um país feminicídios: no Acre a taxa subiu de 4,5 de segunda classe dentro do próprio Brasil. para 5,7; no Amazonas de 3,2 para 5,9; no Em 2006, os estados amazônicos apresen- Maranhão de 2,1 para 4,5; no Pará subiu taram graus muito inferiores aos nacionais de 3,9 para 7,2; em Roraima de 6,4 para 10; em termos de trabalhadores com carteira no Mato Grosso de 4,9 para 6,4; no Tocantins de trabalho assinada (Brasil: 31,73%, con- de 3,3 para 6. O único estado que apresen- tra Amazônia: 18,35%). Ressalta-se ainda a tou taxas decrescentes foi Rondônia, que existência do sistema de aviamento e escra- em 2006 apresentava uma taxa de 6,6; vidão. Nos primeiros sete anos do século caindo para 6,2 em 2016. XXI o Ministério do Trabalho e Emprego libertou 17.507 trabalhadores em condições As aproximadamente 12 milhões de escravidão, quase todos em estados da de mulheres que habitam a Amazônia região. É importante ressaltar que muitos Brasileira são a classe mais subalterna, den- dos trabalhadores resgatados eram mulheres tro de uma região subalterna, dentro de um em situação de escravidão sexual e vítimas país subalterno da América Latina. Essas de tráfico humano (BRASIL, 2008a, p. 54). mulheres são mulheres mestiças, negras, indígenas e ribeirinhas em sua maioria, o As condições de trabalho das mulhe- que aumenta seu grau de vulnerabilidade res na Amazônia mantêm-se inferiores social. Mulheres triplamente silenciadas, aos demais estados do Brasil. A mulher da espoliadas pela lógica capitalista, tendo seus Amazônia ganha o equivalente a 80% do corpos confundidos com mercadorias ou rendimento médio das mulheres brasileiras propriedade. Silenciadas pela história que e cerca de 70% do rendimento masculino há muito as trata como selvagens ou desim- na região (BRASIL, 2008b, p. 27-28). portantes. Silenciadas como seres humanos.

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É importante salientar que no Brasil 1. Aspectos históricos de uma as mulheres são maioria, compondo 51,4% Amazônia subalternizada da população. Os poucos estados que estão na contramão dessa estatística estão na Amazônia: Rondônia, Roraima, Amazonas Do ponto de vista da história oficial e Pará. Já Acre, Amapá e Mato Grosso pos- ocidental, que tratou a invasão europeia suem porcentagem equivalente de homens como “descoberta”, vê-se a história da e mulheres. Dessa maneira, a Amazônia Amazônia intimamente ligada à expan- acaba por ter uma população masculina são do sistema capitalista. Foram mui- superior à feminina. tas as expedições espanholas em busca de riquezas, matérias-primas e produtos Esse número de homens superior ao para o comércio. Essas expedições eram de mulheres pode ser explicado pelos fluxos guiadas por relatos difusos sobre a exis- migratórios para a região amazônica no tência de outros continentes e por mitos final do século XIX e início do século XX. como El Dorado, rio do ouro e cidade do Ao mesmo tempo, segundo Cristina Scheibe ouro. Estima-se que mais de 60 empresas e Wolff (2011) em muitos relatos históricos viagens espanholas foram realizadas para sobre a formação amazônica, as mulheres vasculhar a região do Rio das Amazonas da terra, ou seja, as indígenas, ribeirinhas e (GONDIM, 1994). pobres, não eram consideradas como popu- lação, ou seja, não eram contabilizadas por Os motivos que levaram os primeiros não serem consideradas humanas. europeus à Amazônia foram geopolíticos. Tiveram como contexto a disputa diplomá- Dentro dessa perspectiva e para tica das duas potências marítimas, Portugal entender as especificidades da Amazônia e Espanha, pelo domínio de terras descober- brasileira, é necessário conhecer um pouco tas a oeste e sul, do outro lado do Atlântico. mais sobre esse território de que tanto se fala e do qual tão pouco se conhece, prin- A ansiedade era tanta e as informações tão cipalmente quando falamos em termos de desencontradas que em 1494 se celebrou desenvolvimento humano. Quando se pro- o Tratado de Tordesilhas, que dispunha põe um tópico sobre a formação histórica da sobre os limites de terras desconhecidas Amazônia é justamente por acreditar que a pelas partes signatárias do acordo. Os ibé- situação precária e de vulnerabilidade em ricos, então, lançaram-se cada vez mais ao que vivem as mulheres amazônicas está mar. Junto com a descoberta do Brasil e intimamente ligada aos processos históri- da América, as implicações geopolíticas da cos e formativos da região. Se a Amazônia chegada à Amazônia foram consideráveis. foi uma região recentemente massacrada A Europa mudava sua visão de mundo, e violada pelo capitalismo mais primitivo tendo acesso a territórios, a espécies, a e selvagem, pode-se afirmar também que, biomas e a povos diferentes. No entanto, dentro desse processo, as primeiras víti- a planície amazônica permaneceu des- mas foram as mulheres, violadas tanto conhecida por mais de 40 anos, até que pelo forasteiro quanto pelo homem local em 1541 o governador da província de explorado. Quito (atual Equador), Gonzalo Pizarro,

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deu início a uma expedição para reconhe- cabelos enrolados na cabeça, andando nuas. cer e para tomar posse das terras entre os Segundo seus relatos, um índio da região Andes e o Oceano Atlântico, pertencentes que fora aprisionado e indagado sobre essas à Espanha, segundo Tordesilhas. Como mulheres disse que eram as amazonas. Elas fator econômico, havia a perspectiva de não teriam maridos e sacrificariam os bebês descoberta do “País da Canela” e do reino do sexo masculino. As meninas seriam do El Dorado (BITTENCOURT, 2018, p. 21). treinadas, desde pequenas, para a guerra. Não se sabe, até hoje, o que era realidade Os expedicionários, comandados por e o que era fantasia sobre essas mulheres Francisco de Orellana, homem de confiança guerreiras. Mas, de qualquer maneira, é de Pizarro, teriam de enfrentar diversos interessante notar que um dos primeiros percalços, como atravessar os Andes e eventos “históricos” que descrevem ofi- enfrentar uma série de barreiras naturais. cialmente a Amazônia começa por falar das mulheres, a história de uma possível A expedição de Orellana prosseguiu pelo sociedade matriarcal: o primeiro relato Napo, até chegar ao eixo do “Grande Rio” específico sobre as mulheres amazônicas1. ou “Paranauaçu”, como era chamado pelos povos indígenas aquele que seria depois Os relatos fantasiosos, exagerados denominado por Orellana como “Rio das e repletos de alegorias criam a Amazônia Amazonas”. Continuou navegando com da maneira como seria representada pelo o apoio das populações indígenas, tendo colonizador. O etnocentrismo do europeu chegado a 3 de junho de 1542 ao rio Negro, buscava associações com sua própria cul- nome dado pelo próprio Orellana, quando tura, mesmo havendo uma dessemelhança deparou com o encontro de suas águas extrema. Essa óptica permanece ainda nos com as do Amazonas. […] Finalmente, em dias atuais, gerando variadas distorções na 23 de junho, os aventureiros chegaram à representação e no imaginário sobre a região. foz do rio Nhamundá, onde se depararam com uma tribo indígena que lhes pareceu Contudo, algumas questões históri- ser constituída de mulheres guerreiras cas traçaram novos rumos importantes à (RIBEIRO, 2005, p. 30). região: no evento conhecido como União Ibérica (1580-1640), um monarca espanhol Orellana lembrou-se das lendárias assume a Coroa portuguesa. Assim, tanto o amazonas da Ásia Menor, batizando o Rio Brasil descoberto por portugueses (leste da como Rio das Amazonas, que posterior- linha imaginária de Tordesilhas) quanto a mente daria nome também ao bioma e a Amazônia (oeste) ficaram sob o domínio da toda a região. Segundo Gondim (1994), o Espanha. Dessa forma, em 1612, a coloni- responsável pelo relato da expedição era zação da Amazônia foi iniciada pelos dois Frei Gaspar de Carvajal, que descreveu com países unidos. O fato configura-se como riqueza de detalhes e também muito fan- tasiou sobre as amazonas sul-americanas. Carvajal narra batalhas ferozes com essas 1 As informações históricas do período, bem como os aspectos geopolíticos advindos de tais aconteci- mulheres, que tentavam matar os intrusos mentos, nesta e nas próximas páginas, baseiam-se em a pauladas. Elas seriam altas e brancas, com Ribeiro (2005).

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importante nos desdobramentos históricos ocupando a região, desafiando abertamente do território amazônico que viria a se tor- o Tratado de Tordesilhas. Portugal conso- nar português e, posteriormente, brasileiro. lidou assim sua presença na Amazônia, desconsiderando a presença indígena e A princípio, a Espanha saiu do Tratado culturas locais. Acreditavam que aqueles de Tordesilhas dona dos impérios mais ricos povos não poderiam ter soberania sobre do mundo: Maia, Asteca e Inca. Nestes suas terras porque seriam selvagens. Nesse investiu toda sua potência de exploração, sentido, justificaram um dos maiores geno- saqueando-os avidamente e deixando a cídios da humanidade, ocorridos nos sécu- Amazônia esquecida por um tempo, pois los XVII e XVIII. É importante destacar suas riquezas ainda precisavam ser desco- esse aspecto para iniciarmos o pensamento bertas para poderem ser exploradas. Como sobre os povos da Amazônia e a formação a base do Império Espanhol encontrava-se histórica da região. Os homens indígenas em terras andinas, para conseguir-se che- sofreram os mais diversos tipos de violên- gar até a Amazônia havia grande dificul- cia, sendo mortos e escravizados, enquanto dade em transpor a Cordilheira dos Andes. as mulheres indígenas estavam sujeitas Então, a melhor maneira de explorá-la seria a essas agressões e, também, a estupros, pela foz do Rio Amazonas, decisão tomada que eram corriqueiros. A miscigenação na em 1615, após a expulsão dos franceses da Amazônia ocorreu mediante violência. O Ilha do Maranhão. povo amazônico, miscigenado, nasceu do estupro, como em todo território nacional. A União Ibérica favoreceu que os por- tugueses pudessem adentrar na Amazônia Superiores na arte da guerra, os europeus sem que houvesse objeção ou resistência não titubearam em destruir culturas em espanhola. Além disso, as circunstâncias nome do comércio e do lucro, iniciando o obrigavam os espanhóis a indicarem portu- processo predatório da floresta e de seus gueses para colonizar a área, devido tanto povos. O objetivo era mostrar ao mundo o à proximidade das terras portuguesas das domínio sobre a Amazônia, criando uma terras amazônicas espanholas quanto ao situação irreversível de posse. Em 1654, conhecimento geográfico assimilado por criou-se o Estado do Maranhão e Grão- eles ao longo da colonização do Brasil2. Pará, em uma condição excepcional de autonomia. Desvinculado do Brasil, tinha Estabelecida a cidade de Belém na relação direta com a capital metropolitana, entrada da bacia amazônica (1616), a con- Lisboa (BITTENCOURT, 2018, p. 25). quista da planície parecia cada vez mais tangível aos portugueses. Mesmo com o fim A autonomia do Estado facilitou da União Ibérica em 1640, eles seguiram a implantação de cidades e vilas, que se transformaram em locais estratégicos para concentrar e exportar as drogas do sertão 2 É crucial entender que Amazônia e Brasil tive- e produtos florestais, como cacau, cravo, ram processos de colonização diferentes, em períodos sementes, raízes e madeira. Nesse contexto, diferentes e de maneiras diferentes, isso é demasiado importante para compreender a exploração desen- os missionários tiveram papel de extrema volvimentista tardia nesse território. importância, sendo os maiores agentes de

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ocupação efetiva da Amazônia pelos por- cada nação tomaria posse do que efetiva- tugueses (RIBEIRO, 2005, p. 61). mente possuía: Portugal ficaria com 70% da Amazônia. Neste momento, Brasil e Diversas ordens religiosas católi- Amazônia ainda eram colônias separadas, cas, como franciscanos, carmelitas, mer- com seus rumos seguindo paralelamente. cedários, jesuítas e capuchos, receberam Cartas Régias outorgando a elas poderes Com o Tratado de Madri (1750), D. para ocupar e “civilizar” as margens do Rio José subiu ao trono português, nomeando das Amazonas, perfazendo um total de 39 em seguida Marquês de Pombal como concessões. Foram enviados muitos missio- secretário de negócios estrangeiros e da nários para realizar a ocupação portuguesa guerra. Pombal permaneceu no Governo da região, considerando que a população Português por quase trinta anos, promo- indígena seria numericamente muito supe- vendo na Amazônia uma vasta mudança. rior à população portuguesa da época. O marquês começou por defender a sobe- rania direta de Portugal sobre a colônia, Projeções feitas a partir de documentos sem precisar do intermédio do governo e de pesquisas arqueológicas estimam instalado na capital brasileira. Em 1751, o a população indígena, por ocasião da Estado do Maranhão e Grão-Pará passou conquista, entre três e cinco milhões de a chamar-se Grão-Pará e Maranhão, com pessoas, na Amazônia brasileira. A pers- sede na cidade de Belém. pectiva histórica desses povos foi inter- rompida de forma brusca e violenta pelo As mudanças promovidas foram sig- projeto colonial que, valendo-se da guerra, nificativas e modificaram definitivamente a da escravidão, da ideologia religiosa e das Amazônia com: demarcação de terras; cria- doenças, provocou na Amazônia uma das ção da Capitania de São José do Rio Negro; maiores catástrofes demográficas da histó- grande mudança na relação entre Estado ria da humanidade, além de um etnocídio e igreja; incentivo à migração de colonos sem precedentes (CARVALHO; HECK; e incentivo à miscigenação destes com as LOEBENS, 2005, p. 238-239). indígenas (estupro sistemático); implantação do trabalho escravo em 1756 para reforçar o A Amazônia era considerada uma cultivo de cacau, café, algodão, cana-de-açú- terra sem dono, mesmo sabendo que o ter- car e fumo; e estímulo à pecuária. ritório era há muito ocupado por diversos povos indígenas. Esses eram vistos como Em 1772, o estado do Grão-Pará e desimportantes. Inúmeras evidências Maranhão foi dividido em dois: Maranhão fazem crer que tal imaginário sobre os e Piauí; e Grão-Pará e Rio Negro (atual povos amazônicos ainda existe. Amazônia brasileira, exceto Acre), com capital em Belém. Iniciava-se a conjuntura No século XVII Portugal e Espanha que tornaria a Amazônia parte do Brasil resolveram negociar a revisão do Tratado algum tempo depois. Esses estados não de Tordesilhas. Os dois países declararam foram imediatamente afetados pela inde- violação ao tratado na Ásia e na América. pendência do Brasil em 1822, tendo em vista A partir disso, ficou estabelecido que que estavam subordinados diretamente

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a Portugal. Somente em 15 de agosto de Essa revolta torna-se importante na 1823 a província do Grão-Pará aderiu ao história amazônica pois, entre 1835 e 1840, os Império do Brasil, após movimentos favorá- cabanos conseguiram representar uma iden- veis à independência, conduzidos pela elite tidade coletiva amazônica, que chegou a assu- paraense. Já a capitania de São José do Rio mir caráter separatista, “o Paiz do Amazonas”. Negro incorporou-se ao Brasil somente em Era a luta entre a classe subalterna explorada 9 de novembro do mesmo ano. e o colonizador que seguia comandando todo o sistema produtivo e a política. Ao mesmo tempo em que um imperador português governava o Brasil (D. Pedro I), A revolução social dos cabanos que explo- na prática, os antigos colonizadores con- diu em Belém do Pará, em 1835, deixou tinuavam no poder, mas agora livres do mais de 30 mil mortos e uma população controle de Portugal e, devido à imensa local que só voltou a crescer significativa- distância da capital do novo país (Rio de mente em 1860. Este movimento matou Janeiro), também se encontravam distan- mestiços, índios e africanos pobres ou tes de qualquer controle do Estado brasi- escravos, mas também dizimou boa parte leiro. Essa elite, formada por portugueses da elite da Amazônia. O principal alvo dos e seus descendentes, viu-se à vontade cabanos era os brancos, especialmente os para desencadear uma brutal exploração portugueses mais abastados. A grandiosi- sobre a região e sobre sua população, for- dade desta revolução extrapola o número mada em sua maioria por descendentes e a diversidade das pessoas envolvidas. de negros, índios aculturados e mestiços Ela também abarcou um território muito em geral. Quando a Amazônia brasileira amplo. Nascida em Belém do Pará, a revo- já somava uma população de 80 mil habi- lução cabana avançou pelos rios ama- tantes, eclodiu a Revolução dos Cabanos zônicos e pelo mar Atlântico, atingindo (BITTENCOURT, 2018, p. 29). os quatro cantos de uma ampla região. Chegou até as fronteiras do Brasil central 1.1 A Cabanagem e ainda se aproximou do litoral norte e nordeste. Gerou distúrbios internacionais Segundo Ribeiro (2005, p. 123), os na América caribenha, intensificando um cabanos eram caboclos que viviam sem importante tráfico de ideias e de pessoas qualquer possibilidade de ascensão social, (RICCI, 2007, p. 6). econômica ou política que vinham cobrar das elites brancas a situação de miséria em Ricci (2007) traz ainda diversas aná- que viviam, responsabilizando essas elites lises sobre esse movimento, que foi um dos por seu sofrimento. Pessoas em situação de mais importantes da história da região, exploração que se organizaram em torno de ressaltando seu caráter revolucionário e uma consciência de classe. Recusavam-se o caráter de luta de classes que assumiu, continuar a ser explorados e subalterni- conseguindo manter um governo popular zados, buscavam uma visão autêntica de amazônico no poder por um curto período. seu povo e poder decidir os rumos de suas Nenhuma outra revolta ou movimento teve próprias vidas, com um governo represen- tanto impacto por tanto tempo quanto esta. tativo livre do cabresto dos colonizadores. Por 17 anos a Amazônia viveu uma guerra

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civil, estima-se que 40% de sua população comprovam a prisão, em um evento, de tenha sido dizimada. “O massacre desse 30 mulheres que compunham a frente de movimento […] fez com que se silenciasse batalha; em outra circunstância aponta para a a visão desses amazônidas a respeito de prisão de mulheres e homens atuando juntos, si próprios, de sua região e dos outros” havendo 11 mulheres armadas. Outra ocasião (GONÇALVES, 2008, p. 19). Mais de 40 mil relatada por meio de cartas enviadas é a de pessoas morreram na Cabanagem, sendo mulheres espiãs, tanto pelo lado dos cabanos 30 mil entre os cabanos. quanto pelo lado dos portugueses. Porém, com o fracasso do movimento, os pobres e explora- 1.2 Onde estavam as mulheres? dos voltaram ao lugar de origem, silenciados pelo capitalismo colonialista que voltava ao Até aqui, nesta pequena parte resu- controle na Amazônia brasileira. mida história da Amazônia, nota-se que não há personagens mulheres. Os primeiros 1.3 Os homens e o seu ciclo da colonizadores a chegarem em seus barcos borracha e os portugueses que adentraram pela pri- meira vez a região do Rio das Amazonas O século XIX trouxe a atividade extra- eram exclusivamente homens. Na descrição tivista da borracha, o maior acontecimento histórica de Ribeiro (2005), Gondim (1994) e da história política, social e econômica da Bittencourt (2018), principais referências uti- Amazônia brasileira, desenvolvida para for- lizadas até aqui, não se encontram persona- necer matéria-prima à indústria automo- gens do sexo feminino. O ato de colonizar era bilística (RIBEIRO, 2005, p. 163-166). Com masculino e as mulheres caboclas e índias, a invenção do pneumático em 1888, com o nativas da região, não eram consideradas surgimento do automóvel em 1895 e com o cidadãs. A história oficial não traz retratos aumento do uso da bicicleta como meio de da vida das mulheres nesse período, pouco transporte, cresceu também a demanda por se sabe sobre elas e como viviam. borracha para fabricação desses materiais no mercado mundial, o que trouxe impactos Porém, na Cabanagem, nota-se a exis- diretos sobre a Amazônia. “No período de tência mais contundente de mulheres. Apesar quarenta anos, de 1870 a 1910, a população da de seus nomes não constarem em dados da região Norte passou de 323 mil para 1.217.000 historiografia oficial, podemos encontrar habitantes. Esse crescimento teve reflexos na diversos indícios de que participaram ati- participação amazônica na população total vamente da revolta. Eliana Ramos Ferreira do país, que se elevou [sic] de 3,3% para 5,1%” (2003) escreveu um dos raros artigos sobre (ALEGRETTI, 2002, p. 47). De acordo com a a presença das mulheres na Cabanagem. autora, de 300 a 500 mil nordestinos vieram Segundo a autora, o movimento foi uma para a Amazônia fugidos da seca e em busca revolta familiar, em que todos participaram. de melhores condições de vida nesse período. As mulheres participavam tanto na reta- É importante ressaltar que essas grandes guarda, produzindo alimentos e criando con- levas de nordestinos, que vieram para ocupar dições para que os maridos e filhos pudessem e demarcar a região, eram quase que exclu- estar na guerra, como integrando a frente sivamente compostas por homens, trans- de batalha. A autora traz documentos que formando a população amazônica em uma

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população predominantemente masculina. supérfluos. Para controlar os meios de “Em 1869 o movimento da imigração para a comercialização, era proibida a presença Amazônia mostra a seguinte composição por de regatões [comerciantes autônomos dos sexo: do total de 1.676 imigrantes, 1.348, ou rios amazônicos] e exigida exclusividade seja, 80% eram homens e 96% deles vieram dos seringueiros em relação ao patrão que sem família” (Ibidem, p. 50). Há poucos relatos os aviava, tanto na compra de bens de da vinda de mulheres durante o primeiro consumo quanto na venda da borracha. O ciclo da borracha. descumprimento destas regras implicava em punições severas aos seringueiros Com a crescente demanda por [inclusive violência física] […]. látex, as décadas de 1890 e 1910 foram de plena expansão da economia da borracha. Foi com base neste modelo que a imagem Contudo, o desenvolvimento econômico do seringal ficou associada a atrocidades não refletia em desenvolvimento local, a e violências cometidas por seringalistas Amazônia continuava sendo uma simples contra seringueiros e à caracterização do provedora de matérias-primas. seringal como uma modalidade de orga- nização da produção na qual predomi- Os seringueiros que chegavam à nava uma espécie de trabalho escravo. As Amazônia já chegavam devendo a sua afirmações de Euclides da Cunha (1976) viagem de vinda ao dono do seringal, de que os seringueiros trabalhavam para estando submetidos ao conhecido sistema reproduzir a própria escravidão, ou de de aviamento. Viviam em situação análoga Castelo Branco (1922) de que o seringueiro à escravidão, pois eram obrigados a vender era um verdadeiro escravo sujeito a puni- a borracha que produziam pelo valor que o ções, inclusive o açoite, são reafirmadas seringalista (patrão) estipulasse. Os produ- por Chico Mendes na entrevista epígrafe tos de subsistência e higiene também deve- deste capítulo (ALLEGRETTI, 2002, p. 135). riam ser comprados nas vendas do seringal por valores extorsivos. Soma-se a isso que Ao mesmo tempo em que a Amazônia a maioria dos seringueiros era analfabeta, integrava a uma nova etapa da Revolução o que facilitava as distorções nas contas. Industrial, hordas de seres humanos viviam Assim, eram raros os que conseguiam sair em situação de escravidão, em condições da condição de endividamento. de vida degradantes, em pleno século XX.

O modelo de seringal tido como clássico pela literatura é aquele que surgiu no período do auge da produção de borracha na Amazônia. Em função dos altos pre- 2. Os seringais e a violência ços, predominavam regras voltadas para como linguagem viabilizar o aumento constante da pro- dução a custos sempre mais baixos, como o endividamento prévio, a preferência Segundo Wolff (1997) a sociedade por trabalhadores solteiros, a proibição dos seringais era atravessada pela violên- de roçados, o incentivo ao consumo de cia em todos os níveis de relação social.

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A violência era uma linguagem. Nesse sen- Na cultura do seringal as mulheres tido, as relações sociais de gênero sempre não passavam de uma mercadoria de luxo, possuem aspectos específicos e peculiares, podiam ser traficadas, vendidas, enco- ainda mais quando se cria uma sociedade mendadas, pegas nas matas se fossem dominada exclusivamente por homens, indígenas, ou roubadas. No seringal, ser como aconteceu na Amazônia. A autora mulher era pertencer a um homem. Era fala que nos últimos anos do primeiro ciclo obedecer. Era não poder traçar os rumos da borracha apenas 25% da população seria de sua própria história. composta por mulheres. A sociedade da violência era a sociedade do patriarcado A pesquisa de Wolf relata ainda como mais cruel e primitivo. era comum mulheres indígenas serem pegas nas matas para servirem como escravas Os homens vinham sozinhos ou solteiros sexuais dos seringueiros e demais homens na maior parte dos casos. Com o tempo, que participavam dessa dinâmica de violên- esta diferença numérica tendeu a dimi- cias do seringal. As “correrias” eram organi- nuir, porém as levas contínuas de novos zadas pelos seringalistas e seringueiros para migrantes até a década de 1950 faziam tomar as terras dos povos indígenas, matar com que sempre se mantivesse alguma os índios e aprisionar algumas mulheres e diferença. Para um seringal nos moldes crianças. Esse termo “correrias” nada mais tradicionais, em que a agricultura era é do que um eufemismo para nomear a proibida no intento de que o seringueiro organização de genocídios com fins fun- se dedicasse integralmente à borracha e diários e sistematizar a cultura do estupro dependesse do patrão para seu abasteci- das mulheres indígenas. Neste momento mento, as mulheres não tinham, por prin- não havia diferenciação de classe, todos se cípio, nenhuma função produtiva. Com a uniam enquanto homens para matar indí- crise do preço da borracha a partir de 1912, genas e estuprar mulheres. “Se a ‘cabocla’ porém, a subsistência nos seringais passou não queria aquele homem estranho que a depender de uma série de atividades se apossava dela, amarravam suas mãos, agrícolas e extrativistas complementares, colocavam um pau em sua boca para que o que deu maior visibilidade ao trabalho não atingisse o homem com suas mordidas. feminino e infantil (WOLFF, 1997, p. 96). Amansavam-na” (WOLFF, 1997, p. 104).

A autora fala ainda sobre diver- Se a situação geral de vida nos serin- sos documentos aos quais teve acesso na gais era difícil e o seringueiro sofria diver- região do Alto Juruá, no Acre, que citavam sas formas de violência de seus patrões, a diversos casos de estupros e de violência situação da mulher (tanto das que viviam doméstica, caracterizando como normais os no seringal quanto das indígenas) era ainda crimes de honra. Em seu trabalho, a autora muito pior, pois estava sujeita às mais diver- mostra inclusive como documentos oficiais sas atrocidades. Sofriam violências físicas, justificavam os abusos, espancamentos e psicológicas e sexuais tanto dos seringalis- mortes quando considerado que era para tas quanto dos seringueiros. Frisemos que defender a honra do homem. A violência nesse período os indígenas não eram sequer contra a mulher era aceita pelo Estado. considerados humanos.

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Em meados de 1912, o cultivo de demonstrando que nem sempre o desen- borracha na Ásia começou a ultrapas- volvimento econômico acompanha o desen- sar a borracha nativa da Amazônia nos volvimento humano, muitas vezes, como principais mercados mundiais. Assim, os nesse caso, ocorre o contrário. Com o início preços caíram repentinamente, ocasio- das atividades de agricultura e criação de nando a falência das mais importantes pequenos animais, as mulheres passaram casas aviadoras de Manaus e Belém. Todo a ter algum valor na vida produtiva, pois complexo seringalista começou a ruir. Para o trabalho doméstico e o cuidado com os Bittencourt (2018), existem outros fato- filhos não eram vistos como trabalho. Surge res que influenciaram no fim do sistema a dupla jornada de trabalho nos seringais. seringalista, como a incapacidade da elite amazônica em conseguir o controle do setor Durante a Segunda Guerra Mundial, de exportação e o governo brasileiro ter volta-se a buscar a borracha da Amazônia, priorizado os investimentos na economia pois os aliados haviam perdido acesso à borra- cafeeira, pois a aristocracia amazônica pos- cha asiática devido ao bloqueio dos japoneses. suía um papel secundário no novo cenário Dessa maneira, o Brasil fechou acordos com nacional republicano que surgia. os Estados Unidos para o fornecimento de matéria-prima para a guerra. Novas levas de Foi-se o surto econômico da borracha, mas seringueiros chegaram a Amazônia na década nem toda a empresa extrativista se desfez. de 1940 e os seringais foram reativados. Nesse O migrante nordestino passou a ser mora- novo momento os bancos norte-americanos dor da Amazônia, e buscou reorganizar financiaram diretamente a reativação dos sua vida a partir da disponibilidade de seringais e a viagem dos nordestinos para terras, da riqueza da floresta e dos rios. o Acre, principal produtor de borracha na Os seringais sobreviveram com caracte- Amazônia. Os nordestinos foram forçados rísticas transfiguradas, administrados das a escolher entre integrar as trincheiras da maneiras mais díspares, dependendo da guerra ou vir para o Acre e, dessa maneira, dinâmica e história de cada um. Muitos mais 50 mil nordestinos (maioria cearense) seringueiros permaneceram nos serin- chegaram à Amazônia, juntando sua mão de gais abandonados pelos patrões originais, obra aos descendentes dos seringueiros que ora administrados diretamente por casas ali estavam desde o primeiro ciclo da borra- aviadoras como pagamento de dívidas. cha. Uma grande seca em 1942 contribuiu A prática da agricultura (antes proibida para essa migração. Nesse segundo ciclo o pelos seringalistas como forma de garan- governo brasileiro se prontificou a ofertar o tir lucros com a venda de alimentos aos material logístico básico para sobrevivência seringueiros) passou a ser permitida, bem no seringal e exigiu que os seringalistas assi- como o extrativismo. Como consequência, nassem contrato de trabalho a fim de garantir houve queda nos índices de mortalidade os direitos humanos básicos aos seringueiros, e doença (BITTENCOURT, 2018, p. 34-35). que tinham sido tão explorados no Primeiro Ciclo da Borracha (RIBEIRO, 2005). Desse modo, pode-se dizer que a vida dos amazônidas tornou-se melhor com É interessante notar que nesse momento a decadência da economia da borracha, a população amazônica é composta em sua

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grande maioria por homens, trazidos para da Amazônia (RIBEIRO, 2005). Assim, os trabalhar nos dois ciclos da borracha; todavia, seringueiros tornaram-se um grande grupo durante o segundo ciclo algumas mulheres representativo do povo amazônico. vieram juntamente com seus maridos e filhos. A elas era imputado o trabalho doméstico, além Com o Golpe Militar em 1964 as elites de cuidar da agricultura. Muitas, inclusive, regionais amazônicas perderam seus privilé- passaram a cortar seringa para aumentar a gios, surgindo novos grupos de exploradores: produção da família. Além disso, a vinda das gestores territoriais civis e militares a serviço famílias dos seringueiros fez com que estes se do grande capital nacional e internacional. fixassem à terra, transformando um acampa- mento de homens em uma nova organização Iniciou-se, assim, o tempo dos grandes social familiar fixa (WOLFF, 1998, p. 84). projetos amazônicos, resumido no lema “Integrar para não entregar”. O desenvol- A miscigenação forçada entre serin- vimento previsto pelos militares, com forte gueiros e indígenas, desde o Primeiro Ciclo teor geopolítico, estruturou-se por meio da Borracha, fez com que a disparidade entre da criação de algumas leis e instituições: os sexos fosse diminuindo ao longo do tempo. Banco da Amazônia S/A (Basa), em 1966; Porém, ainda hoje se reflete na parcela maior Superintendência do Desenvolvimento de homens do que de mulheres na Amazônia. da Amazônia (Sudam), em 1966; Lei de Não há como negar que um sistema que foi Incentivos Fiscais, em 1966; Lei sobre a constituído sob a violência contra as mulheres nova política da borracha, em 1967; criação em pleno século XIX não tenha gerado uma da Zona Franca de Manaus, em 1967. Em sociedade patriarcal, falocêntrica e violenta resumo, todas essas iniciativas sinalizaram que se perpetua até hoje. O processo de mis- a manutenção da Amazônia sob a tutela cigenação forçada por meio da cultura do federal. Seguiu-se a construção das grandes estupro que se iniciou no Brasil como um estradas, conformando o novo padrão de todo no século XVI, na Amazônia iniciou-se “ocupação” da Amazônia, visando a inte- no século XIX, e portanto demonstra marcas grá-la com as demais regiões do país por muito mais recentes e profundas. vias terrestres (BIITENCOURT, 2018, p. 37).

Desencadeou-se um processo de globalização da Amazônia. Se a população era predominantemente rural, buscou-se 3. A exploração moderna desenvolver o meio urbano e aumentar seu do território e do povo contingente populacional. Todavia, com a crise mundial instituída pelo aumento repentino dos preços do petróleo, esses Com o fim da guerra, em 1945, a produ- projetos foram afetados, pois os recur- ção da borracha entrou novamente em crise sos públicos passariam a priorizar outros devido à queda do preço do látex no mercado setores. Assim, a lógica capitalista passa a internacional. No entanto a borracha conti- imperar de forma explícita na Amazônia, nuou sendo o principal produto de exporta- que continua sendo uma fornecedora de ção do Acre e de diversas outras localidades matérias-primas para os maiores centros.

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Nesse período a pecuária e uma variedade torna muito menos evidente quando se finge de atividades extrativistas, como a mine- não haver seres humanos sendo explorados ração e a retirada de madeira das matas em meio às grandes obras, com a mineração nativas, instauraram-se definitivamente. A e com a retirada sistemática da floresta. Essa chegada de um sistema baseado em relações ideia impregnou-se de tal maneira no senso estritamente financeiras chocou-se fron- comum (ratificado pela mídia) que várias talmente com o modo de vida comunitário pesquisas acadêmicas relacionam instan- local. Seringueiros, indígenas e ribeirinhos taneamente a Amazônia a meio ambiente, nunca haviam experimentado um processo encobrindo e muitas vezes ignorando a exis- tão acelerado e tão violento de mudança nos tência de populações nesses locais. hábitos e costumes (GONÇALVES, 2008). Essa visão de que Amazônia é apenas Em 1974, o Governo Federal lança uma área de florestas e rios tem contribuído o Programa de Polos Agropecuários e para que a região seja excluída politicamente Agrominerais da Amazônia (Polamazônia), das decisões sobre seus próprios rumos. incentivando a exploração mineral na Pode-se dizer que essa postura acadêmica e a região: exploração de manganês na Serra visão do senso comum são complementares do Navio; implantação da primeira empresa na criação de lugares autônomos. Lugares de extração da Caulim da Amazônia (Cadam) inabitados, que existiriam para além dos e extração de bauxita no Rio Trombetas, moradores locais e estariam a serviço do em Oriximiná – Pará. As explorações eram forasteiro, seja nas atividades turísticas ou realizadas por empresas estrangeiras, algu- na exploração capitalista mais direta. Na mas em parceria com empresas nacionais Amazônia “a população foi relegada a uma como a Vale do Rio Doce (MONTEIRO, 2005). situação subalterna de provedora de maté- Eram os parceiros poderosos da ditadura ria-prima a preços irrisórios, em um sistema garantindo seus grandes lucros por meio da que vai fixar a riqueza resultante em outros exploração da terra e sociedade amazônica. É territórios” (BITTENCOURT, 2018, p. 39). necessário citar ainda a grande exploração de minérios na Serra dos Carajás; a construção Em pleno século XXI a lógica explora- da Hidrelétrica de Tucuruí; a Ferrovia Serra tória e a ideia de um local que é fronteira de do Carajás; diversos novos portos e estradas; desenvolvimento persiste. Atividades mine- dentre outras obras desenvolvimentistas. radoras, legalizadas e clandestinas, estão espalhadas pelo território. Quem mora em A busca por modernização e por obras uma cidade amazônica pode comprovar a em nenhum momento se preocupou com as quantidade de caminhões carregados de populações tradicionais locais, muito antes madeira que passam pelas rodovias todos os pelo contrário, seringueiros e indígenas dias. Enormes áreas de florestas são queima- foram vistos como entrave ao desenvolvi- das todos os anos para dar lugar à pecuária mento da região, massacrados e explorados. extensiva, que predomina em estados como Mato Grosso, Rondônia e Acre. Este traba- A ideia de uma Amazônia restrita ao lho nomeia essas atividades como coloni- recurso natural foi e é muito conveniente zadoras, atividades que, além de degradar aos interesses hegemônicos. A exploração se o meio ambiente local, não geram riquezas

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localmente, com uma produção de lucro dire- distantes de informações que possam vir tamente atrelada à produção de miseráveis. a ajudar em um processo de empodera- Como afirma Becker (2009), a Amazônia mento, e ao mesmo tempo são estereo- ainda vive uma fase de capitalismo anterior tipadas pelo forasteiro, pela mídia e até à fase pela qual passa o restante do Brasil. pelas produções acadêmicas, o que eleva seu grau de insegurança.

São mulheres esquecidas pelas polí- ticas públicas e também pela ciência, e Considerações finais esse é um ponto bastante significativo da conclusão deste trabalho, para que possamos tecer críticas construtivas às Pode-se afirmar que o processo de pesquisas acadêmicas realizadas sobre as colonização violento aconteceu em todo mulheres da Amazônia. Durante o levan- o território nacional, mas a peculiaridade tamento bibliográfico para a construção amazônica está justamente no “desenvol- desse artigo, foram encontrados muito vimento tardio”. O capitalismo violento e poucos trabalhos que versavam sobre a devastador permaneceu por muito mais questão da mulher amazônica, inserida tempo que em outras regiões do país. Desde nesse desenvolvimentismo tardio. Os o princípio da colonização de portugueses resultados trouxeram artigos, teses e dis- e espanhóis na América Latina, o processo sertações muito específicos, mais voltados de colonização da Amazônia brasileira dife- a trabalhos etnográficos com populações riu do processo no Brasil, tendo em vista ribeirinhas, seringueiras e mulheres indí- que a Amazônia não integrava o território genas, ou ainda relacionando essas popu- nacional. Peculiaridades históricas pouco lações a áreas florestais de conservação. A conhecidas e que fizeram muita diferença procura por fontes nos principais portais nos processos de desenvolvimento impostos acadêmicos nacionais e do mundo mos- a essas regiões. Na Amazônia a escravidão trou que a imensa maioria das pesquisas foi praticamente reinventada para gerar disponíveis on-line sobre Amazônia trata uma produção sem precedentes de látex de questões ambientais, associando fauna, em pleno século XIX. flora, topografia, hidrografia, ao mesmo tempo em que a maioria delas não inclui Dentro da lógica falocêntrica que o fator humano como essencial. norteia toda a sociedade capitalista, as atividades colonizadoras, em sua imensa O mito do vazio demográfico e a este- maioria, têm como agentes concretos reotipação da população dessa região não homens. Mulheres, em um capitalismo estão presentes apenas na mídia e no senso que exalta a realização do trabalho braçal comum, mas também na pesquisa cientí- predatório, são ainda mais desvalorizadas fica realizada no Brasil e no exterior, que e vulneráveis. São apagadas da história. É acaba por desconsiderar a maioria da popu- o que acontece na Amazônia. As mulheres lação local. Este trabalho não questiona estão expostas a todos os tipos de violência a importância das pesquisas sobre meio dentro de suas localidades, muitas vezes ambiente na Amazônia, mas sim acredita

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ser um problema que estas não venham Essa mulher amazônica precisa do espaço acompanhadas de averiguações sobre as para dissertar sobre si e encontrar solu- populações que a habitam. Em uma região ções endógenas para a questão dos silen- que tem mais de 70% das pessoas vivendo ciamento histórico e violento. Precisamos na zona urbana (BRASIL, 2008, p. 22), a ouvir e procurar soluções por meio das maioria das pesquisas ater-se apenas às mulheres na e da Amazônia. Precisamos zonas rurais e seus habitantes demonstra de uma perspectiva decolonial. que temos uma lacuna científica muito grande. O problema é que a maior parte das pesquisas realizada na Amazônia ainda acontece sob a ótica do colonizador.

A imensa maioria das bibliografias encontradas sobre a mulher amazônica usa os termos “mulheres da floresta”, “mulheres das águas”, abordando apenas realidades específicas das populações ribeirinhas, seringueiras ou indígenas, conforme des- crito anteriormente. O estudo das realida- des dessas mulheres se faz profundamente importante em uma região extremamente periférica do país, porém estando as pesqui- sas voltadas apenas a essas mulheres, 70% das mulheres amazônicas ficam fora desses estudos. Mulheres da floresta não é sinô- nimo de mulher amazônica, por exemplo. Essas características definidoras acabam por reiterar a lógica hegemônica, que, por meio de uma visão etnocêntrica, avalia o [ FABIANA NOGUEIRA CHAVES ] exótico, o pobre, o periférico. Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Produtora cultural e As mulheres amazônicas são as pesquisadora da Universidade Federal do Acre (Ufac). mulheres indígenas, são as seringueiras, Coordenadora do NEGA – Núcleo de Estudos de mas são, também, em sua maioria, mulheres Gênero e Raça da Amazônia (CNPq/Ufac). que hoje vivem nas cidades globalizadas E-mail: [email protected] e acabam sendo silenciadas pela mesma historiografia tão criticada pela academia. [ MARIA RITA DE ASSIS CÉSAR ] Portanto, a solução para o silenciamento das Professora do quadro permanente do Programa mulheres amazônicas, sejam elas, ribeiri- de Pós-Graduação em Educação da Universidade nhas, seringueiras, indígenas ou urbanas, Federal do Paraná (UFPR). Coordenadora do LABIN – é que elas possam inserir-se na academia, Laboratório de Investigação em Corpo, Gênero e ter voz, ocupar os espaços de produção Subjetividade na Educação (CNPq/UFPR). de conhecimento e de políticas públicas. E-mail: [email protected]

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[ ARTIGO ]

Nadiesda Dimambro Universidade de São Paulo. Nadiesda Dimambro Mulheres no Brasil dos Anos 1970: Militância, Mídia e Padrão de Beleza 158  

[ RESUMO ABSTRACT RESUMEN ]

Este artigo aborda o contexto brasileiro dos anos 1970, marcados pela ditadura mili- tar e pelo nascimento de um movimento feminista com cores locais. Investigou-se a realidade de uma parcela diminuta de brasileiras que escolheu engajar-se na militância de esquerda e na resistência, mas também se lançou olhar sobre as mídias de ampla circulação em diálogo com a maioria das mulheres: as telenovelas, as fotonovelas e as revistas. A partir disso, o objeto de estudo é a existência feminina em toda sua pluralidade, porém marcada por padrões de beleza e de comportamento que moldam os corpos.

Palavras-chave: Ditadura Militar. Feminismo. Padrão de Beleza. Mídia.

