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O Estúdio Disney vai à guerra ANNATERESA FABRIS Ao que consta, Disney não era favorável ao ingresso dos Estados Unidos no conflito mundial, tendo apoiado o Neutrality Act de 1939 e participado do movimento isolacionista American First Committee, originado na Universidade Yale em setembro de 1940 (KRAUSE, 2011: 128). Um mês depois, no entanto, acossado por problemas financeiros, começa a negociar com as Forças Armadas a realização de filmes de treinamento. Contando com a colaboração de George Papen, confia a James Algar a direção de um curta-metragem de animação educacional, Four methods of flush riveting, que ensinava a prender chapas de alumínio na fabricação de aeronaves (abril de 1941). A película chama a atenção de John Grierson, organizador do Conselho Nacional do Filme do Canadá, interessado na possível aplicação do desenho animado em outros âmbitos além do entretenimento, que adquire os direitos de exibição para o próprio país e encomenda uma série de trabalhos. Um deles é uma combinação de desenho animado e live action intitulado Stop that tank! (1942). Dirigido por Ub Iwerks o curta-metragem divide-se em duas partes: uma animação de três minutos protagonizada por um Adolf Hitler caricato e uma fusão de live action e desenho animado para demonstrar o uso apropriado de um rifle antitanque. Stop that tank! não era a primeira película que Disney realizava para o Canadá. Na qualidade de membro da Comunidade Britânica, o país ingressara no conflito mundial em 10 de setembro de 1939 e, como necessitava de recursos, recorre a Disney para implementar uma campanha de aquisição de obrigações de guerra. O primeiro produto é The thrifty pig, lançado em 19 de novembro de 1941. Estrelado por Prático, Heitor e Cícero, o curta-metragem retoma o desenho animado Os três porquinhos (Three little pigs, 1933) com algumas variantes: a casa do primeiro é construída com sólidos bônus de guerra; o Lobo Mau veste um uniforme nazista. Ao fracasso de Lobão seguem-se cenas de guerra repletas de mensagens que convidavam a população a investir na vitória por meio de poupança e da aquisição de apólices de guerra. Professora aposentada da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]. 2 Primeiro filme de propaganda bélica do estúdio californiano, The thrifty pig apresenta diversas características presentes também nas futuras realizações: uso de personagens conhecidos pelo público; aproveitamento de situações e/ou sequências de películas anteriores; tom cômico ou jocoso. É o que demonstram os outros filmes feitos para as agências do governo canadense: Seven wise dwarfs, Donald’s decision e All together!. O primeiro, que estreia em 12 de dezembro de 1941, reaproveita nas sequências iniciais cenas da mina de Branca de Neve e os sete anões (Snow White and the seven dwarfs, 1937) para mostrar em seguida a ida dos protagonistas a uma agência dos correios, onde trocarão pedras preciosas por obrigações de guerra. Com estreia em 13 de janeiro de 1942, All together! representa a única aparição de Mickey num filme de propaganda bélica. Além de reaproveitar material de The band concert (1935) e Mickey’s amateurs (1937), a película, que apresenta uma parada pelas ruas de Ottawa, conta com a participação de um bom número de personagens famosos: Pinóquio, Gepeto e o gato Fígaro; Donald e os sobrinhos Huguinho, Zezinho e Luisinho; Pluto; Mickey, Clarabela, Horácio e Pateta; os sete anões. Baseado em Donald’s better self e Self control, duas fitas de 1938, Donald’s decision, que estreia em 11 de janeiro de 1942, concentra-se na luta entre as duas almas do protagonista: a angélica, que o incentiva a adquirir obrigações de guerra; a diabólica, que o insta a divertir-se e a gastar dinheiro consigo mesmo. Todos esses filmes são marcados pela repetição das mensagens de incentivo à poupança interna e à aquisição das apólices. O ataque japonês a Pearl Harbor (7 de dezembro de 1941) precipita a entrada dos Estados Unidos na guerra, dando origem ao interesse do governo por um cinema capaz de glorificar os valores nacionais, consubstanciados em ideias como “América livre”, “American way of life” e “verdadeiro americanismo” (KRAUSE, 2011: 131). Autênticos leitmotiven em todos os filmes de propaganda, tais ideias encontram um ponto de condensação numa realização de 1943, Reason and Emotion, que representa a luta entre as faculdades de pensar e de sentir por meio de algumas figuras paradigmáticas: um bebê que faz tudo o que quer porque a Emoção (um pequeno cavernícola) predomina sobre a Razão (um homenzinho de óculos); Junior adulto, que enfrenta situações perigosas ou constrangedoras por dar ouvidos à Emoção; sua contrapartida feminina, que só pensa em empanturrar-se sem levar em consideração os 3 riscos decorrentes de tal atitude; John Deaker, que tenta