This article deals with the Brazilian context of the 1970s in Brazil, marked by the military dictatorship and the birth of a feminist movement with local colors. The realities of a small number of Brazilians who chose to engage in left-wing militancy and resistance was investigated, as well as the widely circulated media that impacted most women at that time: soap operas, fotonovelas and the magazines. From this, the feminine existence, in all its plurality, but marked by beauty standards and behavior control, which shaped the bodies, is object of study.

Keywords: Military Dictatorship. Feminism. Beauty Standards. Media.

El presente artículo aborda el contexto brasileño de los años 1970, marcado por la dictadura militar y por el nacimiento de un movimiento feminista con colores locales. Se investigó realidades de una parte diminuta de brasileñas que eligieron involucrarse en la militancia de izquierda y en la resistencia, pero también se echó una mirada sobre los medios de amplia circulación en diálogo con la mayoría de las mujeres: las telenovelas, las fotonovelas y las revistas. A partir de eso, el objeto de estudio es la existencia femenina, con toda su pluralidad, pero marcada por patrones de belleza y comportamiento que moldean los cuerpos.

Palabras clave: Dictadura Militar. Feminismo. Patrón de Belleza. Medios de Comunicación.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2019.155487

Extraprensa, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 157 – 178, jan./jun. 2019 [ EXTRAPRENSA ] Nadiesda Dimambro Mulheres no Brasil dos Anos 1970: Militância, Mídia e Padrão de Beleza 159  

Faremos um percurso de análise que en- dura se manteve como uma contínua volve a investigação de dois “lugares” de ameaça de retrocesso até o fim do governo presença feminina na década de 1970: o da Figueiredo (FAUSTO, 2002, p. 270). militância política e o das imagens e repre- sentações criadas pelas mídias, com espe- Ao mesmo tempo em que o desgas- cial enfoque sobre os padrões de beleza do tado regime dos militares parecia prosseguir período. A consideração de uma história da com a restauração de direitos e liberdades, beleza se põe necessária, bem como refle- o país é tomado de assalto pelo assassinato xões acerca das conexões entre a vaidade do jornalista Vladimir Herzog em 1975, e o feminino ao longo do tempo. Além dis- disfarçado de suicídio, que gerou muitos so, o cenário de consumo e de informação protestos populares: “No curso de 1975, através de revistas, televisão e fotonovelas Geisel combinou medidas liberalizantes serão objetos de estudo, bem como o cená- com medidas repressivas. Suspendeu a rio de militância feminina e feminista em censura aos jornais e autorizou uma forte contexto de ditadura militar. repressão ao PCB, acusado de estar por trás da vitória do MDB [eleições legislativas O golpe civil-militar de 1964 impôs ao de 1974]” (FAUSTO, 2002, p. 271). Outro Brasil um duro período ditatorial, em que fator importante foi o Pacote de Abril de direitos básicos foram extintos, a censura 1977, que dentre outras medidas fechava se instaurou e a violência repressiva tomou o congresso e alterava as regras para as conta dos principais centros urbanos. Nosso eleições do ano seguinte, estrangulando período de maior interesse, de 1975 a 1980, novamente a política brasileira, evitando não será enfocado isoladamente, e sim ana- avanços democráticos. Contudo, é também lisado à luz dos fatos anteriores, dos cha- no mesmo período, no final da década de mados “anos de chumbo”, e os posteriores, a 1970, que novas formas de organização chamada “distensão”. O governo do ditador e resistência se desenvolvem, como é o Ernesto Geisel (de 1974 a 1979) apresenta- caso dos sindicatos de trabalhadores no -se como aquele que, ao mesmo tempo que ABC Paulista. Em 1978-1979 temos uma anuncia a abertura política, empreende significativa greve dos metalúrgicos de São ações violentas contra indivíduos e grupos. Bernardo do Campo, liderados por Luís Desde o início os militares apresentam o Inácio Lula da Silva, reivindicando corre- projeto de abertura política como “lenta, ção dos salários de acordo com a inflação. gradual e segura”, destacando que acon- teceria de acordo com as regras deles, da Nessa mesma década vemos, também, melhor maneira para eles próprios. Esse a eclosão de um movimento feminista orga- período de escancaradas contradições pode nizado no Brasil. O encontro de diversos ser compreendido da seguinte maneira: fatores tornou isso possível, destacaremos os três principais (SARTI, 2004, p. 37). Não Na prática, a liberalização do regime, significa, porém, que não houve pensamento chamada princípio de distensão, seguiu feminista anterior a esse momento, tendo um caminho difícil, cheio de pequenos em vista que desde o início do século XX avanços e recuos. […] Assim, a abertura temos mulheres envolvidas nos movimentos foi lenta, gradual e insegura, pois a linha sufragistas nacionais, por exemplo.

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O primeiro fator é o Ano Internacional como um todo. É muito difícil, portanto, da Mulher, instituído pela Organização das dissociar o feminismo brasileiro da década Nações Unidas (ONU) em 1975,1 que traz à de 1970 de uma abordagem interseccio- tona discussões sobre a condição feminina nal, principalmente no tocante às relações a partir de uma grande instituição com entre gênero e classe. perspectiva global. Um segundo fator é a modernização pela qual o Brasil vinha É importante salientar que as mulhe- passando desde os anos 1950, com a massi- res brasileiras desse período, e de qual- ficação do ensino público e a expansão do quer outro, não estão sendo consideradas mercado de trabalho. O país é afetado, em um grupo homogêneo e, conforme dito seu contexto específico de ditadura militar, acima, as diferenças de classe e também pela revolução comportamental que se de raça fazem-se determinantes em muitos dá no hemisfério norte, com as primei- momentos. A relevância histórica da parti- ras lutas feministas nos Estados Unidos, cipação política feminina se dá de maneira ao lado do movimento negro encabeçado múltipla e complexa. Notam-se dinâmi- pelos Black Panthers, do movimento paci- cas de poder e disputas constantes desde fista de contestação à guerra do Vietnã e a massiva atuação e suporte das mulheres do surgimento da pílula anticoncepcional. de classes médias e altas na articulação do Uma terceira circunstância nessa com- golpe militar, que teve seu auge na Marcha plexa conjuntura de surgimento de um da Família com Deus pela Liberdade, até a movimento feminista organizado no Brasil resistência de mulheres jovens militantes refere-se ao próprio contexto militante, de esquerda em partidos comunistas ilegais pois o cenário de lutas contra o governo ou guerrilhas. autoritário a partir de 1964 propicia a emergência de críticas e questionamentos Baseado em dados do Projeto Brasil acerca do papel social da mulher na socie- Nunca Mais sobre a oposição à Ditadura dade brasileira, de forte herança patriarcal. Militar, Marcelo Ridenti (1990, p. 114) traz à Este último ponto traz consigo, embutido, tona um instigante mapeamento da quanti- o forte caráter marxista deste feminismo dade de mulheres envolvidas na resistência da resistência à ditadura, dos partidos de à ditadura e, em sequência, o perfil dessas esquerda, então postos na clandestinidade, militantes: das guerrilhas urbanas e da luta armada Verifica-se que elas [organizações de esquerda] eram compostas por ampla 1 “Na conferência do Ano Internacional da mulher, maioria masculina nos anos 60 e 70. […] ocorrida no México, com a participação de duas mil mulheres do mundo inteiro, foi aprovada a moção em No total de 4124 processados das esquer- prol da anistia, encaminhada pela brasileira Terezinha das, 3464 eram homens (84,0%). Já os Zerbini, uma das principais lideranças desse movi- grupos armados urbanos no seu conjunto mento. […] Graças ao desempenho das mulheres, 1975 tornou-se de fato o marco histórico para o avanço das tiveram percentagem um pouco mais ideias feministas no Brasil. Sob uma ditadura militar, significativa de mulheres na sua com- mas com o apoio da ONU, a mulher brasileira passou, posição, 18,3%. Os grupos nacionalistas, então, a ser protagonista de sua própria história, em que a luta por seus direitos específicos se fundia com em geral, contaram com poucas mulheres as questões gerais” (TELES, 2017, p. 93-95). em suas fileiras.

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À primeira vista o número que reflete (133; 23,0%), ou de outras profissionais a participação feminina, de 18% em média, com formação superior (103; 17,8%), pode parecer inexpressivo. Contudo se con- perfazendo um total de 422 mulheres – siderarmos que, na época, as mulheres ocu- 73,0% – que poderiam ser classificadas pavam “posições submissas na política e como de camadas médias intelectualiza- na sociedade brasileira, pelo menos até o das (RIDENTI, 1990, p. 115). final dos anos 1960” e que “a norma era a não participação das mulheres na política” A fim de apresentar a complexi- (RIDENTI, 1990, p. 114), podemos observar dade do cenário político e feminino da significativo avanço no envolvimento em época, Ridenti também destaca relatos lutas políticas, mesmo que ainda não tradu- de mulheres que participaram da luta zidas explicitamente em pautas feministas, armada e revelam perceber, ou refletir, e sim em transformação da ordem ditatorial a respeito dos machismos presentes nos vigente. Além disso, há de se notar maior movimentos políticos apenas a posteriori, participação feminina em grupos armados muitas vezes em contato com outras do que na esquerda partidária tradicional – mulheres e experiências, munidas de o pesquisador verifica 5% de mulheres pro- certa bibliografia no novo país em que cessadas por envolvimento com o Partido se encontravam exiladas. Como exemplo Comunista Brasileiro (PCB) – o que nos leva das ações machistas desempenhadas pelos à constatação do caráter revolucionário homens presentes nas organizações de dessas militantes. Uma vez que as mulheres esquerda, os testemunhos relatam a falta transformam-se em soldados, no que há de de confiança nas mulheres no tocante ao mais “masculino” no termo, empunhando manuseio de armas mais pesadas, a acu- armas, vivendo em más condições de clan- sações constantes de que as companhei- destinidade e abnegando-se, muitas vezes, ras não tinham estabilidade emocional, de uma rede de afetos envolvendo família ou mesmo o fato de ser raríssimo a pre- e filhos (virgindade, casamento, materni- sença de mulheres em cargos de liderança dade), denota a convicção de possibilidades desses movimentos. Além disso, certas de outros papéis sociais às mulheres, indo tarefas eram “naturalmente” sugeridas contra o destino feminino socialmente tra- ou atribuídas às mulheres, como aquelas çado na época. que envolvessem sedução para obtenção de informações, o que poderia levar a O movimento estudantil foi o núcleo militante a um grande risco, além de atos de onde saiu a maioria das militantes, o que sexuais não consentidos. nos indica um caráter específico de perfil socioeconômico dessas mulheres, tendo De início os militares estavam preparados em vista que até os dias atuais as pessoas para combater guerrilheiros barbudos e brancas de classes médias e altas são as que armados, mas não mulheres, jovens, que detêm maior acesso ao ensino superior: pudessem sair facilmente de uma ação militar e se confundir na multidão, com A esmagadora maioria das denuncia- outras milhares de brasileiras que fre- das das esquerdas compunha-se de quentavam as ruas e logradouros públicos estudantes (186; 32,2%), de professoras (TELES, 2017, p. 83).

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Esses testemunhos históricos coleta- compartilham com os companheiros, dos por tantos pesquisadores evidenciam sofrem também com aqueles atrelados uma visão bastante tradicional do feminino à condição feminina em uma sociedade por parte da esquerda revolucionária, mos- escancaradamente machista: trando as camadas de preconceito e subju- gação que ainda precisavam ser vencidas, Primeiro estão os perigos da vida clandes- mesmo nos meios mais intelectualizados tina: da alta tensão das ações armadas à e contestadores. Em tom quase anedó- tensão permanente da vida nos “apare- tico, Ridenti menciona ainda o romance lhos” constantemente sob a ameaça da autobiográfico de um então militante da repressão. Depois vêm os riscos da morte Ação Libertadora Nacional (ALN) carioca, e da tortura. No caso das mulheres, os Reinaldo Guarany (A fuga, 1984, p. 31), em depoimentos convergem para um ponto que discorre sobre a aparência física das crucial. Ao lado da dor física e da quebra militantes, fazendo uma associação entre moral que a tortura produz (ou busca grau de beleza e grau de extremismo da produzir) cabe às mulheres uma cota organização: “[…] quanto mais barra pesada suplementar de sofrimento que resulta da fosse a organização (ALN e VPR), mais feias violência sexual (estupros, às vezes segui- eram as mulheres e menos havia”. Falando, dos de gravidez) ou dos rituais de humi- também, acerca da maior liberação sexual lhação a que são submetidas em função de dessas mulheres e que, apesar de estarem sua condição feminina. Posteriormente ali quebrando “dogmas e tabus” ainda “pre- está o cárcere, visto por muitas – assim cisavam de um braço peludo para as horas como pelos homens – como um momento de desamparo” (RIDENTI, 1990, p. 119). relativamente tranquilo, se comparado com o período da tortura. Finalmente Um dos relatos de exiladas é o de está a reinserção no que chamam de Zuleika Alambert, líder comunista entre “vida legal”, às vezes mediada pelo exílio os anos 1940 e 1960. A mídia logo tratou de (GARCIA, 1997, p. 327). colocar fotos de Zuleika Alambert nos jor- nais com legendas como “loira dos assaltos” É fundamental compreender como ou “a bela do terror”, e a respeito disso ela esse percurso da militância feminina de afirma: “Eu lia todos os jornais para ver se esquerda vai constituir núcleos importantes transparecia um pouco do que eles sabiam, de luta feminista no pós-ditadura e pós- cheguei à conclusão de que a acusação con- -exílio, pois essas sobreviventes retornam tra mim era ser mulher” (COSTA et al., 1980, do exterior afetadas por contatos com teo- p. 208 apud RIDENTI, 1990, p. 122). Como rias feministas e psicanalíticas. Como bem bem destacou o Ridenti (1990, p. 119): “A explicou Garcia (1997, p. 332), teoria que pairava entre os militantes era a de igualdade entre homens e mulheres, Não é ocasional que alguns dos grupos mas a prática verifica-se outra”. que mais contribuíram para a elaboração e difusão do pensamento feminista dos As consequências do engajamento 70/80 no Brasil – Nós Mulheres, Brasil na militância de esquerda para as mulhe- Mulher ou o Coletivo Feminista de Paris – res são diferentes, além dos perigos que tivessem uma forte participação de (ex)

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militantes de organizações de esquerda. 1980, mais especificamente a revista de Esse feminismo se construiu em um diá- publicação semanal O Pasquim (1969-1991). logo (auto)crítico com o que haviam sido Comprometidos com ideais de esquerda, as esquerdas nos anos 60/70 e ajudou a libertários e críticos ao status quo, os escri- encontrar respostas para sua crise antes tores e jornalistas usaram muitas linhas mesmo que surgissem as primeiras racha- para desqualificar a luta e a produção de duras no muro de Berlim. mulheres feministas.

As mulheres militantes desse Contra essas mulheres, as temidas “femi- momento histórico recusaram-se a cumprir nistas”, lançavam seus dardos inúmeros o destino imposto ao seu sexo, deixando articulistas de O Pasquim. Antigos este- muitas vezes o espaço doméstico, o casa- reótipos são restaurados, entre outros, a mento tradicional e a maternidade roman- feiúra, a menor inteligência ou, inversa- tizada para pegar em armas e lutar por seus mente, o perigo da presença desse atributo, ideais. As transgressões dessas mulheres a inconseqüência, a tendência à transgres- não foram feitas, obviamente, sem altos são, a masculinidade com vista a identificar custos psicológicos, afetivos e físicos. Os negativamente aquelas que postulavam relatos das sobreviventes desse período, papéis considerados privativos dos homens. como é o caso da militante e escritora Maria Não poucas matérias registram tais “qua- Amélia de Almeida Teles, é fonte histórica lidades” das feministas, o que aproxima inestimável para compreender as relações os libertários desse jornal do momento de poder e violência vigentes, amalgamadas da contracultura dos misóginos de outras a partir do relato em primeira pessoa. Esses épocas (SOIHET, 2005, p. 595). depoimentos relatam o cunho machista das violências específicas direcionadas às Lançaram mão da zombaria como mulheres na tortura, como também as difi- arma de deslegitimação das pautas colo- culdades dentro dos próprios movimentos cadas por diversas mulheres da época, emancipatórios, desvelando as contradi- dando espaço e voz para artistas em alta ções, muitas vezes, entre companheiros e no momento fazerem o mesmo: “Erasmo companheiras de um mesmo movimento Carlos, em sua entrevista afirmava não lhe político: “[…] as mulheres puderam sentir as agradar ‘mulher que tem a mania de ensi- discriminações por parte de seus próprios nar a gente’. Para ele, ‘a mulher inteligente companheiros, tanto pela superproteção se finge de burra para que o homem sinta como pela subestimação de sua capacidade aquela superioridade natural’” (SOIHET, física e intelectual. […] nas mãos do ini- 2005, p. 603). Betty Friedan, importante migo, enfrentaram a tortura […] e violência feminista estadunidense, veio ao Brasil em sexual” (TELES, 2017, p. 81). 1971 a propósito do lançamento de A mística feminina, e a convite da intelectual Rosie A pesquisadora Rachel Soihet fez Marie Muraro.2 Concede entrevista ao detalhada investigação sobre a mídia alternativa de esquerda desse momento,

com foco no Rio de Janeiro entre os finais 2 “Em plena vigência do AI-5 (Ato Institucional), da década de 1960 até o início dos anos a feminista viabilizou a vinda da norte-americana

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Pasquim, sendo atacada e insultada diversas das periferias – e a Igreja Católica, institui- vezes pelos entrevistadores, todos homens ção esta, que também exerceu participa- de esquerda, comprometidos com a luta ção importante nas lutas de resistência do democrática. período, principalmente a vertente ligada à Teologia da Libertação. Apesar dos desa- Como podemos observar, as mulheres cordos e enfrentamentos entre os atores dessa época – militantes politizadas ou não sociais mencionados, observa-se articulação – tiveram que lidar e, de alguma maneira, entre eles em prol de um objetivo comum, absorver esses ataques ao feminismo que o fim da ditadura: vinham de todos os lados, dos inimigos e dos aparentes aliados, armados com estratégias Entretanto havia dificuldades nessa diversificadas: tarefa; dirigentes políticos ou religiosos do bairro cercavam as feministas para Evidencia-se que algo aparentemente impedi-las de falar sobre sexualidade, inofensivo como a zombaria, o deboche, violência sexual e doméstica, aborto e, configura-se como forma de violência, enfim, tudo o que envolve mais de perto inoculando representações com vistas a condição feminina, a pretexto de que à conservação do status quo, através da tais questões só ‘dividem o movimento ridicularização de movimentos em prol de operário’, enfraquecendo a luta conjunta mudanças com relação aos papéis exerci- pelas transformações sociais (TELES, dos por mulheres e homens na sociedade 2017, p. 87). (SOIHET, 2005, p. 609). O cenário de alianças e disputas neste Como dito, o movimento feminista momento de transição democrática coloca brasileiro desse momento é encabeçado por em foco as pautas feministas, principal- mulheres de classe média que tiveram na mente a questão do divórcio, do trabalho maioria das vezes acesso à formação supe- doméstico e da independência financeira. rior. Intitularam-se movimento de mulhe- As mulheres, claramente posicionadas res, e buscaram, ao longo das décadas de como feministas ou não, tiveram que lidar 1970 e 1980, articulação com os movimen- com as fortes suspeitas com relação ao femi- tos populares de bairro, o que mais uma nismo, que vinham de todos os lados: vez nos leva à necessidade de pensar classe nesse contexto. Assim como destacado por Inicialmente, ser feminista tinha uma Sarti (2004, p. 39), há uma atuação conjunta conotação pejorativa.3 Vivia-se sob fogo entre as militantes de esquerda, os movi- cruzado. Para a direita era um movimento mentos populares – baseados na vivência e nas demandas cotidianas das moradoras 3 Esta conotação pejorativa também acarreta con- sequência no meio artístico: “Essa construção social de feminista como pária é um dos vários pontos de ao Brasil para o lançamento de A mística feminina, temor que fez com que algumas artistas mulheres escandalizando a imprensa e parte da “sociedade brasileiras, apesar de seu claro interesse nas questões machista”. Entretanto, a semente foi lançada para a femininas e feministas, renegassem qualquer ligação proliferação de fóruns e debates sobre questões espe- com o movimento, por receio de serem reduzidas a cíficas da mulher” (CAVALCANTI, 2005, p. 253). ‘artistas panfletárias’” (TRIZOLI, 2012, p. 413).

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imoral, portanto perigoso. Para a esquerda, feministas na época em jornais, revistas reformismo burguês, e para muitos homens e outros meios de comunicação de massa, e mulheres, independentemente de sua ressaltando a importância de algumas figu- ideologia, feminismo tinha uma conotação ras visionárias daquele período. antifeminina (SARTI, 2004, p. 40). Comecemos pela revista Cláudia do Em finais da década de 1970, com o grupo Abril, que surgiu em 1961 já com o início da abertura política, o movimento intuito de ser uma publicação direciona- feminista passa a expor questões mais das às mulheres de classe média. Carmen conectadas com suas pautas, como iden- da Silva foi a jornalista responsável, por 22 tidade de gênero. Percebemos, então, ao anos, a começar em setembro de 1963, pela longo da década de 1970, que a aparente coluna “A arte de ser mulher” da revista, “unidade” do movimento de mulheres foi em um período em que era bastante rara a se dissolvendo em vertentes de atuação presença feminina4 nas redações de jornais pública, por meio de Organizações Não e revistas, mesmo se tratando de um veículo Governamentais (ONG) e movimentos por direcionado ao público feminino. Carmen melhorias na qualidade de vida destas a par- tratava de temas hoje claramente feministas, tir de políticas públicas e atuação privada, e tinha “um texto leve, embora trabalhado, com centros de estudos mais localizados, sem rusgas de autoritarismo e moralismo, sendo uma parte restrita autodenominada e baseado fortemente no instrumental da feminista (SARTI, 2004, p. 41). psicanálise” (DUARTE, 2007, p. 199).

Como bem explicitou a militante e Essa seção da revista Cláudia chegou sobrevivente Maria Amélia de Almeida a receber entre 400 e 500 cartas por mês, Teles a respeito da participação feminina com perguntas de leitoras principalmente em esferas diversas da sociedade naquele entre 18 e 24 anos, na sua grande maio- momento, elas estiveram envolvidas em ria casadas, e que queriam estar casadas. menor contingente na resistência de As respostas e comentários de Carmen na esquerda e na busca pelos seus filhos e coluna evitavam o aconselhamento direto companheiros que estavam na resistência, (Ibidem, p. 200), tendo em vista a tensão do mas “o grande contingente saiu em busca governo ditatorial e a pressão masculina que de mercado de trabalho, que absorvia, de vinha de todos os lados. Intentou, também, maneira expressiva, a mão-de-obra femi- construir uma imagem da feminista como nina” (TELES, 2017, p. 63). uma estudiosa, equilibrada e madura, na contramão dos estereótipos, já comentados, Aquelas que não se envolveram em nenhum grupo de ação direta contra o governo dos militares, mas que compuse- 4 “Pouco tempo antes, os textos publicados eram ram a onda de transformações no tocante assinados pela desconhecida Dona Letícia, sobre aos papéis sociais destinados a homens e quem a revista não fornecia referências. Tudo leva mulheres na década de 1970. Para tanto, a crer que os textos dessa “articulista” fossem feitos por redatores homens, uma vez que só estes forma- abordaremos agora qual era o status do vam a redação de Claudia, antes de Carmen da Silva” feminismo e das discussões de pautas (DUARTE, 2007, p. 199).

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que vigoravam. Fez críticas ao casamento, Carmen durante os 22 anos à frente da ao ambiente doméstico, à falta de indepen- coluna “A arte de ser mulher”, de maneira dência financeira das mulheres, à materni- interessante para pensarmos a relação dade. Defendeu, inclusive, o divórcio, tema entre temas e fases do feminismo atrelados bastante controverso na época. Sua coluna ao desenvolvimento do contexto histórico. se contrapunha não apenas às normas com- A primeira seria a “fase do despertador”, ou portamentais instituídas, mas muitas vezes “fase de Lázaro”, que começa em 1963 com o ao próprio conteúdo da revista, contradi- início da aproximação com temas feminis- zendo e rebatendo outras seções da revista. tas, incomuns na mídia da época. A segunda Um bom exemplo disso está nos seus artigos seria a “fase absolutamente institucional”, contrários à padronização da beleza e ao que inicia a partir da segunda metade da seu enaltecimento como valor feminino década de 1960, e diz respeito à crise no essencial, que seriam publicados em páginas casamento e aos conflitos dentro da família. circundadas por propagandas da crescente A terceira fase, ao longo da década de 1970,5 indústria de cremes antirrugas, com pro- foi caracterizada pelo engajamento mais messas de eterna juventude, cintas modela- explícito e direto com a causa feminista, doras e fluidos de beleza para o combate de em que Carmen admitia estar influenciada sinais de idade: “Para Carmen, a busca por por “ventos que vinham soprando de outros ajustar-se aos padrões reverenciados pela continentes”. Não por acaso, foi a fase de ‘literatura barata’ e pela publicidade só mos- maior reação dos homens. A quarta e última trava o quanto o ideal sexy correspondia ao fase identificada pela pesquisadora teve iní- comportamento de submissão e repressão cio em 1979 e coincidiu com certa revisão de sexual para as mulheres” (Ibidem, p. 211). alguns pressupostos do próprio movimento feminista internacional, em movimento de Podemos destacar, ainda, outros enfo- autocrítica e da verificação da necessidade ques importantes dados pela colunista, e que de preservação de certas características e contribuíram com a circulação de ideias valores, culturalmente femininos e rene- emancipadoras e alinhadas muitas vezes com gados durante a luta das mulheres, para se o feminismo que vinha do hemisfério norte: afirmarem no espaço público.

Carmen da Silva, ao abordar nos seus No entanto, é importante ressaltar artigos problemas do cotidiano da mulher que caiu em essencializações e naturaliza- de classe média, questionava o compor- ções atualmente questionadas, pois “procu- tamento tradicional da mulher: “Deve rando defender as mulheres das acusações a recém-casada trabalhar?”, “Trabalhar de futilidade, fragilidade e emotividade para não ser bibelô”, “A conquista de um lugar ao sol”, “Independência” e “Amor” eram temas por ela abordados em textos 5 “Em julho de 1971, dois meses depois da visita da escritora norte-americana Betty Friedan ao Brasil, ela que procuravam orientar as mulheres em publicou a resenha do best-seller Mística Feminina, direção à autonomia (TELES, 2017, p. 67). principal obra impulsionadora do movimento femi- nista norte-americano. A tentativa de desnaturalizar as “diferenças de gênero” – termo usado por Carmen, A pesquisadora Ana Rita Duarte a partir de 1979 – seria uma das preocupações da jor- (2007) organizou a longa produção de nalista, nessa terceira fase” (DUARTE, 2007, p. 210).

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excessivas, Carmen construiu o discurso livre, ágil, ativa, nova cidadã e nova inte- entusiasmado que generalizou comporta- grante do mercado, explicava a fisiologia do mentos femininos como bons, e masculinos corpo feminino e masculino, atentando para como maus” (DUARTE, 2007, p. 215). o clitóris como lugar fundamental do prazer sexual. Artigo de maio de 1979, intitulado Ainda sobre a relevância e o impacto “Orgasmo”, fala em alcançar o orgasmo pelo da revista Cláudia, a pesquisadora Talita clitóris, já que o vaginal é um mito (RAGO, Trizoli mapeou a relação entre a publi- 2002, p. 193). cação e temas recorrentes entre artistas mulheres da época, pois segundo ela é jus- Sobre outro nicho de publicações tamente dos textos de Carmen que vêm a escritas, faz-se fundamental mencionar a grande influência de temáticas feministas intelectual e escritora Rose Marie Muraro,6 em artistas como Anna Maria Maiolino, que à frente de uma editora buscou trazer Wanda Pimentel, Iole de Freitas, Maria do para o mercado editorial brasileiro discus- Carmo Secco e Regina Vater, além de Letícia sões que já corriam nos Estados Unidos e Parente e Sônia Andrade, justamente por na Europa, principalmente acerca do papel sua grande circulação pela revista feminina social das mulheres e das mudanças com- mais vendida no país na época (TRIZOLI, portamentais em voga. Como dito ante- 2012, p. 416). Essas artistas mencionadas riormente, foi peça chave na difusão da intentaram teoria feminista de Betty Friedan, trazendo a autora para lançar seu livro no Brasil e construir uma crítica à reificação da participar de outras atividades de divulga- mulher como objeto familiar […] questio- ção de suas ideias em tempos tão sombrios nando a objetificação do corpo feminino na América Latina. Sabemos que Friedan como aparato de desejo social e sua cons- circulou no Brasil muito mais e muito antes trução discursiva a partir do olhar mas- que os escritos anteriores de Simone de culino, como foi o caso de Iole de Freitas, Beauvoir, que publicou O segundo sexo em onde o corpo é desdobrado e ameaçado, e 1949, todavia foi absorvida no Brasil apenas Regina Vater, onde as curvas femininas a partir da década de 1980. são analogias do ideário tropical carioca e espaço de um paraíso hedonista – mas isso se nos atemos a suportes tradicionais, pois tanto Letícia Parente quanto Sônia Andrade colocaram em xeque o estatuto 6 “A Editora Rosa dos Tempos inaugurou, em plena década de 90, uma linha voltada aos temas da imagética feminina e suas relações emergentes e relacionados às condições de vida das corpóreas com suas experimentações com mulheres brasileiras, dando maior ênfase às áreas super 8 e vídeo (Ibidem, p. 416). de Humanidades e Ciências Sociais. Apesar de ino- vadora e ousada, a editora representou o resultado do conhecimento do movimento feminino e femi- Vale também lembrar da revista nista, que ganhava novas cores desde a década de 70, Nova, que teve importante papel na disse- trazendo praticamente duas décadas de empenho, minação da chamada “revolução clitoriana”, expressões e novas abordagens, especialmente den- tro das Ciências Humanas e Sociais. Perfilaram nos pois já em seus primeiros artigos, ao propor catálogos nomes de feministas internacionalmente uma nova figura de mulher independente, famosas e que serviam” (CAVALCANTI, 2005, p. 256).

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Dentro, ainda, do espectro das publi- no Brasil a revista Capricho8 que, de início, cações escritas, precisamos mencionar os publica histórias inteiras em suas edições, jornais que circulavam, voltados clara- não separadas como as concorrentes. A pes- mente para as pautas feministas e que, quisadora Raquel de Barros Pinto Miguel mesmo em menor medida, impactaram as (2016) destrinchou as publicações de vinte leitoras e contribuíram para a construção fotonovelas da Capricho entre os anos de de uma nova mentalidade. Temos o jornal 1956 e 1969, e fez apontamentos valiosos Brasil Mulher (outubro de 1975 a março de para a investigação aqui proposta. 1979), que começou a ser editado no Paraná e depois passou para São Paulo. Sua tiragem As fotonovelas da Capricho nessa oscilava entre 5 mil e 10 mil exemplares e época exploravam com recorrência uma sua periodicidade era irregular, ora bimes- imagem feminina jovem, bem vestida, tral, ora trimestral. Já em junho de 1976, pálida, e, muitas vezes, órfã. Tais caracte- foi publicado o primeiro número do jornal rísticas imprimem a valorização de uma Nós Mulheres, o qual, segundo Amélia Teles construção do feminino a partir da fragi- (2017, p. 99) “contribuiu de forma decisiva lidade, pureza, sofrimento, desproteção e para o avanço de ideias feministas e para meiguice. Como bem apontou a autora: “o o combate à discriminação”. Em 1981 é lan- perfil procurado para o papel da mocinha çado em São Paulo, com apoio da Fundação é a de uma atriz com rosto meigo, belo e Carlos Chagas e organizado por mulheres melancólico, que transmita suavidade e feministas e intelectualizadas como a jor- ternura” (Ibidem, p. 297). Além da supre- nalista Adélia Borges, o jornal Mulherio, que macia da beleza jovem, como apontado, dura até 1987. Esta publicação “tratava de também aparece o elemento de competição temas candentes ao feminismo: a exten- entre mulheres, mãe e filha, tia e sobri- são da licença-maternidade para os pais (o nha, colocando em evidência novamente jornal foi precursor dessa ideia no Brasil), a as questões relacionadas aos padrões de democracia doméstica, a situação da mulher beleza instituídos na época. negra e a existência de um movimento de mulheres negras” (Ibidem, p. 101). As mocinhas das fotonovelas anali- sadas por Miguel faziam parte das classes Outro meio de publicação escrita, populares ou médias, e tinham as seguin- considerado menos “nobre”,7 mas com um tes ocupações recorrentes: professora, alcance muito maior que os já citados é a fotonovela. Elas chegam ao Brasil na década de 1950 e passam a ser publicadas com mais 8 “No ano de 1956, a Capricho atingiu a, até então, vigor na década de 1970, sobrevivendo maior tiragem de uma revista da América Latina, rom- até meados de 1980. Em 1952 é lançada pendo a marca dos quinhentos mil exemplares. Esse sucesso perdurou ao longo dos anos 1960 e estava relacionado, especialmente, às fotonovelas por ela publicadas que, entre os anos de 1950 e 1960, eram o 7 “Um fantasma assombra o mundo da boa litera- carrochefe da revista. A grande maioria das fotonove- tura: a má literatura, especialmente aquela das revis- las publicadas nas revistas brasileiras era italiana ou tas femininas populares. […] Ainda tem um lado mais francesa. A produção de fotonovelas era bastante one- perverso: funcionar como anestésico da consciência rosa, por esse motivo, as editoras brasileiras preferiam popular” (JOANILHO; JOANILHO, 2008, p. 530-531) importá-las a produzi-las” (MIGUEL, 2016, p. 296).

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secretária, costureira, estilista, funcionária importante do que o amor seria garantir de banco, sendo apenas três donas de seu que não se ficasse para ‘titia’, assim como próprio negócio. Além disso, seis heroínas garantir um futuro financeiro confortável. eram estudantes, mas apenas uma delas […] Ou seja, as críticas com relação ao amor fazia curso de nível superior, o que nos servem para dar ainda mais força ao amor” remete à transmissão de um destino social (Ibidem, p. 305-306). generificado atrelado à não inclusão das mulheres nos cursos superiores, tendo em Entretanto, nem tudo são críticas ao vista a supervalorização do casamento e formato e ao conteúdo das fotonovelas. Há da vida/trabalho doméstico. Como se pode quem destaque que o ataque que essa mídia imaginar, diferentemente das heroínas, a de massa sofreu enquanto produção cultural maior parte das profissões desempenhadas menor é injusto, pois poderia ser aproxi- pelos heróis exigia curso superior. Outro mada dos folhetins e romances populares elemento que nos interessa aqui e que a do século XIX, uma vez que “permite a rein- pesquisadora levanta, é que “a profissão venção narrativa e desloca o leitor como pro- de artista (ator, cantor, pintor) esteve pre- dutor e não apenas receptor” (JOANILHO; sente em três histórias, conferindo, a seus JOANILHO, 2008, p. 538). Estes autores personagens, um ar de modernidade, van- ainda vão além, desvelando um certo cará- guardismo e ousadia” (Ibidem, p. 301). ter hagiográfico da fotonovela, pois

A pesquisadora conclui que os valo- o herói ou a heroína demonstra logo de res do sacrifício e do amor conjugal são início que possui todas as virtudes beati- os grandes enfoques das histórias, ampla- ficas, mas num sentido laico. […] O caráter mente consumidas pelo público feminino dos heróis está predefinido como nos e popular,9 e que a maioria de finais feli- contos hagiográficos, afinal, santidade zes nas histórias faz referência ao ideal não conhece variação – ou se é ou não do amor romântico, mas que os poucos se é santo (Ibidem, p. 540). finais não felizes também cumprem uma função moralizadora de apologia ao matri- Há um reforço de certa norma do mônio: “Elas trazem a noção de que mais mundo pautada no certo e o errado, o bem e o mal, o que está acima e o que está abaixo, o mal deve ser punido e o bem recompensado. 9 “O público da fotonovela é um público majorita- Fato é que as fotonovelas são produtos cul- riamente feminino e culturalmente pouco exigente, turais que não podem ser enfocados apenas com pouca formação e com um baixo poder econó- com olhar redutor e simplista, pois implicam mico. As revistas de fotonovela têm como finalidade a transmissão dos princípios éticos, morais e sociais uma ordenação ética e comportamental do concordantes com o sistema de valores da ideolo- cotidiano ao qual se inscreveram nas mais gia dominante através da integração da mulher na íntimas práticas. sociedade urbana. […] “Como obra, a fotonovela seria o eufemismo do pastiche. Pastiche do folhetim, do cinema, dos quadrinhos, da literatura, da fotografia, Outro veículo cultural de viés popular enfim, reúne em si o que há de mais kitsch na cultura importantíssimo neste momento é a televi- ocidental e “kitsch é o que surge consumido; o que chega às massas ou ao público médio porque já está são. Sabe-se bem do amplo e significativo consumido” (JOANILHO; JOANILHO, 2008, p. 532). alcance da televisão e, mais especificamente,

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das telenovelas no seio dos lares brasilei- consumindo também uma infinidade de ros. Junto com elas vieram os anúncios10 bens e serviços para o cuidado e embele- e a construção de um fetiche por produtos zamento de seu corpo. e artistas que permeará o imaginário de todas as classes sociais: “pode-se afirmar Faz-se mister notar que essa impor- que se trata de constituir os espectado- tante penetração da televisão nas casas res em consumidores” (ALMEIDA, 2007, brasileiras não se deu apenas a partir de p. 179). O meio doméstico é visto pela publi- produtos alienantes ou reforçadores da cidade como um ambiente feminilizado, ou sociedade patriarcal. A TV Globo estreou, seja, o alvo maior das propagandas e ideias em 24 de maio de 1979,11 o seriado Malu exibidas são as donas de casa, “a novela é mulher, visando atingir mulheres de classes pensada pelo meio industrial e publicitário médias urbanas, e com um projeto enca- como um produto feminino” (Ibidem, p. 182). beçado por um time de roteiristas que buscou tratar de temas modernos da vida O tipo feminino explorado pelas nove- das mulheres sob uma ótica progressista las, principalmente a partir de finais da e sem tabus. O seriado fez críticas abertas década de 1970 abraça estereótipos, mas ao machismo, ao casamento tradicional, à também propõe uma mulher de classe hipocrisia e à opressão presentes nas rela- média ou alta que concilia trabalho e mater- ções sociais e familiares, à violência contra nidade, cuidados com a casa e com a famí- mulheres. Defendeu ideias de indepen- lia, sem deixar de lado o casamento. Há a dência, realização profissional e sexual, e exibição de certa emancipação feminina a diferentes possibilidades de maternidade. partir do trabalho e da vida sexual plena, sempre acompanhada de valores que pro- O primeiro episódio12 tem Malu, inter- tejam a família nuclear tradicional. Este pretada por Regina Duarte – a então “namo- tipo feminino nada simplificado permite, radinha do Brasil”, acostumada com papéis aos olhos de Almeida (Ibidem, p. 189): de destaque, mas nem sempre de força, passa

promover uma infinidade de bens e ser- viços que “facilitam” a vida da mulher que 11 Ficou no ar até dezembro de 1980 e teve um total de total de 76 episódios. Direção: Daniel Filho, trabalha fora, mas que nunca deixa de ser Paulo Afonso Grisolli e Denis Carvalho. Equipe de boa mãe, esposa e dona-de-casa (ou seja, criação: Armando Costa, Lenita Plonczynski, Renata a responsável pela família e pelo espaço Palottini, Manoel Carlos e Euclydes Marinho. Foi doméstico), além de ser bela e se cuidar, vendida para 50 países e recebeu prêmios na Espanha e nos Estados Unidos. Como consequência do grande sucesso de Malu Mulher, a TV Globo lançou Mulher 80 (1979), um especial musical que falava do papel 10 “No meio publicitário é senso comum que a tele- das mulheres na música popular brasileira, a partir visão facilita a criação de ‘novos comportamentos’, de depoimentos e apresentações musicais de Maria ou seja, novas atitudes que incorporam mais bens Bethânia, Gal Costa, Fafá de Belém, Rita Lee, Elis de consumo no cotidiano […] pois consegue atingir Regina, Zezé Motta, Simone, Quarteto em Cy, Marina amplos setores desse mercado consumidor nacio- e Joanna. Dirigido por Daniel Filho e apresentado por nal que tem foco nos grandes centros urbanos, nos Regina Duarte, o programa contou ainda com a parti- maiores mercados do Sudeste, Sul e Nordeste, e nas cipação especial de Narjara Turetta. camadas de maior potencial de consumo, as chama- 12 Disponível em: https://glo.bo/2WoKYVH. Acesso das classes A, B e C” (ALMEIDA, 2007, p. 180). em: 1 jul. 2018.

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a ser deslocada para uma figura de heroína que tentou “limpar” o centro da cidade de destemida e lutadora, ao contrário dos regu- São Paulo prendendo e espancando pros- lares papéis românticos –, enfrentando uma titutas, travestis e homossexuais (Ibidem, crise no casamento e, depois de agredida p. 129). O episódio “A amiga”, por exemplo, fisicamente pelo marido, se libertando e resultou em muitas críticas no tocante à pedindo a separação,13 tema muito em voga moral e os bons costumes, posto que ousou na época, com a lei do divórcio de 1977. falar da relação amorosa entre duas mulhe- res. Contudo, o que mais obteve impressões Outros temas como a legalização do negativas na mídia da época foi o episódio aborto são pela primeira vez colocados cla- “Ainda não é hora, de Euclydes Marinho: ramente em pauta, incomodando muitas camadas da sociedade brasileira. A perso- Por incrível que pareça, este foi aprovado nagem chega a defender a abertura política, pela censura sem meias palavras, sem ou seja, faz crítica mesmo que indireta ao sugestões indiretas, ainda que tivesse regime ditatorial, além de uma referên- um discurso favorável à legalização do cia ao processo de anistia. Tratou-se de aborto, o que era inédito em 1979 e até um feminismo exposto a partir da esfera hoje é tema raramente discutido na tele- privada. Era um grande desafio tratar de visão brasileira (Ibidem, p. 132). temas sociais então tabu na época em que a censura ainda vigorava indiretamente. Por Sobre a equipe que formulou os epi- exemplo, em “Legítima defesa da honra e sódios (cada um tinha a liderança de um outras loucuras”, de Armando Costa, faz-se roteirista específico, o seriado foi escrito referência ao assassinato de Ângela Diniz a muitas mãos) e o processo e escrita da por Doca Street. Questionou-se a utilização série, Heloisa Buarque de Almeida (2012, do argumento legal de defesa da honra, p. 127) destaca: que foi o mesmo usado para a libertação de diversos agressores e homicidas. Outro Euclydes Marinho, que participou da episódio emblemático, “Filhos, melhor não equipe de criação (com Armando Costa, tê-los”, de Marta Góes e Walter Negrão, Lenita Plonczynski e Renata Palottini) e mostra a vida de uma mãe solteira que é escreveu o primeiro episódio, considerado demitida e busca emprego como doméstica; um guia do “clima” do seriado, conta que confundida com prostitutas, sofre violên- na época em que escrevia Malu mulher cia (subentende-se inclusive sexual) da participou de reuniões feministas a con- polícia. O caso faz menção a outro evento vite de Ruth Cardoso e Rosiska de Oliveira, real que reverberou na época, a “Operação lembrando que as feministas “estavam Limpeza” promovida pelo delegado José muito ativas” naquele momento. A própria Wilson Richetti, entre maio e junho 1980, Renata Palottini, em entrevista sobre o seriado, afirma-se feminista.

13 “No primeiro episódio de Malu mulher assistimos a Como podemos notar, o cenário não uma inversão: a personagem, ao discutir com o marido, é simples nem fácil de decifrar. Temos nas diz que cansou de ser bem-comportada, que quer se separar […] pede o desquite […] e o final feliz é inespe- mídias de massa ao mesmo tempo vozes radamente a separação” (ALMEIDA, 2012, p. 128). progressistas e reforços dos padrões

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tradicionais. Dessa forrma convivem na Faz-se necessário buscar a origem dessa mídia experimentações ousadas como a associação tão automática nos dias de série Malu mulher e as novelas, tão conhe- hoje, entre mulheres e vaidade ou beleza, cidas e presentes nos lares brasileiros, a fim de compreender melhor esse meca- reprodutoras e reiteradoras de certa ordem nismo de poder e controle dos corpos. social. O mesmo com as publicações escri- tas, pois simultaneamente temos revis- Data da antiguidade grega o embate tas publicando fotonovelas com histórias entre filosofia e retórica, entre socráticos românticas e clichês, visando de maneira e sofistas. De onde falamos sabemos que geral dar força a uma imagem de fragili- a primeira, greco-romana, uma das bases dade feminina e, ao mesmo tempo a coluna morais e herança intelectual do ocidente, de Carmen da Silva na revista Cláudia, os sobrepujou-se à segunda, fincando seu empreendimentos em menor escala com saber enquanto poder que tem sido ressig- jornais feministas e os esforços de parte do nificado ao longo dos séculos. Enquanto mercado editorial liderado por mulheres o nome de Sócrates e seus sucessores, comprometidas com as pautas feministas. Platão e Aristóteles, são bem difundi- dos e academicamente incontornáveis, Neste momento de abertura demo- os nomes femininos de pensadoras de crática, mulheres comuns, trabalhadoras tempos remotos permanecem desconhe- ou de classes mais abastadas, militantes cidos. Ou, ainda, temos rastros de suas ou não, estavam imersas nesse jogo de existências por meio dos ataques perpe- forças em que se tentava sempre alar- tuados por vozes e escritos masculinos da gar as fronteiras da discussão, em vista época (TIBURI, 2004). Um exemplo que da ampliação de direitos, mas não sem nos servirá para posterior reflexão está reação dos conservadores, ou mesmo de no nome de Aspásia. forças aliadas. Se colocar publicamente contra os padrões de beleza, por exemplo, Aspásia de Mileto, mulher culta que não era proibido, mas havia um grupo de consequências a encarar, pois ele repre- se muda para Atenas e se torna hetera de sentava uma moral impregnada na época. Péricles, foi uma famosa professora de É nesse imbróglio de informações que ao retórica, mencionada por Platão no diá- mesmo tempo se contradizem e se com- logo entre Sócrates e Menexeno. Diálogo plementam, que se aproximam e que se este em que o filósofo, em mais uma afastam, que circulam as mulheres na demonstração de desprezo pela retórica década de 1970. como antagônica à filosofia, zomba dos discursos dos políticos e do fazer retórico Seja vivendo o profundo estado de em si, a partir de um discurso fúnebre exceção imposto, como as mulheres mili- proferido por Aspásia. Seu interlocutor tante, ou suas vidas ordinárias, como a reconhece se tratar de mulher rara por maior parte da população feminina do ser bem articulada, tendo em vista seu país, fato é que estavam todas afetadas, talento com as palavras e sua influência em maior ou menor grau, pelo padrão de para com os grandes políticos da época, beleza instituído e propagado na época. fato com que Sócrates concorda.

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Platão, agora em Górgias, expõe diá- O rotineiro e doméstico, a superfi- logo entre Sócrates, Polo e Górgias, e o cialidade e a efemeridade ligadas à enga- centro da discussão é, mais uma vez, a nação e à dissimulação que o feminino inimiga da filosofia. O “pai da filosofia” exerce tem longa tradição na herança quando indagado por Polo acerca do que histórico-filosófica ocidental. Passando seria retórica, responde que não se trata de pela malícia de Eva que tudo pôs a perder arte alguma, mas de uma rotina. Sócrates quando mordeu a maçã e ardilosamente relaciona-a à culinária, uma rotina que convenceu Adão a fazer o mesmo; pelas gera prazer e satisfação, e explica que – “bruxas” medievais que, detentoras de cuidadosamente manifesta a intenção de saberes extrabíblia, foram perseguidas e não ofender a profissão do amigo Górgias, tidas, muitas vezes, como a própria perso- especialista em retórica – tanto retórica nificação do diabo. O homem iluminista, quanto culinária, gosto da indumentária dotado de toda razão que lhe cabe, está e sofística são práticas que nada tem de em risco quando nas mãos passionais de arte, que se aproximam da adulação e que mulheres capazes de confundir toda a representam apenas bem-estar aparente. lógica racionalista em voga. Cabe, então, Afirma que jamais daria o nome de arte como solução de ordem, controlar o foco àquilo que carece de razão. Para Sócrates, de dissimulação e enganação do espírito, portanto, seria simulacro de política. mantendo as mulheres sob a tutela da Igreja, dos homens e do Estado. A partir desse breve trajeto filo- sófico nota-se que a retórica recebe A pesquisadora Denise Bernuzzi de atributos – daqueles que intentam desa- Sant’Anna (2014) fornece em seus estudos creditá-la – que estão desde a antiguidade uma linha do tempo da beleza no Brasil, relacionados ao feminino: trata-se de algo ou mesmo no Ocidente, na década de rotineiro, pois está na mesma categoria 1970. O Brasil do final do século XIX, iní- que a culinária e a vestimenta, itens do cio da República até meados da década espaço doméstico e de domínio feminino; de 1950, era permeado por uma noção superficial, pois relaciona-se à aparên- de beleza conectada diretamente com a cia; efêmero, pois diz respeito à fugaci- ideia de higiene que vigorava na época. A dade de sentimentos mundanos como o maquiagem era vista como sinal de arti- prazer e a satisfação instantâneos. Não ficialidade, e o belo era o limpo, branco e por acaso Aspásia, símbolo dessa área de “natural”. A cópia dos modelos europeus, conhecimento para seus contemporâneos, principalmente o francês, era evidente era mulher e, logo, enganadora, ardilosa, na adoção de receitas caseiras para se dissimulada, carente de profundidade no adequar a um padrão colonizador de que seria o real conhecimento, a filoso- aparência. Nas décadas de 1920 e 1930 a fia. Basta checar qualquer biografia de eugenia como norma científica impõe-se Péricles, o governante da Era de Ouro de no Brasil de variadas maneiras, passando Atenas, para confirmar que todos os seus por políticas públicas de branqueamento erros, envolvendo decisões bélicas coti- da população ao plano de urbanismo e dianas, foram atribuídos à má influência arquitetura das cidades. A menstruação de sua amante. passa a ser objeto de atenção do mercado

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com os absorventes descartáveis, que vem O final da primeira metade do acompanhados em suas propagandas de século XX também é marcado pela emer- uma noção de que o corpo feminino é gência da adolescência como pauta e como repleto de uma sujeira quase pecaminosa, produto. A apologia da juventude aven- e que a beleza estaria atrelada ao controle tureira e inconsequente, ressaltadas nas e à repressão dessa sujeira. figuras de Marlon Brando e James Dean, cria uma mística sobre essa fase da vida Ao mesmo tempo, o american way que perdura até a atualidade. Denise of life alcança as brasileiras por meio de Bernuzzi de Sant’Anna (Ibidem, 108) res- Hollywood e seus produtos culturais de salta que a população brasileira entre 15 e massa que passam a criar um imaginá- 24 anos cresceu de 8,2 milhões em 1940 rio de glamour e beleza específicos. A para 18,5 milhões em 1970, o que insere semelhança mais visível entre os padrões o Brasil nessa lógica de consumo voltada vigentes na época é a ideia de beleza para para um estereótipo de beleza atrelado à o matrimônio, do estar bela para o olhar juventude. masculino. Em 1950 as revistas femininas iniciam uma nova maneira de transmissão Nos anos 1950 o ideal do corpo de valores estéticos e comportamentais feminino como curvilíneo e macio, em para as mulheres brasileiras, travestida contraponto à rigidez dos músculos mas- de conversa e conselho e recheada de culinos, ganhou reforço com as figuras imagens, enquetes e dicas do que fazer e de Marilyn Monroe e Grace Kelly, que o que comprar para ser bela e atraente, trouxeram consigo também a falsa riva- com o cuidado de não parecer “vadia”. lidade entre loiras e morenas e uma série de ambiguidades relativas à erotização É interessante notar que o discurso do corpo feminino. Em 1953 é criada a na mídia brasileira na década de 1950 a revista Playboy, marco na indústria do respeito da maquiagem permanece nega- entretenimento adulto, que impactará tivo, rechaçando o ato de dissimular uma muito a expectativa masculina a respeito beleza inexistente. Por exemplo, antes do corpo feminino. Nesse contexto, a luta da década de 1960 as mulheres de 40 contra o envelhecimento ganhará fortes anos ou mais não eram encorajadas pelas contornos no Brasil acelerado dos “50 publicidades a falsear qualquer qualidade anos em 5” de Juscelino Kubitschek e, a inexistente em sua aparência. Outro fato partir de então, a leitura negativa que se curioso é a imagem masculina colocada fazia da “dissimulação” da beleza adquire pelas propagandas: os homens são sempre outro tom. presas fáceis, passíveis de serem ludi- briados, uma vez encantados tornam-se Data de 1960 o primeiro congresso verdadeiros bobos. Ao mesmo tempo em sobre envelhecimento cutâneo na Europa, que a mulher é o reino do superficial e e nesse mesmo período o Brasil é invadido da beleza em contraponto com a profun- por marcas de cosméticos, maquiagens didade da razão masculina, os homens e cremes antirrugas ou para os cabelos, também são pintados como facilmente que prometem beleza às consumidoras. enganáveis e seduzíveis. A marca de cosméticos Avon invade o

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mercado e, com uso da fotografia colo- que conviveram nessas duas décadas de rida, preenche o imaginário das mulheres grande efervescência cultural. com rostos maquiados e transformados. A massificação da moda com roupas pron- As décadas de 1960 e 1970 também tas, a invenção de produtos portáteis para marcam o apogeu do indivíduo, da ideia de serem levados na bolsa com embalagens cuidado do próprio corpo e de uma autoes- inovadoras de plástico são a “nova sen- tima. O trato de si passou a ser algo digno sação”. O discurso da beleza natural per- de atenção e tempo, estimulado pela publi- manecia, porém com mais aceitação a cidade. O mercado não demorou para reter interferências externas. a imagem de rebeldia e contestação nos padrões estabelecidos. Um certo despoja- Esse mundo de aparentes contra- mento das aparências era sinal de inteligên- dições também pregava a independência cia e crítica, mas sem tornar dispensáveis feminina, sempre atrelada ao consumo o cuidado e o consumo. A pílula anticon- e, ao mesmo tempo, desenhava o espaço cepcional trouxe às mulheres uma nova doméstico como extensão do corpo da dimensão de liberdade, atrelada ao cres- mulher. A indústria da beleza a pregará cente do debate sobre o divórcio no Brasil. não mais como dom, mas como hábito (Ibidem, p. 120), e a feiura passará então Faz-se crucial ressaltar que o ideal a ser compreendida como desleixo. Os de beleza aqui é bastante racializado. A discursos sobre estética e comportamento pele lisa e branca, bem como os cabelos que ganham visibilidade não são unís- muito lisos, eram sinais de boa aparên- sonos, pois as décadas de 1960 e 1970 cia. O ideal de corpo mais magro também no Brasil são impactadas pela contracul- começa a ser reforçado, pois os novos tura estadunidense, e a absorve dentro modelos de biquínis demandavam uma de um contexto marcado pela repressão barriga mais magra. Entrou em voga o da ditadura militar. Ao mesmo tempo que lema dos três S (sun, sex and sea), e o corpo temos o homem heterossexual, branco e jovem, magro e bronzeado passou a ser hedonista forjado pela revista Playboy, sinal de saúde, beleza e sensualidade temos David Bowie, Freddie Mercury e (Ibidem, p. 128). Ney Matogrosso embaralhando fronteiras de gênero. Ao mesmo tempo que temos A partir de olhar lançado sobre a Hollywood cruzando fronteiras e esta- militância feminina de resistência à dita- belecendo paradigmas, temos também o dura militar, sobre as mídias de grande Cinema Novo, voltado para outros ideais circulação na segunda metade da dita- de vida. Temos a normatização e o ques- dura militar e sobre os padrões de beleza tionamento da norma andando lado a instituídos historicamente, buscou-se lado, movimentos sociais ganhando força compreender o contexto de circulação e reivindicando direitos, o movimento de ideias que moldaram corpos e compor- hippie pacifista negando o capitalismo, tamentos, afetando diretamente a exis- a guerra e a monogamia, o festival de tência das mulheres. Contexto esse que Woodstock (1969) contestando o status quo precisa ser abordado a partir de lentes por meio da arte, e outros antagonismos que investiguem a complexidade daquela

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realidade, como as lentes sugeridas pelos estudos de gênero, a fim de compreender melhor ondas conservadoras, rupturas e brechas que existiram simultaneamente no Brasil dos anos 1970.

[ NADIESDA DIMAMBRO ] É formada em História pela USP (2012). Concluiu mestrado em 2018 pelo Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte (MAC-USP), com dissertação intitulada “Imagens de Gretta Sarfaty: fotografia, performance e gênero”. Atua como professora da rede privada de ensino na cidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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[ ARTIGO ]

Luiz Ademir de Oliveira Universidade Federal de São João Del-Rei e Universidade Federal de Juiz de Fora. Deborah Luísa Vieira dos Santos Universidade Federal de Juiz de Fora. Willian José de Carvalho Universidade Federal de Juiz de Fora. Luiz Ademir de Oliveira Documentário O processo: uma narrativa sobre o impeachment da presidenta Dilma Deborah Luísa Vieira dos Santos 180 Willian José de Carvalho

[ RESUMO ABSTRACT RESUMEN ]

Os meios de comunicação participam da construção da realidade, da cultura de uma sociedade e moldam visões de mundo. O desenvolvimento do campo midiático faz com que ele se torne central para os demais, alterando sua a lógica e funcionamento, o que não é diferente para o campo político. Os produtos midiáticos podem contribuir para a disseminação de visões hegemônicas ou oferecer outras formas de se ver o mundo, por meio de representações contra hegemônicas. Nesse sentido, este artigo traz uma análise de conteúdo do documentário O processo que retrata todo o processo de impeachment sofrido pela presidenta Dilma Rousseff (do Partido dos Trabalhadores – PT) em 2016, trazendo os bastidores e as discussões que permeavam os discursos dos agentes que encabeçaram a defesa e a acusação no processo contra a presidenta.

Palavras-chave: Meios de Comunicação. Narrativas. Documentário. Impeachment. Dilma Rousseff.

The media participates in the construction of reality, in the culture of a society and it shapes worldviews. The development of the media field has made it central to others fields, altering their logic and functioning, not differing from the political field. Media products can contribute to the spread of hegemonic visions or offer other ways of viewing the world through counter-hegemonic representations. In this sense, this article makes a content analysis of the documentary The process, which portrays the entire process of impeachment suffered by President Dilma Rousseff (from the Worker’s Party – PT) in 2016, bringing backstage information and discussion that permeated the discourse of the agents who led the defense and the prosecution in the case against the president.

Keywords: Media. Narratives. Documentary. Impeachment. Dilma Rousseff.

Los medios de comunicación participan en la construcción de la realidad, de la cultura de una sociedad y moldean visiones de mundo. El desarrollo del campo mediático se vuelve central para los demás, alterando la lógica y el funcionamiento de los mismos, lo que no es diferente en el campo político. Los productos mediáticos pueden contribuir a difundir visiones hegemónicas u ofrecer otras formas de ver el mundo, por medio de representa- ciones contrahegemónicas. En este sentido, el presente artículo plantea un Análisis de Contenido (BARDIN, 2011) del documental El Proceso (2018), que retrata todo el proceso de impeachment que ha sufrido la Presidenta Dilma Rousseff (Partido de los Trabajadores, PT) en 2016, trayendo los entre bastidores y las discusiones que permeaban los discursos de los agentes que encabezaron la defensa y la acusación en el proceso contra la presidenta.

Palabras clave: Medios de Comunicación. Narrativas. Documental. Impeachment. Dilma Rousseff.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2019.150995

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1. Considerações iniciais força, dando à política um caráter per- sonalista (ALBUQUERQUE; DIAS, 2002; MANIN, 1995; SCHWARTZENBERG, 1977). A construção da realidade se dá social- mente por meio da linguagem compartilhada Outro fator relevante para a pes- pelos indivíduos em seus processos de inte- quisa é conhecer os conceitos de hege- ração social (BERGER; LUCKMANN, 2007; monia e contra-hegemonia cultural. A BOURDIEU, 1989). Com o desenvolvimento indústria cultural não só produz bens dos meios de comunicação, esse processo materiais, mas também bens culturais e passou a sofrer interferência das diferentes simbólicos. A hegemonia, para Gramsci, narrativas e perspectivas de realidade que citado por Alves (2010), aplica-se quando eles podem construir, inicialmente pelas as ideias de um grupo ou classe social mídias massivas hegemônica no século XX (dominante) são impostas a todos (domi- e, posteriormente, também pelas mídias nados). Assim, também deve-se ressaltar digitais que se disseminaram de forma a maneira como o poder é exercido por acentuada desde os anos 2000, culminando meio da cultura, ou seja, quando o autor no processo de midiatização (BRAGA, 2012; propõe a contra-hegemonia ele propõe FAUSTO NETO, 2010; HJARVARD, 2012; o desenvolvimento da contracultura RUBIM, 2000; THOMPSON, 2008). A mídia (ALVES, 2010; WILLIAMS, 2011). Desta alterou os processos socioculturais, as for- forma, as ideias de um grupo dominante mas de observar e interpretar um fenômeno são também as ideias hegemônicas de e até mesmo os acontecimentos em outros cada época, ou seja, a classe que tem o con- campos, como o político (ALBUQUERQUE; trole dos meios de produção material tem, DIAS, 2002; MANIN, 1995; MIGUEL; ao mesmo tempo, o controle dos meios de BIROLI, 2010; SCHWARTZENBERG, 1977). produção intelectual, conforme aponta Marx e Engels (1974). Nesse sentido, para O campo midiático tornou-se um Raymond Williams (2011), a hegemonia campo de centralidade para a política, não é um sistema estático e não está rela- uma vez que, por meio dele, o público cionada somente à manipulação, mas ela leigo passa a ter visibilidade sobre os confere sentido de realidade para a maio- acontecimentos do mundo da política, ria das pessoas em uma dada sociedade. como também conhece seus atores Um dos mecanismos de hegemonia é a (MANIN, 1995; MIGUEL; BIROLI, 2010; cultura (EAGLETON, 2005). SCHWARTZENBERG, 1977). Por outro lado, os políticos utilizam desse meio A cultura originalmente esteve para divulgar suas ideias, atingir seus associada ao “cultivo de algo”, “lavoura”, objetivos e trabalhar a própria imagem, cultivo do que cresce naturalmente; pos- como será visto pelo seu eleitorado. O teriormente, assumiu um conceito mais campo midiático altera a lógica da visi- abstrato e abrangente, que também se bilidade (THOMPSON, 2008). Além relaciona a nossa forma de agir e inter- disso, o caráter espetacular da mídia pretar o mundo (EAGLETON, 2005; faz com que o foco se dê nos persona- WILLIAMS, 1992, 2007). Somente se gens e os partidos políticos percam a compreende a cultura dominante se o

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processo social do qual ela depende tam- menção à ditadura e a torturadores. Pela bém é compreendido (WILLIAMS, 2011). mídia hegemônica, o processo de impea- chment era necessário, tendo em vista Um exemplo dessas teorias foi a a crise vivenciada no governo Dilma, narrativa assumida pela grande mídia no as corrupções desveladas na Operação processo de impeachment sofrido pela Lava Jato, entre outros aspectos que não presidente Dilma Rousseff (do Partido dos apontavam o lado da presidente e sua Trabalhadores – PT) e a sua consequente defesa. Para além, um discurso misógino saída, em 2016. O processo teve início foi assumido pela grande imprensa, colo- em 2 de dezembro de 2015, quando o então cando a presidente como desequilibrada presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PARDELLAS; BERGAMASCO, 2016), inca- (do Partido do Movimento Democrático paz de continuar a guiar o país; ou como Brasileiro – PMDB, agora Movimento fria e calculista, características tidas como Democrático Brasileiro – MDB), aceitou incompatíveis com o gênero feminino pelo o pedido de impeachment contra a presi- senso comum. dente. A denúncia foi pautada em alegações de crime de responsabilidade fiscal, apre- Como contraponto à narrativa cons- sentada pelo procurador de justiça aposen- truída e sustentada pela mídia massiva, o tado Hélio Bicudo e pelos advogados Miguel documentário O processo (2018) aborda Reale Júnior e Janaína Paschoal. Em menos o processo de impeachment, como o pró- de 12 meses, o processo foi aceito, votado, e a prio nome aponta, mas em uma perspec- presidente foi destituída de seu cargo em 31 tiva que inclui os bastidores da política, de agosto de 2016, assumindo o seu vice, as discussões e os pensamentos de quem Michel Temer (MDB). Logo que assumiu, lutava contra ou a favor da saída de Dilma Temer deu início ao seu plano de governo e Rousseff do poder. O documentário, diri- adotou diversas medidas impopulares e com gido pela cineasta e diretora brasileira uma ampliação do seu projeto denominado Maria Augusta Ramos, traz cenas reais “Uma ponte para o futuro”, que trazia, den- sobre o processo sob a perspectiva contra tre as propostas, a aprovação da Reforma hegemônica das lideranças de ambos os da Previdência e a Reforma Trabalhista. lados, mas aborda a partir da ótica dos bastidores da defesa da presidente. Os veículos de comunicação publi- cizaram o processo de impeachment, Neste contexto, torna-se relevante transformando-o em um verdadeiro espe- estudar esse momento marcante na histó- táculo, tendo como seu ápice a votação da ria da política brasileira a partir do olhar Câmara, que autorizou o prosseguimento dado pelo documentário, a forma como do processo, no dia 17 de abril de 2016. é produzido e as reflexões que traz. Para Na referida votação, ainda presidida por tanto, será feita uma análise de conteúdo Eduardo Cunha (MDB), discursos infla- (BARDIN, 2011) com as seguintes catego- mados tomaram conta do ambiente, dei- rias de análise: a) a imagem da presidente xando de lado a real causa do processo e construída na narrativa; b) a identidade exaltando valores como “Deus” e “famí- feminina acionada; c) o documentário lia” (REIS, 2016), além de absurdos como como uma voz contra a mídia hegemônica;

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d) a narrativa desenvolvida pelo filme; e de ação e interação entre os indivíduos, novas e) narrativas que permeiam o processo. formas de se exercer o poder e alterarem a relação espaço e tempo.

A partir do surgimento e transfor- mação dos meios de comunicação, os sig- 2. Construção social, meios nificados de visibilidade e existir foram de comunicação e (trans) também transformados. Público, antes formação da cultura relacionado à copresença, ao comparti- lhamento de um mesmo tempo e espaço, passou a ganhar novos contornos. Público Os significados são construídos a par- passa, com a ascensão da mídia, a refe- tir das relações sociais e repassados para e rir-se àquilo que fosse veiculado pelos pelos indivíduos por meio das interações meios de comunicação, à sua visibilidade sociais e processos de socialização (BERGER; (Ibidem). Existir, igualmente, teve seu sig- LUCKMANN, 2007; BOURDIEU, 1989). nificado transformado pela mídia. Agora, De acordo com Bourdieu (1989), os cam- não basta existir, deve-se existir publica- pos sociais, com suas linguagens, valores, mente para tornar-se real (RUBIM, 2000). regras e ideologias próprias, nos quais os “Afirma-se que a comunicação, enquanto indivíduos se inserem, juntamente com ambiente efetivo, se apresenta como uma suas experiências biográficas, constituem espécie de nova ‘camada geo-tecno-social’, o habitus dos agentes. Esse habitus reflete necessária e sobre exposta, que se agrega nas formas de agir e perceber a sociedade às camadas – natural e sociocultural – do na qual esses atores sociais se inserem. O ambiente existente na sociabilidade pre- homem, portanto, é produto e produtor do cedente” (Ibidem, p. 29). seu meio (BERGER; LUCKMANN, 2007). Esses processos somente ganham sentido Vivemos, desse modo, em uma por meio da linguagem e da reprodução de sociedade ambientada e estruturada pelos sistemas simbólicos, capazes de gerar um meios de comunicação (Ibidem). Mídia consenso social (BOURDIEU, 1989) e, com essa capaz de alterar os processos sociais a inserção dos meios de comunicação nesse e culturais, que atua sobre a formação da cenário, capaz de oferecer espécies de “len- própria memória e história da sociedade, tes” para se enxergar o mundo (Idem, 1997). além de agir sobre o campo político.

Os meios de comunicação são parte fun- 2.1 As concepções de indústria damental para o surgimento das sociedades cultural e cultura de massa modernas, sendo que seu desenvolvimento se relaciona às principais transformações Tendo em vista que a cultura é um institucionais que moldaram esse mundo processo de autorreflexividade do sujeito, moderno. Para Thompson (2008), isso ocorre torna-se relevante compreender esse con- devido ao fato de os meios de comunicação – ceito amplo e sua relação com o desen- desde o telégrafo até a TV, e hoje com a ascen- volvimento dos meios de comunicação são da internet – provocarem novas formas (EAGLETON, 2005). Para compreender o

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processo de estruturação da realidade, do você não pode controlar as pessoas pela indivíduo e da sociedade no qual este se força, e quando a voz do povo pode ser insere, é relevante compreender o conceito ouvida, você tem esse problema – que de cultura, visto que ela permeia todas pode tornar as pessoas tão curiosas e tão essas instâncias, sendo que: arrogantes, que eles não têm a humil- dade de se submeter a um governo civil, uma cultura constitui um corpo complexo e, portanto, você tem que controlar o de normas, símbolos, mitos e imagens que as pessoas pensam (CHOMSKY apud que penetram o indivíduo em sua intimi- FABRICAÇÃO… 1992, 25’37’’-26’02’’). dade, estruturam os instintos, orientam as emoções. Esta penetração se efetua A cultura e a produção de ideias pas- segundo trocas mentais de projeção e sam também a ser uma forma de controle de identificação polarizadas nos símbo- hegemônico. Como visto, os produtos da los, mitos e imagens da cultura como mídia não são entretenimento inocente. nas personalidades míticas ou reais que Eles possuem cunho ideológico e, por isso, é encarnam os valores. Uma cultura for- de suma importância aprender a interpre- nece pontos de apoio imaginários à vida tar os meios de comunicação, com intuito prática, pontos de apoio práticos à vida de interpretar as mensagens e seus efei- imaginária (MORIN, 1997, p. 15). tos ideológicos. Nesse sentido, surgem os estudos culturais com o objetivo de desen- Para Morin (1997), os estímulos vin- volver a criticidade, voltando seu olhar dos dos meios de comunicação moldam o para as formas de opressão e dominação, imaginário do público, propiciando, ainda, articulando-as à construção social de con- condições de identificação e projeção. Para ceitos e representações. A partir disso, é Raymond Williams (EAGLETON, 2005), possível perceber a mídia como um terreno cultura apresenta basicamente quatro sig- de disputas, que reproduz conflitos sociais nificados: 1) disposição mental individual; no âmbito cultural (KELLNER, 2001). 2) estado de desenvolvimento intelectual de uma sociedade como um todo; 3) relativo Para Stuart Hall (1997), a mídia e o às artes; e 4) modo de vida total ou de um processo de globalização afetam diversos grupo de pessoas. aspectos da vida social e os seres humanos são seres interpretativos e instituidores A cultura abrange tanto a produ- de sentido. Além da economia, esses dois ção do mercado, relacionado à indústria fatores influenciam a cultura, o modo cultural, quanto a afirmação de uma de viver e como os indivíduos dão sen- identidade específica ou de um dado tido às próprias vidas. Essa apropriação grupo até as relações de poder, uma vez da cultura pelos meios de comunicação que nenhum poder político se mantém massivos deu origem ao que Adorno e somente pela coerção. Horkheimer (1985) denominam como indústria cultural. Se você tem um porrete sobre suas cabeças, você pode controlar o que eles fazem. Mas A indústria cultural confere seme- quando o Estado perde o cacete, quando lhança a tudo ao disseminar produtos e bens

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culturais padronizados para necessidades de linguagem e dos sistemas de classi- iguais (ADORNO; HORKHEIMER, 1985). ficação, ou seja, os fatos considerados Ou seja, há uma variação na aparência, como “naturais” são considerados como mas o conteúdo seria o mesmo. Os autores fenômenos discursivos. Todo processo de da teoria crítica, da Escola de Frankfurt, comunicação, portanto, deve-se atentar acreditavam que todos os detalhes exibiam não só para a mensagem, mas também os mesmos traços e desde o início de uma para seus contextos de produção e recep- obra já se saberia seu final. O produto cul- ção (THOMPSON, 2008). tural seria uma imitação e continuidade da realidade, proibindo a atividade intelectual Thompson (2008) considera que do espectador. A pretensão da arte teria o processo de recepção é um processo e conotação puramente ideológica, o pen- apropriação, no qual o sujeito assimila a samento seria massacrado e despedaçado mensagem incorporando-a a sua própria para os frankfurtianos. O que não se mos- vida. O processo de interpretação é marcado trou real pelos autores que seguiram liga- pela negociação. Ou seja, apesar dos meios dos à corrente que ficou conhecida como dominantes desejarem direcionar a inter- Estudos Culturais, uma vez que, para essa pretação da audiência, para que elas com- corrente, o indivíduo é ativo no processo partilhem de suas ideologias e formas de de comunicação e esse processo não pode ver o mundo ou determinado fato, isso pode ser separado se seu contexto de produção. não ocorrer, uma vez que os significados de uma mensagem podem ser múltiplos, acio- 2.2 Os estudos culturais e a nados de formas diferentes. Dessa forma, o identidade feminina processo de interpretação é por vezes um processo de submissão ou de resistência dos Os Estudos Culturais, surgidos na indivíduos, apontando para uma constante década de 1950, romperam com a visão de disputa de sentidos. que as mensagens dos veículos de comu- nicação são totalmente transparentes de Os processos de recepção e apropriação significado, como também romperam com das mensagens também participam da for- a ideia de que a audiência é passiva e indi- mação das identidades dos sujeitos. As iden- ferenciada. Ou seja, o processo de recepção tidades são construídas e adquirem sentido a das mensagens passa por subjetividades, partir da linguagem e dos sistemas simbólicos e frequentemente trata-se de negociações que as representam. Esta representação sim- de sentidos, portanto que têm o consenti- bólica torna-se o meio pelo qual o mundo é mento do público. Neste caso, não significa classificado e a realidade é construída. Ainda, uma forma de dominação pelos meios de as identidades não são unificadas, já que pode comunicação. E é nessa esfera cultural que haver diferenças conflitantes entre elas, ou se dá a luta pela significação da mensagem papéis sociais assumidos de acordo com cada (HALL apud COSTA, 2012). situação (SILVA, 2008).

Para Hall (1997), o significado surge Todavia, para que haja a afirmação não das coisas em si, do considerado de uma identidade, deve haver a negação como realidade, mas a partir dos jogos de outra. A constituição da identidade

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é sempre feita em oposição a partir de de liberdade limitada por sua fertilidade e sistemas binários e de negação, por exem- capacidade de gerar uma vida. Essa capa- plo, se você é brasileiro, não pode ser cidade geradora fez com que o feminino argentino, ou ainda, se você é homem, fosse associado ao cuidado, amor, materni- não pode ser mulher; as características dade e fragilidade. O masculino, em oposi- assumidas automaticamente excluem as ção, esteve associado ao mundo da política, demais (Ibidem). força, independência. A mulher que fosse pública ou que tivesse alguns desses atri- O termo “gênero” foi acionado pelo butos ditos masculinos seria desquali- movimento feminista estadunidense ficada, “masculinizada”. Características como forma de referir-se a uma organiza- essas que servem para perpetuar sistemas ção social da relação entre os sexos, como de opressão, travestidos de normalidade forma de rejeição ao determinismo bioló- e naturalidade. A discussão de gênero, gico (SCOTT, 1990). Esse termo questiona portanto, desvelou esse modelo de iden- os papéis sociais e expõe a assimetria pre- tidade como mera representação social. sente nas representações de feminino e Entretanto, uma mulher que portar-se masculino, capazes de, ainda hoje, regula- com características que não são do seu rem suas posições sociais (AMÂNCIO, 1993; meio “natural” necessita de um esforço de COLLING, 2004). explicação e de justificativa, que não ocorre no caso do homem (AMÂNCIO, 1993; A representação mental entre femi- COLLING, 2004). As mulheres passa- nino e masculino baseada em uma dife- ram a encarar a si mesmas por meio dos renciação biológica, como fator relevante olhos masculinos (GUBERNIKOFF, 2009). na formação da identidade dos sujeitos, Contudo, para Beauvoir (2009), essa con- foi historicamente utilizada para reduzir formação não passa de uma construção o gênero a um perfil de personalidade, da própria sociedade. uma identidade binária que se baseia nas diferenças. Ao homem são atribuí- A história é o resultado de constru- das características que se relacionam à ções, interpretações e representações, fruto razão e vida pública; às mulheres, a emo- das relações de poder. Portanto, uma histó- ção e a vida privada do lar. Essas visões ria das mulheres contada pelas mulheres é foram construídas a partir de um ponto de relativamente nova, pois sempre foi con- vista unilateral (COLLING, 2004). “Nestas tada com suporte dos homens, o que mais relações os homens detêm o monopólio uma vez contribuiu para a construção e da interpretação das coisas humanas, e conservação de estigmas relacionados ao estabelecem seu poder ao mesmo tempo ser feminino. Com as conquistas do movi- em que o legitimam com fundamentos mento feminista na luta pela equidade, as mitológicos, religiosos, ideológicos, filo- mulheres puderam sair para o mercado sóficos ou conflitos” (Ibidem, p. 19). de trabalho, decidir sobre sua vida e seus corpos. Conforme aponta Colling (2004), Para Simone de Beauvoir (2009), nin- essa ruptura de paradigmas com a “mis- guém nasce mulher, torna-se. A autora tura” de papéis gera insegurança e altera acredita que o feminino teve sua condição as estruturas do patriarcado.

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A palavra “estigma” foi usada pelos incapacidade, habilidades tidas como gregos para designar pessoas que pos- “menores” se comparadas às dos homens. suíam “sinais corporais com os quais Como se sobrasse para as mulheres as carac- se procurava evidenciar alguma coisa terísticas que não se encaixam nos homens. de extraordinário ou mau sobre o sta- tus moral de quem os apresentava” O espaço público, a “rua”, sempre (GOFFMAN, 1988, p. 11). Esses sinais se esteve associado como parte da identidade manifestavam em forma de cicatrizes, por masculina, enquanto o espaço privado, exemplo, impressas no corpo como indício da “casa”, esteve associado à feminina de que a pessoa marcada deveria ser evi- (DAMATTA, 1986), o que reflete na polí- tada, principalmente em locais públicos. tica e seus cargos. Schwartzenberg (1977) Todavia, o estigma não se refere somente caracteriza cinco personagens suscitados às marcas corporais (cicatrizes, defor- em campanhas políticas, sendo eles: o mações etc.), ele também pode referir-se “herói”, homem fora do comum, mons- a algo invisível. “Atualmente, o termo é tro sagrado, capaz de salvar a nação; o amplamente usado de maneira um tanto “homem ordinário” refere-se ao homem semelhante ao sentido literal original, comum, porque tudo nele é banal e con- porém é mais aplicado à própria desgraça vencional (ele é um de nós); o “líder char- do que à sua evidência corporal” (Ibidem). moso” preocupa-se mais em seduzir do A partir disto, uma pessoa possuidora de que convencer e a sua imagem se associa um dado estigma tem ele incorporado à ao do jovem galã; o “pai” caracteriza-se sua biografia e pode ser considerada como por ser o chefe de uma nação, cuja ima- se não fosse completamente humana, gem está associada à sabedoria e inspira fosse diferente das demais. obediência dos filhos. Por fim, dentre as personas masculinas há uma figura femi- A aprendizagem da pessoa estigma- nina: “a-mulher”. O “a” vem como negação, tizada ocorre das seguintes formas: apren- uma vez que o número de mulheres em dizagem do ponto de vista dos normais cargos de chefia e políticos (à frente do (das características consideradas comuns/ Estado, governos, ministérios ou partidos) naturais); aprendizagem de que ele está des- é muito inferior ao número de homens, qualificado por possuir um dado estigma; o que caracteriza o ambiente político aprendizagem de como lidar com o trata- como “tipicamente masculino”, reflexo mento que receberá dos normais; e apren- de uma sociedade machista e patriarcal. dizagem do encobrimento, de como ser As mulheres à frente do governo logo dis- discreto e disfarçar/amenizar seu estigma tanciam-se da identidade feminina, come- nas relações sociais. E, a partir dessa socia- çando a imitar as atitudes masculinas, lização, o indivíduo forma sua identidade como uma espécie de “travesti político”. e assume diferentes papéis sociais quando Caso a imagem de uma mulher aproxi- necessário (GOFFMAN, 1988). As caracte- me-se a do líder charmoso, associada à rísticas tidas como femininas foram, por beleza e sensualidade, logo ela torna-se vários momentos da história, utilizadas negativa, e a mulher passa a ser vista para desqualificar e oprimir as mulheres. como frívola. A imagem feminina ainda Incorporando em sua identidade certa pode ser associada à da mãe bondosa,

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cuidadosa, fonte de vida, ternura e amor. Os meios de comunicação participam Características essas associadas comu- e interferem nesse processo, ao criar nar- mente como femininas. rativas e formas de se fixar conhecimento. Antes da escrita, os indivíduos se comuni- Esta visão contribuiu, ainda, para que cavam, conferiam sentido ao mundo pela o papel da mulher na política estivesse his- interação face a face, e as histórias e narra- toricamente associado ao de coadjuvante, tivas sobre a realidade eram repassadas de sujeito, não de agente. A mulher como geração a geração por meio da tradição oral esposa, companheira, acessório na campa- (THOMPSON, 2008). Com a invenção da nha do marido (SCHWARTZENBERG, 1977). escrita, as narrativas passaram a se fixar em um material que conferiu maior durabilidade e que ampliou a capacidade de transmissão do conhecimento, transmissão esta que pas- sou a ser desassociada da presença. Com o 3. Mídia, narrativas e memória desenvolvimento dos suportes de comuni- cação, a tradição oral foi sendo substituída pela comunicação mediada e/ou quase-me- Por meio da narrativa, o mundo é orga- diada (Ibidem). O campo midiático, por sua nizado e adquire sentido, sendo algo pró- vez, passou a interferir na forma como o prio da natureza humana (CARSOSO, 1997; sujeito percebe, interpreta e narra o mundo. MOTTA, 2013), uma vez que os seres huma- Contudo, vale ressaltar que o sentido de toda nos são interpretativos e instituidores de e qualquer narrativa implica uma intenção sentido (HALL, 1997). A narrativa é cons- e uma finalidade (CARDOSO, 1997). truída a partir da subjetividade do sujeito e apresenta os fatos em uma ordem cronoló- Outrossim, as mídias utilizam narra- gica e de causalidade, tendo como princípio tivas para construir versões da realidade, norteador o contar (MOTTA, 2013), aproxi- incorporando-as no próprio processo de mando-se das narrativas cotidianas com as produção das mensagens, oferecendo aos quais se estrutura a vida (BARBOSA, 2009). seus espectadores lentes através das quais pode-se enxergar e interpretar o mundo. Para Barbosa (2009), o sujeito pro- Portanto, participa da construção da rea- duz narrativas da maneira em que se lidade, da sociedade e do próprio sujeito. coloca no mundo, inserindo-as no seu cotidiano a partir de reinterpretações do 3.1 Narrativas e memória mundo em que vive. Narrar é uma forma de estar, interpretar e lançar no mundo A narrativa é comumente associada outros textos e possibilidades de significa- ao relato, todavia há uma relação simbólica ção, uma mimese (imitação) da realidade que permeia seu significado e intenções (Ibidem). O autor acredita que a função da (CARDOSO, 1997). O ato de contar histórias narrativa é de configurar a experiência para significar o mundo e passar conhe- temporal, uma forma de retomar o pas- cimento é próprio da natureza humana. sado a partir do olhar e permeado pelos Ou seja, “os seres humanos têm uma valores do presente. predisposição cultural, primitiva e inata,

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para organizar e compreender a realidade hegemonia. O discurso, desse modo, seja ele de modo narrativo” (MOTTA, 2013, p. 71). narrativo, literário, histórico, jornalístico, Há uma organização discursiva nas narra- ou qualquer outro, realiza ações e perfor- tivas capaz de ligar pontos, ordenar fatos, mances sociais e culturais. além da possibilidade de recriar o pas- sado e apontar o futuro (CARDOSO, 1997; Müller (2007) aponta que toda nar- MOTTA, 2013). Por meio da narrativa, rativa apresenta e representa a realidade pode-se perceber, interpretar e organizar e pode revelar conflitos sociais e iluminar a realidade em uma ordem cronológica de as estruturas sociais. Quando o indivíduo passado-presente-futuro. Uma forma de escuta, vê e lê uma estória, ele também está se tentar responder aos grandes porquês na estória e recria a significação dela, rela- da história (HOBSBAWN, 1998). cionando-a aos próprios valores e à memó- ria cultural (MOTTA, 2013). A memória Narrar é um processo de relatar passa então a ser modificada sempre que mudanças, transformações e processos as novas experiências se relacionam e se de sucessão relacionados entre si, em um integram às já existentes (MÜLLER, 2007). esquema de causa-consequência e em As narrativas midiáticas, portanto, cons- ordem cronológica – passado-presente-fu- tituem as formas de ver e interpretar um turo ou início-meio-fim – em uma dialé- dado fato, participando da construção da tica de continuidade e descontinuidade memória sobre ele. Dentre essas narrativas (CARDOSO, 1997; MOTTA, 2013). Narrar, está o documentário. portanto, “é relatar eventos de interesse humano enunciados em um suceder 3.2 A centralidade da mídia na temporal encaminhado a um desfecho” atualidade (MOTTA, 2013, p. 71). O conhecimento e o referencial de É importante salientar que a narra- mundo, pelos quais os sujeitos buscavam tiva não é uma representação fiel do que explicar e significar os fenômenos natu- aconteceu, mas uma representação cons- rais e sociais e a própria existência, eram truída pelo sujeito e que se dirige a alguém formados pelas narrativas míticas e religio- (espectador/receptor/leitor), tendo-o como sas, além de serem repassados, de geração a uma espécie de coautor (REIS, 2006). Narrar geração, por meio da tradição oral entre os adquire um comportamento mimético (imi- grupos sociais, familiares e pessoas próximas tação) ao representar um fato acontecido (RODRIGUES, 2001; THOMPSON, 2008). (CARDOSO, 1997; MOTTA, 2013). Com o surgimento das sociedades moder- nas, houve a autonomização dos saberes e Motta (2013) apresenta a narrativa fragmentação dos campos sociais. midiática como formas que norteiam as ações dos seus receptores, não uma mera e Seguindo o conceito proposto por despretensiosa representação da realidade. Pierre Bourdieu (1989), entende-se por cam- Para ele, as narrativas e narrações são ferra- pos sociais estruturas fixas, produzidas em mentas discursivas que servem a interesses um determinado tempo e espaço, e que pos- específicos, sendo formas de exercer poder e suem uma lógica própria, com leis, normas,

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linguagem. Cada campo possui seu objeto de Anteriormente, o sujeito era formado por interesse e princípio de compreensão, sendo meio das relações e interações sociais. No constituído pelos sujeitos, grupos sociais e entanto, com a ascensão e força dos meios instituições que o compõe. O campo tam- de comunicação, as mídias passaram a inter- bém é um espaço de lutas e poder, capaz ferir nesse processo. As transformações de moldar o sujeito e agir sobre seu habitus culturais e sociais associam-se à expansão (BOURDIEU, 1989). da mídia e seu impacto. Da mesma forma, as metamorfoses nos meios de comunicação Em meio ao caos e ao risco de dis- tiveram papel central nas principais altera- solução da própria sociedade moderna, ções institucionais, as quais também mol- fragmentada em campos com inte- dam o mundo moderno (MCLUHAN, 1969; resses particulares, o campo midiá- THOMPSON, 2008). O crescimento dos tico assume um papel significativo meios de comunicação ocasionou o surgi- como uma espécie de “cimento social” mento de novas formas de interação social, (RODRIGUES, 2001; 2002). A mídia é representação da realidade e exercícios capaz de reorganizar esses fragmentos, de poder (THOMPSON, 2008). O campo (re)construir o sentido de mundo, a pró- midiático, portanto, é um dos principais pria realidade, por meio de um discurso responsáveis por sustentar essa nova forma que beira à perfeição e, ainda, é capaz de de organização caracterizada pela moder- conferir visibilidade aos acontecimentos nidade ou o que alguns autores consideram e atores sociais (RODRIGUES, 2001). como “pós-modernidade” (GIDDENS, 1991).