manter-se informado sobre a guerra, parecendo dar preferência a informações negativas sobre a derrota dos Estados Unidos, o envio de alimentos para fora do país e a falta de pneus e gasolina. A mensagem do filme é clara: para evitar que a Razão seja escravizada por uma Emoção deletéria, é necessário que as duas se unam e lutem contra o inimigo comum, o nazismo. Como os valores do consumo, inerentes ao “American way of life”, são postos em xeque pela economia de guerra cabe ao Estúdio Disney convencer os cidadãos norte- americanos da necessidade de fazer sacrifícios para garantir a vitória e, com ela, preservar o próprio estilo de vida. A primeira realização nesse sentido – The new spirit – diz respeito ao pagamento do imposto de renda. Encomenda do Departamento do Tesouro, o filme, que estreia em 23 de janeiro de 1942, tem Donald como protagonista O pato despreocupado é convencido por uma mensagem radiofônica a contribuir para o esforço bélico. Num rompante preenche um cheque com o imposto devido e corre para Washington para entregá-lo pessoalmente. A comicidade da situação, representada por cenas em que Donald ora é relutante, ora é entusiasta com o esforço bélico, cede lugar no final a uma explicação didática sobre o uso do dinheiro arrecadado e sobre como ele ajudaria a derrotar o Eixo. A classificação do filme na rubrica “De utilidade nacional” (S.A., 1942: 1) faz com que a parceria com o Departamento do Tesouro prossiga no ano seguinte com The spirit of ’43. A produção, que estreia em 7 de janeiro de 1943 com o objetivo de envolver a população na política fiscal do governo, confere um tom mais militante ao conflito entre bem e mal que estivera na base de Donald’s decision. Depois de receber o salário, o protagonista debate-se com dois aspectos da própria personalidade: o lado poupador, representado por um pato idoso; a parte esbanjadora, entregue a um pato folgazão, que o incita a “gastar e ser feliz”. A luta entre o bem e o mal tem como desfecho a descoberta de que o pato tentador era um agente nazista, que o incentivava a “gastar pelo Eixo”, em vez de poupar para pagar os impostos. Acompanhado pelo pato velho, Donald finalmente paga o imposto devido. A segunda parte do curta-metragem é uma reciclagem do final de The new spirit. Os mais diversos aspectos do esforço bélico são abordados pelo estúdio por meio de mensagens bastante variadas: incentivo à aquisição de obrigações e selos de guerra; necessidade de aderir ao racionamento e, associado a este, o convite a trabalhar na 4 produção agrícola e a cultivar as “hortas da vitória”; o alistamento voluntário; o trabalho em fábricas de material bélico; a doação de bandagens e restos de óleo de cozinha; os exercícios militares a serem feitos pela população civil; a vigilância interna contra o inimigo etc. A questão das apólices e dos selos de guerra é abordada, entre outros, em algumas tiras diárias e no livro The victory march: the mystery of the treasure chest. Realizado para o Departamento do Tesouro por Disney e Chester Williams e publicado pela Random House (1942), o livro narra a luta de um grupo de personagens do estúdio (entre os quais Mickey, Minnie, Donald, Branca de Neve, os porquinhos, os anões, Pinóquio, Pateta, Havita e Dumbo) contra o Lobo Mau vestido de nazista e dois lobos menores – Japonês e Italiano –, que haviam roubado a arca do tesouro do pato. Depois de uma caçada por entre os monumentos de Washington, o grupo recupera a arca que continha um selo de defesa. A problemática do racionamento é amplamente explorada nas tiras diárias, abarcando diversos aspectos do cotidiano afetados pela guerra: economia forçada de energia, carvão e gasolina; criação de galinhas no quintal; doação e coleta de sucatas e roupas usadas para o esforço de guerra; uso de carro elétrico; invenção de novos tipos de utensílios domésticos; fabrico caseiro de tamancos de madeira; uso indevido da ração do mês; modalidades inéditas de caça ao tesouro... De maneira bem humorada, os desenhistas do estúdio confrontam o público norte-americano com a necessidade de adaptação a uma nova realidade, mesmo que isso acarrete inúmeros problemas no cotidiano. Um dos aspectos centrais do esforço de guerra era a produção de alimentos tanto para a população quanto para as tropas aquarteladas no exterior e para os países aliados. O Estúdio Disney participa dessa empreitada com tiras em quadrinhos, animações e peças publicitárias. As tiras de O mistério do corvo (Mickey Mouse in the black crow mystery), publicadas entre 17 de agosto e 21 de novembro de 1942, trazem diversos ecos da entrada dos Estados Unidos no conflito por meio de um conjunto de referências precisas. Mickey e Pateta querem contribuir para o esforço de guerra. Por ser “muito jovem e muito pequeno”, o primeiro não é aceito em nenhuma fábrica de armamentos ou explosivos.