Para Thompson (2008), o desenvol- Tal centralidade da mídia alterou vimento dos meios e comunicação e do o funcionamento dos demais campos transporte possibilitaram a dissociação sociais, como o político. Miguel e Biroli entre tempo e espaço. Antes, as interações (2010) afirmam que os meios de comu- face a face – marcadas pela copresença – nicação alteram as práticas sociais e estabelecia a noção de realidade, existência apresentam quatro dimensões da inter- e visibilidade. Todavia, com o surgimento face entre comunicação e política, sendo de novos suportes de comunicação, como elas: a) mídia como principal instrumento a carta e o telefone, essa interação passou de contato entre a atores políticos e os a conviver com a interação mediada. Na cidadãos, por substituir esquemas polí- sequência, passaram a disputar espaço ticos tradicionais; b) o discurso político com as interações quase-mediadas, nas se adapta à lógica e gramática midiática, quais os meios de comunicação (rádio, TV assumindo novas características que se e, agora, internet) passaram a representar adequem aos espaços de emissão; c) a a realidade. Atualmente, temos acesso ao mídia influencia na produção da agenda que acontece em diversas partes do globo pública, nos temas debatidos e discuti- e isso molda a forma como é percebida e dos; e d) os candidatos preocupam-se constituída a realidade. com a gestão da visibilidade, tentando promover os fatos políticos adequados Isto reflete, igualmente, na constru- à lógica da mídia e à permanência no ção do self, da identidade de cada sujeito. imaginário social.

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4. Estudo de caso: o que aceitou sua admissibilidade e con- documentário O processo tinuidade em 17 de abril de 2016. Em 18 de abril de 2016, o processo seguiu para o Senado Federal. Como objeto da pesquisa, tem-se o documentário O processo, lançado em 17 Em 12 de maio do mesmo ano, os de maio de 2018, sob direção da brasileira senadores aceitaram o afastamento da pre- Maria Augusta Ramos. O documentário sidenta e Dilma deixou o cargo tempora- traz a narrativa do processo de impeach- riamente. Assume seu vice, Michel Temer ment da presidenta Dilma Rousseff (PT), (MDB). Em 31 de agosto de 2016, condu- acompanhando os bastidores e as outras zido pelo então presidente do Supremo narrativas que permearam todo o pro- Tribunal Federal (STF), Ministro Ricardo cesso. Uma narrativa mais abrangente do Lewandowski, o Senado (por 61 votos a 20) que a da mídia massiva, que apresentou considera que Dilma Rousseff cometeu o caso majoritariamente sob o ponto de crime de responsabilidade fiscal e deter- vista da acusação. Segundo Nichols (2005), mina a perda de seu mandato. o documentário é uma obra não ficcional, mas que também é construída a partir do Temer assumiu como presidente e olhar de seu autor. Isto demonstra que toda rompeu com as propostas da chapa a qual e qualquer produção cultural, por maior pertencia e adotou uma postura liberal polifonia que carregue, ainda assim não é economicamente e conservadora social- neutra e imparcial. Como ferramenta de mente, com a aprovação de uma série de análise será utilizada a análise de conteúdo medidas tidas como antipopulares, como (BARDIN, 2001). a aprovação da “PEC do Teto”, que limitou os investimentos em setores importan- 4.1 A trajetória de Dilma e o golpe tes, como saúde e educação, da Reforma de 2016 Trabalhista e tentativa de aprovação da Reforma da Previdência. Medidas de aus- O processo de impeachment da teridade inclusas em um plano chamado de presidenta Dilma (PT) teve início com a “Ponte para o Futuro”. Além disso, Michel aceitação odo pedido em 2 de dezembro Temer teve seu nome envolvido também de 2015, pelo então presidente da Câmara em esquemas de corrupção expostos pela dos Deputados, Eduardo Cunha (MDB). A Operação Lava Jato, todavia, não foi afas- denúncia se baseava na alegação de crise tado do seu cargo de presidente. de responsabilidade fiscal e foi redigida por Hélio Bicudo, procurador de justiça aposen- 4.2 Documentário como gênero tado e pelos advogados Miguel Real Júnior híbrido: entre o real e o ficcional e Janaína Paschoal. Para Burke (2002, p. 177), “a fronteira Após aceita a denúncia foi formada entre fato e ficção, que já chegou a parecer uma comissão para análise do pedido. Após bem definida, acabou por ruir na nossa votação e aceite, o pedido da comissão foi denominada era ‘pós-moderna’”. Ficção e encaminhado para votação na Câmara, realidade servem de substrato um para o

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outro (ISER, 1999). Ramos (2008) discute ele representa uma determinada visão de as fronteiras entre o cinema ficcional e o mundo, mesmo que talvez nunca tenhamos documentário, tendo o documentário como nos deparado com ela antes (Ibidem). um cinema não ficcional, todavia, o autor admite que as narrativas de ficção e docu- 4.3 Análise de conteúdo mentário podem se embaralhar. A análise de conteúdo proposta por Lins e Mesquista (2008), ao escreve- Laurence Bardin (2011) traz uma forma de rem sobre o documentário brasileiro, discor- tratamento em pesquisa quantitativa e qua- rem que, na década de 1970, foi inserido o litativa, a partir da criação de categorias que discurso do personagem, antes representado permitem a classificação dos componentes pela voz over. De acordo com as autoras, a do significado da mensagem em espécies preferência por um fio condutor da narrativa de gavetas. Esse método de análise se orga- do documentário pode utilizar de qualquer niza em: pré-análise, com a organização do ordem estética e experimental, usando das material que compõe o corpus da pesquisa; diferentes formas de linguagem possíveis. e exploração do material e tratamento dos resultados, por meio da codificação, inter- O documentário, para Nichols (2005), pretação dos dados e das inferências, tendo conta três histórias: a do cineasta, que esco- sempre como norte a pergunta problema que lheu fazer o filme; a do próprio filme; e a originou a pesquisa (BARDIN, 2011). do público que interpreta o documentá- rio. O autor acredita que o significado de Como categorias elencadas têm-se: documentário não pode ser reduzido a um a) a imagem da presidente construída na verbete de dicionário, é um conceito amplo narrativa; b) a identidade feminina acionada: e sua definição é sempre estabelecida de quais personagens femininas aparecem forma relativa ou comparativa. Assim, a no documentário e como elas se aproxi- realidade é uma representação apresentada mam ou se afastam do que é considerado em imagens e sons e não é conceitos con- comum típico do gênero feminino, há um cretos e fechados. Documentário difere-se rompimento nesta lógica hegemônica?; c) o da ficção por abordar realidades e o mundo documentário como uma voz contra a mídia em que vivemos, não um mundo idealizado hegemônica: como o documentário se afasta pelo cineasta (NICHOLS, 2005). e se aproxima da narrativa da mídia hegemô- nica, constituindo a memória. Quais vozes Nichols (2005) aborda a impossibilidade são ouvidas? Elas são contra ou a favor do de neutralidade neste formato de audiovisual. processo? O documentário traz a reflexão por “A voz do documentário pode defender uma meio da polifonia ou é parcial? Há equilíbrio causa, apresentar um argumento, bem como entre os momentos dados para os dois lados?; um ponto de vista. Os documentários procu- d) a narrativa desenvolvida pelo filme: como ram nos persuadir ou convencer, pela força de a narrativa é construída cronologicamente. seu argumento, ou ponto de vista, e pelo atra- Há uma relação de causa e consequência?; e tivo, ou poder de sua voz” (Ibidem, p. 73). O e) narrativas que permeiam o processo: quais documentário, portanto, não é uma reprodu- as outras narrativas perpassam o processo ção da realidade, mas sim uma representação; de impeachment e influenciam ele.

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Após descritas e separadas as cenas Ramos, conta que foi para Brasília duas e momentos do documentário, esses foram semanas antes da votação da Câmara. A categorizados e analisados com base nas diretora conta que teve como proposta tra- categorias descritas acima. zer um cinema mais reflexivo para seus espectadores, o mais polifônico possível. A 4.3.1 Corpus de análise: o documentário princípio, a cineasta acreditava que esta- ria documentando um momento no qual O documentário O processo possui a denúncia não seria aceita, mas acabou 2 horas e 17 minutos e acompanha a crise polí- documentando o momento histórico que tica que culminou no impeachment da pre- culminou na saída da presidenta e o acirra- sidenta Dilma Rousseff (PT), em 31de agosto mento da polarização de discursos no país. de 2016. Maria Augusta Ramos constrói a narrativa do processo por meio de imagens Para além, o documentário não traz dos bastidores e das discussões públicas dos entrevistas feitas diretamente pela diretora, agentes pró e contra a saída da presidenta. formato bastante usual no gênero. A narra- tiva é construída pelas imagens obtidas nos O filme inicia-se com a votação da bastidores, acompanhamento do processo Câmara, onde o processo foi aceito, em abril de formulação da defesa, entrevistas conce- de 2016, e as manifestações populares contra didas a outros veículos de comunicação por e a favor desse momento. Desde o início, o atores políticos integrantes da comissão do documentário demonstra a divisão e o acir- processo de impeachment, contra e a favor, ramento da polarização no país. Depois, a sessões da comissão, entre outros. É percep- narrativa passa a contar todo o processo de tível a tentativa da produção de ouvir os impeachment, suas discussões e bastidores. dois lados do processo, sem interferências Uma tentativa de abranger este cenário e que ou provocações. Todas as falas, contra ou dá maior voz à defesa de Dilma, uma vez que a favor, são acompanhadas por montagens a mídia massiva na época somente focava que apresentam a recepção dos persona- nos atributos a favor de sua saída. Aponta gens envolvidos, as reações e expressões o processo como um golpe articulado por faciais. Ainda, têm-se as manifestações pró diferentes instâncias. O processo é encerrado e contra do povo em Brasília, as formas com o desenrolar da saída da presidente, as como reagem e se manifestam. consequências do governo Temer, prisão do ex-presidente Lula e as manifestações sociais Outrossim, Maria Augusta Ramos contra as medidas impopulares adotadas por traz os outros contextos que permeiam esse novo governo. e influenciam sobre todo o processo, como as acusações e saída de Eduardo Em entrevista para o Brasil 247,1 a Cunha (MDB) da Presidência da Câmara; diretora do documentário, Maria Augusta a prisão do marido da senadora Gleisi Hoffmann (PT), uma das protagonistas da defesa da Presidenta; os discursos propa- 1 Entrevista com a diretora de O processo, Maria gados pelos meios de comunicação sobre Augusta Ramos, para o canal no YouTube do Brasil 247. Disponível em: https://www.youtube.com/ o processo e como a mídia se posicionou e watch?v=wioZO67q5Dc. Acesso em: 21 de set. 2018. construiu a imagem de Dilma; entre outros.

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O documentário é permeado por momentos são constantemente citadas pela defesa. de conflito e tensão representados por ima- Aproxima-se, dessa forma, à narrativa gens de dentro das reuniões dos deputados do herói, que enfrenta obstáculos cons- e senadores e de fora, com os manifestantes. tantemente em favor de valores nobres. Sua força e coragem são trazidos à tona. A narrativa do documentário segue Além disso, a defesa utiliza o discurso de os acontecimentos em ordem cronológica, que a presidenta é vítima de um golpe ins- intercalando audiovisual e textos para situar titucional, político e jurídico – fala refor- o espectador no tempo e espaço e também çada pelo discurso da própria presidente apresenta constantemente a relação causa e em um dos poucos momentos nos quais efeito, fatores que caracterizam uma narra- ela aparece no documentário, entre os tiva. A montagem conta ainda com imagens minutos 41’30 a 42’17” –, ocasionado pelo de Brasília, que focam na divisão e polari- rompimento com o MDB e acusação de zação, imagens dos corredores dos edifícios, Eduardo Cunha (MDB) (24’27” a 25’16”), permeados por repórteres e políticos. As ima- e a continuidade das operações da Lava gens da capital federal ainda servem para dar Jato. Tais argumentos procuram construir uma noção de que o tempo está passando, ao a imagem de Dilma como honesta e justa, representarem manhã-tarde-noite. sendo reforçado pelo apoio popular com o grito de ordem “Dilma guerreira da pátria 4.3.2 Análise do documentário brasileira!” (17’56” a 18’55”, repetido nova- O processo mente em 40’38” a 40’58” e associado ao grito de “Fora Temer”). a) Imagem da presidente construída na narrativa: A acusação pró-impeachment, por outro lado, tenta desconstruir essa ima- Dilma Rousseff aparece em poucos gem da presidenta. Acusam Dilma de momentos na narrativa, todavia a ima- enganar os eleitores, ser conivente com gem da presidente é constantemente o processo que levou o país à crise e men- construída e desconstruída conforme o tir para ganhar a eleição (como exemplo, interesse dos atores políticos envolvidos. têm-se os trechos entre os minutos 26’32 Durante a votação da Câmara já nos pri- e 27’40”; e 109’40” a 110’30”). Além disso, meiros minutos de documentário, por retomam a todo momento a legalidade do exemplo, os defensores do impedimento processo e que a presidenta cometeu crime afirmam que a presidenta faz parte da de reponsabilidade fiscal (discurso susten- “espinha dorsal de uma quadrilha” – refe- tado pela acusação e possível de ser obser- rência ao PT – (4’01” a 4’24”). Em contra- vado, por exemplo, entre os minutos 65’06” partida, os que defendem a permanência a 65’55” e 69’05” a 69’42”). Mais à frente no de Dilma Rousseff no poder constroem documentário, o discurso assume um tom a imagem de uma presidente honesta, diferente, de que o processo é necessário representante da democracia e vítima de para o Brasil crescer e tornar-se melhor um golpe (7’00” a 7’25”). A trajetória de para as gerações futuras, muito utilizado luta de Dilma em favor da democracia, pela acusação em diferentes momentos do sua prisão e tortura durante a ditadura documentário.

Extraprensa, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 179 – 203, jan./jun. 2019 [ EXTRAPRENSA ] Luiz Ademir de Oliveira Documentário O processo: uma narrativa sobre o impeachment da presidenta Dilma Deborah Luísa Vieira dos Santos 195 Willian José de Carvalho b) Identidade feminina acionada: emocionalmente, também como forma de enfraquecer sua imagem, mas agora Como iniciado anteriormente, a já associado às características tidas como identidade feminina é acionada de forma comuns para as mulheres, procurando misógina e inferior. Há 4 momentos em associar a histeria ao comportamento tipi- que o gênero da presidenta é acionado nas camente feminino, o que já foi em muito narrativas, sendo eles: superado pela Psicanálise.

1) Fala da Janaína Paschoal, advogada 3) Cenas de bastidores – Gleisi e uma das relatoras do caso, em uma ses- Hoffmann (PT) fala sobre o cenário viven- são da comissão de impeachment: ela diz ciado durante o processo (61’54” a 63’30”). que tem gosto de ver uma mulher chegar Nesse momento, dentre os discursos surge à Presidência e ter sucesso. Em seguida diz a bandeira feminina. A senadora fala que que ama essa terra e que seu partido é o o governo Dilma tem uma mulher à frente Brasil e afirma que não votou no PT (aqui a que deveria representar mais as mulhe- advogada tenta passar certa neutralidade, res. Todavia, esta não foi uma bandeira de que não é parcial ao entrar com o pedido tão levantada. O apoio pode até vir pela do processo). Em seguida, Janaína cita a representação, contudo a presidenta não entrevista que assistiu na qual a presidente representou de modo mais enfático o disse que sonhava em ser bailarina – algo movimento. que constitui o senso comum como sonho tipicamente feminino – (fala da advogada 4) Discursos de defesa e acusação entre os minutos 20’29” e 23’50”). durante o julgamento final da presidente no Senado (entre os minutos 105’35” e 127’50”): 2) Fala da Presidente Dilma em reu- representando a acusação, Janaína Paschoal, nião com apoiadores envolvidos na defesa cumprimenta a presidente e pede desculpas do processo e estrangeiros: Dilma aponta por fazê-la sofrer, mas que o processo é para a forma contraditória com a qual a grande o bem, inclusive, dos netos dela. Retomando imprensa a enquadra nos fatos relaciona- a ideia do instinto materno, ligado à proteção dos ao impeachment (54’21” a 55’34”): ora da cria a qualquer custo (discurso obser- como “desequilibrada” e que toma remé- vado entre os minutos 119’08” e 119’47”). Em dio de tarja preta, não tendo condições contrapartida, na fala da defesa – entre os de continuar no cargo, ora como “insen- minutos 120’10” e 123’15” – proferida pelo sível” e “fria”, que não se abala, não se fra- também advogado José Eduardo Cardozo, giliza e não renuncia. Ambas ideias giram é retomada a trajetória da presidente e sua em torno da falácia de que as mulheres luta em favor da democracia, sua prisão e são sensíveis e que se deixam levar pela tortura, e compara-se aquele momento, no emoção. Quando Dilma não renuncia e qual ela estava no banco dos réus, com o con- não se fragiliza, aproxima-se da força e texto do impeachment, mas em uma socie- coragem características comuns ao gênero dade democrática. Cardozo retoma a fala de masculino, e por isso é desqualificada Janaína para afirmar que, anos depois, Dilma pela mídia. Contudo, tenta-se construir a é mãe e avó (relação com características ditas narrativa de que ela está desequilibrada naturais do gênero feminino).

Extraprensa, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 179 – 203, jan./jun. 2019 [ EXTRAPRENSA ] Luiz Ademir de Oliveira Documentário O processo: uma narrativa sobre o impeachment da presidenta Dilma Deborah Luísa Vieira dos Santos 196 Willian José de Carvalho c) Documentário como uma voz contra a preparando o discurso a ser apresentado mídia hegemônica: na comissão, discute-se os rumos e as causas do processo, bem como é formu- O processo utiliza de cenas grava- lada a narrativa contra o impeachment das nos bastidores, mas também imagens e as manifestações de populares contra cedidas por mídias tradicionais, como TV o processo. Na categoria “Cenas de acu- Câmara, TV Senado, TV Bandeirantes sação/a favor do processo” incluem os e Empresa Brasileira de Comunicação momentos de fala da acusação, os bas- (EBC). E, mesmo as cenas gravadas de tidores, movimentos pró-impeachment, entrevistas concedidas pelos atores polí- momentos nos quais falam pessoas ligados ticos a veículos de rádio e TV, foram con- à acusação. Nesse sentido, obteve-se: 1) sideradas como parte da categoria ligada cenas de defesa/contra o processo – 50 à hegemonia, uma vez que reproduz o momentos; e 2) cenas de acusação/a favor discurso que foi dado às mídias massivas. do processo – 33 momentos. Como exemplo, pode ser citada a entre- vista concedida à Rádio Nacional pela, O documentário aproxima-se da na época, senadora Gleisi Hoffmann (PT) mídia hegemônica ao veicular o que foi (entre os minutos 29’08 a 30’18”), bem transmitido a ela. No entanto, o enredo, como a coletiva de imprensa feita pelo construído por cenas e discussões de então presidente da Câmara, Eduardo bastidores, faz o contraponto e dá uma Cunha (MDB) (entre os minutos 30’49” visão mais ampla do que foi o processo de a 31’26”). Outro momento refere-se às impeachment. Além disso, as manifesta- imagens cedidas pela TV Bandeirantes ções populares contra e a favor do processo sobre o momento de prisão do marido sempre têm suas imagens próximas ou em da senadora Gleisi Hoffmann entre os sequência, justamente para dar a sensação minutos 71’15” a 71’35”. de neutralidade.

Assim, divide-se em dois momentos: Contudo, os momentos ligados à “Discursos apresentados à mídia hegemô- defesa e contra o impeachment são maio- nica” àqueles nos quais foram veiculadas res do que às cenas ligadas à acusação e as entrevistas, imagens, e matérias para em favor do processo. As cenas dos bas- emissoras de TV ou rádio. Nesse sentido, tidores dialogam com as cenas da acusa- tem-se: a) discursos apresentados à mídia ção e fazem com que o espectador tenha hegemônica – 19 momentos; e b) discursos uma visão mais ampla da narrativa do gravados nos bastidores – 21 momentos. impeachment. As discussões dos bastido- res e, especialmente, as manifestações das Para além, foram contabilizados pessoas nas ruas refutam a ideia de que quantos momentos do documentário o povo, a maioria das pessoas, pedia pela veicularam os discursos da defesa ou da saída da presidenta. acusação durante o processo de impea- chment. Os momentos considerados A narrativa do documentário não só como “Cenas da defesa/contra processo” traz os discursos que permeiam a defesa e são aqueles nos quais mostram a defesa a acusação do processo, como também faz

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um contraponto à mídia hegemônica, que Michel Temer (MDB). Mas o que parece mais deu espaço ao discurso da acusação e apenas como uma forma de situar o espec- criou um cenário favorável ao golpe. tador, ao longo da narrativa, serve para corroborar com a hipótese da defesa de Ainda, como dito pela diretora do que o processo de impeachment foi aceito documentário, a defesa da presidente deu como forma de chantagem e retaliação à mais espaço e abertura para que fosse gra- presidenta e ao PT. vado os bastidores, abertura essa negada pela acusação. Possivelmente, isso influen- Um dos momentos colocados ciou no número de cenas da defesa ser como texto é justamente a legenda do maior, o que pode soar como parcial. áudio que deixa claro que há uma arti- culação para que Michel Temer assu- d) Narrativa desenvolvida pelo filme: misse o poder e estanque “a sangria”, ou seja, paralise a Operação Lava Jato em A narrativa desenvolvida pelo filme um “acordo com o Supremo com tudo” segue uma ordem cronológica e de causa (O PROCESSO, 2018, 42’25”-43’05”), refor- e efeito. Quanto à cronologia, o documen- çando o argumento da defesa de que o tário foi produzido casando texto e audio- processo de impedimento tem como um visual. O filme inicia-se com texto para dos objetivos o afastamento de uma pre- situar o leitor, com a data seguida do con- sidente que garantia a continuidade da texto, e termina com o mesmo esquema. operação. Além disso, todas as cenas de Ao todo, há 10 inserções de textos na tela, bastidores são costuradas com as cenas justamente para marcar as datas dos acon- das sessões da comissão de impeach- tecimentos mais importantes do processo ment, como a noção de algo que se inicia e, depois, situa o espectador do que acon- e continua. tece quando Dilma sai e seu vice assume, observado no trecho que vai do minuto Texto, cenas e imagens de Brasília 132’19” ao 136’32” (O PROCESSO, 2018). se unem para contar a narrativa do pro- Texto e imagens sequentes sempre con- cesso, dando a sensação de que o tempo versam e estabelecem uma relação de está passando, demonstrando a tensão do continuidade, causa e efeito, caracterís- momento e o acirramento da polarização. ticas da narrativa. Além do efeito de causa consequência, bas- tante utilizado para contrapor a narrativa O primeiro texto situa o especta- da acusação de que o processo não é um dor retomando o passado: Dilma é ree- golpe e de como os processos de sucederam, leita em 2014, PT tem a possibilidade de como um fato leva ao outro. estar no poder por 16 anos, antes disso a Lava Jato expõe esquemas de corrupção e) Narrativas que permeiam o processo: na Petrobrás e, dentre os acusados, estão o presidente da Câmara dos Deputados, O processo de impeachment parece ser Eduardo Cunha (MDB), e o vice-presidente, consequência e constantemente permeado

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por outros processos, como a Operação Lava se tomarmos as matérias veiculadas pela Jato, acusação e prisão de Eduardo Cunha, grande imprensa. No documentário, há a vazamento de áudios, crescimento de uma possibilidade de se conhecer os bastidores direita conservadora, entre outros fatores, do processo, os fatores que influenciaram que criam a sensação do processo ser apenas nas decisões, e o desenvolvimento da defesa uma parte de uma rede de acontecimentos. e acusação, dando um olhar mais amplo com uma polifonia maior. O impeachment parece ser conse- quência do primeiro texto colocado na tela Foi possível perceber também como (reeleição de Dilma, possibilidade do PT as questões de gênero ainda permeiam 16 anos no poder, Operações Lava Jato) e, a sociedade brasileira e como o discurso como texto final, já meses depois da saída conservador foi retomado, de forma sutil, de Dilma, que retratam as consequências ao longo do documentário. Alguns perso- vivenciadas, como medidas de austerida- nagens da acusação utilizam de argumen- des assumidas pelo governo, aprovação de tos que retomam preconceitos e sistemas pautas bomba, condenação do presidente de opressão que colocam a mulher como Lula, arquivamento da denúncia contra inferior, passiva, emotiva. Por outro lado, Temer. Como uma longa narrativa. se não possui tais características também está passível de ser desqualificada. Tais argumentos revelam como isso ainda está enraizado na sociedade brasileira e como a mulher ainda é vista com maus olhos na 5. Considerações finais política, sendo atacada constantemente por ser mulher e relegando as características como gestora a segundo plano. O documentário O processo narra o processo de impeachment da presidente Sem levantar juízos de valor sobre Dilma (PT) de forma cronológica e causal, a cobertura feita pela grande mídia, que o que dá a sensação de retratar a reali- é hegemônica, e o documentário – aqui dade, enquanto apenas é representação. inserido como um movimento contra-hege- Por mais que a diretora construa a narra- mônico, é importante ressaltar que tanto os tiva dando voz aos dois lados (pró e contra conceitos trabalhados sobre a tradição dos impeachment), a forma como o enredo se estudos culturais, a centralidade da mídia e costura ainda traz a ideia de que o processo a narrativa audiovisual presente no gênero não passou de um golpe. Por mais que tente trabalhado quanto a análise evidenciam abranger a totalidade dos fatos, há inúme- que o campo midiático deve ser compreen- ros fatores que permeiam o contexto do dido como múltiplas esferas públicas que, processo e o documentário. Desse modo, muitas vezes, são conflitantes e permitem será apenas um recorte, sob uma perspec- que se tenham visões diferenciadas sobre tiva do que aconteceu. os fatos. Serve, também, para desmistificar o lugar do jornalismo como o lócus privile- Vale ressaltar que este recorte, ainda giado do discurso da verdade e a retratação assim, apresenta-se como mais completo fiel da realidade, já que há uma disputa

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de sentidos cada vez mais presente numa sociedade midiatizada com uma gama bem mais diversificada de circuitos informativos e narrativos.

[ LUIZ ADEMIR DE OLIVEIRA ] Mestre e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atualmente é docente e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social (PPGCOM) da UFJF e do curso de Comunicação Social – Jornalismo da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). E-mail: [email protected]

[ DEBORAH LUÍSA VIEIRA DOS SANTOS ] Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social (PPGCOM) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Graduada em Comunicação Social e Jornalismo pela Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ). E-mail: [email protected]

[ WILLIAN JOSÉ DE CARVALHO ] Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social (PPGCOM) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Graduado em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ). E-mail: [email protected]

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Extraprensa, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 179 – 203, jan./jun. 2019 [ EXTRAPRENSA ] SUBJETIVIDADE: FERRAMENTA PARA UM JORNALISMO MAIS ÍNTEGRO E INTEGRAL

[ ARTIGO ]

Fabiana Moraes Universidade Federal de Pernambuco. Fabiana Moraes Subjetividade: Ferramenta para um jornalismo mais íntegro e integral 205   [ RESUMO ABSTRACT RESUMEN ] O jornalismo foi criado, desenvolvido e reproduzido em uma sociedade desigual, marcada por questões como o racismo, o classismo e o machismo. Dessa maneira, historicamente, contribuiu frequentemente para a reprodução desses fenômenos. Porém, usando o manto da objetividade, neutralidade e isenção, esse campo do conhe- cimento se notabilizou como lugar da verdade, da mediação confiável. Neste artigo, discutimos como esse manto, agora esgarçado, não dá conta de uma série de questões que receberam mais visibilidade nos últimos anos e tornaram possível revelar alguns dos limites dessa falsa objetividade jornalística. Propomos explorar o que chamamos de jor- nalismo de subjetividade como um instrumento que subverte critérios da noticiabilidade, amplia espaço para novas (ou sufocadas) representações e que pode se assumir ativista sem que haja uma recusa da apuração profunda e da checagem de dados. Entendemos, assim, a subjetividade como caminho para um jornalismo mais íntegro e integral.

Palavras-chave: Jornalismo. Subjetividade. Representações. Ativismo. Epistemologia.

Journalism was created, developed and reproduced in an unequal society, marked by issues such as racism, classism and misogyny. As such, historically, it has frequently contributed to the reproduction of these phenomena. However, using the mantle of objectivity, neutrality, and exemption, this field of knowledge has become a place of truthful, reliable mediation. In this article, we discuss how this cloak, now broken, does not account for a series of issues that have gained more visibility in recent years and have made it possible to reveal some of the limits of this false journalistic objectivity. We propose to explore what we call subjective journalism as an instrument that subverts newsworthiness criteria, widens the space for new (or suffocated) representations, and can become an activist without denying deep scrutiny and data checking. Thus, we understand subjectivity as the path to a more complete and integral journalism.

Keywords: Journalism. Subjectivity. Representations. Activism. Epistemology.

El periodismo se creó, se desarrolló y se reproduce en una sociedad desigual, marcada por cuestiones como el racismo, el clasismo y el machismo. De esta manera, histórica- mente contribuyó con frecuencia a la reproducción de estos fenómenos. Pero con el manto de la objetividad, neutralidad y exención, ese campo del conocimiento se notó como lugar de la verdad, de la mediación confiable. En este artículo, discutimos cómo ese manto, ahora desgarrado, no da cuenta de una serie de cuestiones que han recibido más visibilidad en los últimos años y han hecho posible revelar algunos de los límites de esa falsa objetividad periodística. Proponemos explorar lo que llamamos “periodismo de subjetividad” como un instrumento que subvierte criterios de la noticiabilidad, amplía el espacio para nuevas (o sofocadas) representaciones y que puede asumir activista sin que haya un rechazo del escrutado profundo y del chequeo de datos. Entendemos así la subjetividad como un camino hacia un periodismo más íntegro e integral.

Palabras clave: Periodismo. Subjetividad. Representaciones. Activismo. Epistemología.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2019.153247

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Introdução da realidade” (MORETZSOHN, 2001, p. 2). Os caminhos parecem apontar para a superação – ao menos na teoria – da ideia Este texto não pretende somar-se ao de um profissional vazio que apenas relata clássico debate sobre a impossibilidade da os fatos. Mas, na prática, continua valendo, objetividade jornalística ou tratar a subjetivi- principalmente para as audiências, a ideia dade como sua antagonista. Nosso propósito de uma pureza que se traduz em verdade aqui é observar como a dimensão “objetiva” única. É, assim, simultaneamente triste e produziu e reproduziu quase dogmas que irônico quando percebemos, no Brasil devoto fragilizam o próprio jornalismo, área que tem de informações falsas que circulam em redes como força a realização de uma mediação sociais, a perda de credibilidade de grande crítica sobre o mundo, sem o abraço à ideia parte da imprensa, que para muitos, hoje, de uma verdade única. Entendemos, sobre as deixou de “ser isenta” (crítica direcionada primeiras questões, que importantes análises inclusive para as agências de checagem, já foram (e são) realizadas: nos anos 1980, que perseguem, vejam só, a objetividade). O Medina (1986) alertava que o elogio uno à exemplo máximo dessa fissura na imagem técnica empobrecia a relação entre a repórter do jornalista vem do poder público institu- e o mundo. Em 2008, Ijuim, Suijkerbuijk e cional, quando o maior chefe de Estado do Schimidth criticavam as tentativas de uma país informa através de sua conta no Twitter abordagem asséptica, não contaminada, rea- que é ali, e não através da imprensa, que a lizada por um agente “isento”: “Como pode o população deve se informar a respeito das comunicador construir narrativas se contar decisões presidenciais. É um momento que somente com fatores objetivos, uma razão merece extrema atenção, e que será retomado empobrecida pela supremacia da técnica em um outro momento nesta pesquisa sobre e da eficiência?” (IJUIM; SUJKERBUIJK; jornalismo e subjetividade. SCHMIDT, 2008, p. 1). Christofoletti, em um trabalho no qual analisa a questão da autoria do Neste artigo, nossa proposta é pensar jornalismo, entende, recuperando Koshyiama na potência transformadora/reparadora de (1985 apud CHRISTOFOLETTI, 2004), que a um jornalismo de subjetividade – um termo defesa da objetividade também nasce para que, é claro, carrega um certo diabo da pro- ocultar interesses específicos no processo vocação –, ferramenta que pode ajudar a comunicacional. “Isso porque o processo jor- empreender movimentos urgentes no pen- nalístico não é apenas técnico, mas também sar e no fazer jornalísticos. O primeiro: ques- político” (CHRISTOFOLETTI, 2004, p. 88). tionar os valores-notícia, entendendo como Moretzsohn também dá conta dessa pers- estes sustentam, por exemplo, a manutenção pectiva, observando que as vozes ainda das hierarquias e valores frequentemente resistentes a essa crítica defendem a ideia racistas (como veremos a seguir). Segundo: de profissionalismo, do bom jornalismo, só o jornalismo de subjetividade como ferra- possíveis com a máxima objetividade: “a ques- menta para desestabilizar representações tão está deslocada, porque procura argumen- engessadas, estabilizadas, promovidas tam- tos técnicos para enfrentar um problema bém pelo próprio campo noticioso. Terceiro: político e ético, ocultando o papel que o jor- pensar que essa forma de jornalismo pode nalismo desempenha na construção social se aproximar de uma prática ativista sem

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desqualificar esse fato, entendendo que essa do jornalismo passou a ser uma ferramenta abordagem não é mais “contaminada” que importante na busca pela produção de repre- o jornalismo cotidiano, fortemente calcado sentações mais integrais sobre pessoas e na lógica econômica e política. grupos. Ela traz de maneira mais ampla, pro- funda, as camadas de existência dentro desses A tarefa de refletir sobre a pró- ambientes. Busquei, ainda sem nomeá-la, pria produção não é – ou não era – algo no recorte e feitura de reportagens como “A comum entre jornalistas, assim como entre vida mambembe” (2007), “Os sertões” (2009), outras produtoras e outros produtores de “Quase brancos, quase negros” (2010) e “O representação midiática. Como observou nascimento de Joicy” (2011), entre outras. Foi Moretzsohn (2007), o dia a dia embebido a partir de uma reflexão mais densa sobre de velocidade das redações de rádio, TV, a última que iniciei o desenvolvimento, jornais e portais ensinou historicamente em 2015, do que nomeio como jornalismo de que jornalista “não tem tempo para pen- subjetividade, termo nascido não para fazer sar”. Assim, a reflexão deixou de ser matéria uma oposição ao objetivo, mas sim uma como necessária para parecer quase um defeito forma de demarcar a importância do subje- de quem não privilegiava o modo industrial tivo, historicamente rechaçado no campo de fazer notícia. Mas foi justamente obser- noticioso. Essa negação da subjetividade vando a manutenção de lugares comuns não é algo que compete especificamente ao nos jornais do dia a dia que passei (pedindo jornalismo, mas sim a um discurso maior, licença para me colocar em primeira pes- que modaliza a ciência, as relações sociais, o soa) em um fazer jornalístico de 20 anos conhecimento – e também está relacionado ao em uma mesma redação, a refletir sobre a gênero, como pontua Silva (2014) ao analisar o minha prática1. A naturalização com a qual modo de produção masculina de notícias. Tem violências de diversos níveis surgiam no base, em resumo, em nosso projeto de racio- discurso jornalístico do qual eu fazia (e faço) nalidade. Um trabalho da artista e teórica parte causava espanto: pessoas assassina- portuguesa Grada Kilomba é uma boa síntese das sentenciadas como culpadas por terem dessa questão: nele, ela coloca de maneira “provável ligação com drogas”; mulheres poderosa as relações de poder estabelecidas vítimas de machismo mortas “por ciúme”; entre os discursos, os autorizados percebidos travestis que surgiam apenas nas páginas como os lugares da razão; os não autorizados policiais ou se prostituindo; a questão racial como os das prováveis distorções: sendo reduzida a efemérides; o sertão como o lugar dos famintos à espera de um milagre; Comentários e avisos parecem-me a pobreza enquadrada como vítima, violenta [aprisionar-me ou “a que supera adversidades”. em uma velha ordem colonial Inadvertidamente, dizem-me A subjetividade como elemento para o que conta como a verdade tratar desses temas tão recorrentes no âmbito e em quem acreditar lembrando-me de uma estranha [dicotomia:

1 Durante 20 anos, fui repórter, colunista e o que eles falam é científico editora-assistente no Jornal do Commercio, de Recife. quando nós falamos, é não científico.

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Quando eles falam, é imparcial. A razão (logos) deveria ser o farol do mundo, Quando nós falamos, é parcial. o guia, enquanto a emoção (páthos) foi enten- Quando eles falam, é objetivo. dida como uma fraqueza, um defeito, uma Quando nós falamos, é subjetivo. incapacidade, o não confiável (o “patético”) Quando eles falam, é neutral. (Ibidem, p. 21). Entendemos, assim, que o Quando nós falamos, é pessoal. jornalismo, antes de inventar essa dicoto- Quando eles falam, é racional. mia, foi um meio de ressonância para tal, Quando nós falamos, é emocional. porém atuando fortemente na sua repro- Eles têm fatos, nós temos opiniões. dução, difusão e manutenção. Eles têm conhecimento, nós temos [experiências. Melo (2007) propõe, seguindo Eugênio Não estamos a lidar aqui com um simples Bucci, um caminho não binário para pensar [jogo de p-a-l-a-v-r-a-s em um jornalismo que comungue com o sub- Mas sim com uma violenta hierarquia jetivo e o objetivo: a intersubjetividade. Esta, [que define: que não tenta encontrar uma verdade única quem pode falar ou assentar-se nos fatos como verdadeiros em e sobre o que se pode falar. si, tenta produzir o que ela chama de “uma (KILOMBA, 2015, grifos da autora). narrativa equilibrada”. Os meios para isso: “ouvir as várias versões do fato, por diferentes É claro que entender emoção (e subje- fontes; apresentar a controvérsia; verificar tividade) como falta de rigor, no jornalismo, documentos e dados que comprovem ou é olhar assentado antes de tudo nessa racio- não o fato; buscar não tomar partido, entre nalidade denunciada por Kilomba. Duas outras condutas técnicas-éticas” (Ibidem, p. 5). questões aqui se impõem: o entendimento da A autora elenca, assim, condutas espraiadas, emoção como algo hierarquicamente menor clássicas e vitais na prática jornalística. É sem que a razão e, ainda, o entendimento de que dúvida interessante ver um caminho que são as mulheres (negra, Kilomba também busca superar a falsa dicotomia entre objetivo está sublinhando a questão racial) aquelas e subjetivo, entendendo que jornalismo não “naturalmente” ligadas à primeira, enquanto se faz sem ambos: “as críticas à objetividade os homens comandam, servindo como refe- costumam ser vistas como se propusessem o rência, o barco da racionalidade. A desqua- outro extremo, a completa – e também impos- lificação histórica da subjetividade/emoção sível – subjetividade total, o que implicaria a também foi registrada em um simpático livro supressão do objeto” (Ibidem, p. 2). No entanto, cujo texto original foi redigido para uma como o próprio nome do artigo indica (“Em palestra voltada a adolescentes. Nele, Didi- defesa de uma nova objetividade jornalística: Huberman (2015) mostra brevemente que a intersubjetividade”), tal defesa parece namo- a emoção foi relegada ao espaço do menos rar justamente com essa oposição, insistindo confiável – seguindo os levantamentos de no objetivo como o farol que tudo ilumina: “O Darwin, viu que sua presença era coisa dos jornalismo é, assim, campo de disputa e luta loucos, dos velhos, das crianças e das mulhe- simbólica e deve mais apresentar a diversi- res. Esticando a corda, ele percebe que a dade de posições sobre um assunto do que mesma desvalorização se dá entre os filóso- enfocar um de seus aspectos” (Ibidem, p. 6). fos clássicos, totêmicos na cultura ocidental. É claro que apresentar uma diversidade de

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posições é saudável a essa forma de produção fraturada pelo classismo e pelo racismo); na de conhecimento. Mas ela necessariamente necessidade de olhar miúdo para entender supera a questão? “Ouvir os dois lados” ou como essas questões se traduzem nas pessoas, “vários lados” basta? Essa prática significa em como são devolvidas ao mundo; na pro- uma escuta mais integral da sociedade? Quem cura de fissurar representações previamente são os agentes ouvidos e como eles se posicio- dadas (ou fatos previamente dados); final- nam e são vistos socialmente? Sem que esse mente, em uma autocrítica do próprio campo critério, de saída, seja repensado, o esforço assentado em bases positivistas e também parece ser limitado. que privilegia narrar a partir de um enqua- dramento espetacular. É vital afirmar que os métodos de veri- ficação elencados no texto citado acima não Assim, orientar pautas, abordagens, são condutas estranhas à prática de um jorna- escritas e enquadramentos com esses pres- lismo de subjetividade, e a metodologia aplicada supostos não significa estar com os sentidos na realização das reportagens aqui citadas embotados pela emoção: ao contrário, signi- demonstra isso, conforme veremos no caso fica estar também guiado por critérios dados de O nascimento de Joicy (MORAES, 2015). no mundo sensível. Ou devemos ignorar o Além disso, um dos procedimentos recomen- meio no qual vivemos e do qual extraímos dados no artigo, “buscar não tomar partido”, nossas temáticas? A subjetividade não pode nos chama especialmente atenção: ele será ser entendida como algo meramente interno, analisado logo mais, quando tratarmos sobre pessoal, do campo da vida privada – a subjeti- subjetividade, jornalismo e ativismo. A subje- vidade é também formada por um ambiente tividade sobre a qual falo não repousa apenas histórico dado, objetivo. Saviani (2004) aponta na questão da emoção, é importante também justamente para isso ao abordar a subjeti- na feitura de tantas reportagens (e não esta- vidade em Marx: o filósofo alemão, em sua mos falando de seu uso sensacionalista). A VI tese, afirma que “a essência humana não emoção – aquilo que surge nos encontros é algo abstrato, interior a cada indivíduo observados por Medina (1986) – não desqua- isolado. É, em sua realidade, o conjunto das lifica nem torna menos crível a narrativa relações sociais” (MARX, 1977 apud SAVIANI, jornalística. Caso assumíssemos isso, como 2004, p. 10). Escrevo com esse entendimento, pensar no rigoroso e tocante relato-reporta- escrevo sobre a subjetividade dos outros gem que Eliane Brum (2008) realiza depois de orientada também a partir da minha. Escrevo acompanhar, para a revista Época, em 2008, porque o subjetivo é tão necessário quanto o os últimos 115 dias de vida da merendeira objetivo para a existência do propagado “bom Ailce de Oliveira Souza? jornalismo”, e a recusa do primeiro trouxe não só prejuízos para a prática (e teoria), mas A subjetividade a qual nos referimos principalmente para aqueles e aquelas que nesse jornalismo que busca ser mais inte- eram por este jornalismo traduzidos. gral se situa em critérios também objetivos: na necessidade de observarmos posições de A perspectiva de um jornalismo de classe, gênero, geográficas, raciais, grupais; na subjetividade começou a ser desenhada no obrigatoriedade de levar em conta a estrutura livro O nascimento de Joicy (MORAES, 2015). social circundante (em nosso caso, a brasileira, Ali, a investigação inicial observava como

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três campos de conhecimento se faziam antropológicos iniciais, aponta para um importantes nas reportagens que a autora olhar imensamente exotificante e euro- deste artigo tinha, até então, desenvolvido: cêntrico por parte dos que iam a campo – a filosofia, a sociologia e a etnografia (ques- geralmente escolhendo aquilo que era tão desenvolvida no capítulo 3). Novos ele- distante, “estranho”, aquilo que melhor mentos de sustentação aqui defendidos podia se configurar como sendo “o outro”. foram trazidos desde então. É um caminho Esse enquadramento também transforma em construção. Uma questão que se coloca aquele que é visto em agente passivo, para o desenvolvimento da prática jorna- visto que é o meu olhar o que perscruta. lística subjetiva está na própria forma de Enquanto observo, não me uno, mante- enquadramento da realidade: no jorna- nho uma distância segura. Mas, quando lismo, aprende-se que o que deve ser levado abandonamos esse lugar (essencial tam- ao conhecimento do público é o espetacular, bém na prática jornalística) que não se o extraordinário. A questão é que esse é um fecha ao encontro, abro a possibilidade de olhar muitas vezes exotificante, aquele que meu olhar não ser o que domina, o enten- busca enquadrar o outro sempre pelo que dido como não contaminado, o isento. O ele apresenta como “diferente”. Essa assi- objetivo, enfim. metria proporciona aquilo o que Hall (2016) chamou de “espetáculo do outro”, termo É vital, aqui, também trazer a noção feliz para pensar na vasta construção e da visibilidade e de visibilidade distorcida difusão de estereótipos pelo equipamento trabalhadas por Brighenti (2007) enquanto midiático. A prática subjetiva vai em busca categoria para as ciências sociais, como lugar de um modo de apreensão da realidade de hierarquizações. Para o autor, visibilidade não respaldado no espetacular, mas que é uma propriedade que pode ser usada para se interessa também pelo banal; não pelo dividir as pessoas. Nesse sentido, trazer focos insólito, mas aquilo o que é evidente; não de luz para grupos pouco ou mal representa- pelo exótico, mas pelo endótico (neologismo dos também é importante não como “temas” criado por George Perec (2010) para dar em si, mas justamente pelo fato de, nas rela- conta do evidente que não se vê). Segue-se, ções assimétricas midiáticas, estes ocuparem assim, aquilo que o romancista e ensaísta um lugar de desvantagem. francês classificou como infraordinário, um método de observação do mundo baseado A visibilidade homogeneíza as repre- naquilo que não chama atenção, naquilo sentações. Na ausência de mensagens que jamais, em tese, poderia ser alvo do dissonantes, as representações tendem a interesse de alguém. normatizar-se e estabilizar-se. É por isso que o acesso aos lugares de visibilidade é Estranhamente (ou não), a prática uma questão política central. Adentrar etnográfica, vital para a reportagem, é estes lugares é a condição prévia para se ainda pouquíssimo presente no ensino da ter uma voz na produção de representa- comunicação e do jornalismo, especifica- ções. Mais precisamente, não é simples- mente. Esta, no entanto, também já surgiu mente “acesso” o que importa, mas sim os carregada pelo espetacular. Agier (2015), estilos e modos de acesso (Ibidem, p. 333, ao fazer uma análise dos enquadramentos tradução minha).

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Afinal, para que serve redações). Essa regularidade de critérios, esse jornalismo? inclusive, é uma das bases para os processos de automação da notícia, quando, por meio da inteligência artificial (IA), robôs-jorna- 1. Para repensar critérios listas têm conseguido desenvolver o lead, noticiosos excludentes informando satisfatoriamente o público inte- ressado em uma leitura tradicional e rápida No campo do jornalismo, o estudo do sobre um determinado assunto. O desafio valor-notícia tem grande destaque, com con- da IA, atualmente, é fazer com que os robôs tribuições riquíssimas de autoras e autores avancem na progressão textual estruturando que percebem seus critérios mutantes. Nessas notícias com título, lead e complemento do análises, estão imbricadas, em abordagens texto (MORAES; GOUVEIA, 2018). diversas, tanto a dimensão estruturante daquilo o que permite que algo seja ou não A questão geográfica (tanto relativa noticiável (economia, política, organizações à proximidade do acontecimento de seus jornalísticas etc.) quanto a dimensão cultural potenciais leitores quanto a um destaque e ainda subjetiva (valores dos próprios jorna- dos países mais ricos sobre os mais pobres) e listas, rotinas das redações, questões locais principalmente a notoriedade (e/ou riqueza) etc.). A noticiabilidade, segundo Wolf (2003) dos envolvidos se repetem como critérios é constituída pelo conjunto de requisitos que poderosos de noticiabilidade entre vários se exigem dos acontecimentos – do ponto de autores e autoras. Martini (2000) elenca a vista da estrutura do trabalho nos órgãos de magnitude pela quantidade de pessoas ou informação e do ponto de vista do profis- lugares implicados e a alta posição dos per- sionalismo dos jornalistas – para adquirir a sonagens; Wolf (2001) também cita o grau e existência pública de notícia. Tudo o que não nível hierárquico dos envolvidos como fatores corresponde a esses requisitos é “excluído”, por determinantes; Galtung e Ruge (1965 apud não ser adequado às rotinas produtivas e aos OLIVEIRA, 2008) entendem que, quanto cânones da cultura profissional. Entendemos mais o acontecimento disser respeito a pes- que a heterogeneidade que hoje caracteriza soas e países de elites, mais provavelmente o jornalismo torna cada vez mais problemá- se transformará em notícia. Em sua análise tica a separação entre o que pode ou não ser sobre valores-notícia e valores-convergentes, noticiável. No entanto, apesar dessa maneira modelo entendido pelo autor como impor- relativamente aleatória que o jornalismo das tante para selecionar e inserir temas sociais redações (que ainda, contraditoriamente, se na mídia, Oliveira (2008) sublinha que, já no baseia na objetividade para defender seu pro- século XVII, Peucer observava que o poder duto) utiliza para conferir existência pública e a notoriedade (“o nascimento e a morte de aos fatos, existem diversas características que príncipes”) eram critérios fundamentais para tornam um acontecimento mais ou menos que algo fosse ou não levado aos ouvidos propenso a ser noticiável. do público.

A hierarquia das pessoas e os lugares Duas questões se colocam aí: é claro implicados são dois pontos que se repetem que figuras proeminentes – reis, presi- entre vários autores (e, fortemente, nas dentes, representantes de países, artistas

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etc. – possuem alto valor de noticiabilidade exibindo estas capas em série, Jaar mostra, seja pelo fato de estarem à frente de importan- em um pequeno texto sob elas, os números tes decisões que dizem respeito a uma grande crescentes de pessoas mortas em um dos quantidade de pessoas quanto pelo nível de mais violentos episódios da história recente popularidade, de celebridade. Também é da humanidade (na capa da qual vemos o importante colocar que não é apenas de luga- cantor e compositor Kurt Cobain, que come- res e rostos proeminentes (e ricos ou pode- tera suicídio naquela semana, somos infor- rosos) que se ocupa o jornalismo: a pobreza é mados através do texto de Jaar que, apenas um assunto rotineiro na imprensa. O ponto em Kigali, capital de Ruanda, o número de central é como essa pobreza é enquadrada. pessoas mortas em 5 dias de conflito era É aqui que o jornalismo de subjetividade nos de 25 mil). Onde estava a objetividade jor- é útil como ferramenta, ao empregar uma nalística ocidental enquanto aquelas milhares abordagem não espetacularizada sobre tais de pessoas jaziam nas ruas? Por que aqueles grupos; ao procurar trazê-los sem enqua- corpos não escandalizaram, desde o começo drá-los como exóticos, engraçados, vítimas do massacre, a opinião pública? Porque eram ou violentos; ao não tornar repórteres como negros? Porque eram “anônimos”? Porque era heróis e/ou heroínas, salvadores, enquanto África? Podemos voltar aqui a pensar no que essa pobreza é figurante. Grada Kilomba (2016) nos fala sobre que vozes merecem ou não ser ouvidas. A hierarquia Há ainda outro ponto que esse modo de lugares e pessoas venceu a magnitude e o de jornalismo, cutuca: se um dos critérios número de envolvidos porque quem morre – técnicos noticiosos mais comuns entre os e onde morre – são questões mais valorizadas autores e autoras nos fala que a magnitude pelo jornalismo e sua objetividade excludente. e número de pessoas envolvidas vale para transformar algo em notícia, o que aconteceu [ FIGURA 1 ] com a imprensa norte-americana (que nos Texto de Alfredo Jaar: “April 12, 1994: serviu historicamente de modelo) quando só The interim Rwandan government resolveu noticiar robustamente o massacre de flees Kigali for the town of Gitarama. povos africanos (hutus e tutsis) nos anos 1990 Relief officials estimate that as many as após mais de 100 dias de conflito e quase 25,000 people have been killed in Kigali um milhão de mortos? O Projeto Ruanda, do alone in the first five days of violence.” artista chileno Alfredo Jaar2, mostra com des- concertante clareza como esses valores-notí- cia seletivos operaram. Durante 17 semanas, ele catalogou as capas da revista semanal Newsweek naquele período (1994): traziam celebridades, reportagens sobre drogas, tec- nologia, mercado financeiro. Enquanto vai

2 Imagens e textos retirados do Rwanda Project, de Alfredo Jaar, organizado em 1994. Disponível em: https://bit.ly/1hk0RAm. Acesso em: 19 jul. 2019.

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[ FIGURA 2 ] Jaar ainda trabalharia a relação Texto de Alfredo Jaar: “April 6, 1994: entre imprensa e racismo (e, poderosa- A plane carrying the presidents of mente, sobre objetividade jornalística) Rwanda and Burundi is shot down above na obra Searching for Africa in Life (1996, Kigali, the capital of Rwanda. Their figura abaixo), na qual exibe 2.500 capas deaths spark widespread massacres, do icônico semanário norte-americano targeting Hutu moderates and the encerrado no ano 2000. Entre 1936 minority Tutsi population, in Kigali and e 1996, apenas cinco dessas capas foram throughout Rwanda. The Rwandan dedicadas ao continente – e todas elas Patriotic Front, which had been mostravam animais. No valor-notícia da encamped along the northern border Life, não havia espaço para arte, ciência, of Rwanda, starts a new offensive.” arquitetura, comportamento e temas que não tratassem sobre a vida selvagem na África. Novamente: era o “exótico” o que importava para ser noticiado.

[ FIGURA 4 ] Searching for Africa in Life, Alfredo Jaar, 1996

[ FIGURA 3 ] Texto de Alfredo Jaar: “August 1, 1994: Newsweek magazine dedicates its first cover to Rwanda.”

Lima e Baccega (2004) estudaram no Brasil a construção da África bestial – e da negritude – pela imprensa tomando como recorte a disputa futebolística entre Inglaterra e Camarões. Localizam, como Kilomba e Huberman, o marco zero de nossa perspec- tiva do racional no branco europeu (a África

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presente entre os lugares, segundo Hegel, 2. O subjetivo para desestabilizar que jamais ascenderiam à história e à cons- representações de pessoas e ciência). Nas matérias sobre a campanha do grupos time na copa, os jogadores eram os “leões”, “rugiam”, eram “indomáveis”. A “magia” e o Relacionada ao valor-notícia, mas não “estilo moleque” do time contrastava com o somente, está a imensa produção de repre- futebol “burocrático”, “heroico” e “competitivo” sentações pouco integrais sobre pessoas, da Inglaterra. Os aspectos técnicos, reflexi- grupos e lugares. Nessas lentes opacas e vos, eram mais uma vez afastados daqueles enquadramentos repletos de reduções (como de pele escura, enquanto sua alegria e não vimos no caso das pessoas negras), o jor- domesticidade eram sublinhados – termos, nalismo, mesmo de maneira não intencio- aliás, associados aos jogadores de futebol nal, promove a manutenção de violência brasileiros, de maioria negra. Vale destacar de vários níveis. Entendemos que o jorna- que esse olhar também foi comum na cober- lismo de subjetividade, que preza, como dito, tura jornalística nacional relacionada à vida pela semelhança, e não pela diferença (o eu, e obra da pintora Maria Auxiliadora, que “normal”, o outro, “espetacular”), pode ser faleceu em 1974 (sua arte, de saída, era defi- um caminho importante para fissurar essa nida como “primitiva” e “ingênua” pela arte prática estabilizada, na qual há a recusa a eurocentrada). “Empregada doméstica trocou modos de existência não hegemônicos. Ele o aspirador pelos pincéis” é um dos títulos no também proporciona a abertura para o que o material reunido no catálogo referente a uma campo, a rua, as complexidades que se colo- grande exposição sobre a artista realizada cam durante a investigação, podem trazer. em 2018 no Museu de Arte de São Paulo. Em outra matéria, lemos a chamada: Foi nesse caminho que a reportagem “O nascimento de Joicy” foi realizada. Ela, Em São Paulo – e depois no Rio – uma uma mulher transexual do interior de grande retrospectiva relembra uma das Pernambuco, não se enquadrava no perfil maiores artistas primitivas que o Brasil já previamente estabelecido no imaginário possuiu, agora de repercussão internacio- social: a cabeleireira não usava maquia- nal. A moça, negra, alta, bonita e semia- gens, brincos, vestidos, tem também o corpo nalfabeta narrou com alegria e feérico musculoso de quem trabalhou durante anos colorido a sua existência humilde e sofre- na roça. Não cabia, assim, em uma ideia de dora, o mundo de sonhos e realidade que “personagem ideal”. Ignorar essa perspec- a cercava (PEDROSA; OLIVA, 2018, p. 6). tiva foi fundamental para questionar os modelos do feminino construídos social- A operação é a mesma: é preciso sub- mente: Joicy passou a ser a personagem linhar primeiro a condição de doméstica – o de uma investigação que durou meses e espanto é que aquela mulher negra esteja resultou na série publicada durante três com pincéis nas mãos. Também sua beleza dias (Jornal do Commercio, 10, 11 e 12 de abril e pouco letramento formal, sua alegria e seu de 2011). Essa decisão rendeu, mais tarde, colorido – a infantilização é marca recor- ruídos não só entre o público, mas também rente desse jornalismo que parece querer no ambiente da redação, quando um editor celebrar quando, na verdade, estereotipa. escreveu na capa de jornal na qual Joicy

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aparecia em sua casa, nua, como uma Vênus desejos também seus: necessidade de amor, de Botticelli: “você escolheu uma bicha de conforto, companhia, respeito, cuidado. pobre, feia e ignorante”. A violenta frase – e uma série de cartas contrárias à presença 3. O subjetivo como ativismo visível de Joicy no jornal – demonstrava que, se tivesse conformado a personagem Como adiantado no início deste texto, a no corpo da mulher que leitores e chefes ideia de um jornalismo “isento” em oposição tinham previamente na cabeça, o assom- a um jornalismo contaminado pelo ativismo bro teria sido menor. A imagem da mulher é outra das falácias que escondem princi- construída socialmente, culturalmente, foi palmente as práticas permeadas por inte- maculada pela reportagem, trazendo uma resses do primeiro. Aquele, que compactua nova perspectiva sobre as construções do com a premissa da objetividade, se coloca, feminino. Era fissura, e não repetição de como repara Christofoletti (2004, p. 92), modelos, algo que, entendemos, é também “como um ritual estratégico que preserva obrigação de jornalismo. o profissional de críticas à qualidade de seu trabalho, de questionamentos a sua Optou-se ainda por uma observação legitimidade, de acusações de parcialidade densa, participante, com ênfase no enfoque em uma cobertura”. Assim, criou-se a ideia do cotidiano: foram vários dias acompa- de que há o bom jornalismo e o “jornalismo nhando o movimento do salão de beleza, engajado”, com o primeiro ocupando melhor as consultas médicas, as conversas com posição hierárquica, o segundo devendo ser vizinhos e familiares. Nessa observação, a desconsiderado. Ele é feito por apaixonados repetição das ações, a pretensa banalidade demais por suas causas, o que os leva a não dos fatos, traziam dados importantes: a realizar um bom trabalho – a emoção nova- relação contínua com o celular, este um mente surgindo como uma erva daninha companheiro contínuo da cabeleireira; as na prática jornalística. A contaminação é conversas no mercado público, com fre- uma propriedade deste, não do primeiro. quentadores fazendo piadas ou olhando Mas um jornalismo que reúne informa- de maneira risível quando Joicy passava. ção, boa apuração, enquadramentos não A escuta no pequeno sofá, enquanto Joicy viciados e temas sociais urgentes é algo cortava os cabelos de seus clientes também para ser evitado ou buscado? Pensando a era preciosa: ali, a contínua necessidade partir do resultado de trabalhos que tra- de falar sobre o sonho que tivera com um ziam temas como racismo, feminicídio, anjo que lhe dissera seu novo nome mos- transfobia, machismo, classismo, vi que, trava como de certa maneira o divino era na prática, questões urgentes e emergentes usado como moeda para sua aceitação em podiam ser trabalhadas a partir de uma sua comunidade. O infraordinário mos- perspectiva ativista sem prejuízos ao “bom trava sua potência. Essa abordagem foi jornalismo” – na verdade, entendemos que, extremamente importante para a difusão de saída, ao tentar repensar as práticas vis- da reportagem (e, mais tarde, do livro): ao tas na confecção de notícias e reportagens, empreender uma narrativa não espetacu- já se realiza um ativismo em si. A escolha lar, Joicy foi aproximada do cotidiano dos dos temas, das fontes e dos locais de obser- próprios leitores e leitoras, que viam nela vação, além do vital recorte das pautas, já

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demonstram uma tomada de posição que interesses específicos. Uma prática ativista pode ou desestabilizar representações redu- não significa abrir mão de ferramentas e toras ou confirmá-las. Pensando a partir procedimentos vitais (apuração, pesquisa, de minha própria rotina produtiva, per- produção polifônica), mas sim empregá-los cebo que esse foi o caminho para exercer em abordagens que, bem realizadas, respei- um engajamento mesmo no seio de uma tam e potencializam aquilo que o jornalismo grande empresa (é claro que existem tem- tem de mais poderoso: iluminar o que está pos e gestões diversas, questões que impe- sob as sombras. É vital compreender que dem ou estimulam tais práticas; mas, ainda o caminho da objetividade no jornalismo, assim, é possível encontrar estratégias para para além dos procedimentos técnicos, deve produzir fissuras). Dessa maneira, tanto o ser guiado também pela percepção da sub- “jornalismo comercial” quanto o “jornalismo -representação que atinge diversos grupos ativista” mostravam-se uma coisa só, sem sociais, uma sub-representação, repito, cau- falsa dicotomia. sada também pelo jornalismo.

Retomo aqui, nesta reflexão inicial Nesse bojo, acusar a presença da sobre o ativismo na subjetividade, um dos repórter e a partir de onde ela fala tam- critérios que Melo (2007) evoca para garan- bém é outra estratégia subjetiva assumida tir a melhor prática da intersubjetividade nesse método, uma vez que proporciona no jornalismo, o “não tomar partido”, algo um melhor entendimento da construção que feriria condutas técnicas e éticas. A própria que o jornalismo realiza de seus per- questão é que “tomar partido” é algo que sonagens. Quem está filtrando aquela vida está no DNA do jornalismo, e se isso foi para leitoras e leitores não está apagado, um dia declarado (como nos jornais opinati- ao contrário: está lá. Não se trata de dar vos do século XIX), passou a ser encoberto ênfase a um testemunho, e mais acusar um justamente pelo manto da objetividade. processo de construção (ou seja, uma ver- A pureza é um mito, como já sintetizou o dade entre muitas). A capacidade criativa artista Hélio Oiticica nos anos 1960. Desde da repórter precisa ser sublinhada, e cada seu nascimento, o jornalismo massivo é per- encontro, único, produz o que Medina (1986) meado, sabe-se, por interesses econômicos, chama de interação social criadora, afinal ou seja, a isenção nunca foi uma caracte- o diálogo se dá, sobretudo no nível da sen- rística dessa área de conhecimento. Apesar sibilidade. Como genialmente sintetizou disso, insiste-se em realizar separações o cientista austríaco Heinz von Foerster absurdas entre práticas “puras” enquanto (apud CHRISTOFOLETTI, 2004, p. 55), “a outras, ao deixarem claros os propósitos objetividade é a ilusão de que as observa- de suas produções, são menos confiáveis. ções podem ser feitas sem um observador”. Poderíamos pensar justamente o contrá- rio: acreditar preferencialmente em quem Os três caminhos descritos acima revela-se (às vezes, de maneira discreta, na estão, como vimos, conectados. Eles pro- medida que as empresas de comunicação curam repensar a epistemologia do jorna- permitem) e olhar com sérias restrições lismo e seus modos padronizados de narrar quem se antepara em lugares- comuns o mundo, fortemente calcados pela ideia de como “apenas relatei os fatos” para esconder uma objetividade. São caminhos que estão

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sendo abertos, reflexões que ocorrem em um momento de reconfiguração do jorna- lismo, quando as audiências estão cada vez mais atentas ao tipo de representação criada por esse campo. Esse caminho subjetivo precisa ser discutido, debatido, adensado, é claro. Mas, nos parece, é inescapável: não é possível continuar empregando molduras anacrônicas para dar conta de uma socie- dade que também se repensa. Há algo de muito errado em uma prática jornalística que não absorve os movimentos a sua volta em nome de uma “isenção”.

[ FABIANA MORAES ] Professora e pesquisadora do Núcleo de Design e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) – Campus Agreste. Jornalista com doutorado em sociologia, é autora de cinco livros. Pesquisa pobreza, celebrificação do cotidiano, jornalismo e subjetividade. E-mail: [email protected]

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[ ARTIGO ]

Valquíria Aparecida Passos Kneipp Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Valquíria Aparecida Passos Kneipp Por um modelo de emissora educativa: reflexões sobre a qualidade da TV USP 221  

[ RESUMO ABSTRACT RESUMEN ]

Este estudo buscou investigar a trajetória da TV USP, uma central de produção te- levisiva que funcionou durante dezoito anos nas dependências da Universidade de São Paulo e exibiu a sua produção por meio do Canal Universitário de São Paulo em consórcio com outras oito universidades da cidade. Buscou-se entender como a TV USP concebeu e incorporou a questão da qualidade na TV, com base nas propostas de Mulgan. A metodologia contou com entrevistas, pesquisa bibliográfica e análise de programas. Mesmo não se configurando como uma concessão de TV, a emissora desenvolveu uma produção de qualidade, com uma proposta diferente da televisão comercial, podendo se configurar como uma emissora educativa.

Palavras-chave: Trajetória. TV USP. Qualidade. TV Educativa.

This study aimed to investigate the history of TV USP–a television broadcasting center–which ran for eighteen years in the facilities of the University of São Paulo, having broadcast their production through the Canal Universitário de São Paulo in partnership with eight other city universities. This study sought to understand how TV USP conceived and incorporated the matter of quality on TV, grounded on proposals by Mulgan. The methodology included interviews, search in the literature, and program analysis. Although not considered an official TV channel, the broadcast delivered quality products and a different proposal of commercial television, which can be characterized as an educational TV broadcast.

Keywords: Path. TV USP. Quality. Educational TV.

Este estudio tuvo como objetivo investigar la trayectoria de la TV USP, un centro de producción de televisión que se desarrolló durante dieciocho años en las instalacio- nes de la Universidad de São Paulo, y que exhibió su producción por medio del Canal Universitario de São Paulo en asociación con otras ocho universidades de la ciudad. Se busca comprender cómo la TV USP concibió e incorporó el tema de la calidad en la TV, sobre la base de las propuestas de Mulgan. La metodología consistió en entrevistas, búsqueda bibliográfica y análisis de los programas. A pesar de no haberse perfilado como una concesión de la TV, la estación presentó una producción de calidad, con una propuesta diferente de la televisión comercial, y que puede configurarse como una estación educativa.

Palabras clave: Trayectoria. TV USP. Calidad. TV Educativa.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2019.152795

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Introdução gêneros no telejornalismo e lista uma série de programas exemplares no mundo todo.

O estudo da televisão no Brasil compreen- Diante desse breve cenário das pes- de um amplo universo de pesquisas que quisas sobre a televisão, para este projeto vai desde a sua história, trajetória, memó- optou-se por tratar da qualidade da televi- ria e análise de conteúdo e do discurso, são baseado na proposta de Mulgan (1990), até os gêneros, formatos e crítica. Em uma em que o autor enumera sete tipos de abor- breve busca pela temática da televisão foi dagens quando trata do tema qualidade, possível elencar uma série de pesquisas sendo elas: qualidade da produção e pro- que colocam o assunto como foco em di- fissionalismo, qualidade do consumidor e versas direções. do mercado, estética da televisão, televisão como um ritual e comunhão, televisão e a Freire Filho e Borges (2011) orga- pessoa, televisão como um ecossistema e, nizaram uma publicação sobre televisão, por último, qualidade como diversidade. promovendo um diálogo entre Brasil e Portugal, abordando temas como história, Para que este estudo não tome pro- ficção seriada, telejornalismo, reality shows, porções gigantescas, optou-se por selecio- digitalização e programação, com análises nar, nesse momento, uma emissora ligada e estudos de recepção e de casos. Carenzio a uma produção desvinculada da agenda (2008) ao analisar a qualidade da televisão comercial, para analisar a qualidade da tele- italiana, tomando como base a programação visão no Brasil: a TV USP, emissora ligada à infantil, conclui, entre outros pontos, que Universidade de São Paulo, que é parte inte- a qualidade deve envolver destinatário, grante da Coordenadoria de Comunicação fala de modo claro e direto, adaptação aos Social da Universidade de São Paulo (CCS). ritmos do público, abordagem sobre a rea- lidade, diálogo com os jovens, utilização A TV USP, de acordo com o site da da curiosidade das crianças e promoção da emissora, exibe programas educativos, cul- autonomia crítica como antídoto contra a turais e jornalísticos do acervo da Rede USP acomodação. Squirra e Fechine (2009) em de Televisão (RUTV), que atualmente é com- uma coletânea organizada pela Compós posta pela TV USP – São Paulo –, gestora do apresentam um panorama com perspecti- Canal, e também pela TV USP – Bauru, TV vas e tendências para a TV Digital no Brasil, USP – Piracicaba e TV USP – Ribeirão Preto. O com estudos sobre a interatividade da TV, espaço traz ainda documentários, séries espe- de linguagem e fruição, e, ainda, uma amos- ciais e outros conteúdos realizados em parce- tra dos cenários e dos negócios da televisão ria ou coprodução com Unidades e Órgãos da digital. A interatividade, a convergência e Universidade de São Paulo. Em uma visita ao os novos modelos de negócios na era digi- site da emissora foi possível verificar que a tal também foram as temáticas abordadas sua programação não está totalmente ativa e por Cannito (2010). Machado (2005) em não possui informações atualizadas. Segundo clássico estudo sobre a televisão apresenta a página, “A programação do site TV USP um panorama dos melhores programas da está sendo atualizada neste momento, por televisão mundial, discute a questão dos gentileza volte a visitar o canal TVUSP mais

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tarde. Obrigado por nos visitar”1. Existe no site afirmação desta hipótese, ou seja, de que da TV USP uma relação dos colaboradores e a TV USP concebe e incorpora os referi- dos respectivos programas produzidos por dos pressupostos; e há ainda uma terceira cada um deles. Na TV USP – SP estão listados hipótese que pode confirmar parcialmente os programas PGM, Trajetória, Traquitana, as duas anteriores. Quarto Mundo, Caminhos, Especiais e outros. Nas outras colaboradoras não existem pro- Como objetivo geral buscou-se inves- gramas listados. tigar a aplicabilidade dos sete tipos de abor- dagens para qualidade da TV propostos A emissora escolhida como recorte por Mulgan (1990), a partir da análise do para esta pesquisa é ligada à universidade conteúdo produzido pela emissora: analisar pública, mas ela não pode ser considerada a qualidade da produção e profissionalismo uma emissora pública porque não dispõe presente na emissora; observar a qualidade de uma concessão propriamente dita. Até do consumidor e do mercado; caracterizar o ano 2015 a TV USP exibiu a sua produção a estética da televisão, a televisão como um por meio do Canal Universitário de São ritual e comunhão, a televisão e a pessoa e a Paulo2. Mesmo não sendo considerada uma televisão como um ecossistema; e constatar emissora pública, ela possui um sistema de a qualidade como diversidade. concepção e produção de programas educa- tivos e críticos, fato que instigou em inves- Os motivos que podem corroborar tigar: como a TV USP proposta como objeto com a realização desta pesquisa surgem da empírico de estudo desta pesquisa incorpora busca de contribuições conceituais e teó- e concebe a qualidade da televisão? ricas sobre a aplicabilidade da qualidade nas emissoras universitárias, visto que o Antes de uma hipótese propriamente tema é pouco debatido no meio acadêmico dita é preciso refletir que, de acordo com brasileiro. Numa rápida pesquisa no banco Minayo (2011), as hipóteses são afirma- de teses e dissertações da Coordenação ções provisórias ou uma solução possível a de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível respeito do problema colocado em estudo. Superior (Capes) foi possível observar que Cabe, então, mesmo que de forma prelimi- existe apenas uma dissertação de mestrado, nar, inferir que a emissora universitária de 2012, que avalia a qualidade de serviços investigada nesta pesquisa não concebe de emissoras de televisão segundo a percep- e nem incorpora pressupostos relativos à ção dos anunciantes. Já no banco de dados qualidade da TV. Outra possibilidade é a do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) foram encon- tradas dez dissertações de mestrado que versam sobre a qualidade de programas, a 1 TV USP, 2013. Disponível em: http://iptv.usp.br/por- tal/channel.action?idItem=19. Acesso em: 13 set. 2015. qualidade do telejornalismo e a estatística de 2 Inaugurado em novembro de 1997, o Canal transmissão e apenas uma tese de doutorado Universitário de São Paulo (CNU) é um condomínio sobre a qualidade da TV Escola no Brasil. que reúne cinco universidades paulistanas. Por meio dele, é veiculada a programação das respectivas TVs universitárias associadas. São elas: TV Mackenzie, A emissora objeto deste estudo foi TV PUC, TV Unip, TV São Judas e TV Inatel. escolhida por apresentar uma oportunidade

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de acesso às informações, à observação e a respostas a partir da experiência subjetiva entrevistas, com os principais responsáveis de uma fonte, selecionada por deter infor- por ela. A metodologia contou com pesquisa mações que se deseja conhecer” (DUARTE, bibliográfica, observação não participante e 2005, p. 62). Ela foi utilizada, de acordo com entrevistas em profundidade, caracterizan- Duarte (2005), para a pesquisa de cunho do-se, dessa forma, em um estudo de caso. qualitativo, por meio de questões semiestru- turadas, e entrevista semiaberta, com um O estudo de caso, segundo Yin (2001, roteiro para abordagem em profundidade, p. 19), representa “a estratégia preferida que propiciou respostas indeterminadas. quando se colocam questões do tipo ‘como’ Antes da pesquisa propriamente dita é e ‘por que’ quando o pesquisador tem pouco importante conhecer um pouco o objeto controle sobre o evento” e também quando empírico desta pesquisa – a TV USP. o foco trata-se de fenômeno contemporâneo inserido em algum contexto da vida real, como é caso desta pesquisa, que buscou ir a campo para conhecer a realidade de uma emissora pública educativa do Brasil. Um pouco da trajetória da TV USP

A pesquisa bibliográfica, de acordo com Stumpf (2005), como parte de um pla- Inicialmente é preciso explicar que a nejamento global inicial de qualquer traba- TV USP, em sua concepção inicial, não se lho acadêmico, compreende a identificação, trata de uma concessão pública de televi- a localização e a obtenção da bibliografia, são, e sim de uma participante dentro de “é um conjunto de procedimentos que visa um Canal de Acesso Público, que começou identificar informações bibliográficas, sele- dividido entre universidades da cidade de cionar os documentos pertinentes ao tema São Paulo e Grande São Paulo, em pool, com estudado e proceder à respectiva anotação programação rotativa, denominado Canal ou fichamento” (Ibidem, p. 51). Universitário de São Paulo3.

A observação não participante De acordo com Adoryan (2004), o “consiste na inserção do pesquisador no Canal Universitário de São Paulo (CNU), ambiente natural de ocorrência do fenô- do qual a TV USP fez parte até meados de meno e de sua interação com a situação investigada” (PERUZZO, 2005, p. 51). No caso desta pesquisa foram períodos em que 3 O Canal Universitário foi criado de acordo com a a pesquisadora visitou a emissora estudada lei n.º 8.977/95, como canal básico de utilização gra- e buscou informações sobre ela. tuita que veicula programação das universidades sediadas na cidade de São Paulo. Dessa forma, é um meio técnico de difusão de sons e imagens de cinco A entrevista em profundidade como televisões diferentes, com filosofia, ideias, produtos uma técnica clássica para a obtenção de e projetos próprios. Ainda assim, as universidades informação “é um recurso metodológico associadas trabalham numa perspectiva de integra- ção, buscando coproduções e atividades comuns que que busca, com base em teorias e pressu- contribuam para o fortalecimento dos laços de ami- postos definidos pelo investigador, recolher zade e de solidariedade que as unem.

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2015, começou a ser gestado em 1996 com nunca pensou nisso”5. Para ele a falta de o I Encontro dos Canais de Acesso Público pesquisa também contribui para o fim da TV do Estado de São Paulo, onde se discutiu a USP. “É um atraso generalizado na reflexão organização das formas de participação das sobre rádio e TV Universitária, sobre o que entidades interessadas em compor os canais deve ser, e o que não deve ser. Eu acho que o básicos de utilização gratuita, criados pela fato da gente nunca ter feito coisas muito sig- Lei do Cabo, que regulamentou o funciona- nificativas, principalmente na televisão, no mento das TVs a cabo no Brasil. Somente rádio eu acho que fez isso”6. Outras hipóteses em julho de 1997 o CNU foi criado, com podem corroborar com o fim da TV USP, dez universidades da cidade de São Paulo. pelo menos da maneira como existiu (em Efetivamente a programação da TV USP pool com outras universidades). A primeira só entrou no ar a partir de 10 de novem- hipótese é que com o processo de midiatiza- bro de 1997. A saída da TV USP do Canal ção, apontado por Hjarvard (2012, 2014), a Universitário se efetivou em 2015. Foram sociedade contemporânea mudou sua forma 18 anos de participação. De acordo com o de comunicação e com isso a universidade Coordenador de Comunicação Social da precisa entrar em sintonia com esse processo USP, Eugênio Bucci, a saída se deu devido em curso, por meio de variadas formas de a uma reestruturação que toda a comuni- dialogar com o público (redes sociais digi- cação da universidade passou: tais, por exemplo). De acordo com o autor, a midiatização pode ser: “um processo de Porque a televisão dentro do Canal dupla face no qual a mídia se transformou Universitário, ela não é uma televisão em uma instituição semi-independente na com uma identidade forte, mas é pre- sociedade à qual outras instituições têm que ciso deixar claro que a TV USP fez um se adaptar” (HJARVARD, 2012, p. 53). E no trabalho magnífico desde que foi criada caso específico da TV USP, seria necessá- com a presença no Canal Universitário, ria uma mudança na forma de exibir sua preparar o conteúdo que aquela equipe produção e se comunicar com a sociedade, conseguiu fazer é notável, a gente tem além das transmissões em horários rotativos, um acervo espetacular 4. dividindo espaço com outras universida- des. Como isso não foi possível, devido à Já o professor Luiz Fernando Santoro, escassez de recursos, que as universidades que fez parte de uma comissão que avaliou públicas no Brasil vêm enfrentando ao longo os meios de Comunicação Social da USP, dos anos, esse pode ser um dos elementos revela que apesar de haver mão de obra que levaram a TV USP a finalizar as suas capaz e bem remunerada nos quadros da atividades, nesse contexto em que estava TV USP havia um descompasso. “Não tinha presente. No atual cenário de midiatização um projeto consistente sintonizado com a apontado por Hjarvard (2012), as instituições universidade, sintonizado com o que a uni- alteraram os seus funcionamentos e também versidade queria. Porque a universidade

5 Entrevista concedida à pesquisadora no dia 2 de 4 Entrevista concedida à pesquisadora no dia 2 de abril de 2016. abril de 2016. 6 Idem.

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as relações mútuas. Esse conceito pode ser de Atividades Especiais (Cecae), Ângelo aplicado em vários setores da sociedade con- Piovesan Netto, professor do CTR, e temporânea, como na política, na ciência, na Domingos Luiz Bargman, coordenador religião, entre outras, porque a: técnico do Laboratório VIDEOFAU da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo midiatização é utilizada como conceito da USP (FAU), apresenta na introdução, o central em uma teoria sobre a impor- contexto da sociedade: “‘fim-de-século’, glo- tância intensificada e mutante da mídia balizada, vem sofrendo profundas modifi- dentro da cultura e da sociedade. Por cações no armazenamento e na transmissão midiatização da sociedade, entendemos do conhecimento a partir do uso, cada vez o processo pelo qual a sociedade, em um mais democrático, das novas tecnologias grau cada vez maior, está submetida a ou de comunicação como: cinema, TV, vídeo, torna-se dependente da mídia e de sua computadores” (FRANCO; PIOVESAN lógica (HJARVARD, 2012, p. 64). NETTO; BARGMAN, 1997, p. 2), e aponta a contribuição que as tecnologias poderão Uma segunda hipótese é que o processo edificar para que o conhecimento seja usu- de midiatização da sociedade contemporâ- fruído e aproxime-se de uma “Videoteca de nea trouxe outras formas de comunicação Alexandria”, numa alusão à maior biblioteca em diversas plataformas, o que foi caracteri- do mundo, só que em termos de vídeos. zado por Jenkins (2009) como convergência “Com a digitalização acelerada de grandes midiática. O autor apresenta sua ideia de acervos culturais e sua disponibilização convergência não só como um processo tec- nas infovias, sob os formatos mais varia- nológico, que une múltiplas funções dentro dos, percebemos que a palavra escrita tem de aparelhos, “em vez disso, a convergência reduzido seu papel como forma privilegiada representa uma transformação cultural a de registro e transmissão do conhecimento” medida que consumidores são incentiva- (Ibidem). O projeto ressalta o espaço que as dos a procurar novas informações e fazer linguagens audiovisuais vêm ganhando, conexões em meio a conteúdos de mídias como suporte de documentos, e que “expres- dispersos” (Ibidem, p. 30). Diante desse cená- são audiovisual” começa a ser incluída nas rio conceitual, teórico e tecnológico, uma atividades de formação das novas gerações. televisão nos moldes em que a TV USP exis- O desafio proposto pelo referido projeto é tiu, como exemplo em termos de produção, apresentar uma programação que informe precisaria ser repensada e rearticulada para o público o que se faz dentro da USP, o que poder fazer frente às demandas da sociedade representa “a oportunidade única de acele- contemporânea. rarmos nossas formas de comunicação na direção dos formatos do futuro” (Ibidem). A TV USP, em seu projeto ini- cial, elaborado pelos professores Marília Dois questionamentos fundamen- Franco, que na época era professora do tais que revelam a constituição conceitual Departamento de Cinema, Rádio e TV da do projeto são apresentados, com algumas ECA/USP (CTR) e coordenadora acadêmica possíveis respostas para eles. O primeiro do Projeto Univídeo, na Coordenadoria diz respeito a “que imagem da USP quere- Executiva de Cooperação Universitária mos transmitir?” (Ibidem). Como resposta

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há alguns termos-chave como pluralismo, Para que esses conceitos pudessem excelência, interatividade, valorização da se consolidar nas ações práticas e de pro- construção do conhecimento. Menciona-se dução dos programas foram elencados três também a formação cultural das novas princípios para nortear o tratamento dos gerações e resposta ao investimento da projetos de programação e da avaliação da sociedade. De acordo com os autores do qualidade dos produtos. O primeiro diz res- projeto, “cada um desses termos guarda em peito à linguagem da TV, que “terá primazia si enormes desafios de fazê-los refletir na sobre qualquer outro formato” (Ibidem). dinâmica audiovisual de cada programa, O segundo revela a preocupação com a na coerência conceitual da grade de pro- informação que abranja uma diversidade gramação, na qualidade técnica e estética de públicos porque “será transmitida a lei- do que emanar dessa janela aberta para a gos e iniciados” (Ibidem). O último propõe sociedade” (Ibidem). O segundo questiona- uma espécie de polifonia acadêmica, com mento reflete sobre “que compromisso de espaço e voz para todos os acadêmicos, pois diálogo assumiremos com os espectadores?” “deverá transmitir a voz de todos os seg- (Ibidem). A resposta revela o diferencial que mentos acadêmicos” (Ibidem). TV USP se propunha a fazer. Para garantir a produção de uma No nosso caso essa questão assume programação pelos conceitos e princípios dimensões muito especiais, conside- anteriores, o projeto da TV USP propõe rando o compromisso da universidade um corpo diretivo e produtor com dinâ- pública com a construção e transmissão mica e coerência próprias por meio de um do conhecimento na sua dimensão de organograma que garanta, “ao mesmo excelência e utilidade. Nossos mecanis- tempo, a construção da melhor imagem da mos de “feed-back” terão que ser cons- Universidade, com liberdade e a agilidade truídos segundo nossa finalidade social indispensáveis à produção audiovisual” mais elevada e não a partir de desejos e (Ibidem). modismos mensuráveis por métodos de Ibope (Ibidem). O organograma inicial estava dividido em dois setores: um Conselho Principal e As duas direções conceituais apon- um Comitê Executivo, sendo que o Conselho tadas no projeto definem o papel que a TV Principal deveria ser composto pelas Pró- USP pretendeu desempenhar diante da Reitorias da USP, pela Coordenadoria de sociedade: Comunicação Social da Universidade e pela Escola de Comunicações e Artes. “Este não como uma vitrine de exibição das conselho deverá cuidar da implantação da qualidades acadêmicas, mas, sobretudo, TV USP fixando e consagrando os concei- como a possibilidade de resgate da soli- tos, os princípios e as políticas internas e dariedade, do respeito e do desenvolvi- externas que viabilizem as transmissões mento mútuo em que devem se pautar da programação” (Ibidem). Com o tempo, a as relações entre produtores do saber proposta inicial era que esse comitê, após e a sociedade que os inspira e financia a implantação, fosse substituído por um (Ibidem). Conselho Editorial.

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O Comitê Executivo, com a função Outra preocupação dos autores do projeto de propor, produzir e levar ao ar a grade foi a necessidade urgente de definir a pro- de programação da TV USP, comanda- gramação visual da TV USP, com logotipo, ria as atividades do Departamento de vinhetas, aberturas e inserts; Produção7, do Setor de Pós-Produção8, do Departamento Técnico9, do Departamento pois ela será o rosto, a fachada da TV e de Administração10, do Departamento sua criação deverá ser feita inspirada nos de Feed-back11 e do Departamento de conceitos e princípios definidos. A execu- Documentação12. ção desses produtos envolve a criação dos projetos gráficos para aprovação e depois A grade de programação inicialmente sua produção em formato audiovisual, se comprometeu em produzir uma hora o que demanda um tempo e um custo semanal de programação inédita, com dois razoáveis, bem como o envolvimento programas de trinta minutos, para os pri- de tecnologia e profissionais altamente meiros três meses de programação. Havia especializados (Ibidem, p. 4). também a preocupação em manter no mínimo um mês de programação pronta Os recursos técnicos foram outro antes da data de entrada do canal no ar. desafio revelado pelo projeto da TV USP, “Dado o ineditismo da iniciativa, dentro porque a universidade não possuía em dos padrões produtivos da USP, estamos nenhuma unidade ou setor os equipa- já bastante atrasados na implantação do mentos de melhor padrão de qualidade Projeto e mais ainda em relação ao iní- para a emissão “broadcast” de televisão. cio da produção específica” (Ibidem, p. 4). Além disso, outra preocupação revelada era quanto às condições de pós-produção: “também não possuímos equipamentos 7 “Encarregado de criar produzir e finalizar pro- profissionais satisfatórios nem em tecno- gramas especiais sobre temas abrangentes pautados logia linear – ilhas de edição BETACAM, pelo Conselho Editorial e/ou pelo Comitê Executivo”. Ibidem, p. 2. com efeitos e geradores de caracteres, nem 8 “A sugestão é que o Setor de Pós-Produção tenha tecnologia digital – não linear” (Ibidem, dimensões maiores para viabilizar a finalização de p. 5). Para resolver esse impasse, foi feito projetos cuja captação seja feita pelas Unidades da um levantamento das unidades que dis- USP que tenham condições de realizar essa atividade. punham de alguns equipamentos, mesmo Ibidem. 9 “Encarregado do planejamento, instalação, manu- que inferiores aos necessários, para que o tenção e expansão do parque técnico da TV USP”. canal iniciasse as atividades e aguardasse Ibidem, p. 3. a compra, instalação e manutenção de um 10 “De dimensões bem reduzidas, esta área teria a modelo tecnológico profissional. função de garantir as atividades de secretaria e con- tabilidade da TV USP”. Ibidem. 11 “Nome provisório para o grupo que deverá desen- Os recursos humanos foram impro- volver as atividades que garantam a interatividade da visados, com técnicos de nível universitário TV USP com seu público.” Ibidem. disponíveis nas unidades da universidade; 12 “Tem como função criar, organizar e manter em desde que houvesse algum treinamento arquivos de fácil disponibilização toda a programação emitida pelo canal e/ou quaisquer outros tipos de mate- e orientação, poderiam integrar equipes riais para consulta e produção de programas”. Ibidem. de produção para a TV USP. Além disso,

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foi definida a contratação de dois técnicos inéditos e foram exibidas outras 118 reprises. especializados para as atividades de produção Ortiz (2004) apresenta também um resumo de TV. Existiu também a recomendação para das ações em parcerias com os campi do inte- o engajamento dos alunos de graduação e rior na concretização do projeto Rede USP pós-graduação nos projetos da TV USP, desde de TV. Por fim, o diretor relata o processo de que fossem absorvidos os interesses e espe- consolidação da TV USP: “nestes últimos anos cialidades deles, por meio de atividades com regularizamos algumas das nossas produções, características de bolsas e estágios (Ibidem). dando-lhes periodicidade e investimos no aprimoramento dos programas, com pautas Nas considerações finais, os autores mais amplas, variados enfoques temáticos e reiteram a necessidade de urgência e agi- compromisso jornalístico com a boa infor- lidade para viabilizar o projeto e realçam mação” (ORTIZ, 2004, p. 139). que “uma sólida vontade política de criar o melhor e mais adequado modelo de TV que reflita nossa melhor imagem sem espelhar todas as dificuldades que representam sua criação” (Ibidem, p. 6). O que pode ser a qualidade na TV USP? Em 1998, a professora Marília Franco, diretora da TV USP, refletiu a respeito dos primeiros tempos da produção de conteúdo, Muitos pesquisadores tentaram defi- revelando as primeiras impressões do cená- nir o significado de qualidade na televisão rio midiático, de “dúvida, descrença, perple- e o que seria necessário para um programa xidade, desconfiança... mas também claro, ser considerado de qualidade. De fato, qua- algum entusiasmo” (FRANCO, 1998, p. 118). lidade é um conceito amplo e subjetivo, que A professora também elencou uma série de depende de parâmetros técnicos, de bom argumentos positivos e negativos. Entre os texto, de escutar as demandas da audiência negativos está a relação custo benefício, pois e de muitos outros requisitos. Um conceito a universidade pública já sofre com a falta fechado para a qualidade revela-se uma de recursos e o custeio de uma produção de utopia, porque à medida que o tempo passa, conteúdo televisivo é caro. Mas ela apresenta e a televisão e a sociedade mudam, novos uma alternativa: “em crise estamos sempre, desafios surgem, e precisam ser revistos e portanto não dá para superar a crise para atualizados constantemente. depois inovar” (Ibidem, p. 119). Entre os pontos positivos, Franco (1998) destaca a segmen- A discussão sobre qualidade na televi- tação dos canais e que, nesse caso, “a ava- são surgiu a partir do livro M.T.M.: quality liação da relação custo benefício precisa ser television, de 1984. Publicado pelo renomado calculada com outros parâmetros” (Ibidem). Instituto Britânico de Filme (BFI), os autores Em 2004, o diretor da TV USP, Pedro Ortiz, tentam definir o que faz os programas da apresenta as perspectivas e os desafios de M.T.M.13 serem tão atrativos para a audiên- uma TV universitária. Com um inventário de toda a produção, ele revela que no ano de 2002 foram produzidos 199 programas 13 Sigla da produtora de TV de Mary Tyler Moore

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cia e tão aclamados pela crítica. Feuer (1984) Nesse contexto, Machado (2000) aposta em personagens complexos, diálogos relembra que a diversidade também é um sofisticados e identificação com a audiên- fator importante para a qualidade. O autor cia como fatores que transformam uma acrescenta que “a melhor televisão seria comédia de personagens em uma comédia aquela que abrisse oportunidades para o de qualidade. mais amplo leque de experiências diversifi- cadas” (Ibidem, p. 25), assim como o Channel Os critérios de qualidade de um pro- Four, no Reino Unido, criado para promover grama são geralmente associados a sua a diversidade e a expressão de uma socie- capacidade ética, de gerar confiança e res- dade plural e multicultural. peito aos telespectadores. Desse modo, uma TV de qualidade deveria se preocupar O Channel Four na Inglaterra é um com a veiculação de programas violentos, exemplo de qualidade na televisão, pois se imorais, sexistas, racistas, entre outros, propõe a investir em produtores indepen- que possam ferir de alguma maneira a dentes, inovando na forma e no conteúdo dignidade humana. Essa discussão passa de seus programas. Se levarmos em consi- pelo caráter moral e estético, levando em deração a “Qualidade em TV” no sentido consideração diversos padrões de quali- inicial da M.T.M., observaremos “a contínua dade que ainda não são unânimes entre negociação da tensão entre o econômico os pesquisadores. e o estético, entre a produção textual e a produção de mercadoria” (Freire Filho apud Entretanto, nem todo intelectual da BORGES; REIA-BAPTISTA, 2008, p. 79). comunicação acredita em qualidade na Essa negociação faz com que o produto tele- TV. Por ser um produto para a massa, a visivo seja ao mesmo tempo atrativo para maioria dos pesquisadores conservadores o público e para a publicidade. Pensando são céticos sobre um nível estético na tele- dessa maneira, Borges (2008) explica que visão, em que tudo é produzido em escala o modelo do Channel Four originou o pro- industrial. Em um de seus artigos sobre cesso de convergência entre a TV de qua- a televisão, o autor Nelson Rodrigues lidade e o Cinema Arte. defende seu ponto de vista de que a tele- visão tem que se adequar às massas e não Mas nem tudo está relacionado aos o contrário. “A TV tem que ser feita para programas. Em alguns casos a audiência as massas e as massas são burras e têm também é responsável por uma televisão mau gosto e não tem nada a ver com a de qualidade. Fontcuberta (2008) defende grande arte, com a grande música, com a que a audiência deve possuir “Competência grande pintura” (apud Freire Filho, 2001, Midiática”, ou seja, “conhecer, entender e p. 77). Por outro lado, Machado (2000) analisar novas linguagens, códigos, tecno- argumenta que a demanda comercial logias da informação e comunicação; conhe- e o contexto industrial não impedem a cer o processo de produção de conteúdo, televisão de criar produtos artísticos e se analisá-los criticamente e em determinado preocupar com os elementos estéticos, e contexto” (FONTCUBERTA, 2008, p. 195). essa preocupação é um dos elementos que Dessa forma, o público discutirá criticamente fazem a televisão de qualidade. o que há de certo e errado e o que pode ser

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diferente, e assim poderá opinar de maneira E foi exatamente para oferecer a embasada e concreta. Fontcuberta (2008) melhor programação aos telespectado- defende ainda que a audiência com com- res que a Televisão Britânica foi criada petência midiática “se aproxima dos meios sob os princípios básicos de educação, com a exigência de encontrar não apenas entretenimento e informação. Segundo informação, mas também significados” Borges (2008, p. 8), a qualidade na tele- (FONTCUBERTA, 2008, p. 195). visão “deve ser analisada a partir da con- ceituação de seu papel, suas propostas Mas a questão é que essa tão sonhada culturais e sociais e os valores éticos que audiência de qualidade é formada pela deve veicular”. massa, pessoas pobres e ricas, sendo, dessa forma, impossível garantir um nível tão Geoff Mulgan (1990), define qualidade alto de conhecimento e engajamento de em TV analisando sete tipos de competên- todos eles. Em relação à audiência do Brasil, cias e como elas podem ser empregadas Freire Filho (2001) relata que “dos cerca de na TV. Dentre elas estão: técnica, estética, 2 milhões de telespectadores ‘colados’ dia- demanda da audiência, aspectos peda- riamente aos 600 mil aparelhos ligados no gógicos e valores morais, poder de gerar Rio de Janeiro em 1968, 1 milhão e 400 mil mobilização, valorização das diferenças, eram pobres ou muito pobres – favelados” das minorias e dos excluídos e diversidade (FREIRE FILHO, 2001, p. 2). de experiências.

Enquanto isso, na Grã-Bretanha, Analisando esses aspectos percebe- conhecida por ter a melhor TV do mundo, mos que o significado de qualidade em o público paga uma taxa de licença para TV é amplo e que alcançar tal padrão de assistir televisão, e talvez esta seja a razão qualidade requer uma mudança compor- pela qual a audiência britânica seja tão tamental tanto dos meios de comunicação preocupada com a qualidade de sua tele- quanto da audiência. Para Machado (2000, visão. Se o sistema televisivo é mantido p. 25) “uma televisão de qualidade deve com o dinheiro da audiência, ela é mais ser capaz de equacionar uma variedade que bem-vinda e legitimada a dizer o que muito grande de valores e oferecer pro- tem ou não qualidade e exigir dos meios postas que sintetizam o maior número de de comunicação o que eles desejam assistir ‘qualidades’”. Assim, a televisão de qua- quando estão diante da TV. lidade atrairia diversos tipos de público, garantindo uma audiência não só quanti- A preocupação com as necessidades tativa, mas acima de tudo qualitativa, que da audiência e a capacidade de transformar se sentiria representada e respeitada pela as demandas da sociedade em produtos programação oferecida. também é uma característica de qualidade na televisão. Freire Filho pontua que “TV A qualidade pode ser um conceito de qualidade é aquela que desempenha, puramente técnico no que se refere à qua- com humildade, a função de mediar a ‘alta lidade do roteiro, fotografia ou atuação, e cultura’ para as massas” (FREIRE FILHO, pode ir até o conteúdo, valorizando a edu- 2004, p. 107). cação, os valores morais e a construção de

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conduta. Por isso, selecionou-se as abor- A partir do projeto inicial da TV USP dagens de Mulgan (1990) para realizar e da sinopse dos sete programas iniciais uma análise de alguns dos programas e buscar-se-á investigar se as sete propostas cruzar com proposta inicial do projeto de Mulgan (1990) são observadas neles. da TV USP e tentar inferir a respeito da Iniciamos com a sinopse dos programas, sua qualidade. conforme o Quadro 1:

[ QUADRO 1] Programas e sinopses Programas Sinopses Abertura

Divulga os cursos de graduação oferecidos pela USP, numa linguagem voltada para os estudantes do ensino médio. Enfoca cursos através de 1 – Qual é o curso? depoimentos de alunos de graduação, professores e ex-alunos agora no mercado de trabalho. Mostram-se as instalações do curso, as áreas de vivência e as atividades discentes. Fonte: Qual… (2013)

Programa jornalístico que aborda os temas mais emergentes e polêmicos da vida nacional e internacional, trazendo matérias produzidas pela 2 – Olhar da USP equipe da TV USP e comentadas por especialistas convidados, sempre buscando acrescentar informação e oferecer um olhar diferenciado dos enfoques da mídia aberta. Fonte: Olhar… (2013)

Produzidos em função de grandes pautas temáticas, eventos especiais ou parcerias procuradas. Como exemplos 3 – Especiais TV USP de programas já produzidos temos a recepção aos calouros de 1998 e 1999, Imigração Japonesa, Memória Viva Guarnieri, Trotski, entre outros.

Fonte: Programas… (2016)

Um programa sobre a memória viva dos professores e pesquisadores da Universidade de São Paulo. O programa tem, quinzenalmente, um convidado especial – professor 4 – Trajetória ou professora da USP – que fala sobre sua trajetória acadêmica, sua relação com a universidade, suas pesquisas, suas publicações e suas reflexões sobre temas da atualidade. Fonte: Trajetória (2012)

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Programas Sinopses Abertura

Dedicado à reflexão do mercado audiovisual brasileiro, o programa exibe vídeos e curtas independentes, de várias partes do país, além de 5 – Traquitana entrevistas com pessoas envolvidas no mercado audiovisual – realizadores iniciantes, oficineiros, oficinados, produtores, gerentes e funcionários. Fonte: Traquitana (2010)

Numa parceria com a Orquestra de Câmara da Universidade de São Paulo, regida pelo Maestro Gil Jardim, a TV USP acompanhou as apresentações 6 –Ocam mensais da Orquestra de Câmara da ECA (Ocam) durante o ano de 2003, formatando programas musicais mensais de uma hora de duração.

Fonte: Ocam (2016)

“É um boletim exibido nos intervalos da nossa programação para mostrar os acontecimentos da Universidade 7 – Minuto USP de São Paulo. Abrangente, o boletim informa sobre exposições, palestras e cursos” (ADORYAN, 2004).

Fonte: Minuto… (2014)

Para não estender a análise e a apro- divido em quatro partes, sendo a primeira ximação com os conceitos de qualidade da de 7’53”, a segunda de 9’13”, a terceira com TV, optou-se por analisar cada uma das 6’22” e a última de 7’12”. A qualidade téc- propostas de Mulgan (1990) em relação nica desse programa em termos de vinheta às sinopses dos programas do Quadro 1 e conteúdo da imagem deixa um pouco a e de alguns exemplares encontrados no desejar, porque apresenta uma vinheta de YouTube. Começando pela técnica e de abertura criativa, mas elaborada de forma acordo com Mulgan (1990), que leva em simples e rudimentar, e o mesmo se repete consideração a qualidade dos profissionais no gerador de caracteres, o que demonstra e das produções, analisando problemas que, de acordo com projeto da criação da técnicos como luz, som, imagem, roteiro, TV USP, não havia recursos técnicos espe- direção e produção, ou seja, o trabalho cializados e profissionais para a realização dos profissionais e equipamentos envol- dessa etapa técnica. O conteúdo sobre- vidos na produção televisiva, o programa põe essa questão técnica, pois o programa analisado nesse quesito foi o Traquitana apresenta um curta e um debate com os (4 no Quadro 1), de 2010, que segundo o criadores, sendo mostrada a criação de um exemplar tem um tempo total de 30’39”, cinema na periferia de São Paulo por um

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catador de papel. A história é contada com oferecidos pela Universidade de São Paulo uma visão poética e singular do trabalho nos seus diversos campi. Com uma aborda- do personagem, com texto leve, mesclado gem didática, informa sobre a carreira, com por trilhas e pela própria narrativa dele e depoimentos de professores, estudantes e de especialistas. No segundo momento, é graduados no curso, e mostra as instalações debatida, além do curta exibido, a história e laboratórios dos respectivos cursos. do cinema da universidade, e é feito um alerta para o descaso e o risco da deterio- Para Mulgan (1990), a televisão pode ração do material, que documenta o início ser vista com um ecossistema, uma vez que da universidade. sua programação pode influenciar a audiên- cia de maneira positiva ou negativa. Ele acre- A qualidade estética, para Mulgan dita que uma televisão que não transmite (1990), não deve estar ligada a grandes valores morais ruins, hipocrisia e falsidade obras literárias e cinematográficas, mas pode melhorar a sociedade. O programa sim utilizar sua natureza instantânea e Trajetória (4 no Quadro 1), com um tempo de entretenimento de uma maneira efe- de 55’27”, dividido em duas partes, uma com tiva. O programa Ocam – Orquestra de 28’37” e outra com 26’50”, apresenta, por Câmara da Universidade de São Paulo (6 meio do quadro de professores e pesquisado- no Quadro 1) apresenta em tempos varia- res da universidade, a trajetória acadêmica, a dos (o exemplar em análise tem 4’44”), relação com a universidade, as pesquisas, as com informações sobre a música clás- publicações e as reflexões deles sobre temas sica e os profissionais e apresentações da da atualidade. O programa cobre as diversas orquestra em diversos locais. O programa áreas do conhecimento, com duas edições proporciona conhecimento sobre música, mensais, sendo uma a cada 15 dias. organização e entretenimento, com audi- ções e ensaios da orquestra, promovendo A qualidade de poder de gerar mobi- uma experiência diferenciada da televisão lização, proposta por Mulgan (1990) como comercial brasileira. uma das características da televisão de qualidade, pode ser observada no pro- A TV de qualidade deve também grama Especiais TV USP (3 do Quadro 1). gerar mobilização, criar comunidades em Com 1 hora e 4 minutos, o programa é pro- que se dividam as experiências vividas por duzido em função de grandes temas con- meio do programa de TV. Mulgan (1997) temporâneos, como o exemplo analisado se refere à capacidade da televisão de pro- nesta pesquisa, que trata de personalismo mover interação entre as pessoas, e um e partidarismo. Aborda também temas que exemplo é a abordagem de temas univer- estão no dia a dia da sociedade contempo- sais, que converse com todos e valorize o rânea, como as eleições para Legislativo e telespectador. Uma televisão de qualidade Executivo no Brasil, a dimensão econômica deve valorizar o indivíduo. Uma parte da e a sustentabilidade na agropecuária brasi- demanda da audiência é atendida por meio leira, entre outros. O programa busca levar do programa Qual é o curso? (1 no Quadro 1), ao espectador temas emergentes na busca com o tempo do programa de 7’57”, em de fornecer informações para a compreen- que são apresentados os diversos cursos são e discussão na sociedade.

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A qualidade da TV de Mulgam (1990) de classes superiores e de menor par- que diz respeito às minorias e aos excluídos, ticipação no universo televisivo como numa análise do programa Olhar da USP um todo. (2 do Quadro 1), com um tempo de 27’26”, apresenta-se a partir da proposta de infor- Essas características do espectador mar a sociedade sobre recursos acadêmicos, podem ter contribuído para o fim da TV USP. laboratoriais e de atendimento à comunidade externa à universidade. Com temas como parto humanizado, entre outros, o programa esclarece e apresenta as possibilidades de atendimento nas unidades da USP. Dessa Considerações finais forma, identifica-se a busca de inclusão do espectador, por meio inicial da informação. Por meio desta pesquisa foi possível Mulgan (1990) define a qualidade como refletir sobre a proposta calcada em precei- diversidade a da televisão que se preocupa tos apontados por Mulgan (1990) a respeito em transmitir programas para as audiências da qualidade da TV, em uma emissora que em massa e para as minorias, diversificando não chegou a se efetivar como canal de tele- temas, gêneros e formatos. No exemplar ana- visão propriamente dito, mas que, mesmo lisado para este estudo, o programa Minuto exibindo a sua programação dentro um USP (7 no Quadro 1), com 59”, apresenta de canal em consórcio, com outras universida- forma rápida e sintética uma programação des, conseguiu produzir e veicular material de debates e atividades abertas, com a possi- de qualidade em quase todos os requisitos bilidade de participação da sociedade dentro apontados pelo autor. da Universidade de São Paulo, como, por exemplo: a difusão do conhecimento gerado A TV USP conseguiu incorporar, na USP, a USP e os meios de comunicação, a durante os dezoito anos de funcionamento, inovação científica e a USP como geradora tanto em seu projeto quanto em sua produ- de conhecimento em padrão de excelência. ção, uma proposta inovadora e os preceitos Em um curto tempo, o programa ou inter- da qualidade nos programas que concebeu, programa consegue por meio da diversidade produziu e veiculou durante esse período. de assuntos abrir um grande leque de infor- A qualidade técnica dos programas não se mações para os mais variados espectadores. revela de forma efetiva, mas consegue a A TV USP reflete o padrão que Silva Junior partir do conteúdo provocar o espectador, (2013, p. 65) denomina como: com informação, curiosidades e apresenta- ção de uma visão científica da academia, de A TV educativa nacional mantém seus forma simples e de fácil compreensão. Esses padrões históricos no tratamento da conteúdos apresentam uma diversidade programação jornalística, privilegiando de assuntos e possibilidades para mostrar o debate, a profundidade de informações um pouco das possibilidades acadêmicas e a densidade de tratamento das mes- e das pesquisas da USP. Grande parte dos mas. Consequentemente, aproxima seus programas consegue gerar mobilização, programas de um perfil de telespectador tanto na forma quanto no conteúdo, por

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meio dos diversos olhares possíveis dentro pela adoção de formas racionais e analí- do universo das áreas do conhecimento ticas eficazes do ponto de vista didático, sempre incluídas neles. As minorias foram em detrimento da perspectiva de utili- representadas em programas que mesclam zar recursos dramáticos popularizados o conhecimento científico de especialis- pelo cinema e pela televisão comercial” tas e a participação popular, que pode ser (CARNEIRO, 1999, p. 17). ouvida em pé de igualdade nos primeiros programas. As capacidades de mobilizar e de influenciar o público ficam explícitas em programas especiais, com conteúdo informativo e debates com temas emer- gentes para a sociedade contemporânea. A qualidade estética consegue de forma rápida e liquida gerar conhecimento e entretenimento ao telespectador, por meio de programas com reflexão crítica sobre a universidade e a sua relação com sociedade.

O fim da TV USP em sinal a cabo, no consócio do Canal Universitário de São [ VALQUÍRIA APARECIDA PASSOS KNEIPP ] Paulo, representa um espaço em branco dei- É graduada em Jornalismo pela Universidade Estadual xado pela melhor universidade da América Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) (1990) e tem Latina. Estima-se que proposta da TV USP mestrado (2002) e doutorado (2008) em Ciências da via Internet Protocol Television (IPTV) se Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes efetive como continuidade desse trabalho da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Foi editora- pioneiro de produção de conteúdo de qua- assistente da Revista PJ:BR Jornalismo Brasileiro de lidade, por meio de programas educativos, 2005 até 2011 e desde 2009 é professora associada em sintonia com a sociedade midiatizada de graduação e pós-graduação da Universidade (HJARVARD, 2012, 2014) e convergida Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Foi diretora (JENKINS, 2009), com a criação de redes científica de Rede Alcar (2007-2011) e coordenadora sociais digitais e com a participação do do GT de Mídias Visual e Audiovisual (2008-2011). espectador. A marca que a TV USP deixou Tem experiência na área de Comunicação, com ao telespectador paulistano revela uma ênfase em Jornalismo, atuando como assessora de preocupação com a educação, a crítica e a imprensa e telejornalista. Atuou em campanhas reflexão de forma aberta com a sociedade. eleitorais e ministra cursos de media training. Foi vice-coordenadora do Programa de Pós-Graduação A identificação da TV USP como em Estudos da Mídia (PPgEM) da UFRN de 2013 a uma emissora educativa, em oposição aos 2017. Atualmente é coordenadora do PPgEm da padrões comerciais vigentes no país – que UFRN (2017-2019). É vice-coordenadora do grupo massificam uma programação comercial de pesquisa Imagem, Mercado e Tecnologia do –, pode ter inviabilizado a sua sobrevivên- Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e cia, porque a sua proposta “manifesta-se Tecnológico (CNPq). na produção de programas educacionais E-mail: [email protected]

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[ ARTIGO ]

Simone Cavalcante de Almeida Universidade Anhembi Morumbi. Gisela Belluzo de Campos Universidade Anhembi Morumbi. Simone Cavalcante de Almeida Pensando o design gráfico de literatura para infância no Brasil Gisela Belluzo de Campos 241 

[ RESUMO ABSTRACT RESUMEN ]

Este artigo faz uma incursão pelo design gráfico de literatura para infância no Brasil em diálogo com os estudos visuais e a aprendizagem, a partir das obras: O alvo, de Ilan Brenman e Renato Moriconi; O livro inclinado (The slant book), de Peter Newell; Este livro comeu o meu cão! (This book just ate my dog!), de Richard Byrne; e O menino, o cachorro, de Simone Bibian e Mariana Massarani. Esse caminho exploratório utiliza como referências fontes do design relacionadas ao pensamento de Buck-Morss sobre a multiplicidade da imagem enquanto experiência sensorial, assim como de Kats acerca dos quatro níveis básicos de aprendizagem. O propósito é apresentar três propostas para se pensar o design gráfico fora de modelos convencionais de visualidade: 1. como das formas se enraízam sentidos; 2. quando os artifícios são metalinguagem do visual; e 3. pensando novos modos de acessar o visual. Palavras-chave: Design Gráfico. Literatura para Infância. Estudos Visuais. Aprendizagem.

This article analyzes graphic design of children’s literature in Brazil in dialogue with visual studies and learning, using the books: The target (O alvo), by Ilan Brenman and Renato Moriconi; The slant book, by Peter Newell; This book just ate my dog!, by Richard Byrne; and The boy, the dog (O menino, o cachorro), by Simone Bibian and Mariana Massarani. This study uses references to design sources related to the thoughts of Buck-Morss on the multiplicity of the image as a sensory experience, as well as Kats on the four basic levels of learning. The objective is to present three proposals for thinking about graphic design outside conventional models of visuality: 1) How senses are rooted in forms; 2) When artifices are metalanguage of the visual; and 3) Thinking of new ways to access the visual. Keywords: Graphic Design. Children’s Literature. Visual Studies. Learning.

Este artículo hace una incursión por el diseño gráfico de literatura para infancia en Brasil en diálogo con los estudios visuales y el aprendizaje, a partir de las obras: El blanco (O alvo), de Ilan Brenman e Renato Moriconi; El libro inclinado (The slant book), de Peter Newell; ¡Este álbum se ha comido a mi perro! (This book just ate my dog!), de Richard Byrne; y El niño, el perro (O menino, o cachorro), de Simone Vivian y Mariana Masarían. Este camino exploratorio utiliza como referenciales fuentes del diseño relacionadas con el pensamiento de Buck-Morss sobre la multiplicidad de la imagen como experiencia sensorial, así como de Kats acerca de los cuatro niveles básicos de aprendizaje. El propósito es presentar tres propuestas de pensar el diseño gráfico fuera de modelos convencionales de visualidad: 1) Como de las formas que se enraízan sentidos, 2) Cuando los artificios son metalenguaje del visual y 3) Pensando nuevos modos de acceder al visual. Palabras clave: Diseño Gráfico. Literatura para la Infancia. Estudios Visuales. Aprendizaje.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2019.150941

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Introdução livro impresso ou digital para infância, há necessidade de reconhecer o design gráfico como elemento integrador da leitura, essa A proposta deste artigo é lançar alguns vista como ação de aprendizagem dinâmica, questionamentos sobre modelos convencio- não linear e plenamente aberta a apropria- nais de visualidade de livros de literatura ções e interpretações variadas. Importa para infância, apresentando três propostas também reconhecer a leitura de imagens de para se refletir a respeito do design gráfico um livro como uma experiência sensorial, desse tipo de obra na sua potencialidade uma construção simbólica que se difere de significados e dentro do contexto brasi- no tempo, sociedade e contexto em que se leiro. Por esse caminho de exploração, este dá. Essas urgências se apresentam sob a trabalho selecionou quatro publicações: O forma de três propostas ou proposições de alvo (Ática, 2011), escrito por Ilan Brenman incursão pelo design gráfico de literatura e ilustrado por Renato Moriconi; O livro incli- para infância na sua relação com os estudos nado (Cosac Naify, 2008), ou The slant book, visuais e aspectos da aprendizagem. no original em inglês, escrito e ilustrado pelo norte-americano Peter Newell; Este De início, é preciso situar os concei- livro comeu o meu cão! (Panda Books, 2015), tos-chave que estão em diálogo neste artigo. no original, This book just ate my dog!, com O design gráfico se constitui numa ativi- texto e ilustrações do inglês Richard Byrne; dade projetual que ordena num todo, de e O menino, o cachorro (Manati, 2006), de forma combinada, texto diagramado, ele- Simone Bibian, com ilustrações de Mariana mentos tipográficos, imagens, grafismos, Massarani. Da incursão pelos aspectos com a finalidade de reprodução por meio imagéticos dessas edições, serão levanta- gráfico (VILLAS-BOAS, 2007), na maioria das reflexões sobre a forma, os artifícios de das vezes bidimensional ou tridimensio- engenharia e as práticas de ressignificação, nal; como também significa a reunião de em sala de aula, de um livro para infância, todos esses elementos em espaços quadri- num processo de percepção de suas camadas dimensionais, como os websites, passando textual, gráfica, visual e tátil. assim a ser denominada de interface grá- fica toda a manifestação do design gráfico Como ponto de partida, vale ressaltar em mídias que se movimentam (CAMPOS; que um livro no segmento de literatura LEDESMA, 2011). Esses dois conceitos de para infância pode ser lido pelas lentes do design gráfico abarcam, respectivamente, verbal e do imagético, por criança ou adulto, o livro físico, impresso, e o livro digital, ou em zigue-zague, começando da imagem e-book, que pode ou não ser interativo. Para ao texto, da mancha gráfica ao texto, da efeitos deste artigo, trataremos somente de imagem à mancha gráfica, ou da imagem obras impressas. à imagem. No caso dos livros digitais inte- rativos, o clique numa imagem é acompa- Já o termo aprendizagem vem sendo, nhado de um efeito sonoro, um personagem usualmente, explorado pelo campo da ilustrado se move ao encontro de outro, um Pedagogia, enquanto o de estudos visuais detalhe no cenário pode ser expandido para interessa a áreas como História da Arte, um plano aberto, como no cinema. Seja no Design e Antropologia Visual. Em artigo

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intitulado “Perspectivas actuais sobre Nessa última concepção, cada cultura, aprendizagem na infância”, a professora seja ocidental ou oriental, possui maneiras da Universidade de Illinois Lilian G. Katz distintas de ler, interpretar e contextualizar (2006) defende que, seja qual for a faixa criticamente imagens, seja fotografia, pin- de idade, existem quatro níveis básicos de tura, escultura, desenho, ilustração, cinema, aprendizagem: conhecimentos, capacidades, paisagem, entre outras. A visão deixa de ser predisposições e sentimentos. Segundo a um dado natural, universal, e sua experiên- autora, os conhecimentos advêm da capa- cia se reveste de especificidades, influências cidade humana de assimilar fatos, infor- e convenções culturais, muitas vezes advin- mações, conceitos, compreensões e ideias, e das da estética, moral, política, tecnologia, seriam alcançados, sobretudo, nos espaços moda e comunicação vigentes. educativos, como as escolas; as capacida- des são comportamentos adquiridos com a As incursões pelo design gráfico prática, podendo ser verbais, sociais, físicas, de literatura para infância abrangem, ao de linguagem e de motricidade; as predispo- mesmo tempo, experiências de aprendi- sições significam os “hábitos da mente”, ou zagem e de cultura visual, esta entendida seja, os motivos e as intenções que levam na sua concepção mais alargada. Ao se à prática de algo; e os sentimentos se refe- aproximar da obra, o leitor ou leitora se rem a estados emocionais profundos, que depara com uma diversidade de imagens – não podem ser aprendidos pela instrução ilustrações, desenhos, fotos, colagens e ou doutrinação, mas adquiridos a partir da grafismos. A imagem também está relacio- experiência vivida. nada, como defende Graça Ramos (2011), ao projeto gráfico (escolha de tipografia, Por outro lado, os estudos visuais são tipo de papel, paleta de cores), ao ritmo um campo de pesquisa, também conhecido do texto nas páginas, à integração entre como cultura visual, que criou suas bases texto e ilustração (mancha gráfica) e aos institucionais nos Estados Unidos e na recursos técnicos utilizados na mecânica Inglaterra na última década do século XX, do livro. Cada indivíduo acessa de um reunindo teóricos com diferentes aborda- jeito diferente esse conjunto de elemen- gens. Segundo o professor de História da tos visuais, não existindo, portanto, uma Universidade Federal Fluminense, Paulo via universalizante de leitura, mas um Knauss, a cultura visual é vista de duas for- intercruzamento de rotas com tempos, mas distintas. A primeira, a enxerga restrita perspectivas e intenções diversas. ao ocidente, tendo o pensamento científico como eixo central (Chris Jenks), ou atrelada Há uma interdependência das cama- ao domínio da tecnologia digital (Nicholas das de interpretação do design gráfico de Mirzoeff); a segunda a aproxima, de forma uma obra com conhecimentos, capacidades, abrangente, em qualquer época ou lugar, predisposições e sentimentos de quem lê, ou “da diversidade do mundo das imagens, das seja, com suas condições de aprendizagem; representações visuais, dos processos de do mesmo modo, o processo de visualiza- visualização e de modelos de visualidade” ção sugerido para sua leitura, bem como os (KNAUSS, 2008, p. 154), defendida por teó- modelos ou padrões de visualidade empre- ricos como Martin Jay e W. J. T. Mitchell. gados na sua criação ou fruição, sofrem

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as influências e convenções do contexto Em muitos casos, esse equívoco se agrava cultural no qual a obra se insere. quando a leitura de uma obra de ficção se submete a assuntos curriculares, limitando Uma obra literária para infância, por a busca de novas rotas exploratórias do suposto, existindo no meio físico ou digital, texto e das imagens. No caso específico resulta de determinadas condições mate- do design gráfico de uma obra, a media- riais. Como produto de criação, produção e ção em sala de aula pode se tornar ainda circulação, pode refutar ou acatar modelos mais estreita, quando o olhar do educa- e valores globais pré-estabelecidos, lan- dor ou educadora se fecha na ilustração çar novas linguagens ou manter-se fiel como representação de mundo, esvaziando aos formalismos, quebrar paradigmas e dessa e dos demais elementos de imagem alcançar uma diversidade de leitores ou suas potencialidades estéticas, simbólicas manter-se presa a estratégias engessadas e comunicativas. de mercado, faixa etária, marketing. Como objeto de apropriação simbólica, a obra Na sua obra A imagem nos livros infan- é, imanentemente, dialógica e permeá- tis: caminhos para ler o texto visual, a pesqui- vel, estando em jogo, para sua leitura e sadora e ilustradora Graça Ramos (2011) interpretação crítica, diferentes escalas de atribui a um problema de formação cultural conhecimento, competência leitora, moti- a dificuldade de boa parte dos brasileiros vação e estado emocional. A combinação de ler, esmiuçar e compreender as ima- dessas condições de aprendizagem gera gens, seja no mundo das artes visuais ou um movimento de repulsão ou atrativi- da literatura. Ela reivindica um lugar para dade, negação ou aceitação, identificação a educação do olhar, partindo do entendi- ou indiferença com elementos visuais e mento de que o ato de ver se desdobre em verbais nela contidos. conhecimento e até mesmo em imaginação criativa quando a abordagem visual de um Atualmente, no Brasil e em vários livro para infância se abrir a uma experiên- países da América Latina, as escolas têm cia de fascínio e aprendizado. assumido o protagonismo na mediação dos livros de literatura para infância, proble- Olhar é forma de perceber, mas não se matizando com os alunos aspectos da ilus- trata do gesto maquinal de colocar os tração e do texto. Os projetos de leitura na olhos em algo rapidamente. Refere-se educação infantil e nos primeiros anos do ao ato de, a partir dos olhos, examinar, ensino fundamental utilizam diversas téc- avaliar, correlacionar, pensar o que está nicas e recursos para explorar um livro lite- sendo visto. Aprender a olhar significa rário, boa parte dessas iniciativas com fins sair do gesto primário de captar algo pedagógicos. Equivocadamente, esse tipo com os olhos, que é uma atividade física, de produção costuma receber o nome de e passar para outro estágio, aquele em paradidático, em vez de livro de literatura. que, a partir de muitos exercícios men- Na realidade, os paradidáticos abordam tais, absorvemos e compreendemos o um tópico curricular ou tema transversal examinado. Esse debruçar-se sobre o que explicam ou aprofundam conteúdos que os olhos captam provocará análi- de disciplinas didáticas (RANGEL, 2014). ses e, o mais produtivo, provavelmente

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ativará a capacidade de inventar. Olhar, texto (Ibidem); já a mancha gráfica deli- portanto, é uma soma que inclui o físico, mita a área de impressão, demarcada pelas o psicológico, a percepção e a criação margens, que abrange além do texto e das (Ibidem, p. 34). imagens, os fólios, os números de página, e os elementos ornamentais. Essa proposta de exploração da ilus- tração de uma obra literária, argumentada A capacidade física do olhar ativada por Ramos (Ibidem), pode ser ampliada para por diferentes motivações, ou predisposi- a leitura do design gráfico na sua amplitude. ções, é apenas uma das camadas na arqueo- Importa observar as ilustrações, tipografias, logia da leitura. No exercício de observação cores, espacialidades – uso do formato, do das impressões gráficas referenciadas ante- grid, da mancha gráfica – e demais elemen- riormente, o modo de percepção do sujeito tos de composição do design de um livro sofre interferência de ideias, informações e para infância. Ao abrir a página de um livro, conceitos recebidos; de uma gama de variá- nem sempre esses elementos são percebidos veis de seu estado emocional; de padrões de dentro de um processo de concepção proje- visualidade; e de comportamento cultural tual – ideia, forma, arranjo de uma página, aos quais está submetido em sala de aula, layout (HURLBURT, 2002) – conduzido pelo assim como nos demais espaços de media- designer gráfico. As ilustrações são dispos- ção. Essas interferências subjetivas e sociais tas de modo a apresentar personagens e convivem simultaneamente, e podem ou cenários e despertar o imaginário dos leito- não garantir a continuidade das “escava- res e leitoras. Geralmente, são criadas com ções” do visual, que levará à descoberta de materiais (lápis, aquarelas, têmperas, pin- mais camadas de significados ou até mesmo céis) e técnicas (pinturas, colagens, assem- à elaboração de novas imagens, resultantes blages, desenhos) também empregados no da imaginação criadora. campo das artes, ou por meios digitais, como vetores e modelagens em 3D (FUENTES, A experiência desse leitor-escava- 2006). A escolha tipográfica ou de fontes dor, ao se aventurar nas imagens do livro para o texto leva em consideração a acui- e dessa incursão para recriar sua própria dade e legibilidade do segmento principal de imagética, é um modo de representação da leitor do livro para infância, que é a criança. diversidade da cultura visual. No mesmo A paleta de cores do livro é determinada sentido, constitui um modo de represen- por diferentes combinações capazes de ati- tação dessa diversidade o texto criado pelo var estados psicológicos de atratividade ou escritor e as formas, volumes, cores, luzes, repulsão, podendo remeter a sensações, superfícies, diagramas e demais recursos objetos e experiências já conhecidos. No gráficos e visuais utilizados pelos ilustra- que se refere à espacialidade, o formato dores, designers gráficos ou designers-grá- resulta da relação entre altura e largura ficos-ilustradores para construir novas da página, sendo mais usuais os formatos ideias, pensamentos e divagações sobre um retrato, paisagem e quadrado (HASLAM, determinado texto. Essa relação tríade se dá 2007); enquanto o grid ou grade define as numa intimidade “entre o texto que conta proporções internas da página, as divisões a história, a imagem que a reconta – com que serão preenchidas pelas imagens e pelo outras chaves simbólicas e possíveis, outros

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pontos de vista – e o leitor, que de outras Considerando a imagem como expe- maneiras vai ressignificar as narrativas”, riência sensorial, é desafiador se pensar lembra a ilustradora Ciça Fittipaldi (2008, como são diferentes os caminhos de esca- p. 98). Porém, a experiência exploratória vação arqueológica da leitura. Para uma desse leitor-escavador, mesmo em situações criança, nos primeiros anos de vida, esse de leitura coletiva (como no caso da sala processo de aprendizagem das imagens se de aula), depende da subjetividade para torna mais intenso, porque seus canais de acontecer e prescinde das intenções, do con- percepção de mundo estão em fase latente, texto, da biografia dos profissionais envol- intensamente, tomados de espanto pela vidos na atividade projetual do livro. Essas descoberta do novo e potencialmente informações, inegavelmente, enriquecem a geradores de atividade imaginativa. Mas aprendizagem, mas não são definidoras do é preciso ressaltar que isso não ocorre de processo de apropriação sensorial, afetiva modo uniforme nessa faixa etária. Tanto e imaginativa das imagens. se faz necessário considerar as diferenças de subjetividade no processo de experiência No artigo “Estudios visuales e imagina- sensorial, como reconhecer a multiplicidade ción global”, a professora de Ciência Política de infâncias presentes numa mesma cul- do Centro de Graduação Universitária de tura. Entender a infância no plural, em vez Nova York, Susan Buck-Morss, embora de no singular, colabora para a construção tratando da cultura da imagem numa ótica de abordagens de leitura do design gráfico plural, também se refere à autonomia do da obra mais condizentes com as realidades espectador: dos sujeitos, com seus repertórios múltiplos de decifração de mundo. As imagens são utilizadas para pensar, posto que sua atribuição a alguém ou a Diante de um arcabouço tão complexo, algo se torna irrelevante. Sua criação é apresentado em linhas gerais, como habilitar desde o início a promessa de um acesso leitores para um olhar crítico e autônomo infinito a ela. Elas não são um pedaço sobre as camadas visuais do livro? de terra. São um término que medeia as coisas e o pensamento, entre o mental e Várias metodologias vêm sendo o não mental. As imagens permitem a experimentadas em diferentes espaços conexão. Arrastar uma imagem e fazer de mediação de leitura. Algumas utilizam clique nela é apropriar-se dela, porém estratégias constantemente avaliadas não como um produto de alguém, mas e alcançam resultados surpreendentes, senão como um objeto de nossa própria outras não passam de exercícios inócuos experiência sensorial (BUCK-MORSS, e repetitivos. O que se propõe neste artigo 2009, p. 37, tradução nossa)1.

cosas y el pensamiento, entre lo mental y lo no men- 1 No original: “Las imágenes son utilizadas para tal. Las imágenes permiten la conexión. Arrastrar pensar, por lo que su atribución a alguien o algo se una imagen y hacer clic en ella es apropiársela, pero torna irrelevante. Su creación es desde el inicio la no como el producto de alguien más, sino como un promesa de un acceso infinito a ella. Ellas no son un objeto de nuestra propia experiencia sensorial” pedazo de tierra. Son un término que media entre las (BUCK-MORSS, 2009, p. 37).

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é provocar reflexões sob a forma de três e-book ou livro digital são, à semelhança propostas para se pensar o design gráfico do que constatou Buck-Morss (2009), os de literatura para infância. Essa ideia faz términos ou conexões entre as coisas e o um intertexto com Seis propostas para o pensamento, e se tornam caminhos para próximo milênio (1990), do escritor italiano a experiência sensorial dos leitores. Elas Ítalo Calvino, livro que reúne conferências se vestem de diferentes formas – cir- em torno de valores a serem preservados culares, triangulares, quadradas, entre numa obra literária com a proximidade outras, coloridas ou não – e de contornos, do novo milênio: leveza, rapidez, exatidão, representando objetos, pessoas, paisagens visibilidade, multiplicidade e consistência e cenários do mundo real; realidades abs- (esta última ficou inconclusa com a morte tratas, sonhadas e desejos do porvir; e do autor). Diferentemente do tema e das traduzindo, afirmando ou subvertendo intenções de Calvino, as três proposições ideias e pensamentos presentes na narra- a seguir, escritas numa época tão turbu- tiva verbal. As formas, portanto, também lenta para a educação e a cultura brasileiras, são imagens, que emanam sentidos para visam provocar crenças, valores e preceitos, todos os lados. tomados ou não como definitivos, um con- vite a novas rotas de exploração do visual O livro O alvo (2011), escrito por Ilan nas obras literárias para infância. Brenman, ilustrado por Renato Moriconi, com projeto gráfico de Vinicius Rossignol Felipe, exemplifica como um elemento apa- rentemente despretensioso, na verdade, pode ocupar um lugar privilegiado numa Em cena, as três propostas obra. A história se passa numa cidadezinha da Polônia do século XIX. Enquanto um velho professor ajuda pessoas contando 1. Primeira proposta: como das histórias certas, para pessoas certas, nos formas se enraízam sentidos momentos certos, nota-se a aparição de um círculo vazado por uma faca de corte As imagens gráficas impressas de no centro de todas as páginas do livro e um livro ou aquelas em movimento de um também na capa, em tamanho maior.

[ FIGURA 1 ] Livro O alvo (detalhe da capa e página dupla com furos repetidos)

Fonte: Brenman (2011)V

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Longe de ser um detalhe meramente de discernimento e, além, disso, desen- sem importância, o furo representa a habi- volver experiências de aprendizagem lidade do velho professor, protagonista da flexíveis que lhe permitam desempenhar obra, em acertar no alvo todas as questões diferentes papéis dentro do contexto a que era desafiado. À criança ou adulto pedagógico escolhido: um tema, um leitor também é posto o desafio de enxergar conceito-chave, um projeto de trabalho para além do furo, percebendo-se enquanto (HERNÁNDEZ, 2007 p. 89). sujeito criador ou disparador de outras his- tórias inventadas ou reelaboradas como Para alcançar esse ponto de equilí- retalhos de sua memória pessoal. brio, cabe aos educadores e às educadoras compreenderem seu papel social no pro- O furo suscita também a oportu- cesso de mediação, enxergando-se não nidade de repensar situações de falha, como “transmissores de informações a uma situação embaraçosa, “pisada na bola”; audiência passiva, para se transformarem realizar a escuta de desejos sobre algo em ‘atores’, junto com os alunos, em um que se quer alcançar; relacionar os pon- processo de reelaboração de suas expe- tos-alvo que mais chamam a atenção na riências” (Ibidem). No caso de O alvo, do paisagem urbana; falar sobre os conflitos ponto de vista das expectativas das crian- atuais entre nações; discutir a atividade ças, o furo poderia remeter a incontáveis profissional do jornalista, com seu furo possibilidades: um buraco na rua, o fundo de reportagem, comparando as diferen- de um poço, um rasgão na roupa, o olho ças desse texto referencial com a escrita mágico de uma porta, a passagem de um ficcional da história. formigueiro, o túnel por onde Alice chega ao País das Maravilhas. Diante das inúmeras possibilida- des abertas pela análise de produções de Em cada uma dessas imagens-con- cultura visual, Hernández afirma que texto, abre-se uma brecha para a criação os professores e professoras assumiriam o papel de mediadores, cabendo a eles de uma nova sequência de imagens que conciliar os “prazeres” dos estudantes no deem conta de um episódio marcante da contato com uma produção de cultura história pessoal dos alunos e alunas. A visual com temas e problemas necessários imagem do furo exerce sua função grá- à ação pedagógica: fica, resultado da escolha do ilustrador e do designer gráfico, ao mesmo tempo em Para promover o equilíbrio de forma que, ao ser olhada, se torna disparadora ativa – reconhecer os prazeres dos da experiência sensorial, da memória e da estudantes e, ao mesmo tempo, favore- afetividade dos leitores. “O ato de olhar cer-lhes uma indagação crítica e per- é profundamente ‘impuro’. A princípio, formativa –, o professor deve abordar dirigido pelos sentidos e fundamentado temas e problemas relevantes para os pela biologia […], a mirada ou olhada se estudantes, propiciar reflexões a partir encontra inerentemente enquadrada, dos prazeres que encontram nas pro- delimitada, carregada de afetos. É um duções da cultura visual, ter critérios ato cognitivo intelectual que interpreta

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e classifica” (BAL, 2004, p. 17)2. Nesse O declive ratifica o que se passa com sentido, professores e professoras, na Bobby, o protagonista, ao descer ladeira condição de coconstrutores de sentidos, abaixo num carrinho de bebê, por des- podem reconhecer tanto a escuta parti- lize de sua cuidadora. À medida que o cipativa como a captação de afetos dos carrinho desce da direita para dentro do alunos como aliadas para as escolhas das livro, ele vai se deparando com outros melhores estratégias de aprendizagem personagens – policiais, músicos, carre- dos conteúdos visuais do livro. gadores, cães, tenistas.

Em outro exemplo, vemos a forma O livro inclinado apresenta um refile investida de seu caráter de imagem surgir especial, inclinado, para que o leitor também na parte mecânica do livro. Em tenha uma estranheza visual ao abrir O livro inclinado, criado por Peter Newell, o livro. As ilustrações e o texto, dispos- originalmente em 1910, o refile faz parte tos no mesmo ângulo de inclinação, integrante do processo de leitura visual da acentuam a brincadeira do carrinho história, sem a qual esta teria seu sentido de bebê descendo uma ladeira incli- comprometido. O refilamento do livro segue nada. Este livro não teria a mesma lei- o formato de um paralelogramo, em vez das tura se seguisse o formato tradicional formas tradicionais quadradas e retangulares. (ROMANI, 2011, p. 56).

[ FIGURA 2 ] O livro inclinado (visão do ângulo de inclinação da capa e páginas duplas com diagramação inclinada de texto e imagem)

Fonte: Newell (2008)

2 No original: “El acto de mirar es profundamente A passagem vertiginosa do carrinho ‘impuro’. Para empezar, dirigido por los sentidos y com o bebê pela via inclinada causa agito, fundamentado por tanto el la biología [...], la mirada perturbação, alterando a normalidade do se encuentra inherentemente encuadrada, delimi- tada, cargada de afectos. Es un acto cognitivo intelec- cotidiano, numa mistura de tragédia e tual que interpreta y clasifica” (BAL, 2004, p. 17). comicidade. Da estranheza causada pelo

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uso do refile em forma de paralelogramo, elaborado para atingir determinado seg- podem suscitar interessantes temas para mento de público. No entanto, para além ativar o processo de mediação, que extra- dos interesses econômicos, a concepção vasem a imediata relação com o conteúdo projetual do livro, ao reunir seus elementos de geometria da matemática. Pode-se falar gráficos num todo coeso, objetiva atrair o da queda física em brincadeiras e traves- olhar de quem lê para as duas narrativas suras da infância; ou da queda simbólica, nele atuantes – a imagética e a verbal –, e, representando perdas, medos, ansiedades; por vezes, recorre a alguns artifícios não dos pequenos acidentes ou cuidados que se usuais como mecanismos de fascínio. devem ter no trânsito; dos deslocamentos que certos acontecimentos causam na vida, Esses artifícios, quando bem estru- nos retirando de uma zona de conforto. turados, criam dois caminhos de leitura: um que vai da história até o repertório As formas se configuram, portanto, de experiências vivenciadas pelo leitor em imagens visuais e estas “detêm uma e outro que direciona o olhar deste para enorme capacidade de abrir espaços no o interior do próprio livro. Nesse último imaginário, de criar experiências sensí- percurso, o design gráfico, além de trans- veis, formais, afetivas e intelectuais que mitir mensagens, deixa entreaberta uma alimentam o imaginário” (FITTIPALDI, fresta no todo que compõe sua dinâmica 2008, p. 107). Haveria, assim, várias cama- multimodal por onde se enxerga seus das sendo transportadas pela imagem “e que limites e fraturas. remetem para a sua tão temida polissemia. Os sentidos que daí podem emergir estão A obra O menino, o cachorro, de inevitavelmente ancorados em diferentes Simone Bibian, com ilustrações de contextos, distintas narrativas” (CAMPOS, Mariana Massarani, tem um duplo sentido 2011, p. 33). de leitura. Apresentando duas propos- 2. Segunda proposta: quando os tas de capa, pode ser lida na perspectiva artifícios são metalinguagem do do garoto como também do cachorro (O visual cachorro, o menino), bastando somente girar o livro para baixo. Oportunamente, A construção projetual de obras a harmoniosa integração entre texto e para infância, como todas as produções de imagem rendeu a produção o prêmio da design gráfico, seguem alguns requisitos de Fundação Nacional do Livro Infantil e metodologia, com o objetivo de comunicar Juvenil (FNLIJ) de melhor livro infan- mensagens. Para Villas-Boas (2007, p. 32), til de 2006. No enredo, o menino sonha os elementos visuais, sejam textos ou ima- em ter seu cão de estimação, mas em seu gens, seriam empregados com o intuito de lugar recebe outros mimos, como um cão “persuadir o observador, guiar sua leitura de pelúcia. Já o cachorro tenta de toda ou vender um produto”. Por um lado, há maneira ter seu menino de estimação, uma certa lógica na sua argumentação, apelando até mesmo para a Lua com seu tendo em vista que a obra é um produto uivo, sem ao menos ser atendido.

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[ FIGURA 3 ] Em outro exemplo, a materialidade Capa do livro O menino, o cachorro do livro como objeto alcança um grau de experimentação no esquema projetual de Este livro comeu o meu cão, escrito e ilus- trado pelo inglês Richard Byrne. A per- sonagem Bella sai para passear com seu cachorro Bolota e, de repente, o animal é sugado pela dobra interna do livro. A menina, assustada com a situação inusi- tada, sai pedindo ajuda a outros persona- gens. Mas, igual como ocorre com o cão, Fonte: Bibian (2006) todos são engolidos para dentro da dobra, que é um limite para a encadernação do No meio do livro, os dois se encon- miolo. Então chega o momento em que tram de um jeito inusitado. O meio da o narrador desafia o leitor ou leitora a encadernação se abre para um novo resgatar os personagens desaparecidos, começo na existência dos dois persona- gens, e o último caderno perde sua função chacoalhando o livro com muita força e de abrigar o fim da história. De uma só na posição vertical até que todos despen- vez, as duas maneiras de ler a história quem de sua “boca devoradora”. O livro provocam uma fratura nas regras conven- se transforma imaginariamente numa cionais de projetação, deslocam os senti- espécie de caixa que, depois de chacoa- dos de aprendizagem para a compreensão lhada, tem suas ferramentas (persona- de dois pontos de vista de uma mesma gens) revolvidas na margem interior do questão e alarga o campo de visão para livro, reaparecendo, nas páginas subse- os elementos e materiais de composição quentes. No final, Bolota reaparece com gráfica do livro. suas partes invertidas.

[ FIGURA 4 ] Livro Este livro comeu o meu cão! (capa do livro e páginas duplas do livro mostrando a transformação da personagem Bolota)

Fonte: Byrne (2015). Fotos das autoras

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Em ambos os exemplos vistos, assim instrumento ativador de modos diferentes como em muitos outros casos, os artifícios de ler o mundo, perceber como se organiza empregados provocam fraturas na estru- e compreender suas diferenças culturais. tura multimodal do livro. E essas cisões servem para explicar a própria linguagem 3. Terceira proposta: pensando do design do livro que, se à primeira vista se novos modos de acessar o visual mostra como um todo articulado e indisso- ciável, nada mais é do que a soma de vários As paredes das salas e corredores elementos: texto, tipografia, imagens, for- de diversas escolas quase sempre vivem mato, mancha gráfica, grid. Esses artifícios tomadas de desenhos, pinturas e garatujas servem de metalinguagem ao visual, porque dos alunos e, muitas dessas produções são utilizam o próprio código do design gráfico exercícios de exploração visual de livros para explicá-lo, revelando sua natureza para infância, principalmente de um dos projetual e modular tanto nos seus aspectos elementos mais chamativos de seu design gráficos e visuais quanto na sua funciona- gráfico, que é a ilustração. Mas como estão lidade e usabilidade. sendo acessadas essas imagens no espaço escolar? Que abordagens e metodologias Nos dois exemplos anteriores, o modo podem tornar a leitura de imagem uma de visualidade escolhido pelo ilustrador e experiência de aprendizagem rica de sig- pelo designer gráfico se torna exercício de nificações, conhecimentos, afetividades? aprendizagem para o conhecimento e a Existem fórmulas prontas ou é preciso estar fruição tanto da narrativa textual como da sempre aberto a novas possibilidades? narrativa de imagens. Como também traz novos conhecimentos sobre como explorar Antes de tudo, vale lembrar, a expres- a superfície do livro para além do modo são artística na escola, seja ela sobre ilustra- convencional: tomar nas mãos, passar as ção de livro, de obra de arte ou de qualquer páginas com as pontas dos dedos, em gesto objeto cotidiano, é um território livre para repetido e sequenciado para frente. Em Este diferentes abordagens e métodos. Mas vale livro comeu o meu cão, o livro também pode enfatizar que estes se diferenciam no modo ser entendido como um brinquedo, para ser de expandir ou estreitar a sensibilidade dos pego, virado, chacoalhado. Por outro lado, alunos. Para entender essas diferenças, O menino, o cachorro oferece duas leituras observemos três caminhos recorrentes de de uma mesma história, uma de um lado lidar com as imagens nesse ambiente de e outra no virar de ponta cabeça do livro, aprendizagem: os chamados “desenhos tendo o caminho do meio como encontro recebidos”, as propostas de releitura de ima- das personagens. gem e as abordagens do visual disparadoras de novos sentidos. A partir de exemplos como esses que subvertem a lógica estrutural do próprio Segundo a pesquisadora Maria Letícia livro, as abordagens pedagógicas de leitura Rauen Vianna (2010 apud BALISCEI; STEIN; de obras literárias têm, assim, novos estímu- ALVARES, 2018), os “desenhos recebidos” los para explorar o design gráfico além da sua são aqueles que possuem contornos gros- função de veicular mensagens, mas como sos, sem definição de sombras e com cores

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chapadas reproduzidos no espaço esco- gráficos e visuais de composição da obra; lar, sem nenhuma contestação por parte familiarizando-se com as técnicas e pro- dos educadores e educadoras. “São figuras cedimentos para elaboração das imagens; compostas por formas, cores e texturas sim- conhecendo a biografia do escritor e do plificadas proporcionando, padronizando ilustrador; entendendo o contexto social, e legitimando uma única forma de visuali- cultural e até mesmo político onde o traba- dade específica como a mais adequada para lho foi produzido. Além disso, abre-se um a infância (BALISCEI; STEIN; ALVARES, canal de escuta para as elucubrações dessa 2018, p. 399). Quando fazem referência a criança diante da imagem, sobretudo da ilustrações de livros para infância, esses ilustração: o que esta lhe fala, o que sente desenhos costumam ser uma espécie de ao vê-la, que lembranças lhe trazem, como decalque de cenários e personagens, uti- pode traduzi-la em outras imagens com lizados como atividade para colorir. Eles novos significados. As imagens tornam- espelham as ilustrações, sem explorar suas -se, dessa maneira, disparadoras de novos diferenças de linha, iluminação e volume. significados que depois a elas retornam, enriquecendo sua imagética e garantindo Por sua vez, nas propostas de releitura sua atemporalidade. Do mesmo modo, for- de imagem, a professora ou professor faz necem conteúdos de aprendizagem sobre uma seleção prévia, ou parte do aluno ou o mundo fabuloso narrado a partir de suas aluna escolhe sobre qual ilustração será personagens e cenários. feita a releitura. Nessas produções, há mais liberdade para trabalhar as diferenças de Diversas sistematizações e aborda- elementos da linguagem visual: linha, cor, gens seguem essa linha de atuação. Inseridas luz, volume e superfície. Pode-se empregar na ótica mais abrangente dos estudos como técnicas o desenho em papel ou tecido, visuais, algumas delas são mais acessadas a pintura tanto em papel como em tela e a em incursões por museus e demais espaços colagem com o uso de diferentes materiais de arte e memória, mas também são de fácil e texturas. No entanto, os personagens e relação com outras finalidades pedagógicas, cenários continuam sendo reproduzidos como é o caso aqui da leitura e interpreta- por repetição, ainda que sofrendo modi- ção crítica do design gráfico de literatura ficações no seu traçado, coloração e som- para infância. Tomemos dois exemplos de breado. Costuma-se também contextualizar caminhos para se trabalhar as camadas a biografia do ilustrador, como atividade visuais desse segmento literário na sala de complementar ao trabalho artístico. aula. Um deles se refere ao sistema image watching, formulado por Robert William Já as abordagens de leitura do visual Ott (2015), que se estrutura numa etapa de disparadoras de novos sentidos podem uti- aquecimento, o thought watching, e em cinco lizar diferentes metodologias de olhar e categorias: descrevendo, analisando, inter- transpor a imagem, deixando abertos os pretando, fundamentando e revelando. O canais de exploração. As crianças são con- outro exemplo, a abordagem triangular, de vidadas a contemplar livremente os aspec- Ana Mae Barbosa (2010), estruturada em tos visuais do livro e a compreender seus três ações: contextualizar, ler imagens e aspectos externos, percebendo os elementos fazer artístico.

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No image watching, há uma fase ante- Como descrever, analisar, interpretar e rior de aquecimento, o thought watching, em fazer a leitura de imagem das xilogravuras que alunos e alunas se integram em grupo de um ilustrador como Ricardo Azevedo, ou por meio de músicas, jogos teatrais e perfor- dos sumiês de uma ilustradora como Lúcia mances. Após essa primeira fase, ocorre as Hiratsuka, levando em conta: os elementos etapas subsequentes, a partir de cinco cate- de composição dessas imagens, os aspectos gorias criadas por Ott: 1. descrevendo – são de contextualização – as influências his- observadas as obras e relatados todos os seus tóricas dessas técnicas, os elementos da detalhes perceptíveis; 2. analisando – investi- biografia de seus criadores, o lugar temporal gam-se os elementos de composição material da obra –, assim como os sentimentos e e formal da obra, seu design; 3. interpretando emoções de seus leitores? Como estimular – dá espaço à expressão de sentimentos e esses leitores-escavadores a serem eles mes- emoções provocados pela análise da obra; mos também criadores de novas imagens, 4. fundamentando – incentiva a pesquisa potencialmente tomadas de significados? de dados e informações adicionais no campo da história da arte e da biografia do artista; Esses questionamentos, sob a forma 5. revelando – abre-se espaço para a criação de três propostas, sugerem um repensar das de uma nova produção como materialização práticas pedagógicas de aprendizagem da da experiência sensorial e de conhecimento leitura visual, partindo de abordagens e teo- da obra explorada. rias já existentes, como o image watching e a abordagem triangular, que sirvam de inspira- Na abordagem triangular, a professora ção para elaborar metodologias condizentes Ana Mae Barbosa (2014) propõe três ações: com a realidade social em que a escola está 1. contextualização – relação estabelecida inserida. De modo algum, os chamados “dese- entre obra e contexto, trazendo dados da nhos recebidos” e as propostas de releitura de história de construção da obra, do período imagem estão sendo recriminados como meios em que foi elaborada, da vida de seu cria- de aprendizagem. Compreende-se que, para dor; 2. leitura da imagem – interação com a cada contexto, são exigidos diferentes parâ- materialidade da obra, com seus elementos metros, recursos e materiais para a leitura de de composição, como linha, volume, luz, imagem. Mas tratar das abordagens do visual cor, superfície e externalização de pen- disparadoras de novos sentidos representa uma samentos e interpretações; 3. fazer artís- forma de chamamento para uma pedagogia tico – emprego de técnicas, procedimentos mais expandida de exploração das imagens e métodos para criar algo novo a partir da em sala de aula. obra, expressando conhecimentos sobre o que foi estudado.

Vistas a partir do design gráfico de livro para infância, essas abordagens Considerações finais são capazes de alargar o campo de visão e apreensão sensório-afetiva dos alunos e alunas na sua relação com as imagens A compreensão da diversidade de do livro, principalmente com a ilustração. conhecimentos, capacidades, predisposições

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e sentimentos em jogo no processo de per- cepção das camadas textual, gráfica, visual, tátil de um livro para infância é um indí- cio primordial na arqueologia da leitura. Perceber o design gráfico desse segmento literário na sua complexidade imagética se apresenta como parte dos achados dessa escavação. Os novos sentidos, sensações e apropriações desse leitor-escavador são modos de interpretar com criatividade esses achados. Não há fórmulas fechadas [ SIMONE CAVALCANTE DE ALMEIDA ] de acessar o visual, seja no design de obras Estuda as aproximações entre projetar e ilustrar no para infância, seja na arte e na vida. Ousar livro de literatura para infância, ao discutir os modos novas práticas de aprendizagem da leitura de concepção de ilustradores e designers gráficos se configura um ato de resistência. Há sem- brasileiros. Formada em Comunicação Social – pre tempo de corrigir rotas, rever concei- Jornalismo, com mestrado em Estudos Literários pela tos estabelecidos como verdades, derrubar Universidade Federal de Alagoas (Ufal), hoje cursa modelos aceitos equivocadamente como o doutorado em Design na Universidade Anhembi legítimos. Afinal, todos os caminhos para Morumbi, por meio de Bolsa de Estudos Institucional. a descoberta do visual se fazem ao “cami- Atua como produtora cultural na Ufal, ao tempo em nhar” pela obra. que escreve obras literárias e desenvolve projetos para democratização da leitura. E-mail: [email protected]

[ GISELA BELLUZO DE CAMPOS ] Desenvolve pesquisas nas áreas de design gráfico e arte contemporânea, com foco nas questões da linguagem visual. É professora titular do Programa de Pós-Graduação em Design – mestrado e doutorado da Universidade Anhembi Morumbi. Doutora e mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Realizou doutorado complementar na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS, Paris, França), com pesquisa sobre Arte Minimalista; pós- doutorado na Universidade de Buenos Aires, sobre o campo expandido do Design Gráfico Contemporâneo. Lidera o grupo de pesquisa “Design Gráfico Contemporâneo: Linguagens e Interfaces” (CNPQ) e atua principalmente nos temas: linguagem gráfica e design; arte contemporânea; inter-relação entre discursos teóricos, processos e procedimentos. E-mail: [email protected]

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[ RELATÓRIO DE PESQUISA ]

Maria Lúcia Wochler Pelaes Universidade de São Paulo. Elcie A. Forte Salzano Masini Universidade de São Paulo. Maria Lúcia Wochler Pelaes As Obras do Artista Hélio Oiticica Elcie A. Forte Salzano Masini no Espelho da Fenomenologia da Percepção 259 

[ RESUMO ABSTRACT RESUMEN ]

Esta pesquisa propõe um estudo fundado na investigação dos processos de leitura e da fruição estética das obras do artista Hélio Oiticica (1937-1980), expostas no Instituto Inhotim, a partir da perspectiva da Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty, afirmando que podem ser complementares, permitindo a construção de um diálogo entre a produção do artista Oiticica e a Fenomenologia da Percepção, na perspectiva desse filósofo. Questões como o sujeito fenomenal, a filosofia, a relação corpo-espaço- -tempo, a estesia do corpo, entre outros estudos, podem produzir investigações quanto à arte e sua capacidade de produzir uma diferenciação estética no interior do mundo indiviso, permitindo revelar intersecções de sentido entre a percepção e a fruição na arte, a partir das obras de Oiticica e como se inserem no cenário museológico do Instituto Inhotim, museu que apresenta grande potencial nesse sentido. Palavras-chave: Hélio Oiticica. Fenomenologia da Percepção. Merleau-Ponty. Instituto Inhotim. Arte-Educação.

This research proposes a study based on the investigation of the reading processes and aesthetic enjoyment of the works of the artist Hélio Oiticica (1937-1980), exposed in the Inhotim Institute, from the perspective of the Merleau-Ponty Phenomenology of Perception, stating that they can be complementary, allowing the construction of a dialogue between the production of Oiticica and of the Phenomenology of Perception, in the perspective of this philosopher. Issues such as the Phenomenal Subject, the philosophy, the body-space-time relation, body’s esthesia, among other studies, can produce investigations as to the art and its capacity to produce an aesthetic differentiation inside the undivided world, allowing to reveal intersections of sense between the perception and the enjoyment in the art, from the works of Oiticica and how they are inserted in the museological scenery of the Inhotim Institute, Museum that presents great potential in this sense. Keywords: Hélio Oiticica. Phenomenology of Perception. Merleau-Ponty. Instituto Inhotim. Art-Education.

Esta investigación propone un estudio con base en la investigación de los procesos de lectura y de fruición estética en las obras del artista Hélio Oiticica (1937-1980), en exposición en el Instituto Inhotim, desde la perspectiva de la Fenomenología de la Percepción de Merleau-Ponty, y afirma que pueden ser complementarios, per- mitiendo la construcción de un diálogo entre la producción del artista Oiticica y la Fenomenología de la Percepción, en la perspectiva del filósofo. Las cuestiones como el sujeto fenomenal, la filosofía, la relación cuerpo-espacio-tiempo, la sensibilidad del cuerpo, entre otras, pueden producir investigaciones sobre el arte y su capacidad de producir una diferenciación estética en el interior del mundo indiviso, lo que permite revelar intersecciones de sentido entre la percepción y la fruición en el arte, desde las obras de Oiticica y de qué manera se insertan en el escenario museológico del Instituto Inhotim, museo que presenta un gran potencial en ese sentido. Palabras clave: Hélio Oiticica. Fenomenología de la Percepción. Merleau-Ponty. Instituto Inhotim. Arte-Educación.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2019.155842

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1. Enunciado do problema da FE-USP. Porém, ela irá se consolidar de pesquisa quando socializada e disseminada, seja em eventos locais, escolas e Diretoria de Ensino Região Norte 2, como eventos regionais, O problema de pesquisa fundamen- nacionais e internacionais, através da comu- ta-se na correlação entre a Fenomenologia nicação em congressos, simpósios, encon- da Percepção de Merleau-Ponty e a produ- tros e demais eventos, propiciando reflexões ção artística de Hélio Oiticica (1937-1980), acerca da importância do artista Oiticica e exposta no Instituto Inhotim (2006, da sua obra, assim como pela importância Brumadinho-MG, Brasil), como um ponto dos acervos nacionais presentes em museus. de manifestação convergente da experiên- cia perceptiva, contemplando a questão O tema apresentado resulta de refle- da vivência em ambiente museológico, xões desenvolvidas a partir dos estudos reali- tema o qual encontra sua linha diretriz na zados pela pesquisadora Maria Lúcia Wochler Fenomenologia da Percepção de Maurice Pelaes no Grupo Perceber, no período de 2015 Merleau-Ponty (1908-1961), filósofo feno- até o momento, no Diretório de Pesquisas menológico francês, que abordou em seus do CNPq, que tem como líder a Profª. Dra. estudos epistemológicos questões sobre Elcie Aparecida F. Salzano Masini, responsá- corporeidade e percepção, buscando com- vel pela presente pesquisa, inserida na Área preender a singularidade da consciência de Concentração da FE-USP – Educação, integrada ao mundo, que se manifesta atra- Linguagem e Psicologia –, que tem por obje- vés da experiência estética, na perspec- tivo compreender o ser em desenvolvimento, tiva do atual projeto de pesquisa. O tema aprofundando estudos sobre a constituição da abordado consolida-se a partir da articu- subjetividade e do processo do aprender na lação entre a Fenomenologia da Percepção dinâmica das diversidades culturais (relações Merleau-Ponty com a produção do artista entre o perceber e aprender e o pensamento Hélio Oiticica (1937-1980), o qual foi pintor, e linguagem) na individualidade de um ser escultor, artista plástico e artista perfor- social Quanto ao referencial teórico da atual mático, sendo considerado um importante proposta de estágio doutoral, podemos discri- artista brasileiro e com expressão inter- miná-lo em três etapas; a primeira, composta nacional, propondo uma reflexão sobre a por meio da análise de autores apresentados experiência estética que parte da percep- neste projeto de pesquisa, numa articulação ção sensível do objeto de arte, observan- teórica entre os conceitos relativos à área do-o como pertencente a um todo maior de Arte e a Fenomenologia da Percepção. composto pelos espectadores e o ambiente São eles: Argan (2010) em Arte moderna e expositivo, o Museu Inhotim, onde os sig- Argan e Fagiolo em Guia da história da arte nificados operam nessa relação sistêmica. (1994); Archer (2012) em Arte contemporâ- nea: uma história concisa; Arnheim (1989), A proposta apresentada no atual quanto ao estudo sobre a Intuição e intelecto projeto de pesquisa é corroborada, inicial- na arte; Capalbo (2007) em A subjetividade e a mente, a partir da sua aprovação e obtenção experiência do outro: Maurice Merleau-Ponty do Parecer Mérito para a bolsa de Pós- e Edmund Husserl; Favaretto (2000) em A Doutorado pela Comissão de Pós-Graduação invenção de Hélio Oiticica; Hipólito (2013) em

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A presença do vazio nas proposições de Hélio possibilitam experiências sensoriais diver- Oiticica; Masini (2012) em Perceber: raiz do sas e convidam o corpo. conhecimento e em Experiências do perceber (2007), entre outros. Segundo as palavras da diretora execu- tiva do Instituto Inhotim, Ana Lúcia Gazzola, A segunda etapa é composta por citada por Mariuzzo (2009, p. 61), “A obra de autores que serão analisados no decorrer arte se alimenta da relação com o contexto e, da pesquisa, tais como: Carmo (2011) em geralmente, utiliza vários sentidos – olfato, Merleau-Ponty: uma introdução; Coli (1995) visão, tato – para a sua apreciação”. em O que é arte; Crispolti (2004) em Como estudar a arte contemporânea. A terceira Oiticica foi um dos primeiros artistas etapa se dará a partir da fundamentação a expandir a noção de arte para além dos teórica baseada nas obras específicas de limites do quadro e da escultura, usando o Merleau-Ponty, etapa a qual apresenta uma espaço e todos os sentidos humanos em seu proposta investigativa que se fundamenta, trabalho. Segundo sua própria fala, regis- principalmente, na obra Fenomenologia da trada numa entrevista intitulada como “A Percepção (1994, 1999), estudo acrescido transformação dialética da pintura”, conce- pelas análises propostas por Merleau-Ponty dida à Vera Martins e publicada original- em Le visible et l’invisible suivi de Notes de tra- mente no Suplemento Dominical do Jornal vail (1964), O olho e o espírito (2004), ambos Brasil, em 21 de maio de 1961: citados no atual projeto de pesquisa. Além das citadas, outras obras de Merleau-Ponty Sinto que o quadro não satisfaz de forma serão analisadas, a fim de construir um alguma as necessidades de expressão de lastro teórico bem fundamentado frente à nosso tempo. […] Dado o quadro, temos proposta do atual estágio doutoral. um suporte para a figuração. No quadro, o sentido de espaço, está limitado ao retân- O Instituto Inhotim é considerado a gulo […] suporte passivo da expressão sede de um dos mais importantes museus (OITICICA apud MARTINS, 1961). de arte contemporânea do Brasil, reconhe- cido também como um dos maiores centros As sequências de impactos senso- de arte ao ar livre do mundo, enquanto riais gerados pelas obras de Oiticica pro- um importante patrimônio físico-arqui- porcionam a construção de uma percepção tetônico, cultural e ambiental. Nele, são fundada em sensações que, associadas ao expostas obras de arte inseridas no meio corpo e seus movimentos, trouxe ao fruidor ambiente, num processo de diálogo com a diferentes possibilidades de percepção da natureza, estando presente numa reserva obra e de sua interpretação. florestal que era uma antiga fazenda. Uma volta pelos jardins do Inhotim já propõe Para Hipólito (2013), é relevante ana- uma multiplicidade de experiências, atra- lisar as proposições de Hélio Oiticica sob a vés das obras que vão sendo descober- ótica da filosofia negativista de Merleau- tas em meio à paisagem, que permitem Ponty, pois Oiticica propõe a experiência criar novas relações entre corpo, lugar as advinda da confluência espectador-obra- imagens que produzem atravessamentos, -autor sob as construções situadas na arte

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Neoconcreta. A teoria do “não objeto”, pro- experiências que promovam uma volta do posta por Oiticica, tem sua raiz identificada sujeito a si mesmo, redescobrindo e liber- nas proposições de Ferreira Gullar sobre a tando-se de seus condicionamentos éticos e posição do sujeito fenomenal como gerador estéticos, impelindo-o a um estado criativo, de conhecimento intuitivo no contato com a em uma vivência suprassensível. obra de Oiticica, que, em seus estudos, bus- cou a superação da noção de objeto de arte, A própria análise filosófica de como tradicionalmente definido pelas artes Merleau-Ponty é centrada na existência plásticas até então, em diálogo com a teoria concreta e na percepção da experiência do não objeto (GULLAR, 1960). humana em sua totalidade. Capalbo (2007) complementa afirmando que, até o fim de O espectador também foi redefi- sua vida, Merleau-Ponty permaneceu fiel nido pelo artista à posição de participador, à proposta investigativa apresentada em aberto a um novo comportamento que o sua obra Fenomenologia da Percepção. Por conduzisse ao exercício experimental da esse caminho, é conduzido à “reflexão que percepção e da liberdade. Nesse sentido, o se volta para a espessura do mundo para processo dialético da percepção se dá a par- aclará-lo, e que lhe reenvia a sua própria tir da passagem do entendimento de uma luz”. Assim, a reflexão se enraíza no visível arte contemplativa para uma arte que afeta e, por esse meio, nos permite perceber o comportamentos, que tem dimensão ética, invisível (Merleau-Ponty, 1964, p. 57). social e política, como explicitado no texto A declaração de princípios básicos da nova Oiticica, avesso à contemplação, pro- vanguarda, publicado em 1967, no catálogo punha a participação efetiva do especta- da exposição “Nova Objetividade Brasileira” dor em desdobramentos ocorridos através ocorrida no MAM-RJ (NOVA…, c2019). de caminhadas pelo espaço labiríntico e penetrável da obra. Para Oiticica (OITICICA O conceito “suprassensorial”, desen- FILHO, 2009), os Penetráveis caracteriza- volvido por Oiticica também em 1967, ram, em sua origem, uma série de experi- propõe experimentações com as mãos, mentações relativas à questão do labirinto, mostrando a sensibilidade que temos no como um “território aleatório”. corpo e investigando possibilidades de dila- tamento de suas capacidades sensoriais – Conforme Pelaes (2017), produzidos uma “suprassensação” que, segundo Oiticica nos anos 1960, inicialmente, com placas de (1986, p. 45), levaria o indivíduo “à desco- madeira e pintados com cores quentes, os berta do seu centro criativo interior, da sua Penetráveis já constituíam um projeto de espontaneidade expressiva adormecida, ampliar as dimensões da obra em escalas que condicionada ao cotidiano”. Hélio Oiticica permitissem aos espectadores adentrarem e aspira à superação de uma arte conformista interagirem com ela. Esses projetos estavam limitada ao processo de estímulo-reação, associados aos “núcleos” e já caracterizaram que se configura como instrumento de uma série de “experimentações” em direção domínio intelectual e comportamental. ao espaço e à cor, esta como força motriz Propõe, então, uma arte que busca abertura capaz de criar campos ópticos que atuavam ao participador e do participador, através de em planos de diferentes escalas tonais.

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Sua obra não produziu somente as com- Não há mais possibilidade de existir estilo, posições materializadas, mas muitas delas vie- ou a possibilidade de existir uma forma ram acompanhadas de elaborações teóricas, de expressão unilateral como a pintura, a trazendo a presença de textos, comentários escultura departamentalizada. Só existe e poemas. Pode-se, de acordo com o crítico o grande mundo da invenção (OITICICA Celso Favareto (2000, p. 49), “identificar duas apud CARDOSO, 1985, p. 48). fases na obra de Oiticica: uma mais visual, que tem início em 1954 na arte concreta e Oiticica defende ser o termo “nova vai até a formulação dos Bólides, em 1963, e objetividade” o que mais fielmente traduz outra sensorial, que segue até 1980”. as experiências das vanguardas brasileiras em geral, e a sua, em particular. Para Hélio Conforme Cardoso (1985), Oiticica, Oiticica há uma tendência à superação dos em depoimento, comenta: suportes tradicionais (pintura, escultura etc.), em proveito de estruturas ambientais e obje- Eu comecei com Ivan Serpa no Grupo tos. Nessa época, produz textos sobre seu Frente, em 1954. Mas, a meu ver, a par- trabalho, sobre a arte construtiva e as expe- tir do movimento neoconcreto, quando riências de Lygia Clark. Embora não tenha comecei a propor a saída para o espaço, participado da 1ª Exposição Neoconcreta a desintegração do quadro, isso tudo, aí nem assinado o Manifesto Neoconcreto, em é que eu realmente comecei a criar algo 1960 participa da 2ª Exposição Neoconcreta só meu e totalmente característico. A no Rio de Janeiro e pensa sua produção em desintegração do quadro foi, na verdade, relação à teoria do não objeto, oriunda das a desintegração da pintura; ela é irreversí- proposições de Gullar (1960): vel, não há possibilidade, nem razão, para uma volta à pintura ou à escultura. E daí Uma nova categoria ou uma nova maneira para a frente. Então parti para a criação de de ser da proposição estética? A meu ver, novas ordens, que se dirigiram da primeira apesar de também possuir esses dois sen- série de espaços significantes para uma tidos, a proposição mais importante do abolição da estrutura significante. Eu pro- objeto, dos fazedores de objeto, seria a curava instaurar significados, que depois de um novo comportamento perceptivo, fui abolindo. Havia uma certa influência criado na participação cada vez maior do do Merleau-Ponty e das teorias do Ferreira espectador, chegando-se a uma superação Gullar […], por exemplo (ela descobriu o do objeto como fim da expressão estética. negócio da imanência). Para mim, foi uma Para mim, na minha evolução, o objeto abolição cada vez maior de estruturas de foi uma passagem para experiências cada significados, até eu chegar ao que considero vez mais comprometidas com o comporta- a invenção pura. “Penetráveis”, “Núcleos”, mento individual de cada participador; faço “Bólides” e “Parangolés” foram o cami- questão de afirmar que não há a procura, nho para a descoberta do que eu chamo aqui, de um “novo condicionamento” para de “estado de invenção”. Daí é impossível o participador, mas sim a derrubada de haver diluição. Não se trata de ficar nas todo condicionamento para a procura da ideias. Não existe ideia separada do objeto, liberdade individual, através de proposi- nunca existiu, o que existe é a invenção. ções cada vez mais abertas visando fazer

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com que cada um encontre em si mesmo, corpo e ambiente. As obras de Oiticica des- pela disponibilidade, pelo improviso, sua pertam as sensações, reivindicando questio- liberdade interior, a pista para o estado namentos, tais como: estar no mundo com o criador – seria o que Mário Pedrosa definiu próprio corpo e como se sentir, questões que profeticamente como exercício experimen- fundamentam o perceber. Vide Figura 1. tal da liberdade. […] Cheguei então ao con- ceito que formulei como suprassensorial [ Figura 1 ] […]. É a tentativa de criar, por proposições Obra Penetrável PN27 Rijanviera cada vez mais abertas, exercícios criativos, (1979), de Hélio Oiticica prescindindo mesmo do objeto tal como ficou sendo categorizado – não são fusão de pintura-escultura-poema, obras palpá- veis, se bem que possam possuir este lado. São dirigidas aos sentidos, para através deles, da percepção total, levar o indivíduo a uma “suprassensação”, ao dilatamento de suas capacidades sensoriais habituais, para a descoberta do seu centro criativo interior, da sua espontaneidade expressiva adormecida, condicionada ao cotidiano (OITICICA, 1986, p. 102- 104).

Há na arte de Oiticica a busca da superação dicotômica sujeito-objeto, atra- vés da proposta de um não objeto, fundado num campo de representação subjetivo e construído pela vivência do espectador que, através da experiência vivida com a obra, cria novas possibilidades de interagir com ela. Para tanto, Archer (2012, p. 236) reflete acerca da fruição estética: “A arte é um encontro contínuo e reflexivo com Foto de Edouard Fraipont, 1972 o mundo em que a obra de arte, longe de Material: alumínio, tela de arame, plástico, ser o ponto final desse processo, age como tela de nylon, areia, pedras e água. Coleção César e iniciador e ponto central da subsequente Cláudio Oiticica, RJ Instituto Cultural Itaú (2010) investigação do significado”. “O espaço não é o cenário (real ou lógico) em que as coisas Sua obra é uma instalação que provoca são dispostas, mas o meio pelo qual a posição a observação integrada da paisagem e da das coisas se torna possível” (MERLEAU- própria obra que se configura em diferen- PONTY apud ARCHER, 2012, p. 56). tes composições cromáticas e geométricas numa espécie de espaço arquitetônico, que O público circula e é envolvido pelas revela a procura de “totalidades ambientais”, dimensões da obra, numa correlação entre de tal forma que, segundo David Sperling:

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Neste espaço, cada proposição coloca, a A expressão estética confere a existên- seu modo, uma questão vital que perpassa cia em si àquilo que exprime, instala-o sua produção: a superação de uma arte na natureza como uma coisa percebida de cunho geométrico-representacional acessível a todos ou, inversamente, para a proposição de experiências artís- arranca os próprios signos a pessoa do ticas vivenciais centradas no corpo e na ator, as cores e a tela do pintor – de sua “ação comportamental como uma força existência empírica e os arrebata para criativa” (SPERLING, 2008, p. 119). um outro mundo. Ninguém contestará que aqui a operação expressiva realiza Para Merleau-Ponty, na perspectiva ou efetua a significação e não se limita de Terezinha Nóbrega: a traduzi-la (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 248-249). Essa compreensão do corpo apoia-se na tese do sensível, pois o corpo como sensí- As Figuras 2A e 2B traduzem o projeto vel exemplar é feito do mesmo estofo do desenvolvido na obra referente às estru- mundo. A carne, o verbo, o desejo, a lingua- turas arquitetônicas Penetráveis, onde os gem, a história se entrelaçam e constituem espectadores podiam atuar como protago- o visível e o invisível do corpo. O corpo é nistas. Trata-se de espécies de jardins em outro gênero de ser, paradoxal, pois encon- escala pública para a vivência coletiva que tra-se na ordem das coisas, sem o sê-lo. A envolve tanto a relação com a arquitetura originalidade não está na antinomia, mas quanto com a natureza. no cruzamento, nas dobras que envolvem o acontecimento. A animação do corpo não [ Figura 2 ] está no inventário das partes, nem na encar- Obra Penetrável Tropicália nação de um espírito, como polos opostos, (1967) de Hélio Oiticica mas na reversibilidade entre sujeito e objeto, corpo e mente (NÓBREGA, 2016, p. 9).

A experiência proposta por Oiticica na série de instalações Penetráveis con- figura-se por sua natureza performática, característica própria do artista, e pode ser vista como aquela de um corpo que se faz visível e vidente em meio à obra percebida. A arte, nesse sentido, apresenta a capaci- dade de produzir uma diferenciação esté- tica, no interior do mundo indiviso, onde não é preciso separar-se do mundo para relacionar-se com ele e com a obra de arte. Mas é no mundo indiviso, tátil, espacial e Fotos Edouard Fraipont, 1967 temporal que se torna um fruidor da obra Material: alumínio, tela de arame, plástico, tela de de arte, enquanto ser sensível e pleno de nylon, areia, plantas e grama. percepção estética. Merleau-Ponty afirma: Instituto Cultural Itaú (2010)

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Na obra, ao criar uma estrutura [ Figura 3 ] penetrável, o artista Oiticica propõe uma Obra Invenção da Cor, Penetrável Magic nova percepção na configuração usual, Square #5, De Luxe (1977- 2006), suas proporções e contexto. Para tanto, de Hélio Oiticica cria uma instalação que permite a inte- ração do espectador, que percorre sua estrutura inserindo seu corpo no corpo da obra, produzindo diferentes interpre- tações. Desta forma, propõe que o obser- vador reflita sobre como percebe o espaço e o mundo e como se apropria do espaço. Giulio Carlo Argan reflete sobre os impe- rativos da arte moderna:

A própria matéria posta em signo faz-se signo: signo de uma desolada ausência de vida, na qual o observador reconhece a negatividade total do seu existir. Em tal Fotos de Maria L. W. Pelaes, 2017 condição de negatividade ou não-ser, Material: nove paredes quadrangulares coloridas, já não é possível o afastamento, a viva tinta látex, tela de arame, azulejos e, na base, areia, relação dialética entre o sujeito e o objeto seixos e grama. Dimensão da instalação: 15 m² sobre a qual se funda a representação (ARGAN, 2010, p. 629). Há, na obra, características geométri- cas que criam planos ortogonais em relação Conforme Pelaes (2017), a obra de à base, preponderando o ângulo reto em Hélio Oiticica Invenção da Cor, Penetrável suas construções, que utilizavam alvenaria, Magic Square #5, De Luxe (1977-2006), areia e outros materiais que provocassem os exposta no Instituto Inhotim, consiste sentidos dos fruidores das obras. Segundo num exemplo do projeto de estudo pro- Pelaes (2017), a intenção de Oiticica era exa- posto. Quanto à obra, o artista não chegou tamente criar um diálogo entre cor e forma, a executá-la em vida, mas deixou como sensibilizando ao máximo o observador e legado o seu projeto, através de instruções interlocutor no processo de adentrar a obra de realização da obra que foram anotadas e, através de sua percepção, ir construindo por ele em relatórios, maquetes, desenhos narrativas e questionando conceitos, como técnicos e amostras, que detalham o pro- a estrutura arquitetônica, as relações de jeto e permitiram sua construção postu- espaço, os efeitos cromáticos das cores e a mamente no Instituto Inhotim. A obra foi experiência com a obra/instalação. construída em meio aos jardins e perto de um dos lagos, permitindo a criação de um Segundo Stori e Pelaes: diálogo com o meio ambiente e com seus observadores e fruidores, como segue nas A arte é capaz de provocar uma per- Figuras 3A e 3B. cepção complexa e rica, como nas obras

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de Oiticica, quando as cores tornam-se como apreensão das significações pelo vibrantes e mais intensas pelo aguça- corpo, enriquecendo e reorganizando mento da sensibilidade estética. No caso o espaço na temporalidade. O autor, da obra “Invenção da Cor, Penetrável para tanto, propõe um estudo sobre a Magic Square #5, De Luxe”, as cores e Estesiologia, ou a ciência dos sentidos, formas em contraste com a paisagem cuja característica é abrir o corpo para o e a luz solar intensa podem elevar a exterior, transformando-o em um corpo percepção do observador à condição poroso, que permite a comunicação de “suprassensorial”, devido à intensidade um corpo com outros corpos. A sensoria- dos elementos em questão (STORI; lidade é um investimento que configura PELAES, 2017, p. 147). a estesia, a capacidade de sentir, ter sen- sação e sensibilidade, seja ela fisiológica, Para Arnheim (2005), a experiência simbólica, histórica, afetiva ou dos órgãos de apreciação estética está, inicialmente, e sentidos. comprometida com a experiência imediata ligada à expressão sensorial. A princípio, o A própria percepção das cores nas observador tem a percepção sensorial da obras de Hélio Oiticica é um exemplo signi- obra, buscando semelhanças com expe- ficativo da estesia apontada por Merleau- riências anteriores e com outras obras. Os Ponty, de tal forma que: “A apreensão das espectadores travam diálogo com a obra significações se faz pelo corpo: aprender Invenção da Cor, Penetrável Magic Square a ver as coisas é adquirir um certo estilo #5, De Luxe, tendo a sensação de ela como de visão, um novo uso do corpo próprio, é mediadora das relações espaciais e tempo- enriquecer e reorganizar o esquema cor- rais. Para Merleau-Ponty: poral” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 212). Para Oiticica, em entrevista: Toda sensação é espacial, nós aderi- mos a essa tese não porque a qualidade A cor é um dos elementos mais impor- enquanto objeto só pode ser pensada no tantes. Sendo a predominância em tons espaço, mas porque, enquanto contato de amarelo e branco na parte exterior, primordial com o ser, enquanto reto- e, na parte interior, de outros tons, mas mada pelo sujeito que sente, de uma sempre luminosos. Ao se entrar por forma de existência indicada pelo sensí- qualquer das três entradas, os tons exte- vel, enquanto coexistência entre aquele riores de amarelo e branco serão mais que sente e o sensível, ela própria é suaves, intensificando-se à medida que constitutiva de um meio de experiência, se chega ao centro do grande labirinto, quer dizer, de um espaço (MERLEAU- sendo mais intenso ainda no interior das PONTY, 1999, p. 298). maquetes, principalmente nas minhas, em que a cor atua como elemento fun- A sensibilidade provocada pela obra damental (OITICICA apud OITICICA de arte e, em especial, pela obra Invenção FILHO, 2009, p. 50). da Cor, Penetrável Magic Square #5, De Luxe, permite alcançar um estado de este- Essa significativa produção rompe sia apontado por Merleau-Ponty (1999) com paradigmas atrelados à arte moderna,

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elaborando trabalhos espaciais como os primeiramente no espaço: ele é no espaço Penetráveis e apresentando estudos reve- (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 205). ladores sobre a “cor estrutural”. Desta forma, nota-se na trajetória de criação O espaço e o corpo são desenhados artística de Oiticica uma busca pelo espaço dentro do cenário das obras de Oiticica, e pela cor como interlocutores ativos e numa relação espaço-tempo, através da provocativos de atitudes respondentes construção de percursos e narrativas que dos sujeitos-fruidores de suas obras. Para criam tensões e conexões que se desdobram Oiticica (1986, p. 81), o visitante percorre numa experiência imanente do corpo que “o território alegórico do labirinto […]. E é o ser, sua existência e a experiência que os campos de cor permitem […] um efeito é capaz de vivenciar, na qualidade de sua óptico de virtualidade em que o espectador interpretação subjetiva, como possibilidade é deslocado para uma perspectiva que o de apropriação livre e de análise cultural- coloca como que percorrendo os corredo- mente influenciada, através de ações que res dos Penetráveis”. estão situadas na fronteira entre um con- texto pessoal e o cenário coletivo, no qual Conforme Masini (2012), o corpo que o espaço do museu torna-se um relevante presencia a obra se torna parte dela que, por meio de aprendizagem a partir da partici- sua vez, é multiplicada pelas representações pação ativa do espectador. de cada espectador no espaço da obra, no horizonte que se torna infinito em direção O pavilhão das cinco Cosmococas, a diferentes percepções. Para Masini (2007), feitas por Hélio Oiticica em parceria com o perceber é a ação que se dá na experiência o cineasta Neville d’Almeida (1941, Belo original do corpo com o mundo ao seu redor Horizonte, Minas Gerais), fazem parte da e, para tanto, o corpo não está no mundo, série de instalações Cosmococa (Instituto ele o é no mundo. Inhotim, 1973/2006) composta por cinco salas, as quais abordam os movimentos O espaço, por sua vez, está impli- de Instalação e Vídeo-Arte, assim como a cado numa ação correspondente. Ele não performance. A obra é caracterizada como é abstrato, pois manifesta-se no corpo e na “in progress”, pois não se situa como uma dimensão de suas ações, de tal forma que obra fechada, expandindo-se para além dos Merleau-Ponty propõe: blocos, aglutinando proposições experimen- táveis em programas intertextuais que asso- A experiência do corpo nos ensina a ciam imagens, textos, objetos iconográficos. enraizar o espaço na existência. […] A experiência revela sob o espaço obje- As estruturas arquitetônicas ganha- tivo, no qual finalmente o corpo toma ram um pavilhão especialmente construído lugar, uma espacialidade primordial da para elas. Essa proposta arquitetônica qual a primeira é apenas o invólucro e externa apresenta-se “pesada”, bruta, o que se confunde com o próprio ser do que a difere da leveza da paisagem local e, corpo. Ser corpo […] é estar atado a um principalmente, da proposta interna, como certo mundo… nosso corpo não está se vê nas Figuras 4A e 4B.

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[ Figura 4 ] para uma experimentação que ele próprio Pavilhões que abrigam a série de denominou “quasi-cinema”. instalações Cosmococa (1973/2006), de Helio Oiticica e Neville d’Almeida De acordo com Merleau-Ponty (1999, (vista externa) e obra Cosmococa p. 27-33 apud CARDIM, 2007, p. 61) “a dife- 5 Hendrix War (vista interna) rença está no meio perceptivo ou numa ambiguidade que advém da modelagem que o contexto imprime aos objetos”. Dessa maneira, a percepção não é a soma de sen- sações parciais, mas a experiência de tota- lidades significativas dentro de contextos que foram interpretados como um todo. Conforme Elcie Masini:

Para compreender a percepção é neces- sário considerar o sujeito da percepção e saber de sua experiência perceptiva. Neste sentido, diz-se que as coisas “se pensam” em cada pessoa, porque não é um pensar intelectual, no sentido de funcionamento de um sistema, mas sim do saber de si ao saber do objeto, já que, ao entrar em contato com o objeto, o sujeito entra em contato consigo mesmo (MASINI, 2003, p. 40).

Masini (2012) afirma ser de grande importância pensar como consiste estar em contato com o outro, com seu olhar, seus A: Foto de Maria L. W. Pelaes, 2018. B: movimentos e suas ações. O corpo permite Foto de Eduardo Eckenfels, 2006 uma experiência perceptiva transcendente, pois sugere o enigma da percepção quando, Os elementos internos, objetos artís- por si mesmo, toca e é tocado ou vê e vê a si ticos e culturais, são simbólicos. Nessas ins- mesmo como fenômeno simultâneo. Neste talações produzidas, inicialmente, no final sentido, essa relação entre o sujeito e a si dos anos 1970, Hélio Oiticica, trabalhou mesmo ou ao seu entorno é dialética, pois com o cineasta Neville d´Almeida, criando tais percepções se fundem num mesmo obras para, através de projeções de slides, momento. Masini complementa afirmando: trilha sonora e outros elementos, provocar no público experiências multissensoriais. Imerso no visível pelo seu corpo, o vidente Havia um interesse por parte do artista aproxima do que vê pelo seu olhar. Abre-se não pelo cinema espetáculo convencional, ao mundo, ao invés de apropriar-se dele. mas pelo uso dos recursos cinematográficos Visível e vidente, o corpo próprio de cada

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um está no mundo – olha todas as coisas Instituto Inhotim, apresentando, em e também pode olhar a si – se vê vidente, correlação, um estudo dos fundamentos toca-se tateante, é visível e sensível por si teóricos que embasam a Fenomenologia mesmo, e a partir daí é que cada um pensa da Percepção de Merleau-Ponty; (MASINI, 1994, p. 80). b) Verificar a correlação entre as obras Tem-se, então, a subjetividade do ser de Oiticica analisadas e a Fenomeno- que observa a realidade e a si mesmo. Desta logia da Percepção de Merleau-Ponty, forma, há uma condição expressa para a em termos de convergência de abor- razão: transcender a realidade e abstraí-la, dagens e interpretações, numa pro- através da capacidade de simbolização. Esse posta de articulação entre a análise da corpo gera a memória corporal, vital para a obra e os conceitos que fundamentam sua existência. Este supera a sua fragmenta- o perceber; ção e se configura como inteiro, porque trans- cende sua categoria a partir das sensações. c) Analisar as ações que o Museu Inhotim apresenta em relação às obras de Hélio Oiticica expostas, no sentido de apro- fundar questões relativas aos locais selecionados para as obras e o público- 2. Resultados esperados -alvo previsto;

d) Analisar como os estudantes da rede Como resultados esperados, preten- pública da região de Brumadinho-MG de-se, de modo geral, ampliar os estudos e entorno, através dos estudos e proje- relacionados tanto à obra de Merleau- tos realizados por meio da participação Ponty, no que tange à Fenomenologia da do Educativo do museu, abordam as Percepção, quanto às criações artísticas de obras de Oiticica, desde a observação e Hélio Oiticica que fazem parte do acervo do registros dos seus gestos e reações cor- Instituto Inhotim, ressaltando elementos porais quando no contato com a obra, convergentes numa interlocução entre as quanto como pensam a obra, esclare- obras de arte de Oiticica e a Percepção de cendo algumas questões sobre as re- Merleau-Ponty, ao assinalar na leitura e lações obra-museu-fruidor, a partir do fruição estéticas sensíveis das obras que desenvolvimento de entrevistas estru- serão analisadas, elementos complemen- turadas e semiestruturadas; tares, propondo uma análise investigativa, que permita a verificação das dimensões da e) Socializar o conhecimento construído aprendizagem em ambiente museológico na a partir da pesquisa proposta em even- perspectiva da correlação proposta. tos multiplicadores, sejam locais como a realização de palestras e workshops em São objetivos específicos: escolas da Diretoria de Ensino Região Norte 2, tendo por objetivo a capacita- a) Desenvolver um estudo referente à ção de docentes da rede, sejam regio- produção artística de Hélio Oiticica no nais, nacionais e internacionais como

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encontros, simpósios, congressos, en- dentro do espaço do museu. A coleta de tre outros, onde haja a possibilidade de dados poderá ser realizada a partir de entre- apresentação da pesquisa e seus resul- vistas estruturadas e semiestruturadas com tados em Grupos de Trabalho (GT). os estudantes que realizam cursos dentro do museu, através dos projetos articulados pelo Educativo do Inhotim, e com os cola- boradores (educadores e curadoria) que trabalhem lá. A coleta de dados, conforme 3. Desafios científicos e Masini (2012, p. 35), poderá ser uma estra- tecnológicos e os meios e os tégia metodológica eficiente para registrar métodos para superá-los como os fruidores exploram as obras de Oiticica, tendo como elemento importante a maneira de usar o corpo para tal, “a dinâ- Os métodos propostos baseiam-se mica de seus movimentos e como reen- na pesquisa qualitativa, através de três contram novas significações […] gerando delineamentos: a pesquisa bibliográfica, a observações e registros”. pesquisa de campo e o embasamento feno- menológico da pesquisa. Os desafios científicos estão indi- cados na proposta de pesquisa que se Para tanto, será utilizada, inicial- orienta por questões levantadas a partir da mente, a pesquisa bibliográfica como meio Fenomenologia da Percepção de Merleau- inicial para identificar conceitos e anali- Ponty (1999), delineando uma série de hipó- sar diversas perspectivas sobre o tema teses sobre a experiência sensível – que se em estudo. O método bibliográfico, de dá no corpo, na estrutura de relações com as acordo com as autoras Lakatos e Marconi, obras de arte, na condição de objetos artís- proporciona: ticos e, portanto, estéticos. Numa extensão de sua síntese corporal, o fruidor opera Uma pesquisa realizada com base em sobre a obra de tal forma que o intervalo concepções teóricas cujas fontes podem entre obra e espectador se estreita. ser: livros científicos e técnicos, artigos de revistas científicas (periódicos), material Os desafios tecnológicos estão atrela- bibliográfico publicado em meios eletrô- dos ao atual contexto da arte contemporâ- nicos, em sites, anais de encontros cientí- nea, no qual se tem observado um processo ficos, dissertações, teses etc. (LAKATOS; de renovação nas artes, conduzindo a MARCONI, 2004, p. 64). produção de artistas como Hélio Oiticica, sujeito central do atual projeto, assim como A partir de um estudo com base no de outros artistas brasileiros tais como método bibliográfico, será desenvolvida Lygia Clark (1920-1988) e Tunga (1952- uma pesquisa de campo, como um meio de 2016), e alguns artistas internacionais, analisar as obras de Hélio Oiticica expostas tais como os americanos Chris Burden no Instituto Inhotim e de que forma elas (1946-2015) e Matthew Barney (1967) a uti- proporcionam possibilidades ao público lizarem tecnologias atuais. Esses artistas de interagir, vivenciar e fruir tais obras apresentam, em comum, produções como

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instalações, performances, vídeos, caracte- 2019. 2º semestre: Redação dos relató- rizando formas de expressão e linguagens rios de pesquisa, disseminação e avaliação. artísticas que utilizam grande aparato de tecnologia para atingir seu espectador. 2020. 1º semestre: Finalização e apre- Desta forma, torna-se especialmente rele- sentação do Relatório Final. vante avaliar o impacto de tais tecnologias sobre o espectador quando se depara com Este cronograma está sujeito aos ajus- as obras e instalações de Hélio Oiticica no tes necessários, em conformidade à apro- Instituto Inhotim. vação do projeto pela comissão da Fapesp.

Nesse contexto, os museus se recon- 4.2 Plano de trabalho figuraram para acolher tanto essa tipologia de obra contemporânea, que apresenta a luz Colaboração com as Comissões de dentro da percepção óptica, a obra sonora Pós-Graduação e de Pesquisa da FE-USP, e fonográfica, assim como a própria des- para o desenvolvimento de atividades materialização da obra, num processo de como: organização de eventos da Pós- intangibilidade material; quanto um novo Graduação e/ou da Pesquisa, tal qual perfil de visitante, buscando adequar-se às a organização do 8º Simpósio de Pós- novas tecnologias expositivas que solicitam Doutorado que se realizará em outubro materiais audiovisuais, dentro de uma dinâ- de 2018; emissão de pareceres e relatórios mica desafiadora, no sentido de gerar uma de pesquisa; e colaboração em disciplinas postura avaliativa para a presente pesquisa, de Pós-Graduação com a supervisora Profª fundada numa questão: Como essas tecno- Drª Elcie Aparecida F. Salzano Masini e/ logias podem intervir na obra exposta, no ou com professor(a) credenciado(a) no espaço expositivo e na fruição estética, na Programa de Pós-Graduação. perspectiva do espectador? Também há a disposição, pela autora do atual projeto, em participar ativamente e assiduamente nos encontros dos Grupos de Pesquisa, no âmbito do Programa de 4. Cronograma de execução da Pós-Doutorado da FE-USP, tal qual o pesquisa e plano de trabalho Grupo Perceber – FE-USP/ Universidade Presbiteriana Mackenzie – Endereço de acesso do registro no CNPq: http://dgp.cnpq. 4.1 Cronograma br/dgp/espelhogrupo/6984903913206956 (a pesquisadora M. L. Wochler Pelaes é inte- 2018. 2º semestre: Levantamento da grante desde 2015 até o momento). literatura existente. Também será feita a participação em 2019. 1º semestre: Pesquisa de campo, congressos, simpósios, seminários, encon- embasamento fenomenológico, dissemina- tros, palestras e demais eventos nacionais e ção e avaliação. internacionais: como a inscrição e participa- ção prevista para a sessão de Comunicação

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no 8º Simpósio de Pós-Doutorado da A avaliação será realizada a par- FEUSP (17 de outubro de 2018) e no GT de tir das orientações desenvolvidas entre a Comunicação IX Seminário Histórias de Supervisora – Responsável pela Pesquisa – Roteiristas: “Narrativas difusas em suportes e a pesquisadora/orientanda, a partir de sensíveis” (27 e 28 de setembro de 2018). registros, numa cronologia prevista, dentro do período para a realização desta tese. A avaliação da repercussão, quanto à pesquisa socializada através dos eventos propostos, proporcionará registros de diferentes nature- 5. Disseminação e avaliação zas: fotográficos, filmes, depoimentos, vivên- cias e relatórios que serão registrados na tese.

O processo de disseminação e avalia- Os inputs podem ser discriminados ção se dará por meio do estudo apresentado por meio dos dados coletados a partir das na atual proposta na redação de artigos observações participantes, entrevistas estru- científicos derivados do tema central, que turadas e semiestruturadas realizadas no proporcionem a divulgação dos resultados Instituto Inhotim, com colaboradores inter- alcançados em cada uma das etapas previs- nos e com os alunos da rede pública da comu- tas, por meio da participação em congressos, nidade de Brumadinho-MG e seu entorno, seminários, encontros, palestras e demais que participam do Educativo, setor que pro- eventos nacionais e internacionais. move projetos que oferecem vagas anuais aos alunos, num contraturno em relação ao A disseminação se dará também atra- período escolar. Estes vêm ao Inhotim par- vés da participação em eventos locais, prin- ticipar de cursos mediados pelos educadores cipalmente, pela realização de palestras e do Instituto, tendo a oportunidade de desen- workshops voltados para as escolas públicas volver seus trabalhos no Centro Educativo da rede estadual pertencentes à Diretoria Burle Marx, podendo utilizar o Ateliê, a de Ensino Região Norte 2, Zona Norte de Escola de Cordas, a Biblioteca e toda a sua São Paulo-SP, Brasil, buscando a sociali- infraestrutura disponível, segundo algumas zação da pesquisa através da capacitação propostas de experimentação. É importante docente. Será desenvolvida uma proposta apontar que quatro alunos que produziram investigativa relacionada aos docentes e obras artísticas a partir do trabalho realizado estudantes das escolas da Diretoria Norte no Inhotim tiveram a oportunidade de parti- 2, produzindo relatórios que permitam cipar expondo e fazendo cursos na 10ª Bienal registrar como os estudantes pensam e se de Arte Contemporânea de Berlim, em 2018. comportam frente à arte. Tal fato irá per- mitir avaliar como tais estudantes e profes- Os outputs poderão ser analisados a sores da rede identificam a arte brasileira partir de avaliações qualitativas dos dados e, especialmente, a obra de Hélio Oiticica, compilados, buscando revelar as impres- tendo como um dos objetivos verificar o sões e percepções dos estudantes citados contato e o conhecimento que apresentam em relação às obras de arte observadas e relativos aos acervos museológicos, frente aos espaços expositivos onde se encontram à perspectiva da atual pesquisa. tais obras, permitindo às pesquisadoras

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envolvidas, a realização de relatórios expli- cativos em cada etapa da pesquisa proposta.

6. Outros apoios

Contou-se com o apoio da produção científica da pesquisadora e supervisora Profª Drª Elcie F. Salzano, através de suas pesquisas relativas aos livros: Perceber: raiz do conhecimento I e II, publicados em 2012 e 2018, respectivamente, e demais pesqui- sas que muito poderão contribuir para a presente proposta O Grupo de Pesquisa Perceber, através de contribuições fundadas nas reflexões coletivas, a partir de encon- tros periódicos. Também do Grupo Perceber, [ MARIA LÚCIA WOCHLER PELAES ] do Diretório de Pesquisas do CNPq, que Pós-Doutoranda em Educação pela Faculdade de tem como líder a Profª Drª Elcie Aparecida Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP). Fortes Salzano Masini. A pesquisadora Doutora em Educação, Arte e História da Cultura Maria Lúcia Wochler Pelaes também faz pela Universidade Presbiteriana Mackenzie parte desse Grupo de Pesquisa desde 2015 (UPM). Mestre em Educação pela Universidade São até o momento. Francisco (USF). Graduada em Pedagogia. Graduada em Artes pela Fundação Armando Álvares Penteado O Instituto Inhotim, por meio da dis- (FAAP). Docente e Coordenadora na Educação Básica ponibilidade à pesquisa de campo via apro- e nos cursos de graduação e pós-graduação. vação pelo Conselho de Ética do museu. E-mail: [email protected]

Todos os apoios supracitados são [ ELCIE A. FORTE SALZANO MASINI ] apenas apoios de pesquisa e não implicam Livre Docente da Universidade de São Paulo-USP. verbas nem subsídios financeiros de espécie Graduada em Pedagogia pela USP (1964), mestre em alguma. Psicologia (Psicologia da Educação) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) (1976) e doutora em Psicologia (Psicologia da Educação) pela PUC-SP (1982). Livre docente em Educação Especial na USP (1990), é professora associada desde 1983. Foi sócia fundadora do Laboratório Interunidades de Estudos sobre as Deficiências (Lide), localizado na Faculdade de Psicologia da USP. E-mail: [email protected]

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[ RESENHA ]

Esmejoano Lincol França Universidade Federal da Paraíba. Esmejoano Lincol França As funções sociais da polêmica segundo Ruth Amossy 279  

[ RESUMO ABSTRACT RESUMEN ]

Em Apologia da polêmica, livro da escritora e professora francesa Ruth Amossy, o aspecto negativo do dissenso e da polêmica, presente nos discursos antagônicos coti- dianos, é questionado e desmistificado. Trazendo estudos sobre esses assuntos ao longo dos séculos e analisando diversos embates sociais ocorridos na Europa nos últimos oito anos, a autora defende a possibilidade de enriquecimento dos debates públicos sobre questões de interesse coletivo com a promoção de polêmicas.

Palavras-chaves: Polêmica. Dissenso. Discurso. Sociedade.

In Apologia da polêmica (Apology of controversy), a book by French writer and teacher Ruth Amossy, the negative aspect of the dissension and controversy, present in everyday antagonistic discourses, is questioned and demystified. Bringing studies about these subjects over the centuries and analyzing various social conflicts in Europe in the past decade, the author defends the possibility of enriching public debates on issues of collective interest with the promotion of polemics.

Keywords: Controversy. Dissension. Discourse. Society.

En Apologia da polêmica (Apología de la polémica), libro de la escritora y profesora francesa Ruth Amossy, se cuestiona y se desmitifica el aspecto negativo del disenso y de la polémica, presente en los discursos antagónicos cotidianos. A partir de estu- dios sobre estos asuntos a lo largo de los siglos y analizando diversas luchas sociales ocurridas en Europa en los últimos ocho años, la autora defiende la posibilidad de enriquecimiento de los debates públicos sobre cuestiones de interés colectivo con la promoción de polémicas.

Palabras claves: Polémica. Disenso. Discurso. Sociedad.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2019.155684

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Catolicismo versus protestantismo. intituladas, respectivamente: “Reflexões Socialismo versus capitalismo. Direita ver- teóricas”, “As modalidades da polêmica: o sus esquerda. As disputas polarizadas em exemplo das mulheres no espaço público” e torno de ideologias (religiosas, econômi- “Razão, paixão e violência: o debate sobre os cas, políticas, etc.) existem no cotidiano dos bônus e a compra de ações”, além da intro- indivíduos há muitos séculos e continuam dução e de um capítulo final, intitulado “À sendo criadas, alimentadas e mediadas, guisa de conclusão”. Cada uma dessas três atualmente pela internet, e midiatizadas partes está dividida em dois capítulos, que também graças a essa rede. Há quem ale- serão analisados e especificados ao longo gue estar isento e a favor de acordos para desta resenha crítica, e diversos subcapí- as mais diversas dicotomizações, já que o tulos; o capítulo final, por seu turno, sub- consenso suprime os conflitos. divide-se em duas seções.

Todavia, Ruth Amossy, escritora fran- A primeira parte do livro, “Reflexões cesa e professora emérita da Universidade teóricas”, traz em seu primeiro capítulo, de Tel Aviv, indica em uma de suas mais “Gerir o desacordo em democracia: por recentes obras, Apologia da polêmica (2017), uma retórica do dissenso”, um tratado que o dissenso – o oposto do consenso – sobre o tão rejeitado antônimo da palavra e, especificamente, a polêmica podem ser consenso, o elemento-gênese da polêmica: moldados para ampliar de forma benéfica o dissenso é definido como “o inverso do os conflitos que sempre vão existir entre os acordo social, a divisão de opiniões no indivíduos. As discutíveis dicotomizações espaço público” (AMOSSY, 2017, p. 18). entre nações, partidos e religiões, impul- Nesse capítulo, Amossy relembra várias sionadas, principalmente, pelas já citadas tentativas de manter o consenso como a polarizações, existem, segundo a autora, base das interações sociais. Uma delas é a para cumprir funções sociais, desde enri- reconstrução da retórica grega sob o signo quecer o debate que elas mesmas geram até, da pacificação por Chaïm Perelman e Lucie ironicamente, ser o motor dos processos Olbrechts-Tyteca após o fim da Segunda democráticos que vivenciamos. Guerra Mundial. Amossy reúne no mesmo capítulo uma gama de teóricos que tenta- Escrito por Amossy (com tradução ram produzir novas perspectivas sobre o de Mônica Magalhães Cavalcante) e publi- dissenso durante o século XX. O alemão cado pela Editora Contexto em 2017, com Arthur Schopenhauer é citado como o pai 221 páginas, Apologia da polêmica traça um fundador dos estudos atuais da polêmica. panorama dos estudos sobre o dissenso e a Já Lewis A. Coser é apontado como um polêmica desde a antiguidade, recorrendo, dos primeiros autores a revisar a função para isso, a Aristóteles, até os dias atuais, do dissenso: “a combinação de positivo e citando autores contemporâneos como negativo é necessária, porque um grupo Patrick Charaudeau e Marcelo Dascal. A totalmente harmonioso seria privado de obra ainda analisa polêmicas públicas ocor- estrutura e vitalidade” (Ibidem, p. 33). ridas em território europeu nos oito anos anteriores à data de publicação do trabalho. Depois de apresentar o dissenso, O livro está dividido em três grandes partes, força-motriz dos mais diversos conflitos que

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estudaremos ao longo do livro, no segundo os discursos antagônicos gerados a partir dos capítulo da primeira parte, chamado de “O problemas em questão foram construídos. que é a polêmica? Questões de definição”, Ela ancora suas impressões em três ques- a autora traz dois casos específicos para tionamentos: “o que é a polêmica? […] com ensaiar suas primeiras análises da obra. O funciona a polêmica? […] E, mais particular- primeiro caso, uma controversa foto pre- mente: como ela se manifesta no discurso que miada pela editora Fnac em 2010, que mostra as mídias fazem circular em espaço público?” um rapaz limpando as nádegas com uma (AMOSSY, 2017, p. 71). bandeira francesa; o segundo, o exílio fiscal do ator Gerard Depardieu. Os episódios cita- Em “Discurso e interação polêmica: o dos se transformaram em gigantescos deba- uso da burca na França”, primeiro capítulo tes nacionais sobre liberdade de expressão, da segunda parte, “As modalidades da polê- nacionalismo, economia e, claro, política. A mica: o exemplo das mulheres no espaço midiatização massiva da polêmica em torno público”, Amossy destrincha o caso da lei da foto premiada, por exemplo, culminou francesa sancionada em 2010, que proibia na votação de um decreto que estipulava cobrir o rosto em espaços públicos e incidia multa ao cidadão que ultrajasse a bandeira de forma incisiva nas mulheres islâmicas da França em local público. usuárias da burca. Amossy revela que o discurso jornalístico construído em cima da No decorrer desse segundo capítulo, problemática mediou os atores que repre- Amossy sugere que a polêmica está estrutu- sentavam as opiniões opostas em torno rada sob o campo da argumentação teórica, do tema. Ela diferencia ambas as aborda- apoiada por características definidoras do gens da polêmica apontadas no título dessa discurso antagônico: a dicotomização, a seção – discurso e interação – ao afirmar polarização e a desqualificação do outro. que a primeira, discurso, fixa a polarização A violência verbal e o páthos (a paixão, o a partir da produção discursiva de uma das emocional) também atuarão nessa estrutura partes que compõe esse polo, enquanto a conflitual, mas de forma secundária; apesar segunda, interação, representa a relação desse movimento polarizador e desqualifi- entre as duas produções discursivas exclu- cador da polêmica, ela não está necessaria- dentes da polêmica. mente pautada em debates violentos, visto que é, acima de tudo, uma modalidade argu- Religião e feminismo também estão mentativa. Amossy ressalva também que em pauta no segundo capítulo dessa parte, nem todo discurso violento é polêmico: ele “A polêmica no espaço público: ‘a exclusão precisa ser usado num contexto específico das mulheres’ em Israel”. Esse momento de confronto de opiniões contraditórias. do livro narra um episódio ocorrido em 2011: Tanya Rosenblit, uma israelita, recu- Na segunda e terceira partes do livro, sou-se a sentar no lugar reservado para as Ruth Amossy amplia suas análises, realizando mulheres num ônibus que trafegava com estudos de casos mais aprofundados em torno judeus ultraortodoxos (também chamados de polêmicas públicas recentes, fomentadas de haredim). Ao destrinchar essa polêmica, e mediadas por meios de comunicação da Ruth Amossy demonstra que o episódio Europa. O intuito da autora é entender como serviu tanto para polarizar a controvérsia

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em torno do direito das mulheres laicas de forma positiva, o sentimento de indignação se sentar em qualquer cadeira dos ônibus aqui destacado movimentaria públicos e utilizados pelos haredim, como para incubar os aglutinaria em torno de um sentimento nos discursos do proponente e do oponente em comum. outras questões sobre política, religião e identidade nacional, gerando, dentro dos No segundo capítulo da terceira parte, limites do aceitável, um debate maior e mais “A violência verbal: funções e limites – As profícuo. discussões inflamadas nas conversações digitais” a autora desmistifica a violência Na terceira parte do livro, “Razão, verbal, indicando que, quando dosada, ela paixão e violência: o debate sobre os bônus pode ser funcional em uma polêmica gerada e a compra de ações”, outra polêmica pública no espaço público: “um comportamento nor- é utilizada para discutir os elementos mativo em um contexto social que modela secundários embutidos na interação e no as regras do meio” (AMOSSY, 2017, p. 175). discurso polêmico: a paixão e a violência verbal. Amossy propõe que os fóruns da No último capítulo do livro, “À guisa internet são espaços onde esses dois ele- de conclusão”, Amossy resume em alguns mentos podem ser notados nas polarizações pontos sua análise dos casos destacados. suscitadas. O primeiro capítulo dessa seção, Para a autora: a polêmica não pode ser “Racionalidade e/ou paixão: a opção de com- medida com base apenas no diálogo, já que pra de ações em tempos de crise” relembra a este faz parte de um conjunto de elementos problemática em torno da Chevreux – uma complexos que passam não apenas pela ins- corretora de ações francesa que simulta- tância argumentativa, mas também pelas neamente demitiu 75 funcionários e dis- instâncias sociais (no caso dos discursos tribuiu 51 milhões de euros em bônus aos políticos inflamados) e pessoais (no caso seus executivos. das paixões); as mídias (massivas ou não) têm um papel fundamental na construção Tendo como pauta a interação entre da polêmica e na sua difusão, tanto entre internautas em fóruns de discussão on-line, os polos interessados como entre terceiros; a autora ressalva mais uma vez que a paixão é necessário desmistificar o dissenso, ele- não faz parte da gênese da polêmica, mas mento fundador da polemica, como lugar assume papel de “gasolina”, inflamando os incompatível para o desenvolvimento de diálogos, fixando-se como elemento secun- um espaço público, já que ele cumpre a dário no debate. As paixões contidas na função de unir discursos conflitantes num discussão sobre o caso estão depositadas no mesmo ambiente social; polemizar tam- sentimento de indignação. Raphaël Micheli, bém é racionalizar de forma alternativa, citado por Ruth Amossy, afirma que indig- mesmo que seja a partir de um ponto de nação “é uma emoção que requer que se vista enviesado. descreva um estado de coisa negativo não como efeito do acaso, porém como efeito Por fim, Ruth Amossy também define de uma ação cuja responsabilidade se pode as possíveis funções sociais da polêmica: imputar a um agente” (MICHELI, 2010 apud persuadir e dominar uma parte do público AMOSSY, 2017, p. 148). Assim sendo, de que acompanha o dissenso; tecer o elo social,

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permitindo a criação de polarizações sem excluir a possibilidade de convívio entre as partes opostas; ser uma forma de protesto, tanto de forma coletiva como individual; e, por fim, constituir uma forma de posiciona- mento, pró ou contra o discurso que é defen- dido por certo ator social numa polêmica.

Ainda que cite episódios que podem se tornar datados com o passar dos anos, Amossy ressalva em seu livro que qual- quer polêmica é “rica de ensinamentos, na medida em que revela muitas coisas sobre a sociedade e a época na qual o dis- curso polêmico circula no espaço público” (AMOSSY, 2017, p. 49). A obra resenhada neste texto é uma ferramenta importante para os profissionais ou pesquisadores que estudam os discursos antagônicos tão presentes na contemporaneidade. Ruth Amossy explica sua Apologia da polêmica numa linguagem acessível e dinâmica. Para a autora, a tão temida dicotomização pode auxiliar na construção de uma sociedade mais argumentativa e plural.

[ ESMEJOANO LINCOL FRANÇA ] Jornalista graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Atualmente, é mestrando em Comunicação e Culturas Midiáticas pela mesma instituição, e está cursando Letras no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba. É integrante do Grupo de Estudos em Cinema e Audiovisual (Gecine), da UFPB. E-mail: [email protected]

Extraprensa, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 278 – 284, jan./jun. 2019 [ EXTRAPRENSA ] Esmejoano Lincol França As funções sociais da polêmica segundo Ruth Amossy 284  

Referência

AMOSSY, Ruth. Apologia da polêmica. São Paulo: Editora Contexto, 2017.

Extraprensa, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 278 – 284, jan./jun. 2019 [ EXTRAPRENSA ]